junho 2010
ARNALdO CARVALhO
aos leitores É quase impossível sairmos incólumes de um filme norte-americano: ela sempre está lá, impávida, a bandeira tricolor e estrelada. Beira a obsessão patriótica (ou, mais provavelmente, a imposição da obsessão patriótica). No Brasil, não. Bandeira tremulando em filme é quase tão rara quanto a ausência de palavrão. Nosso patriotismo é de outra fatura. Ele nos acomete de quatro em quatro anos, na frente da tela, é verdade, mas a da televisão e em tempos de Copa do Mundo. Aí você vê brasileiro propagar o orgulho verde-amarelo. Isso porque com o futebol brasileiro não há quem possa, já dizia o refrão. Por conta desse fenômeno nacional, o único que parece capaz de nos redimir do “complexo de vira-latas” – superado dentro do retângulo verde em 1958, com a nossa primeira conquista do Mundial, mas ainda persistente em outras esferas cívicas, econômicas, culturais, científicas e mesmo esportivas –, embarcamos no seu espírito e dedicamos várias páginas desta edição ao assunto. Porque paramos tudo diante de um jogo da seleção brasileira de futebol. E somos os mais aguerridos, os mais cardíacos. Entendemos todas as regras e sugerimos escalações, nem sempre adotadas pelo técnico, uma figura tão controvertida quanto à do juiz que vai apitar nossa partida.
E como se trata de um espetáculo sui generis, em que se destaca a figura do torcedor, buscamos aqui na Continente esse olhar de quem aprecia, avalia e dá (muito) palpite. Procuramos um elenco de escrevinhadores envolvidos diretamente com o assunto, jornalistas setoristas – como a gente chama aqueles que cobrem uma área específica – e também os que, não sendo jornalistas, pesquisam o futebol, como é o caso do cientista político Túlio Velho Barreto. Ou gente que, sendo jornalista, também é aficionada pelo assunto, como Samarone Lima, que mantém o Blog do Santinha, do qual Inácio França é “colaborador vip” (!). Ou como o fotógrafo Arnaldo Carvalho, que cumpre a rotina de fotografar jogos em campo, tarefa que exige destreza, com resultados que vocês verão a seguir, num ensaio fotográfico sobre pelada e peladeiros, feito a convite da Continente. Sob encomenda, também, foi realizado o conjunto de pinturas que compõe a exposição 11 de cá, da qual participam artistas pernambucanos ligados à figuração, como Mauricio Arraes, Félix Farfan, Gil Vicente e Tereza Costa Rêgo. A coletiva fica em cartaz, em junho, no Paço Alfândega (centro de compras recifense) e versa – claro! – sobre futebol. Ela pretende celebrar, ao lado do leitor da Continente, essa festa da bola.
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sumário Portfólio
André Lasmar 06
cartas
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expediente + colaboradores
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entrevista
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Visuais
Rodrigo Braga Em residência artística na Bélgica, artista produz obras que abordam trauma da I Guerra Mundial
Francisco Jarauta Filósofo espanhol aponta a incapacidade de conceber o futuro no mundo contemporâneo
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Matéria corrida
conexão
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Palco
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Sonoras
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claquete
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Saída
Rádio emocional Site de música Stereomood organiza playlists que reúnem canções de acordo com as emoções que provocam
Balaio
Belle époque Em suas crônicas sobre tipos urbanos, João do Rio já caracterizava os vendedores de “pirataria” do seu tempo
Peleja
Gênero Crônica esportiva é literatura?
Mídia
contra web De 2007 para cá, foram lançados pelo menos 30 livros que questionam a cultura digital
Contrário à ideia da joia como simples adorno, o potiguar, radicado no Rio de Janeiro, cria peças cuja principal característica é a assimetria
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José cláudio O indivíduo tem que criar a sua própria pintura
coletivo Angu Grupo completa sete anos de estrada com três peças no currículo Gorillaz Plastic beach consagra Damon Albarn como um dos mais criativos músicos da atualidade Diretor O jornalista Eric Lax registra em livro as conversas que teve com Woody Allen túlio Velho Barreto As considerações de Gilberto Freyre sobre o estilo brasileiro de jogar o esporte bretão
cardápio
Degustação Profissionais especializados em provar alimentos e bebidas tornam-se peças fundamentais para o mercado da gastronomia, que prima cada vez mais pela qualidade de seus produtos
50 Capa Foto arnaldo Carvalho
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especial
tradição
O “escritor fantasma” ganhou destaque ao longo das últimas décadas, atuando como autor de textos encomendados por políticos e celebridades
Festa em homenagem a Santo Antônio, que ocorre na cidade cearense de Barbalha, inicia-se no primeiro dia do mês de junho com o carregamento de tronco pesado
Leitura
copa 2010
Acervo de mais de 4 mil títulos pertencentes ao crítico literário Álvaro Lins, doado ao município de Caruaru, ainda não recebeu acomodações e cuidados adequados
A morte do futebol-arte, a paixão cega pela seleção e pelos campos de várzea: um dossiê futebolístico que vai da crônica ao ensaio fotográfico, passando pela reportagem
Ghost writer
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Biblioteca
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Pau da Bandeira
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A mania nacional
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cartas Dom Vital
Viagem Confesso que Taquaritinga me pareceu um lugar muito sem graça, na única vez em que estive lá. Talvez por causa de uma cefaleia chata que me perseguia, ou por uma vista de amontoadas barracas de festas na praça. Mas depois do belo texto de Bernardo Valença, na última Continente, senti-me enganado e convidado a redescobrir a Taquaritinga de Frances, Luiz Olavo, Seu Severino, Sônia, e dos meus queridos Ronaldo, Everardo e Geraldo, do cafezal, da brisa, do frio... WILLIAMS SANT´ANNA RecIfe – Pe
No box que fala de Dom Vital, na matéria sobre o Palácio da Soledade, na edição de maio, há uma incorreção na frase “proibição de missas maçônicas”. Primeiro, porque não existe “missa maçônica” nem “culto maçônico”, e, sim, “reunião (ou sessão) maçônica”, pois a Maçonaria é uma sociedade filosófica, fraternal, e dita “secreta” por causa do acesso restrito a seus próprios membros – não é uma religião. Segundo, porque Dom Vital não proibiu nada, apenas estava cumprindo uma bula papal que prescrevia a participação de católicos – leigos ou do clero – na Maçonaria, bem como a de maçons católicos na missa (no caso, vale explicar que há maçons de várias religiões, sem religião e até agnósticos e ateus). E, terceiro, porque, em matéria clerical, igreja nenhuma pode vetar a prática de outras religiões ou manifestações filosóficas, por isso nunca a Igreja Católica iria “proibir” mesas brancas, escolas de samba com mulheres
seminuas, reuniões maçônicas, rodas filosóficas ou debates sobre Harry Potter e os Beatles. cARLoS eDUARDo AMARAL RecIfe – Pe
ReSPoStA DA ReDAÇÃo Quanto às observações feitas por Carlos Eduardo Amaral sobre as informações contidas no box sobre Dom Vital, na matéria Um palácio de portas abertas, retificase a frase “proibição de missas maçônicas”, sendo adequadas as expressões “reuniões” e “sessões”, pelos motivos por ele alegados. Sobre o termo da proibição, citamos o livro Dom Vital e a questão religiosa no Brasil (p. 23), de Nilo Pereira, no que diz respeito aos debates na imprensa do Recife entre católicos e maçons: “Foi nesse ambiente de profunda excitação que Dom Vital não só proibiu a celebração de missas festivas dos maçons, ostensivamente anunciadas, como, por fim, interditou as Irmandades onde houvesse maçons”.
Você fAz A continente coM A geNTe O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone
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colaboradores
Álvaro Filho
Arnaldo carvalho
Flávia de Gusmão
Samarone Lima
Jornalista, escritor, professor e um autodenominado jogador de futebol frustrado.
Editor-assistente de fotografia do Jornal do Commercio. Sua pauta preferida é a de esportes.
Editora-assistente e crítica de gastronomia do Jornal do Commercio.
Jornalista, escritor, blogueiro e torcedor do Santa Cruz. Autor dos livros Estuário e Clamor.
e MAiS Anco Márcio tenório, professor, doutor em literatura brasileira. André Fidusi, caricaturista. Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. eduardo cesar Maia, jornalista e mestre em teoria literária. evaldo costa, jornalista e secretário de imprensa de Pernambuco. Fábio Lucas, jornalista e mestre em filosofia. Fábio Victor, jornalista da Folha de S.Paulo. Flávio Lamenha, fotógrafo. Gilson oliveira, jornalista e revisor. Humberto Santos, editor-geral da redação Nordeste dos Diários Associados. inácio França, jornalista e secretário de comunicação de Olinda. Marcelo Abreu, jornalista e professor universitário. olívia Mindêlo, jornalista e mestranda em sociologia. Ricardo Malta, fotógrafo. Schneider carpeggiani, jornalista e doutorando em letras. túlio Velho Barreto, cientista político, professor e pesquisador. Xico Sá, jornalista e escritor.
GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco
SUPeRINTeNDeNTe De eDIÇÃo
coNTAToS coM A ReDAÇÃo
ATeNDIMeNTo Ao ASSINANTe
goVeRNADoR
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Armando Lemos Alexandre Monteiro
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Gilberto Silva
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDAÇÃo, ADMINISTRAÇÃo e PARQUe gRÁfIco Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700
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FRANCISCO JARAUTA
Conceitos para refletir o presente
Filósofo espanhol, que atua em campos diversos e colabora com a difusão de ideias em artigos para a imprensa, aposta no que chama de “cosmopolitismo crítico” para discutir arte e política texto Mariana Oliveira e Fábio Lucas
con ti nen te
Entrevista
num mundo de processos e
mudanças tão velozes, prever, conceber ou até mesmo imaginar o futuro tornase algo cada vez mais complicado. Diante das incertezas, algumas pessoas seguem apostando no pensamento de intelectuais de 30 ou 40 anos atrás. Não é isso que defende Francisco Jarauta – catedrático de Filosofia da Universidade de Múrcia, na Espanha, professor convidado de várias universidades europeias e colaborador do jornal Le Monde Diplomatique. Um dos grandes pensadores europeus da atualidade, com diversas obras publicadas, Jarauta atua em campos diversos – história das ideias, filosofia da cultura, estética e teoria da arte –, sempre tentando compreender o mundo contemporâneo. Em passagem pelo Recife, onde ministrou um curso na Fundação Joaquim Nabuco, ele defendeu a necessidade de criar mapas de conceitos que tornem possível pensar e reconhecer o presente. Nesta entrevista, o espanhol aponta que, no contexto contemporâneo, as instituições existentes parecem ser insuficientes, seja no campo da arte,
em que o modelo das bienais dá sinais claros de falência, ou mesmo na política. Ele defende a busca por um cosmopolitismo crítico, que vislumbre um ponto de vista global, e a construção de uma civilização ascética, com sistemas de necessidade mais básicos. continente Você tem afirmado que hoje é mais difícil pensar o futuro. Nesse contexto, qual é o papel dos intelectuais? FRAnciSco JARAUtA A imagem do chamado intelectual tal como denominada nos anos 1950 e 1960 foi desfigurada. A articulação que um intelectual, como Sartre, desempenhava era possível devido à configuração do mundo social. Vínhamos de um modelo clássico que, no século 19, poderíamos associar a um personagem como Émile Zola, quando aparece a indústria cultural e a comunicação põe em jogo pontos de vista, opiniões de todo tipo, arruinando o espaço do intelectual, que praticamente desaparece. Vejamos o caso da arte. Primeiramente, quem tinha competência para falar da arte
eram exclusivamente os historiadores; nos anos 1950, o crítico; e, hoje, nem ele tem mais influência na formação da opinião pública que o jornalista cultural. O intelectual perdeu terreno. Hoje, José Saramago, na Europa, tem uma autoridade moral que lhe permite comportar-se como se fosse um intelectual do velho estilo, sua palavra tem um tremendo impacto. continente O que resta para o intelectual? FRAnciSco JARAUtA O intelectual que imaginava o futuro no passado o fazia num contexto em que se podiam identificar instrumentos para falar desse porvir, mas esses dispositivos hoje não existem. É necessário criar espaços reflexivos e críticos, que podem estar nas instituições, ou nos movimentos de base. Cada vez que se tenta pensar o futuro as dificuldades voltam a aparecer. A incerteza domina. Quando Ulrich Beck fala de sociedades de risco, fala de uma tendência à generalização do risco, à insegurança do sistema. Veja o êxito de Zygmunt Bauman, por exemplo. Ele é rejeitado pela academia e pelos grandes
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otávio de souza/divulgação/fundaj
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horizontes desses processos políticos. Na arte, acho que em poucas ocasiões tivemos vozes importantes no que diz respeito à complexidade do mundo. No caso da Guerra Civil espanhola, houve vozes, mas não relevantes. É mais importante o que quer dizer a Guernica do que aquilo que poderia pensar Picasso. É distinto do caso da arquitetura, por exemplo, pois os grandes arquitetos, como Le Corbusier, sempre tiveram a pretensão de ser intelectuais. E falaram da cidade, do que poderia ser a nova sociedade. Alguns
fotos: divulgação
sociólogos, eles o consideram um conselheiro da crise. Bauman, de quem sou um grande amigo, não dá solução a nada, o que faz é um reconhecimento da situação. Provavelmente, ele poderia ser interpretado como um médico internista da velha escola. Dá um diagnóstico do presente, não se escuta nenhuma palavra sobre o futuro. O médico vai à sua casa, tira sua temperatura, vê como você está, mas não produz nenhum conhecimento e seus modelos de análise sobre o futuro são escassos. Por isso que se produz uma atitude de ansiedade.
con ti nen te
Entrevista O papel dos intelectuais foi substituído pelos agentes de comunicação e opinião. O editorial do Financial Times, por exemplo, marca a posição a ser tomada em muitos outros campos. As pessoas leem cada vez mais essas páginas, pois já não existe o intelectual de turno. continente Como os artistas entram nessa nova configuração? FRAnciSco JARAUtA A relação que têm o artista e a arte com o presente e com o futuro não deve ser estudada de forma geral, mas pontual. Penso no papel do construtivismo russo para a Revolução de Outubro, no do Futurismo para a formação do fascismo italiano; esses movimentos foram elementos muito importantes na hora de definir os
deles trouxeram para seu discurso a própria ideia de desconstrução. continente E quanto a Oscar Niemeyer? FRAnciSco JARAUtA Ele é tão particular, sempre me impactou. No pavilhão do Brasil, dedicado a ele em uma Bienal de Veneza, estava escrita uma frase sua: “O que me importa não é a arquitetura, mas, sim, mudar o mundo”. A sua arquitetura é muito singular, muito custosa, muito elitista, artística. Essa eliminação da linha reta, essa curvatura... Niemeyer tem sua ideologia, sua identificação com o marxismo é clara e manifesta, mas sua arquitetura não tem nada de marxista. Uma coisa não corresponde a outra. Não é necessário que corresponda.
continente Você concorda com Arthur Danto, quando ele afirma que a arte chegou ao seu fim e que se transformou na própria filosofia da arte? FRAnciSco JARAUtA Não. Cada vez que se apresentam variações da mesma questão, a morte da arte, o final da arte, eu me irrito. Não penso assim. Quando se fala isso, fala-se da grande arte. Entendo que a arte registra e responde a condições mais simples, com a expressão de uma experiência que pode ser matizada em uma pintura, como a de Altamira,
“eu dizia não ter solução para o caso das bienais, mas posso afirmar que é muito importante imaginar novos espaços, como a casa encendida (D), que possam se adaptar às sensibilidades dos novos usuários”
ou num esquema de propaganda, ou num gesto feliz, numa dança, há muitas formas de expressar a arte. Outra coisa é a expressão da arte na cultura contemporânea. Aqui, sim, Danto traz contribuições importantes. Foi a grande indústria cultural que domesticou a arte e a transformou em parte de seu sistema de produção. Volta a ter força a teoria de Walter Benjamin da arte na era da reprodutibilidade técnica. Não é a morte, verdadeiramente, é a crise da aura que é distinta. Mas, ainda nesse contexto, surgem pequenos gestos tão charmosos e tão artísticos. Os momentos de pulsão que tem um artista contemporâneo podem registrar uma intensidade tremenda e passam,
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também, a expressar sua aura. Outra coisa é que a obra depois passe ao grande arquivo da indústria cultural. continente Falando agora sobre as instituições e grandes eventos do campo da arte, está em crise o modelo das bienais? FRAnciSco JARAUtA Estou convencido que sim. Deixei de ir às bienais. Um fenômeno importante é a hipertrofia da instituição arte. Antes existiam três bienais, nesse momento há 270. Um sistema hipertrofiado e inflacionário. Os circuitos foram
muito diferentes entre os que são das novas gerações e aqueles que são usuários tradicionais da cultura artística. Em Madri, muito perto do Museu Reina Sofia, há uma pequena instituição chamada Casa Encendida que atrai um público entre 18 e 25 anos. Essas pessoas não pisam no Reina Sofia. O que lhes interessa é a instituição que projeta outra dinâmica, outros tipos de produtos, em que o componente tecnológico é muito importante. Quando vocês me questionavam sobre os problemas
mais básicos. Nós pertencemos a um modelo de civilização com um sistema de necessidades supercomplicado. Esse sistema não é uma eleição pessoal, é induzido por tudo que faz parte dele, operadores econômicos, da comunicação e, sobretudo, por uma falsa ideia de satisfação. A felicidade se obtém dentro da equação em que o trabalho é voltado para a satisfação do nosso sistema de necessidades. No final, estamos cansados de tanto trabalho. O que Freud chamou de mal-estar da cultura. Ele diz que uma civilização que deixa insatisfeita a maioria dos seus componentes não tem legitimidade de sobreviver. Não creio que seja sustentável um modelo de sociedade que trabalha sobre a multiplicação das necessidades. continente Inclusive culturais? FRAnciSco JARAUtA Evidentemente, toda a indústria cultural forma produtos que chegam às nossas mãos, mas não os abrimos, não os lemos, nem os vemos, eles simplesmente entram na rede de ofertas. Em Madri, se você vai num domingo a uma banca de jornais tem que voltar com duas sacolas cheias, porque um jornal lhe presenteia um livro, um CD, um kit de cozinha. Criou-se uma dependência fetichista desses objetos.
acelerados e trocam suas fichas rapidamente, temos um mostruário de repertórios que dá a sensação de déjà vu. Temos poucas surpresas numa bienal. Multiplicaram-se as redes das bienais e elas se retroalimentam. Cada curador tem o critério para poder escolher um tema que praticamente é o mesmo. Salvando a máscara retórica, o resto é exatamente igual. As bienais são uma fórmula esgotada. Antes que me perguntem qual seria a alternativa, já digo que não sei. continente Por outro lado, as exposições ligadas à arte tecnológica têm tido resultados positivos. Como você vê isso? FRAnciSco JARAUtA Cada vez haverá mais. Há comportamentos
das instituições e eu dizia não ter solução para o caso das bienais, posso dizer que é muito importante imaginar novas instituições que possam se adaptar às sensibilidades dos novos usuários e dialogar com eles. Há um corte geracional, há uma geração que pensa de outra maneira e tem interesses distintos. continente Nós já estamos na fase de transição que você chamou de “um futuro de ascetismo”? Ou ainda vamos demorar para chegar lá? FRAnciSco JARAUtA Penso que uma das mudanças a serem produzidas é no sentido de civilizações ascéticas. Civilizações com sistemas de necessidade
continente Concorda com as ações governamentais voltadas para a proteção das manifestações locais? FRAnciSco JARAUtA Agradame que existam certas políticas de proteção como as brasileiras. Há países na América do Sul que têm essa característica identitária como algo extremamente vantajoso. No Brasil e no México, há um orgulho nacional. Que o protecionismo apareça como um instrumento político não me surpreende. Isso não me parece uma aposta radical na identidade, é uma forma de interpretar a política cultural. Políticas culturais voltadas a um identidade forte não vão a nenhum lugar. Ações que apostam apenas no reforço ao nacionalismo não avançam, pois o desafio está no futuro e não no passado.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
vÍdeos
FuteBoL na Rede
Confira algumas das produções do artista plástico Rodrigo Braga, inéditas no Brasil, feitas durante sua residência na Bélgica.
Este mês, todas as atenções estarão voltadas para a Copa do Mundo. No site da Continente não será diferente. As pinturas que ilustram o último caderno desta edição foram feitas por um time de 11 artistas selecionados para criar obras sobre o futebol. O resultado estará em exposição, no shopping Paço Alfândega, no bairro do Recife, a partir do dia 5 e, em seguida, no nosso site. O internauta também poderá ler trechos do livro 11 gols de placa: Uma seleção de grandes reportagens sobre o nosso futebol (Editora Record).
con ti nen te
Conexão
Pau da BandeiRa Veja outras imagens dessa festa junina, que mistura sagrado e profano e, durante 13 dias, celebra Santo Antônio, em Barbalha, interior do Ceará.
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
andanças viRtuais Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar
PRÊMio
viaGeM
docuMentÁRio
teXtos
Páginas de empresas e campanhas publicitárias eleitas favoritas
O Dopplr traz sugestões de locais e passeios para turistas “inteligentes”
Atitude política na hora do download de filmes alternativos
A public space faz panorama da produção artística independente
www.thefwa.com
www.dopplr.com
www.freedocumentaries.org
www.apublicspace.org
Baseando-se em cinco critérios – criatividade, originalidade, design, conteúdo e personalidade –, o Favourite Website Awards é o principal prêmio online que um site pode ganhar. Criada em 2000, a página já acumula mais de 75 milhões de visitas e elege diariamente um destaque entre os endereços sugeridos pelo público. Em geral, as escolhas são por sites de empresas e campanhas publicitárias inovadores. Assim, a FWA também premia um site a cada mês, além de manter um hall da fama com os melhores criadores de páginas de todos os tempos.
Com uma página simples e dinâmica, o Dopplr se descreve como “um serviço para turistas internacionais inteligentes”. Em formato de rede social, o site reúne sugestões de usuários de locais para hospedagem, restaurantes e bons locais para se conhecer nas principais cidades do mundo – principalmente da Europa e dos Estados Unidos. Mesclando recursos como Google Maps, com o comentário dos internautas, o Dopplr também conta com uma seção de perguntas e respostas colaborativas, com opiniões úteis e eficientes.
O Free Documentaries tem foco específico: disponibiliza em suas páginas documentários de temáticas políticas, ambientais e econômicas para download. Fiel à proposta de só ofertar filmes com autorização dos seus donos, o site, segundo seus autores, é uma tentativa de possibilitar a circulação de obras que não recebem espaço na mídia porque são controversas. Além do download, o Free Documentaries também permite que o usuário assista antes ao trailer do filme.
Fundada em 2005, A public space é uma revista independente de artes, literatura e ensaios. Em sua versão online, a publicação traz, além de parte do conteúdo impresso, dicas diárias de matérias, tiradas de sites como o da revista New Yorker e o do jornal The Guardian, recomendações de livros e até eventos na área, que acontecem nos Estados Unidos. No arquivo da página, é possível conferir os poemas, contos e matérias que já saíram em edições anteriores e que sempre primam pelo olhar original de autores não consagrados.
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REPROdUçãO
blogs caPas http://sobrecapas.blogspot.com
O escritor Samir Machado analisa as capas dos principais lançamentos de livros do mercado brasileiro e estrangeiro, chegando a entrevistar alguns nomes importantes e dedicando às coleções posts especiais.
ensaios http://www.falcaoklein.blogspot.com
Dedicado à crítica literária, o blog de Falcão Klein faz pequenos ensaios sobre as obras e pensamentos de escritores, com destaque para alguns preferidos: Enrique Vila-Matas, Walter Benjamin e Roberto Bolaño.
MÚsica PaRa os sentiMentos Definindo-se como rádio emocional, a Stereomood busca atender à demanda das sensações do ouvinte, oferecendo músicas classificadas por estados psíquicos www.stereomood.com
desenHo
a música, possivelmente, é a mais abstrata das artes, justamente porque é
http://www.abducci.blogspot.com
difícil definir o que uma melodia quer dizer ao seu ouvinte. Entretanto, ela é extremamente empática no campo das emoções, porque desperta reações em qualquer um, mesmo que não sejam simples de descrever. Na música pop, em que as notas quase sempre dividem espaço com as letras, é mais fácil ligar uma emoção a uma faixa, ainda que unanimidade esteja fora de questão. Com isso em mente, o site italiano (escrito em inglês, no entanto) Stereomood cria uma nova forma de escutar canções. Mantido por quatro arquitetos, incluindo os criadores Giovanni Ferron e Daniele Novaga, e uma jornalista, a página tem o seguinte slogan: “Por trás de cada canção existe uma emoção. Nós não sabemos o porquê, mas talvez por isso amemos a música”. Baseadas em estados de humor ou nas atividades realizadas, as playlists recebem títulos que podem remeter a estados facilmente identificáveis, como romantic (romântica), ou mais complexas, como sleepy (sonolenta) ou lost in thought (perdido em pensamentos). Para recomendar canções ou novas listas, o usuário pode se registrar no site como colaborador. As músicas são ouvidas no próprio site, mas não baixadas: o Stereomood procura não violar os direitos autorais. DioGo GueDeS
Em seu blog, o ilustrador André B. Ducci mostra parte dos seus trabalhos, que inclui ilustrações para revistas, cartazes, histórias em quadrinhos, rascunhos e até mesmo estudos de anatomia de pessoas e animais.
PRoGRaMaçÃo http://jornalcultural.blogspot.com
Mantido por Tarcísio Camêlo, o Jornal Cultural informa as diversas atividades culturais que acontecem diariamente em Pernambuco, além de realizar coberturas de grande eventos como o Abril pro Rock e o Carnaval.
sites sobre
futebol CRÔNICA
belezA
NOTÍCIAS
http://superga.blogspot.com
http://www.runofplay.com
http://www.ogol.com.br
O blog reúne os textos em espanhol do articulista Enric González, que mesclam futebol, crônica esportiva e literatura.
Com uma visualização inovadora, o Run of play afirma-se como uma busca solitária pela beleza e pelo absurdo no futebol.
