Continente #112 - Brasília: um sonho erguido

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ABRIL 2010

aos leitores

Uma cidade que devora seus habitantes. De tão garbosa, estilosa, única e militantemente moderna, a Brasília arquitetônica e urbanística atrai para si todos os olhares. Como se isso não bastasse, em sendo a capital federal da República, tem sua trama política ressaltada... nem sempre em seus mais valorosos aspectos. Assim é que os moradores, os brasilienses, ficam sob a camuflagem urbanística e política, e pouco sabemos sobre eles. No mês em que a cidade completa meio século de construída, a revista Continente olha para ela com interesse no “fator humano”, aproximando-se de alguns indivíduos para, quem sabe?, encontrar um todo. Como o leitor poderá observar, o assunto dominante nessa “roda de brasilienses” é ninguém menos que... Brasília! Há entre os entrevistados impressões interessantes sobre si mesmos, como o fato de os brasilienses se enxergarem “fechados”, individualistas e ainda em busca de uma identidade cultural própria, o que nos faz pensar que 50 anos são mesmo muito pouco na história de uma cidade e

RiCARDo LABAstiER

de suas gerações. Atravessa o discurso dos entrevistados e colaboradores desta reportagem, ainda, a necessidade de crítica e autocrítica, sobretudo no que diz respeito aos problemas sociais, administrativos e urbanísticos vividos no Brasil, a despeito do lugar de onde se fala, constituindo-se em um quadro negativo generalizado. Este mês, dedicamos algumas páginas a temas relativos à religiosidade. Em Cardápio, abordamos um alimento associado à culinária do período pascal, o pescado, com informações tanto históricas quanto gastronômicas a seu respeito; em Leitura, trazemos uma resenha sobre o livro em quadrinhos Yeshuah, que cuida de recontar a vida de Jesus Cristo, numa pesquisa bibliográfica que tomou uma década de trabalho do seu autor, o quadrinista Laudo Ferreira. No campo da reportagem, há o trabalho do jornalista Augusto Pessoa, que documentou em imagens e texto o seu encontro com os integrantes da seita Ave de Jesus, remanescente do sebastianismo nordestino, um desses fenômenos de devoção fanática que espanta e intriga.

contInente ABRIL 2010 | 5


sumário Portfólio

Marcos Bertoldi 08

cartas

09

expediente + colaboradores

10

entrevista

14

22

38

40

Marisa Rezende A compositora, uma das poucas a atuar no campo da música erudita no Brasil, fala de criação e política cultural

52

Matéria corrida

74

claquete

78

Leitura

84

Sonoras

88

Saída

Balaio

Grafite Nas ruas de Buenos Aires, a técnica mantém o teor contestatório em estênceis políticos

Peleja

Marketing O uso do merchandising compromete a qualidade artística de uma obra?

História

Revisão Novos estudos analisam o período colonial a partir do empreendedorismo

nenéu Liberalquino O músico e compositor criou uma forma própria de tocar o violão

72

conexão

Pensamento Big think reúne vídeos com especialistas que discutem atualidades

Perfil

Arquiteto curitibano, reconhecido internacionalmente, tem um estilo limpo, moderno e de linhas retas, que valoriza a estética e a funcionalidade

16

José cláudio Colunista discute o carnaval de rua

cinédia Produtora investe no restauro de obras clássicas do século 20 Mark twain Há 100 anos morria o criador do carismático Tom Sawyer Viola caipira Trabalhos recentes associam o instrumento de “voz rural” ao campo da música erudita Antonio cadengue Reflexões sobre Rei do cheiro, romance de João Silvério Trevisan

Pernambucanas Poço Comprido

Localizada em Vicência, edificação expressa a hegemonia da economia açucareira, que perdurou por dois séculos e ainda se faz presente nos dias atuais

56 Capa foto Ricardo Labastier

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especial

Religiosidade

Capital federal completa 50 anos e começa a esboçar uma identidade que se reflete nos seus habitantes, nascidos ou não brasilienses

Pequena comunidade de fiéis no interior do Ceará segue rotina de privações em busca da purificação, dando continuidade à tradição messiânica da região Nordeste

cardápio

Visuais

Predominante na Páscoa, o alimento se presta a variadas composições, podendo ser elaborado em receitas simples e sofisticadas

Exposição reúne documentos, pinturas e objetos pessoais do abolicionista – dos seus primeiros anos, no Engenho Massangana, até a sua morte nos EUA

Brasília

24

Pescados

62

Ave de Jesus

44

Joaquim Nabuco

68

continente abril 2010 | 7

Abr’ 10


cartas

Entrevista Venho expressar minha crítica à entrevista com Valéria Torres da Costa e Silva (foto), na edição 110. Na minha opinião, a “redescoberta” da obra de Gilberto Freyre proposta por ela não é inovadora, porque demonstra desconhecer a crítica veemente que a referida obra sofreu desde os anos 1930 e a sua redescoberta na década de 1980. A frase “O discurso multiculturalista no Brasil é um retrocesso” dá margem a interpretações perigosas. A autora não esclarece seu conceito

de multiculturalismo, que tem várias vertentes teóricas e não pode ser refutado sem definição. Valéria afirma que o discurso multiculturalista “dá a impressão de uma coisa mais democrática”, mas não propõe outra saída para a sociedade brasileira. Tal saída não estaria nos posicionamentos aristocráticos e direitistas de Freyre. Parece-me que há uma confusão gritante entre cultura e sociedade na leitura realizada sobre a obra de Freyre. Este mesmo, separava a cultura mestiça e híbrida de nossa civilização dos aspectos cruéis e desumanos de nossa formação histórica. Não adianta dizer que a democracia racial deve ser nossa utopia, porque o próprio conceito de raça foi superado por Freyre. Se a entrevistada quer elogiar o pensamento freyriano sobre a cultura, entendo que deveria ser mais cautelosa com os aspectos sociais da cultura e não reproduzir os equívocos de Freyre. Elson RabElo pEtRolina – pE

Literatura infantil 1 Gostaria de agradecer à repórter Danielle Romani pela matéria Literatura infantil (edição 111) feita com meus filhos (as crianças Lucas, Letícia e Lorena) e dizer que seu trabalho ficou excelente. Inclusive, mostrei à diretoria da escola em que eles estudam (colégio Terceiro Milênio-Objetivo) e todos ficaram muito satisfeitos com o conteúdo da reportagem. Parabéns mais uma vez e obrigada.

Você faz a continente com a gEntE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho leite, 530, Santo amaro, recife-PE, CEP 50100-140).

adElaidE paRaíso REcifE – pE

Literatura infantil 2 Achei a revista Continente (edição 111) excelente! Quero parabenizá-los e agradecer pela oportunidade de participar da matéria sobre Literatura Infantil. andRé nEVEs poRto alEgRE – Rs

errata Na matéria sobre Literatura Infantil, edição 111, página 27, o nome correto do escritor é Luciano Pontes.

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as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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augusto Pessoa Jornalista e fotógrafo, já viajou nove vezes para Machu Picchu, mas não troca a Paraíba por nada

Bruno Boghossian Jornalista formado pela UFRJ e repórter de O Estado de S. Paulo

renato Lima Jornalista e mestrando em estudos latino-americanos na Universidade de Illinois

Sara correia Jornalista, especialista em crítica cultural e jornalismo, atua na assessoria e RP da Embratur

e MaiS ana Lira, jornalista e fotógrafa. andré teixeira, fotógrafo. antonio cadengue, professor e encenador. aroeira, caricaturista. carlos eduardo amaral, jornalista, mestrando em comunicação e crítico de música erudita. Débora nascimento, jornalista e editora da revista Eita!. Dinara Pessoa, etnomusicóloga, musicista e professora da UFPE. edson nery da Fonseca, fundador da UnB e dos cursos de graduação e pós-graduação em biblioteconomia. Grace de Freitas, professora do departamento de artes visuais da UnB. Juliana Lisboa, publicitária e diretora de criação da Ampla. Karina Gomes Barbosa, mestre em comunicação pela UnB e professora universitária. Maria eduarda da Mota rocha, professora do programa de pós-graduação em sociologia da UFPE. Marcos ramos, fotógrafo. ricardo Labastier, fotógrafo. roberta Guimarães, fotógrafa. Sergio de Sá, jornalista, crítico literário e professor da UnB.

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Daniela Brayner

Luzilá Gonçalves Ferreira

(paginação) Nélio Câmara (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

continente abril 2010 | 9

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REdaÇÃo, administRaÇÃo E paRQUE gRÁfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700


MARISA REZENDE

Inquietação artística e zelo na composição Uma das raras compositoras de música erudita no Brasil, ela enfoca as características criativas desse campo, hoje, e comenta a ausência de política cultural para o segmento no país texto Dinara Pessoa

con ti nen te

Entrevista

ela se apresenta com simplicidade

quase franciscana, gestos delicados e suavidade no falar. Porém, é uma mulher firme, decidida, dona de um espírito inquieto, investigativo e transgressor. Marisa Rezende, uma das mais atuantes artistas nacionais, integra o universo das raríssimas compositoras eruditas. Foi a única convidada pelo violoncelista Antonio Meneses para escrever uma obra solo (Preludiando, incluída no CD Suítes brasileiras, de 2009) e recebeu encomendas da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, uma das mais importantes do mundo sinfônico, compondo para ela Vereda (2003); da Sala Cecília Meireles, compondo Avessia (2005); e da Orquestra Sinfônica Brasileira, compondo Viagem ao vento (2008). O discurso musical de Marisa Rezende fascina pela pluralidade de estéticas, combinações instrumentais incomuns e singularidade da lógica criativa. Ela é detentora de uma sólida obra – em sua maior parte para música de câmara – de expressiva repercussão na música brasileira contemporânea e reconhecida em outros países.

Marisa, que é carioca, iniciou o curso de composição no Rio de Janeiro, graduando-se pela Universidade Federal de Pernambuco em 1974, quando a instituição já cerrava suas portas para esse curso. Teve forte vinculação com o Recife, onde morou por 10 anos, atuando como professora no Departamento de Música da UFPE. Suas atividades se deram da sala de aula aos palcos, nos quais executou mais de uma dezena de concertos para piano, com a Orquestra Sinfônica do Recife, regida por Mário Câncio. Teve algumas de suas composições interpretadas pela mesma orquestra, sob a regência de Clóvis Pereira e Eleazar de Carvalho, que lhe ressaltava o talento, vislumbrando sua trajetória de sucesso. Mestre em piano, doutora em composição pela Universidade de Santa Bárbara (Califórnia), com pós-doutorado pela Universidade de Keele (Inglaterra), Marisa é fundadora e diretora artística do Grupo Música Nova, desde sua criação, em 1989. Depois de 22 anos de ausência, Marisa Rezende veio recentemente ao Recife, e esteve no Departamento

c co on nt tiin neen nt tee a abbr riill 220 0110 0 || 110 1

de Música da UFPE, onde apresentou um panorama geral sobre suas composições e audição de obras, oportunidade na qual foi realizada esta entrevista para a Continente. continente Como você analisa, em linhas gerais, a cena musical contemporânea brasileira? MARiSA ReZenDe Ela sobrevive, apesar de uma política pífia para que exista. Institucionalmente falando, há poucos eventos que a promovam regularmente, sendo exemplos a Bienal de Música Contemporânea Brasileira e o Festival Música Nova. Outros eventos, como a Bienal de Mato Grosso ou o Encompor, do Rio Grande do Sul, acontecem pela motivação de algumas poucas pessoas. E há um conjunto de compositores, geralmente ligados à universidade, que organizam concertos regulares com a função de apresentarem suas obras (como o grupo de compositores Prelúdio 21). Com certeza, ela seria mais exuberante e expressiva se houvesse a percepção de que ela também acrescenta valores à nossa cultura.


marcos ramos

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essência maior deste prazer que é sempre mutante, com singeleza, e há que se buscar uma verdade qualquer... continente Quais são suas mais recentes composições e a partir de que foram estruturadas? MARiSA ReZenDe Viagem ao vento, de 2008, em comemoração aos 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil, é uma peça com intenção descritiva, que evoca o Jardim Botânico, retratando-o como um lugar onde nuances dão colorido à paisagem. Miragem, de 2009, para piano, dedicada à Lídia Bazarian,

continente Cada artista elabora sua linguagem com bases em referências, técnicas e processos. Como isso acontece com você? MARiSA ReZenDe A minha história de vida, transitando entre lugares diferentes, me deixou mais solta à procura da minha voz, e esta soltura acabou por me dar uma liberdade que eu prezo muito. Assim, não me vejo filiada a nenhuma corrente estética, com referências mais reconhecíveis, embora seja devedora às muitas coisas que me fascinaram nesse percurso, como a cor do céu do Recife, a paisagem do Rio e a eficiência americana.

divulgação

continente O que falta para os projetos de música contemporânea brasileira se expandirem para o Nordeste? MARiSA ReZenDe Sempre pensei, enquanto morava no Recife, que o Nordeste abrigaria, muito naturalmente, uma circulação de eventos diversos entre suas capitais, pela proximidade entre elas. E também acho que um evento como a Bienal poderia ser expandido para outros centros, como já foi feito com outras mostras, haja vista o enorme esforço que é feito para montá-la, o que justificaria a busca por maior

con ti nen te

Entrevista alcance. Para isso seria necessário um movimento entre pessoas interessadas, vontade política e apoio institucional. continente Como você define seu processo criativo? MARiSA ReZenDe Amplamente falando, o processo criativo mimetiza a vida e, como a própria vida, pulsa e respira. Mais especificamente, durante o trabalho com uma nova obra, posso perceber fases que se alternam: momentos de deslumbramento e sensibilização, de tomadas de decisões, de exasperação face ao surgimento de problemas e a dificuldade das soluções, de inquietação sem tamanho, de uma força que subverte qualquer sentido de ordem! E, ao lado disso tudo, há que se buscar a

explora distorções que as sonoridades do teclado apresentam quando trabalhadas juntamente com ataques de baquetas nas cordas do instrumento, criando um jogo que parafraseia o título. continente Quais foram os pontos de partida para a construção de seu estilo? MARiSA ReZenDe No início, Bartók, Hindemith e Stravinski me marcaram. O primeiro pela construção melódica, o segundo pela tonalidade expandida e o terceiro por seu trabalho textural. Depois, outros compositores me fascinaram, como Dallapiccola e seu cuidado com gestos mínimos e Kurtag, por fazer de uma única nota um fator estrutural. Junto a isso, uma sintonia com a música popular, de que gosto.

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“A cena musical erudita brasileira seria mais exuberante e expressiva se houvesse a percepção de que ela também acrescenta valores à nossa cultura”

continente O que é mais característico em sua obra? MARiSA ReZenDe Uma inquietação e um cuidado com a construção formal, uma atenção com o timbre e a sonoridade como fatores estruturais e a percepção de que essas coisas todas estão atreladas a uma possibilidade expressiva, que é a alma da música. continente Existe uma música eclética? MARiSA ReZenDe Dizem que o ecletismo é um traço da música brasileira, talvez seja, sim. Claudio Santoro falou que reconhecia a brasilidade até numa peça eletroacústica, pela quantidade de materiais usados na composição. Talvez uma exuberância marque boa


parte das obras brasileiras, levando a um certo ecletismo.

sabe?) vem a ser fundamental para que essa atividade se mantenha viva. E para que isso ocorra, um conjunto de medidas precisa estar em curso, e aí volto a chamar a atenção sobre a importância de políticas culturais eficientes e bem-estruturadas. continente A música erudita contemporânea é mais complexa do ponto de vista da compreensão de seus códigos. É por isso que maestros de algumas orquestras e muitos músicos não querem se debruçar sobre o repertório de obras novas?

reprodução

continente A música instrumental brasileira contemporânea possui características que a identificam como tal em outros países? MARiSA ReZenDe Além da exuberância já comentada, que talvez vá na contramão de um discurso mais coeso, eu diria que boa parte da produção musical recente daqui é marcada por uma internacionalização.

fio poético e filosófico que o poema me deu, sabia que, para que esse conjunto se fizesse coeso, e tomasse a forma de um “espetáculo”, eu precisava também de outros elos. Aí foi que a concepção cênica entrou, tão sensivelmente trabalhada por minha filha Bel Barcellos, dando forma aos muitos momentos, contando com a iluminação, cenário, figurino expressivos, e a sonorização incrível que Marcos Lacerda realizou. Tudo isso e mais a dedicação fundamental dos cantores e dos músicos. Assim, acabamos contando com uma equipe excelente, trabalhamos

“Bartók, Hindemith e Stravinski (foto) me marcaram. o primeiro pela construção melódica, o segundo pela tonalidade expandida e o terceiro por seu trabalho textural”

continente Você tem composições com textos de Ferreira Gullar e Fernando Pessoa, entre outros. Sua obra O (in)dizível, com texto de Rilke, é um amálgama entre poesia, música e cena. Como você estruturou a relação entre as três linguagens? Que canções você criou? MARiSA ReZenDe Esse espetáculo, montado em 2000, no Espaço Cultural Sérgio Porto, foi uma experiência muito gratificante para mim. Quis escrever canções que percorressem gêneros do repertório, tipo uma canção de amor, uma canção de cabaré, uma “seresta”, entre outras. E A nona elegia do Rilke, traduzida por José Paulo Paes, me deu a espinha dorsal para costurá-las. Como ele disse: “Aqui é o tempo do dizível, é aqui a sua pátria. Fala, pois, e proclama”. E eu obedeci. Mas, além do

por bastante tempo e deu certo. Tivemos uma minitemporada e um ótimo retorno do público, que me encheram a alma! continente Existem dificuldades para um compositor de música contemporânea erudita no Brasil? MARiSA ReZenDe Em termos materiais, sabe-se que é impossível viver da composição aqui. Será então que isso faz dos compositores seres altruístas? Produzem pelo bem que geram? Até poderia ser, uma vez que não se vive só do dinheiro, e existe um valor genuíno em atividades que não se inserem numa cultura de mercado. Mas o reconhecimento da legitimidade dessa função, um retorno qualquer (a emoção do público, quem

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MARiSA ReZenDe Acho que tudo que é novo assusta, e demanda, tanto dos intérpretes quanto dos maestros, novas atitudes, e também uma bagagem técnica que lhes permita vencer os desafios propostos. Por isso muitos deles hesitam em programar obras recentes. Mas o repertório dos séculos 20 e 21 é amplo, e nele existem peças mais acessíveis que poderiam ser executadas sem tantos problemas. Caso isso fosse feito, a recompensa de “desbravar caminhos” também seria igualmente valiosa: com ela viria uma sensação boa de não estagnação. E, se as peças forem bem-executadas, elas serão bemrecebidas pelo público. O ideal seria que em cada programa fosse incluída uma obra recente: isso funciona muito bem.


O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

DoSSiÊ BRASÍLiA

VioLA cAiPiRA

No mês em que a capital federal completa 50 anos, o site da Continente disponibiliza uma compilação do material publicado pela revista sobre a cidade. Entre os arquivos, destacamse os textos que formaram a capa da edição 64, de abril de 2006, que põem em xeque a utopia urbana da cidade. Oscar Niemeyer foi a capa da edição 3, de março de 2001, e voltou às nossas páginas em agosto de 2007, ano em que completou 100 anos. Estarão disponíveis imagens inéditas dos primeiros anos da capital, pertencentes ao Instituto Moreira Salles, que estão em exposição no Rio de Janeiro, na sede da instituição, até julho.

Escute o disco Contos instrumentais, do violeiro Ricardo Matsuda e da cravista Patricia Gatti, que alia a sonoridade da viola de arame à do cravo.

Conexão

AVe De jeSuS Conheça um pouco mais sobre a comunidade de penitentes de Juazeiro do Norte, interior do Ceará, através das imagens do repórter Augusto Pessoa.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AnDAnçAS ViRtuAiS lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar

VARieDADeS

ARteS GRÁFicAS

cuLinÁRiA

enSAioS

Com notícias e análises, site potiguar discute letras e mídia

Coletivo Base-V exibe portfólio e hospeda a revista Maguila

Sofisticado, site desperta a gula dos internautas

Viva Pernambuco lança olhar crítico sobre problemas sociais

www.substantivoplural.com.br

www.base-v.org

www.flagrantedelicia.com

www.vivapernambuco.com.br/site/

Criado por Tácito Costa, o Substantivo plural é uma das boas iniciativas do jornalismo opinativo e cultural que encontram espaço na rede. O site sugere leitura de textos e tece comentários sobre temas como literatura, música, cinema, jornalismo, política e análise internacional. O excelente nível dos colunistas, que inclui os escritores e jornalistas Fernando Monteiro, Nelson Patriota e Rodrigo Levino, é um dos atrativos da página, que ainda disponibiliza livros dos colaboradores para download.

Hoje em dia, o site de um coletivo ou artista tem uma função bem-definida: apresentar os trabalhos já realizados e anunciar novas empreitadas. O coletivo paulista Base-V, voltado para a experimentação gráfica, faz isso e mais um pouco em sua página. Além de elencar suas exposições, projetos comerciais, toy-art, camisetas e murais, Danilo Oliveira, David Magila e Zansky criaram a revista virtual Maguila, que reúne colaborações de artistas, designers, ilustradores e fotógrafos, e está disponível para download na página do grupo.

A expressão “comer com os olhos” nunca foi tão bemexemplificada como no site flagrantedelicia.com. Estruturada basicamente com fotos em alta resolução, a página expõe ao internauta uma série de imagens de pratos selecionados pela dupla de portugueses Leonor de Sousa Bastos, especialista em alta gastronomia, e Miguel Coelho, fotógrafo responsável pelas imagens. No ar desde abril de 2008, o site apresenta categorias como chocolate, bebidas e massa folhada. Em suas postagens, ao lado das receitas, quase sempre um poema acompanha os doces, salgados e afins.

A jornalista Taíza Brito comanda o site Viva Pernambuco, em que põe em prática a ideia de mídia de paz. O conceito vem sendo desenvolvido desde 2009, e nada tem a ver com notícias que excluem o cotidiano violento no qual vivemos. Muito pelo contrário. Ao lado de sua equipe, a repórter lança um olhar crítico sobre os problemas sociais, tentando transformar os fatos negativos do dia a dia em informações positivas ao leitor. O projeto não se restringe ao Estado de Pernambuco, por isso a existência das seções Viva Brasil e Viva Mundo.

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REPRODuçãO

blogs SeRiADo http://dudewearelost.blogspot.com

Lost, série dramática em destaque na TV americana, deve parte de seu êxito ao espaço conquistado na internet. O Dude, we are lost se dedica a investigar, além dos episódios, “teorias” que envolvem o seriado.

PRoSA http://emiliofraia.blogspot.com

uM eStÍMuLo À ReFLeXÃo Com acesso gratuito, Big think disponibiliza vídeos em que especialistas opinam sobre questões em pauta na contemporaneidade www.bigthink.com

Felizmente, sites de conteúdo especializado e/ou aprofundado se

tornaram uma pequena “moda” na internet. Uma das iniciativas mais divulgadas e elogiadas é a Big think, criada por Peter Hopkins, que já foi tema de matéria do New York Times. Com mais de 600 entrevistas realizadas com estudiosos de campos variados do conhecimento, o site reúne uma imensidão de vídeos, sempre mantendo sua ideia original: ser um “Youtube” para ideias e debates intelectuais. Na página principal, o internauta encontra uma seção que põe em tópicos as discussões, facilitando o acesso a conteúdos específicos, a partir de temáticas como Meio ambiente, Artes & cultura ou Saúde & medicina. Visando aprofundar questões, o site traz também séries especiais sobre, por exemplo, O futuro da economia sustentável, em que profissionais da área dialogam a respeito do assunto. E há ainda um espaço reservado a personalidades consideradas experts: James Lipton, criador e apresentador do programa Inside the actors studio, é uma delas. Aos internautas com dificuldade em acessar os vídeos por conta de uma conexão mais lenta, o Big think apresenta as entrevistas transcritas na tela. GUilHerMe carrÉra

Autor dos elogiados O verão de Chibo e Givago, o escritor Emilio Fraia posta no seu blog artigos publicados em jornais e revistas, além de trechos interessantes de livros, seleção de fotos e vídeos.

