Continente #111 - O prazer do texto

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março 2010

HElDEr TAvArES

aos leitores Existe um momento para se começar a fruir a literatura? Muito provavelmente, é a partir das cantigas de ninar com as quais nossas mães nos acalantam e das histórias que ouvimos que tem início o prazer do texto. Antes mesmo de tomar forma de letra e livro, o mundo inventado da ficção nos cativa, porque nos remete ao nosso próprio universo imaginativo, estimula nossa capacidade de fabulação. Por que, então, nem todos nós somos leitores? Por que há os que dizem não ter o hábito ou mesmo não gostar de ler? Será apenas pelos evidentes motivos da baixa escolaridade e das contingências de uma cultura excessivamente visual? Quando e como atrair as crianças para a leitura? Que estratégias usar? Como formar futuros adeptos da literatura, uma arte de poderoso auxílio ao crescimento humano? Para pais e educadores, essas são questões sempre presentes. Nesta edição da Continente, dedicamo-nos a discutir o assunto reunindo os agentes nele envolvidos: crianças, pais, educadores, autores e editores, cada um deles prioritariamente interessado no tema por motivos diferentes (diversão, aprendizado, ensino, criação,

profissão, negócio), mas que tem como princípio uma emoção imprescindível à melhor realização de qualquer tarefa – o prazer. E é justamente o prazer que ecoa das falas dos entrevistados para essa reportagem, juntamente com outra resposta – compromisso –, igualmente necessário ao êxito de qualquer projeto. Nesse sentido, irmanamo-nos aos entrevistados, tanto no que diz respeito ao compromisso com o estímulo à leitura quanto ao prazer de exercê-la. Um gesto de apoio a esse campo, que é de fruição, criação e também de fomento, está sendo feito pela Cepe, ao lançar este ano o I Concurso Nacional Cepe de Literatura Infantil e Juvenil. Sobre outros temas trazidos nesta edição, destacamos a abordagem da colaboradora Ana Braga para o tema feminismo. A jornalista nos propôs fazer uma reportagem visual que tivesse como personagem uma mulher que refletisse o legado daquele movimento social, um dos mais transformadores do século passado. Achamos, aqui, na redação, que a dobradinha entre ela e o fotógrafo Helder Tavares funcionou muito bem. Diga você, leitor, o que achou também.

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sumário Portfólio

Mauricio Planel 06

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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eccehomo cetina Escritor e repórter investigativo colombiano conversa sobre a guerra do exército do seu país contra as Farc

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Matéria corrida

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Visuais

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claquete

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Leitura

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Saída

Balaio

cena brega Uma tendinite, que poderia ser um estorvo na carreira de um músico, acaba virando oportunidade para Rodrigo Mell

Viagem

Museus Dois espaços dedicados à produção de artes e ofícios no Brasil reforçam a vocação de Belo Horizonte para o turismo cultural

História

Gregório Bezerra Há 110 anos nascia o combatente de esquerda que foi um exemplo de bravura

Palco

Milagre brasileiro Espetáculo do grupo Alfenim trata dos desaparecidos políticos na ditadura militar

Romântico Academia da Berlinda prepara seu segundo CD, em que a mistura de ritmos latinos e brasileiros remete aos antigos clubes de baile

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conexão

cinema Site norte-americano apresenta cardápio de resenhas sobre filmes de diferentes publicações

Sonoras

O uruguaio, radicado no Brasil, desenvolve a técnica da colagem, em trabalhos que resultam em crítica, divertimento e, sobretudo, composições surrealistas

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José cláudio Como a invenção do tubo de tinta, no século 19, pelo americano John Goffe Rand, revolucionou a pintura charles Landseer Caderno de desenhos do artista britânico revela a paisagem de cidades brasileiras na primeira metade do século 19

Realismo Cinema social inglês se renova em obras como À procura de Eric, de Ken Loach, remontando ao movimento documentarista dos anos 1930 crítica literária Com a morte de Wilson Martins, o Brasil perde o último integrante de uma geração de resenhistas que orientou leitores de jornal diário Braulio tavares A profusão de informação na web, ironicamente, fomenta a manutenção de fronteiras e a hiperespecialização

Pernambucanas

Arquitetura moderna Casa dos anos 1950, que abriga centro cultural à beira-mar de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, é um dos raros exemplares do estilo na faixa litorânea

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Capa iLuStRação Maurenilson

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especial

Perfil

Gênero que passa a ser considerado fundamental à educação brasileira, a partir dos anos 1970, é discutido em sua atualidade e relevância por autores, educadores e leitores

A volta por cima do cantor que foi incensado no cenário da música nacional no final dos anos 1990, entrou no ostracismo, e está sendo revalorizado com o lançamento de seu novo disco

Humor

comportamento

Personagem de uma das mais duradouras séries japonesas, ele é alma gêmea de memoráveis vagabundos, como Carlitos e o nacional Didi Mocó

Reportagem visual e artigo buscam retratar e entender o legado do movimento social que marcou o século 20

Literatura infantil

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Tora-san

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Otto

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Mar’ 10

Feminismo

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te

o

cartas Leitores e prestigiadores Aos amigos, simpatizantes e sobretudo dissidentes da PAP (Patrulha Auto Promocional), seguem recomendações: a) Todo cuidado com as possíveis e arrebatadoras hermenêuticas da cineasta Luci Alcântara; b) Suas interpretações popfilosofantes podem nos confundir entre objetividades e subjetividades; c) Melhor do que na canção do Caetano, trata-se de um “sujeitobjeto” em processo permanente de identificações, transferências e mutações; sem temor dos vampirismos; d) O referente do texto da L.A. (que não é abreviatura de Los Angeles) continua perseguindo seu itinerário errático: indie, indígena, in-dependente, alternativo dos velhos temporais; e) Todo cuidado, portanto, com as propagandas enganosas e perspectivas autopromocionais, sempre em busca do leite derramado pelas viúvas, madrinhas e afilhadas dos poderosos dos dias

noites madrugadas bem dentro dos multiculturalismos; f) Em louvor da letra, da fé, ferocidade e felicidadania dos que usam e abusam da PAP, terminamos investindo na necessidade de leitura mais fundamental; g) Do modernismo à bossa nova, do famigerado JMB, pode ser encontrado e encomendado nas livrarias Cultura em todo território nacional.

Agradecemos também o artigo de Alexandre Figueirôa na Continente que, aliás, estou divulgando a mil! Um texto primoroso, na medida certa. Obrigada. lúcia machado recife – pe

nota da redação O escritor Jomard Muniz de Britto se refere ao artigo Objeto identificado, da cineasta Luci Alcântara, publicado na seção Saída da edição de fevereiro (nº 110), deste ano.

A todos os que fazem a Cepe, em especial a Leda Alves, agradeço por tanta gentileza e empenho com vistas à divulgação do nosso teatro, desde as publicações do Festival Recife do Teatro Nacional.

o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, Santo amaro, recife-PE, CEP 50100-140).

Jomard muniz de britto recife – pe

Modernidade no teatro

Você faz a continente com a gente

errata A foto do Maestro Forró (acima), capa da edição 110, é de Beto Figueiroa. No mesmo número, o nome da Troça O Cachorro do Homem do Miúdo, que comemora seu centenário em 2010, foi grafado de forma errada na página 29.

as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

(81) 3183 2780

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colaboradores

ana Braga Repórter do Diario de Pernambuco, professora de jornalismo e blogueira.

Baptistão Caricaturista de O Estado de S. Paulo, premiado nacional e internacionalmente.

edson nery da Fonseca Fundador da UnB e dos cursos de graduação e pós-graduação em biblioteconomia.

Marcelo Mário de Melo Jornalista. Foi preso político e conviveu com Gregório Bezerra.

e MaiS astier Basílio, poeta, jornalista e dramaturgo. Braulio tavares, escritor e compositor, mantém no Jornal da Paraíba uma coluna diária sobre cultura. daniel Buarque é jornalista, publicou o livro Por um fio – O mundo explicado pelo telefone, e atualmente mora em Nova York. débora nascimento, jornalista e editora da revista Eita!. Fabiana Moraes, jornalista e doutoranda em sociologia. Fábio Liberal, jornalista, professor de inglês e aspirante a cineasta. Fernando Monteiro, escritor e cineasta, autor de Vi uma foto de Anna Akhmatova. Gilson oliveira, jornalista e revisor. Hélder tavares, fotógrafo. Marcelo abreu, jornalista, professor universitário e aventureiro. Samarone Lima, jornalista, escritor, blogueiro e torcedor do Santa Cruz. Schneider carpeggiani, jornalista e doutorando em letras. Weydson Barros Leal, escritor, poeta, crítico de arte e aficionado da obra de Rimbaud.

GoVerno do eStado de PernaMBUco

Superintendente de ediÇÃo

contatoS com a redaÇÃo

atendimento ao aSSinante

goVernador

Adriana Dória Matos

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Eduardo Henrique Accioly Campos

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Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão redaÇÃo

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coMPanHia editora de PernaMBUco – cePe

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Júlio Gonçalves

www.revistacontinente.com.br

preSidente

Thiago Lins (jornalistas)

Eliseu Souza

Leda Alves

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diretor de produÇÃo e ediÇÃo

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Pimentel, Guilherme Carréra e Karina Freitas

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Bráulio Mendonça Menezes

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conSelho editorial:

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Armando Lemos Alexandre Monteiro

Mário Hélio (presidente) Antônio Portela

arte

Rosana Galvão

José Luiz Mota Menezes

Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação)

Gilberto Silva

Luís Reis

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

Daniela Brayner

Luzilá Gonçalves Ferreira

Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE redaÇÃo, adminiStraÇÃo e parQue grÁfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

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eccehomo cetina

“não me lembro de meu país em paz” Em passagem pelo Brasil, escritor colombiano, destacado por suas reportagens investigativas, fala da guerra contra as Farc, a partir do lançamento de seu livro O tesouro texto Samarone Lima

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Entrevista

Quando teve que se alistar no Exército da Colômbia, Eccehomo Cetina passou por uma loteria. Se seu nome fosse sorteado, como determina a lei, seria obrigado a cumprir o serviço militar e provavelmente teria que lutar, na selva, contra os guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Dos 45 escolhidos na loteria, seu estranho nome não constava. Muitos de seus amigos, obrigados a vestir a farda verde-oliva, morreram em combates na selva, fato que se repete há mais de 45 anos. “Se eu tivesse ficado, não estaria aqui, falando dos meus livros e do meu país. Sou um sobrevivente”, diz. Reconhecido na Colômbia por suas reportagens investigativas, com quatro livros editados, Cetina acaba de publicar, no Brasil, O tesouro, a história verídica de um grupo de soldados colombianos que encontrou cerca de US$ 80 milhões enterrados na selva de El Caguán. Trata-se de uma pequena joia de 142 páginas, com todos os recursos de um bom romance, daquelas narrativas em que o autor

agarra o leitor na primeira página, e só o liberta ao final. A história parece atropelar a realidade, apesar de ser tão prosaica. Um soldado do exército (um desses jovens sorteados pelo azar), acometido de uma diarreia, se afasta do seu pelotão, que brinca de gato e rato com os guerrilheiros. Após fazer seu serviço, encontra um objeto enterrado num pedaço da selva colombiana. Pensava se tratar de uma mina terrestre. Era a ponta de um iceberg feito de dólares e pesos colombianos, cuidadosamente empacotados, contados e com proteção contra formigas. Nos dias seguintes, dois batalhões viveriam uma espiral de histeria, loucura e ambição, uma guerra interna para ver quem conseguiria ficar com os milhões enterrados pela própria guerrilha. O tesouro pertencia às Farc, resultado do lucrativo negócio com o narcotráfico e com os sequestros. Hoje, calcula-se que a guerrilha tenha em seu poder cerca de quatro mil pessoas. O sequestrado mais antigo está em algum ponto remoto

da selva há 10 anos. Como o dinheiro foi encontrado na Semana Santa de 2004, os soldados avaliaram que tinha sido “um presente de Deus”, e fizeram a partilha. Num dos bons diálogos do livro, um soldado entrega um lote de dinheiro ao amigo de farda e diz: “Isto é para que você mande à merda toda a sua pobreza”. Cetina aproveita a repercussão do livro para refletir sobre o Plano Colômbia, parceria tecnológica e militar da Colômbia com os Estados Unidos, e criticá-lo; o Plano permitiu a ampliação, recentemente, de bases e soldados norte-americanos em seu país, gerando uma enorme tensão na região, especialmente com a vizinha Venezuela, que alertou para uma possível guerra. Aos 41 anos, ele diz que seus livros são apenas variações da mesma guerra, e teme que não consiga deixar um país melhor para sua filha, Paula Cetina. continente Na Fliporto (Festa Literária de Porto de Galinhas), você disse uma frase que merece reflexão: “Desde que tenho memória, não me lembro de

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tom cabral

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continente Ler, viver entre os livros, depois se tornar escritor, e contar coisas da guerra. O que isso representou para sua vida? ecceHoMo cetinA Na infância, tive que me refugiar na literatura, a única pátria livre que me restava. continente Você chegou a comentar que a loucura de tanto dinheiro, no calor da selva, gerou 77 versões da mesma história. Como conseguiu dar unidade à narrativa, que segue como um rio? ecceHoMo cetinA Quando comecei a fazer a investigação,

próxima do que realmente se passou naquela Semana Santa na selva, quando 147 soldados enlouqueceram com o milionário tesouro. continente Pela naturalidade com que os soldados pegam o dinheiro e enchem suas mochilas, muitos alegando que eram dólares, “moeda de outro país”, e que, portanto, não tinham dono, parece que há uma tradição de saque do dinheiro do narcotráfico, por parte das forças armadas. ecceHoMo cetinA Claro, há muitos casos. Recordo o que ocorreu

fotos: reprodução

meu país em paz”. Escrever O tesouro, uma história de soldados enlouquecidos com os milhões de dólares enterrados pelos guerrilheiros, é mais um capítulo nesta guerra que parece interminável? ecceHoMo cetinA Pensando bem, agora, parece que a maioria de meus livros são apenas variações da mesma guerra. A guerra é o grande tema entre eles: entre irmãos, entre grupos, entre governados e governantes, a guerra desenhada para justificar também conquistas políticas. De 1898 a 1901, tivemos uma guerra fratricida que ficou

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Entrevista conhecida como “Guerra dos Mil Dias”. O país de um milhão de habitantes, que era então a Colômbia, ficou reduzido, em três anos, a 800 mil pessoas, 20% da população morreram. Guerra, sempre a guerra. A maioria dos meus amigos morreu por causa da guerra, e me considero um sobrevivente. continente A literatura o ajudou a escapar da morte? ecceHoMo cetinA Contar essa guerra que me cercou, nos livros que publiquei, ajudou a curar-me de tanta realidade, a criticá-la, a incomodá-la, para não deixar que se torne habitual. O tesouro narra, sem dúvida, um dos fatos mais surpreendentes que se produziu na guerra e no que ela se converteu.

o maior desafio como jornalista foi o de encontrar uma versão aproximada do que realmente havia se passado entre as 77 declarações dos soldados implicados, a maioria delas diametralmente oposta. Creio que, finalmente, consegui, confrontando as versões mais sólidas, aquelas que coincidiam nos detalhes inconfundíveis. Deixei-me guiar pelos detalhes operativos da tropa, por exemplo, por datas e situações que faziam verossímeis certas versões dos soldados que entrevistei e, finalmente, fiz uma análise, quase forense, dos documentos em que se encontravam outras declarações e versões dos soldados capturados. Assim cheguei à versão mais

“os narcotraficantes podem comprar consciências para salvaguardar seu negócio. Disso não escapam nem os soldados colombianos, nem os norte-americanos”

em uma mansão, cujos banheiros eram revestidos de ouro maciço, que pertencia a um dos grandes chefes da máfia colombiana: Gonzalo Rodríguez Gacha. Esse mafioso, como é costume entre os que tratam de atesourar bilhetes em dinheiro em casos de urgências e crises financeiras, enterrou muitos milhões nessa propriedade que tinha, em Bogotá. Quando a polícia o mata, após uma longa perseguição, os milhões de dólares de Gonzalo, o Mexicano, ficam enterrados em sua mansão. Muitos agentes se viram implicados nesse roubo do tesouro do Mexicano. Os agentes desenterraram muitos bilhetes e deixaram a casa destruída, com buracos feitos por

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toda parte para descobrir o tesouro desse capo do narcotráfico. continente Antes de prosseguirmos, uma curiosidade: você chegou a servir ao Exército? ecceHoMo cetinA Em meu país, os jovens são escolhidos para o serviço militar em sorteio. De 210 estudantes que se apresentaram, 45 ficaram de fora do serviço por causa dessa loteria. Eu era um deles. Talvez não estivesse escrevendo estas palavras, nem publicando meus livros, se tivesse sido selecionado para ir ao Exército,

ecceHoMo cetinA O tesouro é um livro que descobre as paixões e a índole moral de muitos soldados de carne e osso que fazem o exército colombiano. Descobre o que se pode passar com uma milícia do Estado quando cai na ambição diante de um milionário descobrimento. A guerra que se trava contra o narcotráfico é um combate em que os narcotraficantes podem comprar consciências para salvaguardar seu negócio. Disso não escapam nem os soldados colombianos, nem os norte-americanos. A guerra é contra

que arrancou aplausos: “A única coisa que está clara para mim é que a guerra é uma merda”. Como escritor e cidadão, que espera desse combate perpétuo? Acredita que sua filha, Maria Paula Cetina, chegará a viver em uma Colômbia pacificada? ecceHoMo cetinA Enquanto continuar em vigor essa solução baseada só na lógica armamentista, creio que as coisas estão longe de mudar. Muito temo que Maria Paula herde de mim um país de fracassos como o que recebi de meus pais.

“A redação à qual pertenci parecia uma das fábulas do inventor de Macondo, porque (disso estou convencido) a vida é um reflexo desordenado de uma boa novela”

como infortunadamente aconteceu com muitos dos meus amigos, que morreram em combate contra a guerrilha e narcotraficantes. continente A história de O tesouro começa quando um aviãozinho Cessna, que transportava funcionários norteamericanos antidrogas, foi derrubado pelos guerrilheiros, na região onde estava enterrado o dinheiro. Três dos norte-americanos até hoje permanecem sequestrados, a exemplo de outros quatro mil infelizes que estão em poder das Farc, como ficou até pouco tempo a ex-candidata à presidência da Colômbia Ingrid Bettancourt. Que lhe parece esse Plano Colômbia, parceria militar e financeira com os Estados Unidos para combater o narcotráfico na região?

um negócio que comprou políticos e financiou campanhas presidenciais na Colômbia, como a do ex-presidente Ernesto Samper Pizano. O dinheiro que chega do exterior, dos Estados Unidos, é um negócio que tem duas frentes: a oferta e a demanda. Atacar só a oferta nos países que a produzem e não lutar contra a demanda de milhares de viciados em países como os Estados Unidos ou muitos países da Europa é um equívoco. É um absurdo que tenham empenhado muitos programas de ajuda, como o Plano Colômbia, que, a meu modo de ver, é um total fracasso. continente Na Fliporto, além da frase citada na primeira pergunta, você disse outra,

continente Qual o seu aprendizado em trabalhar com Gabriel García Márquez, na revista Cambio? ecceHoMo cetinA Que buscar uma boa história é o mais emocionante no trabalho jornalístico. O difícil e tedioso é sentar-se e escrevê-la. Que nos detalhes estão as grandes reportagens; que o ofício de escritor deve ser pura transpiração em vez de inspiração; que o jornalismo é um bom padrinho da ficção, porque ensina como fazer crível uma história por mais fantástica que seja. E, por último, que aquela redação à qual pertenci parecia uma das fábulas de alguns dos relatos feitos pelo inventor de Macondo, porque (disso estou convencido) a vida é um reflexo desordenado de uma boa novela.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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LiterAturA infAntiL

bregA cuLt

Neste mês, em que destacamos a literatura para crianças e adolescentes, oferecemos aos leitores a versão eletrônica do título Feito carrossel, da escritora Elita Ferreira (Edições Bagaço). Ainda desta autora, falecida em 2006, faremos o sorteio de seis títulos da Coleção Brinquedos Populares (leia no site sobre como participar). São eles: Rodopia pião, Pipa vai colorir o céu, Mané Gostoso, Cata-vento. Qual o seu segredo?, Domingo de lata, Oficina de bonecas da vovó Isabel. O site também divulgará o regulamento completo da primeira edição do Concurso Cepe de Literatura Infantil.

Conheça algumas das composições ritmadas, feitas para o público “dançar agarradinho”, da banda Academia da Berlinda, que prepara seu segundo disco.

Conexão

deSenhoS As gravuras do inglês Charles Landseer, feitas na sua viagem ao Brasil Império, permaneceram guardadas por cerca de 100 anos. Confira algumas delas.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AndAnçAS virtuAiS Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar

MÚSicA

ciÊnciA

LiterAturA

enSAioS

Cantora Lulina busca interatividade em novo site

Rede social conecta interessados em assuntos acadêmicos

E-dicionário para consultar definições de termos literários

novos estudos abrange os campos das ciências humanas, literatura e artes

http://lulilandia.com.br

http://www.followscience.com

http://www2.fcsh.unl.pt/edtl

http://novosestudos.uol.com.br

Com mais de nove anos de carreira e nove discos, Lulina sempre se mostrou preocupada em inovar a forma de fazer e distribuir música. O seu novo site, que apresenta a cidade virtual Lulilândia, é mais um passo nessa direção. Cuidadosamente ilustrado em formato de mapa, apresenta as faixas do seu CD mais recente e permite que o visitante as baixe, desde que descubra uma senha escondida. Também é possível mandar cartões-postais do local e até imprimir um passaporte, que deve ser carimbado em cada show da cantora para que o fã ganhe brindes.

“Tem algum evento em nossa área que está para acontecer?” Essa foi uma das perguntas que contribuíram para a criação do followscience.com e uma das mais frequentes. Desenvolvido pelo Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (CIn – UFPE), a página pode ser definida como uma rede social acadêmica que possibilita o contato entre docentes, estudantes e pesquisadores. Além de informar datas de eventos e prazos de publicações, o site permite que o usuário disponibilize on-line sua produção científica, com as respectivas referências bibliográficas.

De grande utilidade para os interessados na área, o E-dicionário de termos literários é uma abrangente listagem de definições relevantes para o campo das letras. Criado por Carlos Ceia e com cerca de 130 colaboradores, o endereço reúne cerca de 1.700 páginas, com conceitos gerais, como “literatura”, e específicos, como “prolepse”. O e-dicionário ainda está em construção – alguns verbetes aguardam por definições – devido ao vasto conteúdo. Para participar do projeto, o internauta deve acessar a página e entrar em contato com o autor.

Com colaborações de nomes como Jürgen Habermas, Herbert Marcuse, André Singer e Antonio Cândido, a Novos Estudos é uma referência em análises acadêmicas. Mantida pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) desde 1980, a revista lança três edições por ano, sempre com colaborações ilustres. Em sua versão eletrônica, é possível ver o conteúdo completo das mais recentes edições em formato PDF e ter acesso a artigos exclusivos para o ambiente virtual. A revista também aceita colaborações acadêmicas, que são submetidas à análise do seu corpo editorial.

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rEPrODUçãO

blogs PAriS http://migreme.net/10f

Enquanto se dedica ao doutorado na Sorbonne Nouvelle da capital francesa, a escritora gaúcha Carol Bensimon, autora de Sinuca embaixo d´água, posta impressões sobre os hábitos e as peculiaridades da vida parisiense.

QuAdrinhoS http://edicaoespecialdeluxo.wordpress.com

coMPiLAçÃo de reSenhAS cuLturAiS Site reúne apreciações feitas por resenhistas e críticos de diferentes publicações, oferecendo ao internauta pontos de vista variados www.metacritic.com

o que faz um crítico ser importante? Com relação ao cinema,

por exemplo, é ele quem tem acesso, antes do público, às primeiras sessões dos filmes que entram em cartaz. Sendo assim, seu parecer se assemelha a um atestado de qualidade (má ou boa, a depender do exemplar) para a plateia interessada. Apontado como “dono da verdade”, o crítico cinematográfico não deveria ter seu papel associado ao poder supremo daquele que dita o que é bom e o que não é, mas, sobretudo, a partir de suas análises fílmicas, deveria despertar no leitor/espectador o gosto pela reflexão, incentivando-o a pensar a obra, para além do que a tela grande nos apresenta. Nesse sentido, o site norte-americano Metacritic colabora com a percepção da diversidade ou semelhança de pontos de vista da crítica. Ele reproduz resenhas de um elenco de publicações jornalísticas, para que o internauta entre em contato com distintas opiniões sobre um mesmo filme. Cada resenha é acompanhada de uma nota avaliativa, ficha técnica e trailers das produções. O mesmo sistema funciona para avaliações de jogos, DVDs, programas de televisão e CDs recém-lançados. GUiLHerme carrÉra

No blog Quadrinhos no Brasil 80/90, Rogério Marmo, a partir de recortes de jornais paulistas, traça um bom panorama da recepção da imprensa aos HQs desse período. Um valioso material para pesquisadores da área.

iLuStrAçÕeS http://www.marcjohns.com/blog

O Serious drawings apresenta os trabalhos do ilustrador Marc Johns, caracterizados pelo traço limpo e o humor irônico. O blog também serve como uma loja para venda dos originais do artista.

ÁLbunS MuSicAiS http://suspicioussounds.tumblr.com

O excesso de conteúdo musical da internet encontra no Suspicious sounds um excelente filtro, que disponibiliza álbuns completos para download, aceitando também sugestões de usuários informados.

sites de

quadrinistas ESPANHOL

VITRINE

ULTRALAFA

http://pabloauladell.blogspot.com

http://linhadotremtiras.blogspot.com

http://ultralafa.wordpress.com

Em seu site, Pablo Auladell traz prévias não só de trabalhos em HQ, mas também de ilustrações para obras de outros autores.

Colaborador da versão brasileira da Revista Mad, raphael Salimena mostra nesse endereço trabalhos exclusivos e vende originais.

O cartunista Daniel Lafayette publica diversas séries, como a Momento de reflexão, que exibe os pensamentos de Herman, o Lobo.

