DiVULGAçãO/O hOMeM planta
A g os to 2 0 1 0
aos leitores Em julho, a música erudita ganhou o interior de Pernambuco, com a realização dos espetáculos do Virtuosi, em Gravatá e Garanhuns. Este mês, é a vez do Recife acolher concertos: os repertórios concentram-se em peças de Schumann e Chopin, num festival em homenagem ao bicentenário de nascimento dos compositores românticos. Em setembro, será a vez de Olinda abrir suas igrejas para a Mostra Internacional de Música de Olinda, a Mimo. Diante dessa profusão de iniciativas, a Continente lançou um olhar mais apurado sobre o estado atual do mercado da música erudita em Pernambuco. Numa análise superficial, e sob os efeitos benéficos dessa sucessão de eventos, seria fácil deduzir que o ambiente da música erudita local é dos mais pródigos. Contudo, não é esse o diagnóstico apresentado por professores, músicos e produtores à jornalista Débora Nascimento. Pelo que pudemos observar, os agentes envolvidos no campo da música erudita têm de driblar diversos entraves para realizar um concerto, um festival ou gravar um disco. Os entrevistados também fizeram questão de apontar caminhos e possíveis
editorial.indd 4
soluções para os problemas existentes. Ao mesmo tempo, uma nova geração está trazendo propostas à cena erudita. É o caso de Vitor Araújo, que, com suas performances arrojadas, tem atraído interesse do público. Saindo do Brasil, encontramos em Nova York iniciativas que também têm levado jovens às apresentações. Esse é o caso do bar Le Poisson Rouge, que promove shows de música erudita num ambiente de clube de jazz. Ou, ainda, o do regente da Orquestra Filarmônica de Los Angeles, Gustavo Dudamel, cuja personalidade artística tem feito com que os ingressos dos concertos se esgotem rapidamente. Ainda dedicamos páginas ao Conservatório Pernambucano de Música, que este ano completa 80 anos de existência, formando e incentivando muitas gerações de músicos. Outra profissão sobre a qual nos detivemos, nesta edição, é a do realizador de cinema de animação. De acordo com o panorama apresentado pelo repórter Diogo Guedes, a produção de animação em Pernambuco começa a expandir-se, apesar das dificuldades. Uma história que começa a se desenhar, e que tem tudo para ser bastante animada!
31/07/10 11:00
sumário especial
Animação
04
cartas
05
expediente + colaboradores
06
entrevista
10
12
18
28
cláudio Versiani Fotógrafo mineiro reflete sobre demandas e conflitos atuais do fotojornalismo
60
Leitura
70
Palco
76
Matéria corrida
78
claquete
86
Artigo
88
Saída
Portfólio
Bianca Weber Com inspiração ecológica, carioca faz estampas para os mais variados fins
Balaio
contra o estresse Manhattan Shooting Excursions atende interessados em “se divertir” disparando pistolas e fuzis
tradição
Acervo O escritor e colecionador Liêdo Maranhão pretende doar sua coleção de 10 mil objetos para a criação de um museu de memória popular
Jimi Hendrix Há 40 anos, falecia o guitarrista que se tornou gigante em apenas três anos de protagonismo
64
conexão
Read Write Web O site mantém informações atualizadas sobre tecnologia
Sonoras
Com uma história breve na área, Pernambuco começa a expandir esse mercado, através da produção de novos filmes, editais e pela criação de curso de graduação no setor
20
Pablo neruda O cultuado poema épico O canto geral completa 60 anos e suscita novas leituras e críticas Os fuzis da Senhora Carrar Nova montagem de peça de Bertold Brecht inicia a série Transgressões em três atos José cláudio Sobre a morte de um cachorro chamado Negão Jussara Queiroz Perfil de uma documentarista cuja obra ainda está por se revelar ex-votos Objetos devocionais, eles existem para agradecer promessas alcançadas
Galiana Brasil A elaboração de projetos teatrais submetida às regras de mercado
Mercado
Música erudita Profissionais discutem os problemas do cenário dessa arte no país, indicando os possíveis caminhos para sua sobrevivência, como a renovação de público
46 Capa foto Moodboard/Corbis
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 3
4_5_Sumario.indd 2
31/07/10 10:59
Viagem
História
Localizada a 3.500 metros de altitude, antiga capital do Império Inca agrega atrativos nos campos da história, da antropologia, da cultura e do turismo
O Museu do Estado de Pernambuco reabre casarão com mostra de fotografias, gravuras e objetos que remetem aos períodos em que o abolicionista esteve na capital pernambucana
Cusco
32
O Recife de Joaquim Nabuco
40
Visuais
cardápio
O paraense Paulo Paes apropriase das técnicas de modelagem e montagem de balões para construir esculturas infláveis
Quitutes como acarajé, abará, vatapá, xinxim e farofa fazem parte da dieta dos orixás do candomblé, sendo oferecidos às divindades em troca de saúde e vitalidade
Pneumática
73
Ago’ 10
Comida de santo
80
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3
4_5_Sumario.indd 3
31/07/10 10:59
cartas Futebol
Críticos da web
Como assinante da Continente venho expressar meu profundo desagrado ao me deparar com a temática do mês de junho. Ao escolher, em plena Copa do Mundo, a Seleção Brasileira como capa e tema central para a publicação, a revista embarca no apelo às grandes massas: avessa à boa literatura que, por condição de partida para ser literatura (antes mesmo de ser boa), deve ser ela própria. Particularmente considero que todas as revistas que circulam em junho deveriam ter o inesgotável James Joyce como tema e esteio.
Em relação à matéria Eles dizem não ao fascínio digital (nº 114), acredito que os pensadores citados sofrem do mesmo mal de quem usa a internet em demasia: o exagero. A internet não é o demônio em bytes, tampouco a redenção da falta de acesso ao conhecimento ou milagre tecnológico. Ela está disponível como ferramenta e cabe a nós o seu bom ou mau uso. O problema, na verdade, não é a internet, mas a total falta de controle que as pessoas têm sobre a própria liberdade, e a incapacidade de se sair dos extremos e buscar o equilíbrio.
PEDRO GABRIEL BEzERRA REcIfE – PE
ReSPoStA DA ReDAÇÃo O conjunto de reportagens, artigos, ensaios, crônicas, fotografias e obras artísticas publicado na edição nº 114 da Continente, de junho deste ano, tomou partido da atualidade Copa do Mundo para discutir o
futebol sob abordagens inusuais na imprensa diária, esportiva e cultural. Pode parecer um assunto demasiado prosaico ou desvinculado do ambiente intelectual, mas o futebol está de tal forma impregnado na cultura brasileira que mesmo uma publicação voltada para os tradicionais campos da produção artística, como esta, encontra nele riqueza e relevância. Quanto ao escritor irlandês James Joyce, ele foi assunto da capa do mês de junho de 2005, edição nº 42.
EmÍDIA fELIPE REcIfE–PE
eRRAtA Na matéria publicada na edição nº 115 sobre Triunfo: Diana Rodrigues é colaboradora e não criadora do Museu do Cangaço; o governador Manuel Borba esteve na cidade em 1915; e o empresário que construiu o Theatro-Cinema Guarany é Camilo de Arruda Campos.
VOcê fAz A continente cOm A GEntE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone
(81) 3183 2780
Fax
(81) 3183 2783
redacao@revistacontinente.com.br
Site
revistacontinente.com.br
c o n t i n e n t e AG O S TO 2 0 1 0 | 4 5
cartas_colaboradores.indd 4
31/07/10 11:03
colaboradores
cristiano Ramos
eduardo Queiroga
Humberto França
Jornalista, professor e mestrando em Teoria da Literatura
Fotógrafo, mestrando em Comunicação, integrante do Projeto Fotolibras
Historiador e chefe de Projetos Especiais do Museu do Homem do Nordeste
Maria Filonila dos Santos Dias Geógrafa, pesquisadora do Museu do Homem do Nordeste
e MAiS Artur Ataíde, mestre em Teoria da Literatura e revisor. Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Bruno Albertim, jornalista. Dalcio, cartunista. Daniel Buarque, jornalista. Diogo Guedes, jornalista. edson nery da Fonseca, fundador dos cursos de graduação e pós-graduação em Biblioteconomia da UnB e pesquisador. Galiana Brasil, curadora de teatro e dança do Sesc-PE. Renata do Amaral, jornalista, mestre em Comunicação. Renato de Aguiar, fotógrafo.
GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco
SUPERIntEnDEntE DE EDIÇÃO
cOntAtOS cOm A REDAÇÃO
AtEnDImEntO AO ASSInAntE
GOVERnADOR
Adriana Dória Matos
(81) 3183.2780
0800 081 1201
Eduardo Henrique Accioly Campos
SUPERIntEnDEntE DE cRIAÇÃO
Fax: (81) 3183.2783
Fone/fax: (81) 3183.2750
SEcREtÁRIO DA cASA cIVIL
Luiz Arrais
redacao@revistacontinente.com.br
assinaturas@revistacontinente.com.br
Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão REDAÇÃO
PRODUÇÃO GRÁfIcA
EDIÇÃO ELEtRÔnIcA
coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco – cePe
Danielle Romani, Débora Nascimento,
Júlio Gonçalves
www.revistacontinente.com.br
PRESIDEntE
Mariana Oliveira e Thiago Lins (jornalistas)
Eliseu Souza
Leda Alves
Maria Helena Pôrto (revisora)
Sóstenes Fernandes
DIREtOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO
Clarissa Falbo, Gabriela Lobo, Gianni Paula de
Roberto Bandeira
Ricardo Melo
Melo, Maíra Gamarra, Maria Doralice Amorim
DIREtOR ADmInIStRAtIVO E fInAncEIRO
e Raquel Monteath (estagiários)
PUBLIcIDADE E mARKEtInG
Bráulio Mendonça Menezes
Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)
E cIRcULAÇÃO
cOnSELHO EDItORIAL:
Armando Lemos
Mário Hélio (presidente)
ARtE
Alexandre Monteiro
Antônio Portela
Karina Freitas, Pedro Melo e Sebastião
Rosana Galvão
José Luiz Mota Menezes
Corrêa (paginação)
Gilberto Silva
Luís Reis
Nélio Câmara (tratamento de imagem)
Daniela Brayner
Luzilá Gonçalves Ferreira
Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADmInIStRAÇÃO E PARQUE GRÁfIcO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700
c o n t i n e n t e AG O S TO 2 0 1 0 | 5
cartas_colaboradores.indd 5
31/07/10 11:03
CLÁUDIO VERSIANI
Porque a melhor coisa é conhecer gente Fotojornalista brasileiro que registrou momentos decisivos da vida social e política brasileira faz uma defesa da profissão, a despeito de crises e dos novos agentes em circulação texto Adriana Dória Matos
con ti nen te
Entrevista
como ele fotografa desde os anos
1970, e passou por grandes veículos de comunicação brasileiros, a exemplo dos jornais O Globo e Correio Braziliense, e das revistas IstoÉ e Veja, Claudio Versiani tem sido “testemunha da história”, expressão a que ele recorreu mais de uma vez ao longo desta entrevista, e à qual nos remetemos quando olhamos seu portfólio (veja em www.cversiani.com e em www.picturapixel.com). Num momento da entrevista, Versiani fez uma declaração que reincide no discurso daqueles que escolhem o jornalismo como profissão: “O que eu acho que vale a pena na vida é conhecer gente. Não tem coisa melhor no mundo do que ser fotógrafo, do que ser jornalista: é o jeito de você conhecer gente”. Trivial, mas imprescindível para motivar o confronto necessário com o mundo (pode parecer estranho, mas tem gente que não gosta de gente!). Basicamente, o foco do diálogo aqui reproduzido está nas demandas e conflitos atuais do fotojornalismo: as mudanças e influxos advindos das novas tecnologias, a ética profissional,
a relação com o mercado. Hoje se tem discutido demais a “crise do jornalismo”. Quanto a isso, Versiani lançou uma opinião eficaz: “Os veículos de comunicação estão em crise, o jornalismo não. O jornalismo está cada vez melhor”. Claudio Versiani está há quase oito anos fora do Brasil. Morou em Nova York e hoje mora em Barcelona, acompanhando uma jornada de estudos da esposa. Nesse percurso, vai fotografando, verbo que, no caso dele, poderia ser substituído por “vivendo”, como se poderá constatar pelas respostas a seguir. continente Qual o papel do fotojornalismo hoje? Em que meios ele alcança plenitude? cLÁUDio VeRSiAni O papel do jornalista hoje é o de sempre. Principalmente no Brasil, que tem desigualdades históricas e tão endêmicas, a gente tem um papel social grande, que é o de denunciar as coisas ruins e contar as histórias boas. A gente tem oportunidade de testemunhar a história, seja de um
fato pequeno no interior, ou de um acontecimento fundamental para a vida social e econômica brasileira no Palácio do Planalto, no Congresso. Então, o papel do jornalista não muda. O que mudam são as plataformas que você pode usar. Antigamente, se você fazia uma foto no interior do Ceará, tinha que tomar um avião e ir para a redação em São Paulo, no Rio de Janeiro, onde iria revelar o filme e esperar a ampliação da foto ficar pronta. Hoje em dia não; do celular você transmite a imagem para onde quer que seja e ela está online. Quer dizer, qualquer coisa que aconteça em qualquer lugar do mundo é documentada, por um celular ou por uma câmera de grande resolução digital, não importa. O que importa é que hoje o mundo passa por uma tela de computador. continente De certa forma isso antecipa a pergunta que faríamos adiante, sobre se o advento da internet contribui para o campo da fotografia profissional. cLÁUDio VeRSiAni Duas palavras que eu sempre tremia
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 7
entrevista.indd 6
31/07/10 11:05
Jarbas araĂşJo Jr.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7
entrevista.indd 7
31/07/10 11:05
Se quero me informar, buscar conteúdo textual ou fotográfico, há muitas opções online; escolho aonde quero ir, recebo sugestões de amigos, faço trocas diretas. Quando a gente pensa no quanto essas mudanças transformaram o profissional... No meu caso, há 20 anos, eu era um fotógrafo; hoje não sou mais; sou multimídia. Se tenho um blog, devo saber escrever e não posso cometer erros de português, tenho que ser claro na mensagem que quero passar, preciso fazer pesquisas etc. Acho que nos qualificamos mais. Se você era um designer, não é mais só um designer. A vantagem é que você recebe mais informação, mas, se você está na rede, é obrigado a dar mais informação, seja em vídeo, foto, texto, ou numa compilação
cLaUDIo VErsIaNI
quando ouvia eram “globalização” e “produtividade”; isso, falando de dentro das empresas de jornalismo. A primeira que surgiu foi “globalização”: você tinha de estar atento ao mundo todo. A segunda, “produtividade”, significa que, com o crescimento da internet, você está trabalhando e vai trabalhar muito mais. Hoje, quem é jornalista não sai do jornal às sete ou oito horas da noite, vai para casa e descansa. Esquece! Todos nós trabalhamos 24 horas por dia, e ganhamos menos que antes. É o modo de operar do capitalismo, e a gente vai se adaptando. Essas duas palavras significam mudanças trabalhistas terríveis... Por outro lado, hoje o fotógrafo tem na
con ti nen te
Entrevista internet uma plataforma para publicar o próprio material. continente Com a oferta massiva de fotografias no ambiente online, em plataformas como home pages e flickrs, qual a visibilidade que cada fotógrafo espera e consegue atingir? cLÁUDio VeRSiAni A massificação tem o lado bom e o lado ruim. Você vai no Flickr e quantas fotos tem lá? Milhões por dia. Isso nivelou muito por baixo a qualidade. O Flickr é um lugar a que eu pouco vou, porque é muito difícil de garimpar. O que atordoa é o volume e o desnível do material disponível, e eu não tenho paciência para o garimpo, a não ser que eu dê uma sorte naquele dia e descubra um sujeito interessante.
de todas elas. Num blog, seus links mostram como você navega, por onde navega, quais são os seus interesses. Isso faz de você testemunha da história, daquela que está acontecendo em nossas vidas, da gente para dentro e da gente para fora. continente E no que diz respeito ao fotojornalismo, especificamente? cLÁUDio VeRSiAni O fotojornalismo como eu conheci, como conheceram aqueles que estão no mercado há mais de 20 anos, acabou. A gente fotografava um gorila com duas cabeças e quem pagasse 500 mil dólares levava a imagem. A National Geographic ou outra revista pagava 520 ou 530. Agora, é preciso fotografar um gorila com 10
cabeças, e vai ver que seu trabalho será preterido por uma foto amadora do gorila, feita com um celular, encontrada na internet. É verdade que você é o maior especialista em foto de gorila do mundo, mas aquela do sujeito do celular, que chegou primeiro, mesmo de má qualidade, também serve. Embora a gente possa considerar essa situação excepcional, por se tratar de coisa inusitada. O que eu tenho notado é que os veículos de respeito – os grandes jornais, as grandes revistas – continuam privilegiando o profissional. O que eu imaginei, de início, é que seria a abertura da porteira para entrar amador de tudo quanto é quilate. Mas, mesmo com o fim da exigência de diploma no Brasil, percebo que os
o papel do jornalista hoje é o de sempre. Principalmente no Brasil, que tem desigualdades históricas e tão endêmicas, a gente tem um papel social grande, que é o de denunciar as coisas ruins e contar as histórias boas . jornais têm dado preferência às pessoas que têm formação. Ainda que nem todas estejam mais no quadro regular da empresa, porque se tornaram colaboradores. Aí voltamos à questão da globalização e da produtividade. No período em que trabalhei na Veja, entre os anos 1970 e 1990, chegamos a ter quatro fotógrafos e um frila fixo contratados. Depois, a revista passou anos com dois fotógrafos na redação; agora tem um só, e não conta mais com editor de fotografia. continente Com essa profusão de meios de captar imagens e a aparente desvalorização da fotografia profissional diante de registros de tudo feitos por todos, o que o fotógrafo tem a mostrar de diferente ao observador?
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 9 8
entrevista.indd 8
31/07/10 11:05
Nordeste, por exemplo, farei isso com minhas intenções, e registrarei minha leitura daquela realidade. Se outro fotógrafo se propuser o mesmo, o resultado será outro, porque somos pessoas diferentes. Podemos até ter a mesma opinião. Mas a gente podia ir junto e fotografar os mesmos lugares e pessoas e as minhas fotos e as dele seriam diferentes. Quer dizer, não é a realidade, é a interpretação de realidade, por si mesma diversa. continente A fotografia como campo autônomo, o que ela é para você? cLÁUDio VeRSiAni Quando falo de fotografia, me refiro muito ao fotojornalismo, à fotografia documental, que são minhas áreas de interesse. Mais
cLaUDIo VErsIaNI
cLÁUDio VeRSiAni Aqui entra a discussão de técnica e linguagem. A técnica é fundamental até a hora em que você a domina totalmente. Esse é um atributo de profissional, que desenvolve linguagem e estilo com tempo de trabalho e com bagagem pessoal. O não-profissional, ou o “eu repórter”, é opção para um flagrante, mas o assunto, a reportagem, o ensaio, sem o profissional não existem. Qual é o “eu repórter” que vai dar a dimensão de uma grande reportagem? Como ele vai abordá-la? Qual a linguagem que dará ao assunto? Ele não dará nenhuma, porque não tem base para isso. Acho que é justamente nesse sentido que o profissional se destaca, se impõe sobre essa nova realidade. Não
fotógrafos americanos como Dorothea Lange, Walker Evans, Arthur Rothstein, e outros que participaram do programa Farm Security Administration, mudaram os Estados Unidos através da fotografia. Para mim, eles são o melhor da história da fotografia documental; são imbatíveis. continente Se você tivesse que fazer uma autoimagem, como ela seria? cLÁUDio VeRSiAni Costumo brincar que todo dia de manhã levanto as mãos para o céu por ter me tornado fotógrafo. Procuro cada dia mais dominar a técnica e exercer a minha linguagem. Eu sou muito esforçado. Se eu estiver em um trabalho profissional, eu me mato até conseguir fazer a
Acho que a matériaprima do jornalismo é a realidade, a vida real. Agora, o que eu fotografo não é a realidade. Se eu me propuser a fotografar a fome no nordeste, farei isso com minhas intenções, e registrarei minha leitura daquela realidade fazendo a mesma coisa, talvez de uma forma melhor que o não-profissional faria, mas dando mais densidade àquilo que faz de melhor, que é contar uma história, que é ter o trabalho dele envolvido num grande tema.
amplo que isso: eu enxergo o mundo fotograficamente, esteja fotografando ou não. É a forma como me relaciono com o mundo, meu modo de viver, de interagir. Tudo é fotografia. Se eu olho para uma pessoa, vejo fotografia.
continente Costumamos atribuir à fotografia o estatuto de verdade, porque acreditamos que ela registra objetivamente aquilo que aconteceu. Mas sabemos que o fotógrafo também constrói a realidade que documenta, com os recursos de que dispõe. Até onde o fotógrafo manipula a realidade? cLÁUDio VeRSiAni Acho que a matéria-prima do jornalismo é a realidade, a vida real. Agora, o que eu fotografo não é a realidade. Se eu me propuser a fotografar a fome no
continente A fotografia já serviu a vários experimentos artísticos, sobretudo nos movimentos de vanguarda. Você tem acompanhado experimentos nesse campo? cLÁUDio VeRSiAni Eu acompanho como qualquer fotógrafo faria, com interesse; gosto de ver coisas novas, embora, como eu disse, me interesse mais por fotojornalismo e fotografia documental. E tem mais uma coisa: as mais velhas são as melhores. Acho que, no começo do século 20,
imagem que me satisfaça. E a cada dia que passa, quanto mais velho eu fico, mais fácil e mais difícil fica. Mais fácil, porque eu tenho mais experiência, domino melhor a técnica, sei como construir aquela imagem. Ao mesmo tempo, sou mais exigente, e sei que a cada dia que passa sou mais burro, menos sei. Então, essa coisa me motiva, e sou um cara apaixonado pelo meu trabalho. Passei por Angola, fiz fotos do jeito que quis; passei pelo interior de Minas, fiz duzentas mil fotos, do jeito que quis; passei lá em Beirute; Nova York; Barcelona. Passeando ontem pelo Recife, fiz umas fotinhas sem-vergonha, mas são as fotos que eu quis; são o meu testemunho.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 9
entrevista.indd 9
30/07/2010 10:45:22
O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
JUssaRa QUeiRoZ
MÚsica eRUdita + aniMaçÃo
Assista a trechos do documentário O voo silenciado do Jucurutu, do jornalista Paulo Laguardia, sobre a cineasta potiguar
Com a matéria de capa destacando o mercado da música erudita, o nosso site vai reunir alguns vídeos do festival Virtuosi, que vem trazendo nomes importantes da cena nacional e internacional para o Estado. O internauta também poderá ouvir Papa capim, Regia Sa e Riacho encantado, do grupo SaGrama, formado no Conservatório de Música de Pernambuco, que completa 80 anos. Outra pauta interessante desta edição é o mercado de animação local. Quem entrar no site vai poder conferir algumas das recentes criações.
cOn Ti nen Te
Conexão
inFLÁveis Assista a um vídeo do artista plástico Paulo Paes sobre o delicado processo de produção de balões e seu universo lúdico e tecnológico
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
andanças viRtUais
HUMoR
cULtURa PoP
MUseUs
coLaBoRativo
Sensacionalismo de mentira passa por verdade para ingênuos
Feito por fãs, site comenta, em primeira pessoa, filmes, geringonças, jogos e HQs
era virtual “abre” museus na internet em planos 360 graus
o esquema une quatro caras que apreciam o riso
sensacionalista.virgula.uol.com.br
collider.com
eravirtual.org
oesquema.com.br
“Tony Ramos interpreta lobisomem em novo filme da saga Crepúsculo”; “Produtores de Lost são presos por estelionato”; “Fifa cancela final e entrega taça à seleção escolhida pelo polvo vidente”. Essas e outras notícias, digamos, irônicas, podem ser lidas no Sensacionalista, “um jornal isento de verdade”. Reza a lenda que o informativo existe há nada menos do que 171 anos de “credibilidade”, tempo mais do que suficiente para se consolidar como “o jornal mais sério do Brasil” – segundo o canônico Barbosa Lima Sobrinho. Algumas tiradas publicadas já são clássicas, como a hilária “Mulher engravida vendo pornô 3D”.
Cinema, gadgets, quadrinhos e games são analisados em linguagem informal no Collider. É fato que, na era da convergência, sites que aliam tecnologia e cultura proliferam, mas poucos prezam por uma linha editorial – caso do endereço em questão. Os textos, muitos em primeira pessoa, passam uma sensação de intimidade com o leitor. Intimidade, aliás, é o que não falta aos colaboradores, que exibem conhecimentos de fãs nas críticas, chegando inclusive a pecar por excesso de simpatia. Mas o Collider não se propõe um site jornalístico: é feito por fãs e para fãs.
Projeto de cunho social, o Era Virtual agrega o acervo de cinco museus (sendo três em Minas Gerais, um em Santa Catarina e outro em Goiás). Em plena expansão da era digital, o site foi idealizado para reverter os dados do IBGE, de que 92% dos brasileiros nunca foram a um museu (embora 65 milhões já tenham acesso à internet). Todos os cômodos dos museus “digitalizados” podem ser vistos em 360 graus. Também há zoom para focar peças menores. Até o fim do ano, mais sete instituições poderão ser acessadas pelo endereço.
Espécie de portal do humor negro, O Esquema agrega os sites Urbe, Trabalho Sujo, Mau Humor e Conector. Os três primeiros consistem num apanhado de textos sobre música pop, curiosidades da web e fetiches hollywoodianos (como uma série de fotos com Kristen Stewart, a musa teen da saga Crepúsculo, fazendo caras e bocas bem mais expressivas do que o olhar desolado do seu personagem). Já o Conector, a “ala séria” do portal, é capitaneado pelo nerd Gustavo Mini. Criativo, Mini posta reflexões sobre cyberespaço e publicidade (sua área de formação).
co c on nt tiin neen nt tee AG AGOS OSTO TO 220 0110 0 || 110 1
Conexão.indd 10
30/07/2010 10:46:40
blogs GRaFite osgemeos.com.br
Os gêmeos Otávio e Gustavo Pandolfo, dois dos maiores grafiteiros do Brasil hoje, mostram sua arte. Na página, eles também divulgam exposições e trabalhos de outros artistas.