DeSenHo http://odesafio300.blogspot.com

A proposta é simples: dois ilustradores, Bruno Mota e Michel Bisparulz, resolveram criar e desenhar 300 personagens no prazo de um ano. No blog, eles postam os resultados e dão nome às criaturas, como Greelin e Viligante.

eScRitA http://pauloscott.wordpress.com

Romancista, poeta e contista, com cinco livros no currículo, Paulo Scott apresenta no Ithaca road sua produção diversa – incluindo inéditos –, ilustrações feitas por Guilherme Pilla e fotos do seu cotidiano.

sites sobre

sigmund freud museu

informação

frases

www.freud.org.uk/exhibitions

www.sig.org.br/index.php

http://bit.ly/t1r8m

O Freud Museum é sediado em Londres, na casa em que o médico e sua família se refugiaram durante a invasão nazista na Áustria.

A Associação Psicanalítica Sigmund Freud se dedica ao estudo, à pesquisa e à transmissão dos conhecimentos da psicanálise.

“Anatomia é destino” e “Se você não pode fazer, desista” são duas das mais de 50 citações do autor disponíveis nessa página virtual.

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Port f

con ti nen te

1


t f贸lio


2

con ti nen te

Portfólio

Marcos Bertoldi

o DESENHo quE VIRA cASA TexTo Mariana Oliveira

A revista Architectural Digest publicou recentemente a lista dos “100 arquitetos mais influentes do mundo”. Nesse seleto grupo, figura o nome de um único brasileiro: o curitibano Marcos Bertoldi. O arquiteto descobriu a vocação ainda na infância, quando percebeu que “uma casa poderia ser transformada num desenho e, por conseguinte, um desenho numa casa”. Formou-se em 1982. Já naquela época, a arquitetura lhe parecia a linguagem artística mais completa para espelhar as diversas épocas vividas pela humanidade, além de ser extremamente interativa e suscetível à experimentação. Em 1983, Bertoldi abriu seu escritório em Curitiba. Desde o início, encanta-se com as possibilidades criativas de cada projeto. As suas escolhas no processo de concepção das obras são condicionadas por questões diversas como o terreno, a legislação, os materiais, o uso, o orçamento e o próprio cliente, cujas demandas devem ser atendidas, embora todos esses condicionantes não tolham sua liberadade criativa. “Gosto de imaginar que a obra vai além do cliente, adquirindo relevância arquitetônica. O trabalho deixa de ser um bem para uma família e se torna algo maior. Um trabalho deve transmitir conceitos e operar mudanças, desenvolvendo o campo da Arquitetura e influenciando a cultura de maneira geral”, defende. Dentro dessa perspectiva, o arquiteto impõe seu estilo limpo, moderno e com linhas retas aos edifícios que projeta, preocupando-se sempre com a estética, a continente abril 2010 | 18


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3 Página anterior 1 “RAMP HOUSE ”

O projeto dessa casa, cujo destaque é uma rampa de 40 metros que contorna todo o jardim, foi detalhado na revista alemã MD Moebel Interior Design

Nestas páginas 2 AMBientAção

Avesso aos detalhes excessivos, o arquiteto mantém a mesma linha reta e neutra de seus traços na decoração de interiores

3-4 ADAPtAçÕeS Os projetos dessas duas residências, ainda em andamento, demonstram o cuidado de Bertoldi em criar pavimentos suspensos ou rebaixados, em função do relevo do terreno

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con ti nen te

Portfólio

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funcionalidade, a técnica e o lugar onde a obra estará inserida. Bertoldi explora ao máximo a relação das suas construções com as características naturais da paisagem. O relevo tortuoso, por exemplo, é aproveitado para criar pavimentos suspensos ou rebaixados, rampas e sacadas. Atualmente, ele está finalizando uma obra residencial bastante particular, num espaço vizinho a um campo de golfe. “Os espaços mais importantes dessa casa foram lançados a partir do segundo pavimento, garantindo a apreensão da vista para o campo. É uma obra toda em concreto armado, com vazios internos capazes de abrigar árvores, inúmeros terraços, piscina.” O desejo do arquiteto não é, necessariamente, dar uma vocação icônica às suas obras. “A boa arquitetura, aquela que poderia ser praticada mais rotineiramente, deveria se voltar às suas próprias questões na busca do verdadeiramente essencial e intrínseco de cada projeto”, define.

@ continenteonline Confira outros projetos do arquiteto no site www.revistacontinente.com.br

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5 entorno Obras de Bertoldi trazem preocupação paisagística e estão harmonizadas com as características naturais do lugar 6 a 8 DeMAnDAS Além dos projetos residenciais, o arquiteto atende lojas e estabelecimentos comerciais, nos quais busca manter identidade de estilo

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ACERvO BRENO LAPROviTERA/CORTESiA

conSeLHoS De VoLtAiRe

iMAgENS: REPRODUçãO

vários artigos do filósofo francês foram escritos com o intuito de orientar o bem escrever que, para ele, estava naturalmente associado ao bem pensar. Entre os destinatários de seus conselhos estavam os jornalistas que voltaire advertiu quanto ao uso da linguagem, que não deveria ser excessivamente coloquial nem pedante, porque, disse ele, “Parece-me que todas as pessoas honradas preferem 100 vezes um homem grave, mas sábio, a um mau gracejador”. (ADM)

Rebeldia gravada nos muros Ainda que se tenha tornado uma manifestação aceita pelo circuito artístico, pelas instituições e pelo mercado, sendo exibida em museus e requisitada por profissionais de decoração em todo o mundo, o grafite é essencialmente uma arte de rua, posicionada contra o que quer que seja. Seu princípio está em ocupar e contestar, numa atitude cujo vigor está na transgressão. É claro que hoje muitos dos grafiteiros estão faturando com o apreço recém-conquistado e o comportamento, antes marcadamente rebelde, anda domesticado. Faz parte do jogo. Mas ainda é possível observar nas ruas o teor contestatório do gênero, sobretudo quando o assunto é política. Em Buenos Aires, no emblemático trecho central da cidade que une a Plaza de Mayo à Plaza del Congreso, percorrido por 100 entre 100 manifestações públicas de protesto, estão gravados nos muros vários grafites de lucha, desagravos contra o governo. A maioria deles usa a técnica do estêncil, que é rápida e pode ser facilmente reduplicada. Toscos, se comparados aos exuberantes e artísticos exemplares da atualidade, esses grafites de protesto argentinos nos trazem a nostálgica memória de um tempo em que o jogo político se travava no calor do embate corpo a corpo e não no asséptico e controlado ambiente das mídias eletrônicas. aDriana DÓria MatoS

con ti nen te

A FRASE

“A minha única restrição aos cigarros é a de que eles já não vêm acesos.” Fran Lebowitz

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Balaio DUeLo De titÃS O episódio ocorreu em 25 de outubro de 1946. Na Sociedade de Ciência Moral da Universidade de Cambridge, o filósofo austríaco Karl Popper abria a discussão com uma pequena palestra a respeito do tema “Existem problemas filosóficos?”. Dois outros grandes vultos da filosofia do século 20 estavam presentes, Bertrand Russel e Ludwig Wittgenstein. Toda a argumentação de Popper era uma grande provocação e uma refutação à ideia tão corrente no circuito filosófico da época (e cujo principal postulador e defensor era Wittgenstein) de que é uma ilusão acreditar que existem autênticos problemas filosóficos – tudo não passaria de questões e enredos de ordem linguística, inclusive os dilemas éticos. Em certo momento, quando o debate já estava bastante acalorado, Wittgenstein, que sacudia nervosamente em uma das mãos um atiçador de carvão, desafia: “Diga-me ao menos um exemplo de norma moral!”. Ao que Popper teria respondido na bucha: “Não ameaçar os conferencistas com um atiçador... ”. (Eduardo Cesar Maia)


cARtAS MAiS Do qUe BReVeS Em 1862, o já famoso escritor francês victor Hugo, que viajava de férias, envia uma carta a seu editor Hurst e Blackett, em que escreve simplesmente: “?”. Estava aflito para saber como andavam os trâmites finais para a publicação de seu romance Os miseráveis. Algum tempo depois, recebe, na mesma moeda, a resposta do editor: “!”. (ECM)

cRiAtuRAS

VeLÓRio eM tRÁS-oS-MonteS Um portuense, de passagem por Miranda, foi surpreendido com a notícia de que um amigo seu morrera e seria enterrado naquela tarde. Chateado com a situação, a perda de um amigo do peito, procurou saber onde seria o velório e foi para lá. Ao chegar, viu que no caixão estava o morto inteiramente nu e ao lado um grande pote cheio de creme, no qual cada um dos presentes metia a mão e, após apanhar um pouco, passava sobre o defunto. Surpreendido pela cena, inusitada para ele, aproximou-se da esposa e perguntou: “Desculpe-me a ignorância, mas o que estão fazendo é tradição por aqui?”. A esposa respondeu: “Não! É inédito! Nunca fizemos. É que ele pediu para ser cremado...” (Duda guennes, de Lisboa)

MAL-entenDiDo

Em meados da década de 1940, o compositor Ary Barroso comandava o programa A hora do calouro na Rádio Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro. O programa revelava novos talentos, e Ary o apresentava sempre com bom humor. Certa vez, perguntou brincando a uma candidata, com uma roupa meio cigana: “A senhora, por acaso, é a galli Curci?”. O apresentador se referia à cantora italiana Amelita galli Curci, mas a candidata não ouviu bem e, com raiva, respondeu ser mulher de respeito, chamava-se Maria da Conceição e que não admitia ser alcunhada de “galho-curto”. Saiu do auditório com raiva. (Bernardo valença)

oscar niemeyer, 102 anos Por aroeira

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ricardo labastier

Uma cidade-monumento, conhecida mundialmente por seu projeto urbanístico e arquitetônico, pode ofuscar o elemento humano. Nesta reportagem, buscamos a brasília dos brasilienses e dos que a ela acorreram na expectativa de encontrar um Eldorado real. Tentamos decifrar, neste caminho, suas peculiaridades e contradições. texto Karina G. Barbosa e Sérgio de Sá, de Brasília

coN Ti NEN TE

eSPeciAL

Bras continente abril 2010 | 24 5


sĂ­lia continente abril 2010 | 25


coN EspEcial Ti NEN TE maurício simonetti/tyba

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explicar Brasília a qualquer

brasileiro significa contar uma história muito recente de um país que se dispôs a desafios, viu-se emparedado e voltou a respirar. Significa destrinchar para quem nunca a visitou – e também para quem já o fez – as peculiaridades de uma cidade que não tem ruas com nomes ou esquinas, está dividida em setores, convive com o poder de maneira próxima e conflituosa, abriga a noção de prédios como monumentos (ou vice-versa) por todos os lados, oferece à vista um amplo e, dizem os brasilienses, inigualável horizonte. Tentar definir a capital envolve mais do que isso. Não bastam planos, esboços e profecias. É preciso, por trás de siglas e sinais, perceber as pessoas do lugar.

Quem é, então, esse tal de brasiliense, morador de espaço tão singular, que espanta ao primeiro olhar? Entrar em contato com o habitante é compartilhar do apego afetivo à cidade artificial e da tristeza com certos desdobramentos do projeto original. É repartir a visão de quem nasceu aqui na década de 1960 até a de quem é muito jovem e carrega a expectativa pelo encontro com a identidade cultural da cidade inventada por Lucio Costa e decorada pelas curvas de concreto de Oscar Niemeyer. São quatro escalas – residencial, gregária, bucólica e monumental – que combinam moradias, espaços de convivência, áreas verdes e monumentos. Ainda que aos trancos e barrancos, as escalas estão preservadas

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no Plano Piloto, o coração da capital, tombado como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. Estritamente falando, apenas o Plano Piloto é a capital fundada há exatos 50 anos. O que está em volta, o “quadradinho” do mapa do Brasil no meio de Goiás, forma o Distrito Federal. Nos detalhes, as cinco décadas de ocupação transformaram as linhas estéticas da moderna arquitetura brasileira e a organização metódica dos eixos rodoviários em uma cidade única, erguida por cerca de 60 mil candangos vindos de todas as partes do país. Maior do que deveria – dos 200 mil habitantes pensados, o Plano Piloto tem hoje mais de 500 mil; o DF tem cerca de 2,6 milhões, ante os 140 mil nos anos 1960.


Julio Fugimoto/divulgação

1 Poente os moradores da cidade destacam como inesquecível o pôr do sol local, que inunda de dourado o planalto 2 cenA MUSicAL vocalista da móveis coloniais de acaju, andré gonzales diz que as criações da banda refletem a diversidade cultural de brasília

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A cidade foi erguida por 60 mil candangos vindos de todas as regiões do país e hoje tem uma população de 500 mil habitantes

Rica – o PIB per capita é de R$ 37,6 mil, enquanto a média brasileira é de R$ 12,6 mil. Desigual – em 2009, os 10% mais pobres ganhavam R$ 429, enquanto os 10% mais ricos ganhavam mais de R$ 4,6 mil. Longeva – tem a maior expectativa de vida do país, 75,1 anos. Estudante de Relações Internacionais, Thaís Braga Barreto, 21 anos, é uma das jovens que partilham das heranças da construção e das mudanças históricas que se traduzem em índices desconcertantes. “Somos uma geração filha de gente muito estudada, que ganha bem. Não sei o que vai sair disso, mas tenho muita expectativa.” Uma das coisas que Thaís quer descobrir é a cara da cidade quando esses jovens criarem os filhos.

A curiosidade tem razão de ser: depois de cinco décadas, a maioria da população que mora em Brasília ainda não é brasiliense: 42,2% vêm das regiões Sudeste e Nordeste. Os brasilienses somam 40,6%. Mais do que curiosidade em relação ao futuro, Thaís se sente um personagem importante. “A experiência de viver em Brasília me faz sentir parte da história.” Para ela, ser brasiliense é ter a referência de todo o Brasil, mas ainda sem definir uma identidade local. “Nossos pais vêm de outros lugares, e a gente ainda não sabe onde, ou como, essa mistura nos faz brasilienses. Minha geração sente que ainda não tem marca registrada.” Filha de um professor de arquitetura, cearense, autor do projeto de revitalização de uma das vias mais tradicionais da cidade, a W3 Sul, a estudante reconhece a importância do tombamento. “É muito saudável para a cidade, porque protege algumas áreas. Por outro lado, o que não é protegido fica cada vez mais cobiçado”, avalia. A disputa pelas áreas em torno da região preservada

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é um dos motivos do crescimento desordenado. “O que foi planejado continua conservado, mas o que não foi piorou. O trânsito, por exemplo.” Mas não são os eventuais problemas que estimulam Thaís a pensar em fazer o caminho inverso do planejado por quem construiu Brasília. “Como todo brasiliense, sinto falta de mar. O que me faz pensar em ficar aqui é a oportunidade de um bom emprego.” A falta de emprego, aliás, é um constante desafio: atualmente, cerca de 15,8% da população economicamente ativa do DF não têm trabalho. O maior empregador, ao contrário do que muitos brasileiros pensam, não é o governo, que responde por 16,6% dos empregos (e também pelos melhores salários). O líder é o setor de serviços, que emprega mais de 760 mil brasilienses (57,7% da população).

JoVenS BeM-nASciDoS

Os jovens como Thaís, entre 20 e 24 anos (a terceira geração de nascidos na capital), são, hoje, a maior parcela de uma população com alto índice de escolaridade: um em cada quatro habitantes fez faculdade e o DF possui a maior média de anos na escola de todo o país: 9,2. Vivem no quinto maior Índice de Desenvolvimento Humano do país, 0,844, numa escala até 1. A renda familiar média é de quase 20 salários mínimos – quase 82% da população ganha acima de 10 salários mínimos por mês. A qualidade de vida, experimentada principalmente no Plano


coN EspEcial Ti NEN TE Fotos: ricardo labastier

Piloto, se reflete em moças e rapazes que cresceram com tempo para pintar, dançar, viajar. “É uma geração muito criativa, que gosta de se vestir com roupas coloridas e falar de música.” Essa amplitude cultural se traduz em 83 salas de cinema (quase todas no Plano Piloto), 24 teatros e uma cultura gastronômica que vem ganhando destaque nos últimos anos. São cerca de 10 mil restaurantes em todo o DF, levando em conta os que pagam tributos. Além de espaços para a arte, os brasilienses veem os conterrâneos conquistarem o país. Desde o mocinho da novela das oito, Mateus Solano, até o premiado cineasta José Eduardo Belmonte (paulista de nascimento, brasiliense desde os 4 anos de idade).

A população brasiliense possui o maior índice de escolaridade do país e de média de permanência na escola Do ex-Raimundos Rodolfo até André Gonzales, vocalista da banda Móveis Coloniais de Acaju. Aos 27 anos, André Gonzales acredita que a efervescência artística brasiliense tem muito a ver com buscas de autoconhecimento. “A gente está sempre procurando uma identidade, uma marca, uma novidade.” Filho de uma gaúcha e de um paulista, neto de candangos, ele aponta a diversidade como a maior marca da capital. “Ser de Brasília estabelece essa relação com a diferença. Vivi o tempo todo com referência de vários lugares, seja da família, seja dos amigos, cada um de um canto.” A banda, que desponta no resto do país como algo que os próprios integrantes definem como feijoada búlgara – uma mistureba –, representa exatamente isso. “A Móveis reflete o que é Brasília. Cada um tem uma referência, de vários lugares, mas no final todo mundo é brasiliense. Quem não é daqui adota a cidade, até mais do que as próprias origens.” Abraçar a cidade, seja nascido aqui ou não, é um dos motivos para a Móveis Coloniais de Acaju continuar pensando

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e fazendo música a partir da capital. “Por mais que seja difícil produzir daqui, a gente continua por amor.” Esse amor, no caso de André, nasceu com as brincadeiras na superquadra, nas áreas verdes ou entre os famosos pilotis que caracterizam o modernismo sem limites de Brasília. “Me lembro de, na chuva, espalhar sabão no chão

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e escorregar embaixo do bloco, ou ir ao parque andar de quadriciclo...” Mesmo gostando muito de viver em Brasília, o músico reclama do alto custo de vida. “Falta muita coisa e, ao mesmo tempo, o serviço público eleva os preços.” Os aluguéis, por exemplo, são os mais caros do país. Enquanto no resto do Brasil se gastam em média 7,3% da


3 PAiSAGeM nAtURAL luciana ribeiro e Fonseca lembra da aridez natural que caracterizava a brasília de sua infância 4 ReGiStRo ciViL maria tereza teles Walter é uma das primeiras brasilienses – nasceu no antigo Hospital distrital 5 enGARRAFAMento o sistema viário planejado não foi capaz de prever o aumento de veículos que hoje obstrui a capital

e que faz acontecer.” Ele qualifica o brasiliense como “diferente, mesmo. Mas para um lado bom. Eu gosto”. E não chama de frieza o comportamento local, e, sim, “distâncias”. “O perfil da cidade limita, as pessoas estão dentro dos carros e não nas ruas. Para quem vem de fora, isso tudo, e uma cidade monumental, assustam, se impõem.” pablo valadares/ae

conVÍVio e nAtUReZA

renda com imóvel, em Brasília o aluguel consome 11% do salário. Para André, olhar a cidade de dentro torna difícil enxergar as críticas costumeiras ao povo daqui. Ele prefere se voltar para os grupos de brasilienses que encontra nos lugares do país por onde viaja. “Em todos os lugares existe um pessoal de Brasília que está unido,

A servidora pública Luciana Ribeiro e Fonseca, 36 anos, pondera que uma das mudanças no perfil da capital foi a perda de uma certa hostilidade ambiental. “Quem, quando criança, nunca viu os redemoinhos de poeira se levantando na época da seca? Hoje há mais árvores, mais sombra.” Ela tem razão: a cada ano são plantadas, em média, 50 mil novas árvores no DF. Filha de uma carioca e um maranhense, Luciana adora Brasília, mas não se sente presa à cidade. “Se me mudasse daqui, levaria Brasília no coração. Mas pela própria história dos meus pais, de uma geração que teve coragem de se desgarrar, sempre fui criada sem raízes, com a ideia de que nosso lugar é onde a gente se constrói.” Ela sente a força do isolamento do resto do país, das praias, mas aproveita as opções à volta. “Todo brasiliense vai a Alto Paraíso, Pirenópolis. Aprendi a ser feliz com o que tenho.” Os espaços de lazer da capital ajudam. Não à toa, escolheu morar numa quadra perto do Parque da Cidade, o maior – só no Plano Piloto são seis, mais o Parque Nacional. Aos domingos, desfruta lugares como os clubes à beira do Lago Paranoá, pontos típicos dos brasilienses. “Tenho prazer em aproveitar a qualidade de vida. A organização traz um lado bom, mas aumenta as distâncias e nos priva de um contato humano maior”, pondera. A aproximação física parece se dar com mais naturalidade na Asa

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Norte, onde o João de Santo Cristo do Faroeste caboclo da Legião Urbana “ia pra festa de rock pra se libertar”, onde estão os bares mais frequentados pelos descolados (e com pouca grana) estudantes da Universidade de Brasília (UnB), onde as prostitutas fazem seu trottoir, onde a mistura social idealizada por Lucio Costa tenta vir à tona, onde o planejamento deixou a cidade um pouco mais à vontade. “Há coisas 100% espontâneas em Brasília. E as pessoas de fora devem vir e ver isso. É uma boa surpresa”, garante Luciana. Numa geração bem diferente de Thaís, André e Luciana, mas com sensações parecidas, está a bibliotecária Maria Tereza Teles Walter. Ela nasceu em Brasília em

A paisagem que cerca Brasília tem mudado ao longo das décadas. Hoje, a cada ano, são plantadas 50 mil árvores no DF 1961, no antigo Hospital Distrital (atual Hospital de Base), quando ainda chegavam levas de brasileiros para terminar as obras. Seus pais são típica amostra da confluência brasiliense. Ele, paulista criado em Minas, foi para Goiás trabalhar. Em Goiânia, casou-se e veio com a mulher para Brasília em 1958. Como os jovens de hoje, Tereza participou dos movimentos da UnB. “Mesmo com a autonomia política vindo depois, não crescemos alheios a isso.” Apesar de todas as transformações que viu ao longo dos anos, Tereza nunca pensou em sair. “Conheço várias cidades e sei dos problemas que Brasília adquiriu ao longo do tempo. Mesmo assim, mantenho o que dizia aos 21 anos: para mim, não tem outro lugar.” Raízes, trabalho, amigos, família. Memória, enfim: “Toda minha vida está atrelada à cidade. Me lembro de tudo que aconteceu aqui”. Até hoje, ainda se encanta ao deparar com o magnífico pôr do sol local. Dos amigos da infância, ela era a diferente: uma das poucas a ter a nova capital como local de


coN EspEcial Ti NEN TE

Artigo

Flávio pessoa

EDSON NERY DA FONSECA OS LOUVORES E AS CONTRADIÇÕES o primeiro livro sobre Brasília foi

escrito por Gilberto Freyre. Chamase Brasis, Brasil e Brasília e apareceu exatamente em 1960. Não é muito conhecido porque a primeira edição foi publicada em Lisboa e os livros portugueses são maldistribuídos entre nós; e a edição brasileira saiu oito anos depois por uma editora falida. O título refere-se à diversidade geográfica e cultural brasileira, já estudada por Gilberto Freyre em seu ensaio de 1943 Continente e ilha. Para ele, a importante função de Brasília seria a de integrar ilhas culturais tão diversas como as que constituem o Brasil continental. Mas o nosso sociólogo teve uma enorme decepção ao visitar a então ainda nova capital do Brasil. Embora reconhecendo a sabedoria do Plano Piloto de Lucio Costa e a beleza dos palácios projetados por Oscar Niemeyer, Gilberto Freyre lamentou a ausência de cientistas sociais no planejamento da cidade. Lembro-me de uma reunião da Comissão do Distrito Federal da Câmara dos Deputados na qual Lucio Costa, tomando conhecimento da crítica de Gilberto Freyre e reconhecendo que o planejamento de cidades não devia ser feito somente por urbanistas e arquitetos, disse irritado que, no caso de Brasília, não havia tempo em face do desejo do presidente Juscelino Kubitschek de inaugurá-la ainda em seu governo. Cientistas sociais teriam previsto que o número de 200 mil habitantes estabelecido pelos idealizadores de Brasília era uma grande utopia, pois num país com tantas regiões pobres seria inevitável o grande êxodo sobre uma cidade em construção e destinada a ser a capital da República. Foi o que aconteceu e Brasília é hoje a capital brasileira com o maior número de cidades-satélites, sendo algumas verdadeiras favelas. É realmente doloroso o contraste entre aqueles núcleos infectos e o Plano Piloto, em que residem

“Brasília é hoje a capital brasileira com o maior número de cidades-satélites, sendo algumas verdadeiras favelas” os membros do corpo diplomático e dos três Poderes da República. Uma das “funções básicas” da Universidade de Brasília, como diz seu Plano Orientador, publicado em 1962, era dar à população de Brasília uma perspectiva cultural que a libertasse “do grave risco de fazer-se medíocre e provinciana no cenário urbanístico e arquitetônico mais moderno do mundo”. A recente crise no governo do Distrito Federal me fez lembrar o que Darcy Ribeiro nos dizia em particular: “Temos de impedir Brasília de goianizar-se”. Não havia nessa afirmativa nenhuma ofensa ao Estado de Goiás, que deu ao Brasil uma poeta como Cora Coralina, um romancista e contista como Bernardo Elis (membro da Academia Brasileira de Letras), um artista plástico como Siron Franco, um filólogo como Antônio Sales Filho, um editor como Charles Cosac. Mas foi a escória de Goiás que se derramou sobre Brasília, seu governo e sua Câmara Legislativa. O conceituado psicanalista inglês Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), especialista em psicoses frequentes em cidades novas da periferia de Londres, foi

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convidado para presidir um seminário em Brasília. Realizado no auditório do Palácio do Buriti, o seminário foi inaugurado com uma conferência de Severo Gomes. O então ministro era um desses poucos milionários preocupados com as ciências, as letras e as artes. Leu uma conferência cheia de louvores tanto ao urbanismo e à arquitetura de Brasília como àqueles longos e belos crepúsculos do Planalto Central. E terminou afirmando que numa cidade tão bela não podia haver neuróticos. Quando o microfone chegou às minhas mãos, senti-me no dever de advertir o Dr. Bion a não se impressionar com os elogios do simpático ministro, porque ele tinha de Brasília uma visão que podia ser definida como, parafraseando o título de conhecida peça de Arthur Miller, um “panorama visto da ponte”: no caso, a ponte que liga aquela Ilha de Fantasia, que é a Península dos Ministros, ao Plano Piloto. E sugeri ao Dr. Bion que procurasse conhecer lugares subhumanos como a Ceilândia. Colecionei, em meus 30 anos de Brasília, várias contradições como essa. Concluo com aquela que talvez seja a maior pilhéria da cidade agora cinquentona: a residência do arquiteto Oscar Niemeyer, depois vendida a uma embaixada. Fica na zona de mansões denominada Park Way. O autor dos mais modernos e audaciosos projetos arquitetônicos preferiu construir para morar uma casa de fazenda mineira, cercada de terraços e com a cobertura em quatro águas de telha-vã.