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Portfólio

Mauricio Planel

PAPEL, TESOURA E PHOTOSHOP TexTo Mariana Oliveira

A colagem, apesar de sua riqueza visual, não é uma técnica muito popularizada

no Brasil. Ainda assim, essa foi a opção de Mauricio Planel, uruguaio que chegou ao país, na década de 1970, com apenas seis anos. Planel, que vive no Rio de Janeiro, iniciou sua trajetória produzindo estampas em serigrafia. Depois, passou a trabalhar com diagramação, e o design entrou definitivamente na sua vida. Foi a apreciação das correntes artísticas vanguardistas do século passado que despertou seu interesse pela colagem. “Eu gosto de dar uma nova vida a uma foto. Colocá-la em outro contexto. Essa é a graça da colagem”, diz. Segundo ele, a intenção ao tirar imagens de seus espaços originais é brincar com a imaginação do espectador que, ao apreciar as suas obras, repletas de surrealismo, pode construir histórias diversas. Sua inspiração vem do cotidiano e das notícias publicadas na imprensa, destacando as questões sociais e políticas. A figura humana é um elemento recorrente nesses trabalhos. No começo, as ferramentas fundamentais para a execução das obras eram cola, papel e tesoura. Tudo mudou quando um amigo lhe apresentou o computador e os recursos de alguns programas. Desde então, Planel começou a desenvolver a técnica de forma digital. “O computador me deu a possibilidade de mudar as imagens, fazer alterações. As pessoas têm preconceito com a colagem digital. Isso é uma bobagem. Não se pode avaliar uma obra pela técnica utilizada”, defende.

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4 Página anterior 01-01 sURReALisMo

Em seus trabalhos, Mauricio Planel retira imagens de seu contexto original, convertendo-as em situações inusitadas

Nestas páginas 002-5 coLAgeM digitAL

Esta técnica amplia a possibilidade de o artista fazer alterações nas imagens

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cotidiAno

As notícias veiculadas na imprensa, como a crise financeira mundial e as guerras, são fontes de inspiração para Planel

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Portfólio

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Mesmo com o uso de softwares, a montagem mantém etapas artesanais. A primeira é a busca por materiais. “O processo de busca das imagens é meu passo favorito, procuro publicações antigas em sebos, pesquiso em sites especializados na internet, acho pedaços rasgados de papel ou outro material e os digitalizo. Daí procuro formas, texturas e onde podem ser encaixados: um quebra-cabeça digital”, explica. Como usualmente a colagem é produzida através da apropriação de fotografias já existentes, o artista tem uma preocupação especial com a questão do direito à imagem. Por isso, sua opção é dar preferência a imagens mais antigas, encontradas em suas pesquisas diárias, utilizar cenas que ele mesmo fotografa nas ruas ou que compõem bancos gratuitos na internet. Além de sua produção autoral, Planel desenvolve colagens sob encomenda para o mercado editoral brasileiro e internacional.

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teMA

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gARiMPo

As figuras humanas são recorrentes em suas obras de cunho autoral Os elementos visuais que compõem as colagens, geralmente, são encontrados em publicações antigas e sebos

@ continenteonline Confira outros trabalhos do artista Mauricio Planel no site www.revistacontinente.com.br

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eSPeciAL

Literatura Infantil Escritores, ilustradores, educadores,

editores e o Estado atuam em diferentes campos, às vezes coordenados, na criação de ações e programas que fomentem o setor tExto Danielle Romani ilustraçõEs Karina Freitas

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na década de 1970, a Organização

das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declarou ser o hábito da leitura fundamental na formação de adolescentes e crianças. Foi o suficiente para que educadores do mundo inteiro, inclusive os brasileiros, deflagrassem um movimento em prol da adoção de obras literárias como material paradidático. O que deveria ser uma orientação, para melhor, no currículo e na vida de milhões de estudantes, tornou-se um impasse, observa Haidée Camelo, coordenadora do Curso de Letras da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É que, apesar da adesão à declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) ter as melhores intenções, havia um descompasso entre o tamanho da tarefa e o cenário que se vislumbrava no Brasil do período. Em plena ditadura militar, sem tradição na edição de livros dirigidos a crianças e adolescentes, os brasileiros careciam de autores, material didático ou experiência prática para iniciar o trabalho. “A declaração da ONU foi feita à época da reforma do ensino brasileiro, deflagrada no começo da década de 1970, que ampliou de cinco para oito anos a escolaridade obrigatória. Os educadores acharam por bem, já que a carga horária havia sido ampliada, que a recomendação da Unesco fosse adotada, e que os alunos tivessem acesso e estímulo à leitura. O único problema é que inexistiam diretrizes para tanto. E o mais grave: os próprios professores não eram bons leitores”, diz Haidée. Devido à censura, o mercado de livros era precário: as obras de centenas de escritores – brasileiros e estrangeiros – eram consideradas

impróprias pelo regime militar, que proibia suas publicações no Brasil. A declaração da Unesco, portanto, teve um efeito maléfico para aquela geração de crianças que, repentinamente, se viu restrita a ler apenas o que era permitido e filtrado pelos censores. Esse cenário, destaca Haidée, provocou um movimento inverso ao desejado, cujos efeitos são sentidos até os dias atuais: milhões de pessoas passaram a encarar a leitura como um hábito maçante, chato e cansativo. Na verdade, tornaram-se avessas aos livros.

com a reabertura política, o mercado valorizou escritores e ilustradores capazes de atrair o público infantil e adolescente Nas duas décadas seguintes, nos anos 1980 e 1990, com a reabertura política e um relativo amadurecimento, o mercado foi em busca de autores adequados e de ilustradores capazes de produzir edições atraentes para crianças e adolescentes. Mas ainda assim foram cometidas insanidades em nome da “formação literária da Nação”. “As editoras começaram a publicar, indiscriminidamente, tudo o que lhes caía em mãos. Portanto, era comum analisarmos um material com finalidade paradidática e nos depararmos com erros gritantes de português, argumentos inadequados, textos mal-escritos ou simplesmente com um enredo sem sentido. Não havia cuidado nem preocupação em adequar o material a

ser entregue ao público infanto-juvenil”, ressalta Haidée, que à época trabalhava com o ensino fundamental. Neste novo milênio, avanços foram percebidos. Escolas e editoras estão mais preparadas para educar e “iniciar” estudantes no universo literário. Mas existem falhas. “Hoje, dificilmente encontraria um professor que indicasse Alexandre Herculano para uma 6ª série em uma escola pública noturna, como já encontrei no passado. Mas ainda existem professores que não são leitores, outros que associam leitura a castigo e alguns que fazem do texto apenas um suporte para ensinar estilos”, lamenta a coordenadora do curso de Letras da Unicap.

eStÍMULo Ao PRoFeSSoR

Três décadas depois da declaração da ONU, o governo federal e as escolas começam a adotar medidas para que a literatura chegue às salas de aula de forma menos burocrática. “Tanto o governo federal quanto o estadual têm insistido na capacitação dos professores de vários municípios e estados. Eles frequentam cursos dirigidos, recebem computador pessoal para trabalhar, bônus para comprar livros e ainda uma ajuda de custo para estudar”, exemplifica Haidée, que já teve a oportunidade de dar cursos de especialização a professores da rede estadual. O investimento da Secretaria de Educação de Pernambuco na formação de professores também se dá no estímulo à participação em eventos como as bienais do livro. Sobre o uso de livros ficcionais como suporte para a sala de aula, a Secretaria de Educação estadual defende uma posição. “Não existe determinação legal

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otávio de souza

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iMPActo

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AvAnçoS

a escritora Lenice Gomes defende que os livros têm que “sacudir” os leitores a educadora Haidée Camelo avalia que a situação do mercado é melhor hoje que há 30 anos

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para aquisição de títulos literários, nem no nível federal, nem estadual. Mas acreditamos que é prioridade o aluno ter acesso à leitura, e desde 2003 investimos para que todas as turmas de colégios sob a responsabilidade do Governo do Estado tenham uma minibiblioteca em sala de aula”, explica a secretáriaexecutiva de Desenvolvimento da Educação, Aída Monteiro. A montagem dessas minibibliotecas atinge todas as séries, inclusive as turmas entre 1ª e 4ª séries, legalmente sob a tutela das prefeituras municipais. “Cada sala de aula recebe uma caixa de literatura com 40 diferentes títulos de autores brasileiros. Os livros são escolhidos com base na qualidade do texto e na faixa etária, a partir de pesquisas de nossos educadores”, diz a gerente-geral do Programa de Correção do Fluxo Escolar, Ana Selva, enumerando alguns critérios para a adoção de livros.

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“São levados em conta diversos fatores , entre os quais, o uso da linguagem, que deve ser adequada ao nível do aluno; a atualização às novas normas gramaticais; a inexistência de preconceito de qualquer tipo, não apenas no que está escrito, mas também no que se vê nas imagens; e, um dos pontos mais importantes, o respeito à cultura local”, afirma Selva.

RecoRte ReGionAL

Além dos autores nacionais como Ziraldo, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, entre tantos outros, os técnicos da Secretaria de Educação adicionam à minibiblioteca de classe o que chamam de “recorte regional”, ou seja, inserem na “caixa” livros de autores pernambucanos. Especialmente, títulos publicados pelas duas editoras locais que disputam o segmento: a Edições Bagaço e a Edições Edificantes.

Criadas há mais de 25 anos – a Edificantes em 1982 e a Bagaço em 1984 –, as duas têm suas sobrevivências totalmente atreladas ao mercado do paradidático. Sem ele, dificilmente se manteriam em atividade por tanto tempo. “Funcionamos a pleno vapor entre dezembro e março. O restante do ano é secundário, porque na grande parte do tempo trabalhamos na terceirização de livros”, diz o fundador da Edificantes, o historiador e filósofo Edvaldo Arlego, que afirma ter no catálogo cerca de 150 títulos paradidáticos, entre os quais 100, exclusivamente, de literatura infantil. “Em 2009, tivemos 50 livros infantis adotados”, observa Arlego, que, no entanto, ressalta já ter, num passado recente, vendido e atingido mais escolas, principalmente as localizadas nas periferias da cidade. “Nossos livros têm um preço muito em conta, os mais caros não chegam

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divuLGação

eLitA FeRReiRA SindicALiStA, eMPReSáRiA e AUtoRA APAixonAdA A história da escritora Elita Ferreira se confunde com a da própria Edições Bagaço. Foi na editora, fundada em parceria com o marido Arnaldo, e os amigos Paulo a custar R$ 20. Entretanto, algumas editoras de fora estão oferecendo livros a R$ 1,50. Material sem qualidade, versões baratas dos contos de fadas. Isso faz toda a diferença na hora em que um pai pega a listagem de compras que especifica, apenas, que ele deve comprar um livro de ‘literatura infantil’”, pondera Arlego, que tem entre os autores infanto-juvenis do seu catálogo nomes como Amílcar Dória Matos, Ana Trajano e Luiz Gonzaga Lopes, só para citar alguns. O catálogo da Bagaço tem o dobro de títulos da concorrente: 200 na área de infanto-juvenil, com autores variados, a exemplo de Ronaldo Correia de Brito, Paulo Caldas, José Teles e Tereza Haliday, entre muitos. A editora também se notabiliza por um tratamento gráfico bem mais acurado. “Em 2010, vamos ter livros nossos adotados por mais de 20 escolas locais,

Caldas e Inêz Koury, que a jovem escritora e sindicalista lançou seu primeiro livro infantil O valente galozé. Daí, até a sua morte, em 2006, foram 16 obras publicadas. E outras nove póstumas, lançadas na Bienal do Livro de Pernambuco de 2009. O primeiro livro de Elita, que chegou ao mercado em 12 de outubro de 1984 – mesmo ano em que a editora começou a funcionar –, é um marco para a Bagaço. Por dois motivos: foi o primeiro título geral do catálogo e o primeiro infantil, segmento que é o carro-chefe da editora. Ou seja: foi a aventura pioneira da “turma de Palmares”, como eram conhecidos os sócios-fundadores, uma vez que todos eram da cidade ou tinham morado nela. As narrativas de Elita resgatam lendas e histórias da cultura popular, brincadeiras e mitos nordestinos.

além de termos títulos encomendados por instituições de Goiás, do Acre e Rio de Janeiro”, explica Inêz Koury, uma das sócias da editora. Assim como Arlego, Inêz admite que a editora é dependente da adoção dos seus livros como material paradidático para sobreviver. “Todas as editoras que trabalham com literatura infanto-juvenil têm as escolas como o grande filão. Se dependêssemos dos pais, estaríamos numa situação complicada”, diz ela.

cRiAnçAS LeitoRAS

A escola tem papel fundamental na formação de leitores. Trabalho que começa quando os educadores se reúnem para selecionar livros e autores. “Avaliamos os catálogos, verificamos os temas, os autores, buscamos novidades, verificamos se as ilustrações são coerentes, se o texto não tem erros, nem impropriedades. Enfim, é um trabalho detalhista, amoroso e

A autora era tão apaixonada pelo que fazia, segundo relato dos que a conheceram, que deixou dezenas de textos prontos para serem publicados. Os nove editados em 2009, garantem a amiga Inêz Koury e a filha Clara Ferreira (que atualmente também é sócia da editora), são apenas uma parte do acervo deixado. Simpatia, alegria e alto-astral são adjetivos que sempre surgem quando se fala dela. Líder sindical – na época em que trabalhava na Rede Ferroviária Federal – e empresária, era dona de grande energia e criatividade na rotina de trabalho. Com a amiga Inêz, adotou uma prática hoje comum entre as editoras: para aproximar o estudante dos livros, costumava levar os autores às escolas. “A ideia era que houvesse uma aproximação entre o leitor e o autor, para que as crianças vissem que escrever não era algo inacessível e distante. Era uma forma de divulgar nosso trabalho e também difundir a cultura entre crianças e adolescentes”, explica Inêz. Entre os livros de Elita Ferreira, recém-lançados, estão Oficina de bonecas da vovó Isabel, Feito um carrossel e Tia Filó. Danielle romani

cuidadoso, que busca aproximar e não afastar a criança da leitura”, explica Ana Paula Figueiredo, coordenadora do Lubienska Recanto, que recebe crianças em fase de pré-alfabetização. O cuidado é extensivo a todas as séries do colégio, que lida com várias faixas etárias. “Temos que respeitar a idade e o potencial cognitivo das crianças. O educador deve ter sempre em mente que o livro deve funcionar como um ‘Abre-te, Sésamo!’, ou seja, deve envolver, encantar, jamais afastar”, observa a professora da instituição Christiana Costa, pós-graduada em literatura infantil. Não fosse o trabalho da escola, muitas crianças perderiam a chance de ser bons leitores. “Se hoje meus filhos gostam de ler, isso se deve ao estímulo do colégio onde estudam. Não sou uma boa leitora”, afirma a vendedora Adelaide Paraíso. Mãe de Lucas, 12, Letícia, 10 e Lorena, 8, Adelaide se admira da avidez

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A LEITURA IDEAL POR FAIXA ETÁRIA veja quais as recomendações de leitura para crianças, de acordo com a professora Christiana Costa, mestre em literatura infantil, a partir de orientações da escritora vania dohme, autora do livro Técnicas de contar histórias. Até três anos Recomenda-se utilizar livros com gravuras de bichinhos, brinquedos e animais com características humanas. Entre três e seis anos opte por histórias com muita fantasia. Com fatos inesperados e repetitivos (exemplo: aqueles que têm como recurso os lenga-lengas) e cujos personagens são crianças ou animais. Sete anos são indicados os contos de fadas e histórias sobre o ambiente onde estão inseridas. Fábulas também podem ser contadas a partir desta idade. Oito anos a dica é optar por histórias que utilizam a fantasia de forma mais elaborada. Histórias vinculadas à realidade. Nove anos são indicadas as aventuras em ambientes longínquos ou histórias que se passem em outros planetas. as crianças também vão gostar de aventuras e narrativas de viagens. 10 a 12 anos utilize narrativas de viagens, explorações, invenções e mitos.

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do filho mais velho pelos livros. “Ele tira as melhores notas de redação da classe, escreve de uma forma muito madura para sua idade, até melhor do que falando”, orgulha-se. Lucas dedicou parte das últimas férias à leitura do livro Quem conta um conto e outros contos, recomendado pelo Colégio Terceiro MilênioObjetivo, onde estuda com as duas irmãs. “O conto de que mais gostei foi O plebiscito, de Artur Azevedo”, afirma, para logo em seguida explicar com detalhes a história. As irmãs pequenas pegam carona na paixão de Lucas e também desfiam suas preferências literárias. Letícia afirma adorar romances e aventuras. A pequena Lorena também se exibe com um exemplar de A pequena sereia. “ Reconheço que a escola fez esse favor à nossa família”, diz Adelaide. Articulada e leitora de títulos que extrapolam a sua faixa etária

– a exemplo da Comédia de erros, de William Shakespeare – Viviane Ellen Pedrosa Barros, 13 anos, aluna do Colégio Salesiano, diz que teve total apoio dos pais para se tornar uma boa leitora. O que se reflete nas suas ideias e opiniões. “Lendo, você desenvolve a capacidade de compreensão, aprende assuntos que jamais imaginaria, diverte-se e ainda por cima tem companhia garantida para as horas vagas”, diz a garota, que também aprecia a série Crepúsculo e os muitos livros do bruxinho Harry Potter. Maria Clara Targino Monteiro Ferreira, 12, estudante do Colégio Grande Passo, é outro caso de precocidade literária. Lê uma média de cinco títulos por mês, além de já ter se debruçado sobre clássicos adultos como A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, entre outros. Recentemente, descobriu a série juvenil Os Karas, pelo título A droga da obediência, de Pedro

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novA GeRAção

os irmãos Letícia, Lorena e Lucas: livros já são uma paixão

educação, além de uma forte política de leitura”, diz. Atuando tanto como ilustrador quanto como escritor, ele afirma não se lembrar de quantos títulos ilustrados assinou, mas pontua os 13 trabalhos nos quais assina texto e ilustração. “Aqui encontrei um mundo literário que anda de uma forma diferente do país. Grandes autores para bons leitores. Em Pernambuco, pelo menos quando eu ainda morava lá, pouquíssimas pessoas desenvolviam um trabalho com seriedade”, afirma André, que está no mercado desde 1998. O professor e escritor Antônio Nunes, ganhador das duas últimas edições do Prêmio Elita Ferreira, promovido pela Academia Pernambucana de Letras (APL), com os contos A visão do mundo de um cãozinho de estimação (2009) e O aprendiz de Don Juan (2008), sabe bem o que é isso. Ele só conseguiu um espaço no mercado após vencer os

o mercado pernambucano está crescendo, mas ainda não garante a independência financeira Bandeira, pela qual se apaixonou. “Gostei tanto, que pedi à minha mãe toda a coleção.” No que foi atendida pela mãe Josete Targino, professora de língua portuguesa e literatura brasileira.“Acredito que a leitura alimenta a alma, além de enriquecer o imaginário e ser também uma porta aberta para o exercício da cidadania. Ler é como respirar. É imprescindível à vida”, define a professora.

AindA o AMAdoRiSMo

Pernambuco é um mercado em expansão, em que há autores e ilustradores competentes, mas ainda incapaz de proporcionar a sonhada independência financeira àqueles que desejam viver apenas da produção de literatura infantil. Quem insiste em manter-se na ativa, ou o faz porque pode se dar ao luxo de bancar o próprio trabalho, ou porque tem parceria com editoras de outros estados.

Foi por falta de perspectivas que a ilustradora Rosinha desistiu do mercado recifense. Com 16 anos de estrada, a artista considera as ofertas das editoras locais extremamente limitadas. “Não dá para viver trabalhando aqui. É impossível”, resume a artista, que presta serviço para editoras de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e que está produzindo o primeiro livro com ilustrações e texto próprios. Entre seus trabalhos, vale a pena conferir Arlequim (Bagaço), em parceria com Ronaldo Correia de Brito. Radicado em Porto Alegre, o pernambucano André Neves é outro veterano que decidiu deixar o Recife para buscar mercados mais profissionais. E encontrou entre os gaúchos um ambiente propício. “O Rio Grande do Sul não é o mercado mais rico, mas existe uma grande preocupação no tocante à cultura e

dois concursos. “Se a pessoa não tem um agente literário eficiente, se não está ligada a uma grande editora e a distribuidoras, tem poucas chances de levar sua produção ao grande público”, diz o escritor, que sobrevive do salário de professor da UFPE. Indicada pela crítica como um dos grandes talentos da literatura infantil – no ano passado a Folha de S.Paulo apontou seu livro Pererêêê pororóóó como uma das obras infanto-juvenis que não devem faltar nas bibliotecas –, a pernambucana Lenice Gomes é apaixonada pelo que faz. “A literatura tem que dar ‘solavancos’, como diz o escritor Manuel de Barros. É preciso sacudir os leitores, é preciso ser uma ‘descascadora de cebolas’, ou seja, ir retirando as camadas, buscando as essências de suas experiências como leitores”, diz a autora de Amores em carnavais, mistérios dos papangus (Paulinas) e Mas como se espevita essa bruxa Benedita! (DCL), entre outros.

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alguns meses depois, pela Edições Piratinha, acho que a tiragem era de 450 exemplares, foi um sucesso! Esgotou em poucos dias.

Entrevista

Antonio GUinHo Quem viveu no Recife nos anos

1980, certamente ouviu falar no livro Hipopocaré, o rei da galhofa, escrito pelo psicanalista Antonio Guinho e ilustrado pelo artista plástico Cavani Rosas. Publicado em 1981 pela Edições Pirata, o livro chamava a atenção pelo ousado projeto gráfico, pelos rebuscados desenhos de Cavani, mas, principalmente, pela história inusitada de Guinho, que fazia sua primeira incursão literária. Quase três décadas e muitas edições depois, o misto de hipopótamo e jacaré contabiliza, segundo cálculos do autor, cerca de 15 mil exemplares vendidos; sua encenação lotou salas de teatro e o personagem foi eleito o símbolo da Bienal do Livro de Pernambuco de 2007, época em que se comemoraram os seus 25 anos de existência. Além do Hipopocaré, Antonio Guinho tem outros seis livros publicados e nove peças encenadas. Seu trabalho pode ser conhecido no site http://antonioguinho.wordpress. com/. Abaixo, confira um pouco da trajetória do autor e do personagem.

continente Como surgiu o Hipopocaré? Antonio GUinHo Acredite: não

foi nada pensado. Ele nasceu entre 1978 e 1979, quando eu trabalhava na Paraíba como supervisor de psicologia de uma clínica. Em certa ocasião, um aluno me deu um pedaço de argila, e disse que era uma boa terapia manuseá-la. Uma noite, sem sono, sem cabeça para ler, comecei a amassar a argila e quando me dei conta estava moldando um bicho que parecia um hipopótamo, mas tinha o rabo de jacaré. Veio-me aquela coisa: isso é um hipopocaré! Ele começou, então, a fazer estripulias na minha cabeça. Fui vendo cenas, comecei a escrever que nem um louco, não conseguia parar. Na verdade, parecia que eu estava psicografando! Só consegui ir para a cama às três da madrugada, quando escrevi o ponto final da história. Pensei: amanhã tô frito, mas para minha surpresa acordei bem cedo, as seis da manhã, totalmente repousado, como se tivesse dormido a noite toda. Feito isso, deixei o bicho de lado...

continente Quando isso aconteceu, você já pretendia transformá-lo em texto dramático? Antonio GUinHo Antes de virar peça, aconteceu outro fato. A produtora cultural Andréa Mota leu o livro e adorou. Decidiu fazer uma segunda edição em 1983, com cinco mil exemplares, o que para a realidade local era um número desmensurado, alto demais, mas que para minha total surpresa foi vendido rapidamente: de novo esgotou, em seis meses. Para você ter ideia, ele ficou entre os mais vendidos da relação da Livro 7, que era então a maior livraria da cidade, por várias semanas. Se ganhei dinheiro? O suficiente, hoje, para comprar um bom computador. Uma bobagem! Depois disso, José Mário Austregésilo chegou para mim e disse: “E aí? Vamos adaptar isso para teatro?” A primeira montagem foi em 1985. Casa lotada por quatro meses, tinha dia em que sobravam 60 pessoas do lado de fora. E essa foi só a primeira de muitas. Todas, digo-lhe, lotaram a casa e deram confusão, porque chegava kombi e van com gente do interior para ver, e muitas vezes não dava para entrar. No caso das montagens teatrais, na maioria das vezes ganhei um bom dinheiro. Eu sei que, resumindo: tudo no Hipopocaré é superlativo, não sou eu que mando nele, ele é quem traça seu caminho. Até hoje vende, é adotado, faz sucesso. Tem vida e vontade próprias, eu não mando em nada!

continente E o que aconteceu desse “repouso” até a publicação? Antonio GUinHo Uns dois anos depois, o escritor e poeta Jaci Bezerra, da Edições Pirata, me perguntou se eu tinha algum texto de psicologia. Disse que não, mas falei que tinha um conto infantil. Ele foi rápido: “Quero para ontem”. Quando o livro foi publicado,

continente Ele foi adotado por muitas escolas? Antonio GUinHo Por muitas! Inclusive pela Rede de Alfabetização de Casa Amarela e, acredite, foi usado no Mestrado de Literatura da Universidade Federal de Pernambuco. O Hipopocaré é realmente impossível. Danielle romani

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FeRNaNdo RaPoso/divuLGação

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feito carrossel

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iLUStRAção

os desenhos do livro de elita Ferreira foram feitos por Fernando Raposo imagem do livro Viva eu, viva tu. Viva o rabo do tatu, de Lenice Gomes, feita pelo veterano andré Neves

aNdRé Neves/divuLGação

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Apesar do entusiamo, do reconhecimento e até do fato de ter contrato com editoras nacionais, Lenice também afirma que os ganhos com os direitos autorais e a venda de livros são insuficientes para sobreviver. “Independentemente do que ganho ou não, posso dizer que me sinto muliplicada e enriquecida”, declara a escritora que, apesar de ter 26 livros publicados, permanece numa roda-viva de palestras, oficinas e projetos para manter-se financeiramente. Autor de dois livros infantis, o jornalista Cicero Belmar reconhece que, pelo menos no Recife, o gênero não “enche a barriga de ninguém”. Por esse motivo largou os livros e partiu para a montagem de peças teatrais infantis, estas, sim, passíveis de algum ganho. “Acho que muitos autores acabam indo para o teatro diante da perspectiva de um maior retorno financeiro e de um prazer semelhante, pois também estamos lidando com histórias, com o lúdico e levando alguma mensagem para as crianças”, diz.