GaMes colunistas.ig.com.br/gamerbr
UM LUGaR PaRa a GeRaçÃo 2.0 Read Write Web reúne notícias e textos de variados níveis de profundidade com informações sobre o ambiente virtual colaborativo readwriteweb.com.br
Um dos sites de tecnologia mais populares do mundo, o Read Write Web existe
desde 2003 e ganhou, ano passado, sua versão tupiniquim. O RWW Brasil é atualizado constantemente, e não fica devendo ao original – cujo sucesso acabou chamando atenção do New York Times, que hoje hospeda o RWW em seu portal. Somando 50 mil visitantes mensais só no Brasil, o site disponibiliza estudos, entrevistas e artigos sobre a web 2.0. E o mais interessante: até a iminência da era 3.0 (que já foi batizada de web semântica pelos geeks) é analisada, como no texto de Victor Peçanha, intitulado O que vem depois da web 2.0. O colaborador disserta sobre a provável influência da web semântica na vida prática, e cita o raciocínio da consultora digital Sramana Mitra (que, por sua vez, tinha publicado um artigo na revista Forbes) para dar um exemplo bem simples: uma ponte virtual entre doutores, seguradoras e pacientes poderia reduzir drasticamente os custos na saúde pública. Imagine o que se faria nos âmbitos da segurança e da educação. Soa arriscado fazer previsões no ambiente mutante da internet. Mas vale lembrar que a revista-referência Wired, ainda em abril de 1999, mencionou profeticamente “um pequeno dispositivo wireless apelidado de iPad”, como aposta da Apple. A matéria da ocasião era sobre uma suposta volta por cima de Steve Jobs (cuja empresa, então, atravessava uma grande crise)... THiAGO LinS
O espaço, editado pelo jornalista Pablo Miyazawa, que atua há 15 anos no ramo de jogos, traz entrevistas, coberturas de eventos da área no Brasil e no exterior, e testes de consoles e acessórios.
cYBeRcULtURa steverubel.com
O colunista da Forbes.com, Steve Rubel, se arrisca em profecias virtuais no seu blog. Aliás, o cyberguru gosta de ser mais específico – define seu espaço na web como lifestreaming, um dos muitos neologismos por ele adotados.
desiGn designyoutrust.com
Com conteúdo colaborativo, o site norte-americano Designyoutrust recebe portfólios mediante cadastro. O blog também dedica espaço a informações diversas sobre arquitetura, fotografia e animação.
sites sobre
música LÚCIO RIBEIRO
MÚSICA POP
MERCADO INDEPENDENTE
colunistas.ig.com.br/lucioribeiro
bloodypop.com
nagulha.com.br
O DJ e jornalista edita o PopLoad, mais voltado para as bandas indies gringas. Ribeiro garimpa também “exotismos” da web, como uma paródia pornô de Toy Story 3.
O Bloody Pop tem apenas dois anos, mas vem se firmando na cobertura de música alternativa. Uma boa sacada são as entrevistas, bem mais interessantes que a média no espaço virtual.
O Nagulha traz resenhas e coberturas, mas os destaques são os artigos dos produtores, que comentam as iniciativas – e roubadas – dos festivais independentes.
c o n t i n e n t e AG OS TO 2 0 1 0 | 1 1
Conexão.indd 11
30/07/2010 10:46:41
Port f
con ti nen te
1
Portifolio.indd 12
30/07/2010 10:49:22
t f贸lio Portifolio.indd 13
30/07/2010 10:49:38
2
con ti nen te
Portfólio
Bianca Weber
PARA ESTAMPAR O MUNDO TexTo Mariana Oliveira foTos Renato de Aguiar
imagine se não houvesse a estamparia no mundo. Tudo e todos
teriam uma cor, mas nenhum grafismo que os diferenciasse. A zebra, o biquíni de bolinha amarelinha, a cortina florida, a blusa listrada... nada disso existiria. A carioca Bianca Weber trabalharia em outro setor, já que ela se encontrou e descobriu seu talento precisamente na criação de estamparias. Seu lema: “Vamos estampar o mundo”. No ramo desde 2003, ela fez graduação em Desenho Industrial na PUCRio, seguida de um curso de design têxtil. Enquanto aprendia as técnicas de estamparia, recobrava o próprio imaginário infantil e sua brincadeira preferida de quando criança: um ateliê, chamado Boka Loca (inspirado num famoso batom da época), que inventou para desenhar e estampar roupas para suas bonecas. A partir do material desenvolvido no curso, ela montou seu portfólio com desenhos inspirados na Amazônia. “Trabalhei imagens ligadas ao encontro do rio com o mar”, lembra. São desse primeiro momento as estampas batizadas como Cogumelos encantados, Abacaxi, Cobra coral – ela gosta de dar nome às suas criações. Com a produção inicial, Bianca começou a oferecer os trabalhos a diversas marcas do Rio de Janeiro, e foi emplacando seus desenhos, inicialmente, em peças de vestuário. Hoje, a BW Design (www.bwdesign.com.br) faz estampas para os mais variados fins – sofás, paredes, objetos de decoração, utensílios de cozinha, bolsas.
Página anterior 1 PASSo A PASSo
As estampas são inicialmente desenhadas à mão, e depois são levadas ao computador para serem integradas e coloridas
Nestas páginas 2 DiVeRSiDADe
Hoje, as estampas produzidas pela BW Design, como a Larabie, dão cara a objetos e móveis
3 inSPiRAÇÃo Os desenhos de Bianca Weber trazem referências a elementos da natureza
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 1 4
Portifolio.indd 14
30/07/2010 10:49:43
3
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 1 5
Portifolio.indd 15
30/07/2010 10:49:59
con ti nen te 4
Portfólio
“Adoro desafios. Gostaria de estampar uma corneta, por exemplo. É muito bom ter a ousadia de fazer algo que você nunca fez antes”, pontua. Seus traços têm inspiração em coisas simples do cotidiano, da natureza, das culturas que conhece em suas viagens. O foco na questão ecológica e natural não aparece apenas nos desenhos; é uma preocupação que perpassa o processo de produção. “Eu me interesso muito pelo meu trabalho; me interesso pelo seu fim, tenho uma preocupação ecológica. O que posso fazer em prol dessa causa, eu faço”, explica. A designer tanto produz estampas por encomenda, de acordo com o mote sugerido pelos clientes, quanto cria de forma livre. Em ambos os casos, o processo de elaboração é simples. Tudo começa com uma apurada pesquisa de identidade visual, que depois será concretizada com papel e lápis. É nesse suporte rudimentar que Bianca esboça seus desenhos (talvez por isso eles mantenham um traço muito autoral), que são depois levados ao computador e coloridos. Quando as estampas estão concluídas, Bianca as aplica em dois ou três objetos distintos e as apresenta a seus parceiros e clientes. Agora, a designer tenta tirar do papel um novo projeto: vender suas estampas em tecido, por metro.
5
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 1 6
Portifolio.indd 16
30/07/2010 10:50:05
6
7
4-5 encoMenDAS A carteira, com a estampa Zeppelin, e a almofada, com a estampa Dubai, foram criadas para a marca pernambucana Estúdio Zero 6 teMÁticA A estampa Brasil para a Copa foi produzida para forrar acessórios da marca carioca Casablanca 7-8 AMBientAÇÃo O adesivo com a estampa Flor decora o estúdio da BW Design. Já a estampa Galhos decora a porta do apartamento de uma amiga da designer
8
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 1 7
Portifolio.indd 17
30/07/2010 10:50:19
FOTOS: DIVULGAçãO
HoMeR, o nÚMeRo 1 Os seriados de TV continuam demonstrando sua força. Desta vez, ela se evidencia num ranking da Entertainment Weekly, que reúne os 20 maiores personagens surgidos nas duas últimas décadas no cinema e na TV. Homer Simpson encabeça a lista, à frente de nomes como Harry Potter (em 2º), Coringa (em 5º) e Hannibal Lecter (em 8º). Ainda aparecem Buffy (de Buffy, a caça vampiros, em 3º), Tony Soprano (de Os Sopranos, em 4º) e Rachel Green (de Friends, em 6º). Isso também comprova que losers, desmiolados e malvados estão em alta. (Debora Nascimento)
LiMA contRA o FUteBoL
tiros no estresse? Depois de uma semana de trabalho em Nova York, grupos de executivos norte-americanos se reúnem em finais de semana para fazer o que a cultura tradicional dos Estados Unidos parece propor como descanso: descarregar armas de fogo em alvos que se mexem e se destroem. Pelo menos uma vez por mês, o Manhattan Shooting Excursions leva dezenas de pessoas às suas fazendas localizadas em estados vizinhos a NY (onde armas pesadas são proibidas), e permite que “se divirtam” disparando pistolas, fuzis e até metralhadoras. Cada dia de passeio custa a partir de U$ 350, incluindo transporte, alimentação, aluguel das armas e munição. Quanto mais armas se quer aprender a usar e quanto mais pesado o calibre, mais cara fica a diária na fazenda. Com a candidatura de Barack Obama à presidência dos EUA, em 2008, os norteamericanos ficaram temerosos de que o novo governo proibisse a posse de armas no país, garantida pela Constituição. Mas, até aqui, na gestão de Obama, só houve o incremento da venda mensal de armas, junto com a popularidade de excursões de tiro. Um indício de que hábitos arraigados não se dissipam de um dia para o outro, nem de um presidente a outro. DanieL BUaRQUe
con ti nen te
A FRASE
Para quem viveu a empolgação brasileira na Copa do Mundo, dá para acreditar que já existiu no País alguém que não gostasse de futebol? O escritor Lima Barreto odiava o esporte, que, na sua época, era realmente “bretão”, pelo predomínio de termos ingleses e por ter a prática profissional restrita aos brancos. Um dos episódios que mais indignaram o escritor, fundador da Liga Brasileira Contra o Football, foi protagonizado pelo presidente Epitácio Pessoa, que, em 1921, proibiu a presença de negros e mulatos na seleção que disputaria o Sul-Americano daquele ano. Motivo: um jornal argentino havia chamado os nossos jogadores de “macaquitos”. (Gilson Oliveira)
Balaio UM eSPAnHoL eScALDADo
“eu sou Gandalf, não Dumbledore!”
Após 21 anos, o ator Antonio Banderas volta a ser dirigido por Pedro Almodóvar, que o revelou nos filmes Labirinto de paixões (1982), A lei do desejo (1987) e Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988). La piel que habito está em fase de pré-produção e tem estreia prevista para março de 2011. Banderas festejou o reencontro com o diretor: “Eu não ligo para o inferno que é Almodóvar; é um inferno bem criativo. Prefiro chegar a esse lugar doloroso, arriscado, porque é nesses lugares arriscados que acontecem as criações, a me divertir com um amigo com quem, no final, não vai acontecer nada”. (DN)
ian McKellen
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 1 9 8
Balaio.indd 18
30/07/2010 10:51:44
ocULtiSMo De PAGe 1
cRiAtuRAS
REPRODUçãO
Na recente biografia do Led Zeppelin, Quando os gigantes caminhavam sobre a terra (Larousse), o autor Mick Wall dedica boa parte do livro a discorrer sobre a comentada paixão do líder da banda, Jimmy Page, pelo ocultismo. O guitarrista chegou a possuir a maior livraria europeia especializada no assunto, a Equinox, e adquiriu a Boleskine, mansão localizada perto do Lago Ness, de Aleister Crowley, filósofo inglês do século 19, considerado bruxo, anticristão e satanista. Todo mundo comenta que a decadência da banda, em ritmo tão veloz quanto o de ascensão (incluindo a morte do baterista John Bonham e tragédias familiares inexplicáveis), teria a ver com essa atração de Page pelo sobrenatural. (Luiz Arrais)
ocULtiSMo De PAGe 2 Num encontro com Jimmy Page em Nova York, em 1978, David Bowie (à época, envolvido em estudos – regados à cocaína – sobre o ocultismo de Aleister Crowley) supôs que o guitarrista do Led irradiava uma aura muito pesada. Ao comentar a “visão”, Page ficou em silêncio, com um sorriso inescrutável. Irritado com a atitude, Bowie expulsou-o de sua casa e, tempos depois, mandou exorcizar a residência, pois “acreditava que ela havia sido invadida por demônios que os discípulos de Crowley haviam convocado direto do inferno”. (LA)
oZZY, UM cASo cLÍnico É fato que Ozzy Osbourne já tentou estrangular a mulher, degolou um morcego com os dentes e foi expulso do Black Sabbath por ser drogado demais até para os padrões heavy metal da banda. A história de Osbourne, meio apocalítica, meio apoteótica, é contada em detalhes em sua recente autobiografia, I am Ozzy. O ex-frontman do BS seguiu uma carreira solo multiplatinada, influenciou muitos grupos e revelou grandes guitarristas em sua banda de apoio. No entanto, sua maior façanha ainda não foi explicada: estar vivo (mas não necessariamente lúcido) depois de décadas de autoabuso. Ozzy, que já soma surpreendentes 61 anos, quer revelar o mistério antes de acertar as contas com o Diabo. Para isso, contratou uma empresa de sequenciamento e análise para sondar seu DNA biônico, por “módicos” 40 mil dólares. (Thiago Lins)
Adoniran Barbosa (1910-1982) Por Dalcio
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 1 9
Balaio.indd 19
30/07/2010 10:51:47
divulgação
con ti nen te
especial
animação Desenhos que ganham vida Com recente histórico, mas já contabilizando prêmios na área, Pernambuco começa a expandir os horizontes nessa técnica, apesar das dificuldades enfrentadas pelos autores texto Diogo Guedes
poucas pessoas notam, mas o
cinema é uma forma de arte baseada numa ilusão: a de que o que é mostrado na tela se movimenta. A experiência de assistir a um filme pode passar essa impressão, porém, é impossível registrar uma ação como ela ocorre de fato. O que permite essa simulação de movimento no cinema, então, é uma falha de percepção – e que, para os cinéfilos, pode ser um dom – do cérebro humano, chamada pelos cientistas de persistência retiniana. Assim, quando a retina capta uma imagem, continua alimentando o cérebro com ela por mais algumas frações de segundo; e, quando um novo fotograma é apresentado, a mente o sobrepõe em relação ao anterior, interpretando essa sucessão como um movimento. O olho passa a enxergar ação onde, na verdade, só existe fotografia.
co c on nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 220 1
Animaçao_especial.indd 20
30/07/2010 11:07:44
A câmera de filmar torna possível a captação contínua de uma cena a partir de um aparato mecânico: as animações, no entanto, se fazem por um processo bem mais complexo. Por definição, elas precisam ser feitas quadro a quadro, resultando em 24 deles para cada segundo de filme. É um processo que envolve, primeiro, a criação da imobilidade para, depois, convertê-la em ação, e é por isso, justamente, que ele é tão trabalhoso e extenso. Em contrapartida a essa execução extenuante, as animações possuem uma vasta capacidade de criar uma representação original do mundo. Ainda assim, esse tipo de produção é confundido, normalmente, com a ideia dos desenhos animados, um tipo de arte voltada para crianças e que tende a priorizar o traço cartunesco e a narrativa simples. Mas essa é uma restrição que vem
com a capacidade de criar representações do mundo e das ideias, essa arte ganha o interesse também de adultos sendo superada: existem cada vez mais casos de realizações adultas impressionantes – e também artísticas e autorais de uma forma que só os grandes diretores de cinema sabem fazer. Referências não faltam. Desde animações infantis que conquistam o público maduro, como O fantástico Sr. Raposo (2009), de Wes Anderson, e A noiva cadáver (2005), de Tim Burton – esses dois, diretores respeitados de películas tradicionais –, até filmes do circuito alternativo, como o
1
israelense Valsa com Bashir (2008), de Ari Folman. Há indícios, também, de que esse é um nicho de mercado viável. É só ver o caso do filme australiano Mary e Max (2009), de Adam Elliot: a obra foi exibida na programação do festival Animage, em maio deste ano, e teve uma recepção tão elogiosa, que o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, principal referência no Recife para exibição de filmes de arte, colocou-a novamente em cartaz, durante os meses de junho e julho.
tRaBalHo pioneiRo
Pernambuco é um estado com história recente no campo da animação. Alguns dos primeiros trabalhos vieram das mãos de Lula Gonzaga, que, em 1973, produziu o curta Vendo ouvindo, em parceria com Fernando Spencer. Apaixonado pela forma artesanal de animação,
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 1
Animaçao_especial.indd 21
30/07/2010 11:07:52
con especial ti nen te fotos: maíra gamarra
em que cada um dos quadros é feito à mão, Lula também desenvolveu um método de produção de filmes a partir das oficinas que realiza com jovens carentes, no projeto Desenhando culturas. Além disso, ele coordena um Ponto de Cultura, em Igarassu (litoral norte do Estado), voltado à técnica; percorre diversos estados do País formando professores e profissionais; e organiza exibições de animações e documentários. Um dos alunos formados por Lula Gonzaga é Rafael Barradas, sócio da produtora Quadro a Quadro. Ainda antes de obter qualquer conhecimento técnico, Rafael descobriu as propriedades básicas da animação intuitivamente, quando tinha cerca de 10 anos. Passando as páginas de uma revista da Turma da Mônica, ele notou que alguns desenhos formavam uma sequência móvel de imagens: “Quando as páginas caíram
a primeira animação pernambucana veio das mãos de lula Gonzaga e Fernando spencer, em 1973, com o curta Vendo ouvindo umas por cima das outras, eu vi a Mônica se mexer. Foi a partir disso que eu comecei a ‘trabalhar’, fazendo animações com duas páginas em pedaços de papel dobrado até evoluir para os flipbooks, animações feitas em bloquinhos de papel”, conta. A partir da experiência obtida com uma oficina ministrada por Lula, em 1994, Rafael passou a se dedicar mais seriamente à área. Depois de trabalhar em um estúdio de animação, abriu o próprio negócio, mantido com André Rodrigues, Paulo Gomes e Turla Alquete. A produtora Quadro a Quadro existe há três anos e, entre outros, produziu os comerciais da Turma do Fom-Fom, a série de 13 episódios Mingote e o curta A turma de Téo, premiado nos festivais de Triunfo e do Cinema do Parque. O professor e animador Matheus Maciel também teve contato desde jovem com esse tipo de produção.
divulgação
2
3
4
Antes de entrar na graduação em Design da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2004, já havia feito cursos para aprender a produzir animações em 3D. A escolha por esse método, segundo ele, deu-se por não saber desenhar muito bem, um requisito básico das outras técnicas. Em 2007, Matheus produziu seu primeiro, e até agora o único finalizado, curta de animação, Rubra flor. Premiada no Festival de Vídeo de Pernambuco e selecionada para o principal evento nacional do gênero, o Anima Mundi, a obra foi roteirizada, dirigida e animada pelo designer. “Participei completamente de todas as etapas de criação, o que não é o ideal. A solução perfeita é dividir o processo de trabalho por áreas e competências”, explica. Em muitos casos, o interesse pelos filmes de animação vem da vontade de trabalhar simultaneamente com
mais de um processo artístico. Esse foi o caso de Marcos Buccini, professor da graduação em Design da UFPE, em Caruaru (Agreste do Estado). “Sempre gostei de cinema, histórias em quadrinhos e design. Acho que meu interesse por animação vem do fato de ela unir todas essas formas de expressão”, reflete. Em 2002, depois de várias experiências amadoras, participou do prêmio para animações para web do Anima Mundi. Junto com Diego Credidio, produziu, em cerca de um mês, Árvore de dinheiro, um “cordel animado”, com desenhos inspirados em xilogravuras. A obra não só foi selecionada, como ganhou o Prêmio do Júri Popular do festival. Marcos realizou ainda, junto com Plínio Uchôa, A morte do rei de barro (2005), curta em stop motion feito com bonecos de barro, que participou de 38 festivais e recebeu 10 prêmios. Outro trabalho do animador é o
c co o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 2 3
Animaçao_especial.indd 22
30/07/2010 11:07:59
Página anterior 1 o homem planta
Parceria entre Pedro severien e William Paiva, ainda em processo de produção
Nesta página 2 peDRo seVeRien
Para o realizador, as demandas técnicas aproximam animadores e cineastas
3 MÚltiplo marcos Buccini aprecia nos filmes de animação o híbrido de processos artísticos 4 nino Cenário do filme de matheus maciel, a ser lançado em 2010
“Na minha opinião, não existe criação sem pesquisa”, opina. Buccini, atualmente na UFPE, diz notar nos alunos de animação a vontade de se dedicar apenas à execução das técnicas aprendidas. “A prática sem fundamentação teórica é tão sem sentido quanto a teoria sem fim prático”, defende. Além disso, o
a instalação de uma graduação em cinema de animação no estado representa um incremento básico à atividade clipe Você que pediu, da banda Volver, também premiado em mais de uma ocasião. As duas obras foram feitas em parceria com o Núcleo de Animação da Faculdade Barros Melo, na qual Marcos lecionava até ser chamado para montar, em Caruaru, um laboratório de animação para a UFPE.
coM GRaDUaÇÃo
A graduação em Cinema de Animação da Barros Melo, surgida em 2005, trouxe um significativo incremento para a atividade. Primeiro, por oferecer formação profissional para um setor antes composto por autodidatas ou profissionais formados em outros lugares; depois, por ser responsável pela montagem do Bam Studio, que possibilitou a professores e alunos da faculdade a criação de animações, como ocorreu a Marcos Buccini, Leo D., William Paiva, Pedro Severien e Márcio Vieira.
Com mestrado em Cinema em Bristol, na Inglaterra, Pedro Severien foi chamado em 2007 para integrar a graduação da Barros Melo, mesmo sem ser da área de animação. “Eu tinha pouco conhecimento específico, mas isso só me estimulou”, relata. “A partir das minhas pesquisas iniciais fui totalmente envolvido pela técnica, pela estética e pelas possibilidades criativas da animação”. O cineasta produz agora seu primeiro curta animado, O homem planta, codirigido por William Paiva. “Os estudantes e produtores de animação são um pouco diferentes da classe cinematográfica em geral, pelos componentes tecnológicos (a computação gráfica, a programação) e artísticos (o desenho) que a produção envolve”, explica Pedro. Ele afirma que, além do ensino das técnicas de animação, um dos focos da graduação da Barros Melo é a reflexão teórica.
animador afirma que é preciso atentar para a diversidade de conhecimentos utilizados pelos profissionais. “O cinema de animação pede uma formação bastante eclética. Não necessariamente formal, mas multi- e interdisciplinar”, comenta. Ele também acredita que, enquanto a animação em 3D conta com bons profissionais, existe uma defasagem em Pernambuco em relação às técnicas de 2D e stop motion. “A falta de animadores interessados e qualificados é outro gargalo na animação”, afirma. “O que há são muitas pessoas talentosas, mas que, por diversos motivos, não trabalham no dia a dia com a animação. Falta formação profissional”. Para Pedro Severien, a diversidade de técnicas demanda uma atenção especial ao se estruturarem cursos de formação: “Isso exige que os profissionais de animação tenham fluência em áreas híbridas, como as artes plásticas, o
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 3
Animaçao_especial.indd 23
30/07/2010 11:08:02
con especial ti nen te fotos: divulgação
design, a computação e o cinema, para citar apenas algumas”. Outra lacuna, esta em âmbito nacional, é a ausência de cursos de pós-graduação na área: no Brasil, existe apenas um, na PUC do Rio de Janeiro.
VaGas De tRaBalHo
A principal dificuldade, no entanto, afirmam os animadores, é a falta de um mercado dinâmico para os profissionais e suas produções. “Em Pernambuco, é muito difícil viver exclusivamente de animação. Geralmente, a pessoa tem outras ocupações, como ilustração, design, publicidade”, observa Marcos Buccini. Rafael Barradas, no entanto, crê que é possível “sobreviver” como animador, mas ressalta que a demanda por esse tipo de função é pequena. “Além da escassez de vagas de trabalho, a remuneração é, na maioria das vezes, inadequada”, expõe Marcos. Principal problema também apontado
5
embora haja o crescimento da produção artística, ainda se carece de locais para exibição e discussão das obras por Matheus Maciel: “Ainda não consegui me sustentar apenas com animação”. Uma alternativa para quem quer contornar a ainda baixa demanda da área é dedicar-se à animação para video games, setor mais sólido no Estado. Este foi o caminho trilhado pelo estúdio Quadro a Quadro, de Rafael Barradas. Mas há quem enxergue o desenvolvimento da animação local. “Como o cinema, a animação pernambucana vem crescendo, fruto de conexões muito específicas daqui. Existe já uma cultura ligada à tecnologia da animação, que, de uns tempos para cá, vem se conectando também com as expressões artísticas”, afirma Pedro Severien, cuja opinião encontra eco na de Marcos Buccini, para quem a animação é uma área que está em alta. “Não só pelos bons resultados em bilheterias de cinema e pela boa audiência na TV, mas
6
7
5 coletiVo o jumento santo (2007) surgiu do empenho de vários profissionais 6-7 início story board de rubra flor, do animador matheus maciel
também por ser uma ferramenta importante na educação, na cultura e no entretenimento”. Para ele, porém, o mercado em Pernambuco ainda engatinha nas oportunidades, se comparado aos de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Outro ponto delicado é a falta de locais para exibição dessas obras. “Existe um público ávido para consumir animação no Estado”, argumenta Marcos, definindo a dificuldade de acesso a elas como o principal impedimento para o aumento da audiência. A situação está melhorando: já existem dois festivais específicos, o Animage e a Mostra do Dia Internacional da Animação. Os eventos dedicados ao cinema, como um todo, também abrem espaço à modalidade, como ocorre no CinePE, no Festival de Triunfo e na Janela Internacional de Cinema. Para Marcos, no entanto, ainda mais pode ser feito. Ele cita como exemplo o Cine Anima, coordenado por Lula Gonzaga, que leva filmes de todo o Nordeste para serem exibidos em comunidades carentes. Iniciativas como essa são mantidas a partir de financiamento público. A ideia de Lula Gonzaga saiu do papel porque foi aprovada como Ponto de Cultura itinerante – e conseguir
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 4
Animaçao_especial.indd 24
30/07/2010 11:08:05
8 VOLTAGE Dirigido por William Paiva, o curta-metragem, de 2009, foi exibido em festivais de animação nacionais e internacionais, conquistando diversos prêmios
8
financiamento para os projetos tem sido a principal tarefa dos diretores de animação. O edital de Audiovisual do Funcultura deste ano, por exemplo, selecionou quatro trabalhos de animação – dois curtas, uma série televisiva e um programa de formação – dentre as 61 iniciativas apoiadas, reservando cerca de 225 mil reais dos seus 6 milhões para essas obras. “Acredito que faltem principalmente mais leis de incentivo voltadas para a animação e para os festivais do gênero. Mas as coisas têm mudado um pouco. Por exemplo, em 2008, surgiu o AnimaTV, Programa Nacional de Desenvolvimento da Animação Brasileira, primeira iniciativa do gênero, que tem o objetivo de patrocinar a produção de séries animadas para o público infantojuvenil”, comenta Matheus. Marcos considera que o fato de as obras concorrerem com os filmes tradicionais nos mesmos editais é injusto: “A animação ainda é vista como ‘coisa de criança’ por muitas pessoas que trabalham com cinema. Outros tratam a animação como uma curiosidade tecnológica, bonitinha, curiosa, mas que não possui valor artístico. Isso faz com que seja uma tarefa árdua concorrer com projetos de ficção e documentário”.
