Continente #113 - Ópera

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maio 2010

aos leitores ALESSANDRA fRATuS/DIVuLgAçãO

Nesta edição, salientamos dois assuntos de debate “aberto” no Brasil. Ambos sofrem espécies de preconceitos, seja por se apresentarem “de elite”, seja pelo seu reverso. O primeiro deles é a ópera, gênero musical dramático de tradição europeia que aqui está sendo observado a partir de suas manifestações no Brasil, tanto ao longo da história quanto na atualidade. Tomaram parte dessa reportagem três colaboradores que se especializaram na crítica musical no campo erudito. O outro assunto de destaque se espraiou por várias páginas e seções da revista: a presença negra no Brasil, em sua expressão afirmativa. Vozes diversas trazem para cá um recado de resistência. Como ocorre ao babalorixá Ivo de Xambá, que na Entrevista opina quanto ao 13 de Maio e a Abolição da Escravatura serem marcos históricos para brancos. “Essa história de dizer que a Princesa Isabel, num ato de sensibilidade, aboliu a escravidão, é conversa fiada. Quando ela assinou a abolição, só restavam 10% da população masculina adulta escrava, pois o resto tinha morrido nas guerras dos brancos”, diz ele. Por sua vez, Ricardo Santhiago foi considerado “branco demais” para empreender seu projeto de dissertação, que consistiu em entrevistar 13 cantoras negras que fogem de estereótipos nacionais, ao dispensar de seus repertórios o samba. Ou, quando o incluem, ressalvam: “Posso até cantar um samba e canto mesmo – mas quando eu quiser cantar, não porque querem que eu cante”, como fez Leila Maria (foto). Santhiago, em artigo, conta essa história ao leitor. Ainda no campo da música negra, trazemos o exemplo do rapper Emicida, que, na ausência de um suporte para comercialização de seus trabalhos, ganha o mundo vendendo CDs de protesto de mão em mão. Ah! Também deem uma olhada no Portfólio deste mês e reparem no olhar trazido por Luiz Santos sobre a precariedade em que ainda vivem muitos dos trabalhadores do Brasil “profundo”.

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sumário Portfólio

Luiz Santos 08

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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ivo de Xambá O babalorixá comenta aspectos da resistência negra

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Palco

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Matéria corrida

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Leitura

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Sonoras

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Artigo

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Saída

Balaio

Undercover boss Novo reality show da TV americana coloca chefe oculto diante de funcionários

Perfil

Família do Amparo Diferentes gerações de clã de artistas habitam casarão de Olinda

História

cometa Halley Passagem do corpo celeste próxima à Terra, há 100 anos, provocou imaginação popular

educação

McP Surgido em 1960, reuniu intelectuais, artistas, governo e sociedade em torno da proposta de formar cidadãos

Lume Filmes Produtora desenvolve projeto com objetivo de garimpar joias do cinema mundial e nacional

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conexão

Arte Web gallery of art (WBA) disponibiliza acervo de obras de oito séculos de história

claquete

Os rostos e expressões de uma parte da população do país que luta cotidianamente para viver são registrados pelo fotógrafo pernambucano

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teatro de Arena do Recife Há 50 anos nascia o grupo responsável por promover um teatro comercial de qualidade José cláudio Os pequenos presentes que recebemos e que marcam as nossas vidas

Roberto Bolaño Lançamento do livro 2666, do escritor chileno, cria expectativa entre fãs emicida O rapper que subverteu as normas da indústria fonográfica Ricardo Santhiago Cantoras brasileiras que transcendem estereótipos Yvana Fechine Um comentário sobre a lógica da exceção

Pernambucanas

Palácio da Soledade Prédio que abriga a nova sede do Iphan, no bairro da Boa Vista, já foi habitado por religiosos em meados do século 19 e hoje apresenta centro cultural aberto ao público

56 Capa iLuStRAção Ricardo Melo

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especial

Viagem

O gênero musical dramático tem sobrevivido no Brasil, apesar da ausência de políticas culturais de incentivo e da migração de talentos

Com uma produção agrícola baseada na cafeicultura, município agrestino atrai pela simplicidade, clima ameno e paisagem tranquilizante

cardápio

Visuais

Ervas e especiarias funcionam como elementos de identidade gastronômica que marcam as particularidades das cozinhas de cada lugar e de cada povo

Coleção artística e iconográfica pertencente ao Banco Itaú, que engloba pinturas, livros, objetos, imagens e documentos, revela aspectos dos 500 anos da história do país

Ópera

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Temperos

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Taquaritinga do Norte

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Mai’ 10

Brasiliana

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cartas por quem gosta de cultura. Cada mês melhor. Uma sugestão: não seria possível colocar os créditos dos articulistas logo abaixo dos seus nomes e não no início da publicação? Vida longa!.

sobre a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, sobre o bairro, os residentes, os músicos, cantores e o Maestro Forró. FeliPe luiz gomes e silva são caRlos – sP

José Paulo de oliveiRa ReciFe – Pe

Literatura infantil Recebi a revista Continente do mês de março e a matéria de capa, sobre Literatura Infantil, na qual fui fonte de informação, está muito boa. Contem sempre comigo. Haidée Fonseca ReciFe – Pe

Qualidade Sou assinante da Continente há alguns anos e sempre me surpreendo com a qualidade e variedade dos assuntos focados. Estou sempre divulgando a revista pois acho imprescindível sua leitura

Resposta da Redação Dentro do novo projeto gráfico da revista Continente, há uma página dedicada exclusivamente ao seu expediente e aos créditos de todos os colaboradores, sejam eles fotógrafos, ilustradores ou jornalistas. O mesmo ocorre com nossos articulistas.

Distribuição Aproveito os feriados e folheio (e leio) esta publicação maravilhosa (o Juscelino diria formidável) que é a Continente, que recebia regularmente quando era diretorgeral da Imprensa Oficial de Minas. Na época acentuei que o periódico era “Recife falando para o mundo”. Ainda circula? José maRia couto moReiRa

Via internet

Belo HoRizonte – mg

Vale a pena assinar e ler a Continente, feita em Pernambuco. Fiz a assinatura recentemente e espero que a revista esteja a caminho, estou muito ansioso para ler os artigos. Eu a conheci por acaso, na internet. Visitei seu sítio e achei muito legal. Parabéns pelo trabalho. Destaco a reportagem

Resposta da Redação A revista Continente tem trabalhado para ampliar e aprimorar sua distribuição em todo o Brasil. Em breve, ela chegará às bancas e livrarias de Belo Horizonte. Enquanto isso, o leitor pode encontrá-la em todas as livrarias Cultura do país.

você Faz a continente com a gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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Site

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colaboradores

christel Jacob Fotógrafa francesa. Explora a América Latina em ensaios de viagem

João Luiz sampaio Jornalista de O Estado de S. Paulo. É autor de Ópera à brasileira

Ricardo santhiago Autor do livro Solistas dissonantes: História (oral) de cantoras negras

sérgio casoy Pesquisador de música lírica há mais de 40 anos e autor de cinco livros sobre ópera

e Mais carlos eduardo amaral, mestrando em comunicação social pela UFPE e crítico de música clássica. débora nascimento, jornalista e editora da revista Eita!. Flávio Brayner, professor de filosofia da educação na UFPE. eduardo Queiroga, fotógrafo e um dos fundadores da agência Lumiar Fotografia. Gilson oliveira, jornalista. Leidson Ferraz, ator, jornalista e pesquisador teatral, organizador da coleção Memórias da cena pernambucana. Marcelo costa, jornalista e crítico de cinema. olívia Mindêlo, jornalista e mestranda em sociologia. priscila Buhr, fotógrafa. Renata do amaral, jornalista, mestra em comunicação e colaboradora do site Quinto Pecado. schneider carpeggiani, jornalista e doutorando em letras. Yvana Fechine, doutora em comunicação e semiótica, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social/Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE.

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE RedaÇão, administRaÇão e PaRQue gRÁFico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

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ivo de xambá

Um filho de oxum cuida de seu povo

Babalorixá do Terreiro Santa Bárbara, primeiro quilombo urbano do Nordeste, ele está à frente de projetos de preservação da memória religiosa e cultural negra, pela criação de centro documental texto Danielle Romani fotos Maíra Gamarra

con ti nen te

Entrevista

Há cerca de dois meses, o ator

Danny Glover esteve no Recife. O intérprete de filmes como Máquina mortífera e A cor púrpura aproveitou para conhecer um local que é considerado um núcleo de resistência cultural negra, o terreiro Santa Bárbara Ilê Axé Oyá Meguê da Nação Xambá, localizado em Portão de Gelo, no bairro de São Benedito, em Olinda. Ativista social e embaixador da Unicef, o astro hollywoodiano quis ver de perto o trabalho desenvolvido pelo primeiro quilombo urbano do Nordeste e terceiro do Brasil, que vem concretizando vários projetos, entre eles a criação de um espaço cultural que abriga memorial, museu e centro documental na sede do terreiro, uma iniciativa inédita em termos locais na preservação da memória religiosa negra. Glover não foi o primeiro artista engajado a se interessar pelo trabalho da Nação. Além dele, personalidades como o músico e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil mantêm interlocução com Adeildo Paraíso da Silva, ou Ivo de Xambá, babalorixá que assumiu a direção do terreiro em março de 2003. Às vésperas de completar 80 anos, a Nação

passa por um processo de valorização de sua autoestima e do respeito público que seus antigos babalorixás e ialorixás não usufruíram. Mesmo com o reconhecimento, continua na memória dos membros o preconceito, a discriminação e a violência empregados contra os “macumbeiros”, como eram conhecidos os adeptos do candomblé e da umbanda em todo Brasil. “A gente cresceu sem poder dizer na escola que era do xangô (forma como é chamado o candomblé em Pernambuco)”, lembra Ivo de Xambá. A casa olindense, localizada na rua hoje chamada Severina Paraíso da Silva, em homenagem a mãe Biu, ialorixá que esteve por mais de 40 anos à frente da congregação, foi fundada oficialmente em junho de 1930. A Nação chegou ao Recife no início da década de 1920, trazida pelo babalorixá Artur Rosendo Pereira que, perseguido pela polícia alagoana, se transferiu para Pernambuco. O que se afirma é que os xambás seriam descendentes dos povos que habitavam os limites da Nigéria com Camarões.

Na entrevista a seguir, o babalorixá Ivo de Xambá, que é filho de mãe Biu, fala sobre o preconceito contra as religiões de matriz negra, o trabalho comunitário da Nação Xambá, os projetos que gostaria de ver aprovados pelas autoridades locais e nacionais e o relacionamento com outras congregações religiosas e com o público. continente Qual a representatividade da Nação Xambá na afirmação cultural negra? iVo De XAMBÁ A Nação fez vários filhos de santo na tradição Xambá. As ialorixás mais antigas em Pernambuco são todas filhas de Xambá. Nosso terreiro foi inaugurado em 1930, em Água Fria, depois tivemos o período de dureza, que se deu com o fechamento do terreiro em 1938, durante o Estado Novo, mas que foi reaberto pela minha mãe em 1950, na localidade de Santa Clara e, finalmente, em 1951, chegamos aqui. Além do nosso trabalho religioso, mantemos um trabalho cultural com a comunidade. Como terceiro quilombo urbano do país, promovemos encontros, participamos de eventos, congressos, debates. Temos um

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espaço cultural dentro do prédio, com museu, biblioteca e centro documental. Composto por fotografias, textos, documentos e indumentárias, nosso museu resgata, preserva e divulga a história do Terreiro Santa Bárbara (como é chamado o terreiro da Nação Xambá, devido ao fato de as duas primeiras ialorixás da casa serem filhas de Iansã, no sincretismo, Santa Bárbara). continente O candomblé tem sido alvo de preconceito e perseguições durante os últimos séculos. Pode-se dizer que a existência de um

con ti nen te

muita repressão, manteve a placa até sua morte, em 1993. Só pude tirar a danada da placa da parede depois que ela morreu, tamanho era o temor que ela tinha de repressão, da polícia. Mas o Estado Novo foi apenas uma etapa. Antes, em 1827, a Igreja Católica, com apoio do Estado, estabeleceu que só se podia tirar o registro de nascimento com o batistério. Para se casar também tinha que ser na igreja, conseguir atestado de óbito, idem. continente Como se deu a resistência através do candomblé?

que obriga as escolas a ensinarem a história e a contribuição do negro na sociedade. Muitas vezes, os fatos não são devidamente explicados. Quanto à lei do Ventre Livre, aquilo é uma falácia. Eu aprendi na escola que as crianças que nasciam depois da lei eram livres. Nada disso; eles não contavam que o negro tinha que ficar até os sete anos junto da mãe e que todos tinham que trabalhar, obrigatoriamente, até os 21 anos, para pagar o que tinham comido naquele período. Outra coisa é a abolição da escravatura. Essa história

Entrevista espaço como o Terreiro Santa Bárbara é um marco da luta e resistência cultural negra? iVo De XAMBÁ A atuação do Estado Novo foi massacrante. Conta-se que Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, influenciou muito o governo de Agamenon Magalhães a tomar medidas contra a religião africana. Daí começaram as perseguições ao candomblé, não só em Pernambuco, mas em todo o Brasil. Principalmente no final da década de 1930, a repressão foi cruel: em 1938, fecharam os terreiros. Crianças e adolescentes não podiam frequentar os cultos. Todos os terreiros eram obrigados a fixar uma placa: “Proibida a entrada de menores de 18 anos”, bem visível. Minha mãe, que sofreu

iVo De XAMBÁ Foi a religião que deu suporte ao negro no Brasil. Aquela alma que ele tinha lá na África, recuperou, resgatou sua sensibilidade, sua autoestima no candomblé. Porque foi o candomblé que ressocializou o homem negro na sociedade brasileira, tornando-o pai de santo, mãe de santo. O candomblé e a fé o fizeram permanecer vivo. continente É possível modificar esse quadro de intolerância, atenuar as diferenças? iVo De XAMBÁ A gente, quando fala de resistência, fala não só do candomblé, mas da questão negra como um todo. Todas essas questões poderiam ser de certa forma amenizadas com a correta aplicação da Lei 10.639, de 2003,

de dizer que a Princesa Isabel, num ato de sensibilidade, aboliu a escravidão, é conversa fiada. Quando ela assinou a abolição, só restavam 10% da população masculina adulta escrava, pois o resto tinha morrido nas guerras dos brancos. Em todas as guerras, batalhas, os donos de engenho poupavam a si próprios e a seus filhos, e mandavam os negros. Na Guerra do Paraguai, foram os negros que batalharam, que venceram. E milhares morreram. Foi por isso que na promulgação da Lei Áurea havia apenas 10% da população escrava viva, pois o resto tinha morrido nas guerras dos brancos. continente Quais as diferenças entre o candomblé e a umbanda?

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iVo De XAMBÁ O candomblé que veio da África já não é o que temos hoje no nosso país. Mas aqui ou em qualquer lugar, quando a ialorixá fala no orixá, diz Xangô, não São João Batista. Jamais vai usar os nomes católicos nos nossos ritos. Os toques e cantos do candomblé também são todos em iorubá, língua que dita os toques e cantos das religiões de matriz africana. Mas no Brasil houve a junção de alguns detalhes da cultura brasileira com a religião da África. Aí eu concordo com o que dizem alguns estudiosos, que se juntou a religião de

que ele estaria. Me confundi com as datas e não fui. Lamento muito, pois gostaria de ter estado ao seu lado, de dar um abraço nele. continente E quanto ao sacrifício de animais? iVo De XAMBÁ Uma vez argumentei com uma mulher que acusava a gente de ser cruel, de matar os bichinhos... Eu disse: “Me diga uma coisa, a senhora é vegetariana? Não, se a senhora não é vegetariana, então come galinha, bode, pato, cabra... A diferença no candomblé

“temos um espaço cultural dentro do prédio, com museu, biblioteca e centro documental. nosso museu resgata, preserva e divulga a história do terreiro Santa Bárbara”

matriz africana que vinha com os orixás com as que já existiam no país, com os caboclos, os mestres. A umbanda é isso. Vem da junção da África com a cultura dos portugueses e dos índios. Mas quero deixar claro que religião, para mim, é ancestralidade; não é só na religião de matriz africana não, é em todas. continente Como se dá hoje a convivência do candomblé com a Igreja Católica? iVo De XAMBÁ Hoje, a convivência com o catolicismo é bem mais respeitosa. A Igreja abriu as portas na Bahia para a Lavagem do Bonfim. Dom Fernando Saburido (arcebispo de Olinda e Recife) é uma pessoa especial. Recentemente, fui convidado para um encontro em

é que não vai comer temperado! Segundo, se a senhora é naturalista, fique tranquila, pois os animais abatidos pelo candomblé não são ameaçados de extinção, nem são da fauna brasileira preservada. Terceiro: por que outras religiões podem ter seus animais sagrados e nós não? Somente os cristãos não fazem distinção de carnes, de animais. Todas as outras têm seus rituais e consomem determinados animais, que são preparados de acordo com rituais específicos. Ninguém questiona o muçulmano, o judeu, nem outra religião pelos seus rituais”. continente Além de líder espiritual, você foi também líder sindicalista. Participa de congressos, reuniões, fóruns

de debate raciais. Que projetos apoia e pretende ver aprovados? iVo De XAMBÁ Pelo Estado, no âmbito da Assembleia Legislativa e das Câmaras Municipais, esperamos a aprovação de dois projetos de âmbito educacional, a fim de estimular a religiosidade. O primeiro definiria o orixá padroeiro de cada município pernambucano e o orixá guardião do próprio Estado – que no caso de Pernambuco poderia ser Xangô, nome pelo qual são chamados os terreiros daqui. Seria uma forma de aproximar o cidadão. O segundo projeto é no âmbito religioso. A ideia é que a capelania da Polícia Militar, além de ter um padre ou um pastor, também tenha um babalorixá. Isso esclareceria melhor o policial, daria um afinamento e um conhecimento mais amplo para a corporação. Um terceiro projeto, muito importante, diria respeito a uma indenização para os babalorixás e ialorixás que foram perseguidos durante o Estado Novo e a ditadura militar. Assim como os presos políticos, eles e suas famílias passaram por dificuldades materiais, muitos foram presos, outros foram vítimas de grande constrangimento moral. continente Ao contrário de outras religiões, vocês não fazem muita divulgação de suas festas e rituais. Todos, brancos e negros, são bem-vindos aos terreiros? iVo De XAMBÁ As pessoas têm que lembrar o seguinte: o candomblé foi muito reprimido, censurado. Vivíamos escondidos. Então, nossa postura sempre foi de retração. De não nos expormos. O fato de não fazermos propaganda vem disso. Até pouco tempo, o camarada tinha que ter autoestima forte para querer ser do candomblé, assumir isso, não ter receio de ser olhado com preconceito. Quanto ao acesso aos nossos rituais, existem, logicamente, alguns secretos e sagrados, dos quais só podem participar os filhos, mães e pais de santos, e que obviamente não estão abertos ao público. Mas nossos encontros e festas, cujas datas são divulgadas no nosso site (www.xamba. com.br), estão prontos para receber qualquer pessoa. O nosso terreiro está aberto a todos..

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

FaMÍLia de artiSta

ÓPeraS onLine

Escute algumas composições de Catarina de Jah e confira mais imagens do casarão e da Família do Amparo

Nossa matéria especial trata da ópera no Brasil. Como essa arte congrega elementos musicais, cenográficos, e, agora, até efeitos tecnológicos, disponibilizamos em nosso site vídeos de algumas obras realizadas no país: A menina das nuvens, de Heitor Villa-Lobos, e Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura e Waldemar José Solha. Está disponível, ainda, a apresentação do livro Ópera à brasileira (Algol Editora), de autoria de João Luiz Sampaio, que também assina um texto nesta edição.

con ti nen te

Conexão

eMicida Conheça um pouco mais do trabalho do rapper que vendeu 10 mil cópias independentes do seu primeiro CD no mano a mano e acaba de lançar um EP de seis músicas

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

andançaS virtuaiS Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar

e-BooKS

cineMa

Literatura

JornaLiSMo

Política do livro digital gratuito no site da Editora Plus

Script Shadow resenha os roteiros não filmados

Página oferece orientações para leituras de obras congêneres

Vídeos revelam os bastidores do maior jornal do mundo

editoraplus.org

scriptshadow.blogspot.com

bookseer.com

migre.me/vLmO

“Não queremos o seu dinheiro. Queremos sua atenção.” Esse é o mote da Plus, editora dedicada a publicar livros digitais e disponibilizá-los gratuitamente. Com arquivos para os vários leitores eletrônicos do mercado, o site traz o catálogo regular da editora, composto por obras inéditas enviadas voluntariamente pelos autores e aprovadas pelo conselho editorial, além de outras duas coleções: a Dressed by Plus, que reedita clássicos em formato e-book, e a Faça um e-book na escola, que reúne livros feitos por estudantes.

Mantido por Carson Reeves (um codinome), o Script Shadow já se tornou uma referência para os cinéfilos, por seu trabalho inventivo. Sendo um dos poucos a se dedicar à crítica de roteiros não filmados, o site analisa os pontos positivos e os principais defeitos dos textos, mantendo inclusive um Top 25 com as suas leituras preferidas. Segundo Reeves, que já se arriscou na criação de roteiros, estudar as obras que não saíram do papel é de valor inestimável para qualquer um que pretenda trabalhar com cinema.

Uma das perguntas comuns ao se terminar um livro de que se tenha gostado é: “E agora, o que devo ler?” O Book Seer (em português, “vidente de livros”) se propõe a manter o nível de satisfação do leitor, apontando leituras similares àquela recém-concluída e indicada pelo leitor no site. Utilizando como referência livrarias online e sites de catalogação de obras, as sugestões seguem o padrão de semelhança temática e estética ou até publicações da mesma época. Disponível só em inglês, o site também tem versão para celulares (www.bookseer.com/m).

Diariamente, os editores do New York Times – como os de qualquer outra publicação – se reúnem para decidir o que o jornal vai publicar no dia seguinte. Esse é um momento tradicionalmente reservado, mas o NYT decidiu liberar o conteúdo de suas reuniões de pauta e criou o TimeCast, mostrando que a crise e a concorrência entre os veículos impressos pode resultar em uma maior transparência jornalística. Cada vídeo tem pouco mais de cinco minutos e, infelizmente, é editado: segundo o jornal, parte dos diálogos dos editores permanecerá como mistério.

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REPRODUçãO

blogs citaçÕeS http://ranchocarne.tumblr.com

Neste endereço, o escritor Daniel Galera reúne trechos de livros, entrevistas ou contos que ele destacou em suas leituras. Entre os sublinhados de agora estão David Foster Wallace, Le Clézio e John Cheever.

iLuStraçÃo http://pabloauladell.blogspot.com

viSita Guiada À HiStÓria da arte Mantendo-se pela doação de seus usuários, a Web gallery of art permite a visualização de esculturas e pinturas históricas do medievo ao século 19 www.wga.hu

um site que se propõe a ser um museu virtual possui algumas armadilhas.

Mesmo com as vantagens da gratuidade e da facilidade de acesso, existe uma questão: a tela eletrônica é capaz de promover satisfatoriamente a visão de uma obra de arte? É verdade que a internet disponibiliza uma grande quantidade de imagens de forma rápida e eficiente, mas a sua fruição visual ainda é bastante afetada no que diz respeito aos meios originais das obras. Mesmo com a tecnologia atual, que já criou suportes de leitura como kindles e iPods, ainda não surgiu algo similar para pinturas e esculturas, até por suas características de textura e tridimensionalidade. Apesar desses poréns, é inegável a importância de sites como o Web gallery of art (WBA) para a democratização da história da cultura e da arte. Com um acervo dedicado às obras feitas do século 11 a meados do 19, a WBA é um projeto ousado. Vivendo de doações de internautas, a galeria tem em seu catálogo mais de 24 mil reproduções de obras artísticas, além de variadas formas de acesso a elas. Dentre as comuns, estão um mecanismo de busca e a listagem por autor. A mais interessante, no entanto, é o formato de visita guiada, na qual o usuário pode navegar por temas como os pintores italianos, a Capela Sistina, a arte britânica e o estilo gótico internacional. DioGo GUeDeS

O ilustrador e quadrinista espanhol Pablo Auladell publica no seu blog alguns de seus belos desenhos, além de disponibilizar previews de suas parcerias em HQs e livros infantis.

entreviSta http://estrelaselvagem.wordpress.com

Partindo do pressuposto de que as entrevistas de Roberto Bolaño também tinham um viés literário, os os autores do blog Estrela selvagem traduzem as declarações irônicas e polêmicas do escritor chileno.

ironia http://www.revistapiaui.com.br/herald/ capa.aspx

Dentre as matérias de humor do The i-Piauí Herald, pode-se ler sobre a quantidade de vezes que os jornalistas do Caderno 2 entrevistam Caetano Veloso, ou o lançamento de um gerador de pautas para o Globo Repórter.

sites para

iPhone FOTO

NOTÍCIAS

ILUSTRAÇÃO

http://flickr.com

http://iphone.cbsnews.com

http://deviantart.com

O principal site de imagens do mundo tem uma visualização simples e eficiente para os interessados em fotografia que usam o iPhone.

O site da rede de televisão americana CBS avisa sobre acontecimentos de última hora e disponibiliza reportagens em vídeo.

Também disponível em versão para monitores, o DeviantART reúne obras de diversos desenhistas amadores e profissionais.