Se perguntarem ao escritor Luciano Neves quando começou a escrever, ele responderá que a literatura entrou na sua vida sem avisar, o que redundou na produção de cinco livros, um deles Deslembrar (Larousse Jovem), com lançamento previsto para este mês. Apesar de entusiasmado pelo que faz, e de ter contratos com editoras nacionais, ele garante que os ganhos com a literatura ainda são insuficientes para pagar suas contas. “Reconhecimento temos, mas ainda não dá para fazer apenas isso. Um dia chego lá”, diz. Novatos, Fernando Raposo e Emerson Pontes estão há poucos anos no mercado e não o consideram limitado. “Recife vem melhorando o tempo todo”, diz Emerson, que tem livros editados pela Construir (outra pernambucana que se prepara para disputar o mercado infantil) e pela Bagaço. O ilustrador Fernando Raposo, que estreou com o livro Feito um carrossel, de Elita Ferreira, editado no ano passado, produz atualmente desenhos para livros didáticos da editora Moderna. “Para mim, que comecei em 2009, o Recife ainda é um espaço a ser explorado”, avalia.

PRêMio LiteRáRio a Companhia editora de Pernambuco (Cepe) está abrindo inscrições para o I Concurso Nacional Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, a partir do dia 1ºde abril. os interessados terão a opção de se inscrever nas duas modalidades de premiação, ou apenas em uma delas. os textos da modalidade infantil são destinados a leitores de seis a 10 anos e da juvenil a adolescentes entre 11 e 16 anos. Poderão participar do concurso brasileiros e estrangeiros legalizados, residentes no território nacional. os prêmios serão de R$ 8 mil para o primeiro colocado de cada categoria; R$ 5 mil para o segundo e R$ 3 mil para o terceiro. a comissão julgadora será composta de cinco membros: quatro especialistas em literatura infantojuvenil e um representante da Cepe. os organizadores alertam que a premiação não implica, necessariamente, em edição e publicação dos textos. as inscrições estarão abertas até 31 de junho de 2010. os resultados serão divulgados em setembro, no portal da Cepe e no Diário Oficial. a entrega dos prêmios será feita em outubro. Mais informações poderão ser obtidas no portal da Companhia editora de Pernambuco e no site da Continente.

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KaRiNa FReitas

AUTORES Árdua tarefa de construir o leitor

Dois dos mais prestigiados escritores de livros para crianças e adolescentes opinam sobre o que é preciso fazer para conquistar o público mirim tExto Daniel Buarque

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eSPeciAL

os clássicos da literatura

universal não são brincadeira. Machado de Assis não é coisa de criança. Mas para ter a capacidade de aproveitar como gente grande o máximo das belas obras literárias do planeta, é preciso encarar muito livro feito especialmente para crianças e adolescentes, criando o gosto pela palavra e a capacidade de identificar, entender e de amar os bons livros. Esse é o papel da literatura infantil, gênero às vezes subvalorizado da arte, mas que ganha destaque ao extrapolar seu nicho, tornando-se fenômeno cultural, como ocorreu com a série Harry Potter. No Brasil, um exemplo recente disso é O fantástico mistério de Feiurinha, livro que foi levado ao cinema por Xuxa e Tizuka Yamasaki. Pouco conhecido dos leitores adultos, o título é de autoria de Pedro Bandeira, escritor que já vendeu mais de 20 milhões de livros e que atua junto com vários outros autores

e com escolas para formar mais leitores no país. Para dois desses escritores voltados ao público infantil no Brasil, o citado Pedro Bandeira e Ricardo Azevedo, metáforas parecidas servem para corrigir o erro de se valorizar a alta literatura sem dar a devida importância aos livros para crianças, impulso inicial que tira da inércia para o movimento de leitura madura. Para um, a arte é uma montanha a ser escalada degrau a degrau desde sua base. Para outro, é como um prato de comida pesada, que não pode ser dado a um bebê despreparado. Nos dois casos, vale a ideia de uma formação lenta e gradual de leitores das grandes obras, começando por uma produção mais adaptada à sua realidade, valorizando a literatura infantil. “A cultura é uma montanha de muitos séculos, e muito alta. Para chegar ao cume dessa montanha, é preciso subi-la. Para subi-la, é preciso

usar uma escada. E toda escada tem que ter degraus de baixo até em cima”, diz Pedro Bandeira, autor de títulos entre os mais populares da literatura infanto-juvenil no Brasil, como A droga da obediência, de 1984. Para poder chegar a Machado de Assis, Baudelaire ou Shakespeare, completa, é preciso ter degraus “bons, firmes e gostosos” que iniciem essa subida. “É preciso ter um Ziraldo, uma Ruth Rocha, uma Tatiana Belinky, para ir subindo gostando e quem sabe ser levado a um dia chegar ao alto desta montanha.” Ricardo Azevedo, que forma junto com Pedro parte do cânone nacional da literatura para crianças e adolescentes, explica de forma parecida sua função. “Não é costume dar vatapá e acarajé acompanhados de cachaça para crianças recém-nascidas. Com a leitura dá-se mais ou menos a mesma coisa. A literatura precisa ser apresentada gradualmente ao leitor.

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objeto de adoração quase fanática: as séries Harry Potter e Crepúsculo. A primeira, escrita pela britânica J. K. Rowling, é sobre um jovem bruxo em um mundo de fantasia. Teve sete livros que chegam a ter mais de 500 páginas, foi traduzida para mais de 65 idiomas e vendeu mais de 400 milhões de cópias em todo o mundo, tornandose também uma série de filmes, video games, jogos, fantasias – um nicho completo de cultura pop. A outra, da americana Stephenie Meyer, é voltada para adolescentes um pouco mais velhos, e reviveu a paixão de muitas pessoas pelo universo dos vampiros. Foram 37 idiomas, quase 20 milhões de livros vendidos e outra série de filmes. Para Ricardo e Pedro, a produção nacional de livros para crianças tem um perfil próprio, diferente do que se produz no resto do mundo, sendo difícil comparar qualquer livro brasileiro a esses dois fenômenos.

A lista com os livros mais vendidos no mundo na primeira década do século 21 mostra que os jovens gostam de ler Isso significa dizer que a formação do leitor demanda experiência acumulada. Creio que a maioria das escolas tem falhado nesse ponto, até porque muitos professores nunca foram leitores e, portanto, não têm experiência de leitura.” Ricardo escreve para crianças há 30 anos, fez pós-graduação no assunto e se tornou uma referência nacional no tema.

BeSt-SeLLeRS

Tentar dar um livro de presente a uma criança em seu aniversário, ou no Natal, pode ser uma aposta arriscada, abrindo espaço para uma reação nada feliz. Qualquer ideia de que os mais jovens não gostam de ler, entretanto, é jogada pelo ralo quando se observa a lista com os livros mais vendidos no mundo na primeira década do século 21. Entre os cinco mais populares, dois foram escritos especificamente para crianças e adolescentes, e se tornaram

Segundo Ricardo, que admite não ter lido os livros, apesar da grande importância de obras desse tipo para a formação de leitores, é ingenuidade acreditar que a febre Harry Potter esteja formando tantos leitores maduros do futuro quanto as pessoas que leem os livros da série. “Ao que tudo indica, a relação que muitas crianças têm estabelecido com esses best-sellers lembra uma espécie de simbiose e tem a ver mais com questões sociais e psicológicas do que propriamente com literatura. Leitores de um livro só não podem ser considerados leitores”, diz, mencionando o caso de uma garota de cerca de 12 anos que lia a coleção do bruxo pela quinta vez seguida. “Felizmente, temos uma produção de literatura infantil e juvenil de altíssimo nível e sequer imitamos as coisas estrangeiras”, emenda Pedro, defendendo as publicações brasileiras. “Não temos nada parecido com o Harry

Potter, por exemplo. Nossa literatura é de outro tipo, até porque está muito atrelada à escola, sendo adotada por ela. É bem diferente.”

LivRoS didáticoS

Segundo ele, seu trabalho, e de outros escritores brasileiros, foca crianças e adolescentes do ensino fundamental, quando suas obras são adotadas pelas escolas como leitura “paradidática”. Outro problema é que livros como Harry Potter e Crepúsculo são muito extensos, e não podem ser usados pela escola. “Nenhum de nós pode escrever um livro de 500 páginas. O professor adota o livro para ser lido em uma semana, e é impossível as crianças lerem 500 ou mil páginas em uma semana. Nossas novelas não podem ser tão longas. Precisam ser curtas e ter no máximo 200 páginas. Não dá para ter mais que isso, senão o professor não tem condição de adotar o livro.” No Brasil, complementa, só a escola assume o papel de formador de leitores, que deveria ser dos pais, o que gera uma grande dependência por parte dos escritores. Na opinião de Ricardo, isso cria um problema no momento em que tudo é didatizado, e o papel acaba sem ser cumprido. “Livros didáticos e paradidáticos são muito úteis, pois transmitem informações, mas não servem para formar leitores. Para que isso ocorra, é preciso que haja uma espécie de comunhão entre leitor e livro, e ela costuma ocorrer justamente por meio da leitura prazerosa, da relação subjetiva e da identificação entre leitor e livro e, ainda, da possibilidade de interpretação pessoal e única.” O problema, para ele, é que a escola costuma confundir livros didáticos e livros de ficção e poesia, didatizando estes últimos. “Como resultado, a maioria de nossas crianças, infelizmente, é levada a pensar que todos os livros são didáticos, ou seja, são técnicos, informativos e demandam uma única interpretação. Vai ser difícil formar leitores enquanto houver essa confusão.” Para Pedro, o problema é real, mas não se pode minimizar a importância da escola. “Não podemos esperar que nossos livros sejam comprados pelos pais das crianças”, diz, completando o argumento com

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“A cultura é uma montanha de séculos, e muito alta. Para subi-la, é preciso ter degraus de baixo até em cima”

juLia FReeMaN-wooLPeRt/divuLGação

Pedro Bandeira uma crítica à relação da população brasileira com a cultura como um todo. A arte só chega às crianças através da escola, explica. “As famílias brasileiras não se preocupam nem um pouco em incentivar a parte artística de seus filhos. O pai faz sacrifício para comprar uma roupa de grife para a filha, um tênis de grife para o filho, mas chia se a professora manda que ele compre um livro de R$ 20, e diz que não gasta dinheiro com besteira. A família brasileira acha mais importante investir no pé do que na cabeça do filho. Se o professor não levar a criança a ler, se não fizer uma excursão ao museu, a família não o fará.” Com poucas exceções, a crítica vale para famílias pobres e ricas, cultas ou analfabetas.

conteÚdo AdeQUAdo

Dentro desse dilema na formação literária dos leitores do futuro, há uma outra barreira de difícil transposição. Professores e pais enfrentam uma grande dificuldade na hora em que, para satisfazer as exigências de testes como o vestibular, precisam fazer um adolescente passar dos livros feitos para a sua faixa etária para o citado cânone. “Obrigar uma criança a ler textos para os quais ela ainda não está preparada, além de não formar, afasta o leitor da literatura”, diz Ricardo. “Por outro lado, é preciso que o leitor iniciante saiba que a leitura, como muitas coisas boas da vida, exige esforço e que o chamado prazer da leitura é uma construção que pressupõe treino, capacitação e acumulação.” Pedro explica que o problema é real, mas alerta que ele existe em todos os países e culturas, e que se trata de questão de identificação, não necessariamente de linguagem. “Todo mundo tem que ser introduzido no universo artístico de uma maneira não exatamente facilitada, mas mais adequada às

emoções de uma criança, de um jovem, de um adolescente. Não é que o texto precise ser simplificado, mas que é difícil entender o drama da Emma Bovary, uma mulher casada, com necessidades sexuais, que fica arranjando um monte de amantes e continua insatisfeita, quando a pessoa tem 13 anos. Não é o caso. Então a pessoa precisa de alguma forma ser introduzida nesse mundo, ou vai viver sem arte até poder entender?” Segundo ele, é preciso saber como pensa seu leitor, para que ele se identifique com suas obras. “Quando vou escrever um livro e quero que alguém de oito anos entenda, eu preciso saber como pensa uma pessoa de oito anos, o que ela sente. Se pretendo atingir alguém de 13 anos, preciso saber o que é um pré-adolescente, quais são seus pensamentos, qual a sua sociologia, a sua psicologia.” E não precisa ser simplificado apenas na linguagem. “Não adianta só escrever um poema com palavrinhas fáceis, achando que a criança vai entender”, diz, e cita No meio do caminho, de Drummond, que não tem

nenhuma palavra difícil, e é um poema difícil: “‘Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra’. Isso é um poema infantil? Não. A pessoa precisa ter vivido muito para nessa hora pensar nas pedras no meio do caminho que foram enfrentadas, nas preocupações que elas trouxeram. É um poema extremamente adulto. Então não é um problema de linguagem, mas de direcionamento na emoção de alguém, da maturidade emocional que alguém tem aos seis, oito, 10, 12, 15 anos. Daí para a frente é adulto e não há mais preocupação neste sentido”. Ricardo defende tese parecida, e ressalta que a separação do público em faixas etárias é determinada em larga medida pelo mercado. “Creio que, para a literatura, interessa muito mais identificar os pontos comuns entre as diversas idades – as paixões, a corporalidade, a busca do autoconhecimento, a dificuldade de distinguir realidade e fantasia, os medos, os sonhos, os meandros do contato com o outro, a efemeridade, as utopias pessoais, a construção da

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divuLGação

“A literatura precisa ser apresentada gradualmente. A formação do leitor demanda experiência” Ricardo Azevedo

própria voz etc. – do que as diferenças.” Para ele, quem escreve para crianças não utiliza uma linguagem “infantil”, mas, sim, uma linguagem popular, ou seja, acessível à maioria das pessoas, independentemente de classe social, grau de instrução e faixa de idade.

o cÂnone, AFinAL

Pedro diz não achar que os livros de Machado de Assis sejam adequados a alguém de 15 anos, pois, quando escreveu, não tinha em mente o objetivo de atingir adolescentes. “Machado fica gostoso de ser lido quando se tem 40 anos, não quando se tem 15.” Sua proposta, quando trabalhou como professor de literatura para adolescentes, no ensino médio, era introduzir o escritor através de contos dele, “Pois há uma série de contos compreensíveis para adolescentes, para ir acostumando, para que um dia ele possa usufruir de Memórias póstumas de Brás Cubas.” Outros autores, entretanto, ele considera mais complicados. “É muito chato ler José de Alencar, horrível de chato, chatérrimo, e tem que ser lido por especialistas em

literatura, para manter vivo um tempo interessante da história da literatura; ele era muito criativo, mas é um texto chatérrimo, completamente bobo. Não há criança que goste de Iracema.” O mesmo vale em outros países, completa, sugerindo pensar na dificuldade de um professor italiano que tem que dar A divina comédia para um adolescente, ou Molière, Racine, Corneille, na França. Na Inglaterra não deve ser fácil fazer uma criança de 15 anos ler o texto puro de Shakespeare. “Se uma criança leu muito durante sua infância, entretanto, sua dificuldade vai ser menor. Mas se leu pouco, isso assusta, e ela vai acabar lendo resumos de livros passados por cursinhos, vai passar nos exames e todo mundo finge que ela leu os clássicos da literatura e os ama. É uma hipocrisia total.” Ainda que essas obras voltadas ao público infantil não criem a histeria dos livros de J. K. Rowling e Stephenie Meyer, o Brasil tem seu próprio fenômeno de vendas de livros para crianças e adolescentes. Pedro Bandeira já foi chamado pela revista

Veja de “Paulo Coelho dos juvenis”, por conta da quantidade de livros vendidos, que já ultrapassa a marca de 20 milhões de exemplares, como foi dito no início deste texto. O seu livro A droga da obediência, adotado por muitas escolas como paradidático e o primeiro livro de que muitas crianças dizem gostar quando estão começando a encarar obras literárias. A obra trata de um grupo de adolescentes que tenta desvendar um mistério policial em uma escola de São Paulo. Eles começam a investigar o desaparecimento de estudantes na cidade e, ao longo de uma narrativa ativa e cheia de ação, que prende os jovens leitores, descobrem os “vilões” que realizam experiências com drogas para tornar a sociedade mais submissa, obediente. O livro também deve se tornar filme em breve, já que seus direitos foram comprados por uma produtora. Ele ainda se tornou uma série, sobre um grupo de personagens, os “karas”. Um site de relacionamentos na internet tem mais de 20 comunidades de fãs do livro mais popular de Bandeira, juntando mais de cinco mil pessoas, e até na livraria americana online Amazon é possível encontrar livros seus traduzidos para o inglês. Ricardo já escreveu e ilustrou mais de 100 livros para crianças e jovens. Entre suas principais obras estão Um homem no sótão, Lúcio vira bicho e Trezentos parafusos a menos. Ganhou o prêmio Jabuti em mais de uma ocasião, e seus livros foram traduzidos e lançados na Alemanha, no México, na França e na Holanda. Ele acabou, no final de 2009, um trabalho que levou quase três anos fazendo e que será publicado pela editora Ática. Trata-se de Contos e lendas de um vale encantado – Uma viagem pela cultura popular do Vale do Paraíba. E já começou um texto novo, ainda sem título.

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iMAGenS: RePRoDução

ChRiSTiAAN ToNNiS/CREATiVE CoMMoNS

iMAgENS: REpRodução

cartas do yage

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A tendinite mudou uma vida Rodrigo Soares Batista (foto) nunca tinha composto uma música. Mas era aluno assíduo do Conservatório de Música de Olinda (Cemo) e, segundo o próprio, “dormia e acordava com o violão”. Tinha entre 17 e 18 anos e dedicava oito horas por dia à música clássica erudita. Com todo o mérito, foi convidado por seu professor para participar de uma camerata de violões em São Paulo, junto com os colegas de conservatório. Faltando dois meses para a viagem, uma tendinite braba inutilizou seu braço esquerdo, deixando o punho inchado e sem condições de colocar os acordes. Rodrigo largou o violão. Para que não ficasse tão cabisbaixo, a família providenciou um teclado, no qual passou a tocar – apenas com a mão direita. Foi nessa época que ingressou #44 numa banda de forró estilizado e, “por falta de dinheiro para comprar música, começamos a compor as próprias”, diz Rodrigo – que se rebatizou de Rodrigo Mell. Depois de alguns problemas e andanças, fundou a banda Kitara. De um CD entregue ao produtor executivo da Aviões do Forró e ao da Caviar com Rapadura, veio o primeiro sucesso, acatado pela segunda: Brigas de amor, em parceria com Elvis Pires e Luiz Fraga. Hoje, Rodrigo Mell é letrista de sucesso no universo do forró estilizado, sendo autor de Novo namorado (ou O mundo gira) e, a mais conhecida, Chupa que é de uva. O trauma da tendinite, festeja, ficou para trás. Bernardo Valença

con ti nen te

Em 1953, o junkie William Burroughs realizou uma travessia de seis meses pela América do Sul em busca de experiências com a auasca (também chamada yage), planta com a qual nativos da Bacia Amazônica preparam beberagem alucinógena. Enquanto transitava, ia escrevendo comentários em cartas destinadas ao amigo beat Allen ginsberg. A maioria delas maldiz a região, sobretudo no seu aspecto humano, além de descrever efeitos obtidos com o narcótico. Ao escrever sobre Bogotá, suas críticas vão além do continente. Ele afirma: “Em Bogotá, mais do que em qualquer outra cidade que vi na América Latina, sente-se o peso morto da Espanha, sombrio e opressivo. Tudo o que é oficial leva a etiqueta made in Spain. o escritor norte-americano registrava ali uma das heranças da colonização. uma droga, coisa que ele conhecia bem. (Adriana dória Matos)

Balaio

A FRASE

“o mundo é mais vivo à noite. É como se Deus não estivesse olhando” elvis Presley

JAGGeR eM cHAMAS No livro Verdade tropical, Caetano Veloso conta quando descobriu os Rolling Stones, banda sobre a qual “não prestava muita atenção enquanto estava no Brasil”. Fala da impressão que teve ao ver o vocalista da banda inglesa no palco: “Mick Jagger parecia uma labareda de significados cambiantes. Ele era uma mulher, um macaco, um bailarino, um atleta, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada”. (BV)

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Sim, nós podemos!

CRIATURAS

ReLAtiViSMo FeMiniStA o poeta, tradutor e ensaísta Nelson Ascher, sutil quando toca em temas polêmicos, ironizou, em seu livro de ensaios Os pomos da discórdia (1993), as novas prerrogativas da mulher contemporânea: “uma mulher que mantenha relacionamento extraconjugal recriminará seu marido por sua incompreensão acerca da complexidade dos sentimentos, enquanto um homem pilhado em circunstâncias apenas aparentemente idênticas estará revelando sua completa incapacidade de participar de uma relação adulta e séria”. (Eduardo Cesar Maia)

WiLDeR e A MoRte “Aos 104 anos, gozando de perfeita saúde, de um tiro dado por um marido que me encontrasse trepando com a mulher dele.” Assim descreveu o diretor de cinema Billy Wilder (na foto acima ao lado da desejada Marylin) a forma como gostaria de deixar este mundo. (ECM)

WiLDeR e o coRPo Billy Wilder pede que a aeromoça lhe traga um drinque. A jovem olha para ele por um instante, toma coragem e diz: “Sabe quem o senhor me lembra? Arnold Schwarzenegger!”. “Schwarzenegger?”, ele pergunta sem disfarçar o orgulho. E pede esclarecimento: “por causa do meu porte?”. “Não, não... por causa do sotaque estranho...” (ECM)

João cabral de Melo neto (1920-1999) Por Baptistão

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otto ou de quando a vida nos coloca diante de um marco zero A trajetória entre sucesso e ostracismo do cantor que, depois de amargar uma má fase, volta a ser bem-recebido pela crítica com seu novo álbum Certa manhã acordei de sonhos intranquilos texto Schneider Carpeggiani

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Perfil

“É por conta da casa, você é amigo

do Otto.” Eu não era amigo de Otto, estava apenas cumprindo uma pauta para o Jornal do Commercio, que consistia em acompanhar a vida de celebridade do ex-Mundo Livre S/A, em São Paulo. Naquele finalzinho de 1999, seu álbum de estreia, Samba pra burro, era tratado como a chegada da palavra do Messias, ou algo que o valha, pela crítica. Otto virava não só estrela, mas celebridade que agregava o valor da modernidade para quem estivesse ao seu lado. No meu caso, foi só uma cerveja do barman. A entrevista com o cantor havia começado no apartamento do jornalista Xico Sá e, por algum motivo que não lembro, continuou noite adentro pela boate Lov.e, então a mais badalada da capital paulista. Estar ao lado de Otto tinha mesmo as suas vantagens. Ao sermos avistados na fila quilométrica, fomos logo resgatados pelo doorman.

No caminho até a pista de dança, muitos “Olha o Otto” e “Ei, Otto” foram ouvidos e respondidos com aquela sua forma malemolente e meio ébria, que os paulistanos ainda não conseguiram clonar em laboratório. Com cara de alemão e jeitão de olindense, ele era uma figura que não passava sem ser notada. Há 10 anos, São Paulo parecia não ter tantas celebridades vagando por suas ruas e estava orgulhosa em contar com a presença emergente de Otto. A nova estrela exportava a si própria para o Sudeste como a segunda – e solitária – onda do manguebeat, dessa vez bancada pelo marketing ostensivo da recém-inaugurada gravadora Trama, que pregava o surgimento de uma nova MPB. Otto seria o princípio de tudo. Nada mal para quem era uma espécie de mascote da Mundo Livre, o palhaço da turma, o “Otto fuleiragem”.

Samba pra burro consistia na (então) mais bem-sucedida junção de música brasileira com os ritmos eletrônicos gringos. Longe dos seus companheiros de banda, Otto fez um disco apenas na companhia do produtor Apollo 09. Só dois homens isolados com algumas máquinas. A embalagem do produto era cuidadosa: a imagem limpa e germânica da capa tornava-se ícone num país que acabava de agregar o estrangeirismo “fashion” ao seu bê-á-bá.

CORTE NO TEMPO

(Pergunto: A cada disco você foi se afastando daquele som eletrônico do Samba pra burro, apesar de todo o sucesso. O que aconteceu? Ele responde: “Aquele disco inaugurou a eletrônica no Brasil. Teve ainda um disco de remixes [o duplo Changez tout], ninguém tinha feito aquele som antes. Mas eu fiz o disco daquele jeito porque estava sozinho, ainda não tinha uma

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adriano vizoni/folhapress

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joanna calazans

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Perfil 1

banda. É o trabalho de um homem só. Pela primeira vez tive a liberdade de fazer o que queria”. Retruco: Mas a mudança também acarretou uma perda de visibilidade por parte da crítica e do público. Ele explica: “Quando eu lancei o meu disco Sem gravidade, um jornalista de O Globo disse que não iria publicar a crítica, porque o disco era ruim. Nem para falar mal eles quiseram citar o meu nome. Dias depois, saiu uma matéria de capa falando do disco que não existiu de Caetano Veloso e de Chico Buarque. Eles deram capa para um disco que não foi lançado e não quiseram nem meter o pau no meu. Fui completamente ignorado”.) A conversa acima é fragmento da entrevista que fiz com o cantor uma semana antes do Carnaval deste ano. Na década que nos separa daquela noite na Lov.e, a vida e a carreira de Otto trafegaram entre o paraíso e o inferno. Felizmente, essa entrevista foi realizada durante o retorno ao paraíso. Lançado no exterior no final de 2009, seu quarto álbum, Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, tem recebido elogios da crítica.