PARA nÃo DeSiStiR
Uma das obras aprovadas no Funcultura é O palhaço do coqueiro, dirigida por Rafael Barradas. Ainda em
fase de planejamento, a produção vai contar com uma equipe de sete pessoas para narrar a trajetória de um palhaço que só consegue achar um único ser que ria dele: a Lua. Segundo Rafael, trata-se de “um curta de suspense, com pitadas de tragicomédia”, e deve começar a ser feito em cerca de dois meses. Além disso, a Quadro a Quadro organiza a segunda temporada da série Mingote. Já Pedro Severien, além de se dedicar – também com recursos governamentais – a O homem planta, prepara o seu primeiro longametragem em formato tradicional, Todas as cores da noite. Depois de se afastar da função de coordenador do curso para conseguir realizar seus projetos cinematográficos, o diretor ainda trabalha em outra obra de animação, A loja de répteis, em fase de captação. Os produtores que buscam um maior aprofundamento no âmbito acadêmico, no entanto, não veem vantagens em permanecer no mercado incipiente de Pernambuco, dependente das raras oportunidades dos editais. Esse é o caso de Matheus Maciel, que pretende abandonar o emprego de professor. “Estou saindo da Barros Melo neste semestre justamente por querer trabalhar com animação e fazer um mestrado direcionado à área”, revela. Seu destino é o Sudeste, que, para os
animadores, pode ser considerada a “terra das oportunidades”. Enquanto isso, Marcos Buccini procura concluir o processo de montagem do laboratório de animação da UFPE. Além disso, o diretor mantém uma pesquisa sobre Teoria da Animação e participa, como codiretor e produtor, do curta Salu e o cavalo-marinho, de Cecília da Fonte. “Um outro projeto, no qual estou envolvido e que deve ser um divisor de águas na cena da animação em Pernambuco, é a criação de um polo de produção cultural”, conta. Segundo ele, essa ideia, ainda em fase inicial, busca estabelecer uma produção industrial no setor de cultura, incentivando a formação e disponibilizando equipamentos.
Produtores que buscam aprofundamento acadêmico não veem vantagens no mercado incipiente de Pernambuco A defesa de Marcos, no entanto, é a da necessidade de se enfrentar os problemas da cena local: falta de profissionais qualificados, baixa remuneração, dificuldade de se achar locais de exibição, altos custos. Ainda assim, ele aponta que os diretores podem e devem produzir obras cada vez mais ambiciosas: “É possível, sim, desenvolver trabalhos autorais. A animação é uma forma artística em que muitas vezes o autor pode trabalhar sozinho, fazendo todas as etapas da produção”. E apresenta seu diagnóstico otimista: “O que eu vejo é um grande potencial de transformar Pernambuco numa referência da animação no Brasil, assim como acontece com o cinema tradicional do Estado”.
@ continenteonline Assista a alguns dos filmes de animação citados na reportagem no site da Continente.
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 5
Animaçao_especial.indd 25
23/07/2010 14:34:21
con especial ti nen te
DIA ESTRELADO Filme manuseado quadro a quadro
maíra gamarra
Em seu primeiro curta de animação, Nara Normande explora a minuciosa técnica de stop motion, em que cada cena é construída pelo realizador com as mãos
Parece um segredo. No terceiro andar de um casarão no Recife Antigo, depois de passar por um restaurante e por um ateliê, é possível encontrar um mundo em miniatura, manuseado pelas mãos proporcionalmente grandes de Nara Normande. As portas e janelas são vedadas, como que para provar que realmente existe um mistério ali dentro. De fato, há: Nara, desde 2008, prepara nesse espaço o seu primeiro curta-metragem, Dia estrelado, cuja produção lenta gera curiosidade entre realizadores do setor. A expectativa em torno do filme não decorre do fato de Nara ser uma diretora de animações famosas, mas porque basta uma olhada no material espalhado pelo estúdio para se entender que se está diante de uma realização ambiciosa. O filme está sendo criado a partir da lenta e trabalhosa técnica de stop motion, em que é preciso fotografar cada quadro da obra. Os personagens são feitos de massa de modelar, a fumaça é feita de algodão, o cenário leva papel jornal, papel machê, ferro, poliuretano e cola, o céu é inspirado nos quadros de Van Gogh – e, sozinho, demorou três meses para ficar pronto. A vontade dela de explorar os campos da animação data da época de escola, quando teve a primeira experiência: um vídeo com um boneco correndo e sangrando, para uma aula de história. Depois, vieram as tentativas de filmes, que são renegadas pela animadora. “Antes, eu não sabia muito sobre as técnicas, nem sabia quando uma ideia era realmente boa”, diz. Animar, para Nara, é ter permissão para transformar cada pequena etapa do filme numa
experiência artística. “Animação, especialmente stop motion, é trabalhar arte o tempo inteiro”, afirma. Para a diretora, a maior dificuldade é desenhar: “Tudo que eu penso, tenho dificuldade de passar para o papel. Normalmente, eu vou logo modelar um personagem”. Por isso, ela chamou o ilustrador Victor Zalma para compor o story board do filme. Antes de começar a realizar Dia estrelado, em 2007, Nara viajou a São Paulo para aprimorar sua técnica. Na cidade, além de trabalhar na
cenário tem inspiração nas pinturas de Van Gogh e a trama se passa no semiárido nordestino produção do festival Anima Mundi, teve a oportunidade de participar do curso de animação ministrado por Peter Peake, diretor indicado ao Oscar por Humdrum, e integrante da produtora que fez Fuga das galinhas (2000). Nesse período, também teve aulas com Fábio Yamaji, um dos principais nomes do Brasil na área, que chegou a vir ao Recife para auxiliá-la no filme.
AtoR tÍMiDo
Dia estrelado se passa no semiárido nordestino, mas Nara não gosta de revelar muito mais do que isso. “Todas as vezes que eu descrevo a história, ela perde muita força”, explica, como se reclamando da
9
PRoceSSo
Os personagens do filme de Normande são feitos de massa de modelar, a fumaça é de algodão, o cenário leva papel jornal, papel machê, ferro, poliuretano e cola
insuficiência das palavras. O filme tem sete personagens, cinco deles humanos, incluindo o protagonista, e dois animais: um pássaro e “um bicho sem nome, um tipo de inseto”. “Na obra, tem muita coisa pessoal. Primeiramente, para animar, você tem que entrar no espírito do personagem”, conta. “Dizem que o
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 6
Animaçao_especial.indd 26
23/07/2010 14:34:39
9
animador é um ator tímido”. E, mesmo que tenha contado com a ajuda de animadores, auxiliares de animação, fotógrafos, entre outros, é difícil não notar que Nara colocou um pedaço de si em cada parte do processo de criação desse pequeno mundo. “Fazer animação stop motion é um trabalho muito solitário. Os animadores que me ajudam por aqui têm hora para sair; eu fico quase o tempo todo só”, descreve. Nas previsões de Nara, Dia estrelado deve ficar pronto no próximo outubro. Quando finalizado, os 20 minutos
de duração da obra significarão mais de 28 mil cliques fotográficos. Apesar da quantidade de dias, semanas e meses dispendidos dentro do estúdio isolado, a diretora não tem nenhum apego ao material que manuseia diariamente. E nem lamenta a inevitável necessidade de se desfazer dele depois da conclusão. “Não, nem vou ficar triste quando concluir. Na verdade, eu não vejo a hora de terminar e destruir tudo”, diz, revelando o desejo catártico de apagar os vestígios materiais do filme.
“Eu aprovei o projeto com 20 anos. Minhas ideias mudaram muito, o roteiro mudou muito nesse tempo. O final, por exemplo, está em aberto”, analisa. Além do envolvimento emocional e profissional, Nara também investiu seu dinheiro na realização da animação, mesmo com apoio do Sistema de Incentivo à Cultura. O resultado não podia ser outro, que não uma exata obra de formação: “Fazer um filme assim foi a melhor universidade possível”. (Dg)
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 7
Animaçao_especial.indd 27
23/07/2010 14:34:53
Tradição Tradição
con ti nen te#44
1
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 9 8
tradiçao.indd 28
23/07/2010 14:50:21
ACERVO Um precioso museu de tudo
Liêdo Maranhão mantém às próprias custas, em sua residência em Olinda, um conjunto de cerca de 10 mil objetos do fabulário popular, que reuniu nos últimos 40 anos e gostaria de ver expostos em uma Casa da Memória Popular TEXTO Bruno Albertim FOTOs Maíra Gamarra
Final dos anos 1950, depois de um
estágio como odontólogo e algumas escapadas mais interessado em lábios que em dentes por Paris e outras cidades da Europa, Liêdo Maranhão retorna ao Recife vitimado por certo surto de egolatria. Impressionado com espaços dedicados a nomes como Victor Hugo e Goethe, sonha em ver algum casarão da velha Mauriceia adornado com uma placa exibindo as inscrições “Memorial Liêdo Maranhão”. Aos 85 anos, já livre da típica pretensão da juventude e acomodado no título de mestre – ainda que o status não lhe renda estadia permanente em veludo azul –, ele não abandonou o projeto. “Aquilo de botar um lugar com meu nome era frescura minha”, diverte-se, exímio e notório na arte veloz da picardia. Mais de 40 anos e 10 mil objetos depois, os planos de Liêdo são muito mais sóbrios, menos ególatras e, nem por isso, mais simplistas. Quer doar tudo o que reuniu em quase meio século como colecionador patológico em uma tão possível quanto desejada Casa da Memória Popular. Dentista de formação, pernambucano por batismo e vocação, poeta, pintor, escultor, fotógrafo e antropólogo bissexto, o escritor é daqueles que nos dão sempre certo trabalho
quando tentamos encaixá-lo num rótulo. Não é um espécime do pesquisador caro às elites intelectuais, interessadas num universo popular confortavelmente traduzido. Filtro não é coisa para Liêdo. Dono de uma obra marcada pela oralidade, capaz de nos transportar para praças, mercados e outras arenas privilegiadas da sociabilidade nesta porção cabocla do mundo, Liêdo é uma espécie de – se não o maior – demiurgo da grande e fértil entidade que chamamos de povão. “Nenhum outro intelectual, que se saiba, se aproximou tanto do popular e do populário”, definiu-o o escritor Marcus Accioly. Seu acervo é tão diverso quanto ele próprio. Compreende uma das mais importantes coleções de folhetos de cordel do País, e inclui livretos, panfletos, cartazes, revistas, peças de publicidade, remédios e raríssimos livros de medicina popular e cozinha. Ele possui, por exemplo, um original de O cozinheiro nacional, primeiro livro gastronômico publicado em português, de 1885. Fontes privilegiadas para a reconstrução da memória das relações sociais não só no Recife, mas no Brasil do século 20. Nas esferas pública e privada – a vida, afinal, e como bem
sabe a antropologia contemporânea, é feita de suas miudezas. Os cerca de 10 mil objetos são mantidos com zelo e esforço num cômodo permanentemente refrigerado, de modo a preserválos da umidade e dos fungos da orla de Olinda, onde mora. Liêdo quer compartilhar com o povo a coleção, bem como informações às quais apenas um pequeno grupo de privilegiados interessados costuma ter acesso. “Tem muito chupacabra que vem aqui em casa, pega minhas coisas, usa no cinema ou na TV e nem me dá um crédito. Guel Arraes, mesmo, já chupou muito”, comenta, gargalhando. “Gostaria muito de ver o prédio histórico do antigo Diario de Pernambuco transformado num museu do ferro do Recife”, diz ele, disposto a doar uma dezena de esculturas de ferro de grandes proporções. Preocupado com o destino de antigos portões, grades e outros objetos da memória urbanística do Recife, ele passou, entre os 50 e 60 anos, a comprar quase tudo o que via. “Peças belíssimas da fundição recifense estavam sendo derretidas. Tinha que salvar de alguma maneira”. Ferrolhos, dobradiças ornamentais e placas compõem esse extrato arquitetônico do Recife dos
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 2 9
tradiçao.indd 29
23/07/2010 14:50:32
Página anterior 1 RecoRte
LiêdoM aranhão evidencia interesses pelo prosaico, pelo popular e pelo escracho
Nestas páginas 2 SAcAnÓLoGo
Consta do acervo do pesquisador uma série de fotografias e postais eróticos
3 FoLHeto Peçasd e publicidade antigas fazem parte dos impressos colecionados
2
con ti nen te
4 SUcAtA Nas prateleiras do “museu” de Liêdo estão expostos objetos do cotidiano vertidos em arte
Tradição
5 cAtALoGADoS A casa também acabou se tornando um museu informal e um ateliê
2
3
4
velhos sobrados, substituído hoje pela moderna arquitetura.
soldadas, propondo sistemas de relações perenes opostas à morte pela fragmentação, pela dispersão no nosso vazio brasileiro”, discorreu sobre ele, num ensaio, João Câmara. Catalogando histórias de camelôs, prostitutas, vendedores de remédios populares, cordelistas, lambelambes e outros tipos outrora mais comuns nos arredores do Mercado de São José, sua grande universidade em vida, Liêdo é também “sacanólogo”. “O povo gosta mesmo é de safadeza”, costuma dizer o
eScULtoR FoRJADo
A experiência como artista num coletivo, ao lado de gente como João Câmara e Vicente do Rego Monteiro, acabou por transformálo em escultor diante da sucata que se acumulava no quintal. De quase dois metros, as esculturas conferem uma dimensão totêmica a símbolos da cultura popular pernambucana. “As esculturas de Liêdo (...) são fixas,
autor de livros como Conselhos, comidas e remédios para levantar as forças do homem. Prateleiras preciosas de sua coleção contam muito da vida entre paredes (e extraconjugal) do Recife do pós-guerra. Obtidos nos velhos sebos da cidade, onde ele é sempre tratado como doutor Liêdo, álbuns reúnem fotografias originais de orgias cometidas em rendez-vous históricos como o Chanteclair, no condado da prostituição em que damas da noite, como a lendária
c co on nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 330 1
tradiçao.indd 30
23/07/2010 14:50:58
5
Maria Magra, tinham a estima de alguns dos responsáveis pela política de Vargas no Recife. “Quase todos os homens se deixavam fotografar apenas mascarados”, ri ele, agora dedicado a um livro sobre o meretrício do Cais do Porto. “Ninguém até hoje fez justiça à importância da zona para a memória do Recife”, diz ele, amigo, ou mais que amigo, de prostitutas: é presença contumaz e testemunha ocular. “Rosselini foi para a zona a conselho de Gilberto Freyre. Ele pediu para não ter a identidade revelada, para ficar anônimo, como uma pessoa comum. Chegou uma mulher e não quis ficar com ele. Ele, casado com Ingrid Bergman, levou o fora de uma puta do Recife”, gargalha Liêdo. Estratégicas para os americanos, Recife e Natal receberam milhares de homens que nunca chegaram efetivamente a ir à guerra. Em vez disso, fizeram
o pesquisador vem coletando objetos em sebos, no entorno de mercados públicos e em acervos da cultura popular florescer como nunca a economia do sexo nas zonas portuárias. “O Gambrinus, o Texa’s Bar faturavam alto”, diz o pesquisador, dono de folhetos publicitários da época, nos quais, pela primeira vez, os bailes de carnaval ofereciam “finas bebidas importadas”. Liêdo diz ter herdado a vocação de colecionador do avô Methodio Maranhão, dono da Usina Matary, de Nazaré da Mata, e de uma lustrada biblioteca de 14 mil livros. “Ele era usineiro e intelectual, o que era uma coisa raríssima.
Tinha os primeiros livros de arte da Europa. E a gente ia lá, na biblioteca, ver aqueles nus clássicos de Ticiano. E chamava aquilo de ‘O primeiro dicionário de punheta’”, diverte-se. “Meu avô era muito irreverente, muito chato. Era ateu e eu herdei isso dele também”, diz o também proprietário de uma inocentíssima coleção de mais de mil santinhos e livretos de primeira comunhão, alguns em madrepérola. Em sua casa, está ainda o anuário da quinta série do Marista de 1942. Entre os alunos, os irmãos Ricardo e Francisco Brennand. “Francisco era muito ruim de matemática”, diz, ato contínuo com sua tradicional e rápida gargalhada. Com patrocínio da Petrobras e execução de alunos de biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco, todo o acervo de Liêdo já foi catalogado. Só não se sabe ainda quando – e se – encontrará abrigo na Casa da Memória Popular.
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 1
tradiçao.indd 31
23/07/2010 14:51:05
con ti nen te#44
Viagem
1
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 2 3
viagem.indd 32
23/07/2010 14:55:11
CUSCO O marco zero da civilização Localizada a 3.500 metros de altitude, rica em aspectos naturais e históricos, a capital do antigo Império Inca conquista visitantes que vão do puro diletante ao pesquisador obstinado texto e fotos Augusto Pessoa
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 3
viagem.indd 33
23/07/2010 14:55:29
con ti nen te#44
Viagem
2
com a missão de fundar uma cidade no como a mais antiga cidade habitada do centro do mundo, um casal foi enviado dos céus às remotas regiões dos Andes peruanos. Depois de uma jornada repleta de aventuras, os irmãos Manco Cápac e Mama Ocllo chegaram a um belo vale cercado de montanhas nevadas. Ali, após enterrar seu bastão de ouro a mais de três mil metros de altitude, Cápac teria dado origem ao famoso Império Inca, a civilização que durante séculos dominou boa parte da América e que ainda hoje intriga pesquisadores e atrai viajantes. Da lenda, uma entre tantas que buscam explicar as origens dos “filhos do sol”, teria surgido no século 12 a cidade de Cusco, a capital do império, distante 1.100 quilômetros de Lima, e apontada por alguns arqueólogos
continente. É hoje o ponto de partida dos roteiros que atravessam a Cordilheira dos Andes – segunda maior cadeia de montanhas do planeta – e revela uma América do Sul fantástica. Espécie de epicentro arqueológico das Américas, devido às muitas pesquisas desenvolvidas na região, a Cusco atual é uma cidade vibrantemente colorida que agrega interesses nos campos da história, da antropologia, da cultura, do turismo e da ecologia. Seu cenário natural e construído é de tirar o fôlego até mesmo do viajante mais experiente. Fôlego, a propósito, é algo raro em tão altas paisagens. Erguida a exatos 3.500 metros acima do nível do mar, Cusco é cortada por dezenas de ladeiras
Riquezas natural e construída caracterizam a região de cusco, que atrai interesse de estudiosos e turistas coloniais, e o ar, extremamente rarefeito, avisa que a cautela por ali é a melhor atitude. O soroche, ou “mal da altitude”, é uma reação natural que atinge principalmente quem chega de avião, vindo de regiões mais baixas. Com o organismo aclimatado, é hora de percorrer as ruas centenárias e desvendar os mistérios da cidade,
c co o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 4 5
viagem.indd 34
23/07/2010 14:55:38
Página anterior 1 MitoLoGiA
Os irmãos Manco Cápac e Mama Ocllo, retratados no painel, foram enviados aos Andes peruanos para fundar o Império Inca
Nestas páginas 2 AÉReA
Cusco está situada no sudeste do Vale Sagrado dos Incas, distante 1.100 quilômetros de Lima
3
3
Fonte
4
coMÉRcio
A Praça das Armas fica no centro antigo de Cusco, sendo rodeada de casario antigo e igrejas espanholas A maioria da população vive do turismo, comercializando artesanato, arte e alimentos nas ruas, lojas e mercados públicos
4
tombada pela Unesco, desde 1983, como Patrimônio Cultural da Humanidade. Talvez o mais difícil seja descobrir por onde começar, tamanha é a variedade de roteiros oferecidos. Todos, no entanto, terminam na cidadela de Machu Pichu, escolhida como uma das novas sete maravilhas do mundo, e destino de aventureiros que chegam diariamente a Cusco de avião, ônibus ou trem. Antes de seguir para lá, o lugar para onde os que chegam convergem é a Praça das Armas, centro antigo da cidade, com seus arcos coloniais e imponentes igrejas espanholas. A Catedral de Nossa Senhora da Assunção, construída sobre os alicerces do palácio do imperador inca Viracocha no século 15, possui
um altar de granito no qual um painel retrata o terremoto de 1650, um dos mais intensos já ocorridos na região, que destruiu boa parte da cidade. Do outro lado da praça, dominando o horizonte, está a Igreja da Companhia de Jesus, erguida em 1570 e reconstruída após o terremoto. Usados como mão de obra nas construções europeias durante a conquista, os indígenas se valeram da arte para eternizar seus protestos contra a invasão. No coro dessa catedral, por exemplo, os entalhes nos assentos remetem à Pachamama, a mãe-natureza para os incas. Na Santa Ceia, ao lado do altar, Judas Iscariotes é representado com a cara do conquistador Francisco Pizarro, que,
ao lado dos demais apóstolos, saboreia um cuy, espécie de porquinho-daíndia bastante apreciado pelos incas.
De PURo oURo
Imagens de ouro maciço, repletas de pedras preciosas, e grandes obras de arte em prata são comuns nos templos da cidade. Tal riqueza, no entanto, nem se aproxima da opulência encontrada pelos conquistadores em 1532, quando 150 espanhóis montados em cavalos e armados com espingardas deram início a uma invasão que levaria à derrocada da civilização inca. No templo de Koricancha, que significa “cerca de ouro”, os invasores encontraram paredes internas completamente revestidas com ouro e se espantaram com um imenso
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 5
viagem.indd 35
23/07/2010 14:55:54
con ti nen te#44 5
6
Viagem
5
RUÍnA
6
nAtUReZA
7
conteMPLAÇÃo
8
MAcHU PicHU
Machu Pichu foi erguida em local de difícil acesso, ao qual se chega contornando-se as montanhas por antigas estradas imperiais, passando por sítios arqueológicos Apreciadores de viagens de aventura e turismo ecológico têm na região um destino desafiador. É preciso se preparar para enfrentar o ar rarefeito O Vale Sagrado dos Incas era um lugar desconhecido até ser apresentado ao mundo em 1911, pelo explorador norte-americano Hiram Binghan
Escolhido como uma das novas sete maravilhas do mundo, o lugar é alvo de aventureiros que chegam diariamente a Cusco de avião, ônibus ou trem
7
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 6 7
viagem.indd 36
23/07/2010 14:56:12
8
jardim onde absolutamente tudo, das plantas até o menor dos insetos, havia sido reproduzido no metal. Relatam as crônicas da época que centenas de navios carregados de ouro e prata teriam deixado o litoral peruano com destino à Europa. Sobre o imponente muro do antigo templo do sol, os espanhóis ergueram o Convento de Santo Domingo. Atualmente, é possível visitar salas incas mantidas dentro do complexo de Koricancha, que dividem o espaço com a estrutura colonial. Ainda hoje, as construções que sobreviveram à destruição espanhola impressionam visitantes. A mais próxima de Cusco com essas características é a fortaleza de Saqsaywaman, a que se chega em 40 minutos de caminhada. Sua estrutura, caracterizada pela sequência de três muralhas em formato de zigue-zague, segundo pesquisadores, teria custado quase um século de trabalho sob as
ordens do Imperador Pachacutec, tendo-se iniciado na década de 1440. A cada ano, durante o mês de junho, ocorre em Saqsaywaman a Festa do Sol, realizada desde a época dos incas em comemoração ao solstício de inverno. Bem perto dali, nas ruínas de Tambomachay, é possível apreciar mais um exemplo da forte ligação da arquitetura inca com a natureza. Conhecido como “banho do inca”, o lugar servia como templo cerimonial em devoção à água e local sagrado de purificação física e espiritual.