Kléber lima/cb/d.a press

6 LAGo PARAnoÁ artificial, ele foi construído junto com os demais elementos urbanísticos que compõem a cidade e serve ao lazer dos brasilienses

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nascimento na certidão. Ela confia nos mais jovens para dar uma cara à cidade. “Os próximos anos serão determinantes. Essa leva que nasce aqui é que vai mostrar claramente qual a identidade de Brasília.” A maior marca que ela identifica no brasiliense ecoa, de certa maneira, uma das reclamações de quem vê a cidade de fora. “As pessoas acham que Brasília é fria, que as pessoas não se relacionam. É uma meia-verdade. Somos mais introspectivos, mais individuais.” Apesar da impressão de distanciamento pessoal, é o deslumbramento com a paisagem que primeiro capta o visitante. “É tudo muito moderno, diferente de qualquer coisa. Temos marcadamente prédios conhecidos em todo o mundo. Sempre causa estranhamento às pessoas essa cidade erguida com uma filosofia.”

toDoS eM ReDe

Fisicamente, a capital mudou muito. Construíram-se pontes e vias. Se a distância diminuiu, o tempo para chegar aos lugares aumentou. “O transporte público era ruim e continua ruim”, constata Tereza. A abertura de novas pistas e estradas, inclusive, dá a sensação de que a cidade ainda está no meio das obras de construção. A característica

terra vermelha se espalha pelos acostamentos cheios de operários, máquinas e desvios no trânsito. Uma enorme mudança na disposição viária tenta resolver a situação do Distrito Federal, em que os moradores investem em carros, na maioria novos: seis em cada 10 automóveis que circulam na capital

Até hoje, a construção de estradas e pontes mantém um clima de obras, com operários e desvios de trânsito por toda parte têm menos de nove anos. Brasília tem a maior taxa de crescimento da frota, 8,2%, com índice de um veículo para cada 2,3 moradores (terceiro maior do país). Em 2010, a frota de automóveis deve se tornar a quarta maior do país em números absolutos, com cerca de 1,17 milhão de carros. Não à toa, uma brincadeira corrente entre os brasilienses é dizer que são seres humanos não com duas pernas, mas com quatro rodas. O morador da capital também é conectado à rede. O DF tem a maior

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densidade de celulares do país – 1,59 para cada habitante; e a maior proporção de casas com computadores conectados à internet – 31,%. Mesmo fora de casa, o brasiliense é o que mais acessa a rede (41,1% da população). Embora seja uma cidade com altos níveis de saneamento, abastecimento de água, atendimento hospitalar (só públicos, são 20 hospitais), não está livre das desigualdades trazidas pelas levas de migração das duas últimas décadas. Em volta do centro, lugares como Estrutural, Varjão, Santa Maria e Itapoã receberam brasileiros em busca de oportunidade. “A qualidade de vida não se estendeu a todo o DF”, lamenta Luciana Ribeiro. O descontentamento da população com os governos que, historicamente, vêm promovendo essa superocupação não tem idade. Tereza Teles acredita que “a falta de limites” revela um desamor pela cidade. E, se todos compartilham de uma tristeza em ver a situação política delicada que a capital vive hoje, também dividem uma esperança de que a exposição cada vez maior da corrupção traga algo de positivo. Para Thaís Barreto, o imbróglio político e as reações da população provam que “nós votamos mal, mas somos bons cidadãos. Vamos aprender”.


coN EspEcial Ti NEN TE marcel gautHerot/ acervo instituto moreira salles

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NORDESTINOS Personagens de uma cidade ainda em construção Brasília não é mais a cidade que tantos

candangos viram no nascedouro. É uma senhora com as marcas do tempo e dos percalços por que passou, nas palavras do cineasta Vladimir Carvalho, paraibano de Itabaiana, 75 anos, 40 de capital. Essa senhora “é recatada; não se dá a ver e não se entrega da primeira vez”. Esse decoro a que se refere o documentarista é a explicação, diz, para o estranhamento causado em muitos visitantes, especialmente “nos que passam dois dias no hotel, só veem a imensidão da Esplanada da janela” e

se assustam com a falta de esquinas. “Quem precisa de esquina? Esquina a gente inventa”, brinca o artista plástico Francisco Galeno, piauiense de uma das ilhas do Parnaíba, 53 anos, 44 de capital. Quando chegou aqui, a saudade do Nordeste foi tanta, que o empresário Severino Xavier, pernambucano de São Joaquim do Monte, 65 anos, 49 de capital, não cogitava pensar em esquinas. Andava pelo cerrado das entrequadras olhando para o chão. “Tentava achar dinheiro perdido para voltar para casa. Sentia muito frio aqui,

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eu que vim da região de Caruaru.” Nunca mais saiu de Brasília. O distanciamento, ou frieza, como muitos não brasilienses gostam de chamar, não impediu que a cidade fosse conquistada, metafórica e literalmente, por Carvalho, Galeno, Severino e outros nordestinos que desembarcaram no Centro-Oeste, nos primeiros anos da cidade. Vladimir chegou em 1969, para exibir o curta A bolandeira no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. No Cine Brasília, reencontrou o amigo Fernando Duarte. Além de prêmio no festival, recebeu convite: criar, na Universidade de Brasília, um núcleo de documentário. Tocado pelo pedido, veio para ficar dois meses. Depois de duas semanas, soube que os estudantes queriam ouvi-lo. “Não sou professor”, replicou. Contou suas experiências com cinema por 23 anos na UnB. O primeiro contato de Vladimir com a capital foi um deslumbramento com o


Fotos: ricardo labastier

7 eM oBRAS uma das cúpulas do congresso nacional, quando ainda estava exposta a malha de ferro que estrutura a edificação 8 cHeF severino Xavier venceu na cidade. Hoje é o dono do requintado la chaumière 9 ARtiStA PLÁStico galeno expressa em suas obras imagens da infância e da modernidade 8

Para Galeno, “Brasília é uma composição. A geometria e a luminosidade da cidade influenciam meu trabalho”

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espetáculo arquitetônico, mas que só o ganhou aos poucos. E definitivamente. “Amo a cidade e sinto que o sentimento é recíproco. Me considero brasiliense, mas sou adotado.” A sensação de pertencimento influenciou a obra posterior do cineasta. “Ninguém fica impunemente por 40 anos no mesmo lugar.” A força de Brasília também se revela no trabalho de Galeno. Veio aos oito anos com a mãe e os cinco irmãos, todos trazidos pelo pai, que chegara em 1961 para trabalhar, sucessivamente, como servente, carpinteiro e marceneiro. “Muitos candangos não trouxeram a família. Meu pai nos deu essa sorte.” O primeiro cenário de Galeno era parecido com a terra natal. Morou em acampamento à beira do Lago Paranoá, onde “brincava, pescava, andava de canoa, caçava passarinhos”. Depois a família instalou-se em Brazlândia, uma das cidades-satélites que abrigaram

de franceses, Roger e Lucette Noël, para trabalhar no bar dos dois e morar na sobreloja. Em 1966, o bar virou bistrô, coisa chique: La Chaumière. Trabalhou como ajudante de cozinha, garçom, até em 1973 receber a oferta de comprar o restaurante por preço abaixo do mercado. Ou o local ficava com Severino ou seria fechado. Se continuasse aberto, não deveria crescer ou mudar o cardápio. Ele topou. Trouxe a futura mulher, Maria das Graças, para aprender a culinária francesa. Filha de mineiros, ela comanda ao lado do marido a cozinha do restaurante até hoje. Os pratos acrescentados foram em homenagem à filha Danielle e à neta Gabrielle. E, claro, o famoso Filé à Severin, um dos mais pedidos da casa. O autor do melhor filé mignon da cidade nunca tinha comido esta carne até trabalhar no restaurante. Hoje, o Chaumière é um dos endereços conceituados de Brasília.

operários da construção. Mesmo fora do centro, Galeno se sente tão morador da capital como quem vive no Plano Piloto. “Brasília é uma composição. A geometria e a luminosidade influenciam meu trabalho. É uma junção do meu passado, do interior, e da modernidade que é o signo sob o qual Brasília nasceu”, explica. “O que eu faço representa justamente a mistura de tudo.” Quadros, objetos e esculturas são um eterno retorno a uma infância “fantástica”, vivida em duas Macondos, de onde “desenterra seus brinquedos” para produzir obras carregadas de pipas, peões, estandartes, flores e inocência.

BiStRÔ De SeVeRino

Muitos dos monumentos icônicos de Brasília já estavam de pé quando Severino Xavier chegou à cidade em 1961, a convite de um dos irmãos. Tinha 16 anos e foi recebido no ambiente acolhedor daqueles tempos por um casal

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Por ele passaram Tancredo Neves, que gostava de prato que não estava no menu, Ulisses Guimarães, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso – disse em entrevistas que preferia a comida do pernambucano à do Palácio da Alvorada. “Quem teve oportunidade e acreditou se deu bem. Você tinha de acreditar”, relembra Severino. Era um tempo em que poucos tinham coragem de investir numa cidade ainda rascunhada, com esboços de prédios e quadras residenciais inexistentes. Depois de quase meio século, Severino se sente vitorioso. E brasiliense. “Sou praticamente filho de Brasília. Ao chegar, eram sotaques diferentes.Meus filhos já são diferentes de mim. Brasília é essa união.” KariNa G. barbosa E sÉrGio DE sÁ a foto de abertura desta matéria é uma das imagens que compõem a mostra As construções de Brasília, em exibição no instituto moreira salles, até o final de julho.


coN EspEcial Ti NEN TE Fotos: ricardo labastier

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MONUMENTOS Desenhados nos anos 1960, e só concluídos hoje texto Sara Correia

Há 50 anos, desde que foi fundada, Brasília espera a conclusão do Complexo Cultural da República, espaço localizado no Eixo Monumental e próximo à Esplanada dos Ministérios, idealizado pelo engenheiro Lucio Costa no final da década de 1950 para integrar vários equipamentos culturais da então nova capital. De um lado, no Setor Cultural

Niemeyer. Para que o Complexo Cultural da República seja concluído, deverão ser construídos, também, o Centro Musical, o Conjunto Multiplex de Cinemas e Lojas, e o Cinema 180º, no lado Norte. Ainda sem estrutura institucional definida, tanto o Museu quanto a Biblioteca aguardam recursos do Governo do Distrito Federal (GDF) para concluírem suas instalações e Norte, o Teatro Nacional, obra do arquiteto adaptações para o funcionamento Oscar Niemeyer, construído em várias adequado de equipamentos culturais etapas (início em 1960 e conclusão em que são. Construídos um de frente para 1981), já é um dos cartões-postais da o outro, eles integram uma grande cidade. Mas somente em 2006, do lado praça de concreto – onde o sol castiga oposto, no Setor Cultural Sul, foram e a luminosidade cega – e oferecem inaugurados o Museu Nacional e a à população um lugar para prestigiar Biblioteca Nacional de Brasília, obras que mostras artísticas visuais brasileiras e também levam a assinatura de Oscar internacionais, e um espaço moderno,

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o Museu nacional e a Biblioteca nacional de Brasília ainda não têm estrutura institucional definida adequado para estudos, leituras e pesquisas. Os dois monumentos, que outrora fizeram com que os filhos da capital estranhassem a ousadia de suas construções, hoje são pontos turísticos que embelezam o centro da cidade, aprovados pelos brasilienses. Localizados próximos à Rodoviária do Plano Piloto, o Museu Nacional e a Biblioteca Nacional de Brasília têm alcançado resultados satisfatórios com relação ao número de pessoas que os frequentam. O primeiro responde à exigência internacional em capacidade para abrigar mostras internacionais e renomadas. Já a Biblioteca, que disponibiliza acesso à internet de alta velocidade por meio de rede sem fio pelos seus quatro andares, oferece aos usuários a possibilidade de acesso a bibliotecas digitais do mundo inteiro. Isso, com a vista mais privilegiada da cidade – fica voltada para o Museu que tem, ao fundo, a Esplanada dos Ministérios.

SeM VeRBA PRÓPRiA

10-11 eSPAço AMPLo projeto de niemeyer, o museu nacional é gerido por funcionário cedido pela unb

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Desde que o Museu Nacional foi fundado, em dezembro de 2006, a direção do local vem trabalhando pelo desenvolvimento do espaço. A mostra inaugural Niemeyer por Niemeyer, que ficou mais de três meses em cartaz, atraiu um total de 33 mil visitantes. Se comparados os públicos dessa e de mostras mais recentes, como a Utopia da modernidade: De Brasília à Tropicália, que foi visitada por 74 mil pessoas em menos de dois meses, fica evidente o crescimento. Da fundação até agora, a instituição já recebeu mais de dois milhões de visitantes. “Percebemos que é importante inovar constantemente, para que o público sinta que o museu possui programação de qualidade e diversificação. Esse aumento é surpreendente, se você considerar que Brasília não tinha um equipamento como esse”, pontua Wagner Barja, diretor do Museu Nacional e responsável pela curadoria local.


coN EspEcial Ti NEN TE

Artigo

casa de lúcio costa

gRACE DE FREITAS DOS “50 ANOS EM 5” AOS OUTROS 5O na discussão sobre o plano construtivo de Brasília, não podemos passar ao largo de um programa mais amplo da modernidade no qual ele se insere: o das utopias das vanguardas do século 20. Essas utopias, mergulhadas no projeto de emancipação social, da mobilização, da educação das massas – a artística, inclusive –, na crença no progresso da ciência, no poder transformador da arte, traduziam a convicção na revolução socialista. Os movimentos se propagaram a partir de ideias já contidas no De Stijl e, principalmente, no Cubofuturismo, no construtivismo russo, e nos projetos desenvolvidos nos centros de arte e design alemães da Bauhaus e de Ulm. No continente sul-americano, Argentina, Chile, Venezuela e Brasil avançaram suas questões, excluindo o simbolismo, dramatismo ou ilusionismo e assumindo a linguagem geométrica para integrar forma e conteúdo ao raciocínio lógico e à percepção visual. Não se trata aqui de traçar uma linha evolucionista, mas de verificar afinidades ideológicas e artísticas que cada um desses movimentos, desde as vanguardas russas, em suas especificidades, deixaram como legado. A imensidão do planalto central, escolhido para erguer Brasília, não era um ermo. Inscrições em pedras, cavernas e outros vestígios do humano, demonstram que, há milênios, já havia vida ali. Depois, bandeirantes, sesmarias, tropas, povoados, tribos, expedições cientificas… A criação de Brasília significou a inserção do moderno no antigo, de resto, como em todo o Brasil, onde a invenção de novos signos tanto liberou quanto inquietou. Lucio Costa – urbanista capaz de pensar a sociedade como um todo – e Oscar Niemeyer, arquiteto-artista, puseram em prática, pela vivência e experiência próprias, o projeto

o projeto construtivo de Brasília foi realizado a partir dos postulados das utopias artísticas do início do século 20 construtivista para revolucionar, pela linguagem da arte – conjugada por invenção, ordem, coerência e beleza –, a sociedade. Estetizar a vida e permitir uma maior penetração da arte no corpo social. Entretanto, um projeto impregnado dessa marca não depende do urbanismo, da arquitetura ou arte. Brasília viveu apenas seus quatro primeiros anos na democracia. A utopia tem uma profunda ancoragem nas condições sócio-históricas e seu discurso emancipador. A ideia de

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dissolver a arte na vida e organizar um modo de vida nova não se sustentaria sem que um conjunto de outros fatores também funcionasse. Hoje, relegar a noção de utopia entre as noções desvalorizadas é uma tentação, pois é fácil se unir aos coveiros da modernidade artística e das vanguardas exaltadas... Não é certeza que o passado se deixe jogar, com tanta desenvoltura, aos rebotalhos da história e nem fazer crer que a modernidade tenha morrido pelo fracasso e pelas realizações abortadas. Livrar a utopia de sua degradação, hoje, significa adotar uma postura para repensar essa modernidade não mais em sua incompletude ou derrocada, mas como futuro não finalizado. A utopia guarda uma promessa ainda não formulada. Quem sabe se essa não seria a tarefa nossa, brasileiros e brasilienses, para os próximos 50 anos?


ricardo labastier

12 cRoqUiS detalhe do projeto apresentado por lúcio costa para a futura capital, com o traçado do plano piloto em forma de avião 13 PAPeL SociAL a biblioteca nacional de brasília realiza ações de inclusão digital da população brasiliense

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Sem orçamento próprio, o Museu Nacional comemora uma emenda parlamentar aprovada recentemente na Câmara dos Deputados, que vai destinar R$ 1 milhão para investir em melhorias na reserva técnica e na constituição de um prêmio de arte contemporânea. Como ainda não está institucionalizado – embora uma comissão intergovernamental esteja desenvolvendo um projeto de gestão adequado –, a verba corre o risco de ficar parada, tal qual ocorreu com a Biblioteca Nacional, que já conta com R$ 2 milhões e R$ 200 mil dependendo de licitação para aprovação de obras no sistema de segurança e climatização das salas de conservação dos livros. “É um problema dos dirigentes, que não têm visão de economia da cultura e nem de cultura”, critica Wagner Barja, que é funcionário da Universidade de Brasília (UnB), cedido para dirigir a instituição.

nAScente e Poente

Criada para ser um braço da Biblioteca Nacional do Brasil (RJ), a Biblioteca Nacional de Brasília é bastante moderna em termos de espaços físicos e no que diz respeito à tecnologia e às ações de

inclusão digital da população brasiliense. Construída pelo GDF e concluída em dezembro de 2006, só foi aberta ao público em dezembro de 2008, devido a reformas e adaptações que precisaram ser feitas no prédio, pelo seu posicionamento voltado para o nascente e o poente, que comprometia tanto as instalações dos acervos literários quanto os espaços destinados ao público. “O projeto original do Niemeyer foi feito sem levar em consideração algumas regras fundamentais para a concepção de uma biblioteca. Durante esses dois anos, o prédio passou por reparos e adaptações para que tanto as obras quanto o público não fossem prejudicados por conta da constante exposição ao sol, além de adaptações no sistema de segurança”, explica Antônio Miranda, diretor da Biblioteca Nacional, licenciado da UnB. Na sala com vista privilegiada da direção da Biblioteca, Antônio Miranda observa a praça que divide com o Museu e comenta a grandiosidade do projeto de Oscar Niemeyer, destacando que o arquiteto deu ao Brasil uma feição genuína, fazendo com que o país

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“marcasse presença em todo o mundo”. “Essas falhas de construção não são culpa de Niemeyer, que criou um monumento que não só representa a modernidade da arquitetura brasileira, mas se consagra como uma biblioteca de altíssimo padrão, colocando o Brasil em destaque, como um país moderno e original. Essas são falhas na construção, mas estamos atentos às modificações e adaptações”, pondera Miranda, sentado em uma cadeira doada pela poetisa Marly de Oliveira, esposa do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, à Biblioteca Nacional de Brasília, junto com oito mil livros que estão em fase de catalogação. Wagner Barja também enfrenta os mesmos problemas de concepção do projeto arquitetônico assinado por Niemeyer. O Museu apresenta dificuldades que comprometem a reserva técnica, por exemplo. “Eu costumo dizer que fiquei mais inteligente depois que vim pra cá, pois aqui temos que pensar muito para solucionar os problemas, tanto de programação quanto de administração do Museu”, afirma o diretor.