Entre a fama e a exclusão: Otto precisou migrar para o Sudeste em busca de reconhecimento Tudo começou com um perfil no jornal The New York Times, no qual ele foi comparado a Moby (outro que oscila entre a glória e o ostracismo), com o título Otto is brazilian, but with a different beat (“Otto é brasileiro, mas com uma batida diferente”). É curioso como o cantor sempre precisou se afastar de casa para ser aceito. Samba pra burro foi primeiro tratado como obra-prima em São Paulo. Em Pernambuco, demorou para o cantor deixar de ser o “bicho-que-pula” (apelido adquirido por conta de sua performance inquieta de palco). O novo disco surgiu quando ninguém dava mais bola para Otto. Samba pra burro parecia um raio que não cairia no mesmo lugar. Sua discografia

posterior, Condom black (2001) e Sem gravidade (2003), ou soava um pastiche da estreia bem-sucedida ou o som de um artista perdido em seu labirinto de ideias. Otto sempre foi um homem de ideias estranhas. Tornou-se memorável seu depoimento sobre masturbação, numa entrevista para o programa de Jô Soares, que não vale a pena ser reproduzido aqui. Há alguns anos tive uma discussão com o cantor por criticar de forma negativa um dos seus shows. Meu texto reclamava da sua postura no palco, espaço que Otto costuma aproveitar para mandar um interminável texto nonsense, torrando a paciência da plateia. Ele não gostou do que leu e ameaçou ir à redação do jornal tomar satisfação. Faço agora um mea culpa: na época, não entendia que Otto não seria Otto sem nonsense. Suas melhores músicas, inclusive, têm letras coerentes com sua conduta. Só Otto poderia falar as coisas que estão em faixas como Bob e Crua e é quase impossível imaginá-las na voz de outra pessoa. Em seu show carnavalesco no Marco Zero do Recife, no mês passado,

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ag news

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seu discurso continuava sem fazer muito sentido. Mas ele era uma figura real no palco, havia emoção em cada palavra. Era um artista consciente do que atravessou para chegar até ali. “Todo mundo precisa de um marco zero”, disse. Não foi fácil chegar a esse ponto. Seu casamento com a atriz global Alessandra Negrini e a posterior separação foram puro deleite para as revistas de fofoca. A troca dos clubes noturnos de São Paulo pela Hollywood brasileira, que é o Leblon, levou o manguebeat para a revista Caras. “Fui crucificado na imprensa por ter casado com uma atriz. Mas eu sou hoje um homem de 40 anos, preocupado em ser um pai melhor, um artista melhor.” Samba pra burro abriu espaço para a tal nova MPB concebida com a marca Trama, formada por gente como Max de Castro, Simoninha, Fernanda Porto, DJ Patife... A fórmula inicial de sambinha com drum`n`bass e uma embalagem descolada chamou a atenção da mídia, mas logo foi perdendo sentido. Ser moderno e soar atual no decorrer da década

não tinha mais nada a ver com o padrão estabelecido um dia por Samba pra burro. A própria ideia de uma gravadora projetando seus artistas evaporava-se no ar. Os novos tempos ensinam que o melhor é ser independente, só. Fazer parte de uma turma, sim, mas não mais de um complexo empresarial.

ACORDAR DO PESADELO

Certa manhã acordei de sonhos intranquilos é o primeiro álbum de Otto sem gravadora e fruto da estreita relação musical com Pupilo (Nação Zumbi). O título do disco faz referência ao trecho de abertura da novela A metamorfose, de Franz Kafka. Perguntado sobre se a escolha indicaria que, por algum tempo, ele estivera se sentindo como uma barata, Otto riu, e disse: “Ainda bem que eu não estou mais tão barata quanto antes”; comentando também: “Esse disco tem um repertório amadurecido, mas quando ele ficou pronto ninguém queria me ouvir”. (Você regravou o sucesso Naquela mesa, famoso na voz de Nelson Gonçalves. Logo que o disco foi

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PERfORMANCE

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EM fAMíLiA

a composição das músicas revela-se também em inquietação no palco na companhia da filha Betina e de sua atual namorada, a atriz Bianca joy port

lançado, sua mãe faleceu. Como é lidar com essa música, agora, que ela aparentemente ganhou um novo significado?, foi outra pergunta que lhe fiz. “Eu gravei essa música porque ela teve um significado muito forte para a minha geração. Mas teve a morte da minha mãe… Ela era a única pessoa que acreditava em mim, quando ninguém queria me ouvir. Dizia que ela era minha sócia. Ela não conseguiu acompanhar o sucesso do disco, mas sempre acreditou no meu trabalho. Nesse tempo em que eu não era ouvido, precisei aprender que a vida tem esses ciclos. Estou vivendo um recomeço.”) Certa manhã acordei de sonhos intranquilos não parece ter sido feito por aquele homem cujo sucesso me ajudou a abrir caminho até a pista de dança da Lov.e há 10 anos. Aquele era um homem que falava da utopia de prazer que é viver no Pina de Copacabana, então, sua Pasárgada pessoal, que hoje nomeia um bar decadente no Bairro do Recife. Aquele ainda era o “bicho-que-pula”, apesar da embalagem modernosa da Trama. Lembro que, duas horas depois de termos chegado à Lov.e, alguém surgiu com a ideia de irmos para outro clube. Não lembro o nome do lugar, apenas que ficava numa das transversais da rua Augusta, no subterrâneo de um prédio empresarial. Ficaram nítidas na minha cabeça as luzes vermelhas e uma estátua de Buda. Otto, mais uma vez, era o foco das atenções. Não fiquei muito tempo por lá, o som era chato. Um dos caras do nosso grupo disse que aquela era uma casa dedicada a “novos estilos”, seja lá o que isso signifique. Preferi ir embora sem me despedir do cantor, que pulava feliz no meio da pista de dança. Para ele, a noite estava apenas começando. Era mais um marco zero.

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Pernambucanas

anos 1950 Moderna à beira-mar

Construção que abriga centro cultural em Jaboatão dos Guararapes é um dos raros exemplares do estilo modernista conservados no litoral de Pernambuco texto Bernardo Valença fotos Flora Pimentel

o mar ocupa os extremos da visão.

Da larga varanda à beira-mar, podese apreciar as curvas do oceano. Ondulações vivas e translúcidas que se contrapõem à firmeza e sobriedade da arquitetura moderna, salientada pelo uso do concreto. O alpendre é a parte frontal, o cartão de boas-vindas do imóvel que pertenceu ao senador José Ermírio de Moraes (1900– 1973). Hoje cedida ao governo de Pernambuco, a casa é um dos exímios exemplares desse estilo arquitetônico no Estado, construída numa época em que o modernismo construtivo se encontrava muito ressaltado. No início dos anos 1960, quando a obra foi concluída, o bairro de Piedade (em Jaboatão dos Guararapes, município

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Os ângulos retos encontrados na fachada são característicos do Modernismo. Podese notar o uso da platibanda, artifício que esconde o telhado, e o vão livre dado pelas colunas O uso do azulejo, na escada do anexo, representa para o arquiteto Paulo Vaz um bom acabamento Esse artifício, típico do Nordeste, é utilizado para diminuir a incidência de luz solar e permitir a ventilação natural

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ao sul do Recife) estava começando a se tornar também residencial e comercial. Havia poucas edificações e muitas delas serviam de veraneio para as classes média e alta. O industrial fundador do grupo Votorantim, José Ermírio de Moraes, foi um dos que resolveram morar no local. “Piedade era uma área de férias, mas a casa servia de residência quando ele vinha a Pernambuco”, diz o arquiteto Paulo Vaz de Oliveira, que projetou o imóvel quando jovem, no final dos anos 1950. A residência do empresário foi uma das primeiras experiências do arquiteto, que também é responsável pelos prédios da Indústria de Cimento Poty, no Bairro do Recife, e da Igreja Presbiteriana, nas Graças. “Foi muito marcante, uma

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Pernambucanas 4-5 exposições

Os cômodos da casa se transformam em espaços para mostras itinerantes

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brise-soleil

Elemento arquitetônico instalado nos fundos da casa, dosa a iluminação natural no decorrer do dia

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oportunidade ímpar para um jovem arquiteto”, conta Paulo Vaz, hoje com mais de 80 anos, mas que tinha 30 à época em que elaborou o projeto residencial. “Não houve restrição quanto a custos (apenas definiram a quantidade de quartos), coisa que era e é muito rara de acontecer. Me deixaram livre para criar; foi como se eu estivesse fazendo um trabalho para a faculdade.” Na área de 2,6 mil metros quadrados, o arquiteto planejou uma casa espaçosa, com sala e varanda pensadas para receber visitas. “Demos a dimensão da

personalidade que era José Ermírio, um industrial conhecido no Brasil inteiro, que, naturalmente, tinha uma vida social muito mais ampla do que uma pessoa comum”, justifica Paulo. Essa vida ainda iria se ampliar quando, em 1963, foi eleito senador. Na década de 1980, com José Ermírio já falecido, seu genro convidou Paulo Vaz para projetar um anexo dedicado à acomodação dos netos do senador. Foram erguidos mais cinco quartos, acrescidos aos três já existentes. Como não se ligava diretamente à casa e havia certa restrição de custos, optou-se por um prédio simples que, sem destoar completamente, também não estabelece unidade com a arquitetura original. “Uma certa discrepância”, conforme assume o próprio arquiteto.

noVos Usos

Em 2008, o grupo Votorantim e a família de José Ermírio cederam o imóvel ao governo de Pernambuco, em regime de comodato, por 30 anos. As exigências foram que ele se tornasse um equipamento cultural, que tivesse uma ala homenageando o senador

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e que o nome da instituição fizesse menção a José Ermírio. Criou-se a Estação Cultural Senador José Ermírio de Moraes, cuja atual responsável é a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). A abertura pública da casa ocorreu com a mostra de decoração Morar mais por menos, que não valorizou especificamente o estilo arquitetônico original. Com o desmonte da mostra, coube ao governo restaurar o imóvel. “Algumas intervenções modificaram a planta, como a demolição de uma parede e a construção de outra, mas acabaram ajudando a transformar o lugar em um equipamento cultural”, afirma Bárbara Collier que é gestora, junto com Anazuleide Ferreira, da Estação Cultural. A principal preocupação com a adequação do espaço residencial para o expositivo foi preservar a arquitetura moderna, sobretudo pela pouca atenção dada hoje ao estilo em Pernambuco. A própria sede da Estação não é tombada. “Esse tipo de arquitetura não é devidamente valorizado a ponto de ser protegido por lei”, diz a arquiteta da Diretoria de Difusão Cultural da

Fundarpe, Ana Cláudia Fonseca, mestre em intervenções no patrimônio arquitetônico pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Mesmo sem tombamento, o fato de a casa ter sido transformada em equipamento cultural assegura que ela não será demolida ainda, como aconteceu a construções modernistas do mesmo período. A doação do imóvel ao Estado ocorreu em 2008, mas a Estação Cultural Senador José Ermírio de Moraes só foi inaugurada em agosto de 2009. Desde então, vem promovendo exposições em duas salas equipadas para tal e o jardim já foi utilizado para shows e eventos. Conforme previa o acordo, o espaço conta com o Memorial José Ermírio de Morais (ainda inacabado) e com uma mostra permanente em homenagem ao arquiteto Paulo Vaz. Embora aberta ao público, a Estação ainda não está em pleno funcionamento. Para o futuro estão previstos: um auditório multimídia, um ateliê para oficinas de arte, a inauguração de salas para atividades

educativas e um restaurante. Segundo Fátima Oliveira, diretora de planejamento e monitoramento da Fundarpe, os investimentos devem chegar a cerca de R$ 100 mil, previstos para este ano. Jaboatão dos Guararapes é um município em que há poucos equipamentos culturais, a maioria deles de caráter diversional (salas de cinema em centros de compras) ou histórico. Assim, é bemvinda a instalação de um espaço que faça circular arte e cultura contemporâneas, que defina um perfil institucional e mantenha um calendário anual de atividades relevantes no setor. “O público de Jaboatão ainda não está acostumado com esse equipamento cultural. Mas, quando tudo estiver funcionando, pretendemos receber cerca de 150 pessoas diariamente”, estima Bárbara, pensando nos cursos que serão oferecidos. “Ainda estamos com dificuldade em parar de chamar os quartos de quartos: são salas”, afirma a gestora, revelando como a proposta ainda é incipiente.

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COMÉDIA O adorável arquétipo do vagabundo

Personagem Tora-san, da série de filmes É triste ser homem, fez tanto sucesso no Japão quanto Didi Mocó, o mais famoso clown nacional texto Marcelo Abreu, de Tóquio

Vivendo numa sociedade

obcecada pelo trabalho, Tora-san não tem emprego fixo. Despreza a instituição do casamento, mantendo a todo custo o status de quarentão apaixonado e solteiro. Sobrevive de pequenos bicos, vagueia pelas cidades japonesas e, quando a situação aperta, volta para a casa dos tios que o criaram em Shibamata, um tradicional subúrbio de Tóquio. Com sua mistura de estilo de vida irresponsável, coração apaixonado e uma pitada de amargura, Tora-san foi amado por milhões de japoneses que viam no personagem uma imagem saudosa de um Japão que desaparecia rapidamente com o progresso material das últimas décadas do século 20. Lançado como um filme de pequeno orçamento pelo estúdio Shochiku, há exatos 40 anos, É triste ser homem (Otoko wa tsurai yo), do diretor Yoji Yamada, fez tanto sucesso no Japão, que se tornou uma série – produzida sempre para o cinema –, atingindo, em 1995, o filme de número 48, um recorde mundial, reconhecido pelo Guinness Book por serem todos os filmes dirigidos pela mesma pessoa e com o mesmo elenco, inclusive a estrela principal, o ator Kiyoshi Atsumi, que fazia o vagabundo Torajiro Kuruma, o popular Tora-san (Seu Tora, em português). A dupla Yoji Yamada-Kiyoshi Atsumi sintetiza, em versão japonesa, uma tradição que marcou o cinema ao longo do século 20: a do diretor/ ator de filmes de comédia cujo

personagem principal era um outsider. De Charles Chaplin a Mário Moreno Cantinflas, de Norman Wisdom a Jerry Lewis, passando pelos brasileiros Amácio Mazzaropi e Renato Aragão, as séries fizeram enorme sucesso de público em todo o mundo e hoje são reavaliadas positivamente pela crítica. Após dezenas de filmes nos quais fazia o mesmo personagem, Kiyoshi Atsumi tornou-se um dos artistas japoneses de maior prestígio e fama. As histórias são simples e previsíveis: no início de cada episódio, Tora-san

Série protagonizada pelo ator Kiyoshi Atsumi bateu recorde mundial com 48 filmes realizados está quase sempre metido em alguma enrascada no interior do país, querendo abandonar algum empreendimento falido. Geralmente, conhece uma bela mulher e apaixona-se. Mas não consegue expressar seu amor e volta de ressaca para Tóquio, onde sua família, perplexa, mas aliviada pelo retorno, o acolhe com alegria. Depois de um animado jantar e muitas doses de saquê, Tora tagarela sobre seus sonhos e, de manhã, parte inesperadamente para mais uma aventura pelo país – o destino só saberemos no filme seguinte.

Longe estavam os monstros como Godzilla, a perversidade erótica de Nagisha Oshima e a pancadaria de Takeshi Kitano. É triste ser homem não tem também perseguições ou cenas de pastelão. Não é o tipo de comédia que arranca gargalhadas. Mas é essencialmente alegre e tem aquele gostinho agridoce que faz rir e sair do cinema se sentindo bem e pensando na vida. Além do título geral É triste ser homem, cada filme da série tem um subtítulo próprio. Eram lançados quase sempre nos meses de agosto e dezembro. No Brasil, onde chegaram com subtítulos como Tora–san vai ao norte ou Tora-san reencontra Lily, eram exibidos tradicionalmente no antigo Cinema Liberdade, no bairro nipônico de São Paulo, e nos festivais de cinema japonês realizados em algumas capitais até os anos 1990, inclusive no Recife.

herÓi SuBurBAno

No Japão, o culto ao personagem conta agora com um museu, no bairro de Tóquio onde se passava a história. O espaço foi criado após a morte de Kiyoshi Atsumi, em 1996, o que provocou o fim da série. Shibamata é um típico subúrbio de classe operária da zona leste da capital. Suas ruas estreitas são cheias de lojinhas e quitandas. O centro do bairro é a estação de trem que faz a ligação com as outras localidades da metrópole. Apesar de localizado em uma das maiores e mais ricas cidades do mundo, Shibamata é distante do centro o suficiente para não compartilhar do frenesi consumista e empresarial adornado a néon que caracteriza boa parte de Tóquio. Aqui o ritmo é de cidade pequena, as ruas são acolhedoras, os vizinhos se conhecem e mulheres idosas circulam de bicicleta. Na pequena praça em frente à estação, há uma estátua de Tora-san, que reproduz seu chapéu de abas curtas, seu paletó surrado, suas sandálias japonesas e sua inseparável mala de madeira. A principal rua de pedestres do bairro, onde muitas cenas externas de É triste ser homem foram rodadas, está preservada como aparece nos filmes. Moradores e visitantes circulam pelas quitandas e pela aconchegante Kurumaya, um misto de doçaria e casa de chá onde, na parte dos fundos, morava o casal de tios idosos

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que haviam criado Tora e sua irmã Sakura (interpretada por Chieko Baisho). Lá moravam também o cunhado trabalhador, marido de Sakura, e o sobrinho de Tora. Era um espaço aberto para receber o anti-herói após suas longas viagens errantes pelo país e para acomodar as visitas dos vizinhos, que sentavam sobre um tatame para conversar. Nesse cenário tipicamente japonês se destacavam as cortinas adornadas com a caligrafia dos kanji, os docinhos de feijão e a tradicional xícara de chá verde. No final da rua fica o templo budista de Taishakuten (construído há 350 anos), que também aparecia nos filmes. Mas a principal atração de Shibamata é mesmo o Tora-san Kinenkan, o Memorial de Tora-san, na verdade, um museu inaugurado em homenagem ao personagem e ao ator Kiyoshi Atsumi. O estúdio Shochiku e o próprio diretor Yoji Yamada ajudaram a reconstruir parte dos cenários que apareciam nos filmes. Colocaram em exposição também as roupas dos atores e alguns objetos que ficaram conhecidos durante a série (como as bugigangas inúteis que Tora

tentava vender durante as fases em que bancava o camelô). O sucesso comercial da série, no caso de Yoji Yamada, não significa filmes de baixa qualidade. Suas credenciais sempre foram as melhores. Seguidor declarado de Yasujiro Ozu, Yamada teve seu personagem Tora-san inspirado em um homem chamado Kihachiro, que Ozu utilizou em algumas comédias antes da Segunda Guerra. Yamada tem no currículo vários outros filmes consistentes, entre eles a obra-prima O sinal da felicidade, de 1977, uma das maiores produções cult do cinema japonês. O diretor ganhou 18 vezes o prêmio Kinema Junpo, o mais importante do Japão. É contemporâneo de Nagisha Oshima, famoso diretor da nouvelle vague japonesa. Mas as semelhanças com Oshima param por aí. Yamada afirmou certa vez que o seu estilo é “traduzir os acontecimentos da sociedade e os grandes temas da humanidade numa dimensão pequena, que é a família”. Admite, com modéstia, os “pontos de contato” entre sua obra e a do renomado Ozu.

Já o ator Kiyoshi Atsumi, que nasceu em 1928, começou trabalhando como ator cômico em casas noturnas do tradicional bairro de Asakusa, em Tóquio. No cinema, atuou nos anos 1950 em alguns filmes do próprio Yamada. Depois que começou a fazer sucesso com É triste ser homem, ainda fez alguns outros papéis. Sempre expressava o desejo de mudar sua trajetória. Mas o sucesso da série não deixava. No começo dos anos 1990, já envelhecido, Kiyoshi Atsumi não combinava muito com o papel do Tora-san, supostamente quarentão e paquerador. Mas o público não ligava. Estava acostumado às aventuras de Torasan e um dos charmes da história era mesmo saber mais ou menos como a coisa ia caminhar. Como em muitas séries, outro apelo era o clima de road movie e o contraste entre a vidinha em Shibamata e as viagens de Tora-san pelo país. Ele podia aparecer passando frio na gelada ilha de Hokkaido, no extremo norte do Japão, derretendo de calor no verão em Okinawa, ajudando vítimas de um terremoto em Kobe, ou até na Europa, como no filme Tora-san vai a Viena, de 1989. O crítico norte-americano Donald Ritchie, autor de livros sobre o cinema japonês, escreveu que a importância de Kiyoshi Atsumi para a série se devia ao fato de que ele podia “demonstrar simultaneamente alívio e preocupação, sorriso e desespero”. Sobre a presença e a força de Shibamata nos filmes, Ritchie diz que a ideia de um bairro tradicional era necessária num país em fluxo permanente. Inseridas em uma cultura cada vez mais voltada para os efeitos especiais, a rapidez e a violência, as histórias humanas e engraçadas protagonizadas por Tora-san nadaram contra a corrente no pós-guerra japonês. Os filmes de Yamada tentam resistir à banalização contemporânea. O personagem de Tora-san desafia o estilo de vida dominante numa sociedade industrial e recusa o trabalho assalariado nas grandes corporações. Prefere brincar com as crianças do bairro a entrar na cadeia produtiva da máquina japonesa. Contrapondo-se aos filmes de sensações baratas, É triste ser homem representa um cinema feito de histórias simples, poéticas e duradouras.

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TRAPALHÃO Um palhaço bom de paródia

Criador da mais extensa série de comédias no cinema brasileiro, Renato Aragão comemora os 50 anos do personagem que lhe deu fama

Quando a era de ouro das comédias

populares no cinema ameaçava chegar ao fim, na segunda metade dos anos 1960, surgia no Brasil aquele que acabaria formando o mais volumoso e popular conjunto de filmes do gênero no país, o cearense Renato Aragão. Em 2010, Aragão comemora os 50 anos de criação do personagem Didi, e os 45 de sua primeira aparição no cinema, no filme A pedra do tesouro. De lá para cá, fez ao todo 46 filmes para o cinema, alcançando a média de um filme por ano, e continua em atuação. Juntamente com os japoneses que criaram a série de comédias É triste ser homem, Renato Aragão é uma das melhores expressões da comédia popular tardia na história do cinema.

Quando ele fez seus primeiros filmes, Charles Chaplin já tinha se aposentado e começavam a desacelerar suas atuações no cinema os grandes comediantes como o francês Fernandel, o italiano Totó, o mexicano Cantinflas, o brasileiro Oscarito e o norte-americano Jerry Lewis. Dez anos depois, no final dos anos 1970, o padrão de produção cinematográfica comercial se encaminhava rapidamente para os efeitos especiais e para os filmes de aventura com monstros, ação e violência. Mas Renato Aragão, no Brasil, e Kiyoshi Atsumi, no Japão, não mudaram de rumo. Talvez por isso os filmes dos Trapalhões e de Torasan sejam exceções humanizadas no

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AnDAriLho

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origem

Na série, tora-san sempre retorna ao pacato bairro de shibamata, num subúrbio de tóquio, depois de suas aventuras no interior do país didi Mocó sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, que completa 50 anos, surgiu na tV Ceará no programa Vídeo alegre

panorama da comédia nas últimas quatro décadas. O personagem Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo surgiu na TV Ceará, em um programa chamado Vídeo alegre, em 1960. Aragão conta que, escrevendo um esquete para um dos primeiros programas, precisou de um nome para seu personagem e achou Renato muito sério. Imediatamente veio à cabeça “Didi”. Estava criado o personagem que encantaria o Brasil, e bateria recordes de audiência na TV e de público no cinema. Até 2007, entre as 20 maiores bilheterias do cinema brasileiro de todos os tempos, nada menos de 13 pertenciam aos filmes protagonizados por Renato Aragão. Entre elas, O Trapalhão nas minas do rei Salomão, que foi visto por 5,7 milhões de pessoas em 1977 (o terceiro mais visto na história do cinema brasileiro). Em 1965, no curta A pedra do tesouro, faz um esquete de nove minutos com Dedé Santana, sem diálogos. Seu primeiro longa, Na onda do iê-iê-iê, do mesmo ano, foi uma estreia tímida. O Didi do início não era ainda o cearense humilde e atrevido, espertalhão com os valentes e caridoso com os fracos, que viria depois. Era um jovem magrinho de cabelos escuros, penteados para trás, que somente de vez em quando mostrava seu lado de humorista. Aragão costuma dizer que sempre quis fazer cinema. Sua maior influência foi o comediante Oscarito, sobretudo o do filme Aviso aos navegantes, a que assistiu quase 20 vezes. A televisão veio como uma contingência e acabou ajudando muito na popularidade. Sobretudo no período em que teve o programa Os trapalhões todos os domingos na Globo, entre 1977 e 1995.

FÓrmuLA cômicA

Quando encontrou sua fórmula de atuação, Aragão passou a utilizar

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todos os elementos recorrentes no vagabundo clássico das séries de cinema: seu personagem está quase sempre sem dinheiro; mete-se nas mais diversas atividades para conseguir comer; é espertalhão na luta pela sobrevivência, mas solidário com quem precisa; arrisca-se, desafiando os poderosos; paquera uma bela mulher, mas acaba o filme sozinho. No meio do pastelão e das correrias, uma pitada de crítica social. Essa receita, consagrada por Chaplin com o universal Carlitos, não pode ser muito melhorada. O que cada bom comediante pode fazer é tentar acrescentar sua graça pessoal, seu rosto cômico, seus trejeitos próprios e alguns elementos de sua região do mundo. Será em Bonga, o vagabundo (1969) que o personagem ganhará contornos mais definidos. Lançado em 1969, Bonga é também um dos

SuceSSo

Os saltimbancos trapalhões, de 1981, representou um salto técnico nos filmes do grupo e agradou ao público e à crítica

filmes preferidos do comediante. Ele cristaliza a figura do desocupado com um passado decente, que sobrevive de pequenos golpes pelas ruas, tem um grande coração para se apaixonar pela mocinha e para ajudar, desinteressadamente, o amigo rico. É um anti-herói das ruas. As perseguições, as lutas e a correria quando o enredo vai chegando ao fim dão ao filme o toque de aventura que encanta a garotada. O maior mérito de Renato Aragão foi misturar os elementos do vagabundo com sua maneira de ser, seu rosto cearense, seu sotaque nordestino, seu repertório de caretas, sua fala truncada que só tem muita graça para quem fala o português.