FoRMiGUeiRo De tURiStAS
Calcula-se que mais de um milhão de turistas cheguem a Cusco a cada ano, tomando as ruas pavimentadas com pedras extraídas dos antigos templos incas. Na mais agitada delas, a viela Hatunrumiyoc, encontram-se os antigos alicerces dos palácios e se amontoam dezenas de galerias de arte e artesanato
cusquenhos. Um pouco mais acima está San Blas, mais conhecido como o bairro dos artesãos. Peças em madeira, prata, cerâmica e tramas de tecidos coloridos são os produtos mais encontrados. Iniciado no século 16, o movimento da arte de Cusco – que mesclava a iconografia indígena com a espanhola – espalhou-se pela América do Sul e, já no século 18, influenciava artistas em praticamente todo o continente. Há as pinturas originais a óleo que retratam especialmente cenas religiosas e personagens atormentados, encontradas nos museus do centro histórico e nas paredes dos principais templos católicos. Pelas calçadas da cidade é comum encontrar, em meio ao formigueiro de turistas, o hospitaleiro povo andino. Identificados facilmente pelas feições indígenas e a tradicional e colorida vestimenta, os nativos passam o dia mascando folhas de coca e oferecendo produtos aos visitantes. O assédio é
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 7
viagem.indd 37
23/07/2010 14:56:22
con ti nen te#44
Viagem
9
tanto, que a administração local inibe a venda de artesanato na parte interna da Praça das Armas, na intenção de evitar que o local se transforme numa grande feira. Mas basta atravessar um dos arcos que separam a praça das ruas e os mercados se multiplicam. No mais tradicional deles, o Mercado de San Pedro, é possível encontrar desde os famosos casacos feitos com os fios de lhama até as barracas dos xamãs e sua infinidade de receitas medicinais. O destaque ali são os inúmeros produtos agrícolas provenientes do Vale Sagrado dos Incas, onde se produz praticamente tudo que é comercializado na cidade.
10
VALe SAGRADo
É no Vale Sagrado que começa o caminho que leva a Machu Pichu. Erguida num local de dificílimo acesso, ela é prova da habilidade dos engenheiros e arquitetos incas. Não existe um consenso entre os pesquisadores sobre quando a cidade teria sido construída, o que contribui para o clima de mistério que envolve o lugar. O melhor caminho para se chegar à cidade é a trilha inca, um trekking de três a cinco dias pelas montanhas, passando por antigas estradas imperiais e por dezenas de sítios arqueológicos. As agências locais oferecem toda a estrutura, a exemplo de guias, barracas de camping e carregadores. Para quem não possui tamanha disposição, a opção é o trem que parte de Cusco e atravessa todo o Vale
Sagrado. Considerada uma das mais bonitas linhas ferroviárias do mundo, a rota leva o visitante até o povoado de Águas Calientes, localizado no sopé da montanha, onde estão Machu Pichu e o ponto final da linha férrea, que serpenteia por uma região cercada de picos nevados e natureza intocada. Como praticamente tudo que cerca essa civilização, diversas lendas dão conta do real sentido da construção de Machu Pichu. Se, para os místicos, ela teria sido um tipo de templo sagrado para rituais em devoção ao Sol, para alguns historiadores, foi um enorme laboratório a céu aberto, onde se realizavam experiências nos mais diversos campos da ciência, da astronomia à agricultura, da
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 9 8
viagem.indd 38
23/07/2010 14:56:38
engenharia à medicina. Desconhecida do mundo durante séculos, a cidade só foi descoberta e revelada ao mundo em 1911, pelo explorador norte-americano Hiram Binghan, que perambulava pela região há alguns anos na busca de Vilcabamba, o pretenso último refúgio inca após a invasão dos espanhóis. Sem sinais de destruição ou fogo, descartouse a teoria de que a cidade teria servido como abrigo durante a fuga. Acredita-se que a localização geográfica e a relação das montanhas dentro da cosmologia inca tenham sido os pontos principais para a escolha do local onde foi erguida Machu Pichu. Com templos finamente trabalhados e uma arquitetura que acompanha o relevo da montanha, conferindo uma incrível leveza aos
o trajeto de trem que leva a Machu Pichu é considerado um dos mais bonitos do mundo, cercado de natureza intocada pesados blocos de granito, Machu Pichu emana silêncio e grandiosa força. Extasiados depois de um dia de contemplação, os visitantes embarcam no trem de volta à Cusco. Todos são obrigados a deixar as ruínas às 17 horas, quando, munidos de apitos, os fiscais avisam que o sonho chegou ao fim. Para quem quiser alongar a visita, existem
009
AnDinoS
0010
GAStRonoMiA
Identificados pelas feições indígenas e pela indumentária tradicional, os nativos dão um colorido peculiar a Cusco Os bares, cafés e restaurantes oferecem desde a culinária internacional até as tradicionais iguarias peruanas
duas opções: ou se hospedar no único hotel construído ao lado das ruínas, com diárias de um cinco estrelas, ou descer até o povoado de Águas Calientes e subir mais uma vez a montanha no dia seguinte. Micro-ônibus oficiais fazem o transporte dos turistas até a cidadela. A viagem de trem de volta a Cusco dura pouco mais de três horas e atravessa alguns dos mais belos vilarejos da região. Em Cusco, depois de apreciar a mais importante construção do Império Inca, é hora de se divertir nas ruas da capital, em que bares e restaurantes oferecem desde a culinária internacional até as tradicionais iguarias peruanas, como a truta pescada nos rios gelados do vale ou o famoso cuy, servido com batatas, que é a grande atração gastronômica da região. Bares e cafés fazem a fama da badalada vida noturna da cidade, que, movida pelo turismo, parece viver um eterno feriado. Unindo natureza encantadora, excelente estrutura turística e um legado histórico que remete às origens da cultura sul-americana, Cusco é um destino de viagem que transcende o conceito comum. Além dos historiadores e dos aventureiros, místicos do mundo inteiro peregrinam até a cidade e percorrem os lugares sagrados, a exemplo do que ocorria na época em que centenas de rituais mágicos em devoção aos fenômenos naturais faziam dos incas o mais esotérico dos povos andinos. Para muitos, a passagem por lugares tão marcados pela cultura e pela espiritualidade é uma oportunidade para outro tipo de viagem, a interior. Apesar da destruição decorrida da conquista, a herança cultural da civilização inca deixou uma marca que vai muito além das impressionantes estruturas de pedra. Seu respeito à natureza e seu forte senso coletivo ainda hoje inspiram a sociedade, e servem como guia para o povo peruano, que vê, na bandeira pintada nas cores do arco-íris, um inesquecível sinal de esperança.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 3 9
viagem.indd 39
23/07/2010 14:56:44
karina freitas
con ti nen te
Hist贸ria co con nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 440 1
Historia.indd 40
23/07/2010 14:58:52
RECIFE A cidade pelos olhos de Nabuco
Exposição que permanece em cartaz de agosto a outubro, no Museu do Estado de Pernambuco, reúne imagens da capital, quando ainda habitada pelo intelectual abolicionista texto Danielle Romani
o Recife do século 21, marcado pelo crescimento desordenado e por arranha-céus que se amontoam pelas ruas e avenidas, é o reverso da pacata cidade do século 19, adornada por casarões e sobrados, arcos nas pontes, quintais e amplos pátios. Mas um encontro entre esses dois períodos está agendado: acontece a partir do dia 17 de agosto, data em que o Museu do Estado de Pernambuco (Mepe) abre suas portas para a exposição O Recife de Joaquim Nabuco. Durante a mostra, que ficará em cartaz até 31 de outubro, os habitantes da atual metrópole poderão contemplar figurações da cidade oitocentista em que o líder abolicionista, diplomata, jurista, político e jornalista nasceu e protagonizou momentos decisivos da história nacional. As feições daquele Recife ganham contornos com a curadoria de Helena Severo, que, em parceria com o arquiteto Chicô Gouvêa, selecionou fachadas e cenários da antiga cidade, em especial daqueles locais frequentados por Nabuco e seus companheiros. “A ideia é mostrar Recife através dos olhos dele. O visitante vai percorrer a exposição a partir desta perspectiva: onde ele nasceu, andou, lutou, do começo até o fim da sua vida”, explica Helena
A mostra, instalada no casarão que deu origem ao Museu, um palacete do século 19, terá iconografia original do período Severo, que também foi responsável pela curadoria de Joaquim Nabuco, brasileiro, cidadão do mundo. De acordo com o planejamento da curadoria, a mostra está dividida em quatro módulos. Os primeiros anos abrange os períodos de 1849 a 1857, quando Nabuco era criança, e de 1869 a 1871, época em que estudava na Faculdade de Direito. No segundo módulo, No calor da luta, serão mostrados os anos em que brigou pela promulgação da Lei Áurea, e de sua carreira parlamentar. O terceiro bloco, O olhar distante, registra quando, já velho e doente, da cabine de um navio, Nabuco avistou o Recife pela última vez. O último módulo, Uma casa pernambucana, não tem ligação direta com o intelectual, mas com sua época, mostrando a réplica de uma residência utilizada pelos contemporâneos de Nabuco. “Todo
o mobiliário e adereços são originais do século 19”, explica Helena. Um dos atrativos da montagem é a instalação que retrata o Arco da Conceição, antiga construção que ornava a ponte Maurício de Nassau, na entrada para o Bairro do Recife, e que por motivos desconhecidos foi demolido. A exposição também reproduz fachadas de localidades marcantes na vida do intelectual, como as da rua do Imperador, da praça da Faculdade de Direito e do Teatro de Santa Isabel. A mostra está instalada no casarão que deu origem ao Museu do Estado, um antigo palacete do século 19. “O acervo exposto pertence ao Museu do Estado e à Fundação Joaquim Nabuco; nenhuma peça veio de fora”, explica Margot Monteiro, diretora do Mepe, que promove a exposição em parceria com a Fundarpe, a Fundação Joaquim Nabuco e a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), com patrocínio da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
PeSQUiSA HiStÓRicA
A exposição, por meio dessa “topografia sentimental”, pretende aproximar o visitante do homem público e histórico que hoje é Joaquim Nabuco. O mérito desse “recorte” se
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 1
Historia.indd 41
30/07/2010 11:05:01
acervo museu do estado de pernambuco/reprodução breno laprovitera
con ti nen te
História
deve, principalmente, ao trabalho do historiador Humberto França, que, nos últimos anos, vem se dedicando a rastrear episódios vividos pelo abolicionista na cidade. Autor de ensaios e livros sobre Nabuco, o historiador divide as passagens dele pelo Recife em quatro momentos. O primeiro diz respeito à criança, de família politicamente influente e fortemente ligada ao pai, o jurista José Thomas Nabuco, que atuou como ministro da Justiça, governador da Província de São Paulo e conselheiro do Império. “Eles tinham grande afinidade e uma relação muito afetuosa”, ressalta França, lembrando que, logo após o seu nascimento, em 19 de agosto de 1849, Nabuco foi levado para o Engenho Massangana. “Ele só veio conhecer realmente o Recife no ano de 1857, aos oito anos, quando, acompanhado pelo amigo de seu pai, Julião, deixou o interior e se dirigiu pela primeira vez à capital, para deslocar-se de navio até o Rio de Janeiro, onde o aguardava sua família. No Recife, ficou hospedado no convento São Francisco, na rua do
“Foi uma comoção, diante do fato de um jovem de família, de boa posição, se dispor a defender um escravo”, diz França Imperador”, conta França, que destaca o deslumbramento de Nabuco ao deparar-se com a cidade. Todo o encantamento da criança seria registrado em uma crônica de 1909, publicada no Almanak Pernambucano, no qual Nabuco escreveu: “como Veneza, (Recife) é uma cidade que sai da água e nela se reflete... como Veneza ela tem um passado que coroa como uma auréola e que brilha ao luar com as suas pontes e as suas torres”.
JoVeM e LiBeRtÁRio
Em 1869, aos 20 anos, Nabuco, que então morava em São Paulo, retornou ao Recife para estudar na Faculdade de Direito. “Ele morava numa república na rua Nova. Era boêmio e costumava
fazer sucesso pela beleza e elegância”, comenta Humberto França. O ano de 1869 foi marcante para o jovem Nabuco, pois nele alcançou maturidade intelectual. Sua notoriedade se deveu principalmente a um episódio: anos antes, em 1867, um escravo, conhecido como Tomás – descrito pelo historiador como inteligente e esperto, apesar de analfabeto –, havia assassinado o subdelegado de Olinda, Braz Pimentel. Preso, em 1868 tentou escapar, e acabou por matar outro homem. Ao tomar conhecimento do fato, Nabuco decidiu ser seu advogado de defesa, e, por meio de um discurso surpreendente, no qual mostrava que a escravidão não deixara outra alternativa a Tomás, conseguiu comutar a pena de execução em prisão perpétua. No livro inédito Joaquim Nabuco e o escravo Tomás, Humberto mostra como a atuação do jovem advogado surpreendeu a sociedade da época. “No dia do julgamento, que aconteceu na rua do Imperador, uma multidão se acotovelava para acompanhar o caso. Foi uma verdadeira comoção, diante do fato de um jovem de família, de
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 2
Historia.indd 42
30/07/2010 11:05:25
1 PAnoRâMicA vista do bairro do recife, em 1910, em fotografia colorida à mão
1
boa posição, se dispor a defender um escravo”. Nabuco ficaria na cidade apenas mais um ano, e em 1870 viajaria para o Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano escreveria o livro A escravidão, publicado pela editora Massangana mais de um século depois, em 1988. A terceira fase do abolicionista no Recife teve início em 1878, quando, aos 39 anos, considerado quase um idoso para os padrões da época, retornou à cidade a fim de se eleger deputado. “Ele foi apadrinhado pelo chefe político do partido Liberal, o barão de Vila Bela, Luís Felipe de Souza Leão, velho amigo do seu pai”, aponta França. Foi eleito naquele mesmo ano, mas sua campanha sofreu grande oposição dos republicanos, devido ao fato de ter dito, durante um discurso no Teatro de Santa Isabel, que “a grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia; é a escravidão”. No ano de 1879, segundo Humberto França, ele apresentou o primeiro projeto de lei para a emancipação dos escravos. Em 1881, não conseguiu se reeleger, e entrou num exílio voluntário, viajando para Londres.
Retomou a campanha abolicionista em 1883, e, no ano seguinte, comandou a grande frente contra a escravidão do Recife. “Sua atuação política deu-se até 1888, quando a Lei Áurea foi promulgada. Durante toda essa década – de 1878 a 1888 – esteve constantemente no Recife, participando em vários momentos da luta contra a escravidão”, pontua. Nesse período foi escrito o livro O abolicionismo, de 1883. Após essa fase, tornou-se embaixador, o que o afastou do Recife e do Brasil. Sua última passagem pela cidade deu-se em 1906, no mês de outubro, quando teve a sensação de que não voltaria a ver novamente o lugar onde nasceu. Ele estava num navio, regressava do Rio para os Estados Unidos. Ao avistar a cidade, escreveu em seu diário: “À tarde, defronte do Recife, não desembarco... À noite, a lua forma um navio, uma caravela de ouro, sobre uma nuvem negra. E assim me despeço do Recife, talvez para sempre”. Estava certo. Nabuco morreria em Washington, três anos depois, em janeiro de 1910, sem rever sua cidade.
SEmINáRIo UmA CoNStANtE INFLUÊNCIA INtELECtUAL O nascimento do abolicionista, em 19 de agosto, torna o mês um dos pontos altos das comemorações do Ano Nabuco. Por esse motivo, além da exposição O Recife de Joaquim Nabuco (Mepe), outros eventos estão agendados para o período. Destaca-se entre eles o Seminário Nabuco e a nossa formação, marcado para os dias 19 e 20, sob a supervisão da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Durante dois dias, o encontro reunirá especialistas em história da África, escravidão e movimento abolicionista, além de contar com a presença de estudiosos da vida e obra de Nabuco, a exemplo de Alberto da Costa e Silva, Lilia Moritz Schwarcz, Robert Slenes, Hebe Mattos Gomes de Castro, Izabel Marson e Antônio Dimas. No primeiro bloco do seminário, os debates se darão em torno da contemporaneidade das ideias políticas de Nabuco, e contarão com a presença de Ângela Alonso, da Universidade de São Paulo, Leslie Bethell, da University of London, e de José Thomaz Nabuco Filho, representante da família do abolicionista. Em seguida, será a vez de se debater a influência de Nabuco no pensamento social brasileiro, com a participação de Christian Lynch, da Universidade Federal Fluminense. À noite, durante coquetel de congraçamento, será lançada a reedição do livro O encontro de Joaquim Nabuco com a política – As desventuras do liberalismo, de Marco Aurélio Nogueira, que é professor da Universidade Estadual Paulista. No segundo dia do evento, serão realizadas duas mesas-redondas sobre a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, e será discutida a herança da escravidão como um dos principais problemas da sociedade brasileira, com a participação do senador Cristovam Buarque e de Anco Márcio Tenório Vieira, professor da UFPE. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas no site www. fundaj.gov.br/seminarionabuco. Outro evento de destaque no mês será a divulgação, no dia 12, dos vencedores do concurso História Ilustrada – Vida e obra de Joaquim Nabuco. Destinado a estudantes de ensino fundamental e médio, de escolas tanto públicas quanto privadas, o prêmio buscou incentivar pesquisas e estudos em torno da obra do pensador.
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 3
Historia.indd 43
30/07/2010 11:05:46
con ti nen te
História
Artigo
HUmBERto FRANÇA A ImPRENSA PARA DISSEmINAR IDEIAS Joaquim nabuco manteve ao longo de sua vida uma notável atividade jornalística. Desde os primeiros momentos de sua formação estudantil, no Colégio Pedro II, ele participava da redação de um jornal, o Megascopo. Em 1866, quando se transferiu para São Paulo com o objetivo de estudar na Faculdade de Direito, o acadêmico se envolveu na criação de alguns jornais: A Tribuna, O Liberal e A Independência, e escreveu para O Ipiranga, que influenciava a agitação político-estudantil da cidade. Após receber o diploma de bacharel da Faculdade de Direito do Recife, em 1870, Nabuco iniciou, no Rio de Janeiro, suas colaborações com o jornal A Reforma, que se deram entre 1871 e 1873. A respeito dos seus textos, ele confessou: “Nesse tempo
o radicalismo me arrasta; eu sou, por exemplo, dos que tomam parte mais ativa na campanha maçônica de 1873 contra os bispos e contra a Igreja. Entro até nas ideias de Feijó, de uma Igreja nacional, independente da disciplina romana”. Após a sua derrota na eleição de 1881, Nabuco foi obrigado, pelas circunstâncias, a deixar o País e procurar novas oportunidades de contato e de pesquisa na Inglaterra. No Brasil, pressionado pelos escravistas, ele não encontrava trabalho nos jornais. Amargurado, escreveu: “Sinto não poder servir à emancipação de outra forma senão renunciando a tudo que a escravidão atualmente oferece aos que transigem com ela: as posições políticas, a estima social, o respeito público. Não tenho tribuna, nem imprensa”. De Londres, Nabuco alimentava um projeto que revelou em carta ao Barão Homem de Mello: “A minha única ambição seria fundar e dirigir no Brasil um jornal para impelir o País na carreira do progresso”. Durante sua estada na Inglaterra, ele dependia
do salário de correspondente do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, e do La Razón, de Montevidéu. Ao retornar do estrangeiro, Joaquim Nabuco se lançou inteiramente na campanha abolicionista e procurou aproveitar a imprensa para disseminar as suas ideias. Após a abolição, ao lado de Quintino Bocaiúva, ele passou a escrever para um jornal republicano, O País. Em seus artigos, Nabuco atacou os membros do ministério do Império. Os seus textos revelam uma argúcia ímpar na interpretação dos problemas políticos do período. Amargurado, escrevia com veemência, a ponto de o jornal Rio News afirmar: “Se um estrangeiro deitasse os seus olhos sobre os jornais desta cidade, no momento atual, seria levado a concluir que o homem mais influente e simultaneamente mais odiado de todo o Brasil é o Sr. Joaquim Nabuco”. Ele não media as palavras. Fazia um jornalismo político incisivo. Depois do golpe republicano de 1889, Joaquim Nabuco retornaria à atividade jornalística. Em 1891, ele recebeu um convite do seu amigo Eduardo Prado, para dirigir um jornal em São Paulo. O projeto, porém, não se concretizaria. Durante a década de 1890, Joaquim Nabuco continuou a colaborar com os principais jornais do Rio de Janeiro, foi um dos fundadores do Jornal do Brasil e publicou dezenas de artigos no Jornal do Commercio, reunidos posteriormente nos seus livros A intervenção estrangeira e Balmaceda. Nos anos iniciais do governo republicano, Joaquim Nabuco se horrorizava diante da censura à imprensa empreendida pelo Marechal Floriano Peixoto. Relembrava que no Segundo Reinado vigorava a garantia de completa liberdade à imprensa. Feito raríssimo para um país periférico, o Brasil, no século 19. Joaquim Nabuco sempre defendeu uma atividade jornalística livre. E dela se utilizou para divulgar os seus pensamentos, substanciados pelos valores democráticos. Buscava, sem desânimo, a implantação no País de uma estratégia de desenvolvimento político e social que contemplasse todos os brasileiros.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 4
Historia.indd 44
30/07/2010 11:05:51
clemilson campos/jc imagem
con ti nen te#44
1
Especial_Musica erudita.indd 46
mĂşsica
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 6 7
30/07/2010 12:00:47
ERUDITOs Um olho no concerto, outro no mercado Professores, músicos e produtores apontam quais os entraves a esse campo no Brasil, indicando os possíveis caminhos para que dele se sobreviva, numa maior valorização dos seus agentes texto Débora Nascimento
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 7
Especial_Musica erudita.indd 47
30/07/2010 12:00:58
con música ti nen te#44
caroline bittencourt/divulgação
2
o pianista encerra mais um de suas dezenas de concertos, sob aplausos da plateia, que está de pé em um teatro lotado. Essa é uma bela visão que cabe no sonho de qualquer músico, sendo seu instrumento um piano ou uma guitarra. No entanto, trata-se de uma situação protagonizada pelo instrumentista pernambucano, de apenas 20 anos, Vitor Araújo, que, nos últimos dois anos, vem sendo tratado com zelo por público e mídia – uma das raras exceções à realidade vivida pela maior parte dos músicos eruditos brasileiros, principalmente nordestinos. Em pouco tempo de carreira, Vitor Araújo consegue fazer cerca de 40 bem-sucedidas apresentações solo por ano, quando a média em Pernambuco é de 10, como atesta a pianista e produtora do Virtuosi, Ana Lúcia Altino: “Músico erudito morre de fome; digo, os daqui. Eu não faço mais concertos. Tendi mais para a produção. Toco duas ou três vezes por ano. Não tem ninguém que viva de concerto na região. É lamentável saber que os melhores estão ganhando
3
a vida apenas como professores. Quem vive de concerto são os grandes que conseguiram chegar lá, e fazem 100, 200 anuais. Nelson Freire é um deles: faz 80 shows. Mas Nelson nem mora no Brasil. Em geral, todo mundo é contratado ou é professor em instituições”. Diante de relatos como esse, uma questão pode vir à tona: existe mesmo mercado de música erudita no Brasil? Para o celebrado maestro Marlos Nobre, um dos “grandes”, a resposta é negativa. “Não existe nem em Pernambuco, nem em qualquer outro estado brasileiro. Nem no Rio, nem em São Paulo, Minas, ou em qualquer outro. Nisso, Pernambuco não precisa se achar inferior a ninguém. Há algumas exceções, que começam a despontar como promissoras, como a presença de uma organização como a da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que optou por um sistema saudável de organização social, fugindo assim do modelo de dependência total do serviço público, seja do Ministério da Cultura ou de
secretarias de cultura ou afins”, diz o pianista, referindo-se ao sistema de assinaturas criado pela Osesp. “Em Pernambuco, houve uma efervescência no mercado de música erudita, no início do século passado, que culminou e coincidiu com a criação da Orquestra Sinfônica do Recife e do Conservatório Pernambucano de Música (CPM). Nesse período, houve a passagem, pelo Recife, de vários músicos de renome internacional. Os aviões não tinham combustível para ir direto ao Rio de Janeiro. Então, faziam uma parada no Recife. Com o passar do tempo, isso foi se perdendo”, registra Sidor Hulak, diretor do CPM. São muitos os motivos que complicam a situação do mercado de música erudita na região Nordeste. O principal deles, segundo os próprios profissionais, é o preconceito. “Divulgase principalmente que ela é de difícil assimilação, que é algo fora de moda, que é uma arte elitista. E a música erudita é extremamente bem-elaborada e completa (e não complexa), o que entra em choque com uma celebração do simplório (e não do simples) que
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 9 8
Especial_Musica erudita.indd 48
30/07/2010 12:01:07
bEto figuEirôa /divulgação
Página anterior 1 contexto
Entre outros problemas, músicos eruditos sofrem com poucas salas adequadas para concertos e cachês baixos
Nestas páginas 2 AnA LúciA ALtino
Cansada das restrições do mercado, pianista passou a trabalhar, há seis anos, como coprodutora do Virtuosi
3
grassa na opinião pública”, analisa o regente Sérgio Barza, professor de história da música no CPM. Essa atitude provém, ironicamente, da riqueza da música popular brasileira, que ocupa um espaço quase absoluto no cenário musical nacional, como complementa o maestro da Orquestra Sinfônica do Recife, Osman Gioia: “Nosso país não possui a mesma tradição de música erudita que a Europa e, por isso, o mercado é muito mais restrito”, atesta, reportando-se a países que investem e têm histórico nessa área, como Áustria, Alemanha e Itália.