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Port f

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Portfólio

Luiz Santos

AS EXPRESSÕES DE UM POVO TexTo Thiago Lins

com a soma das vivências de 20 anos de carreira, o fotógrafo Luiz Santos diz

estar alheio. “Não leio mais jornais nem revistas”, assume, citando dois meios que requerem tempo e olhar específicos. Para ele, a trivialidade do cotidiano retratada nesses veículos não deixa margem a interpretações das imagens – o maior interesse do fotógrafo. A ele também concerne a discussão sobre uma certa “crise” na fotografia, visto que a convergência dos meios de comunicação impôs outras condições: ao mesmo tempo em que o ofício se aproxima do dia a dia, afasta-se do fazer artístico. A exigência de habilidades tentaculares no desempenho da profissão – como estar na hora certa e no lugar certo, selecionar e tratar as imagens, tudo antes da hora de fechamento da edição – acaba por impossibilitar uma composição visual refinada. O fotógrafo diz que, por precisar fazer muito mais, acaba fazendo muito menos. Luiz Santos prefere não seguir o novo (e esgotante) modo de produção. Diversas leituras podem ser feitas a partir de seus ensaios, que são frutos de suas andanças ao longo dos anos. Em foco, estão os trabalhadores de um Brasil menos conhecido, cujo crescimento econômico ainda não foi capaz de suprimir a precariedade da mão-de-obra em determinadas regiões, sobretudo as do interior, como bem mostra Santos nas imagens.

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As fotos de Santos permitem diferentes pontos de vista

Nestas páginas 2-3 encontro e buSca

Semblantes que estampam situações extremas no calor: o"refresco" e a sede

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con ti nen te

Portfólio

“O que mais me interessa é a formação do povo brasileiro”, afirma. Com esse foco, Santos busca o registro de uma realidade que reputa vir sendo ofuscada nesses anos de crescimento: as expressões carregadas de um povo que apenas subsiste. Os sacrifícios impostos na luta por terra e água, e a conotação de tesouro que estes bens atingem sob determinadas condições. Como emblema disso, basta comparar o semblante de duas crianças nas imagens expostas: uma encontra água, outra busca. Após anos de registro de um povo tão heterogêneo, o fotógrafo resolveu se dedicar à produção de um filme sobre a fotografia de lambe-lambe. O curtametragem Cinema de dois tões registra viagens entre o Recife e Juazeiro do Norte, no interior da Bahia, tendo como personagem Tonho Ceará, que há 32 anos deixou Juazeiro pelo Recife e até hoje resiste no ofício, com sua caixinha de madeira de fazer fotografia apoiada num tripé, no arredor do tradicional Mercado de São José, no centro do Recife. Ceará, que já foi agraciado com o prêmio Porto Seguro de Fotografia, tem agora sua ação documentada por um conhecedor de sua técnica popular.

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4 Preto no branco Tabuleiro de contrastes 5 aLimento Farinha de mandioca, riqueza de Salgueiro, no alto sert茫o pernambucano 6 quiLomboLaS Fam铆lia na comunidade do C贸rrego da Miseric贸rdia, na Chapada Norte de Minas Gerais

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iMAGENS: REpRODuçãO

o SAnGUe DoS tiPoS

o chefe oculto Você é empregado de uma grande empresa cujo dono nunca viu. Uma vaga é aberta e a firma começa a fazer uma temporada de teste com um candidato. Durante os expedientes, o novato começa a conhecer cada um dos seus colegas, a observar atitudes, escutar comentários em relação à empresa e até participa dos costumeiros conflitos, disputas e brigas do ambiente de trabalho. Depois de muito estresse e de várias confissões, você descobre que aquele franzino novato, a quem contou como burlar o ponto, é o proprietário da empresa. Esse é um breve resumo do novo reality show americano que tem alavancado a audiência da CBS há alguns meses. O Undercover boss parece ser cria da recente crise econômica, que tem aguçado o medo de desemprego dos americanos. Na TV, o chefe disfarçado não pode demitir ninguém. Agora, a pergunta que está no ar é: até quando o programa seguirá? Como se tornou um sucesso de público, não se manterá desconhecido de mais nenhum pobre trabalhador por muito tempo. Os produtores afirmam que conseguem estender a atração por mais duas temporadas. Será? maRiana oLiVeiRa

con ti nen te

A FRASE

“A vanguarda de ontem é o chique de hoje e o clichê de amanhã.”

Conta-se que Gutemberg, na época em que inventou os tipos impressos, padecia de sérios problemas financeiros e viu-se forçado a pedir um empréstimo de valor muito alto ao seu sócio, Juan Fust. Como a dívida não foi saldada, Fust ficou com a posse da valiosa invenção e, utilizando-se de seu tino empresarial, logo começou a imprimir uma grande quantidade de bíblias, atendendo aos pedidos de entrega imediatamente. Os concorrentes, entre admirados e invejosos, que não sabiam como ele conseguia produzir tantos livros em tão pouco tempo, começaram a espalhar o boato de que aquilo era feitiçaria e que os títulos em vermelho que aquele homem utilizava nas capas eram na verdade pintados com o sangue que ele utilizara para selar um pacto com o Diabo. Correndo o risco de ser levado para a fogueira, Juan Fust teve que revelar seu segredo e admitir que os méritos pela invenção pertenciam ao seu antigo sócio. (Eduardo Cesar Maia)

Balaio AnSieDADeS cRÍticAS

O canadense Northrop Frye, autor de Anatomy of criticism, acreditava que a crítica literária, assim como a religião, é uma espécie de território sem lei em que um grande número de pessoas se sente à vontade e tem liberdade para dar vazão a suas angústias, ao invés de analisar mais objetivamente as obras e os escritores. Mas Frye advertia que qualquer menção a esse fato pode levar à resposta: “Claro, mas você não entende o quão importante são nossas ansiedades...” (ECM)

eRRo De eScALAÇÃo O escritor João Cabral de Melo Neto foi jogador de futebol. Conseguiu a façanha de, no mesmo ano, ser lanterna e vencedor do campeonato pernambucano: começou jogando no perdedor América e acabou vitorioso pelo Santa Cruz. Foi também torcedor ferrenho do América. Chico Buarque, no intuito de homenageá-lo, escreveu uma “escalação” da seleção brasileira, que incluía um jogador do Náutico, e enviou para JCMN. Ele agradeceu, mas disse: se quisesse mesmo lhe agradar, “escalasse” alguém do América do Recife.

Richard Hofstadter

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AURÉLIO, O AUTODIDATA Em entrevista concedida a Homero Senna, em 1949, posteriormente publicada na Revista do Globo, número 489, o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda, autor de um dos mais populares dicionários brasileiros, expôs as dificuldades enfrentadas no ambiente escolar devido às precárias condições de Porto de Pedras e Porto Calvo, cidades alagoanas onde iniciou seus estudos. Abismado com a informação de que Aurélio nunca tivera um professor de filologia na vida, Senna o elogiou, afirmando que o autor seria, portanto, 100% autodidata. E recebeu a resposta: “Só não digo 101% porque isso é impossível”. (Raquel Monteath)

CRIATURAS

AURÉLIO, O ESTUDANTE Mesmo matriculado na Faculdade de Direito do Recife, onde se formou, Aurélio Buarque de Holanda continuou morando em Maceió durante toda a graduação, vindo à cidade apenas para realizar as provas. Isso porque o alagoano não conseguiu um emprego que lhe fornecesse 200 mil réis, que, segundo ele, era a quantia necessária para um estudante conseguir se manter na cidade. (RM)

DIABO FILÓSOFO

Enquanto escrevia Doutor Fausto na Califórnia, Thomas Mann teve a oportunidade de conhecer o filósofo Theodor Adorno. Mesmo já premiado com o Nobel, Mann passou a pedir conselhos sobre música clássica para Adorno, com intenção de enriquecer a obra cujo personagem principal era um compositor. Assim, o filósofo não só leu trechos do livro e sugeriu alterações, como chegou a executar para o amigo a Sonata opus 11, de Beethoven, tema de alguns trechos de Doutor Fausto. A amizade rendeu até uma pequena brincadeira na obra. O Diabo, que compra a alma de Doutor Fausto em troca da inspiração e genialidade, era considerado pelos dois a encarnação literária de Adorno, chegando a ser descrito como “um intelectual que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da composição musical”. (Diogo Guedes)

Nelson Mandela

© Quinho

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FOTO: EUZIVALDO QUEIROZ/A CRÍTICA-AM

Elitista? Tem gente CON TI NEN TE

O problema é que este gênero artístico demanda uma equipe gigante de produção e ainda não há no Brasil política cultural que lhe dê suporte TEXTO Sergio Casoy

ESPECIAL

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e que n達o concorda

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con especial ti nen te imagens: reprodução

La traviata , uma das óperas mais encenadas do mundo, tem apenas três personagens principais, três secundários e alguns figurantes. A maior ópera cômica de todos os tempos, Il barbiere di Siviglia, tal e qual a trágica Madama Butterfly, tem não mais de cinco personagens importantes. Mas para que o diminuto número de artistas que os representam possa subir ao palco e cumprir sua missão, é necessário um verdadeiro exército de profissionais para formatar o espetáculo. Além do esquadrão técnico e de apoio que faz ou deveria fazer parte da folha de pagamento de qualquer teatro – eletricistas, marceneiros, contrarregras, camareiras –, há, no

no Brasil, há bons cantores, diretores de cena e maestros, além de tecnologia e talento suficientes na criação e produção caso dos teatros de ópera, os corpos estáveis, dos quais fazem parte a orquestra da casa, cuja quantidade de integrantes pode variar desde 35, em uma ópera de Mozart, até mais de 100 elementos em certas obras de Richard Strauss; o coro, que se apresenta normalmente com cerca de 40 elementos; e o corpo de baile, que entra em ação sempre que a ópera em pauta contiver um balé. Todos esses organismos devem ser convenientemente ensaiados, preparados e, no devido tempo, encaixados na encenação. Paralelamente, o diretor de cena, que os italianos chamam de regista e do qual emanam diretamente tanto cenários quanto figurinos (um todo integrado a ser realizado pela produção com o concurso de cenógrafos, profissionais de iluminação, paisagistas e figurinistas), trata de se acertar com o diretor musical, o qual, além de reger a orquestra, tem diante de si a difícil tarefa de amoldar os cantores solistas à sua visão musical do papel de cada um, ocasionando um frequente embate de egos entre o pódio e o palco.

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O sempre bem-humorado Rossini afirmava ser “o teatro um hospício, e a ópera, o pavilhão dos incuráveis”. A verdade é que, loucura ou não, nós no Brasil aprendemos a fazer ópera direitinho. Além de cantores, capazes de honrar a camisa brasileira nos quesitos canto e interpretação, sem ninguém botar (muito) defeito, dispomos de qualificados diretores de cena, maestros, tecnologia e bom gosto suficientes para criação e produção de cenários e desenho de luz.

O Brasil tem um público que, ano a ano, cresce, renova-se e que, embora ame o repertório tradicional, tem a mente aberta para assistir às composições que são novidades por aqui. O problema é o mesmo de sempre, e comum a uma série de outras manifestações artísticas: falta de dinheiro. Nem sempre foi assim. Num modelo que durou muito tempo e até meio século atrás foi o predominante em São Paulo e no Rio de Janeiro, as temporadas líricas eram confiadas aos empresários. Após

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elenco se prepara para estreia da peça Ça-ira, no Teatro amazonas

Nestas Páginas 2 cRoqUi

Figurino de encenação de La traviata, que em geral é de responsabilidade do diretor de cena

3-4 gRáficAS Folhetos de montagens de La traviata e Madama Butterfly, ambas bastante populares e remontadas em todo o mundo

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alugar os theatros municipais ou vencer uma concorrência pública recebendo um pequeno subsídio, os empresários importavam produção, cenários e cantores de destaque. Se tudo desse certo, os empresários chegavam a capitalizar um bom lucro. Anos seguidos de inflação e desvalorização de nossa moeda impediram que esse modelo continuasse sendo vantajoso e o poder público acabou tomando conta da iniciativa na década de 1980. Funcionou durante um tempo,

mas, depois, mudanças de governo, falta de compreensão oficial e demagogia, empregando o falso conceito de que se tratava de uma arte elitista, acabaram colocando as produções numa situação difícil, obrigando-as a reduzir sua qualidade para poder sobreviver.

PoUcAS RÉcitAS

A criação das leis de renúncia fiscal, que todos esperavam que fossem eficazes, acabou virando um buraco n’água. Salvo raríssimas e honrosas

exceções, uma empresa que vise à divulgação de sua marca aposta seus recursos fiscais num espetáculo que tenha uma concentração massiva de público. Ora, a capacidade dos maiores teatros de ópera do Brasil não chega a 2 mil poltronas, e uma ópera que atinja seis récitas é considerada um sucesso. No ano de 2009, grandes cidades como São Paulo e Belo Horizonte, assim como os tradicionais festivais de Belém e Manaus, encenaram a quantidade ridícula de três produções cada uma. O Rio, com

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5 noVA YoRK o metropolitan opera House multiplicou seu público nos últimos anos, quando passou a transmitir ao vivo de seus palcos para os cinemas 6 efeitoS eSPeciAiS a ópera brasileira Kseni – A Estrangeira, de Jocy de oliveira, explora as novas tecnologias na cenografia

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o Municipal sendo reformado em marcha lentíssima, nem fez ópera. Círculo vicioso sem solução? Nem tanto. Um dos teatros de ópera mais importantes do mundo, o Metropolitan Opera House – que, por sinal, obtém menos de 5% de suas entradas financeiras dos cofres do Estado – passou a transmitir ao vivo para os cinemas dos Estados Unidos óperas diretamente de seu palco, multiplicando tanto o público quanto a penetração da propaganda veiculada. A experiência funcionou tão bem, que esses espetáculos, gravados em altíssima definição, estão sendo exibidos agora em países como México, Argentina e Brasil. A jornalista Heloisa Fischer, em seu artigo na coletânea Ópera

As óperas não têm sido beneficiadas pelas leis de renúncia fiscal, em parte pela insensibilidade dos executivos à brasileira, mostrou que, durante 2007, os investimentos via Lei Rouanet totalizaram R$ 465 milhões, distribuídos por todas as manifestações artísticas e culturais abrangidas pelo texto da lei, doados por cerca de 1,3 mil empresas. O problema reside justamente aí: apenas “1,3 mil decisores de verbas de patrocínio (...)

decidem o que será realizado em todo o país, em todas as manifestações culturais, ao longo de todo o ano. Pouco mais de mil executivos definem o consumo cultural de 186 milhões de brasileiros”. E, pelos resultados, grande parte desses executivos ou não conhece ou não gosta de ópera. Algo nesse quadro tem de mudar. É fundamental que seja estabelecida uma política oficial de longo prazo para a ópera no Brasil, com regras definidas, que permita a expansão artística que esta atividade merece, sob pena de, como já está acontecendo, perdermos nossas belas vozes para o exterior. Afinal, os cantores também precisam trabalhar e comer com regularidade.

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cRiAção MAiS tecnoLogiA, MAiS PúBLico nunca houve tanta gente jovem frequentando os teatros de ópera brasileiros como nos últimos 10 ou 15 anos. Há cada vez menos cidadãos circunspectos, com cara de quem vai à missa, e cada vez mais um público descontraído feito de jovens que vão desde estudantes de canto até amantes de ópera passando por todas as categorias intermediárias. Esses jovens pertencem a uma geração que é exposta ao consumo excessivo de filmes e imagens. Esse novo tipo de público, embora ame as vozes, quer ver no palco cantoras e cantores cujo aspecto se aproxime cada vez mais

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daquele que eles veem na TV ou no cinema. O padrão atual assumido para a beleza humana ocidental é aquele imposto implacavelmente pelo consumo diário tanto das séries importadas como das novelas tupiniquins. Se começasse hoje, o grande Pavarotti talvez não fizesse o sucesso que fez ao iniciar sua carreira nos anos 1960, principalmente representando, com todo seu corpanzil, o pobre e esfomeado Rodolfo em La Bohème de Puccini, um de seus maiores papéis. Em óperas de caráter romântico, nas quais se destaca o proverbial casal de jovens apaixonados, o physique du rôle é agora fundamental. Essa não é a única diferença importante entre as encenações de hoje e aquelas que aconteciam até uns 40 anos atrás. A grande maioria dos teatros foi abandonando ao longo dos

anos as montagens suntuosas, mas trabalhar com orçamento apertado não significa, necessariamente, abdicar do bom gosto. Numa Lucia di Lammermoor, no Teatro Carlo Felice de Genova em 2003, os cenários repletos de tapeçarias e mobília de época que compunham, no palco, os aposentos do tradicional castelo escocês foram substituídos, com grande eficácia, por um sistema de painéis que corriam para cima e para os lados, ora fechando ora expondo um jardim no qual algumas cenas foram ambientadas. Grande efeito com pequeno gasto. Nos últimos anos, apesar de algumas trombadas feias, os fazedores de ópera no mundo têm contabilizado mais acertos do que erros. Toda a tecnologia desenvolvida para quaisquer tipos de espetáculos é hoje alegremente utilizada para a ópera. No primeiro Macbeth, de Verdi, a que assisti na década de 1970, aparições e fantasmas eram atores que surgiam de buracos no chão do palco ou em meio a nuvens de fumaça. Uns 15 anos depois, eles já eram virtuais, projeções de slides sobre uma tela de filó. Há poucos anos, os fantasmas tinham se tornado holográficos. Nos dias de hoje, elevadores de cena e palcos giratórios permitem a troca de cenário em cena aberta, acabando com aquela chatice que consistia em fechar as cortinas e parar a música por 15 minutos no meio de um ato para efetuar a substituição. Uma característica constante na história da ópera é transformar tradições através de mudanças sem ruptura. Isso vale tanto para os estilos de composição quanto para as encenações. Foi assim quando a luz de velas foi substituída pela iluminação a gás, e esta, pela luz elétrica. Foi assim quando, a partir de Bellini e Donizetti, surgiu Verdi. Os próximos anos deverão consolidar o equilíbrio de encenações em que a tecnologia confira um caráter moderno ao espetáculo mantendo, como pedra de toque, um respeito profundo ao compositor e às suas intenções. seRGio casoY

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con especial ti nen te pedro melo

À BRASILEIRA Em busca de uma autodefinição

Como apontar as características da ópera no país, observadas a partir do encontro entre a tradição mundial, a “cor local” e as inquietações do criador TEXTO João Luiz Sampaio

A mais conhecida e interpretada ópera brasileira completou em março 140 anos e foi escrita em Milão, a partir de um libreto em italiano, de acordo com as convenções da ópera europeia da segunda metade do século 19. Descrevendo assim O guarani, de Carlos Gomes, a impressão que se tem é uma só: ópera, no Brasil, apenas pela alfândega. Mas, ainda que compreensível, o julgamento é injusto. De uma maneira ou de outra, a ópera sempre esteve presente no debate cultural brasileiro – e produções recentes mostram que, mesmo sem apoio constante e sistemático, o gênero sobreviveu. O que seria uma ópera brasileira? Costuma-se dizer que Carlos Gomes, de longe o mais prolífico dos compositores nacionais que se dedicaram ao gênero, deve mais à Itália do que ao Brasil no que diz respeito à estética por ele empregada. A música

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Leopoldo Miguez escreveu Pelo amor!; Alberto Nepomuceno compôs Artemis e Abul; três títulos de Henrique Oswald (La croce d’oro, Le fate e Il neo) nem chegaram ao palco; O contratador de diamantes, de Francisco Mignone, teve poucas récitas. Em direção aos anos 1950, falta citar Pedro Malazarte e Um homem só, de Camargo Guarnieri, e importantes criações de Heitor VillaLobos, como A menina das nuvens e Yerma.

A cARA Do BRASiL

Ópera de autor estrangeiro sobre temática brasileira? De autor brasileiro sobre temática nacional? De autor brasileiro sobre temática não nacional? O que define, então, uma ópera brasileira? A melhor resposta talvez seja uma ópera que nasce do diálogo, da inspiração de compositores ligados ao cenário cultural brasileiro com a enorme tradição do gênero e as buscas estéticas que vêm sendo feitas lá fora. Os títulos

carlos gomes, talentoso compositor nacional, deve à formação na itália seu aprimoramento estético de uma ópera como O guarani, apesar de baseada em um romance de José de Alencar sobre o embate entre índios e portugueses, ou seja, uma temática inspirada na história brasileira, dialoga com autores como Giuseppe Verdi, que ditavam as tendências do gênero naquele momento. Mais do que isso: hoje se aceita que, com Fosca, Carlos Gomes não apenas sintetizou a estética da ópera italiana como apontou novos caminhos e influenciou autores como Ponchielli a reinventar o gênero, com obras como La Gioconda. Na segunda metade do século 19, quando a ópera era gênero extremamente popular em cidades como o Rio de Janeiro, um grupo de intelectuais cariocas discutiu a criação de uma escola brasileira de ópera. Entusiasta do gênero, Francisco Manuel da Silva, autor do Hino nacional, liderou a criação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, cujo objetivo

era o estabelecimento de uma nova escola de composição e interpretação. Levar óperas em português ao palco exigiria uma nova carpintaria por parte dos compositores; e, dos cantores, o aprendizado de uma nova técnica, ligada às especificidades do idioma. Foram ainda encomendadas traduções para os libretos das principais óperas italianas – Quintino Bocaiúva, por exemplo, assinou A transviada, versão para La traviata de Giuseppe Verdi. Ironias do Brasil, a companhia era dirigida por um espanhol, José Amat e, com o tempo, o espaço das temporadas passou a ser ocupado basicamente por zarzuelas, operetas espanholas, ainda que em traduções para o português feitas por nomes como Machado de Assis. Ainda assim, o final do século 19 e as primeiras décadas do século 20 foram marcados pela composição de diversos títulos: o paraense Gama Malcher é autor de Bug Jargal e Iara;

listados acima ajudam a mostrar que, mesmo sem uma escola propriamente dita, a ópera jamais deixou de ocupar as mentes dos nossos compositores. E que, portanto, a estreia recente de novas obras não é fenômeno isolado, mostrando que o gênero segue caminhando. Ao longo das temporadas 2006 e 2007, subiram ao palco cinco novas óperas de autores brasileiros: Olga, de Jorge Antunes, Kseni – A estrangeira, de Jocy de Oliveira, A tempestade, de Ronaldo Miranda, O garatuja, de Ernst Mahle, e O caixeiro da taverna, de Guilherme Bernstein Seixas. Nos anos anteriores, o compositor carioca João Guilherme Ripper já havia estreado Domitila e O anjo negro. Em 2008, Edmundo VillaniCôrtes estreou em Manaus Poranduba e Silvio Barbato comandou a primeira audição da sua O cientista, baseada na vida de Oswaldo Cruz (no ano passado, após a morte do maestro e compositor, foi apresentada em Belo Horizonte

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con especial ti nen te reprodução

7 inteRnAcionAL O guarani, de Carlos gomes, a mais famosa ópera brasileira, estreou em 1870, no Teatro scala de milão

não como uma consequência do gênero operístico – que reúne teatro, dança, poesia, música, artes plásticas etc. –, mas, sim, como elemento essencial, indissociável do processo de composição. Kseni – A estrangeira fala da situação da mulher e da ausência de diálogo entre culturas. Na obra, a projeção de imagens, a declamação de textos teatrais e as inserções musicais são pensadas em conjunto, como um todo no qual a linguagem eletrônica tem papel ainda fundamental. Jocy explica que essa união se propõe à busca de uma “nova linguagem cênico-musical, novos modelos de estrutura que possam transformar o conceito tradicional de ópera”.

o gênero operístico brasileiro tem se articulado entre os grandes títulos do passado e as vanguardas

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a inacabada Chagas, sobre a vida de Carlos Chagas Filho). Por fim, mais recentemente, no Recife, ganhou vida Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura. Com base nessa amostragem, que cara tem a ópera feita hoje no Brasil? Ronaldo Miranda, em conversa à época da estreia de sua obra, chamava a atenção para o fato de que, em meio aos “dogmas e compromissos estéticos excludentes” praticados pela vanguarda dos anos 1950, 1960 e 1970, compositores se afastaram da “linguagem mais imediata” da ópera. Jorge Antunes relembra quadro parecido. “Quando escrevi, nos anos 1980, Qorpo Santo, chamei-a de neópera, tentando me livrar da pecha de operista tradicional. Pura bobagem! Qorpo Santo, tal como Olga, é ópera: abertura, atos, cenas, interlúdios, drama, canto, árias, arietas, teatro, cinema, imagens, canto falado, e assim por diante.”

tenDÊnciAS e teMáticAS

O fato é que a composição do final do século 20 e início do século 21 não se filia mais necessariamente a uma tendência ou escola; em vez disso,

sugere a mistura de elementos que antes eram excludentes. Nesse sentido, Olga, baseada nos últimos dias da vida da comunista Olga Benário, mistura árias e duetos nos quais citações de Tristão e Isolda, de Wagner, se misturam a acompanhamentos atonais, nos quais cabe ainda resgate do repente nordestino e da música urbana brasileira das primeiras décadas do século passado. Já Ronaldo Miranda, em A tempestade, ópera baseada na última peça de William Shakespeare, utiliza um arioso constante, forma que fica entre a declamação e o canto. A tônica da peça é a integração entre texto e canto, com pequenas árias que, interrompendo a narrativa, ajudam a caracterizar os personagens principais e seus dilemas. No mesmo caminho, seguem Guilherme Bernstein Seixas, Mahle, Barbato e Villani-Cortes. Ou João Guilherme Ripper, que atualmente prepara outro título, Anna de Assis, sobre o triângulo amoroso que resultou na morte de Euclides da Cunha. Jocy de Oliveira, por sua vez, acredita na multidisciplinaridade

Seguindo a tendência notada na Europa e, principalmente, nos Estados Unidos, os compositores brasileiros têm buscado novos caminhos para o gênero operístico na articulação entre os grandes títulos do passado e os novos processos composicionais herdados da vanguarda. Não é uma tarefa fácil, mas o grande vilão da ópera brasileira não é estético e, sim, político. Óperas podem ser espetáculos caros e compositores dizem abandonar o gênero por não acreditar na possibilidade de ver suas obras levadas ao palco. A falta de um espaço sistemático nas programações para óperas nacionais é um problema a ser combatido, não apenas por novos compositores – basta lembrar que óperas de Guarnieri, Villa-Lobos ou mesmo de autores do século 19 jamais voltaram ao palco depois de suas estreias. Apoiar a nova produção passa também pelo resgate da trajetória do gênero no Brasil. E aí, sim, veremos que O guarani e Carlos Gomes são apenas uma parte dessa história, uma história que continua a ser escrita, apesar de todas as adversidades.