PEDRo MElo

CON Ti NEN TE#44

Peleja

O uso do merchandising compromete a qualidade artística de uma obra? Cada vez mais filmes, novelas, espetáculos e exposições são “invadidos” pela propaganda. A publicitária Juliana Lisboa defende que os produtos fazem parte do nosso cotidiano e vê-los numa obra, “mesmo com propósito comercial”, não compromete sua qualidade. A professora de sociologia Maria Eduarda Rocha acredita que a inserção de produtos comerciais em obras artísticas aponta para uma decadência da própria arte

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Maria Eduarda Rocha

imagine você, em 1880, em um café

da França. As garçonetes passam, os homens andam de casacas, o céu está estrelado. Van Gogh transforma esse cenário em um de seus mais famosos quadros. Agora, você está em 1960, em uma lanchonete dos Estados Unidos. O balconista serve uma Coca-Cola. Andy Warhol ilustra a famosa garraDiretora de finha em um de seus grafismos, numa criação da agência Ampla obra da pop art. Assim como os cafés estavam na vida dos pintores clássicos, os artigos de consumo estão na dos contemporâneos. E o que são artistas senão grandes cronistas sociais, retratando o seu cotidiano? Mas antes que alguém me metralhe em defesa do purismo artístico, eu respondo: sim, existe diferença entre um produto que faz parte da obra e outro que a distorce em causa própria. E essa diferença é a mesma do remédio para o veneno: a dosagem. Um produto, mesmo com propósito comercial, não compromete a qualidade artística da obra, desde que esse seja um coadjuvante e não o foco dela. Um exemplo é o filme O náufrago, estrelado por Tom Hanks. Gosto pessoal à parte, o filme, que é um marco da presença do merchandising no cinema, teve metade do orçamento desembolsado pela Fedex. Mas note que ele conta a história de um homem ansioso, perfeccionista e imediatista que se vê sozinho em uma ilha, onde o tempo passa com uma lentidão bovina. Ainda nesse filme, outra marca dá nome à bola que se tornaria o companheiro de Hanks. Um nome que, por sinal, foi repetido à exaustão, mas muito bem inserido na narrativa da obra. O mesmo vale para a música. A Coca-Cola, ela outra vez, aparece em uma pá de letras porque é ícone de uma geração. Nos anos 1960, com Caetano Veloso, ela ilustra a despreocupação do jovem da época em Alegria, alegria. Já nos anos 1980, com o Legião Urbana, descreve o consumismo de forte influência americana entre os jovens brasileiros pós-ditadura. Ver produtos contextualizados em obras faz parte da cultura de massa. Os cartazes de art nouveau, e seus biscoitos champanhe, não deixam de ser arte. Os grafismos de Warhol e sua sopa Campbell’s, não deixam de ser arte. A qualidade da obra precisa ser analisada como um todo e a inserção de um produto em um filme, uma música ou um quadro não necessariamente compromete a sua genialidade. Pode, inclusive, ajudar a viabilizá-la.

A publicidade não compromete a qualidade artística, desde que seja um coadjuvante e não o foco da obra

DivUlgAção

DivUlgAção

Juliana Lisboa

o merchandising é o ponto alto de

um longo processo de subordinação da cultura à lógica da mercadoria. De início, essa junção entre mercado e cultura teve um efeito libertador, porque abriu para os artistas a possibilidade de viverem de sua arte sem a dependência direta da Igreja e da aristocracia. Em vez do mecenas, Professora da passavam a ser sustentados por um Pós-graduação em sociologia da UFPE público impessoal e anônimo que não fazia pesar sobre eles nenhuma forma de censura direta. Essa condição mais independente do artista explica muito a concepção moderna da arte como um espaço para a manifestação de uma subjetividade liberada de outras exigências imediatas. Em um mundo burocratizado, em que o cotidiano ameaça se tornar a busca instrumental pela sobrevivência, a arte promete um lugar para a autoexpressão, e assim se define justamente pela distância que consegue estabelecer diante de outras finalidades econômicas, políticas, religiosas etc. No século 20, entretanto, os efeitos democratizadores do mercado sobre a produção cultural começaram a ser limitados pela formação de uma indústria cultural que concentra nas mãos das grandes empresas capitalistas a produção e a difusão da cultura. Nesse cenário, a finalidade econômica tende a prevalecer e ditar a busca pelo máximo público, o que impõe limites à experimentação. Alguma inovação precisa existir, mas geralmente se dá a partir da reelaboração de formatos, narrativas e estilos consagrados pelo grande público. Isso já vale para a música, o cinema, a televisão e o mercado editorial em suas vertentes mais comerciais. Entre esses, a televisão é particularmente moldada por uma finalidade econômica porque a necessidade de inserção de anúncios publicitários determinou a sua narrativa em fragmentos, ainda que, inicialmente, tenha preservado a distinção entre programa e intervalo comercial. O merchandising vai mais longe porque elimina essa distinção e obriga o produto a incorporar, no interior de sua própria forma, uma mensagem de caráter publicitário. Se por arte entendermos a livre expressão estética das experiências dos sujeitos em um mundo sem certezas, o merchandising é a festiva celebração da sua decadência.

os efeitos democratizadores do mercado sobre a arte começaram a ser limitados pela indústria cultural

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imagem de arquivo manipulada por pedro melo

con ti nen te

História

REVISIONISMO Enfoque na ideia de um Brasil empreendedor Noção de que a economia do período colonial brasileiro era predominantemente agrária-exportadora e latifundiária é contestada por historiadores texto Renato Lima

c co on nt tiin neen nt tee a abbr riill 220 0110 0 || 440 1

Uma história “diferente” do Brasil está surgindo a partir de recentes estudos e novas interpretações: um país que não traz como principal marca nem o latifúndio nem o trabalho escravo. Essa nova visão é defendida por Jorge Caldeira no recém-lançado História do Brasil com empreendedores (Editora Mameluco) O leitor deve se lembrar da caracterização do Brasil colônia como vítima do latifúndio e do modelo agrário-exportador, que visava apenas exportar riquezas para Portugal, resultando em um mercado interno não desenvolvido. Essa visão, tão bem-articulada por Caio Prado Júnior, é atacada de frente por Caldeira, que também é autor de Mauá, um empresário do império (Companhia das Letras). Para ele, a historiografia tradicional errou em não olhar para a enorme classe de homens livres no Brasil colônia – praticamente só se via o senhor de escravo e suas posses –, bem como em achar que não se desenvolvia um mercado interno no Brasil. Mas os números mostram que, no início do século 19, mais de dois


imagem de arquivo manipulada por pedro melo

con ti nen te

História

REVISIONISMO Enfoque na ideia de um Brasil empreendedor Noção de que a economia do período colonial brasileiro era predominantemente agrária-exportadora e latifundiária é contestada por historiadores texto Renato Lima

c co on nt tiin neen nt tee a abbr riill 220 0110 0 || 440 1

Uma história “diferente” do Brasil está surgindo a partir de recentes estudos e novas interpretações: um país que não traz como principal marca nem o latifúndio nem o trabalho escravo. Essa nova visão é defendida por Jorge Caldeira no recém-lançado História do Brasil com empreendedores (Editora Mameluco) O leitor deve se lembrar da caracterização do Brasil colônia como vítima do latifúndio e do modelo agrário-exportador, que visava apenas exportar riquezas para Portugal, resultando em um mercado interno não desenvolvido. Essa visão, tão bem-articulada por Caio Prado Júnior, é atacada de frente por Caldeira, que também é autor de Mauá, um empresário do império (Companhia das Letras). Para ele, a historiografia tradicional errou em não olhar para a enorme classe de homens livres no Brasil colônia – praticamente só se via o senhor de escravo e suas posses –, bem como em achar que não se desenvolvia um mercado interno no Brasil. Mas os números mostram que, no início do século 19, mais de dois


terços da população eram de homens livres – dos quais 91% não possuíam escravos – e a economia brasileira superava a de Portugal. “Quando se analisa o mercado interno brasileiro pela ótica do latifúndio, incorre-se no erro da subavaliação. O grosso da produção econômica da colônia brasileira era feito por produtores independentes e pequenos proprietários”, defendeu Caldeira em entrevista à Continente. Mas, de onde veio a categoria latifúndio, cara à análise do Brasil e especificamente à obra de Caio Prado Júnior, que introduziu a metodologia marxista na análise da história brasileira? Para Caldeira, a interpretação histórica via latifúndio teria origem não em Marx, mas no pensamento corporativista português, que teria chegado a Caio Prado pela obra de Oliveira Vianna. Caio Prado foi aluno de Oliveira Vianna e Caldeira mostra como passagens de Evolução do povo brasileiro, de Vianna, publicado em 1923, tem grandes semelhanças com Evolução política do Brasil, de Caio Prado,

publicado 10 anos depois. Para chegar a essa conclusão, Caldeira cotejou a obra dos dois, e também revisou a de Marx. O historiador utiliza a metodologia marxista para provar o argumento de que é possível constatar o desenvolvimento do mercado interno, desde que se tire o foco do latifúndio e se introduza a figura do empreendedor livre. O autor embasa sua tese em citações de diversos pesquisadores que trabalharam sobre o mercado econômico interno, incluindo historiadores, antropólogos e sociólogos, brasileiros e brasilianistas. Isso abrange pesquisas sobre plantadores de cana na Bahia, produtores livres em Minas Gerais, comerciantes de escravos no Rio de Janeiro, comerciantes de produtos para o sertão, entre vários outros estudos que evidenciam acumulação de riqueza e trabalho livre. Para Caldeira, o Brasil que surge das pesquisas recentes não se encaixa no modelo anterior. Até mesmo a economia açucareira, um dos símbolos da concentração de

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renda e de poder político, emerge mais dispersa e complexa em trabalhos empíricos recentes. Caldeira cita o estudo de Rae Jean Dell Flory sobre a economia colonial da Bahia entre 1680-1725. A autora foi atrás das transações registradas nos cartórios da Bahia nesse período, como compra e venda de imóveis, cobrança de dívida e registro de empresas. À medida que os nomes apareciam, Flory compôs um banco de dados com a biografia de quem era citado. No final, chegou a dois mil nomes, a um quadro representativo do ambiente de negócios e aos figurões da economia na época, bem como com quem eles se casavam. Descobre que a norma eram pequenas propriedades de plantação de cana, numa relação complementar ao engenho, que detinha o equipamento industrial para transformação da cana em açúcar. Nesse estudo, os registros de transferência de propriedade mostram mais divisões de terra do que concentração. Já um estudo do próprio Caldeira, feito no livro O banqueiro do sertão (Mameluco), traz um importante


fotos: divulgaÇÃo

exemplo de criação de riqueza vinculada ao mercado interno. Na capitania de São Paulo, no início do século 17, Guilherme Pompeu de Almeida começa a vida arrendando uma forja. Aprende o ofício por conta própria e assim transforma ferro em anzóis e facas para troca com nativos. Após uma década, conseguiu comprar as oficinas que então arrendava e começou a diversificar os negócios e a emprestar dinheiro. Enriqueceu com as incursões no sertão. Não teve a agricultura como principal negócio, não foi político com cargo eletivo, ou exportador, mas morreu muito rico. E tudo começou graças a uma inovação técnica na sua produção de ferro e a bons investimentos que miravam o interior do Brasil.

noVoS MÉtoDoS

De certa forma, algumas mudanças na interpretação da história do Brasil eram inevitáveis. A digitalização permite o acesso a um maior número de fontes e numa velocidade fantástica. Além disso, o padrão de pesquisa universitário, com citações

con ti nen te

História e uso mais rigoroso de metodologias, torna impossível ignorar alguns fatos. Essa realidade é bem diferente da década de 1930, tempo dos grandes ensaios interpretativos da história brasileira feitos por Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. “O que estou dizendo é que milhões de pessoas aprenderam uma coisa na escola e agora um grupo de historiadores vem discordar. Isso não é uma coisa simples. Você não vai encontrar uma reavaliação do passado francês dizendo que a Idade Média francesa teve uma economia muito maior do que a gente supunha”, compara. Para ele, a conclusão é que a história brasileira ainda é malconhecida. E que atribuir o mau desempenho econômico do Brasil ao passado colonial talvez seja um falso problema. De fato, o livro termina por mostrar

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péssimas decisões econômicas do Brasil Império já independente. Para o autor, o século 19 foi o século do atraso, especialmente quando se leva em conta que a economia mundial nos centros dinâmicos deixara o mercantilismo e acelerava com o capitalismo. No entanto, não é apenas o Brasil que sofre uma importante revisão histórica. A história da América Espanhola vem sendo reavaliada intensamente nos últimos anos, e o sentido de império sendo reconstruído. Em vez de uma estrutura hegemônica impositiva, surge uma estrutura que se construiu através de relações negociadas, resistências locais e adaptações inevitáveis. Evidências coletadas nos arquivos da Inquisição, testamentos registrados em cartórios, petições ao reino, entre outros documentos primários, estão sendo trabalhados atualmente e mostram as dificuldades dos centros imperiais em

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impor valores e comportamentos. Isso é mostrado em trabalhos recentes de Stuart B. Schwartz sobre tolerância religiosa, Kathryn Burns sobre o sistema de crédito desenvolvido por freiras no Peru, e Cynthia E. Milton sobre os vários sentidos da pobreza no Equador do século 18, para ficar em poucos exemplos.

o oLHAR De FoRA

Parte dessa revisão da história brasileira vem de fora. Os chamados brasilianistas – estrangeiros que se dedicaram a estudar o Brasil – trouxeram tanto um diferente olhar sobre o país quanto diferentes metodologias. “Alguns brasilianistas faziam perguntas sobre o Brasil para um público americano – especialmente no que se refere à questão da escravidão –, bem como traziam diferentes metodologias de trabalho”, avalia o professor emérito de História, da Universidade de Illinois, Joseph Love.


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joRge cALDeiRA

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bRASiLiAniStA

autor de História do Brasil com empreendedores defende uma nova visão sobre a economia do período colonial brasileiro o historiador Joseph love é diretor do instituto lemann para estudos Brasileiros na universidade de illinois

também de 1889 a 1937. Tratou-se de um esforço em conjunto de estudo comparado de três estados brasileiros para o mesmo período e com uso extensivo de dados empíricos. Diferentes técnicas de pesquisa e utilização de econometria para estudos de história econômica foram diferenciais que se difundiram mais no Brasil, através do contato com os pesquisadores americanos. “Técnicas quantitativas, por exemplo, já eram utilizadas em economia, mas não muito em outras ciências sociais como sociologia e ciência política, no Brasil. Se não eram metodologias mais avançadas, pelo menos eram diferentes, já que o Brasil na época era muito influenciado pelos franceses”, lembra o professor emérito Joseph Love. A contribuição de alguns estudos foi tão relevante, que justificou um livro sobre o tema, O Brasil dos brasilianistas:

Diferentes técnicas de pesquisa para análise da história econômica foram aprendidas através do contato com norte-americanos Love chegou ao Brasil na década de 1960, início do período de regime militar. “Era um bom e mau momento para um americano ir fazer pesquisa no Brasil. Os acadêmicos brasileiros eram receptivos, mas havia a repressão política e uma certa desconfiança em relação aos americanos”, recorda. Certa vez, Love preparou um jantar em sua casa para Boris Fausto, Octavio Ianni e Emília Viotti da Costa, mas eles não chegaram. “Depois eu descobri que estavam presos.” Caio Prado Júnior, que ele conheceu em 1969, também foi preso pouco tempo depois. “Existia uma sensação incômoda. Os acadêmicos queriam se aproximar para denunciar o que estava acontecendo na ditadura, mas existia um clima intelectual mais amplo que desconfiava de um americano querendo entender o Brasil.” Entretanto, justamente por ser uma pessoa de fora, algumas portas

eram abertas. Era possível pesquisar, por exemplo, no Ministério da Guerra, sem medo de ser perseguido. Ou ter acesso a um arquivo em que outros não estavam trabalhando. “Alzira Vargas estava descontente com a forma de tratamento que o governo dispensava à imagem do seu pai. Então ela ofereceu a mim e Robert Levine (que foi professor na Universidade de Miami) o arquivo de Vargas para pesquisar. Isso foi antes do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil). Foi uma oportunidade especial que nenhum brasileiro teve na época”, diz. Alguns anos depois, Robert Levine escreveu um livro sobre Pernambuco, A velha usina: Pernambuco na federação brasileira – 1889-1937 e Love publicou A locomotiva, sobre São Paulo no mesmo período. Um outro acadêmico americano, John Wirth, publicou O fiel da balança, abordando Minas Gerais

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Um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000, organizado por Paulo Roberto Almeida, Marshall Eakin e Rubens Antônio Barbosa, e lançado em 2002. Entre outros nomes de destaque na linhagem dos brasilianistas estão Thomas Skidmore, Kenneth Maxwell, Werner Baer e o já mencionado Stuart B. Schwartz. Atualmente, Love é diretor do recém-fundado Instituto Lemann para Estudos Brasileiros na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign. Para ele, a criação das bolsas-sanduíche deve contribuir na qualidade das pesquisas sobre história no Brasil. “É uma excelente forma de estudantes treinados no Brasil adicionarem uma dimensão internacional às suas pesquisas sem ter que ficar matriculados por um curso inteiro fora. Acredito que a internacionalização vai continuar.” E, talvez, com ela, novos olhares sobre a história nacional.


con ti nen te

religiosidade

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CARIRI Os Ave de Jesus vivem com fé e em nome de Deus Os poucos remanescentes do grupo de penitentes do interior do Ceará carregam a tradição messiânica do Nordeste brasileiro, praticam o total desapego e pregam a chegada do fim do mundo texto e fotos Augusto Pessoa

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con religiosidade ti nen te

Para entrar no grupo, o pretendente deve passar pelo “batismo na cruz”, abandonando o seu nome original e renascendo como mais um José ou mais uma Maria ave de Jesus

caminhando pelas estradas

empoeiradas do Cariri cearense, um longínquo e fértil território aos pés da imponente Chapada do Araripe, o homem de barba e cabelos longos, vestido de azul e branco, mantém o olhar fixo no horizonte, enquanto percorre os 90 quilômetros que o levarão até a sua casa de taipa, na cidade de Juazeiro do Norte. Com uma aparência que lembra os faquires hindus, o peregrino faz parte de uma seita única no mundo. Renegando o nome de batismo e assumindo o título de José Ave de Jesus, ele é um dos poucos remanescentes de uma aventura em busca da purificação iniciada na década de 1970 e que hoje se encaminha à extinção. Abrindo mão dos confortos da vida moderna em favor de uma rígida rotina de privações, José representa uma tradição messiânica que remonta à devoção ao Padre Cícero e prega, há quase quatro décadas e com tenaz convicção, a chegada do fim dos tempos. Para os Ave de Jesus, todas as semanas são santas. O grupo já chegou a ter mais de 50 adeptos, entre crianças, jovens e adultos. Hoje, os que resistiram à extrema disciplina calculam que não passam de 10, todos aparentam estar acima dos 60 anos. “Não

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sabemos quantos somos. Homens eu sei que só tem sete”, contabiliza o mais antigo dos penitentes na sala de barro e madeira da pequena casa onde mora com a sua companheira. “Tenho oito filhos. Nenhum aguentou”, diz José. Os Ave de Jesus não pegam em dinheiro em hipótese alguma e vivem apenas da caridade pública.

ritUal de iniciaÇÃo

Conhecida como a “Terra da Mãe de Deus”, Juazeiro do Norte é um território propício ao surgimento de grupos messiânicos como o desses penitentes. Para ser um deles, o iniciante deve passar por um ritual chamado de “batismo na cruz”. O candidato à salvação tem todos os seus documentos queimados, abandona o nome original e renasce como mais um José. As mulheres, passam a ser Maria Ave de Jesus. Dali em diante, viverão apenas para Deus. O fundador da seita, falecido em 2001, foi mais um dos milhares de romeiros que desde o início do século passado afluem à Terra Prometida nordestina atraídos pela fama do “Padim Ciço”. Ao chegar ao local, ele teria se encontrado com uma penitente chamada Maria Ângela do Horto, num contato


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con religiosidade ti nen te

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que mais tarde ele recontaria como tendo sido com a própria Nossa Senhora. Ela teria orientado José e sua esposa a mudarem de nome e darem início à comunidade. Reunidos em casas idênticas, no afastado bairro Tiradentes, os Ave de Jesus são considerados santos por uns e fanáticos por outros. Por não tocarem em dinheiro (“é coisa do diabo”), vivem da boa vontade dos que se identificam com o sacrifício e eventualmente fazem doações. Mas, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, esses homens e mulheres estão longe de constituírem uma comunidade de mendigos. As casas, todas caiadas de branco e com uma faixa azul pintada no rodapé, são extremamente simples, mas de uma organização e limpeza impecáveis. Ali não é possível encontrar nada que não sejam santos nas paredes e poucos móveis feitos de madeira rústica. As roupas brancas e azuis dos penitentes estão sempre limpas, destacando em pinturas manuais os símbolos sagrados do grupo. Tão austero quanto as casas é o cotidiano da seita. Revelando uma disciplina de fazer inveja a exércitos, os Ave de Jesus passam 365 dias do ano dedicados à religião. Muitos acordam às duas da madrugada e seguem uma maratona de orações até o sol raiar. Depois de um café, dão início à doutrinação, muitas vezes sem que seja preciso uma única alma viva para escutar. Em uma das visitas que fiz ao bairro, encontrei um homem discursando para uma sala vazia. A pregação girava em torno do dilúvio. Para não interromper, fiquei conversando com o filho, que há mais de 10 anos abandonou o grupo. “Resolvi estudar, trabalhar, não aguentei seguir. Meu pai, para o senhor ter uma ideia, está aí desde as três da manhã.” Ao terminar a explanação, 40 minutos depois da minha chegada, o homem se apresentou como João José Ave de Jesus. Questionado sobre a inclusão do João antes do nome, ele explicou que após a morte do líder achou que era a hora de reassumir o primeiro nome de batismo. Todos os outros penitentes desconfiam da

mudança, mas respeitam a decisão de João. “Cada um sabe o que faz. Deus sabe de tudo”, diz uma Maria.

Bandeiras e sÍMBolos

Avessos à mídia e a qualquer outro contato social, os penitentes são facilmente identificados em função da inconfundível aparência. Todos se vestem da mesma maneira, com camisas de mangas compridas e calças também nas duas cores. Outra característica marcante são as bandeirinhas que eles carregam nas raras aparições em público. Nelas são pintadas iniciais e símbolos que indicam a forte devoção católica do grupo. Erguida na frente da casa de João, uma bandeira ostenta as siglas V.S.J.B. (Viva São João Batista). Além das muitas outras siglas, como V.J.M.J. (Viver com Jesus, Maria e José) e P.P.P. (Penitência Pública Peregrina), as roupas e as bandeiras exibem ainda um sol, uma lua e uma cruz. Para os Ave de Jesus, o sol é o Deus supremo, por isso adaptam sua vida ao próprio movimento do astro no céu. “O sol se levantou? Se levante

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as iniciais e símbolos utilizadas pelo grupo, como V.s.J.B. (Viva são João Batista) e V.J.M.J. (Viver com Jesus, Maria e José) indicam a forte devoção católica


con religiosidade ti nen te se arrepender e fizer a penitência conhecerá o tempo do Espírito Santo.