O Gol traz informações atualizadas sobre resultados de futebol em todo o mundo e até especulações sobre transferências de jogadores.
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con ti nen te
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con ti nen te
Portfólio
André Lasmar
JOIAS DE AUTOR TexTo Mariana Oliveira foTos Ricardo Malta
Ao invés de trabalhar com coleções, ele trabalha com séries; ao contrário da
produção em grande escala, produz peça a peça; em lugar de pretender a perfeição, acentua a beleza da assimetria. Essas são algumas das características das joias criadas pelo potiguar André Lasmar, que morou grande parte de sua vida no Recife e que, há nove anos, mudou-se para o Rio de Janeiro. O estalo que levou Lasmar ao mundo das joias aconteceu na década de 1980, quando viu um colar do joalheiro Renato Camargo e percebeu que as peças eram todas feitas à mão. Ao longo dos anos, passou pela escola do próprio Camargo e por residências artísticas na Europa para concluir que, nesse ofício, a aprendizagem não tem fim e segue colocando-o em encruzilhadas. Desde então, Lasmar cria peças em prata, ouro, madeira e até em osso, que, em suas mãos, se modelam para receber um variado grupo de pedras brasileiras, criando um trabalho marcadamente autoral que se opõe por completo à ideia de joia como adorno e a expande para o campo da arte. O próprio processo de criação foge do convencional –não é guiado por tendências. Segundo ele, as suas mantêm, até hoje, um relação direta com aquelas produzidas anteriormente, “as peças que faço hoje são uma consequência das anteriores. A perfeição não é uma meta”. Tudo o que ele quer é que a sua mão esteja marcada em cada uma das suas joias.
Página anterior 1 PeDRARiA
A rubilita, a calcita e a água marinha são algumas das pedras brasileiras utilizadas por Lasmar
Nestas páginas 2 comPosição
O colar, feito em prata, pérola mabe e rubilita, é organizado de maneira assimétrica
4 mADeiRA O material é suporte para criação de desenhos em prata inspirados na obra Árvore da vida, de Gustav Klimt 5 ANÉIS DE JOGAR As peças do xadrez inspiraram a produção dessa série em prata
3 BRinco Na série Você viu ou sonhou?, Lasmar brinca com as similitudes das gemas
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PEdrO MElO
inSUSPeitA LeitURA
EvE arNOld/rEPrOduçãO
Em 1955, a fotógrafa Eve arnold foi fazer uma sessão com um dos principais ícones pop de todos os tempos, Marilyn Monroe. dessa sessão, um dos resultados foi a imagem da atriz mergulhada na leitura do clássico Ulisses, de James Joyce. Mera pose? Não, segundo arnold. Ela conta que, enquanto colocava filme em sua máquina, Marilyn puxou o livro e começou a lê-lo. Ela contou que já havia iniciado a obra há bastante tempo e até a levava no carro. E que, apesar das dificuldades do texto, amava a sonoridade do livro, chegando a lê-lo em voz alta para si mesma. (diogo guedes)
tempo de ruas encantadoras con ti nen te
A FRASE
rEPrOduçãO
“o conhecimento do Brasil passa pelo futebol.”
Balaio LiÇÃo De PoetA 1 Certa vez, João Cabral de Melo Neto escreveu: “Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de ‘emoção’. O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções e criar emoções, é criar um objeto – se é poeta, um poema; se é pintor, um quadro – que provoque emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção”
CarlO wrEdEr/divulgaçãO
Enquanto o passante das grandes cidades brasileiras teme hoje a violência na inevitabilidade do contato com as ruas, há um século, o jornalista João do Rio se deleitava com a diversidade de tipos e situações com que se defrontava. Um tempo cordial? Sem ameaças? Ainda que queiram detratar nosso dândi da belle époque, dizendo que suas deambulações não passavam de caça aos homens nos bas-fonds e undergrounds, seu legado de crônicas sobre os tipos urbanos é um dos clássicos saborosos da literatura brasileira. Porque João do Rio empreendeu uma valiosa taxonomia da população carioca daquele início de século 20, um trabalho que serve de inspiração para qualquer repórter que não tema gastar as solas dos sapatos. Quando a gente pensa que os vendedores de piratarias são novidade por aqui, vem João do Rio e conta, por exemplo, sobre aqueles indivíduos que se ocupavam em falsificar charutos, vejam vocês o refinamento. Eram os selistas, que tinham até um ponto fixo perto do Senado para vender produtos que jamais haviam sido daquelas marcas. Eita mundão velho, meu Deus! ADRiAnA DÓRiA MAtoS
LiÇÃo De PoetA 2 E para que fique bem clara a posição do autor de A educação pela pedra, aí vai mais uma de suas opiniões quanto às emoções: “Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa. Ora, se tenho minhas emoções, para que vou buscar emoções semelhantes numa outra coisa?”.
José Lins do Rego
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JoÃo c
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MARKeting ALteRnAtivo 1 Soluções “criativas” continuam sendo adotadas por medalhões do showbiz. depois de Josh Freese, ex-baterista do Nine inch Nails (cujo pacote inusitado continua à venda em seu site), chegou a vez dos ingleses do gang of Four. Fãs abonados podem comprar passagens e viajar de helicóptero com a banda pós-punk para o tradicional Festival de Glastonburry. E, para ficar de lembrança, o grupo ainda vende frasquinhos com sangue (isso mesmo) dos músicos. O kit completo está disponível no endereço www.pledgemusic.com e visa levantar fundos para a gravação de Content, novo disco do quarteto. (Thiago lins)
CRIATURAS
MARKeting ALteRnAtivo 2
rEPrOduçãO
O idealizador dos Sex Pistols, Malcolm Mclaren (1946-2010), foi um pioneiro do marketing alternativo na indústria fonográfica. Em 1977, seus pupilos tiraram os supergrupos progressivos do topo das paradas britânicas com o single God save the queen, uma ironia antipatriótica no ano do jubileu da rainha. Os jornais que divulgavam o top 10 não mencionavam o título da música, deixando uma lacuna seguida do nome do grupo. a repressão da Era Thatcher ainda baniu os Sex Pistols das rádios e dos palcos. Mclaren não teve dúvida: alugou um barco e os quatro cavaleiros do apocalipse fizeram um show a todo volume pelo rio Tâmisa, para continuar promovendo o single. O argumento do empresário foi simples: a banda, que não podia tocar em terra firme nem no ar, tinha de tocar na água. resultado: todos foram presos e a notícia foi amplamente divulgada no país. (T.l.)
AnteS qUe AcABe Se você é daqueles que guardam o ouro para a velhice, preste atenção no que disse Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), sobre a brevidade da vida: “Que certeza tens de que a vida é tão longa? O que garante que as coisas se darão como dispões? Não te envergonhas de destinar para ti somente resquícios da vida e reservar para a meditação apenas a idade que já não é mais produtiva?” Contemporâneo de Cristo, o filósofo assistiu ao declínio do império romano, tendo sido conselheiro de Nero, aquele que mandou matar a própria mãe. Em tal estado de coisas, o camarada tem que pensar sobre o fim dos (seus) dias mesmo... (adM)
the Beatles (1960-1970) Por André Fidusi
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mauricio planel
con ti nen te
especial
gHost writers Manipuladores de palavras alheias Muito mais do que os leitores podem supor, vários textos assinados por políticos, livros de memórias, de celebridades ou de autoajuda são na verdade produzidos por escritores que se põem a serviço dos que não têm na escrita um talento específico texto Fábio Lucas
c co on nt tiin neen nt tee jju un nh ho o 220 0110 0 || 220 1
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o discurso de posse do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em 2009, foi acompanhado por milhões de pessoas ao redor do planeta, e considerado um marco do zeitgest do século 21. Em escala nacional, o discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007, buscou traduzir para milhões de brasileiros o significado da permanência do ex-operário no cargo máximo da nação, em mandato renovado. Nenhum dos dois discursos, no entanto, foi obra do pensamento exclusivo dos dois chefes de Estado. Mesmo considerado o mais intelectual dos ocupantes da Casa Branca desde Abraham Lincoln, e possuindo a fama de redigir seus próprios discursos, e até os próprios livros – o que pode ser considerado, no meio, uma extravagância –, Obama não abriu mão de um jovem escritor profissional para falar aos americanos
e ao mundo. Jon Favreau é o nome dele. Favreau trabalha com pelo menos três assistentes, para colocar no papel os discursos e artigos do presidente Obama. No caso de Lula, a autoria do segundo discurso de posse é creditada ao seu ghost writer usual, Luiz Dulci, ao assessor Marco Aurélio Garcia e ao marqueteiro João Santana. O primeiro discurso de posse, em 2003, é atribuído ao antropólogo Antonio Risério. Seria tentador dizer que os discursos terceirizados imprimiram aos fatos históricos das posses de Lula e Obama o caráter de farsa. O elemento farsesco desses eventos, entretanto, já estava lá de qualquer forma: no cenário montado com esmero, no destacamento de figurantes de luxo, na multidão que arregalava os olhos. Por que com o discurso seria diferente? “Devemos ser realistas”, afirmou William Galston, analista do
Brookings Institution e ex-assessor na Casa Branca, logo após a cerimônia de posse. “Como presidente, Obama participará na redação de seus discursos importantes, mas duvido que tenha tempo ou mesmo vontade de fazer os discursos de segunda ordem.” O mesmo raciocínio se aplica a Lula, ou a qualquer outro político, em qualquer país – ainda que existam exceções, essa é a regra. O ensaísta José Guilherme Merquior foi responsável pelo discurso de Fernando Collor de Mello, em 1990. O poeta Augusto Frederico Schmidt escreveu o de Juscelino Kubitschek, em 1956. Nem a carta-testamento de Getúlio Vargas é fruto de seu próprio punho, e, sim, creditada a José Soares Maciel Filho – que seria, segundo Pompeu de Toledo, uma contradição em termos: um dos raros ghost writers célebres da história. A função de ghost writer (literalmente, “escritor fantasma”)
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con especial ti nen te Fotos: divulGação
1 tHRilleR novo filme de roman polanski tem como protagonista um escritor ghost, interpretado por ewan macGregor, em disputa com um político 2 pRoFessoR o jornalista norteamericano allen Kates não apenas atua como escritor sob encomenda e também dá cursos para candidatos à atividade
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ganhou destaque ao longo das últimas décadas, com a força da comunicação lhe conferindo papel decisivo tanto nas disputas eleitorais quanto no desempenho dos governantes e detentores de cargos públicos. Mesmo entre aqueles que preferem falar de improviso, o recurso do discurso preparado por assessores é utilizado com frequência, nas ocasiões em que o protocolo pede um pouco de formalismo, ou o assunto requer uma dose a mais de conhecimento expresso em informações abalizadas – muitas vezes através de números que ninguém gostaria de ter que decorar. O uso do autor fantasma é tão comum que, em alguns casos, a polêmica sobre essa prática leva políticos de atividade intelectual conhecida a terem que se defender publicamente. Foi o caso do exministro da Educação Paulo Renato Souza, que, em 2007, postou uma carta para o blog de Reinaldo Azevedo: “Tenho uma razoável produção de artigos e livros acadêmicos e jornalísticos e os escrevi todos e cada um. Jamais me socorri de qualquer
os discursos de posse dos presidentes lula e obama foram celebrizados; por trás de suas falas, há a atuação dos ghosts tipo de ghost writer. Em muitas ocasiões, contudo, solicitei a opinião de amigos e autoridades nos assuntos tratados sobre os textos que escrevi, antes de publicá-los”, sem considerar o pedido uma transgressão ética, como havia sido sugerido por Azevedo. Paulo Renato foi o coordenador do programa de governo do então candidato Fernando Henrique Cardoso à presidência, em 1994. O caso ilustra o quanto a presença do escritor fantasma (ou anônimo, para usar um termo mais brando) e sua influência na vida política e corporativa deixou de ser tímida. Livros como Budapeste, de Chico Buarque, e A sombra do meio-dia, de Sérgio Danese, tratam desse tipo de
redator como personagem. Outro livro, O fantasma, de Robert Harris, foi recentemente transformado em filme pelo diretor Roman Polanski (The ghost writer), tendo como protagonista o “redator oculto” do ex-primeiro ministro da Inglaterra, envolvido em uma trama de suspense a partir das relações do ex-premiê britânico com os americanos na guerra contra o Iraque.
pena De alUGUel
A ajuda do escritor fantasma não é privilégio dos políticos. Executivos de empresas também recorrem à pena de aluguel para redigir em seu nome, desde documentos reservados até textos de destinação pública, como artigos e discursos. No mercado editorial, os livros de autoajuda são a principal fonte de trabalho para os ghost writers. Para suprir a demanda gerada por esse gênero, foi montada uma verdadeira indústria, em que os autores anônimos despontam como estrelas muito bemremuneradas. Outro filão explorado é o de livros memorialísticos, como as
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autobiografias de celebridades. Em algumas capas, o trabalho de entrevista e redação é valorizado, como na autobiografia de Emerson Fittipaldi, Uma vida em alta velocidade, na qual se lê: “Em depoimento a Peter Golenbock”. Mas, noutras, os autores verdadeiros ficam mesmo à sombra, como Orlando Duarte e Alex Bellos, que figuram
histórias de fantasMas Além de se passar por outros, os ghost writers precisam fazer silêncio... Afinal, muitas das histórias acumuladas em anos de experiência profissional poderiam delatar relações de confiança mantidas em sigilo. Mesmo assim, sob o manto do anonimato alguns concordaram em falar à Continente sobre casos curiosos por que passaram. “Trabalhando ao mesmo tempo para duas entidades, em duas ocasiões redigi a mensagem congratulatória para um dos patrões e a resposta de agradecimento do outro, o homenageado”, diz um deles. Um episódio envolvendo a escrita fantasma marcou a trajetória de uma assessora de imprensa. Na época, era forte o debate em
somente nos agradecimentos como redatores de Pelé – A autobiografia. A certa altura da narrativa, o personagem de O fantasma de Robert Harris avisa: “Dê uma olhada na lista de best-sellers: você ficaria impressionado se soubesse quantos são escritos por ghost writers. Somos os operários fantasmas que mantêm torno dos mecanismos de ingresso nas universidades. O vestibular era questionado, assim como a possibilidade de implementação de cotas para negros. “Um determinado cliente gostaria de expressar que as cotas não deveriam ser destinadas a negros, a índios ou a qualquer segmento. O que deveria ser fortalecido era o processo meritocrático, segundo ele. Defendia que as unidades de ensino fundamental e médio se tornassem centros de excelência, pois, assim, todos teriam reais condições de disputar uma vaga na universidade”, recorda a assessora. Após redigir um texto com essas diretrizes e aprová-lo para publicação, fatores externos levaram o cliente a rever seu posicionamento – “que, vale ressaltar, já tinha se tornado público”. Mas, naquele momento, defender as cotas passou a representar a própria sobrevivência profissional dele.
o mercado editorial funcionando, como os trabalhadores invisíveis por trás da Disneylândia”. A diretora da editora Record, Luciana Villas Boas, confirma que a contratação de ghost writers na indústria editorial brasileira é muito comum, quase a praxe, quando se trata de memórias de celebridades. “Seja porque o memorialista não é um profissional do texto, seja porque ele não tem tempo para sentar e escrever, o ghost é uma peça-chave na publicação de memórias atualmente”, diz Luciana, citando o caso de A arte da política, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Se não fosse pelo Ricardo Setti, o livro levaria mais cinco anos para ser publicado, no mínimo, se o presidente não se cansasse da ideia no meio do caminho e desistisse do projeto. Setti tinha o preparo e a formação para ser interlocutor de FHC e a disciplina para organizar um volume impensável de textos já escritos pelo autor, outros materiais, dados e documentos infindáveis”, explica Villas Boas. Com a internet e a explosão das redes sociais virtuais, o mercado do ghost writer sofreu vertiginosa expansão. Agora é preciso não apenas estar ligado, mas também blogado, twitado etc., e para aparecer em tantos lugares somente com a retaguarda de um ou mais profissionais da palavra. É o que tem feito, mais uma vez, a ampla maioria dos políticos e grandes empresários. Surgiu inclusive um “A opinião pública e a veemente defesa do governo federal pela adoção do modelo de cotas levaram o meu cliente a, mais uma vez, pedir ajuda. Eu teria que redigir um novo artigo no qual mudaria de opinião.” O que fazer numa situação como essa? “Expliquei que o momento era delicado, pois seriam ideias antagônicas apresentadas em tempo muito curto. Sugeri que ele se posicionasse de maneira mais flexível em entrevistas, mas não de maneira completamente diferente da que se colocou, pois perderia credibilidade e pareceria oportunismo.” O cliente aceitou a sugestão e, somente mais tarde, recorreu à ghost writer para externar a nova opinião sobre o assunto polêmico. “Em ambos os textos, não demonstrei minha opinião a respeito do assunto. Apenas traduzi a ideia que o meu cliente necessitava transmitir.” fábiO lUcAS
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con especial ti nen te divulGação
neologismo, emprestado do original: “ghost blogger”, ou seja, o redator de blogs, ou blogueiro fantasma. De fato, a rede mundial de computadores recria e amplia a experiência de compartilhamento de conteúdo, por exemplo, da literatura no passado. Um livro como Frankenstein, de Mary Shelley, teve a sua primeira edição sem que constasse a autoria. Depois de publicado, foi maciçamente adaptado para o teatro e, posteriormente, para o cinema, por dezenas de autores. Esses “colaboradores” terminaram contribuindo para inserir o mito do monstro de Shelley na cultura moderna, mesmo a custo de praticamente desfigurarem a história original. Criador e criatura formam uma dupla tão intimamente ligada, na obra, que o monstro – sem nome no livro – foi batizado com o nome do criador, pela tradição popular. O confronto narcísico de Frankenstein cabe, em certa medida, na observância de um ghost writer: se tomarmos o texto como espelho, a imagem formada é dupla, pois o autor nominal enxerga um reflexo distorcido de si mesmo, enquanto o ghost vê a si mesmo escondido no nome de outro. No reflexo do texto, como no mito monstruoso, criador e criatura, autor real e autor forjado, se encontram. Como apontou Michel Foucault, é o nome do autor que é imortalizado – e nessa trilha, o escritor-fantasma se perde na poeira da história.
MeRcaDo Do anoniMato
E o que pensam os jornalistas, mão de obra mais requisitada para este tipo de trabalho? Muitos consideram a função sem preconceito, e aproveitam a oportunidade. Mas há quem ache a mera menção à possibilidade um insulto. Entre os dois polos, outros ainda procuram o equilíbrio: “Nem todo mundo é Winston Churchill, não vejo maiores problemas em se apelar para alguém que escreve bem”, diz o jornalista Felipe Vieira que atua como assessor político. “Mas tem que ter honestidade, deixar claro que é um texto feito com suas ideias e a escrita de outra pessoa. Não gosto é da coisa forçada, quando aparece alguém que você sabe que
não tem qualquer intimidade com a escrita, e de repente publica uma tremenda obra”, critica Vieira. Uma jornalista que não quis ter a identidade revelada discorre sobre essa realidade do mercado de trabalho. “Quem presta assessoria de imprensa sabe que as atribuições incluem, algumas vezes, a redação de textos que não serão assinados pelo verdadeiro autor. Na prática, há assessorados que preferem expressar suas opiniões oralmente a ter que escrever”, e é aí que entra o ghost writer assessor de imprensa. “Vale ressaltar, entretanto, que o fato de redigir um artigo, nota ou outro texto cuja autoria será atribuída a terceiros não significa que o verdadeiro
em geral, os escritores fantasmas prestam serviços para gestores públicos, que não têm tempo ou habilidade de escrever autor (o ghost) esteja expressando sua opinião. O assessor é chamado para ajudar a apresentar de maneira clara e consistente a opinião do seu assessorado”, esclarece “a fantasma”. Outro profissional de comunicação que escolhe resguardar o anonimato demonstra admiração pelo status da atividade. “Se, por um lado, não poder ganhar o crédito pelo texto é um tanto frustrante, por outro, ser não somente o porta-voz, mas a própria voz de uma autoridade ou personalidade de destaque é um elogio óbvio à competência do ghost writer”, avalia. “O convite para escrever artigos ou discursos para autoridades normalmente chega num momento em que o profissional já conquistou certa reputação, é um indicativo de que se alcançou maturidade na carreira jornalística.” Para Luciana Villas Boas, o preconceito contra a atividade “está acabando ou tende a acabar porque, com o crescimento da indústria editorial (e o encolhimento da imprensa), a possibilidade de ser ghost virou uma opção econômica interessante”. Ela lembra que, durante os anos 1970
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e 1980, “a imprensa formou uma porção de profissionais do texto para, na década seguinte, desempregálos. Os mais bem-sucedidos viraram biógrafos, mas muitos são ghost writers, fazendo ótimos trabalhos”. O jornalista Allen Kates, que atua como ghost writer há 16 anos, quase a metade de sua carreira profissional, dá cursos nos Estados Unidos para futuros escritores fantasmas. Ele conta que começou a trabalhar escrevendo para os outros, quando lhe entregaram um conto de 10 páginas para editar. “Respondi que não podia editar, pois estava mal-escrito. A autora me contratou e transformei o texto em um livro de 287 páginas”, lembra Allen, que sustenta a posição de que nem todo mundo precisa saber redigir bem. “Muitos clientes me procuram porque não dispõem de tempo para escrever, ou não possuem as aptidões necessárias para pesquisar e redigir.”
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Depoimento
luiz otávio cavalcanti “gosto MesMo é de assinar o que escrevo” “em matéria de ghost writer,
lembro de Ted Sorensen. Ghost de JFK. Um craque. Obama tem um, de 27 anos. Guardo o discurso dele na Universidade do Cairo, junho do ano passado. Uma peça. Juscelino tinha Autran Dourado, Tancredo tinha Mauro Santayana. Sarney era gongórico dele mesmo. Em Pernambuco, Artur Pio escrevia para Moura Cavalcanti. Célio Passos escrevia para Joaquim Francisco. Bandeirinha para Marco Maciel. Pratiquei o ofício algumas vezes. Em Brasília, no Ministério do Interior, Andreazza precisou de um ghost. Me indicaram. Passei mais de um ano escrevendo. Fato engraçado: eu escrevia no apartamento funcional, pequeno, na sala, com meus filhos correndo em
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eDitoRas
luciana villas Boas, diretora da record, afirma ser comum a contratação de ghost writers também no Brasil, sobretudo para títulos de memórias de celebridades
No contato entre o escritor fantasma e o autor que assina, a primeira condição para o estabelecimento da parceria é uma relação de confiança e proximidade. O contrato de trabalho deve ser profissional, na visão de Allen. “O cliente paga para que o contratado seja a sua voz. Então, é preciso que o ghost writer seja capaz de suprimir a própria voz, deixando de lado a sua personalidade para permitir que a voz do cliente apareça”, ensina. “Você deve desejar escrever o que o cliente pensa, mesmo que discorde dele. É preciso ser paciente, tolerante, não ter preconceito, e estar 100% certo daquilo que você pesquisa, pois se houver um erro, a culpa será sua.” De acordo com o “fantasma profissional”,
que mantém um site sobre o tema na internet, o ghost writer competente deve ser ao mesmo tempo bom pesquisador, jornalista, entrevistador e escritor. O que esses profissionais do mercado do anonimato representam é o aproveitamento de “lugares institucionais” talhados para o discurso – novamente lembrando Foucault –, cujos ocupantes não se sentem capacitados para exercê-lo. O fantasma confere a capacidade que falta para o ocupante da posição institucional elaborar o seu discurso com a legitimidade que lhe cabe. Se é um expediente questionável, é assim que funciona o “mercado discursivo”, digamos assim. Para provar que a exacerbação do comércio autoral tem limites, em um único ambiente a utilização de ghost writers é condenada quase por unanimidade: no meio acadêmico. A terceirização de trabalhos de graduação,
volta. Botava uma musiquinha para me inspirar. Gabriela ouvia quando eu lia para Maria Amélia os textos. Um dia, no colégio, comemoração do Dia da Bandeira. Um folder trazia saudação à data de Andreazza, então pré-candidato a presidente da República. Gabriela pegou o folder, na frente das colegas, e não teve dúvida: – Esse livro foi meu pai que escreveu. O discurso de Andreazza, lido na inauguração da favela da Maré, no Rio, foi meu momento mais sensível como ghost, em Brasília. Aqui, em Pernambuco, produzi alguns trabalhos para Roberto Magalhães. Uma ocasião especial e um texto produzido às pressas foi lido (pela metade) na Assembleia Legislativa de Minas. Quando Roberto foi indicado, na convenção do PSDB, vice de Mario Covas. Pela metade porque, a certa altura, Roberto largou o texto e improvisou. Produzir textos, como ghost, ensina, dá experiência. Mas gosto mesmo é de assinar o que escrevo.” luiz otávio cavalcanti é advogado e ex-secretário de planejamento e da Fazenda de pernambuco.
dissertações e teses é encarada como fraude, sob todos os pontos de vista. Não há perdão para quem falsifica a própria identidade criativa. A escritora irlandesa Edna O’Brien, em conversa com o romancista americano Philip Roth, afirmou que o escritor é alguém que está sempre fugindo. De que foge o ghost writer? Talvez da possibilidade de não ser o espectro à sombra de outro... ou, simplesmente, do reflexo duplo no espelho alheio – daquele autor que não é, sendo. Ainda que não seja perturbado pelos conflitos interiores e frustrações típicas da função, acostumado mais às compensações do trabalho cotidiano, podemos dizer que, de um jeito ou de outro, o ghost writer é um fantasma que foge de si mesmo.
