Continente #115 - Pelas ruas de triunfo

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julho 2010

léO CAldAS

aos leitores História, tradição e novas tecnologias são alguns pontos que perpassam esta edição da revista Continente. Na reportagem de Viagem deste mês, fomos a Triunfo (foto), um dos lugares mais charmosos do Estado. O município é um pequeno milagre da geografia local. Contrariando as características naturais sertanejas, por se constituir um brejo de altitude, exibe uma flora diversificada, sendo provida de recursos hídricos, e tendo um clima temperado que permite ao visitante desfrutar das vantagens das baixas temperaturas. Se um dos destaques de Triunfo é sua gastronomia, na qual os doces das sobremesas são finalizações irresistíveis, a seção Cardápio de julho registra a harmoniosa união das comidas em par. Feijão com arroz, macaxeira com charque, queijo com goiabada são algumas das almas gêmeas da culinária nacional, que nunca saem dos cardápios e andam recebendo releituras. Outra relação – esta, bem menos apetitosa – é a que se dá entre as doenças e a arte, que as representa;

um assunto pouco abordado, tanto em pesquisas acadêmicas quanto na crítica cultural. O jornalista Marcelo Robalinho foi em busca do tema e trouxe uma interpretação a partir da observação de obras pontuais da história da arte, do medievo aos dias de hoje. Ainda no que diz respeito ao olhar sobre o passado e as tradições, nesta edição, lembramos o bicentenário de nascimento de dois dos maiores nomes da música erudita: Frédéric Chopin e Robert Schumann. Entre os dias 31 deste mês e 23 de agosto, a Companhia Editora de Pernambuco realiza o Festival Chopin/Schumann, que reunirá importantes virtuoses em torno da obra pianística desses compositores incontornáveis. No que tange às novas tecnologias, a Continente dedica algumas de suas páginas ao avanço dos e-readers e e-books no mercado nacional e internacional. Ouvimos editores, livreiros e escritores que discutiram a possibilidade do fim do livro impresso e defenderam que o mercado de livros eletrônicos e leitores digitais é um caminho sem volta.

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sumário Portfólio

Marcos Michael 06

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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Monica Schmiedt Em Doce Brasil holandês, cineasta gaúcha aborda a nostalgia da colonização holandesa em Pernambuco

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Balaio

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Música

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Peleja

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Perfil

Leitura

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Matéria corrida

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Lendário Falecido em maio, o ator Dennis Hopper entra para a história como um dos maiores rebeldes de Hollywood

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José cláudio Sobre a poética de José Barbosa

claquete

cinema marginal Obra do diretor de O bandido da luz vermelha é destaque em exposição que reúne sua produção singular e fragmentária

Palco

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Artigo

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Saída

tV Os seriados elevam a qualidade artística da teledramaturgia?

O fotógrafo registrou em ensaio os bastidores de uma competição de fisiculturismo, em que os participantes se exibem uns para os outros

Paul e Jane Bowles Enquanto se comemora o centenário do escritor, a obra literária de sua esposa ainda espera pelo reconhecimento

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Piano O Recife promove festival para celebrar a obra dos compositores Frédéric Chopin e Robert Schumann

Fé Zé Novo percorre cidades em busca de necessitados para dar bênçãos

Breculê Septeto cearense estreia com o CD Vidas volantes, exibindo talento e virtuosismo ao trabalhar com diversos ritmos

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conexão

Longform Site americano vai na contramão do jornalismo de pequenas notas, privilegiando bons artigos e grandes reportagens

Sonoras

Daqui prali Viviane Madu leva às ruas dança-performance em que se movimenta a partir das figuras do andarilho e do caboclo-de-lança Crowdfounding Experiência da cantora Jill Sobule comprova a viabilidade de artistas serem financiados pelos fãs Sérgio nilsen Barza Gustav Mahler e o Romantismo Tardio da segunda metade do século 19

Viagem Triunfo

Situado no sertão do Pajeú, o município possui clima temperado, belas paisagens repletas de plantas e flores, água em abundância e fauna variada. Em nada se assemelha à rudeza sertaneja

50 Capa Foto Léo Caldas

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tecnologia

especial

Mercado editorial discute seu futuro, no momento em que novos modelos de leitores e livros digitais começam a ocupar o espaço que antes pertencia apenas ao livro impresso

Pinturas e gravuras mostram como as sociedades, ao longo dos séculos, encaram epidemias e enfermidades, e contribuem para seu imaginário

cardápio

Visuais

Doces ou salgadas, solidas ou líquidas, as iguarias combinadas são clássicos da culinária nacional, como o Romeu e Julieta, que passam por releituras

Ensaios fotográficos dos livros Brincantes da Mata expressam a maior possibilidade de aproximação das autoras com os temas que elegeram

E-books

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Comida em par

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Arte e doença

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Jul’ 10

Fotografia

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cartas Hits das rádios Expresso minha crítica, embora tardiamente, ao Balaio da edição de março, que faz louvores a um tal Rodrigo Mel, autor de “sucessos” como Chupa que é de uva. Ironicamente, a mesma edição da revista traz matérias excelentes sobre música, e eu – acostumada à unidade que conduz qualitativamente a Continente – tive uma surpresa desagradável com a história do rapaz. Só mesmo uma situação traumática levaria alguém a produzir coisas tão ruins; não encontro motivos para ressalvar o fato de uma tendinite ter arrancado um músico dos acordes da boa produção e o levado a compor esse forró estilizado que já encontra lugar em demasia para ser louvado. Não esperava, mesmo, que a Continente fosse mais um palco para isso; aliás, lembro um número da revista que trazia uma matéria extraordinária sobre a grosseria reinante no forró contemporâneo. PATRÍCIA VÊNUS IGUATU–CE

ReSPoStA DA ReDAÇÃo Há aspectos distintos que gostaríamos de comentar sobre a carta. O mais importante diz respeito à postura profissional que adotamos de não nos posicionarmos quanto à produção artística, julgando a priori o que é bom ou ruim. O leitor que reler edições passadas e recentes verá que assim temos atuado: refletindo sobre a diversidade de criações artísticas atuais e históricas. Por isso, não vemos por que privarmos do nosso repertório qualquer gênero musical que esteja em curso, seja de consumo massivo ou para plateias diminutas, ainda que pessoalmente tenhamos nossos gostos, preferindo, na nossa privacidade, este ou aquele estilo musical. O outro ponto em que queríamos tocar é quanto à especificidade da nossa seção Balaio, um lugar editorial no qual (como aponta seu nome) colocamos de tudo: caricaturas, curiosidades, ideias e, como acreditamos ser o caso da nota apontada, situações inusitadas.

Ópera Gostaria de parabenizar a revista Continente pela abordagem do tema ópera na edição do mês de maio. Se, como dizia Carlos Gomes, só se entende verdadeiramente o teatro quando se vai à ópera, é deveras lamentável ainda não termos acesso a produções artísticas desse porte. A matéria levanta questões importantes e desconhecidas da maioria de nós, como a do grande contingente de trabalhadores necessários para o espetáculo, a falta de investimento no Brasil e as poucas incursões que fizemos nesse campo. Espero que a iniciativa da revista estimule esse tipo de produção no campo das políticas públicas. PELSoN RABELo PETRoLINA–PE

eRRAtA A obra do artista pernambucano Rodrigo Braga, publicada na edição de junho, é, na verdade, um trabalho fotográfico, e não um vídeo.

VoCÊ fAz A continente Com A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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colaboradores

Bruno nogueira

Fernando Monteiro

Marcelo Robalinho

Márcia Lira

Jornalista, doutorando em comunicação. Comanda o blog Pop up!

Escritor, autor de livros como Armada América e A cabeça no fundo do entulho.

Jornalista, mestre em comunicação. Tem como foco de interesse a área de saúde.

Jornalista, apaixonada por literatura e por tudo que envolva tecnologia.

e MAiS Andrea trigueiro, professora e mestranda em educação tecnológica. carlos eduardo Amaral, mestrando em comunicação social pela UFPE e crítico de música clássica. eduardo Queiroga, fotógrafo e um dos fundadores da agência Lumiar Fotografia. estela Maris Saldanha, professora, jornalista e atriz. Léo caldas, fotógrafo. Marcelo costa, jornalista e mestrando em comunicação. Sérgio nilsen Barza, regente, professor do Conservatório Pernambucano de Música. Rafael teixeira, jornalista. Renata do Amaral, jornalista, mestre em comunicação.

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Nélio Câmara (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃo, ADmINISTRAÇÃo E PARQUE GRÁfICo Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

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Monica SchMiedt

investigação de uma “nostalgia”

Cineasta gaúcha conclui documentário Doce Brasil holandês, em que aborda a herança da colonização em Pernambuco, questionando por que sentimos saudade do período histórico texto Rafael Teixeira

con ti nen te

Entrevista

Por que um país teria saudades do seu invasor? É essa, em resumo, a intrigante pergunta que motiva Doce Brasil holandês, documentário da cineasta gaúcha Monica Schmiedt, 48 anos, com lançamento previsto para agosto, em Pernambuco. Diretora de Extremo sul (2004) e Antártida, o último continente (1997) – e produtora executiva de Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, e de Memórias póstumas (2000), de André Klotzel, entre outros –, ela levou quatro anos para realizar esse filme de 52 minutos, gravado inteiramente em HD. No processo, Monica desvendou muito do que está por trás da chamada “saudade do Brasil holandês” – ou da “nostalgia nassoviana”. O termo foi criado pelo historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, um dos mais importantes pesquisadores do período de 1630 a 1654, em que a Holanda, representada na figura de Maurício de Nassau, dominou Pernambuco. “O que me interessava era dar luz a essa curta e incomum parte da história brasileira, que alimenta a imaginação

de alguns e ajuda a justificar a maledicência de nossas origens portuguesas para outros”, diz a diretora, que estudou arquitetura e história antes de se dedicar ao cinema. Para levar adiante essa busca por respostas, ela contou com o auxílio de duas historiadoras: a alemã Sabrina van der Ley e a pernambucana Kalina Vanderlei. Depoimentos de especialistas no período da dominação holandesa no Brasil e de moradores comuns do Recife são apresentados ao longo do filme. Mas são as duas, unidas pelo mesmo sobrenome de origem holandesa, que servem de fio condutor para o documentário. continente O tema do filme, a chamada saudade do Brasil holandês, já lhe interessava antes de realizá-lo? MonicA ScHMieDt Nós, brasileiros, somos pródigos em maldizer nosso colonizador português. Sempre achamos que se tivéssemos sido colonizados, talvez, por europeus do norte, nosso destino poderia ter sido

diferente. O Brasil é um país de imigrantes, e no Rio Grande do Sul, onde vivo e onde existem muitos descendentes de alemães e italianos, a nostalgia europeia está presente em nossa cultura. A história do Brasil holandês, com os feitos de Nassau no Recife, vem de certa forma corroborar o mito de que um Brasil holandês teria sido melhor que o português. Observando as demais colônias holandesas, nada desenvolvidas, resolvi investigar essa nostalgia. continente E a que conclusões você chegou? MonicA ScHMieDt A “nostalgia nassoviana” é justificada pelos historiadores principalmente como uma necessidade política de afirmação da República. Era necessário negar a raiz portuguesa para instituir uma República. É quando, então, se resgata a história da colonização holandesa. Maurício de Nassau, o governador do Brasil holandês, construiu uma cidade planejada, patrocinou artistas e

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mauro schaefer/divulgação

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curta e incomum parte da história brasileira que, mesmo 350 anos depois, alimenta a imaginação de alguns e ajuda a justificar a maledicência de nossas origens portuguesas para outros. Desmontar o mito de um Brasil holandês mais próspero e desenvolvido é fácil, ao observar as demais colônias batavas. O Suriname, a Indonésia e a África do Sul não são holandas ultramarinas. E, diferentemente do que ocorre no Brasil, os holandeses são detestados nessas suas ex-

Brasil holandês. É um Brasil holandês com escravos ou um Brasil holandês sem escravos, um Brasil português com escravos ou um Brasil português sem escravos”. continente Quais são os maiores legados da invasão holandesa para Pernambuco? MonicA ScHMieDt Para mim, o maior legado que os holandeses deixaram foi a produção artística e científica daquele período. Quando tomei conhecimento das pinturas

foto: divulgação

cientistas que documentaram o país e os tipos brasileiros, sextuplicou a produção de açúcar e restabeleceu a paz, dando liberdade religiosa a judeus, católicos e protestantes. Assim, esse período da história, aparentemente melhor que o da colonização portuguesa, justificava a negação do reinado e seu legado português. Mas o filme não se atém exclusivamente às justificativas históricas. Também vai atrás dos vestígios da herança cultural holandesa. A preocupação foi

con ti nen te

Entrevista levantar os fatos e observar como o brasileiro se vê, apropriando-se ou não da sua própria história. continente Muito se fala em mito nessa “saudade do Brasil holandês”, e você mesma questionava essa saudade antes de fazer o filme. Como analisa isso? MonicA ScHMieDt Durante a pesquisa, não poderíamos ser levianos, buscando exclusivamente fatos e depoimentos que comprovassem que a saudade existe ou existiu. Tampouco tínhamos a intenção de fazer uma tese histórica. Assim, consultamos a bibliografia e os historiadores sem preconceitos. O que me interessava era dar luz a essa

colônias. Só isso já justificaria a pergunta principal do filme: por que um povo teria saudade de um invasor? Acredito que a nostalgia seja lapidada pelo tempo e apropriada como melhor convém ao presente. E, como diz Kalina Vanderlei no filme: “Um historiador não conta verdadeiras histórias”. continente Em que medida você acha que a história de Pernambuco e, talvez, do Brasil teria sido diferente se tivesse permanecido sob colonização holandesa? MonicA ScHMieDt Vou transcrever um depoimento de Evaldo Cabral de Mello, de que gosto muito, e que está no filme: “O problema, na verdade, não era um Brasil português ou um

de Frans Post e Alberto Eckhout, vi que seria possível mostrar o Brasil do século 17, e não apenas falar dele. O Brasil já havia sido descoberto 100 anos antes e não havia sido documentado in loco até então. Agora, o espírito pernambucano provavelmente se deve mais a Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre do que a Maurício de Nassau. continente Ao longo das filmagens, que depoimentos chamaram especialmente a sua atenção? MonicA ScHMieDt Durante as pesquisas, a Mirella Martinelli, uma das roteiristas do filme, perguntou a um vendedor de picolés, que estava ao lado da estátua de Nassau,

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quem era Maurício de Nassau, e ele respondeu que “era o dono da fábrica de cimento”. Um guia turístico de Olinda nos mostrou uma casa do século 19 como tendo sido a residência de Maurício de Nassau. Um ex-funcionário do governo disse, com um sorriso no rosto, que depois de Miguel Arraes, Maurício de Nassau foi o melhor governador que Pernambuco já teve. Mas difícil mesmo foi editar os depoimentos dos historiadores, pois eram muito bons. Dava pena de cortar.

“o que nos surpreendeu foi a transformação pela qual passou a Sabrina van der Ley durante seus 12 dias em Pernambuco. não só a cor da pele mudou, mas o sorriso ficou mais fácil. A recepção que ela teve dos Wanderleys brasileiros a tocou, e também a sua família. Sabrina é uma pessoa generosa”. continente Por que a decisão de acompanhar duas historiadoras, em vez de simplesmente fazer uma série de entrevistas? MonicA ScHMieDt Os filmes com personagens são mais interessantes, e o sobrenome Wanderley, que teve origem com o soldado holandês Gaspar van der Ley, que veio ao Brasil com as tropas de Nassau, foi muito inspirador para o roteiro. Fazer um documentário sobre a história é um tremendo desafio para o realizador. O assunto, por si só, pode provocar bocejos, o que, associado à inexistência de imagens do tema tratado, pode ser o caminho mais rápido para a chatice. O que nos surpreendeu foi a transformação pela qual passou a Sabrina van

der Ley durante seus 12 dias em Pernambuco. Não só a cor da pele mudou, mas o sorriso ficou mais fácil. A recepção que ela teve dos Wanderleys brasileiros a tocou, e também a sua família. Sabrina é uma pessoa generosa, que soube admirar o Brasil sem perder o senso crítico, e conferiu ao documentário o tom humano que a história pedia. continente Como foi o desenvolvimento do filme, da ideia à sua conclusão? MonicA ScHMieDt Levamos quatro anos para realizá-lo, da primeira sinopse escrita, passando pela captação de recursos e chegando à finalização. Diferentemente de meus outros projetos de documentários, que se transformaram muito durante a realização, esse se manteve fiel à primeira ideia. Eu sempre achei que Nassau era um personagem incrível para um filme de ficção, mas não estava disposta a fazer um filme de época. Quando essa ideia voltou à pauta, vi que me interessava muito mais pelo imaginário em torno daquele personagem do que pela descrição histórica e cenográfica daquele período. Como a história é contada e interpretada hoje, qual a evolução dos fatos, como eles foram manipulados durante quase 400 anos, conforme os interesses políticos, a ponto de nos dias de hoje existir a saudade de um invasor que ficou no país apenas 24 anos; isso, sim, me interessava. continente Sendo gaúcha, o seu olhar “estrangeiro” foi favorável ao filme? MonicA ScHMieDt Acho que ser gaúcha me ajudou a filmar o Recife e ver a sua beleza com a admiração da descoberta, além de ter me ajudado a ser crítica sem o vício do hábito. Mas a equipe não se sentiu estrangeira em nenhum momento, pois, além de sermos bem-recebidos, tivemos o apoio incondicional dos historiadores. Além disso, adoramos forró. continente A sua formação passa por arquitetura e história. Como esses temas estão presentes na sua cinematografia?

MonicA ScHMieDt Gosto de história e de arquitetura. Em um período da minha vida, achei que seria arquiteta, mas a paixão pelo cinema ficou clara no primeiro filme de que participei. Daí até largar as duas faculdades foi só uma questão de tempo. Tive a sorte de fazer parte de um grupo de amigos que queria muito fazer cinema e, por mais que, no início dos anos 1980, isso parecesse impossível, não o foi para aquele grupo de jovens cheios de energia, ideias e poder de persuasão. Nos documentários que dirigi e produzi até agora, a história sempre me inspira com relação ao conteúdo. Em Extremo sul, escolhemos escalar o monte Sarmiento não só por ele ser lindo e misterioso, mas também porque trazia a história das conquistas do Padre Agostini na Terra do Fogo. Durante a pesquisa, li sobre o descobrimento do Canal de Magalhães e a colonização do extremo sul da América Latina. São histórias fascinantes, que passam por personagens como Charles Darwin, Butch Cassidy e Sundance Kid. Se fores assistir ao filme, verás que eles não são mencionados, e esse é o processo de seleção que um roteiro exige. Em Doce Brasil holandês, além da história, a arquitetura é um pilar do roteiro. Tenho interesse pelo destino de nossas cidades. Acho que o Brasil vive uma crise não só ética, mas também estética, e me escandalizo com o descaso urbano. A falta de planejamento e as manipulações dos planos diretores por conveniência econômica ou política são criminosas. O Recife é um bom caso do mau exemplo. No século 17, a cidade foi construída inspirada nos ideais renascentistas, o que, somado à beleza geográfica natural, tornou-se um modelo na época. Isso poderia inspirar e direcionar o seu crescimento, o que não ocorreu. O Recife se inviabilizou urbanisticamente, sem falar que não se beneficiou da experiência do passado. Talvez essa seja mais uma razão da saudade do Brasil holandês, a saudade de um lugar melhor de se viver, a saudade de cidadania.

@ continenteonline Veja o trailer em www.revistacontinente.com.br

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

cHoPin & ScHUMAnn

e-BooK nA ReDe nesta edição, uma das matérias especiais destaca o fenômeno dos e-readers e e-books. O internauta que acessar o site da Continente verá que não é preciso necessariamente possuir um leitor eletrônico para abrir um livro digital. Há programas que podem ser baixados e permitem a leitura dos e-books, em seus mais diversos formatos, na tela do computador. este é o caso do livro É só isso o meu baião, do escritor Marcelino freire, produzido em formato digital especialmente para a Mojo Books, que está disponível para downloads.

CoN TI NEN TE

Conexão

Confira a programação completa do festival e escute obras importantes dos dois compositores românticos.

cineMA Conheça um pouco mais sobre o trabalho de rogério sganzerla, diretor de O bandido da luz vermelha, que é tema de exposição no instituto itaú Cultural (sP).

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AnDAnÇAS ViRtUAiS

MAPA LiteRÁRio

GAMeS

RÁDio

DeSiGn

Baseado no Google Maps, site reúne informações para leitores viajantes

consollection reúne dados sobre mais de 100 video games

Site cria programas radiofônicos baseados no gosto do internauta

Booby Solomon faz, no Kistune noir , curadoria de obras e novidades visuais

migre.me/LIIz

www.consollection.de

www.accuradio.com

www.kitsunenoir.com

Para quem gosta de ler, a sensação de viajar para um local que já foi vivenciado nas páginas de uma obra é marcante. O Livros e lugares, projeto de mapa-múndi colaborativo criado por isabel Colucci, conta com um banco de dados sobre livros ambientados em uma cidade, ajudando futuros turistas. “antes de viajar, gosto de ler um livro que se passa no lugar onde estou para ir”, diz a jornalista, explicando seus motivos. “Pode ser de ficção, ou não. O que importa é ir sentindo o clima, criar um vínculo com as ruas, praças, prédios, antes de vê-los pela primeira vez.”

numa época em que já se começa a discutir o valor artístico da narrativa de video games, o site Consollection resgata a história do gênero. Criada pelo designer Patrick Molnar, a página alemã reúne uma impressionante coleção de consoles, trazendo uma foto, um pequeno review e informações de lançamento. estão lá os mais clássicos, como atari e Odyssey, e alguns dos mais atuais, como Playstation 3 e Wii, além de raridades curiosas, como o laranja spielcomputer. Com um visual excelente, o site traz, no total, 145 consoles.

intitulando-se “a rádio da próxima geração”, a AccuRadio é um dos melhores meios de audição de música por meio de sites. Com grandes subdivisões em gêneros musicais e períodos, a rádio permite que o ouvinte selecione os estilos que irá ouvir e, caso o usuário seja mais metódico, possibilita a escolha de que artistas farão parte da playlist. Com mais de 400 mil visitantes por mês, a AccuRadio se preocupa em respeitar direitos autorais e fornece também links para sites que vendem as obras dos artistas executados.

sites com notícias sobre arte e design são comuns, e o Kitsune Noir segue exatamente essa tendência. realizando basicamente uma curadoria de obras, produtos e portfólios, a página, criada por Bobby solomon em 2007, também traz algumas seções exclusivas, como um projeto para reunir fundos de tela e download de mixtapes – coletâneas temáticas de músicas – feitos por convidados. apesar da dedicação aos meios visuais, o site também aborda música, cinema, gastronomia e moda.

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karina freitas

blogs inFoGRAFiA www.infografia.blogspot.com

O diretor do Núcleo de Infografia da Editora Abril, Luiz Iria, alimenta sua página pessoal com os seus trabalhos, mostrando o processo de produção dos infográficos e trazendo informações de obras de outros designers.

MÚSicA www.rodrigojames.com

PARA ALÉM Do FAST READING Site americano Longform privilegia aprofundamento da informação ao selecionar reportagens e artigos publicados por jornais e revistas www.longform.org

A internet, imaginada como um local de troca de informações rápidas e curtas,

vê-se cada vez mais como um espaço de conteúdos aprofundados. Apesar de ser majoritariamente sintética e imediatista – e os 140 caracteres do Twitter são uma prova disso –, alguns bons sites passaram a investir em vídeos extensos (e até filmes), discografias completas, bancos de imagens e, por mais “analógico” que pareça, no texto longo. É esse o caso do Longform (em inglês), editado por Aaron Lammer e Max Linsky, que vai na contramão do jornalismo de pequenas notas, privilegiando bons artigos de opinião e reportagens aprofundadas. O site funciona como um agregador de matérias extensas e de qualidade, publicadas em jornais e revistas. Também aceita sugestões dos leitores – desde que fujam do formato de notícia curta. Outro diferencial é a parceria com o site Instantpaper (www.instantpaper. com), que permite ao usuário salvar os artigos que lhe interessam para serem lidos mais tarde no computador ou mesmo em outras mídias, como iPhones, iPads ou Kindles. Além da divisão em seções comuns, como esportes, cultura, política, é possível conferir as “escolhas do editor”, matérias preferidas de Lammer e Linsky retiradas de veículos como New Yorker, Esquire, Vanity Fair, Sports Illustrated, The Atlantic e NY Times, entre outros. DIoGo GuEDES

O site pessoal do jornalista Rodrigo James, do programa Alto falante, mistura notícias e críticas sobre a música pop com relatos pessoais de viagens para festivais; aborda também cinema, séries e TV.

DeSenHo www.sophiecrumb.blogspot.com

Seguindo a profissão do pai, Robert Crumb, Sophie Crumb também é quadrinista, inclusive com obras publicadas. No seu blog, traz uma amostra de alguns desenhos, rascunhos e anotações em cadernos.

cARtAZeS www.gabrielmartinsportfolio.tumblr.com

O jovem designer Gabriel Martins criou um site para mostrar parte do seu portfólio. Entre ilustrações e diagramações para matérias, é possível conferir os belos cartazes feitos para Thiago Pethit e Leo Cavalcanti.

sites sobre

dicionários NOVO ACORDO

MULTIFUNCIONAL

INGLÊS

migre.me/MG9D

www.michaelis.uol.com.br

www.dictionary.com

a academia Brasileira de Letras disponibiliza em seu site um sistema para busca da grafia segundo o novo acordo Ortográfico.

O dicionário Michaelis permite ao usuário ver a definição de palavras em português e consultar a tradução em outras línguas.

O Dictionary.com traz definições de diversos dicionários, além de pesquisas de sinônimos, pronúncia e origem da palavra.