QuArteto hiLÁrio

Fiel à tradição da paródia no cinema brasileiro que vinha das chanchadas da Atlântida e dos filmes de

Mazzaropi, Aragão foi aproveitando e incorporando as ondas de cada momento. A série Planeta dos macacos serviu de inspiração para fazer O trapalhão no planalto dos macacos (1976). O sucesso Guerra nas estrelas, de George Lucas, virou Os trapalhões na guerra dos planetas (1978). O incrível Hulk virou O incrível monstro trapalhão (1980). O mágico de Oz transformou-se em Os trapalhões e o mágico de Oróz (1984). Sete noivas para sete irmãos tornou-se O casamento dos trapalhões (1988). A noviça rebelde teve versão masculina com O noviço rebelde (1997). Os Trapalhões (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias) participaram de 22 filmes (de 1978 a 1990), mas a atuação de Renato Aragão com elencos variados começou no cinema em 1965 e continua até hoje. Além da presença diante das câmeras, a importância do comediante para os filmes normalmente passa pela preparação do argumento e do roteiro. Como no Brasil sucesso comercial e crítica raramente andam juntos, seus filmes muitas vezes não tiveram o reconhecimento que merecem. A exceção foi Os saltimbancos trapalhões, de 1981, filmado nos estúdios da Universal, em Hollywood, com trilha sonora de Chico Buarque, que representou, sobretudo, um salto técnico nos filmes do quarteto. Depois que o grupo os Trapalhões se desfez no início dos anos 1990, com as mortes de Mussum e Zacarias, Aragão ressurgiu em 1997. Didi, agora mais velho, assumiu um papel mais paternal e emotivo, mas sempre engraçado em filmes como O noviço rebelde (1997), em que atua como sacristão e mordomo, em Didi quer ser criança (2004) e em O caçador de tesouros (2006). Mas com um sistema de exibição muito mudado e novos hábitos do público, a bilheteria não é mais a mesma. Na época de maior sucesso (décadas de 1970-1980), os filmes dos Trapalhões eram exibidos nos cinemas de rua existentes no Brasil e eram vistos por todas as classes sociais. Porque nos anos 1970, nos cinemas nacionais, quatro coisas não podiam faltar: faroeste, kung fu, pornochanchada... e os Trapalhões. marceLo aBreu

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MUSEUS A capital mineira entre o passado e a vanguarda Inaugurados nesta década, dois projetos destacam a produção de artes e ofícios no Brasil e reforçam Belo Horizonte na rota do turismo cultural TEXTO André Campos

Belo horizonte ostenta há tempos o título de capital brasileira dos botequins. Para o visitante com destino a Minas Gerais, a distinção é uma boa desculpa para uma providencial parada, antes de seguir viagem rumo às preciosidades das cidades históricas do interior. Mas nem só nos bons petiscos e na pureza das cachaças estão as atrações da capital mineira e arredores. Inaugurada há 112 anos, hoje o quarto maior PIB entre os municípios brasileiros, a jovem “Beagá” vive um acelerado processo de modernização e desenvolvimento, que vem exigindo a criação de novos espaços para convivência, lazer e cultura. Assim como na área de negócios, a cidade conquista posições no cenário da produção artística nacional e se insere no mapa do turismo cultural. Um bom exemplo foi a criação, há menos de seis anos, de dois importantes centros de difusão: o Museu de Artes e Ofícios e o Instituto Inhotim, este localizado em Brumadinho, a 60 quilômetros da capital. Montado na antiga estação de trem, hoje metrô, no centro da cidade, o Museu de Artes e Ofícios (MAO) foi aberto ao público em janeiro de 2006, e abriga todo o acervo proveniente da coleção particular da empreendedora cultural Ângela Gutierrez, iniciada há

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50 anos. O conjunto de peças expostas, que impressiona pelo excelente estado de conservação, é composto de ferramentas, utensílios e equipamentos do período pré-industrial brasileiro e conta hoje com mais de 2.400 itens catalogados, a maioria doada ao Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

fazeres e ofícios

Fole de ventoinha, bigorna, tear, alforje, pilão, bedame, balança de Roberval, bruaca, tenaz, cabeção são alguns dos objetos que ilustram os fazeres, os ofícios e as artes no Brasil. Apetrechos estranhos para muitos, sobretudo os mais jovens, acostumados com as engenhocas eletrônicas e digitais, essas ferramentas deram origem a muitas profissões de hoje. “Bem nostálgico! Fui criado em fazenda e lembreime da minha infância”, observa o empresário Leonardo Coelho, depois de conhecer o acervo. “Desde 1979, visito Belo Horizonte e gostei muito. Não conhecia algo tão bom assim no Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, não há um museu dedicado aos ofícios”, reforça o professor universitário Francisco Gomes, carioca. Nos mais de nove mil metros quadrados do prédio que abriga o MAO, o acervo foi organizado em 14

áreas temáticas, entre elas os ofícios da terra, do transporte, da mineração, da madeira. Espalhados ao longo do percurso, há monitores com vídeos interativos que complementam cada tema e atraem a atenção das crianças. A coordenadora de museologia do MAO, Célia Corsino, acredita que a exposição dos instrumentos e dos fazeres do homem comum vão além da lembrança de uma determinada época. “Queremos mostrar o momento em que o homem detinha o conhecimento de todo o processo do trabalho”, ressalta. Para o sociólogo do trabalho Antônio Tomasi, “O homem, mesmo condicionado por suas necessidades, insiste em fazer uso da capacidade de criar, de expressar sensações e sentimentos nos objetos do trabalho”. Algumas dessas peças eram desconhecidas pela guia turística espanhola Adela Cano, que fazia sua primeira visita a Belo Horizonte. “Há pouco mais de duas ou três gerações, pessoas trabalhavam de forma bem diferente”, diz ela, impressionada com a rapidez com que as transformações tecnológicas no trabalho ocorrem.

arte e natureza

Da agitação da metrópole, revisitando o passado no MAO, ao encontro com a arte em harmonia com a natureza. Em Brumadinho, município da Região

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Ferramentas, utensílios e roupas são expostos ao lado de aparelhos multimídia, que atraem crianças

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riqueza

a balança de pesar escravos é um dos ítens do catálogo com mais de 2. 400 peças do maO

anDre mantelli/DivulgaçÃO

3 Página anterior 1 artes e ofícios

Nestas páginas 3 museu-estação

Prédio tombado pelo patrimônio público próximo às plataformas de embarque e desembarque do metrô

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inhotim

as galerias de arte contemporânea dividem harmoniosamente espaço com o verde

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ROTEIRO DAS ARTES além de uma infraestrutura que conta com 33 teatros, 54 salas de cinema e mais de 30 galerias de arte, Belo horizonte possui 18 museus. confi ra algumas atrações imperdíveis na cidade Palácio das Artes Complexo artístico que reúne num só endereço dois teatros, quatro galerias de artes plásticas, espaço fotográfico, sala para concertos de câmara, cinema, espaço multimeios, biblioteca especializada, musicoteca, videoteca, oficina para instrumentos de sopro, luteria, salas de ensaio, ateliês e oficinas de cenografia, figurinos e adereçaria. O espaço ainda abriga uma loja com o melhor da arte popular de minas. Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro, www.fcs.mg.gov.br. Museu Histórico Abílio Barreto O último casarão colonial do Curral D’el rey (1883), arraial onde foi construída a nova capital, abriga o museu que leva o nome de seu curador, o historiador e poeta abílio Barreto. reúne peças e documentos que contam a história de Belo Horizonte e do estado de minas gerais. entre outras preciosidades, está a “mariquinha”, locomotiva a vapor da época. Av. Prudente de Morais, 202, Cidade Jardim, www.amigosdomhab.org.br.

brinquedos desde o século 19. Destaque para o lego dinamarquês de 1940, feito de madeira lisa e sem as peças de encaixe. Av. Afonso Pena, 2.564, Funcionários, www.museudosbrinquedos.org.br. Museu Giramundo exposição de cerca de mil bonecos (foto) e marionetes que acompanham o giramundo, um dos maiores grupos de teatro de bonecos do mundo. no espaço, além da história do grupo, em constante renovação, é possível conhecer as composições cenográficas, fotografias, desenhos originais, filmes e áudios que ilustram as suas apresentações, além de estudos relativos à arte dos fantoches no mundo inteiro. Rua Varginha, 235, Floresta, www.giramundo.org.

DivulgaçÃO

Museu dos Brinquedos um bom programa também para crianças, conta com mais de 600 peças que contam a história dos

Metropolitana, está instalado, em meio a um parque ambiental com 648 hectares, o Instituto Inhotim. Trata-se de um complexo museológico composto por pavilhões não lineares que abrigam 500 obras de arte contemporânea, entre pinturas, esculturas, fotografias, vídeos e instalações, produzidos por mais de 100 artistas nacionais e internacionais. Cada obra não é necessariamente uma unidade, já que uma instalação, por exemplo, pode ter mais de 200 objetos e ser multimídia. O Instituto, aberto ao público desde 2005, recebe elogios de pessoas especializadas ou não em arte. Charles Watson, professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, do Rio de Janeiro, considera o Inhotim “uma das quatro instituições mais importantes do mundo para a arte contemporânea”. O bucólico e contemporâneo complexo, com 15 galerias, jardins de mata nativa conservada e cinco lagos

Museu de Arte da Pampulha Ocupa a área do antigo cassino, extinto em 1946, parte do complexo arquitetônico da Pampulha, criado por Oscar niemeyer, com jardins de Burle marx. abriga um acervo de 1.600 obras. entre os nomes do acervo: Oswaldo goeldi, Fayga Ostrower, Di Cavalcanti, livio abramo, Bruno giorgi e Ceschiatti, antonio Dias, Frans Krajcberg, iberê Camargo, tomie Ohtake, ivan Serpa, milton Dacosta, volpi, com destaque para as pinturas de alberto guignard. Possui salas multimídia, biblioteca, café/ bar e loja. Av. Otacílio Negrão de Lima, 16.585, Pampulha.

ornamentais, começou a tomar forma na década de 1980, pelo interesse do empresário Ricardo Paz, que unia, àquela época, botânica e arte em seus jardins, projetados com a colaboração do paisagista Burle Marx. “O diferencial de Inhotim é que estamos permanentemente fazendo pesquisas e criando trabalhos que se distinguem de outras experiências museológicas no Brasil. Há peças que foram pensadas e criadas para esse lugar”, afirma Júlia Rebouças, curadora assistente do Instituto. E ressalta: “A relação entre arte contemporânea e botânica não é apenas um discurso ecológico. É questão de estética e sensibilidade”. O envolvimento dos artistas com o Inhotim é pautado pela cumplicidade. Onze galerias permanentes foram feitas para abrigar obras de artistas, entre eles Adriana Varejão, Tunga e Cildo Meireles. “Há uma disposição muito grande da instituição em ouvir

o artista e tentar chegar a um projeto ideal para a exposição”, observa a curadora. São obras que emocionam ou chocam os visitantes, mas que não os deixam indiferentes. A universitária Cláudia Amaral diz que o que mais chamou a sua atenção foi um trabalho anticonvencional. “Uma obra com caixas de som espalhadas em uma sala em que, a cada momento, uma caixa reproduz um som diferente do outro: um canto, uma respiração...”, descreveu a estudante referindo-se a um trabalho de Cildo Meireles. Para o bom proveito do programa é aconselhável ir cedo e com fôlego para um longo passeio a pé, de preferência em dia de tempo bom. Para maior conforto dos visitantes, o Inhotim dispõe de restaurante, integrado aos jardins e, nas redondezas, há opção de hospedagem em variadas pousadas, para quem um só dia de visita é pouco.

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gregório bezerra a resistência impressa numa vida de militância política

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soldado

gregório Bezerra integrou o exército, instituição para a qual foi aceito aos 22 anos

Encontro com o combatente de esquerda que, nascido há 110 anos, foi um dos criadores do Partido Comunista em Pernambuco e um exemplo de coragem e integridade

imagens: acervo da família

TEXTO Marcelo Mário de Melo

con ti nen te#44

Vi Gregório Bezerra pela primeira

História

vez em 1958, com 14 anos, num comício da campanha de Cid Sampaio a governador. Meu pai queria ouvir o seu herói, Luís Carlos Prestes, e me levou. Depois que entrei na base comunista do Ginásio Pernambucano, em 1961, passei a ver Gregório mais vezes e a chegar perto, em reuniões partidárias e nas suas passagens pelo Edifício Vieira da Cunha, onde funcionavam o comitê estadual do PCB e a redação do jornal semanal A Hora. Mas a maior proximidade com Gregório se deu na campanha de Arraes a governador, em 1962. Ele comandava o comitê central, na rua do Imperador, onde passava o dia. À noite, de segunda a sábado, falava em três comícios suburbanos. Eu atuava nos carros de som à tarde e, à noite, era apresentador em comícios. Ia com ele no jipe e pegava a carona de volta para casa. Ouvi de Gregório muitas histórias de prisão, torturas, do levante de 1935, de andanças e campanhas políticas. Por ser gói, eu vivia um namoro meio clandestino com uma menina judia, que chamava Gregório de “vô” e era tratada por ele como “minha netinha”. Nós sonhávamos com as “reformas de base”, o socialismo e um casamento, que teria Gregório como padrinho. Mas “os sonhos amazônicos/ despertam em pingos na torneira da pia”, como disse o companheiro de prisão Alberto Vinícius Melo do Nascimento. A namorada foi levada para Israel. Gregório foi para a cadeia em 1964. E eu fiquei pesando nos pratos da balança a dor de cotovelo e a dor civil. Em Gregório Bezerra, o espírito de resistência, aliado à coragem e à valentia de guerreiro, estava impresso

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na medula e se refletia nas suas atitudes em todas as esferas e fases da vida. Aos quatro anos, ele já ajudava a família na agricultura e, aos oito, órfão, trabalhou como assalariado agrícola e, no Recife, num emprego doméstico. Em sua adolescência, sobreviveu como jornaleiro e operário da construção civil, quando se envolveu nas lutas pela jornada de oito horas, por aumentos de salários e outras reivindicações. Nessa época, participa de conflitos de rua, é processado e cumpre cinco anos de prisão. Entra no exército como soldado raso aos 22. Alfabetiza-se aos 25, malhando numa tabuada e numa carta de ABC, depois que ouviu de um colega, a quem pedira, há um mês, que escrevesse uma carta para as irmãs: “Olha, Gregório, quem pede, espera”. Com 27 anos, faz o curso admissional, passa nos exames e é promovido a sargento de infantaria, destacando-se como instrutor de educação física. Numa sucessão cronológica, podemos ver sua constante postura combativa. No levante de 1935, desencadeado pela Aliança Nacional Libertadora, Gregório recebe a tarefa de mobilizar a soldadesca no Recife, num domingo, com o quartel vazio. Sai em combate, procura arregimentar populares, é ferido e continua lutando, até ser preso. Recusa-se a prestar informações à polícia, passa por inúmeras sessões de tortura e é condenado a 28 anos de prisão. Passando pela Casa de Detenção do Recife, Ilha de Fernando de Noronha e Ilha Grande, integra-se em grupos de estudo, atividades esportivas e protestos carcerários.

PaletÓ e GRaVata

Com a anistia de 1945, Gregório é eleito deputado federal, sendo o primeiro mais votado da bancada comunista e o segundo de todo o Estado. Usa pela primeira vez o paletó e a gravata, doados pelos eleitores, que também lhe financiam a viagem para a posse. Depois de cassado, em 1948, é sequestrado no Rio de Janeiro, sob a acusação de ter incendiado o 15º Regimento de Infantaria, em João Pessoa. No processo, passa de acusado a acusador, denunciando a farsa. Absolvido e libertado depois de dois anos de prisão, atua

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clandestinamente na área rural do sul e do norte. É quando recolhe 16 mil assinaturas contra a bomba atômica e pela paz mundial. De volta a Pernambuco, em 1955, Gregório participa da Frente do Recife, que elege Pelópidas Silveira prefeito da capital. Com a onda de prisões que rolou no Estado, resultado da infiltração de um agente policial no PCB, ele viaja para a China. Retorna em 1958, integrando o comitê estadual do partido. Participa de campanhas eleitorais e desenvolve intensa atividade na organização dos trabalhadores rurais. Gregório me contou que um empresário tinha apostado com ele, relógio por relógio, que Arraes seria derrotado nas eleições de 1962. “Vou pegar o relógio de ouro do burguês”, disse sorrindo. Em 1º de abril de 1964, Gregório Bezerra é preso em Palmares, sem ter conseguido as armas para a resistência contra o golpe. Barbaramente torturado no Recife, é conduzido pelo Bairro de Casa Forte, amarrado pelo pescoço. Mais uma vez ele se impõe moralmente sobre os carrascos. Não dá informações, responde às ofensas e, sempre que pode, dá uma porrada. Na Casa de Detenção do Recife, trabalha num plano de fuga. Mas em 1969 encabeça a lista dos presos políticos libertados em troca do embaixador norteamericano, sequestrado pela Aliança de Libertadora Nacional, dirigida por Carlos Marighella.

agricultor na infância e jornaleiro na adolescência, Gregório se alfabetizou aos 25 anos Banido e exilado em Moscou, com a saúde debilitada, Gregório participa de campanhas de denúncia contra a ditadura. Por insistência dos companheiros José Fortuna de Melo, meu irmão falecido, e Aníbal Valença, atual presidente do PCB em Pernambuco, escreve, página a página, as suas memórias, submetidas à revisão de Ferreira Gullar. Com a anistia de 1979, ele retorna ao Brasil e se afina politicamente com Prestes. Em 1982, candidata-se a deputado federal por Pernambuco e não é eleito. Em companhia do padre Romano Zuffery, vi Gregório pela última vez em outubro de 1983, na véspera da sua viagem para operar o coração em São Paulo. Estava animado e falante, mas sucumbiu a um ataque cardíaco, aos 83 anos. Típico homem de massas, o “velho Griga” tinha um diálogo fácil com os jovens e era o mais popular e querido líder comunista de Pernambuco. Na minha lembrança, imagens da Casa de Detenção do Recife e os ecos do seu lamento de guerreiro: “Em 1935, a gente tinha armas e não tinha massa; em 1964, tinha massa e não tinha armas”.

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TRABALHADORA Uma empresária, sua fabriqueta e o status da mulher

A estilista de moda íntima Alessandra Monteiro, pelas suas escolhas pessoais e profissionais, sintetiza o que poderia ser interpretado como o legado do feminismo à geração atual texto Ana Braga fotos Helder Tavares

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o camarada Lenin bem que poderia estar vivo, para ver no que deu o barulho das mulheres contemporâneas dele do início do século 20. Se ainda pensasse como naquele tempo, que julgava fúteis questões do feminino, iria, no mínimo, torcer o nariz para a história contada nessas páginas, a partir de um sutiã vermelho e negro e sua dona. Lenin planejava o comunismo e a Revolução Russa. Acreditava que o trabalho na indústria, de jornada extenuante e salário de fome, elevaria a consciência política do povo russo. Tinha causas gigantes, para as quais convocava homens e mulheres a agitar os portões das fábricas. Mas ele ignorava, digamos, a individualidade. Desconhecia as sutilezas de gênero. À feminista alemã Clara Zetkin, que primeiro sugeriu o Dia Internacional das Mulheres, em 1910, Lenin disse que era perda de tempo discutir casamento e sexo. Mas, hoje, o que teria o camarada a dizer?

Nenhum homem disse à Alessandra Monteiro, de 39 anos, o que deveria pensar ou fazer. Ela trabalha de segunda a sábado porque quer e não porque o patrão a deixa trancada na fábrica (era esse o sistema de trabalho no Ocidente industrializado do início do século 20). É dona de um ateliê de moda íntima em Gravatá, no Agreste de Pernambuco. Cria e vende peças de marca própria, By Sandy. O ambiente do ateliê, instalado no térreo de sua casa, em nada lembra a rudeza combatida pelas primeiras feministas da Europa e dos Estados Unidos (onde, em 1909, 15 mil trabalhadoras em greve pararam 500 fábricas). A placa em frente à casa avisa: “Fábrica de calcinha”. Mas é com o sutiã, objeto que as feministas dos anos 1960 queimaram num gesto público de insubmissão, que Alessandra experimenta ser mulher independente no século 21.

DonA DA HoRA

A jornada diária de trabalho das mulheres no início do século 20, quando o feminismo foi se encorpando em movimento, chegava a exaustivas 18 horas. Patrões trancavam operárias nas fábricas e regulavam até idas ao banheiro. Além das greves, o incêndio que matou 125 trabalhadoras na fábrica de camisetas Triangle Shirtwaist, em Nova York, em março de 1911, evidenciou a degradação da mão de obra feminina. A bibliografia do feminismo cita a tragédia como marco do movimento. Hoje, a situação trabalhista é muito diversa daquela, ainda que nem sempre favorável ou ideal. As mulheres ocuparam o mercado de trabalho e podem fazer escolhas. Este é o caso da estilista Alessandra Monteiro, que não se queixa da carga que carrega. É sua opção.

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mUitAs, mAs sUBALteRnAs

Sutiãs foram queimados simbolicamente em 1968 por americanas que recusavam o padrão de beleza dos concursos de miss, à época (evento conhecido como Bra Burning). Alessandra, que não é feminista, emprega sete mulheres, sustenta a casa, banca viagens e outros gastos. Está entre as mulheres que ocupam 29% dos cargos de dirigentes no Brasil (inclusive na política). Os demais 61% são dos homens, registra a Organização Internacional do Trabalho. Uma diferença difícil de engolir, considerando que 42,4% da mão de obra do país são cobertos pelas mulheres, de acordo com o IBGE. Mais: em 2020, elas serão maioria do mercado de trabalho brasileiro.

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RefeRÊnciA LiteRÁRiA

O vermelho e o negro foi o nome que Alessandra deu à sua recente coleção de sutiãs e calcinhas. A denominação inspirou-se no título do romance de Stendhal, publicado em 1830, que ela leu recentemente. Alessandra iniciou o curso de Letras numa faculdade em Vitória de Santo Antão, a cerca de 60 km de Gravatá. Desistiu porque não conseguiu cobrir os custos. Aos 19 anos, costurou e vendeu o primeiro sutiã, feito de “tecido grosso”, porque a revolucionária Lycra era privilégio da grande indústria. Em termos de escolaridade, a estilista integra as estatísticas que apontam: de cada 100 pessoas com 12 anos ou mais de estudo (nível superior completo ou incompleto), 56,7% são mulheres e 43,3%, homens. Os dados de 2008 do IBGE evidenciam uma situação impensável há 50 anos.

iGUALDADe em fAmÍLiA

Alessandra divide máquinas e mão de obra do ateliê com a mãe, dona Alzira, e o ex-marido, Marcos. Mas cada um produz o que quer vender: sutiãs com jeito de outwear (ela), cuecões em algodão (ele), calcinhas para senhoras (a mãe). Os ganhos são individualizados. Ganha mais quem vende mais. Nada tem a ver com gênero ou idade. A lógica é a da oferta e da procura. Mas esse sistema compartilhado e igualitário ainda é exceção. Estudo feito pela Organização Mundial do Trabalho (OIT) e divulgado em 2009 reforça um abuso histórico: as mulheres recebem, em média, 29,7% a menos que os homens, mesmo quando ocupam os mesmos cargos.

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nA comPAnHiA Do GAto

O fogão grande e a louça completa no armário da cozinha sugerem família numerosa. Mas Alessandra não é casada e não tem filhos. O apartamento de dois quartos só não fica vazio porque Nino, o gato siamês de estimação, deita e rola. A vida de casal sem prole foi acordada com o então marido (a propósito, a proporção de casais sem filhos cresceu de 13,3% para 16,7%, de 2008 para 2009, aponta o IBGE). O casamento durou 17 anos. Alessandra se queixa de solidão? Lamenta não ter filhos? Seu corpo à beira dos 40 anos reclama? Ela nasceu em 1970, auge das discussões sobre sexo por prazer e casamento “eterno enquanto durasse”. Herdou as consequências de ser mulher, diria a feminista Simone de Beauvoir, se contasse a história de Alessandra no seu O segundo sexo. Sofre os questionamentos decorrentes de suas opções, quando, por exemplo, a ginecologista pergunta quando virá o primogênito; a dermatologista indica botox para suavizar os vincos no rosto. “Às vezes me pergunto se não fiz escolhas erradas. Mas não tenho crises. Quanto mais eu questiono, mais me sinto mulher”, diz Alessandra, que admira a pintora mexicana Frida Kahlo, a candidata à presidência Marina Silva e a própria mãe.

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o noVo feminismo O feminismo está mais discreto hoje, em relação aos séculos 19 e 20. Esta é a ideia do autor de Cartografias do feminino, o psicanalista, doutor em filosofia e professor de psicologia da UFRJ, Joel Birman. O movimento se transformou porque elementos fundamentais da sua plataforma foram incorporados à sociedade contemporânea. Um desses seria a liberdade sexual, observa Birman, no artigo O feminismo 40 anos depois, publicado no site da universidade carioca. “Foi a separação da dimensão erótica da sexualidade do casamento, contrariando a tradição do patriarcado comum. Exerce-se hoje o sexo pelo prazer, pelo exercício do desejo, facilitado pelos métodos anticoncepcionais seguros”, avalia. Outro elemento seria a retirada do casamento do lugar de sagrado. “Hoje, mulheres podem viver outras funções sociais ou desenvolver seus projetos existenciais. No

Brasil, o desquite colocava a mulher em posição desonrada socialmente. Além disso, antigamente era inimaginável que mulheres ascendessem aos níveis de educação universitária e pós-universitária. A formação era básica e as virtudes maternais e domésticas”, lembra. O feminismo tem novas demandas. “O papel do movimento hoje é dissolver os obstáculos persistentes, embora de uma forma mais leve do que nos anos 1960. São novos objetivos, como maior representação política, igualitarismo sexual, proteção ao assédio sexual e garantia de equiparação salarial”, cita Birman. “Não sei se hoje teríamos ícones do movimento feminista, mas é evidente que a mulher que se destaca em algum campo da atividade artística, científica, política e econômica acaba se transformando em um ”, analisa o estudioso.