PregaÇÃo e dissidÊncia

os ave de Jesus dedicam os 365 dias do ano à religião e consideram todas as semanas santas. eles são aceitos pela igreja local e vistos como uma espécie de patrimônio cultural

com ele. O sol se deitou? Se deite com ele”, ensina João. Após o crepúsculo é praticamente impossível encontrar um deles na rua. “Quando a terra está nas trevas, o melhor a fazer é acender uma vela e orar”, acredita. Questionado a respeito de qualquer detalhe relativo aos rituais do grupo, João José responde sempre com um “É muito simples”. Sobre o costume de manter barba e cabelos longos, a resposta se repete. Com um quadro nas mãos, representando a Santíssima Trindade, João aponta para Deus e diz: “Veja o Pai, preste atenção na barba dele”. Ao lado, Jesus segura um cajado com uma cruz na ponta, exatamente igual àquele que sustenta as bandeiras dos penitentes. No colo de Deus, um globo terrestre com uma cruz em cima remete à réplica em destaque no oratório da sala. “Este é o globo terrestre, o mesmo que Deus está segurando nesse desenho”, diz João em tom de pregação, segurando nas mãos o planeta de pedra. Do desenho, cópia barata de uma pintura renascentista, parece ter sido extraída também a inspiração para as roupas. Na visão desses religiosos, a própria vida na terra é regida pela Trindade. O tempo do Pai já passou. Estamos no tempo do Filho. Aquele que

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Mas é durante as romarias, que ocorrem anualmente em Juazeiro, que os Ave de Jesus expõem os ensinamentos adquiridos na rotina de reza e isolamento. Em julho, no dia em que os fiéis relembravam a morte de Padre Cícero, encontrei João José no meio de uma multidão de mais de 10 mil pessoas. O homem gritava, como se estivesse em transe: “Desliguem a televisão! Desliguem a televisão!” Com o livro Missão abreviada na mão – a bíblia do grupo –, João estava vestido a caráter. Mas, nas costas de sua camisa, a frase “Machadinha de Noé” indicava um provável desvio de rota. De uns tempos para cá, João ensaia uma espécie de voo solo. Afirma que continua sendo um Ave de Jesus, mas busca caminhos próprios de manter a fé. “Machadinha de Noé” é uma referência à ferramenta que construiu a arca bíblica, divulgada hoje por João como o nome da seita. Após a missa, o homem entra na capela onde o Padre Cícero está sepultado e começa a pregar. Os Ave de Jesus são aceitos pela igreja local e até vistos como uma espécie de patrimônio cultural. A quilômetros dali, no meio de uma caminhada de 12 horas, o José peregrino segue a passos largos. Ele defende com todo fervor a manutenção das raízes ritualísticas. “Temos que seguir do jeito que o Mestre criou, sem arredar um centímetro sequer”, diz o andarilho, segurando o chapéu de palha e se esquivando dos caminhões que passam a toda velocidade. Antes de se despedir, no entanto, conta um sonho que teve dias atrás. “Faz 30 anos que caminho sozinho, eu e Deus. Mas sonhei que um dia encontraria um penitente que me acompanharia nas peregrinações. Esse penitente é o senhor?” Meio desconcertado com a pergunta, vejo o velho deixar o asfalto e desaparecer no meio da poeira com um discreto sorriso no rosto. Nos pés, apenas uma alpercata de couro. Na bolsa feita de pano, um pedaço de rapadura e algumas laranjas. Sem documentos, sem relógio, sem calendário, o José de Juazeiro segue sua longa peleja rumo ao que seria o paraíso.


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divulgação

nenéu liberalquino Música é instrumento de humanização Maestro, violonista, compositor e regente, ele segue Beethoven quando considera que a arte musical é superior a toda sabedoria texto Gilson Oliveira

con ti nen te

Perfil

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nenéu Liberalquino vive afinado

com Beethoven: “A música é a revelação superior a toda sabedoria e filosofia”, escreveu o mestre alemão. Maestro, violonista, arranjador, compositor, cantor, professor, diretor e regente de produções fonográficas – uma vida em muitos sentidos regida pela música –, ele mesmo, durante uma simples conversa, concorre para ampliar o repertório de pensamentos e máximas sobre a arte de organizar sons e silêncios. “A música é uma forma de comunicação com o divino e um instrumento para humanizar as pessoas. Ela não é superior às outras artes, mas como sua matéria-prima é o som, e o som se propaga na forma de vibrações, ela consegue um efeito mais imediato, direto e intenso, invadindo todos os poros. É o chamado poder mágico da música”, diz o criador de uma técnica tão pessoal para violão, que terminou inovando a forma de tocar o instrumento.

Quando criança, ele pensava seguir a carreira de cantor. Mas na adolescência decidiu dedicar-se a um instrumento Foi o que disse, por exemplo, o Jornal da Tarde, de São Paulo, em 16 de novembro de 1994: “O mais revolucionário violonista dos últimos tempos”. A receptividade ao trabalho do artista fora do Brasil é no mesmo tom. “Gênio latino do violão”, escreveu o jornal norte-americano The Boston Phoenix, na edição de 8 de novembro de 1996. O francês Le Monde não fez por menos e, em 13 de novembro de 1999, ressaltou a “fluidez inebriante” do violão tocado pelo brasileiro.

no inÍcio, eRA o cAnto

Nascido em Canhotinho, município do interior de Pernambuco, próximo de Garanhuns, Nenéu Liberalquino, quando criança, pensava seguir a carreira de cantor, projeto apoiado pelos pais, o enfermeiro Manoel Ferreira e a professora Raimunda Liberalquino Ferreira. “Papai dizia que eu gostava de ficar cantando perto do rádio. A gente

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ana lira

con ti nen te

divulgação

Perfil 1

não tinha radiola e essa era a única maneira de aprender as músicas”, relembra. Aos sete anos, já morando no Recife, começou a apresentar-se nos programas de rádio e TV e, pouco tempo depois, ganhou o I Concurso de Cantores Infantis do Nordeste, patrocinado pela Rede Globo, com produção de Renato Phaelante e J. Raposo, e apresentado por Chacrinha. Por volta dos 16 anos, “fase da mudança de voz”, Nenéu decidiu parar de cantar (recomeçaria anos depois) e dedicar-se a um instrumento, seguindo o exemplo de suas irmãs. Foi quando entrou em cena outro personagem familiar, que o influenciou definitivamente: Manoel Barbosa, primo em segundo grau de sua mãe

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e violonista da Rádio Difusora de Garanhuns, emissora que costumava receber artistas de sucesso nacional, como Orlando Silva e Sílvio Caldas. “Quando o conheci, ele tinha quase 70 anos. Com ele aprendi muitas coisas, inclusive, um amplo repertório de músicas antigas.” Mas tinha uma pedra no meio do caminho do aspirante a violonista. Aos quatro anos de idade, Nenéu havia sido acometido por sarampo e paralisia infantil, o que comprometeu seu desenvolvimento físico e gerou a impossibilidade de tocar certos instrumentos, entre eles, o violão. “Na vida, só se tem duas alternativas: tornar-se vencedor ou vencido. E você pode transformar as deficiências

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em potencialidades”, pondera o músico, que, por não poder executar o violão na forma tradicional, procurou adaptá-lo às suas condições físicas.

no AR, noVAS HARMoniAS

Colocar o instrumento deitado sobre um suporte especial, com as cordas voltadas para cima, como as teclas de um piano. A partir dessa ideia, Nenéu abriria novos horizontes para si mesmo e para o próprio violão. Isso porque, sem estar colado ao corpo do músico, o instrumento vibra mais e amplia sua projeção sonora. Além disso, o instrumentista “ganha” mais um dedo – um dos polegares, cuja função sempre foi apenas a de segurar por trás o braço do violão.


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inoVAÇÃo

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ReGÊnciA

ao colocar o instrumento deitado sobre um suporte especial, com as cordas voltadas para cima, o violonista abriu novas perspectivas para si e para o violão desde 2002, nenéu está à frente da Banda Sinfônica da Cidade do recife e foi o responsável pela reestruturação instrumental e reorientação artística do grupo

ele dedilha como se fosse um piano. E, como por encanto, vão surgindo as mais inesperadas harmonias”. Com lançamento em 1996 pelo selo GHA Records, da Bélgica, o segundo CD, Aquarela do Brasil, registra composições de Nenéu e de alguns ícones da música brasileira, como Ary Barroso e Tom Jobim. O disco tornou-se passaporte para apresentações em alguns dos principais eventos internacionais de música instrumental, como o 8ª Festival Internacional de Violão de Lyon (França). Em 2002, ele foi o único músico brasileiro convidado para o show de lançamento do Ano Internacional da Cultura da Paz, organizado pela Unesco, em Paris. Acqualuz, terceiro CD, de 2002, é também o primeiro do Nenéu Liberalquino Trio, que tem participação dos violonistas Cláudio Moura e Guilherme Calzavara. Nos últimos tempos, a música de Nenéu tem chegado ao público de várias partes do mundo também através da publicação de suas composições para violão em revistas especializadas, como a norte-americana Fingerstyle Magazine e a alemã Akustik Gitarre.

na sua técnica, o violão vibra mais e amplia sua projeção sonora, já que não está colado ao corpo do instrumentista “Eu não tinha em quem me espelhar, foi uma experiência autodidata, e comecei usando apenas uma corda, com a qual tocava pequenas melodias. Aos poucos, fui acrescentando as demais cordas, o campo do violão foi crescendo e eu podia, entre outras coisas, buscar harmonias diferentes das tradicionais”, conta Nenéu. Para melhor explorar esse mundo de novas possibilidades sonoras, o violonista buscou as réguas e compassos na sistematização e aprofundamento dos estudos musicais. Cursos nas áreas de violão erudito, regência, análise harmônica e composição se sucederam num ritmo frenético e, em 1986, depois de tocar durante dois anos na noite de São Paulo, Nenéu seguiu para os Estados

Unidos, a fim de consolidar sua formação acadêmica. Em 1989, recebeu o “canudo” de composição erudita e regência no Berklee College of Music, de Boston, uma das mais conhecidas instituições de ensino musical do mundo. Paralelamente, ouviu muito Baden Powell, Garoto, Paulinho Nogueira e outros violonistas que, de alguma forma, também o influenciaram. O resultado dessas experiências está presente no primeiro CD de Nenéu, batizado com seu nome. Lançado em 1994, o disco traz no encarte um depoimento de Paulinho Nogueira: “É muito bom poderse ouvir um violão tocado com personalidade. Nenéu conversa cara a cara com o seu instrumento, que

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Hoje, novos projetos têm ocupado Nenéu Liberalquino, que, paralelamente ao seu trabalho pessoal, desenvolve uma série de outras atividades. Entre elas, a regência titular e a direção artística da Banda Sinfônica da Cidade do Recife – da qual está à frente desde 2002, tendo sido responsável pela reestruturação instrumental e reorientação artística do grupo; a direção musical do Concurso de Música Carnavalesca Pernambucana, promovido pela Prefeitura do Recife – e dos últimos quatro CDs com as músicas vencedoras; além de participar, em diferentes funções, da produção de vários discos, como o primeiro da Banda Sinfônica e de artistas como Teca Calazans e Gonzaga Leal.


con ti nen te

Pernambucanas

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engenho De onde se enxerga o verde da cana Em Vicência, Zona da Mata Norte de Pernambuco, edificações históricas materializam o passado da região, baseado na hegemonia da economia açucareira tExto Guilherme Carréra fotos Roberta Guimarães

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con ti nen te

Pernambucanas 2

A 87 quilômetros da capital

pernambucana, o tempo interpreta um papel diferente. Distante da velocidade do cotidiano no Recife, ele possui um ritmo que dispensa os marcadores característicos da Região Metropolitana. Ali, no espaço rural da Zona da Mata Norte, o tempo se dilata para que os olhos se detenham na paisagem rural. Em meio à vegetação canavieira que circunda o município de Vicência, a população convive com edificações originais do século 18, às vezes sem saber o valor daquele patrimônio histórico. E são exatamente as casas de engenho que expressam a hegemonia da economia açucareira no local, que perdurou por dois séculos e ainda se faz presente

nos dias atuais, definindo as relações sociais e a cultura do lugar. Entre os mais de 10 exemplares encontrados nas redondezas, destacase o Engenho Poço Comprido. Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1962, ele pertenceu a várias famílias, até que se tornou propriedade do Grupo Armando Monteiro, em 1975 . Os quatro hectares da propriedade não podem sofrer intervenções que venham a alterar, principalmente, a arquitetura característica do período colonial. Na década de 1990, o engenho estava em péssimo estado de conservação. Por conta disso, em 1999, foi criada a Associação dos Filhos e Amigos de

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Vicência (AFAV), que desenvolve ações contra os danos na edificação. “Nós fizemos um mutirão de limpeza e fomos à mídia na época. Foi uma maneira de chamar a atenção de todos para, a partir daí, planejarmos a reestruturação do Poço Comprido”, relata Jane Ribeiro, na ocasião presidente da AFAV e atual coordenadora do ponto de cultura instalado na localidade no ano passado. Diante do interesse dos moradores em zelar pela construção, em 2001, um comodato foi estabelecido, delegando à comissão liderada por Jane a autonomia de decidir quais as possibilidades turísticas do lugar. Esse poder conquistado, contudo, não alterava a superioridade do Iphan e a posse dos


Página anterior 1 Poço coMPrido

Localizado na Mata Norte pernambucana, o engenho é um exemplar da arquitetura colonial do século 18

Nestas Páginas 2 no ALtAr

A capela é interligada à casa-grande, dando ao senhor de engenho acesso ao coro, sem precisar se misturar aos outros fiéis

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PArA Moer A cAnA

Era o tamanho da moita que indicava a importância do engenho no mercado açucareiro

4-5 detALheS

Tons de azul e dourado e formas inspiradas na arquitetura árabe fazem parte da ambientação 3

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proprietários. O restauro durou cerca de três anos, sendo o engenho aberto para visitação em 2004. “Edificações são passíveis de reformas ao longo dos anos, e o processo de restauro trabalha em cima das primeiras referências, para se tentar chegar a uma forma aproximada do que se entende por original”, afirma Geraldo Gomes, autor do livro Engenho e arquitetura e um dos arquitetos responsáveis pelo restauro do Poço Comprido. A edificação, formada pela casagrande, capela e moita, tem como registro mais antigo o ano de 1732, data encontrada em documentos, durante as pesquisas bibliográficas e iconográficas. Curiosamente, não foram encontrados vestígios de uma senzala no terreno. A

o engenho, reaberto em 2004 após o restauro, tem seus primeiros documentos registrados em 1732

única indicação que leva a crer que ali havia um local destinado aos escravos é a presença de um baobá, árvore considerada sagrada pelos africanos. “Mas se trata de uma hipótese, não de uma comprovação”, diz Geraldo.

MoitA, cASA e cAPeLA

O poderio de um engenho, ao

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contrário do que se pode pensar, não se relaciona diretamente com o luxo da casa-grande, mas com o tamanho da moita, estrategicamente instalada em frente ao alpendre do senhor. A lógica é simples: quanto maior a moita, mais cana-de-açúcar para moer, mais açúcar para exportar e mais dinheiro no caixa. Jane conta que até os anos 1960 ainda se moía a cana no Poço Comprido. Hoje, a área está desativada. Unida à morada principal, a capela de São João Batista, padroeiro do Poço Comprido, evidencia a estreita relação que havia entre o sistema político-econômico da época e a Igreja Católica. As imagens que compõem o altar são réplicas das originais guardadas pelo Iphan. A


pequena nave também conta com o coro, de onde a família do senhor de engenho assistia às missas, distante dos outros fiéis. O próprio capelão pregava em um púlpito elevado, mas ainda assim alguns centímetros abaixo do coro. Após a reforma, a vacaria existente tornou-se um anexo que abriga uma pequena copa, os banheiros para os visitantes e um salão que funciona como auditório, batizado de Frei Caneca – que, perseguido durante a Confederação do Equador (1825), se refugiou no Poço Comprido. No engenho também foram instalados painéis e fotografias que expõem o processo de restauração empreendido pela parceria entre o Iphan e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Cortado pelo Vale do Siriji, o Engenho Poço Comprido apresenta uma arquitetura simples, com traçados retos e detalhes em madeira. A coloração das paredes, portas e janelas, por exemplo, passou por um processo

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Pernambucanas de prospecção, em que, através da raspagem, camadas de tintas foram reaparecendo. Os arquitetos acreditam que o branco e o azul, que hoje predominam nas fachadas, eram as cores originais do engenho. Levantamentos históricos indicam também que as duas tonalidades foram bastante utilizadas na época por construções congêneres.

MAPA tUrÍStico

O estímulo dado ao turismo em virtude do renascimento das atividades ligadas ao engenho, agora com um viés cultural, serviu também para alterar a realidade socioeconômica de muitos moradores de Vicência, atualmente com cerca de 28 mil habitantes. “Isso reacendeu nossa autoestima, a vontade de dizer que o interior do Estado tem muito o que mostrar também, que as belezas não se resumem às praias”, afirma Jane, conhecida por todos, dos funcionários

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9 fAchAdA PrinciPAL

Do alpendre, o senhor de engenho tinha total controle sobre sua propriedade

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SAcAdA

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viStA dA vArAndA

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teLhAdo reforMAdo

A cor azul foi a escolhida para a pintura das portas e janelas do engenho O trabalho dos escravos podia ser gerenciado de dentro da casa-grande As telhas foram trocadas para evitar risco de desabamento

do engenho aos políticos do município, como a mulher que arregimenta pessoas e reúne os esforços em prol da causa. O empenho dos envolvidos acabou por colocar o Poço Comprido no mapa do turismo nordestino. Ele faz parte de três rotas: Circuito de engenhos, que alcança ainda os municípios de Nazaré da Mata, Carpina, Goiana e Itambé; Engenhos e maracatus, com cerca de 90 pontos de visitação no Estado; e ainda Civilização do açúcar, que remete aos escritos de Gilberto Freyre e abarca os Estados da Paraíba e de Alagoas.

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Estar apto a receber visitações, entretanto, requer verba para manutenção, e Jane não esconde as dificuldades para manter o Poço Comprido de pé. “Não adianta termos feito a restauração em 2004 e pararmos com os cuidados. Sem manutenção, o trabalho do restauro sofre consequências”, lamenta. Atualmente, é cobrado o valor de R$ 4 para visitar o engenho. É um bilhete para ter, diante de nossos olhos, o que os livros de História, um dia, nos ensinaram.


Cardápio PESCADO De símbolo cristão a alimento saudável Mesmo não sendo a preferência nacional, iguaria conquista adeptos por sua facilidade de adaptação à diversidade da culinária brasileira e de outros países texto Danielle Romani FotoS Maíra Gamarra

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conceitos como purificação,

penitência e desapego foram e são associados ao peixe, que substitui a carne vermelha na Quaresma e nos dias santos. A iguaria, portanto, tem estreita ligação com o sagrado, pontuando duas das mais importantes efemérides religiosas do mundo ocidental, a SextaFeira da Paixão e a Páscoa, datas em que cristãos de todas as partes intensificam o consumo de pescado. Já nos primórdios do cristianismo, por volta do século 1, a palavra peixe - ichthys em grego – era interpretada como um acrônimo de Iesus Christus Theou Yicus Soter, ou seja, Jesus Cristo Filho de Deus Salvador. O peixe era, também, o símbolo utilizado


histórico religioso e nutricional. Com uma costa de extensão continental, superior a 8.500 km, o brasileiro contemporâneo definitivamente não é um devorador de peixes como o eram os seus tataravós indígenas e seus bisavós africanos e portugueses. Na verdade, o peixe tem presença tímida na mesa local, uma vez que a média nacional é de apenas 7 kg anuais de consumo per capita. O número é ainda menor quando se esmiúça a dieta do pernambucano, que come minguados 2,8 kg de pescado por ano, segundo dados da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca. “No período colonial, o peixe era o alimento mais importante da dieta da população. Nos últimos séculos, talvez por uma questão de status, diante do fato da carne vermelha ser mais cara – o que já se reverteu –, o quadro de consumo mudou. Hoje, o brasileiro, com exceção dos habitantes da região Norte – que consomem até 55 kg por ano –, come pouco peixe”, diz Erik Pinheiro dos Santos, biólogo e analista ambiental do Projeto Tartaruga Marinha (Tamar) em Sergipe.

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para que os cristãos – perseguidos por romanos e judeus – pudessem se reconhecer; além de ser o signo zodiacal atribuído a Jesus. Ao aspecto metafísico e espiritual do passado somaramse a favor do peixe, neste século 21, as prescrições de médicos e nutricionistas, que asseguram ser o animal um alimento rico em proteínas e com colesterol baixo, cujo consumo é recomendado para quem deseja vida longa e saudável. Porém, mesmo com tantos atributos, o peixe está longe de ser unanimidade, e é o protagonista da mesa brasileira apenas na Semana Santa. No restante do ano, o consumo de pescado não faz jus ao seu

o peixe está associado ao sagrado e vinculase a datas como a Sexta-Feira da Paixão e a Páscoa Autor de uma pesquisa - ainda em execução - sobre os peixes do litoral nordestino, Erik afirma existirem centenas de espécies na região. “A quantidade é enorme”, diz o biólogo, afirmando ser impossível falar de todas, e citando as conhecidas como vermelhas, das quais faz parte a cioba, como uma das primas-donas da gastronomia regional. Por uma combinação de fatores como sabor, textura e cor, a cioba – que normalmente é preparada ao forno – figura entre os pescados mais valorizados no Nordeste. O que não significa vantagem: exatamente pelo alto potencial comercial, está sendo alvo de excessos que podem comprometer o futuro da espécie.

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O problema é que ela apresenta crescimento lento e maturação tardia, uma vez que vive mais de 20 anos. “As jovens habitam áreas mais costeiras e as adultas se deslocam para áreas mais profundas, com fundos recifosos ou rochosos. Os menores peixes são encontrados próximos à costa e os maiores nas áreas mais profundas”, explica o ambientalista. Ou seja: os jovens, e não os maduros, estão sendo pescados. Também nobres, outras espécies largamente encontradas no nosso litoral são as pescadas, recomendadas para o preparo de moquecas e peixadas. O camurim, ou robalo, vem ocupando um espaço novo. É cada vez mais comum vê-lo dividindo a composição de pratos da culinária oriental com salmões e atuns. Atualmente, são utilizados especialmente como sashimis. A corvina é outro peixe de sabor agradável e de baixo custo, que cai bem quando servido frito. É um dos mais baratos e populares. A carapeba também pode ser extremamente saborosa, mas é preciso ter cuidado – e paciência – com a quantidade de espinhas. A curimã, peixe da família das tainhas, é largamente encontrada no nosso litoral. O seu forte são as ovas, propícias para tira-gosto. “Até mesmo os pescados menos nobres, como bagres e tainhas, podem ser bem-aproveitados, se utilizados no preparo de pirão”, ensina Erik.

MeRcADoS e coLÔniAS

Ingressar no clube dos que pregam uma alimentação mais saudável e sabores mais suaves – leia-se: dos que apreciam a delicadeza dos pescados – não é tarefa difícil numa cidade como o Recife, que tem sua tradição e história intimamente vinculadas ao mar e aos estuários dos rios. Pelo menos três mercados públicos locais oferecem um bom mix de peixes. O da Encruzilhada, o de Afogados e o de São José são indicados por profissionais e gourmets. Mas quem procura grande variedade vai perder tempo nos mercados menores. É melhor ir direto ao ponto: ao bairro de São José. Mais tradicional entre os estabelecimentos públicos recifenses,


com preço em conta, pois os produtos são vendidos diretamente pelos pescadores, sem atravessadores. Fundada há 90 anos, a entidade congrega 1.830 associados formais e cerca de 600 informais, que atuam numa área compreendida entre o bairro de Piedade e a ponte do Limoeiro, em Santo Amaro. Ou seja: na costa entre Jaboatão dos Guararapes e o Recife. “Todas as manhãs e finais de tarde temos pescadores vendendo peixe nos arredores da Colônia. Quem vier até aqui vai encontrar uma variedade grande de espécies, inclusive as de primeira, como arabaiana, cioba, sirigado e dentão, que podem ser adquiridos por até R$ 10, o quilo”, explica o presidente da Colônia, Augusto de Lima Guimarães, 62 anos. Também na Zona Sul, outra boa opção é o ponto de vendas em frente aos edifícios Transatlântico e Betânia (nas imediações do antigo hotel Boa Viagem), utilizado por pescadores. Esse mercado de peixes improvisado funciona aos sábados, entre as 6 e 10 horas, e reúne meia

Cardápio

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o pernambucano consome pouco peixe. enquanto a média nacional é de 7 kg, a nossa é de apenas 2,8 per capita

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o Mercado de São José tem sua origem intimamente ligada ao pescado. Lá, vender peixe é uma questão de vocação. Antes de ter o atual formato, funcionava no local o Mercado da Ribeira do Peixe, inaugurado há séculos, no longínquo ano de 1789. “Sempre fomos referência de pescado no Recife, tradição que se perpetua”, explica Reginaldo Oliveira Andrade, viceadministrador do mercado, que afirma: existem mais de 20 balcões dedicados à venda de peixes, crustáceos e mariscos no local. Em quase todos os boxes – pelo que afirmam os proprietários – a reposição de peixes é diária, o que

garante o frescor e salubridade dos produtos. “Comercializo uma média de 15 a 20 kg todos os dias. Sou obrigado diariamente a renovar o estoque, que consiste em vários peixes, como arabaiana (R$ 16, o quilo); cioba e cavala (R$ 15), guarajuba e beijupirá (R$ 10), atum (R$ 12) e corvina (R$ 8)”, afirma Denilton Gomes da Silva, que há 29 anos administra um box nas dependências do mercado. A alguns quilômetros do bairro de São José, à beira do oceano Atlântico, está a Colônia de Pesca Z-1 de Brasília Teimosa, a maior e a mais antiga da Região Metropolitana do Recife. É o local certo para os que desejam encontrar peixes frescos e

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dúzia de profissionais que vem comercializar seus produtos na praia. Benedito Antônio Pinho, 67 anos, há 48 anos comparece ao “mercadinho”. “Sou pescador, tenho barco, mas virei principalmente vendedor de peixe”, diverte-se Pinho, que afirma comercializar cerca de 150 a 200 kg por semana.