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Port f

con ti nen te

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t f贸lio Portifolio.indd 15

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con ti nen te

Portfólio

Marcos Michael

MÚSCULOS E SUOR TexTo Adriana Dória Matos

A plateia daquele campeonato de musculação de 2009, basicamente formada

por homens, não era das mais concorridas. Vazios podiam ser facilmente avistados do palco. Prevendo essa possibilidade, o mestre de cerimônias usou de um estratagema batido, mas que surte efeito: contratou um elenco de mulheres “gostosas”, “boazudas” ou “benfeitas” (isso depende do seu vocabulário, apenas), vestidas em biquínis de pouco pano, para atrair público e dar, digamos, mais leveza ao evento de peso. Sim, porque ali estava em disputa um sortido conjunto de corpos de massa muscular modelada e hipertrofiada. Certamente, quem passasse naquela noite pela frente do Teatro Valdemar de Oliveira, e não fosse um aficionado, não suporia o que acontecia ali dentro. Mas como já havia sido alertado sobre o evento por Carmelo de Castro – o citado mestre de cerimônias e proprietário de uma das mais tradicionais e populares academias de fisiculturismo do Recife –, num contato anterior, o fotógrafo Marcos Michael chegou cedo ao lugar para um ininterrupto trabalho de captação de imagens, que durou três horas e provocou grande satisfação pelos resultados obtidos, segundo atesta ele próprio. Michael circulou pelos camarins, bisbilhotou nas coxias e, conquistando aos poucos a confiança dos concorrentes, realizou um ensaio que permite àqueles que o observam captar posturas e valores desse universo peculiar, em

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Um dos pressupostos do fisiculturismo é a exibição

Nestas páginas 2 prepArAção

Antes de se apresentarem, concorrentes malham

3 troféus Carmelo de Castro é o mestre de cerimônias do campeonato

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con ti nen te

Portfólio

que malhadores ganham prêmios exibindo músculos meticulosamente delineados em frente a espelhos, e graças a uma combinação – nem sempre saudável, mas quase sempre eficaz – de treinos, nutrição e uso de anabolizantes. Há uma ideia de beleza específica aqui, uma exacerbação daquilo a que assistimos pelas ruas e academias de classe média em tempos de culto ao corpo. O fotógrafo se interessou sobretudo pelo que acontecia nos bastidores, onde os participantes se preparavam malhando, suando, passando óleo e se exibindo uns para os outros. “Ninguém ali vivia do fisiculturismo”, observou Michael, “eram porteiros, seguranças, que encaram aquilo como um hobby, uma ocupação para pessoas de baixa renda”. Michael não usou flash (o equipamento era uma Nikon D300), o que possibilitou ainda mais sua “invisibilidade”. Seu ensaio, do qual reproduzimos apenas algumas imagens, nos remete a certos contos de Jack London e Rubem Fonseca, aqueles ambientados no underground frequentado por lutadores, boxeadores e vaidosos em geral da própria masculinidade.

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4-5 coquetel Fisiculturistas conquistam a forma com mistura de treino, nutrição e anabolizantes 6-7 vitória Esforço é recompensado para o candidato número 15, que admira o troféu conquistado

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rEPrODuçãO/ANDy wArhOL

PoetinHA SUPeRioR

rEPrODuçãO

Mãe Menininha do Gantois (1894-1986), a famosa mãe de santo baiana, sempre recebia e abençoava os artistas que iam ao seu bem-frequentado terreiro em Salvador. No entanto, qualquer um deles, fosse Caetano ou Gil, tinha que se sentar aos pés da ialorixá. Certa vez, Maria Bethânia foi ao local com Vinicius de Moraes (cuja morte completa 30 anos neste mês), para receber as bênçãos. Mãe Menininha prontamente pediu ao Poetinha para sentar-se na cadeira ao lado dela. Bethânia, que também se sentava no chão, quis saber o porquê da diferenciação. Serena, Mãe Menininha respondeu: “Tem muita coisa que não se explica”.(DN)

Born to be wild O ator e diretor Dennis Hopper (1936-2010), estrela de filmes como Sem destino, Rebelde sem causa, Apocalipse now, Veludo azul e O selvagem da motocicleta, e um dos maiores encrenqueiros que Hollywood já produziu, foi ao fundo do poço no início dos anos 1980, quando chegou a consumir diariamente dois litros de rum, 28 cervejas e três gramas de cocaína. A“dieta” geralmente o levava a ter delírios e surtos, e a criar situações constrangedoras, como brigas em sets de filmagens, subidas em asas de aviões (pois cismou que seus ex-diretores Wim Wenders e Coppola o estavam filmando de dentro da aeronave) e tentativas de suicídio em happenings (acreditava que a máfia estava tentando matá-lo). Cansado de protagonizar circunstâncias como essas, Hopper, a pedido de amigos, resolveu tratar-se com uma terapeuta. Certo dia, a médica perguntou ao paciente que pílulas eram aquelas que ele ingeria. “São meus remédios, tenho que tomar porque sou psicótico.” Ela pegou tudo, jogou na privada e deu descarga. “F...se! Você não passa de um alcoólatra safado!” Esse e muitos outros episódios (incríveis) envolvendo o easy rider, que conseguiu em 74 anos não morrer “de susto, de bala ou de vício”, estão no livro Como a geração sexo, drogas e rock’n’roll salvou Hollywood (2009), de Peter Biskind. DÉBoRA nASciMento

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A FRASE

rEPrODuçãO

“Uma consciência pesada precisa se confessar. Uma obra de arte é uma confissão.”

Balaio o PeRDeDoR PeRSeVeRAnte Em um de seus perfis para a Esquire, o escritor Gay Talese entrevistou o boxeador Floyd Patterson. À época, o bicampeão mundial dos pesos pesados remoía a derrota para Sonny Liston, que lhe custara o título. Talese conseguiu grandes revelações do esportista. No entanto, guardou uma reclamação. “O que sempre lamentei com relação àquela matéria foi o título dado a ela pelos editores: ‘O perdedor’ ”, conta, em Vida de escritor. (Diogo Guedes)

“eFeito MoZARt” Circulava, nos anos 1990, uma teoria de que a audição de Mozart tornava o ouvinte mais inteligente. A ideia foi desfeita recentemente. Novos estudos da Faculdade de Psicologia de Viena comprovaram que ouvir o gênio austríaco não torna ninguém mais sábio. No entanto, os que escutaram música, fosse Bach ou Pearl Jam, tiveram melhores resultados que os do grupo em silêncio. O “efeito Mozart” está em 6º lugar no livro 50 grandes mitos da psicologia popular, do psicólogo Scott E. Lilienfeld. (DN)

Albert camus

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o Rei SoL e SUAS MULHeReS

cRiAtuRAS

Ao contrário do inglês henrique VIII, que tinha o costume de decapitar suas rainhas, para acomodar no local outra consorte, Luís XIV, o rei Sol, era um excelente parceiro amoroso. Pelo menos, é o que defende a historiadora Antonia Fraser, autora de O amor e Luís XIV . No livro, ela mostra que as mulheres na vida do monarca francês eram mimadas e sempre tiravam vantagens da união, fosse lícita ou não. No apogeu da sua vida, por volta dos anos 1660, o soberano chegou a manter um verdadeiro “harém”, com três mulheres: a esposa oficial, rainha Maria Tereza, a jovem Louise de Valliére – de quem tirou a virgindade – e a casada Athenais de rochechouart. (Danielle romani).

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DIVuLGAçãO

O livro conta ainda que, inconformado com o affair entre sua esposa e o rei, o marquês de Montespan, marido de Athenais, mandou serrar o alto de um pórtico de sua casa, para que lhe “passassem os cornos”. Em muitas ocasiões, tomado pelo ciúme, chegou a ser violento com a mulher e a falar mal do rei. Por conta da falta de “postura”, o marido inconformado – muitos outros aceitavam com alegria a honra de compartilhar a esposa com a majestade – foi preso por uma semana nas galés, para que “pensasse melhor”. Depois disso, a Igreja anulou o casamento entre Athenais e Montespan, que foi deportado para outra região da França. (Dr)

QUeM Se HABiLitA? A bela atriz francesa Fanny Ardant (A mulher do lado), que também atua por trás das câmeras, veio ao Brasil recentemente para divulgar Chimères absentes, um dos 20 curtas (de seis minutos) do projeto Além das fronteiras e diferenças, concebido pela ArT for the world, ONG ligada à ONu. Na ocasião, ao revelar que conhecia um pouco da literatura clássica nacional e do cinema brasileiro (especialmente walter Salles), Fanny afirmou que adoraria trabalhar com um diretor do país. Quem se habilita a escalar para seu filme a musa de Truffaut? (DN)

Drummond, 80 anos de Alguma Poesia Por carlos Drummond de Andrade continente julho 2010 | 21

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música

erudito Celebração ao piano de Chopin e Schumann O Recife promove o mais extenso festival no Brasil, com mais de 20 solistas, dedicado a celebrar os 200 anos de nascimento dos dois ícones românticos na música erudita texto Carlos Eduardo Amaral

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con música ti nen te#44 fotos: maíra gamarra

Do dia 31 deste mês até 23 de agosto, os teatros da UFPE e de Santa Isabel receberão mais de 20 solistas – a maioria, pernambucanos – para celebrar o bicentenário de dois dentre os compositores indiscutivelmente obrigatórios para se compreender o repertório pianístico romântico e a própria alma artística do período histórico em que viveram: o polonês Frédéric Chopin (1810-1849) e o alemão Robert Schumann (18101856), cujas obras nenhum aspirante a concertista no mundo ousaria prescindir de estudar. O evento é uma realização da Companhia Editora de Pernambuco, que publica a Continente. Dirigido por Elyanna Caldas e Edson Bandeira de Mello, o Festival Chopin/Schumann talvez seja o primeiro evento a reunir todos os pianistas vivos de maior destaque na música clássica pernambucana. Além dos próprios diretores artísticos, estarão presentes intérpretes já conhecidos de quem costuma ir ao Conservatório Pernambucano de Música (CPM) ou à UFPE: Jussiara Albuquerque, Andréia da Costa Carvalho, Rachel Casado, Adele Ananias, Fernando Müller e as jovens Stefanie Freitas, Thaissa Santiago e Priscilla Dantas. Estrategicamente planejado para coincidir com as férias de verão europeias, o festival também contará com músicos residentes no exterior e que sempre visitam o Recife nesta época, como o oboísta Isaac Duarte e sua esposa, a pianista Mônica Kato Duarte, que vivem em Zurique e formam o DuOarte, e os pianistas Antonio Nigro e Maria Clara Fernandes de Lima, estabelecidos respectivamente em Halle (Alemanha) e Viena (Áustria). Mas a programação dos concertos não ficará restrita às obras pianísticas, como provam o próprio DuOarte e o violinista Gilson Cornélio Filho. Na primeira noite, Gilson Cornélio – revelado pelo Projeto Suzuki Alto do Céu, do CPM, e hoje integrante da Sinfônica da Bahia – interpretará a Sonata op. 105, de Schumann, enquanto a terceira noite (dia 2 de agosto) será dedicada inteiramente ao lied (peça curta de música vocal), a cargo da soprano Gabriella Pace (Prêmio Carlos Gomes 2010 de melhor solista vocal feminino) e da meio-soprano Adriana

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Clis, acompanhadas por Gilberto Tinetti. O trio Pace-Clis-Tinetti, que já esteve em Pernambuco em outras duas ocasiões (no Virtuosi na Serra 2009 e em recital isolado, em 2006), traz agora um programa de canções raramente ouvidas em Pernambuco; no caso das de Chopin, trata-se de peças pouco conhecidas em qualquer lugar do mundo. Ainda marcará presença o maestro recifense Lanfranco Marceletti, que conduzirá a Sinfônica Jovem do CPM no concerto de encerramento, com participação de Maria Clara Fernandes e do violoncelista Julian Tryczynski (pronuncia-se “Tritchínski”) – um dos convidados não pernambucanos do evento junto com o trio Pace-ClisTinetti, o pianista José Henrique Martins, o Quarteto de Cordas da Paraíba e o violoncelista Cláudio Jaffé. Tryczynski substitui a esposa, a pernambucana e também cellista Michelle Pimentel, em licença-maternidade.

Na quarta noite será a participação de Rafael Garcia, tocando o Quarteto, op. 47, de Schumann. Nos últimos 10 anos, Garcia mal pôde se apresentar como violinista no Recife, devido à atuação nos festivais da Sociedade Artística Virtuosi e na Orquestra Jovem de Pernambuco. Ele participará ao lado da esposa, Ana Lúcia Altino Garcia (piano) e do filho Rafael Altino (viola), reconstituindo os encontros musicais de família que deram origem ao Virtuosi – com a inclusão ad hoc de Cláudio Jaffé no lugar do filho Leonardo Altino (cello), que não poderá comparecer.

oBRas canÔnicas

O Festival Chopin/Schumann naturalmente brindará o público com todas as obras canônicas a que tem direito: Baladas, Noturnos, Estudos, Polonesas e Mazurcas mais as Phantasiestucke (Peças fantasia), Papillons, Carnaval, Humoresque, e as Kinderszenen (Cenas infantis), fora as peças de câmara,

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chopin retratado ao piano, em pintura de 1887, de hendrik siemiradzki

Nestas páginas 2-3 festival

elyanna caldas e edson bandeira de mello conseguiram reunir os maiores pianistas vivos de destaque na música clássica de pernambuco

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as orquestrais e os lieder. Edson Bandeira de Mello enfatiza, dentro do contexto da produção schumanniana, as Kinderszenen (1838), que irá tocar no antepenúltimo concerto do festival, dia 20 de agosto. “Todas as peças para piano de Schumann, de 1835 a 1839, são obrasprimas que surpreendem pela variedade. As Kinderszenen não são obras didáticas, destinadas ao ensino do piano, são para serem tocadas por adultos que sabem sentir a alma infantil (como ele soube). Uma dessas cenas, Träumerei, é a mais bela melodia que Schumann inventou”. Chopin e Schumann rendem muitas descobertas quanto às suas personalidades, mas é de se perguntar se ainda brotam novas discussões acerca dos aspectos interpretativos de seus legados, posto que poucos concertistas arriscamse a oferecer uma leitura diferente das que foram disseminadas pela indústria fonográfica nas últimas décadas, tal qual arriscou, por exemplo, Glenn Gould.

o festival também contará com músicos residentes no exterior, cujos concertos não ficarão restritos às obras pianísticas

o direito de ter uma certa flexibilidade ou liberdade na execução, liberdade essa sempre controlada pela esquerda”. A pianista recifense, participante do V Concurso Internacional Frédéric Chopin, em 1955, conta que, para montar a grade de concertos do Festival Chopin/Schumann, entrou em contato com vários colegas desde o primeiro semestre de 2009 no intuito de sondar quem poderia participar e o que poderia tocar: “Houve casos em que três pianistas queriam tocar a mesma obra e foi preciso um certo jogo de cintura para conciliar as escolhas. Teve também desistências e substituições. Para não assumir sozinha a coordenação do festival, convidei Edson, velho amigo e companheiro na UFPE, para ficar comigo na direção artística”. Entre as ausências estão as de Josefina Aguiar (1937-2005) e Sara Kauffmann (1937-2009) e a de intérpretes falecidos de outros estados que passaram pelas salas de concerto pernambucanas, como Gerardo Parente (1926-2003) e José Alberto Kaplan (1939-2005). Ambos comemoram especialmente a volta à cena de outro colega: Marco Caneca, que emocionou os vizinhos do Residencial Boa Viagem ao se despedir de seu prédio condenado tocando Chopin no piano retirado e colocado na calçada, o único móvel que pôde salvar do apartamento. Os diretores artísticos do Festival Chopin/Schumann, o mais extenso em virtude das efemérides bicentenárias no Brasil, revelam que pretendem trazer ao Recife, em agosto, uma miniexposicão sobre Chopin, a qual será levada a Campos do Jordão este mês com apoio do Consulado da Polônia em São Paulo. Eles buscam, junto ao Consulado da Alemanha no Recife, iniciativa semelhante sobre Schumann.

Elyanna Caldas responde que sim: “Se ouvirmos, por exemplo, antigas gravações de grandes intérpretes de Chopin, observaremos detalhes na execução não mais recomendados nos dias atuais. Em certas Valsas e Noturnos, o uso do rubato (trecho interpretado com muita liberdade rítmica) era exagerado, havia um certo desencontro, entre a mão direita e a esquerda, que décadas mais tarde se tornou quase um sacrilégio. Hoje, a mão esquerda deve manter @ continenteonline o equilíbrio e a exatidão do tempo, Confira a programação na íntegra do Festival Chopin/ deixando à direita, que conduz a melodia, Schumann no site www.revistacontinente.com.br

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con MÚSicA ti nen te#44

compositores o embate entre a música programática e a absoluta

4-5 contempoRâneoS Apesar dos elogios feitos pelo crítico musical Schumann ao seu talento, Chopin (D) não apreciava o alemão 6 paRceRia Enquanto sua esposa Clara Wieck dedicava-se à carreira pianística, Schumann enveredou pela criação musical, atuando também como crítico de música e literatura

O alemão Robert Schumann e o polonês Fryderyk Szopen sintetizam traços do Romantismo, não só por terem sofrido males do período, mas por viverem suas dicotomias musicais

Robert Schumann (1810-1856),

admirador da poesia de Lord Byron e das tragédias clássicas gregas, poderia ter-se tornado um grande virtuose do piano romântico, se não fosse, ironicamente, por um dos fatídicos problemas que enfrentou ao longo de sua abreviada vida: uma imobilidade no anelar da mão direita, decorrente do uso de uma engenhoca inventada pelo músico, quando estudante, para ganhar força no referido dedo, mas que alguns estudiosos atribuem à sífilis, contraída na juventude e latente durante os anos de união com Clara Wieck (1819-1896). Nessa mera menção à sífilis e ao casamento de Schumann estão os outros principais dramas que o afligiram, pois a loucura que levou o alemão à morte, se não adveio da DST em si, pode ser desvendada através do histórico psiquiátrico de sua família. E se Schumann não morreu propriamente das enfermidades mentais, foi envenenado pelo mercúrio prescrito para o tratamento antissifilítico. Por outro lado, se Clara correspondeu ao amor de Robert desde quando ela era adolescente, os diversos obstáculos que seu pai – Friederich Wieck, professor de Schumann – impôs ao relacionamento do casal dariam base para uma tragédia shakespeariana. Após o casamento com o compositor, Clara engrenou de vez a carreira pianística e até enveredou pela composição, enquanto seu marido abraçou a criação musical e continuou a atuar como crítico de música e literatura – foi Schumann quem chamou a atenção para o jovem Brahms (1833-1897), o qual lhe retribuíra

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com inabalável amizade (a ponto de nunca ter levado mais à frente o amor platônico que dirigia a Clara), e elogiou a genialidade de outro compositor, também pianista, que optou pelo exílio permanente após a notícia da invasão de seu país. Fryderyk Szopen (1810-1849) saiu de Viena para a Alemanha e depois se estabeleceu em Paris, onde afrancesou o prenome para Frédéric a fim de, doravante, combinar com o Chopin herdado do pai (Szopen é a grafia polonesa, mas o sobrenome de batismo está de fato em francês). O virtuose polonês não apreciava Schumann, mas, assim como o alemão, produziu grande parte de suas obras-primas na efervescente década de 1830, ajudando a abrir os rumos da música pós-Beethoven, e se notabilizou por submeter a grande técnica que possuía à sensibilidade musical que o acompanhava desde criança.

Magro, irritadiço e mordaz, de mãos finas e gestual feminino ao teclado, dono de saúde frágil, Chopin era avesso a conversas intelectuais que não dissessem respeito à música, embora tivesse contato com vários escritores (a começar por sua companheira George Sand). Seu principal algoz, no entanto, não foram críticos ou desafetos e, sim, as crises respiratórias crônicas que o deixavam debilitado – o compositor polonês morreu, segundo consta, de tuberculose (nada mais “mal do século”), mas hoje se defende a possibilidade de fibrose cística. Chopin foi um dos primeiros compositores românticos a possuir uma tônica nacionalista em sua música, não engajada como viria a ser a obra de Smetana, Grieg ou Sibelius, mas de inquestionável autenticidade: o último desejo do compositor foi o de que se enviasse seu coração para Varsóvia e lá fosse enterrado. Os franceses podem

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imagens: reproDução

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ter preservado o corpo de Chopin no famoso cemitério Père-Lachaise, além de sua máscara mortuária e dos moldes de suas mãos, mas a citação de Mateus, Capítulo 6, versículo 21 (“Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração”), reproduzida numa das colunas da Igreja da Santa Cruz, em plena capital polonesa, não dão margem a dúvidas sobre o amor pátrio chopiniano.

o DevotaDo e o misÓGino

Chopin e Schumann sintetizam muitos dos paradigmas artísticos, experiências afetivas e dramas pessoais característicos do Romantismo, a começar pelo fato de um ter morrido tísico e o outro insano (salvo melhores revisões científicas dessas causa mortis). No campo amoroso, notadamente, os dois registraram experiências que dariam o que falar até nos dias atuais: Schumann viveu o amor perfeito ao lado da fidelíssima Clara, depois de contendas com o sogro que foram tratadas inclusive na Justiça; já a união de Chopin com George Sand parece ter sido movida mais por mútua admiração intelectual do que por atração carnal, dada a misoginia do pianista. No plano artístico, Chopin e Schumann podem ser lembrados por uma dicotomia que permeou todo o

os dois compositores tinham uma devoção ao piano, instrumento que virou símbolo do poder econômico burguês período romântico: se o alemão tinha uma sólida formação literária, tendo abraçado a composição musical em definitivo depois da poesia e da crítica, e usou a literatura como veículo para a criação musical, o franco-polonês rejeitava influências extramusicais em suas obras. Em outras palavras, ambos representavam respectivamente o embate paradigmático entre a música programática (construída sobre um argumento extraído da prosa ou da poesia) e a música absoluta (nascida em si e por si). Comum aos dois compositores, identificava-se a devoção ao piano – instrumento que melhor se adaptou à fabricação em série após a Segunda Revolução Industrial e consequentemente virou símbolo do poder econômico burguês. As inovações técnicas do instrumento, junto à sua ampla disseminação na primeira metade do século

19, favoreceram uma expansão tão intensa de repertório e de possibilidades expressivas, que chegou a suscitar teses, hoje utópicas, sobre o desaparecimento da orquestra em favor do piano. A majestade atribuída ao príncipe dos instrumentos (o “rei” é o órgão, reza a tradição) observa-se inclusive quanto aos papéis desempenhados por ele naqueles tempos: os de solista (isolado ou em contraposição à orquestra), acompanhador ou participante de conjuntos de câmara. Nunca se empregava o instrumento sucessor do cravo como “mero” integrante da orquestra sinfônica, o que foi quebrado de vez apenas no século 20, de Stravinski em diante. Nas décadas iniciais da chamada pianolatria, de 1810 a 1830, surgiram ainda as primeiras grandes obras livres das imposições classicistas da forma-sonata, tais quais os Noturnos e as Kinderszenen. O pianista Edson Bandeira de Mello lembra que a libertação dos moldes clássicos não se deu tão pacificamente e ainda rende discussões: “A preferência de Schumann pelas pequenas formas, as peças poéticas de tamanho reduzido que dispensam maior construção arquitetônica, tem sido interpretada por alguns historiadores da música e críticos musicais como incapacidade de manejar a forma-sonata. O escritor Pedro Nava observou muito bem que afirmar isso ‘é o mesmo que dizer de um excelente contista que ele não escreve um romance porque não sabe como lidar com a sua estrutura’ ”. Mas o Romantismo contribuiu também com novos gêneros musicais, particularmente a sinfonia programática, antecipada por Beethoven em sua Pastoral (1808), e o poema sinfônico, criado pelo húngaro Franz Liszt (1811-1886). Em tempo, Elyanna Caldas e Edson Bandeira de Mello lembram o Ano Liszt, a ser comemorado em 2011 com alguns concertos em tributo ao virtuose considerado o maior pianista da história e, sobretudo, compositor fundamental para a música programática. (cea)

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pedro melo

con ti nen te#44

Peleja

Os seriados elevam a qualidade artística da teledramaturgia? Antes, era o fim da novela. Hoje, o desfecho dos seriados desperta tanto interesse quanto os batidos folhetins (ou até mais). A professora Stella Maris Saldanha defende as minisséries brasileiras, ressaltando a diferença dessas em relação às telenovelas. Já a mestranda em educação tecnológica Andrea Trigueiro cita o medo que as emissoras têm de perder audiência, o que, segundo ela, impossibilita a inovação continente julho 2010 | 29 8

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Stella Maris Saldanha

Andrea Trigueiro

TV, or not TV: that is the question. E eu,

inserindo-me neste antigo debate, penso cá com os meus botões: a televisão deve ser vista como um veículo de propostas e resultados audiovisuais heterogêneos. Discordo, portanto, daqueles para quem a televisão, por ser veículo de massa, determina a qualidade (ou a má qualidade) da sua produção, desprofessora considerando aspectos temáticos, de universitária, jornalista e atriz abordagem ou linguagem como fatores de avaliação. Se a literatura, o cinema ou o teatro não são bons ou maus em si mesmos, assim é com a televisão. Ao longo dos seus 60 anos de existência no Brasil, a televisão registra várias experiências vigorosas e inquietantes, ainda que prevaleçam nela estruturas normativas e discursos conservadores. Resultado dos cânones bolorentos que orientam parte da produção das emissoras de TV são alguns programas policiais e humorísticos, cuja base de sustentação está vinculada aos estereótipos, ao preconceito e à ridicularização do “elo mais fraco da sociedade”. Mas, lixo à parte, chegamos à televisão que também viabiliza produções de alcance estético e temático, além da mesmice e do descartável. Alguns seriados e minisséries são bons indicadores de quanto se pode avançar em inovação. Cito dois exemplos: o TV Pirata e o Armação ilimitada, ambos dirigidos por Guel Arraes. Paródicos, farsescos, às vezes antropofágicos, esses programas possibilitaram aos telespectadores diversão e crítica nascidas de modelos menos previsíveis. Não é outra a avaliação que faço, quando a questão é saber se as minisséries, de alguma maneira, avançam na formulação da teled ra m at u rg i a brasileira. Vou considerar como marco dos anos 1960, momento em que a TV Excelsior rompe com o padrão das adaptações de obras estrangeiras, abrindo espaço aos textos originais de alguns jovens dramaturgos, como Guarnieri e Vianinha. Daqueles anos até agora muito foi visto na telinha; dos teledramas ao vivo às telenovelas gravadas com sofisticada tecnologia. Entre uma ponta e outra, as minisséries. Se as telenovelas caracterizam-se pelo pastiche, pela superficialidade de abordagem, por seu viés mercadológico e pela linearidade narrativa, o mesmo não se pode dizer das minisséries. Algumas delas se oferecem claramente como produtos abertos à exploração de linguagens, ao adensamento poético e à pluralização temática.