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Caroline biTTenCourT/divulgação

ÓPERA RECIFENSE Um tímido, mas promissor, renascer Produções apresentadas na última década reavivam o interesse do público da capital que um dia cultivou o bel canto TEXTO Carlos Eduardo Amaral

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A estreia de Dulcineia e Trancoso em

dezembro, no último Virtuosi, não constituiu um marco despercebido nas artes pernambucanas tão somente pelo fato de ter sido a primeira ópera escrita a partir das diretrizes do Movimento Armorial (ainda que tenha saudavelmente evitado a linha estética arraigada pelos grupos musicais armoriais dos anos 1970), mas sobretudo por ter sido a primeira ópera composta para ser encenada no Teatro de Santa Isabel desde o final do século 19, quando Euclides Fonseca (18541929) deu importantes contribuições para o gênero em Pernambuco. Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura (música) e Waldemar José Solha (libreto), também fez história por

se tornar a segunda ópera brasileira contemporânea apresentada no Recife, depois de O cientista, de Sílvio Barbato (1959-2009), em 2007. Sempre com casa cheia, as quatro récitas somadas de ambas as óperas mostraram que o público recifense acolhe bem tanto as obras recentes quanto as tradicionais, caso das montagens de Carmen, em 2005, e de Dido e Eneias, que teve três récitas em novembro de 2009 e mais duas no último festival Janeiro de Grandes Espetáculos. Já existe a perspectiva de serem montadas mais duas óperas inéditas na cidade, embora sem previsão de data: A paixão judaica, nova parceria em andamento de Moura e Solha, e Lampião, de Marlos Nobre, a qual foi concluída em 2008 e só depende de

patrocínio para a première mundial. Isso não quer dizer que o Recife ensaia competir a longo prazo com os principais centros operísticos do país – Rio e São Paulo –, tal qual o fizeram nos últimos anos, impulsionados por competentes diretores e produtores musicais, Belo Horizonte, Manaus e Belém. Por outro lado, a soma de iniciativas esparsas reacende, mesmo que em tímida e incerta medida, o gosto do recifense pela ópera, nascido no século 19 e exercido até a chegada e popularização do cinema. A Veneza Brasileira nunca chegou a possuir a efervescência que a Veneza original teve no século 17, porém era parada obrigatória de companhias francesas

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con especial ti nen te FoTos: divulgação

e italianas a caminho do Sudeste e cultuava regularmente o bel canto, conforme relata José Amaro Santos da Silva, autor de Música e ópera no Santa

Isabel: Subsídio para a história e o ensino da música no Recife. “O Recife da segunda metade do século 19 conhecia melhor o repertório de ópera do que o do século 20, e não conhecia só de ver, mas de cantar, de ouvir e de tocar no piano, costume este devido aos compositores arranjarem as chamadas ‘fantasias’ sobre a Traviata, o Rigoletto, Norma etc., que eram vendidas nas casas de músicas em todo o Brasil”, diz José Amaro, que é pesquisador e professor aposentado do Departamento de Música da UFPE. No entanto, o recifense, como todo brasileiro apreciador de ópera de então, mostrava-se refratário a obras de seus conterrâneos – e mal se cogitava a existência de um libreto em português.

As poucas iniciativas como a montagem de Carmen têm reacendido o gosto novecentista do recifense pela ópera Dentre os poucos pernambucanos que se aventuraram pela composição operística, José Amaro aponta como pioneiro Luiz Álvares Pinto (17191789), cujo drama musical Amor malcorrespondido agrega opiniões que o legitimam como a primeira tentativa de ópera nacional, e ressalta, entre outros, Thomaz Cantuária (1800-1878) e Euclides Fonseca. Não à toa, os três compositores representam Pernambuco historicamente na Academia Brasileira de Música (ABM), na condição de patronos das respectivas cadeiras de número 2, 9 e 26.

gRAçAS A eL Rei

Fora todas as medidas que tomou (e benesses que legou) após se estabelecer no Brasil, a D. João VI também cabem os créditos pela introdução da cultura operística no Rio de Janeiro, para onde trouxe

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todo um séquito de instrumentistas e cantores que integravam a Capela Real Portuguesa. Desde a marcante passagem de Domenico Scarlatti (1685-1757) por Lisboa, quase um século antes, a Capela Real proporcionava o melhor da ópera e da música sacra em estilo napolitano setecentista – o Teatro Nacional de São Carlos (construído em 1793), por exemplo, até hoje preserva o repertório regular daquela época. Havia indícios de atividade operística anterior a 1808 por aqui, mas nada como as montagens profissionais europeias que passaram a ter lugar a partir da Abertura dos Portos e serviam de entretenimento à elite lisboeta exilada, razão que impediu a popularização do gênero nas classes mais baixas. Com a independência do Brasil, a Capela Real transformou-se em Capela Imperial e veio a fechar no interstício entre o

Primeiro e o Segundo Império por negligência administrativa (entendase: atrasos crônicos nos salários). Àquela altura já não era novidade a eventual presença de companhias estrangeiras de ópera nas principais capitais do país. Todavia, em função dos custos necessários para uma montagem na íntegra, os amantes do bel canto quase que só assistiam a recitais de árias e duetos. O professor José Amaro explica que, por esse motivo, a primeira ópera completa apresentada no Santa Isabel foi I puritani, de Bellini (1801-1835), em 18 de agosto de 1858, ou seja, oito anos após a inauguração do teatro. Procurando obter o mesmo êxito de Carlos Gomes em Milão com O guarani, outros compositores lançaram-se à composição operística, mesmo que dentro dos ditames italianos, a partir dos anos 1870. Jupyra, do carioca Francisco Braga

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Dulcineia e Trancoso foi inspirada no movimento armorial

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a tradicional ópera foi encenada no recife, em 2005, sendo bem-recebida pelo público

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Ao AR LiVRe

em Auto do pesadelo de Dom Bosco, Jorge antunes critica os escândalos políticos do distrito Federal

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ÓPeRA De RUA SátiRA AoS SALAMALeqUeS De BRASíLiA (1868-1945), e Iara, do paraense José Cândido da Gama Malcher (1853-1921), que conheceu Carlos Gomes na Itália e o convidou a morar em Belém quando voltasse ao Brasil, seguem inclusive a mesma temática indianista. Já Leonor, de Euclides Fonseca, baseou-se num poema de José Afonso de Araújo e se passava na Ilha de Itamaracá, em 1643. Ainda de acordo com José Amaro, a ópera em um ato atendeu à encomenda de uma associação de apreciadores, o Clube Carlos Gomes, e estreou no Santa Isabel em 7 de setembro de 1883 – talvez a última ópera nacional encenada ali até O cientista, em 2007. Depois daquele ano, apenas algumas operetas entraram em cartaz na cidade até os anos 1920 e 1930, em particular as sete de Valdemar de Oliveira (19001977), da cadeira 26 da ABM.

o compositor carioca, radicado em Brasília, Jorge Antunes construiu uma trajetória sem paralelo no país, por exercer seu ativismo político através das partituras – sinfônicas, eletroacústicas, corais ou operísticas. No final de 2009, o músico começou a trabalhar em um novo conceito de drama musical, radicalmente oposto a qualquer elitismo e apoiado na produção cooperativa, a ópera de rua. Daí nasceu o Auto do pesadelo de Dom Bosco, sátira em um ato sobre os escândalos políticos que abalaram o Distrito Federal nos últimos tempos. A narrativa é bastante simples: em um tribunal medieval, um meirinho apresenta os acusados de mau uso do dinheiro público, os quais entram sob protestos do povo e fazem sua defesa, um a um,

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perante o Juiz Voxprópolis; no fim, todos são presos, para gáudio da população. A comicidade está na atuação dos acusados, que parodiam figuras conhecidas do noticiário local, como Ioarrín Kouriz, “Rei do Gado, Senhor da Bezerra d’Ouro”, e o Monarca Xaró Parruda, que cantarola sem pudor: “Nem aqui e nem na China/vai ter lei que me destrone./Com a grana da propina/ distribuo panetone”. Recorrendo ao boca a boca, Jorge Antunes recrutou músicos, cantores e dançarinos, todos voluntários, e angariou doações para confeccionar figurinos e materiais diversos; assim, a produção teve o mínimo possível de custos. O Auto estreou dia 20 de fevereiro, em Brasília, causando risos desde a entrada dos músicos da pequena orquestra, que usavam calça jeans, camisa branca com cédulas de dinheiro saindo pelos bolsos e chapéu em forma de panetone. No final, um pequeno detalhe explicado pelo compositor: “Não cai o pano, porque na rua não tem panos, nem nada: só nos gabinetes tem coisas por debaixo dos panos”. caRlos eduaRdo amaRal

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con ti nen te

Perfil

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FAMÍLIA DO AMPARO Uma casa que recusa qualquer tipo de rótulo

A pintora Iza do Amparo, seus filhos, netos e agregados formam, provavelmente, o lar olindense com maior quantidade de artistas por cômodo texto Olívia Mindêlo fotos Priscila Buhr

enquanto o Sítio Histórico de

Olinda ostenta a fama de ser um dos lugares com maior concentração de artistas por metro quadrado do mundo, a casa 159 da rua do Amparo é talvez o lar olindense com maior quantidade de artistas por cômodo. Imagine que, dos cinco moradores, só a criança se isenta do adjetivo. Por enquanto. Se depender da convivência com os pais, a avó, o tio e as visitas amigas é bem provável que no futuro também assuma o epíteto. Na casa-ateliê da família que se batizou com o nome da rua onde mora, quase todos aprenderam desde cedo que vem da arte o caminho para a liberdade. A pintora Iza do Amparo, a matriarca do reduto, era ainda Maria Luíza Mendes Lins quando aprendeu a lição.

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para si o nome da rua que os acolhe. Aprenderam desde cedo com Iza a técnica de pintura em tecido e processaram, à maneira deles, o legado materno, como nas famílias dos mestres populares. A diferença é que aqui não houve soberania de um ponto de vista; eles ficaram mais livres para seguir seus próprios percursos estéticos. As opções de cada um se reverberam no estilo, no traço e nos temas, cujas distinções não são difíceis de serem pontuadas. É só percorrer a sala com os olhos e estão lá: entre as frutas, as flores e as paisagens exuberantes de Iza, as pinturas "sonoras e dançantes" de Paulinho. Algumas – como a da explosão atômica na qual escreve “Abaixo a caretice” – apresentam de cara o ímpeto de ironia ácida que também corre pelas veias de sua irmã Catarina desde a infância e que se manifesta mais na cantora do que na pintora.

eStAMPAS "SonoRAS"

Baiana do Conde, cidadezinha do litoral, via a mãe com nome de rainha empreender com as mãos as chamadas “realezas”, trabalho manual praticado geralmente por mulheres. Pintora naïf de origem italiana, Cleópatra ensinava as prendas à filha enquanto ocupava o tempo com as próprias criações. Quando Maria Luíza se mudou para Olinda, em 1981, já aprendera o ofício. Havia largado o curso de arquitetura, em Salvador, mas não tinha dúvidas de como poderia sobreviver. De objetos utilitários a pinturas modernistas, passou a experimentar de tudo. Em 1986, quando se separou de Humberto Magno (arquiteto e também pintor), decidiu se reinventar, assumindo para si a alcunha de Iza do Amparo.

“Senti a necessidade de criar uma identidade com Pernambuco. Em Olinda, nasci de novo. Encontrei a liberdade”, conta a artista, uma baixinha falante e sorridente de 63 anos. “Antes eu era Iza de Humberto. Era uma espécie de estrangeira. Mas aí tinha outra Iza em Olinda e o pessoal sempre se referia a mim como Iza do Amparo, então ficou”, recorda a dona de uma assinatura cuja popularidade se forjou em estamparias figurativas multicoloridas. Espalhadas por todo canto da entrada, são elas que dão as boas-vindas a quem chega à casa-ateliê da família Amparo. Dividindo o mesmo espaço, os trabalhos de seus dois filhos também fazem as vezes de anfitriões. Assim como a mãe, Catarina e Paulo tomaram

Tanto em Catarina quanto em Paulinho, o caminho até a arte se construiu para além das visuais, passando pelas sonoras. Ambos atuam na música, que se tornou fonte de sustento paralela às artes plásticas. Com 31 anos, Catarina do Amparo passou por sua própria reinvenção como artista. Discotecando nas noites de Olinda e do Recife, deixou a pintora em casa e resolveu se chamar Catarina Dee Jah (trocadilho com DJ, ou deejay). Esse nome está dando fama à autora de frases bem-humoradas e atitude sarcástica, capazes de provocar reações de atração e repulsa. A Catarina do Amparo dá abrigo à pintora “filha de Iza”, de motivos delicados e quase ingênuos; enquanto a Catarina Dee Jah solta a persona corrosiva e sensual, de sonoridade brega, tecnobrega e derivados. “Uma feminista que adora homem”, como se define. “Por eu pintar, minha música fica mais livre. A pintura é suporte para libertar a música”, diz a artista. Em uma de suas composições, intitulada Mulher tira-gosto, ela dá o recado logo na abertura: “É, não é mole, não./Tanto rapaz aí esbanjando saúde,/trocando uma noite de amor por uma noite de playstation,/rodízio com os amigos.../E a mulherada aí, largada, em segundo plano./Pense numa racinha desunida./ Vulvas em fúria!”. Essa e outras 11 músicas vão estar no seu primeiro CD,

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foto: maíra gamarra

com lançamento previsto para o meio deste ano. Catarina passou a cantar profissionalmente em 2007. De lá para cá, apresentou-se no Festival No Ar – Coquetel Molotov (2008), na versão pernambucana e na paulista do REC-Beat (2009) e em palcos de outros estados. Gravou um EP e vinhetas para a MTV. Uma das faixas do disco (Hey mãe) é do irmão Paulinho do Amparo, a quem credita parte de suas influências. Ela leva um pouco da energia do irmão para seus shows: na música, nos cartazes, nas camisas ou no crânio de esqueleto em papel machê que incorporou ao cenário de suas apresentações. “Temos uma certa necrofilia aqui em casa. A caveira é a minha porção Paulinho”, brinca a cantora.

con ti nen te

Perfil Para ele, pintar é só uma entre as tantas atividades das quais se ocupa diariamente em Olinda. “O desenho é a maneira mais fácil de ganhar dinheiro. A lei do menor esforço”, opina o rapaz, que desenha desde criança e começou a ganhar dinheiro muito cedo com isso. Ser músico sempre foi a vontade desse artista a quem se pode atribuir o rótulo de independente.

AUtodidAtA, MARGinAl

Com 34 anos, Paulinho nunca pediu apoio de governo ou concorreu em editais. Autodidata, costuma levantar recursos do próprio trabalho, e é assim que dá continuidade às criações em tecido, cartaz, lambe-lambe, camisa, disco, animação. As tiradas anarquistas estão presentes em quase tudo que faz – dos frevinhos aos desenhos. Gosta de vestir a carapuça do politicamente incorreto, do marginal, do artista non grato. No Carnaval, criou com os amigos uma festa chamada “Cem anos de Alceu”, realizada no bar Iraque, no Recife, à meia-noite da Quarta-feira de Cinzas. No mesmo local, organiza todo sábado um bazar de arte, o Mercado Iraquiano. A máxima punk do “faça você mesmo” se encaixa bem na atitude do artista. Este ano, por exemplo, está criando um novo coletivo com

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Página anterior 1 UniÃo

o sobrado da rua do amparo recebe, desde a década de 1980, diferentes gerações do clã

Nestas páginas 2 ReinVenÇÃo

a pintora catarina tem investido na carreira musical, discotecando nas noites de olinda e do recife

3 teRRitóRio o terraço atrás da cozinha é o local de criação de paulinho do amparo 4 eStilo as tiradas anarquistas e a ironia estão presentes em todas as obras do artista

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brinquedos. “Era uma forma de mostrar que eles podiam conseguir o que queriam com as próprias mãos. Queria mostrar o valor do trabalho”, lembra ela. “Sempre ensinei que aqui em casa não podia ter ócio.”

MARido e filHoS

o propósito de difundir trabalhos de pernambucanos, incluindo os dele. É o Ecad Here Records, uma paródia ao órgão que arrecada direitos autorais dos músicos. Um entre tantos coletivos que já criou e dos quais participa até hoje. Em agosto próximo, Paulinho do Amparo vai ter a primeira exposição individual de sua carreira, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC/Olinda). Ele está sempre trabalhando e inventando algo no terraço atrás da cozinha da casa-ateliê, onde geralmente fica. Catarina se refere ao irmão como “Professor Pardal”. O pai, Humberto Magno, se orgulha ao contar como o filho sempre teve o costume de criar quase tudo por conta própria: “Nunca tinha ensinado nada para ele de jogo de botão. Quando vi, estava fazendo o goleiro de chumbinho, sozinho. Outra vez, fez uma guitarra. Sempre foi muito inteligente”. Humberto recorda ainda o filho criança indo lhe contar como tinha descoberto a forma de a lagarta andar : “Encolhe o preto e estica o branco, pai”. Tanto para Catarina quanto para Paulinho, a presença do pai – que

na casa-ateliê da família do Amparo, todos aprenderam desde cedo que vem da arte o caminho para a liberdade mora no Recife e ainda pinta – sempre se mostrou um impulso à arte. “Realmente, meus pais estimulavam a gente. Conversavam muito sobre pintura”, lembra Paulinho, que cursou eletrônica na Escola Técnica, mas largou porque “encheu o saco de estudar”. Os cartunistas Frank Miller e Will Eisner estão entre suas principais referências visuais. “Eu sempre dava papel e lápis para eles, onde estivéssemos. Assim podia entender como estavam através do desenho”, conta Iza do Amparo, cuja estratégia educativa foi a de colocar os filhos em contato com a arte de uma maneira lúdica. De acordo com a pintora, os filhos costumavam construir os próprios

Além de Iza, Paulinho e Catarina, moram na casa-ateliê da rua do Amparo o baixista Hugo Gila (Orquestra Contemporânea de Olinda e Academia da Berlinda), 31, e João Gila, 5 – marido e filho de Catarina, respectivamente. Uma configuração de lar que se alternou bastante desde a década de 1980. De lá para cá, diferentes gerações, artistas e crianças passaram pelo sobrado. Uma típica casa olindense, impregnada de lembranças no chão, nas paredes, no cheiro. Um lugar descontraído onde, independentemente do clima, reina uma paz de fim da tarde, enquanto viralatas se coçam despreocupadamente. Também dividem espaço na casa as cadelinhas Lili e A La ursa, e um jabuti chamado Mestre. Catarina e Paulinho já chegaram a ter suas casas, no próprio Sítio Histórico. Voltaram a morar com a mãe por questão financeira, segundo contam. “Queria estar na minha casa, para ter mais espaço. Aqui as personalidades são fortes. A casa fica pequena. Mas hoje está mais tranquilo”, relata Catarina. Mesmo com os temperamentos à flor da pele, geralmente tentam se ajudar – como toda boa convivência comunitária que se preze. O clã do Amparo é um misto de família com coletivo de artista. Na casa, não há regras rígidas, cada um faz seu horário. Mas, no final, quem dá ordem é Joãozinho. Por causa dele, há hora para almoço e proibições, como não fumar no espaço onde ele brinca. A alimentação natural é uma filosofia da avó, mas hoje ela está mais flexível nesse sentido. “Não somos uma família diferente, não. Temos casa, comida, valores. Nossa maneira de ver é que se choca com o comum. Não somos comuns. Não gostamos de definição. Não nos identificamos em ser uma coisa só”, afirma a pintora.

@ continenteonline Ouça algumas músicas de Catarina Dee Jah no site www.revistacontinente.com.br

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c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 0110 0 || 440 1

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taquaritinga uma serra onde nascem café e ideias Município do agreste pernambucano é reduto de escritores e artistas, que encontram no seu clima ameno e na paisagem bucólica inspiração e tranquilidade como alternativa para o caos urbano texto Bernardo Valença fotos Christel Jacob

“Aqui eu levitei, fiquei a três palmos

do chão...”, divaga o escritor Ronaldo Correia de Brito, sentado em uma pedra que beira a serra do seu sítio em Taquaritinga do Norte. O sol do fim de tarde enrubesce a paisagem verde do abismo, que fica a mais de mil metros de altitude. A vista é ampla: ao longe, a silhueta da Chapada da Borborema e das serras que beiram a Paraíba; mais para perto, uma vasta depressão. Ronaldo parece pequeno. E, de um ponto de vista, parece voar realmente. Depois de um curto período de contemplação em silêncio, respira e retifica a frase: “... É possível que eu nem tenha saído do chão, mas aqui tive sensações maravilhosas”. Minutos antes, com os pés firmes na pedra, ele catava o lixo que alguns visitantes desconhecidos haviam deixado: de sacos plásticos a embalagens e guimbas de cigarro. Entre os matos, um entulho velho e esbranquiçado. O escritor colhe um a um com as mãos, “Devia ter trazido a vassoura e um saco plástico”, resmunga para si. Ronaldo diz estar cansado de tentar consertar as coisas, vai catando e alimentando um sentimento que já dura alguns anos: o de desprezo por quem não tem respeito pela natureza. Em especial, quem não cuida das terras de Taquaritinga do Norte. Ele comprou o primeiro terreno há 17 anos. Desde então, mais cinco aquisições juntaram cerca de

10 hectares. Segundo ele, o lugar recarrega as energias. É no silêncio e no frio de Taquaritinga que se habituou a descansar. Lá, não costuma escrever, geralmente só anota ideias ou finaliza os textos já escritos no Recife. “Não gosto de trazer as doenças dos meus personagens para cá”, afirma. Lá ele se inspira, cultiva flores, caminha no frio da noite. Numa tentativa de definição, cita o poeta Carlos Pena Filho: “Olinda é só para os olhos,/ não se apalpa, é só desejo./ Ninguém diz: é lá que eu moro./ Diz somente: é lá que eu vejo (...)”, declama. “Taquaritinga é assim para mim, ‘é lá que eu vejo’ ”, conclui o escritor. Dorme-se cedo no local. O brejo de altitude é situado no agreste pernambucano. De dia pode até fazer algum calor por conta do sol forte, mas a temperatura gira normalmente em torno dos 20 graus Celsius. Pouco depois do sol nascer, o manto de neblina cobre as serras, o frio noturno ainda persiste sob a névoa. Mesmo em épocas que não chove, as folhas das plantas e árvores são regadas pelo orvalho. Também se acorda cedo em Taquaritinga do Norte. E é por volta das seis e sete horas, que a escritora Frances de Pontes Peebles está habituada a escrever. Ela mora vizinha a Ronaldo, na grande fazenda do seu pai, que ajuda a administrar junto à irmã, Tatiana. Nascida no Recife, em 1978, a escritora é filha de mãe pernambucana com

pai americano e viveu sua infância e juventude entre o Brasil e os EUA. David Peebles, ou Seu Davi, como é conhecido na região, comprou a fazenda Várzea da Onça no ano em que Frances nasceu, cultivando uma produção cafeeira que, hoje, graças a um bom cuidado e respeito à terra, exporta para o Japão. A saca do produto custa mais de R$ 300 . Uma especiaria de sabor achocolatado, fino. “Tratamos o café como ouro”, diz Frances Peebles.

ARÁBicA tÍPicA

O café orgânico da fazenda, da espécie arábica típica, é diferente dos mais comuns, que são plantados em fileiras e colhidos em um ritmo industrial. Ele é café de sombra, não suporta o sol diretamente e gosta de clima frio. O arvoredo é responsável pelo sombreamento. Cajueiros, mangueiras, jaqueiras, as árvores de grande porte predominam na paisagem. Na entrada da fazenda, a recepção é feita pelas flores. Nada de agrotóxicos: a minhoca – do minhocário – serve para o café assim como o estrume dos porcos e cabras; tudo auxilia na fertilização. As frutas e folhas que caem das arvores enriquecem ainda mais o solo. Se não fossem elementos evidentemente industriais, como as estufas de secar o fruto, equipamentos de beneficiamento e um grande galpão com máquinas que operam da torragem ao ensacamento do café, a fazenda não pareceria nada com uma

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empresa, já que a plantação de café não é tão evidente à primeira vista. Desde a infância, o lugar ficou no imaginário da escritora. As lembranças que tem do Brasil quando pequena são da fazenda, “de tirar leite da vaca e correr pelo campo”, conta. Antes de escrever seu primeiro romance, Frances Peebles (formada em Letras pela Universidade do Texas, em Austin) recebeu uma bolsa do governo americano – a Fulbright – para viajar pelo Brasil, pesquisar e escrever. Um dos lugares escolhidos para ficar foi a sua fazenda em Taquaritinga. Permaneceu no Nordeste até 2008, quando o livro, intitulado A costureira e o cangaceiro (The seamstress), saiu. Foi seu romance de estreia, que ela diz basear-se muito

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na sua infância e no qual cria uma narrativa a partir de episódios históricos como o cangaço e a Era Vargas. Escrever em Taquaritinga, para Frances, além do silêncio indispensável, é estar ligada às suas origens, a sua vertente brasileira. Assim também é para o poeta e escritor carioca Luiz Olavo Fontes, um dos nomes do movimento de poesia marginal na década de 1970, no Rio de Janeiro. O avô de Luiz Olavo é famoso entre os taquaritinguenses. Severino Pereira da Silva é nativo, mas ainda menino se mudou para o Recife em busca de ganhar a vida. Foi carvoeiro, balconista de loja, caixeiro-viajante, até se tornar um grande industrial, dono de fábricas de tecido e de cimento, e se estabilizar no Rio de Janeiro. “Quando ficou rico, a primeira coisa que fez foi voltar para Taquaritinga”, conta Luiz Olavo, que está editando a biografia que escreveu sobre o avô. “Ele fazia caridade na cidade. Além de ter construído a praça, reformado a igreja, feito um hospital, meu avô trazia de São Paulo uns caminhões e distribuía tecidos de graça para o povo”, conta o neto. “Já ouvi as pessoas dizendo que ‘Seu Severino’ estragou a população de Taquaritinga, que, por sua vez, ficou mal-acostumada e preguiçosa”, afirma sorrindo.