MoDeLoS A SeGUiR
Marlos Nobre, um dos poucos músicos pernambucanos que obtiveram reconhecimento internacional, reitera que o Brasil está distante de atingir o patamar dos países do continente europeu. “Também estamos longe do nível de organização dos Estados Unidos, Japão, Austrália, Canadá. Atualmente, os países nórdicos servem de modelo. Os ministros da Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia se reuniram numa saudável prática de
na europa, a Alemanha é uma referência, planejando suas temporadas com até cinco anos de antecedência gerência, unificando e tornando a vida musical nesses países, para a música de concerto, um exemplo a se seguir. Na Europa, naturalmente, a Alemanha é uma referência sempre, devido à elevada tradição dos alemães, que planejam suas temporadas com até cinco anos de antecedência, pelo menos. Na França e na Itália não temos esse nível de organização, mas, comparando-se ao Brasil, eles são ainda algo distante para nós”, avalia. “Os Estados Unidos não dependem do poder público – lá não existe nenhum famigerado Ministério da Cultura, e a estrutura é fundamentalmente empresarial e de elevadíssimo nível. A programação das grandes instituições culturais
VitoR ARAújo
Em pouco tempo de carreira, jovem pianista consegue fazer cerca de 40 bem-sucedidas apresentações solo anualmente, quando a média em Pernambuco é de 10
também se faz com cinco ou seis anos de antecedência”, compara. De acordo com o musicista, o Brasil difere desses países pela ausência de organização. “O país precisa manter as estruturas funcionando, apesar das mudanças governamentais. O que nos falta é, portanto, o elevadíssimo nível de profissionalismo que norteia as nações citadas”, aponta Nobre. “O que nos sobra é um grande talento de improvisação constante, mas essa improvisação é o ponto básico de nossa fraqueza. Ano após ano, continuamos a repetir os mesmos defeitos, e os eventos sofrem, juntamente com seus organizadores, de total falta de segurança, e sem um mínimo de continuidade”, complementa. Exatamente devido a essa falta de “peso histórico” na música brasileira, os músicos eruditos acabam por sofrer com o inóspito ambiente que se formou: poucas salas adequadas para concertos; falta de empresários artísticos e de público pagante; cachês baixos; e muitos outros entraves. Os problemas são de todas as ordens. “Não há facilidade para comprar bons instrumentos ou conseguir acessórios para eles (cordas, palhetas etc.); não há boas editoras de música ou representantes de editoras internacionais no país, o que dificulta o acesso a muitas obras e compositores; não há divulgação na imprensa, especialmente em TV e rádio (formadores de público). Alguns programas em emissoras públicas ou são apresentados nos espaços que sobram na programação (TV Senado, por exemplo) ou tarde da noite, como os concertos transmitidos pela TV Cultura, que muitas vezes não são veiculados
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 4 9
Especial_Musica erudita.indd 49
23/07/2010 15:00:44
con MÚsica ti nen te#44
arquivo ContinEntE
4
4
os músicos eruditos, em geral, trabalham em orquestras, bandas e grupos instrumentais, ou na área pedagógica
pela retransmissora local, podendo apenas ser assistidos pelos que têm TV por assinatura”, enumera Sérgio Barza. Com as dificuldades existentes nesse ambiente, os músicos eruditos costumam encontrar poucas formas para se manter: em geral, pertencem ao quadro oficial de orquestras sinfônicas e bandas, e ao não oficial de filarmônicas e grupos instrumentais. Além disso, são muito comuns as atividades pedagógicas em instituições, como conservatórios, escolas de música, universidades, e também as aulas particulares, aspectos já referidos pela produtora Ana Lúcia Altino. Para Flávio Medeiros, professor do departamento de música da UFPE, uma boa notícia é que o mercado tem se ampliado a partir da crescente fusão entre os gêneros popular e erudito, beneficiando o músico erudito com sua presença em shows, gravações e outros eventos musicais. “Há também
um segmento profícuo para cantores e instrumentistas que se efetiva através de cerimônias religiosas, fúnebres ou de casamento. Uma outra forma de remuneração é a participação em jingles e trilhas sonoras”, enumera.
HÍBRiDo De eStiLoS
Um dado a ser levado em consideração é que manter-se no mercado de música erudita no Brasil a partir da vendagem de CDs ou DVDs é uma suposição praticamente descartada. Talvez por isso a mistura entre erudito e popular esteja se disseminando. O próprio fenômeno Vitor Araújo procurou inserir no disco Toc (2008), entre obras eruditas, canções que tivessem mais apelo popular, como Paranoid android, da banda inglesa Radiohead, e Asa branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. “A fronteira entre o popular e o erudito está ficando cada vez mais tênue. Egberto Gismonti é erudito ou popular? Ernerto Narazeth também fez essa ponte. O que gostaria que acontecesse seria essa contaminação maior entre a música erudita e a popular, boa para as duas. Pode ser um sangue novo, conhecer essa herança musical da Europa na medida em que ela for fincando pés e raízes no Brasil, tendo um diálogo
MARLoS noBRe
um dos poucos pernambucanos a serem reconhecidos no exterior, maestro acredita que o brasil está distante de atingir o patamar dos países europeus
com a música popular”, observa Carlos Sandroni, professor do departamento de música da UFPE. Sem contar que o auxílio de um bom plano de marketing não pode ser dispensado. É o que garante o músico Sidor Hulak, diretor do Conservatório Pernambucano de Música: “Pela própria natureza do estudo do instrumento, o pessoal da música erudita costuma ficar mais introspectivo. Enquanto isso, o mundo está girando. Muitos chegam aqui para querer se apresentar nos eventos musicais e não têm texto nem foto para divulgação”. Hulak, que mantém um dos raros espaços permanentes de audição pública de música erudita no Estado, ainda completa: “É bom lembrar que música erudita não é só orquestra sinfônica. Deve haver espaço para escoar a música de câmara”. Embora haja obstáculos e embates enfrentados pelos profissionais, a música erudita vem se renovando através de várias iniciativas. Entre elas, os concorridos concertos, de acesso gratuito, da Orquestra Sinfônica do Recife; a organização da Orquestra Sinfônica Jovem e do Projeto Suzuki (ambos vinculados ao Conservatório Pernambuco de Música); a criação da Orquestra Criança Cidadã do Coque (pelo maestro e violinista Cussy de Almeida); e o interesse particular de jovens, caso da promissora estudante de piano Crystal do Espírito Santo, de apenas 10 anos, e do citado Vitor Araújo, cujo sucesso é um estímulo para o futuro melhor desse mercado. “Tomo o (violoncelista) Antônio Meneses como uma espécie de exemplo, que mostra o seguinte: apesar da falta de mercado, apesar de todos os problemas, podemos dizer que uma rara conjunção de valores naturais de Pernambuco levam à natural eclosão do gênio criador e artístico. E aí somos, sem dúvida, uma potência musical em todo o Brasil”, opina Marlos Nobre, com a autoridade de quem tem uma carreira repleta de prêmios e honrarias.
co c on nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 550 1
Especial_Musica erudita.indd 50
23/07/2010 15:00:50
flora PimEntEl/divulgação
5
eventos Festivais e editais incentivam produção Um dos aspectos que vêm tornando o ambiente da música erudita menos árduo no Nordeste é a sedimentação de eventos como a Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo) e o Virtuosi, que vem mantendo “casa cheia” em todas as suas edições. “O Recife tornou-se um mercado para produtores de fora trazerem música erudita para cá. Além dos dois mais conhecidos, tivemos também o Música nas Igrejas. Recife está no foco, mesmo que não tenha uma programação de concertos de teatro. É uma cidade que tem efervescência natural. Há ainda um fantástico público jovem que adora música. Conseguimos manter o Virtuosi há seis anos. E temos também as versões que acontecem em Gravatá e Garanhuns”, comemora a pianista Ana Lúcia Altino, coprodutora do Virtuosi junto ao marido, o maestro Rafael Garcia. De acordo com o regente de coros Flávio Medeiros, apesar de melhorias,
como a continuidade desses festivais, ainda há um setor que sofre com a falta de apoio: “Os cantores profissionais do Recife se ressentem da inexistência de um coro estatal no qual possam desenvolver um repertório com obras sinfônicas e operísticas, a exemplo de outras capitais brasileiras, que mantêm corpos estáveis em seus teatros”. Na última década, a música erudita recebeu um considerável impulso a partir do incremento das leis de incentivo e dos editais da Funarte. Só para citar alguns: o Prêmio de Concertos Didáticos (apoio a 16 projetos em escolas da rede pública, com R$ 20 mil para cada selecionado), o Prêmio Circuito de Música Clássica (apoio a 12 projetos de recitais de música de concerto, com prêmios de até R$ 75 mil para cada selecionado) e o Prêmio de Composição de Música Clássica (apoio a 70 obras inéditas para a XIX Bienal de Música Brasileira Contemporânea, com prêmios de
5
eStÍMULo
Eventos como os concertos em igrejas, com “casa cheia”, têm recebido apoio de leis de incentivo
R$ 8 mil, R$ 10 mil, R$ 15 mil, R$ 20 mil e R$ 30 mil. As inscrições estão abertas até 30 de setembro). De acordo com Medeiros, mesmo com o incremento na atuação do poder público, ainda inexiste uma consistente política de apoio à edição de partituras de músicos brasileiros eruditos. “Sabemos que Villa-Lobos, após meio século de sua morte, não tem o total de suas obras – em torno de mil peças – completamente editadas. A escassez de publicação de partituras reflete diretamente na divulgação e execução de obras, especialmente no Brasil. Leve-se em consideração que a edição de cada partitura deverá primar pela qualidade técnica, seguindo as indicações originais do compositor”, ressalva. Para o professor, como não são editadas as partituras, as obras de vários compositores pernambucanos permanecem desconhecidas e menos executadas do que naturalmente seriam. É o caso de autores como Dierson Torres, Nelson Almeida, Jarbas Maciel, Júlio Braga, Flávio Lima, Cussy de Almeida, Paulo Lima e Clóvis Pereira. (Dn)
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 1
Especial_Musica erudita.indd 51
23/07/2010 15:00:54
con MÚsica ti nen te#44
sxC.hu
APRenDIZADo Formação exige tempo e dinheiro em dobro Existe um roteiro na música popular que envolve basicamente: aprender um instrumento, compor, gravar um CD, divulgá-lo e fazer shows. Na erudita, esse processo acontece de forma dessemelhante e bem mais lenta. “Em geral, o músico erudito busca aperfeiçoar sua aprendizagem num instrumento através de estudos sistemáticos, acadêmicos. É um processo demorado de amadurecimento técnico, conhecimento do instrumento, dos estilos e escolha de repertório. Ou seja, desde a estética da música medieval até a contemporânea, além de outras matérias complementares”, explica Flávio Medeiros, professor do departamento de música da UFPE. Todos esses estudos fazem com que a formação se torne muito longa. “Uma pessoa forma-se em direito ou engenharia após quatro ou cinco anos, o que pode ser um
terço do aprendizado de um músico erudito. Formam-se, então, bem menos músicos do que advogados ou engenheiros. Isso esclarece um pouco a dificuldade de renovação de profissionais nas orquestras. Falase muito do projeto de orquestras da Venezuela. Mas se esquece de que o investimento nele é alto e já existe desde 1975. É a aposta numa arte musical mais exigente e elaborada por um país menor que o Brasil”, compara o professor Sérgio Barza, referindo-se ao Sistema Nacional de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, para crianças e jovens carentes, e que atende a mais de 250 mil estudantes. Além do tempo destinado aos estudos, um dos complicadores para o aluno é o alto valor dos instrumentos. Para a formação de uma orquestra sinfônica são necessários entre 80 a 120 instrumentos de diversos
naipes (cordas, madeiras, metais e percussão), o que envolve um custo elevado, pois o instrumento deve ter uma boa qualidade e pertencer, na maioria dos casos, ao próprio músico. “Um oboé pode custar entre R$ 6 mil e R$ 30 mil. Isso sem contar com um jogo para confecção das palhetas do instrumento, que fica em torno de R$ 500, além de métodos especializados e partituras”, detalha Medeiros. Por conta de todo esse investimento de tempo e dinheiro, o maestro Marlos Nobre considera que o músico erudito deveria ser melhor remunerado; pelo menos, os músicos que fazem parte de uma orquestra sinfônica no Brasil. “Quatro horas de ensaio por dia, mais um concerto por semana, significa uma carga horária de trabalho exclusiva, tanto braçal como intelectual, muito maior do que as 10 horas diárias de um burocrata. Durante suas quatro horas diárias, o músico toca sempre, tem de dar o melhor de si, tem de afinar seu instrumento, mantê-lo em dia, com cordas, palhetas, e demais acessórios (quase 100% deles de origem europeia ou norte-americana) em perfeito funcionamento”, explica. Os 80 músicos da Orquestra Sinfônica do Recife, por exemplo, recebem, de acordo com o Diário Oficial do Município, salários que variam de R$ 950 a R$ 1.070,17, mais gratificações de R$ 300 por concerto realizado (são, em média, 30 anuais). Como aponta Nobre, “a profissão de músico é a única na qual o trabalhador tem de fornecer os próprios instrumentos de trabalho. Um bom violino custa, com toda certeza, cinco anos de trabalho para o músico, o mesmo que uma boa viola, cello ou contrabaixo. Então, a legislação brasileira, de todos os municípios, prefeituras, fundações culturais, secretarias de cultura, está errada, e necessitando de uma profunda e urgente revisão”. A consequência disso é que o país acaba perdendo para o Exterior os grandes nomes que aqui se formam. (Dn)
c co o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 2 3
Especial_Musica erudita.indd 52
23/07/2010 15:00:59
daniEl buarquE
6
tenDÊnCIA Recitais, entre um drinque e outro
Nos EUA, produtores e instrumentistas buscam renovação de público para a música erudita através de concertos em locais frequentados por jovens texto Daniel Buarque, de Nova York
no meio do primeiro solo do
recital de piano de uma das promessas da música erudita dos Estados Unidos, havia uma batida que soava estranha como acompanhamento. O som parecia o de pedras de gelo caindo em um copo, sendo misturadas depois a uma bebida, e, por fim, o de uma geladeira sendo fechada. Alguns segundos depois, a interrupção da apresentação foi visual, quando em frente ao jovem pianista havia uma bandeja com bebidas sendo carregada de um lado para o outro. No lugar do silêncio total das apresentações convencionais de piano, naquela podiam-se ouvir pequenos barulhos e até conversas em voz baixa. Tudo deixava claro
que o show ocorria em um bar, nova alternativa para tentar “salvar” a música clássica, cujo público envelhece cada vez mais, sem ser substituído por pessoas mais jovens. Uma pesquisa divulgada no final do ano passado, nos Estados Unidos, mostrou que uma tendência comum ao público de música erudita se rompeu. Antigamente, à medida que as pessoas adultas amadureciam, passavam a gostar cada vez mais dela e a consumir a produção desse nicho. A partir da chamada geração X, atualmente se aproximando dos 40 anos, pela primeira vez isso não aconteceu. E a geração Y, na casa dos 20 anos, frequenta menos apresentações de música erudita do
que qualquer outra na história. Os dados indicam o resultado da pesquisa realizada nos Estados Unidos, mas demonstram uma tendência do mundo globalizado neste século 21. Entre 2002 e 2009, o percentual de pessoas da geração X que assistiu a apresentações de música erudita caiu de 10% para 9%, e os dados da geração Y já mostram que menos de 6% dela frequentam shows do gênero. Os resultados desse levantamento, organizado e divulgado pelo National Endowment for the Arts, deixaram desesperadas as pessoas que têm envolvimento com esse tipo de cultura. “O momento atual é trágico”, lamentou Norman Lebrecht, um dos mais importantes críticos de música erudita da atualidade, autor de Maestros, obras-primas e loucura e O mito do maestro. De Londres, de onde concedeu a entrevista, ele alertou que não é só o público que está diminuindo no mundo todo, mas que a mídia especializada no assunto encolhe e não está conseguindo se renovar para atingir e atrair um público maior, o que leva a pensar numa diminuição em ciclo. Quem atua profissionalmente na área já vinha percebendo essa mudança no perfil de quem consome música clássica. O público fica cada vez mais
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 3
Especial_Musica erudita.indd 53
23/07/2010 15:01:04
con MÚsica ti nen te#44 Chris-Christodoulou
velho, e cada vez menos pessoas jovens se juntam a ele. Desde antes de os dados oficiais serem divulgados nos Estados Unidos, já tinham sido iniciados projetos para tentar atrair pessoas mais novas, como o do bar Le Poisson Rouge de Nova York, em que ocorreu a cena antes citada, além de campanhas publicitárias pela internet, uso de cinemas para a transmissão de óperas e até a criação de novas “estrelas” do segmento. Várias ações já haviam começado a tomar forma para tentar salvar o gênero.
o jovem Gustavo Dudamel rege de forma enérgica, com pulos e balançando a cabeça como se fosse um metaleiro “A música erudita não vai morrer”, disse, confiante, Zachary Woolfe, crítico do jornal New York Observer, que vem acompanhando a tendência. “Em 1986, havia uma discussão sobre o fim da ópera, e tudo isso que falamos agora já era discutido 25 anos atrás, 50 anos atrás. As pessoas sempre estiveram preocupadas com o fim da música erudita. Ela vai mudar, vai sobreviver, mas precisa de bons críticos, bons programadores, pessoas comprometidas com repensar o que é a sua experiência, vendê-la bem e apresentar coisas boas”. A opinião de Lebrecht também é a de que problemas de público não são novidade, mas que é preciso pensar de forma rápida como interromper esse fluxo antes que seja tarde demais. “O interesse sempre vai ser limitado. A pergunta que tem que ser respondida é: como encher os teatros?”, diz.
cHAMAR A AtenÇÃo
Uma prova de que, com a publicidade certa, a música erudita ainda tem a capacidade de encher teatros e gerar interesse no público em geral é a idolatria nacional em torno do regente da Orquestra Filarmônica de Los Angeles (LA
7
Phil), Gustavo Dudamel, já chamado de “Gustavo, o Grande” pelo programa jornalístico 60 minutes. “Dudamel é um fenômeno”, avaliou Lebrecht. Nascido em Barquisimeto, na Venezuela, em 1981, ele é jovem, carismático e extremamente competente. Ele conduz a orquestra de forma enérgica, chegando a dar pequenos pulos e a balançar a cabeça (com grandes cabelos assanhados), como se fosse um metaleiro. Nomeado, aos 15 anos, diretor musical da Orquestra de Câmara Amadeus, de Caracas, onde se formou, e, aos 18, da Orquestra Jovem Simón Bolívar da Venezuela, Dudamel é um dos principais trunfos da propaganda que o governo Hugo Chávez faz dos projetos bem-sucedidos que levam música erudita a populações carentes do país. O maestro assumiu a principal orquestra da costa oeste dos Estados Unidos em 2009, ano em que foi considerado pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, isso tudo antes de completar 30 anos.
As duas apresentações de Dudamel com a orquestra de Los Angeles no Lincoln Center em Nova York, em maio, tiveram os ingressos esgotados em poucas horas. Uma semana antes dos shows, havia cambistas oferecendo entradas na internet por até U$ 150 por pessoa (mais que o triplo dos preços originais). As duas apresentações na cidade (e uma terceira em Nova Jersey, do outro lado do rio Hudson) atraíram um público muito mais heterogêneo em termos de idade e estilo do que aquele que acompanha regularmente a agenda de música erudita em todo o mundo. Dudamel, de fato, passa uma sensação diferente em sua atuação na regência, como se tivesse um forte envolvimento com a música, o que parece deixar toda a orquestra mais excitada, vibrante e perfeccionista. A imprensa local divulgou amplamente sua presença ilustre no palco nova-iorquino, assim como se desmanchou em elogios à competência do regente depois das apresentações.
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 4 5
Especial_Musica erudita.indd 54
23/07/2010 15:01:11
Página anterior 6 Le PoiSSon RoUGe
localizado na bleecker, rua do greenwich village, o lPr é visto como uma das possíveis alternativas para o futuro da música erudita
Nestas páginas 7 o GRAnDe
gustavo dudamel, regente da orquestra filarmônica de los angeles (la Phil), formou-se pelo sistema nacional de orquestras Juvenis e infantis da venezuela
Sem duvidar do talento do venezuelano, Woolfe alega que a grande mudança em relação à apresentação dele, se comparada à de outros músicos que frequentam os palcos de Nova York, é o marketing. “Dudamel é jovem e vibrante e ajuda a atrair pessoas mais jovens, mas é uma questão de publicidade”, afirma. Segundo ele, os lugares já consolidados como casas de música erudita em todo o mundo precisam incorporar o trabalho de propaganda que a LA Phil faz tão bem. Além de se preocuparem com uma agenda de qualidade, “o Metropolitan, o próprio Lincoln Center e outros lugares semelhantes pelo mundo precisam usar o marketing para vender seu produto e atrair pessoas mais jovens”. A melhor proposta, diz, é montar apresentações de composições mais contemporâneas, e usar campanhas na internet e na mídia tradicional para mostrar que a música erudita não precisa ser algo “proibitivo e misterioso”, para
pessoas “ricas e arrumadas”, mas que também pode ser divertida, jovem e atual. “É preciso ter o senso de que isso precisa de publicidade, de preços com desconto e mostrar que os jovens são bem-vindos”.
FoRA DoS PADRÕeS
Um dos projetos, hoje, mais bem sucedidos nesse sentido é o do Le Poisson Rouge. Localizado na Bleecker, rua do Greenwich Village que já foi associada a movimentos da cultura pop norte-americana, o LPR, como chamam os críticos, é visto como uma das principais alternativas para o futuro do gênero. Recitais de piano, quartetos de corda e pequenos grupos eruditos formam a programação semanal da casa, ao lado de bandas de música pop, grupos de rock e de música eletrônica e novas cantoras da cena noturna da cidade, como a revelação Mighty Kate. “Isso é muito importante e mostra que esse tipo de música não precisa estar separado das outras coisas que os jovens gostam de incorporar a seu mundo”, disse Woolfe. O projeto atrai pessoas mais jovens com programas de música erudita no contexto da música pop, da música eletrônica, misturando-as numa experiência cultural mais completa. Lebrecht diz que em Londres e Paris há lugares que oferecem ambientes semelhantes já há alguns anos, e que a tendência mais atual é a de incluir as apresentações de música erudita no meio de shows ao ar livre, ou de fazer apresentações fora dos padrões em que ela se enquadrava anteriormente, quebrando barreiras para se adaptar à vida moderna dos jovens. Uma dessas barreiras, segundo os principais críticos culturais que acompanham o fenômeno, é a associação que as novas gerações fazem entre a música erudita e uma cultura “velha”, ultrapassada. Por isso observa-se como necessidade o investimento na inovação, na apresentação de composições recentes, de autores contemporâneos. “Felizmente temos ótimos músicos jovens em todo o mundo tentando se tornar
conhecidos”, disse Lebrecht, preocupado por haver poucos interessados em conhecê-los. A questão-chave é o que apresentar para atrair novos públicos. “É preciso ter um programa vibrante. Os jovens gostam de coisas novas; é preciso fugir de repertórios batidos”, defendeu Woolfe. Em Nova York, um pequeno festival organizado no final de maio no LPR fazia exatamente essa união entre os novos músicos e um público de menos idade. Por três
Uma das barreiras é a associação que as novas gerações fazem entre a erudita e a cultura “velha” e ultrapassada noites, 10 pianistas apresentaram o trabalho de 19 compositores contemporâneos, num total de 29 composições recentes. Um após outro, os jovens músicos do festival Keys to the future (Chaves para o futuro) se apresentaram com competência, mas demonstrando a insegurança típica de quem ainda não conhece bem o palco. O primeiro a se apresentar, o próprio organizador do evento, suava e olhava de forma concentrada e tensa para a partitura à sua frente. A segunda pianista balançava a cabeça repetidamente marcando o tempo das notas que dedilhava com habilidade. Nenhum dos seis pianistas da primeira noite parecia saber se dirigir ao público, fazendo referências sempre rápidas e desconfortáveis. O bar não estava lotado, mas havia cerca de 50 pessoas no início da noite; na maior parte, jovens das gerações X e Y, alguns deles frequentadores constantes do LPR, independentemente do que se apresente na ocasião. Entre uma e outra cerveja, uma conversa e uma paquera, todos pararam para assistir a quem tocava. Por uma hora, a música erudita contemporânea recebeu a atenção dos jovens, sugerindo a esperança de que se fortaleça internacionalmente.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 5
Especial_Musica erudita.indd 55
23/07/2010 15:01:16
con MÚsica ti nen te#44
marCElo lyra/divulgação
c co o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 6 7
Especial_Musica erudita.indd 56
23/07/2010 15:01:31
INSTITUIÇÃO Um octogenário visando ao futuro
Aos 80 anos, Conservatório Pernambucano de Música investe na modernização e amplia atividades, lançando novos cursos e projetos sociais pelo interior texto Raquel Monteath
Pelos corredores e salas de ensaio
pode-se imaginar o som das notas musicais e o trânsito dos alunos, mesmo que em período de férias. Na casa, situada à avenida João de Barros, no tradicional bairro da Boa Vista, tem-se ainda a impressão de se estar diante de um poema de Manuel Bandeira, daqueles que descrevem a paisagem e o saudosismo do Recife de outros tempos. No entanto, a atmosfera nostálgica que evoca o Conservatório Pernambucano de Música (CPM), fundado pelo maestro Ernani Braga, e hoje com um corpo de dois mil alunos e 160 professores, pode soar diversa da dinâmica artística vivenciada atualmente pelos agentes do mercado fonográfico. Essa diferença foi determinante para que algumas medidas tenham sido tomadas, no intuito de evitar um descompasso do Conservatório no tempo, e de romper com a imagem elitista que a sociedade possa ter do ensino de música (principalmente a erudita). “Creio que, desde sua fundação, os gestores do Conservatório visaram aos mesmos objetivos, aqueles do seu fundador: sistematizar o ensino musical, tornando-o acessível a todas as classes sociais, e contribuir para a formação de um ambiente musical de alto nível no Recife”, defende a pianista Elyanna Caldas, que dirigiu a instituição por duas vezes, entre os anos 1980 e 1990. Foi pensando nessa necessidade de difundir a música e de oferecer certa autonomia a quem pretenda se
Surgiram no cPM grupos que mesclam as próprias referências às da música erudita, como o SaGrama profissionalizar na área que surgiram, em 2007, além dos cursos regulares oferecidos, os de editoração, sonorização e gravação. “Para que o músico participe de todas as etapas na execução do seu trabalho, e para que possa dialogar com o técnico no mesmo nível”, afirma o atual diretor, Sidor Hulak. Essa perspectiva empreendedora resulta da formação do diretor: licenciado em Música e com formação técnica em violão pelo próprio CPM, Hulak é graduado em Administração e apaixonado por jazz, o que lhe rendeu viagens aos Estados Unidos para estudar o gênero. Sua ligação com essa música de matriz afro-americana originou projetos de aproximação entre cultura popular e erudita no Conservatório. “Criamos, em 2007, a Cesta de Música, para que artistas populares pudessem se apresentar com sua banda, em um espaço mais intimista, diferente das festas em que comumente tocam”, argumenta Hulak. As apresentações, tanto dos próprios alunos quanto de artistas convidados, acontecem no auditório onde, há 20 anos, ocorrem os concertos eruditos do projeto Quartas
Musicais. Na extensão desse mesmo auditório funciona o estúdio de gravação, recentemente adaptado para acompanhar as novidades mercadológicas e digitais. “Em 2009, criamos um edital para viabilizar a produção de jovens músicos, e contemplamos, inicialmente, três propostas: a da violinista Karolayne Cavalcante, a da pianista Priscila Dantas e a do grupo popular de choro Galho Seco”, comenta o diretor sobre a atual gravação de três CDs, que serão lançados ainda este ano pelo selo CPM Gravações. Também nesse estúdio foram gravados todos os discos da Orquestra Armorial de Câmara, sob regência do maestro Cussy de Almeida, um dos diretores mais destacados do Conservatório, falecido em julho deste ano. De sua gestão data a criação da Orquestra de Cordas Dedilhadas, composta por violões, bandolins e cavaquinhos, que apresentou uma formação orquestral atípica para a década de 1980, quando surgiu. No contexto de iniciativas ousadas como essa, surgiram no CPM grupos que mesclam as próprias referências às da música erudita. Entre eles estão a Orquestra Sinfônica Jovem (OSJ), composta de 70 músicos, com idades entre 13 e 28 anos, que primam na execução de repertórios eruditos, e o SaGrama, que alia instrumentos de sopro, cordas dedilhadas e percussão às manifestações da cultura popular nordestina, apresentando trabalhos peculiares, como as conhecidas
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 7
Especial_Musica erudita.indd 57
30/07/2010 14:03:21
con música ti nen te#44 mAírA GAmArrA
ALyne PinheirO/DivuLGAçãO
2
3
O pulo da gaita e Filho de chocadeira (tema do diabo), que compõem a trilha sonora do filme O auto da Compadecida (2000), de Guel Arraes.
reVeLaÇÕeS
Descobertos na sexta edição da Mostra Internacional de Música em Olinda (Mimo), por Alla Aranovskaia e Boris Vayner, do St. Petersburg String Quartet, os irmãos Karolayne e Ricardo Cavalcante, de 12 e 16 anos, respectivamente, tiveram suas vidas transformadas. Durante a mostra, o casal russo procurava integrantes para a St. Petersburg International Music Academy 2010, competição de música erudita ocorrida em Connecticut (EUA). Os irmãos concorreram com violinistas do Rio de Janeiro e da Paraíba e foram selecionados, recebendo ainda uma bolsa de estudos do Élan International Music Festival, em Dallas, onde se apresentaram.
a instituição apresenta propostas de aliar o ensino da música erudita ao desenvolvimento social Karolayne é solista da OSJ, e Ricardo, chefe de naipe do mesmo grupo.“Estudei piano no Centro de Educação Musical de Olinda desde os nove anos, e, no início de 2005, fui convidado pelos professores a estudar no Conservatório, onde acabei ganhando uma bolsa integral”, conta Ricardo. Seis meses depois, a caçula, então com 8 anos, se iniciava no violino. “Escolhi o instrumento depois de ver uma apresentação de Israel de França, no Festival Villa-Lobos”, comenta Karolayne, referindo-se ao violinista e maestro de Peixinhos, Olinda.