Se a literatura, o cinema ou o teatro não são bons ou maus em si mesmos, assim é com a televisão

os seriados, principalmente os ame-

ricanos, são febre de público. No Brasil, a maioria é acompanhada na TV paga. Pela internet, é possível baixar os episódios mais recentes. De olho nesse mercado, a TV brasileira também vem investindo, desde Malu Mulher, em 1979, até o atual A grande família. Mas o aumento na oferta não significa elevação mestranda da qualidade artística da teledramaturem educação tecnológica gia. Não se pode negar que eles trazem novidades para a telinha, mas, no máximo, nos trazem algumas experiências bem-sucedidas. Nos últimos anos, as emissoras diversificaram seus produtos em função dos novos conceitos sobre qualidade na TV. Antes, apenas a técnica definia a qualidade. Atualmente, há uma ressignificação. Para Gabriela Borges, pesquisadora da qualidade na televisão, ela deve estar relacionada a um projeto social que preserve o pluralismo cultural e estimule a democratização da sociedade. “Hoje, a qualidade na TV está associada à originalidade temática, ao profissionalismo na produção dos programas, à retidão ética, à atenção às demandas das minorias e dos grupos excluídos ou dissidentes, à contribuição para a esfera pública e ao prazer e diversão da audiência”, define. Em um passeio pelos seriados brasileiros mais marcantes das últimas décadas, destacamos a introdução das temáticas feministas do Malu Mulher, as inovações no formato, conteúdo e efeitos, nunca usadas em televisão, do Armação ilimitada, a linguagem de Os normais, a introdução do protagonismo da periferia, linguagem de videoclipe e transmídia (que utiliza outras mídias, como o desenho animado) de Cidade dos homens, além da nova estética, figurinos e cenários de A grande família. Os demais produtos são réplicas, sem construções que elevem a qualidade. Como tudo é comercial e tem de dar lucro, a TV não quer arriscar experimentando. Oferecer propostas que contemplem as diferenças técnicas, estéticas, além, claro, de conteúdos é o que definiria a qualidade para influenciar de modo diverso a teledramaturgia. Para Guel Arraes, um trabalho que é só interessante e não é comercial não existe na TV. “Buscamos o equilíbrio. Somos equilibristas”, diz, no livro Guel Arraes: um inventor no audiovisual brasileiro, da jornalista Yvana Fechine. Assim, a elevação da qualidade, que custa caro e nem sempre dá certo, acaba não ocorrendo por medo das emissoras de que seus produtos não atinjam a audiência.

Propostas que contemplem as diferenças técnicas e estéticas definiriam a qualidade da teledramaturgia

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E-READERS A revolução da imitação do papel

Editores, livreiros e escritores avançam na discussão sobre o fim do livro impresso e defendem que o mercado de e-books é um bem-vindo caminho irreversível texto Márcia Lira

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con tecnoloGiA ti nen te DIvuLgação

DougLas Luccena/DIvuLgação

1 MercAdo o diretor de operações da cultura, sérgio Herz, lembra que há seis anos não se vendia livros digitais no país 2 GAto SAbido carlos eduardo ernanny lançou a editora apenas com e-books e leitor digital próprios 3 ALice pArA o ipAd em estilo de marketing viral, propaganda do e-book Alice no País das Maravilhas, de Lewis carrol, tem milhares de acessos no Youtube

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A revolução no consumo da

música, ocorrida à revelia de tanta gente, desconstruiu conceitos e abriu passagem para outro terremoto. Desta vez, no mercado editorial. Sorte que a experiência anterior deixou algumas lições: ninguém quer seguir o mau exemplo das gravadoras, que subestimaram o poder do MP3 e colheram prejuízos. Então, editoras, livrarias, autores e leitores entendem que livros eletrônicos e leitores digitais são um caminho sem volta. O difícil é saber onde esse caminho vai dar. O fato é que não há como negar o potencial do e-reader – um equipamento menor, mais fino e mais leve que um netbook, com bateria de longa duração e capaz de carregar uma biblioteca inteira de mais de mil títulos para qualquer lugar. Ora, a nova geração deles usa uma tecnologia que imita o papel físico e, assim, derruba o principal argumento de resistência – a dificuldade de leitura em telas eletrônicas. São displays da fabricante E-Ink, mais agradáveis aos olhos por não refletirem a luz. Esses leitores

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permitem fazer o download de um livro no formato digital com alguns cliques e poucos segundos. Levam, ainda, uma pitada da tecnologia DRM (Digital Rights Management), que impede cópias ilimitadas dos e-books através de criptografia. Os avanços os tornaram atraentes e empresas gigantes pelo mundo não param de lançar modelos, renovando o fôlego dos livros digitais. Apesar dos holofotes recebidos recentemente, as obras em arquivos eletrônicos estão longe de serem novidade. Vagam pela internet há décadas e remontam a 1971, quando o Projeto Gutenberg – grande biblioteca online, resultado de um esforço voluntário – disponibilizou os primeiros títulos na web. O diretor de operações da Livraria Cultura, Sérgio Herz, lembra que o site da empresa oferecia e-books há uns seis anos. “Não vendia nada”, diz. E hoje? Herz responde, sem divulgar números, que “não dá nem para comparar. É outro mundo”. Certamente, as rápidas transformações da sociedade, agora ultraconectada e

tecnológica, deram mais sentido à ideia do livro virtual. O novo cenário levou a empresa a lançar cerca de 20 mil títulos em vários idiomas. Mas, apesar da decisão, o diretor acha difícil definir como lidar com o novo mercado. “A gente não sabe qual o tamanho dele. Se o consumidor vai ficar bem ou não diante dessas novidades.”

neGÓcioS eM QUeStÃo

A dúvida de Herz é apenas uma entre as que pairam nas cabeças dos que jogam as cartas do setor no Brasil. Quanto o leitor está disposto a pagar por um livro digital? Os e-readers são realmente imunes à pirataria? E o percentual do autor? Qual o modelo de negócio ideal? “Não se sabe ainda como funcionará, ao mesmo tempo em que ninguém tem dúvida de que será em termos ainda não estabelecidos e sequer imaginados. Precisamos ser muito maleáveis e dispostos a rever nossos paradigmas de negócio”, comenta Iuri Pereira, da editora Hedra, que está em fase de preparação para comercializar obras eletrônicas.

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reproDução

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A editora Conrad se adiantou como a primeira brasileira a lançar um livro em quadrinhos para o iPad, com Sábado dos meus amores, do niteroiense Marcello Quintanilha. Mesmo não sendo um e-reader, o computador de mão da Apple agrega a função, entre várias, com a sua portabilidade e design em forma de prancheta. O lançamento de uma versão colorida e animada de Alice no País das Maravilhas para o tablet reforçou a sua função de suporte para livros multimídia. Mais dois quadrinhos vão estar disponíveis em breve para os adeptos do iPad, segundo o diretor editorial da Conrad, Rogério de Campos: Chibata – João Cândido e a revolta que abalou o Brasil e o romance dele, Revanchismo. As investidas, segundo Rogério, não significam que o equipamento virou um foco. “Para focar, é preciso ter certeza, para ter certeza é preciso entender. Estamos naquele momento em que o negócio é fazer para depois entender.” Esse parece ser o raciocínio que norteou o empresário Carlos Eduardo Ernanny ao lançar a Gato Sabido. A

Até o momento, equipamentos como Sony reader ou o próprio ipad ainda não estão disponíveis para venda no brasil

referência ao suposto complexo de inferioridade do brasileiro. As vantagens dos e-books são citadas pelo empresário com a própria experiência: “Eu fui para a Europa e pela primeira vez levei só um e-reader com 30 livros. No meio da viagem, eu decidi que livro eu queria ler”.

e-bookstore entrou no mercado editorial brasileiro comercializando o próprio leitor digital Cool-er e apenas livros eletrônicos. Cansado do mercado financeiro, no qual trabalhou por 17 anos, e amante da literatura, ele resolveu investir, após várias pesquisas, nos livros sem papel. “Todo mundo sempre soube que o e-book algum dia iria acontecer”, diz. A empresa surgiu na mesma época em que os e-readers começaram a pipocar pelo mundo, no final do ano passado. Fato que colaborou, acredita Carlos Eduardo, para “acordar” concorrentes e parceiros no país, evitando a famosa “síndrome do viralata” – termo tomado emprestado do escritor Nelson Rodrigues, em

As questões ainda sem resposta deixam morno um negócio em plena febre em países como os Estados Unidos. Para começar, o Cooler é um dos poucos três e-readers comercializados oficialmente no Brasil até o momento, junto com o Kindle, da Amazon, e o pernambucano recémlançado Mix Leitor D (leia no quadro da página 36). Equipamentos como Sony Reader ou o próprio iPad ainda não estão disponíveis no país. Os preços deles também não são muito atraentes: o mais em conta é o Cool-er, que sai por R$ 750, o Mix Leitor D custa R$ 990 e o Kindle vale cerca de R$ 1 mil. Outro entrave é a quantidade tímida de obras digitais em português. Dos 20 mil títulos lançados

VerSÃo brASiLeirA

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MODELO DE LEITOR DIGITAL PERNAMBUCANO Há um público que pode ser especialmente beneficiado com os e-readers e livros eletrônicos. Imagine um estudante indo para o colégio: na mochila, todos os livros didáticos guardados num leitor digital de apenas 300 gramas. Situações como essa inspiraram a criação do Mix Leitor D, o modelo pernambucano lançado em junho. Ele é produto de dois anos de desenvolvimento do hardware pela Mix Tecnologia e do conceito voltado para a educação, pensado pela Carpe Diem Edições e Produções. Se considerarmos que o Brasil é o maior mercado consumidor de obras didáticas do mundo, a aposta é acertada. Na configuração, o aparelho não deixa a dever a nenhum concorrente, com a tela de papel eletrônico de seis polegadas e teclado QWERTY. Suporta até 16 GB, com cartão de memória, conexão Wi-Fi e aceita vários formatos de e-books, além de outras mídias como áudio MP3 e imagens JPG. A bateria deve atender às necessidades do público, pois permite a troca de até oito mil páginas. Possui dois softwares patenteados 100% nacionais: o Interquiz e o WiAA. O primeiro permite buscar questões sobre o conteúdo lido na hora, respondendo a perguntas e visualizando respostas. O segundo é uma rede acadêmica, na qual é possível conferir notas, horários, diários de presença. Os destinos do primeiro lote do equipamento foram as pré-vendas e as parcerias firmadas antes mesmo do lançamento com colégios, cursos, empresas de mídia. A grande maioria fora de Pernambuco. Um dos destaques do equipamento, segundo o diretor da Carpe Diem e idealizador da Fliporto, Antônio Campos, é o fato de ser híbrido: possibilita a aquisição de conteúdo no portal próprio, com conexão à internet, e também através de arquivos via entrada USB. Chega ao público em geral por R$ 990. Site: www. mixleitord.com.br (M L)

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pela Livraria Cultura, nem 100 são no nosso idioma. Técnicos e infantis são a maioria, autores de literatura conhecidos são poucos. É um A cidade ilhada (R$ 24,50), de Milton Hatoum, aqui, um recém-lançado Leite derramado (R$ 29), de Chico Buarque, ali. Um pouco mais generosa com a língua portuguesa, a Gato Sabido disponibiliza cerca de mil obras no idioma, segundo Carlos Eduardo, de um total de 100 mil. Porém, quem for procurar um best-seller talvez não ache: além de livros técnicos, boa parte do acervo é de novos autores – que contam com um canal para oferecer suas obras sem intermediários. Mas tudo indica que essa é uma fase passageira. Afinal, até a Google anunciou ter um e-reader em desenvolvimento e prometeu lançar uma loja de livros digitais. Ponto para o acervo público, que representa um reforço significativo ao disponibilizar milhares de obras gratuitamente para download. A biblioteca digital mais antiga é o projeto colaborativo Gutenberg, que reúne mais de 30 mil obras em domínio público. Basta entrar no site, buscar e baixar. Em português, encontra-se Machado de Assis à vontade, além de Eça de Queiroz, Júlio Verne, Shakespeare, Dostoiévski. Outra coleção importante é a Brasiliana digital, da USP, da qual constam centenas de títulos, inclusive a coleção de livros e documentos raros doados à universidade pelo falecido

A biblioteca digital mais antiga é o projeto colaborativo Gutenberg, que reúne mais de 30 mil obras em domínio público bibliófilo José Mindlin. Gradualmente, as obras são convertidas para o formato e disponibilizadas. Uma aquisição recente do espaço virtual foi a obra poética completa de Vinicius de Moraes.

Sob deMAndA

Ao mesmo tempo em que a cautela existe, vantagens se descortinam em torno do negócio dos livros digitais. Há quem defenda, por exemplo, que a impressão sob demanda será o negócio do futuro. Ou do presente, no caso da editora E-papers, que há quase 11 anos vende livros acadêmicos eletrônicos ou colocados no papel quando pedidos. O projeto nasceu incubado na UFRJ e depois se consolidou no nicho. “No início, foi bastante difícil. A minha intenção era só ter livros eletrônicos, mas ainda era um conceito muito novo. Nos anos 2000, quase nenhum dos primeiros aparelhos leitores de livros digitais chegou ao Brasil”, lembra a editora-chefe da E-papers, Ana Cláudia Ribeiro, “A gente ainda tinha que convencer o leitor, uma espécie de catequese. Hoje

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coMércio

o cool-er é um dos três e-readers comercializados oficialmente no brasil, e o mais barato deles, custa r$ 750

em dia, todo mundo entende o que é um e-book.” As vendas de livros digitais da editora aumentaram muito, segundo Ana Cláudia, de modo que representam hoje 50% dos pedidos. São cerca de 400 títulos disponíveis, praticamente todos em português. A fórmula também tem funcionado para a Singular Digital, criada em 2009, tendo a Ediouro como principal acionista. A editora publica autores independentes, cuidando de todo o processo a partir dos textos do escritor até a distribuição para os canais de venda, como livrarias físicas e virtuais. “Existe um potencial enorme que envolve universidades, alunos de graduação e pós-graduação, teses, dissertações, num número difícil de mensurar”, explica o diretor-geral da Singular, Newton Neto. A empresa é pioneira na digitalização e conversão de e-books, prestando serviços para outras editoras. Historiadora e professora da UFRJ, Heloísa Buarque de Hollanda acredita que a impressão sob demanda pode espantar dois fantasmas: livros esgotados e livros encalhados. “A figura do estoque, que é horrível, um carma de todas as editoras, vai acabar. Um amigo economista escreveu num artigo que o estoque é o único investimento que eu alugo por centímetro, e pago para não render”, afirma, sobre o preço de armazenamento de livros, com a propriedade de quem comanda a editora Aeroplano.

ArtiGo de LUXo

De sua parte e em geral, os escritores parecem abertos às mudanças sem maiores traumas. Paulo Coelho provou que não há o que temer ao disponibilizar gratuitamente uma edição digital russa do seu último

DIvuLgação

Entrevista

MARCELINO FREIRE “NÃO TENHO ESSA COISA DO CHEIRO DO LIVRO” com o bom humor que lhe é peculiar, o escritor Marcelino Freire falou por telefone sobre e-books para a Continente. Estava a caminho de uma palestra numa biblioteca na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, onde mora. Ao estrear no formato digital a convite da Mojo Books, ficou surpreso com os 14 mil downloads em menos de dois meses de É só isso o meu baião, romance que escreveu inspirado na faixa homônima do disco Getz/ Gilberto, de Stan Getz e João Gilberto. continente Você já teve contato com algum e-reader? MArceLino Freire Uns dois amigos meus têm o Kindle: eu olhei, ele é muito bonitinho, pequenininho, leve. Trabalha com uma tecnologia que deixa a tela fosca, a luz não cega o leitor. Eu gosto do formato, acho que é muito importante, principalmente para professores e pesquisadores. Imagine os livros todos armazenados ali dentro, podem ser lidos tranquilamente no avião, sem problema de peso, de coluna. Para um homem que está ficando cego, eu estou ficando cego, é uma maravilha: você pode aumentar a letra e, se quiser, ouvir também. continente Tem sentido falar no fim do livro em papel? MArceLino Freire Creio que essa coisa de que o livro em papel vai acabar não é verdade. O livro vai sempre existir, aquele que você carrega para o banheiro. Só que o homem é inteligente e precisa avançar nas suas necessidades. Eu não sou muito nostálgico, não tenho essa coisa do cheiro do livro. Qualquer coisa faz uma essência. Não ligo se o que eu escrevo vai

para a tela de um Kindle ou para a página de um livro. Desde sempre é a mesma inquietação. Agora, se o cara puxa um Kindle, você não sabe o que ele está lendo, a gente fica curioso para ver a capa. Outra vez, eu estava no avião e uma senhora levantou – quando ela tirou o livro, era do Lourenço Mutarelli (autor de O Cheiro do Ralo, entre outros), que milagre! Comecei a rezar um pai-nosso para o avião não cair. continente Como você encara o livro eletrônico? MArceLino Freire A única coisa que pega para o autor é o seguinte, preste bem atenção. Com essas novas mídias, a gente está discutindo junto ao Governo sobre os direitos autorais. A porcentagem costumeira para o livro impresso é de 10 %, mas nesse caso não é a mesma despesa. Não há despesa de distribuidor, impressão. Como é que o autor vai ganhar apenas 10% daquilo que criou, se todos esses atravessadores, os caminhos onerosos, deixarão de existir? Vai se chegar a um acordo nesse sentido. Os Estados Unidos são mais rápidos, já existe um olhar eletrônico. Faço parte do Movimento Literatura Urgente, e os autores ainda são muito amadores na hora da discussão. Não há organização nenhuma dos escritores. Imagina! Tirar eles de casa já é um sacrifício. Até organizar esses escritores todos, minha filha, “Inês já é morta”. (ML)

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E-READERS no brASiL COOL-ER Produto da Gato Sabido, pesa 178 gramas e possui um software que melhora a visualização de arquivos PDFs. Ajusta a formatação e permite aumentar o tamanho das letras. Também com tela de 6 polegadas de papel eletrônico, custa R$ 750 e dispõe de versões em várias cores. Não tem teclado físico, mas conta com um virtual acionado quando necessário. Visualiza mais do que os principais arquivos: PDF, ePub, TXT, além de MP3 e JPG. Permite comprar livros direto da e-bookstore Gato Sabido. Site: www. gatosabido.com.br

KINDLE

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O mais famoso e-reader oferece experiência de leitura próxima do livro em papel, na tela de 6 ou de 9,7 polegadas. Com ele, o usuário tem à disposição boa parte do catálogo da maior livraria virtual do mundo, a Amazon (principalmente na língua inglesa). Não tem Wi-Fi, mas conta com acesso 3G pago pela própria fabricante. Permite comprar e-books facilmente através do cartão de crédito. Pesa 200 gramas, aceita USB e conta com teclado físico. Uma das críticas direcionadas a ele é o fato de que só aceita o arquivo com extensão AZW, formato da própria fabricante – e recentemente passou a ler PDF. Não visualiza o formato ePub, apontado como padrão. Custa cerca de R$ 1 mil. Site: www.amazon.com

livro por conta da falta de papel no país, numa espécie de autopirataria. Quando o livro foi reeditado na Rússia, bateu 1 milhão de vendas. Best-sellers à parte, Daniel Galera conta que se ofereceu para ser um pouco cobaia da sua editora para negócios do tipo. “Eu acho que para os autores isso só traz benefício. Eles estão juntos com o risco das editoras: se elas estiverem mal, eles têm um problema.” Com quatro livros publicados, sendo o último Cordilheira (2008), Galera resolveu abrir o download do e-book de Dentes guardados no seu site Rancho Carne. Como era edição independente e está esgotada, a coletânea de contos publicada em 2001 foi convertida para o formato PDF e disponibilizada. Mas mesmo sendo um entusiasta das novas mídias, Daniel Galera não acredita que o livro em papel vai acabar – questão inevitável quando se toca no assunto e-books. “O que deve mudar é o comportamento do consumidor. É provável que, a longo prazo, o livro se torne um pouco artigo de luxo, como é considerado

Heloísa buarque de Hollanda percebe nas pessoas um “medo louco” de que a tecnologia destrua a literatura o CD. Você gosta do artista e faz questão de ter”, aposta o escritor. A tranquilidade em relação à permanência do livro tradicional também é manifestada pelo escritor Nelson de Oliveira, que negocia com a Ateliê Editorial o lançamento de três obras no formato virtual. Em contrapartida, o recémlançado título de sua autoria Poeira: Demônios e maldições (2010) é sobre um mundo tão abarrotado de livros – nos quartos, banheiros, corredores, ruas –, que os governos precisam proibir novas obras. Empolgado com o Kindle que ganhou da esposa, Oliveira observa que o e-paper não acabará com o papel de celulose da mesma maneira

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5 entusiasta Com quatro livros publicados, Galera resolveu disponibilizar o download do e-book de Dentes guardados no seu site Rancho Carne 6 lançaMentos O escritor Nelson de Oliveira, que possui um Kindle, está em negociação com o Ateliê Editorial para lançar três livros em formato e-book

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que o MP3 não acabou com o CD e o vinil. “Mas fará diminuir bastante as edições em papel. Ainda bem. Atualmente são publicados perto de 20 mil novos livros por ano, segundo a Câmara Brasileira do Livro. É papel demais!” Para defender da digitalização esse artigo de valor simbólico tão forte, que é o livro, o escritor italiano Umberto Eco e o roteirista francês Jean-Claude Carrière escreveram Não contem com o fim do livro (2010). Numa declaração de amor ao objeto, os dois garantem que os formatos vão conviver. Sempre que fala em público, Heloísa Buarque de Hollanda sente um “medo louco” nas pessoas de que a tecnologia destrua a literatura. “Ela não está minimamente ameaçada. O que vai acontecer é a expansão de uma arte narrativa e poética nova, em que entram muito som e imagem. Sai da tela e volta”, afirma, exemplificando a ideia com a antologia digital Enter, que ela organizou no final de 2009. Hospedada na web, reúne textos, áudio, vídeos e imagens, criações de artistas contemporâneos. Essa abertura

criativa tem dado espaço para projetos como a Mojo Books, uma editora digital que indaga: se música fosse literatura, que história contaria? Ao escolher um álbum e escrever um livro inspirado nele, qualquer pessoa pode ter um e-book editado e publicado na Mojo. Basta ser bom para os editores Danilo Corci e Ricardo Giassetti, que lançam em média quatro dos 40 textos que recebem por mês. “Se não estiver bom, pedimos para o autor retrabalhar. Vai da vontade dele insistir ou desistir”, Corci dá a dica. Resta ao poder público garantir coisas como a ampliação do próprio conceito do livro para abranger o digital na regulamentação da Política Nacional do Livro, segundo o diretor de Livro, Leitura e Literatura do Ministério da Cultura, Fabiano dos Santos. Na opinião dele, nessa discussão, o mais importante é o acesso ao livro e, sobretudo, a formação dos leitores. “É aquela velha frase do Monteiro Lobato: ‘Um país se faz com homens e livros’. Eu gosto de dizer que se faz com homens, mulheres, crianças, livros e leitura.”

onde encontrar Sites que oferecem diversos títulos de livros digitais no país

Brasilianas digital www.brasiliana.usp.br

conrad www.lojaconrad.com.br

Daniel Galera www.ranchocarne.org

enter www.oinstituto.org.br/enter

e-PaPers www.e-papers.com.br

gato saBido www.gatosabido.com.br

Heloísa Buarque de Hollanda www.heloisabuarquedehollanda.com.br

livraria cultura www.livrariacultura.com.br

Mojo Books www.mojobooks.com.br

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ZÉ NOVO “Diga Jesus, Maria, Divino Espírito Santo e Frei Damião”

Devoto do frade capuchinho, rezadeiro do município de Tabira, no sertão do Pajeú, dá bênçãos e conquista adeptos nas cidades por onde passa em suas peregrinações texto Bernardo Valença fotos Maíra Gamarra

As mãos abertas do rezador ora

pressionavam abaixo do pescoço, ora repousavam sobre a cabeça do fiel. “Diga Jesus, Maria, Divino Espírito Santo e Frei Damião.” Alguns fechavam os olhos concentrados, outros deixavam escapar um tímido sorriso e todos repetiam os nomes na ordem e entonação dadas por José do Cesário, conhecido como Zé Novo. Essas são as primeiras palavras da reza, em parte, inventada por ele. A fala ligeira só nos permite entender alguns outros “Jesus” ou “Maria” distribuídos no discurso, mas o nome entoado com mais força é o de Frei Damião. Naquela tarde, esse nome estava em diálogo com o ambiente em que era proferido, embora durante os 12 meses do ano não saia da oração de Seu Zé Novo. O local é o convento de São Félix de Cantalice, no Pina, zona sul do Recife, onde há 12 anos fiéis celebram a vida do capuchinho Frei Damião, na data de sua morte, ocorrida em 31 de maio de 1997. É o segundo ano em que Zé Novo presencia a festa. Ele viajou cerca de seis horas de ônibus, de Tabira para o Recife, com o propósito de homenagear o frade italiano. Da sexta, 28 de maio, até a segunda-feira, 31, Zé Novo afirma ter rezado em mais de 200 pessoas que visitaram o convento. Depois de recebida a bênção, o rezador encaminha a pessoa para assinar e pôr um número em um caderno meio amassado. Já é o oitavo volume e, até o fechamento dessa reportagem, eram exatas 22.046 assinaturas colhidas. “Isso para mim é muito importante”, diz;

Se a fila é muito grande, a reza encurta. Para facilitar, a oração pode ser destinada a duas pessoas, no máximo: uma para cada mão “sem essas assinaturas eu ia terminar minha vida sem saber o que estava fazendo”. Nenhum nome ali firmado é mais importante do que o outro; para ele, cada um significa um testemunho a seu favor. No entanto, ressalta os 15 padres e 11 frades que estão entre os milhares. Os números não traduzem fielmente a quantidade de pessoas para quem a reza de Zé Novo já foi destinada, ele afirma que o total é muito maior. Talvez mais que o dobro. “Aqui, por exemplo, não tem condição de eu estar colhendo assinatura de todas as pessoas.”