@ continenteonline Assista ao trailer do filme The ghost writer, de Roman Polanski ,no site www.revistacontinente.com.br
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karina freitas
con ti nen te#44
Peleja
A crônica esportiva pode ser considerada literatura? O jornalista Humberto Santos diz não ver polêmica na questão — a crônica em si já seria literatura. Já o acadêmico Anco Márcio lista elementos que afirma serem imprescindíveis ao texto literário — elementos dos quais a crônica esportiva, para ele apenas um gênero jornalístico, seria desprovida
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Anco Márcio
Para encerrar qualquer polêmi-
ca não precisaríamos de muito texto. Duas palavras bastariam: Nelson Rodrigues. Mas, como o próprio dizia, toda unanimidade é burra. Portanto, vamos a alguns argumentos. Crônica, por si só, já é literatura. Se ela é publicada em um veículo noticioso devidamente identificada, por que Jornalista, cobriu os deixaria de ser? Mas a pergunta é mais três grandes times do recife específica. Fala de crônica esportiva - e aí me permitam levar a discussão particularmente para o futebol. Assim como política e religião, futebol não se discute. É questão de fé. O grande dilema do jornalista esportivo - e de qualquer jornalista - é manter a isenção. Tenho meu time. Tive a oportunidade de setorizar os três grandes clubes do Recife. Graças a Deus, fui amaldiçoado por torcedores e dirigentes dos três. Sinal de que consegui manter o profissionalismo. Mesmo assim, diversas vezes recorri ao jornalismo literário para escrever uma matéria. Um recurso legítimo.O leitor de jornal não se interessa mais pela notícia de ontem, que ele já viu na internet e na TV. Cabe ao jornalista diferenciar seu foco. Escrevemos para o leitor, não para nós mesmos. Não é toda hora que se tem condições de fazer isso. Mas é perfeitamente possível - e até bem recomendável - dar a notícia, dentro do modelo tradicional de lead, sublead e tal, e da velha perguntinha respondida (quem, o quê, quando, onde e por quê) em um texto diferenciado, que pode seguir a linha literária. O leitor fica informado e com certeza terá mais prazer em ler. Crônica é literatura, não tem os mesmos trâmites burocráticos e acadêmicos da notícia. Ela pode, e deve, expressar a opinião do autor. Banir os espaços dedicados à opinião deixaria órfãos aqueles que entendem e gostam da mesma. Cada veículo tem seu público. Para os acadêmicos, é cômodo falar e ensinar aos alunos a teoria. Isso pode, isso não pode. Criticar a matéria, ignorando as condições: pressões dos deadlines, do chefe, do computador que quebrou, da mudança em cima da hora. Da faculdade para o mundo real a distância é enorme. A crônica esportiva faz parte da enorme gama de material que é ofertada aos leitores pelos veículos de comunicação. Podemos gostar ou não. E, para os iniciantes, um conselho: não se prendam apenas ao que você aprende na faculdade. Caiam em campo, leiam muito, de tudo, e, voltando a Nelson Rodrigues para encerrar a questão: não se tornem idiotas da objetividade.
“Para encerrar qualquer polêmica, não precisaríamos de muito texto. Duas palavras bastariam: nelson Rodrigues”
divULGação
MaÍra GaMarra
Humberto Santos
“o que é, por conseguinte, o
tempo?”, pergunta Santo Agostinho, em suas Confissões, para responder: “Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem fizer a pergunta, já não sei”. Questão semelhante ocorre na literatura. Todo mundo sabe o que é, mas não sabe explicá-la conceitualmente. Professor da Três são os elementos que definem Pós-Graduação em Letras da UfPe se uma obra é ou não literatura. A primeira é a intencionalidade. Tal escritor escreveu uma obra e a denominou de romance, conto ou novela e, como tal, ela foi publicada e lida. Ou seja, toda obra carrega marcações históricas, e uma delas é a que foi dada por quem a compôs. A segunda é o estatuto da ficcionalidade. Entendendo ficção no seu sentido etimológico, isto é, como fingere, fingimento; eu finjo encerrar uma dada realidade e quem me lê, finge acreditar no que lê: é o chamado pacto ficcional. Terceiro, a literatura se vale de uma linguagem carregada de significado. É essa linguagem aberta, que exclui uma leitura unívoca, que nos permite “testar” a “eficácia estética” e o “potencial semântico” (Silviano Santiago) de uma dada obra, isto é, seu caráter trans-histórico. Em resumo: a intencionalidade me oferece o estatuto histórico-temporal da obra, a ficcionalidade seu caráter puramente textual e a linguagem carregada de significado, sua condição trans-histórica. Atenção: esses três estatutos têm de caminhar juntos. Faltando uma dessas pernas, a obra já não seria literatura. É assim que podemos abordar a crônica esportiva. Primeiro, não há ficcionalidade, por se referir a fatos que existem na realidade empírica. Segundo, a intencionalidade e o pacto estabelecido com o leitor não é o do fingimento, mas o da verdade. Se o cronista falta com a verdade, ele está mentindo para o leitor, e não criando ficção. Por fim, o cronista pode e deve se valer de uma linguagem carregada de significado (no seu caso, figuras de linguagem, metáforas e metonímias). Daí Nelson Rodrigues definir a seleção brasileira como “a pátria de chuteiras”. Sem dúvida, uma das maiores sacadas sociológicas ditas sobre o Brasil. Nada obstante, o texto de Rodrigues não encerra os estatutos da intencionalidade e da ficcionalidade. Esses, ele, sabiamente, aplicou em suas peças dramáticas, em seus romances e em seus contos. Logo, a crônica — seja ela esportiva ou não — é um gênero puramente jornalístico; o único da família que aspira à trans-historicidade.
“não há ficcionalidade. A crônica — seja ela esportiva ou não — é um gênero puramente jornalístico”
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Tradição Tradição
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PAU DA BANDEIRA
Demonstração de fé, no ombro e na marra Festa junina realizada durante 13 dias no interior do Nordeste para celebrar Santo Antônio, o casamenteiro, reúne um variado e colorido conjunto de manifestações culturais e históricas TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa, de Barbalha (CE)
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Página anterior 1 FoRÇA
A fé e a valentia levam, todo ano, cerca de 150 homens a carregarem um tronco de mais de duas toneladas por um trajeto de seis quilômetros
Nesta página 2 BARBALHA
A cidade, tombada como patrimônio histórico, localizase no vale do Cariri, próxima do Crato e de Juazeiro do Norte
3 AnJoS A Lapinha é uma das dezenas de manifestações culturais que compõem o tradicional cortejo em homenagem a Santo Antônio
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Um tronco com mais de duas
toneladas está sendo carregado nos ombros por 150 homens movidos à cachaça de cabeça. Em torno desse evento de caráter primitivo há reisados, bandas cabaçais, lapinhas, vaqueiros tradicionalmente vestidos, violeiros, palhaços – numa confluência das variadas manifestações culturais do interior nordestino. Realizada desde a época do Império, a Festa do Pau da Bandeira transforma a pequena e pacata Barbalha, no extremo sul do Ceará, na capital nacional da cultura popular. Além da branquinha, distribuída gratuitamente numa carroça de burro e batizada de “Cachaça do Senhor Vigário”, é a fé em Santo Antônio que move esses homens e mulheres durante o inusitado cortejo. Reza a lenda e acreditam as solteiras que basta um leve toque no imenso tronco para que se arranje um marido. A fé no santo casamenteiro é tanta, que muitas moças chegam a disputar o espaço na intenção de arrancar uma lasquinha da madeira. De posse da preciosa relíquia, preparam um chá que, caso a simpatia não falhe, é casamento na certa.
Cantado na voz de Luiz Gonzaga e consagrado nos versos de dezenas de cordelistas, o ritual de carregamento do Pau de Santo Antônio revela a riqueza cultural de uma região colonizada por missões portuguesas no sopé da Floresta Nacional do Araripe, um oásis em pleno sertão cearense que, durante o primeiro dia do mês de junho, celebra com irreverência e devoção a chegada da nova safra de frutos. Em vez de políticos e latifundiários, figuras típicas por ali, os atores principais do espetáculo são homens simples, agricultores, comerciantes, brincantes populares. Um reinado de alegria é instalado desde as primeiras horas da madrugada e só termina quando o tronco se converte em mastro e é fincado em frente à igreja matriz sob gritos e aplausos de mais de 50 mil pessoas. Só então a bandeira de Santo Antônio é finalmente hasteada e a festa segue por mais 12 dias sob as bênçãos do padroeiro e, de alguns anos para cá, das bandas cearenses de forró. “A festa deslocou-se do âmbito da comunidade para a esfera da indústria
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cultural, movimentando e aquecendo o negócio do entretenimento. A tradição é, assim, uma espécie de aperitivo para o que virá nos dias seguintes”, explica Gilmar de Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará e pesquisador da cultura popular. Manifestações de raiz, dessas que dá gosto de ver, só no primeiro dia mesmo.
ciDADe ViRA ciRco
Além do aspecto religioso, O Pau da Bandeira é essencialmente uma manifestação que rompe com a ordem estabelecida. Barbalha possui uma elite de origem aristocrática, conservadora, mas no dia do carregamento do pau essa face séria é quebrada e a cidade se transforma num picadeiro. Conduzir esse tronco até o centro histórico de Barbalha, no entanto, exige dos devotos algo além da força física. Em anos de chuva, por exemplo, a lama é um componente a mais no já difícil trabalho de levar adiante o cortejo. Boa parte do ânimo necessário ao sucesso da empreitada vem do Capitão do Pau, uma figura
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importantíssima no ritual. É função dele organizar os homens que se revezam no carregamento, assim como administrar as muitas confusões que surgem durante a travessia. “No começo é tranquilo, mas aí a gente vai bebendo, vai bebendo, e quando vê, tá todo mundo bêbado”, diz um dos carregadores, livrando-se da lama nos olhos depois de mais um “mergulho” no chão encharcado de barro vermelho. Anualmente, por volta do meiodia, o padre se aventura na multidão para abençoar os devotos. Debaixo de uma saraivada de fogos de artifício, os homens e o sacerdote rezam e cantam o hino dos carregadores. Para se ter uma ideia do esforço
O ritual começa nas primeiras horas do dia e só termina no começo da noite, quando o mastro recebe a bandeira empreendido por esses heróis anônimos, basta dizer que o ritual começa nas primeiras horas do dia e só termina no começo da noite. São mais de seis quilômetros desde o sítio do qual a árvore é retirada até o pátio da igreja, onde, enfim, se transformará em mastro. A cada metro vencido, uma vitória.
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Mas é com o dia clareando que a festa começa a mostrar as suas cores. Ainda antes do sol nascer já é possível ouvir o som dos pífanos e suas zabumbas de couro e madeira. Aos poucos, dezenas de grupos populares se aglomeram na frente da Igreja Matriz, quartel-general de onde parte o desfile folclórico que enche de alegria as antigas ruas de Barbalha. Antes, solenemente, todos assistem à missa que abre oficialmente os festejos em homenagem a Santo Antônio. Daquele momento em diante está iniciada a trezena, que corresponde aos 13 dias que antecedem o aniversário de morte de Santo Antônio de Lisboa, de Pádua, ou apenas “Toim”, como é carinhosamente chamado pelos barbalhenses.
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4 PÁtiO DA iGReJA Antes do carregamento do pau, bandas de pífano uniformizadas convidam os devotos à participação 5 ReiSADO Presença marcante na Festa do Pau da Bandeira, a manifestação, passada de geração em geração, confere-lhe um colorido especial
Segundo Câmara Cascudo, Santo Antônio é o santo junino que possui mais fiéis no Brasil, provavelmente devido à sua fama de casamenteiro. Um dos momentos mais interessantes da missa é quando os líderes dos grupos populares oferecem, no altar, os frutos da nova safra, numa demonstração da fartura que invade o sopé da Chapada no período junino. Rapadura, mel, milho, feijão, pequi e até cachaça fazem parte das ofertas. Finalizada a missa, é hora de começar a brincadeira.
FÉ e ALeGRiA
Segundo o médico e historiador Napoleão Tavares Neves, foi o Padre Ibiapina, em 1860, quem trouxe a
tradição dO Pau da Bandeira ao Cariri. “A bandeira tremulando no alto do grande mastro era o sinal de que aquela comunidade estava em festa”, diz Tavares. Até 1928, a comemoração se restringia ao hasteamento da bandeira, sendo uma manifestação puramente religiosa. Com a introdução do cortejo e do desfile folclórico, o evento foi tomando outra proporção e adquiriu o seu aspecto profano, representado pelas brincadeiras e pelo consumo desenfreado da cachaça produzida logo ali, nos muitos engenhos artesanais que ainda sobrevivem nas zonas rurais. Hoje, juntos, sagrado e profano caminham num conjunto de manifestações que guardam em
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6 ciRco A festa mistura o sagrado e o profano, reunindo grupos folclóricos e manifestações circenses na Praça da Igreja Matriz 7 encHARcADo Em anos de chuva, os participantes encaram um percurso coberto de lama 8 cARRoÇA O “andor” colorido distribui cachaça, bebida que serve de combustível aos carregadores do pau da bandeira
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comum a fé carregada de alegria e a necessidade de afirmação da tradição. O posto de Capitão do Pau, por exemplo, ainda hoje está nas mãos da mesma família. “É algo que está no sangue e que fazemos questão de passar às novas gerações”, explica Rildo Teles, Capitão do Pau durante vários anos consecutivos. É a tradição, a propósito, o pivô de uma polêmica que sempre acompanha a preparação dos festejos. Para os ambientalistas, o tronco deveria ser o mesmo a cada ano. Já para os
defensores do legado cultural, o ritual de cortar uma árvore a cada festa é fundamental para a manutenção da autenticidade da celebração. Em 2007, a briga foi parar na Justiça, tendo sido a árvore apreendida pelo Ibama. O Capitão do Pau estava com o ofício do órgão, autorizando o corte, o problema é que ele não especificava a espécie que deveria ser derrubada dentre as 32 destinadas a atender a tradição religiosa. Sem a presença de fiscais, acabou tombando uma aroeira de 23 metros de altura,
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protegida por lei. Como já estava no chão, o tronco foi liberado. A árvore geralmente é cortada 15 dias antes da festa, numa tentativa de deixar a madeira mais leve para os ombros. Manda ainda o costume que ela seja derrubada por volta do meio-dia. Com promessas de reflorestamento e respeito às normas definidas pelas autoridades ambientais, os defensores da tradição seguem escolhendo e cortando uma nova árvore a cada ano. Para os carregadores, o suspense é
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mais um fator que contribui com o clima que antecede o cortejo, afinal, só saberão o peso que serão obrigados a suportar quando os fogos iluminarem a madrugada anunciando o começo da travessia. No ano em que o mastro ultrapassa duas toneladas, o ritual adquire os dramas de uma penitência. Cansados, os homens soltam o tronco a cada 100 ou 50 metros, o que revela um espetáculo tão belo quanto perigoso. Casos de acidentes não são raros nesses momentos, justificando a presença da ambulância que acompanha o cortejo. Sempre que os músculos pedem arrego, ouve-se um estrondo assustador seguido por uma nuvem de poeira vermelha. É a
o corte da árvore, que tem gerado alguns problemas com ambientalistas, acontece 15 dias antes da festa senha para dois ou três minutos de anarquia em que vale absolutamente tudo, até mesmo uma investida das solteiras mais ousadas na busca de uma lasquinha do sagrado pau. O colorido formado pela vegetação da Chapada, as roupas dos carregadores e a lama que cobre todo o caminho chama a atenção dos fotógrafos e cinegrafistas que invadem Barbalha a cada festa e compõem, juntamente com as dezenas de grupos folclóricos que acompanham o desfile, o belo cenário que faz dessa festa uma espécie de relicário da memória cultural do Nordeste. No dia seguinte, abatidos pela ressaca, os valentes carregadores ressurgem como o contador de histórias, o comerciante, o simples trabalhador rural e suas pelejas. Exaustos ao final da luta, mas convictos da vitória, resta a eles, a título de troféu, apreciar a imagem do santo padroeiro tremulando no céu estrelado do Cariri.
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@ continenteonline Veja outras imagens da Festa do Pau da Bandeira, em Barbalha, no site.
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www Eles dizem não ao fascínio digital Nos Estados Unidos, pensadores aprofundam análises críticas em relação às implicações culturais, econômicas e políticas da internet texto Marcelo Abreu
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1 lee siegel O ensaísta critica o narcisismo gerado pela “cultura participativa” e analisa o medo generalizado de ser contra o fenômeno digital 2 andrew keen Ex-empreendedor do Vale do Silício ataca mitos, como o pressuposto de que todos têm talento para se expressar artisticamente na web
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Quinze anos depois da popularização da internet, período no qual a glorificação da tecnologia digital e suas imensas possibilidades passou a ser, em boa parte do mundo, o tema dominante em palestras, artigos, na mídia e na vida acadêmica, começa a se formar um grande volume de pensamento intelectual crítico que se opõe frontalmente à ideia da chamada “utopia digital”. É como se, após o atordoamento inicial com a velocidade das mudanças e seus efeitos na economia e na cultura, alguns pensadores começassem a enxergar mais claramente. Algumas das mais brilhantes reflexões intelectuais publicadas recentemente nos Estados Unidos tratam dos efeitos negativos da cultura digital na sociedade contemporânea. Alguns dos críticos mais ácidos são pessoas que, no passado, militaram no meio tecnológico e, hoje, combatem a internet. Somente de 2007 para cá, foram lançados nos Estados Unidos pelo menos 30 livros que questionam seriamente vários aspectos da cultura digital. Apenas dois desses livros já foram traduzidos no Brasil.
enquanto a mídia elogia o fenômeno da web, no mercado editorial emergem críticas aos efeitos da sociedade digital O ex-empreendedor do Vale do Silício, Andrew Keen, causou polêmica por aqui, em 2009, com o seu livro O culto do amador – Como blogs MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores (Editora Zahar). Mas Keen pode ser muito mais do que o atrevido que investiu contra a ideologia dominante: a internet e a cultura da participação. Com a ousadia de destoar do senso comum e investir com verve e agressividade contra os mitos criados na última década (entre eles, o de que todo mundo tem talento para se expressar artisticamente na web), Keen é a ponta de um iceberg poderoso que está a caminho, pilotado por intelectuais, acadêmicos e críticos de peso.
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Fenômeno central e avassalador como talvez nenhum outro na contemporaneidade, a popularização da internet suscitou inicialmente toda uma produção de ensaios laudatórios, escritos pelos chamados gurus digitais. São pessoas que ganharam (e ainda ganham) muito dinheiro com livros e palestras nas quais exaltam, de forma messiânica, as vantagens do mundo conectado, supostamente mais livre, democrático, acessível, harmônico e rico em cultura. Mas enquanto a mídia eletrônica, as revistas e os cadernos de informática dos jornais ainda bombardeiam semanalmente a versão dos supostos milagres da nova utopia, no mercado editorial a discussão vai ficando mais equilibrada. Os críticos abordam muitos efeitos negativos provocados pela sociedade digital: na economia (desemprego e altos custos com atualização tecnológica), na psicologia (dispersão e isolamento), na educação (baixos resultados com o uso dos computadores nas escolas), na privacidade (exposição pública da vida privada), na política (alienação e radicalismo), no campo artístico
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(mediocridade da chamada cultura feita pela massa), no meio ambiente (aumento do consumo de energia e lixo digital). Os livros têm sido publicados pelas editoras de maior prestígio nos EUA e na Inglaterra, muitas delas ligadas a grandes universidades como Harvard, Yale, Princeton, Oxford e Cambridge.
cultura participativa
O ensaísta Lee Siegel é um dos críticos mais articulados e polêmicos. No livro Against the machine – Being human in the age of the electronic mob (Contra a máquina – Mantendo-se humano na era da turba eletrônica), com trecho traduzido a seguir, Siegel faz uma crítica do narcisismo que tomou conta do mundo a partir da chamada “cultura participativa” e analisa o medo que impede as pessoas de se pronunciarem contra o fenômeno digital. Em determinado trecho do seu livro, ele escreve: “No mundo surreal da Web 2.0, a retórica de democracia, liberdade e acesso é usualmente uma folha de parreira para uma retórica antidemocrática e coercitiva; onde ambições comerciais se disfarçam
na pele de cordeiro dos valores humanísticos; e onde, ironicamente, a tecnologia fez voltar o relógio, do prazer desinteressado da arte popular e erudita para uma cultura primitiva de interesses próprios, toscos e avarentos”. Já Mark Bauerlein, professor de inglês da Universidade Emory, na Geórgia, pega pesado ao analisar os efeitos da tecnologia na educação. Ex-diretor de pesquisa e análise do National Endowment for the Arts e membro de comissões que analisam a qualidade da educação nos Estados Unidos, Bauerlein escreveu The dumbest generation – How the digital age stupefies young americans and jeopardizes the future (A geração mais burra – Como a internet entorpece os jovens americanos e compromete o futuro). No livro, ele trata dos efeitos da conectividade permanente na nova geração. Bauerlein baseia seu texto em estudos que demonstram que a introdução dos computadores na educação piorou, em vez de melhorar, o já deficiente sistema de ensino do seu país. E cita até exemplo de escolas e universidades em que está havendo uma rejeição à presença dos computadores na sala de aula, como em
algumas áreas dos estados da Virginia, Florida e Nova York (este, ironicamente, um dos primeiros estados a embarcar na onda da sala de aula conectada). Os livros dos dissidentes digitais utilizam vários formatos e abordagens, mas o que predomina é o ensaio inteligente, articulado e bem-escrito (em muitos casos, erudito), baseado em reflexões, observações pessoais, entrevistas e consultas a uma vastíssima bibliografia acadêmica e outras fontes de informação. Raramente são obras de pessoas adversas a novidades. Os autores são pensadores livres, alguns deles atuaram na indústria da tecnologia da informação. Suas análises se concentram na realidade norte-americana, mas, facilmente, podem ser aplicadas ao que ocorre no resto do mundo. A critica à sociedade digital é descendente da crítica mais geral feita à tecnologia, no passado, por filósofos como Herbert Marcuse, e por escritores de ficção do século 20, como H.G. Wells e Aldous Huxley. Só que agora é como se a ficção científica tivesse se tornado realidade e merecesse uma nova reflexão, baseada na experiência real e atual, e não mais num futuro projetado. Um dos pioneiros dessa nova fase de críticos foi Neil Postman, que em 1993 já lançava Technopoly – The surrender of culture to technology (Tecnópolis – A capitulação da cultura para a tecnologia), em que denuncia o endeusamento da tecnologia num nível que beira o totalitarismo.
ti nÃo É tudo
Nicholas Carr, ex-editor da prestigiosa Harvard Business Review, tem sido um dos mais produtivos críticos na área de análise das implicações econômicas. Primeiro escreveu o livro Será que TI é tudo?, lançado recentemente no Brasil (Gente Editora), no qual defende a ideia de que o investimento em tecnologia da informação já deixou de ser uma vantagem competitiva para as empresas. Para ele, a tendência é que a informática se torne apenas um bem de serviço, como água ou energia, provida por uma empresa terceirizada e não mais internamente nas empresas. O livro, obviamente, desagradou à indústria da informática, sobretudo tendo sido escrito por alguém da área econômica.
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3 nicholas carr Ex-editor da Harvard Business Review, Carr defende que o investimento em tecnologia da informação deixou de ser uma vantagem competitiva para empresas 4 maggie Jackson a jornalista acusa a conectividade digital de acentuar o fenômeno da dispersão contemporânea
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Há dois anos, Carr lançou The big switch: Rewiring the world, from Edison to Google (A grande mudança: Religando o mundo, de Edison ao Google), em que trata das grandes incertezas que dominam o mundo do ponto de vista econômico, cultural e até militar, com a chamada “computação nas nuvens”. Carr esmiúça a história dos avanços tecnológicos para demonstrar como outras novidades também foram saudadas no passado e depois superadas. Mostra como o homem, certo de que está criando novas tecnologias para libertar-se das restrições físicas da vida, acaba sendo moldado pelas suas criações. No capítulo intitulado Uma teia de aranha, Carr (no estilo frio e contido que o caracteriza) defende que o princípio que caracteriza a internet (e todo o mundo digital) é o controle, e não a liberdade, como se pensa usualmente. E apresenta, como exemplos, os assustadores algoritmos desenvolvidos pelo Google (que registram e processam tudo o que se passa no universo da internet), os programas de agregação de dados que identificam os usuários, e uma série de outros instrumentos de registro e controle, quase sempre usados com fins políticos ou comerciais. Nicholas Carr tem aprofundado sua crítica e escreveu, em 2008, um artigo na revista The Atlantic, de imensa repercussão, intitulado O Google está nos
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fazendo idiotas? Em junho sai mais um livro dele: The shallows: What the internet is doing to our brains (Frivolidade: O que a internet está fazendo com nossas mentes).
dispersÃo
A jornalista Maggie Jackson, autora de Distracted: The erosion of attention and the coming Dark Age (Distraído: A erosão da atenção e a próxima Idade das Trevas), explora o fenômeno da dispersão contemporânea, acentuado grandemente pela conectividade digital, chamando a atenção para aspectos da psicologia e do comportamento. Jackson argumenta que a facilidade para interagir o tempo todo tem causado graves prejuízos à sociedade, mudando os relacionamentos humanos e o próprio conceito de civilização. Recentemente, foi publicado o livro You are not a gadget (Você não é uma bugiganga). O autor, Jaron Lanier, é um típico guru do Vale do Silício. Ele participou intensamente da criação da tecnologia conhecida como “realidade virtual”. Mas hoje acha que a Web 2.0 estimula um “comportamento de turba cínica” entre os usuários. E condena a valorização da quantidade em detrimento da qualidade. Seu alvo principal são as ideias colaborativas – entre elas a Wikipedia – que favorecem o anonimato e o amadorismo.