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no poente, do alto da serra, a vegetação observada ganha intensa coloração avermelhada e a temperatura esfria

O casarão, que beira o alto da serra, é um dos pontos que o poeta afirma ser um dos seus favoritos para escrever. “Quando eu tenho um trabalho grande, geralmente eu levo para fazer lá”, diz ele, que se divide entre o seu sítio em Teresópolis, no Rio de Janeiro, e a fazenda de café, em Taquaritinga. Depois que o avô morreu, em 1986, Luiz Olavo comprou de seus familiares parte das terras. O casarão, no centro da cidade, ficou para sua tia. “Preferi construir uma casa que fosse só minha, aquela casa era muito do meu avô; escolhi um ponto da serra com uma vista bonita e me instalei.” Conhecido como autor de livros de viagens que fez no Brasil e no mundo, ele diz com autoridade:

“É um dos melhores climas do país, é agradável o ano todo, sempre está batendo uma brisa”.

o noMe DAS PLAntAS

O frio chega anunciando a noite. Das quatro horas da tarde em diante é melhor usar agasalho. No percurso que cumpre para chegar à sua vista favorita, Ronaldo Correia de Brito aponta cada árvore e diz o nome: “Sucupira, caraibeira, ipê, cedro...”. Nesse sentido, ele é o antônimo de Adonias, um dos personagens de Galileia, pois adora conhecer o nome das árvores e flores. “Sou escritor, tenho que saber dessas coisas”, justifica Ronaldo. Galileia, o primeiro e, até então, único romance do escritor, recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura 2009 e ficou entre os finalistas para melhor romance do Prêmio Jabuti do mesmo ano. Além de saber dos nomes, o escritor tem dedicado tempo e dinheiro ao reflorestamento de espécies da mata atlântica. “Me preocupo mais em replantar o que foi perdido aqui do que plantar o café.” Ao que parece, enquanto o desmatamento

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Página anterior 1 veReDA

O caminho de terra sombreado por plantas e árvores é a porta de entrada da fazenda Várzea da Onça

Nestas páginas 2 HoRiZonte

Um dos limites do sítio do escritor Ronaldo Correia de Brito é a beira da serra, da qual se avista todo o entorno

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veGetAÇÃo

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SALA De eStAR

Uma das árvores favoritas do escritor, a centenária juremaçu tem largo tronco e várias hospedeiras A casa de Ronaldo foi construída com material de demolição, possuindo objetos artísticos e afetivos de família

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BeRÇÁRio

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FRAnceS

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cAFÉ

Milhares de mudas de café são replantadas a cada ano na fazenda Várzea da Onça, que também possui a espécie pau-brasil (à esquerda) A escritora, que morou boa parte da vida nos Estados Unidos, hoje vive numa pequena casa dentro de sua fazenda Fruto é um dos principais produtos agrícolas de Taquaritinga

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ainda ocorre na região, Ronaldo e Manoel dos Santos, seu funcionário, continuarão plantando e replantando. Alguns dos responsáveis pela devastação são os donos de terra que resolveram produzir carvão. “Certo dia, um fogaréu invadiu minhas terras, queimando boa parte das árvores que eu tinha replantado”, diz Ronaldo. Mesmo não estando em primeiro plano, no caso de Ronaldo, a cafeicultura está presente na zona rural de Taquaritinga. Nem que seja só para consumo próprio. Cada um tem um estilo preferido de preparo da bebida. “Eu gosto do café mais maduro e preparo numa cafeteira italiana. Já Everardo prefere um café mais verde, preparado na cafeteira francesa”, diz Ronaldo, referindo-se ao amigo e poeta Everardo Norões, que tem uma pequena propriedade próxima à sua. A casinha de Everardo é simples. Ao invés de construir uma do zero, ele e sua esposa Sônia Lessa Norões optaram por reformar a casa de um antigo morador, recém-falecido. A casinha beira uma vista que dá para as cidades de Surubim, Santa Maria do Cambucá, Junco e Frei

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Miguelinho; só se vê bem com as luzes artificiais já acesas. Branca e azul, a morada é como a poesia de Everardo: de poucas palavras e muito sentido. Uma habitação antiga, pequena, de morador, com uma vista grandiosa. Já a de Ronaldo, é prosa: robusta, recatada, com muitos elementos a serem descritos.

BURAco eM PeDRA BRAncA

A casa de Ronaldo é rodeada por plantas de muitas flores. Parte dela foi erguida com material de demolição, elementos que o próprio escritor foi buscar. Dos azulejos às grades, muito dali já pertenceu a outras moradas. No centro da casa branca, de quatro águas e molduras rosa nas janelas, um grande rochedo. “O início do projeto era dinamitá-la, mas depois resolvemos manter”, diz Ronaldo. O escritor sabe da importância das pedras. “Nada lembra mais o silêncio que a pedra”, escreve no início de Galileia. Os dois, Ronaldo e Everardo, vieram de terras distantes do Recife, onde moram. Ronaldo é do sertão do Inhamuns e Everardo é natural do Crato, ambos no Ceará. O refúgio na

o café da fazenda várzea da onça é da rara espécie arábica típica, cultivado organicamente e exportado “Dália da Serra”, como é conhecido o município de Taquaritinga, é, de certa forma, um retorno à vida tranquila das cidades do interior. Ou apenas um autoexílio, um distanciamento talvez necessário aos escritores. O primeiro contato de Ronaldo Correia de Brito com Taquaritinga foi por intermédio do artista plástico italiano Giuseppe Baccaro, que também tem casa na região. Desde então, o escritor começou a frequentar o local, até comprar seu próprio terreno. Foi por influência de Ronaldo que Everardo comprou sua casa lá. Da mesma forma, o músico Geraldo Maia foi apresentado ao local por Ronaldo; e também foi ficando. Mas Geraldo é mais radical. “O plano

é morar aqui”, afirma ele, que diz estar saturado do caos recifense. A casa foi comprada há quase nove anos. Assim como a de Everardo, é uma pequena propriedade de antigos moradores. Mas outra casa nova está sendo finalizada, para que eles – Geraldo, seu companheiro, John Holtappel, os 12 cachorros e as duas gatas – se mudem definitivamente para o campo. “É melhor para compor, dormir, pensar, meditar, cuidar da saúde”, opina Geraldo. Na entrada de sua atual casa – igualmente perto das de Ronaldo e de Everardo –, pés de laranja, banana e pitanga vão guiando o caminho de terra até a pequena escada. Com as frutas colhidas das plantas, John faz as geleias que são servidas no café da manhã ao ar livre. A migração de Geraldo e John não impressiona tanto, se comparada à de Frances Peebles e seu marido, James Mclaughlin. Eles se mudaram para lá por um período indefinido no início do ano passado. O americano alto, branco, de ascendência irlandesa, abandonou a carreira de advogado, em Chicago, para ajudar na fazenda do sogro em Taquaritinga. Trabalhava no alto do prédio do Kirkland & Ellis, escritório com cerca de 500 advogados. Quem costumava andar sempre de terno e gravata, hoje, pode ser encontrado com a camisa encardida de lama e suor brotando no rosto, por ter alimentado os porcos ou algo do gênero. “Só eu achei que estava ficando louco, quando aceitei me mudar; os meus colegas diziam que era isso que eu deveria fazer”, diz James em um português carregado de sotaque. Há algo de atraente, mesmo, em Taquaritinga do Norte. Uma cidade de ladeiras e vistas grandiosas. De pedras solenes. Pedras que originaram o seu nome: taquaritinga é uma corruptela do topônimo itacoaraetetinga, palavra indígena que significa “buraco da pedra, grande, branca”. Seja pelas dálias e outras flores. Pelo frio. Pelos tempos remotos em que os cangaceiros passaram por lá. Ou pela bruma que cobre as serras. É um lugar para se isolar. Para pensar, ou apenas olhar as estrelas, que são muitas, em noites de lua nova .

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pedro melo

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História

halley há 100 anos era o fim do mundo

Cercada de previsões catastróficas, passagem do corpo celeste próxima à Terra, em maio de 1910, provocou pânico coletivo, mas fez a festa dos especuladores texto Gilson Oliveira

o próximo fim do mundo já tem

dia certo: 21 de dezembro de 2012. Incluída no Calendário Sagrado Maia – famoso por realizar a contagem de extensos períodos de tempo e pela concretização de algumas de suas previsões –, a data se tornou a mais nova referência de final dos tempos, devido, principalmente, à série de documentários e filmes que vêm sendo produzidos em torno do tema, como Profecias maias, do The History Channel; 2012: O ano da profecia, de Nick Everhart; e 2012, de Roland Emmerich, em que um tsunami varre várias cidades do mapa do mundo, entre elas, o Rio de Janeiro. E foi de forma “tsunâmica” que a nova onda de catastrofismo chegou à internet, levando a Nasa a promover uma campanha para dissipar os crescentes temores. Sentimento que acompanha o ser humano desde tempos imemoriais, e se torna mais forte em certos períodos históricos, o medo do fim do mundo esteve bem presente no ano de 1910, quando o cometa Halley, como poucas vezes em sua peregrinação

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sideral, passou próximo da Terra. Se nesses primeiros anos do século 21 o tempero paranoico está relacionado com o aquecimento global e suas consequências, um dos grandes vilões da excitação psicossocial daquela época era a ameaça da I Guerra Mundial, que já colocava suas garras de fora através das disputas coloniais entre vários países, provocando, entre outras coisas, frenética corrida armamentista. Foi nesse cenário, hoje conhecido como da “paz armada” e do “equilíbrio do terror”, em que, para completar, só faltava o aparecimento de um cometa – corpo celeste durante milênios considerado “portador de más notícias” – , que o Halley fez a sua 29ª visita registrada pelo homem às proximidades da Terra. De acordo com estudiosos, a primeira aparição do cometa pode ter ocorrido no século 11 a.C., como indicam observações contidas no Livro do príncipe Huai Nan, escrito na China, naquela época. Chamado também de “Cometa de Halley”, deve seu nome ao astrônomo e matemático inglês Edmond Halley

(1656-1742), que calculou a sua órbita, definindo-o como periódico, porque a cada 75 ou 76 anos percorre as regiões interiores do sistema solar.

nos cÉus Do reciFe

A capital pernambucana dá uma boa ideia do clima psicológico que tomou conta do planeta com o reaparecimento do Halley em 1910, em decorrência de boatos, temores e preconceitos de fundo religioso e até notícias veiculadas na imprensa, captadas das mais variadas fontes. Há muito tempo extinto, o Correio do Recife, já no dia 14 de fevereiro (o cometa só se tornaria visível a olho nu cerca de quatro meses depois), diz em sua capa, na grafia da época: “Muitos

têm sido os comentários pessimistas de um próximo fim do mundo, pelas notícias alarmantes oriundas dos observatórios astronômicos, notícias, aliás, revestidas de uma certa gravidade, pelo facto de a Terra em 18 de Maio próximo futuro atravessar a cauda desse cometa gigante”. Demonstrando que não tinha nenhuma intenção de atuar como combustível do medo, o mesmo jornal, no “fatídico” 18 de maio, traz informações bem mais amenas: “Para completa tranquilidade dos nossos leitores, damos neste lugar o telegramma sobre a passagem da Terra atravez do cometa, que recebemos do Rio de Janeiro: ‘O Observatório de Roma communicou ao nosso que

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imagens: divulgação

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clique

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registro

em 1986, a sonda europeia giotto ficou a cerca de 596 km do Halley e conseguiu captar imagens do seu núcleo identidade visual do carnaval de olinda de 1986

História 1

o cometa de Halley está perdendo sensivelmente a cauda, que se apresenta cada dia menos densa’”. No dia seguinte, o Correio reproduziria um telegrama, procedente de La Paz, Bolívia, que deixaria transparecer a forma como a passagem do Halley foi percebida em alguns lugares: “Não cessaram as chuvas em toda a República, ocasionando o transbordamento dos rios e inundações consequenciaes. São por ora incomputaveis os prejuízos soffridos pela lavoura nacional. Os meteorologistas attribuem à influenciação do cometa Halley as extemporaneas chuvas torrenciaes”. Detalhes da “influenciação” do Halley no Recife figuram no Diario de Pernambuco de 19 de maio: “Está na ordem do dia o cometa de Halley. O famoso vagabundo do espaço tem sido alvo de geral curiosidade. Todas conversas a elle se referem (...). A imprensa continua a fornecer minuciosas descripções a respeito do decantado Halley, visando destruir os temores supersticiosos que o seu apparecimento poderia despertar no animo dos credulos”. E prossegue o jornal: “Passou já a época em que se suppunha serem os cometas enviados por Deus, afim de chamarem os homens ao caminho da

Boatos sobre gases venenosos na cauda do cometa ajudaram espertalhões a vender de comprimidos a garrafas de oxigênio piedade e da religião. Não obstante, houve quem delle se arreceiasse, vendo nisso um prenuncio do fim do mundo. As egrejas encheram-se de devotos, buscando na fé o meio de conjurar a terrível predição. Outras pessoas foram em piedosa romaria ao tumulo da virgem do Arraial, com o intento de afastar da trajectoria da terra o cometa invasor”. Mas ocorreram reações diversas à visita do Halley naquele primeiro decênio do século 20. Como se a palavra “cometa” fosse um estímulo à conjugação do verbo “cometer”, houve quem se aproveitasse da situação e cometesse todo tipo de esperteza. Registros da época (hoje veiculados também na internet) dão conta de que muita gente ganhou dinheiro vendendo comprimidos que protegiam dos efeitos do Halley, além de garrafas de oxigênio e máscaras contra gás (havia-se difundido a

crença de que a cauda do cometa poderia lançar gases venenosos na superfície da Terra). A ousadia e criatividade dos especuladores pode ser medida por um anúncio publicado no Diario de Pernambuco nos dias que antecederam à passagem do corpo celeste. Com o título “O cometa Halley e as moedas de ouro”, diz a propaganda: “Devido à influência dos gazes que contém a cauda do cometa sobre as moedas de ouro, derretendo-as, os proprietários da Fábrica Luzitana, à rua Marquez de Olinda, número 1, resolveram comprar as que aparecerem, evitando assim enormes prejuízos aos possuidores das mesmas”. Curiosamente, uma “profecia” que se concretizou em relação ao Halley foi feita pelo escritor norte-americano Mark Twain, que, em 1909, teria dito: “Eu cheguei com o cometa Halley em 1835. Ele vai voltar no ano que vem e eu espero que me leve junto”. Por coincidência, Twain faleceu em 21 de abril de 1910, dia em que o cometa (que apareceria em 18 de maio) já era um dos principais assuntos em todo o mundo. A parte inicial da frase refere-se ao fato de o escritor ter nascido em 30 de novembro daquele ano, dias depois do ápice da passagem do cometa, em 16 de novembro.

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NEBULOSO EM 1986, O“ASTRO” NÃO COMPARECEU Ao contrário de 1910 – e de anos

como 1456, quando o papa Calipso III excomungou o Halley, por considerálo um mensageiro do diabo –, em 1986 o cometa foi esperado como um “astro” extremamente especial, pois, diferentemente dos que costumam se apresentar em palcos, cinemas e outros lugares vistosos, tinha uma natureza realmente sideral. Mas naquele 5 de março de 1986, o Halley se apresentou em meio a muitas nuvens, devido a turbulências atmosféricas, e terminou não realizando o espetáculo com que o público e os meios de comunicação sonharam. Aproveitaram melhor, talvez, os que seguiram os conselhos dos astrônomos, fugindo de locais com muita luz e buscando alturas acima dos 1.000 metros. O Jornal do Commercio de 4 de março chega a dar dicas para fotografar o fenômeno: “Além de um tripé e um disparador de mão, você deve ter uma máquina com regulagem para o obturador (botão do click) em posição ‘B’; usar um filme de 400 Asas e deixar o diafragma por 20 segundos em posição ‘F.2.8’. Ou seja, muito complicado para um amador”. As frustrações com a pouca visibilidade do Halley estão manifestadas até no Júnior, à época título do caderno infantil do Diario de Pernambuco. Já em 1º de março (quatro dias antes do que seria o apogeu da aparição), o suplemento publicou uma carta do leitor Luiz Augusto, de 12 anos: “É tempo de Halley, só se fala nele (...). Todas as vezes que olho para o céu, na esperança de ver alguma coisa, não vejo nada... (...) Vou me conformar em ver os cometas que os meus colegas do Júnior estão desenhando (...), porque pelos desenhos, todos iguais, acho até que eles viram mesmo o cometa”. Se não foi espetacular para o público em geral, o Halley foi literalmente fenomenal para o

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Até os foliões pegaram carona na cauda do cometa: em Olinda, o Halley brilhou como tema do Carnaval

comércio, que soube faturar alto com as promoções. A indústria editorial não ficou fora da festa, com as mais variadas abordagens. Uma bem original foi a do Guia do Halley, publicado pela Editora Abril. A publicação lembrava que a passagem do cometa pela órbita terrestre estava marcando o início da Era de Aquário, o que significava, entre outras coisas, que o ilustre visitante cósmico daria “às mulheres o comando do mundo”. Até os foliões pegaram carona na cauda do cometa: em Olinda, o Halley brilhou como tema do Carnaval daquele ano. Previsto para voltar em 2061, segundo os cálculos do astrônomo que lhe deu o nome, o Halley foi quem, de certa forma, comandou o planeta durante alguns meses de 1986, ano que, aqui no Brasil, foi marcado também pelo Plano Cruzado, a Copa do Mundo no México e a primeira eleição após a Nova República, iniciada no ano anterior. Sobre os “novos” tempos, disse o jornalista Carlos Chagas, no JC de 9 de março, quatro dias após a tímida aparição do Halley: “A política está mudando e trazendo mais surpresas, aqui em baixo, do que o cometa lá em cima”. GILSON OLIVEIRA

Estão todos dormindo é uma coletânea de perfis de personalidades marcantes da cultura brasileira, nos quais Edson Nery da Fonseca mescla informações precisas com citações literárias e testemunho pessoal, numa prosa límpida, elegante e tão envolvente que transforma o leitor em cúmplice do que narra.

LANÇAMENTO Quarta-feira, 12 de maio, a partir das 19 horas, no auditório da Livraria Cultura, Paço Alfândega, Rua Madre de Deus, s/n, Recife Antigo Na ocasião haverá palestra com o professor Anco Márcio Tenório Vieira, da UFPE, e apresentação do Quinteto Luperce Miranda.

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Acervo PAulo Bruscky

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educação

MCP Entre as massas e as vanguardas 1

Em maio de 1960, surgia o Movimento de Cultura Popular, agregando artistas, intelectuais, governo e sociedade em torno da formação de cidadãos pela arte e educação texto Débora Nascimento

Sob o aspecto cultural, os anos

1960 foram muito generosos com a humanidade. Na década em que o homem pisou na Lua, surgiram os Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, João Gilberto, Chico Buarque, o Tropicalismo, o Cinema Novo e a arquitetura de Brasília – só para citar alguns acontecimentos. A cultura jovem ganhou força e padrões heterodoxos de comportamento tornaram-se aceitáveis no mundo ocidental, que também reacendeu seu interesse pelo Oriente, sobretudo pelo misticismo e pela filosofia. Pernambuco não ficou de fora e deu sua contribuição à essa nova fase de transformações, criando um projeto que mobilizou

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teatro

elenco da peça A volta do camaleão alface, de 1961. Da esquerda para a direita, Zodja Pereira, Delmiro lira, Joacir castro, Moema cavalcanti, Marco Porto carneiro, Nadja Pereira, carlos Alberto, José Wilker, conceição de Maria e Mauro Ferreira

Durante os anos 1950, ações espontâneas promovidas por artistas começaram a receber apoio do governo municipal, na então gestão de Pelópidas da Silveira. “O mérito da criação do MCP não foi só de uma pessoa. Foi um conjunto de ações várias, mas só foi possível por conta do apoio de governantes como Pelópidas e Miguel Arraes, que institucionalizou o movimento”, afirma a professora Letícia Rameh, destacando, nesse contexto, a importância da pedagogia freiriana, que contornou as ações do MCP. Ela é autora do livro Movimento de Cultura Popular: Impactos na sociedade pernambucana (2009) e diretora pedagógica do Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas (UFPE).

educar e promover a difusão cultural sem estabelecer relações hierárquicas foi uma das maiores ambições do McP

educação, artes, esportes, saúde e política – um sonho que se tornou realidade a partir de 13 de Maio de 1960, o Movimento de Cultura Popular (MCP). Segundo o estatuto do MCP, seus objetivos eram promover e incentivar, com a ajuda de particulares e dos poderes públicos, a educação de crianças, adolescentes e adultos; proporcionar a elevação do nível cultural popular; colaborar para a melhoria do poder aquisitivo da população; formar quadros destinados a interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos culturais. O ambiente cultural no Estado que propiciou a elaboração da filosofia do

movimento surgira ainda na década de 1950. Em diversas expressões artísticas, a estética da cultura popular e a “linguagem do povo” passavam a ser utilizadas com vigor criativo e entusiasmo, a exemplo das peças de Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, da música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e do trabalho do artista plástico Abelardo da Hora, que montara um ateliê multidisciplinar – sendo o embrião do MCP. Enquanto isso, em outras áreas, as desigualdades sociais foram o ponto de partida de estudos marcantes do pedagogo Paulo Freire e do sociólogo Josué de Castro, autor d’A geografia da fome, que, mesmo lançada em 1946, ainda repercutia na década seguinte.

Segundo o artista plástico Abelardo da Hora, o então prefeito Miguel Arraes, antes de tomar posse, já sabia que havia um grupo de artistas desenvolvendo projetos que uniam artes plásticas, música e teatro. Até então, as atividades pré-MCP eram dispersas e realizadas sem financiamento público, à base de doações. A pedido do prefeito, o escultor redigiu o anteprojeto do movimento, que previa a inclusão social através da cultura popular. Nessa época, o Recife sofria com o crescimento desordenado a partir da vinda de retirantes do interior do Estado, que fugiam da seca e/ou estavam em busca de novas oportunidades na capital que se modernizava, com a oferta de energia elétrica, água encanada e novas edificações. No entanto, a cidade contabilizava altos índices de analfabetismo, cerca de 70% dos adultos, além de 50% das crianças, fora das escolas, pois não havia unidades de ensino suficientes para todos. Só existiam, e nos bairros mais centrais, as estaduais e privadas. A prefeitura municipal, até então, não tinha um setor educacional nem cultural. “Foi

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iMAgeNs: reProDução

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o Movimento de Cultura Popular que possibilitou a criação, há 50 anos, da Rede Municipal de Ensino do Recife”, pontua Letícia Rameh. A Fundação de Cultura local só seria criada em 1979, e a Secretaria de Cultura municipal, somente em 2001.

PraçaS de cuLtura

Diante desse contexto, foi arregimentado um time de peso de intelectuais e artistas para pôr em prática o novo plano sociocultural. O professor Germano Coelho, que acabara de voltar de uma longa estada em Paris, tornou-se o primeiro presidente da iniciativa, permanecendo até o começo de 1964. Na capital francesa, Germano teve contato com os ideais do grupo Peuple et Culture (Povo e Cultura), com o qual, segundo ele, o novo movimento tinha semelhanças. “O pressuposto era que o talento não distingue classe social. O povo todo tem talento. O gênio pode nascer numa família pobre. Hoje estamos perdendo muitos talentos por não incluirmos os excluídos”, avalia o ex-presidente do MCP. Observações como essa estarão no livro Pequena história do Movimento de Cultura Popular, que o escritor está concluindo. Ao contrário do que sugere o adjetivo do título, trata-se de uma obra com mais de 300 páginas, trazendo suas

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“o pressuposto era de que o talento não distinguisse classe social”, diz o professor germano coelho memórias sobre o movimento e a época. “Paulo Freire cobrava muito isso de mim. Dez dias antes de sua morte (2/5/97), encontrei com ele em São Paulo, e ele me disse: ‘Germano, você tem que contar essa história’”, recorda, acrescentando que houve, por parte do regime militar, um propósito de destruir a memória do MCP. “A intenção deles era apagar a existência do movimento. Não deixar vestígios. Para se ter uma ideia, destruíram até a galeria de arte de vidro, que ficava na rua do Sol (em frente aos Correios)”. Mesmo com a perseguição política que o grupo sofreria, a organização era, na prática, apartidária, uma sociedade civil autônoma, sem fins lucrativos, de número ilimitado de sócios, com duração indeterminada, e finalidade educativa e cultural, constituída pelas subvenções dos poderes públicos, doações de entidades e de convênios particulares. Mesmo sem contrapartida

na redução de impostos, o comércio e a indústria também contribuíram com as despesas dos professores. A partir de 1963, após Miguel Arraes ter sido eleito governador, o MCP passou a ter efetivo apoio do Governo do Estado e a ser implantado nas cidades do interior. Fora sua sede no Sítio Trindade, a iniciativa promovia atividades em espaços diversos, como clubes recreativos, salões paroquiais, templos protestantes, sociedades beneficentes, centros espíritas, clubes desportivos, ligas de dominó e praças públicas. Algumas “praças de cultura” foram criadas nos bairros da Várzea, Iputinga, Beberibe, Torre e Casa Amarela, sendo equipadas com discoteca, biblioteca, cinema, teatro e jogos infantis. As apresentações de pequeno porte aconteciam nelas, e as maiores, no sítio. Nessa época, as praças eram realmente espaços de convivência nos momentos de lazer da sociedade.

organização

A estrutura do MCP era composta pela presidência e mais de 100 sóciosfundadores, com várias diretorias: de divisão de ensino (Anita Paes Barreto), de pesquisa (Paulo Freire), de saúde (Arnaldo Marques), de teatro (Luiz Mendonça), de artes plásticas e artesanato (Abelardo da Hora),

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Flávio lAMeNhA

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PauLo Freire

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Brennand

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aBeLardo da Hora

o método de alfabetização criado pelo educador foi paradigma para a difusão pedagógica e cultural do movimento Pintura do artista que se engajou ao McP busca retratar as situações de aprendizado em sala de aula escultor já vinha empreendendo atividades de popularização das técnicas artísticas desde a década de 1950

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do bem-estar coletivo (Geraldo Vieira), de música, canto e dança (Geraldo Menucci/Mário Câncio), de divulgação da cultura (Aluísio Falcão), de esportes (Reinaldo Pessoa); e as coordenações de educação pelo rádio (Norma Porto Coelho), de pesquisas (Paulo Rosas) e dos centros de cultura (Zaíra Ary). Cada diretoria contava com o auxílio de dezenas de ilustres colaboradores como os artistas plásticos Francisco Brennand e Guita Charifker, os escritores Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho e a atriz Geninha da Rosa Borges, entre outros. Havia ainda a participação fundamental de muitos estudantes, entre eles, a cantora Teca Calazans e a socióloga Silke Weber (à época, aluna de pedagogia). “Além de seus nobres objetivos, o MCP também atraía voluntários devido ao status de se poder conviver com os mais renomados intelectuais e artistas pernambucanos daquele período”, argumenta Letícia Rameh. A pesquisadora ainda lembra que o movimento conquistava novos adeptos pela “circularidade cultural”, pelo desejo de “aprender com o povo”. “Estendiam-se as conquistas da vanguarda cultural ao âmbito das massas populares e,

em sentido contrário, se elevavam as manifestações culturais populares no nível da vanguarda cultural”, compara. O maestro Geraldo Menucci, responsável pelas ações de música, concorda com essa visão: “Eu não me punha acima do aluno, punhame ao lado dele”. E Germano Coelho complementa: “O que a gente não deixava de flagrar era a alegria dos educandos ao ver os educadores aprendendo com eles”.