ReZA PRoPoRcionAL

Sua mão é robusta como a de um camponês; a barba branca e uma roupa de penitência de cor vinho, semelhante a um hábito eclesiástico, lhe dão certa autoridade. Mas, quando era confundido com um frade, dizia: “Não, sou um missionário”. Bastava que alguém pedisse uma bênção, que uma fila improvisada de 10 a 15 pessoas se instalava à sua frente. “Ele faz milagre?”, questionava uma senhora que esperava pela oração forte do senhor de 67 anos. “Retire todo o mal do seu corpo,

da cabeça até a ponta dos pés”, diz o benzedeiro de cabeça baixa, com a mão encalcada sobre a testa do fiel. Se a fila era muito grande, a reza encurtava. Para facilitar, a oração podia ser destinada a, no máximo, duas pessoas: uma para cada mão. Mas a atenção do rezador não diminuía. Ele diz que não se cansa, garante que nunca parou um dia de fazer esse trabalho, sem remuneração. Nesse domingo, dormiu poucas horas num colchão fino e, às três horas da tarde, ainda nem tinha almoçado direito. Mas isso é pouco, comparado ao que costuma fazer. “Aliviou, viu, seu Zé?”, Jair Carlos Santos, devoto de Frei Damião, se aproxima de Zé Novo minutos depois de ter sido rezado. “Tava que não aguentava de dor”, diz ele, com a mão na boca do estômago. Esse tipo de dor é apenas um dos males que a cura ou, no caso, o alívio, são creditados à sua reza. Zé Novo enfatiza que não salva ninguém, “a cura vem de Deus, primeiramente, e, segundo, de Frei Damião”. No Recife, José do Cesário é pouco conhecido, mas, na sua terra de origem, Tabira, é raro alguém que nunca tenha ouvido falar do benzedor.

FAZ-tUDo

Nasceu no ano de 1943. O pai era agricultor e a mãe cuidava da casa e dos 10 filhos. Cresceu trabalhando na roça ao lado do seu pai e, aos 33 anos, foi chamado para trabalhar em Paulo Afonso, na Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). Começou “fazendo de tudo”, de limpar banheiro

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Perfil a cavar “buraco de poste”. Aprendeu a dirigir dentro da firma e, mesmo com “a escrita pouca”, conseguiu tirar a carteira e virar motorista da empresa, função que exerceu até a aposentadoria por invalidez, em 1992. Nesse tempo, já havia começado com o trabalho religioso. Usava um bigode ainda escuro, sempre de roupas comuns e não carregava caderno nas mãos. Seu ritmo de oração era muito menor do que hoje e não era conhecido por ter ajudado a curar ninguém. Resolveu seguir os passos do Frei Damião, que inspirou sua nova carreira. Tinha se encontrado algumas vezes com o frade capuchinho. Nas últimas delas, chegou a acompanhálo em algumas missões para a Bahia, Alagoas, Sergipe e Belém. Atribui o seu dom de rezar a Deus e a Frei Damião. “Eu pedi a Frei Damião uma lembrança e ele disse que não tinha nada naquele momento. De repente, ele se levantou, pediu para que eu colocasse a mão no ombro direito dele e mandou que eu fizesse força, como uma massagem. Depois disse que o incômodo que estava sentindo havia passado”, conta Zé Novo. Ele credita essa como a

De uma cidade a outra, foram mais de 40 grandes peregrinações a pé citadas por Zé novo, à procura de doentes primeira vez que usou suas mãos em nome da cura ou alívio de algum mal. “Em 1990, eu já estava em oração com o povo, rezava e deixava para lá.” O benzedeiro diz que gostaria de ter registrado seu trabalho desde o começo. O marco foi o dia 21 de julho de 2000, quando viajou a pé de Tabira para Juazeiro do Norte, acompanhado de cinco pessoas. O percurso, de mais de mil quilômetros, durou oito dias, e Zé Novo só carregava um terço, uma gaita e pífanos que costuma tocar. Comia e dormia no caminho, na casa de desconhecidos. Depois dessa viagem, a maior que fez, não parou mais. De uma cidade para outra, foram mais de 40 grandes peregrinações citadas por Zé Novo. “Ele

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não mede distância”, diz o poeta de Tabira Dedé Monteiro. “Vai a pé para os sítios e vive de rua em rua procurando quem tem dor.” No meio de agosto de 2000, Zé Novo fez três pontes de safena e uma mamária. Depois disso, a família – sua mulher e oito filhos – tentou fazer com que ele parasse as viagens, mas não teve sucesso. Um de seus filhos mais velhos, Cícero Cesário da Silva, afirma que “todo mundo pede para ele descansar, diminuir essas andadas, mas ele não quer parar”. O filho, preocupado, teve então que aceitar a vontade do pai: “A gente está entregando nas mãos de Deus”. Numa das primeiras viagens, o rezador teve um sonho. Zé Novo voltava de Afogados da Ingazeira, já perto de Tabira, à meia-noite, quando orou para Frei Damião dizendo que queria fazer um trabalho. “Você, por estar com Deus, não poderia fazer”, dizia no meio da estrada escura. “Queria estar nos hospitais, ajudar os leprosos, os cancerosos.” Para isso, precisava de ajuda, de uma mãozinha do frade: “Me dê uma ponta do seu cabelo, que eu vou fazer tudo isso”, clamava. Quando chegou em casa, perto

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1 PRoceDiMento O rezador ora, repousando suas mãos sobre a cabeça de quem o procura 2 ReGiStRo Após a bênção, ele encaminha a pessoa para assinar o nome em um caderno. Segundo ele, esse pedido foi feito por Frei Damião através de um sonho. Já são mais de 22 mil assinaturas colhidas

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das cinco horas da manhã, “não estava nem acordado nem dormindo”, diz ter visto Frei Damião conversando com um jovem e depois vindo lhe apertar a mão. “Ele disse: ‘Incentive o povo a assinar o livro’ ”, conta Zé Novo. Dez anos depois desse sonho, o benzedor fez mais do que colher as assinaturas que o frade “pediu”. Numa casinha que tinha, próxima à sua, montou um local de oração. São mais de 12 imagens de Frei Damião, entre estátuas e quadros, e quase uma centena de outras imagens aglomeradas em um quartinho. Duas mesas sustentam boa parte das estátuas e é de frente a uma delas onde Zé Novo se ajoelha todos os dias para rezar. A casa está aberta para quem queira receber sua bênção.

eStRAnHo cURADoR

Em Tabira, os que acreditam não negam o poder da oração de Zé Novo. Mas nem todos creem, “tem muita gente que pensa que ele é louco”, diz Dedé Monteiro. “Acho que é a fé que deixa as pessoas estranhas. Mas estranhas para melhor.” Um dos motivos de Dedé acreditar na cura através de Zé Novo

Zé novo montou um local de oração, com mais de 12 imagens de Frei Damião, em tabira, onde recebe os fiéis para bênçãos é o fato de ele ter feito sua esposa, a professora Quiteria Costa, melhorar instantaneamente de uma dor de cabeça que a estava incomodando. “Parece que quando ele bota a mão é uma mão santa na sua cabeça”, diz. Segundo uma vizinha de Zé Novo, Maria do Socorro Miron, ele não precisa nem tocar na pessoa. “Minha irmã, que mora em Irecê, na Bahia, ligou para mim dizendo que estava com muita dor de cabeça. Eu chamei seu Zé e ele rezou na minha cabeça como se fosse na dela, chamando pelo seu nome”, diz Socorro. “Quando foi mais tarde, eu liguei para a minha irmã, e ela disse que a dor tinha anestesiado pouco depois da hora que seu Zé veio aqui em casa”, afirma.

A bênção de Zé Novo, dizem, não serve apenas para dor de cabeça, mas para mau olhado, “dores cruzadas”, doença de pele e outro desconfortos. Acidentes, como uma moeda entalada na garganta. “Ele encontrou com uma mulher que estava saindo do hospital com a filha pequena. A menina tinha engolido uma moeda e o médico disse que ela tinha que ir para o Recife tirar. Mas a mulher não tinha condição de viajar com a criança. Meu pai rezou e a menina conseguiu engolir a moeda de vez”, conta o filho Cícero. Bjanira Pereira Lopes diz que não tinha como voltar de São Paulo para Tabira, numa viagem que havia feito para visitar parentes. “Eu pensei que ia morrer lá, e disse isso para minha mãe. Estava com muitas dores no corpo e não conseguia me levantar da cama”, conta ela. “O médico dizia que era desgaste dos ossos e passava medicação, mas nada melhorava. De Tabira, minha mãe pediu para que Zé Novo rezasse por mim. Eu fui melhorando aos poucos e pude pegar o avião de volta.” Ela acredita que Deus e Frei Damião, através de Zé Novo, a ajudaram a voltar para casa. “Seu Zé Novo é o segundo Frei Damião”, proclama. O dono de bar Gilberto Barbosa da Silva tem um irmão de 55 anos, chamado Sebastião, com problemas mentais, que vivia preso dentro de um quarto por conta da sua agressividade. “Se alimentava por uma janela e para dar banho nele precisava de três pessoas”, diz Gilberto. “Isso até a visita de Zé Novo”. Quando chegou à casa de Gilberto, o benzedor ouviu da mãe de Sebastião: “Não entre não, que ele vai te matar” – ao que Zé Novo respondeu: “Ele não vai fazer isso porque é uma pessoa de Deus”. Bastou uma reza, afirma Gilberto. “Meu irmão hoje vive entre nós. A reza de Zé Novo é um milagre.” Marinalda Lopes Ramalho é enfermeira do hospital Dr. Luiz José da Silva Neto, que Zé Novo costuma frequentar como voluntário, para rezar pelos doentes. Ela acompanha todo trabalho do rezador dentro do hospital e reconhece a melhora de alguns pacientes com suas orações. Mas ressalva que “a reza dele não substitui o remédio”. Mesmo assim, não acha que esse tipo de trabalho religioso seja em vão: “Todo mundo tem muita fé em seu Zé Novo. E não é a fé que cura?”

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FrAnCis G. mAYEr/COrBis/COrBis (DC)/LATinsTOCK

iMAGEnS As doenças e a morte na arte

Pinturas e gravuras que integram o acervo das obras-primas europeias expressam como as sociedades, ao longo dos séculos, encaram epidemias e enfermidades, revelando também aspectos de rejeição, medo e preconceito teXto Marcelo Robalinho

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Página anterior 1 BRUeGHeL

Em O triunfo da morte, o artista retrata a luta da humanidade para livrar-se de seu destino atroz

Nesta página 2 eStiGMA

O leproso com deformidades nos membros (detalhe), do artista Bernard van Orley, carrega um sino para alertar a sua presença

3 DoenÇA RARA A obra de Domenico Ghirlandaio representa uma criança e um ancião portador de rinofima, distúrbio que desfigura o nariz 4 SÍFiLiS As representações da doença, vista como um castigo enviado por Deus, geralmente eram moralizantes, associando os enfermos a uma vida condenada

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em O triunfo da morte, uma das obras mais conhecidas do pintor flamenco Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), a morte é vista numa paisagem panorâmica das pragas e guerras que assolaram o mundo europeu no século 16. Enfatizando as cores quentes, a pintura retrata a luta vã do homem em tentar se livrar do destino imposto pela morte, representada por um batalhão de esqueletos que exterminam tudo, restando apenas um cenário de devastação. Flagelos como a peste negra foram fonte de inspiração para artistas desde os tempos mais antigos, originando obras que marcaram as artes plásticas e contribuíram para a construção do imaginário que temos hoje a respeito das doenças. O período mais marcante de representações artísticas sobre pragas e enfermidades ocorreu em meados do século 14, quando foi registrada a grande epidemia da peste – estima-se que 25 milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da moléstia só entre 1348 e 1350. Imagens infernais de doenças visitando as pessoas são encontradas em pinturas e gravuras da época e de séculos

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posteriores. Um sentido ilustrativo que deriva de um conceito bem mais antigo, o de epidemia. No passado, a descrição artística das doenças não costumava conter a representação dos sintomas de uma enfermidade. Eram temas mais ligados ao macabro, como no óleo sobre tela de Brueghel, descrito anteriormente, que dá um tratamento fantástico à morte e ressalta o medo diante da calamidade. No livro História do medo no ocidente, Jean Delumeau pontua dois aspectos que costumavam ser acentuados pelos artistas que vivenciaram as epidemias da peste, além da punição divina: “A instantaneidade do ataque do mal e o fato de que, rico ou pobre, jovem ou velho, ninguém podia vangloriar-se de a ele escapar”. Segundo o historiador francês, “as crônicas de outrora que descrevem pestes constituem como que um museu do horrível”. Nas doenças retratadas de forma mais generalizada, a morte era a imagem mais comum, simbolizada por um esqueleto com uma foice. No caso da peste, havia outros motivos alegóricos. Um deles era a flecha transpassada pelo corpo,

tendo como personagem-símbolo São Sebastião. A partir do século 14, observa-se o desenvolvimento da figura de São Roque como a iconografia da peste em toda a Europa. A imagem de Roque assume poderes guerreiros e de salvaguarda contra a doença, o que, de certa maneira, acabou influenciando a riqueza da arte e da arquitetura em alguns locais, como no caso da cidade de Veneza. Lá, igrejas foram construídas no início do século 16 depois de votos feitos pela população a Deus e à Virgem Maria, caso a epidemia de peste cessasse. A Basílica de Santa Maria da Saúde, situada perto da Ponta da Alfândega, é um desses monumentos venezianos erguidos como forma de agradecimento do povo pelo fim da epidemia. “Para a história da arte, a associação da imagem de São Roque à peste permitiu representar a doença sem tabus, e não mais apenas de maneira simbólica, como a figura de São Sebastião, com as flechas transpassadas pelo corpo. A doença passa a ser representada de forma patológica, uma vez que a imagem de São Roque apresenta uma ferida na perna, o bubão

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da peste. É a primeira vez que se nomeia a peste e se ousa, de fato, olhá-la”, afirma Florence Chantoury-Lacombe, professora da Universidade de Montreal, no Canadá, e doutora em história da arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Ela lançou em junho, na França, o livro Preindre les maux (Pintar os males, em português). Prevista para sair no Canadá, em setembro, a obra analisa imagens realizadas por grandes artistas do Renascimento, tais como Paolo Veronese, Tintoreto, Cosimo Rosselli, Hans Holbein e Domenico Ghirlandaio, sob a ótica da história da arte, um viés de análise pouco explorado na atualidade. “As imagens da doença já foram objeto de vários estudos dos historiadores da medicina, mas muito pouco dos historiadores da arte, o que foi uma surpresa para mim”, explica Florence, em entrevista à Continente. Segundo ela, a razão principal da sua pesquisa é mostrar que as imagens das patologias daquela época põem em questão os preceitos da pintura nos tratados artísticos da Renascença. “Resgatando a noção do belo e bom

o período mais marcante de representações artísticas sobre pragas foi durante a epidemia da peste, no século 14 do filósofo grego Platão (o belo como manifestação do bem), vi que o retrato na pintura associava a beleza à virtude. Dentro dessa concepção, não era pertinente pintar um rosto doente ou deformado porque isso depreciava o modelo vigente. Estudando os teóricos da arte na Renascença, pude constatar como o pintor dissimulava os defeitos de um rosto. As imagens de uma doença tinham, então, um poder muito interessante porque elas recolocavam em questão esses postulados da época”, argumenta.

SÍFiLiS e LePRA

Dentre as imagens de moléstias reunidas, as obras retratando a sífilis foram algumas das que mais chamaram

a atenção da pesquisadora, a ponto de classificar a doença como “o grande tabu da pintura”, por ter sido objeto de poucas representações e raramente apresentar a realidade dos sintomas com um critério de semelhança, ao contrário dos textos literários, que os descreviam detalhadamente. “Nas obras que tratam da sífilis, há algumas particularidades: em geral, são representações moralizantes nas quais o doente é associado a uma vida ‘desfeita’, ou então bem satíricas, zombando do sifilítico pelo fato de ele ter contraído a moléstia. Em outros casos, a doença é vista de forma escatológica, como um castigo enviado por Deus sobre um povo, concepção que também podemos encontrar nas obras que retratam a peste”, aponta Florence. Outro retrato de doente também digno de análise é O ancião e a criança, do pintor italiano Domenico Ghirlandaio (1449-1494). O óleo sobre madeira traz, frente a frente, uma criança e um idoso portador de rinofima, um distúrbio raro que acomete geralmente os homens mais velhos, desfigurando o nariz. Para alguns estudiosos, o diferencial na obra do italiano é ter dado atenção a uma patologia e a uma deformação do rosto sem cair na caricatura ou no ridículo. Por muito tempo, a origem das epidemias foi uma incógnita, dando margem a diversas interpretações. Na Idade Média, a Igreja teve uma forte influência sobre a mente da população europeia, orientando-a quanto às explicações e aos métodos para evitar os males das pestes provocadas pelos pecados da humanidade. O Levítico, terceiro livro do Antigo Testamento, menciona a doença como um sinal de impureza e castigo de Deus. De caráter legislativo, a obra dá indicações minuciosas sobre o diagnóstico da lepra e expõe as normas que diferenciam o puro do impuro. Além disso, ressalta a necessidade de banimento do doente para a sua purificação. Em A doença como metáfora, a ensaísta americana Susan Sontag (19332004) diz que a noção de doença como punição é antiga e tem na lepra uma das histórias mais cruéis, suscitando significados moralistas. “Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada

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con especial ti nen te 5 cHARGe no início do século 20, a varíola, a peste bubônica e a febre amarela eram representadas satiricamente na imprensa brasileira

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6 GoYA O artista espanhol se autorretrata, aos 73 anos, sendo atendido pelo doutor Arrieta, que o acompanhava à época

de significação. Primeiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção, decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. Ela própria torna-se uma metáfora. Então, em seu nome (isto é, usando-a como metáfora), aquele horror é imposto a outras coisas”, afirma Sontag. O estigma da lepra está expresso na pintura do artista flamenco Bernard van Orley (1491-1552), que retrata um homem com deformidades nos membros usando um sino para alertar quanto à sua presença. Outra representação artística de leprosos pode ser vista n’Os aleijados, de Brueghel, na qual o artista flamenco revela a degradação física deles, além do agudo senso do pitoresco e da observação humorística. Na tela, é possível ver cinco doentes, dos quais três estão diante do espectador da cena. As fisionomias sugerem retardo mental. Com a pintura, que integra o acervo do Museu do Louvre, em Paris, o artista parece querer criticar a sociedade da época, que via, com indiferença e, muitas vezes, repulsa, as pessoas doentes. “As epidemias sempre tiveram uma forte carga simbólica. Diversos eventos epidêmicos causaram mortalidade grande, como a peste negra, a gripe espanhola e, mais recentemente, a Aids, causando pânico na população”, comenta o médico infectologista Stefan Cunha Ujvari, autor dos livros A história e suas epidemias e A história da humanidade contada pelos vírus. “É normal que essa história de dor causada pelas doenças e epidemias tenha suscitado o interesse dos pintores. É uma parte importante da história da humanidade, que paga ainda hoje pelas implicações do progresso, destruindo nichos ecológicos e favorecendo a disseminação de agentes infecciosos”, considera Ujvari.

HUMOR COM A “CARA” DA MORTE No início do século 20, três doenças eram tratadas como flagelos no Brasil: a peste bubônica, a varíola e a febre amarela. Combatidas pelo governo da época, elas foram objeto de charges em jornais de todo o país, satirizando as medidas sanitárias defendidas por Oswaldo Cruz, então diretor de Saúde Pública do Brasil (o equivalente ao atual ministro da Saúde). É curioso notar que essas doenças foram retratadas por meio de caveiras com foice representando a morte – um tipo de ilustração bem parecido com as pinturas do Renascimento que abordavam a “visita” da peste. “Aliado às ações empreendidas nos primeiros cinco anos do século 20 pelo então presidente da República, Rodrigues Alves, e o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, o trabalho da saúde pública não foi visto com bons olhos pela população. Assim, a demolição dos cortiços, o aterramento dos alagados, a instituição de uma polícia sanitária e a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola provocaram a reação do povo e da elite, levando a imprensa brasileira a produzir charges

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criticando as medidas”, recorda Carlos Fidelis Ponte, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, unidade carioca da Fiocruz. A manifestação mais famosa ocorreu, em 1904, no Rio de Janeiro, com a Revolta da Vacina, uma reação à vacinação maciça. “A charge tem um poder de comunicação mais direto, pois o desenho fala por si só, não sendo necessário o texto escrito. Também não podemos esquecer que a maioria das pessoas era analfabeta naquela época”, afirma o historiador. Segundo ele, embora Oswaldo Cruz respondesse às críticas por meio de artigos e discursos, isso praticamente não chegava ao conhecimento do povo, ficando apenas as charges como fonte de informação. A situação se converteria em elogios ao sanitarista a partir de 1908, com o controle das epidemias. “Apesar de bem-humoradas, as charges não contribuíram para uma correta compreensão das doenças. O potencial de comunicação delas não foi aproveitado e acabou funcionando de modo negativo em relação à difusão do conhecimento”, reconhece Ponte, que está organizando, com a pesquisadora Ialê Falleiros, o livro Na corda bamba de sombrinha, que pretende fazer um resgate da saúde pública do período colonial aos dias atuais. MARCELO ROBALINHO

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Henry Ford. No quadro, a pintora se encontra deitada, tendo presos à mão esquerda, através de uma espécie de cordão umbilical, um feto, um caramujo e um modelo de abdome, suspensos no ar; uma pelve óssea, uma flor e uma autoclave, no chão. “Seu corpo é demasiadamente pequeno em relação ao tamanho do leito hospitalar, sugerindo seu sofrimento e sua grande solidão”, escreve Armando Bezerra, em As belas artes da medicina. Em Munch (1863-1944), as doenças com as quais conviveu influenciaram o pintor não apenas fisicamente, mas também emocional e psicologicamente. Dentre elas, a tuberculose que matou sua irmã Sophie, aos 15 anos, e marcou sua obra. A criança doente, Primavera e A mãe morta e a criança são expressões dessa perda. Os sofrimentos mentais de Munch também se

inDiviDUAliDADE Relato pessoal da dor pelo artista

A experiência dos que viveram patologias e perdas é transmutada em criação, seja para revelar aspectos morais e religiosos quanto para refletir e expurgar

o que a mexicana Frida Kahlo , o norueguês Edvard Munch, o espanhol Francisco de Goya e o holandês Vicent van Gogh têm em comum? Todos experienciaram patologias, o que influenciou suas obras. Dos quatro, Frida (1907-1954) foi quem mais expôs o sofrimento pessoal. Ainda criança, a pintora

contraiu poliomielite, deixando o membro inferior direito mais curto e a musculatura atrofiada. Aos 18 anos, sofreu um acidente de trânsito que acarretou múltiplas fraturas pelo corpo, inviabilizando o desejo de ser médica e ter filhos. Várias pinturas retratam a dor de Frida. Uma delas é O hospital

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As obras modernas e contemporâneas sobre doenças passam a ser a expressão da criatividade e da vivência do indivíduo evidenciam em O grito, considerado um dos mais importantes quadros do Expressionismo. “Nos últimos séculos, a arte fala da doença mais como uma experiência vivida e um sofrimento ligado a um indivíduo. Assim, se no início da Idade Moderna temos um homem que representa o conjunto da humanidade e sua fragilidade diante do destino, nos últimos séculos temos um homem individualizado e que enfrenta seu sofrimento gerado por uma doença como uma experiência cuja vivência diferencia o artista do resto da coletividade dos homens sãos”, analisa Marília de Azambuja Ribeiro, professora de história da arte da Universidade Federal de Pernambuco e doutora em história pela Universidade de Florença, na Itália. De acordo com ela, o discurso sobre doença e morte era revestido de

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PARA lER E ASSiSTiR Alguns livros e filmes inspirados em doenças e epidemias reais ou fictícias livROS DECAMERãO (SéCUlO 14) Giovanni Boccaccio

para fugir da peste que se abatia sobre Florença em 1348, dez jovens se isolam numa casa de campo. As histórias contadas no livro constituem um documento sobre o flagelo da praga na idade média.

A PESTE (1947) Albert Camus

neste romance, Camus relata a história de uma aldeia da Argélia acometida pela peste. A obra serve de metáfora para tratar dos horrores da segunda Guerra mundial.

O AMOR nOS TEMPOS DO CólERA (1985) Gabriel García Marquez

A cólera é pano de fundo e serve de alegoria para tratar de uma história de amor. A noção de epidemia é vista por marquez como uma força que permite desenvolver os sentimentos humanos.