Jaron lanier condena ideias colaborativas, como a wikipedia, que favoreceriam o anonimato e o amadorismo Lanier escreve que o mundo vive atualmente um “mal-estar nostálgico”. Segundo ele, “a cultura online é dominada por misturas triviais que existiam antes (...) e apenas se contrapõe aos reduzidos bastiões da cultura de massa centralizada (que ela tanto critica). É uma reação, sem ação. (...) Como a web está matando a velha mídia, enfrentamos uma situação em que a cultura online está devorando a sua própria essência”. John Seely Brown e Paul Duguid fazem no livro The social life of information (A vida social da informação) observações curiosas sobre a dicotomia entre o discurso triunfal da cultura digital e a realidade da interação humana, muito mais rica e complexa.
implicaÇÕes políticas
O professor de direito da Universidade de Chicago, Cass Sunstein, escreveu Republic.com 2.0, no qual estuda os efeitos
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da internet no discurso político das massas. Segundo ele, a rede, em vez de alargar as visões e estimular o debate, tende a reforçar posições já assumidas e a estimular o radicalismo, o que seria prejudicial à democracia. Ainda sobre política, saiu em 2008 The myth of digital democracy (O mito da democracia digital), do cientista político Matthew Hindman, que também é cético em relação a qualquer avanço nesse setor. Sobre as implicações nas áreas jurídica e de privacidade, um dos trabalhos de mais destaque é do professor da Universidade de Nova York, Daniel Solove, que escreveu The digital person – Technology and privacy in the information age (A pessoa digital – Tecnologia e privacidade na era da informação). Muitos outros livros publicados até agora têm títulos bastante eloquentes: É o caso de The tyranny of e-mail (A tirania do e-mail), de John Freeman; High-tech trash: Digital devices, hidden toxics and human health (Lixo high-tech: Aparelhos digitais, tóxicos escondidos e a saúde humana), de Elizabeth Grossmann. Destaca-se também From counterculture to cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth network and the rise of digital utopianism (Da contracultura à cibercultura: Stewart Brand, a rede Whole Earth, e o surgimento da utopia digital), de Fred Turner. É um interessantíssimo estudo de como uma parte dos velhos hippies dos anos 1960 adotaram os valores digitais como ideologia, subvertendo, no processo, os princípios da contracultura; Zero comments: Blogging and critical internet culture (Comentários zero: Os blogs e a cultura crítica na internet), de Geert Lovink, é sobre a falácia da participação no mundo dos blogs; e Digital barbarism – A writer’s manifesto (Barbarismo digital: O manifesto de um escritor), de Mark Helprin que, como o título indica, é um violento ataque contra a cultura digital e seus efeitos: plágio indiscriminado, roubo intelectual, fraude e banalização cultural. Num momento em que a internet ameaça vários setores da economia e as próprias relações humanas, e até alguns dos seus ex-entusiastas questionam sua viabilidade, talvez seja hora de fazer uma pausa para reflexão, como propõem os dissidentes digitais. E o Brasil não pode ignorar essa discussão por muito tempo.
Trecho
LEE siEgEL contra a máquina “O que você teria dito se eu tivesse afirmado, 10 anos atrás, que logo haveria um tempo em que qualquer um com algo a dizer, não importa quão vulgar, abusivo, ou mesmo caluniador, seria capaz de transmiti-lo em palavras para milhões de pessoas? Anonimamente e com impunidade. Como você teria reagido se eu tivesse dito que mais mudanças culturais drásticas estavam a caminho? A saber: editores poderosos e experimentados de jornais se acovardando aos pés de dois caras de vinte e poucos anos, obscuros e desqualificados, apavorados que esta dupla pretensiosa possa chamá-los de “babacas” em um novo site de fofoca intitulado Gawker. Um obscuro ajudante de advogado em Sacramento, Califórnia, que geralmente comete erros gramaticais crassos no seu blog, tornando-se uma das pessoas mais temidas na vida literária norte-americana, devido à sua habilidade para ridicularizar e insultar figuras do meio intelectual. Garotos de ensino médio chamados de “administradores” editando verbetes em uma enciclopédia pública, verbetes que qualquer um, usando um pseudônimo, poderia mudar do jeito que ele ou ela quisesse. Pessoas distribuindo seus pensamentos para grande número de leitores sem se importar com a verdade ou a exatidão do que estavam escrevendo; pessoas que poderiam voltar e mudar o que escreveram se fossem contestadas – ou mesmo apagar, de forma que nenhum registro do que eles escreveram existiria. Você teria rido de mim, tenho certeza. Talvez você tivesse pensando que eu estava, de propósito e de
forma grotesca, evocando Stalin, que reescreveu a história, fez acusações anônimas, contratou e promoveu picaretas e impostores, arruinou reputações como quis, e apagou de uma hora para outra colaboradores indesejáveis de documentos e fotografias. Você poderia ter dito: ‘Onde você está querendo chegar ao afirmar que nossa democracia está se movendo em direção a um tipo de stalinismo? Que vulgaridade, comparar a democracia americana ao seu oponente dos velhos tempos, usando inversões primitivas. Você é algum tipo de regressão da Nova Esquerda antiamericana?’ E se eu tivesse persistido, para sua grande irritação, e dito que qualquer um que tentasse criticar um ou outro aspecto dessa situação seria imediatamente acusado de ser antidemocrático, elitista, ameaçado pela mudança ou pateticamente fora do seu tempo? Se eu tivesse dito que, de fato, por causa desses riscos, pouca gente fazia alguma crítica? O evangelho da popularidade alcançou tal ponto nesse mundo de cabeça para baixo, que qualquer um, poderoso ou renomado, torna-se um bajulador diante da possibilidade de ser impopular. O que tenho descrito é o mundo surreal da Web 2.0, onde a retórica de democracia, liberdade e acesso é usualmente uma folha de parreira para uma retórica antidemocrática e coercitiva; onde ambições comerciais se disfarçam na pele de cordeiro dos valores humanísticos; e onde, ironicamente, a tecnologia fez voltar o relógio, do prazer desinteressado da arte popular e erudita, para uma cultura primitiva de interesses próprios, toscos e avarentos. E mesmo assim, essas drásticas transformações são difíceis de serem percebidas e entendidas. A internet é um universo paralelo que raramente se cruza com outras esferas da vida, fora dos seus parâmetros defensivos.” Against the machine – Being human in the age of the electronic mob, de Lee Siegel, traduzido por Marcelo abreu
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divulgação
Visuais RODRIGO BRAGA Um modo de interpretar as dores da guerra
1 vídeo Braga utilizou 300 ml do próprio sangue para tentar expressar a estupidez e o sofrimento vivenciados na guerra
Novo trabalho do artista procura transpor para fotos, vídeos e objetos a experiência de quem combateu e morreu em batalhas texto Olívia Mindêlo
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da memória que todos preferiram esquecer, ficaram, assim, menos a cargo das famílias do que dos livros e museus que se propagaram nas décadas seguintes pela Europa. O In Flanders Fields Museum, na Bélgica, é um desses exemplos. É dele a tarefa de contar, para os seus mais de 200 mil visitantes anuais, o que aconteceu com a pequena cidade belga de Ypres (ou Ieper), entre os anos de 1914 e 1918: o extermínio de quase meio milhão de soldados e a destruição quase completa de sua arquitetura secular, erguida na Idade Média. Hoje totalmente reconstruída, a cidadezinha de pouco mais de 30 mil habitantes respira em cada esquina as marcas deixadas pela Primeira Guerra. É desse contexto que acaba de sair o mais recente trabalho do artista plástico Rodrigo Braga, 34, convidado para participar, no museu, de um projeto de
Mais uma vez o artista usou o próprio corpo como vetor principal de linguagem, procurando se vestir da pele do outro
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Para argumentar que as primeiras décadas do século 20 foram marcadas por um profundo empobrecimento da experiência humana tradicional, passada de geração a geração, Walter Benjamin dá o exemplo da Primeira Guerra Mundial. Na visão do filósofo e sociólogo alemão, exposta em um ensaio de 1933, a guerra emudeceu o homem, deixando-o mais pobre “em experiências comunicáveis”. A narrativa do horror e da desmoralização nos campos de batalha, bem como a reconstrução
residência artística (o seu primeiro no exterior). O resultado de dois meses de imersão nessa história culminará em exposição individual no local — ficará em cartaz de julho a outubro deste ano. Objetos, vídeos e fotografias – técnica mais recorrente na obra desse artista que se considera pernambucano, apesar de manauense – perpassam a montagem da individual, batizada de More force than necessary (em português, “Mais força do que o necessário”). “Esses trabalhos serão mostrados no coração do museu, de modo que todos os verão, o que dá uma média de 70 mil visitações no período”, afirma o curador Jan Dewilde. Desde 1999, ele convida um artista diferente por ano para participar do projeto de residência no In Flanders Fields Museum – inaugurado em 1998. Rodrigo é o primeiro brasileiro
a participar da iniciativa, que já recebeu jovens criadores do Reino Unido, da Nova Zelândia, de Israel, da África do Sul e da própria Bélgica. A ideia de convidá-lo ocorreu há quatro anos, depois que o curador visitou a sua individual no projeto Portfólio, do Itaú Cultural, em São Paulo. “Fiquei impressionado com o trabalho dele. Fui confrontado com obras muito boas e originais. É um artista que está lidando com tópicos importantes para todos nós: a morte, o ciclo da vida, a compaixão, a natureza e por aí vai”, atesta Dewilde, cuja preferência, na iniciativa, é dar oportunidade a jovens artistas que não necessariamente trabalhem com o mote da guerra – assunto, aliás, tratado sob diversas perspectivas e maneiras ao longo da história da arte.
PeSQUiSA de cAMPo
Vivendo no Nordeste brasileiro, Rodrigo Braga nunca havia trabalhado diretamente com o tema. “No começo, o convite me assustou, mas depois achei muito legal o projeto. Fiquei seduzido com a ideia de que os museus históricos têm mais público do que os de arte contemporânea, aqui colocada estrategicamente no meio de uma exposição sobre a Primeira Guerra”, conta ele, que esperou chegar à Bélgica para começar a pensar no trabalho. No imponente prédio do In Flanders Fields Museum, o artista conta que mergulhou inicialmente em uma fase exaustiva de pesquisa no acervo de documentos e objetos, alguns inacessíveis ao público. Também rodou a cidadezinha belga com uma bicicleta emprestada, visitando monumentos, cemitérios, museus e espaços que testemunham um passado nebuloso ainda presente na cultura de Ypres, depois de ter sido detonada pelas tropas alemães. A impressão de Rodrigo é de que os soldados entraram na guerra desnorteados, sem ideia do que seria um campo de batalha. Foram persuadidos e acabaram exterminados. Tal leitura serviu como um dos substratos para sua construção poética, cuja busca central foi a apropriação
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do sentimento dos combatentes, sob a perspectiva da fragilidade humana, e a reconstrução do significado social da guerra, explorando, por exemplo, a exacerbação da masculinidade, representada por ele através de signos fálicos. O processo de imersão se mostrou fundamental para o trabalho. Tendo novamente o próprio corpo como vetor principal de linguagem, Rodrigo procurou se vestir da pele do outro, distanciando-se mais da
Visuais introspecção psicológica e autobiográfica que marcou sua obra até aqui. Não que questões subjetivas não tenham sido exploradas, mas elas se processam de forma distinta. Nesse caso, o artista encarna um personagem, o “soldado neutro e ordinário”, para o qual mandou confeccionar um uniforme de juta, mesmo tecido utilizado nos sacos de areia amontoados nas trincheiras. O personagem não tem país nem identidade. Se no novo trabalho suas ações performáticas não procuram diretamente “exorcizar algo de si”, como já escreveu o curador Gilberto Habib Oliveira ao se referir ao artista, as obras que resultam dessa vivência também não são menos perturbadoras. Elas se expressam sob a presença de um corpo que apresenta mais uma vez em imagens fortes e viscerais, com intensidade semelhante à produzida na polêmica série fotográfica Fantasia de compensação (2004), na qual
o artista se “transforma” em um cão rottweiler. Em uma das suas novas cenas, Rodrigo aparece com o corpo ensanguentado contra uma árvore. O líquido vermelho da encenação não é tinta, mas o sangue dele. Com ajuda de um médico, ele tirou da veia uma bolsa de 300 ml e, na sequência, derramou sobre a cabeça. Os vídeos da mostra também buscam refletir a estupidez e o sofrimento vivenciados na guerra. Em um deles (Sandbag soldier stories), o artista executa gestos repetitivos, como tomar um prato de sopa sem sopa e rolar de uma montanha cinco vezes consecutivas. Em outro, ainda na pele do combatente, fita um soldado-boneco do museu durante três minutos, sem piscar. É impossível não lacrimejar. “Tentei fazer como aquela brincadeira de criança, para ver até quando o outro consegue ficar sem piscar”, conta Rodrigo, que pretende exibir algumas dessas obras no Brasil. Ainda que todo o conjunto de More force than necessary faça muito mais sentido no contexto europeu, é difícil qualquer cidadão do mundo passar incólume às suas obras. Afinal, são trabalhos contaminados com uma experiência de dor que, se foi silenciada pelos que a viveram, como diz Benjamim, encontra na arte um novo significado. Um sentido expresso, recorrendo novamente às palavras do crítico Gilberto Habib de Oliveira, em “um corpo que fala o discurso que é grito”.
@ continenteonline Assista aos vídeos e veja as obras do artista no site www.revistacontinente.com.br
O livro da arte
ARTISTAS DE A A Z Em 1994, quando foi editado pela inglesa Phaidon, The art book certamente se constituía em um produto de primeira necessidade para leitores em busca de livros de consulta. A chegada do título O livro da arte (Publifolha) ao Brasil – quando há uma grande disponibilidade de bons títulos sobre o assunto no país e arquivos virtuais de textos e imagens sobre obras de arte e artistas – não apresenta o mesmo vigor daquele lançamento dos anos 1990. Apesar disso, a publicação não deixa de ser oportuna em duas situações. Primeira, para aqueles que estão se iniciando neste campo. Segunda, por uma leitura diferenciada da história da arte. Essa leitura não diz respeito à disposição dos artistas em ordem alfabética, classificação meramente lexical, mas a uma indicação de familiaridade – ou diálogo – entre determinado artista e outros que compõem o grande painel da história da arte. Essa classificação foge tanto à catalogação cronológica quanto por escolas e movimentos. Ainda que uma sugestão breve e ligeira, ela suscita no leitor o interesse por criar as próprias analogias, grupos de afinidades no campo artístico. Assim, por exemplo, se o leitor aprecia a obra extremamente detalhista e calcada nos ideias clássicos de beleza do pintor novecentista Alma-Tadema (foto), há a indicação de correspondência entre a sua obra e as de Carpaccio, Leighton, Poussin e Waterhouse, seja pelo caráter preciosista de suas composições, pelas referências ao classicismo ou, neste caso específico, pela aproximação com o movimento artístico inglês conhecido como pré-rafaelita. Para cada artista (do medievo aos nossos dias) é dedicada uma página, na qual há a reprodução de uma de suas obras, com especificações técnicas, apreciação crítica e descritiva e a indicação de correspondência com outros artistas catalogados. No final, glossários de termos técnicos e movimentos artísticos e uma relação de museus e galerias. ADRIANA DÓRIA MATOS
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marc riBoud/divulgação
1 GeoMetRiA Janelas de liu li chang, rua dos antiquários, em Beijing, onde os chineses tinham suas jóias confiscadas pelo Estado, durante a revolução cultural
Marc Riboud — Fotográfo
toRRe MAlAkoFF
T. 3184.3182 Até 18 Jun
fOTOjORnAlISmO O registro humanista de marc Riboud
na mão em protesto contra a Guerra do Vietnã. A imagem expressa a firmeza e a serenidade do gesto em si, revelando a incumbência fotojornalística de ser “testemunha ocular da história”. Presidente da Magnum nos anos 1970, foi parceiro e amigo de Henri CartierBresson, fotógrafo do qual se aproximou Mostra traz seleção de 50 anos de carreira do após sair da Resistência francesa. Riboud fotógrafo francês que, ao lado de Cartier-Bresson e realizou diversas viagens por países Robert Capa, integrou a equipe da agência Magnum asiáticos e africanos, cobrindo conflitos e guerras do Oriente Médio e Afeganistão, texto Raquel Monteath além da independência na Argélia e nas colônias francesas da África “negra”, na década de 1960, documentada no livro temos na composição fotográfica No futuro fotógrafo, isso se expressaria Algérie, indépendance. uma construção similar a de um na capacidade de registrar os momentos Com cerca de 60 fotografias, poema– seus elementos estão ali, cada com exatidão. Um deles foi em 1953, em a maioria em preto e branco, a um em seu devido lugar, conversando foto célebre, publicada na capa da revista retrospectiva Marc Riboud – Fotógrafo traz com nossas referências conscientes e Life, de um pintor equilibrado na Torre a delicadeza documental do fotógrafo subconscientes. O conflituoso século Eiffel. O Champs de Mars ao fundo figura nascido em Lyon que, certa vez, 20 rendeu a Marc Riboud muitos como um componente secundário, diante afirmou: “Não procuro o espetacular. desses estados mentais, fundamentais da irreverência com que o trabalhador é O que me motiva é a surpresa”. à formação de um olhar apurado no flagrado em seu ofício. O fotógrafo veio ao Brasil em 2009, elemento humano, sendo a máquina “Fotógrafo polígrafo” foi a expressão onde registrou elementos humanos e fotográfica sua ferramenta para capturar sugerida por Willy Ronis – que retratou estruturais da Favela da Maré — RJ. O os contrassensos vivenciados na o cotidiano pós-guerra em cidades resultado da visita e retratos da Cidade realidade pós-guerra. francesas – para referir-se aos fotógrafos Proibida (China) configuram a seleção Aos 14 anos, Riboud ganhou uma de inspiração humanista, que acabam de fotos coloridas da mostra. No seu câmera de seu pai. Ao invés de se por minutar o tempo histórico através encerramento (18/6), haverá um debate dedicar ao universo imagético, foi de imagens peculiares. Assim ocorre com a participação da professora Geórgia estudar engenharia mecânica, o que à clássica foto de Riboud da jovem Quintas e do fotógrafo Alexandre Belém, lhe proporcionou planos mentais ativista Jane Rose Kasmir combatendo com mediação da fotógrafa Renata Victor, simétricos, precisos como equações. as baionetas dos militares com uma flor para discutir a produção de Marc Ribaud.
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pintura pragmÁtica
matéria corrida José cláudio
artista plástico
A rigor, toda arte interessa, nem que seja para uma investigação policial, como qualquer outro objeto, um fio de cabelo ou impressões digitais, por se constituir uma evidência, um ente real e, somente pelo fato de existir, já registra um momento de nossa vida, de nossas preferências, coletivamente falando, do mundo social em que estamos inseridos, o que grassa em nosso pensamento estético, o que se considera aqui o mais belo, o que encontra repercussão, o que nos toca mais fundo, chegando até o fundo do bolso, isto é, o mais vendável. Não é o pintor consagrado que impõe seus valores do alto mas, muito mais, os pintores que começam a consolidar a carreira, os que não desistiram, os que não derivaram para outras atividades correlatas, os que ainda estão mais perto do chão, os que estão fazendo tem-tem e vão indicando o gosto local, dizendo qual o produto
Agora, hoje, uma coisa é certa: o indivíduo tem que criar a sua própria pintura, fazer render o capital que lhe foi confiado de melhor aceitação no mercado que merece pois se invista nele, sem nenhum preconceito e, sob a espécie de esperteza ou tino comercial, com uma grande percentagem de inocência, menos mandantes do que mandados. Esse é o caldo, o humo, propício ao, ou o próprio, genius loci (gênio do lugar, em latim), lembrado por Walter Zanini a respeito da pintura daqui do Recife, de que ninguém é dono em particular; e para isso, para a formação desse gênio tutelar, concorrem mesmo os artistas que se perderam pelo
caminho, que não chegaram a vir à tona, os dissidentes, os que seguiram ondas passageiras ou terminais e por acaso tenham jogado alguma semente que amanhã, de acordo com as circunstâncias, pode germinar, sem que se saiba de pronto a origem. O que acontece é que a gente já viu tanta coisa, na idade provecta a que chegamos, que percebe o quão infrutífero e pretensioso é ficar discutindo o que é certo ou errado, o que é bom e o que é ruim, o que é ético ou aético, se é que existe isso ante a variedade dos seres da natureza. Desejamos mais é que se exprimam, botem para fora os seus demônios, até para livrar-se deles, venham de onde vier, que ninguém aprendeu por si olhando pela janela (Lionello Venturi). Copiem, imitem, destorçam, modifiquem até por incompetência, apropriem-se, pratiquem a antropofagia como aconselha Oswald, façam lá o que
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reprodução dos quadros: maíra gamarra
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1 sAndro mAciel Olinda. acrílica sobre tela, 80x120cm, 2010
3 Antônio mendes Banhistas. acrílica sobre tela, 80x120cm, 2010
2 sAndro mAciel Amigas. acrílica sobre tela, 80x80cm, 2010
4 Antônio mendes Maria Farinha. acrílica sobre tela, 70x100cm, 2010
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bem quiserem nesse valetudo pela sobrevivência. Não esmoreçam não. Assim foram feitas as grandes escolas de pintura, da Renascença na Itália à Escola de Paris sem falar de outras cujo desenvolvimento milenar não permite distinguir autorias individuais. Agora, hoje, uma coisa é certa: o indivíduo tem que criar a sua própria pintura, fazer render o capital que lhe foi confiado, como na parábola dos dez talentos ou das dez minas. Eu pretendia escrever sobre as mostras de Fernando Areias no MAC, Museu de Arte Contemporânea, de Olinda e Antônio Mendes e Sandro Maciel no restaurante Villa-Cozinha de Bistrô, Espinheiro, Recife, e me passaram pela telha esses comentários quem sabe descabidos. Peço pois ao leitor para situá-los, a esses pintores, distribuindo o mérito de cada um, desprezando essas minhas lérias, aqui cometidas com
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a melhor das intenções, ou seja, divulgar e compreender tais importantes eventos. Tem uma coisa que admiro em todos os artistas em questão: o interesse pelo Brasil. O grande pintor americano Jackson Pollock disse certa vez que não acreditava na existência de uma arte americana assim como não existia uma matemática americana. Eu hoje acredito que existem várias matemáticas, de acordo com o lugar, até mesmo aqui dentro do nosso Pernambuco: meu sobrinho Evson constatou que hum mil reais em Afogados da Ingazeira onde mora dura mais do que aqui no Recife. Termino com os ecos de uma crônica do meu guia espiritual Alex, José de Souza Alencar, minha oração matinal, Jornal do Commercio, Recife, hoje 30/4/10, enquanto escrevo estas linhas: “E caso se veja refletido no espelho (...) é preciso não perder o realismo, mas sempre acompanhado do perdão”.
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5 fernAndo AreiAs Pássaro pintor II. acrílica sobre tela, 80x120cm, 2009 6 fernAndo AreiAs Praia V. acrílica sobre tela, 72x150cm, 2009
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Rúbem Donato/Divulgação
Diego Pisante/Divulgação
Palco COLETIVO ANGU Teatro que se diferencia pela urgência do assunto
Após sete anos de estrada, três peças no repertório, o grupo consolida linguagem e linha estética próprias, ganhando reconhecimento nacional texto Clarissa Falbo
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“É lindo!”, entre todas as críticas e elogios que o ator Fábio Caio esperava ouvir depois da estreia da peça Angu de sangue (2004), esse era o único comentário inesperado. “A gente se perguntava se as pessoas iam sair de casa para assistir a um espetáculo com esse nome indigesto”, confessa Fábio. A encenação, baseada no livro homônimo do autor pernambucano Marcelino Freire, trata de violência urbana, miséria e outros temas estampados nas manchetes dos jornais. Durante os dois meses da primeira temporada, as arquibancadas do teatro Hermilo Borba Filho, no Recife, ficaram cheias. Para Marcondes Lima, diretor da montagem, um novo filão foi descoberto. “O diferencial do nosso teatro é a urgência dos assuntos”, afirma. Hoje, os integrantes do grupo – que agora se chama Coletivo Angu de Teatro – comemoram. São três peças no repertório em apenas sete
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ação
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ópera
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angu de sangue
em linguagem de fotonovela, o dilema do menino Pedro que quer ser Petra o conto Muribeca, de marcelino Freire, abre a primeira peça do Coletivo angu
para a primeira montagem, com a transposição para o palco dos contos de Marcelino Freire no formato de monólogos. A ausência de contracena entre os atores facilitava o processo de ensaio, já que não se fazia necessária a presença de todos para a passagem de cada quadro. Marcelino acompanhou de perto a preparação para a peça e pediu atenção especial à oralidade do texto. “Os movimentos ficaram em segundo plano, o que nos interessava era a projeção da voz. Trabalhamos com marcas mínimas, atores parados e até mesmo de costas
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anos, o reconhecimento nacional e a consolidação de linguagem e linha estética próprias. Mas há ainda muito a conquistar, eles sabem. Por não terem uma sede, é nas mesinhas da praça de alimentação de um shopping no Centro do Recife que se reúnem para sincronizar agendas e decidir novos projetos. Os ensaios não têm local fixo e todo o elenco está envolvido em trabalhos paralelos para se manter. “É normal o ator participar de mais de uma montagem ao mesmo tempo, mas nós chegamos à situação extrema de sermos todos membros atuantes de outros grupos de teatro da cidade. Somos um coletivo de coletivos”, afirma Vavá Paulino, ator que também desempenha a função de gestor público, como diretor do Centro Cultural Apolo-Hermilo, e passou a fazer parte do Coletivo Angu em 2007. O inconveniente profissional influiu decisivamente nas escolhas cênicas
A pesquisa textual do coletivo de teatro se concentra em autores pernambucanos contemporâneos para a plateia, sempre com a valorização do texto falado e cantado”, conta Marcondes Lima. A cena final – único momento em que há interação entre o elenco – é uma metalinguagem das reações de espectadores ao assistirem a um filme experimental. A projeção faz referência ao ator Roberto de França, o Pernalonga do grupo Vivencial Diversiones, a quem o livro é dedicado.