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RENATA CADENA

ATiTUDE O motel é por conta delas

Num mundo ainda eminentemente machista, as mulheres do funk tentam se impor com letras em que o corpo e o desejo são propriedades privadas texto Fabiana Moraes

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“tô podendo pagar hotel pros homens/

isso é que é mais importante.” “Eu lavava, passava/ tu não dava valor/ agora não adianta você vim (sic) falar de amor”. “Eu vou te dar um papo/ Vê se para de gracinha/ Eu dou pra quem quiser/ Que a p* da b* é minha”. No mundo – proibidão ou não – do funk made in Rio não há espaço para o “pós-feminismo” de Judith Butler ou o segundo sexo de Simone de Beauvoir. Chegue perto de uma menina como Deize Tigrona, Vanessinha Pikachu ou Valesca Popozuda para falar sobre dominação masculina. Não vai ter teorização ou um mínimo de chamuscamento no sutiã, top ou no shortinho usado por corpos que vestem de 36 a 50: “botar moral” é a regra, e a utilização de palavrões até então circunscritos ao mundo masculino é apenas uma das maneiras de deixar clara a necessidade de igualdade do lugar de fala. É claro que todas elas sofrem os constrangimentos comuns às mulheres nascidas num mundo regido pelo

Grande Mestre Falo (posto fique, logo acalmando a chama no peito das Judiths e Simones): a temática das letras, que invariavelmente mostra uma postura de oposição às práticas masculinas (“Para de marrar e desce desse palco/ Que aqui no meu cafofo sou eu que falo mais alto”), é a própria prova de que todas elas percebem a tal dominação operar em seus cotidianos. A questão é como essas artistas resolveram se colocar em relação ao machismo, à sexualidade, ao padrão corporal, à moral escorregadia da sociedade. Ao cantar abertamente o que gostam e o que não gostam na cama, por exemplo, elas provocam um misto de constrangimento e fascínio em uma classe média que até adora sacolejar ao som dos funks de conteúdo lascivo, mas só profere suas letras no conforto de um baile. Outro setor que vem se interessando cada vez mais pelas meninas é a academia. Não é difícil localizar trabalhos como O discurso da e sobre a mulher

no funk brasileiro de cunho erótico: Uma proposta de análise do universo sexual feminino, tese defendida no ano passado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A questão sexual, como se vê – e se ouve –, é a mais acessada, de fato, por grupos como o Gaiola das Popozudas (o de Valesca), As Anfetaminas, Bonde das Bad Girls e Bonde das Putanas, entre outros. Talvez seja por isso, por gritar com uma voz estridente termos que vão do pornográfico ao escatológico, por ter o sexo como mola motor de seus shows,que as meninas do funk não sejam inscritas na agenda política, e, sim, no debate moral. Mas não começaria justamente aí, na intimidade do quarto ou do bequinho escuro, a luta para legitimar vontades e posturas (o duplo sentido está valendo), a briga para impor respeito? Uma breve análise das letras de grupos como o de Valesca, moça que posou para a Playboy enquanto babava sobre uma imagem do presidente

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superioridade dos códigos do outro). A grana no bolso vale mais do que um shape fino – melhor pagar o hotel, como lemos no início deste texto, do que ficar nos 53 quilos marcados na balança.

VioLÊnciA e tRAiÇÃo

Outra questão política tratada é a violência e o “lugar de homem, lugar de mulher”. Em Tapinha nada, uma resposta ao antigo hit Um tapinha não dói (pesadelo dos movimentos que travam a batalha necessária contra os abusos sofridos pela mulher), Tati olha para o cafuçu com quem divide a cama e avisa: “Fica cas criança eu vo curti/ Comé que é?/ Fica cas criança eu vo curti/ O que?/ Fica cas criança eu vo curti/ tá bom!/ Fica cas criança eu vo curti/ Já escutei”. Em Agora eu virei absoluta (Gaiola das Popozudas), novamente a violência é cantada, dessa vez por uma mulher que deixa o marido que a espancava: “Só me dava porrada/ E partia pra farra/ Eu ficava sozinha, esperando você/ Eu gritava e chorava que nem uma maluca/ Valeu, muito obrigado, mas virei absoluta/ Se uma tapinha não dói/ eu falo pra você/ Segura esse chifre quero ver se vai doer”. Mas é desafiando a moral e o status quo inscritos na imagem da mulher fiel e dedicada que os bondes femininos mais espantam: ser amante, cantam elas, é muito mais vantajoso do que ser a “encubada” (sic), a “otária” que Lula, nos dá algumas pistas sobre que fica em casa lavando cuecas enquanto “moléstia” é esse “feminismo” desbocado o marido corre solto porta de casa que nasceu nos morros cariocas. a fora. É interessante observar essa Primeiro: ser objeto na cama declaração, ouvida através de potentes vale, desde que o papel seja exercido caixas de som, num momento cultural conscientemente pela mulher, que no qual se privilegia o “feminismo se deixa seduzir e permite a investida Jimmy Choo” de Carrie Bradshaw, a masculina (“Hoje é um dia de calor/ moça madura de Sexy and the city que, passei meu perfume pra te excitar/ Botei apesar de reconhecer seus direitos de a sainha, mostrei a marquinha/ Raspei fêmea, quer uma relação segura onde minha perna pra você alisar”, em Ai existam apenas dois personagens, ela, negão tô que tô pegando fogo). A ideia é: pode plena, e ele, o macho fiel. As funkeiras, por sua vez, querem a me fazer de “cachorra”, mas somente diversão e o prazer sexual, ainda que quando eu quiser. O corpo também é alvo de atenção: para isso tenham que passar o rodo no se ele não se encaixa no padrão geral homem alheio. Empregando termos e – resumindo, se a garota não é uma letras comuns aos seus ambientes (e é aí “gostosa” –, não significa que terá de ser que nasce parte do preconceito sofrido excluído do jogo social de sedução: Tati pelas artistas, todas de locais de baixo Quebra-Barraco deu de ombros para os prestígio), elas entoam versos como “Já quilos considerados a mais e proferiu saí com o Alex/ Já namorei o Rodrigo/ o famosíssimo “Sou feia, mas tô na Mas no final da noite vou comer o seu moda” (contraditório em si, já que, ao marido”. Ou “Me beija, me morde, me chamar-se de “feia”, Tati reconhece a trate com carinho/ Se você é casado, eu

quero que se dane”. Ou ainda “Não deu conta do marido/ vai rolar a cachorrada/ e se marcar eu como mesmo/ não deu conta eu como mesmo/ tu tá marcando eu como mesmo”. Uma série de títulos de canções que mostra uma “virada” na vida das moças, transformadas em fãs do shortinho e do piercing no umbigo após sofrer a pressão sufocante do mundo masculino, também dá conta dessa preferência pelo status da amante ou – horror maior das meninas que querem um marido e um Jimmy Choo – pelo status da solteirice: Agora eu sou piranha, Agora virei puta e Agora eu sou solteira são algumas delas. Sutileza? Nem pensar: o recado é sempre bem claro, já que não há muito espaço para DR (discussão de relação) no contexto dessas “glamourosas”. Ironicamente, elas também terminaram caindo numa espécie de armadilha ao figurarem como “protetoras” do woman power: não

os “bondes” femininos espantam por desafiar a moral e o status quo inscritos na imagem da mulher fiel e dedicada podem mostrar fragilidade, não lhes é permitido evocar o amor. “Não posso cantar música romântica. As pessoas não esperam isso da Tati”, diz a moça cuja tarefa, assim, será sempre a de quebrar barracos, ainda que carregue as vísceras cheias de afeto. Outra ironia é a divisão entre a artista no palco e a mulher dentro de casa, o que nos sugere que grande parte do que é cantado e rebolado pode algumas vezes estar resumido ao ambiente da performance. O depoimento da mesma Tati, transcrito no livro Funk carioca: Crime ou cultura? O som dá medo e prazer, mostra que há limites e contradições em meio a tantos palavrões e oposição: “Eu não fico preocupada com o que dizem. Se as mulheres querem se espelhar em mim, é bom que seja em mim mesma, e não no meu trabalho. Eu sou bem diferente no palco. Na cama, entre quatro paredes, sou eu, meu marido e Jesus. Sou careta, meu amor”. Alguém chame Judith e Simone aí.

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milagre brasileiro Diga-me onde devo enterrar meus mortos

Espetáculo do grupo paraibano Alfenim compõe um painel poético sobre os desaparecidos políticos da ditadura militar brasileira texto Astier Basílio FotoS Augusto Pessoa

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máScaraS

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expreSSão

A família burguesa, que defendeu a ditadura, mas que teve alguns dos seus filhos desaparecidos, é ridicularizada em cena Atores tentam materializar nas partituras corporais as torturas dos presos políticos

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Sobe-se pela lateral , numa

pequena escada de poucos degraus. Há somente uma entrada no Teatro Ariano Suassuna, em João Pessoa. A caixa cênica do Colégio Pio X, dos irmãos Marista, possui uma estreita passagem que dá acesso às cadeiras. Entramos e há pouca iluminação. Apenas um canhão de luz disparado à meia altura no elenco que está em fila indiana. As cadeiras em cima do palco, uma pequena luminária no centro da cena e uma atriz trajada de preto indicam que temos de atravessar o “corredor polonês” formado pelos atores que, num coro de vozes simultâneo e confuso, vão dizendo nomes: “Antônio Alfredo Campos,

José Humberto Broca, Antônio Joaquim Machado, Maria Augusta Thomaz”. São desaparecidos políticos cujos corpos até hoje não foram encontrados. Enquanto recitam o que parece ser uma irônica lista de presença, os personagens erguem um cartaz que lhes cobre as faces e exibe uma foto deles estampada em que se lê: “Terrorista procurado. Proteja sua família e seus familiares. Denuncie.” A impressão que se tem é a de que, para chegar até o palco, o espectador deverá, além de fazer um corpo a corpo com os atores, emergir de um túnel do tempo. E assim começa o espetáculo do grupo paraibano Alfenim, Milagre brasileiro, peça

ambientada entre 1968 e 1970, ápice da repressão da ditadura militar. A montagem se passa em um tempo, mas não em um lugar. Mas qual é mesmo a narrativa? Nenhuma. Milagre brasileiro é um espetáculo poético composto de imagens, ou melhor, de retratos. Só que o negativo e o positivo dessas imagens estão em um só corpo: a família burguesa que marchou com a Família pela Liberdade, ridicularizada e posta em caricatura na montagem, é apresentada por meio de máscaras em formato de caveiras, materializando em si mesmas os corpos ausentes. Num lance de dados estético e poderoso, que lembra os closes e a

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protagoniSta

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quebra quilos

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Personagem central, Antígona, é interpretada por Zezita Matos e cita a heroína da tragédia grega Na primeira montagem feita pelo grupo, o enredo era composto de pequenas narrativas

metalinguagem

A peça dentro da peça critica o teatro que se abstrai da história e se torna mera diversão

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bizarra fantasmagoria do cineasta russo Sergei Eisenstein em Que viva México (1932), o Alfenim resolveu trabalhar com as máscaras em forma de caveira. “A nossa busca é por uma chave grotesca, porque há uma beleza no grotesco; mesmo que venha a incomodar, é essa pesquisa que nos interessa”, garantiu o encenador Márcio Marciano. “A rigor, a única história que a gente conta é a de Antígona”, explica ele, que assina dramaturgia e direção do espetáculo, ao se referir a uma das personagens principais deste espetáculo.

A Antígona de Milagre brasileiro é interpretada por Zezita Matos (avó da personagem de Hermila Guedes em O céu de Suely), veterana do Alfenim e uma espécie de “primeira dama do teatro paraibano”. Antígona, personagem da tragédia grega, luta para ter o direito de enterrar o seu irmão morto, Polinices. A analogia é clara. Ao falar da personagem clássica, que Brecht recuperou em Antígona de Sófocles, de 1948, Márcio desenterra uma questão atual: a do destino dos corpos dos

desaparecidos políticos durante o regime militar brasileiro. Antígona se transforma, pela chave poética do Alfenim, na representação de um certo teatro que parece soar fora de moda. Não é à toa que desde o figurino – preto e com uma despropositada cauda longa –, passando pela maquiagem exagerada, a personagem Antígona é um elemento de discordância dentro da encenação. Até a forma de interpretar de Zezita remete mais a um teatro de outras épocas. À certa altura, o personagem interpretado pelo ator Adriano Cabral, diz: “Quando a História é subtraída, o que resta ao Teatro, narrar-se a si mesmo?” A pergunta parece cair como uma luva numa época em que os campeões de frequência em festivais de teatro no Brasil são montagens metalinguísticas como In on it, de Enrique Diaz, e Rainha(s), de Cibele Forjaz. É irônico que quem interprete a prostituta Ronsard seja Zezita, a Antígona. Sub-repticiamente, Márcio Marciano parece dizer que, ao fugir de seu compromisso com o tempo, o Teatro se prostitui, vende o

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seu corpo – sempre esta metáfora! – para diversão alheia.

noVa trupe

Márcio Marciano é fundador da Latão, companhia de São Paulo conhecida por suas montagens de teor político bem evidentes, do qual o Alfenim é herdeiro, tanto que, em princípio, chegou a ser cogitado como uma filial do grupo paulista na Paraíba. Teatro físico e partituras corporais nunca foram o forte do Alfenim, grupo recentíssimo, de apenas três anos e estreando este mês o seu segundo espetáculo, mas que já traz uma marca de limpeza cênica, de privilégio à dramaturgia. “O pessoal já nos identifica como um grupo de uma encenação mais limpa, mais ‘apolínea’”, atesta o diretor. Por uma necessidade dos integrantes, o grupo Alfenim e o grupo Piollin, também da Paraíba, resolveram trabalhar expressividade corporal em uma oficina. Escolheram para essa empreitada o ator, diretor e dramaturgo ítalo-argentino, Norberto Presta, que fez parte do International

o grupo alfenim estreia seu segundo espetáculo, com uma marca de limpeza cênica, de privilégio à dramaturgia School of Theatre Anthropology, dirigido por ninguém menos que o italiano Eugenio Barba, um dos grandes papas do teatro no mundo, cujos estudos de antropologia teatral inspiraram grupos com um trabalho focado mais no teatro físico, como o Lume, de Campinas, São Paulo. A investigação corporal não é utilizada apenas como forma, não se trata de simples demonstração de um virtuosismo plástico; casa-se com a preocupação de conteúdo. Da mesma forma que os invisíveis desaparecidos se materializam dentro do corpo da família burguesa por meio das caveiras, os torturadores não sobem ao palco, mas vemos sua existência no corpo dos atores, em suas partituras físicas.

Contrários se encontram. O pai da família, retratado na peça, tem o mesmo nome do ator, Araújo. Mesmo no seio dessa família conservadora, o filho mais velho entrou na clandestinidade. Mas os laços de sangue são mesmo complexos e emaranhados. O pai recebe o filho pródigo. Na cena, Araújo recita a fala de seu primogênito como se estivesse em seu lugar. “Nossa inspiração direta foi o Nelson Rodrigues. Um cara reacionário, que apoiou o regime, mas que mandava cartas para pedir aos generais que libertassem o filho que havia caído na clandestinidade e estava preso”, informa Márcio. Cumprindo o vaticínio de que a História mostra o que aconteceu e a arte o que deveria acontecer, Antígona, como se pisasse terras do Araguaia, joga areia nos cartazes dos terroristas. Mas estamos em festa. É 1970, que, como 2010, é também ano de Copa de Mundo, e o Brasil acaba de erguer sua terceira taça no México. O elenco convida a plateia a cair no samba. Cai o pano.

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flora pimentel

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BREGA CULT Os românticos da casa rosa-choque de Olinda

Academia da Berlinda, que foi criada há cinco anos com o intuito de fazer som para o público “dançar agarradinho”, prepara seu segundo CD texto Débora Nascimento

Verão. Rua de São Bento, Olinda. De

frente para a casa de Alceu Valença. No local, há uma antiga residência da Cidade Alta, alugada por R$ 300 para servir de improvisado estúdio de ensaio. Nesse lugar pintado de rosa-choque, os sete músicos vêm burilando as novas composições do segundo CD, Cumbia de Olinda, que pretende coroar os cinco anos de existência da Academia da Berlinda. Ao longo desses últimos verões, a banda olindense deixou de ser apenas o “projeto paralelo” de integrantes de outros grupos, como Mundo Livre S/A e A Roda, para tornar-se “projeto principal”. A ideia de criar um combo para tocar ritmos latinos misturados aos brasileiros tornou-se tão bem-sucedida, que a turma chega a fazer três shows mensais no Estado, sem contar com os realizados no restante do país. “Pelo menos uma vez por ano fazemos uma turnê pelo Sudeste e Sul”, afirma o baixista Yuri Rabid, acrescentando que, em maio, o grupo vai fazer uma miniturnê pela Argentina, com shows em Córdoba, Buenos Aires e Rosário. Depois seguem para São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Curitiba. Essas apresentações são, em parte, consequências do esquema alternativo de divulgação utilizado desde o começo pelo grupo, a exemplo da distribuição maciça e gratuita de seu primeiro CD, o independente Academia da Berlinda (2007). “Foi feita uma tiragem de duas mil cópias. Dessas, muitas foram vendidas, inclusive encartadas em revistas, outras foram entregues a diversas pessoas que poderiam contribuir de alguma forma na propagação do trabalho”, conta o músico Hugo Gila. “A gente não se preocupou em ganhar dinheiro com o disco”, complementa Yuri, pontuando que a renda maior vem dos shows.

Em Pernambuco, esses shows acontecem mais no período solar. Então, depois do Carnaval, partem para as regiões Sul e Sudeste, onde o conjunto encontra plateia e receptividade, graças à qualidade musical de seus componentes e de seu estilo diferenciado, que, em suma, é uma mistura de cumbia e guaracha com maracatu, coco e ciranda, tendo influências que vão do cantor brega Alípio Martins ao carimbó de Pinduca. O septeto apostou nessa sonoridade “brega roots” ou “brega cult” como uma forma de voltar ao som dos antigos clubes de baile da periferia recifense, como o das Pás, em Campo Grande, e o Bela Vista, no Alto Santa Terezinha, onde foi deflagrada a noite cubana do DJ NK Cumbia. “Nossa ideia não foi fazer uma banda com ritmo específico. A gente não teve intenção de ser um ‘grupo de brega ou de música latina’. Queríamos fazer um som para que o público dançasse agarradinho. E conseguimos.”

UM LUGAR PARA tocAR

As apresentações normalmente são produzidas pela própria banda, com panfletagem, compra de cerveja, divulgação pela internet... Geralmente são pensadas como festas, agregando shows de outras bandas amigas, como aconteceu em 2009, com o projeto Olinda Music Awards, que reuniu também a Eddie e a Orquestra Contemporânea de Olinda, no Mercado Eufrásio Barbosa. O evento acabou gerando o maior cachê já recebido pelos músicos até agora: mil reais para cada um. Considerada uma boa arrecadação no contexto do mercado local, em que o pagamento dos músicos, muitas vezes, depende de como o proprietário da casa negocia o “aluguel do espaço” e a renda da bilheteria.

A questão “lugar para tocar” ainda é crucial e pendente para o desenvolvimento de artistas e bandas. “Aqui não há um espaço fechado para shows de médio porte. Ou é lugar para 300 pessoas ou para 30 mil”, reclama Yuri. “O empresariado local deveria se sensibilizar para criar uma casa de shows que tenha uma boa estrutura permanente e que comporte duas, três mil pessoas”, sugere Hugo, argumentando que isso solucionaria o problema de bandas gastarem tempo e dinheiro para montarem a infraestrutura de seus shows. No entanto, a maior dificuldade enfrentada pela Academia é conseguir reunir todos os integrantes, seja para cumprir uma agenda de shows ou simplesmente de ensaios. Cada um dos componentes faz parte de uma outra banda. “É a forma que a gente encontra para poder viver de música”, afirma o baterista Irandê César, que participa também do A Roda. Hugo Gila (sintetizadores) e Tiné (vocal) tocam com a Orquestra Contemporânea de Olinda; Yuri (baixo), com o Quarteto Olinda; Gabriel Melo (guitarra), com DJ Dolores e Isaar; Tom Rocha (percussão e bateria), com a Mundo Livre, e Alex Urêa (percussão e vocais), com a Eddie. Na casa rosa-choque de Olinda, a banda já pré-produziu oito novas músicas, previstas para o próximo CD, que aguarda apenas o resultado das leis de incentivo para começar a gravação. O grupo também vem captando imagens para um primeiro DVD. Os dois produtos têm previsão de lançamento para este ano. Os pés de valsa certamente lhes darão boas-vindas.

@ continenteonline Ouça músicas da Academia da Berlinda no site www.revistacontinente.com.br

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beto figueiroa/divulgação

BIG BAND Deu no The New York Times: uma banda com gosto de gás

Oitenta shows em um ano, finalista do Prêmio de Música Brasileira, indicação ao Grammy Latino e um segundo disco a caminho. Esta é a Orquestra Contemporânea de Olinda texto Thiago Lins

Sonoras

era uma segunda-feira quando

o assessor de imprensa convocou o repórter para assistir ao ensaio da Orquestra Contemporânea de Olinda. Na impossibilidade, o emissário não hesitou: “Se não der hoje, vão ensaiar amanhã e quarta. Aliás, quinta e sexta também”. Era intrigante saber que uma banda com 10 membros ensaiava todo dia; afinal, há muitos quartetos e quintetos se desdobrando para se reunir toda semana, um verdadeiro feito. Mais impactante do que ter notícia do incessante modus operandi da banda, foi a audição do CD homônimo: funk, jazz, ska e samba em doses certas. Sob a regência do maestro Ivan do Espírito Santo, o grupo passeia com propriedade pelos ritmos mencionados,

destilando bases contagiantes e refrões ganchudos. A banda é um expoente do Original Olinda Style e, logo ao nascer, passou a dividir palcos com a Eddie, banda que já é praticamente embaixadora do estilo (Original Olinda Style é o título do CD que a Eddie gravou em 2003). Hoje, a expressão define o autoproclamado gênero olindense: um mix de ritmos latinos e africanos, entre o clima de praia e o de baile. Passados quase dois anos desde o lançamento do inaugural CD Orquestra Contemporânea de Olinda, que saiu pelo selo Som Livre Apresenta, o grupo avançou, afirmando-se entre os artistas mais ativos e reconhecidos do Brasil: indicado ao Grammy Latino, finalista do Prêmio de Música Brasileira, apontado nacionalmente

como segundo melhor show do ano passado, de acordo com júri do jornal carioca O Globo, e indicação entre os lançamentos listados no jornal norteamericano The New York Times. “A ideia, realmente, era montar uma banda grande”, lembra Gilsinho, percussionista e idealizador, sobre o começo da Orquestra. A ele se juntaram Maciel Salú (vocal e rabeca), Tiné (vocal), Rapha Beltrão (bateria), Juliano Holanda (guitarra e viola) e Hugo Gila (baixo e teclado), no que Gilsinho define como parcela criativa do grupo. Completam a banda o maestro Ivan, diretor do Grêmio Musical Henrique Dias, instituição com mais de 50 anos de trabalhos comunitários em Olinda (no arranjo

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INDICAÇÕES 01-tURnê à VistA

JAZZ

orquestra Contemporânea de olinda: de malas prontas para excursionar pelos eua

dos metais), Roque (trompete), Alex Santana (tuba) e Hibraim Genuíno (trombone). Os membros já conviviam com a diversidade musical antes mesmo de formar a Orquestra. Gilsinho tocou com a Mundo Livre e com Naná Vasconcelos. Tiné figurou na coletânea What´s happening in Pernambuco, do garimpeiro musical e ex-Talking Heads David Byrne, com uma faixa solo. Salu tem cavalo-marinho no DNA, por ser filho do Mestre Salustiano. Isso para começo de conversa: Hugo Gila tocou na banda de Otto, Juliano Holanda tocou com Erasto Vasconcelos, e Rapha Beltrão é exparceiro de China. E uma boa parcela do grupo está envolvida em projetos paralelos, como o brega cult Academia da Berlinda e, mais recentemente, o Original Olinda Style, que tem o nome tirado do CD da Eddie e reúne os membros da banda e da Orquestra.

AMADUReciMento

Enquanto cresce a repercussão da orquestra junto ao público e à crítica, os integrantes continuam trabalhando para deixar o show mais redondo, valendo-se da experiência propiciada pelas turnês. “Toda vez que tocamos uma música nossa é como se estivéssemos aprendendo-a de novo”, explica Gilsinho. Apesar de ter gravado um CD impecável, a Orquestra, no fundo, é uma banda de palco, “na qual todo mundo é protagonista”, bem define o

GONZAGA LEAL E o que mais aflore

LETIERES LEITE & ORKESTRA RUMPILEZZ Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz

diverso e delicado, o sexto Cd do pernambucano gonzaga leal traz canções de domínio público alternadas com letras dos conterrâneos geraldo maia e Junio barreto. ainda há espaço para novos compositores, como publius, um dos músicos de aluguel mais requisitados em pernambuco. o Cd traz uma ficha técnica luxuosa, desde o figurino (assinado por eduardo ferreira) até a mixagem, em que o maestro nenéu liberalquino colaborou.

Álbum de estreia da orquestra de percussão e sopro. gravado ao vivo no teatro Castro alves, em Salvador (local escolhido a dedo, por sua acústica ideal), traz 10 faixas que provam a originalidade e a maestria do conjunto regido por letieres leite. mixado pelo engenheiro Joe ferla (que já trabalhou com John mayer e natalie Cole), o precioso disco passeia entre a força dos ritmos africanos e o astral da música latina, além de atualizar a tradição percussiva da bahia. tudo sem perder a cadência.