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cunho moral e religioso nos séculos 16 e 17, sendo a obra de arte mais uma maneira de alertar as pessoas para o vazio dos esforços do homem neste mundo do que uma reflexão sobre a doença em si mesma. “Na arte moderna e na contemporânea, o trabalho artístico é uma expressão da criatividade e da vivência do indivíduo. Só um pintor doente, como Frida Kahlo e Munch, pode falar de doença, dada a subjetividade do tema”, diz Marília. É o caso de Goya (17461828), que também teve o trabalho influenciado pela experiência da doença, só que de maneira menos explícita. Ao longo da vida, perdeu a audição, sofreu um acidente vascular cerebral e teve a saúde debilitada por causa de uma intoxicação pulmonar provocada pela absorção de chumbo, substância presente nos pigmentos de tinta. Embora não se possa fazer uma relação direta entre doença e produção artística, as

7 A CRIANÇA DOENTE A tuberculose que acometeu a irmã de munch influenciou algumas de suas obras

obras do espanhol foram marcadas pelo horror e enclausuramento, tendo como ápice a fase das pinturas negras da velhice. Em Goya atendido pelo doutor Arrieta, o pintor aparece doente, aos 73 anos, sendo amparado pelo médico que o acompanhava na época. Assim como em Goya, as representações pessoais da doença não são tão evidentes em Vincent van Gogh (18531890). Seu comportamento introspectivo denotava um quadro constante de depressão. Acredita-se que fosse portador de distúrbio bipolar. No óleo sobre tela Autorretrato com curativo na orelha e cachimbo, vemos o artista sem a orelha direita, decepada por ele mesmo, depois de ter atacado o amigo Paul Gauguin (18481903), que trabalhava no seu ateliê, em Arles, no sul da França. (mr)

AO AMiGO qUE nãO ME SAlvOU A viDA (1990) Hervé Guibert

Autobiográfico, relata o sofrimento do escritor francês em relação à sua soropositividade. A novela faz parte de uma trilogia, que conta ainda com Protocolo de compaixão e O homem do chapéu vermelho.

filMES PâniCO nAS RUAS (1950) Elia Kazan

um grupo de amigos mata um imigrante ilegal que ganhou muito dinheiro num jogo de cartas. no momento da autópsia do corpo, descobre-se que a vítima era portadora de uma praga. O médico tenta então achar os assassinos para evitar que a doença se espalhe.

E A viDA COnTinUA (1993) Roger Spottiswoode

Baseada no best-seller de randy shilts, o filme conta a tentativa dos pesquisadores de identificar o vírus do HiV e alertar as autoridades sobre os perigos da Aids no início da epidemia.

OS DOzE MACACOS (1995) Terry Guilliam

Em 2035, sobreviventes de um vírus mortal voltam no tempo para tentar descobrir a causa da catástrofe que matou 99% da população. Tomado como louco, James Cole (Bruce Willis) tenta provar a sua sanidade, única esperança de mudar o futuro.

EnSAiO SOBRE A CEGUEiRA (2008) fernando Meirelles

inspirado na obra do escritor português José saramago, o filme conta a história de uma epidemia de cegueira que atinge uma cidade. À proporção que a doença misteriosa se espalha, aumenta o pânico, sendo os contaminados colocados em quarentena num hospício.

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Fernando Freitas

é variada. Dentre elas, a Aids é uma das mais emblemáticas. Logo no início da epidemia, os meios de comunicação se referiam à doença como peste gay, peste rosa e peste do século, numa alusão direta à peste negra. O uso desses termos retratava o estigma que marcou a Aids, alimentando a intolerância e o medo em relação a essa doença sexualmente transmissível. Nos últimos anos, a dengue tem atraído a atenção da imprensa por ser uma moléstia emergente e um dos principais problemas de saúde pública do Brasil e do mundo. A doença encontrou lugar cativo no noticiário, sendo o Aedes aegypti alçado à condição de monstro e levando a mídia a criar imagens assombrosas do inseto para conferir sentidos à doença. A pandemia declarada da gripe A (H1N1) é o exemplo recente de doença cuja imagem construída

IMPRESSOS O apelo visual e o peso das palavras

Manchetes de jornais e capas de revistas vêm construindo a imagem assustadora das moléstias na sociedade contemporânea

Ameaça, avanço, chegada ,

crescimento, descontrole, perigo, morte... Essas palavras bem que poderiam ser empregadas para descrever qualquer confronto armado. No caso da imprensa, esses termos são usados com frequência para tratar de doenças, especialmente as infecciosas.

Desde o século 20, os dizeres midiáticos vêm contribuindo para o arcabouço de informações e valores que a população dispõe sobre diferentes patologias. Febre amarela, cólera, dengue, Aids, gripe aviária, gripe suína. A lista de enfermidades que tiveram os sentidos construídos pela mídia

A pandemia da gripe A (H1n1), na foto, é exemplo de doença cuja imagem construída foi de um “mal” midiático planetário foi de um “mal” planetário, trazendo à tona os fantasmas da gripe espanhola e da aviária. “Em geral, a sociedade tem um certo prazer e curiosidade pelos assuntos pestilentos”, acredita o infectologista e escritor Stefan Cunha Ujvari, que também é mestre em Doenças Infecciosas pela Unifesp. Para ele, uma vez que a doença vai embora, cogita-se uma nova epidemia. “Uma moléstia nova como a gripe A (H1N1) traz essa ideia de acometer a população de forma mais ampla, devido à susceptibilidade do contágio, inclusive em faixas etárias que não costumam adoecer e morrer por doença, como os jovens. Evidentemente, isso atrai a atenção da mídia, que busca retratar os fatos e informar a sociedade. Entretanto, dependendo do contexto, isso pode contribuir para fomentar o pânico entre as pessoas”, pondera. (mr)

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triunfo Alta, fidalga e muito aprazível A combinação entre clima temperado e peculiaridades naturais e arquitetônicas torna o município sertanejo, que fica a 402 km do Recife, um destino sui generis texto Danielle Romani fotos Léo Caldas

Localizado no sertão do Pajeú,

a 1.004 metros de altitude e a 402 quilômetros do Recife, Triunfo não se enquadra nos estereótipos associados à caatinga. De clima temperado, rico em flora e fauna, com abundância de recursos hídricos, em nada se assemelha à rudeza da região. Quem visita o município mais alto de Pernambuco, pela primeira vez, percebe as diferenças antes mesmo de chegar à cidade. O impacto começa no percurso pela serra do Brocotó, cortada pela PE-350. Lá, penhascos e grandes depressões margeiam a estrada. A vegetação é um caso à parte: mescla características da caatinga e da Mata Atlântica, exemplares típicos do bioma conhecido como brejo de altitude, as chamadas “ilhas úmidas” do semiárido. A combinação entre natureza e clima temperado, com termômetros registrando temperaturas entre 15˚ e 8˚ graus centígrados nos meses de inverno – época em que a neblina intensa é presença constante nas manhãs e noites do município – torna Triunfo um destino atraente para os que apreciam o frio e as belezas naturais. Mas ele guarda outros trunfos. Imponente é o conjunto arquitetônico local, cujo destaque é o TheatroCinema Guarany, inaugurado em 1922

o município localizase no brejo de altitude sertanejo, o que lhe permite temperaturas entre 15˚ e 8˚ graus no inverno e recém-restaurado pelo governo estadual (leia no quadro da página 55). Construído em torno da Lagoa João Barbosa Sitônio, o casario histórico se concentra no centro, em ruas estreitas, com fachadas coloridas e ornamentos variados, a exemplo de motivos florais, geométricos e religiosos. As casas, com exceção dos poucos exemplares que mantiveram a fachada ou construção original do século 19, estão inseridas no que se convencionou chamar de estilo eclético, gênero que mistura tendências de escolas variadas, e que se difundiu logo após o declínio do Neoclassicismo. A conservação patrimonial proporciona à arquitetura triunfense uma diversidade construtiva que inclui elementos art déco e art nouveau, e traz particularidades como fachadas com portas e janelas em profusão, mas com largura inferior às encontradas em outras localidades.

DeScARActeRiZAÇÃo

Levantamento da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) indica que o conjunto arquitetônico é composto por 179 imóveis tombados no nível municipal, acervo avaliado pelo arquiteto e professor Paulo Souto Maior como digno de atenção nacional, diante do originalidade, unicidade e dimensão apresentadas. “O casario de Triunfo apresenta uma unidade que o torna inconfundível. Desconheço outra cidade que tenha, numericamente, um acervo tão particular. Olinda é mais importante, mas não tem tamanha coesão de estilo”, explica o arquiteto que, no período em que atuou como diretor de Preservação Cultural da Fundarpe, foi um dos responsáveis pelo inventário dos imóveis locais – ação produzida para pautar o Plano Diretor municipal, promulgado pela lei 1082/ 2007. O trabalho da Fundarpe consiste num minucioso levantamento sobre a fachada de todas as casas, a maioria construída entre os anos 1920 e 1940, e foi feito com o intuito de auxiliar o município a identificar o patrimônio e a preserválo. Mas isso não vem acontecendo, segundo afirma Rosa Bonfim, chefe da Unidade de Preservação, vinculada à Diretoria de Preservação Cultural da

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Fundarpe. É visível a descaracterização e a interferência no casario. Na maioria dos casos, as alterações são promovidas pelos proprietários, que constroem pisos adicionais e modificam as fachadas dos imóveis. O episódio mais grave, segundo Rosa Bonfim, diz respeito à derrubada de parte do conjunto conhecido como Castelinho e de toda uma fileira de casas antigas. Eles foram demolidos pelo governo local para abrir espaço ao Pátio de Eventos, instalado à beira da lagoa, que se destina a receber os turistas que participam de promoções como a Festa dos Estudantes e o 3º Festival de Cinema, que acontecem anualmente em julho. A Fundação afirma que seria possível construir o pátio em uma área próxima,

em triunfo, a cultura sertaneja se mistura à europeia, com uma história fortemente ligada à religião católica con ti nen te#44

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Viagem sem danos ao casario. “O patrimônio arquitetônico é um do trunfos da cidade. Sem ele, o lugar perde grande parte do seu atrativo”, alerta Rosa. A prefeitura local afirma que a derrubada do casario foi votada e autorizada pelo Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento do Município de Triunfo.

ReLiGioSiDADe

Triunfo é um município onde a cultura sertaneja se mescla à europeia, e que tem sua história fortemente ligada à religião católica. Padres, freis e freiras de diversos países ajudaram na construção do município e de sua identidade. O marco inicial é 1801, ano em que o capuchinho italiano Frei Vidal da Penha Frescolaro chega à serra, habitada pelos índios caetés, trazendo na bagagem uma imagem de Nossa Senhora das Dores. A imagem da santa, padroeira da cidade, é mantida na igreja matriz, que leva seu nome. “Ela é o mais antigo

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patrimônio cultural triunfense”, afirma a historiadora e produtora cultural Diana Rodrigues Lopes, cujo livro Triunfo, a corte do Sertão é a mais completa obra disponível sobre o município. Aliás, o título do trabalho dimensiona bem a importância da localidade na segunda metade do século 19 e início do 20, época em que Triunfo figurava como centro econômico e abastecedor da região. Período em que as plantações de café, os engenhos de cana-deaçúcar (cujas origens remontam ao ano de 1812), as fábricas de rapadura, de cachaça, de doces, de tecidos e o intenso comércio de finos produtos importados – que vinham de trem até Arcoverde e eram transportados serra acima sobre o lombo de burros – promoviam um

intenso intercâmbio comercial com os municípios e estados vizinhos. A influência de congregações religiosas também pode ser observada em diferentes áreas e épocas. Foi o capuchinho Frei Caetano Messina, em 1850, quem ajudou os triunfenses a represar e construir os muros de contenção da Lagoa João Barbosa Sitônio, antes chamada “do Grotão”. Graças a seu trabalho, hoje ela tem uma circunferência de um quilômetro de largura, com trechos de até oito metros de profundidade. No âmbito educacional, foi o Frei Ibiapina, em 1871, quem inaugurou a primeira casa de caridade municipal, destinada a abrigar e educar meninas órfãs. Em 1920, foi a vez da Congregação Marista disseminar

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O casario histórico se concentra em torno da Lagoa João Barbosa Sitônio

Nestas páginas 2-3 MoRADoReS

Pedro Gomes de Oliveira Jr. mantém pousada e engenho. Diana Rodrigues Lopes criou o Museu do Cangaço

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PReSeRVAÇÃo

O município possui 179 imóveis tombados

o idioma francês, o ensino de qualidade e uma educação mais refinada, pelo menos para os padrões sertanejos. Os padres permaneceram no local até o ano de 1926, e saíram às pressas, segundo a historiadora Diana, fugindo da peste bubônica, que provocou centenas de mortes e levou famílias inteiras a abandonar Triunfo definitivamente.

Nesse período, assegura a pesquisadora, teve início o declínio econômico da “corte sertaneja”, ainda que não tenha encerrado a contribuição e presença dos religiosos europeus no município. Mesmo em rápida decadência,Triunfo ainda era melhor do que a Alemanha nazista às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Foi certamente fugindo do conflito e dos partidários de Hitler que, em 1939, chegou à cidade um grupo de nove freiras alemãs, denominadas pela população local como “irmãs pioneiras”. Elas fundariam e administrariam o Colégio Stella Maris – outro paradigma de educação refinada e europeizada – até 2004, ano em que, abatido por dificuldades, o colégio que era orgulho dos triunfenses encerrou as atividades.

noVA econoMiA

Aos poucos, Triunfo assistiu ao desmonte de seus centros de referência em educação, das grandes fazendas de café, de seus seculares engenhos. Mas mantém, no dia a dia e na culinária, os traços do passado opulento e de um certo refinamento europeu aliado às tradições sertanejas. Após um período de estagnação cultural e econômica, boas iniciativas estão sendo tomadas por empresários, como Pedro Gomes de Oliveira Júnior, que há 22 anos inaugurou a Pousada Baixa Verde, hoje com 21 apartamentos. Foi ele quem ativou o turismo local. Bancário aposentado, Pedro nasceu no município, mas morou décadas em outras localidades. Hoje atua como

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uma espécie de embaixador cultural de Triunfo, promovendo a boa gastronomia calcada nos produtos da terra e na herança das freiras e padres. Além da pousada, construída com pedras só encontradas na região da serra – a cianeto, muito utilizada em muradas – e instalada numa área privilegiada, em meio à mata nativa, o empreendedor montou o Engenho São Pedro. Lá, investe na produção de rapaduras de grife, com receitas exclusivas que mesclam café e especiarias ao produto local. Também banca a produção de dois tipos de cachaça e um licor de cana, todos batizados de Triumpho, cuja produção total, para manter a qualidade, não ultrapassa os 20 mil litros anuais. No restaurante do hotel, o empresário e sua mulher Terezinha promovem festivais gastronômicos e reinventam pratos europeus mesclando-os com receitas típicas do sertão, a exemplo do fondue de bode, um dos destaques do cardápio.

As iniciativas e investimentos no turismo têm ajudado a cidade a resgatar seu passado opulento e sua vida cultural As freiras fecharam as portas do Stella Maris, mas não deixaram de participar da vida da cidade. Continuam em atividade com o Lar Santa Elizabeth, cuja missão é amparar 480 crianças e adolescentes, entre um e 18 anos, que estudam, fazem as refeições e têm curso profissionalizantes custeados pela entidade. Mantendo-se de doações, as religiosas complementam o orçamento abrindo o convento para os turistas. Com 22 apartamentos, a Pousada Santa Elizabeth é uma das opções de hospedagem. É lá que o visitante,

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hospedado ou não, pode encontrar duas das melhores e mais procuradas iguarias triunfenses: o biscoito Nicolau e o licor de rosas, cujas receitas foram trazidas da Alemanha pela irmã Gudemar, uma das madres pioneiras. O biscoito Nicolau, doce típico do natal germânico, que tem como base mel de rapadura (adaptação triunfense) e de abelha, cravo, canela e erva-doce moída, era preparado inicialmente apenas no dia 6 de dezembro, data dedicada ao frei. “Eu ainda era aspirante e me encantava vendo as madres moldando o santo nas forminhas, colocando o cinto dele. E distribuindo para cada noviça um biscoito no dia da festa”, recorda a irmã Áurea de Freitas, que atualmente executa as receitas, mas avisa: as formas originais se perderam. “O biscoitinho é comercializado apenas em formato de estrela.” Do outro lado da cidade, onde antes ficava o Colégio Stella Maris,

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MonuMEnto DA fArturA

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MeRcADoRiAS

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tURiSMo

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Como em quase todas as cidades do interior, Triunfo conta com uma típica feira semanal A Pousada Baixa Verde, criada há 22 anos, em meio à mata nativa, ajuda a aquecer a economia local GUARAnY

O Theatro-Cinema foi reformado e entregue em 2002, mantendo apenas a fachada original

funcionam o Centro Pastoral Diocesano e o Seminário Diocesano São Judas Tadeu. Comandado pelo padre Mairton Marques, 27 anos, o local passou por uma transformação. Para administrar o imenso espaço, que no passado abrigou os padres franceses e as irmãs alemãs, o jovem religioso fez parceria com a prefeitura municipal, alugando parte das dependências para o funcionamento de uma escola, e investindo na montagem de uma pousada, que conta com 17 suítes. “Modernizamos para atender o turista e para complementar a nossa

Símbolo de uma era de opulência, o Theatro-Cinema Guarany foi inaugurado em 1922, e é a melhor amostra do que Triunfo representou economicamente para a região. “Ele foi construído por Manoel de Siqueira Campos e Carolino de Almeida Campos, dois ricos comerciantes que tinham muita amizade com o pessoal do Recife, inclusive com o empresário Pessoa de Queiroz e o governador Manuel Borba”, conta André Vasconcelos, técnico em gestão de equipamentos culturais da Fundarpe, atual responsável pela administração do espaço. Conta-se que, à época, o empresário e o governador fizeram questão de ir à inauguração do teatro. Foram de trem até Arcoverde e subiram a serra em três carros, o que causou uma verdadeira comoção na cidade. “Todo mundo parou, porque, além dos carros, foi a primeira vez que um governador vinha à cidade”, explica André, que tem realizado pesquisas sobre o teatro-cinema. Ele lamenta existirem poucas informações sobre as origens do prédio e seus primeiros anos.

O que se sabe de concreto é que Manoel de Siqueira Campos, sertanejo rico e refinado, decidiu construí-lo após visita à Europa. “Ele ficou encantado com os movimentos artísticos europeus e já trouxe a planta da edificação pronta”, diz. Apesar de Siqueira Campos ter sido o mentor, quem bancou a construção foi Carolino de Almeida Campos, que, apesar de rico, era analfabeto. O teatro foi vendido pelos franciscanos ao governo do Estado, em 1952, numa transação polêmica, contestada até hoje pela família de Almeida Campos. A reforma e restauração do espaço, que é tombado como patrimônio cultural estadual, foi concluída em 2002. “Apenas a fachada se manteve original. Por dentro, ele foi totalmente alterado: tem 165 lugares, dois camarins e conta hoje com um dos projetores mais modernos do país, um Christie, fabricado nos Estados Unidos, modelo P35GPS. “O equipamento é considerado de ponta, pois a máquina é capaz de mudar automaticamente as lentes para projeção de filmes em formato plano (panorâmico) ou em cinemascope (widescreen)”, explica o técnico Claúdio Mascaro, que instalou o equipamento. O espaço abriga a programação do Pernambuco Nação Cultural, a exemplo do 3º Festival de Cinema, que começa no dia 23 de julho e termina no início de agosto.(DR)

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renda, pois é muito difícil financiar uma estrutura gigantesca como essa”, explica Mairton, que mantém no espaço um centro de convenções, salão para exposições e uma lojinha com produtos preparados pelos seminaristas, que tem como atração o submarino de maracujá, espécie de licor, além de doces artesanais, todos feitos com produtos orgânicos da horta, jardim e pomar mantidos no Centro Pastoral. Nas duas últimas décadas, o turismo em Triunfo cresceu imensamente. Para atender à demanda, lá existem atualmente cerca de 20 mil leitos – normalmente lotados em épocas de festas e festivais. Entre as muitas opções, uma das mais bem-equipadas é o Hotel Sesc Triunfo. Construído num dos pontos mais altos do município, ele tem como acesso diferenciado um teleférico que cruza a lagoa, tendo sido instalado pelo hotel. Servindo tanto a hóspedes quanto a visitantes, o bondinho faz um

Para aprender a fazer os quitutes da cidade basta seguir as orientações do livro Receitas deliciosas da cozinha triunfense percurso de 600m de comprimento e chega a 84m de altura, sendo um dos atrativos de lazer do local. Se o Sesc atrai pela modernidade e conforto das acomodações, o Café do Brejo, inaugurado em 2006, encanta pela rusticidade e pela atmosfera bucólica, uma vez que está instalado em nove hectares de mata genuína. Lá, além da hospedagem, os visitantes poderão usufruir de uma farta ceia regional, cuja degustação não se restringe a hóspedes. Para se chegar ao restaurante, é preciso descer 100 metros de serra. Como

negócio, o Café do Brejo também tem se destacado pela venda de doces, geleias e licores, tudo preparado sob supervisão da proprietária, Maria Tereza Diniz, a Teca – que nasceu em Triunfo, e para lá voltou depois de se aposentar. Do seu cardápio também consta o café colhido no terreno da propriedade, que é tratado apenas para consumo do restaurante. Ainda no quesito gastronomia, vale lembrar de um item tradicional – e saboroso – da culinária local: o doce de laranja. Mas não é qualquer um. Para realmente conhecer a iguaria, é preciso recorrer ao talento de Ceci Correia da Silva, dona Ceci, que há 30 anos encanta gerações com sua receita. O doce de laranja de Ceci tem-se tornado uma raridade, já que, devido à sua idade, nem sempre a doceira produz em grandes quantidades. Quem quiser preparar a especialidade, que tem como base a laranja da terra, poder seguir as orientações do livro Receitas deliciosas da

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no tAcho

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FoLGUeDo

A produção de rapaduras tem receitas exclusivas que misturam café e especiarias ao produto local O estabelecimento oferece uma farta ceia regional e vende doces, geleias e licores produzidos na propriedade A tradição d´Os Caretas começou por volta de 1915 e hoje possui cerca de 200 brincantes

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oriGEM inCErtA DoS CArEtAS

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cozinha triunfense, de Maria Lúcia Alves de Lima. O livro registra centenas de quitutes preparados pelas cozinheiras locais, aí incluídos o licor de rosas e o biscoito Nicolau.

cineMA, BAnDA, cAnGAÇo

Excetuando-se as atrações anuais, a vida cultural triunfense é típica do interior. O Theatro-Cinema Guarany provê a cidade de filmes de arte. Mas, além dele, há poucas opções, todas calcadas na tradição. A Banda Filarmônica Isaías Lima é um dos grupos mais importantes da cidade. Fundada há 120 anos, tem como maestro o professor Lucivaldo Ferreira, 33 anos, que começou a ensaiar nela ainda adolescente. “Toda cidade que tem uma filarmônica apresenta um cenário musical forte”, explica Lucivaldo, que conta com 20 jovens na banda, além de outros 13 sendo treinados para atuar. Ele mesmo vem de uma família de músicos,

todos formados na Isaías, que em 120 anos de existência jamais deixou de estar presente nas festas triunfenses. “Nosso carro-forte é o dobrado, mas também executamos ritmos como modinha, valsa, frevos, samba, rock, MPB e música regional”, enumera o maestro. A preservação da memória local é a meta do Museu do Cangaço, situado na Praça da Matriz. Criado pela historiadora Diana Rodrigues Lopes, e reinaugurado há cerca de um mês, ele reúne um acervo de objetos pessoais utilizados pelos cangaceiros (fogareiros, lampiões, armas e facas, entre centenas de outros objetos), além de fotos de líderes do cangaço e pinturas de autores locais sobre o tema. O pretexto para a criação do museu temático se deve ao fato de dois dos integrantes do bando de Lampião, Luís Pedro (um jovem rico e um dos lugares-tenente do Rei do Cangaço) e Félix da Mata Redonda terem sido triunfenses.

Embora não se saiba precisamente quando nem quem deu início ao folguedo tradicional de Triunfo, aponta-se o surgimento d’Os Caretas no início do século 20, há cerca de 95 anos, ou seja, por volta de 1915. Os pesquisadores vinculam sua origem ao Mateus – personagem burlesco que aparece no reisado e bumba meu boi. “Conta-se que, durante uma comemoração do reisado, que é tradicional do período de Natal, um homem que ia representar o Mateus acabou bebendo demais. Como ficou muito bêbado, foi expulso pelo chefe do grupo. Revoltado, saiu pela cidade com um chocalho e um chicote de conduzir animais”, diz Nino Abrão Alves de Almeida, artista plástico e líder de uma treca, como é chamado um grupo de caretas. A bagunça feita pelo bêbado na cidade agradou aos estudantes, que ficaram especialmente animados com os chocalhos e chicotes por ele utilizados. “No Natal seguinte, grupos de jovens começaram a se pintar como o Mateus e a usar muitas roupas, pois saíam em trecas para brigar com os chicotes”, conta Com o tempo, o “senhor das ladeiras” de Triunfo, epíteto dos caretas, extrapolou o Natal, e sai principalmente no Carnaval. Hoje, os cerca de 200 caretas de Triunfo – segundo estimativa do brincante Nino – usam um traje composto de máscaras (em geral, confeccionadas por eles mesmos), enormes chapéus, camisas com mangas, luvas, capa, tabuleta com dizeres cômicos ou pornográficos, calças e botas. “A proteção contra os chicotes é fundamental”, diz o brincante. (DR)

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COMBINADOS Aqueles casamentos que são perfeitos

Alheias aos modismos, composições como caldinho com cachaça, feijão com arroz, queijo com goiabada marcam presença nas mesas texto Renata do Amaral Fotos Eduardo Queiroga

certos ingredientes parecem

ter nascido um para o outro. Feijão com arroz, macaxeira com charque, bacalhau com batata, caldinho com cachaça e queijo com goiabada são verdadeiras almas gêmeas gastronômicas, que andam grudadas quase o tempo todo e parecem estar juntas até que a morte as separe. Batem ponto em cardápios de bares e restaurantes, além de frequentar também as salas de jantar caseiras. Mais brasileira impossível, a dupla feijão com arroz nem sempre andou lado a lado. O pesquisador Luís da Câmara Cascudo, em seu livro História da alimentação no Brasil, publicado em 1967, conta que, até àquela época, o arroz não fazia frente à farinha de mandioca reinante. A combinação de feijão com farinha era, então, tida como o mais nacional do pratos. Arroz era exclusividade das camadas mais ricas da população. “O arroz, com muitas variedades, é popular, mas não indispensável no Brasil. Não pode competir com a farinha de mandioca ou com o milho. Ninguém o desconhece, mas sua presença está mais próxima às mesas de medianos recursos abastados”, escreve Cascudo. Se a farinha ainda é bastante popular no Norte e no Nordeste do país, hoje, a base da alimentação nacional é mesmo o feijão com arroz, que virou até sinônimo

A mistura de doce com salgado se espalhou de Minas Gerais para todo o Brasil. Hoje, o queijo com goiabada aparece em receitas diversas de simples, rotineiro, comum. Dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) apontam o Brasil como maior produtor e consumidor mundial da leguminosa. Além de cotidiana, a dupla arroz com feijão é nutritiva. “O conhecimento empírico foi um fator primordial para sua consolidação no consumo alimentar”, explica a professora de bioquímica dos alimentos do curso de Gastronomia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Vera Ramalho.