BUtiQUeS De LUXo

A quem procura luxo e comodidade, e prefere evitar o contato direto com os pescados ou sujar os pés de areia, é recomendado ir às instalações de uma butique de carnes. Na cidade, pelos menos dois estabelecimentos cumprem bem a função de oferecer conforto e variedade.


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O litoral nordestino é riquíssimo em espécies, que podem ser preparadas de formas variadas, a exemplo do peixe na brasa

Nestas páginas 2 tRADição

O mercado de São José é um dos pontos tradicionais na venda de pescados

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No Empório Netuno, a administração afirma fazer reposição diária de estoque, cuja venda média é de 200 kg – aí inclusos crustáceos e moluscos nas três lojas da marca, duas delas instaladas em Pernambuco, nos shoppings Recife e Plaza. “Temos uma variedade de produtos que inclui filé de pescada amarela, boa para peixadas e moquecas; linguado espanhol, que deve ser levado ao forno ou servido à a la meuniére, além de filé de salmão, ideal quando grelhado ou preparado ao forno”, explica Emmanuel Klein, gestor das lojas do Empório. Outras boas pedidas, diz Klein, são o filé de surubim, perfeito para churrascos; os cortes de pargo, que pode ser servido assado, ao forno, e também na forma de churrasco; o filé de agulha branca, que fica delicioso quando frito, e os filés de peixes defumados, como salmão e haddock. Instalada numa área nobre do bairro de Casa Forte desde 2007, a Pescadero também tem

A cioba é uma das espécies mais apreciadas pelo sabor, cor e consistência. É servida ao forno e em peixadas reposição constante de pescados e cativa o cliente pela variedade de produtos oferecidos, entre eles, salmão chileno, linguado europeu e a merluza negra, que custa R$ 92,90, o quilo.“A merluza se torna cara por ser um peixe do Alasca, e por viver em altas profundidades. A pesca desse peixe tem um custo operacional altíssimo”, justifica Paulo Belliato, um dos sócios da casa. Quem for à loja, também vai encontrar uma boa variedade de cortes de peixes regionais e nacionais, inclusive os de água doce como a costelinha de tambaqui, o pirarucu e o pintado. “A costelinha na brasa, apenas com sal grosso, é simplesmente extraordinária!”, afirma Belliato.

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nUtRitivo

No século 21, o peixe é classificado como um alimento leve, rico em proteínas e com baixo colesterol

cULinÁRiA DiveRSiFicADA

O peixe se adapta a diversas culinárias; e o Brasil, por sua larga costa marinha e regiões ribeirinhas; possui tradições variadas de preparo, às quais vêm se somando algumas de outros países, como ocorre com a japonesa, que se aclimatou bem ao repertório culinário nacional, sobretudo a partir dos anos 1990. Caso de sucesso de um restaurante com cardápio composto prioritariamente de pescados – muitos deles servidos crus – é o Zen, que oferece pratos à la carte, mas tem como forte o sistema de rodízio, que atrai público diário entre 200 e 450 pessoas. Por conta disso, a casa se permite o luxo de manter uma câmara frigorífica para estocar as mais de duas toneladas de peixes consumidas por mês, entre salmão, atum e espécies brancas. “Nosso salmão é importado, vem do Chile, e o peixe branco varia: pode ser camurim, ou outra espécie que esteja disponível à época. Temos um sistema de rodízio com mais de 50 opções de pratos”, afirma Eda Rocha, proprietária do restaurante. O rodízio


PEIXADA DE GAROUPA

Cardápio

Restaurante Pra Vocês Ingredientes 600 g de posta de garoupa 1 litro de água 2 tomates (1 picado e 1 em 4 partes) 2 cebolas (1 picada e 1 em 4 partes) 2 pimentões (1 picado e 1 em 4 partes) 1 xícara de cheiro verde (coentro e cebolinho) 1 colher de sopa de salsinha 2 batatas pré-cozidas (em 4 partes) ½ chuchu (em 4 partes) 1 cenoura grande (em 4 partes) 8 vagens de corda picadas 1 xícara de extrato de tomate 1 xícara de suco de limão Azeite, vinagre, sal e pimenta a gosto Preparo Numa panela, misture a água, o extrato de tomate, a xícara de suco de limão, o azeite e o vinagre. Acrescente a cebola, o tomate e o pimentão picados, o cheiro verde e a salsinha. Quando começar a ferver (sem estar borbulhando ainda) acrescente o chuchu, a cenoura, o pimentão e a cebola cortados em quatro partes e as vagens picadas. Ao começar a borbulhar, acrescente o peixe e tempere com sal e pimenta a gosto. Quando o peixe estiver pronto, junte o tomate cortado em quatro e as batatas; deixe cozinhar mais cinco minutos. Prove o caldo, acerte o sal, a pimenta e o azeite e está pronto para servir.

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custa entre R$ 24,90 e R$ 25,90 por pessoa, dependendo do dia e do horário. Os clientes podem comer à vontade. “Até não aguentarem mais!”, garante Eda. O peixe também é protagonista dos pratos do Pra Vocês, tradicional restaurante localizado há mais de 70 anos na praia do Pina, que se notabiliza por ser um espaço frequentado por jornalistas e políticos, cujos nomes são “imortalizados” em placas afixadas na parede da casa. Simples, com

garçons vestidos com camisa branca, avental e gravata, o local se destaca pelos excelentes pratos à base de peixes e frutos do mar. Severino José Reis, ex-garçom e há quatro décadas proprietário do empreendimento, diz que a atração da casa é a chamada peixada à moda pernambucana, que vem com legumes e ovos, além de arroz e pirão. E sugere duas opções, exatamente as mais pedidas: a primeira é a peixada de garoupa, espécie que Severino descreve como

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“magra, sem espinhas e de carne clara”. A segunda, de cioba. As porções custam R$ 45 e satisfazem a duas pessoas folgadamente. Além delas, ele recomenda aos que querem apenas beliscar que provem uma porção de agulha fritas. “Elas são imbatíveis!”, garante. Já o Boteco Maxime, que se instalou no local onde ficava o antigo restaurante homônimo, parece um endereço simples, mas não é. Ele lembra, sim, as casas tradicionais; mas, observando bem, o cliente vai perceber que é cheio de bossa, e que as receitas do cardápio são calcadas numa culinária light, nutricionalmente correta, sendo a maioria dos pratos à base de peixes preparados na hora e na brasa. “Quando compramos as instalações do antigo Maxime, decidimos manter a tradição, não ser mais um local, e, sim,


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DA teRRA

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nA BRASA

No Pra Vocês, a atração é a moqueca à pernambucana, preparada com garoupa e servida com arroz e pirão No Boteco Maxime o peixe é escolhido e preparado na hora, na frente do freguês

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o cod, um dos cinco peixes que resultam no bacalhau, é considerado o príncipe dos mares do norte

uma referência, como era o antigo restaurante. Portanto, o peixe é nosso carro-chefe, ele é preparado de forma saudável, ainda fresco, à frente do cliente e com os acompanhamentos que o cidadão desejar”, explica Rui Raimundo da Silva, um dos sócios do empreendimento. O sistema funciona da seguinte forma: o cliente escolhe um peixe em posta (sirigado, arabaiana e pescada, segundo o gerente Neném, custam atualmente R$ 34,90, o quilo) ou inteiro (cioba, pargo e dentão, a R$ 29,80), e ele é preparado na hora. Várias espécies estão disponíveis. O estabelecimento dispõe, ainda, de peixes de água doce, como

tilápia e surubim. Os pedidos são sempre acompanhados de farofa e vinagrete e o cliente pode pedir mais dois acompanhamentos. O Maxime tem horários variados de abertura e funciona para o almoço apenas às sextas, aos sábados e domingos. Para os que apreciam bacalhau, uma boa pedida é conhecer o Recanto Lusitano, um dos mais tradicionais restaurantes portugueses, que funciona em Boa Viagem. Lá, é possível provar uma infinidade de pratos confeccionados com o bacalhau curtido à base do peixe Gadus marhua, popularmente conhecido como cod, o príncipe dos mares do norte. “Temos entre 15 e 20 pratos exclusivamente à base de bacalhau, em todos utilizamos o cod, que é a carne nobre entre os tipos de bacalhau. Há várias opções de pratos: à Gomes de Sá, Zé do Pipo, grelhados, assados na brasa, desfiados, no forno, na chapa, em postas, como o cliente quiser e imaginar!”, diz a portuguesa Lúcia Novais, que desde 1980 administra o restaurante com a ajuda dos filhos e do marido.

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onDe encontRAR Restaurantes e pontos de venda com o melhor do pescado no Recife

Boteco MAXiMe Fone: (81) 3465.1491

coLÔniA De PeScADoReS Z-1 Fone: (81) 3327.0724

eMPóRio netUno Fone: (81) 3268.4484 (Plaza Shopping) (81) 3464.6663 (Shopping Recife)

MeRcADo De São JoSÉ Fone: (81) 3355.3398

PeScADeRo Fone: (81) 3268.0020

PRA vocêS Fone: (81) 3325.3168

RecAnto LUSitAno Fone: (81) 3462.2161

Zen Fone: (81) 3426.9565


iMAGEnS: REPRODuçãO

Joaquim Nabuco,

Visuais JoaQuIM Nabuco o caráter do homem se constrói na infância

Exposição reúne documentos, pinturas e objetos pessoais em que a trajetória do abolicionista é recapitulada, desde os primeiros anos no engenho até sua morte nos EUA TEXTO Clarissa Falbo

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protagonista da causa abolicionista, diplomata, jurista e literato – são esses os atributos recorrentes quando o pernambucano, nascido em 19 de agosto de 1849 e falecido em 1910, é mencionado. Porém, décadas antes da promulgação da Lei Áurea, do ingresso de Nabuco na Faculdade de Direito e de ele ser nomeado embaixador em Washington, o garoto Joaquim experimentava sentimentos e sensações que viriam a definir sua personalidade e a paixão com que lutaria mais tarde pela libertação dos escravos. Foi no Engenho Massangana, localizado no município do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, onde Nabuco passou os primeiros anos de vida. Criado pela madrinha, Ana Rosa Falcão de Carvalho, o menino de engenho mantinha contato direto com os habitantes da senzala, “o grande pombal negro ao lado da casa de morada”, como metaforizou no livro Minha formação, escrito entre 1893 e 1899. A influência da infância sobre os feitos do personagem histórico vida afora pode ser constatada na exposição Joaquim Nabuco: Brasileiro, cidadão do mundo, que chega ao Recife no dia 29 deste mês. A mostra faz parte do calendário oficial de eventos relacionados ao Ano Nacional Joaquim Nabuco – homenagem pelo centenário da morte do pensador – e fica abrigada no Instituto Cultural Banco Real, no Bairro do Recife. Por meio de documentos, pinturas e objetos pessoais, a trajetória do abolicionista é recapitulada, desde os


TREChO DE minha formação Em texto memorialístico, Nabuco relata impacto causado por contato com escravo foragido no Engenho Massangana “Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro, desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha, para me servir.

anos no engenho até a morte, no posto de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, em 17 de janeiro de 1910. De acordo com a curadora Helena Severo, os visitantes vão poder percorrer os quatro módulos em que está dividida a exposição, organizados de acordo com a cronologia dos acontecimentos, e ver reveladas a vida e a obra de Joaquim Nabuco. Um imenso canavial projetado pelo arquiteto Chicô Gouveia, que assina a cenografia da mostra, é o marco zero do percurso expositivo. A alegoria abre o módulo inicial dedicado à infância e à formação de Joaquim Nabuco. “A primeira infância, vivida no Engenho Massangana até os oito anos de idade, deixa uma forte marca na personalidade de Nabuco. É lá que ele entra em contato com a miséria da escravidão”, observa Helena. Registros do próprio Nabuco dão conta de que, no alpendre da casa-grande do Massangana, vivenciou uma cena que viria a projetar-se, tempos depois, nos esforços pela defesa dos direitos dos negros e para a libertação dos escravos. Certa tarde, ainda garoto,

Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida. Foi esse o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.”

Quando universitário, Nabuco fez a defesa do escravo Tomás, acusado da morte de seu senhor. O réu teve sua pena minorada estava sentado nas escadarias da casa, quando um jovem negro o abordou desesperado, suplicando que pedisse à madrinha que o comprasse. O escravo pertencia a um senhor das redondezas e sofria castigos corporais. A passagem da infância ficou de tal forma impressa na memória de Nabuco, que, ainda durante os estudos na Faculdade de Direito de São Paulo e na do Recife, postulou em juízo a defesa do escravo Tomás, negro acusado de matar o senhor de quem era propriedade. Tomás seria condenado à pena de morte pelo assassinato. A intervenção de Nabuco, entretanto, possibilitou a progressão da penalidade para a prisão perpétua. Os primeiros contatos com

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as ideias abolicionistas também datam dos anos de Academia, quando Nabuco foi apresentado aos principais líderes do movimento pelo fim da escravidão no Brasil e iniciou a militância política.

ARTICULISTA E DIPLOMATA

Referências à campanha abolicionista – mais significativa bandeira abraçada por Nabuco – estão no segundo módulo da exposição. Influenciado pelas ideias de Tobias Barreto, Sílvio Romero e Castro Alves, ele se junta à batalha antiescravista e escreve ensaios e artigos, clamando pela liberdade do povo negro. No terceiro módulo, a fase diplomática está representada. Nos quase 11 anos em que esteve ligado à diplomacia, Nabuco redigiu a defesa do Brasil na disputa com a Inglaterra pela fronteira da Guiana Inglesa, chefiou a delegação brasileira em Londres em 1900 e, cinco anos mais tarde, foi nomeado primeiro embaixador em Washington. Defendeu a formação de um sistema continental americano e contribuiu para a


iMAGEnS: REPRODuçãO

1 DOCUMENTOS Anotações de caráter pessoal e administrativo estão reunidas nos diários, que trazem autor e data impressos na capa 2 LEI ÁUREA uma das expectativas em torno da mostra é a vinda do documento original, assinado pela Princesa isabel em 13 de maio de 1888 3 ACERVO FAMILIAR Relógio de algibeira em ouro, fabricado por Paul D. nardin, é um dos objetos de uso pessoal que estarão em exposição 4 ACESSÓRIO Espada feita em metal e incrustada de madrepérola fazia parte do uniforme de embaixador

Visuais

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criação da União Pan-americana, embrião da Organização dos Estados Americanos (OEA). No quarto e último módulo, os visitantes são conduzidos a um ambiente multimídia para assistir à projeção na qual Nabuco profere um de seus discursos inflamados pela abolição da escravatura. A montagem, concebida pelo artista multimídia Marcello Dantas, mostra o orador discursando em plena ribalta do Teatro de Santa Isabel, com voz emprestada pelo ator Othon Bastos. A exposição tem sentido didático e foco direcionado ao público infanto-juvenil. “O trajeto expositivo foi formulado com o intuito pedagógico de conduzir as pessoas pela vida e obra de Joaquim Nabuco por meio de objetos de uso pessoal, documentos da vida pública brasileira, retratos a óleo do próprio Nabuco em várias

idades, de parentes, pessoas de seu convívio familiar, políticos ligados à causa abolicionista e companheiros na carreira diplomática”, explica Helena Severo.

LIVROS E DOCUMENTOS

O Nabuco, homem das Letras, também será lembrado na exposição. Os originais de livros escritos por ele, como O estadista do Império (biografia do pai, José Thomaz Nabuco de Araújo) e o já citado Minha formação, e parte da correspondência que trocou com Machado de Assis, com quem fundou a Academia Brasileira de Letras, em 1897, poderão ser vistos. A mostra, que passou pelo Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro em agosto de 2009, foi acrescida de novas peças, no Recife. Os autos do processo criminal contra o escravo Tomás, retratos a óleo do pai e da mãe de Nabuco e

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Discurso proferido por Nabuco foi interpretado por Othon Bastos para seção multimídia da exposição santos negros cedidos pela Diretoria Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Iphan) são alguns dos objetos adicionados ao catálogo do evento. Quem percorrer os corredores do Instituto Cultural Banco Real, ocupados pelos quatro módulos da exposição Joaquim Nabuco: Brasileiro, cidadão do mundo, vai poder ver também os originais da Lei Áurea, resultado do trabalho árduo de uma vida dedicada à luta por um país mais igual.


DiVulGAçãO

luCiAnO FERREiRA/DiVulGAçãO

Portfólio

NÚMERO 2 DA REVISTA BOCA

contidonãocontido e ho/rEC Mamam tel. (81) 3232.2188

Quando a revista Boca surgiu, ainda em 2006, foi recebida com entusiasmo, por ser destinada a publicar obras de artistas gráficos e plásticos em amplo espectro, privilegiando profissionais de Pernambuco. Do final de 2009 para o começo deste ano, a segunda edição da Boca chegou a público, numa tiragem de mil exemplares. Desde então ela circula por aí, mostrando trabalhos em fotografia, desenho, pintura, gravura e ilustração, em técnicas e experimentações variadas – como a colagem (analógica e digital), o estêncil e o desenho vetorial. O bom é que, mesmo com um lamentável longo intervalo entre uma edição e outra, a revista mantém frescor e vigor entre os trabalhos selecionados. A número 1 está disponível em formato digital no www.revistaboca.org. DiVulGAçãO

Mamam

REabERtuRa coM acERvo O Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) reabriu em março, após dois anos de reformas, com as mostras contidonãocontido e HO/REC. A primeira, com a curadoria de Clarissa Diniz, Maria do Carmo nino e do Educativo Mamam, traça uma retrospectiva do próprio acervo, dividido em blocos de décadas (de 1900 até 2010). A mostra, no salão expositivo do térreo, inclui ainda a participação do público na construção de um novo acervo, em que artistas “não contidos” são sugeridos para se agregar à pesquisa. Já HO/REC ocupa o Espaço Multimeios Hélio Oiticica, e retrata a vinda do artista ao Recife, em 1978, para a realização de performances com seus Parangolés. Entre as novidades, destacam-se: a criação de um Conselho Curatorial, que pretende pensar o perfil e a programação do museu, o Clube de Fotografia Mamam e as aberturas do café-bistrô e da loja Mamam. na agenda para este ano, estão mostras de artistas renomados como Tomie Ohtake, Anna letycia Quadros e a ECO – Exposição internacional de Fotografia. Ainda na programação, mostras do artista cearense leonilson, uma homenagem ao centenário de lula Cardoso Ayres e outra produzida pela psicanalista e pesquisadora Sueli Rolnik, resultado de um projeto de ativação da memória sensível na obra de lygia Clark. na etapa concluída da reforma, um sistema de dimerização foi instalado para controlar a intensidade da luz incidente sobre as obras, e melhorias na acessibilidade de portadores de necessidades especiais resultaram em banheiros adaptados e uma rampa construída na entrada da rua da união. Segundo a diretora do museu, Beth da Matta, as mudanças no sistema de climatização do 1º e 2º pavimentos e a instalação de um elevador para facilitar o ingresso do público às exposições devem ser concluídas no segundo semestre deste ano. RAQuEl MOnTEATH

Coletiva

A PINTURA REINTERPRETADA A exposição Tinta fresca – A nova geração da pintura nacional busca estabelecer um diálogo entre a tradição artística da pintura e suas formas de expressão atual. Cada uma das obras criadas pelos oito artistas participantes, entre os quais a paulista Ana Elisa Egreja (foto), Bruno Vilela (PE), Rodrigo Bivar (DF) e Tatiana Blass (SP), apresenta referências e inquietações, como a busca do domínio espacial e novos ângulos de interpretação da realidade. A mostra reencontra e rediscute a pintura no contexto de multiplicidade de suportes explorados que caracteriza a produção artística contemporânea. Permanece em cartaz até 6 de abril, na Galeria Mariana Moura, em Boa Viagem (www.marianamoura. com.br, fone: 81-3465.5602).

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banho de frevo

matéria corrida José cláudio

artista plástico

Faz parte da minha dieta, apesar

da idade provecta, deste ipojucano de nascimento e recifense de me entender de gente, um banho de frevo, como dantes confessar e comungar ao menos uma vez cada ano pela páscoa da ressurreição, que nunca soube direito o que significa, e quem ressuscita sou eu. Tenho uma espécie de pena misturada com desprezo pelos que aproveitam os dias de carnaval para fazer retiro, exames de consciência, ou tirar uns dias para descanso, não raro gente que já descansa a vida toda, gente que não tem nada para fazer. Ou viaja em vão para fugir do vazio de si mesma. Em busca de felicidade. Neste mundo? Ou você encontra em cada minuto em tudo que faz ou esqueça. Já aquela maior, eterna, como o próprio nome diz, somente na vida eterna (Santo Agostinho). Mas do mesmo jeito que você toma banho no mínimo uma vez por dia,

que os micróbios estão ali, esperando que você não respeite o giro das 24 horas para tomarem conta dos vasos linfáticos, meu espírito, que não creio que exista, seja lá o que for, meus órgãos, precisam de um banho de frevo: para conferir minhas oiças, para me lembrar de mim mesmo, não mais assistindo ao desfile da Lyra Ipojucana do Maestro Zé Marinho, vendo as tramelas do passista Renato Copaoba, mas, este ano, nas manhãs de sol do Mercado da Boa Vista, ouvindo, bem no meio das moças, os pistons magistrais e os outros metais da Orquestra de Frevo 100% Mulher, tocando Nino, o Pernambuquinho de Duda, ou a masculina logo depois abrindo com Bala doida de Nunes e em seguida o maestro pegando no cabelo para indicar Cabelo de fogo de Nunes ou levantando o dedo mindinho para avisar aos músicos que o próximo seria Último dia de Levino, aproveitando eu

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aqui para mandar um abraço à filha Aída e ao neto Laurivan. No 2º dia, menino, que coisa linda, as três cantoras de frevo de bloco, uma das quais de uma beleza fantástica: e ela cantava com a maior naturalidade, enquanto limpava na franja da blusa os óculos de fantasia. Bem que o pintor Carybé dizia: “Viver! Viver! Nem que seja somente um olho pendurado num prego na parede”. Por enquanto ainda me resta o corpo faltando pedaço nestes quase 80 fevereiros, quando entrarei no seleto grupo, ao menos por antiguidade, de Abelardo da Hora, Reynaldo Fonseca, Francisco Brennand, Gilvan Samico e Tereza Costa Rêgo. Se não com fôlego meu, respiro pelos pulmões dos outros, como os da morena nova de um bumba-meu-boi de Água Fria esfregando os pés descalços no chão de cimento áspero e paralelepípedos.