Assim como está ocorrendo aos irmãos Cavalcante, o ensino de música erudita no CPM tem apresentado, ao longo de sua história, sucessivas propostas de aliar o aprendizado da música ao desenvolvimento social. Em 1995, o maestro Cussy de Almeida convidou a pianista Ilma Lira para desenvolver, na comunidade do Alto do Céu, em Beberibe (Recife), o projeto Suzuki, baseado na metodologia japonesa que propõe o acompanhamento do processo de aprendizagem das crianças. “A experiência era uma espécie de alfabetização musical que, com a devida dedicação, se tornaria uma ponte entre a comunidade e o Conservatório”, afirma a professora, que atualmente coordena o projeto Orquestrando Pernambuco, surgido em 2007, e que teve como referência os resultados positivos daquele primeiro. O Orquestrando leva o ensino de cordas friccionadas para comunidades carentes nos bairros dos Coelhos, Brasília
c co o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 9 8
Especial_Musica erudita.indd 58
30/07/2010 14:03:32
rePrODuçãO
ErNaNI Braga, NOME DECISIVO Para O CPM
Página anterior 1 coLetiVo
Aulas de prática de orquestra são ministradas aos alunos como exercício para a atividade profissional
Nestas Páginas
2
eXterior
3
MudanÇa
irmãos Cavalcante seguem, em 2011, para a Wichita State university, no Kansas, em intercâmbio de estudos no final dos anos 1960, a sede do CPm foi transferida da rua do riachuelo para a Av. João de Barros
Teimosa e Santo Amaro, todos na Região Metropolitana do Recife. A professora Ilma reflete sobre o quanto essas ações abrem perspectivas na vida desses jovens: “O destino deles é uma incógnita, e a importância das oficinas é bem maior do que se imagina. Ver que um instrumento tido como ‘de elite’, como o violino, torna-se uma ferramenta para eles, e constatar o envolvimento da família, que se sente valorizada, é realmente gratificante”. Indo mais além, especificamente em municípios como São Lourenço, Carnaíba e Nazaré da Mata, uma outra proposta vem dando certo: o Bandas de PE. O paraibano Quinteto Brassil acompanha os professores do CPM e participa das oficinas de filarmônicas. “Sabemos que não se forma ninguém em três dias (o período de duração das aulas), mas se provoca a mudança, e esse é o nosso principal objetivo”, afirma Hulak.
Autor de Tango brasileiro e Três miniaturas, o pianista carioca Ernani Braga foi um entusiasta da construção do Conservatório Pernambucano de Música. Sua obstinação e experiência levaram-no a ser convidado, anos antes da fundação do órgão, a colaborar como crítico musical no jornal A Província. Publicou artigos numa verdadeira campanha pró-Conservatório, nos quais criticava os pessimistas da sociedade que fossem contra o empreendimento. Chamado de “maluco” por alguns, era por vezes alertado de que a cidade não comportaria um conservatório musical, e que as atenções da sociedade estariam voltadas para o açúcar, então em crise. “Pois eu tenho muitos e grandes defeitos; não tenho esse, de ser pessimista”, retrucava. Com formação no Instituto Nacional de Música (atual Escola de Música da UFRJ), onde estudou por insistência do professor Manuel Faulhaber, e com experiência como professor catedrático no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Braga observou a importância de uma cidade “próspera e culta” abrigar esse tipo de instituição: “Quase todos os estados do Sul têm um ou vários conservatórios. (…) E aqui pelo Norte encontrei conservatórios de música na Bahia, em Fortaleza e em Belém. Nenhuma dessas cidades, à exceção do Rio e de São Paulo, tem os elementos de que Recife dispõe para organizar o corpo docente de um estabelecimento de ensino superior de música. Nenhum tem o movimento musical, local ou importado, que possui a capital de Pernambuco”. Assim, em 1930, funda o CPM, junto aos amigos e músicos Vicente Fittipaldi e Manuel Augusto dos Anjos. No mesmo ano, lançam os primeiros passos da Orquestra Sinfônica de Concertos Populares (a Orquestra Sinfônica do Recife), que estreou em 30 de julho daquele ano, no Teatro de Santa Isabel. Graças à sua persistência e à força de seus artigos, Ernani Braga tornou a música, enfim, profissionalizada no Recife. Faleceu em São Paulo, em 20 de setembro de 1948. (RM)
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 5 9
Especial_Musica erudita.indd 59
30/07/2010 14:03:36
karina freitas
Sonoras jimi hendrix Ainda o maior dos guitar heroes
Quarenta anos após sua morte, Jimi Hendrix permanece intocável no posto de rei da guitarra, como atestam os relançamentos de seus clássicos texto Débora Nascimento
“Sou eu; Jimmy. Estou na Inglaterra, pai. Conheci algumas pessoas, e elas vão me tornar uma grande estrela. Mudei meu nome para J-I-M-I”. Não era delírio do jovem guitarrista de apenas 23 anos. Poucos meses depois, o filho de Al Hendricks transformou-se não somente numa grande estrela, mas numa das principais da música mundial.
Infelizmente, usufruiu somente de três prolíficos anos de glória, até sua morte prematura, em 18 de setembro de 1970. No entanto, mesmo passados 40 anos desde o fatídico dia em que morreu, vítima de intoxicação por barbitúricos, o tímido rapaz canhoto de Seattle continua a ser o maior guitarrista da história do rock.
Aquela ligação telefônica de Jimi Hendrix para o pai ocorreu em meados do efervescente 1967. Mesmo ano em que fez seu début com o LP Are you experienced, quando a concorrência não era fácil, indo de Velvet Underground & Nico, passando por The piper at the gates of dawn, do Pink Floyd, até Sgt. Pepper’s, dos Beatles – só para citar alguns. Ainda naquele ano, o músico “estreou” nos EUA com o incendiário concerto no Festival de Monterey, no qual muitos se perguntaram: “Quem é esse cara?!”, sem saber que o guitarrista, poucos anos antes, escondia-se sob um comportado terninho em bandas de apoio de Ike e Tina Turner, Little Richard e Isley Brothers. Sua sina de anônimo, no entanto, começou a mudar quando, num dos shows com seu grupo, Jimmy James and The Blue Flames, encontrava-se na plateia o ex-baixista do The Animals, Chas Chandler. A apresentação
co c on nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 660 1
Sonoras.indd 60
30/07/2010 11:12:12
aconteceu no Cafe Wha?, no bairro de Greenwich Village, reduto de aspirantes a artistas e beatniks. O inglês, diante do potencial do americano, propôs torná-lo “uma estrela”, e isso deveria começar por Londres, onde seu talento seria reconhecido e festejado. Na cidade britânica, Chandler foi o responsável por dar vida ao trio mais inusitado do rock na época, sendo formado por um bandleader negro e mais dois músicos brancos – o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell. Vale lembrar que apenas o Cream (com Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker) emparelhava em competência com a Jimi Hendrix Experience. Com esta banda, o guitarrista gravou, no estúdio inglês Olympia, seus três mais aclamados álbuns de estúdio, Are you experienced (1967), Axis – Bold as love (1967) e Electric Ladyland (1968). O primeiro, Are you experienced, é considerado o melhor disco de estreia do rock, contendo alguns dos maiores clássicos do mito, que trouxeram ao mundo o estilo hendrixiano (Purple haze e Fire), a influência notável do blues (Red house) e do R&B (Foxy lady), as doses de psicodelia típicas dos sixties (a faixa-título) e o anúncio do heavy metal (Manic depression). Esses três álbuns, mais o póstumo First rays of the new rising sun (que seria o quarto disco de estúdio), foram relançados, em junho, pela Sony Music, com a remasterização digital dos tapes originais assinada pelo legendário engenheiro de som Eddie Kramer, que esteve presente nas históricas sessões de gravação como o “braço direito” tanto de Hendrix quanto de Chandler. Além disso, somam-se às faixas os singles lançados na época (como Hey Joe) e o making of desses sets. Nesses breves documentários (no estilo da série Classic albums, mas com bem menos análises de faixas), fica evidente o controle que Chandler queria manter sobre as sessões. O produtor pedia a Hendrix para baixar o volume da guitarra e diminuir a duração das músicas. Sua intenção era tornar as composições “mais comerciais”, o que, por vezes, culminava em sandices como
transformar uma bela canção como Little wing numa faixa de apenas dois minutos e vinte segundos.
SeM PARAR
Workaholic e perfeccionista, Hendrix, que praticamente acordava e dormia com a guitarra, não queria sair do estúdio; trabalhava ininterruptamente (o que acabou rendendo material para os discos póstumos, como Valleys of Neptune, lançado em março deste ano). De acordo com o músico, não existia o ciclo: compor, gravar, divulgar e pegar a estrada. Ele misturava todo o processo, a ponto de gravar de segunda a quinta-feira, e tocar no final de semana. Esse ritmo de trabalho aumentou à medida que o artista começou, em 1969, a montar seu próprio estúdio, o Electric Lady, situado no Greenwich Village. O espaço consumiu muito dinheiro. Finalmente, quando ficou
não se sabe ao certo se o guitarrista se via exatamente como era: o músico que ultrapassou nomes como eric clapton pronto, virou um novo point de NY. Segundo Chandler, vivia cheio de artistas e amigos do guitarrista (até Miles Davis, um de seus fãs jazzistas, apareceu por lá), e isso o cansou, até que decidiu cair fora, em 1968. Hendrix passou a ter, então, mais liberdade para criar seus arranjos e produzi-los. A partir daí, não mais economizaria nos takes, que passaram de um a três para mais de 40 – o que aborrecia Mitch Michell e Noel Redding. Nos making of das gravações, os entrevistados, como não poderia ser diferente, relembram a genialidade do guitar hero. É citado o exemplo de The wind cries Mary (Are you experienced), que foi gravada em apenas 20 minutos – e os músicos nem a conheciam. Noutra ocasião, na gravação de Angel (First rays of the new rising sun), Hendrix resolveu tocar todos os instrumentos. “Ele dominava quase tudo que tocava, não importa se era bateria, guitarra ou
piano”, afirma Eddie Kramer. “Ele era o Mozart da guitarra”, exclama Billy Cox, baixista que substituiu Redding no último grupo de Hendrix, a Band of Gypsys, com estilo mais funky e menos “rock inglês” que a Experience. A empolgação de Jimi com o estúdio se refletiu nas músicas seguintes. A primeira a ser gravada dentro do Electric Lady foi Night bird flying, que possui quatro camadas de guitarras, em que cada uma é tocada de maneira totalmente diferente, mas dialogando entre si. Explorar as possibilidades dos recursos de estúdio, a propósito, era um dos hobbies do artista, mesmo dispondo apenas de quatro canais de gravação. As mágicas que produziu, como gravar por cima de uma longa base invertida de guitarra (e saber exatamente como esta iria soar ao contrário), ainda hoje fascinam músicos e fãs. Mas não se sabe ao certo se o guitarrista se via exatamente como era: o músico que ultrapassou nomes como Jeff Beck, Eric Clapton, Keith Richards e Pete Townshend. Um episódio lança mais dúvida sobre sua história. O baterista Tommy Erdelyi (antes de virar um Ramone) trabalhou como assistente de engenheiro de som e assistiu a sessões de Hendrix com a Band of Gypsys, testemunhando gravações de clássicos como Machine gun. No estúdio, enquanto a banda Mountain gravava em outra sala, Jimi perguntou a Tommy: “Você acha que o (guitarrista) Leslie West é melhor do que eu?”. Achou que fosse brincadeira. “Depois, percebi que estava falando sério. Para mim, Jimi Hendrix era um deus do rock, mas ele não se via dessa forma”. Herói dos homens e querido pelas mulheres (“O homem mais sexy que caminhou sobre o planeta”, disse Neneh Cherry), Jimi Hendrix ficou eternizado em recorrentes imagens que o mostram ora com suas roupas extravagantes, tocando sua Fender Stratocaster nas costas ou com os dentes, ora interpretando o hino americano Star spangled banner, no Festival de Woodstock. Mas elas não fazem jus a todo seu potencial de compositor, cantor, arranjador, produtor, músico e visionário, que merece uma prece diária de cada garoto que sonha em se tornar uma estrela tocando guitarra.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 1
Sonoras.indd 61
30/07/2010 11:12:12
edson figueiredo/Z.diZain comunicação
Sonoras MÚSICA LTDA. Como empreender no campo musical
O jornalista e produtor Leonardo Salazar lança manual didático para mostrar a músicos e bandas como sobreviver na atual indústria fonográfica texto Thiago Lins
Fãs são como clientes satisfeitos. Partindo dessa premissa, o jornalista e produtor Leonardo Salazar – que esteve à frente da produtora Salazarte por três anos – desenvolveu o estudo Música Ltda. – O negócio da música para empreendedores. Originalmente um trabalho de pós-graduação em Gestão de Negócios, o livro é uma das poucas publicações disponíveis sobre empreendedorismo cultural. É fato que muito já foi dito e publicado sobre o nebuloso futuro da indústria fonográfica. Obras
como A cauda longa, do físico Chris Anderson, ou Direito, tecnologia e cultura, do mineiro Ronaldo Lemos, são hoje referências imprescindíveis no assunto. No entanto, ensinamentos sobre marketing viral e outros chavões da era 2.0 se tornam até secundários para uma banda em começo de carreira. O artista independente, antes de tomar lições digitais, deve, simplesmente, formalizar-se – de nada adianta “bombar” na web sem se ter uma conta bancária, por exemplo. E,
segundo Salazar, para que o artista se formalize, “basta ele querer”. “Pagando apenas R$ 62,10 mensais, o músico garante aposentadoria e auxílio-acidente”, reforça o produtor, que está prestes a completar 10 anos no ramo (já participou de mais de 200 eventos, em 34 cidades e cinco países, em funções tão variadas quanto assessor de imprensa e gerente de turnê). Salazar ainda lembra que a classe artística foi contemplada, em 2006, com o Simples da Cultura (plano de redução de impostos), que baixou a carga tributária sobre o setor de 17% para 6%. São, muitas vezes, direitos desconhecidos, que podem ajudar o músico a crescer num ambiente seguro. Alguns organizadores de evento, inclusive, só contratam “bandasempresas”, ou seja, grupos com Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). “A necessidade de se legalizar a atividade é um caminho sem volta”, afirma o autor, que vislumbra um panorama favorável às atividades culturais com o
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 2 3
Sonoras.indd 62
30/07/2010 11:12:19
INDICAÇÕES MPB
AdOnirAn BArBOSA Adoniran 100 anos Lua Music
no ano do seu centenário, o compositor, cantor e humorista João rubinato, mais conhecido como adoniran Barbosa, recebe uma justa homenagem com o lançamento desse álbum de 24 faixas, todas de sua autoria. sucessos indiscutíveis, como Tiro ao Álvaro e Saudosa maloca, dividem espaço com composições menos conhecidas, como Mãe eu juro e Quando te achei. Para interpretar as canções, um elenco de grandes nomes: arnaldo antunes, Zélia ducan, Wanderléa, entre outros. um tributo necessário e muito bem realizado.
controle da inflação e a reestruturação de órgãos parceiros, como o Sebrae. Até as leis brasileiras, que privilegiam as microempresas, são fatores positivos, como aponta Salazar no capítulo dedicado ao empreendedorismo. É esse o diferencial de Música Ltda.: mostrar que os artistas precisam, antes de tudo, existir. O livro peca pelo uso de ideias clichês – como ao afirmar, ainda na introdução, que, com o advento do MP3, os músicos praticamente deixaram de ganhar dinheiro com CDs, passando os shows a ser a principal fonte de renda; e exagera no detalhismo, ao sublinhar, no tópico que trata das turnês, a importância de se “enxugar” as bagagens, algo que não foge do
conhecimento nem dos menos experientes. À parte esses deslizes, trata-se de um estudo importante. Enquanto sobram tratados a respeito das novas plataformas de divulgação, é escassa a literatura sobre a prática do empreendedorismo. E os indispensáveis MySpace e Youtube, de tão dissecados nas academias, muitas vezes são vistos como o começo de tudo para os artistas. Mas não passam de meios. Meios que chegam a ser secundários, se considerarmos que essa classe artística deveria, antes de tudo, conhecer seus direitos. Parafraseando um trecho do livro, o artista hoje precisa saber tocar – e tocar negócios também. E o começo é um plano de negócio muito mais abrangente – dissecado por Salazar em seu livro.
INSTRUMENTAL
OrQUeSTrA SinFÔniCA mUniCiPAL de SÃO PAULO Villa-Lobos Lua Music
a orquestra sinfônica municipal de são Paulo, nos seus mais de 80 anos de atividade, já dividiu o palco com Villa-Lobos. agora, as composições do mestre são interpretadas pelo grupo, com regência de rodrigo de carvalho, no mais novo álbum da oms. o repertório começa com Uirapuru, que marcou o início da linguagem orquestral villa-lobiana; a ela se seguem as Bachianas Brasileiras nº 2, O Trenzinho do Caipira e os Choros nº 6. o disco lança no mercado o selo Lua classical.
INSTRUMENTAL
MPB
Independente
Independente
AnTOniO mAdUreirA e SerGiO FerrAZ Segundo romançário o encontro de antonio madureira, fundador do Quinteto armorial (grupo em atividade entre 1970 e 1980, que tocava música popular e erudita), com o violinista sergio ferraz rendeu esse Segundo romançário, em que a dupla passeia, com destreza, tanto pelos cancioneiros da idade média (caso de Lamento e Festa na aldeia, de autoria de sergio ferraz) quanto pelas valsas vienenses (como em Cecília, de antonio madureira), passando ainda por ritmos tão diversos quanto o pé-de-serra e a música flamenca.
VerÔniCA FerriAni e ChiCO SArAiVA Sobre palavras a cantora Verônica ferriani faz tabelinha certeira com o violonista chico saraiva em Sobre Palavras, projeto com o qual ganharam ambos o prêmio Pixinguinha. o cd marca a estreia de saraiva como letrista, que se arriscou numa parceria com o carioca mauro aguiar. as letras, aliás, não são o forte do disco, mas a voz melíflua de ferriani e os arranjos esmerados de saraiva acabam deixando esse problema em segundo plano.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 3
Sonoras.indd 63
30/07/2010 11:12:30
pedro melo
Leitura
POESIA ÉPICA O Brasil estreito e enviesado de Neruda
Após 60 anos de sua publicação, o Canto geral sugere reflexões, e faz pensar sobre a distância entre brasileiros e vizinhos de origem hispânica texto Cristiano Ramos
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 4 5
leitura.indd 64
30/07/2010 11:15:05
A poesia épica do século 20 (com
poucas mas expressivas obras, que desmentem a morte do gênero) teve sua maior reverberação com o Canto geral, de Pablo Neruda. Publicado há 60 anos, tornou-se símbolo de demandas represadas, ao propor uma história das Américas contada pelos explorados, valorizando sobretudo a herança cultural précolombiana. A eminência de seu autor e a ascensão das esquerdas colaboraram para a canonização da obra, que constantemente é citada, por operários ou acadêmicos – embora muitos sequer tenham passado da capa. Essa trajetória de institucionalização criou esferas de culto exacerbado, e até de patrulhamento, o que impede fortuna crítica menos laudatória, leituras diversas sobre o monumental projeto do poeta chileno. Um dos tópicos menos explorados é o pálido Brasil do Canto geral, nação que assoma menor do que seria de se esperar, já que Neruda conheceu e sempre lhe confessou amores. Sobre o assunto, o que desejamos não é nem fazer uma crítica estritamente literária nem, tampouco, incorrer em qualquer desrespeito em relação ao autor, mas apontar o potencial de análises desperdiçado: o modo como o Brasil ali aparece diz muito sobre a distância cultural que separa a ex-colônia portuguesa e os países de origem hispânica. Distância bem maior que a física ou a linguística. Na edição da espanhola Cátedra, há um texto de Enrico Mario Santí que traz a rara problematização de pontos controversos. Segundo ele (e concordamos), o engajamento leva Neruda a ignorar qualquer dialética, a omitir ou distorcer fatos. Se o poeta “exalta com razão Batolomé de Las Casas pela defesa dos índios, não explica, por outro lado, que foi o próprio Las Casas o primeiro incentivador da escravidão africana no Novo Mundo”, exemplifica Santí. Ele registra que a palavra África inexiste no livro, além de apenas 100 dos 15 mil versos serem dedicados a mulheres; lembra ainda o sempre arguto crítico Rodríguez Monegal, cuja ressalva é dirigida ao fato de Neruda esquecer o passado de feudalismo das
sociedades asteca e inca. Tudo está a serviço do extremado maniqueísmo do poeta, inclusive a indiferença aos demais colonizadores – os ataques são quase que exclusivamente aos invasores espanhóis. O Brasil? Dia desses encontrei um artigo que contabiliza alegremente a presença do país em 17 poemas. Mas, para tanto, é preciso considerar até alusões, tais quais os marcos geográficos que nações vizinhas dividem conosco, como o rio Amazonas. E, embora o artigo não informe, os versos sobre Castro Alves foram incluídos às pressas. Apêndice da edição chilena que saiu clandestinamente em 1950, não fazem parte da primeira edição oficial,
A postura de neruda antecipou uma tendência de revisão histórica e colaborou com a manutenção da poesia épica hoje publicada no México, e somente a partir de 1968 foram realmente adicionados. Sem falar que é das peças mais frágeis, repleto de imagens desgastadas, como em: Castro Alves del Brasil, tú para quién cantaste? Para la flor cantaste? Para el agua cuya hermosura dice palabras a las piedras? Cantaste para los ojos, para el perfil cortado de la que amaste entonces? Para la primavera? Se os brasileiros recebem mais atenção, devem-no a Luís Carlos Prestes. O líder comunista é tema de três poemas – Prestes del Brasil, Dicho en Pacaembu e De nuevo los tiranos. Mágoas pessoais e engajamento político restringem o olhar; praticamente resumem a história de um país continental a uma personagem. Quando, em La arena traicionada, o poeta recorda Eurico Gaspar Dutra, é porque foi o presidente que prendeu Prestes. Um algoz é escolhido a partir da vendeta nerudiana, e o ciclo se fecha. Um Brasil estreito e enviesado.