Juntos, a leguminosa feijão e o cereal arroz fornecem ao corpo todos os aminoácidos essenciais, ou seja, os elementos que compõem as proteínas formam a estrutura muscular e só podem ser supridos pela alimentação correta. Além disso, enquanto o arroz eleva o índice de glicose, o feijão consegue conter esse efeito. “O brasileiro deve continuar consumindo essa iguaria, pois em time que está ganhando não se mexe”, afirma. Se não é unanimidade nacional como o prato anterior, a macaxeira com charque reina absoluta em terras nordestinas. Conhecido como carneseca em outras regiões, o charque teve origem na época colonial, quando a salga e a secagem da carne bovina visavam à conservação. Nas cozinhas contemporâneas, o objetivo passa a ser o sabor peculiar do ingrediente, cuja combinação com a macaxeira também gerou o escondidinho como rebento. O chef Duca Lapenda, mais conhecido por estar à frente da casa italiana Pomodoro Café, abriu o Tapioca Comedoria do Brasil para servir cozinha regional, na qual essa mistura não poderia ficar de fora. “A proposta é levar o comensal a uma viagem gustativa de volta ao tempo da infância”, diz. Para ele, o sucesso das duplas se deve a fatores culturais e afetivos. “É uma mistura de tudo isso. Aspectos culturais falam mais alto e reforçam o aspecto afetivo desses casamentos.”

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no Brasil, o bacalhau com batata ganhou cara de comida de Páscoa, e deu nome até a bloco de carnaval

SeJA Rico oU PoBRe

Origem não tão romântica assim tem o bacalhau com batata, casal que sobreviveu a tempos de crise em Portugal. A tradição se deve a questões econômicas: na época da ditadura salazarista, as importações foram restringidas naquele país. Como não havia produção de arroz, o jeito era

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comer batata. O bacalhau, por sua vez, longe do alto preço praticado hoje em dia no Brasil, era tão barato quanto a sardinha por aqui. “Eram as coisas mais baratas da terra e do mar”, afirma o português José Novais, proprietário do Recanto Lusitano, casa que completa 30 anos em novembro. Apesar de ter sido por conveniência, o fato é que o casamento vem dando certo até hoje. Não por acaso, todas as 15 receitas com bacalhau servidas na casa levam batatas, sejam cozidas, em palha ou em forma de purê. Azeite a gosto dá a liga dessa união. Em terras brasileiras, bacalhau com batata ganhou cara de comida de Páscoa. O jejum da Quaresma,

afinal, tinha mais graça quando o casal vinha em substituição ao peixe comum. A tradição foi apropriada de tal forma, que virou até mote para bloco de carnaval em Olinda: o Bacalhau do Batata, que desfila na Quarta-feira de Cinzas, foi criado pelo garçom Isaías Pereira da Silva, o Batata, para aqueles que trabalhavam durante a festa e não podiam brincar. Nem só em refeições propriamente ditas essas “comidas em par” dão o ar da graça. É o caso da combinação de caldinho e cachaça, conhecida também como “ele e ela”. “Ele” pode vir em várias versões, mas a receita de feijão tem preferência da metade dos clientes, segundo o proprietário do

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Página anterior 1 nUtRiÇÃo

Juntos, a leguminosa feijão e o cereal arroz fornecem ao corpo todos os aminoácidos essenciais

Nestas páginas 2 cRiSe

As dificuldades vividas em Portugal, no período salazarista, juntaram no prato os dois produtos mais baratos à época, a batata e o bacalhau

3 eLe e eLA A combinação de caldinho e cachaça pode vir em várias versões, mas a receita de feijão é a preferida dos clientes

onde encontRAR Restaurantes que oferecem algumas das tradicionais “comidas em par”

cALdíSSiMo GRiLL Avenida Visconde de Jequitinhonha, 2.237, Boa Viagem. Fone: (81) 3088.4842

RecAnto LUSitAno Rua Antônio Vicente, 284, Boa Viagem. Fone: (81) 3341.9790

TApIOCA COMeDOrIA DO BrASIl Rua Amazonas, 40, Pina. Fone: (81) 3326.7195

ThAAl CuISINe Rua Marquês de Tamandaré, 203, Poço da Panela. Fone: (81) 3034.0770

Caldíssimo Grill, José Carlos Bezerra. Azeitona, charque e ovo de codorna não podem faltar no copinho. A casa oferece sete tipos: feijão preto, feijão mulato, camarão, peixe, frutos do mar, mocotó e cabeça de galo. Feito com caldo do mocotó e ovo, este último é considerado bom para curar ressaca. Bezerra conta que, quando o hábito do “ele e ela” teve início por aqui, a dupla chegava a ser vendida junta, com um preço único. Hoje, a cachaça disputa a atenção com o chope. O caldinho, porém, não tem concorrentes. “É uma tradição na cidade”, afirma. Em termos nutricionais, a combinação também tem lógica. “Ao beber, a pessoa necessita

A combinação arroz com feijão é a base da alimentação nacional e virou sinônimo de simples, rotineiro, comum de um aporte energético que seja fácil de ser consumido e que dê condições para continuar bebendo”, explica a professora Vera Ramalho. O caldinho não pesa no estômago, tem fácil digestão e retarda o efeito do álcool. “Lógico que essa dupla deve ser ingerida em doses moderadas”, ressalta.

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4 noRdeSte A dupla macaxeira com charque é petisco tradicional na região

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o caldinho de feijão é o mais pedido para acompanhar a cachaça, combinação conhecida como “ele e ela”

RoMAnce teAtRAL

A sobremesa também conta com sua dupla dinâmica. Aliás, bota dinâmica nisso. O queijo de minas com goiabada cascão aparece em receitas tão diversas quanto de pastel, pizza, petit gâteau, tapioca e até sushi doce. Para selar a união, levou nome de inspiração shakespeariana: Romeu

e Julieta, em homenagem ao célebre casal cuja história, por conta de uma briga de famílias, chega ao “até que a morte os separe” de forma trágica. A versão culinária do casal, no entanto, pode até ser uma tragédia para a balança, mas não para o paladar. A mistura de doce com salgado se espalhou de Minas Gerais para todo o Brasil. De acordo com a antropóloga Paula Lins e Silva, no livro Farinha, feijão e carne-seca: Um tripé culinário do Brasil colonial, os doces e compotas surgiram na casa-grande como uma forma de conservar as frutas e, ao mesmo tempo, adaptar as tropicais ao cotidiano europeu. Colonizador e colonizado contribuíram para o hábito da doçaria no país. “As compotas e conservas de frutas evidenciam uma ‘mestiçagem’ de processos e ingredientes – o cozimento, o tacho e o açúcar europeus; as frutas e a mão de obra da colônia”, escreve a pesquisadora. E mais um elemento entra nessa equação: o hábito de comer doces excessivamente açucarados pode ter sido influência dos árabes e mouros. Não se sabe a quem coube a ideia de misturar o doce com o queijo. A pesquisadora Rosa Belluzzo diz, no livro Os sabores da América, que a goiabada acompanhada por queijo cremoso já era conhecida em Cuba, introduzida pelos búlgaros. Comer queijo no fim da refeição é habito em alguns países da Europa – mas sem o doce. “Uma sobremesa sem queijo é uma bela mulher a quem falta um olho”, escreve BrillatSavarin em A fisiologia do gosto. Origens à parte, o fato é que a combinação segue forte e vem sendo renovada por chefs, como Thiago Freitas, do Thaal Cuisine. Sua versão para o Romeu e Julieta leva a goiabada cascão convencional, mas vem com recheio de cheesecake de queijo brie no lugar do queijo de minas. Em versão míni, é servido no chá da tarde, cujo cardápio muda a cada semana. Certos romances nunca saem de cena.

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BRECULÊ Virtuosismo sem exagero

Banda cearense estreia com disco sofisticado, em que dispensa os excessos típicos do preciosismo TEXTO Thiago Lins

Sonoras “Parabens, mi brother!” A

saudação em portunhol veio de ninguém menos que o ex-Mano Negra, Manu Chao. Numa passagem pela Espanha, foi um amigo do percussionista Igor Caracas – um dos sete membros do Breculê – que apresentou o CD da banda cearense ao clandestino. Este, por sua vez, logo mandou um e-mail para Caracas, em que ainda elogiava o “feeling bem tranquilo” do recém-lançado álbum Vidas volantes. Manu Chao sabia do que estava falando. A delicadeza é uma marca do trabalho do septeto, que, apesar de ter chegado aos ouvidos franceses de Chao, ainda não repercutiu fora do Ceará. Os amigos tocam juntos

desde 2007, época das primeiras rodas de samba no Lago do Jacareí (o bairro, numa área mais bucólica de Fortaleza, ainda sediaria o primeiro show do Breculê, no mesmo ano). Aos poucos, a turma foi investindo em músicas próprias, as reuniões dominicais regadas à cachaça e cerveja foram adquirindo contornos de ofício, e mais tarde os sete ensaiariam quase diariamente no estúdio do percussionista Fábio Marques. A descontração dos integrantes, aliada à sonoridade melíflua do Breculê, disfarça os dois componentes básicos na química da banda: erudição e trabalho duro. O cantor, compositor e arranjador do grupo, Pedro Fonseca, estudou

na Berkeley College of Music, em Boston (EUA), de onde voltou em 2007. O principal fundador do Breculê se juntou à japonesa Yuiko Goto, diplomada pela mesma faculdade, para conceber as 11 faixas de Vidas volantes. Goto, que deixou o Breculê (teve de voltar ao Japão por motivos pessoais), é apontada pelos membros remanescentes como influência imprescindível. Hoje, o grupo é completado por Fabrício da Rocha (violão e voz), Milton Ferreira (baixo), Jordão Nogueira (trompete) e Túlio Furtado (percussão), além dos integrantes que já foram mencionados, todos experientes na noite de Fortaleza. Antes de lançar o CD em maio, lotando os 800 lugares do Teatro José

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1 LAnÇAMento o Breculê fez apresentação do primeiro CD no Teatro José de alencar, em Fortaleza

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de Alencar, em Fortaleza, o Breculê tinha participado de festivais, como a Mostra Petrúcio Maia de Música e a Mostra SESC Cariri de Artes, ambos de caráter regional. Falta, agora, o grupo se inserir na emergente cadeia de festivais independentes. Substância para isso não vai faltar, como a banda prova em seu álbum de estreia. As 11 faixas (sem contar com as três de bônus) centrifugam as diversas influências do grupo, como as melodias complexas do instrumentista carioca Edu Lobo, ou as suaves linhas de voz, quase sussurradas, da bossa nova. São referências mais claras, mas insuficientes para definir o estilo próprio do Breculê que, sem perder o passo, ainda flerta com frevo, choro e jazz. O disco abre com a música Breculê, conduzida pela percussão certeira de Fábio Marques e Igor Caracas. Ela seria um simples samba de terreiro, não fossem os detalhes sofisticados que dão o tom na música (e ao longo do CD): um solo de violão precede outro de piano, Pedro Fonseca trava um duelo vocal com Fabrício da Rocha, e assim por diante. Sinuosa, a faixa de abertura serve de parâmetro para as seguintes. Segue Samba do lago, um registro das farras dominicais do grupo (que traz os versos “Já não calha descansar/ Quem disse que domingo não foi feito

em Vidas volantes, percebe-se claramente o modus operandi da banda, em que todo mundo é protagonista para cantar?”), em que se destaca o trompete de Jordão Nogueira e o dedilhado no violão de Fabrício da Rocha. Bem-te-vi, a terceira faixa do disco, é puxada pelo piano de Yuiko Goto, deixando claro o modus operandi orgânico da banda: todo mundo é protagonista. Assim como Vidas volantes, o CD tem pontos altos (como a travalíngua D´ela, em que Pedro Fonseca põe sua destreza à prova, ou a ode à malandragem Barruada Gá Gá) que não diminuem a importância de músicas menos ganchudas. O percussionista Marques atribui a unidade do disco ao trabalho do engenheiro de áudio Dan Sebastian, outro contato de Pedro Fonseca dos tempos de Universidade de Berkeley. Sebastian passaria semanas com os cearenses, in loco, começando uma empreitada que só terminaria no Rio de Janeiro (terra natal de Sebastian, creditado como diretor musical do CD).

“Ele foi fundamental”, atesta Pedro Fonseca, sobre o engenheiro. Vidas volantes é um disco cheio de nuances, mas, como ressalta o vocalista, “há uma continuidade” que deve ser creditada a Sebastian, um “costureiro” detalhista. Com o álbum, o Breculê começa um novo ciclo. Depois de tocar pelo circuito fortalezense, eles querem divulgar o CD no interior do Ceará, ao mesmo tempo em que buscam contatos pelo Nordeste afora e, claro, no eixo Rio-São Paulo. Marques, que no dia a dia ainda se desdobra como jornalista, lembra que a banda trabalhou exclusivamente nas músicas por três anos. Seria hora, então, de trabalhar os elementos “extramusicais”; ele cita figurino e cenário – como se a rica música em si não agregasse valores suficientes. Enquanto o trabalho se desenvolve, a turma continua com uma ação paralela, sempre presente nos seus planos: a roda domingueira de samba, no bom e velho Lago do Jacareí.

Vidas volantes BRECulÊ independente Trabalho agrega diversas influências musicais.

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INDICAÇÕES MPB

ROCK

FUNK

oi Música

oi Música

DÉA TRANCOSO Tum-tum-tum

THE BEAUTIFUL GIRLS The best of... So Far...

FINO COLETIVO Copacabana

FORRÓ

Indicado ao Prêmio de Música (antigo Prêmio TIM), Tum-tumtum é uma ode à mesorregião mineira do Vale do Jequitinhonha, terra natal da artista - e uma das mais ricas em cultura popular no Brasil. O álbum consiste num apanhado de canções de domínio público adaptadas, o que não quer dizer que o repertório seja batido. Déa Trancoso pesquisou por 15 anos, até que o material rendesse o CD, praticamente um catálogo rítmico. Se o leitor não conhece o semba ou o catimbó, uma audição do álbum pode ajudar.

Coletânea precoce do power trio, em atividade desde 2001. Apadrinhados pelo hypado Jack Johnson (nem precisava), os australianos acertam a mão na surf music – a MPB daquele país. Para quem não conhece a discografia do grupo (prolíficos, já contabilizam seis CDs e três EPs), The best of... So Far... é um bom começo. Quem gosta do estilo deve achar melhor do que o novo Sublime (ícone do gênero), que recentemente substituiu Brad Nowell, o saudoso vocalista original.

Climático, o segundo CD do sexteto não poderia ter um título mais adequado: Copacabana soa como um manual de carioquês, a começar pelos títulos de faixas como Se vacilar o jacaré abraça e Abalando geral. Não faltou tempero, apesar dos 55 minutos do álbum (são 14 músicas). Premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte em 2007, quando debutou com CD homônimo, o Fino Coletivo agora consolida sua sonoridade com esse lançamento – um convite para dançar.

Independente

INSTRUMENTAL

FORRÓ

ROCK

EXPERIMENTAL

Independente

Independente

Biscoito Fino

Independente

Independente

FÁBIO ZANON Heitor Villa-Lobos para violão solo Ainda dentro das comemorações que marcam o cinquentenário da morte de Heitor Villa-Lobos, o violonista Fábio Zanon reúne, neste disco, aquilo que considera a “obra magna” do compositor: sua série de 14 choros. A ambição de Villa-Lobos era que essas composições pudessem abarcar todas as correntes musicais do folclore brasileiro, dentro da ideia modernista de desenvolver uma consciência artística nacional. Zanon dá conta do recado e nos presenteia com um belo disco.

VÁRIOS No coração da gente – Jacinto Silva No coração da gente também aumenta o filão de lançamentos juninos, porém, trata-se de um disco importante. Homenagem a Jacinto Silva (1933-2001), alagoano que acabaria fazendo história em Caruaru. Há exatos 10 anos, Silvério Pessoa já tinha gravado um álbum inteiro com o repertório do mestre, cuja memória ganha mais força agora: o tributo ao forrozeiro é composto por interpretações que vão de Elba Ramalho a Tom Zé. Chegou em tempo.

MAQUINADO Mundialmente anônimo Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi, é considerado por muitos um dos melhores de sua geração. Ele vem desenvolvendo, há cerca de quatro anos, o seu projeto paralelo, o Maquinado, cujo segundo disco chegou às lojas recentemente. São 10 composições, quase todas com a assinatura de Lúcio Maia e do DJ PG, excetuando a faixa que abre o material, Zumbi, de Jorge Benjor, e Super homem plus, de Fred 04. Nesse trabalho, as referências continuam misturando um pouco de tudo: hip hop, rock, dub e ritmos brasileiros.

CLÁUDIO RABECA Luz do baião O vocalista e rabequeiro do Quarteto Olinda se arrisca em Luz do baião, sua primeira empreitada solo. O título deixa claro que o CD tem um estilo definido, ao contrário da diversidade característica do QO. Com o background adquirido em seus mais de 10 anos de carreira, Cláudio Rabeca contou com figuras tarimbadas do cenário pernambucano para ilustrar o álbum, como a cantora Isaar e o baixista Hugo Linns. A intenção da reunião é resgatar o baião.

VITOR RAMIL Délibáb Projeto ousado, meio literário, meio musical do gaúcho Vitor Ramil. Délibáb, seu oitavo álbum, reverencia Jorge Luis Borges. Gravado na terra do escritor, o disco carrega a fineza que é de se esperar: até Caetano participa (em Milonga de los morenos, um dos poemas borgianos musicados). Conterrâneo do cantor/escritor, o poeta João da Cunha Vargas também tem versos musicados no CD, que pode até carecer de força (foi todo gravado com violões), mas vale pelo experimentalismo.

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divulgação

Leitura

EXPATRIADOS Sob o sol de Tânger ou de Málaga

Enquanto se preparam as celebrações ao centenário de Paul Bowles, a literatura de Jane Bowles ainda espera reconhecimento texto Fernando Monteiro

Foi o ator John Malkovich

quem me colocou no rastro deste assunto, mais ou menos próximo justamente do Rastro de Martiricos, a feira doida de Málaga (Espanha), onde se vende tudo que se possa imaginar. “É ele”, teimou a minha mulher. “É só parecido, Cristina”, ponderei, paciente e equivocado. “Ninguém poderia ser tão parecido e ter, ainda por cima, o andar feio que ele tem. É Malkovich, sim.” Era. Sem os óculos escuros, quando o norte-americano entrou numa camionete (escrito Fundación Cajamar), percebi que o Port Moresby de O céu que nos protege

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espanhol”, a qual se alcança de ferry, desde Málaga, atravessando o estreito de Gibraltar a partir de Algeciras, porto a menos de 10 quilômetros da metrópole malaguenha. Nesta primavera europeia de 2010, essa capital de província dera início às comemorações do centenário de Bowles, e – só depois vim a saber – a presença do ator meio vesgo e careca, mas com enorme carisma (basta citar o filme Eu quero ser John Malkovich), para apresentar um “concierto lírico teatral” intitulado The infernal comedy, estava ligada a tais comemorações (iniciadas com a reforma do túmulo de Jane Bowles, no cemitério de San Miguel – o mais antigo da cidade –, onde até corre a lenda de aparições

Jane Bowles tem um romance publicado e um inacabado, algumas peças de teatro e alguns contos magistrais

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deveria estar de passagem pela capital da Costa do Sol, por algum motivo. Motivo talvez relacionado com o fato de ali se encontrar sepultada Jane Bowles, a Kit do filme de Bernardo Bertolucci baseado em The sheltering sky, o romance de Paul Bowles que atingiu a geração pós-Segunda Guerra quase com o mesmo impacto de On the road. Malkovich desempenhou – magistralmente – o papel de Port, alter ego de Bowles. Marido da também escritora Jane (talvez melhor ficcionista do que ele), Paul escreveu esse seu primeiro livro em 1949, basicamente na região ainda hoje conhecida como o “Marrocos

de uma mulher toda vestida de negro e muito parecida com a escritora que faleceu em 1973, após seis anos de internamento num clínica psiquiátrica). Do mesmo modo como a marroquina Tânger celebra Paul – que fixou residência lá, desde quando fez a viagem (de “viajantes e não tourists”) que inspiraria o seu tão bem- sucedido romance autobiográfico –, Málaga, terra natal de Picasso, está hoje muito voltada para a cultura, e resolveu reabilitar a quase anônima senhora que viveu ali seus anos mais obscuros, perdida no limbo de uma perturbação mental que provavelmente se iniciou naqueles anos de deambulação pela África do Norte, difícil como o relacionamento amoroso de um homossexual com uma lésbica, em casamento inevitavelmente em crise, como era o caso do de Jane Sydney Auer e Frederic Paul Bowles. Estranhos, estranhíssimos Jane e Paul, “Kit e Port”! Dois talentos

para a literatura, a música, o teatro e a vida – mas em desencontro, constante, que só nos faz recordar a frase melancólica do imperador Calígula, na peça homônima de Albert Camus: “Os homens morrem – e não são felizes”.

eStRAnHAMento

Talvez a exígua obra de Jane Bowles – um romance publicado e um inacabado, algumas peças de teatro e alguns contos magistrais – venha crescendo na estima crítica um pouco mais do que a prolixa produção posterior do marido, mas é ainda o romance emblemático de Paul que continua a dar as chaves pelo menos do relacionamento que a levou, provavelmente, a um impasse psicológico maior do que o daquele senhor autoexilado de cabelos brancos, elegante e tranquilo, que Bertolucci introduziu como uma espécie de “narrador” – inicial e final – de O céu que nos protege, ao adaptar o romance do mais célebre residente de Tânger, na segunda metade do século passado. Ele atraiu muita gente para lá. Um jornalista francês, a quem o escritor concedeu uma das últimas entrevistas, disse que falar com ele era fácil e também como “visitar um cemitério de notoriedades”. Enquanto Jane mergulhava no ostracismo da clínica de Málaga, do outro lado do estreito gibraltarino, ele prosseguia fazendo da branca cidade da costa africana uma espécie de Meca literária na qual você poderia deparar com Tennessee Williams tomando chá de menta, Truman Capote escolhendo lenços multicoloridos num suk, Cecil Beaton fotografando negros bonitos e Françoise Sagan conseguindo não fazer nada, no intervalo do tédio de viajar de Seca para aquela falsa “Meca” arejada. Christopher Isherwood era outro amigo do autor de The sheltering sky que poderia ser encontrado saindo de Tânger para as cidades ocres da África do Norte, por influência do casal. Porém foi Jane quem ele escolheu para homenagear, quando criou a louquinha Sally

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reprodução

Leitura 2

Bowles (vivida por Liza Minelli) da narrativa que serviu de base para o filme Cabaré, de Bob Fosse. Hoje, Tânger vê diluindo-se, aos poucos, esse ímã (ou esse iman?) que era o escritor norte-americano vivendo num apartamento de quarto andar, a poucos metros do consulado espanhol. Ainda existe uma placa, no saguão do edifício, com o nome BOWLES encardido no latão, mas o velho expatriado – que recebia as pessoas sem maiores cerimônias ou até com certa curiosidade de solitário – desde 1999 não está mais lá em cima, no quarto onde era encontrado em ambiente até certo ponto abafado (a janela coberta por um manto berbere), reclinado na cama entre lençóis estampados de arabescos e com um largo lenço em torno do pescoço, como se permanentemente sentisse frio na Tânger quente. Ninguém mais distante daquele “Port/Malkovich” que, no ótimo filme de Bertolucci, é um desajeitado compositor em crise de

o casal Bowles se autoexilou em tânger, cidade que serviu de cenário ao filme O céu que nos protege, de Bertolucci criação artística e no casamento com uma dramaturga mais ou menos diletante. Ao desembarcar num porto de estranhamento, está também procurando reencontrar a comunicação com a mulher, enquanto ambos de comum acordo decidiram afastar-se para bem longe da Costa Leste de festas de ricos sem imaginação, para os quais todas as viagens deveriam ser com destino a Paris (mesmo que, lá, de imediato pensem em voltar para suas piscinas cheias de cloro e reflexos do vazio existencial)... Foi disso que o casal Bowles de carne e osso fugiu, em 1947, no transatlântico do derradeiro luxo.