JAZZ

PERCUSSÃO

MPB

percussionista, dando uma ideia da qualidade orgânica que permeia o trabalho deles: do baixo pulsante de Hugo Gila ao vocal cheio de sotaque de Salú, todos tem seu momento. Até Gilsinho faz as vezes de homem de frente. O disco é um convite a uma festa latina (no caso, o show), em que Tiné e Salu se revezam nos vocais como mestres de cerimônia, trocando olhares e sorrisos com o público. Os dois parecem travar um saudável duelo. O grupo, vestido a caráter – parece saído de um filme cubano, com seus trajes estampados –, sustenta os voos da dupla, numa fusão precisa de cordas, metais (mérito do maestro Ivan do Espírito Santo) e percussão. Climático e contagiante, o show explica facilmente o burburinho em torno da Orquestra. “Acho que estamos fechando o ciclo do primeiro disco”, pondera o vocalista Tiné. Com indicações a prêmios e agenda cheia (o grupo embarca este mês para uma turnê por cinco Estados dos EUA), a Orquestra Contemporânea de Olinda ainda está colhendo os frutos da estreia, mas Tiné e Gilsinho adiantam que voltam a gravar no segundo semestre deste ano. Por enquanto, pouco pode ser dito a respeito do segundo disco. O percussionista idealizador da Orquestra adianta apenas que será “uma evolução natural do primeiro” e que terá participações especiais dos maestros Formiga e Clóvis Pereira.

Independente

TOMMY FLANAGAN & HANK JONES Live in Marciac 1993 Biscoito Fino

a biscoito fino inaugura seu subselo, o biscoito internacional, com esta joia gravada na frança. Live in Marciac 1993 traz um apanhado de standards do jazz. Clássicos de Charlie parker e Kurt Weil, entre outros, são revistos pelos pianistas tommy flanagan e Hank Jones, com a autoridade de quem fez história no gênero. flanagan passou pelas bandas de miles davis, John Coltrane e Sonny rollins. Jones, por sua vez, tocou com frank Sinatra, ella fitzgerald e diana Krall. faltava os dois tocarem juntos, façanha que rendeu este belo Cd.

Biscoito Fino

SIRI Ultrasom Independente

o terceiro Cd do excêntrico Siri (o artista multimídia já tirou som de bacia e até de lataria de fusca) é um registro inusitado: trata-se de um álbum instrumental e... autobiográfico. a começar pelo título. Ultrasom faz referência ao nascimento de sua filha – sim, os sons registrados nos exames também compõem o tecido de experimentações do disco, cuja “gestação” durou nove meses. o ouvinte pode até não levar a sério a “textura de sons” meio avançada, meio bizarra. mas adentrar “a sala de parto” se revela uma experiência agradável.

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a grande revolução

matéria corrida José cláudio

artista plástico

Uma grande revolução foi

deflagrada do meio para o fim do século 19 na arte da pintura e não foi feita por pintor, isto é, pintor ele era, pintor de retratos, mas não por intermédio da sua pintura e sim por uma sua invençãozinha aparentemente inocente, a do tubo de tinta, permitindo que o pintor, antes confinado na sua fábrica, saísse ao ar livre carregando a fábrica no bolso, como disse o francês Renoir nascido no ano do invento (1841-1919), cuja pintura se inclui nesse primeiro movimento ocasionado pela tal invenção, batizado, por gozação, por um crítico mordaz, de “impressionismo”. “Sem os tubos de tinta não existiriam os impressionistas” (Renoir). Aliás, o próprio quadro de Monet (1840-1926) que deu o mote, Impression, soleil levant (Impressão, sol levante), lembra outra novidade, a possibilidade de captar o momento, flagrar o instante da natureza e

passá-lo para a tela praticamente em tempo real. O inglês Constable (17761837) já fazia isso mas como sketches on the spot (anotações provisórias) produzindo, a partir desses esboços, um segundo quadro mais bemacabado, “como os imbecis admiram” diria Cézanne, para apresentá-lo na Royal Academy (Academia Real), enquanto os impressionistas assumiram os percalços da pintura no ato, da pincelada sem retoque, da cor direta do tubo, dos brancos que tanto encantaram o ex-futuro banqueiro alemão que virou marchand Kahnweiler (1884-1979), privilegiando a ação do pintor sobre a tela, a materialidade do quadro, criando um novo enfoque para a pintura, em detrimento, em última análise, do assunto, do motivo, da coisa pintada, como na arte abstrata. Mas voltemos ao tubo e seu inventor, o americano John Goffe Rand (Nova

Hampshire, 1801-Nova York, 1873). Ele patenteou o invento na Inglaterra em 6 de março e nos Estados Unidos em 11 de setembro de 1841. Em pouco tempo o seu tubo metálico foi adotado pela pasta de dente. Mas ele não ganhou dinheiro apesar de o seu invento se ter tornado um sucesso comercial. Morreu pobre e na obscuridade depois de investir tudo o que possuía numa outra invenção, um dispositivo para prolongar o som das notas de piano, que não deu certo. Antes de Rand, o pintor era quem geralmente fabricava suas próprias tintas moendo o pigmento com óleo, guardadas depois em bexigas animais ou latas. Para se utilizar dessas bexigas, o pintor era obrigado a fazer um furo, fazendo com que a tinta espirrasse e endurecesse em volta do furo, o qual se tornava mais largo conforme as bexigas fossem usadas ao longo do tempo. Já o pigmento por si era um capítulo à parte. Em épocas mais remotas,

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AUtorretrAto

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inscrição

John goffe rand em autorretrato túmulo de John goffe rand no cemitério Woodlawn da cidade de nova York. na lápide se lê (na paleta): “inventor do tubo de tinta”; na parte de baixo: “um artista capaz/um inventor habilidoso/um pensador profundo/um cristão devoto”

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do predomínio do afresco, e mesmo depois da pintura a óleo, inventada pelos belgas irmãos Hubert (13661423) e Jan (1390-1441) Van Eyck e levada à Itália por Antonello de Messina (1444-1493), a escolha dos pigmentos pesava significativamente no preço final da obra, sem falar no ouro das roupas, das auréolas, dos adereços dos santos. Certa vez o pintor e gravador paulista Mário Gruber (Santos, 1927), muito exigente em matéria de técnica, céptico em relação ao produto industrializado, resolveu voltar no tempo e fabricar suas próprias tintas, como na época de Rubens. Andou pela Europa, conforme pude verificar com o amigo Caetano, da Casa dos Artistas, São Paulo, que lhe forneceu alguns endereços, da Itália, se bem me lembro, e outros países. Terminou na Bélgica na casa do papa dos pigmentos. Talvez pensando

Antes da invenção do tubo de tinta, o pintor era quem geralmente fabricava suas próprias tintas moendo o pigmento com óleo tratar-se de um grande negociante europeu, branco, falando francês ou quem sabe alemão, o belga fez questão de mostrar-lhe pigmento por pigmento até que o levou a um reservado, exibindo uma coleção deles nuns vidros que conservava apenas por capricho, pois anticomerciais, dado o preço elevadíssimo, garantindo no entanto que nada o nosso grande pintor, que julgava grande exportador, ou importador, encontraria, em toda a Europa, que se lhes comparasse. E concluiu:

“Melhor do que esses, só no Brasil”. “Mas eu sou do Brasil!” lhe disse Mário Gruber. “Então”, espantou-se o belga, “o que está fazendo aqui?” E quando Mário lhe perguntou onde poderia adquiri-los, respondeu: “Em qualquer armazém que venda desses pós para pintar rodapé de parede, como uns pacotes que chamam Xadrez”. Nessa época aluguei para Mário Gruber casa pegada com a minha em Olinda. Ouvíamos o ruído dos liquidificadores na fabricação das tintas. Um restaurador inglês trazido pelo marchand Renato Gouvea me explicou em São Paulo que os experimentos do pintor não lograram êxito porque o pigmento industrializado tem grãos uniformes e infinitamente menores do que o moído a mão. Fiquei feliz de ver, agora, 2010, em São Paulo, Mário Gruber. Disse-me, bem-humorado, estar “driblando um câncer”.

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Estudos Como os olhos de um britânico enxergaram o Brasil Império Desenhos do artista Charles Landseer retratam a paisagem e a luz locais na primeira década de transferência da corte portuguesa ao país texto Mariana Oliveira

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A Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa; cenários da Ilha da Madeira. A Pedra da Gávea e o Corcovado, a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro; os arrecifes da capital pernambucana; a Baía de Todos os Santos, em Salvador. Essas foram algumas das paisagens finamente registradas pelo jovem artista britânico Charles Landseer em sua rápida passagem pelo Brasil, entre 1825 e 1826. Por quase 100 anos, os mais de 340 desenhos (em bico de pena, carvão e lápis) que compunham

um caderno de 125 páginas, intitulado Voyage to the Brazils 1825-6 (Viagem aos Brasis 1825-6), permaneceram na Inglaterra, esquecidos e desconhecidos do grande público. Agora, boa parte desses esboços chega ao Brasil, em exposição no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, que se faz acompanhar de um catálogo editado pela mesma instituição. Landseer veio ao Brasil como artista oficial de uma missão diplomática britânica cujo objetivo era tratar do reconhecimento, por

parte de Portugal e da Grã-Bretanha, do recém-independente Império do Brasil. Foi seu pai, o gravador John Landseer, quem lhe conseguiu o posto oficial na viagem, para que o filho tivesse a chance de aperfeiçoar suas técnicas e habilidades artísticas, ao mesmo tempo em que estabelecia contato com o modelo de paisagem e de luz dos trópicos. Aos 25 anos, o artista subiu a bordo do navio HMS Wellesley, comandado por sir Charles Stuart. No seu trajeto, passou por Lisboa, Ilha da Madeira

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eSBoço

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ReTRATo

charles Landseer Instituto moreira Salles Rio de JAneiRo

T. (21) 3284 7400 Até 18 Abr

e Ilha de Tenerife, até desembarcar no Brasil, onde permaneceu por 10 meses. Seu primeiro destino foi o Rio de Janeiro. Diferentemente daquilo que havia acontecido em Lisboa, o interesse de Landseer já não era a arquitetura da cidade, mas as belezas naturais e a paisagem urbana local. Segundo Leslie Bethell, curador da mostra e organizador do catálogo, os desenhos etnográficos de Landseer apontam uma clara influência de Jean-Baptiste Debret, artista mais conhecido por aqui, que chegou ao

o artista britânico passou cerca de quatro meses no Rio de Janeiro, mas também visitou o Recife, olinda e Salvador

em sua curta estadia em pernambuco, o artista traçou imagens panorâmicas da cidade do recife Charles Landseer, desenhado por seu companheiro de viagem William John Burchell

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Brasil anos antes e residia, à época, na capital federal. Após a temporada carioca, o britânico embarcou com destino ao norte, registrando as cidades por onde passava. Ao visitar Pernambuco, o artista fez panoramas de Olinda e do Recife, vistos de vários ângulos, sem esquecer de registrar os vaqueiros do Sertão. Em Salvador (BA), a Baía de Todos os Santos, o Bonfim e as cenas envolvendo escravos dominaram seus traços. Na mesma viagem, rumando para o sul, Landseer registrou as

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ReToRno

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SeRTAneJo

no rio de Janeiro, Landseer representou a paisagem urbana local, destacando as belezas naturais do seu entorno durante a viagem de volta à inglaterra, passou pelos açores e registrou a cidade de angra do Heroísmo além de esboçar as paisagens do nordeste brasileiro, também se preocupou em retratar as figuras humanas da região

Visuais

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cidades de Vitória do Espírito Santo, São Paulo e Santos, com uma passagem também pelo Estado de Santa Catarina. Apesar de ser considerado por especialistas um artista ainda muito inexperiente durante sua passagem por terras brasileiras, a coleção de desenhos que deixou como legado são um testemunho de dedicação e de um talento nascente. “Sua obra também tem grande valor iconográfico. Além da contribuição para o conhecimento de Lisboa e das vilas próximas em meados da década de 1820, Landseer pode ser incluído entre os mais importantes artistas a registrar o Brasil, no caso o Nordeste e o Sul do

país, assim como o Rio de Janeiro, nas duas décadas subsequentes à transferência da corte portuguesa para cá”, reforça Leslie Bethell, no catálogo Charles Landseer: Desenhos e aquarelas de Portugal e do Brasil, 1825-1826.

nA GAVeTA ReAL

O valor do trabalho de Landseer não impediu que ele permanecesse ofuscado por longos anos. Após seu retorno a Londres, sir Charles Stuart requisitou ao artista seu caderno de desenhos. Mesmo contra a vontade de seu pai, que acreditava que os esboços poderiam ser transformados em grandes telas, Landseer entregou todo o registro da viagem. Durante anos, os descendentes de Stuart

o caderno de desenhos de charles Landseer permaneceu desconhecido do grande público por quase 100 anos mantiveram o caderno de desenhos junto aos livros e papéis da família, no Castelo de Highcliffe. Só em 1924 o historiador brasileiro Alberto do Rêgo Rangel encontrou as obras. A partir daí, o material passou pelas mãos de vários colecionadores até ser adquirido, em 1999, pelo Instituto Moreira Salles.

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Coletiva

A viDA, por CriAnçAs Do CAmpo De ConCentrAção

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A mostra traz ao público 178 desenhos e aquarelas, feitos durante a viagem, e dois óleos realizados posteriormente, baseados nos registros feitos no Brasil e em Portugal. Junto com a exposição, foi lançada a obra Charles Landseer: Desenhos e aquarelas de Portugal e do Brasil, 1825-1826 (R$ 140), com mais de 200 imagens e textos de Leslie Bethell, professor emérito de História Latino-Americana da Universidade de Londres, que contextualiza historicamente o período da viagem do artista. O catálogo, em edição bilíngue, é organizado como uma narrativa visual do trajeto feito por Landseer, tanto na vinda ao Brasil quanto no retorno à Europa.

nas viagens que fez pelo mundo na época da divulgação do filme O ano em que meus pais saíram de férias, o ator germano Haiut, de origem judaica, aproveitava para conhecer os museus que tratavam do Holocausto. na volta, compartilhava suas inquietações com a produtora Tatiana Braga. “nas nossas conversas, sempre voltava o tema da intolerância humana”, diz ela. “Comentei com ele que precisávamos ampliar aquela discussão para além do nosso círculo.” Criou-se, então, o projeto Paralelos, somos todos humanos. para inaugurar esse plano, duas exposições foram sugeridas. a bem-sucedida Anne Frank – Uma história para hoje, segunda mais visitada da Holanda, em 2009, que chegou ao Brasil numa versão reduzida, composta por cartazes e textos. e a exposição Desenhos das crianças de Terezín, vinda do museu Judaico de praga. “Queríamos tirar o debate da intolerância do âmbito adulto, apostando em uma nova geração pacifista”, justifica Tatiana. Há cerca de quatro anos, germano Haiut visitou o museu Judaico de praga. “as paredes marcadas com os nomes das crianças mortas no Holocausto foi o meu primeiro choque”, conta o ator. “depois, entrei num ambiente repleto de obras.” eram recortes, aquarelas e desenhos em lápis de cor feitos por crianças e adolescentes judeus, entre 10 e 15 anos, que foram confinados no campo de concentração de Terezín, na antiga Tchecoslováquia. Cada desenho, um autor.

desenhos das crianças de Terezín Casa da Fundação Safra Rua do Bom Jesus, 191, Bairro do Recife Até 31 Mar

Terezín foi criado como um campo “modelo”, onde, segundo os nazistas, os judeus seriam protegidos dos extremistas. “numa visita da Cruz Vermelha ao local, chegaram a forjar um cenário pacífico; mas, na ausência dos representantes internacionais, o que imperava era a violência”, conta germano. “músicos notáveis, escritores e artistas foram enviados a Terezín para serem mantidos com ‘mais segurança’ ”, relata o presidente da Federação israelita de pernambuco, ivan Kelner, um dos apoiadores desse intercâmbio entre o Brasil e o museu Judaico de praga. entre os artistas confinados estava Fried dicker-Brandejes, responsável por orientar “aulas de arte” para crianças. aos olhos dos pequenos, Terezín foi retratado com contraste: dos 78 desenhos expostos, há desde pinturas de flores e casas a um homem numa forca com a estrela de davi no peito. “o que torna o conjunto importante não é seu caráter artístico, mas o valor histórico desses desenhos”, aponta Tatiana. “mesmo que alguns expressem ingenuidade, com cores e formas felizes, é um registro dos sentimentos conflituosos daquelas crianças”, acrescenta a produtora, que também é arte-educadora. das 15 mil crianças que viveram naquele campo, apenas 100 sobreviveram. a exposição foi trazida ao Brasil pela embaixada de israel e passou por são paulo e porto alegre antes de chegar ao recife. Bernardo VaLença

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divulgação

REALISMO O obstinado engajamento do cinema social inglês

Em distintas gerações ao longo do século 20, filmografia britânica tem revelado constante interesse pela discussão política e inserção de temas e personagens ordinários texto Fábio Liberal

Claquete No livro Festa sob as bombas: Os anos ingleses, Elias Canetti diz que o pior da Inglaterra são “os ressecamentos recomendados, que começam com moderação e justiça e terminam em impotência emocional”. Para ele, a única maneira de resgatar o povo inglês dessa amargura seria fazêlo recordar as humilhações que o país já passou, como num exercício psicanalítico de libertação. Um modelo de tratamento cuja simulação, pelo menos no universo cinematográfico, tem influenciado ao longo dos anos uma constante reedição do chamado realismo social inglês. Com exceção de poucos realizadores, incluindo Danny Boyle e Terry Gilliam, o que de melhor

tem surgido do Reino Unido nas salas de cinema ao redor do mundo não é o discrepante Sherlock Holmes (2009), com cara de Missão impossível, de Guy Ritchie. Atualmente, a força do cinema britânico está bem mais presente no olhar realista de uma geração que herdou, primeiro, uma tradição de mais de 80 anos de cinema documental e, depois, um movimento breve, mas contundente, conhecido como kitchen sink realism. O British Documentary Movement pode ser considerado na história do cinema como o primeiro indício de uma mobilização coletiva de documentaristas. John Grierson encabeçava o grupo que, nas décadas de 1930 e 1940, pretendia trazer às telas

os problemas surgidos na sociedade britânica do pós-guerra. Apesar do grande conteúdo propagandista, filmes como Fires were started (1943), de Humphrey Jennings, já revelavam a objetividade inglesa na maneira de apresentar e desenvolver os temas propostos, algo adaptado tão bem pela TV de lá. Outra característica marcante do movimento e principal influência para a atualidade do cinema britânico se evidencia na aparição de personagens ordinários, trabalhadores e donas de casa, entre outras minorias. Antes de o mundo se voltar admirado para a agitada capital, apelidada de Swinging London, na segunda metade da década de 1960, um grupo de artistas locais

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PARceiRoS

Eric Bishop (à esquerda), interpretado por Steve Evets, recebe a ajuda do seu ídolo Eric Cantona (interpretado pelo próprio jogador) para tentar dar um novo rumo à sua vida

Cantona), um ex-jogador do Manchester United, que lhe faz visitas e tudo compara ao futebol. Na melhor sequência do filme, o atleta parece resumir a visão socialista de Loach ao revelar para Bishop que o melhor lance de sua vida não foi um gol e, sim, um passe para um gol. Após vários filmes áridos como Ventos da liberdade (2006), vencedor da Palma de Ouro, e It´s a free world (2007), À procura de Eric revela o otimismo do diretor, recolhido nos últimos anos.

NoVoS ReALiZADoReS

Obviamente, a atual cena do realismo social inglês não encontra tanta facilidade em delimitar os problemas que afligem a ilha. Do processo de desindustrialização iniciado por Thatcher à demagógica Cool Britain de Tony Blair, muita coisa mudou. A política de encorajamento à imigração, por exemplo, tanto gerou grandes conflitos nos anos 1970 como trouxe às telas o celebrado This is England (2006), do jovem Shane Meadows. O filme, sem previsão de lançamento no Brasil, consagrou o diretor como um dos grandes expoentes dessa nova geração

A influência do kitchen sink realism está presente no olhar de uma nova geração de cineastas britânicos – que incluía pintores, escritores, dramaturgos e se manteve do final dos anos 1950 ao começo dos anos 1960 – adotou a expressão kitchen sink realism (tradução literal: realismo de pia de cozinha) para designar uma nova maneira de retratar o descontentamento com a realidade política do país. Surgia ali o embrião do cinema social inglês, quando as inquietudes da classe operária passaram a ser expostas de maneira mais complexa. A kind of loving (1962), de John Schlesinger, e The loneliness of the long distance runner (1962), de Tony Richardson, são dois bons exemplos da influência documental na proposta realista do movimento. Em ambos os filmes, o

cuidado em recriar com naturalidade os cenários e ambientes e, muitas vezes, a utilização de personagens reais, ao invés de atores, acentuam a perspectiva verossímil das cenas. Remanescente dessa época, Ken Loach pode ser considerado a ligação com o novo cinema inglês. Com 73 anos, um trabalho respeitável na televisão e mais de 20 longas, Loach se mantém engajado sem cair no uso de fórmulas prontas. No recente À procura de Eric (2009), estão presentes todos os elementos de sua filmografia. O antiherói da vez é o funcionário público Eric Bishop (o ótimo Steve Evets), que tenta retomar sua vida afetiva. Para isso, ele conta com a ajuda surreal de seu ídolo Eric Cantona (interpretado pelo próprio

de realistas. Outro nome de peso da cena atual é Michael Winterbottom, conhecido pelo audacioso documentário O caminho para Guantánamo (2006). Em seu último trabalho, o thriller The killer inside me (2010), Winterbottom deixa claros os benefícios de se transitar entre documentário e ficção sem restringir as possibilidades de diálogo entre os gêneros. Nesse compasso, enquanto a indústria cinematográfica britânica comemora o melhor faturamento em sete anos, ocorrido em 2009, a produção independente nacional também manifesta sua vitalidade. Além de refutar a concepção purista que proclama a política, inevitavelmente, prejudicial à arte.

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HaruyoSHi yamaguCHi/Sygma/CorBiS/latinStoCk

Claquete

MEMóRIA Akira Kurosawa ou a alma dividida do Japão Nascido há 100 anos, o mais popular e mais difundido entre os cineastas japoneses colocou seu país em contato com o mundo texto Fernando Monteiro

“eu estava nu na bacia. O local em volta era vagamente iluminado e, enquanto eu me encharcava de água quente, balançava a bacia segurando-me nas bordas. Na parte mais baixa, a bacia balançava entre duas tábuas inclinadas. Eu ouvia o barulho da água que se chocava quando a bacia se movia de um lado para a outro. Aquilo devia estar muito interessante para mim. Balancei a bacia com toda a força. De repente, ela virou. Tenho uma lembrança viva do estranho sentimento de insegurança e surpresa que experimentei naquele

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instante, da sensação na pele causada pelas tábuas escorregadias. Lembrome de alguma coisa que brilhava intensamente, quando olhei para cima.” Essa é a mais remota lembrança da infância de Akira Kurosawa, de acordo com o relato do próprio cineasta em sua autobiografia (Gama no abura, Iwanami Shoten, Tóquio, 1984). A recordação pulsa como a cena de um filme ou a aquarela do banho de uma criança, delicadamente pintada com um espanar de água que sugere as gravuras coloridas do pintor

Hiroshige, num Japão – ou “Cipango”, para o viajante veneziano Marco Polo – ainda arcaico enquanto o século 19 rolava para o 20 como um rolo de fumaça de trem subindo na paisagem de inverno aos pés do monte Fuji. Tudo é impressivo e delicado, quando se trata desse diretor nascido há 100 anos, que quis ser pintor e terminou pintando com uma câmera que pôs o cinema do seu longínquo país em contato com as telas do mundo. No cinema, Kurosawa pintou aquarelas e gravuras, animadas a buril, de samurais hieráticos e modernos marginais da Tóquio aniquilada pela vergonha da derrota – numa nação capaz de levar a honra nacional, e mesmo a individual, desde o domínio patriótico e moral até o limite da monomania. Foi assim com o suicídio público do escritor Yukio Mishima, arrasado pela alma nacional rendida aos americanos (segundo ele, “com desonra”). Mishima foi um nacionalista perturbado por visões que o aproximaram de um perfil neofascista, mas Akira (que também tentou o suicídio) foi um japonês capaz de compreender “honra” de outro modo, entre os códigos nipônicos antigos e o desespero do Japão do típico lúmpen de cidade grande, de megalópole próxima – como é Tóquio – dos cenários da ficção científica de mistura com templos de silêncios recônditos, jardins em miniatura e modernas gueixas ainda exercendo a sua profissão sempre confundida com outra (pela grosseria ocidental)... Depois de vermos o pequeno Kurosawa nu (detalhe: ele tinha apenas um ano, e a recordação ficou, entre os vapores do banho na bacia, remotíssimo), mudemos a perspectiva para diante do túmulo do cineasta, com as datas marcadas à maneira japonesa: “Akira Kurosawa, nascido em 23 de março de 1910 e falecido em 6 de setembro de 1998”. Poderia ser acrescentado: Aqui repousa o homem da alma dividida entre Oriente e Ocidente, samurais e yakuzas, cerimônias do chá e pregões da bolsa de uma capital enlouquecida de néons acesos noite e dia, piscando como os olhos de um velho dragão herdeiro de algum mundo de repente sem lugar no século da Bomba.

ciNeAStA ReFLeXiVo

Quem foi Akira Kurosawa? – perguntarão os jovens leitores desta revista diante da mesma velocidade de mudança que determinou o ocaso da Terra do Sol Nascente. Acima de tudo, Kurosawa foi o mais popular dos grandes cineastas japoneses. Tal título é dele – e ninguém tasca. Nascido no seio de uma família de samurais que ficaram sem emprego quando suas espadas se tornaram anacrônicas – como os seis tiros dos pistoleiros do Oeste americano –, iriam se passar muitos anos, desde os banhos da infância, para surgir o homem, inquieto, a trabalhar com as tábuas escorregadias da memória. Antes disso, ele tentou ser aceito numa escola de arte, porém, foi rejeitado – talvez de modo menos traumático do que o reservado a um cabo austríaco (e aquarelista medíocre) que viu ruir a esperança de sobreviver vendendo inofensivas paisagens de inofensivos campos... Seja como for, em 1936 o futuro diretor de Trono manchado de sangue terminou por ler, um dia, um anúncio de vaga para assistentes de direção de cinema. Ele foi lá, e o aceitaram, não pelos pendores de pintor amador, mas pela experiência de espectador de cinema:

o monumental Ran, de 1985, o épico mais caro do cinema japonês, foi considerado pelo diretor “a sua obra definitiva” desde garoto, via filmes como se necessitasse deles para respirar o perfume dos crisântemos. Aos 33 anos, Kurosawa dirigiria seu primeiro filme – Sanshiro sugata (ou A saga do judô) –, que foi alvo de crítica de militares rígidos, porém agradou ao público. O êxito em escala internacional, no entanto, só viria com Rashomon (1951), filme baseado num conto original de Ryunosuke Akutagawa e que conquistou o Leão de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Veneza, no mesmo ano.