SerVindo de eXeMPLo

A estratégia de propagação das ideias e ações do MCP se deu na formação de redes de ensino, como num sistema de comunicação de base. Além das escolas primárias para crianças e adolescentes, houve a preocupação com a formação de adultos. Para atendêlos, foram criadas escolas radiofônicas e de aperfeiçoamento para adultos e programas de educação e cultura pelo rádio e pela televisão, junto com outras, de formação profissional. Havia clubes de leitura e círculos de cultura, centros de artesanato e artes plásticas, exposições e debates. No cinema, foram desenvolvidas atividades de difusão cinematográfica. Na área da dança, música e canto, foi incentivada a realização de festas populares; e as linguagens eram usadas como meio

de politização. No teatro, foram montados clubes, festivais e cursos. Mesmo com ações bem-sucedidas e tendo repercussão nacional positiva, o MCP sofreu, já em 1962, dois anos antes do golpe militar, tentativas de difamação e de repressão, despertando atos de defesa, como o do então ministro da Educação, Darcy Ribeiro, que esteve no Recife e considerou o projeto “um exemplo a ser levado a todo o país”. Letícia Rameh lembra que a “experiência de alfabetização popular em Pernambuco levou à constituição do Sistema Paulo Freire de Educação, que se tornou a base do Plano Nacional de Alfabetização, do presidente João Goulart”. O êxito do MCP inspirou a União Nacional dos Estudantes (UNE) a criar o Centro Popular de Cultura (CPC), que, posteriormente, ganhou mais notoriedade na mídia do que o MCP.

VÍtiMa do regiMe

Em 1º de abril de 1964, o MCP tornouse uma das primeiras vítimas do regime ditatorial. Dois tanques de guerra estacionaram em frente à sede no Sítio Trindade e dele saíram militares que destruíram a quase totalidade da documentação e das obras até então realizadas. Elas foram queimadas e destruídas, e os integrantes foram perseguidos, exilados ou presos – Abelardo da Hora, sendo um deles, passou 10 meses em cárcere. O último balanço, datado daquele ano, foi um dos poucos documentos que conseguiram salvar. Dele consta a criação de 414 escolas, com o ingresso de 30.405 alunos, sendo 27.703 crianças e 2.702 adolescentes, sem contar o montante de adultos. Com o restabelecimento da democracia, nos anos 1980, as demandas da realidade do país tornaram-se outras; e o projeto já havia perdido o fôlego. Além disso, os governos começavam a investir em educação e cultura de forma mais sistematizada. Hoje, alguns programas governamentais devem reverências ao sonho de construção política, educacional e cultural que mobilizou os integrantes do movimento. Para Germano Coelho, o MCP não acabou: “Ele está vivo quando se fala e se investe em cultura popular”.

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Artigo

Flávio BraynEr o MCP E a invEnÇÃo Do “Povo” Há 50 anos , sob a inspiração do movimento francês animado por Joffre Dumazedier (Peuple et Culture), iniciou-se no Recife, pela ação de pessoas como o então prefeito Miguel Arraes, Germano Coelho, Abelardo da Hora e muitos outros, um movimento cultural – posteriormente estendido para o interior do Estado – que envolveu intelectuais, estudantes, artistas populares, professores. Ainda hoje, sobretudo na memória de quem viveu aqueles dias e se envolveu com o Movimento de Cultura Popular, há o sentimento de que ali se estava fazendo algo historicamente importante: um misto de afirmação identitária, de descoberta e valorização da “cultura popular”, e de criação de um laço político-cultural entre intelectuais e povo. Em resumo, a emergência de um novo “bloco histórico” . O Movimento foi amplamente estudado e discutido sob a forma de teses, ensaios, entrevistas, artigos e livros. No geral, penso não estar longe da verdade ao afirmar que boa parte dos autores incide sobre um ponto comum a respeito do MCP: mesmo no interior de uma quadratura populista, estava a caminho um processo de emergência do “povo como categoria histórica”, como ator e sujeito de um projeto político e cultural que culminaria numa “crise de hegemonia” em que se poderia vislumbrar a Canaã da “revolução brasileira”, que tinha em Pernambuco seu mais avançado laboratório. Todas essas teses guardam um amplo interesse e estão profundamente sedimentadas em nossa interpretação daquele período, o que torna difícil qualquer tentativa de desmobilização daquelas certezas. E, no entanto, talvez as coisas não sejam exatamente assim!

Os anos de 1920, grosseiramente falando, colocaram sobre a mesa a questão da identidade nacional (discussão que tomava a forma do “caráter”, da “psicologia” ou da “alma” brasileira). Essa tentativa de “redescoberta” do Brasil, para a qual Mário de Andrade oferecerá a mais valiosa das contribuições, através de suas viagens antropológicas repertoriando e catalogando elementos das culturas populares regionais, caminha em franco contraste com as interpretações “autoritárias” de Alberto Torres ou Oliveira Viana, que lançavam um verdadeiro anátema sobre a nossa demografia, contaminada pela presença negra e, portanto, incapaz de alcançar os patamares superiores da civilização (cuja “solução final”, para alguns, passava por um amplo e demorado processo de branqueamento

o Movimento foi amplamente estudado e discutido sob a forma de teses, ensaios, entrevistas, artigos e livros através de uma política eugenista que Vargas, aliás, apoiou). Vozes como as de Roquette Pinto e Gilberto Freyre, no final dos anos 1920 e início dos anos 1930, oferecerão um contraponto decisivo e duradouro à imagem (mitológica) que faremos de nós mesmos e de nossa “identidade”. No entanto, praticamente todos esses intelectuais concordariam num ponto: o problema era o “povo”, ora desqualificado pelo pensamento conservador e autoritário, ora sendo valorizado por um tipo de pensamento que vê nele a matriz da construção de um projeto “genuinamente” nacional (seja lá o que isso queria dizer!). O Bispo Sardinha finalmente seria canibalizado para, após digestão, vomitarmos cultura nacional..., tese oswaldiana que retornará com os Tropicalistas, nos anos 1960. A cultura popular serviria, aqui, de cimento para a construção simbólica

dessa identidade, em oposição ao caráter universal, homogêneo, cosmopolita e asséptico da cultura “burguesa”. No “povo” residia nossa miséria e nossa redenção. E assim como ele havia sido representado ou, melhor dizendo, construído ou inventado em formatação negativa, também o poderia ser de maneira positiva, através da valorização, pelos intelectuais, da sua cultura. Isso quer dizer que a definição do que era “cultura popular” (em seu contraponto com a “cultura erudita”) era (e é) uma invenção de intelectuais, no caso brasileiro, interessados em dar uma resposta à questão da identidade nacional. Está a caminho um complexo projeto de invenção do “povo”. E é aqui que o MCP aparece como uma resposta pedagógica e cultural àquela questão dos anos 1920 sobre nossa identidade nacional. Valorizar a cultura popular através do teatro, do artesanato, das artes plásticas, da música, do cinema ou da alfabetização de adultos parece ter significado exatamente isto: escolher entre os diferentes, complexos e variados aspectos da “cultura popular” aqueles que interessavam à construção de uma noção de “povo” adequada ao “projeto nacional”, e que podemos, brevemente, definir como “povo consciente” (quer dizer não alienado), “povo autêntico” (contrastando com a “massa”) e “povo-sujeito” (em oposição ao povo-objeto). Nesse projeto, talvez a alfabetização de adultos e a influência de Paulo Freire para essa definição tenha sido decisiva: estava se dando, com três décadas de atraso, uma resposta pedagógica àquela questão dos anos 1920, que iria constituir a ideologia do nacional-popular. Em resumo, o MCP, a meu juízo, foi isso: um interessante experimento ideológico, patrocinado pelo Estado, que visava criar um conceito de “povo”, através de uma noção particular de cultura popular que servisse aos interesses de uma intelectualidade ocupada, naquele momento, com questões de identidade e projeto nacional, autenticidade da existência e revolução social. E precisavam, para tanto, ...de um “povo”!

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soledade Um palácio de portas abertas Morada de religiosos em meados do século 19, o prédio abriga nova sede do Iphan e apresenta centro cultural que preza pela educação patrimonial de Pernambuco texto Raquel Monteath fotos Maíra Gamarra

deparar-se com a imponente

fachada do casarão de número 824 da avenida Oliveira Lima, no bairro da Boa Vista, desperta o interesse quanto à história por trás da edificação. Construído em 1739, por Dom Frei Luis de Santa Teresa, o Palácio da Soledade serviu como uma alternativa a Olinda, onde se localizava a única sede do bispado em Pernambuco. A partir da necessidade que bispos e auxiliares diretos tiveram de resolver assuntos religiosos na vila do Recife, Dom Luis resolveu construir a residência, que também serviu de abrigo aos párocos vindos do interior. Após certo período de abandono, o casarão abrigou a sede do Governo Provisório republicano, quando da Revolução Pernambucana de 1817, sendo ali datados documentos importantes, como os ofícios da Lei Orgânica. Com cerca de 2.300 m² de área construída, a edificação traz características portuguesas oitocentistas, mescladas com referências neoclássicas do século 19, devido às reformas posteriores pelas quais passou. No Recife, há outras referências dessas construções de fachadas compridas e imponentes, mas que são simples em sua constituição, como o Hospital do Câncer em Santo Amaro, em oposição ao que se consideravam exageros das construções barrocas do século 17, muito encontrados em exemplares

religiosos, como nas igrejas em Olinda. “Sucessivas reformas foram feitas ao longo do tempo, e a feição que temos hoje data de 1831, quando Dom João Perdigão resolve dar ares palacianos ao casarão já existente, implantando as duas torres laterais”, observa Emanuela Sousa Ribeiro, doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. O Palácio da Soledade permaneceu efetivamente como residência episcopal durante o período de 1833 a 1917, quando foi vendido aos jesuítas pelo então proprietário Dom Sebastião Leme. Nele, a Companhia de Jesus inicia seus trabalhos educacionais fundando, em 1917, o Colégio Manoel da Nóbrega que, junto ao Salesiano e Marista, se configurou como referência no ensino de qualidade para a sociedade pernambucana. Nele estudaram importantes personagens da cultura local, como o poeta Carlos Pena Filho. Atualmente, o palácio abriga a nova sede da Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, que por 30 anos ocupou parte de outro casarão, o da rua Benfica, na Madalena, onde funciona o Museu da Abolição. A negociação da mudança de endereço se deu em regime de comodato entre a Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e o Iphan. “Fizemos um contrato de cessão para 25 anos, em que, além das adaptações

dom vital e a questão religiosa o Palácio da soledade foi cenário de um episódio que marcou o contexto históricoreligioso do Segundo Império Brasileiro: a prisão de D. Vital, por defender princípios católicos contra a maçonaria. Conhecido como a Questão Religiosa, o fato teve como pano de fundo os ofícios expedidos por D. Vital, que proibiam a celebração de missas maçônicas e decretavam a interdição às irmandades católicas nas quais houvesse maçons. “O fato em si, não foi inédito. Existiram várias bulas anteriores que proibiam ações maçônicas em associações católicas; o que os bispos envolvidos com essa Questão estavam tentando fazer era se colocar politicamente”, explica a historiadora Emanuela Sousa Ribeiro, referindo-se ao atrito existente entre Igreja e Estado. O juiz Quintino José de Miranda aparece no Palácio com o mandado de prisão a Dom Vital. Após recebê-lo, o bispo recolhe-se em seus aposentos, demorando alguns instantes que suscitaram no juiz inquietações quanto a uma possível fuga. Ao subir as escadarias, o magistrado depara-se com Dom Vital todo paramentado, de mitra e báculo: não desobedecera às ordens, apenas impunha um respeito instantâneo, digno de seu cargo. “Ao sair do palácio pela porta da frente, com a simbólica vestimenta litúrgica, para ser preso, o bispo clama por piedade popular, assumindo uma postura de mártir”, comenta a historiadora. Entregava-se ao ato, mas deixava nas mãos do juiz um protesto contra a violência, documento que continha a indignação diante da injustiça que enfrentava. (Rm)

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Pernambucanas necessárias para o funcionamento do Instituto, incluindo ações de restauro, iniciamos uma parceria com a própria universidade para promover um espaço cultural para a sociedade, que é a Casa do Patrimônio”, pontua Frederico Almeida, superintendente do Iphan em Pernambuco.

adaPtaÇÕes

Para a instalação da nova sede, ocorrida em janeiro deste ano, foi necessária uma adequação de uso, elaborada pela própria equipe técnica do Iphan. “O palácio estava numa situação precária, não só na fachada e nas esquadrias, mas nas instalações funcionais, como fiações elétricas; empreendemos também a climatização das salas

o Palácio da soledade foi residência episcopal durante o período de 1833 a 1917, até ser adquirido pelos jesuítas e a instalação de um elevador, que está sendo implantado para melhorar a acessibilidade ao prédio”, afirma o arquiteto Marcos Simão, responsável pela fiscalização das obras realizadas. Para essa primeira etapa, foram gastos cerca de R$ 2 milhões, com recursos exclusivos do Iphan. “Estão previstos ainda

para uma segunda etapa projetos de paisagismo, arqueologia e a construção de um edifício para abrigar as ações da Fundação Fé e Alegria”, aponta Cremilda Martins, arquiteta do Iphan. Após o fechamento do Colégio Nóbrega, em 2006, os jesuítas criaram o Complexo Educacional Nóbrega, que compreende a área circunvizinha ao palácio e que é de sua propriedade. O complexo abriga atualmente o Palácio da Soledade, o Liceu Nóbrega de Artes e Ofícios, a Capela de Nossa Senhora de Fátima, e o polo da Fundação Jesuítica Fé e Alegria, movimento de apoio à educação popular integral e assistência social, que atua com crianças e jovens carentes. Além do Nóbrega, que no princípio foi um internato, o palácio ainda abrigou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manoel da Nóbrega, fundada em 1943 e que posteriormente, em 1951, viria a se tornar aUniversidade Católica de Pernambuco.

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fachada

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reforma

O prédio tem características portuguesas oitocentistas e referências neoclássicas A escadaria original foi restaurada pelo Iphan

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são gonÇalo

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multimídia

O passado religioso é evidenciado por elementos patrimoniais Nesta sala, são projetadas imagens do ciclo festivo do Estado

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exPosiÇão Para aProximar o Público do PatrimÔnio montada no térreo do palácio

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O imóvel foi tombado pelo próprio Iphan em 1938, porém a lógica de preservação da época se restringia à estrutura arquitetônica em si, não cabendo necessariamente os cuidados necessários de preservação com a estrutura interna. O fato de o palácio ter passado por uma série de adaptações, visando corresponder às diferentes funções atribuídas, corrobora com a descaracterização dos espaços internos. Nos anos 1970, ocorreu a última grande reforma do palácio, para abrigar o curso de Direito da Unicap. “Essa reforma acabou por tirar grande parte da autenticidade interna, principalmente com relação aos pisos do térreo e do primeiro pavimento, que foram visivelmente elevados; e às adaptações referentes ao funcionamento interno, com o derrubamento e levantamento de divisórias para delimitar espaços”, explica Marcos Simão.

está a mostra O sopro do tempo: O patrimônio nacional em Pernambuco, que explica de maneira didática os conceitos institucionais trabalhados pelo Iphan. A mostra pretende aguçar o olhar leigo, principalmente das crianças, acerca das dimensões do que vem a ser patrimônio cultural, buscando associar textos explicativos a recursos visuais. Essa é a primeira exposição feita pela Casa do Patrimônio, projeto do Iphan em parceria com a Unicap, que pretende atuar como centro cultural, suprindo a defasagem surgida em 2009, quando o governo federal criou o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), destituindo em grande parte o contato do Iphan com o público. “As Casas do Patrimônio são uma tentativa de criar espaços para discutir sobre a preservação do patrimônio cultural; estão sendo implantadas não só em todas as regionais do Iphan, mas em outras entidades públicas que pretendam se enquadrar nesses espaços”, explica Frederico Almeida, superintendente regional do órgão em Pernambuco. A percepção sensorial é bastante explorada nessa exposição, que fica

em cartaz até o final do ano. Em uma das salas, a Lanterna mágica, a luz é completamente apagada e é entregue ao visitante uma lanterna para que, através do jogo de luz e sombras, explore as obras ali expostas. “O objetivo é treinar o olhar, descobrir as obras de um jeito nunca antes visto, partindo do elemento individual, do detalhe, para o todo, quando a luz é acesa”, explica o curador Aluizio Câmara. Através de seminários, oficinas, jornadas e atividades correlatas, a Casa do Patrimônio busca semear a importância da temática no imaginário popular. “As maquetes dos sítios históricos presentes na exposição foram frutos de um workshop realizado com alunos de arquitetura e urbanismo da Unicap”, comenta o coordenador da Casa em Pernambuco, Romero de Oliveira Filho. “Tivemos também uma oficina com os professores do Liceu, tornando-os agentes difusores em suas salas de aula. A ideia é que o Iphan indique um caminho e que a procura da própria sociedade indique outros, construindo as ações de forma conjunta. Agora, o foco é educação patrimonial”, ratifica o coordenador. A mostra é gratuita e a visitação pode ser feita de segunda a sexta, das 9h às 17h. Ainda no térreo, encontra-se a biblioteca do Iphan, que conta com acervo disponível para a pesquisa do público. (Rm)

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temperOS À procura do aroma e do sabor perfeitos

As especiarias e ervas tiveram diversos papéis ao longo da história, mas continuam sendo fundamentais na cultura gastronômica de qualquer país texto Renata do Amaral FotoS Eduardo Queiroga

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Basta uma folha de louro para dar sabor ao feijão nosso de todo dia. O casamento da banana com o queijo de manteiga na cartola não seria o mesmo sem o toque da canela. Dá para imaginar uma peixada pernambucana se faltar coentro? Usadas em quantidades ínfimas, as especiarias e as ervas são as responsáveis por boa parte da graça da cozinha. O químico Robert L. Wolke, em seu livro O que Einstein disse a seu cozinheiro 2 (Jorge Zahar, 2005), define que temperos são ingredientes derivados de plantas que proporcionam muito sabor com pequenas quantidades. As ervas remetem a folhas verdes, mais suaves e comuns em climas temperados, enquanto as especiarias são materiais de origem vegetal (raízes, cascas, sementes, frutos ou flores, exceto folhas), mais fortes e comuns em climas tropicais. Em seguida, Wolke vai mais longe ao pedir que o leitor relacione uma lista de 10 temperos com uma lista de 10 países. Como a tarefa é cumprida facilmente por qualquer um com um mínimo de cultura gastronômica, ele é taxativo: “Se você acertou sete ou mais, minha opinião

as especiarias estimulam os sentidos e permitem o exercício da criatividade, com sua infinidade de combinações se confirma: as cozinhas nas diversas culturas étnicas, nacionais e regionais podem ser caracterizadas em grande parte pelo modo como usam especiarias, ervas e condimentos. As especiarias são o que acentua a diversidade da vida culinária ao redor do mundo”. Afinal, quem discorda de que curry é a cara da Índia e que pimenta logo traz à memória o sabor da comida mexicana? Para o doutor em sociologia Carlos Alberto Dória, autor de quatro livros sobre alimentação, isso acontece porque esses ingredientes refletem a biodiversidade de cada região, daí sua atribuição ao lugar de origem. “Mesmo quando o uso se generaliza, nem por isso a consciência do lugar desaparece”, explica. Ele

cita como exemplos o açafrão, o tartufo de Alba e toda a culinária desenvolvida em torno de ingredientes raros – e caros – como esses. Em um país de grandes dimensões como o Brasil, por vezes as características regionais se sobrepõem às nacionais. “Os homens desenvolvem a culinária apropriando-se do que o ambiente circundante oferece”, diz. O colorau, por exemplo, é um tempero usado em todo o país, mas o cominho e o coentro apresentam diferenças de estado para estado. “As culinárias específicas são recortes históricos em meio a sistemas de intensas transações econômicas e culturais”, completa Dória. O sociólogo paulista afirma que os temperos tiveram diversos papéis ao longo da História, desde conservar alimentos até tentar se aproximar de culturas exóticas. Hoje em dia, o aspecto gastronômico é o mais ressaltado. É comum a tese de que as especiarias serviam também para disfarçar o gosto ruim de comidas já estragadas. O historiador Felipe Fernández-Armesto, no entanto, contraria essa hipótese em seu livro Comida: Uma história (Record,

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nordeste

O coentro, a cebolinha e o colorau são tradicionais na culinária da região

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2004): esse seria um dos grandes mitos da história da comida e partiria de outro mito, o do progresso, segundo o qual as pessoas de épocas anteriores eram menos capazes de discernir o que era bom. Para ele, ao contrário, os alimentos na Idade Média eram mais frescos do que os de hoje, porque eram produzidos localmente e não lançavam mão de fertilizantes. Também já eram usadas técnicas apropriadas de conservação, como a salga e a conserva em vinagre. “O papel das especiarias na culinária era determinado pelo gosto e pela cultura”, afirma o autor. As especiarias contribuíram para a formação de novas culturas alimentares nas áreas atingidas por seu comércio. Àquela época, uma cozinha rica em especiarias era cara e socialmente diferenciadora. Um caso curioso é o do açúcar, considerado uma especiaria anômala por não ter perfume, mas tido como um condimento exótico e caro na Antiguidade e na Idade Média. “O açúcar era o único produto do Atlântico que podia competir com as especiarias do Oriente como um condimento de alto valor”, escreve Fernández-Armesto.

Em seguida, com o aumento da oferta, tornou-se comum e passou a substituir o mel usado anteriormente para adoçar.

caiXinHa de saBores

A nutricionista paulista Neide Rigo – que mantém o indispensável blog Come-se (come-se.blogspot.com), no qual destrincha ingredientes brasileiros pouco conhecidos – acredita que as especiarias têm a função de estimular os sentidos e permitir o exercício da criatividade, com sua infinidade de combinações. Segundo ela, antes da chegada dos europeus ao Brasil, a pimenta era o tempero básico dos índios. O coentro, por exemplo, foi trazido pelos imigrantes, mas aqui já existia o nhambi ou chicória-do-pará (também conhecido como coentro-do-pasto ou coentrão), bastante semelhante à erva estrangeira. “Ao que parece, ele só começou a ser usado como tempero quando cozinheiras portuguesas descobriram a semelhança com o coentro que já conheciam”, conta. Na Índia, é comum a massala daba, uma caixinha de temperos usados em misturas típicas do país. Para a

nutricionista, a massala daba brasileira conteria os temperos secos: pimenta-doreino, cominho, colorau, louro, açafrãoda-terra, cravo, canela e erva-doce; além dos temperos frescos: coentro, salsa, cebolinha, hortelã e alfavaca. “E talvez os mediterrâneos: manjericão, alecrim, orégano”, complementa. Ela informa ainda que o desprezo pelo coentro, tão apreciado no Nordeste, em algumas regiões do país tem explicação científica: trata-se de uma intolerância à substância que lhe dá o cheiro. O fenômeno também acontece com a erva-doce e o cominho, que costumam ter seus detratores e seguidores ferrenhos, no estilo “ame ou odeie”. “Isso pode estar ligado às influências estrangeiras em cada região – de genética e de hábitos”, opina.

o poder do aroMa

Usar ervas frescas e especiarias trituradas na hora é bobagem de gourmet exibido? Nada disso. Rigo explica que os óleos essenciais voláteis que dão aroma e sabor às especiarias se perdem ou se oxidam depois da trituração, perdendo seu poder. Os temperos devem estar

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sempre em vidros escuros – nada de deixá-los na soleira da janela. Quanto às ervas, o melhor é colher e picar na hora de usar. “Secas ou congeladas, elas só mantêm uma leve lembrança do que foram quando frescas. Às vezes, é como comer grama”, afirma. Alguns tipos, como sálvia, orégano, tomilho, alecrim e louro, no entanto, não perdem suas propriedades e podem até mesmo ter seu sabor intensificado. O chef consultor Leandro Ricardo, cuja sensibilidade para aromas lhe rendeu o apelido de chef nez (nariz, em francês), considera que as ervas dão suporte para realçar uma receita e que devem ser usadas com cuidado para o resultado não ficar carregado. “Se comparar o garam massala dos indianos e o ras al ranôut dos marroquinos, você percebe bem a diferença de cada cultura através das especiarias. Feche os olhos, sinta o perfume e seja imediatamente transportado”, recomenda. Pesquisador de culinárias típicas, o pernambucano Leandro conta que dois dos principais temperos nordestinos carecem de maior controle de qualidade

as ervas também são usadas na cura de doenças, e nos tratamentos com óleos da medicina aiurvédica

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Na hora de cozinhar, Leandro sugere soltar a imaginação e ousar, sem esquecer o equilíbrio. Mousse de capim santo para o verão, canela em receitas salgadas, manjericão no sorvete e coentro num molho agridoce de maracujá são algumas das dicas. Em marinadas, o alecrim é ideal para cabrito, porco ou frango, enquanto o cravo cai bem no preparo: enquanto o cominho é diluído para caça ou carnes vermelhas. na hora da moagem por ser triturado da cozinHa À terapia junto com cascas e talos, o colorau “Não tem para que comprar chá de pode ter fubá adicionado à mistura. caixinha!”, opina a professora de ioga Para o chef, a melhor maneira de Maristela Lupe, que conta com uma conservar especiarias e ervas é guardar num pote hermético na geladeira, além horta em seu estúdio Sádhana Yoga e serve chá para os alunos antes ou de comprar quantidades pequenas. depois das aulas. Boldo para o fígado, Se não puder ter ervas frescas numa capim santo para a digestão, artemísia jardineira, a dica é lavar e secar bem as folhas antes de guardá-las com folhas de para a tensão pré-menstrual e erva cidreira como calmante. Para cada papel absorvente entre as camadas. Tostar as especiarias antes de utilizá- erva, uma indicação, que ela aprendeu las ajuda a liberar seus aromas e sabores. em cursos de medicina aiurvédica. No verão, amora, alfavaca e alecrim No caso das ervas, ocorre justamente compõem um chá refrescante para o contrário. “Só coloque no fim da receita, às vezes com o fogo já apagado, tomar durante o dia. “Tem gente que estuda só ervas. pois calor em excesso achata as notas É incrível o poder da fitoterapia”, aromáticas e gustativas”, afirma o chef.