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gravura

Ilustração de Gustave doré (estrasburgo, França, 1833-1883) para a fábula de esopo (Grécia, 620-560 a.C.) As rãs pedem um rei

reprodução

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Devia ser obrigatório beber essa alegria da raça, homem, mulher e menino nesses dias da pátria e na 4ª-feira de cinzas choraríamos os grandes carnavalescos, como Nelson do Boi, ou os meninos aprenderiam a história das troças, O Cachorro do Homem do Miúdo, Formiga Sabe que Roça Come, O Bagaço É Meu. Gosto de carnaval de dia, meio-dia em ponto, o sol tinindo, faiscando nos instrumentos e nas cores das fantasias, recortando as sombras no chão. Eis José Cláudio da Silva em quem não luz nenhum talento, mas pelo menos me nutrem os talentos dos outros e me dão vida como se meus: sou como as abelhas que se nutrem do néctar das flores. O que desgraça o carnaval do Recife e está causando sua extinção é palco, ao lado de seus irmãos camarote, coreto e palanque. Carnaval é festa do povo. Toda ideia

carnaval é festa do povo. Quem quiser brincar carnaval que desça dos seus pedestais e venha para a rua de hierarquização é deletéria. Quem quiser brincar carnaval que desça dos seus pedestais e venha para a rua, para o rés do chão. Quando inventaram de botar orquestra em cima de caminhão, que no entanto ainda se locomovia, daí para o palco foi um pulo. Uma vez disse numa entrevista, e já àquela altura protestando contra carnaval parado, que carnava1 era uma festa peripatética, isto é, que se faz andando (a estagiária enrolouse por não saber o significado de

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“peripatético” e minha fala saiu incompreensível). Carnaval é a oportunidade de o anônimo virar protagonista fantasiado ou não, a festa da “alegria de cada um” como disse a amiga Patrícia Lima ao comentarmos esse assunto (obrigado, Joaquim Falcão, pela referência no belo artigo, Jornal do Commercio, Recife, 21/02/10, melhor e mais abrangente; agora não me adianta dizer que já tinha escrito este) ou a amiga Deda “o povo parado sem aquela animação do frevo”. É um carnaval inibidor, que só quem está no palco tem direito de se exibir. Me lembra a fábula de Esopo As rãs pedem um rei, quando Júpiter, ou Zeus, para acabar com o clamor das rãs lhes joga no brejo um pedaço de pau e elas passam a reverenciá-lo como se fosse um rei. Logo mandará um grou: para comê-las. Acho igualzinho, ou melhor, eu acho é pouco.


André Teixeira

Claquete 1

restauro Uma herança de pai para filha

Proprietária de um acervo de clássicos do cinema nacional, Alice Gonzaga cuida do legado da família texto Bruno Boghossian

Abrindo a porta de uma enorme sala no subsolo de um casarão histórico no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, Alice Gonzaga antecipa o orgulho que tem das centenas de gavetas com milhares de fichas catalográficas, fotografias, artigos de jornais e textos sobre filmes nacionais e estrangeiros, copiados por ela mesma, à mão, ao longo de décadas. Desde criança, a filha do cineasta Adhemar Gonzaga acompanhou de perto os bastidores e o trabalho do pai na Cinédia – uma das produtoras mais importantes do cinema brasileiro, famosa por títulos da chanchada, comédias musicais (como Alô, alô, carnaval) e grandes

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sucessos de público (como O ébrio) – e manteve o hábito de colecionar recortes e documentos para o arquivo da produtora. Hoje, aos 75 anos, ela trabalha na preservação de 40 filmes nacionais que compõem o acervo da empresa da qual ela se tornou diretora. Como administradora da empreitada – atualmente focada na restauração de Bonequinha de seda (1936), Berlim na batucada (1944) e cinco filmes do diretor Moacyr Fenelon, lançados entre 1948 e 1950, Alice encontra originais e cópias e recupera som e imagem das obras que foram degradadas pelo tempo. “É praticamente uma gincana, porque você precisa ir ao laboratório,


1 MaNTENEDORA

lice Gonzaga A passou a recuperar os filmes do acervo da Cinédia quando assumiu o controle da produtora, em 1970

2 comédia Estou aí?, dirigido

por José Cajado Filho e produzido por Moacyr Fenelon, foi uma das obras mais difíceis de restaurar

divulgação

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mandar restaurar a imagem, levar o filme para recuperar o som... É um trabalho que exige muita paciência.” A ideia de recuperar os filmes do acervo da Cinédia surgiu quando ela assumiu o controle da empresa, nos anos 1970. “Juntando as fotos e os papéis com informações sobre os filmes, tive a curiosidade de conhecer as obras daquela época e decidi correr atrás das cópias que ainda existiam”, relembra.

PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO Desde então, foram 17 filmes restaurados sob a batuta de Alice Gonzaga, um trabalho de quebra-cabeça, que, atualmente, é executado por uma equipe pequena, coordenada por Hernani Heffner, pesquisador apaixonado pelo cinema brasileiro e quase uma enciclopédia viva de obras nacionais. Ele é capaz de citar

elenco e equipe, contar histórias de bastidores e descrever em detalhes cenas emblemáticas de grandes títulos. De cor, ele conhece os que já restaurou, como Alô, alô, carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), cujo processo o obrigou a assistir quadro a quadro, inúmeras vezes, até recuperar toda a fita. O mesmo aconteceu com Estou aí? (1949), dirigido por José Cajado Filho e produzido por Moacyr Fenelon, o caso mais complicado de recuperação. “Você tem que comparar cada fotograma, avaliar a qualidade da imagem e do som de cada trecho”, explica. Para Alice, que atua nos bastidores, mas acompanha a tarefa de perto, recuperar um longa é como deixar o filme completo pela primeira vez. “Isso que o Hernani e eu fazemos é praticamente uma direção. Nós dirigimos os filmes dos outros que já estão prontos”, brinca.

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O trabalho quase artesanal é necessário, pois não existem cópias completas dos filmes em boas condições. “Já não existem negativos desde 1950. As cópias em 35 mm se perderam e há quatro incompletas em 16 mm”, conta Hernani. “A que estava em pior estado químico era a mais completa”, acrescenta. Nem as quatro cópias, cada qual com suas deficiências, foram suficientes para recuperar 100% do longa-metragem. A equipe da Cinédia chegou aos 95% depois de muito esforço, mas não perdeu as esperanças. “Ainda estamos em busca de outras cópias, com colecionadores, arquivos, distribuidoras”, explica o restaurador. Os procedimentos de edição e armazenamento digitais certamente ajudaram a suprir certas lacunas na restauração, mas a equipe ainda confia parte do trabalho aos processos fotoquímicos, feitos


FoTos: reprodução

3-4 ARqUivo

Alice em foto de álbum de família, quando começou a acompanhar o trabalho de Adhemar Gonzaga (abaixo)

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coStUMeS

Bonequinha de seda (1936), de oduvaldo vianna, faz parte do acervo da produtora e retrata o cotidiano do Brasil até a metade do século 20

Claquete 3

em laboratório, ressaltando que os digitais não são sempre tão fáceis e rápidos quanto se supõe. No caso de Bonequinha de seda, Hernani Heffner conta que a restauração digital exigia 26 terabytes em um computador – o equivalente a mais de 26 mil gigabytes. O processo de obtenção de cada fotograma em alta definição (conhecido como renderização) levava duas horas. “O digital tem limitações, quando os filmes estão danificados, mas faz coisas que o fotoquímico não faz, como corrigir fotogramas deslocados”, explica o pesquisador. A guardiã do arquivo da Cinédia, Alice, também faz ressalvas quanto à total eficácia da tecnologia digital para armazenar as obras do acervo. “A película é a melhor forma de se preservar um filme. Eu não sei quanto tempo vai durar um DVD, por exemplo. De qualquer jeito, acima

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de tudo, o importante é restaurar a obra frequentemente”, explica.

MAntenDo cARActeRÍSticAS

O cuidado de Ernani e Alice com cada detalhe no processo de restauração do acervo da Cinédia também se expressa nos limites da manipulação. Uma das preocupações da equipe é não “recuperar demais” as cópias. “Se você tirar da trilha de som um chiado que era característico das condições técnicas da época, não estará respeitando a obra. Você tem que chegar ao laboratório de recuperação e orientar para não tirarem o chiado”, conta Hernani. “É preciso conhecer a tecnologia da época. No caso da imagem dos musicais, por exemplo, não há um contraste alto. A imagem costuma ser mais cinza”, descreve. O “estímulo” que levou ao último processo de restauração na Cinédia foi uma grande enchente que atingiu

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a antiga sede da produtora, no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio. O acervo ficou debaixo d’água, cheio de lama e em um rápido processo de deterioração. Era o que faltava para que a empresa assumisse a posição de mantenedora de uma parte da história do cinema brasileiro. “Só decidimos recuperar tudo por grande força do Hernani, porque eu não faria isso de novo”, credita Alice. Depois da restauração dos cinco filmes dirigidos e produzidos por Fenelon, a empresa pretende trabalhar na recuperação de obras de Ronaldo Lupo (produtor e diretor, morto em 2005), para, depois, seguir adiante. “Hoje, eu me sinto superprotegida, porque todos os atores que estavam esquecidos estão sendo relembrados com a restauração desses filmes. Por isso, eles têm que me proteger”, brinca Alice.


INDICAÇÕES Thriller

Ação

Dirigido por Michael Mann Com Johnny Depp e Marion Cotillard Universal Pictures

Dirigido por Kathryn Bigelow Com Jeremy Renner, Guy Pierce e Ralph Fiennes Imagem Filmes

INIMIGOS PÚBLICOS

Catálogo

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O astro Johnny Depp interpreta John Dillinger, um dos maiores assaltantes dos Estados Unidos, durante a Depressão. Conhecido por seus filmes de ação, Michael Mann se supera com este longa-metragem, apresentando sequências ágeis e visual impecável. O cineasta retrata os anos 1930 com uma câmera digital, criando um certo estranhamento no espectador: como um filme de época, carregado de nostalgia, tem em suas imagens a marca digital da contemporaneidade. Destaca-se ainda a interpretação de Marion Cotillard (Piaf).

GUERRA AO TERROR

A carreira de Guerra ao terror começou tímida, reunindo entusiastas em festivais. Quando estreou, ninguém imaginava que a produção seria uma das favoritas ao Oscar 2010. E mais: que levaria seis estatuetas, incluindo as de melhor filme e melhor direção para Kathryn Bigelow, a primeira mulher premiada na categoria. O longa, de uma tensão crescente em suas imagens, acompanha os últimos dias de um grupo de soldados americanos no Iraque, antes de retornarem às suas casas.

retratos do Brasil no início do século 20 O trabalho de restauração e preservação da história do cinema brasileiro desenvolvido hoje pela Cinédia é uma forma de homenagear também seus 80 anos, completados em 2010. A produtora foi uma das pioneiras na industrialização do setor no país, trazendo ao Brasil o modelo hollywoodiano de “fazer cinema”. Entre 1930 e 1952, sua fase de ouro, a empresa produziu 700 curtas-metragens e 55 longas. No auge, atravessaram as lentes das câmeras da produtora grandes estrelas do cinema nacional, como Carmen Miranda, Grande Otelo, Oscarito, Dercy Gonçalves, Paulo Gracindo, Anselmo Duarte, Dalva de Oliveira e Emilinha Borba. A Cinédia também se orgulha de ter ajudado a lançar profissionais como Moacyr Fenelon, Humberto Mauro, Edgar Brasil e Luiz de Barros. Até o diretor americano Orson Welles passou pelos estúdios da produtora, quando veio ao Brasil para rodar o inacabado It’s all true. Os clássicos do acervo da Cinédia formam, quadro a quadro, um reflexo da cultura e do cotidiano do Brasil até a metade do século 20, além de retratarem características da produção cinematográfica da época. Entre as principais obras estão: a comédia musical Alô, alô, carnaval, lançada em 1936, dirigida por Adhemar Gonzaga, proprietário da produtora, com participações de Carmen Miranda e Heloísa Helena; Bonequinha de seda (1936), de Oduvaldo Vianna; 24 horas de sonho (1941), de Chianca de Garcia; e Berlim na batucada (1944), de Luiz de Barros. Um dos destaques do catálogo da Cinédia é o melodrama O ébrio (1946), da diretora Gilda de Abreu. A obra, em completa sintonia com o aspecto comercial da produção cinematográfica que se desenvolveu no país à época, levou oito milhões de espectadores aos cinemas brasileiros, segundo registro da produtora. Adhemar usava recursos próprios para produzir efeitos especiais, desenvolver técnicas de maquiagem e trazer ao Brasil equipamentos como gruas e mesas de som. Depois do boom da industrialização do cinema no país, a Cinédia se dedicou a coproduções, principalmente nos anos 1960. Em 1970, Alice Gonzaga assumiu o comando da empresa, que passou a alugar seus estúdios para programas de televisão e peças publicitárias. Atualmente, mesmo sem produzir novas obras, o trabalho de restauração consome o tempo dos sete funcionários da produtora. BRUNO BOGHOSSIAN

Nacional

Guerra

APENAS O FIM

BASTARDOS INGLÓRIOS

Um sopro de jovialidade para o cinema brasileiro é o longametragem de estreia do carioca Matheus Souza, Apenas o fim. Ele tinha uma boa ideia, mas não tinha dinheiro. A alternativa foi filmar toda a história nas instalações da PUCRio, já que o equipamento pertencia à universidade. Na trama, um casal tem uma hora para terminar o namoro. Ou melhor: ela comunica que quer acabar o relacionamento, e ele tenta convencê-la a manter a união. Cheio de referências pop, o filme dialoga diretamente com a plateia brasileira da geração 2000.

Em 2009, poucos filmes foram tão comentados quanto Bastardos inglórios. Quentin Tarantino não decepciona. Na França ocupada pelos nazistas, a jovem Shosanna (Mélaine Laurent) jura vingança após ver sua família ser dizimada pelo coronel Hans Landa (Christoph Waltz). Paralelamente, Aldo Raine (Brad Pitt) é um tenente que recruta soldados judeus para enfrentar os inimigos nazistas. As duas histórias se cruzam em um final antológico, que desafia a História e prova que o cinema é capaz de tudo.

Dirigido por Matheus Souza Com Gregório Duvivier e Erika Mader Paris Filmes

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Dirigido por Quentin Tarantino Com Brad Pitt, Christoph Waltz e Diane Kruger Paramount Pictures


reprodução

MARK TWAIN 100 anos sem o crítico da “maldita raça humana” Um dos mais inventivos e importantes autores da literatura norte-americana foi ainda precursor do jornalismo gonzo e da stand-up comedy texto Débora Nascimento

Leitura “e o menino é perseguido sempre,

não tem sossego porque Franklin um dia disse, num de seus inspirados voos de maldade: ‘Dormir cedo e acordar cedo faz o homem saudável, rico e sensato’. Como se algum menino tivesse qualquer intenção de ser saudável, rico e sensato. As palavras não conseguem expressar toda a tristeza que senti com essa máxima, pois meus pais a testaram em mim. A consequência real da máxima é o meu atual estado de debilidade, indigência e alienação mental. Quando eu era menino, meus pais costumavam me acordar antes das nove da manhã. Se eles tivessem me deixado ter meu descanso natural, onde eu estaria agora? Seria dono de uma loja, sem dúvida, e respeitado por todos”. O pequeno trecho acima foi extraído de uma crônica, de 1870, sob o título O falecido Benjamin Franklin (1706-1790), e é uma amostra da iconoclastia, sagacidade, ironia e, acima de tudo, bom humor presentes na obra do escritor norte-americano Mark Twain. Mesmo não tendo sido “dono de loja”, tornou-se um dos mais respeitados e queridos autores da história da literatura americana e mundial. Seus carisma, pensamento, comportamento e estilo literário fizeram-no conquistar fiéis leitores em todo o mundo, tendo influenciado

autores como Ernest Hemingway e J.D.Salinger, cujo Holden Caulfield é um Tom Sawyer mais arredio. Assim como seus personagens mais famosos, o citado Tom Sawyer e Huckleberry Finn, Twain também foi um garoto de origem simples e cheio de ideias, que desfrutou os prazeres da infância, numa América ainda ingênua e rústica, sem a excessiva ambição financeira e a cultura de consumo que viria a caracterizá-la no futuro. O escritor cultivou sonhos de uma vida feliz e próspera, cercada de amigos, familiares e reconhecimento pelo seu trabalho. Este último veio de fato a acontecer: o nome e a obra de Twain sobreviveram à sua morte, em 21 de abril de 1910. O autor nasceu Samuel Langhorne Clemens, em 1835, na Flórida (Missouri). Após a morte do pai, seu irmão mais velho, Orion, adquire e começa a editar o jornal Hannibal Gazette, em 1850. Samuel, ainda adolescente, contribui na empreitada como jornaleiro e escritor eventual, produzindo alguns dos textos mais inventivos do impresso. Em 1863, Sam optou pelo nome artístico Mark Twain, inspirado, diz a lenda, em “marca duas braças” (o equivalente a cerca de 3,66 metros de profundidade), termo de navegação

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obras canônicas

Mark Twain é autor de, entre outros, As aventuras de Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn

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fluvial da época em que foi piloto de barco a vapor do rio Mississipi. Nesses anos, ao ler narrativas sobre as explorações no Amazonas, pensou até em vir ao Brasil, mas desistiu quando se deparou com as dificuldades para chegar de barco ao país tropical. A carreira de escritor começou a deslanchar a partir do sucesso comercial do conto A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras (1865) e do livro The innocents abroad (Os inocentes no estrangeiro, 1869), com relatos da viagem à França, Itália e Palestina.


aquelas funções não oficiais”, afirmou, em uma das muitas revelações contidas em Autobiografia de Mark Twain, que começou a ser esboçada em 1873 e foi lançada postumamente em 1924. A pedido do autor, vários trechos tiveram datas específicas para serem publicados (com 50, 100 e até 200 anos após sua morte). Seu objetivo era driblar o domínio público e também evitar futuros processos contra seus herdeiros. “É um clássico da literatura americana, em pé de igualdade com as autobiografias de Benjamin Franklin e Henry Adams”, escreveu Charles Neider, organizador da mais elogiada edição do livro, a terceira, de 1961.

MaU inVestiDor

A calmaria doméstica em que vivia o autor era, vez ou outra, interrompida pelas inquietações provocadas por sua incompetência em manter o equilíbrio financeiro, somada à “ajuda”

apesar do sucesso editorial, twain era incompetente quando se tratava do equilíbrio de suas finanças pessoais

Em 1870, após casar-se com Olivia Langdon, fixou-se em Hartford (Connecticut), onde hoje funciona o museu The Mark Twain House. Nas duas décadas seguintes, o escritor teve quatro filhos e lançou livros marcantes como As aventuras de Tom Sawyer (1876) e As aventuras de Huckleberry Finn (1884). Este, classificado como literatura infanto-juvenil e um dos indicados ao título de Great American Novel, descreve – a partir da narrativa de superação de um garoto indomesticável que enfrentou violência doméstica

– as transformações da sociedade americana que se urbanizava e industrializava, enquanto mantinha o sonho nostálgico da vida desregrada junto à natureza. O romance destacouse por registrar a linguagem coloquial do país, inaugurando uma literatura americana que não se ancorava no estilo europeu. O protagonista Huck foi baseado em Tom Blankenship, amigo de infância de Twain. “O pai de Tom foi, durante certo tempo, o Bêbado da Vila, e desempenhava demasiadamente bem

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do pífio sistema de direitos autorais de então, mesmo considerando que o escritor produziu obras de grande sucesso, como O príncipe e o mendigo (1882). Para piorar, em 1884, Twain, que já fracassara em especulações financeiras e apostas em invenções malsucedidas, ainda resolveu virar empresário e montou a Webster & Companhia Editores, administrada por seu sobrinho Charles Webster, que não entendia do assunto, não se dispôs a aprender e muito menos lia os livros a serem editados. “Uma vez, num grupo na sala de visitas, alguém falou em George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans) e na literatura que ela fazia. Vi que Webster aprontavase para contribuir. Não havia jeito de atingi-lo com um tijolo, uma bíblia ou coisa assim, reduzi-lo à inconsciência e salvá-lo, porque isso haveria de atrair atenção (...). Ele encheu aquele intervalo com esta observação,


foTo: reprodução

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MUseU

The Mark Twain House, em Hartford, Connecticut, está aberto ao público

Leitura

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externada com tranquila complacência: Nunca li nenhum dos livros dele, por uma questão de preconceito.” Por fim, Webster levou o tio à falência. Em 1895, falido, o escritor pensou até em ceder os direitos autorais de seus livros para os credores, mas desistiu após ser convencido do contrário pela esposa e pelo amigo Henry Rogers, que reordenou as finanças do autor, a partir do lucro da série de palestras que este fez. Twain, que havia, por 10 anos, parado de realizar conferências em outros estados e países, teve que voltar a viajar para cumprir uma extensa agenda desses eventos – sempre lotados por uma plateia ávida por ouvir seus “causos” instigantes e divertidos, e que tinham cobertura da imprensa de cada local. Afinal, tratava-se do “homem mais engraçado do mundo”.

VoVô Do GonZo

Após seguidas mortes de pessoas próximas (do filho, da esposa e de amigos), e com a família reduzida às filhas Clara e Jean, Twain ainda teve ânimo para construir outra casa, desta vez em Redding (Connecticut), onde

o Prêmio Mark twain é a maior honraria concedida aos humoristas e comediantes nos estados Unidos os três foram registrados, em 1909, pela câmera do amigo Thomas Edison. Essa raridade está no Youtube e no documentário Mark Twain (2001), do premiado documentarista Ken Burns, ainda inédito no Brasil. Na residência de Redding, Jean morreria em 24 de dezembro de 1909, aos 24 anos, após um ataque epilético. E Twain, aos 75 anos, tendo como companhia apenas suas memórias e um cachorro órfão (a filha Clara estava casada na Europa), sabia que o melhor de sua vida já tinha se passado. Morreria, menos de quatro meses depois, deixando como herança o fato de ter sido um dos precursores da literatura e do jornalismo modernos (ele é o “avô” do jornalismo gonzo, ao

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fugir da objetividade, alterar fatos e até inserir-se neles). Inovador da narrativa ficcional, ele soube mimetizar a fala do povo, mesmo que sob críticas. “É claro que, antes de um homem chegar à minha idade (71 anos), o medo de ser criticado impede que ceda à própria vontade. Não tenho esse medo”, afirmou em 1906, sobre o uso de roupas extravagantes, mas traduzindo uma característica geral do seu estilo. O impacto de seus 40 livros (afora as infinitas reedições e coletâneas, como Dicas úteis para uma vida fútil, de 2005, resultado do trabalho da equipe do Mark Twain Papers & Project, da Universidade de Berkeley) reverbera nas diversas homenagens que lhe são prestadas. Entre elas, o Prêmio Mark Twain, láurea máxima para os humoristas norte-americanos, entregue pelo Kennedy Center. Entre os que já foram agraciados estão Whoopi Goldberg, Steve Martin e Bill Cosby. Vale lembrar que Mark Twain foi, sem saber, inventor da stand up comedy, com suas palestras itinerantes cheias de observações engraçadas, pinçadas do cotidiano da “maldita raça humana”.