PeLe DA SeRPente

“Porque não sabemos quando vamos morrer, nós começamos a pensar na vida como um bem inesgotável. No entanto, tudo acontece apenas um número limitado de vezes...”, soa a voz de velho do Paul Bowles, no final do filme que considero ainda mais belo do que o romance original. “Quantas vezes mais você vai se lembrar de uma certa tarde da sua infância, uma tarde que faz tão profundamente parte de seu ser, que você não pode sequer conceber sua vida sem ela? Talvez umas quatro ou cinco vezes, talvez nem isso. Quantas vezes mais você vai assistir ao nascer da lua cheia? Talvez 20. E, no entanto, tudo parece sem limites...” Diante da nova laje de granito negro do túmulo de Jane, no arruinado cemitério de San Miguel (que parece ter sido bombardeado, com ossuários e mausoléus ainda abertos, para a restauração decidida no lugar da remoção), pensei na melancolia dessa ideia que conclui

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INDICAÇÕES Página anterior 1 O céu que nOs prOtege

o filme, adaptação do livro de paul Bowles, traz John Malkovich como port e debra Winger como Kit

Nesta página 2 cASAMento

o talendo de ambos para a literatura não foi suficiente para evitar o desencontro de Jane e paul Bowles

o filme O céu que nos protege. Pensei também no casal perdido de si mesmo, buscando saídas na sexualidade e encontrando talvez as portas fechadas ainda aí, por via de tramas recônditas da infância que o freudianismo tentou abrir talvez com uma visão mecanicista, que é o maior defeito de herr Doktor Sigmund. Não é tão simples assim – e o que nós sabemos das sombras, Jane Bowles? O sol de Malága queimava o triste lugar de ossos expostos, e havia mais do que um silêncio literalmente sepulcral. Não havia flores – nem secas – sobre o recentemente “inaugurado” novo túmulo (os ossos de Jane estiveram para serem jogados numa vala comum, e foi uma moça de Málaga, fã da escritora, quem pagou do seu bolso para localizarem a modesta campa de tijolos original – “435-F” – já sem o nome da escritora). Neste começo de primavera europeia, os festejos são para o centenário de Paul, ainda. A literatura da sua “louquinha” – mais desconcertante do que a dele – ainda espera pelo

pleno reconhecimento do legado literário que ela deixou, escasso mas tão particular, que sabemos reconhecer – “isso é puro Jane Bowles!” –, quando defrontamos com algumas das suas visões inesperadas da vida e das relações de amizade ou amor entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, não importa. Tudo é amor. A vida é muito breve para que a separemos em caixas de costumes e regras morais feitas por outros, com duvidosas intenções de poder e domínio que dizem respeito à Religião, ao Estado e demais entidades abstratas que abandonam um cemitério assim, como se as pessoas ali enterradas jamais houvessem existido ou não fizessem acender a menor centelha de lembrança no peito dos sobreviventes anônimos que morrem e “não são felizes”... “John Malkovich esteve aqui em San Miguel?”, fiz a pergunta ao vento, ao sair do lugar mais triste que já visitei na minha vida. Felizmente, a vivaz Málaga parecia pulsar para além das cercanias da Plaza del Patronimo, com aquela aparência que Ingmar Bergman descreve como a da pele da serpente oca, coberta de milhares de formiguinhas em atividade frenética: vista de longe, a impressão poderia ser de uma serpente viva, no sentido opostodos termos da frase de Calígula. Ou seja, “os homens vivem – e parecem felizes (apenas parecem, diria Jane Bowles) debaixo do sol que não nos protege”.

POEMAS

EVERARDO NORÕES Poeiras na réstia 7 letras

“Montar um conjunto de poemas a partir deste projeto, o da réstia, como livro é, de alguma maneira, raspar o corpo do mundo”, escreve Manoel ricardo de lima, no posfácio ao novo livro de everardo Norões. além dos quatro capítulos iniciais, o volume traz ao final Os transcriados, com poemas do autor traduzidos para o espanhol, o inglês, o italiano, o francês, o catalão e o quíchua.

ENSAIO

GILBERTO FREYRE O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX Global

gilberto Freyre foi um dos primeiros intelectuais a atentar para a riqueza documental contida nos jornais. No que dizia respeito aos anúncios sobre venda, compra e fuga de escravos, ele avaliou cerca de 10 mil textos, buscando neles elementos como características físicas e marcas de violência nos corpos dos escravos.

BIOGRAFIA

ENSAIO

Independente

Zouk

ARNALDO SIQUEIRA (ORG.) Zdenek Hampl – Perfis de um artista inovador o bailarino tcheco Zdenek Hampl chegou ao recife no início dos anos 1980, onde permaneceu até sua morte em março de 2007. esse período é o foco da publicação, que reúne fotografias, artigos e depoimentos sobre o artista que, além de dança, trabalhou com teatro, telenovela, cinema e artes visuais.

ALEXANDRE DIAS RAMOS (ORG.) Sobre o ofício do curador Seria o curador um artista? Qual o seu papel na construção de sentido da obra? essas são questões que têm permeado a atividade do curador e que a coletânea tenta discutir em oito artigos, todos de autoria de curadores brasileiros, suprindo a lacuna de publicações sobre o tema no país.

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teologia da libertação de José barbosa

matéria corrida José cláudio

artista plástico

José Barbosa não tolera ser

chamado de naïf, ingênuo, primitivo, nem que a sua arte seja tida como artesanato e muito menos se mencione, diante dos seus trabalhos, a palavra kitsch, realmente ofensiva para quem não segue deliberadamente o que ela representa como fonte de inspiração: a arte de segunda mão, imitação do belo, tornada reles pelas repetições baratas (aliás, na minha ignorância, julgava, esse termo, de divulgação mais recente, mas já o encontrei numa crônica de Hermann Hesse de 1907, nessa mesma acepção que usamos, Nuvens, do livro A Arte dos Ociosos; o Houaiss dá 1925). Dir-se-ia que José Barbosa faz parte de uma seita cabalística; faz parte, sem saber ou sabendo; não sabemos, nem ele, até que ponto; se existe tal seita ou está sendo formulada, codificada, pelos seus objetos de culto; isto é, “seus” dela,

Por que uma porta de um móvel não pode ser pintada ou esculpida por um artista sem que com isso ele passe a ser classificado de artesão? dessa hipotética religião, ou dele, de sua lavra, de sua invenção, como profeta, cultor, criador dos objetos da seita, e devoto. São duas coisas: você acreditar que essa seita ou religião já existia antes de José Barbosa, pressentida por outros artistas ou profetas, ou, outra coisa, terá sido ele José Barbosa, o primeiro que captou no ar essas emanações de Olinda e deu-lhes vida, concretizando-as em seus altares feitos de relevos, incrustrações, pinturas, numa simbiose afro-barroca, como certa

vez sonhei, botei até num manifesto, e depois não levei avante e também não creio que José Barbosa tenha tomado conhecimento disso, pois, no que dependeu de mim, ficou só no manifesto ou num ou noutro boneco de miolo de conduru, ou “vultos”, como dizem os xangozeiros. Antes de serem incluídas na história da arte, a arte africana ou neozelandesa frequentavam museus de antropologia, até que uma cara tirada de escultura africana apareceu no quadro de Picasso Les demoiselles d’Avignon (maio-julho, 1907). Picasso empurrou na cultura europeia essa cunha impensável, embora com antecedentes como as viagens de Gauguin pelos mares do sul e a de Van Gogh pela arte japonesa. Podia até ser que aqueles riscos na cara africana do quadro de Picasso tivessem, na escultura original, algum significado específico, e

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estilo

José Barbosa, que detesta ser chamado de naïf, é um dos principais representates da “escola pernambucana”

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deviam ter, algum sentido tribal, que escaparia a qualquer ocidental, inclusive Picasso. Não seriam, é de se perguntar, os grandes artistas, inventores e devotos de uma nova seita ou religião aprendidas meio de oitiva? E quanto ao kitsch: não estão ali, no próprio Demoiselles, repetições de gestos emblemáticos da estatuária universal? Você não precisa aceitar José Barbosa como gente nem como artista mais de que o faria com qualquer ser humano. Eu mesmo, da mesma profissão, que o conheço desde que começou ou apareceu, ali em Adão Pinheiro, brinco com ele e tudo, brincadeiras nem sempre bem-aceitas, tenho dificuldade de convivência com ele; ele tem um traço de aristocrata muito sensível quanto a exigir respeito. Está sempre alerta, principalmente se o assunto é sua arte.

Tanto no artesanato quanto na arte primitiva existe algum desinteresse pela autoria, como se o indivíduo que praticasse esse tipo de arte não tivesse consciência da própria individualidade ou personalidade, como se fosse apenas produto da ancestralidade, característica tão prezada no começo do século passado, quando ainda se falava em patriotismo. No grande movimento nativista mexicano, que nos deu os grandes muralistas Diego Rivera, David Alfa Siqueiros e José Clemente Orozco entre outros, este último, em sua autobiografia, recordava que o artista, para ser considerado confiável, tinha de ter atestado de analfabetismo, sinônimo de autenticidade, de pureza, nos tempos do teórico mexicano que mudou o nome para Atl, que na língua náuatle, falada pelos astecas, significava “água”. Por que uma porta de móvel,

de armário, não pode ser pintada ou esculpida por um artista sem que com isso passe a ser classificado de artesão? Admiro a firmeza com que José Barbosa não abandona os diversos meios que sempre usou, mesmo depois de ter viajado pela Europa, convivido com a arte tanto a contemporânea quanto a antiga, contribuindo para o fortalecimento desse mito, ou dessa mística, de “escola pernambucana”, de que é um dos seus principais representantes. A ideia de espaço em José Barbosa é a do barroco. As figuras pairam no céu criando suas próprias leis de perspectiva e de gravidade, mas já sem a retórica jesuítica de submeter as almas pela grandiosidade, pelo esmagamento e sim deliciar-se com os prazeres terrenos, sem culpas a expiar, sem senhores, medos, castigos, tendo como único propósito a glória de existir.

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ROBERTA GUIMARÃES/DIVULGAÇÃO

rETraTOS um outro tempo para o assunto fotografado

Nos ensaios realizados para a coletânea Brincantes da Mata, Roberta Guimarães, Tuca Siqueira e Rose Gondim se detêm diante de seus personagens tEXto Adriana Dória Matos

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RobeRta guimaRães/divulgação

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Há um tempo diferente nas fotos aqui

reproduzidas. Um tempo e, sobretudo, uma vinculação com o assunto fotografado. Porque embora seja um limite ao fotojornalismo diário o contato apressado com seu objeto, isso lhe é inerente, e mesmo um trunfo, algumas vezes. Observamos aquelas fotos de jornal e sabemos que o autor teve, em geral, um período curto para realizá-las. Esse problema é superado pelo ensaio. O fotógrafo planeja, detém-se, faz e refaz, se necessário. Ao mesmo tempo, estabelece conexão mais duradoura e íntima com aquilo que escolheu como tema. E, depois, debruça-se sobre o fotografado e constrói uma narrativa, num processo atento de edição. Uma das tarefas mais difíceis para o fotojornalista, no atual ambiente imageticamente poluído, é fugir do óbvio. Há muita imagem de tudo. No caso específico do tema tratado no conjunto de quatro livros intitulado

os ensaios fotográficos foram realizados na Zona da Mata norte, enfatizando os brincantes Brincantes da Mata, a ideia de saturação poderia se acentuar, diante da constatação de que já vimos e revimos imagens de folguedos nordestinos e seus personagens, sobretudo quando o lugar de onde se fala é a própria região Nordeste e o enfoque recai sobre manifestações do Carnaval. Realizar belas imagens seria um atrativo, não fosse o fato de, anualmente, a imprensa publicar imagens bem-realizadas de manifestações populares. Sendo assim, como voltar ao tema, como renová-lo? Este, o duplo

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desafio apresentado. A ele, Roberta Guimarães, Tuca Siqueira e Rose Gondim responderam com a fotografia de vinculação e tempo distendidos a que nos referimos há pouco. O recorte pretendido por elas foi geográfico e particular, quando elegeram como tema quatro artistas da Zona da Mata Norte: Mestre Zé Duda, do Maracatu Estrela de Ouro de Aliança; Martelo, do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado; Negão, do Caboclinho Canidé de Goiana; e Dona Olga, do Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu. Zé Duda foi registrado pelas três fotógrafas e os demais por cada uma delas (Martelo por Roberta, Negão por Tuca, e Dona Olga por Rose). Desde quando inscreveram o projeto dos livros para aprovação em leis de incentivo, conta Tuca Siqueira, elas queriam ressaltar os personagens, cujos retratos expressariam aspectos de seus cotidianos domésticos, da vinculação deles com crenças

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RobeRta guimaRães/divulgação

Página anterior 1 aliança

muitas vezes as agremiações participam de mais de um folguedo

Nestas páginas 2 MaRtelo

devoto de são sebastião, o mateus do Cavalo-marinho estrela de ouro, de Condado, marca o ritmo com a bexiga

3 ZÉ DUDa septuagenário, o mestre de maracatu está há 40 anos no estrela de ouro e se orgulha de liderar o grupo com cordialidade

religiosas até elementos constitutivos das agremiações às quais pertencem, desde procedimentos e adereços usados a ensaios e apresentações artísticas públicas realizadas. Para cada brincante, um livro. Todos com o mesmo encadeamento editorial: um perfil do retratado, escrito por André Dib, e uma pesquisa sobre os folguedos dos quais tomam parte, a cargo de Gustavo Vilar, textos que dão acesso ao ensaio fotográfico que prescinde, assim, de legendas e demais explicações a respeito. Embora, para amantes da fotografia, análises e reflexões sobre os recursos técnicos e estilísticos usados pelas autoras provocassem um novo interesse pelo trabalho. Num dos ensaios que escreveu sobre fotografia, Susan Sontag afirmou que “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada”, envolvendo o autor numa relação com o mundo próxima do conhecimento e do poder.

o retrato, como gênero, estabelece uma relação imprevisível entre o profissional e o tema que elegeu Comentando o gênero retrato, Bob Wolfenson contesta a opinião de que ele seria capaz de captar a alma das pessoas, o seu eu profundo, porque as forças estabelecidas entre o profissional e seu assunto se restringiriam, de um lado, a de alguém com “uma câmera que se interpõe entre ele e seu sujeito/objeto, com uma encomenda na cabeça”, e, do outro, “o fotografado, que almeja projetar sua autoimagem”. Nesse contato, pode se dar aquilo que Wolfenson chama de “milagre”, ou o que todos os profissionais gostariam de atingir: o “bom retrato”,

nada mais que a síntese do encontro, “quando há naquela fotografia que resulta desse processo alguma coisa que a torna verdadeira, evocativa e grande”. Numa definição conhecida e citada, Roland Barthes diz que “a foto-retrato é um campo cerrado de forças”. Porque, segundo ele, “Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte”. Diante dos três pontos de vista selecionados, podemos dizer que, na feitura do retrato, se debatem diferentes interesses e evidentes encenações. E de encenações se trata o conjunto de ensaios de Brincantes da Mata. Sob esse aspecto, o título Negão, com fotografias de Tuca Siqueira, é paradigmático nas contradições que levanta. O personagem retratado é um dançarino jovem, de 28 anos, batizado Menidilson Henrique dos Santos, que adota o

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negão

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Dona olga

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teRReiRo

menidilson tem 28 anos e é o mais velho integrante do Caboclinho Canidé a matriarca do maracatu estrela brilhante de igarassu herda o cetro da mãe, Rainha mariu Rituais da encanteria brasileira, do candomblé e da jurema, estão presentes nas culturas das manifestações artísticas retratadas

nome artístico de Meny, mas que é conhecido em Goiana como Negão. No depoimento que deu a Dib e nas fotografias de Siqueira, ele derruba o senso comum que coloca os artistas populares no posto de senhoras e senhores guardiões da cultura, conscienciosos do seu papel,

Visuais empedernidos em suas tradições. O que Meny quer é se exibir e se divertir. “Gosto de me mostrar. Sei que é uma tradição, uma cultura, mas para mim é mais importante estar bonito numa fantasia e mostrar o que eu estou fazendo. Se eu estou num lugar e chamo a atenção, ganhei a noite”, ele diz. Ao longo do ano, ao invés de coreografias marcadas pelos sopros, batuques e chocalhos, ele prefere a batida disco das músicas de cantoras do universo pop, que ritmam os ensaios do grupo de “jazz” Fashion Girls, liderado por Negão. “Eu brinco de caboclinho por diversão e pra dar pinta”, resume Menidilson, que não aprendeu a dançar no convívio com os mestres caboclos, mas assistindo aos clipes de suas divas preferidas na TV. A narrativa visual construída pela edição das fotografias do ensaio Negão, assim como ocorre com os demais títulos do projeto Brincantes da Mata, busca dar conta dessas variadas camadas de “realidade” do personagem: a do brincante com todos os seus aparatos festivos; a da pessoa em seu ambiente doméstico e, portanto, privado; a da religiosidade compartilhada; e a do confronto com a rua. E isso só foi possível porque as fotógrafas puderam ir e vir variadas vezes, num processo que durou de um a outro Carnaval, sendo, quase sempre, rescaldo de anos de convivência com manifestações da cultura popular.

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WALTERCIO CALDAS O livro como um duplo de obra de arte

Em Salas e abismos, artista reúne as instalações que criou em 30 anos e propõe ao observador que interprete o impresso como uma nova criação

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Sendo um registro de exposição, o catálogo é um lugar para confrontar obras exibidas, além de veicular informações e críticas que muitas vezes só serão lidas naquelas páginas.É, também, um modo de difundir pelas imagens o trabalho de montagem para além dos seus limites, permitindo uma ideia a seu respeito a pessoas que não puderam presenciá-la. Embora não deixe de cumprir função de registro, o livro Salas e abismos (Cosac Naify, 2009) supera o papel de catálogo circunstancial, ao

pretender ser ele mesmo uma nova obra. A publicação traz reproduções das 25 instalações realizadas por Waltercio Caldas nos últimos 30 anos. Somente nove delas foram vistas juntas em individual recente no Museu Vale (ES), à qual o livro esteve primeiramente relacionado. Há em Salas e abismos o foco numa interpretação da trajetória do artista, empreendida por ele mesmo, que esteve presente em todas as etapas de concepção tanto da mostra quanto do livro. A leitura se inicia com a sala

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MAÇÃS FALSAS

Nesta obra, há o uso da mesa como plataforma narrativa, em que o jogo de transparência e opacidade se dá pela escolha de materiais

O silêncio do mundo (2009), composta por elementos tanto materiais quanto discursivos, recorrentes no trabalho desse artista carioca, surgido nos anos 1970, num contexto histórico pós-construtivo, em que ele se insere – como observa o crítico Paulo Sérgio Duarte – “incorporando a contribuição neoconcreta e rediscutindo seus axiomas e postulados através de um diálogo conceitual”. O que resulta dessa atuação é uma obra francamente mental, que sugere ao observador uma atenção também intelectual, embora nem sempre consiga a apreensão, a certeza da obra, jamais contida no espaço em que se materializa. Em 1996, o crítico de arte Agnaldo Farias escreveu um texto que sintetiza o tipo de reação gerada pelo trabalho do artista: “Os objetos de Waltercio Caldas provocam um estado de suspensão naqueles que os contemplam. Desmontam a certeza da experiência, pulverizam a acuidade dos sentidos, deslocam o espectador para uma posição inquietante, em que a percepção não se dá como rotineiramente. A limpidez de suas formas, sua elegância hierática, contrastam com o inacabamento que sugerem”. Outra interpretação bem-sucedida dessa obra foi feita em 2002 pelo professor de filosofia Ricardo Fabbrini. Ele afirma que as esculturas de Waltercio Caldas “em aço inoxidável, em ferro de pouca espessura, em tiras de madeira ou fios de lã ou nylon são desenhos tridimensionais que conduzem o olho de cá para lá, impedindo-o de fixar-se num único plano”. Assim, diz Fabbrini, “o olhar errante do observador, de tanto experimentar as distâncias, acaba por atribuir densidade ao vazio”. E será num exercício metalinguístico que o leitor atribuirá profundidade espacial e materialidade à obra gráfica bidimensional Salas e abismos, um livro que, se não pode oferecer o prazer do contato direto com os objetos, traz uma visão clara do que tem construído esse artista dos anos 1980 para cá. (ADM)

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divulgação/itaú cultural

Claquete

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ROGÉRIO SGANZERLA Movimento impetuoso numa folha em chamas

Cineasta marginal, que estreou em 1968, com o longa O bandido da luz vermelha, tem sua obra revisitada em mostra que reúne sua produção singular texto Marcelo Costa

Ruptura e estranhamento

são palavras recorrentes entre as vanguardas artísticas. A possibilidade de desestabilizar o status quo e revirar os padrões estéticos de uma determinada época ou cultura parece atrair artistas inconformados com a manutenção da ordem. Na cinematografia nacional, Rogério Sganzerla (1946-2004) pode ser considerado a personificação desse ímpeto criativo, que não arrefeceu com o passar dos anos. Sua necessidade de expandir as

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narrativa e à combinação incestuosa de signos discursivos na composição de uma obra caótica (o “caos” aqui entendido não no sentido apocalíptico, destrutivo, mas como a desordem que precede a criação). Nesse sentido, a ressonância dos seus filmes talvez só encontre equivalência na obra de Glauber Rocha, que, ao contrário de Sganzerla, não pôde acompanhar o calvário do cinema autoral diante das exigências de um mercado implacável. Foi em plena ebulição política da década de 1960, da eclosão de grandes projetos políticos e movimentos de libertação, que Sganzerla desenvolveu um posicionamento crítico como

o caráter explosivo e inovador da obra “caótica” de Sganzerla deve-se, sobretudo, à quebra da estrutura narrativa

possibilidades da linguagem cinematográfica dentro do projeto de criação de uma identidade nacional gerou uma obra muito particular, dotada de irregularidade e ambiguidade barrocas. “O cinema é uma arte que nasce de uma identificação dos polos contrários, e por isso todo o cinema forte é ambíguo”, afirmou o catarinense que fixou residência em São Paulo. O caráter explosivo e inovador da obra de Sganzerla deve-se, sobretudo, à quebra da estrutura

intelectual e realizador. Assim como os idealizadores da Nouvelle Vague francesa, ele construiu suas primeiras reflexões sobre cinema escrevendo artigos em importantes jornais da época. No seu curta-metragem de estreia, Documentário (1966), Sganzerla deixa clara a importância em sua formação dos movimentos cinematográficos europeus e de grandes autores como Jean-Luc Godard, Samuel Fuller e Orson Welles. Mas, apesar da influência externa, sua obra seria marcada pela busca de uma identidade nacional, pela autonomia dos países do então chamado Terceiro Mundo em relação ao olhar colonizante do “Primeiro Mundo”. Através da incorporação e do reprocessamento de elementos estrangeiros, seus filmes remontam ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade. “Eu tô com fome... Eu tô com fome!”, grita reiteradas vezes a personagem de Maria Gladys em Sem essa, Aranha (1970), filme cuja origem era uma releitura brasileira de Ulisses, de

Joyce, e que se tornou um ensaio satírico-caótico sobre a degradação cultural do Brasil.

cineMA MARGinAL

“Eu posso amanhã, ou depois, fazer um filme bonito, um filme plástico, mas desde que seja sobre a realidade brasileira. Terei de utilizar elementos de mau gosto, vulgares, cafajestes”, definiu assim o cineasta a sua proposta cinematográfica. Essa frase talvez ajude a entender por que o cinema de Sganzerla vem geralmente associado à palavra “marginal” – terminologia que ele considerava redundante para denominar a produção cultural de um país subdesenvolvido. O gosto por personagens marginalizados e transgressores, entretanto, foi uma tônica em sua carreira, marcada pela estrondosa repercussão do lançamento de O bandido da luz vermelha, no emblemático ano de 1968. No contexto atual, fica difícil imaginar que um filme tão inventivo, irregular e irônico em sua narrativa tenha se tornado sucesso de público no país. Trata-se possivelmente do longa-metragem de estreia mais impressionante da cinematografia brasileira, e que demonstrava o talento de Sganzerla em construir filmes sofisticados com algum apelo popular. Apesar da utilização de elementos do subdesenvolvimento, numa reivindicação de uma estética terceiro-mundista, O bandido é o filme mais bem-acabado do autor, seja na estrutura narrativa influenciada por Welles, na fotografia de grandes contrastes ou na montagem alucinada, na qual a junção de fotogramas define um novo sentido para as imagens filmadas, como defendia Eisenstein. Embora bem-recebido no meio intelectual e artístico brasileiro, o filme já apresentava uma proposta diferente da elaborada pelo cinema-novista dominante da época; o que futuramente os colocaria em posições divergentes quanto ao projeto de criação de um cinema autoral para o país. Enquanto o Cinema Novo se apropriava de elementos modernos para (re)descobrir o Brasil em

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fotos: divulgação/itaú cultural

Claquete 2

quinhões pouco explorados — do ponto de vista geográfico-cultural, como o Sertão, ou na abordagem substancialmente classista — , o cinema de Sganzerla se valia dos mesmos elementos para desestabilizá-los em filmes essencialmente urbanos e satíricos. Onde o Cinema Novo era sério em seu engajamento, o cinema marginal era ironia e escracho, embora ambos tivessem em comum a instabilidade de um projeto de formação da identidade nacional. Como bom vanguardista, Sganzerla conhecia os pilares da modernidade, para implodi-los e provocar uma reconfiguração dos signos numa nova linguagem, composta por fragmentos e um enorme senso de provocação – características marcantes da “pós-modernidade”. Talvez por isso seus filmes permaneçam atuais numa época em que ironia, desprendimento e um certo superficialismo são a tônica da produção artístico-cultural. Em A mulher de todos (1969), Sganzerla destila sarcasmo ao desconstruir

os filmes do diretor permanecem atuais nesta época de superficialismo na produção artístico-cultural a cultura burguesa da mulher ocidental e lançar um olhar quase profético para a mulher do século 21. O filme parece pensado sob medida para o talento e a beleza de Helena Ignez, que se tornaria mulher do diretor e musa da produtora Belair Filmes, na década de 1970. Poucas vezes no cinema se viu uma atuação tão intensa e selvagem como a de Ignez, que parece devorar, triturar e engolir cada fotograma nos closes obscenos de seu rosto. O caráter experimental da obra de Sganzerla ganha novo sentido quando, na companhia de Júlio Bressane, Helena Ignez e de colaboradores importantes como Andrea Tonacci, funda a

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Belair. A proposta era dar vazão à livre expressão numa máxima produção de filmes em curto espaço de tempo, numa tentativa de acompanhar o ímpeto criativo de seus realizadores. Sem qualquer tipo de apoio ou incentivo, os autores produziram filmes incomuns, construídos sob o improviso numa intensificação da ruptura estética e da imprevisibilidade da câmera. São dessa época obras importantes como Sem essa, Aranha (1970) e Copacabana mon amour (1970), de Sganzerla, e o excelente Bang-bang (1971), de Tonacci. Mesmo com o fim da Belair, Sganzerla continuou a empreender experimentos linguísticos em sua obsessão pelo cinema. O fascínio pela figura de Orson Welles e o episódio de sua passagem pelo Brasil, em 1942, para rodar um filme, levaria o cineasta a compor uma tetralogia, que culminaria no “antifilme” O signo do caos (2004), seu último trabalho. A própria definição encontrada por ele parece representar bem sua maneira de se relacionar com o

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Ocupação

tOdAS AS fAcES dE SGANZERLA Página anterior 1 AUGe

o gosto por anti-heróis aparece no sucesso do cinema nacional O bandido da luz vermelha, de 1968

Nestas páginas 2 HeRDeiRA

Em 1992, sganzerla encontra-se com Beatrice, filha de seu maior ídolo, o cineasta orson Welles

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MUSA

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inFLUÊnciA

o cineasta e a atriz Helena ignez, de A mulher de todos (1969), que se tornaria sua esposa, sócia e musa a tetralogia de sganzerla encerrase com O signo do caos (2004), seu último filme

cinema; regida por paradoxos, por uma espécie de amor-ódio. Como ele diria: “Fazer cinema é como descrever um movimento impetuoso numa folha em branco pegando fogo”. Essa imagem, de certo modo, remete ao fluxo criativo ininterrupto de Sganzerla. Afinal, seja nos filmes em cujos fragmentos operam discursos poderosos, ou na simples verborragia – por vezes esvaziada em sua tentativa de uma nova experiência estética – , ele amou e odiou intensamente o cinema.