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rEprodução

Pronto. Akira Kurosawa estava lançado para além de Tóquio e Kioto. Certamente, o seu talento não era maior do que os de Ozu e de Mizoguchi, gênios também oriundos de uma cultura ainda injustamente ignorada (cinematograficamente falando), naquela altura. E a pedra de toque do reconhecimento dela não vai ser senão o sucesso de filmes como Shichinin no samurai (Os sete samurais, de 1954), uma saga do Japão feudal que chegou a influenciar John Sturges, mestre de westerns do outro lado do mundo. Diretamente inspirado nos sete samurais de Kurosawa, surgiriam os pistoleiros sturgianos do clássico Sete homens e um destino (1960), inaugurando o filão dos remakes transpostos para cenários completamente diversos. Cineasta reflexivo, esse japonês que aqui recordamos transitou pelo ambiente internacional de filmes em muitos idiomas e propostas, como um sofisticado diretor quase silencioso nos sets, porém bem-humorado e articulado nas entrevistas coletivas. Em tais ocasiões, era possível ouvi-lo (tive o privilégio, em Roma) a explicar coisas mais objetivas e práticas do que a vaga teoria de bares enfumaçados dos cigarros da nouvelle vague. Exemplo: “A tarefa dos iluminadores exige muita criatividade. Um iluminador realmente bom tem seu próprio plano, embora naturalmente ainda precise discuti-lo com o cameraman e o diretor. Mas se ele não desenvolve o seu próprio conceito, seu trabalho não vai muito além de colocar luz sobre toda a estrutura montada. Eu penso, por exemplo, que o método corrente de iluminação dos filmes coloridos é errado. Para compor as cores, toda a estrutura é inundada de luz. Sempre digo que a luz deve ser tratada como em um filme em preto e branco, sejam as cores fortes ou não, de forma a deixar as sombras aparecerem”. Aqui, Akira Kurosawa está querendo dizer (atenção, jovens diretores brasileiros) que a cor não aboliu o império da sombra, no cinema, ou melhor, que cores têm funções diversas,

Claquete

Kurosawa pode ser considerado o grande cineasta japonês, no mesmo patamar em que está Fellini para o cinema italiano e são linguagem, forma, vocábulo fílmico, ao invés de apenas “estarem ali”, impressas na película sem exame. Noutro momento, suas meditações deixaram críticos fascinados, em Cannes: “Não me lembro de quem disse que criação é memória... (...) Minhas próprias experiências e as diversas coisas que li permanecem em minha lembrança e tornam-se a base sobre a qual crio algo novo. Eu não poderia partir do nada. Talvez ninguém possa, é preciso um arranco, como ao escrever roteiros – quando se deve, antes, partir de alguma cena impressa na lembrança, alguma ideia que boia como um calhau num rio lamacento. Sim, também é necessário o estudo dos grandes romances e das grandes peças

teatrais que o mundo produziu. Devese procurar saber por que são grandes. De onde vem a emoção que se sente ao ler? Que grau de paixão o autor teve de perseguir, que nível de meticulosidade teve de impor para modelar os personagens e os fatos da maneira como fez? Deve-se ler inteiramente, a ponto de se compreender todas estas coisas. Deve-se também assistir aos grandes filmes”... E Kurosawa os assistiu, desde a adolescência, quando seu irmão mais velho tornou-se narrador profissional de filmes mudos (isso existia – no peculiar “Cipango”, lógico); tendo acesso às salas onde o irmão “narrava” os filmes, o jovem Akira anotava todas as películas que via. De graça. No seu relato autobiográfico, é longa a lista das obras que ele considerava fundamentais na sua formação, e entre elas está um filme franco-brasileiro: Rien que les heures (1926), de Alberto Cavalcanti, dizendo “presente!”, numa lista de nomes de ouro: John Ford, Jean Renoir, Charles Chaplin, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, Carl Dreyer, Luis Buñuel etc.

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tRAjetóRiA

Saga do Japão feudal Os sete samurais alçou o diretor ao sucesso internacional em 1954, antevisto com Rashomon, em 1951

oRÇAMeNtoS MiLioNÁRioS

O jovem japonês apaixonado por cinema encontraria no diretor Kajirô Yamamoto o “mestre” da profissão, no sentido técnico da palavra. Kurosawa ainda trabalharia como assistente de Mikio Naruse, Eisuke Takizawa e outros diretores não destinados a obterem o sucesso do discípulo, na segunda metade do século passado. Anos depois, chegaria a vez de Akira se sentir meio “deixado de lado”, quando as críticas ao seu “ocidentalismo” – para alguns – seriam somadas à sua (má) fama de perfeccionista até os mínimos detalhes, estourando orçamentos... e, por uma única ocasião, levado à tentativa de suicídio, em 1971 (para total surpresa dos amigos e familiares), quando se viu afetado pela crise na indústria cinematográfica japonesa. Afinal, “um filme de Kurosawa” significava um orçamento já proibitivo para um cinema que deixara de ser a novidade, descoberta preferida de uma Europa encantada com obras ao mesmo tempo fincadas em tradições e numa modernidade difícil em se

tratando do orgulhoso Império posto de joelhos, num dia, e levantado para se “americanizar”, no outro. O cinema – e a vida – de Kurosawa refletem esse impasse não da forma mais direta e nem com fixação num passado que não poderia voltar (como lamentam cultores dos filmes de samurais desempregados e perdidos, atingidos no seu código de honra e humilhados até a necessidade de mendigar restos de glória e comida). Nesse sentido foi que Akira considerou seu vigésimo-oitavo filme como “a sua obra definitiva”, isto é, Ran, o filme mais caro do cinema japonês (11 milhões de dólares, em 1985), e talvez o mais devastadoramente desiludido, expressando a contrafação trágica, de matiz shakesperiano, da qual Kurosawa foi próximo por afinidade e admiração pelo bardo, acima de todos os poetas do Ocidente. Uma das melhores adaptações cinematográficas de Macbeth foi assinada pelo diretor nipônico – que transportou a peça inglesa para o dramático clima kabuki do belo Kumonosu-jô (1957). Deu mais do que certo.

ociDeNte VERSUS oRieNte

Sem admiradores fervorosos do peso de um Francis Ford Coppola e um George Lucas, Kurosawa não teria realizado seus últimos filmes. Sob a influência (quase pressão) desses dois “kurosawamaníacos”, a Twentieth Century Fox se dispôs a negociar a aquisição dos direitos de distribuição internacional de Kagemusha (A sombra do samurai, 1980) e dos demais filmes da “fase final de AK” mergulhada em controvérsia, porque apoiada na fortaleza – “proibida”, ideologicamente, para alguns dos seus colegas japoneses – que o colocou definitivamente em associação com o poder de Hollywood. Já declinando em sua aura de prestígio nacional – na razão diretamente proporcional à dependência da aprovação pela máquina americana (acidamente criticada) – o diretor iria pagar caro pela “mãozinha” generosa dos Coppolas & Lucas de estrondosos sucessos de bilheteria como O poderoso chefão e Guerra nas estrelas. Talvez só eles pudessem realmente ajudá-lo, com os recursos de quem se entendia “muito bem” com os gerentes financeiros da maior indústria cinematográfica do planeta – para a qual Akira Kurosawa trabalhou, nos seus últimos anos. Afinal de contas, ele podia ter a certeza de haver consolidado mais do que uma carreira difícil numa cinematografia hoje rendida à imitação, infelizmente. Afirmando seu mundo pessoal em conexão com o Japão profundo, sem dúvida que ele obteve ampla ressonância como o diretor japonês – o único! – mais ou menos situado como Federico Fellini está para a história do cinema italiano. Mesmo que se “redescubra” um Valerio Zurlini – ou um Francesco Rosi – debaixo da nuvem espessa de admiração pelo cineasta de Rimini, o fato é que o nome alçado ao panteão nem sempre é o do mais sutil ou o do mais complexamente talentoso dentre diretores que se tornaram “míticos” como um Antonioni, um Visconti, um Bergman, um Buñuel, um Ford, um Lang e um Kurosawa, o tímido senhor de óculos escuros que, há 100 anos, nascia num país de samurais errantes e cerejeiras como as que cercam o seu túmulo.

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pedro serapio/agĂŞncia estado

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WILSON MARTINS O último representante da crítica literária militante

Com sua morte, desaparece o derradeiro integrante de uma geração que, ao longo do século 20, orientou o público sobre a leitura em opiniões publicadas na grande imprensa

Al

texto Edson Nery da Fonseca

A crítica semanal de livros novos teve na França seu ponto mais alto com Sainte-Beuve: quase 20 anos de artigos reunidos nos livros Causeries du lundi (1851-1862) e Nouveaux lundis (1863-1870). Três críticos literários brasileiros seguiram o exemplo do mestre francês tanto em discernimento como em assiduidade, chegando até a ultrapassá-lo em número de anos de colaboração hebdomadária: Alceu Amoroso Lima que, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde, colaborou semanalmente em O Jornal, do Rio de Janeiro, de 1919 a 1933; Álvaro Lins, que pontificou no Correio da Manhã, também no Rio de Janeiro, de 1940 a 1963; e Wilson Martins, que a todos superou no exercício da crítica literária semanal, iniciada num jornal de Curitiba e continuada em O Estado de S. Paulo, em O Globo e no Jornal do Brasil: exercício somente interrompido em fins do ano passado, quando, aos 80 anos, adoeceu gravemente, tendo falecido neste começo de 2010. Os artigos semanais de crítica literária de Alceu Amoroso Lima estão reunidos nos vários volumes dos Primeiros estudos (1919-1926) e dos Estudos (1927-1933). Os de Álvaro Lins, nos sete volumes do Jornal de Crítica. Wilson Martins começou a reunir os seus artigos no livro Interpretações, publicado em 1964, e depois na série intitulada Pontos de vista. São títulos significativos de seu confessado “impressionismo”, muito

combatido por Afrânio Coutinho e pelos inimigos dos rodapés semanais, tão necessários para a seleção que se impõe em face da explosão bibliográfica: seleção defendida em 1935 por Ortega y Gasset, que já em ano tão remoto considerava a maior parte dos livros publicados como “inúteis ou estúpidos”. Em 1954, fui a Curitiba para a inauguração da Biblioteca Pública Estadual, reformada por Lydia de Queiroz Sambaquy. O Paraná estava sendo modernizado pelo governador

Foi Wilson Martins quem primeiro traduziu Tristes trópicos, de claude Lévi-Strauss, para o português Bento Munhoz da Rocha e pelo secretário de Educação Newton Carneiro, dois eminentes estadistas brasileiros. Foi então que conheci e fiquei amigo de Wilson Martins, que ensinava, na Universidade Federal do Paraná, tanto Literatura Francesa como História do Livro e das Bibliotecas, matéria de seu livro A palavra escrita, publicado em 1957. Em 1961, voltamos a nos encontrar em Brasília, onde ele, juiz de direito, presidia as comissões de inquérito criadas pelo então presidente Jânio

Quadros. Depois desse pequeno interregno, Wilson Martins foi para os Estados Unidos, como professor de Literatura Brasileira nas universidades de Kansas, Wisconsin e Nova York. Como já havia acontecido com Alceu Amoroso Lima, a experiência norte-americana contribuiu para completar a cosmovisão europeia de ambos. Wilson morava num apartamento da Universidade de Nova York, com varanda para a bela praça de Washington. Foi naquela tão grande quanto encantadora cidade norte-americana que ele escreveu a monumental História da inteligência brasileira e somente lá é que poderia ter escrito os sete volumes, graças à Biblioteca Pública da cidade e ao “empréstimo-entrebibliotecas”, que nos Estados Unidos funciona tão eficazmente. Wilson Martins deixou muitos admiradores nos Estados Unidos: um deles, o paraense Joaquim-Francisco Coelho, que ocupa em Harvard a cátedra de “Nancy Clark Smith Professor of Luso-Brazilian Studies”. Desolados com a morte de nosso grande e comum amigo, conversamos por telefone, tendo Joaquim-Francisco me lembrado um dado importante na carreira de Wilson Martins: foi ele quem traduziu para nossa língua o primeiro livro de Claude Lévi-Strauss. Publicado em Paris em 1955, a edição brasileira de Tristes trópicos apareceu dois anos depois (São Paulo: Anhembi, 1957). A tradução de Wilson Martins foi revista por Lévi-Strauss, que ainda ensinava na Universidade de São Paulo.

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karina freitas

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ARTHUR RIMBAUD Como portas e janelas para a visão da alma

Conjunto de correspondências do poeta francês ajuda a entender por que ele desistiu da poesia aos 20 anos e partiu para a África texto Weydson Barros Leal

Há duas maneiras de

compreender um poeta. Ler a sua poesia ou, com igual sensibilidade, conhecer a sua correspondência. A primeira sendo o registro mais elevado de sua experiência emocional, a segunda como a narrativa pessoal de quadros do seu cotidiano. Entre versos e notícias, por metáforas e entrelinhas, transcorre a sua vida. O resto é conclusão biográfica. Se a história é escrita pelos vencedores, quem há de vencer, além do próprio autor, a sua velha vida? O poeta, que silencia sobre o que não pode mais ser dito, ou seus biógrafos que, não obstante a importância de seu trabalho, tentam mapear e explicar o que foi vivido? Esse é o enigma que marca a vida de Arthur Rimbaud. Não há na literatura ocidental poesia ou correspondência mais autobiográficas do que as de Rimbaud. Suas cartas e poemas são portas e janelas para a visão de sua alma, para a reconstituição de sua vida, num jogo de espelhos que dá a visão de uma e outra. Em período crucial de sua adolescência, correspondência e poesia se entrelaçam de forma tão absoluta, que alguns dos seus melhores poemas compõem suas cartas. Em dado momento, se não há o poema, há o anúncio do que será sua obra mais

importante, Uma estadia no inferno (Une saison en enfer), inicialmente chamado de “Livro negro” ou “Livro pagão” pelo poeta atormentado. E, assim, na ausência do que será definitivo, há a sensação, o projeto ou a certeza de que algo maior está para chegar. Correspondência é o terceiro volume que encerra a obra completa de Arthur

A tradução feita por ivo Barroso possibilita uma nova compreensão sobre a obra e a controversa vida de Rimbaud Rimbaud, publicada pela editora Topbooks, com tradução, notas e comentários do também poeta Ivo Barroso. Junto com os dois primeiros livros, Poesia completa (Topbooks,1994) e Prosa poética (Topbooks, 1998 – com 2ª edição revista em 2007), esse lançamento confirma Ivo Barroso como o maior tradutor da obra rimbaudiana em língua portuguesa. É o trabalho de um mestre que nos faz reverenciar sua apaixonada dedicação e possibilita uma nova compreensão sobre a obra – nem

sempre alcançada – e a controversa vida de Rimbaud. Como exemplo de incompreensão, basta citar a opinião de um dos maiores intelectuais de todos os tempos, o escritor austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux, ao discorrer sobre Rimbaud em sua História da literatura ocidental. Ao afirmar que “não há outro poeta em que vida e poesia estejam tão rigorosamente separadas” ou que “todos os seus versos foram escritos antes de ele chegar aos 20 anos de idade, quer dizer, antes de iniciar a vida”, Carpeaux dá um evidente sinal de que sua percepção da obra rimbaudiana carecia das melhores leituras da obra e da vida do poeta. O escritor ignorava que a intensidade das sensações e experiências acumuladas por Rimbaud até os 20 anos, quando encerra sua obra poética, foram os gérmens que provocaram o desregramento inclusive das normas literárias vigentes. O que se processou no espírito de Rimbaud dos 13 aos 20 anos de idade, na avassaladora maioria dos poetas não acontecerá nunca, ou seja, a dura experiência da vida deflagrando o gênio e refletindo radicalmente em sua obra. É esse registro o que se encontra na Correspondência traduzida por Ivo Barroso.

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reprodução

ÁFRicA

rimbaud na abissínia, fotografado por nativo, em 1883

Leitura

o AnteS e o DePoiS

Boa parte da correspondência de Rimbaud, até ele deixar a Europa e partir para a África, aos 20 anos, pode ser lida como “notas à sua poesia”. Principalmente no que concerne aos poemas de Uma estadia no inferno, que na magnitude de sua tensão poética guardam uma narrativa cifrada dos momentos mais importantes de seu relacionamento com o poeta Paul Verlaine. Mesmo antes disso, na sua poesia “em versos”, os temas já eram recorrentemente cotidianos e portanto biográficos, fossem ao tratar de um bibliotecário idiota, de uma primeira comunhão católica ou de um passeio pelo campo, quando se depara com um soldado morto. Mas, nesses casos, a relação mais íntima com a correspondência é apenas o fato de muitos desses poemas terem sido enviados a amigos no corpo de uma carta, enquanto a partir do momento

em que se inicia a relação com Verlaine, tal correspondência passa a ser de fundamental importância tanto para o estudo biográfico quanto para a completa compreensão dos textos de Une saison. Mas, será esta Estadia a sua relação com Verlaine ou a própria poesia? Nesse ponto, cabe a observação admirada: a riqueza das notas explicativas adotadas por Ivo Barroso no percurso de todas as cartas transforma sua tradução numa grande e nova biografia de Rimbaud, o que mais uma vez confirma os laços de nossa constatação – a correspondência do poeta reflete a vida, que marca a poesia impregnada de reinvenção, ou, quase diria, ressurreição. É na leitura das notas que o público brasileiro tem acesso a informações até aqui ausentes das biografias de Rimbaud traduzidas no Brasil. O que faz do trabalho de Ivo Barroso um feito de inigualável e inestimável classificação.

As cartas de Rimbaud foram escritas antes e depois de sua partida para Aden, na África, onde até a sua morte, aos 37 anos, ele viveu uma das maiores aventuras já imaginadas por um escritor, como comerciante e explorador. Também podemos dizer que a correspondência rimbaudiana circunda a criação de suas duas grandes obras poéticas, Uma estadia no inferno e Iluminações, sendo por isso o registro do antes e depois da poesia. No belo depoimento publicado nas orelhas do livro, é o poeta Ferreira Gullar quem atesta e pergunta: “A impressão que se tem, lendo estas cartas, é que, assim que desembarca em Aden, Rimbaud se torna outra pessoa. Na famosa ‘carta do vidente’ ele havia escrito que ‘eu é um outro’. Pode-se dizer então que esse ‘eu’, que não era ele, deu lugar a um outro, que era? Ou seria mais correto afirmar que o Rimbaud adolescente, que se inventara nas noitadas de Paris e nos poemas geniais, tomou de fato horror à poesia e ao desregramento para, na África tórrida e rude, reinventarse como um homem comum, preocupado somente com transações comerciais e viagens de negócios?” As respostas para tais indagações poderão ser encontradas no mergulho silencioso de sua leitura, ao refletir também sobre a própria vida. Foi Rimbaud quem escreveu que “a verdadeira vida está ausente”. E a sua, leitor, está?

correspondência arTHUr rImBaUD topbooks o livro reúne todas as cartas de arthur rimbaud, com tradução, notas e comentários de ivo Barroso

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indicações flora pimentel

NOVELA

PAULO RODRIGUES As vozes do sótão Cosac Naify

CONTOS

NELSON DE OLIVEIRA (ORG.) Futuro presente

terceiro livro do autor paulista, que estreou com À margem da linha (2001). nesta narrativa, uma voz interior traz do passado do alfaiate damiano memórias que são apresentadas como se fossem um caderno de anotações. a segunda metade do livro é marcada pelo deslocamento do personagem para um outro, guido, a quem o projeto editorial destinou páginas em bordô.

record

CRÔNICA

HISTÓRIA

a ficção científica é um gênero que tem fiéis adeptos no cinema e na literatura; são assim como uma legião de adoradores. esse público pode encontrar nestas 18 ficções sobre o futuro autores com os quais compartilhe interesses, temas, universos. organizado por um escritor que já vem se dedicando a coletâneas, o volume reúne autores brasileiros.

Juareiz Correya

Balanço do tempo rápida consulta na internet deixou surpreso e animado o poeta e editor Juareiz correya: a palavra “americanto” possui cerca de 74 mil ocorrências. decidiu pesquisar e descobriu que os registros na rede, pelo menos aqueles a que teve acesso, referem-se a expressões artístico-culturais surgidas – tanto no Brasil como noutros países latino-americanos e até mesmo na frança – depois de 1975, ano em que lançou o livro Americanto amar América e outros poemas. Juareiz, obviamente, não reivindica paternidade, mas se sente motivado a relembrar que, há 35 anos, duas palavras – “américa” e “canto” – fizeram amor em sua cabeça e se fundiram numa terceira. “o que americanto passou a ser, anos depois, em outras cabeças e corações do meu país e de outros países, já é outra história...”, diz o poeta. e a palavra está prestes a ganhar mais ocorrências na rede, com a publicação de Americanto amar América e outros poemas do século 20 (nordestal/cepe). comemorativo dos 40 anos de poesia de Juareiz, o volume compila versos publicados em livros e também na imprensa. É o caso de Poema vago olhando a cidade, que saiu em janeiro de 1970 no jornal O Olho, de palmares, sua terra natal. o livro será lançado em 25 de março, no gabinete português de leitura de pernambuco, no recife, com recital de poesia e exposição dos desenhos que ilustram a obra, de autoria do artista plástico roberto portella. nos próximos meses, estão agendados lançamentos em municípios pernambucanos, capitais nordestinas e em são paulo. “com este livro, encerro um tempo da minha poesia”, explica Juareiz, cuja produção transitou por diversas experiências formais e temáticas, abordando desde angústias e sonhos de sua geração ao lirismo e à sensualidade sem rédeas. por isso, são também bastante plurais os depoimentos sobre o seu trabalho. dele, disse Hermilo Borba filho, em artigo sobre a primeira edição do Americanto, em que, após considerar que o poeta é um ser que vive permanentemente em estado de sofrimento por si mesmo e pelo mundo que o rodeia: “Juareiz correya é um desses seres e este seu pequeno livro de agora diz fotograficamente, com muita precisão, o que está acontecendo com ele: o poeta está triste e pessimista”. Já o poeta Jaci Bezerra, em outra edição do livro, classificou a obra como representativa de “uma fase agressivamente renovadora da poesia brasileira atual”. gilson oliVeira

GILBERTO ARAÚJO Melhores crônicas de Humberto de Campos Global

as crônicas trazidas a esta antologia pretendem um painel dos temas abordados por um dos mais populares escritores da primeira metade do século 20. Humberto de campos pode ser lido hoje como um conservador, visto que defendeu a ausência da mulher do mercado de trabalho e foi um crítico da belle époque.

MARCO AURÉLIO NOGUEIRA O encontro de Joaquim Nabuco com a política Paz e Terra

uma das vantagens das datas comemorativas são as publicações em torno delas. este é o caso do volume em questão. neste trabalho, nogueira busca entender as raízes do pensamento liberal no Brasil, pelo mergulho na vida e ação política do abolicionista.

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Braulio Tavares

Da tribo ao gueto O livro vermelho, de Mao Tsé-Tung, continha uma frase

Braulio tavares é escritor divulgação

famosa: “A política para promover o progresso das Artes e das Ciências e o desabrochar de uma cultura socialista em nossa terra deve ser: deixar que floresçam as cem flores, deixar que debatam as cem escolas do pensamento”. Mao acenava com isso àqueles jovens que Jean-Luc Godard filmou em La chinoise (1967): um socialismo em que todas as formas de arte e todas as ideias estéticas e científicas seriam acessíveis a todos, e seriam debatidas livremente. A metáfora das “cem flores” virou um clichê no linguajar politizado. Depois, Mao passou o trator por cima das 99 que discordavam dele. Essa utopia da abundância e da diversidade chegou, com a internet, à web; com a gigantesca memória prima que acabamos de criar. Em breve (dizem) não haverá informação que não esteja arquivada em algum lugar e acessível em toda parte. O capitalismo cibernético inventou e distribuiu a mancheias os hardwares e os softwares necessários para transformar em bits digitais qualquer texto, qualquer imagem, qualquer som. Realizou de forma involuntária e suicida o sonho de todos os comunistas: o povo sendo o proprietário dos meios de produção. Hoje, o capitalismo fonográfico está em ruínas, o capitalismo editorial está bambeando, o capitalismo cinematográfico e televisivo luta bravamente para prolongar a própria agonia. Viveremos, em breve, do ponto de vista das relações de produção cultural, um socialismo digital que nem mesmo a ficção científica foi capaz de antever. Aqui entra um novo fator: cadê as cem flores? Já li hectares de textos profetizando que, no momento em que todas as tribos estivessem interligadas, isso iria apagar fronteiras, desinflar as xenofobias, favorecer o cosmopolitismo e a diversidade. Ironicamente, acontece o contrário. Como as quantidades de informações disponíveis são gigantescas, quem gosta de um tipo de informação se concentra nela, cada vez mais. Quando havia poucos discos de heavy metal ou de coco de embolada para vender, o fã desses estilos acabava comprando outras coisas por mera curiosidade. Hoje, a quantidade de informação sobre qualquer estilo esgota as 24 horas do dia de qualquer aficionado. Em vez da variedade, isso estimula a especialização. Conheço fãs de ficção científica que nunca ouviram falar em Isaac Asimov ou Arthur C. Clarke, porque ficção científica, para eles, é somente Star trek, e existem terabytes de informação sobre isso, ao alcance de um clique. As tribos se fecham às novidades porque já existe informação demais sobre o deus pequenino de cada uma. Viram guetos – não por serem marginalizadas, mas porque se julgam autossuficientes e se desinteressam do resto do mundo. O adversário atual não é a desinformação, é a pornografia da especialização, o gozo fetichista em cima de dados irrelevantes, a multiplicação de novas versões, de reduxes, de director’s cuts, o repisar incessante e insensato de redundâncias dirigidas aos que querem sempre “um pouco mais daquilo mesmo”. Não adianta ter cem flores se cada uma está trancada em sua própria estufa.

con ti nen te#44

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