UniVeRSo GAY
Em Ópera, a pesquisa de linguagem do Coletivo Angu tem continuidade com a escolha de outro texto escrito por um autor pernambucano contemporâneo. Desta vez, foram as palavras de Newton Moreno que inspiraram a montagem. “Newton tinha um livro ainda não publicado e decidimos usá-lo para um novo espetáculo. Fizemos Ópera em 2007 e até hoje a obra textual continua inédita”, revela Tadeu Gondim, ator e produtor do Coletivo. De acordo com
Marcondes Lima, o que o grupo faz não é uma adaptação dos textos literários: “Ela pressupõe ajuste, descarte do que não é adequado. O que fazemos é uma transcriação”, esclarece. Esse processo para o livro de Newton Moreno aconteceu a partir da gravação dos exercícios de improviso baseados no texto com transcrição das falas improvisadas e criação de um novo texto. Newton acompanhou tudo e autorizou as modificações propostas. A peça é um recorte do universo gay em citações bem-humoradas, poéticas e comoventes. Se em Angu de sangue o trabalho foi centrado na voz e a encenação estruturada em monólogos, em Ópera, a experimentação do grupo enveredou pelo movimento e pela dinâmica da contracena. A metalinguagem do cinema, na cena final de Angu, foi retrabalhada para situar no tempo a sequência dos quadros de Ópera. As cenas adotam o formato da novela de rádio, da fotonovela e da novela de TV, e é na cronologia desses produtos culturais que o tema do homossexualismo é apresentado com inventividade e primor artístico. A última montagem realizada pelo Coletivo Angu de Teatro foi Rasif – Mar que arrebenta (2008). A parceria com Marcelino Freire foi renovada e o autor escreveu contos novos especialmente para a peça. Os textos iam sendo escritos ao longo dos ensaios e o livro de mesmo nome foi lançado na época em que o espetáculo estreou. Elementos já utilizados nas produções anteriores voltaram a aparecer nesse espetáculo. O artifício da projeção, por exemplo, usado ainda de forma tímida em Angu de sangue, torna-se um dos aspectos centrais de Rasif, transmutado nos videocenários da montagem. O diálogo entre as peças do Angu demonstra a trajetória evolutiva da pesquisa estética realizada ao longo dos anos. No momento, o Coletivo está em período de entressafra entre os trabalhos principais e dá andamento ao projeto Curta Coletivo, encontros mensais com grupos convidados, com apresentação de cenas curtas e números improvisados. O próximo Curta Coletivo está previsto para o fim deste junho e deve contar com a participação da Trupe do Barulho, no bar Casa de Bamba, localizado no bairro da Torre, zona oeste do Recife.
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degustadores o que nos instigam o olfato e o paladar
Enquanto a maioria se satisfaz em deliciar-se com alimentos e bebidas postos à mesa, há os que se especializam em prová-los e aprová-los para consumo texto Flávia de Gusmão
na hipótese de não termos sido dotados de olfato e paladar, o que mudaria nas nossas vidas? Se chocolate e papelão exercessem sobre o nosso nariz e boca rigorosamente o mesmo efeito, a vida sobre a Terra seria a mesma, tal qual a conhecemos? “Para começar, acredito que praticamente resolveríamos o problema da obesidade. Precisaríamos produzir muito menos alimentos do que hoje, uma vez que a humanidade comeria para suprir as necessidades básicas. Não mais seríamos guiados pelo prazer, mas pela funcionalidade. O mercado da gastronomia possivelmente não existiria, pois todo ele está voltado principalmente para esses dois sentidos”, opina a nutricionista Débora Wagner. Ancorado nas sensações de prazer que o olfato e o paladar enviam para o cérebro, esse é um mercado que precisa de sentidos aguçados em suas linhas de produção. Enquanto não for criada uma máquina que consiga conjugar as percepções de aroma e sabor e interpretá-las corretamente dentro de uma gama de associações satisfatórias e até afetivas, papilas gustativas e células olfativas ainda são a melhor bússola. Há 15 anos como mestre cervejeiro da Ambev, o caruaruense Eduardo Tabosa, 37, ouve a mesma piada, repetidas vezes, sempre girando em torno da delícia que deve ser a sua atividade profissional. Nem tanto quanto muitos fantasiam. É verdade
que Tabosa precisa fazer diariamente algo que só nos permitimos durante o fim de semana: tomar uma cervejinha. Durante um dia inteiro de trabalho, Tabosa realiza pelo menos 10 provas da bebida favorita entre os brasileiros, mas sorve apenas 30 ml de cada vez. No final da tarefa, ele terá bebido o equivalente a uma latinha.
A associação que se faz entre uma substância aromática com alguma fruta, ou flor, chama-se etiqueta semântica Algumas regras norteiam essas degustações. Elas não podem ocorrer, por exemplo, depois das 14 h, para não interferir no ato de dirigir. Perfumes fortes, café e, claro, cigarros estão banidos nas horas que antecipam a prova. Nem todas as etapas pareceriam necessariamente agradáveis para o público leigo. Cabe ao mestre cervejeiro não apenas provar a bebida em sua plenitude, mas também em processo de declínio. Cervejas com prazo de validade expirado também são degustadas para que se possa avaliar se o envelhecimento se deu dentro dos padrões esperados. Cada um dos ingredientes que vai compor a bebida, bem como as diversas fases da fabricação são sensorialmente
avaliados. “A água, por exemplo, que muitos acreditam insípida e inodora nem sempre se apresenta dessa forma. Precisamos verificar sua acidez e adstringência.” Menos inócua do que a prova da água é a degustação da diatomita, ou terra infusória, um mineral usado no processo de filtração cujo sabor pode ser extremamente desagradável.
SoB A Lei De BAco
Ao contrário de um winemaker, que determina os tipos de uva e as proporções que comporão determinado vinho, o mestre cervejeiro trabalha como um dedicado “cozinheiro” que observa a transcrição rigorosa da receita, sem alterar quantidades, métodos de preparo ou ingredientes. Com apenas 22 anos, a enóloga Gabriela Zanatto Jornada move-se com naturalidade no mundo do vinho. Afinal, nascida e criada na cidade de Bento Gonçalves, no Vale dos Vinhedos (RS), ela é mais uma descendente dos primeiros imigrantes italianos que colonizaram aquelas terras e trouxeram com eles o gosto pela bebida e os segredos da sua fabricação. “O fato de ter nascido e me criado em uma região vitivinícola colaborou para a escolha da minha profissão. Além disso, minha família por parte de mãe é de tradição vitivinícola, com uma empresa muito conhecida no norte da Itália, a Zenato”, explica Gabriela, que começou a
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divulgação
maíra gamarra
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trabalhar aos 14 anos e hoje, além de enóloga, é relações públicas da Vinícola Miolo. Num universo ainda predominantemente masculino, Gabriela sente-se à vontade, mesmo sendo minoria: “Creio que existam pessoas, independentemente do sexo, com maior aptidão e sensibilidade para realizar a degustação de vinhos que outras, porém todos podem se aperfeiçoar e, com treinamentos constantes, formar uma ‘memória olfativa’ que nos permita identificar as substâncias através dos sentidos”, afirma. Como enóloga, Gabriela realiza degustações a partir da uva, antes mesmo de ser colhida para a vinificação. É justamente essa sensibilidade na degustação da uva que vai definir o ponto exato da colheita, quando o fruto estiver perfeitamente maduro. Depois disso, as provas de mostos (suco da uva, antes da fermentação alcoólica) e vinho são diárias. “Existem horários indicados para as degustações técnicas, o ideal é que elas aconteçam no final da manhã, entre 10h ou 11h, ou no final da tarde, entre 16h e 17h. As degustações técnicas realizadas na vinícola não são acompanhadas nem de alimentos, nem mesmo de água, para evitar ao máximo que
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A relação afetiva de Vitória Barros com o leite terminou influenciando a criação de sua marca de queijos agentes externos interfiram na nossa degustação”, explica a enóloga. Para manter a qualidade técnica e o equilíbrio das avaliações, o vinho sorvido não é deglutido. Um pouco do líquido passeia por toda a boca para se certificar de ter atingido todos os pontos de sensibilidade. No primeiro gole, aspira-se também um pouco de ar para provocar uma maior liberação dos aromas, em seguida, este vinho é jogado fora. “Degustamos muitos vinhos por dia e nosso julgamento poderia ficar prejudicado em certo momento caso não fizéssemos o descarte”, diz. O que mais parece impressionar os não iniciados nas degustações de vinhos é a associação que os experts fazem da bebida com uma gama de aromas que, a princípio, nada têm a ver com a uva. “Na verdade o que se faz é uma relação de determinada substância aromática com alguma
fruta, flor ou especiarias que conheçamos. Isso se chama etiqueta semântica. Seria muito complicado se, ao sentirmos determinados aromas, disséssemos frases como: ‘Lembra muito o acetato de isoamila’, poucos saberiam que se trata do aroma da banana, ou ainda remetendo ao diacetil, que é o aroma de manteiga. Surgem, então, as relações. O olfato representa de 50% a 60% da análise sensorial de um vinho, e os mais de 500 mil aromas que o nosso cérebro consegue armazenar jamais desaparecerão da nossa memória, a não ser por um trauma, ou patologia. A dificuldade está justamente em lembrar-se de todos os aromas no momento da degustação, daí a importância do treinamento”, conclui.
SABoR coMo iScA
A indústria de alimentos e bebidas está sempre em busca do “novo consumidor”, daquele que ainda não foi conquistado através do paladar. É nesse vácuo que a marca cearense de cachaça Ypióca acaba de lançar o Ypióca Guaraná, voltado para um público mais jovem, a partir dos 25 anos. “Dificilmente, o público mais jovem consumiria um destilado mais forte. A iniciação nesse universo se dá normalmente
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pelos destilados saborizados, puxando mais para o doce, com maior suavidade e menor teor alcoólico, como é o caso do Ypióca Guaraná, com 15%”, explica Aline Telles, diretora de marketing da empresa. Cabe ao químico industrial Demóstenes Castro, 62 anos, como a pessoa responsável pelo Controle de Qualidade e Desenvolvimento de Novos Produtos, colocar olfato e paladar para descobrir “aquele” sabor que conquiste novos adeptos. “Para lançamento de um produto novo no mercado, primeiramente, são executadas análises de várias matérias-primas que possam fazer parte das formulações. Em seguida, são feitas várias delas, seguidas de degustações para escolher duas ou três que o laboratório ache adequadas para serem provadas em ambiente externo ao laboratório. De posse das formulações escolhidas, a empresa contrata o serviço de empresas especializadas em análises sensoriais e/ou faz degustações com grupos de consumidores que se encaixem no perfil do tipo de bebida a ser lançada no mercado”, explica Castro. Tudo começa com a escolha da matéria-prima, nesse caso o fruto do guaraná, que vai se misturar à cachaça fabricada pelos cearenses. Fazer o
equilíbrio de sabores (ácido, doce, amargo), o equilíbrio dos aromas (álcool – frutado ácido) e considerar os costumes regionais em relação a sabores são metas importantes aqui. “O nordestino gosta da bebida doce; o paulista consome bebidas amargas; o nortista aprecia bebidas com gosto de ervas”, explica Demóstenes Castro. “A Ypióca Guaraná atendeu ao seguinte cronograma: primeiro veio a fase de escolha e análise da matéria-prima, que durou três meses; depois vieram as formulações no laboratório – um total de 32 praticadas em oito meses para que fossem escolhidas três delas para degustação fora do laboratório; por fim, degustações para escolha da formulação a ser utilizada, que duraram outros três meses”, completa o químico.
GUiADoS PeLoS SentiDoS
A paixão por um determinado sabor pode redefinir os rumos de uma pessoa. Foi assim com o cineasta e publicitário Leonardo Lacca e também com a engenheira-química Vitória Barros. A certa altura de suas vidas, com trajetórias profissionais aparentemente já traçadas, eles resolveram transformar o que era simplesmente um hobby em negócio. Foi assim que nasceram
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cUiDADoS
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ceRVeJeiRo
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HÁBito
segundo a enóloga gabriela Zanatto, as degustações técnicas são realizadas com atenção para evitar a interferência de agentes externos eduardo tabosa realiza cerca de 10 provas da bebida por dia, sorvendo apenas 30ml, o que totaliza uma latinha por expediente tomar café sem açúcar facilitou a percepção de leonardo lacca a respeito do real sabor do grão de café e suas variadas origens
as empresas Castigliani Cafés Especiais e Produto da Fazenda. Curiosamente, quando procuram se lembrar de quando a paixão por cafés e queijos começou a se instalar, ambos, Leonardo e Vitória, vão buscar na infância suas primeiras lembranças gustativas.“Tinha uns oito anos, estávamos hospedados num hotel fazenda em Taquaritinga do Norte e num bingo eu ganhei um pacote de café 100% arábica em grãos. Acho que minha relação com o café começou aí”, afirma Lacca. “Sou filha de fazendeiro e sempre tive contato com o leite. Desde os três anos de idade, ir com meu pai para o curral tomar leite tirado na hora, direto para o copo, é uma recordação de grande felicidade. Em casa, sempre tinha coalhada, doce de leite e queijo de manteiga feitos pela minha mãe e eu gostava muito”, compartilha Vitória. A partir daí, as histórias ganham colorido particular. Em idas frequentes a São Paulo, Lacca começou a conhecer o que era um “espresso” tirado à perfeição. O hábito de sempre tomar café sem açúcar facilitou sua percepção a respeito do real sabor do grão e suas variadas origens. A vontade de fazer o curso de barista surgiu mais tarde, como hobby, movida por uma necessidade de entender melhor o mundo do café. “Fui com Nara Oliveira, minha namorada e sócia, em 2006, para São Paulo fazer o Curso de Formação de Baristas do Centro de Preparação de Café, vinculado ao Sindicato da Indústria de Café do Estado de São Paulo (Sindicafé-SP).” Depois do curso e de perceber a carência de cafeterias de qualidade no Recife, eles começaram a pensar
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Karina Freitas
na possibilidade de abrir a Castigliani, com um perfil diferente do que já havia aqui. “Queríamos servir um café de alta qualidade (com grãos 100% arábica, categoria chamada gourmet ou especial) e receitas seguindo a tradição italiana. Mas, para provar se realmente queríamos nos tornar baristas, decidimos fazer uma experiência. Montamos uma cafeteria tipo quiosque num congresso de estudantes de arquitetura. O resultado foi muito bom, as pessoas adoraram os nossos cafés, elogiaram bastante. Esse foi um passo fundamental para decidirmos abrir a cafeteria”, resume Lacca. Confiantes na decisão, voltaram a São Paulo, visitaram mais cafeterias e terminaram por escolher o café Suplicy como fornecedor dos grãos
Cardápio para o novo negócio. “Fizemos uma especialização com eles e criamos o nosso próprio blend, a mistura dos grãos de origens e torras diferenciadas. Em abril de 2007, abrimos a Castigliani Cafés Especiais, no hall do Cinema da Fundação, no Derby”, pontua. “Fiz o curso de engenharia química com especialização em alimentos, mas ainda não tinha pensado em laticínios. Também me formei em administração de empresas e trabalhava com recursos humanos. Nas minhas férias, fui a Minas Gerais fazer um curso de fabricação de queijos para padronizar o que era feito na fazenda do meu pai. Foi aí, na primeira aula, que descobri a minha paixão pelo mundo dos queijos. Os mineiros não puderam ajudar muito no objetivo principal da minha ida, mas descobri minha paixão profissional e já voltei com um tanque de fabricação de queijos para 50 litros de leite. Comecei a fazer o queijo minas frescal e levei um lote para ser avaliado pelo chef de um hotel cinco estrelas, que não só aprovou com entusiasmo como já fez um grande pedido. Tive, então, que correr e formalizar a empresa que hoje, após 12 anos, fabrica mais de 40 variedades de queijos”, diz Vitória Barros.
Dieta
sensações de fome e saciedade No clássico A fisiologia do gosto, o advogado, político e cozinheiro francês Jean-Anthelme Brillat Savarin, considerado o fundador da crítica gastronômica, se esforça a cada página para entender o que leva o homem a transformar a ingestão de alimentos em algo mais do que um simples ato essencial à sobrevivência. “O paladar, como a natureza nos concedeu, é ainda aquele dos nossos sentidos que, afinal, nos oferece mais prazeres: 1) Porque o prazer de comer é o único que, tomado com moderação, não é seguido da fadiga. 2) Porque ele existe em todos os tempos, todas as idades e todas as condições. 3) Porque ele ocorre necessariamente pelo menos uma vez por dia, e pode ser repetido, sem inconveniente, duas ou três vezes nesse espaço de tempo. 4) Porque pode se combinar com todos os outros prazeres e até consolar-nos da ausência deles. 5) Porque as impressões que ele recebe são ao mesmo tempo mais duradouras e mais dependentes da nossa vontade. 6) Finalmente, porque ao comer sentimos um certo bem-estar indefinível e especial, que vem da consciência instintiva; e, pelo fato mesmo de ao comermos, repararmos as nossas perdas e prolongarmos a nossa existência.”
O dilema entre o prazer que o paladar proporciona e a escolha dos alimentos e das quantidades que nos ajudem a manter o peso disputam atualmente, ombro a ombro, um espaço na mídia. No nosso corpo, esta luta por atenção se repete. Embora o cérebro dispare tanto os comandos que indicam fome quanto os que sugerem saciedade, é muito mais difícil ignorar o primeiro e muito mais fácil driblar o segundo. Qualquer pessoa gulosa pode comprovar que não há nada mais comum do que continuar comendo, mesmo que os sinais de barriga cheia sejam facilmente perceptíveis. “Por liberar hormônios envolvidos no prazer, a alimentação gera emoções e experiências diferentes em cada pessoa, influenciando seu comportamento e sua ingestão alimentar ao longo da vida”, diz a nutricionista Débora Wagner. Partindo desse pressuposto, nosso corpo sofreria menos com o excesso de peso quanto mais fossem despertadas sensações de prazer por alimentos pouco calóricos, o que normalmente não se verifica na prática. “Até os quatro meses a percepção do sabor está limitada ao doce, único alimento oferecido, seja pelo leite materno ou outras fórmulas substitutivas. Os pais podem influenciar positivamente esta evolução a partir do momento em que estimulam a exposição aos diversos sabores, em diferentes situações e ambientes . A criança e o adulto que comem de tudo provavelmente foram expostos, de forma gradual, aos diferentes sabores, consistências e temperaturas, em diversas situações, repetidas vezes”, explica. FláviA guSmãO
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gorillaz Pequena obra-prima da arte colaborativa
Damon Albarn se estabelece como um dos grandes compositores do pós-rock e atrai uma diversidade de artistas no marcante terceiro álbum do grupo texto Débora Nascimento
Poucos artistas no mundo têm o poder de conseguir agregar em seus trabalhos a colaboração espontânea de diversos outros artistas, desde talentosos novatos a veteranos inquestionáveis. O cineasta Woody Allen é um deles. Não precisa pagar muito para conseguir uma Julia Roberts ou uma Scarlett Johansson em seus filmes. O compositor Damon Albarn é outro exemplo de autor que alcançou esse status. Num estalar de dedos, consegue cooptar as mais variadas estrelas, como Lou Reed, Mick Jones e Snoopy Dogg, que participam de Plastic beach, terceiro álbum de estúdio de seu festejado projeto Gorillaz, que completa 10 anos estabelecendo o nome “acima de qualquer suspeita” do inglês como um dos mais criativos músicos da atualidade. Aos 42 anos, Albarn, autor de pérolas do pop como Girls and boys, Song 2 e Feel good Inc, compõe como um cientista que tenta encontrar a fórmula para suprir alguma necessidade de sua área.
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1 Damon albarn O homem de frente do Blur ainda teve fôlego para criar o Gorillaz 2 animação Os integrantes da banda são identificados ficticiamente por Murdoc, Russel, 2D e Noodle
Ele continua a fazer experimentos. E muitos dão certo. Em Plastic beach, avançou no ideal da arte colaborativa que fez surgir o Gorillaz, somando cada vez mais influências musicais, e resultando num trabalho eficiente e também coerente com a intenção de desfazer o culto ao ídolo – vale lembrar que Gorillaz é a banda cartoon em que os músicos não aparecem, só os personagens 2D, Russel, Noodle e Murdoc (o desenhista Jamie Hewlett já se diz cansado de desenhá-los). No grupo, todos têm a chance de mostrar a sua importância e ninguém brilha sozinho. Um dos maiores desafios na audição de Plastic beach é definir o gênero de cada uma de suas 16 faixas, pois a mistura de estilos, instrumentos, sintetizadores e mudanças de ritmos tornam a tarefa complicada, embora divertida. O primeiro pressuposto desse disco é que parece ter sido feito para soar como um álbum conceitual, mais ou menos ao estilo de Sgt. Peppers, dos Beatles. Por isso, é bom que seja ouvido na sequência planejada. Partindo do título, já dá para imaginar qual seu ponto central. Adivinhe. A urgente questão ambiental, representada por essa “praia de plástico”, inspirada no terrível “continente de plástico” encontrado no Oceano Pacífico.
Um dos maiores desafios na audição de Plastic beach é definir o gênero de cada uma das 16 faixas O disco ativista abre com uma bela e melancólica sinfonia, executada pela britânica Sinfonia ViVA, talvez como um aviso para os dias sombrios que virão para a humanidade. Em seguida, ninguém menos que o rapper Snoop Dogg clama aos ouvintes: “Kids, geather around/ I need your focus” (“Garotos, aproximem-se, preciso de sua atenção”). O que se ouve daí em diante é um desfile de ecléticas composições, atingindo momentos brilhantes como em White flag, com a mistura de música árabe, pela Orquestra Nacional Libanesa, e o rap dos MCs Kano e Bashy. O rhythm and poetry, uma das marcas do Gorillaz, vai reaparecendo em diversos momentos com as letras e as vozes de Mos Def e De La Soul. O trabalho do Gorillaz, que cada vez mais vai deixando de ser aquela “banda cartoon”, cresce à medida do potencial de seus colaboradores. Assim
como o cubano Ibrahim Ferrer, no primeiro CD do grupo, o traquejado cantor americano Bobby Womack ocupa um espaço importante em duas faixas, no R&B Cloud of unknowing e na funkeada Stylo – single cujo videoclipe traz a atuação bem-humorada de Bruce Willis. A cantora do grupo Little Dragon, Yukimi Nagano, também registrou sua doce voz em duas marcantes canções, Empire ants (que bebe da fonte do Kraftwerk) e To bringe (lembra The Shadows). Candidata a hit do CD, Superfast jellyfish, traz no refrão a querida voz de Gruff Rhys, frontman da não menos criativa Super Furry Animals. Já as lendas vivas do Clash, o guitarrista Mick Jones e o baixista Paul Simonon (que integrou o projeto The Good, The Bad & The Queen, junto com Albarn) participam da faixa-título, que tem ares de Ennio Morricone. A dupla, a propósito, tocou em todas as músicas do show que o Gorillaz realizou em abril, em Londres e na Califórnia, e talvez aporte na primeira apresentação que o Gorillaz faz no Brasil, em novembro, no Festival Planeta Terra. Plastic beach, que já pode ser considerado, sem receio, um dos melhores lançamentos do ano, traz em si uma incógnita. Tendo sua existência possibilitada pela poderosa EMI (bancando até a superprodução do site), o disco seria um dos últimos suspiros do antigo formato da indústria fonográfica ou é uma aposta no experimentalismo bem-sucedido? A resposta precisa de tempo. Enquanto isso, Damon Albarn, como disse no making of do CD (disponível extraoficialmente no Youtube), se diverte com seus convidados, planeja retomar as composições com o Blur, está criando uma ópera-rock com o escritor de HQs Alan Moore (Watchmen, V de vingança), tem horas de gravação para mais dois discos do Gorillaz e a fila de quem quer trabalhar com ele não acaba. É muita carta na manga desse velho garoto inglês.
Plastic beach GoRILLAZ emi Disco do grupo investe no experimentalismo
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maĂra gamarra
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LIVROS Um valioso patrimônio cultural ameaçado Biblioteca que pertenceu a Álvaro Lins foi doada à cidade de Caruaru há 40 anos, mas nunca recebeu o tratamento merecido texto Eduardo Cesar Maia
imagine, leitor , o tamanho e a
qualidade do acervo de alguém reconhecido como o mais influente crítico literário do país por cerca de duas décadas, que acompanhava religiosamente a vida literária e analisava em suas colunas os livros lançados em várias áreas do conhecimento; e que, além disso, foi embaixador do Brasil em Portugal durante o governo de Juscelino Kubitschek e pôde trazer da Europa verdadeiras preciosidades editoriais. Trata-se da biblioteca pessoal do caruaruense Álvaro Lins, falecido há exatos 40 anos, em 1970. Conversar com pessoas que conheceram o acervo completo dá uma boa noção do valor cultural dessa coleção, apesar de, atualmente, só haver acesso a uma parte ínfima dela na atual sede da Biblioteca Álvaro Lins, em Caruaru. O escritor e biblioteconomista Edson Nery da Fonseca conheceu os livros do seu amigo Álvaro Lins ainda no Rio de Janeiro, em maio de 1970, pouco antes do falecimento do crítico. Foi o último encontro dos dois. Ressaltando o valor do conjunto, Edson Nery comenta que Lins possuía uma coleção abrangente de literatura luso-brasileira, um belo acervo de literatura francesa, inglesa e também sobre teoria literária. Mais especificamente, destacavam-se as obras trazidas de Portugal, pois eram todas elegantemente encadernadas. Edson Nery se refere com particular apreço à proustiana que ele viu na biblioteca – o escritor Marcel Proust foi tema de tese do crítico que, para suas pesquisas, reuniu as obras completas em francês do
escritor, além de toda fortuna crítica disponível sobre ele à época. As obras dos (e sobre os) portugueses Fernando Pessoa e Eça de Queiroz também estavam presentes de forma bastante completa no acervo. O percurso desses livros, depois da morte de Álvaro Lins, reflete com triste clareza o valor que o poder público confere à cultura literária no país. Por decisão da viúva, Heloísa Lins, boa parte da biblioteca – cerca de 4.000 títulos – foi doada a Caruaru. A decisão familiar de prestar homenagem
com a morte de Lins, a viúva achou que os seus 4 mil livros deveriam seguir para a cidade natal do escritor à cidade natal do crítico pode ter sido legítima, mas as consecutivas prefeituras nada ou pouco fizeram pela catalogação e manutenção desse patrimônio cultural inestimável nessas quatro décadas. Apesar de as novas instalações (provisórias) da biblioteca que leva o nome do crítico estarem hoje em melhores condições do que há bem pouco tempo, com prateleiras e ar-condicionado central, ainda falta muito para a coleção ficar em segurança.
nomadismo forçado
Desde que os livros saíram do Rio de Janeiro e foram para Caruaru, ficaram “hospedados” em lugares diferentes, de acordo com as mudanças e
conveniências políticas. Primeiro, eles foram colocados na Casa da Cultura José Condé. Depois, foram deslocados para a Estação Ferroviária, num lugar que não oferecia a menor condição estrutural de armazenamento e usabilidade para o público leitor. De lá, as obras foram parcialmente transferidas para o atual endereço – também temporário, segundo os responsáveis –, na Avenida Coronel Limeira, 202, no centro da cidade. A futura e definitiva instalação provavelmente se localizará no prédio da Secretaria de Cultura, com mobiliário e condições mais adequadas, pelo menos é o que promete a responsável pela biblioteca atualmente, a funcionária pública Irlândia de Lima Soares. As condições estruturais em que hoje se encontra a sede da Biblioteca Álvaro Lins não são perfeitas, mas receberam melhorias, tanto para os livros quanto para os usuários. O espaço ganhou adaptações para deficientes físicos e visuais e conta com uma estrutura de rampas e quase 200 livros traduzidos em braile. Também há livros audiovisuais e uma profissional especializada que atende à população. Outra novidade é a biblioteca infantil, com livros e jogos educativos em uma sala adaptada à faixa etária. Também conta com o acervo de aproximadamente 4.500 livros doados pela família do escritor, advogado e jornalista José Condé (19181971), que foi amigo de Álvaro Lins e trabalhou com ele no suplemento literário do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Ao todo, mais de 10 mil títulos ocupam as prateleiras – entre eles, enciclopédias, dicionários, livros, jornais e revistas. Numa das paredes do prédio está exposto um quadro com fotos das antigas instalações da mesma biblioteca em administrações anteriores. Nele, as imagens do péssimo estado em que se encontravam os livros, uns enrolados em saco para proteger de chuvas e goteiras, e alguns até espalhados pelo chão. Apesar das melhorias, apenas uma parte muito pequena do acervo doado por Heloísa Lins está de fato no novo prédio e disponível para consulta pública. A outra parte, segundo os funcionários, está amontoada em alguma sala do prédio da Secretaria de
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naScImentO e mORte de LInS o ano de 2010 marca os 40 anos do falecimento desse grande intelectual pernambucano, que exerceu as atividades de jornalista, crítico cultural, historiador, professor, pesquisador, escritor e diplomata. Tratava-se de um grande humanista, um pensador que não compreendia a atividade crítica literária de forma isolada, sem suas conexões com a realidade histórica e com os demais fenômenos culturais. Em 2012, será o centenário do nascimento de Álvaro lins, oportunidade para a cidade de Caruaru lhe prestar homenagem, tratando com maior zelo o valioso patrimônio público que são seus livros. (ECm)
Leitura Educação da cidade, à qual não foi autorizado o acesso. Outro ponto que merece reflexão se refere ao uso que as pessoas fazem desse valioso patrimônio. “Mesmo os livros que estão disponíveis nunca foram buscados com interesse pelo público caruaruense”, diz a técnica em biblioteconomia Cristina Cordeiro Dantas, que acompanha os volumes desde que chegaram à cidade. Ela afirma que são raríssimas as vezes em que estes são consultados, o que soa estranho, levando em conta que a cidade dispõe de centros de estudo superior na área de ciências humanas – especificamente, com faculdades de Letras.