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infusão

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Maristela Lupe colhe as ervas da horta de seu estúdio para preparar chás

Leandro Ricardo acredita que as ervas podem realçar qualquer receita A erva não perde suas propriedades ao ser armazenada O tempero, bastante usado no país, carece de um maior controle de qualidade

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afirma. Além das ervas, a horta abriga fruteiras de amora, banana e pitanga e também um pé de pimenta dedode-moça. A professora pernambucana gosta de cozinhar quando tem tempo, geralmente aos domingos, dia em que prepara massas com manjericão recémcolhido. Na sua casa, carne não entra, mas sua filha adora sair para comer sushi e seu filho come carne de vez em quando – “na rua”, como ela faz questão de frisar. Fora do prato ou da xícara, as ervas do jardim têm outra função na medicina aiurvédica. Lupe também é terapeuta de shirodhara, um tratamento com óleo medicado com ervas calmantes, que consiste em derramar um fio do líquido na testa do paciente por cerca de 40 minutos. Para preparar a mistura, ela usa óleo de gergelim prensado a frio ou óleo de coco, que vai ao fogo com ervas colhidas na hora. Cabe ao terapeuta manter o fluxo e a temperatura constantes. Óleos medicados também são usados para massagem no corpo. Há muito a ser desvendado no mundo dos temperos. Em uma pequena enciclopédia como O guia das

especiarias, de Richard Craze (Livros e livros, 1997), ficamos sabendo que o cominho, hoje tão nosso, vem do Oriente Médio; que a pimenta preta e a branca são da mesma espécie, mas colhidas em diferentes pontos de maturação; que a malagueta é um dos mais picantes tipos de pimenta; e até que a noz moscada, muito usada em sobremesas, é venenosa quando consumida em grandes quantidades. Atualmente, as especiarias mais valiosas são o açafrão, a baunilha e o cardamomo, nesta ordem. O primeiro já chegou a ser mais caro que o ouro. Esse ingrediente essencial da paella e da sopa de peixe bouillabaisse tem seus estigmas colhidos à mão, principalmente na Turquia. A baunilha, por sua vez, é a vagem da orquídea trepadeira e era usada para aromatizar chocolate pelos astecas – a versão sintética não chega aos pés do seu aroma. Já o cardamomo, de origem indiana, entra no café árabe como sinal de hospitalidade. Na falta dele, no entanto, um chá colhido com carinho no quintal já faz as honras da casa muito bem.

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Fotos: divulgação

Claquete

distribuidora Em busca dos filmes perdidos

Sediada no Maranhão, a Lume se consolida como descobridora de títulos indisponíveis em DVD no Brasil texto Marcelo Costa

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num mercado

aparentemente ameaçado pelo surgimento de novas mídias, pela prática, seja para fins comerciais ou domésticos, da cópia de filmes disponibilizados no circuito comercial ou na internet, ainda parece haver espaço para o lançamento de filmes em DVD. Uma prova disso é a atuação da Lume, produtora de filmes e festivais de cinema em São Luís do Maranhão, que desde 2008 ingressou no ramo de distribuição de DVDs. De modo semelhante à Aurora, no Recife, que infelizmente sucumbiu às exigências de um mercado tão disputado, a Lume desenvolveu um projeto cujo principal

objetivo é a garimpagem de obras preciosas do cinema mundial e nacional que, por alguma razão, permaneciam inéditas ou fora de catálogo no Brasil nesse formato. O projeto prima pela qualidade da imagem, que geralmente preserva o formato original em que o filme foi lançado, por uma dose satisfatória de extras e pelo desenvolvimento de uma identidade gráfica original, que muitas vezes peca pela extravagância. “Nosso público tem o perfil de colecionador, que gosta de arte e, portanto, quer adquirir um produto diferenciado, com bons materiais extras, capa padronizada e boa

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LUME CLÁSSICOS

Nesta coleção, a produtora aposta em filmes como O discreto charme da burguesia

2-3 COLEÇÃO LUME

Down by law, de Jim Jarmush, e Felizes juntos, de Wong Kar-Wai, são filmes contemporâneos do catálogo

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legendagem”, afirma Frederico Machado, idealizador do projeto. Os filmes lançados compõem um acervo baseado em duas linhas: a Coleção Lume, uma seleção de filmes contemporâneos de artistas de talento reconhecido em festivais internacionais de cinema nas últimas décadas, e a Coleção Lume Clássicos, um resgate de obras consagradas e, por vezes, pouco conhecidas do grande público, que contribuíram para a consolidação do cinema enquanto linguagem estética. Essa lógica de certo modo garante um mapeamento importante das possibilidades expressivas do cinema a partir de um acervo que transita com fluência pelo cinema marginal brasileiro, o cinema independente americano, os clássicos da vasta produção asiática e os filmes de grandes autores europeus. É sempre interessante perceber como clássicos absolutos e bem

os lançamentos da produtora primam pela qualidade da imagem, preservando o formato original do filme, com extras particulares do cinema mundial, como O discreto charme da burguesia, de Luis Buñuel, ou Os contos da lua vaga, de Kenji Mizoguchi, podem conviver com filmes de realizadores ainda desconhecidos ou com obras menos conhecidas, inadequadamente chamadas de “menores”, de autores consagrados, como Coppola, Woody Allen e Brian de Palma. Nesse sentido, a atuação da Lume se assemelha às das salas de exibição do cinema alternativo, que disponibilizam filmes que normalmente não teriam

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a oportunidade de exibição no circuito comercial e assim estimulam uma percepção mais complexa da experiência cinematográfica. Numa época em que os sentidos parecem condicionados ao pastiche e ao engessamento de modelos pré-concebidos, iniciativas como essa se tornam fundamentais, à medida que contribuem para a diversificação do olhar. Isso fica evidente no lançamento de filmes radicalmente autorais do cinema marginal brasileiro (leia quadro da página 68), ou na simples presença de representantes de cinematografias pouco conhecidas, como Antes da chuva (1994), de Milcho Manchevski, produzida na Macedônia ou o húngaro O amor (1971), de Károly Makk. Além de tornar conhecidas obras importantes, que possivelmente permaneceriam no ostracismo, o caráter desbravador

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da coleção também permite o aprofundamento na filmografia de realizadores contemporâneos cultuados. O lançamento de alguns filmes capitais para a definição de um estilo próprio possibilita reconstituirlhes a trajetória enquanto artistas. Down by law (1986), de Jim Jarmush, Eraserhead (1977), de David Lynch, e Felizes juntos (1997), de Wong KarWai são bons exemplos disso. Essa lógica persiste nos lançamentos da Coleção de Clássicos, que também se destaca pela presença de cânones do cinema hollywoodiano, como Elia Kazan e George Cukor, e do interesse especial pela cinematografia japonesa, que, além de Mizoguchi, é representada por figuras de peso

Claquete como Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa. “O cinema oriental é extremamente rico, tem uma poesia e uma verdade raramente encontradas em outras cinematografias. Além disso, ainda é bastante desconhecido no Brasil, assim como o cinema tcheco, polonês, entre outros”, justifica Machado, que ressalta a importância da oferta de novas opções num mercado brasileiro ainda restrito. Trata-se, portanto, de um esforço de cinefilia, cujo minimalismo e esmero com que os filmes são lançados demonstram o cuidado com o produto e com seu consumidor. Fica a sensação de uma iniciativa de cinéfilos para um público que compartilha da mesma paixão. A própria escolha por filmes capazes de provocar um estranhamento, um deslocamento no espectador, evidencia uma inquietação, que se manifesta na necessidade de esticar a corda que tensiona os limites da linguagem cinematográfica para muito além do cinema comercial. São filmes cuja contribuição artística muitas vezes é soterrada pela avalanche de novos produtos audiovisuais, mas que, para um olhar mais atento, funcionam como pequenos clarões de consciência de uma arte muitas vezes subjugada como mercadoria.

pérolaS do catálogo alguns dos títulos já lançados pela produtora, aberta em 2008 coLEção KEnJi mizoGuchi dir. Kenji mizoguchi com Kinuyo tanaka, masayuki mori, machiko Kyô

a Garota da fábrica dE fósforos (1990)

dir. aki Kaurismaki com Kati outinen, Elina salo e Esko nikarri

Kaurismaki dá vazão à representação de personagens de uma classe operária desiludida num ambiente urbano finlandês. valendo-se da inexpressividade de seus atores, o diretor constrói sua poética da indiferença a partir do drama de uma mulher que tenta vencer a monotonia de sua vida. um retrato pessimista, marcado pelo humor negro peculiar do autor do excelente O Homem sem passado. Caixa com três filmes de um dos mestres do cinema japonês: Utamaro e suas cinco mulheres (1946), Mulheres da noite (1948) e Contos da lua vaga (1953). uma oportunidade de conhecer mais esse autor de estilo inconfundível, que valorizava os planos estáticos e a reflexão do espectador a partir de temas recorrentes como as relações de dominação entre gêneros e classes.

tem que ent. Sum fuga. turit, sam conseque excerum Filme que revelou a inquietante capacidade explitem exceped do autor em tecer comentários mordazes sobre as relações humanas qui omnis elitatquam e a vida em sociedade nos Eua. Com dolest, umvellenitis humor corrosivo e muito particular, fELicidadE (1998)

dir. todd solondz com Jane adams, Lara flynn boyle, cynthia stevenson, Philip seymour hoffman

o conformista (1970)

dir. bernardo bertolucci com Jean-Louis trintignant, stefania sandrelli e Gastone moschin.

ainda sob efeito da eclosão dos filmes ideológicos da década de 1960, o filme é um thriller político sobre um lacaio fascista que se vê na incumbência de planejar o assassinato de um antigo professor, que outrora admirava. No auge de sua forma, Bertolucci destila maestria em sequências de grande impacto estético e emocional.

cinEma marGinaL brasiLEiro

solondz constrói um impiedoso painel de personagens e situações insólitas capazes de deslocar o espectador do seu território familiar e levá-lo a lugares inóspitos da natureza humana.

um oLhar a cada dia (1995) dir. theo angelopoulos com harvey Keitel e maia morgenstern

uma reflexão sobre tempo e memória de um dos expoentes do cinema moderno europeu. Numa recriação do mito de ulisses, o filme apresenta a busca de um cineasta pelos primeiros rolos de registro cinematográfico do seu país. uma declaração de amor ao cinema, com a seriedade e a ênfase na mise-en-scène que marcaram a obra do diretor grego de Paisagem e neblina, também lançado pela lume.

Filmes nacionais que romperam com a narrativa tradicional do cinema, tanto temática quanto esteticamente. destaque para o estranhíssimo Bang-bang (1971), de andrea tonacci, uma viagem alucinante com toques de psicanálise – uma obra-prima a ser descoberta. a coleção ainda inclui Meteorango Kid – O herói intergaláctico (1969), de andré luís de oliveira, Sem essa aranha (1970), de Rogério sganzerla, e Os monstros da babaloo (1970), de Elyseu visconti.

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INDICAÇÕES Romance

500 dias com ELa Dirigido por marc Webb Com Zooey Deschanel e Joseph Gordon-Levitt Fox Filmes

Aventura

Drama

aVatar

Dirigido por James Cameron Com Sam Worthington e Zoe Saldana Century Fox

a ascensão e queda de um relacionamento amoroso são as bases do enredo de 500 dias com ela (500 days of summer). Na tentativa de entender o que não deu certo em seu namoro, o redator de cartões tom Hansen, interpretado por Joseph gordonlevitt, lança um olhar singular e cômico sobre o amor, a paixão e a intimidade de um casal. o filme consegue se desvencilhar do estereótipo das comédias românticas e surpreende nos quesitos roteiro, direção de arte e trilha sonora.

Maior bilheteria da história, Avatar é um blockbuster assinado por um “fabricante” deles: James Cameron, diretor de Titanic e Exterminador do futuro. Na obra, Jack sully participa de uma experiência que o permite tornar-se um avatar, tomando a aparência dos Na’vi, habitantes azuis do planeta Pandora. assim, o protagonista, um ex-militar, passa a hesitar entre o respeito ao povo nativo e a apologia do extermínio deles. apesar dos clichês, o filme deslumbra pela perfeição técnica, desde que o espectador não espere mais do que isso.

Drama

Policial

Dirigido por Pedro almodóvar Com Penélope Cruz e Lluís Homar Universal

Dirigido por Werner Herzog Com Nicolas Cage e Eva mendes imagem Filmes

abraços Partidos o ex-cineasta Mateo Blanco (lluís Homar) vive de escrever roteiros sob encomenda depois de ter ficado cego em um acidente de carro. Na verdade, a tragédia do acontecimento não é a perda da visão, mas a morte de lena, vivida por Penélope Cruz, seu grande amor. Enquanto revive os passos do que Mateo esqueceu por vários anos, o diretor espanhol consegue mostrar o almodóvar exagerado de outros filmes sem perder o tom dramático da obra, comprovando que continua a ser um dos principais realizadores autorais do nosso tempo.

VÍcio frEnÉtico

Refilmagem da obra homônima de abel Ferrara, Vício frenético mantém a fidelidade apenas ao personagem principal do original, recriando todo seu entorno. depois de um acidente que o deixou com uma dor crônica nas costas, o policial terence (Nicolas Cage) se torna um usuário de drogas e se rende à corrupção. assim, ao mesmo tempo em que investiga a morte de uma família de imigrantes senegaleses na Nova orleans, pós-furacão Katrina, terence enfrenta problemas envolvendo sua amiga prostituta Frankie e um grupo de traficantes.

Animação

coco antEs dE chanEL

o fantástico sr. raPoso

Coco antes de Chanel (Coco avant Chanel) traz um recorte da vida da estilista gabrielle Bonheur Chanel (audrey tautou), e mostra a mulher antes do mito, que foi abandonada em um orfanato, trabalhou como cantora em uma taberna durante a juventude até cair nas graças da alta roda parisiense. a inventividade e o olhar visionário de Chanel sobre a moda estão expressos no filme, indicado ao oscar de melhor figurino e ganhador do César francês na mesma categoria.

o sr. Raposo é um talentoso ladrão de galinhas. No entanto, quando sua namorada engravida, decide abandonar a vida perigosa – seu dom – e se estabelece como jornalista. seu filho, ash, é completamente deslocado, e tenta a todo custo ganhar o respeito do pai. Entediado, o sr. Raposo planeja um grande roubo: limpar os estoques dos três principais fazendeiros das redondezas. Wes anderson consegue misturar com sucesso o tom de lição das fábulas com uma linguagem atual.

Dirigido por anne Fontaine Com audrey Tautou e Benoît Poelvoorde Warner Home

Aventura

a mEntE QuE mEntE Dirigido por Sean mcGinly Com John malkovich e Colin Hanks Europa Filmes

a péssima tradução do título (que, literalmente, deveria ser “o grande Buck Howard”) é um ponto negativo, mas A mente que mente consegue superá-lo. Com mais uma atuação memorável de John Malkovich, no papel de um mentalista que já foi famoso e agora enfrenta a decadência, a obra conta a trajetória de troy, um estudante de direito, frustrado, que se candidata para a vaga de assistente do artista. apesar das excentricidades irracionais de Buck Howard, que quase o levam a deixar o emprego, troy percebe que tem muito a aprender.

Dirigido por Wes anderson Com George Clooney, meryl Streep e Bill murray Fox Filmes

Drama

ondE ViVEm os monstros Dirigido por Spike Jonze Com max Records e James Gandolfini Warner

Filme baseado em livro gera outro livro. Essa é a situação inusitada de Onde vivem os monstros, criado a partir do clássico infantil de Maurice sendak e que originou Os monstros, escrito pelo também roteirista da película dave Eggers. Max, uma criança agitada e criativa, foge de casa depois de brigar com a mãe. depois de subir em um barco à vela, termina chegando a uma ilha habitada por monstros, da qual se torna rei. a versão de Jonze transforma a obra em uma bela representação da infância e do seu lado selvagem.

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fotos: memória da cena pernambucana/divulgação

Palco 1

ARENA Era o grupo do teatro da Conde da Boa Vista

Eles primavam pelo mínimo de elementos cênicos, valorizando texto, interpretação e elenco, numa busca pela profissionalização da cena teatral pernambucana texto Leidson Ferraz

não foram nem sete anos

completos de atividades, mas uma pequena casa de espetáculos no Recife marcou para sempre a história do teatro pernambucano. Inaugurada há exatos 50 anos, no dia 13 de maio de 1960, em plena avenida Conde da Boa Vista, número 629, o Teatro de Arena do Recife foi saudado por lançar, em caráter comercial, uma nova forma de representação no Estado, com os atores em palco arena de face tripla, numa total proximidade com o público. Diferentemente dos outros três teatros

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drama

José pimentel e leda alves na montagem de Eles não usam black-tie, de 1960

atenção: a cena a meio metro do público, ou seja, uma intimidade que deu certo”, diz a atriz Leda Alves, que estreou profissionalmente ali, já conquistando o Prêmio Samuel Campelo de revelação feminina, oferecido aos melhores do ano pela Associação dos Cronistas Teatrais de Pernambuco (ACTP). A peça escolhida para o lançamento foi Marido magro e mulher chata, comédia de Augusto Boal, um dos ícones do Teatro de Arena de São Paulo, sem dúvida, uma forte inspiração para a equipe recifense. À frente da iniciativa, Alfredo de Oliveira, Hermilo Borba Filho e Graça Melo, teatrólogo carioca que, menos de dois meses antes da inauguração, deixou o Recife. Seria dele a direção da primeira montagem, substituído por Hermilo. Reunindo obras estrangeiras e, em sua maioria, nacionais, pelo simples prazer de fazer rir – numa época em que eram poucas as opções de diversão noturna na capital e a TV dava seus

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em atividade naquele momento, o Santa Isabel, o Parque e o Marrocos – este último, uma iniciativa particular do empresário e ator Barreto Júnior –, o Arena surgiu como uma opção ao estilo tradicional à italiana, projetado para receber até 100 espectadores e, com outra grande novidade, em um ambiente refrigerado. “A proposta era fazer um teatro divertimento, que tivesse qualidade nas suas montagens, na interpretação dos atores, mas sem outros maiores compromissos. E aquilo chamou a

os atores do grupo apresentavam-se em palco arena de face tripla, numa total proximidade com o público primeiros passos para conquistar a população, a nova casa teatral do Recife caiu no gosto de um público fiel, “uma sociedade elegante”, como chegou a definir Alfredo de Oliveira, em entrevistas da época. As apresentações aconteciam de terça a domingo, às vezes com duas sessões nos finais de semana, sempre com casa cheia. No pequenino palco, espetáculos que primavam pelo mínimo de elementos cênicos, valorizando o texto e a interpretação dos elencos, pagos religiosamente nos ensaios e na temporada, afinal, aquela era mais uma tentativa de profissionalização no Estado. Mas Alfredo e Hermilo não contavam com qualquer apoio financeiro e dependiam, exclusivamente, da bilheteria.

time eLoGiado

Após a primeira peça na casa alugada, vieram em sequência ininterrupta, ainda em 1960, Três anjos sem asas, de Alberto Husson, com Alfredo de Oliveira no comando; Canção dentro do pão, de Raimundo Magalhães Júnior, com Hermilo Borba Filho voltando a dirigir; Leito nupcial, de Jan Hartog, lançando Geninha da Rosa Borges como diretora teatral (ela, inclusive, levou o Samuel Campelo de melhor atriz por sua atuação, contracenando com o marido, Otávio Rosa Borges); e Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, novamente com Hermilo na direção. Esta última, primeiro grande sucesso do Arena paulista, diferia do caráter comercial das outras realizações do Arena Recife, numa inserção de teatro mais sério em seu repertório. No ano seguinte, 1961, Hermilo Borba Filho encena mais um trabalho, Farsa da boa preguiça, lançando nacionalmente esta obra de Ariano Suassuna. A peça agradou, com interpretações muito elogiadas de quase todo o elenco, reunindo nomes como José Pimentel, Leda Alves, Germano Haiut, Clênio Wanderley e Carlos Reis, mas marcou a despedida de Hermilo da sociedade no Arena, “não mais interessado em um teatro digestivo”, lembra Leda Alves, viúva do encenador. Mesmo assim, Alfredo de Oliveira não desistiu da empreitada e levou à cena mais quatro novos espetáculos, Oscar, de Claude Magnier; A farsa da esposa perfeita, de Edy Lima, com José Pimentel estreando profissionalmente como diretor; O noviço, de Martins Pena; e Uma cama para três, comédia de Claude Magnier. A partir de 1962, Alfredo passou a ceder o seu palco para um outro grupo liderado por Hermilo Borba Filho, o Teatro Popular do Nordeste – que só viria a dispor de uma casa própria de espetáculos em 1966, também na Conde da Boa Vista. Com o Arena alugado, o TPN estreou a polêmica farsa A bomba da paz, com texto e direção de Hermilo, e Município de São Silvestre, comédia de Aristóteles Soares, sob direção de José Pimentel. Engraçado é que, nos períodos de entressafra artística, Alfredo, um divulgador nato, costumava antecipar nos jornais espetáculos que nunca chegaram a ser encenados.

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Palco Em 1962, os espetáculos encenados testemunharam uma diminuição de público. E o ano seguinte atestou uma considerável ausência de atividades no teatrinho, vez ou outra entregue a outras companhias.

mUdanÇa de PercUrSo

Se 1964 foi um ano turbulento para o Brasil, marcou também um longo período de inatividade do Arena, esperando “vãs promessas da direção do Serviço Nacional de Teatro”, segundo declarou Alfredo de Oliveira. Somente em julho daquele ano, surgiu A viola do Diabo, estreia da jornalista Ladjane Bandeira como dramaturga. Com música de Capiba, essa comédia foi bem-recebida, assim como o trabalho seguinte, Roleta paulista, de Pedro Bloch, “a mais arrojada promoção do Arena”. Como resultado das novas peças, Alfredo pôde comemorar quatro estatuetas do Samuel Campelo: melhor autora, para Ladjane Bandeira – primeira mulher a receber tal premiação; melhor atriz para June Sarita, por Roleta paulista; e, ainda, melhor ator

o teatro de arena do recife funcionou durante sete anos, com peças ao mesmo tempo amenas e de qualidade

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para José Pimentel e melhor diretor para Alfredo, ambos pelo conjunto apresentado nos dois espetáculos. Na entrega dos troféus, em março de 1965, A viola do Diabo foi transferida para o palco do Santa Isabel, em seis concorridas apresentações. A última realização do Arena Recife, em fins daquele ano, foi Amor a oito mãos, comédia de Pedro Bloch, com direção de Renato Melo. A peça foi saudada pela imprensa, mas o teatro comandado por Alfredo já não tinha o glamour dos seus primeiros anos. Adeth Leite, do Diario de Pernambuco, sentenciou: “É uma pena que o público do Recife, apesar de cinco anos de existência, ainda não haja descoberto o simpático teatrinho da avenida Conde da Boa Vista”.

hermiLo borba fiLho

o diretor cercado pelo elenco de Marido magro e mulher chata, peça de estreia do grupo arena

O fato é que, ainda em 1965, Alfredo de Oliveira foi convidado a assumir a superintendência da TV Jornal do Commercio e o Arena passou a sobreviver apenas como palco para outros grupos, alguns deles com peças de perfil completamente diverso do até então apresentado, como as da Cia. Ítalo Cúrcio, do Rio de Janeiro, com Ela... à meia noite e Sua excelência, o sexo. A última notícia publicada nos jornais da época faz menção à temporada do Grupo Construção, com Teca Calazans à frente, no musical Louvação, em cartaz ainda de terça a domingo, além do show Desafio, de Lizzete & Os Bossanorte, que acontecia às segundas-feiras, até janeiro de 1967. Após isso, silêncio total. Contrariamente ao que Alfredo de Oliveira fazia, ou seja, divulgar bem qualquer atividade do seu teatro, o Arena do Recife não teve uma morte anunciada. De certa forma, ela foi acontecendo paulatinamente por conta das inúmeras atividades de seu proprietário, pela diminuição considerável do público e pela ausência absoluta de qualquer incentivo dos poderes públicos. Curiosamente, quase 10 anos depois, na apresentação que faz de si mesmo no livro Essas coisas (crônicas) que acontecem..., publicado em 1976, Alfredo ainda propagava a ideia de retomar sua casa de espetáculos: “O Arena, reconhecido de utilidade pública por lei estadual e municipal, procura uma nova sede onde possa prosseguir no importante trabalho em favor da revalidação da tão discutida arte teatral”. Mas, infelizmente, ficou só no desejo. Falecido bruscamente em 1979, Alfredo de Oliveira permanece até hoje como nome de casa de espetáculos no Recife, em prédio anexo ao Teatro Valdemar de Oliveira. Inicialmente projetada como sala para ensaios e peças de caráter mais íntimo, em 1982, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, desde 2008 o espaço foi transformado no Teatro Alfredo de Oliveira, numa homenagem do ator e diretor Lano de Lins.