QUADRINHOS Jesus, um personagem sempre revisitado

Trabalho de quase uma década de criação, série Yeshuah tem sem primeiro tomo lançado num projeto em que o autor busca a humanização do mito texto Danielle Romani reprodução

Fazer quadrinhos no brasil é um exercício de persistência, paixão e paciência. Roteiristas e desenhistas, na maioria das vezes, encontram as portas das editoras fechadas para seus projetos. Muitos levam anos finalizando uma série ou álbum, sem ter a certeza de que seus trabalhos serão publicados. Foi o caso da dupla Laudo Ferreira (roteiro e desenhos) e Omar Viñole (arte-final). Para o primeiro volume da trilogia Yeshuah – Assim em cima, assim embaixo, foram necessários nove anos: quatro apenas para finalizar as 150 páginas da história e mais cinco para fazê-la chegar ao público. Um longo percurso, iniciado em 2000, mas que se realizou com a chegada do primeiro tomo aos leitores. O segundo exemplar,

cujo subtítulo será O círculo interno e o círculo externo, já foi entregue à Devir Livraria, editora de todo o projeto, que deve lançá-lo em junho. Pensada, roteirizada e desenhada pelo paulista Laudo Ferreira, 46 anos, a série se destaca pelos traços marcantes, fortes, quase caricaturais dos personagens. Mas o ponto alto do trabalho é o roteiro, fruto de uma minuciosa pesquisa por parte de Laudo, que nos presenteia com uma visão diferente desse emblemático personagem, Jesus Cristo. “Não queria nem me ajoelhar no altar e reverenciar essas imagens e esses dogmas, nem chutar o pau da barraca, coisa que também já foi feita demais”, explica o criador

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da série que, para montar o trabalho, leu duas centenas de livros, assistiu a vídeos e a minisséries de TV. Como ele conta na entrevista a seguir, começou por uma leitura mais doutrinária até ir aprofundando a pesquisa com autores e teólogos importantes. “Também li a série de apócrifos Os manuscritos do Mar Morto, compilada por Maria Helena de Oliveira Tricca e Júlia Bárány, Jesus de Nazaré: mensagem e história, de Joachim Gnilka, e As várias faces de Jesus, de Geza Vermes. Entre outros, eles tiveram grande importância para a construção da história”, pontua. Estudiosos do tema, como a filósofa Júlia Bárány Yaari, que colaborou com Maria Helena Tricca na organização de Os manuscritos do Mar Morto, elogiam


divulgação

antigos meus, como O duelo, lançado independente em 1992 e produzido no final dos anos 1980, tratam do assunto: céu, inferno, Deus, diabo e coisas assim. Em 2000, decidi que falar sobre Jesus seria interessante... O desafio seria contar sua história de uma forma honesta, sem apologias religiosas, sem reverências.

Leitura Entrevista

LaUDo Ferreira continente Os críticos têm elogiado sua pesquisa, que apontam como bem-feita, rigorosa, detalhista. Quem o orientou neste sentido? LaUDo Ferreira Ninguém me orientou. Comecei lendo uns livros bem básicos sobre o assunto, sobre Jesus e, consequentemente, de abordagem muito simplista e muito católica também. Aos poucos, fui descobrindo autores de maior envergadura, como os pesquisadores Geza Vermes, David Flusser e Jean Yves-Leloup e, aí, uma coisa leva à outra, pois com uma melhor base de leitura, uma melhor base de pesquisa se tem para seguir adiante. Desde então, já li quase 200 livros. continente Como surgiu a ideia de fazer uma trilogia sobre Jesus? LaUDo Ferreira Sou uma pessoa de grande espiritualidade e as questões místicas, de certa forma, sempre estiveram presentes em meus trabalhos. Quadrinhos

continente O primeiro exemplar da série é sobre Maria, ou Miriam. Você se dispõe a mostrar uma faceta de Yeshuah mais humana, porém mantém a versão de Maria virgem, o que talvez seja o maior dogma do catolicismo. Você acreditava que ia haver muita oposição para uma versão naturalista, em que Maria tivesse concebido Jesus de um homem? LaUDo Ferreira Não me preocupei com isso. Dentro do material que pesquisei há lendas, textos apócrifos, que contam desde a concepção através de uma relação com o próprio marido, no caso José, até com outros homens. Há textos que insinuam que toda essa história de concepção virginal fora criada para abafar uma história mais mundana, digamos assim. Há muitas especulações até mesmo nos antigos apócrifos. Existem os que foram escritos para difamar a figura de Jesus, no caso, através de sua mãe, como em um apócrifo que sugere que Maria foi seduzida por um soldado romano chamado Panthera. Todo esse material é rico em possibilidades e com certeza renderia histórias polêmicas, caso fosse essa minha primeira intenção nesse quadrinho. Mas a ideia foi caminhar para outro lado: desde o princípio quis trabalhar em cima do texto canônico, ou seja, a espinha de Yeshuah. Falando mais especificamente desse primeiro volume, seriam os evangelhos de Marcos, Lucas, Mateus e João. Aí, sim, tendo essa base, eu procurei tirar todos dos seus altares. Danielle romani

@ continenteonline Leia a íntegra da entrevista no site www.revistacontinente.com.br

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o trabalho de Laudo pela minuciosa pesquisa realizada, e pela opção de utilizar os nomes dos personagens bíblicos na grafia original, em hebraico, como já sugere o título Yeshuah. “O Jesus de Laudo surge de uma pesquisa histórica e documental, profusa e livre, de rigor nos detalhes, na elaboração dos conceitos, no diálogo interior intenso”, escreve a filósofa no prefácio do livro em quadrinhos. Este primeiro volume – Assim em cima, assim em baixo – busca desvendar o mundo antes da chegada de Jesus e mostra os dilemas vividos pela jovem Maria, ou Miriam. “Maria, protagonista desse primeiro livro, é uma menina completamente indefesa e sem conhecimento da vida. Do seu noivado com um homem mais velho à aparição daquele misterioso ser (o anjo Gabriel) que lhe comunica que ficará grávida sem conhecer o sexo, tudo é misterioso para ela, que mal sabe o que é divino, sagrado, pois é apenas uma menina, uma mulher, o que na antiga sociedade hebraica não tinha muito valor”, situa o quadrinista. As mulheres, por sinal, terão um papel de destaque na trilogia. Miriam de Magdala – ou Maria Madalena, que já aparece no final deste primeiro volume – será a grande parceira de Jesus e estará o tempo todo ao seu lado. “Não preciso mostrar os dois transando, dando beijos calorosos, nada disso. Ela o ama, respeita e admira como um homem iluminado. É o mais interessante de mostrar.” No decorrer da trilogia, o papel de outras mulheres, como Maria, irmã de Lázaro, também será destacado. Quem quiser conhecer o trabalho anterior do artista, pode conferir a minissérie policial Depois da meia-noite, vencedora do HQ Mix 2009 como melhor produção independente; e adaptações literárias de livros como Elogio da loucura e Revolução russa, ambos pela Escala Educacional, entre muitos outros.

Yeshuah – Assim em cima, assim embaixo laUDo Ferreira e omar ViÑole Livraria Devir primeiro tomo de uma série sobre a história de Jesus Cristo


indicações KariNa freiTaS

LIVRO REPORTAGEM

DESIGN GRÁFICO

record

Cosac naify

JORGE OLIVEIRA Curral da morte a votação do impeachment do governador alagoano Muniz falcão, em 1957, terminou numa troca de tiros que resultou em um morto e oito feridos. o episódio é recontado pelo jornalista e cineasta, que tirou do arquivo reportagens que tinha feito sobre o assunto, notícias de jornal, vasculhou novas informações e foi atrás de fontes para passá-lo a limpo, evitando seu esquecimento.

KIKO fARKAS Musical posters Criar identidade visual para uma orquestra sinfônica a partir de suas peças gráficas foi a tarefa a que se dedicou Kiko farkas. o resultado do trabalho está reunido nesta obra, que evidencia variedade e coesão. É muito agradável constatar como o designer fugiu às imagens geralmente associadas à música erudita e trouxe interpretações visuais para elementos como ritmo, harmonia e composição.

Ponto de Cultura

modos de fazer ao contrário de outros programas do governo federal, a política de pontos de Cultura (pC) ainda necessita de apresentações: trata-se de uma seleção anual, via edital, em que ações culturais já existentes nas comunidades são impulsionadas com incentivo de r$ 180 mil. esse valor é utilizado para atender às necessidades de cada grupo e também na aquisição de equipamentos tecnológicos (computadores, softwares, câmeras digitais etc.). o sociólogo emir Sader define o programa como “bolsa-família das identidades”. É ele quem assina o prefácio do livro Ponto de cultura – O Brasil de baixo para cima, de Célio Turino (o homem por trás da ideia), que, lançado pela editora anita garibaldi, explica o programa. Hoje existem 2.500 pontos de cultura contemplados no Brasil, a maioria em regiões periféricas. o programa acabou chamando a atenção de outros países e, recentemente, o parlamento do Mercosul aprovou uma lei recomendando que os membros integrantes o adotassem como política pública, o que já aconteceu em países tão diversos quanto el Salvador e itália. em 1991, Célio Turino, então secretário de cultura de Campinas (Sp), desenvolveu a rede de Casas de Cultura. Nascia a ideia que norteia os pCs Brasil afora: autonomia e protagonismo social. doze anos se passaram até que Turino fosse convocado pelo então ministro gilberto gil, para desenvolver um plano nacionalmente. foram cinco anos viajando pelo país, primeiro difundindo a ideia dos pontos de cultura, depois acompanhando o trabalho dos pontos de cultura popular ou erudita escolhidos, pelo interior e capitais. os contemplados abraçam a ideia de “desesconder o Brasil” lançada por ele. “No campo da cultura, o pC foi a ideia mais brasileira dos últimos anos, e vem se consolidando como um bem produtivo nacional”, defende o gestor alemberg de Souza, à frente da fundação Casa grande, na região do Cariri cearense. a casa, que sedia teatro, dvdteca, biblioteca e laboratórios de informática, rádio e Tv, já virou praticamente um ponto turístico naquela região. No pC, alemberg enxerga uma ferramenta importante para o reparamento da “dívida cultural interna” do Brasil. por sua vez, Zé lourenço, gestor do pontão Maracatu estrela de ouro (em aliança, Zona da Mata pernambucana), faz elogios à “oxigenação” de um ecossistema cultural que sempre existiu nas comunidades, mas que finalmente deve ser reconhecido pela sociedade. e ameaça: “Quer queira quer não, a elite ainda vai ter que olhar para a gente”. em tempo: o livro-relatório de Turino foi disponibilizado também sob licença Creative Commons. THiago liNS

CONTOS

POESIA

JOHN fANTE O vinho da juventude

LUCILA NOGUEIRA Tabasco

o autor de Pergunte ao pó (1939) apresenta as lembranças de sua infância através das narrações de um menino que vive numa comunidade italiana, nos eua. as relações familiares envolvendo seu pai e sua mãe, a presença da religião, seja como coroinha ou no cotidiano da escola de ensino religioso, retratam os anseios, medos e amores da juventude.

Narrativa épica em 10 cantos, Tabasco traça um percurso “em torno das raízes culturais dos povos centro-americanos e compõe uma ode à américa Central e à américa latina”. em 2007, a autora esteve no México e escreveu o poema a partir do contato com o país. Tabasco é o nome de um estado mexicano que guarda importantes significados para a cultura local.

record

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off Flip


viola caipira De modas e ponteados a sons espectrais

Associado quase de forma indissolúvel à música interiorana, o popular instrumento de 10 cordas adentra o universo da música de concerto texto Carlos Eduardo Amaral Luciano Borges/vioLamineira.BLogspot.com

Sonoras

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DivuLgação

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talvez nenhum outro instrumento

tenha se disseminado tão amplamente por todas as regiões do Brasil, ao mesmo tempo em que permaneceu tão distanciado da música popular urbana, quanto a viola de arame, conhecida também por outros “sobrenomes”, como caipira, sertaneja ou de 10 cordas. Se tal disseminação resultou em uma grande diversidade de processos de confecção, afinações e técnicas de execução, o acutilado timbre da viola preservouse, se não uniforme, pelo menos característico de norte a sul do país. Essa diversidade estende-se às manifestações da música folclórica às quais a viola se integrou, dos desafios de cantadores nordestinos ao cateretê sulista-sudestino, passando pelo

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Movimento Armorial usou a viola, mas sem se aventurar por linguagens estéticas inovadoras rasqueado mato-grossense e pela folia de reis. Nada impedia, porém, que ela fosse utilizada na música popular, a exemplo do magistral arranjo de Rogério Duprat para 2001, de Tom Zé e Os Mutantes, que alterna, com plena organicidade, modas ponteadas e hard rock, fechando a música em estilo surf music.

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MARcUS FeRReR

produziu um cD de obras para viola, depois de estrear um concerto de sua autoria para o instrumento na Bienal de Música do Mato Grosso, em 2004

Nesta década, por fim, a viola de arame quebrou a mera barreira das convenções e começou a transitar por gêneros musicais urbanos (blues, jazz, MPB, forró, choro...), graças à atuação de violeiros como Ivan Vilela e Neymar Dias, residentes no Estado de São Paulo. Só que o instrumento interiorano aproveitou para dar dois passos de uma vez e se adentrou também na música clássica (ou de concerto, como se queira chamar), provocando a produção de um repertório então quase inexistente para viola solo. É verdade que os grupos populares e eruditos ligados ao Movimento Armorial abriram precedente nos anos 1970. Duas peças de Cussy de Almeida, Cipó branco de Macaparana e Cirandância, chegaram a evidenciar a viola como solista, mas, com isso, em virtude dos próprios paradigmas do movimento, ela não se aventurou por linguagens estéticas alheias àquelas a que estava habituada, pois as obras armoriais tomavam por base a música folclórica interiorana do Nordeste oriental. Dois álbuns recentes, no entanto, exploraram por vias diferentes novas linguagens e possibilidades técnicas para a viola de arame, dentro da composição erudita: Contos instrumentais, com Ricardo Matsuda e Patricia Gatti, e Viola em concerto, de Marcus Ferrer. O primeiro disco traz 12 peças baseadas em breves argumentos extramusicais, as quais trabalham as similaridades timbrísticas da viola e do cravo, enquanto o segundo apresenta outras 12 peças, para viola solo, guiadas pela experimentação e pelo abstracionismo.

DUeto coM cRAVo

O violeiro paulista Ricardo Matsuda compôs todas as músicas de Contos instrumentais a partir de encomendas, pequenas ideias ou homenagens. Daí a presença de adaptações de trilhas originais para vídeo institucional (O voo) e espetáculo de dança (Prelúdio para a donzela guerreira), peças fortuitas (A bailarina, inspirada numa caixinha de música) e tributos – a Elomar,


DivuLgação

Sonoras 2

Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e ao rabequista e pesquisador José Eduardo Gramani (1944-1998). O disco acabou se tornando uma iniciativa simultânea de aproximar a viola de arame do universo camerístico, e o cravo – historicamente ligado à música barroca – da música popular, já que as peças de Matsuda dialogam com ritmos familiares nossos, como o maxixe (Maxixe pra Chiquinha) e o son montuno (Tequila), ou abrem espaço para a improvisação (A fada e o saci). Cravistas como Patricia Gatti, bem antes de Contos instrumentais, e Rosana Lanzelotte têm desenvolvido essa tendência nos últimos 15 ou 20 anos, descontando a presença do cravo na Orquestra Armorial e um instrumento híbrido, a craviola, que adquiriu certo destaque com os Novos Baianos. No álbum, Ricardo Matsuda utilizou um violão e dois tipos de violas, que empregam as afinações mais difundidas no Brasil, a rio abaixo (em sol) e a cebolão (em ré, mas que pode ser em mi, caso o violeiro deseje dar mais tensão às cordas a fim de obter

no âmbito acadêmico, professores também atuam pela quebra de paradigmas no uso do instrumento de 10 cordas um timbre mais penetrante). Segundo reza a tradição, o nome da afinação rio abaixo vem da lenda de que o diabo a usaria para seduzir as moças e levá-las em seu barco, ao passo que a cebolão possuiria a capacidade de fazer as mulheres chorarem.

concePÇÕeS DiFeRenteS

As afinações rio abaixo e cebolão (em mi) foram empregadas também pelo violeiro carioca Marcus Ferrer, que, após estrear um concerto para viola de arame, de sua autoria, na Bienal de Música do Mato Grosso de 2004, decidiu gravar um CD de obras para viola solo. Dado que tal repertório simplesmente não existisse, Ferrer confiou a tarefa – que resultou no disco Viola em

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concerto – a 12 destacados compositores contemporâneos, residentes da Paraíba ao Rio Grande do Sul. O violeiro conta que preparou um texto básico sobre seu instrumento e o enviou aos compositores pedindo que criassem peças de dificuldade técnica média ou básica, no intuito de que outros intérpretes pudessem aprendêlas sem obstáculos maiores, mas depois retirou essa observação: “Achei que, como era uma proposta nova, não deveria impor limites, mas, sim, deixar a imaginação de cada um livre para criar o que tivesse vontade”. As partituras remetidas a Ferrer não seguiram praticamente nenhuma sugestão extramusical (diferentemente das citadas composições de Ricardo Matsuda) e valeram-se das influências diretas da música de raiz a discursos fragmentados e sons espectrais, caso de Psssssiu!..., de Marisa Rezende. “Fazia pouco tempo que minha mãe tinha falecido. A perda me colocou frente a questionamentos profundos sobre o sentido das coisas. Daí ter nascido a ideia de um discurso


INDICAÇÕES ‘truncado’, em que a tentativa de falar estava em xeque, quase como a dizer que a gente apenas murmura, e as pausas e os silêncios (da obra) são prenhes de significado por simbolizarem ecos do pensamento”, explica a compositora.

A VioLA PeRSiStiRÁ?

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cRAVo e VioLA

patricia gatti e ricardo matsuda trabalham as similaridades timbrísticas dos dois instrumentos no disco Contos instrumentais

Depois de protagonizar uma fugaz “época de ouro”, alavancada por virtuoses italianos e espanhóis no primeiro quartel do século 19, o violão perdeu para o piano e o violino a predileção do público e ficou marginalizado como instrumento doméstico até ser resgatado por Tárrega e dignificado por Segóvia no século 20. Esse dado instiga a pensar sobre os tempos em que a viola de arame deixará de ser associada exclusivamente à música folclórica e conseguirá livre trânsito pela música popular e de concerto. Em lugar de traçar perspectivas, Marcus Ferrer – que atua em uma pesquisa acadêmica envolvendo transcrições e adaptações de choros, maxixes, sambas, polcas e lundus – lembra o esforço de professores e concertistas que tentaram quebrar o preconceito que havia contra o violão na sociedade e no ambiente da música de concerto. “Por outro lado, até hoje não houve um movimento que tivesse a intenção de inserir a viola nesse outro ambiente musical”, completa Ferrer. Ricardo Matsuda recapitula o quanto o instrumento sertanejo caminhou nessa direção nos últimos anos: “A viola de 10 cordas era tida como incapaz de afinar. Permaneceu, assim, ligada à cultura rural. Hoje, com todas as suas variantes, ela vem conquistando espaço e prestígio em universidades e atrai um número crescente de novos praticantes e ouvintes. Observa-se uma grande variedade de estilos, dos mais tradicionais e populares aos híbridos, como nas novas aproximações da MPB mainstream, da chamada música instrumental, cada vez mais diversificada e dinâmica, e da música de câmara”.

@ continenteonline Confira algumas das composições citadas no site www.revistacontinente.com.br

MPB

POP

EDU loBo Tanta maré

KariNa BUHr Eu menti pra você

com seis faixas inéditas, o recémlançado disco Tanta maré não destoa da obra de edu Lobo em sofisticação e carrega suavidade, mesmo nas pegadas mais fortes. marcada pela flauta, de cara surge a Dança do corrupião, música composta em 1994, cuja letra, de paulo césar pinheiro, é inédita. a faixa anuncia um disco que vai lembrar o tempo em que edu passava as férias no recife, pois logo surge um frevo, Angu de caroço, e a Ciranda da bailarina – essa última no meio das quatro regravações das músicas em coautoria com chico Buarque.

À primeira impressão, Eu menti pra você, da ex-comadre Florzinha Karina Buhr, causa estranhamento. isso porque o mesmo disco que traz músicas tranquilas como Bemvinda e O pé, também traz letras e melodias conturbadas como Nassíria e Najaf – uma não tão sonífera cantiga de ninar as crianças de nassíria, najaf e Bagdá (“Dorme logo antes que você morra!”). a instrumentação é formada por um time emergente no cenário musical. músicos como Fernando catatau, marcelo Janeci e guizado marcam presença no disco.

SAMBA

MPB

independente

biscoito Fino

biscoito Fino

clécia qUEiroz Samba de roque o disco Samba de Roque traz, na voz de clécia Queiroz, 11 canções do compositor roque Ferreira, sendo 10 inéditas e mais duas faixas bônus, uma com composição de “domínio popular” e outra de autoria de Dalva Damiana de Freitas. o estilo é o chamado “samba de roda”, vertente baiana do samba, com muita influência africana. o cD vem com um glossário que explica palavras como adum e omim-ô presentes nas letras das músicas. os sambas combinam com a voz feminina de clécia . o disco soa, sobretudo, sincero.

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independente

Tom joBim minha alma canta em Minha alma canta, destacase o tom Jobim intérprete. ele gravou composições de grandes nomes da música brasileira, por mais de 30 anos, e a coletânea compila gravações que fez para os songbooks de outros compositores. nas 14 faixas, o maestro canta noel rosa, ary Barroso, Dorival caymmi, edu Lobo e, claro, o parceiro vinicius de moraes. uma rara oportunidade de conhecer o seu trabalho como intérprete, uma vez que Jobim quase nunca incluiu em seus discos obras de outros músicos.


Antônio Cadengue

UM OLHAR SOBRE REI DO CHEIRO A “Abertura” do romance Rei do cheiro (Record), de João Silvério

Antônio cadengue

é professor e encenador

guga melga/divulgação

Trevisan, se anuncia como um olhar perscrutador. Será um olhar que se dirige para alguém. Este alguém é um ser mediano, tem características próprias. O olhar constata e ressalta que este homem é um brasileiro que tem o nariz como centro de si mesmo. Sobre a visão e a inteligência, predomina o cheiro. O olfato. O cheiro de um humano que tem história de vida suspeita, sobre quem o olhar narrativo vai conjecturar, por meio de indícios, não apenas de sua aparência, mas também de suas próprias subjetividades. Este ser humano, ao final da “Abertura”, se dissolve, tornando-se reconhecível, porque “foi talhado na demasia. Da patifaria e da dor. Não muito diferente de todos”. O olhar que anuncia irá ao seu encalço. Ele é uma máscara. Outras máscaras virão a ela se acoplar, tornando-se “A cara do Brasil”. O olhar pode parecer a princípio um olhar de cima, de quem vai sobrevoar este ser, vai especialmente encará-lo atentamente, analisá-lo, avaliá-lo, mas não diz que vai julgá-lo. O leitor, de antemão, é convidado a entrar, com todos os seus sentidos, para olhar junto à ficção este “algoz e vítima”: o Rei do Cheiro. A narrativa se apresenta em caráter investigativo, aguçando o olhar e se adentrando em nós mesmos: na primeira parte, de “O reino menos o rei” até “O rei ouve”, fica claro o diálogo intertextual com a epígrafe de Augusto de Campos que abre o livro e que será a sua marca distintiva. O romance vai se engrenando e fazendo-nos ver, ouvir um Brasil que se diz moderno. A imprensa se faz presente na constituição do reino. Das ondas do rádio à inauguração da televisão. O consumismo, as celebridades, os políticos, a corrupção, o PCC... Na tessitura dos capítulos se entremeiam músicas, anúncios, notícias de época, programas humorísticos. Uma cosmogonia pelo avesso, com mitos, deuses e deusas em estado de simulacro, como o próprio país. Exemplar é o caso de “Chiquita bacana” – música citada no livro –, que era existencialista e vestia-se de uma casca de banana nanica, contrasta com o país em que “chora viola e sanfona”. De “O cheiro da arte” ao “O cheiro do fim”, que compõem a segunda parte do romance, os fragmentos de narrativa se entrelaçam a ponto de, por vezes, faltar respiração ao leitor, tal sua vertigem. As novas e velhas elites brasileiras são percebidas pelo personagem como cobras do Butantã. Este é o olhar do Rei que puxa o nosso. Temos de olhar todos com certa suspeição, porque as traições estão à espreita. Ao final, dois densos capítulos “O caos” e “A morte”. Aqui e agora só nos resta uma consciência dilacerada e impotente. O ciclo trágico se fecha testemunhando em silêncio um momento histórico preciso – nossa contemporaneidade – e expõe duas crianças famélicas a mamarem numa cadela tais quais Rômulo e Remo na mítica Roma, ao amanhecer da cidade mais rica da nação, na avenida mais poderosa do país. O olhar do leitor, desapontado, suspira por outro tempo-espaço por vir – porvir –, mas já não se sabe até quando. Ou, como diz o autor, “A vida é um louco ziguezague, cujo sentido não captamos”. Sem saída.

con ti nen te

continente abril 2010 | 88

Saída




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