Um defensor
Para o jornalista e cronista Assis Claudino, que não chegou a conhecer o célebre conterrâneo, mas é grande admirador da obra de Álvaro Lins, a decisão da família de doar os livros à cidade de Caruaru foi correta, mas o tratamento que a coleção recebeu o faz refletir que talvez fosse melhor que esses
“Biblioteca não é um mero depósito de livros, as obras não estão nem ao menos num fichário”, diz assis claudino livros estivessem em mãos mais cuidadosas e habilitadas. “Uma biblioteca não é um mero depósito de livros; as obras da Biblioteca Álvaro Lins não estão nem ao menos num fichário que possa ser consultado pelos usuários e por pesquisadores”, lamenta. Ele acredita que muita coisa importante deve ter sido perdida nesse tempo. Na época em que a biblioteca ainda estava na Casa de Cultura José Condé, Claudino se propôs a organizar todo o acervo. Após meses de trabalho, com quase tudo concluído, uma faxineira desavisada pôs todo o trabalho a perder, ao tentar salvar os papéis de uma goteira. Mas o pior momento ainda
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1 de fardão Álvaro lins foi eleito por unanimidade para a cadeira 17 da academia Brasileira de letras, em 1955
estava por vir: a transferência dos livros para a Estação Ferroviária, um local inadequado para abrigar as obras e muito barulhento. “A biblioteca nunca teve bibliotecário, fichário ou mesmo controle de empréstimo e devolução”, atesta Claudino. Ele admite que o prédio atual tem boa instalação, apesar de ser muito pequeno para receber todos os livros. O interesse de Assis Claudino por Álvaro Lins o levou a pesquisar cerca de 1.600 dedicatórias nos livros que pertenceram ao crítico, entre as quais a do crítico literário baiano Afrânio Coutinho, com mensagem do próprio autor para Álvaro Lins. O curioso nela é seu tom excessivamente bajulatório. Eles se tornariam mais tarde grandes inimigos. Coutinho passou a rebaixar raivosamente o trabalho de Lins, rotulando-o como mera crítica “impressionista”, desprovida do rigor científico que a Nova Crítica, de origem norte-americana, propugnava e da qual o baiano se tornou representante no Brasil.
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QUadRInHOS da radiola de ficha ao triunfo do coldplay O pequeno livro do rock narra momentos marcantes da história do gênero, seus subgenêros e afinidades culturais texto Danielle Romani rEprodução
o rock’n’roll transformou-
se num gênero musical quase mítico, com milhões de adoradores gravitando em torno das milhares de bandas surgidas nas últimas cinco décadas. Punks, headbangers, rockabillys, darks, progressivos... Sintetizar a história desse universo, que se desdobrou em dezenas de subgêneros, é tarefa das mais desafiadoras e difíceis. Mas foi exatamente a isso que se propôs o francês Hervé Bourhis ao lançar O pequeno livro do rock. Cansado
das compilações e notícias repetidas sobre o assunto, decidiu, ele mesmo, contar a história do rock do começo ao fim, disco por disco, banda por banda, ídolo por ídolo. Num ritmo alucinante, o misto de desenhista e roteirista conseguiu a façanha de escrever um diário que não tem profundidade, visto que traz informações rápidas e curtas, mas que aparenta completude, tamanha a quantidade de informações, dados e curiosidades sobre artistas e bandas de todas as partes. É um item de lazer.
A metodologia adotada por Hervé para organizar informações e dados foi a de ordem cronológica. Pautado nisso, ano por ano, a partir de 1915, época em que foi lançada a primeira radiola de ficha – a “eras” de distância do surgimento dos primeiros roqueiros – até o final da década de 2000, quando nomes como a cantora Amy Winehouse e a banda Coldplay (dois legítimos representantes da Inglaterra) são a bola da vez, o leitor verá passar à sua frente os ótimos, os bons, e os nem tanto assim, momentos do rock’n’roll. Capas, LPs, CDs, shows, lançamentos, eventos relacionados, nada (ou quase nada) escapou do olhar atento do francês, que cita, com pertinência – para ficar no exemplo brasileiro – Os mutantes, Sepultura, Cansei de Ser Sexy e até mesmo a bossa nova, para ficar nos exemplos brasileiros. Aliás, em vários momentos, o autor sai do rock e entra em outros gêneros, como o blues, o jazz, o pop, o reggae, para explicar a origem de alguns músicos ou de movimentos. Ele também provê o livro de fatos curiosos e totalmente supérfluos. Um deles mostra o momento em que os Beatles abandonaram a brilhantina e adotaram o penteado com franjinha, no estilo à francesa. Outro caso diz respeito ao fato de três fãs terem se suicidado, em 1987, após a dissolução da banda The Smiths. Nessa linha de informações periféricas, ficamos sabendo que os Butthole Surfers, punks do Texas, exibiam vídeos de operações penianas durante seus shows. Apesar de novato, Hervé Bourhis também consegue resolver bem a questão dos desenhos e da finalização das páginas. As caricaturas dos grandes astros são perfeitas, precisas, num estilo de traços sujos, ora em guache, ora como se fossem grafites e rabiscos. Um trabalho bem coerente com a estética rock’n’roll.
o pequeno livro do rock hERVÉ BouRhIS conrad editora a história do gênero do começo ao fim, disco por disco, ídolo por ídolo.
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Claquete DIRETOR O jeito Woody Allen de retratar a fauna humana
Ao mesmo tempo em que chega às telas Tudo pode dar certo, do cineasta norte-americano, o livro Conversas com Woody Allen revela seu modus operandi texto Schneider Carpeggiani
Jorge Luis Borges já nos deu a mais sábia das lições, a de que não existe ninguém impossível: assassinos por misericórdia, suicidas por excesso de felicidade, inimigos que não conseguem viver separados, egocêntricos humildes... Todo desvio é possível e vale a pena ser refletido. Nas últimas décadas, aprendemos mais sobre a diversidade do
zoológico humano graças ao incansável trabalho de Woody Allen, um homem que criou dentro e fora da tela (numa estratégia à Rosa púrpura do Cairo) a dicotomia do loser que nunca irá desistir. Em um de seus filmes é possível escutar a lapidar frase: “Nunca pensei que levaria a vida inteira para fracassar da noite para o dia”. Seu alter ego pode
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até se dar mal, mas desfila por aí com Julia Roberts e Evan Rachel Wood, objeto de desejo focado em Tudo pode dar certo (último filme do diretor lançado no Brasil), com o ator Larry David (roteirista de Seinfeld) vivendo magistralmente o Woody Allen que tanto esperamos que ele seja. Essa expectativa diante do loser persistente está explícita no ciclo a que assistimos ano após ano. Seus filmes podem dar prejuízo, ter perdido boa parte da atenção do público norte-americano, não importa. Diante de qualquer adversidade, tudo o que Woody Allen faz é escrever, produzir e talvez protagonizar um novo projeto, como numa linha de montagem. Assim, persistindo, mesmo que perdendo, parece ignorar sua própria finitude. Mas quem é esse homem que tão bem parecemos conhecer, dentro ou fora de uma sala de cinema? Seria Woody Allen
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1 eLenco diretor no set com o ator larry david , em Tudo pode dar certo 2 entrevista Eric lax publicou as Conversas a partir do contato de mais de três décadas com o cineasta
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sua própria Rosa púrpura do Cairo, pulando na nossa cara com todos seus traumas e neuroses pulsantes? Poucos tiveram uma ligação tão longa com o realizador quanto o jornalista norte-americano Eric Lax, autor do volume de entrevistas Conversas com Woody Allen (CosacNaify), resultado de mais de três décadas nas quais travou uma sólida (e rara) relação de repórter e entrevistado. “Após todo esse tempo, nossos encontros são sempre um prazer. Temos conversado por mais da metade da vida dele e por dois terços da minha. Temos um método: na sua casa ou na sua sala de edição, sentamos e temos uma conversa inicial sobre livros, esportes ou peças de teatro. Só depois é que realmente começamos o trabalho. No fim das contas, uma entrevista é a arte de fazer alguém sentir a vontade de dizer algo que jamais falaria de outra forma.” Lax esteve no Brasil em maio para participar de um congresso sobre
jornalismo cultural (“Estamos mais preocupados com fofocas do que com substância”, reclamou) e fez algumas revelações sobre seu “monogâmico” entrevistado para a Continente. Na época da conversa, no Rio e em São Paulo, estava em cartaz Tudo pode dar certo, no qual estão os mesmos neuróticos em fúria, relações entre pessoas de idades bem diferentes, a velha acidez diante daquela burguesia que não perde uma galeria de arte e a velha Nova York de cartão-postal, logo quando já estávamos acostumados com seus filmes de “diretor turista”, Match point (Londres) e Vicky Cristina Barcelona. “Esses são dois dos seus melhores filmes. Match Point é o drama que Woody Allen sempre quis fazer em sua carreira e conseguiu; já Vicky Cristina é uma fantástica comédia sobre as escolhas que fazemos na vida e o peso de suas consequências. Foi incrível como esse diretor, que nos fez entender e conhecer
tão bem Nova York, soube olhar as diferentes culturas em que esses filmes foram realizados. Ele já fez tantos filmes na cidade, já filmou cada uma de suas esquinas, que talvez seja a hora de perceber que outras cidades trazem novas opções para sua arte”, supõe Lax. Mesmo acreditando que uma nova geografia faria bem aos filmes de Woody Allen, Lax sabe que o diretor não se incomoda com o que dizem sobre seu trabalho. O importante é ir em frente. Mais uma vez voltamos à teoria da persistência diante da perda, como uma neurose obsessiva, cujos sintomas seus filmes são exímios em ostentar. Em Tudo pode dar certo, seu (suposto) alter ego precisa cantar “parabéns para você” sempre que lava as mãos, pois, segundo ele, é o tempo exato para a higiene perfeita. “Woody já disse, e mais de uma vez, que não se importa com o que os críticos dizem a seu respeito. Seu foco sempre esteve voltado para o que ele gostaria de fazer com seu próximo projeto, seja um drama ou uma comédia. Seus sentimentos em relação a elogios ou prêmios é bastante interessante: se você aceitar os tapinhas nas costas de uma premiação, então terá de aceitar as mais duras críticas que receber. Essa parece ser a sua estratégia de autoproteção”, avalia o jornalista. Tudo pode dar certo é daqueles filmes do diretor considerados “menores”. Não tem a força sexual e o humor de Vicky Cristina Barcelona, nem o conhecimento profundo do voyeur de analistas trapaceiros de que ele tanto se orgulha de ser, como em Desconstruindo Harry. É um Woody Allen apenas (?) razoável, que satisfaz nossas expectativas até que a sua obra-prima seja lançada. E, como sabemos, ele continua a persegui-la. Não importam as perdas que possam aparecer no seu caminho. “Woody espera de si próprio sempre realizar o melhor filme possível, trabalho após trabalho. Isso pode até implicar num filme que os críticos ou o público, ou mesmo ambos, não gostem. O que eu admiro nele é sua opinião de que é preciso fazer o melhor com aquilo que se deseja fazer e depois esperar para ver o que acontece”, afirma Lax. Nós, seus espectadores, ano após ano, continuamos fiéis, também esperando para ver o que pode acontecer.
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Histórias de paixão pela seleção nacional de futebol, no período de Copa do Mundo, reafirmam o valor desse personagem emblemático na luta travada no gramado
ToRCEDoR TEXTO Samarone Lima ILUSTRAÇÕES Pedro Melo
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em novembro do ano passado, quando suspeitou que estava grávida, a psicóloga Emília Miranda, 33 anos, foi ao médico com o marido, o administrador Pedro Leite, de 30, para fazer os exames. O ultrassom revelou as batidas aceleradas de um coraçãozinho de poucas semanas. “Está com pouco mais de um mês”, informou o médico. Emocionados com a notícia do primeiro e desejado filho, Emília e Pedro foram despertados para outra realidade, a futebolística, quando o médico começou a fazer os cálculos matemáticos das 40 semanas de gravidez. “Espera aí. O parto deve acontecer em julho!” O pai, torcedor apaixonado do Santa Cruz, frequentador de estádios, entendeu imediatamente a mensagem. Julho + 2010 = Copa do Mundo. “É o mês da Copa”, disse. Em segundos, os dois homens deixaram de ser médico e paciente normais e se transformaram em dois apaixonados torcedores antecipados de um torneio que sacode o planeta, a cada quatro anos: a Copa do Mundo. O médico acessou a internet, baixou a tabela da competição, e iniciou-se uma especulação sobre a data do parto, cruzamento de jogos. Os cálculos revelaram que Emília será mamãe entre a semifinal e a final do torneio. “Se nascer na hora da final, vou levar um celular com TV digital para a sala de parto”, brinca o pai. A futura mãe observou tudo com paciência, e a poucos dias do início do torneio, sabe que não vai ser fácil o parto com a proximidade de algo tão tumultuado. “Acho melhor Ana nascer depois de tudo.” O “tudo” a que Emília se refere é aquela balbúrdia, o frenesi, a expectativa, os jogos, bandeiras tremulando nas ruas, paredes pintadas de verde e amarelo, pagodes, reuniões de família, um país inteiro fazendo mandingas, rezando, aguardando o gol salvador, as vitórias, classificações, e, se tudo correr bem, o título. São cinco estrelas em cima do escudo, coisa que nenhuma seleção conseguiu, mas os brasileiros querem sempre mais. A obsessão,
entre os dias 11 de junho e 11 de julho, será o hexacampeonato.
coM voSSA vÊniA
Nos meios jurídicos, todos sabem o que representa uma audiência marcada diante de um juiz. Em junho de 1998, a dois dias do jogo de estreia do Brasil na Copa da França, o advogado Clávio Valença recebeu a informação. A juíza tinha marcado uma audiência, envolvendo um caso de pensão alimentícia, para o dia 10 de junho. Ele esfregou os olhos sem acreditar. A audiência era na mesma hora do jogo de abertura da Copa: Brasil X Escócia. Valendo-se dos conhecimentos jurídicos e sabedor das paixões humanas que envolvem qualquer jogo da Copa, Clávio não teve dúvida. Dia 8 de junho, protocolou um requerimento à juíza, escrito em formato de cordel, elencando o sentimento nacional diante da camisa amarela, as mudanças que ocorrem no país, nos dias de jogo, para que a audiência fosse cancelada. “De pão, circo, chuteira Rádio, folhetim, televisão
Sendo a nação brasileira Feita de fome e ilusão Por que tanta trabalheira Ante o Brasil campeão? Por que marcar audiência Decidir quem tem razão Mesmo fome de menor Sendo objeto da ação? Nada há mais importante Que o Brasil ser campeão.” O requerimento-cordel lembrava fatos que se repetem em cada quatro anos: “bancos dão feriado”, “indústria fecha o portão”, “Assembleia sem deputado”, “ministério sem ladrão”, “executivo parado”, “sanfoneiro sem baião”, e recorria a cenas poéticas, para demonstrar que a audiência, no dia de jogo da seleção, era um contrassenso. “Tufão de vento cansado Sertanejo sem sertão O diabo sem ser danado Mas o Brasil campeão.” Ao final, e sem mais delongas, solicitou o adiamento da audiência.
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“Requeiro pois ao Estado E a vossa compreensão Deixe o seu fazer de lado Adie a sua decisão Ajude este advogado Ver o Brasil campeão.” Nos versos, a eterna certeza do brasileiro de que a seleção sempre será a campeã. “Por isso contrariado Requeiro a alteração do dia mencionado na sua intimação seja outro dia marcado com o Brasil já campeão.” Por fim, uma dose de ironia, refletindo o clima no país a dois dias da Copa da França: “Sendo este acatado Por vossa jurisdição Gastarei meu feriado Sem lhe tomar atenção Tomo uma no fiado Até o Brasil campeão.”
A petição chegou às mãos da juíza, Clávio soube à boca miúda que o texto, de conteúdo excessivamente popular, não agradou em nada à magistrada, mas tudo foi resolvido de uma forma mais sensata: “O juiz do Tribunal suspendeu todas as audiências nos horários de jogos do Brasil. Mas se fosse confirmada naquele dia e horário, eu não iria de jeito nenhum”. Cercado de amigos, ele conseguiu assistir ao Brasil ganhar de 2 x 1 da Escócia, mas o requerimento se tornou um clássico do direito ao futebol da seleção.
MiLHÕeS De PALPiteiRoS
Por ter participado de todas as Copas, o brasileiro repete gestos, manhas, crenças, agonias do passado. Em cada Copa, há um jogador a ser convocado não pelo treinador, mas pela torcida. Na Copa dos Estados Unidos, em 1994, o nome do atacante Romário foi gritado em estádios, programas de rádio e TV. O técnico Carlos Alberto Parreira enfrentou a pressão até jogar a toalha. Mesmo contrariado, chamou o atacante, no último jogo
das eliminatórias, contra o Uruguai. O Baixinho fez os dois gols da vitória, brilhou na Copa e o Brasil foi tetra. O fenômeno se repetiu para a Copa da África. Dois jovens craques revelados pelo Santos Futebol Clube, Neymar, de 18 anos, e Paulo Henrique Ganso, de 20, estavam arrasando adversários, fazendo jogadas geniais, levaram o time ao título do Campeonato Paulista após golear vários adversários, e a possível convocação dos dois, um sopro de poesia e talento na seleção, se tornou uma queda de braço da torcida e mídia, contra o treinador Dunga. No dia 11 de maio, quando o treinador anunciou os 23 convocados para a Copa, os nomes de Neymar e Ganso ficaram de fora. “A seleção ficou igual ao treinador: medíocre”, avalia Valença, um dos milhões de palpiteiros da escalação. O inglês Alex Bellos, autor de Futebol, o Brasil em campo, de 2003, faz uma comparação que parece ter sentido. “Os britânicos dividem o século 20 em blocos demarcados pelas guerras mundiais de 1914-1918 e 1939-1945. O Brasil mede sua história recente pelas Copas do Mundo, já que é nesse tempo que mais se identifica como nação”. Maria do Carmo Lira, 57 anos, funcionária pública, três filhos, é daquelas que só assistem a jogo na TV “por assistir”, quando está de folga e sem ter o que fazer. Não sofre, não torce, não faz mandingas. Não tem a paixão clubística. Mas quando o assunto é a seleção, ela é capaz de contar a vida a cada quatro anos, pela emoção da camisa amarela. “Ah, mas a Copa é outra coisa”, diz. “Aí eu fico nervosa, dá uma taquicardia. Já comprei minha camisa. Em todos os jogos do Brasil, estarei com ela.” A Copa de que ela mais se lembra é a de 1970, realizada no México, há 40 anos, quando tinha 17 anos. “Fiquei muito impressionada. Morava em Casa Amarela e meu vizinho morreu durante um jogo da seleção, de infarto.” O vizinho não teve tempo de ver o Brasil ganhar o tricampeonato, na primeira Copa totalmente televisionada, arrebatando de vez a cobiçada taça Jules Rimet. Maria guarda também outra lembrança importante dessa Copa, que é um reflexo dos tempos. Após a vitória contra a Itália, o título, ela ficou
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pontos da primeira fase. “Desde aquela época, comecei a buscar uma solução para aquela injustiça”, diz. Após profundas análises de todas as competições, as vitórias, soma dos pontos, ele escreveu um documento intitulado Nova fórmula para mudar o futebol. É capaz de passar horas detalhando seu estudo, mostrando as incongruências, apontando as seleções que foram campeãs sem merecimento. “A melhor seleção foi desclassificada por um regulamento falho”, opina. Para o brasileiro, claro, a “melhor seleção” é sempre a do Brasil.
eStRAnHo conFeSSo
em casa, porque o marido não gostava de futebol. Perguntada se ficou com vontade de ir às ruas, comemorar, ela responde: “Isso é o que mais a gente quer”. O marido agora é “ex”. Lembrar da história pelos momentos marcantes da Copa, e não por guerras, vai se espalhando por gerações. Maria conta que, na Copa de 1982, o filho caçula estava com menos de dois anos. “Eu botava ele para dormir com a camisa do Brasil. Quando nossa seleção marcava um gol, ele levantava do berço, gritava ‘goool’ e depois voltava para dormir”.
inJUStiÇA
O trauma da derrota inesperada para a Itália, na Copa de 1982, até hoje é
lembrado por milhões de brasileiros. A seleção, sob o comando de Zico, Sócrates, Falcão, treinada por Telê Santana, encantou o mundo. Ganhou os três jogos da fase inicial, aplicou goleadas. Na fase seguinte, bateu a Argentina, e esbarrou na seleção da Itália, que vinha de três empates e apenas uma vitória. O Brasil perdeu por 3 x 2 e voltou para casa. O economista e agropecuarista Aroldo Mota, de São Bento do Una, no Agreste de Pernambuco, ficou tão ofendido com a eliminação precoce do “melhor time”, que resolveu criar uma nova fórmula para a disputa das Copas, com outros critérios, que valorizam vitórias e gols, acumulando os
No meio desse vendaval que é a Copa, o professor de literatura e artista plástico Rodrigo Fischer é um peixe fora d’água, do aquário, de qualquer paixão envolvendo a seleção. “Nunca torci. Nunca tive essa paixão, esse falso espírito de brasileiro, que manda o espírito de nacionalidade à Copa do Mundo. Só torci quando criança, na baderna.” Antes de ser chamado de chato, ele avisa: “Também não torço contra”. No dia 15 de junho de 2010, uma terça-feira, às 15h30, quando o Brasil entrar em campo no estádio Ellis Park, em Johanesburgo, para o primeiro jogo, contra a Coreia do Norte, Fischer estará comprando algum ingresso para o cinema. Já sabe que não terá o problema das filas. “Eu não sou solitário. Algumas pessoas também vão ao cinema na hora de jogo da seleção”, garante. A pergunta é simples: quantos de nós conhecem uma pessoa que não sente absolutamente nada quando a seleção brasileira entra em campo, em um jogo da Copa do Mundo? Rodrigo, de certa forma, responde. “Não me emociono, sou indiferente, mas não conheço nenhum partidário. Tenho amigos que não gostam de futebol, mas que ficam loucos na Copa.” Ele só fica irritado quando vai ao cinema e a sessão foi cancelada, por falta de público. O problema é que ele não tem com quem reclamar. Todos os funcionários certamente estarão em alguma salinha, diante da TV, gritando “Vai Brasil, pra cima deles!”. É a Copa.
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renato larini
Crônica
xico sá o videoteipe da derrota na hora do sexo Das tragédias masculinas a cegueira pelo futebol sempre foi a mais grega e incompreensível. Até bem maior, para muitos de nós, do que a paixão roxa por uma gazela que não nos dá bola. Superior, inclusive, senhoras e senhores, às dores cachaceiras do mais injusto dos pares de chifre. Em uma jornada de derrota acachapante, não há musa ou deusa que reacenda a chama de um macho ludopédico. Foi o que A., a mais bela das crias da minha costela, empreendeu naquela noite em que o Palmeiras despachou o Sport do sonho de conquistar a América, ano da graça de 2009. Na cobrança de penalidades máximas. Bem que ela tentou filosofias baratas de consolação e, depois, outros agrados orais na alcova. Como se houvesse conforto possível para um homem que ainda gargareja o antisséptico da desgraça. Nunca se fizera de gueixa como naquele momento. Aos meus pés. Para o que der e vier. Tudo mesmo. Quanto mais tentava me reanimar, mais o videoteipe do jogo rebobinava e zunia na minha cabeça.