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Um rito de mães, rosas e sangue Teatro Hermilo Borba Filho Estreia 26 Mai 20h

ADAPTAÇÃO O arquétipo da mãe em Federico García Lorca Espetáculo baseado nas três tragédias rurais do poeta e dramaturgo espanhol estreia no Recife, sob a direção do ator e diretor Cláudio Lira texto Clarissa Falbo FotoS Maíra Gamarra

Bodas de sangue (1933), Yerma (1934) e A casa de Bernarda Alba (1936) são as três peças escritas pelo poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca (1898 – 1936), nas quais tramas, personagens e carga simbólica se baseiam nos costumes e nas paisagens da Andaluzia rural da primeira metade do século 20. Ao abrir das cortinas, Lorca mostra o

drama humano levado aos extremos dos desejos reprimidos, conflito e morte. A figura da mãe é emblemática e multifacetada, tanto para a dinâmica narrativa dos textos, quanto nas representações evocadas pelo autor. Ora a mãe é vítima de práticas sociais impostas e resta-lhe apenas resignar-se (Bodas de sangue), ora é a mola propulsora

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da opressão social, condenando a família à observância irracional dos costumes (A casa de Bernarda Alba), ou ainda se faz, a um só tempo, vítima e algoz das regras de uma comunidade arcaica e tradicional (Yerma). Protagonistas ou coadjuvantes, as mães das peças rurais lorquianas foram escolhidas enquanto marco estético e emocional pelo ator e diretor pernambucano Cláudio Lira para conduzirem a adaptação Um rito de mães, rosas e sangue (Lorca – Um ato poético em três quadros). Cláudio Lira se deu conta da importância do arquétipo da mãe na obra de Lorca ainda nos anos finais da década de 1990, quando participou dos ensaios para uma montagem de Bodas de sangue. Enquanto se procurava uma atriz para interpretar o papel da mãe, era Lira quem lia as falas da personagem durante os ensaios. “Ao estudar as três tragédias rurais, percebi que os sentimentos relativos à maternidade conduziam

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Palco

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Página anterior 1 “teia da vida”

Cena expressa os rituais de vida e de morte presentes nas obras de Lorca

Nestas Páginas 2 mães

O sentimento de maternidade é o eixo da narrativa

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cláudio lira

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sincretismo

Diretor iniciou as pesquisas para a peça no final dos anos 1990 O espetáculo mistura elementos do catolicismo, do candomblé e movimentos inspirados nas posições da ioga

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por encenar em espaços alternativos como faz, por exemplo, a companhia paulista Teatro da Vertigem. Lira acredita que esse grupo deu início a um novo paradigma da criação teatral ao encenar a peça O paraíso perdido (1992) na Igreja Santa Ifigênia, em São Paulo, e posteriormente montar O livro de Jó (1995) no Hospital Humberto Primo, na mesma cidade. “São as dificuldades que se impõem no decorrer do processo que estimulam os encenadores a se tornarem cada vez mais criativos, encontrar soluções e adaptar ideias” reflete Lira. Luciano Ponte, responsável pela direção de arte do espetáculo, parte desses pressupostos para dar vazão à sua criatividade em um cenário minimalista, em que poucos

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os enredos”, explica. A montagem não chegou a ser concluída, mas as primeiras impressões resultariam, anos mais tarde, no argumento de Um rito de mães, rosas e sangue. Para Lira, a adaptação dos três textos condensados em um é, como dizia o próprio Lorca, uma licença poética. “O essencial de cada peça foi mantido. As três narrativas foram condensadas sem que as palavras de Lorca se perdessem”, comenta. É o vocabulário rico do poeta que alude a imagens e símbolos e sugere o tom ritualístico da montagem. A adaptação assinada por Lira foi criada a partir do processo de leitura das peças andaluzas e realização de exercícios cênicos com o elenco composto por nove atores e atrizes. O trabalho foi iniciado em janeiro deste ano.

limites e soluÇÕes

Um novo fazer teatral, no qual artistas combatem a falta de recursos com criatividade — é assim que Cláudio Lira define a concepção de encenação de seu espetáculo. De acordo com o diretor, esse novo fazer teatral se caracteriza pela criação de cenários intimistas e opção

nesta adaptação, o diretor diz que o essencial de cada uma das peças foi mantido, aludindo às imagens e símbolos de lorca elementos — bem-manipulados e combinados — colaboram para a dramaticidade da cena. Velas, cruzes de madeira, bacias e flores de papel crepom são alguns dos objetos posicionados no palco e acionados pelos atores. Os figurinos, também criados por Luciano, são articulados a partir da sobreposição de peças, pensadas para serem vestidas e despidas à vista do público. Toda a atmosfera estética faz menção aos quatro elementos da natureza (terra, água, fogo e ar), referências constantes nas tragédias lorquianas. A luz, concebida por Luciana Raposo, executa um trajeto evolutivo ao longo da montagem, à medida que as cenas invocam ambientes de cada uma das peças rurais. Para A casa de Bernarda Alba, focos bem-marcados expressam a sensação claustrofóbica das filhas presas pela matriarca. Bodas de sangue – que na adaptação de Cláudio se passa no cemitério, onde a mãe chora a morte de marido e filhos, depois que a história definida por Lorca chega ao fim – tem o clima soturno desenhado pela iluminação. Nas passagens de Yerma, o

artifício da luz é usado para simbolizar o elemento água, em contraste com a terra árida do lugar onde se passa a ação e com o desejo da personagem (supostamente infértil) de ser mãe. Projeções sobre o cenário e os atores, imaginadas e produzidas pela videomaker Tuca Siqueira, também compõem os efeitos visuais do espetáculo.

recursos sonoros

Os cânticos entoados e a sonoplastia incidental que pontuam os quadros da encenação foram resultados dos trabalhos de preparação musical e vocal dirigidos por Adriana Millet. Mantras, incelências e pontos do candomblé serviram de inspiração para as canções e os recursos sonoros, sendo o sincretismo religioso recorrente na proposta cênica da peça. A atriz Ana Maria Ramos, uma das componentes do grupo, ficou incumbida de coordenar a preparação corporal por meio de exercícios da ioga. O resultado foi que muito da movimentação em cena ganhou contornos das posições dessa prática, remetendo à dualidade yin-yang e aos elementos da natureza. Ana Maria Ramos, Andrezza Alves e Daniela Travassos, que haviam participado com Cláudio Lira de uma montagem experimental de parte do texto de A casa de Bernarda Alba, apresentada em 2000, no Centro de Artes da Universidade Federal de Pernambuco, foram convidadas para defender as personagens lorquianas na nova peça. O elenco conta ainda com Auricéia Fraga, Luciana Canti, Sandra Rino, Leda Santos, Lano de Lins e Zé Barbosa. No saguão do teatro, uma mostra de fotografias faz um paralelo entre a situação das matriarcas andaluzas retratadas por Lorca e das mães da comunidade do Pilar, localizada no Centro do Recife. O sentido da exposição é revelar as semelhanças entre as mães que perdiam os filhos para a violência da guerra, na Espanha do início do século 20, e as mães do Recife, que têm seus filhos tomados pela criminalidade e tráfico de drogas. Por meio de uma intervenção de áudio, depoimentos de mães do Pilar poderão ser ouvidos no espaço da mostra, que integra a programação do Festival Palco Giratório do Sesc-PE.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO lIvRO brasiliana itaú, ED. cAPIvARA

Visuais

brasiliana Uma coleção dedicada ao país

Livro reúne acervo de obras de arte, livros, manuscritos, publicações e atlas que documentam o Brasil dos tempos de colônia ao século 20, expressando ambição enciclopédica texto Mariana Oliveira

os gabinetes de curiosidades do Renascimento eram espaços nos quais se podia colecionar tudo – pinturas, publicações, animais, vegetais, minerais –, expressando um franco desejo de classificar, catalogar e reunir todo o conhecimento da época e seu patrimônio escrito. Esse espírito parece se manifestar, hoje, na coleção Brasiliana

Itaú, que foi documentada num portentoso volume (editora Capivara) e teve uma parte exibida (300 peças) na Pinacoteca do Estado de São Paulo, seguindo, agora, para o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, onde ficará em cartaz de junho a agosto. O material reunido, assim como acontecia nos citados gabinetes,

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é diverso, vindo de várias áreas, à exceção da pintura não documental e da fotografia. Tudo começou em 1971, quando a primeira obra (Povoado numa planície arborizada, de Frans Post) foi adquirida pelo Banco Itaú, graças ao interesse crescente do banqueiro Olavo Setubal por objetos que remetiam à história social e cultural brasileira. O que começou de forma aleatória, sem a menor intenção de constituir uma coleção, foi tomando corpo e o empresário, falecido em 2008, passou a contar com o auxílio de Pedro Corrêa do Lago e Ruy Souza e Silva, no processo de curadoria. Foi o próprio Olavo Setubal quem propôs a produção de um livro que pudesse servir como guia da coleção, a ser usado pelo público para atender a necessidades específicas ou a simples curiosidade. Criar um esqueleto central que pudesse traçar um conceito lógico para englobar as peças não foi uma tarefa simples. Segundo Pedro Corrêa do Lago, coordenador editorial e de texto do catálogo Brasiliana Itaú – Uma grande coleção dedicada ao Brasil, a inspiração veio da concepção de

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muitas coleções parecidas, como as chamadas Americana, formadas nos últimos 150 anos nos Estados Unidos, onde, a partir do século 19, colecionadores e instituições dedicaram-se a reunir imagens marcantes, documentos e impressos que apresentassem a evolução do país histórica e culturalmente.

oS cAPÍtULoS

A “enciclopédia” de mais de 700 páginas registra todas as peças que compõem a coleção, comentandoas uma a uma – tornando-se o maior volume ilustrado dedicado à arte brasileira. As quase 5 mil peças foram catalogadas em seis blocos, com um anexo voltado para obras complementares. O primeiro é destinado às obras de arte, com um grande número de originais de artistas que pintaram o Brasil entre os séculos 17 e 19, incluindo a citada obra de Frans Post, que deu início à coleção. A maioria dos trabalhos é composta por aquarelas e desenhos, mas há também 10 óleos de pintores relevantes na história nacional, tapeçarias, brasões e esculturas. O segundo (e maior) bloco do catálogo registra o rico acervo de livros e impressos, considerado pelo organizador “sob vários aspectos o mais rico da Brasiliana Itaú”. A primeira parte, Brasiliana Clássica, compreende os livros, muitos deles vastamente ilustrados, a respeito do país de 1504 até 1900. As primeiras

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impressões feitas com a chegada da tipografia ao país (Gazeta do Rio de Janeiro) e seus álbuns iconográficos (Memórias de Pernambuco, desenhos de Luís Schlappriz e litografias de F.H.Carls), as primeiras edições de clássicos da literatura brasileira (Os sertões, Macunaíma) e livros de artista (A realidade brasileira, de Di Cavalcanti) completam o material. A seção dedicada aos documentos manuscritos impressiona pela variedade e qualidade. De ofícios assinados por governantes brasileiros de várias épocas (de D. João VI a Tancredo Neves), passando por cartas de José de Alencar, Machado de Assis, Assis Chateubriand e VillaLobos... Entre os literários, fascina o

manuscrito do poema Profundamente, de Manuel Bandeira, adornado por uma aquarela feita também pelo poeta. Entre as composições musicais, a letra de Paratodos, escrita num papel de saco de enjoo de um avião por Chico Buarque, e um raro manuscrito de Garota de Ipanema, na caligrafia de Vinícius de Moraes. Finalizando: dois dossiês, um sobre Santos Dumont e outro versando sobre a escravidão no Brasil. As últimas páginas do catálogo são dedicadas à cartografia brasileira impressa, a documentos e manuscritos destacados numa categoria adicional ligada à Economia e Finanças, explicada em grande parte pelo fato de a coleção pertencer a um banco, e a Paulistana, um pequeno recorte, também adicional, pensado dentro dos mesmos critérios da Brasiliana, mas que traz peças representativas da história e da cultura da cidade de São Paulo. O teórico Walter Benjamin dedicou parte do seu tempo ao estudo do colecionismo. Para ele, o objeto colecionado é arrancado do seu contexto original e recolocado, revisto, relido, revisitado. Ele renasce. A coleção Brasiliana Itaú faz renascer um acervo riquíssimo que merece ser reinterpretado permanentemente. Isso será possível, já que, além da publicação do catálogo e da exposição temporária que chegará, em breve, a Belo Horizonte, a sede do Itaú Cultural em São Paulo prepara uma sala para abrigar esse grande inventário sobre o Brasil.. 1 iconoGRAFiA A gravura da praça chora Menino compõe o álbum Memórias de Pernambuco 2 RetRAto A escultura de D. João vI é considerada uma das melhores representações do rei já realizadas 3-4 cARtoGRAFiA Cosmographiae introductio (1507) foi a primeira obra a registrar num mapa o nome América. Em 1570, foi publicado, no atlas Theatrum Orbis terrarum, um dos mapas mais famosos do continente

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pequenos presentes

matéria corrida José cláudio

artista plástico

Sempre lembro um ditado baiano,

ou pelo menos ouvido em Salvador, anos 50: “Um presente dado de bom coração é uma bença, uma bença, uma benção”; como uma fitinha branca de papel, originariamente para corrigir erro de datilografia, presumo, ruban-cache et correcteur ou correction & cover-up tape, e que nunca usei na indicação, sequer experimentei, a salvação da lavoura quando se precisa dar um traço fino e longo com pincel, a não ser que, além de se ter mão suficientemente firme para isso, se usasse pincel de um único cabelo, como Salvador Dalí disse ter usado. Essa fitinha, quem me deu (morro de vontade de escrever “quem ma deu” mas muitos iam ignorar, triste fim da língua portuguesa nos tristes trópicos) foi minha filha Maria que mora nos Estados Unidos. Falei de pincel de um cabelo, me lembrei de Gilvan Samico e seus

preciosismos xilográficos. Alguns desses melhores presentes foi ele quem deu: um pedaço de trilho não sei se de bonde ou de trem, de 41cm de comprimento, de mil e uma utilidades como desenvergar ou cortar pregos, bater beiço de lata, geralmente de extrato de tomate ou símile, que uso para molhar ou 1avar pincéis na hora que estou pintando, tendo sempre ao lado duas ou três dessas latinhas mas também outras para pincéis mais largos, latas de doce e outras, de sardinha, de atum, e para rebater essas tais rebarbas o melhor é um pedaço de ferro de construção roliço que não sei quem me deu ou apanhei na rua (sou desses velhos que apanham coisas na rua: botões, oitis, pedaços de pau que servem para fazer pequenas esculturas, pedaços de ferro ou de arame; nunca encontrei foi ouro), fazer peso quando se quer colar uma coisa e, outro desses presentes, uma fita de aço de uns quatro dedos de largura

por 1m de comprimento obtida de uma mola dessas portas de abaixar de uma fábrica de pregos de uns parentes dele, de Samico, que fechou, e inda alcancei funcionando, na Rua Tobias Barreto: também preciso demais dela, dessas coisas de que a gente não sabe que precisa e da qual nunca mais se poderá separar, geralmente para cortar papel, desde canson e papelão com faca ou estilete a eucatex com riscador. Outros objetos não têm utilidade nenhuma, isto é, poderão até ter algum dia, ou em outra cultura, pois na nossa não sei bem qual o seu papel, e já parecem vir com seu destino traçado de não servir para nada, como é o caso de um tamborzinho mais ou menos em forma de taça ou pilãozinho com o pé de cobre repoussé, isto é, chapa de cobre batida, de madeira esmaltada do meio para cima e tampo de couro cru muito delicado preso por um anel de latão, 28,5cm de altura, e o diâmetro

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maior, onde tem o couro, 14cm (com o anel), que um amigo do meu filho Mané Tatu, Fredi Maia, trouxe do Marrocos há uns dez anos, ou mais, provisoriamente servindo de escora ao retratinho de minha netinha Natália, 24 anos, filha mais velha de Mané, moça séria, que se formou recentemente em direito pela Federal; como eu disse, tamborzinho esse que nunca serviu para nada mas eu detestaria perder: fica em cima do piano, modesto piano de parede, do tempo em que minha filha Maria estudava nele (aluna de Josefina Aguiar, sua iniciação sempre foi muito elogiada nas universidades por onde passou nos Estados Unidos, como Baylor, onde estudou Gilberto Freyre, ou Carolina do Norte, universidade de rico, sempre ganhando bolsa); é como se fizesse parte do piano e de certo modo o conjunto nos representa, a mim, mais ligado a percussão graças ao maracatu Dois de Ouro de Mestre

Um presente recente de que não consigo me desgrudar é um par de sapatos crocs, cuja marca é um crocodilozinho Eugênio em Ipojuca, e Maria, que toca piano e instrumentos de sopro renascentistas, um enorme trombone de pau: Maria é cheia de ideias. Um presente recente, relativamente, de que não consigo me desgrudar, é um par de sapatos Crocs, cuja marca é um crocodilozinho de desenho animado. De cor alaranjada, a princípio não dei valor, sendo até bem tradicionalista em matéria de calçados. Desde que meu pai morreu por causa de uma feridinha no tornozelo e, mesmo antes, quando andava pelas pedreiras para

fazer esculturas, e onde tem pedra tem cobra, me defini por botinas. Quando o amigo Miguel Coelho, brasileiro nascido e criado em Nova York, me presenteou com o estranho calçado, pensei: “Não tá vendo que não vou andar com uma desgraça dessa, inda mais alaranjado!” Passou-se. Eu ia descendo com umas panelas de alumínio pela escada que dá na garagem, já chegando no último degrau, ou melhor, que eu pensava ser o último degrau, resultado: queda feia. Sangue jorrando de debaixo de todas as unhas do pé esquerdo e muito, e mais um arranhão fundo abaixo do joelho. Felizmente não quebrei nenhum osso. Fiquei pintando de perna levantada, o pé em cima de um tamborete. No dia que resolvi sair, o pé não cabia nas botinas, nem mesmo na de enfiador, de gari, sem ser do poeta Garibaldi Otávio. Aí vi o Crocs. Só ando com ele. E só não me enterro porque, de plástico, não deve ser biodegradável.

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karina freitas

Leitura

ROBERTO BOLAÑO Uma só obra, livro após livro

Escritor volta a mergulhar no universo dos poetas e escritores marginais, numa incursão pelo macabro, no romance 2666 texto Schneider Carpeggiani

Ler Roberto Bolaño hoje é tão cool, que irrita. Quando perguntam o que estou estudando no doutorado em Letras tenho vergonha de dizer... “Roberto Bolaño”. Parece oportunismo, coisa de maria-vaicom-as-outras! As edições dos seus livros pela Companhia das Letras são tão bonitinhas, Susan

Sontag o adorava, o New York Times também... Blogueiros moderninhos citam suas frases mais polêmicas. Ele é vendido como uma espécie de James Dean da literatura. A morte prematura aos 50 anos, em 2003, as invariáveis fotos com um cigarro (nada mais transgressor em 2010 que fumar, convenhamos) e a notória

luta contra o regime político chileno mercantilizam com sucesso a imagem de um mito, mas fazem pouco com a do escritor. Há mais gente lendo sobre Bolaño do que lendo Bolaño. Tive a sorte de me apaixonar por Bolaño sem nem saber de quem se tratava. Caiu nas minhas mãos a edição brasileira de Putas assassinas e estava lá, logo num dos primeiros contos, Gómez Palácio, uma das melhores definições que já li do impacto que a literatura precisa ter, e em tom de desculpa: “Você há de entender meus exageros, porque nós dois somos leitores de poesia”. Ali estava a chave: Bolaño magnetiza não por ter vivido de forma interessante; e, sim, por ter sido um leitor interessado. Ele próprio se definia como um leitor que escreve. Estamos falando de um homem fascinado pela escrita como passional ação política. Tanto é que seus livros são protagonizados por

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escritores. Ou melhor: por escritores que não escrevem e/ou que nem sabem escrever. Mas, para quê? O importante é ter uma vida literária, viver poeticamente. Fazer da vida a própria obra de arte. Após essa confissão de leitor afetivo, vamos ao fato jornalístico: chega às livrarias brasileiras, este mês, o romance 2666. São mais de mil páginas em que o autor chileno tenta provar que ainda é possível escrever a obra total. E se antes era irritante a histeria moderninha ao seu redor, agora a coisa vai “piorar” de vez. Esse é seu livro mais cultuado. Foi publicado postumamente, tem um serial killer na trama e seu título mistura o milênio que estamos adentrando com o número da besta. Os blogueiros não largarão mais Bolaño. O escritor, já ciente da morte iminente, queria que as cinco partes de 2666 fossem publicadas de forma separada. Assim, acreditava, podia garantir por mais tempo a sobrevivência financeira dos filhos. Mas seus editores decidiram que o livro funcionaria melhor como uma obra única, apesar da imensidão de cenários, épocas e personagens apresentados. Estavam certos. Bolaño é completo na sua própria fragmentação. Para quem já conhece Os detetives selvagens (e suas respeitáveis 600 e poucas páginas), 2666 é um reencontro. Podemos ir além nessa história de “reencontro”: a impressão é de que Bolaño escreveu infinitamente uma só obra, livro após livro. Certa vez chegou a se declarar “tomado” pelo fantasma “cada vez mais vivo” de Pierre Menard, o autor do Quixote, como imaginado por Jorge Luis Borges. Indicando, assim, que o mais difícil não seria escrever uma história, mas rescrevê-la, palavra por palavra, eternamente. Suas obsessões são bastante reconhecíveis. A cada livro fazemos um mergulho no universo dos poetas e escritores marginais e uma incursão (por vezes irônica) pelo macabro. Temos ainda a constante ligação com o romance policial e a dissolução da sua biografia numa série de heterônimos, como B., Arturo Belano e Arturo B. Um

dos exemplos mais explícitos dessa temática é justamente a abertura do romance Detetives selvagens. Ela tornouse famosa graças ao tom emblemático, de surgimento de um novo projeto literário (ou seja: de uma nova forma de encarar a vida) que o autor imprime ao texto. A urgência do início de Detetives selvagens lembra o desvio de rota biográfico, doloroso e necessário de On the road, de Jack Kerouac. É assim que começa o romance: “Fui cordialmente convidado a fazer parte do realismo visceral. Claro que aceitei. Não houve cerimônia de iniciação. Melhor assim. Não sei muito bem em que consiste o realismo visceral. Tenho 17 anos, meu nome é Juan García

Roberto Bolaño queria publicar o seu 2666 em cinco partes, mas seus editores acharam melhor um livro só, uma “obra total” Madero, estou no primeiro semestre de Direito. Não queria estudar Direito, e, sim, Letras, mas meu tio insistiu e acabei cedendo. Sou órfão. Serei advogado. Foi o que disse ao meu tio e à minha tia, depois me tranquei no quarto e chorei a noite inteira. Ou, pelo menos, boa parte dela”. Já 2666 é menos histérico em suas intenções iniciais. Temos apenas um dado biográfico na sua abertura, solto, esfregado na nossa cara de forma premeditadamente banal: “A primeira vez que Jean-Claude Pelletier leu Benno von Archimboldi foi no Natal de 1980, em Paris, onde cursava estudos universitários de literatura alemã, aos 19 anos”. A partir daí, somos levados a uma série de voltas e reviravoltas do destino envolvendo esse misterioso escritor, intelectual recluso, meio à J.D. Salinger, que verte sua reclusão numa espécie de “literatura” pessoal (lembrese de que em Bolaño escrever é viver). Falsamente paralelo a isso temos um serial killer de mulheres à solta, que coloca em ação um grupo de escritores-detetives (ou

detetives-escritores, você escolhe). É a partir daí que voltamos a Detetives selvagens, com seus personagens investigando um caso que faz pouco (ou nenhum) sentido. É famosa a declaração de Bolaño de que seu sonho maior não era a escrita, mas o trabalho como detetive policial. Como escritor, ele percebeu que o importante não era solucionar problemas, e, sim, criar mistérios. Infligir dúvida, aquela pulga atrás da orelha, no leitor. Tornou-se um (selvagem) escritor-detetive. O que teria a ver um escritor alemão recluso com um serial killer? À primeira vista, nada, claro, mas é papel de um bom ficcionista provar que o texto literário tem mais razões que a própria razão desconhece. Apesar da sua superfície mirabolante, 2666 lida com os alicerces da literatura hispano-americana clássica. Estão aqui as relações ditatoriais, exílios e a solidão que dura os mesmos 100 anos de antes – fazendo-nos lembrar a famosa frase de Ricardo Piglia (em Respiração artificial) de que pouco aconteceu nas Américas, desde o descobrimento, além de “necrológios, nascimentos e desfiles militares”. A diferença é que Bolaño subverte a tradição, coloca-a de cabeça para baixo e até escreve por subtração. Os “fantasmas” dos grandes autores do boom da literatura latino-americana ou de um Borges estão sempre pairando sobre Bolaño, ainda quando não aparecem explicitamente no texto. Apesar do inegável apelo que 2666 vai ter assim que chegar às livrarias, possivelmente a melhor iniciação ao autor continua sendo o livro de contos Putas assassinas, em que seu mundo de escritores fajutos, de heterônimos e de fina ironia emerge com perfeição. E melhor: os modernos parecem que não o descobriram ainda.

2666 RoBERTo BoLaÑo companhia das Letras Último romance do escritor chileno, em que elementos recorrentes da literatura policial são trabalhados com ironia.