Poeta, crítico, cineasta, visionário, profeta, quadrinista, produtor da Belair e amante da música são algumas das atribuições de Rogério presentes na Ocupação Sganzerla, evento promovido pelo Itaú Cultural, em São Paulo, em homenagem ao cineasta que era muitos em um só. O caráter multifacetado e fragmentário do universo criativo de Sganzerla parece combinar perfeitamente com a proposta de uma ocupação. Afinal, a sua maneira de pensar a arte como uma obra inacabada, formada por pedaços que se montam e remontam de acordo com a fugacidade da experiência estética, está intimamente relacionada com as manifestações artísticas da contemporaneidade. Nesse sentido, a simples compilação em um único espaço de elementos diversos e numerosos da vida e da obra de Sganzerla já diz muito sobre ele – se levarmos em consideração sua maneira de expressar-se através da sobreposição de signos na busca de um novo sentido. São fotos de infância, familiares, profissionais, anotações manuscritas, frases visionárias, objetos pessoais, roteiros originais comentados, câmeras com que rodava os filmes, textos críticos e memórias que transitam entre o personagem público e o homem familiar. Em conjunto, eles compõem um

rico panorama intimista desse cineasta e pensador da realidade brasileira. A maioria do material exposto foi conseguido pela curadoria junto ao acervo familiar, num esforço conjunto de Helena Ignez e suas filhas Sinai e Djin Sganzerla. “São objetos com que nós convivemos intimamente, percebendo a beleza deles, como os cadernos em que o Rogério escrevia. Então, ver sua própria existência exposta à visitação de outras pessoas é uma experiência iluminadora, que também leva ao autoconhecimento”, afirmou Ignez, no dia da abertura da ocupação, que tem a curadoria do cineasta e pesquisador Joel Pizzini. “O recorte conceitual da curadoria foi trabalhar a partir de três linhas de fuga: o caos, o abismo e a luz. Foi a maneira que a gente encontrou para sinalizar essa obra que é impossível de ser catalogada, acomodada, pois ela é transbordante, transcendente”, explicou Pizzini. Além da exposição, o evento ainda contou com a exibição de filmes raros de Sganzerla, ou relacionados ao seu universo cinematográfico, e com a realização de debates, nos quais alguns temas fundamentais vieram à tona; como o desaparecimento de alguns filmes da época da Belair (Carnaval na lama) e a perseguição sofrida pelo cineasta por segmentos da direita e da esquerda do cinema brasileiro. Ocupação segue com atividades até o dia 18 de julho, no espaço do Itaú Cultural, na avenida Paulista. Essa é a sexta realização do projeto, que já teve Zé Celso Martinez, Paulo Leminski e Chico Science como homenageados em outras edições. (MC)

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imagEns: divulgação

Claquete IRMãOS cOEN O desejo de apenas cumprir os deveres Um homem sério reforça o talento idiossincrático da principal dupla de cineastas norte-americanos texto Débora Nascimento

Se há quatro nomes (vivos) no cinema

norte-americano que sabem nos divertir e surpreender e, ao mesmo tempo, criar obras-primas, esses são Quentin Tarantino, Woody Allen e os irmãos Coen. Assim como os dois primeiros cineastas, Ethan e Joel, a cada filme, aparecem com uma história mais absurda que a anterior, embora enfoquem os eternos personagens envoltos em problemas. É o que comprova Um homem sério (A serious man), que, não por acaso, concorreu, mesmo que timidamente, ao Oscar de melhor filme deste ano, em meio a arrasa-quarteirões como Avatar. Ambientado nos anos 1960, Um homem sério narra a história do professor de física Lawrence “Larry” Gopnik que, em dado momento de sua vida, se vê

embrulhado em terríveis situações em todas as áreas, financeira, física, pessoal, profissional. O perfil e a performance do pouco conhecido ator Michael Stuhlbarg caíram perfeitamente no papel de um cidadão comum, cuja maior ambição é querer cumprir o seu dever de marido, pai, empregado e vizinho. No entanto, a avalanche de infortúnios toma conta de sua vida de tal forma, que a única coisa que Larry pode fazer é procurar a ajuda de um rabino para perguntar: “Por quê?”. O contorno dessa sucessão de acasos é a satirização da cultura judaica, carregada de humor negro e do politicamente incorreto. Como toda obra dos irmãos Coen, o filme tem direção e roteiro impecáveis, assim como suas atuações, mesmo que,

desta vez, conte com atores menos badalados, a exemplo do próprio Stuhlbarg, que fez pequenos papéis em séries de TV (Ugly Betty, Law & Order); da comediante nata Sari Lennick, que interpreta a esposa de Larry, Judith, e de Fred Melamed (vez ou outra, aparece nas películas de Woody Allen), que encarna o novo marido de Judith, Sy Ableman. A propósito, o triângulo amoroso LarryJudith-Sy é um dos grandes momentos estapafúrdios de Um homem sério. Além desses, há o menino Danny (Aaron Wolff), o filho do casal, que se envolve num problema trivial e protagoniza a cena final, num anticlímax, o que passa a impressão de o filme ter sido concluído breve e abruptamente. Desde o sucesso de Arizona nunca mais (1987), os irmãos Coen, roteiristas, produtores e diretores, não param de criar e lançar filmes, que se tornam cults (Barton Fink, Fargo, O grande Lebowski, O homem que não estava lá) ou se dão bem nas bilheterias, sem perder o charme, a qualidade e, principalmente, a dignidade (Onde os fracos não têm vez, E, aí, meu irmão, cadê você?, O amor custa caro, Matadores de velhinhas, Queime depois de ler). Com a pífia divulgação que teve na sua estreia nos cinemas (além de ter ocupado poucas salas de exibição), Um homem sério corre o risco de entrar mesmo na lista dos cults.

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INDICAÇÕES coméDia

Drama

ficção científica

Diretor: Nora Ephron Com: Meryl Streep e Amy Adams Sony Pictures

Diretor: Scott Cooper Com: Jeff Bridges e Maggie Gyllenhaal Fox Filmes

contracenando com amy adams, meryl streep protagoniza esse lançamento, dirigido por nora Ephron (famosa por livros como Meu pescoço é um horror). conta a história real de Julie Powell (adams), uma jovem americana superentediada, que vislumbra no seu blog de culinária uma alternativa à esgotante trivialidade do cotidiano. no blog, ela conta como refaz todas as receitas de Julia child (streep), espécie de Jamie oliver dos anos 1950 (child faleceu em 2004).

Bad Blake é desses heróis fracassados, com um cigarro na boca, uma garrafa de álcool do lado e um violão para externar suas amarguras. um country movie estrelado por Jeff Bridges (Bad Blake) e colin farrell (tommy sweet). antiga dupla de músicos, tommy emplacou na carreira e Blake continuou cantando pelos bares do sul dos Estados unidos. Quando uma repórter do jornal local de santa fé resolve fazer uma matéria sobre o astro “sem tanta luz”, eles se apaixonam.

Diretor: Neil Blomkamp Com: Jason Kolpe, Kenneth Nkosi e William Allen Young Sony Pictures

Drama

coméDia romântica

júLIA & juLIE

pREcIOSA

Diretor: Lee Daniels Com: Gaborey Sidibe, Paula Patton e M ´Onique PlayArte

Premiado duplamente no oscar (melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante), Preciosa mostra que a vida poderia ser bem mais difícil: Precious Jones (gaborey sidibe) sofre de obesidade, mora no barra-pesada Harlem e é vítima de agressões físicas e verbais da mãe, que, por sua vez, está quase perdendo o direito ao auxílio-desemprego. grávida da segunda filha, Precious se esforça para passar despercebida, por ter tanta vergonha de si mesma.

cORAçãO LOucO

SIMpLESMENtE cOMpLIcAdO Diretor: Nancy Meyers Com: Meryl Streep, Alec Baldwin e Steve Martin Paramount Pictures Brasil

a nova comédia romântica de nancy meyers (Alguém tem que ceder) não se afasta das obras anteriores da diretora: em resumo, trata-se da redescoberta da juventude... na meia-idade. Jane (meryl streep), mãe de três filhos e divorciada, resolve mudar de vida. o enredo até lembra o já clássico Beleza americana. mas, se no filme de sam mendes os dilemas existenciais eram analisados profundamente, em Simplesmente complicado isso fica na superfície.

dIStRItO 9

os alienígenas invadiram a terra de novo. o que muda em Distrito 9 é o alvo: as aberrações tomam de assalto a África do sul. Essa é a maior surpresa da estreia em longa-metragem de neil Blomkamp, protegido de Peter Jackson (o diretor da saga Senhor dos Anéis assina a produção desse longa de ficção científica). os efeitos propiciados por 30 milhões de dólares impressionam, mas não salvam o filme, que parece vir pronto para consumo.

Drama

LuLA, O fILhO dO bRASIL

Diretor: Fábio Barreto Com: Glória Pires, Rui Ricardo Dias, Juliana Baroni e Cléo Pires Downtown Filmes

desculpas não faltam à produção para explicar o fracasso nas bilheterias de Lula, o filho do Brasil: a estreia em tempo de férias escolares e a decorrente avalanche de filmes-pipoca, a concorrência esmagadora de Avatar e até a cobertura jornalística, por vezes mais política do que cultural. Besteira. a megalomania sobrecarrega o espectador nos 128 minutos do filme.

Drama

coméDia

Diretor: Jason Reitman Com: George Clooney, Vera Farmiga e Anna Kendrick Paramount Pictures Brasil

Diretor: Ruben Fleischer Com: Woody Harrelson e Jesse Eisenberg Sony Pictures

AMOR SEM EScALAS

demitir funcionários para corte de gastos da empresa pode ser uma tarefa estressante para quem não contrata um “conselheiro de transições de carreira”. Essa é a função do consultor metódico e obcecado em arrecadar milhas, ryan Bingham (clooney). o título sugere mais uma comédia romântica, mas trata da solidão do personagem, e incita uma reflexão sobre os comportamentos humanos envolvidos nesse estranho ofício.

ZuMbILâNdIA

um nerd virgem e ex-jogador de videogame, um matador de zumbis em série e duas singelas irmãs são os personagens determinados a matar mortos-vivos em Zumbilândia, mais uma pérola do cinema trash e levemente anárquico. os efeitos, a produção e o enredo seguem o humor negro de Todo mundo quase morto, de Edgar Wright, numa comédia que une o otimismo dos parques de diversão e o sangue fresco de A noite dos mortos-vivos, de george romero.

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Palco 1

DAQUI PRALI Mimese dos movimentos do andarilho e do caboclo Com o espetáculo de rua, a atriz e bailarinaViviane Madu cria dança-performance em que o movimento evoca figuras populares texto Clarissa Falbo Foto Maíra Gamarra

Ao meio-dia de uma terça-feira, em plena Praça do Carmo, ponto movimentado do centro do Recife, as pessoas que circulavam foram surpreendidas pela intervenção Daqui prali, concebida e executada pela atriz e bailarina Viviane Madu. O espetáculo, que mistura dança e performance, é inspirado nas figuras do andarilho e do caboclo-de-lança – protagonista da manifestação popular pernambucana do maracatu rural – e tem por objetivo tirar a dança contemporânea dos teatros e trazê-la para a rua. O novo trabalho da Companhia Duas de Criação será apresentado em espaços urbanos de cinco cidades brasileiras até o dia 10 de julho.

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1 prAçA do cArmo A estreia aconteceu em junho e o espetáculo vai passar por cinco cidades brasileiras, retornando ao Recife para encerrar a temporada

A escolha do andarilho e do caboclo-de-lança como enfoques para os movimentos coreográficos e elementos cênicos de Daqui prali tem a ver com a trajetória da própria bailarina, que migrou do Recife para São Paulo e inicia uma nova fase criativa em sua carreira. De acordo com Viviane Madu, o andarilho não tem paradeiro, ele chega a um novo lugar e, quando começa a estabelecer vínculos, sabe que é hora de partir; a mesma dinâmica do artista que está sempre em busca de algo, levantando questões, em constante processo de transformação. Para a bailarina, o caboclo-de-lança também é um migrante que peregrina da Zona da Mata até o Recife para se apresentar

“Quero dançar no meio das pessoas e não reproduzir na rua a hierarquia do palco”, explica a bailarina

“Quero dançar no meio das pessoas e não reproduzir na rua a hierarquia do palco”, explica Madu que, durante as apresentações iniciadas no Recife, no dia 21 de junho, pôde sentir a participação direta do público: “As pessoas estão indo almoçar ou voltando para casa e param para assistir ao espetáculo. Uma senhora ficou perguntando se era coisa do diabo. Uma menina que falava ao telefone celular contou a alguém do outro lado da linha que ia para o dentista, quando viu uma coisa que fez o tempo parar. A performance mexe com os passantes e cada um lida com isso a partir das referências que tem”.

durante o Carnaval e depois do folguedo retorna à sede do maracatu, ponto de partida. O figurino foi concebido a partir das vestimentas simples que os brincantes do maracatu trajam nas sambadas (ensaios). À indumentária marcadamente masculina foram incorporados bordados e brilhos. Uma estrutura de madeira inspirada no surrão – armação de chocalhos que os caboclos trazem presa às costas – é a caixa que guarda os elementos usados no decorrer do espetáculo. “O andarilho carrega consigo tudo que vai precisar na caminhada e as coisas encontradas no caminho”, ressalta Madu. A artista manuseia ainda um cajado, instrumento característico dos peregrinos (que também representa a lança do brinquedo popular), e uma lona plástica, artefato com o qual vinha realizando experimentações cênicas. Folhagens e plantas colhidas

nos locais onde acontecem as apresentações são usadas como adereços. De acordo com a bailarina, ao chegar a uma nova cidade, ela reconhece o espaço e descobre a vegetação local para trazer um pouco do lugar para a performance.

CALUNGA

Viviane Madu mantém contato com a dança popular desde a infância pela forte ligação de sua família – os Madureira – com o Balé Popular do Recife, companhia da qual fez parte por sete anos. Ela integrou ainda o grupo Grial de Dança, capitaneado pela coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo, no qual teve acesso à mistura entre a dança contemporânea e as manifestações populares. Em 2005, migrou para São Paulo para estudar Comunicação das Artes do Corpo na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e, no ano seguinte, concebeu o espetáculo Calunga, a partir da investigação dos movimentos da dama do passo, figura do maracatu de baque virado. Recentemente, Viviane passou a adotar o sobrenome reduzido para simbolizar a etapa atual de sua vida e carreira. Em Daqui prali, às possibilidades de união entre o popular e o contemporâneo são adicionadas as técnicas japonesas seitai-ho e do-ho, sob orientação da performer e poetisa Cecília Ohno e preparação corporal de Toshiyuki Tanaka, professor da bailarina na PUC-SP, e do Mestre Nico, do maracatu pernambucano Cruzeiro do Forte. A trilha sonora da montagem é assinada por Felipe Julian e Sandra Ximenez. Luciana Lyra é responsável pela produção geral e Karla Martins pela produção executiva. O espetáculo foi financiado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna e será apresentado gratuitamente nas cidades de Rio Branco (AC), Porto Velho (RO), Manaus (AM) e São Luís (MA). A temporada se encerra no Recife, mesmo local onde foi iniciada, quando Viviane Madu, seguindo a tradição dos caboclos, retorna ao ponto de partida.

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Artigo

kristine larsen/divulgação

bruno nogueira o crowdfounding e a cultura de colaboração existe uma chance muito grande

de você nunca ter ouvido falar em Jill Sobule. Cantora e compositora que nasceu no Colorado, como muitos outros que tentaram a sorte com a música e chegaram “quase lá”, Jill é o que a indústria da música chama de one-hit-wonder. Ela só conseguiu ter uma música, lá no distante 1995, nas paradas de sucesso e nas rádios, impulsionada pela trilha sonora do filme As patricinhas de Beverly Hills. Depois disso, foi recusada por duas gravadoras e chegou a assinar com outras duas que abriram falência logo depois. Mas um sucesso foi suficiente para ela. O que Jill percebeu é que aquela única canção, I kissed a girl (homônima ao sucesso de Katy Perry), fez com que ela conquistasse uma mina de ouro a que poucos artistas conseguem dar a devida atenção — uma base sólida de fãs. Quase 15 anos depois de tentar o modelo antigo para sobreviver de música, a cantora lançou o site Jills Next Record e convidou o público a patrocinar seu próximo álbum. A meta era conseguir US$ 75 mil para todo o processo, que incluía contratar o produtor com quem ela mais queria trabalhar em estúdio. Mesmo com pouca fama, Jill conseguiu o dinheiro em menos de dois meses. Cinquenta e quatro dias para ser exato. O plano de Jill poderia parecer um absurdo para muitos que esbarrassem por acaso em seu site. Para atingir a meta proposta, a cantora ofereceu vários pacotes de patrocínio que variavam de US$ 10 (em que o doador ganhava uma cópia digital do álbum) e US$ 50 (oferecendo um CD semanas antes de todo mundo com um “obrigado” personalizado no encarte) a valores como US$ 1 mil (pelo qual o colaborador receberia uma música-tema personalizada, para pôr na sua secretária eletrônica, por exemplo) e US$ 5 mil (pelo qual ela viajaria até sua casa e faria um show particular).

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1 financiamento Quinze anos após emplacar o hit I kissed a girl, a cantora Jill sobule convocou fãs através da internet para patrocinar um álbum inédito

A cantora chegou a, por pura brincadeira, criar um selo único de patrocínio no valor de US$ 10 mil. Nele, o comprador poderia cantar uma faixa no disco. Para a surpresa de Jill, uma fã no Reino Unido comprou esse selo, viajou até Los Angeles e agora a voz dela está lá no álbum California years. O disco recebeu resenhas positivas em todas as revistas especializadas, com direito à Rolling Stone americana tratar o retorno dela como uma artista mais sábia e com grande potencial pop. O modelo usado por Jill Sobule, chamado de crowdfounding (ou financiamento pelos fãs), começa a se desenhar como uma das novas tendências quando se trata de produção cultural.

cooperação online

A ideia de uma economia de colaboração não é exatamente nova. O sociólogo americano Peter Kollock a desenvolve desde o começo da década de 1990. Alguns dos princípios de que ele trata falam de presentes e bens públicos no ciberespaço para que exista uma cooperação online. Valores fundamentados em “reciprocidade, prestígio, incentivo social e incentivo moral”. Isso explicaria, entre outras coisas, por que alguém distribuiria de graça algo que custou dinheiro. Mas também diz muito sobre a nova participação do público no processo editorial. Esse desvirtuamento do processo das cadeias produtivas mostra que, se o público não está interessado em ficar apenas aguardando pelo consumo, ele talvez se interesse em participar também das várias etapas de produção. Jill Sobule assinou o nome de quem patrocinou seu disco como “produtores executivos”, e isso faz parte da relação de prestígio na economia da colaboração, que é proposta pelo professor norteamericano Howard Rheingold. “É a preocupação de que a contribuição de um indivíduo cresça ao ponto de que seja visível por toda a comunidade”, explica o

professor. “Como consequência, cada uma das características que encorajam reciprocidade – interação, persistência, conhecimento de causa e forte ligação na comunidade – também funcionam para promover a criação de reputações em uma comunidade”, completa Kollock em seu ensaio. O processo todo se torna um novo ciclo. O público contribui para ser notado e, ao ser notado, promove um consumo maior na comunidade em que está inserido. Foi o que percebeu o jornal The New York Times. O periódico é conhecido por promover o que chama de “fundo para os casos de maior necessidade”. São matérias especiais sobre casos específicos de pessoas com problemas de saúde e desemprego que, ao ser publicadas, podem receber doações dos leitores. O jornal faz a parte burocrática de repassar para instituições ou

a ideia de uma economia de colaboração não é nova. Vem sendo desenvolvida desde o início dos anos 1990 indivíduos relacionados ao assunto e publicar os nomes e histórias das pessoas que ajudaram. A iniciativa fez com que os editores experimentassem um passo adiante na colaboração. Usando o site Spot.Us, o jornal conseguiu reunir US$ 6 mil dólares de cerca de 100 leitores interessados em uma matéria sobre o tapete de lixo formado no Oceano Pacífico. Entre os doadores, estavam Craig Newmark, fundador da Craiglist, e Jimmy Wales, cofundador da Wikipedia. O dinheiro permitiu que uma repórter embarcasse em uma viagem junto a um navio que iria inicialmente estudar o impacto que o lixo estava causando na fauna. Vários sites, além do Spot.Us, se dedicam hoje a promover o financiamento pelos fãs, como o Create a fund, Cat walk genius e Sell a band. Este último foi o que permitiu que a banda americana We are the

city lançasse o primeiro disco. Um trio recém-saído de uma escola no município de Kelowa teve duas opções quando decidiu deixar o amadorismo: pedir um empréstimo ao banco ou fazer um pedido aos fãs. Os fãs foram mais rápidos e menos burocráticos, conseguindo os US$ 3.500 pedidos pela banda, que retribuiu a arrecadação fazendo vídeos para cada um dos contribuintes e publicando-os no site YouTube. Apesar dos casos de sucesso, o crowdfounding está longe de ser uma solução para a indústria. O cineasta Kevin Smith dedicou uma grande parcela de tempo esperando doações de fãs para seu filme Red state, uma paródia de terror sobre a igreja batista homofóbica dos Estados Unidos. Após ver que sua arrecadação estava longe do necessário, decidiu avisar aos seus quase dois milhões de seguidores no Twitter que “o único dinheiro de que vou precisar dos fãs agora será nas bilheterias”, oficializando que seu projeto sairia da independência – uma das marcas autorais de Smith – e seria entregue para uma produtora de Hollywood. O mesmo aconteceu com a banda de rap Public Enemy. Inspirados nos casos de financiamentos pelos fãs, decidiram entregar ao público a conta do próximo disco, que nunca chegou a ser a paga. O pedido deles também não foi modesto. Queriam US$ 250 mil para produzir um disco e, em abril deste ano, divulgaram que tentariam fazer um com US$ 75 mil (coincidência ou não, o mesmo valor da cantora Jill Sobule). Apesar de alguns desses exemplos já estarem completando a primeira década, o crowdfounding ainda não tem nenhum grande caso brasileiro. Em parte porque o novo artista brasileiro ainda encontra uma grande barreira no contato com o próprio público e, no caso das empresas de mídia, porque diferente do que acontece em países desenvolvidos, muitos jornais aqui sobrevivem de patrocínio público. Mesmo a política não se motivou com o recente caso da campanha de Barack Obama para presidente, que teve parte do financiamento angariado pelo público, através da internet.

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Sérgio Nilsen Barza O PRECURSOR DA MÚSICA MODERNA

Sérgio nilsen Barza

é regente, professor de história da música e análise musical no Conservatório Pernambucano de Música, e responsável pela área de pesquisa do CPM maíra gamarra

no biênio 2010-2011, a música celebra um dos maiores compositores e regentes de sua história, Gustav Mahler. Nascido em 1860 na Boêmia (a região hoje é parte da República Tcheca), Mahler estudou em Viena, e começou sua carreira de regente em 1880, dois anos após deixar o Conservatório. Logo se tornaria um dos maiores regentes de sua época, dirigindo orquestras e casas de ópera em grandes centros como Praga, Lípsia, Viena, Budapeste, Hamburgo e Nova York. A música de Mahler está dentro do que chamamos Romantismo Tardio, um estilo da segunda metade do século 19 que se prolonga pelo século 20, caracterizado por obras para grande orquestra, formas mais livres e pela incorporação paulatina das descobertas harmônicas (incluindo o atonalismo), ainda com forte ligação com outras artes, especialmente a literatura. As composições de Mahler se dividem principalmente entre cantatas e sinfonias, e cada uma reflete suas crenças e seus conflitos. Suas principais obras são as nove sinfonias, junto com o Canto da Terra (que ele considerava uma sinfonia para canto e orquestra). Dentre elas, a mais conhecida é certamente a Quinta, porque um dos movimentos (o adagietto) foi utilizado no filme Morte em Veneza, de Visconti (1971). Para os intérpretes, porém, a mais perfeita é a Nona sinfonia. Mahler escreveu sua própria mitologia nas obras. Ele se via como um herói que estava numa guerra infindável contra forças incomensuráveis (um tema constante do Romantismo). A Sexta sinfonia mostra o herói que, mesmo derrotado, luta até o fim. Já a Nona o traz no fim da vida, aceitando a morte com tranquilidade enquanto revê sua jornada e acerta contas com o passado. Última obra completada (em 1909), a Nona sinfonia é uma teia complexa que equilibra tradição e modernidade, técnica, emoção e ambiguidades. Mahler, desde 1907, sabia que tinha problemas de coração e que não teria muito tempo de vida. Faz então da Nona o seu memento mori. A mensagem dela é a despedida: Mahler se despede da vida, e a música se despede da tonalidade e do século 19. Em vida, Mahler foi um compositor contestado. Quase 100 anos após sua morte é reconhecido como precursor da música moderna, fazendo parte do cânone dos compositores da música erudita. O maior desafio para o ouvinte do século 21 é deixar de lado as associações extramusicais geralmente presentes nas obras do Romantismo e concentrar-se apenas na música, com paciência, atenção e boa vontade.

con ti nen te

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