A deusa-mor de quatro, entregue ao arco e à lira, oferecimentos impensáveis, com direito a lingeries rubro-negras, rendas, caprichos, afagos, bajulações de todos os naipes no ego do cabra, sussurros de Folhetim, aquela do Chico, no ouvido, me fez vaidoso supor que eu era o maior a possuí-la, uma beleza, tudo que adoramos na boca de uma fêmea. E eis que, em um rápido, milagroso e surpreendente lázaro priápico, ensaiamos um chumbregamento. Ela se sentiu poderosa, sestrosa, uma del fuego. E não é que partimos à conjunção carnal propriamente dita?! Tudo pronto para o ataque. No exato momento do coito, amigo, ali a caminho das Índias, esqueço toda aquela gemedeira gostosa e berro como um desse animais de arquibancada: – Não podia perder aquele pênalti, porra! Foi como aquele “uuuhh” da massa, quando a bola vai para fora e a torcida senta, decepcionada com o gol que deveras já comemorava. Acontece com os melhores torcedores do Chelsea da Inglaterra! Acontece com os mais viris frequentadores do Arruda, da Ilha e dos Aflitos. Tentei explicar-lhe depois de negar fogo. Apelei até para a ciência: uma pesquisa da Universidade da Geórgia (EUA) comprovou que nas conquistas dos seus clubes o homem fica pelo menos 27,6% mais potente no sexo. Nas tragédias, o índice de testosterona despenca. Inconsolável, a moça não me deu bola. Não entendeu ou fez questão
de não compreender. Mal sabe até hoje que não há miséria maior para a alma masculina do que o apego aos 11 semelhantes que o defendem na mais épica das batalhas. A Monte Castelo de todos os domingos, a Guararapes de todas as finais de campeonato. A batalha de todas as tardes, do radinho de pilha fanhoso de todos os porteiros. Do grito de quase-gol que vem de lá dos porões de todos os canteiros de obras, do fundo do cortiço mais pulguento da Pauliceia e do sótão-pensão onde morei na Barão de São Borja, no Recife de todas as dores emparedadas. Domingos capazes de derrotar o mais brutamontes dos homens, o mais seco, o mais sem emoção, o mais sem sangue nas veias. Por isso que não há miséria maior do que o “desábito de vencer”, como escreveu João Cabral de Melo Neto sobre o seu América. Não o América carioca do amigo José Trajano, que já teve as suas glórias. O desaparecido América alviverde do Recife, no qual o poeta jogou, centerhalf de primeira, antes de ser campeão juvenil em 1935 pelo Santinha. Uma vez, em uma entrevista com o ex-center half, na primeira metade dos 1980, ali na bifurcação de Parnamirim com Casa Amarela, o homem-facasó-lâmina pôs a marejar as retinas quando contava o seu arrojo como homem de marcação e exibia algumas raras fotos guardadas em uma velha caixa de sapatos. Tempos depois, numa entrevista que deu gosto (pois a literatura foi deixada de banda), o pernambucano se queixaria a Fábio Victor, repórter da Folha de S.Paulo, sobre as dores da bola. Somente no exílio sevilhano, o poeta se livrou da aspirina e da dor-de-cabeça de torcedor. Deu adeus ao futebol. Para sofrer menos, disse, escolheu as touradas e las dolores do flamenco. Sorte dele, pois não há tragédia mais incompreensível do que a devoção por aqueles marmanjos suados tentando penetrar na área e acertar o barbante inimigo. Mas chega de falar de penetração depois da triste história aqui narrada. Não vale nem como metáfora. Caem dos meus olhos, como no melô brega sobre o assunto, duas lágrimas geladas.
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PeDro Melo
na rede blogs de torcedores esquentam debate
De figura passiva, que somente ouvia os comentários alheios, o espectador passa a agente, diversificando pontos de vista texto Inácio França
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As ferramentas que possibilitam a interatividade na internet transformaram o papel da torcida e o jeito de expressar a paixão por um time de futebol. De figurante passivo do mundo, desde a era do rádio, quando a vaia era a única manifestação crítica que lhe era permitida, o torcedor comum, aquele que paga ingresso para assistir às partidas no cimento da geral, passou a ocupar amplos espaços de opinião e debate na chamada web 2.0, ou seja, em blogs, comunidades virtuais e redes sociais. Na maioria dos blogs e comunidades de torcedores, a criatividade passa longe. Boa parte dos blogueiros amantes do futebol reproduzem o formato das resenhas esportivas ou dos sites esportivos da mídia tradicional: são blogs de opiniões sobre partidas transmitidas pela TV, contratações milionárias, atuações de jogadores, esquemas táticos, repercussão das principais manchetes da semana. Também é comum a publicação de textos com piadas e xingamentos às torcidas adversárias. Nem sempre o bom gosto prevalece. Curiosamente, foi uma rede de blogs repleta de lugares-comuns e postagens repetitivas que criou uma das mais bem-humoradas críticas contra um árbitro de futebol: pelo menos 300 blogs de torcedores do Grêmio passaram a veicular, a partir de 1º de abril, uma contagem regressiva registrando o tempo que faltava para a aposentadoria do juiz Carlos Eugênio Simon, odiado pelos tricolores gaúchos. Os árbitros, que já tinham de conviver com os xingamentos durante os jogos e os programas de computador do tipo “tira-teima” das emissoras de TV, agora precisam enfrentar a ira das torcidas que criam as mais diferentes formas de pressão pela internet. Em 2005, durante a fase semifinal da Série B do Campeonato Brasileiro, o Blog do Santinha, de torcedores do Santa Cruz, publicou o telefone do árbitro carioca William Marcelo de Souza Nery, acusado de ajudar o Santo André em lances decisivos. O juiz não teve sossego nos dias seguintes à partida. A criatividade e o humor ausentes das coberturas de futebol sobram nos textos e nas campanhas do blog Bora Bahéa Minha Porra. A brincadeira começa pelo nome do blog, que passou a ser
chamado de BBMP há pouco mais de um ano. Logo no primeiro texto, mantido nas páginas de arquivo como cartão de apresentação, os torcedores Fábio Domingues, Marcos Carneiro, Bruno Cartaxo e José Ricardo Novoa anunciam que criaram o blog para se divertir e não para estimular violência entre as torcidas nem para fazer análises sérias. Em 2009, quando o Bahia penava para escapar de mais um rebaixamento para a Série C, o blog manteve no ar uma escrachada caricatura do presidente do clube, que havia prometido raspar a cabeça caso o time fosse rebaixado novamente. A cada derrota, a cabeleira do cartola ia ficando mais curta. No fim, o time escapou do vexame e o dirigente manteve as madeixas intactas.
o blogueiro eduardo chikui afirma que a internet 1.0 era quase uma cópia do pouco interativo mundo impresso GARiMPo neceSSÁRio
Alguns blogs são produzidos e mantidos coletivamente, com a colaboração de vários torcedores – em alguns casos, de diferentes times, que garantem a atualização constante. É o caso do Gol de Letras, gerenciado por Lilian Alcântara, uma garota de 17 anos do município de Caratinga, interior de Minas Gerais. Lilian é a responsável pela articulação de uma rede de torcedores mineiros, paulistas, cariocas, paranaenses, catarinenses, gaúchos e baianos. Com surpreendente maturidade, ela acredita que “esta oportunidade de trocar ideias com torcedores distantes impulsiona uma visão bem mais crítica em relação ao que ouvimos e lemos, não só no futebol”. A relação de colaboradores do Gol de Letras inclui pessoas com perfil semelhante ao de Lilian, como Alessandra Formagini, estudante do Ensino Médio de 16 anos que mantém outro blog exclusivamente sobre o Grêmio. No mundo masculino das resenhas de rádio ou dos programas de TV, dificilmente adolescentes como Lilian e Alessandra teriam
suas opiniões ouvidas com atenção e respeito. A mineira conta que, na internet 2.0, as coisas são bem diferentes: “É nos blogs e nas comunidades do Orkut que o torcedor costuma debater as notícias do time na mídia, separar o que é especulação e o que é mentira, além de divulgar novas fontes de informações”. Outro colaborador do blog da mineira é o engenheiro de produção Eduardo Kazuharu Chikui, de 29 anos e torcedor do São Paulo. Ele acredita que novas mudanças irão acontecer na relação entre os times e suas torcidas. “A internet 1.0 era quase uma cópia do mundo impresso, em que poucos falam para muitos quase sem interação, mas agora o acesso ficou muito mais amplo. No ano passado, por exemplo, o Muricy Ramalho foi demitido num sábado pela manhã e, em menos de duas horas, um grupo de torcedores já tinha no ar, e com publicidade em vários meios de comunicação não pagos, o site Volta Muricy.” Apesar da pouca inspiração de uma infinidade de páginas, muitos sites de torcedores reservam surpresas e informações curiosas que, dificilmente, seriam notícias na mídia corporativa. O blog Brfut (ou Blog do Marcão), mantido de forma colaborativa por sete torcedores de seis times diferentes do Rio de Janeiro e São Paulo, revela histórias curiosas, como a do Amazônia Esporte Clube, do antigo território federal de Rio Branco (atual estado de Roraima), que passou duas semanas em Manaus, em outubro de 1950, para disputar amistosos contra time locais. Só ganhou um. O exemplo do Brfut ilustra uma situação minoritária na blogosfera, pois a maioria dos torcedores nada mais faz do que repetir ou repercutir em suas páginas a pauta da mídia convencional ou dos grandes portais da internet. Apesar disso, assim como acontece em quase todas as áreas, a verdade do futebol deixou de ser monopólio dos comentaristas e cronistas esportivos. O blogueiro Eduardo Chikui resume o atual momento da relação dos torcedores com os clubes: “Ainda existe muita força dos veículos tradicionais de comunicação, mas novas oportunidades parecem surgir a toda hora e ainda sem um limite visível”.
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memÓria “e tudo por arte e obra de uma simples esfera de couro”
Jornalismo e música mostram que a conquista da Copa de 1958 fortaleceu a autoestima do brasileiro, povo que colaborou para derrubar teses racistas e enriquecer a mitologia do futebol texto Gilson Oliveira
Para aquele 1958 ser perfeito, só faltava
mesmo a conquista do ouro da Copa do Mundo de futebol. Brasília, cujo revolucionário projeto arquitetônico atraía os olhares internacionais, já estava sendo exibida na capa da revista Manchete. Adalgisa Colombo levava o país para o topo da beleza mundial, ficando em segundo lugar no concurso Miss Universo. Elizeth Cardoso gravava Chega de saudade e inaugurava a bossa nova, ritmo que se difundiria pelo planeta... O Brasil vivia os “anos dourados”, como ficou conhecido o período em que Juscelino Kubitschek foi presidente da República (1956-1961) e a economia brasileira cresceu como poucas vezes em sua história, gerando na população um clima de grande otimismo e criatividade
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reProDUÇÃo liVro BRASIL UM SÉCULO DE FUTEBOL, aPraZÍVel eDiÇÕeS
1 vitóRiA na volta olímpica, jogadores brasileiros erguem a bandeira da Suécia, país que sediou a Copa de 1958 e foi derrotado pelo Brasil na final
conquistado um vice-campeonato. E o “ouro” veio da forma mais sensacional. Talvez inspirado nos “50 em 5” de JK, em 29 de junho de 1958, dia da partida final da Copa, o Brasil meteu 5 X 2 na equipe da Suécia, país que sediava a competição. Para a torcida brasileira, os cinco gols (e gol “é o orgasmo do futebol”) valeram mais que 50, 500 ou 5.000... A explosão de alegria que invadiu o país está na música popular e nas manchetes de jornais, que funcionaram como flashes de um momento histórico. Uma marcha carnavalesca – A taça do mundo é nossa – captou bem a euforia reinante: “A taça do mundo é nossa,/ com brasileiro não há quem possa./ Ê-êta esquadrão de ouro,/ é bom no samba, é bom no couro”. No Recife, a Rozenblit incrementou as comemorações lançando Escola do Feola, de Luiz Queiroga, que anos depois estaria na trilha sonora de Isto é Pelé, filme de Luiz Carlos Barreto e Carlos Niemeyer: “Didi/ Pelé/ Vavá/ bailaram lá na Europa/ e a Copa vem prá cá/ no duro !...”
voZ DoS ARticULiStAS
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entre os artistas. A propaganda oficial dizia “50 anos em 5”, sugerindo que, em apenas meia década, o desenvolvimento do país equivaleria ao de meio século. O próprio JK, conhecido como “presidente sorriso” e “presidente bossanova”, era um dos símbolos daqueles tempos de esperança e modernidade, mas foi o chamado “esquadrão de ouro” que fez o brasileiro ter a sensação de que realmente vivia em uma potência mundial e jogar para escanteio o crônico complexo de inferioridade que sentia em relação a outros povos. Se os anos são dourados e o esquadrão é de ouro, por que eu vou querer saber de prata?! Um pensamento semelhante a esse parece ter visitado o selecionado brasileiro – que em 1950 já havia
O espírito do verso “não há quem possa”, que expressava o orgulho do brasileiro pelo espetáculo que a seleção dera para o mundo (europeus assistiram à Copa também pela televisão), ganhou na imprensa um tom analítico, com alguns articulistas aproveitando para desmoralizar de vez as teses racistas, que, com a ascensão do nazismo, haviam se fortalecido em vários países. Na manhã de 29/6/1958, dia da partida final da Copa, o Diario de Pernambuco já trazia um artigo de Austregésilo de Athayde, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, baseado no desempenho do Brasil nas partidas anteriores. Com o título Vitória de raça, ressaltava o artigo: “Com a vitória dos brasileiros, empenhados contra os europeus, algumas alusões, entretidas nos preconceitos raciais, foram por água abaixo. Batemos arianos puros e misturados. Foram de roldão austríacos, russos, galeses e franceses”.
Publicado no dia seguinte, também no DP, o artigo Com o futebol, o Brasil principia, do jornalista Aníbal Fernandes, focalizava a influência social, cultural e histórica do esporte em terras brasileiras: “ (...) Monteiro Lobato, que criou o tipo do Jeca Tatu, em que muitos enxergavam o brasileiro, a vegetar de cócoras (...) foi o primeiro a mostrar que o futebol ia tirando o Jeca Tatu da modorra”. Depois de citar outras frases de Lobato – como “estamos diante da maior revolução de costumes operada em terra de Santa Cruz desde o dia de Cabral.(...) E tudo por arte e obra de uma simples esfera de couro, estufada no ar”... –, Aníbal conclui o artigo referindo-se ainda ao escritor paulista, mas falando também de suas experiências: “Isso mesmo li em jornais da França, da Itália e da Suíça: o jogador brasileiro formou-se na pelada. O Figaro de Paris, na véspera do jogo contra a França, dizia que a esquadra brasileira atingira a perfeição. (...) Porque é justamente o futebol que está assegurando ao Brasil, no mundo, um êxito publicitário que jamais conseguiu”.
DeUSeS eM cAMPo
Um dos entusiastas do futebol, e principalmente do estilo brasileiro de jogar, Gilberto Freyre defendia que este nascera, em síntese, da fusão das formas de ser do negro e do branco, uma vez que os gramados possibilitavam uma integradora mistura de raças e classes sociais. Para Freyre, o futebol, ao ser abrasileirado, ganhou uma estética semelhante à do samba e à da capoeira. Por influência ou não do escritor, essas ideias marcam letras como as de A copa do mundo é nossa (“é bom no samba, é bom no couro”) e Escola do Feola (“bailaram lá na Europa”). Explicando os aspectos artísticos da maneira verde-amarela de jogar, o sociólogo colocou a mitologia grega no campo de suas teorias: o jeito brasileiro seria uma mistura do dionisíaco (ligado à emoção e ao corpo) com o apolíneo (força e razão, típico do jogador europeu). Em 2010, a pátria está novamente de chuteiras, como dizia Nelson Rodrigues, e, segundo as pesquisas, bastante confiante em ganhar o hexacampeonato na África do Sul. Com as graças de Apolo... e de Dionísio!
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Artigo
reProDUÇÃo liVro BRASIL UM SÉCULO DE FUTEBOL, aPraZÍVel eDiÇÕeS
álvaro Filho FUtebol e televisÃo, Uma caixinha sem sUrpresas A notícia não é das melhores. Talvez você não tenha percebido ou sido avisado, mas o futebol-arte morreu. E faz tempo. Jaz sepultado sob o verde gramado do estádio Jalisco, em Guadalajara, no México, palco da final da Copa do Mundo de 1970. Que os deuses do futebol o tenha em bom lugar, amém. Ele merece. Quem foi testemunha do fato disse que a cerimônia fúnebre teve pompa, com a presença de personalidades do mundo da bola, incluindo a família real brasileira. Ele mesmo, o rei Pelé, em carne, osso e genialidade. O mesmo Pelé que aproveitaria a ocasião para, assim como o futebol-arte, se despedir de Copas do Mundo, o que definitivamente faz emblemática a Copa de 1970, para quem tem o chamado esporte bretão em boa conta. Talvez seja por isso, pela coincidência de datas, que muitos liguem a passagem do futebol-arte desta para pior à despedida de Pelé de Copas do Mundo. Não se pode, é claro, ignorar que a aposentadoria de alguém reconhecido mundialmente (a despeito de certa resistência argentina), como nada mais, nada menos, o Rei do Futebol, tenha contribuído para o empobrecimento do espetáculo. Mas mesmo se Pelé conseguisse driblar a idade como fazia com os adversários e se perpetuasse infinitamente correndo atrás de uma bola, ele também não estaria praticando mais aquele esporte a partir da Copa do México. Afinal, o futebol-arte não tinha nada a ver com a maneira que era jogado. Não era uma manifestação física, mas metafísica. Ele não era tático, nem tátil, era etéreo, mais para o onírico do que para o real. Não acontecia dentro das quatro linhas, e, sim, em outro campo, o campo dos sonhos. O futebol-arte era um sonho bom, ninado pela narração
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radiofônica, uma forma de narrar hiperbólica por natureza. Somente se utilizando de metáforas, dos “gigantes em campo”, de “touros com a bola nos pés” e “homens-elásticos” embaixo das traves, era possível traduzir uma paixão através de palavras. O rádio colado no ouvido do torcedor funcionava como uma espécie de modem, conectando-o ao futebol. Se a Copa de 1970 ficou marcada pela saída de Pelé dos gramados, também se notabilizou pela entrada de outro player, que não precisou nem assumir o agora vago trono real para mostrar a sua majestade. O Mundial no México foi o primeiro na história das copas a ser transmitido pela televisão para todo o planeta. Assim,
é preciso se fazer justiça e inocentar de uma vez por todas Pelé da morte do futebol-arte. Ele e a sua geração podem descansar em paz, sem um grama de peso na consciência por terem sido mandantes de um crime, ao decidirem se retirar dos palcos da bola. O futebol-arte morreu ao vivo e em cores, transmitido pela TV.
eviDente DeMAiS
Através do rádio era possível “ver” uma partida até com os olhos fechados, mas na televisão é necessário tê-los sempre abertos. E não se sonha de olhos abertos. A narração em TV deu um cartão vermelho às metáforas, mandando também para o chuveiro os gigantes, touros e homens-
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1 PeLo RÁDio adalgisa Colombo (e), primeira Miss Brasil do antigo Distrito Federal, entre torcedores, na Copa de 1958
tipo de artimanha, mas quando era menino assisti a um jogo em que Pelé, imagine, errava um passe de meio-metro. Pior, como um zagueiro de usina, chutou a bola para fora do estádio. Uma covardia. O videoteipe, aliás, é a antítese do futebol-arte. Não precisa ser um filósofo, um Walter Benjamin da vida, para saber que a reprodução constante de um drible ou de um gol subtrai a cada replay, um pouco da aura do lance até exaurir a última essência de arte que existia nele. Nelson Rodrigues, o cronista esportivo, já havia percebido isso, a ponto de vaticinar que “o videoteipe é burro”. Míope, no estádio, Nelson Rodrigues recorria a quem estivesse ao lado para lhe narrar a partida. E por causa disso, por não ver direito, não houve quem enxergasse a essência do futebol-arte melhor do que ele. Desprovido da aura que lhe conferia o status de arte, o futebol transmitido pela TV foi buscar alternativas de se manter sedutor. A mais eficiente delas foi deixar de
o futebol-arte, no rádio, não era contado, mas insinuado. A partida transcorria num jogo de bola e de sedução elásticos. A transmissão televisiva é autossuficiente, dispensa essa fauna de atores. Na frente das câmeras, nada de semideuses “correndo como o vento” ou “entortando a cintura” dos adversários. O futebol na TV perdeu a inocência, deixou de ser criança e de acreditar nessas histórias. Na tela há pobres mortais, assim como eu e você, correndo atrás da bola. No rádio, o futebol não era contado, mas insinuado. A partida transcorria num jogo de bola e de sedução. Na TV, o jogo não tem mistério, é explícito, devassado. A narração televisiva não abre espaço para mitologias. Nunca se viu numa tela de TV um chute lá onde a coruja dorme. Aliás, não se tem notícia de que alguma vez
as câmeras flagraram uma coruja dentro de um estádio, dormindo ou acordada. A televisão é de uma aridez tamanha, que nem agrião nasce na zona do agrião, muito menos um jogador fica plantado em campo. Sem falar que as bolas nunca mais tiraram tinta da trave. Como se não bastasse ter dissipado a aura do futebol-arte pós-Copa de 1970, a televisão ainda quer macular a memória dele. Não respeita nem os mortos. Pelo contrário, numa espécie de exumação do cadáver, a TV tenta provar que o futebol nunca foi arte, mas apenas futebol. Vez ou outra aparece um videoteipe registrando partidas dos tempos em que o futebol era apenas falado. Hoje eu evito esse
ser jogo e virar game. Videogame. Do parente próximo, o computador, a televisão copiou o fetiche do scout, substituindo paulatinamente a fertilidade da metáfora pela precisão monocromática das estatísticas, caindo numa pobreza estética do tamanho do Maracanã. Da arte ao game show, o futebol se transformou numa caixinha sem surpresas. Previsível. E na falta do que se dizer, os narradores de televisão comentam sobre tempo de posse de bola, número de chutes a gol e quantidade de faltas. Quase como se alguém que tivesse a oportunidade de ficar em frente a um Picasso prestasse atenção apenas às dimensões da moldura da tela.
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PeLADeIRos Por toda parte e em horários distintos, é possível flagrar em solo pátrio o amor dos brasileiros pela bola, que é rolada em qualquer superfície. Foi isso que constatou o fotógrafo Arnaldo Carvalho, quando saiu pelo Recife e interior pernambucano em busca dos craques anônimos
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A bola não é a inimiga / como o touro, numa corrida,
e embora seja um utensílio / caseiro e que se usa sem risco, não é o utensílio impessoal / sempre manso, de gesto usual: é um utensílio semivivo / de reações próprias como bicho; e que, como bicho, é mister / (mais que bicho, como mulher) usar com malícia e atenção / dando aos pés astúcias de mão. João cabral de Melo neto , O futebol brasileiro evocado da Europa continente junho 2010 | 77
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Um psicólogo do futebol imagina a seguinte cena: meninos jogam
na rua; a bola sobra para o cavalheiro que passa. Que fará o austero transeunte? Ficará indiferente? Devolverá a bola com as mãos? já vimos todos nós o que ele irá fazer: o homem, sem perder a gravidade, rebate a bola com o pé, aparentemente para prestar um serviço à garotada, mas na verdade porque não resiste ao elástico e impulsivo prazer de dar um chute. É sempre um grande prazer, uma das coisas agradáveis da vida, dar um chute na bola, sobretudo quando conseguimos colocá-la na meta almejada.
Paulo Mendes campos, na crônica Adoradores da bola
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Para estufar esse fil贸 / Como eu sonhei /
S贸 / Se eu fosse o Rei / Para tirar efeito igual / Ao jogador / Qual / Compositor / Para aplicar uma firula exata / Que pintor / Para emplacar em que pinacoteca, nega / Pintura mais fundamental / Que um chute a gol / Com precis茫o / De flecha e folha seca chico Buarque de Hollanda, Futebol
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o gol, mesmo que
seja um golzinho, é sempre gooooooooool na garganta dos locutores de rádio, um dó de peito capaz de deixar Caruso mudo para sempre, e a multidão delira e o estádio esquece que é de cimento, se solta da terra e vai para o espaço.
eduardo Galeano, na crônica Contem-me, pediam os cegos
@ continenteonline Veja outras fotos de peladas feitas por Arnaldo Carvalho no site www.revistacontinente.com.br
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Futebol se joga no estรกdio?
Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma.
carlos Drummond de Andrade, Futebol
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arnalDo CarValho
Crônica
samarone lima onde a bola é mais redonda Os homens chegam devagar, sonolentos, com chuteiras, tênis, sandálias. A pelada dominical no Campo de Seu Abdias, às margens do rio Capibaribe, no Poço da Panela, é para madrugadores da pelota. Às 6h, os dois primeiros times estão em campo, após breves aquecimentos, sorteio dos times, distribuição dos coletes. A bola sobe para um céu azul. Os primeiros chutes parecem despertar músculos e acordar artilheiros. O campo tem raros tufos de grama. É na terra batida que chuteiras amarrotadas, meiões arreados, calções de várias cores se misturam, harmonizando os homens e suas circunstâncias, na busca do gol possível, da vitória que permita o único prêmio nas manhãs dos peladeiros: permanecer em campo, para mais um jogo, até que a derrota os separe dessa relação amorosa com o campo e a bola. Do lado de fora, alguns poucos torcedores observam. Comentaristas duros soltam um “isso é uma miséria” para um passe errado, ou “olha pra essa desgraça”, após um gol perdido debaixo da barra. Alheios a tudo, os homens correm, suam, gritam, fazem faltas, gols, chutam a bola para o mangue, interrompendo o jogo nos momentos mais dramáticos. Há quase 15 anos, das 6h às 9h, os atletas do Caducos Futebol Clube trocam passes, rendem-se no interminável culto à bola, e renovam a amizade. Se em muitos campos de terra batida surgem craques para clubes, nos Caducos, a esperança da glória futebolística já passou. Quase todos os jogadores estão acima dos 30 anos. O objetivo é somente jogar. Se possível, vencer. A escalação deixa de lado os nomes de batismo. Prevalecem os populares apelidos. Peitão toca para Dinho Papeira, que passa para Camorim, que chuta para a defesa espetacular
do goleiro Bode. Batman cruza para Day, que toca para o Mudo, que passa para Noé debaixo da barra, que chuta para Calango encaixar, derrubando o boné. Cioba fica ao lado, reclamando por não terem tocado para ele. Ciço Boi e Carne de Vaca há tempos têm faltado. Quando jogam, mal aguentam o primeiro tempo. Pedem para sair. “Estou morto”, é o argumento. Aqui, a bola parece ser mais redonda. Desliza para os lados do campo com facilidade, após o grito de “vira o jogo”, “toca”. Em algum momento, galinhas atrevidas podem atravessar o campo, sem interromper a disputa. Ao lado, compondo a paisagem, varais com roupas adormecidas no sereno. Após “dois tempos de 15”, os derrotados saem de campo, abrindo a temporada de reclamações. Aquele passe errado, falha na marcação, aquele gol perdido “sozinho”. Indiferente, o time vencedor bebe a santa água e aguarda o próximo adversário. E tudo recomeça, com o sol já esquentando, até que todos tenham jogado, durante três horas. Terminada a jornada, os homens sentam para acertar as contas. Quem pagou a taxa de R$ 1,00 está em dia com o caixa. Os nomes são anotados em caderno antigo, de capa verde. Dois ou três ficarão encarregados de levar os coletes para lavar, trazendo de volta no próximo domingo. Do caixa, sai o dinheiro para um guaraná e o pagamento do aluguel do campo: R$ 30,00 por mês. Noé repete seu ritual dominical. Ainda suado, de chuteiras, pede uma cerveja e bebe sossegadamente, como um jogador que acabou de ganhar um título. O brega começa a tocar, enquanto os Caducos comentam lances, jogadas, gols. Numa caixa de papelão, os apetrechos são recolhidos. Duas bolas, pagas a crediário, junto com o dinheiro acumulado, apito, cartões amarelo e vermelho. Em algum momento do domingo, a pelada acaba. Restam o cansaço, o suor, a certeza de ter começado bem o dia. Aos poucos, o domingo normal, o dos outros, vai chegando. “Até domingo”, repetem os companheiros de pelada, dispersandose. E é como se fossem irmãos.
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acervo Uma exposição alojada por baixo das arquibancadas
Museu do Futebol, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, abriga boa parte da história do esporte no Brasil, com seus times, heróis e fatos revelantes exibidos em versão high tech texto Fábio Victor Fotos Flávio Lamenha
o museu começa ao ar livre.
Sobrevivente do art déco com influência fascista que marcou a arquitetura de prédios públicos paulistanos na Era Vargas, o estádio do Pacaembu vale, sozinho, uma visita. Tanto melhor se for num dia em que a feira livre ocupe a vasta praça defronte, a Charles Miller – terças, quintas, sextas e sábados –, o que garante o pastel com caldo de cana, refeição de rua típica da cidade. No acesso principal ao estádio, inaugurado em 1940, está a entrada do Museu do Futebol, instalado embaixo das arquibancadas, nos intestinos do monstro de concreto. Da confusão/ comunhão entre estádio e museu, um como extensão do outro, vem o melhor do que se seguirá. Não é um museu convencional, com acervo convencional. Quem busca troféus, camisas antigas, chuteiras lendárias, pertences dos grandes craques e registros documentais dos grandes times, esqueça. No lugar de obras ou objetos, “experiências” audiovisuais; em vez da contemplação, a interatividade tão cara à arte contemporânea. Não à toa, a museografia é de Daniela Thomas, expoente da cenografia brasileira que transpõe sua experiência com cinema e teatro para as exposições que monta, quebrando parâmetros entre as formas de arte, e de Felipe Tassara. Nesse sentido, a primeira sala do museu, um hall batizado de Grande área com imenso pé direito, é enganosa: por suas paredes
num dos espaços, é possível conferir gols antológicos, escolhidos por 26 nomes ligados ao futebol espalham-se flâmulas, cartazes, ilustrações de times e jogadores de todo o Brasil – itens de uma memorabilia que pouco se repetirá a partir de então. Após a escada rolante que leva ao primeiro dos dois pavimentos, em frente à qual um Pelé em vídeo dá as boasvindas em três línguas, têm início as “experiências”.
BReU AtRÁS De BReU
A sala dos Anjos barrocos é a primeira que vale a pena. Num ambiente escuro, 25 ícones do futebolarte nacional têm suas imagens projetadas em painéis acrílicos suspensos, criando um belo efeito espectral, ampliado por um som de tambores. Estão lá Pelé, Garrincha, Didi, Zizinho, Nilton Santos, Zico, Romário e os pernambucanos Vavá e Rivaldo, este um dos quatro ainda em atividade da galeria – junto com Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo e Roberto Carlos. Em seguida, monitores de TV espalhados por cabines que lembram naves exibem gols antológicos
escolhidos por 26 nomes ligados profissional ou afetivamente ao futebol, que em depoimentos justificam suas preferências. Pelo subjetivismo da seleção de depoentes e, portanto, dos gols escolhidos, é uma das salas mais sujeitas a contestações. Torcedor do Inter de Porto Alegre, Luís Fernando Veríssimo elege como gol mais emocionante de sua vida o de Figueroa na vitória sobre o Cruzeiro na final do Brasileiro de 1975. Galvão Bueno cita um não gol, o pênalti perdido de Baggio que deu o tetra à seleção em 1994. E, nessa, o sujeito gasta minutos dentro da nave, relembrando alguns gols de fato inesquecíveis, como o terceiro de Paolo Rossi contra o Brasil em 1982, e muitas vezes tentando entender o que é aquele depoimento e que raios aquele gol sem graça está fazendo ali. Basta então virar para trás para ver/ouvir a homenagem a grandes locutores de rádio: em cabines com fones de ouvido, narrações de “gargantas de aço” como Pedro Luiz, Osmar Santos e Ary Barroso são sincronizadas com imagens e efeitos num monitor à frente. O pobre torcedor do Sport sai de lá se perguntando por Roberto Queiroz ou Ivan Lima, mas, num átimo, uma nova escada rolante já o joga no segundo pavimento e num outro breu. Concreto, ruína, montes de areia, jeito e cheiro de um canteiro de
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Página anterior 1 tecnoLoGiA
Painéispr ojetam imagens que narram o contexto histórico das Copas
Nesta página 2 ANJOS BARROCOS
nesta sala, 25 imagens de grandes craques do futebol-arte nacional são projetadas em painéis de acrílico suspensos
3 MeMóRiA osqua dros giratórios da sala Origens resumem a história do Brasil a partir do esporte mais popular no país
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obras, convite ao atordoamento. Há dois telões, mas as imagens projetadas vazam para todos os lados. São torcidas brasileiras, gritando seus cânticos. Nenhuma é identificada.“Quer dançar, quer dançar, o Timbu vai te ensinar” – surgem os alvirrubros nos Aflitos. “Arreia, Jovem, arreia”, “Chegando lá na Ilha do Retiro, vou abrir alas que o Sport vai jogar”. Dá vontade de ficar. Imagens lembram a massa do Santa Cruz no Arruda, mas cadê os gritos? Surge uma multidão, de pronto tentamos adivinhar que time é aquele, o que dizem aqueles coros. No breu de um canteiro de obras, nas entranhas do Pacaembu, a sala Exaltação mostra as 30 maiores torcidas do país (disso só saberá quem ler o folder) e é a mais sensorial e surpreendente do museu.
GÊnioS DA BoLA
Um passeio pelos primórdios do futebol no Brasil é o que vem a seguir, em Origens. Quadrinhos giratórios com fotos antigas e um filmete compõem uma aula
o ambiente mais exuberante e multicolorido é a sala que conta a história das copas, através de fotos e vídeos resumida de história do Brasil a partir do seu esporte mais popular, função complementada pela sala seguinte. Em Heróis, Leônidas da Silva e Domingos da Guia são equiparados a artistas e intelectuais do século 20, fundadores da identidade nacional, como Villa-Lobos, Gilberto Freyre, Portinari, Drummond e Caymmi. Há uma salinha-corredor dedicada à derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 1950, apropriadamente batizada de Rito de passagem. Cai-se então no ambiente mais exuberante e multicolorido do museu, a sala que conta a história de todas as Copas, por meio de totens com fotos e vídeos dos Mundiais e do seu contexto histórico. Os
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totens evocam buquês de flores, ou árvores, ou cogumelos, ou taças. Segue-se uma sala dedicada a Pelé e Garricha e outra, espaçosa, voltada a números e curiosidades, que parece acolher tudo que não foi mostrado por falta de espaço. Informações de almanaque, descrição de regras do jogo, um painel dedicado aos árbitros (com depoimentos maravilhosos de mães de juízes), um para o futebol feminino etc. Nesta sala, há uma abertura para a arquibancada do Pacaembu, pela qual o visitante vê todo o estádio. A parte final, com jogos em campinhos virtuais e cobranças simuladas de pênalti com goleiro de mentira, é talvez a única agradável para crianças (dois amigos contaram que seus filhos não gostaram do museu, algo difícil de crer diante da algazarra de colegiais numa quinta-feira, o dia em que a entrada é grátis). No térreo, há ainda um espaço para exposições temporárias, um auditório, uma loja e um café-restaurante.
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33 mil visitas Inaugurado em setembro de 2008 pelo governo de São Paulo, com concepção e realização da Fundação Roberto Marinho e investimentos privados via Lei Rouanet, o Museu do Futebol custou R$ 32,5 milhões. Já é o quarto mais visitado da cidade, atrás do Masp, da Pinacoteca e do Museu da Língua Portuguesa – precursor do modelo audiovisual e interativo. Recebe quase 33 mil visitantes por mês. É gerido por uma organização social, o Instituto de Arte do Futebol Brasileiro, entidade privada sem fins lucrativos, que recebe verba pública para administrá-lo. Neste ano, de um orçamento previsto de R$ 7,5 milhões para o museu, R$ 5,5 milhões vêm do governo. O resto sai de bilheteria, aluguel de espaços (auditório, loja e restaurante) e visitas guiadas a empresas. a visitação ao museu ocorre de terça a domingo, das 10h às 18h (bilheteria até 17h), sendo fechado em dias de jogo no Pacaembu. Os ingressos custam R$ 6 e R$ 3 (estudantes e idosos) e às quintas a entrada é gratuita. Informações: (11) 3664.3848 e no site www. museudofutebol.org.br
AQUeLeS SenÕeS
O futebol não é essencial à vida (há quem discorde) e pode até não ser arte (há muito mais gente que discorda), mas é impossível ignorálo como elemento formador da identidade nacional e como espelho da nossa sociedade miscigenada. É o terreno onde a mistura vicejou, fez o país grande no mundo, pôs fim ao “complexo de vira-latas do brasileiro”, como defendia Nelson Rodrigues. E é, como se vê todo dia nos estádios, nos botecos e nos escritórios, a grande festa popular do país. O Museu do Futebol reflete essa significação, o bastante para que seja celebrado como uma boa iniciativa e um grande programa para quem gosta do esporte ou de história do Brasil. Mas tem seus senões. Faz falta que não exiba como as artes nacionais interpretaram e interpretam o próprio futebol. Há também quem ache que concentra demais seu conteúdo no eixo Rio – São Paulo. Ora, se pensarmos que Ademir, Vavá e Rivaldo, os três pernambucanos
com poucas menções aos times de fora do eixo sul-sudeste, o acervo não representa a diversidade do futebol no país de maior projeção no futebol, tiveram de sair cedo do Recife para serem reconhecidos – como reflexo inequívoco de que no século 20 o centro-sul já consolidara sua dominação econômica no país –, parece natural que haja mesmo mais times e referências do Rio e São Paulo. Por outro lado, ainda com menções aqui e ali a times de fora do eixo, o acervo de fato não dá conta da diversidade imensa do futebol no país. Seria bem-vindo, por exemplo, um painel com o mapa do país no qual se contasse um pouco da história do futebol pelas regiões. “O clamor dos pernambucanos sempre se fez ecoar no Brasil, e esta é uma boa ideia a ser considerada”,
disse com bom humor, ao ouvir a sugestão, o curador do museu, Leonel Kaz, para quem o acervo dali é uma obra em progresso. “A cada minuto que passa mais me convenço – e não digo isso porque você é pernambucano – que devo esse museu a Gilberto Freyre. Se eu não tivesse lido Casa-Grande & Senzala, esse museu não existiria”, afirmou Kaz, com os olhos marejados. A diretora do espaço, Clara Azevedo, pondera que qualquer museu é uma seleção e que escolher implica excluir. Mas avisa que há muitos novos projetos em estudo, entre eles o de uma cabine com hinos de clubes. Na sala das Copas, o climão aumenta. Percebemos ali que apenas dois Mundiais, pela conquista inédita ou sublime, mereceram um totem/buquê só para eles: os de 1958 e 1970. Pela tacanhice do atual treinador e pelas ausências gritantes de “anjos barrocos” no grupo convocado por ele à África do Sul, é possível prever que, no futuro, 2010 será uma nesga num pé de totem no Museu do Futebol.
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Artigo
reProDUÇÃo Do liVro PELÉ: O SUPERCAMPEÃO, eDitora MCGraW-hill
evaldo costa pé de preto, cabeÇa de branco
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PeLÉ e ZAGALLo
a dupla cisão entre pé x cabeça e preto x branco continua sendo a exata tradução da sociedade brasileira
não é difícil entender por
que damos tanta importância ao Mundial de Futebol. Acostumados a contemplar nossa condição de pobresterceiros-mundistas-em-quase-tudo, não suportamos o insucesso numa área – se não única, mas sem dúvida a mais importante – na qual somos “o” primeiro mundo. De fato, o futebol brasileiro é um caso de sucesso global. Somos no mundo da bola o que os Estados Unidos são na economia e na guerra. E não é de hoje. Olhe os grandes campeonatos de clubes do mundo: há muito tempo suas principais estrelas são jogadores brasileiros. Mas numa dimensão o futebol brasileiro não tem a projeção devida. Se, com a bola nos pés, somos, indiscutivelmente, os maiores, com a prancheta na mão ficamos em posição modesta em um possível ranking global. Ou seja, temos centenas de estrelas dentro dos campos e raríssimos treinadores com reconhecimento internacional. Parreira tem, embora sempre em seleções periféricas. Felipão teve, em Portugal. Não vale citar Zico, no Japão, Renê Simões, na Jamaica, e outros do gênero: estão no terceiro mundo. Alguém poderia dizer que nossa língua marginal atrapalharia. Mas como explicar os êxitos de portugueses (como Mourinho), italianos, eslovenos e sabe-se lá mais o quê? Agora, tem uma coisa um tanto difícil de compreender: por que somos tão bons para fazer e tão pouco competentes para comandar? Sabemos tocar, mas não conseguimos reger? Numa canção gravada em 1974, Gilberto Gil bradou: “Viva Pelé do pé preto!/Viva Zagallo da cabeça branca!”. Fazia a louvação do encontro de gerações – o pé preto do moço, a cabeça branca do velho – como receita de sucesso. Errou no futebol, mas acertou na vida. A dupla cisão pé/cabeça e preto/branco continua
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sendo a mais perfeita tradução da sociedade brasileira. Começou na casa-grande e na senzala e sofreu atualizações. Hoje se exprime no par colarinho branco/colarinho azul, sem jamais deixar de reproduzir a fratura essencial: aqui, o pé que amassa a grama não é o mesmo que pisa o carpete da federação. Entregue a suas elites, sem dúvida menos competentes que seu povo, o Brasil brilha no palco, mas some nas coxias. Pé de preto, cabeça de branco sintetiza uma visão do apartheid social brasileiro. A maioria de pele escura entra com o corpo, a arte e o suor, a minoria de pele clara com o saber acumulado ao longo das gerações e o poder de mandar. Claro que isso não é tão simples. Há outras cisões a considerar. Principalmente, certo antiintelectualismo que supervaloriza a intuição e a inocência em desfavor do estudo e do método, que têm no futebol sua base de apoio mais agressiva. Como se fosse possível
negar que, levado a treinar para aprender a cabecear, Ronaldo Nazário não seria um jogador ainda mais fantástico. Valorizamos mais o malandro que se dá bem que o trabalhador esforçado. Artilheiro genial, Romário era mais aclamado por driblar os preparadores físicos do que por ludibriar os zagueiros. Como se não houvesse modo de combinar genialidade e técnica, habilidade e força, arte e ciência. Treinador, para que treinador?, perguntamo-nos. Treinador que impõe sua presença incômoda (“Vocês vão ter que me engolir!!”), é odiado. Treinador que amofina e perde, é idolatrado. Não é que gostemos de perder. É que preferimos manter as coisas do jeito que sempre foram, para nos sentirmos mais confortáveis. Manda quem sempre mandou, obedece quem conhece o seu lugar. Assim, leves, criativos, ingênuos e românticos, prosseguimos bons com a bola nos pés, sofríveis sentados no banco.
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11 DE CÁ
Delano escolheu pintar uma jogadora; Farfan fez a releitura de uma foto famosa de Pelé; Tereza preferiu o calor das torcidas; Christina debulhou uma bola de futebol. De seu lado, Gil Vicente tascou-lhe um cartão vermelho, enquanto Ploeg, José Cláudio e Mauricio Arraes optaram pelo lirismo das várzeas, cada qual de um ângulo diferente. George e José (ambos Barbosa), assim como Mané Tatu, se fixaram na seleção. O que o leitor verá nas próximas páginas é uma galeria de pinturas que foram feitas com exclusividade para a continente, com a intenção de tornar visível, pela arte, a vibração que toma conta do Brasil nesses dias de Copa do Mundo
Uma seleção de craques das telas, tintas e pincéis continente JUNHO 2010 | 89
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REPRODUÇÕES: MAÍRA GAMARRA
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JoSé ClÁUdIo
FélIX FARFAN
O ipojucano recebeu do arquiteto e amigo Moisés Agamenon um ingresso para assistir ao primeiro jogo da Seleção Brasileira no Recife: um amistoso no Arruda, em 1982, contra a Suíça. Todas as partidas anteriores no Estado haviam sido não oficiais, pois a Fifa só considera os duelos entre países. No dia seguinte, o artista pintou o quadro, registrando o 1 X 1 do placar.
Desde os anos 1990, o acreano radicado em Pernambuco trabalha em recriações. Farfan, que já “reinterpretou” Rembrandt, Van Gogh e João Câmara (com quem trabalhou por oito anos), recriou para a exposição a foto clássica do Rei Pelé dando seu soco no ar (seguido do atacante Jairzinho) na Copa de 1970.
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BRASIL E SUÍÇA NO ARRUDA
Óleo sobre eucatex 120 x 80 cm 1982
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PELÉ
Técnica mista sobre tela 100 x 140 cm 2010
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ChRISTINA mAChAdo Buscando provocar sensações lúdicas, a artista pernambucana utilizou a plasticidade da argila, da terra e o couro de uma bola descosturada para recriar, de maneira nostálgica, as peladas no bairro da Madalena jogadas pelos seus dois filhos há mais de duas décadas. A tela recebe o sugestivo título de Passa a bola, pisa na bola... e assim caminha a humanidade.
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PASSA A BOLA, PISA NA BOLA E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE
Bola de couro e argila sobre tela 90 x 90 cm 2010
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JoSé BARBoSA Primeira vez que utiliza uma cena televisiva como inspiração, o quadro intitulado O choque da decisão representa uma final assistida pelo artista, que buscou retratar o futebol enquanto dança, movimento, e a tensão de um jogo televisionado ao vivo.
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O CHOQUE DA DECISÃO
Acrílico sobre tela 120 x 180 cm 2010
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MAURICIO ARRAES Torcedor do Íbis, o recifense simpatiza com as peladas, como a que pintou em óleo sobre tela. As peladas, aliás, constituem um quadro do cotidiano brasileiro, tema recorrente na obra deste seguidor da tradicional escola figurativista pernambucana.
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PELADA EM OLINDA
Acrílico sobre tela 80 x 70 cm 2010
DELANO Recatado e introvertido, Franklin Delano vive isolado em sua casa nas ladeiras de Olinda, onde se esconde e de onde espreita a realidade que evita. Quebrando com a hegemonia masculina futebolística, o artista representou a crescente atuação feminina no futebol, retratando uma figura andrógina em seu quadro.
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MULHER NO FUTEBOL
Óleo sobre tela 120 x 80 cm 2010
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GIl vICeNTe O ex-aluno da Escolinha de Arte do Recife acompanha de perto os jogos do Náutico (seu time) e da Copa do Mundo, mas retrata um momento menos eufórico do futebol: a expulsão, na acrílica sobre papel Cartão vermelho para você. O vencedor do prêmio Funarte fez sua primeira individual em 1978. Recentemente, expôs em Madri, participando da mostra Brasil Arte Contemporânea.
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CARTÃO VERMELHO PRA VOCÊ
Acrílico sobre papel 96 x 66 cm 2010
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GeoRGe BARBoSA “O futebol é quase uma instituição.” Esta é a percepção do alvirrubro George Barbosa acerca da paixão brasileira pelo jogo. O artista, que costuma fazer séries temáticas sobre lugares que visita, admira o local de prestígio ocupado pelos esportes na sociedade. 8
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FUTEBOL
Óleo sobre tela 100 x 100 cm 2010
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TeReZA CoSTA RÊGo Com trabalhos que retomam temas como a história, a representação feminina e os animais, a artista confessa sentir dificuldades em retratar o jogo de bola tão valorizado pelos brasileiros. Para superar esse desafio, mergulhou nas multidões das batalhas históricas, representando a alegria das torcidas.
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A TORCIDA
Acrílico sobre eucatex 100 x 100 cm 2010
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mANé TATU Manoel Cláudio, ou Mané Tatu, segue a escola figurativa do pai, o artista plástico José Cláudio. O tricolor pernambucano é apaixonado pelo seu time. Fez uma tela mais “universal”, unindo elementos representativos do futebol, e, para tal, utilizou o preto e branco, sem especificações de times. 10 NA ZONA DO AGRIÃO
Acrílico sobre duratex 90 x 100 cm 2010
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RoBeRTo ploeG Grande apreciador de futebol, Roberto Ploeg vivenciou em sua juventude a alegria de ver a seleção holandesa, conhecida como a “Laranja Mecânica”, ser vice-campeã na Copa de 1974, na Alemanha. Além de jogar todas as segundas, à noite, Ploeg inspirou-se nas peladas dos meninos das redondezas de seu sítio em Ouro Preto para pintar sua tela.
11 PELADEIROS
Óleo sobre tela 90 x 70 cm 2010
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11 DE Cá Artistas plásticos pernambucanos interpretam o futebol exposição no paço Alfândega Rua madre de deus, s/n, Recife Antigo 5 a 24 de junho Segunda a sábado, das 10h às 22h; domigos, das 12h às 20h continente JUNHO 2010 | 95
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Túlio Velho Barreto
FREYRE E O FUTEBOL-ARTE
túlioVelho Barreto
é cientista político, professor e pesquisador maíra gamarra
no livro Visão do jogo, o historiador José Moraes dos Santos Neto aborda o que chama de “primórdios do futebol no Brasil”. A obra, muito bem-escrita, contribui para desfazer alguns mitos. O principal: mostra que o futebol aportou por aqui antes mesmo do paulista Charles Miller – considerado “pai do futebol brasileiro” – retornar ao país em 1894, após concluir estudos na Inglaterra. Mas Santos Neto reconhece a relevância do filho de escocês e da brasileira para a consolidação do football association entre nós. E ajuda a entender por quê, aqui, o “jogo de dribles” dos ingleses se impôs ao “jogo de passes” dos escoceses. Ocorre que os primeiros fundadores de clubes de futebol no país – Miller, em São Paulo, Oscar Fox, no Rio, e Guilherme Fonseca, em Pernambuco – conheceram e praticaram o jogo na terra da rainha. Inicialmente, o futebol disputado sob as regras inglesas, criadas a partir de 1863, se estabeleceu no Brasil como um esporte de elite. Mas não demorou a se popularizar e a chamar a atenção de autoridades e intelectuais. Em 1938, por exemplo, Getúlio Vargas escreveu, em seus diários, sobre o impacto da campanha brasileira na Copa do Mundo da Itália na população local. E Gilberto Freyre, acerca do estilo brasileiro de jogar o esporte bretão. Estilo, aliás, criticado por Mario Cardim, jogador, dirigente e jornalista esportivo, 30 anos antes. Para ele, a prática do “jogo pessoal” era condenável, pois “o excesso de dribling não tem valor no futebol moderno”. Freyre pensava diferente. Publicado no Diario de Pernambuco, em 17/6/1938, seu artigo tinha título emblemático, Football mulato, e esmiuçava essas ideias de Sobrados e mucambos (1936): “É curioso observar-se hoje – largos anos depois dos dias de repressão mais violenta a tais africanismos (ele se refere ao samba, à capoeiragem, aos cultos religiosos) – que os descendentes dos bailarinos da navalha e da faca como que se vêm sublimando nos bailarinos da bola, isto é, da bola de football, do tipo dos nossos jogadores mais dionisíacos (com) os passos do samba se arredondando na dança antes baiana que africana”. Já em Football mulato, Freyre explicita as características do estilo brasileiro de jogar futebol com suas “qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual”. E afirma que “os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar o football, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente”, resultam de nosso “mulatismo flamboyant” . Certamente, o escritor pernambucano não inventou o estilo brasileiro. Mas, ao caracterizá-lo como dionisíaco e ao relacioná-lo ao nosso modo de vida, contribuiu para dar-lhe sentido antropológico e legitimá-lo. Ou o que nos acostumamos a identificar como futebolarte não é o football mulato ou o estilo dionisíaco ali descritos? Ora, o insuspeito historiador inglês Eric Hobsbawn nos dá uma pista em Era dos extremos ao indagar: “Quem, tendo visto a seleção brasileira jogar em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?”
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