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tHiaGO QUeirOZ/DiVULGaÇÃO

Leitura

AMAZÔNIA De volta a um paraíso perdido

O jornalista Daniel Piza refaz, 104 anos depois, o itinerário de Euclides da Cunha num Brasil desconhecido para a maioria até hoje texto mariana Oliveira

em 5 de abril de 1905, Euclides da Cunha deixou Manaus rumo à nascente do rio Purus, no Acre, com o objetivo de fazer um levantamento desse curso de água e ajudar nas polêmicas demarcações de fronteira entre o Brasil e o Peru. O escritor acreditava estar desbravando uma terra sem história, bastante parecida com a experiência que viveu em Canudos, no sertão da Bahia, em 1897. Nessa expedição, Euclides da Cunha fez uma análise histórica, social e geográfica do oeste da região amazônica, registrada em duas obras: Contrastes e confrontos (1907) e À margem da história (1909). Em 2002, quando se dedicava à produção de um material comemorativo do centenário de Os sertões, Daniel Piza pensou em refazer o roteiro do escritor no Alto Purus. Três anos depois, quando a expedição completaria 100 anos, o jornalista não havia conseguido fazer os contatos necessários para colocar em prática sua ideia. Só no dia 4 de março de 2009, Piza e o fotógrafo Tiago Queiroz embarcaram rumo à nascente do rio, depois de um estudo detalhado do roteiro euclidiano. Essa viagem de pouco

mais de 10 dias foi documentada no livro Amazônia de Euclides – Viagem de volta a um paraíso perdido. Euclides esperava encontrar uma natureza adversária do homem e esse pensamento foi potencializado quando se deparou com uma Amazônia menos harmoniosa e mais monótona do que imaginava. Percebeu que o homem ali era um impertinente. Quase um século depois, Piza reafirma o impacto que a região provoca, mesmo diante da exibição midiática que recebeu nos últimos anos. O jornalista destaca que o ritmo e a monotonia continuam os mesmos, mas a vegetação que aparentemente se repete esconde fenômenos diversos, cada vez mais estudados hoje. Em pleno ciclo da borracha, Euclides encontrou sertanejos que haviam migrado para aquela “terra de ninguém” a fim de trabalhar nos seringais.“Lá persistem apenas os fortes”, disse ele outra vez. Em 2009, Piza não viu muitos seringueiros, pelo contrário, essa é uma “raça” extinta. Diferentemente do que havia preconizado Euclides, as margens do Purus não estão tomadas por

seringais, com trabalhadores bem-pagos e capacitados. Os caboclos da atualidade vivem da agricultura, da caça ou da criação de animais. Em povoados como o de Silêncio de Cima, a bolsa-família também é de grande ajuda. Assim, destacando as colocações de Euclides e comparando com aquilo que viu, Piza constrói seu relato desse território brasileiro, primorosamente ilustrado com imagens de Tiago Queiroz. Apesar da situação da Amazônia ser hoje diferente e ter como um ponto fundamental de sua agenda do século 21 a sustentabilidade ambiental, a defesa do conhecimento científico da região e o respeito à cidadania dos seus habitantes – dois pontos defendidos pelo escritor – persistem como lacunas.

Amazônia de Euclides DaNiEL PiZa LeYa 104 anos depois, o jornalista refaz o roteiro de euclides da Cunha na região amazônica.

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indicações enSAIO

UMBERTO ECO Arte e beleza na estética medieval Record

“Um compêndio de história das teorias estéticas, elaboradas pela cultura da idade Média latina, dos séculos Vi a XV de nossa era.” É exatamente assim que apresenta esta obra o seu autor, ainda que venha depois a definir cada um desses verbetes, para não deixar dúvidas do que é tratado. Publicado originalmente em 1959, este livro de eco integra uma tetralogia sobre a história da estética. a base metodológica do trabalho consiste basicamente em reunir e comentar pesquisas antecedentes. sua atualidade está em aproximar noções de metafísicas de beleza a técnicas artísticas.

eSTUDO

ROmAnce

ENRIQUE VILA-MATAS Doutor Pasavento Cosac Naify

se em Bartleby e companhia (2004) já havia o interesse pela negação – no caso, a da escrita –, neste novo livro do escritor catalão, ele recai na própria recusa do autor, pelo seu completo desaparecimento. Porque assim ocorre ao personagem andrés Pasavento, um escritor que decide sumir durante uma viagem profissional, num estratagema que lembra os 11 dias de desaparecimento da escritora agatha Christie. aliás, esta é mais uma das características da obra desse autor, que já tem 28 livros publicados, seis deles com tradução no Brasil: a referência à própria história da literatura, pela vida e obra de seus autores preferidos.

GUSTAVO DE CASTRO Jornalismo literário – Uma introdução Casa das musas

New journalism, novo jornalismo, jornalismo de não ficção, jornalismo literário. são muitos os termos usados para nomear um tipo de produção textual que agrega elementos do campo jornalístico e do ficcional, como, por exemplo, as habilidades em coletar informações gastando as solas dos sapatos e de reuni-las em um texto primoroso, enriquecido por elementos ficcionais. neste breve estudo, o jornalista, poeta e professor da UnB busca apresentar as origens e os procedimentos do jornalismo literário, para que dele possam tomar partido tanto aqueles que apenas querem ler o gênero com conhecimento de causa, quanto aqueles que desejam praticá-lo.

FILOSOFIA

MÁRCIO SELIGMANNSILVA A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno Civilização Brasileira

Os dois integrantes da escola de frankfurt têm suas obras revistas nesta publicação. O livro mostra de que maneira o pensamento de Benjamin e de adorno nos é contemporâneo e pode nos dar ferramentas para pensar o contexto desse início de século 21. na primeira parte, mais robusta, dedicada a Benjamin, há um resgate de sua vida e obra, passando por tópicos fundamentais de seu pensamento, como a aura da obra de arte e a teoria da linguagem. nas páginas dedicadas a adorno, é a teoria estética que prevalece. O livro é um incentivo para que os leitores busquem os originais desses dois grandes pensadores.

Em nome do pai

ABDIAS MOURA HISTORIA JORNALISMO AMAZÔNICO Curiosa a mescla de gêneros empreendida por abdias Moura neste Como a guerra chegou à Floresta Amazônica. Poderia ser simplesmente classificado como romance epistolar, pela sua estrutura composta de “cartas”. Mas também se trata de uma espécie de romance memorialista, de conjunto de crônicas, de um ensaio, uma biografia e mesmo de uma compilação de textos jornalísticos do início do século 20. isso porque o autor, o escritor e jornalista abdias Moura, que exerceu durante as duas últimas décadas a função de editorialista na imprensa pernambucana, se

apropriou de documentos históricos para compor este livro. nele, o escritor presta uma homenagem ao pai abdias Cabral de Moura, que naquele 1917 migrou para o norte do país, possivelmente em busca de uma boa colocação profissional. Os dois abdias quase não se conheceram, porque o pai morreu quando o filho era um garotinho de quatro anos de idade. O filho sabia que o pai, antes de retornar ao recife e nele constituir família, havia morado por 13 anos em itacoatiara, cidade ribeirinha a 277 quilômetros de Manaus, e que lá havia fundado o semanário Jornal

do Commercio. O impresso informou a população local, entre outros assuntos, sobre os desdobramentos da i Guerra Mundial. referindo-se à escassez de fluxo noticioso àquela época, abdias Moura escreve na apresentação ao livro: “espanta que um jornalzinho de um só redator, na cidade de itacoatiara, em meio à floresta, tenha podido manter os seus leitores mais ou menos informados sobre as repercussões da guerra em nosso continente”. O material de arquivo que dá suporte ao livro foi enviado para abdias Moura por um parente que o “descobriu” pela internet. O

primo enviou ao recife, em formato DVD, uma cópia digital da coleção do jornal que o “desbravador” abdias Cabral de Moura havia editado há quase 100 anos. não é difícil supor a emoção vivida pelo filho diante da leitura da produção paterna – ainda mais tendo ele mesmo se tornado um jornalista – , acrescida de todos os elementos que a tornam naturalmente excepcional: a distância temporal, o pioneirismo e a bravura da empreitada, o seu caráter histórico. Um rencontro afetivo, que se expressa ao longo da leitura. (adriana Dória Matos)

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EMICIDA O rapper que cresceu vendendo seu trabalho mano a mano

Ele subverte a tradicional ordem da indústria fonográfica: lançou uma coletânea, gravou um single e agora quer marcar território com um EP texto Thiago Lins

Sonoras A linha da miséria já lhe pareceu mais alta: três indicações no Video Music Brasil 2009, quase 10 mil cópias independentes vendidas no mano a mano (a dois reais), 1,5 milhão de visualizações no Youtube, primeira página nos cadernos culturais paulistas e tênis Nike customizado com seu nome. Emicida vem fazendo barulho. O pseudônimo de Leandro Roque de Oliveira é uma sigla para “Enquanto minha mente compuser insanidades eu domino a arte”, mas também “homenageia” os MCs que perderam batalhas para o rapper. “É o seguinte: se não chegou até você, você não deve ser ouvinte”, sentencia, numa das muitas rimas de sua mixtape (o termo usado para designar as saudosas compilações em cassete que agora se amolda aos formatos CD e MP3) Pra quem já mordeu um cachorro por comida até que eu já fui longe, lançada em maio do ano passado. À mixtape seguiu-se o single Avoa besouro, saído em janeiro deste ano. Agora, o MC ataca com Sua mina ouve meu rap também, seu primeiro EP (o extended play tem seis faixas).

“Começo a ter uma visão do que pode vir a ser um horizonte”, afirma Emicida, por e-mail, passada a fase de sacrifícios impostos pela arte. Teve que abrir mão de um emprego e, diz, até de relacionamentos, para se dedicar a algo que ainda estava longe de adquirir contornos de negócio. Embaladas à mão e vendidas por ele mesmo, as 10 mil cópias de Pra quem já mordeu... constituem um caso raro de artesanato vendido em escala industrial. Hoje, o rapper não precisa mais mandar um freestyle (“improviso”, na gíria rap) no vertiginoso metrô paulistano para divulgar sua obra, mas ainda pretende continuar na independência, por “precisar mais de parceiros que de patrões”. E não foi por falta de proposta. Mas, se Emicida é tão idealista e teve problemas até com os donos de lojas de CDs, que queriam vender as cópias de Pra quem já mordeu... por 15 ou 20 reais, imagine com os executivos de gravadoras. Familiarizado com as pickups desde pequeno (seu pai, morto quando ele tinha seis anos, era DJ),

Emicida conheceu mais as diversas e complexas fases da produção de áudio quando estagiou num estúdio. Fã de quadrinhos (até hoje assina roteiros) e cordel, tem facilidade tanto para escrever quanto para improvisar. Aliás, no começo foi o dom do improviso que deu visibilidade ao embaixador da rua; suas batalhas viraram hit no Youtube. Fenômeno dentro do hip-hop, Emicida começa a “sonhar mais alto” e já sublinhou que seu ponto de virada ainda não chegou.

ULtRAPASSAnDo FRonteiRAS

Ponto de virada, aliás, é um termo nebuloso nestes anos 2000. O número de execuções no MySpace e/ou Youtube é algo subjetivo: um único internauta pode somar mil acessos, por exemplo. Os parâmetros de apuração ainda estão se estabelecendo e o jeito, por enquanto, é traçar uma meta própria: ir além do circuito rap. Atingir a massa, incluindo a playboyzada, como os Racionais MC’s, que 10 anos antes do fenômeno Calypso venderam 1,5 milhão de cópias independentes do

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INDICAÇÕES

Pedro Melo

hoje clássico Sobrevivendo no inferno, sem fazer televisão e ainda na era pré-internet. Até hoje, a voz de Mano Brown ecoa tanto numa favela quanto numa orla de praia. É a voz da rua que virou disco de ouro. Ainda na ativa, o quarteto paulista não precisa de substituto, mas vê crescer um “parceiro” mais novo, com substância, tanto que KL Jay, DJ dos Racionais, já fez elogios ao fã em ascensão. Parte de uma geração que se lança antes mesmo de ter CD oficial, Emicida, enquanto contabiliza os razoáveis dividendos da mixtape, começa a vender o novo EP, também no mão a mão. Sua mina ouve meu rap também repete as bases consistentes, mas não traz a carregada crítica social do trabalho anterior. Se em Pra quem já mordeu um cachorro por comida até que eu já fui longe o rapper versava sobre o cotidiano barra-pesada da periferia, ele agora disseca um estilo de vida que começa a desfrutar. Não, Emicida não virou playboy (tampouco conquistou esta parcela, digamos, mais favorecida da população). Nem cedeu à esgotada fórmula americana de carrões e mulheres salientes: é o assédio da imprensa e dos fãs que permeia as letras do lançamento. Mas a inspirada rima de Quer saber (“É fácil querer ir pro VMB/ quero é ver fazer na mão 10 mil capas de CD”) mostra que Leandro Roque de Oliveira não esqueceu de onde veio. E continua mostrando a que veio. Resta esperar para saber se o EP, com um conteúdo tão diferente do trabalho anterior, terá a mesma repercussão. Abrem-se, então, parênteses para outro paradigma jurássico: a “maldição” do segundo disco. Invertendo a antiga ordem natural da indústria fonográfica (até os anos 1990, a via crucis do artista começava pelo single, passava por um EP e só então tomava a forma de álbum, com sorte), o rapper surgiu com uma extensa coletânea de 25 músicas, lançou um single e agora quer provar com um EP que não estava brincando. O ouvinte, que ainda deve estar se acostumando com os novos formatos, agora também precisa se familiarizar com uma expressão 2.0: a maldição pós-hype..

@ continenteonline Confira a música Quer saber no site www.revistacontinente.com.br

CLÁSSICO

VÁRIOS INTÉRPRETES Chopin Gold Deutsche Grammophon – Universal music

Muitos pianistas têm prestado sucessivos tributos a Frédéric Chopin, mas a melhor alternativa é recorrer aos mais consagrados intérpretes do compositor polonês. Mesmo assim, surge uma segunda dificuldade: Maurizio Pollini, Martha Argerich, Maria João Pires ou Nelson Freire? Vladimir Ashkenazy, daniel Baremboim, Hélène Grimaud ou lang lang? Sabiamente, a deutsche Grammophon juntou todos eles e mais outros 10 virtuoses em um Cd duplo com a crème de la crème do repertório chopiniano.

INSTRUMENTAL

QuARTETO IPÊ AMARELO Mercado Paulistano Kalamata

Uma síntese da proposta musical do grupo campineiro está neste Cd, que no dizer dos próprios integrantes “apresenta um ambiente sonoro que busca refletir predominantemente a música popular urbana brasileira”, pelo trânsito entre a música popular e erudita, entre o histórico e o atual. Neste Cd, o quarteto contemplou três gerações de compositores de instrumental brasileiro: edmundo Villani Côrtes (1930), Sérgio Paulo ribeiro de Freitas (1962), ricardo Mastuda (1965) e o “novato” Vitor Caffaro (1980).

ERUDITO

ThE INAuGuRAL CONCERT Gustavo Dudamel

Deutsche Grammophon – Universal music

Para marcar seu concerto de estreia à frente da prestigiosa orquestra Filarmônica de los Angeles, no Walt disney Concert Hall, Gustavo dudamel escolheu reger a canônica Primeira de Mahler, mas inovou ao encomendar também uma peça inédita para a ocasião: City noir, do aclamado minimalista John Adams (da ópera Nixon na China), um painel sinfônico em três movimentos que perpassa o imaginário musical dos bas-fonds da principal metrópole californiana.

INSTRUMENTAL

MANÉ SILVEIRA Mané Silveira Quinteto Kalamata

logo na primeira faixa, Samba pro Mozar, o saxofonista paulistano mostra seu naipe jazzístico, ainda que as oito composições que apresenta neste álbum enxuto tragam títulos que evocam o choro e o samba. Totalmente instrumental, o Cd conta com convidados como Tiago Costa (piano), ricardo Matsuda (viola caipira e violão), José Alexandre ribeiro (contrabaixo) e Kleber Almeida (bateria). Além da longa carreira como intrumentista, Silveira é pesquisador da história da música instrumental brasileira, através do projeto Subindo na Árvore.

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Artigo

alessandra fratus/divulgação

ricardo santhiago a voz de quem insiste em ser livre “tem coisa melhor que isso?”,

pergunta Áurea Martins depois de relatar uma história que viveu. “Olha que engraçado: outro dia eu estava vindo do banco com R$ 3 mil na bolsa, morrendo de medo. O mendigo virou para o outro lado, pediu esmola para a mulher branca, e nem olhou pra mim”. Tranquila — mas cáustica —, ela acha graça: “Pelo menos uma vantagem eu tenho que ter!” O assunto dessa mulher, negra, cantora, que aos 70 anos de idade passa enfim a ser reconhecida como uma das grandes intérpretes da música feita no Brasil, é bastante sério: a invisibilidade do negro. Sua forma de contar, entretanto, é nada ortodoxa — seu bom humor a desvitimiza; sua autoridade arremessa lamúrias para onde elas têm maior serventia: para os boleros e sambas-canções que seu personagem dramático adora cantar. Esse é um entre os inumeráveis atos subversivos — quem dirá que não são? — engenhados por mulheres que fizeram do raro o comum: empilhando exceções (ou empilhando-se como exceções, talvez caiba dizer), escaparam ao lodo da obviedade e transformaram a infração em regra. “Onde queres prazer, sou o que dói”, quem sabe cantem. Se não estavam “licenciadas” a fazer o que queriam, pouco ligaram. Jamais vão lhes dizer o que elas devem fazer. Falo de uma situação estranha, que só fui perceber quando ouvi Alaíde Costa, grande cantora e compositora, dizendo que ao longo de toda a sua carreira teve que lidar várias vezes com a expectativa (para dizer o mínimo) de que fosse sambista. “Minha dificuldade maior foi cantar um tipo de música que as pessoas não costumavam esperar de uma negra”, ela me disse tempos depois. “Ainda hoje acham que eu canto difícil... Difícil? Nada!

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Acho que isso vem, realmente, do preconceito racial. ‘A negra não pode cantar tudo’, pensam.”

coMo ASSiM?

Foi o que me perguntei, ingênuo, diante de tudo aquilo que insistia em dizer que a música popular brasileira é um campo multirracial, livre de preconceitos. Bem, mas eu também achava que o ambiente acadêmico era assim, até que num encontro de estudos negros, em 2006, me disseram que eu era “branco demais” para fazer o que estava fazendo. E o que eu começava a fazer eram entrevistas com 13 cantoras que desafiaram o estereótipo do seé-negro-tem-que-ser-sambista e criaram um novo modelo, um novo espaço no qual podem cantar canção, jazz, bossa nova, bolero, tango, fado, samba-canção, blues... E que fique avisado, nas palavras

de Leila Maria: “Posso até cantar um samba e canto mesmo — mas, quando eu quiser cantar, não porque querem que eu cante”. Cantoras portuguesas “têm que” cantar fado, negras americanas “têm que” cantar blues... Pois quando Virgínia Rosa grava um fado num disco de samba, depois de dizer ao mundo que não é cantora de samba; e quando Rosa Marya Colin canta um blues falando que papai dizia “jamais interprete um blues”, as coisas parecem fora do lugar. “Mas às vezes você nasce em um lugar e percebe que não é o ‘seu’ lugar. Algumas pessoas têm sorte de nascer no lugar certo; outras pagam coiotes para descobrir se encontraram ou não o seu lugar. O que eu sei é que você tem que achar, de alguma forma, o lugar onde vai se sentir mais confortável”, arrisca Adyel Silva, descerrando as imperfeições de seu país.

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1 dueto as cantoras alaíde Costa e adyel silva apresentam-se no show Solistas dissonantes

O Brasil narrado por essas cantoras não é o mesmo que Elza Soares, por exemplo, celebrava ao entoar “gosto de exaltar cantando o samba brasileiro/ ritmo bem quente/ sem sotaque estrangeiro” (O samba brasileiro, de Claribalte Passos), em 1960. Da xenofobia, a xenofilia: “Sei que ao longo da minha vida fui recebida em muitos lugares por ser filha do Booker Pittman, um músico americano”, atesta Eliana Pittman. Da alegria, a dor: “Eu não sou bandida, não sou marginal, não sou ladra... Pra que ficar mendigando num país que nem é o meu?”, pergunta Ivete Souza, relembrando seus tempos como imigrante na Itália, onde viveu para esquecer um amor, mas também por não ter trabalho no Brasil. Diante do que passou lá (“Eu tive tudo, mas o carinho das pessoas eu não tive”), retornou

à sua terra prometendo não voltar atrás. Mas agora está na Itália, outra vez — por desejo, por necessidade.

culturA X MercAdo

Quase sempre existe, na vida artística, uma tensão entre ambições estéticas e as condições objetivas para sua realização. Isso se expressa de maneira bem mais concreta que nas discussões autômatas sobre a (suposta) oposição cultura x mercado da teoria-crítica-e-sua-turma. Zezé Motta, com franqueza, levanta o assunto: “Comercialmente falando, nem sei se fiz a coisa certa. Já tenho oito álbuns, entre LPs e CDs. Canto sempre, quase toda semana, em algum lugar. Mas tenho uma carreira de cantora bastante irregular, tanto em discos como em shows”. O que sustenta sua obstinação não parece ser exatamente a qualidade da profissão artística como negócio rentável.

Mas se essas solistas não são medalhões da indústria fonográfica, tampouco são ilustres desconhecidas. Todas elas têm o respeito da crítica especializada e interesse vindo do público atento – mas, às vezes, a dificuldade é exatamente transitar nesse entrelugar. “Existe um mercado, no mundo inteiro – um mercado de tamanho médio –, em que as pessoas vivem de música normalmente, como um trabalho”, diz Arícia Mess. E ela continua: “Não acho que você precise ser um fenômeno como a Madonna para conseguir viver de música, mas dentro do Brasil é mais ou menos assim...”. Desse emaranhado, a saída não é o dinheiro, mas a paixão. Paixão que, na vida de Izzy Gordon, é entrega: “Quanto canto, sinto que minha voz sai da alma: é puro soul. Interpreto e vou me envolvendo, sentindo alguma coisa vibrar na minha cabeça... Penso que sou realmente privilegiada, porque é como se meu espírito estivesse falando com meu corpo. Sinto nitidamente minha veste carnal”. A frase de Rosa Marya

num encontro de estudos negros, em 2006, me disseram que eu era “branco demais” para fazer o que estava fazendo Colin talvez sintetize essa vivência de forma primorosa: “Concluí que meu veículo de comunicação com Deus é a música... Não tenho religião. Minha religião, realmente, é a música! É Deus! É o Universo!”. Música que é trabalho e que é missão. Dom que é festejado, mesmo que às vezes dolorido. A vontade e a realização da vontade excedem. Sobre sua estreia no palco, aos oito anos, na festa de uma cidade interiorana, Misty conta: “Senti uma coisa muito forte... Descobri que podia cantar! E cantei... Cantei durante todo o tempo em que vivi... Em todos os movimentos da vida, cantei!”. E a insistência no verbo não nos diz outra coisa: sim, elas vão continuar cantando.

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Yvana Fechine

LÓGICA DA EXCEÇÃO

Yvana Fechine

é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social/Programa de Pósgraduação em Comunicação da UFPE divulgação

A reportagem é antiga, mas proponho retomá-la em um novo momento. Há nove meses, li em um jornal local que o principal violinista da Orquestra Criança Cidadã Meninos do Coque, Júlio Carlos Rocha da Silva, então com 15 anos, iria estudar música na Polônia. Jovem pobre e morador do Coque, Júlio teve uma trajetória diferente daquela esperada para todos que cresceram em uma favela conhecida entre os moradores do Recife como uma das mais violentas da capital. Ele não se envolveu com drogas, não largou a escola, nunca assaltou ninguém. Na reportagem, é apresentado como um aluno aplicado, talentoso e obstinado, razões pelas quais teria conseguido escapar da marginalidade, tornando-se um músico promissor e merecendo a oportunidade de estudar um ano na Academia de Música de Varsóvia. Para os jornalistas e para os leitores, a história de Júlio é uma surpresa. E por que surpreende? As respostas são tão óbvias quanto duras: ou porque não se associa sensibilidade estética à pobreza, ou porque se associa criminalidade à pobreza. Por um ou outro caminho, Júlio é uma exceção. A exceção torna-se, neste caso, um valor notícia porque o que parece motivar e orientar hoje muitas reportagens em jornais, telejornais ou em programas de TV é uma concepção equivocada do que seja a regra entre os jovens moradores das favelas: são “marginais em potencial”. Mesmo quando propõem, de modo bem-intencionado, uma abordagem positiva sobre iniciativas sociais ou personagens da periferia, as representações que delas emergem costumam ser simplificadoras e estereotipadas. Cristalizam uma visão dicotômica de lugares pobres, quando insistem em dividi-los entre “bandidos” e “mocinhos”, entre “acomodados” e “batalhadores”. Aqueles que, como Júlio, “escapam” de uma condição para a qual parecem ser destinados tão somente por viverem em tais lugares são tratados como “heróis”. É curioso notar como o destaque dado a esses personagens “excepcionais”, ao mesmo tempo em que almeja contribuir para a construção de representações mais favoráveis dos jovens das periferias, pode, paradoxalmente, reforçar os estigmas que pesam sobre a maioria ao personificar essas qualidades positivas em apenas um ou em alguns deles – as tais exceções que põem à prova o que se julga ser a regra. Sejam quais forem os motivos – necessidade de legitimação ou, quem sabe, o surgimento de uma certa “consciência social” do nosso tempo –, é inegável que há, hoje, uma deliberação maior das empresas de comunicação em construir uma visibilidade mais afirmativa das periferias, contrabalançando o peso das imagens de violência e carência às quais estas costumam ser associadas na própria mídia. Positivas ou negativas, essas representações midiáticas parecem ser orientadas pela mesma lógica: quando pendem para um polo ou outro, condenam à invisibilidade a grande maioria que não pode ser identificada nem a “bandidos” nem a “heróis”. Quando uma história como a de Júlio é conhecida, há, sem dúvida, avanços importantes nesse jogo em que se disputam sentidos, mas é possível e preciso ir além, levantando mais os olhos para enxergar essa imensa zona de silêncio.

con ti nen te

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