Acaso não seria coerente com a epopeia a inclusão de algumas outras lutas revolucionárias brasileiras? E, sim, elas existem, dos cabanos aos farrapos, dos inconfidentes ao pernambucano Frei Caneca. As omissões não pouparam sequer Abreu e Lima, honrado em diversos países como um dos heróis da emancipação do continente, participante de movimentos de libertação na Venezuela, na Colômbia, no Equador e no Peru. Anazildo Vasconcelos da Silva apresenta duas maneiras do gênero épico: a “natural”, em que há uma construção coletiva, com aderência mítica ao dado histórico; e uma segunda, em que acontece uma construção “literária”, “fundindo e refundindo referenciais históricos e simbólicos”. Este é o caso do Canto geral, em que Neruda utilizou diversos estilos e referências pessoais na construção de uma visão contestadora da história dos continentes americanos. Seus amigos, até então desconhecidos, tornam-se heróis, enquanto figuras decisivas das lutas de independência são deixadas de lado. A postura apaixonada de Pablo Neruda foi importante, tanto do ponto de vista político quanto do literário, pois antecipou uma tendência de revisão histórica e colaborou com a manutenção da poesia épica em nossos dias. Mas é preciso tirar de suas páginas também, e para além das questões estritamente poéticas, a possibilidade de um debate mais amplo, sobre uma futura e real aproximação entre Brasil e vizinhos de língua espanhola. Que seus povos se conheçam mais, enriquecendo a todos culturalmente, colaborando para a solução de problemas, viabilizando a busca de um mercado comum etc. Então, será possível verdadeiramente se falar em “Nuestra América”. Lê-lo crítica e diversamente não fará o bardo chileno menos significativo, muito pelo contrário. Assim como debater sobre o Canto geral não o põe em risco. Aliás, essa é a condição de todo clássico, e é o que lhe garante longevidade..
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 5
leitura.indd 65
30/07/2010 11:15:05
Artigo
pedro melo sobre fotos de divulgação
EDSON NERY DA FONSECA O ESTILO LITERÁRIO DE GILBERTO FREYRE Se estivesse vivo, Gilberto Freyre
estaria muito feliz em ver-se estudado num evento exclusivamente literário, como a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que este ano o homenageia. Porque ele mesmo escreveu, num de seus livros: “O sociólogo, o antropólogo, o historiador, o cientista social, o possível pensador são em mim ancilares do escritor” (Como e porque eu sou e não sou sociólogo, 1968). É curioso que a única história da literatura brasileira em que ele aparece como escritor seja a da insigne italiana Luciana Stegagno Picchio. Dois dos melhores ensaios sobre Gilberto Freyre como criador literário são o do ensaísta e poeta português David Mourão Ferreira (Sob o mesmo tecto, 1989) e o de Otto Maria Carpeaux, sobre uma página dramática do livro Sobrados e Mucambos, inspirada pelos túmulos de jovens ingleses vítimas da febre amarela (O estilo de Gilberto Freyre, em seu Ensaios reunidos – 1946-1971, 2005). Carpeaux também dedicou a Gilberto Freyre um verbete de seu livro Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, publicado em 1949. O crítico literário elogiado por Antônio Candido revela-se nos seguintes livros e opúsculos de Gilberto Freyre, cuja importância foi abafada pelo sucesso de suas obras de ciências sociais: Apologia pro generatione sua, opúsculo de 1924 no qual são estudados escritores até então desconhecidos entre nós, como o norte-americano Randolph Bourne (1886-1918) e o francês Ernest Psichari (1883-1914); Ingleses (1941); Perfil de Euclydes e outros perfis (1944); O camarada Whitman (1948); Reinterpretando José de Alencar (1952); Vida, forma e cor (1962); Seis conferências em busca de um leitor (1965); Alhos & bugalhos (1978); Heróis e vilões no romance brasileiro (1970); e Camões – Vocação de antropólogo moderno (1984).
Devo ainda lembrar que Gilberto Freyre foi elogiado como poeta por Manuel Bandeira, como ensaísta por Roberto Alvim Corrêa e como ficcionista por Osmar Pimentel, autor do posfácio de sua novela Dona Sinhá e o filho padre, que, ao ser publicada em inglês, com o título Mother and son, obteve sucesso na crítica norte-americana. Escrevi para a edição crítica de Casa-grande & senzala publicada pela Unesco um ensaio no qual procurei mostrar as imagens e as enumerações caóticas que fazem parte dessa obra perene, como a classificou o sociólogo Fernando Henrique Cardoso: perene – acrescento – tanto como obra de ciência social como por seu estilo. Obra que, ao completar 40 anos, foi saudada por João Cabral de Melo Neto com este pequeno e expressivo poema de seu livro Museu de tudo: Ninguém escreveu em português no brasileiro de sua língua esse à vontade que é o da rede dos alpendres, da alma mestiça medindo sua prosa de sesta ou prosa de quem se espreguiça.
Já me referi às páginas de Sobrados e mucambos analisadas como literariamente dramáticas por Otto Maria Carpeaux. No capítulo Tentativa de síntese, do livro Ordem e Progresso, encontram-se as mais expressivas do estilo do autor: aquelas nas quais ele enumera exemplos de cultura material e moral que caracterizam a época estudada: o 1900 brasileiro. São páginas que lembram as do romance Ulysses, nas quais James Joyce utilizou o recurso estilístico conhecido como fluxo de consciência. O que faz de Gilberto Freyre um escritor literário é seu estilo, cujas principais características são o imagismo e a enumeração caótica. O imagismo pode ser definido como a utilização de imagens, como se as palavras não fossem suficientes. O movimento imagista foi deflagrado na Europa pelo crítico literário e poeta inglês Thomas Ernest Hulme, e teve, nos Estados Unidos, a adesão de poetas do alto nível de Ezra Pound, Ford Madox Ford e Amy Lowell. O jovem Gilberto Freyre teve a oportunidade de conhecer Amy Lowell na Universidade de Baylor, onde ela fez
co c o n t i n e n t e ag os o s to 2 0 1 0 | 6 6 7
leitura.indd 66
30/07/2010 11:15:10
de Whitman e Rimbaud. Em seu mais recente livro, ainda não editado no Brasil – A vertigem das listas –, Umberto Eco, citando naturalmente Leo Spitzer, dedica todo um capitulo à enumeração. O exemplo mais significativo tanto do imagismo como da enumeração caótica em Giberto Freyre está no longo poema que escreveu com 26 anos ao ver a Bahia pela primeira vez. O poema foi impresso pela Revista do Norte, do Recife, numa tiragem muito reduzida. Mas Manuel Bandeira ficou entusiasmado e o reproduziu em sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos, cuja primeira edição é de 1946. Na primeira edição da obra completa de Manuel Bandeira está reproduzida uma carta de 4 de junho de 1927 na qual ele, acusando
na homenagem prestada pela atual edição da Flip, as qualidades literárias do sociólogo são destacadas uma conferência sobre Walt Whitman. Além de poetisa imagista, Amy Lowell era defensora militante do movimento, em livros e conferências. Os dois se tornaram amigos e trocaram cartas muito afetuosas: cartas que pude ler na Houghton Library, a biblioteca de livros raros da Universidade de Harvard.
enUMeRAÇÃo cAÓticA
Quando fazia pós-graduação na Universidade de Columbia, em NovaYork, Gilberto Freyre tornouse amigo de outro grande poeta, o infelizmente pouco conhecido no Brasil Vachel Lindsay, verdadeiro rapsodo que andava pelos campos recitando para os trabalhadores, dormindo ao relento, tomando banho e lavando suas roupas nos rios. Otto Maria Carpeaux dedica a Vachel Lindsay várias páginas de sua monumental História da literatura ocidental. Foi na poesia de Vachel Lindsay que Gilberto Freyre aprendeu a fazer as enumerações caóticas que tanto enriquecem seu estilo. “Enumeração caótica” é uma expressão criada pelo eminente filólogo Leo Spitzer para caracterizar a poesia
o recebimento do poema, diz a Gilberto Freyre que ficou com inveja: “Teu poema, Gilberto, será minha eterna dor de corno” (Poesia e prosa, 1958). Repito que o poema foi escrito em 1926, para salientar que o pernambucano Gilberto Freyre antecipou-se, na exaltação de valores baianos, tanto ao carioca Ary Barroso como ao próprio baiano Dorival Caymmi, dois grandes compositores que se projetaram a partir dos anos 1930. Vou citar apenas três imagens. O poema não tem pontuação e, logo no começo, surge a imagem das casas, dos sobrados e das igrejas “trepadas umas por cima das outras (...) como gente se espremendo para sair num retrato de revista ou jornal”; mais adiante ele fala de “um Ford todo osso”, que sobe a ladeira “pra depois escorrer sobre o asfalto novo/ que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada”; e o poema termina com uma referência aos “tabuleiros escancarados em X” esclarecendo entre parenteses: “esse X é o futuro do Brasil”. O dicionário de Aurélio cita um samba no qual Noel Rosa elogia o subúrbio carioca do
Estácio, fazendo uma sambista dizer que, embora convidada para ser estrela do nosso cinema, sair do Estácio é que era para ela “o X do problema”, expressão que Aurélio define como “aquilo que é mais difícil”. O samba é de 1936, e o poema de Gilberto Freyre foi escrito 10 anos antes. O pesquisador paulista Eduardo Sinkevisque escreveu um longo e belo ensaio no qual identifica no poema antecipações ao Manifesto regionalista e ao livro Casa-grande & senzala, sugerindo que, para Gilberto Freyre, o “X sustenta uma plataforma: (…) o futuro do Brasil nas projeções de Freyre”(O X que sustenta uma plataforma, que integra Rapsódia – Almanaque de filosofia e arte, 2003). Os baianos mais requintados não gostaram da exaltação freyriana de gente “preta parda roxa morena”, do desprezo de eminentíssimos baianos como Ruy Barbosa e Otávio Mangabeira, da referência pejorativa aos admiradores de Mário Pinto Serva. Mas Gilberto Freyre amava Salvador, e chegou a anunciar, em 1940, um guia prático, histórico e sentimental semelhante aos que dedicara ao Recife e a Olinda. Uma vez lhe perguntei em que estado brasileiro ele preferiria morar se fosse expulso do Recife; e ele respondeu: “na Bahia”. “Por quê?”, voltei a perguntar, e ele respondeu: “por ser o lugar mais representativo da diversidade brasileira”. E quando, em 1943, o interventor federal em Pernambuco mandou prender Gilberto Freyre na Casa de Detenção do Recife, por haver denunciado, em artigo de jornal, espionagens nazistas acobertadas por seus asseclas – que nunca esconderam suas simpatias pela Alemanha de Hitler –, professores e escritores baianos o convidaram para receber pessoalmente em Salvador uma homenagem de desagravo que durou vários dias. Conferências, discursos e notícias dessa homenagem foram acolhidos no livro de Gilberto intitulado Na Bahia em 1943: obra quase desconhecida, porque a Polícia Civil de Pernambuco retirou quase toda a tiragem das livrarias, jogando-a nas águas do Capibaribe. Era assim o homenageado pela Flip de 2010: além de grande escritor, um corajoso lutador.
c o n t i n e n t e ag os o s to 2 0 1 0 | 6 7
leitura.indd 67
30/07/2010 11:15:14
pedro melo
Leitura DICIONÁRIO Sobre o modo de ser pernambucano
Obra do professor e historiador Adriano Marcena compila 15 mil verbetes sobre os costumes, as peculiaridades e o palavreado populares do Estado texto Danielle Romani
Recém-lançado, o Dicionário da diversidade cultural pernambucana é o que se pode chamar de uma importante contribuição para se compreender a cultura do Estado, tanto pela documentação que realiza das tradições locais quanto pelo seu preciosismo linguístico e lexicográfico. Produzido pelo professor e historiador Adriano Marcena, o livro é o resultado de 10 anos de pesquisas, que se transformaram em 15 mil verbetes, distribuídos por 998 páginas. Nelas, estão registrados costumes,
particularidades, hábitos culinários, culturais e artísticos, e até mesmo o palavreado chulo, mas largamente utilizado por pernambucanos de muitos níveis sociais e diferentes sub-regiões. A produção do trabalho começou em 1998, quando Marcena, então professor de arte-educação, percebeu que mestres e alunos não davam importância às manifestações culturais locais, ou desconheciam as origens de muitas festividades e expressões idiomáticas. “Notei que o processo cultural não era encarado sob a ótica histórica, social,
política, econômica e, principalmente, simbólica; que as pessoas não entendem o que escrevemos, festejamos, dançamos, cantamos, vestimos e insultamos”, explica o autor. Na primeira fase da pesquisa, dedicou-se à leitura de clássicos como Pereira da Costa, Luís da Câmara Cascudo, Manuel Correia de Andrade, Gilberto Freyre e Mauro Mota, entre dezenas de autores consultados. Utilizou, ainda, registros de cronistas coloniais, como Hans Staden, Pero Vaz de Caminha e Duarte Coelho, além de teses e dissertações acadêmicas recentes. No tocante à etimologia, valeu-se de autoridades como Olga Cacciatore, Nei Lopes, Silveira Bueno e Aurélio Buarque. O dicionário cumpre as regras do novo acordo ortográfico. Apenas expressões populares foram mantidas com a grafia “vulgar”. “Não teria sentido escrevê-las corretamente, pois estaríamos fugindo do propósito de contemplar os falares de um determinado povo. Contudo, no término do verbete, utilizamos o vocábulo ou expressão gramaticalmente corretos”, observa. A fase final foi a pesquisa de campo, ou seja, as ruas da capital e das cidades do interior pernambucano, em especial os mercados e feiras livres. O trabalho, ressalta Adriano, não é pioneiro, uma vez que existem obras anteriores, com perfil semelhante, a exemplo do Vocabulário pernambucano, de Pereira da Costa; do Dicionário de folclore para estudantes, de Mario Souto Maior e Rúbia Lóssio; e do Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro; mas vem sendo comemorado por pesquisadores e autoridades governamentais, a exemplo do Conselho Estadual de Cultura, que o apoiou por unanimidade. “Acredito que ele não apenas vai respaldar estudiosos, mas auxiliar os professores da nossa rede de ensino”, aposta o autor. O volume também pode ser adquirido no site dicionariodemarcena.com.br.
Dicionário da diversidade cultural pernambucana aDRIaNo MaRCENa editora iamar reúne 15 mil verbetes, resultado de 10 anos de pesquisa.
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 9 8
leitura.indd 68
30/07/2010 11:15:16
INDICAÇÕES POESIA
REGINA ZILBERMAN Melhores poemas de Luiz de Miranda global
“o que lembro de dezembro/ é um terreno sem herdeiro/ a mesa vazia/ e os olhos de minha mãe abandonados”, escreve luiz de miranda, em Vigilante. em outro poema, Declaramento, ele informa: “meu corpo, de cabelos/ ossos e fome/ se morto, é um metro/ e sessenta e nove no chão/ mas, em pé, a mesma/ medida de rebeldia e solidão”. parte da obra prolífica desse autor gaúcho foi selecionada pela professora Zilberman para essa edição, que traz uma breve apresentação e 68 poemas de caráter cotidiano e memorialístico. uma frase pode resumir o conteúdo da seleta: “miranda é o grande poeta épico que transforma o eu pessoal em coletivo, a voz do individual na voz de um povo”.
ENSAIO ENSAIO
UMBERTO ECO E JEAN-CLAUDE CARRIÈRE Não contem com o fim do livro Record
dois dos mais atuantes intelectuais europeus se detêm sobre um dos assuntos-febre do momento: a extinção ou não dos livros impressos. eles aproveitam para comentar a história desses objetos, desde o papiro. a presente publicação resulta de uma conversa dos autores, intermediada pelo jornalista Jean-philippe de tonnac. É claro que, em se tratando de eco e Carrière, a discussão, além de culta e informativa, traz momentos de humor, ironia e sarcasmo. a inteligência traz esses benefícios ao diálogo.
ROMANCE
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI O anti-Édipo
CHARLES DICKENS Um conto de duas cidades
a constante produção desses dois autores rendeu obras indiscutíveis, tais como O que é filosofia? e Mil platôs. O antiÉdipo (1972) é a primeira obra nascida dessa colaboração entre o filósofo deleuze e o psicanalista guattari, que se aproximaram logo após os acontecimentos de maio de 68. Nela, os autores vão de encontro às teorias freudianas, questionando a visão do inconsciente como um lugar de representação e desconstruindo todo o complexo de Édipo. para eles, o inconsciente seria uma usina, habitada não por atores simbólicos, mas por máquinas desejantes. eles cunham o termo “esquizoanálise”, uma nova proposta para entender a subjetividade.
foi com base na obra do historiador escocês thomas Carlyle, História da Revolução Francesa (1837), que dickens escreveu a obra, de 1859. mesmo com seu olhar estrangeiro, de um inglês, o autor consegue traçar um quadro preciso do que foi aquele período da história da frança, mantendo o realismo e a forte tensão sentimental, características típicas das suas obras – Oliver Twist (1839) e David Copperfield (1850) –, que lhe tornaram o escritor mais popular da era vitoriana. dickens evita dar um tom político ao romance, e apresenta os impactos da revolução em personagens diversos, do aristocrata ao malandro, do burguês ao camponês.
Editora 34
Estação Liberdade
reprodução
Quadrinhos
HISTÓRIA CULTURAL AFRO-BRASILEIRA a publicação AfroHQ – História e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos terá, pelo menos, um destino objetivo imediato: integrar a bibliografia da disciplina História geral da África e do Negro no brasil, que passa a compor obrigatoriamente o currículo do ensino fundamental e médio, público e privado nacional, desde que o estatuto da igualdade social foi sancionado pelo presidente lula. e a HQ cumprirá essa missão de forma criativa e interessante, já que apresenta ao leitor o panteão africano, as tradições culturais e a história do negro no país de modo integrado. são os próprios orixás que narram a história, cujos roteiros, texto e edição são de autoria do antropólogo amaro braga, que contou com a colaboração das arteeducadoras danielle Jaimes e roberta Cirne, que
desenharam e coloriram o livro. tudo começa num tempo de mudanças, anunciadas por exu a oxalufã. os orixás são convocados a uma reunião, na qual se revezam, contando episódios marcantes da história dos africanos, desde sua relação com a natureza, passando pelas prisões de povos que se tornaram escravos, chegando ao brasil colonial – e à adaptação que essa gente sofreu para sobreviver num ambiente inóspito – e aos dias de hoje. Há no roteiro uma simbiose inteligente entre as personalidades atribuídas aos orixás e o momento de narração de cada um deles, como, por exemplo, ao intervirem ogum e iansã nos momentos de batalha; oxum, nos que envolvem os temas da feminilidade e da maternidade; e Xangô, quando o assunto é justiça.
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 6 9
leitura.indd 69
30/07/2010 11:15:23
MaĂra GaMarra
os fuzis da Senhora carrar teatro Hermilo BorBa FilHo
estreia 14 ago SĂĄb-Dom, 18h
Palco 1
c co on nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 770 1
Palco.indd 70
30/07/2010 11:17:52
TRILOGIA Pela transgressão na dramaturgia
Nova montagem de Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertold Brecht, inicia proposta de encenação de textos que contribuíram para o debate público nos anos 1970 texto Clarissa Falbo
acervo pessoal de stella Maris saldanha
“o que veio primeiro foi a ideia da pesquisa. Em uma noite qualquer, quando eu pensava sobre o teatro que se fazia em décadas passadas e sobre a função que os espetáculos tinham, de pautar o debate público, percebi com tristeza que isso não acontece mais”, lembra a atriz e jornalista Stella Maris Saldanha. Foi a partir dessa reflexão que ela, em parceria com os também jornalistas Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra, dedicou-se à pesquisa e à contextualização histórica de grupos de teatro que exerceram influência na dramaturgia de Pernambuco e na opinião pública. O trio de pesquisadores selecionou, pelo viés da transgressão estética, política ou de costumes, três companhias que, de acordo com eles, promoveram rupturas ideológicas na cena teatral e cultural: o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Vivencial Diversiones. A pesquisa, chamada Transgressões em três atos, não se encerra, porém, nos registros escritos. O projeto é levar para o palco uma peça representativa da proposta cênica de cada um dos grupos estudados, em uma trilogia das transgressões. Ela se inicia com a montagem de Os fuzis da Senhora Carrar, texto escrito por Bertold Brecht em 1937 e encenado pelo THBF em 1978. “As montagens pretendem fomentar o diálogo entre a memória e o presente”, explica Stella Maris.
2
além de Brecht, serão remontadas enceneções do teatro Popular do nordeste e do Vivencial Diversiones
De acordo com ela, a pretensão é convidar encenadores para, com o subsídio da investigação científica, montar os textos a partir das diretrizes do espetáculo da década de 1970. João Denys, que integrava o elenco do THBF e participou daquela versão de Os fuzis, será encarregado de dirigir a atual montagem. “Nem resgate, nem remontagem, minha concepção para o trabalho vem da origem da palavra recordar, de sua raiz latina cor, que significa coração. Recordar é passar de novo
pelo coração. É exatamente essa a relação que desejo estabelecer entre os espetáculos de agora e de há 30 anos”, esclarece Denys. De acordo o diretor, que é professor do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco, no qual ministra uma disciplina sobre o dramaturgo alemão Bertold Brecht, Os fuzis da Senhora Carrar é a obra mais realista do autor: “É o texto mais avesso às teorias estéticas estabelecidas pelo próprio Brecht, de quebra da quarta parede (contato dos artistas com a plateia) e do distanciamento entre os atores e os personagens que interpretam”. João Denys observa que Brecht queria experimentar o Naturalismo/Realismo, e, por isso, estruturou a narrativa num só lugar, num único tempo e em apenas uma ação dramática. A trama se passa no tempo de assar um pão, no interior da casa onde a Senhora Carrar mora com os dois filhos, e se desenvolve a partir do ímpeto da protagonista de livrar o primogênito da luta nas frentes de batalha da Guerra Civil Espanhola. A decisão de lutar ou não lutar, de tomar ou não partido na questão política por que passa o país onde a peça é ambientada, é que conduz a história. Para Denys, o importante não é a guerra, mas a decisão: “O que é ser revolucionário? O que é ser ético? As decisões são difíceis, mas têm de ser tomadas. Não há como negociar”.
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7 1
Palco.indd 71
30/07/2010 11:17:59
reprodução
1
noVa VerSão
2
montagem
stella Maris saldanha, que deu vida à protagonista de Os fuzis quando tinha 18 anos, volta à personagem, mais de 30 anos depois Os fuzis da Senhora Carrar, texto escrito por Brecht em 1937, foi encenado pelo thBF em 1978
Palco caSa De PeScaDor
De acordo com João Denys, que também assina a cenografia da peça, a ideia original era reproduzir exatamente o espaço da sede do THBF. O teatro, que ficava em Olinda, na ladeira do Varadouro, em um casarão próximo à Igreja de São Sebastião, tinha palco de seis metros de largura, sem divisão de coxias, e bancos largos para a plateia.“Desistimos da ideia, porque iria aumentar o orçamento e dificultar as viagens para levar a encenação a outras cidades”, justifica. O cenário é a representação de uma casa de pescador habitada pela família Carrar: uma mesa, algumas cadeiras e a janela, por onde a mãe vigia o filho que trabalha no mar. Denys, no entanto, assegura que quem viu a montagem original vai reconhecer alguns elementos transpostos para o espetáculo de agora: “Vamos pintar a poesia de Manuel Bandeira na parede de fundo do palco, como fizemos na outra montagem”, revela o diretor, referindo-se ao poema No verso e em meu coração, no qual Bandeira brada contra a Guerra Civil Espanhola e a ditadura do general Francisco Franco.
A referência ao THBF também está no elenco da nova peça, formado, em parte, por artistas que participaram do grupo, como José Ramos, Socorro Albino e Stella Maris Saldanha, que deu vida à protagonista de Os fuzis quando tinha 18 anos, e que volta à personagem mais de 30 anos depois. Alfredo Borba, que interpreta o padre na versão atual, não era da trupe, mas trabalhou com Marcus Siqueira, grande líder e articulador do THBF falecido em 1981. As novas aquisições são Karina Falcão, Roger Bravo, Antônio Marinho, Evandro Antônio e Aílton Brito. A iluminação, que em 1978 foi executada com holofotes artesanais, feitos de latas de leite em pó – os spots-lata – ficará mais sofisticada com projeto de Saulo Uchôa. O figurino, criado por João Denys e confeccionado por Maria Lima, é sóbrio, e é finalizado por máscaras, pintadas sobre os rostos dos atores e atrizes. O espetáculo tem produção executiva da Página 21. Em continuidade à trilogia, serão encenadas montagens representativas do trabalho desenvolvido pelos outros dois grupos pesquisados: o TPN, que atuou de 1960 a 1975, capitaneado por Hermilo Borba Filho, e o Vivencial Diversiones, companhia que existiu de 1974 a 1982. A peça Os fuzis da Senhora Carrar estreia no dia 14 de agosto, no Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, Recife Antigo), ficando em cartaz aos sábados e domingos, às 18h, com temporada inicial de 12 apresentações.
Ensaio
UM ESTUDO SOBRE LUIZ MARINHO Réquiem à infância – Um estudo sobre Um sábado em 30 e Viva o cordão encarnado, de Luiz Marinho (Edições Bargaço) foi escrito por Igor de Almeida Silva originalmente como dissertação de mestrado dentro do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. A pesquisa, orientada pelo professor Anco Márcio Tenório Vieira, foi eleita a melhor dissertação defendida no programa no ano de 2007, e selecionada para publicação. Como indica o título, o livro analisa as peças Um sábado em 30 (1963) e Viva o cordão encarnado (1968), escritas pelo dramaturgo pernambucano Luiz Marinho Falcão Filho (1926-2002). Autor de 14 peças de teatro, ele nasceu em Timbaúba, município da Zona da Mata Norte de Pernambuco, e migrou para o Recife aos 18 anos, onde conviveu com importantes nomes do teatro pernambucano, como Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna e Luiz Mendonça. Marinho escreveu textos para o Teatro de Cultura Popular e para o Teatro de Amadores de Pernambuco, e teve suas peças encenadas por grupos em todas as partes do Brasil. Ele sempre se considerou um teatrólogo “matuto”. Para Igor de Almeida, as peças de Luiz Marinho são como réquiens ao passado, por meio dos quais o dramaturgo constrói mitologias pessoais e se despede da infância, com temáticas e procedimentos estéticos que prezam pela comicidade. É no jogo cômico que Marinho revela as contradições da sociedade, registra suas memórias e rende homenagem ao linguajar e aos costumes populares. A publicação vem para ajudar a suprir a carência de relatos e estudos sobre o teatro escrito e encenado em Pernambuco. De acordo com o ensaísta, falar de Luiz Marinho é falar de um autor que contribui para preencher os vazios e as ausências que terminam por fazer da história do teatro brasileiro, quase que exclusivamente, uma história do teatro produzido no Sudeste do País. (CF)
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7 2
Palco.indd 72
30/07/2010 11:18:00
Visuais
INFLÁVEIS Balões comportados e ricamente construídos
Paulo Paes apropria-se da arte tradicional dos baloeiros, hoje reprimida pelos riscos ambientais que representa, posicionando-a em outra perspectiva texto Mariana Oliveira Fotos Maíra Gamarra
1
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7 3
Visuais.indd 73
23/07/2010 15:04:50
Visuais 2
em terras nordestinas, a tradição dos balões é típica do mês de junho, quando esses artefatos ganham os céus em homenagem aos santos do ciclo: Antônio, João e Pedro. Mesmo com as campanhas contra o costume de soltá-los, iniciadas na década de 1980, e com a sua proibição, em 1998, esse elemento plástico, feito quase sempre de papel de seda, com uma sortida mistura de cores, continua fazendo parte da visualidade popular brasileira. Foi apoiado nesse imaginário coletivo que o artista paraense Paulo Paes concebeu as peças que compõem a exposição Pneumática, em exibição no Centro Cultural dos Correios até o dia 29 de agosto. O processo de criação de um balão começa com um molde, calculado matematicamente, que lhe dará forma e o fará subir a partir do ar quente em seu interior. A partir desse projeto inicial, o baloeiro pode criar diversos balões diferentes, mexendo na sua composição gráfica. Apesar da simplicidade do trabalho artesanal, Paulo Paes encontrou múltiplas possibilidades de intervenção na cor,
Ao recontextualizar esse artefato numa prática experimental, o artista contribui com o debate sobre sua proibição no País no projeto gráfico, na estrutura, nas angulações e na geometria de cada um de seus balões-esculturas. “Eles são simples, mas carregam uma grande margem de transformação”, pontua. No caso de Paes, a liberdade de criação é maior, já que suas obras estão livres da obrigatoriedade de voar. Em cada peça, o artista trabalha os volumes e sua espacialidade inflando-a, mas a mantém presa ao chão. A permanência dos balões, o fato de estarem fixados ao piso, não lhes tira o seu caráter efêmero. Assim como os baloeiros perdem seus balões quando os mandam para o céu, num momento de êxtase e mobilização coletiva, Paes perde os seus pela própria fragilidade do material utilizado, o papel de seda,
e seu rápido processo de desgaste e de perda da coloração. O que fica em ambos os casos, no de Paes e no dos baloeiros, é o molde que pode perpetuar aquele balão inúmeras vezes, e o impacto do ritual coletivo que envolve esse universo lúdico. Ao recontextualizar esse artefato da cultura popular brasileira numa prática experimental, o artista contribui com a discussão sobre a proibição de se soltar balões no País. Seus trabalhos têm agradado a comunidade dos baloeiros, que acredita ser possível desmistificar a prática a partir das obras. Os contrários à causa e defensores da lei também apontam a importância do balãoescultura como uma possibilidade de reposicioná-lo na sociedade, evitando os possíveis estragos por ele causados. “É importante legitimar o balão e discutir essas questões”, destaca Paes. A relação do artista com os elementos que compõem esse trabalho é bem antiga. Ainda jovem, ele foi confrontado com a visualidade dos balões e também foi apresentado ao papel de seda, matéria-prima fundamental para construir as pipas
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 74 75
Visuais.indd 74
23/07/2010 15:04:57
Keith Haring
EMPATIA COM AS CRIANÇAS
3 Página anterior 1 mAtriz
A partir do molde dos balões, o artista pode brincar com os grafismos e as cores
Nestas Páginas 2 PeSQUiSA
Mesmo tendo memória visual do balão desde a infância, Paulo Paes se envolveu com a prática na década de 1980
3
Sem voo
As obras de Paulo Paes são balões-esculturas, inflados e mantidos presos ao chão
da sua infância. Contudo, foi apenas ao ingressar na Escola de Artes Visais do Parque Laje, no Rio de Janeiro, que se envolveu mais profundamente com a prática dos baloeiros daquele estado, como espectador e pesquisador. Ali, conheceu o alfaiate e baloeiro Ivo Patrocínio, com quem aprendeu muito sobre a arte paciente de calcular um molde, dobrar e colar o papel. Da mesma forma que aprendeu, Paulo quer agora repassar seus conhecimentos sobre essa “célulatronco da cultura popular”, como gosta de se referir aos balões. No dia 12 deste mês, ele vai lançar um manual de fabricação dos balões expostos, juntamente com um catálogo de moldes e os parâmetros numéricos para alcançá-los. Já entre os próximos dias 24 e 26, irá ministrar um workshop sobre a técnica. As inscrições podem ser feitas pelo telefone (81) 8662.0878 ou pelo email educativopneumatica@gmail.com.
@ continenteonline Assista a um vídeo sobre a produção de balões no site da Continente.
Instadas a opinar a respeito da pintura reproduzida acima, feita em 1982, sobre lona vinílica, as crianças deram respostas ótimas; entre as quais, a seguinte: “Isto parece um muro de tijolos e esta pessoa escalou até o alto e está chateada e triste porque acha que o amor ficou de fora de sua vida”. Ou: “Alguém morreu. Por isso tem a cruz no canto. E ele amava essa pessoa. Agora está pondo para fora toda a raiva”. Conta-se que, logo no início de sua carreira fulgurante, quando grafitava em giz nas galerias de metrô novaiorquinas, Keith Haring (1958-1990) era indagado pelos observadores sobre o que significavam mesmo aqueles desenhos de traços simples e simpáticos. Ele jogava para o outro, e respondia: “Você decide. Eu só faço o desenho!”. Lançar perguntas e deixar que o público devolva respostas foi a eficiente decisão editorial de Ah, se a gente não precisasse dormir!, livro para crianças (Cosac Naify) que tem na obra do artista norte-americano seu alicerce. O título, evidentemente desperto, dialoga com esse trabalho jovial, enérgico e supercolorido, e cita diretamente o artista. Numa entrevista que deu à revista Rolling Stone, em 1989, pouco antes de sua morte (de Aids, aos 31 anos), Haring expressava urgência em viver e realizar sua obra, ainda que soubesse da incompletude de ambas, ao afirmar: “Ah, se a gente não precisasse dormir! Por outro lado, tudo é divertido, tudo faz parte do jogo”. Do mesmo modo como esse livro indagou crianças e reuniu suas respostas, ele deixa também ao leitor, como num jogo, uma pergunta a cada tema tratado em suas páginas. Para a obra sem título que escolhemos para ilustrar este breve texto, indaga-se: “Que emoções esta pintura provoca em você?”. Como queria Haring, uma nova interpretação fica por sua conta, leitor. ADRIANA DÓRIA MATOS
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7 5
Visuais.indd 75
23/07/2010 15:05:07
o adeus de negão
matéria corrida José cláudio
artista plástico
Manhã antes de os outros se acordarem . Frio na sola do pé no
piso de cimento áspero de umas das placas do jardinzinho em frente da casa, debaixo da goiabeira, eu olhando para a rua. Uns salpiquinhos de garoa nos braços e ao redor do pescoço no decote da camisa de meia, grãozinhos gélidos, dulcíssima carícia. A temperatura friinha me lembra “países” por onde passei, Garanhuns, São Paulo, ou países, sem aspas, Itália, França e outros. As pontas de arame farpado da cerca, que toco com a ponta dos dedos, beliscam de leve como as gotinhas do chuvisco. Dois sebitos brincam em cima dos pegaladrões do muro ao lado. O mar, ao longe, ainda não está prateado do sol. Uma nuvem maior, parada, contra o azul cobalto forte do céu deixa que outra se desloque quase imperceptivelmente levada pelo vento que vem do mar. Extensa língua de
prata surge no mar entre o arroxeado do horizonte e o cinza quase verdecana mais próximo. O chão está úmido, tanto o do barro da rua sem calçamento quanto o do cimento onde piso descalço à espera do entregador de jornal, dia de ler a crônica de Joca Souza Leão (Jornal do Commercio). Ontem nosso belo Negão, mestiço de pastor belga, foi enterrado com sua coleirinha verde-amarela que minha mulher comprara poucos dias antes. Nem alcançou a abertura da Copa do Mundo da África do Sul, enterrado na véspera, mesmo dia da morte da bisneta de Mandela. É como se eu estivesse ali no buraco com coleira e tudo. Negão. Não sabia que te queria tanto. Vou guardar para sempre os teus latidos. Joca falava da Tamarineira, salva. Ainda bem uma coisa boa. Nunca mais minha mulher vai dizer: “Mas este cachorro latiu a noite toda”.
Às vezes ele mantinha um dueto com o cachorrinho magricela da casa de uns amigos de frente, uma miniatura de galgo. Acho que também latia para os timbus no pau-brasil do quintal. Uma vez latiu, latiu, latiu, e era um ladrão. Uma manhã assim. A rua deserta. Negão não podia passar para o lugar onde o ladrão se escondera, detrás do pé de dendê, junto da goiabeira, barrado por um portão de ferro que divide, do quintal, o jardim. Quando abri a porta, o ladrão botou a máuser grandona, niquelada, em cima de mim e, acredite se quiser, eu nem tive medo, acho que por causa de Negão, embora ele não pudesse fazer nada. O ladrão disse: “Entra. Entra”. Aliás, ao ver a manga amarela da camisa de meia, de manga curta, pensei em brincadeira de algum conhecido, um sobrinho por exemplo. Eu disse com voz calma: “Aqui não tem nada para você, acredite”. Virei
c co o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7 6 7
Mat_Corrida agosto.indd 76
23/07/2010 15:07:09
as costas, dei as costas para o ladrão, eu somente de calção, sem camisa, e disse: “Venha por aqui”, chamando-o para sair pelo portão em vez de pular o muro de volta como ele devia ter feito para entrar. Quando olhei para trás, para ver se me acompanhava, já o ladrão estava somente com a cabeça acima do muro, pendurado pelo lado de fora, seguro pelas mãos, muro esse que, pelo lado de cá, do jardim, não chega a um metro de altura mas, do lado da rua, tem bem uns três: é que o terreno é enladeirado e o arquiteto, Abel Accioly, aproveitou a altura do barranco e fez a casa no alto. “Você não vai fazer nada não, né?” perguntou o ladrão. Lhe disse: “Não. Boa sorte”. Ele respondeu: “A gente se vê por aí”. E soltou-se do muro, que nessa parte não tinha pega-ladrão, caindo em cima de uma tulha de capim da limpa do terreno, que tínhamos feito uns dias antes, para espalhar, esse
ele era de minha cunhada Jacy, deixado de herança quando ela se mudou para o canadá. todo preto, batizei-o de Apagão capim seco, pelos buracos da rua. Dias depois notamos que entrara cortando o arame da cerca no lado onde, por isso, fiz um muro, onde os sebitos brincavam esta manhã. Com que gosto Negão, já muito doente, teve uma “visita da saúde”, comeu a ração a que, por sugestão do veterinário, Carlinhos, Carlos
Marcos Oliveira de Souza, minha mulher acrescentou fígado cru cortado em pedacinhos: sua linguona lambeu todos os cantinhos da cuia! Ele era de minha cunhada Jacy, deixado de herança quando ela se mudou para o Canadá. Todo preto, batizei-o de Apagão. Mas uma empregada começou a chamálo de Negão e o nome pegou. Seu latido era muito forte e rouco. Seu olho, amarelo-ocre. Se eu tivesse sido assassinado pelo ladrão, Negão teria sido a única testemunha. Eu lhe teria lançado o último olhar, como ele, já sem poder se levantar, lançou-me o dele, a perguntar o que estaria acontecendo. Quem sabe responder por que se morre?
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 7 7
Mat_Corrida agosto.indd 77
23/07/2010 15:07:14
reprodução
JUSSARA QUEIROZ Porque o curso de cinema não podia fechar Potiguar radicada em Niterói, ela batalhou pela manutenção da graduação da UFF, onde deu início à produção de sua filmografia pouco conhecida texto Raquel Monteath
Claquete Uma casa cheia de gatos, todos
com nomes de cineastas (sendo Truffaut o “gato-pai”); a paixão pelo Flamengo; o medo de baratas e de almas penadas. Descrever as peculiaridades dessa figura franzina e audaciosa, que utilizou a linguagem audiovisual para fazer denúncias atemporais, é um plano difícil. Talvez pela carga de ser mulher, baixinha, nordestina, que assumiu o cinema como profissão na década de 1970; talvez pela interrupção da carreira por uma encefalite, durante as filmagens do lúdico O voo do menino-pipa (1996). Não importa. O fato é que os projetores do cinema não chegaram a exibir a imagem da cineasta. Sua história pode até ser real (e é), mas o enredo
parecia estar escrito desde que a adolescente de Jucurutu, município no interior do Rio Grande do Norte, decidiu ir para Niterói fazer cinema na Universidade Federal Fluminense. A menina que projetava figurinhas de chiclete em caixas de sapato para seus irmãos foi para o Rio de Janeiro, onde desenvolveu importante atuação política enquanto estudante, lutando para que o curso de Cinema da UFF não fechasse. A cineasta em questão é Jussara Queiroz. “Nós estávamos no básico de comunicação e, de repente, entram na sala a Jussara, com um sotaque nordestino superforte, um aluno meio gago e outro falando para dentro”, relembra a colega e cineasta Neli Neves. “Não entendia quase nada,
só sabia que a gente tinha que salvar o curso de cinema”, completa. Apadrinhado pelo ilustre Nelson Pereira dos Santos, o curso seria fechado por falta de equipamentos, não fossem as reivindicações dos próprios alunos. “É uma geração que se articula e começa a fazer um trabalho político para conseguir os equipamentos e modernizar o curso. Eles compram para si a briga, não delegam à instituição, e a Jussara encabeça esse movimento”, afirma Tunico Amâncio, coordenador do Laboratório de Investigação Audiovisual do Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF. A partir daí, ela conquistou a liderança e o respeito entre os alunos, o que iria
co c o n t i n e n t e AG O S TO 2 0 1 0 | 7 9 8
Claquete.indd 78
23/07/2010 15:08:24
Aos 17 anos, Jussara iniciou sua carreira como assistente de montagem em Boi de prata (1980), de Augusto Ribeiro Jr. A cineasta dirigiu, fora as experiências em Super 8, seis curtas e um longa-metragem, todos com temáticas socioambientais e políticas. Ela conseguia juntar sua militância política ao fazer cinema, sem, com isso, filiar-se a nenhum partido.
Um rico LeGADo
Segundo a pesquisadora de cinema Berê Bahia, seus filmes tratavam basicamente de jornalismo, política, pintura, educação e loucura. Seu primeiro curta, Zé ninguém por enquanto (1979), inspirado na obra de Wilhelm Reich, tem um viés mais existencialista: fala sobre o que um homem comum é capaz de fazer a si próprio. Já em Acredito que o mundo será melhor (1983), parceria com o diretor de fotografia Tucker Marçal, aborda o cenário
Seus trabalhos, usualmente experimentais, tratam de jornalismo, política, pintura, educação e loucura
fundamentar sua militância no cinema brasileiro dos anos seguintes. Depoimentos como esses compõem o documentário O voo silenciado
do Jucurutu – Sobre a cineasta Jussara Queiroz (2007), dirigido pelo jornalista
Paulo Laguardia, filme que foi um dos vencedores do Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro daquele ano. “Em 2006, chegou às minhas mãos o projeto de finalização para O voo do menino-pipa, entregue pela irmã dela, Iara Queiroz. Para minha surpresa, existia aqui no Estado essa vasta obra cinematográfica, até então ignorada, inclusive pela própria Associação Brasileira de Documentaristas e CurtaMetragistas”, comenta Laguardia.
da luta política e dos conflitos de terra dos boias-frias. O filme foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, por incitar a luta de classes. Em Um caso de vida ou morte (1985), sobre desnutrição e trabalho infantil, Jussara promove reflexões sobre a sociedade brasileira, tendo em sua narrativa momentos que remetem ao aclamado Ilha das Flores, de Jorge Furtado. De forma criativa, Um certo meio ambiente (1986) denuncia a atuação da já falida metalúrgica Ingá, no Rio de Janeiro. “Tem um plano em que o remo levanta uma substância vermelha depositada no fundo do rio, acusando o enorme passivo ambiental presente na Baía de Sepetiba”, comenta o secretário de meio ambiente de Niterói, Jefferson Martins. “É um plano muito bem trabalhado esteticamente, e que ganha mais força quando colocado em seu contexto de poluição”, acrescenta Tunico Amâncio. Num contraponto de
esgotos e prédios chiques, sugere ao espectador estabelecer conexões entre poluição e desenvolvimento urbano. O experimentalismo, em seu trabalho, veio das próprias limitações orçamentárias. Em Fora de ordem (1981), baseado numa notícia de atropelamento, ela pintou figuras no papel para compor o júri, devido à ausência de elenco. “É um filme bastante peculiar, se comparado aos seus contemporâneos. Esse tipo de solução, barata e criativa, tinha em si o próprio questionamento da linguagem”, argumenta Amâncio. Seu único longa, A árvore de marcação (1987 – 1993), é baseado no livro Crianças em ação, do Pe. Reginaldo Veloso, e discorre sobre essa cidade do interior da Paraíba, onde crianças trabalhavam desde cedo nos canaviais e mangues. O enredo trata da organização das crianças, a partir da chegada de freiras na comunidade. O longa esperou quatro anos para ser finalizado, pois nesta época o cinema brasileiro entrou em crise com a extinção da Embrafilme. Não teve boa distribuição, mas lhe rendeu um convite para ir à Califórnia, para explicar a uma turma de alunos de Steven Spielberg como tinha feito a cena dentro do mangue. Todo seu acervo filmográfico foi reunido e apresentado por ocasião da homenagem que lhe renderam no 33° Festival de Cinema de Brasília, em 2000. No mesmo ano, foi remetido ao FestNatal, mas não chegou a ser exibido para o público. “Acho que essa postura reflete o que de mais pobre existe em nossa cultura: a falta de preocupação com a memória e a história. Não se trata de nada pessoal. É uma atitude de desapego aos valores culturais, principalmente pelas instituições governamentais”, comenta Laguardia. Com imagens de sua vida pessoal, cedidas por amigos e familiares, o documentário constrói uma narrativa nostálgica sobre a potiguar que, acometida pela encefalite, ficou sob os cuidados de seus familiares. Devido à inflamação na base do cérebro, Jussara não articula bem o pensamento e as palavras, e é através da imagem que ela encanta os espectadores. O filme termina com imagens capturadas pela própria Jussara, com uma Mini-DV.
co n t i n e n t e AG O S TO 2 0 1 0 | 7 9
Claquete.indd 79
23/07/2010 15:08:27
Cardápio RELIGIOSIDADE Sentado à mesa na companhia dos orixás
A comida de santo integra o cotidiano gastronômico dos brasileiros, mas boa parte deles desconhece sua origem sagrada e os rituais que a cercam texto Renata do Amaral Fotos Eduardo Queiroga
1
co c on nt tiin neen nt tee ag ago ossto to 220 0110 0 || 880 1
Cardapio.indd 80
23/07/2010 15:11:05
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 1
Cardapio.indd 81
23/07/2010 15:11:29
“todo mundo gosta de acarajé/ Mas o trabalho que dá para fazer é que é/ Todo mundo gosta de abará/ Mas ninguém quer saber o trabalho que dá”, cantavam Carmen Miranda e Dorival Caymmi, em A preta do acarajé, canção de 1939. Que preparar esses quitutes é trabalhoso todo mundo sabe. O que pouca gente sabe é que acarajé, abará, vatapá, xinxim, farofa e outros pratos da cozinha brasileira fazem parte da dieta dos orixás do candomblé. Nos rituais da religião afro-brasileira, os alimentos são oferecidos aos santos em troca de saúde e vitalidade. “Nenhum orixá pode existir sem as suas comidas privativas”, escreve Luís da Câmara Cascudo em História da alimentação no Brasil. A religião foi essencial para a manutenção da cultura negra, incluindo hábitos alimentares. “Seria ao redor dos candomblés, do culto jeje-nagô, que a cozinha pôde manter os elementos primários de sua sobrevivência”, afirma Cascudo. Ao falar sobre mitos e realidades da cozinha africana no Brasil, o historiador ressalta que “cozinha africana”, aliás, é um conceito tão vago quanto “cozinha
Cardápio europeia” ou “cozinha americana”, tamanhas são as variedades regionais. Por aqui, a miscigenação marca a comida afro-brasileira, que importou da África Ocidental o dendê e, da Índia, o coqueiro, para gerar uma culinária única (do outro lado do Atlântico, pouco se usa leite de coco, por exemplo). No final do século 16, plantas sulamericanas e africanas trocaram de habitat, misturando-se de tal forma que sua origem se confunde. “Duzentos anos depois, os africanos ocidentais não compreenderiam como o milho, o amendoim, a mandioca, a pimenta, fundamentais na sua nutrição, não fossem nativas como eles próprios. Tal e qual para o brasileiro, o coqueiro, a bananeira, o inhame são nacionais”, ressalta Cascudo. O antropólogo Raul Lody, autor de Brasil bom de boca – Temas da antropologia da alimentação, explica que os iorubás se destacam entre os povos da África
2
As cozinheiras dos terreiros, chamadas de iabassês, dedicamse ao preparo dos cardápios com votos de sua doutrina
Ocidental que se fizeram presentes na formação cultural brasileira. A África do Norte, muçulmana, foi responsável pela influência que Gilberto Freyre chamou de “moçárabe”. Com o toque português, o que se vê é uma cozinha que já nasce multicultural, bebendo de várias fontes. O vatapá é um exemplo: tem uma base que se assemelha à da açorda, prato português feito com pão velho deixado de molho e acrescido de temperos, peixe e ovo cru. A castanha de caju é da Mata Atlântica, e o amendoim, africano. O prato ainda sofre variações regionais: o
vatapá pernambucano tem menos dendê e mais amendoim; o baiano pode ser de galinha, peixe ou porco; e o paraense leva camarões frescos. “As cozinhas vão se dando também pelas oportunidades”, explica Lody. O intercâmbio de ingredientes remonta aos navios negreiros do Brasil Colônia, onde produtos não perecíveis – como farinha de mandioca, rapadura, fumo de rolo e cachaça – eram estocados para servir de moeda de troca para a compra de mais escravos. Um exemplo é a mandioca sul-americana, cujo principal produtor é hoje a África. “Todo esse intercâmbio vai gerando sistemas alimentares identitários”, afirma.
coMiDA PARA A ALMA
Para Lody, autor do clássico Santo também come, publicado em 1978, a comida é uma forma de se relacionar com os deuses. Nada é por acaso: tudo tem significado nas preparações. Além
co c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 2 3
Cardapio.indd 82
23/07/2010 15:11:36
Página anterior 1 oxuM
O terreiro Abassá To Igballet realiza sua festa anual para a orixá no mês de julho
Nesta página 2 ofeRenDAS
A cesta de presentes, recheada com flores, alimentos e pedidos dos filhos, é colocada em um rio próximo ao terreiro
3 RegRAS Cabe aos homens sacrificar os animais para as ofertas
3
de alimento para o corpo, os pratos são acepipes para o espírito. “Comer é acionar o axé – energia e força fundamentais à vida religiosa do terreiro, à vida do homem”, escreve. Se o preparo é para as divindades, a cozinha não poderia deixar de ser um espaço sagrado. As cozinheiras dos terreiros, chamadas de iabassês, dedicam-se ao preparo dos cardápios com votos religiosos. Em algumas cozinhas, os homens são proibidos de entrar. A função de cada um é bem definida e cabe aos homens sacrificar os animais para os pratos, segundo regras específicas, e entregar a carne já limpa para as mulheres. “A energia do corpo está na comida”, explica o babalorixá Pai Lula, responsável pelo terreiro Abassá To Igballet e pai de santo há 42 anos. Por isso, as oferendas são feitas pedindo proteção, vida e saúde. O orixá se alimenta e transfere ao homem seu axé,
ou seja, sua força sagrada. E os gostos variam segundo a personalidade de cada um: se a energia forte de Iansã pede acarajé com dendê, o orixá do branco Oxalá adora doces com mel. Em 3 de julho, o terreiro fez a festa anual de Oxum, senhora das águas doces. Até mesmo os atabaques que dão o tom da celebração são ungidos pela comida antes de começarem a ecoar. A música e a dança vão até a madrugada, quando a cesta de presentes para a divindade, recheada com flores, alimentos e pedidos dos filhos, segue para ser colocada em um rio próximo ao terreiro, na Iputinga. Pouco antes disso, o ponto alto da festa é a oferenda do ipeté à deusa, composta de inhame pilado, azeite, cebola, camarões e ovos cozidos. No ritual, os presentes podem se servir do prato diretamente do colo de Oxum, que o oferta com uma colher de pau. Se puderem, devem deixar moedas ou
cédulas ao fazer pedidos. Ricamente vestida de amarelo, ela é conhecida por ser a orixá da fortuna e da beleza.
HiStÓRiA De ReSiStÊnciA
O babalorixá Manoel Papai, responsável, há 20 anos, pelo Sítio do Pai Adão (ou Ilê Obá Ogunté), em Água Fria, fez uma pesquisa com 528 terreiros do Recife e descobriu que 80% são mistos. Além da influência africana, eles possuem traços indígenas, como o culto de caboclos e da jurema, considerada a árvore dos ancestrais. A influência católica também é percebida nas rezas praticadas nessas casas. Reduto tradicional do candomblé de origem nagô, o Ilê Obá Ogunté foi fundado em 1875 por Ifá Tinuké, considerada uma cozinheira de mão cheia. A “dona da casa” é Iemanjá, mas outros orixás também são cultuados. Segundo Manoel Papai, o candomblé tem três nações principais: nagô, da
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 3
Cardapio.indd 83
23/07/2010 15:11:48
Nigéria; xambá, do Sudão; e jeje, do Daomé (atual Benin). Os pratos variam entre as nações e podem ser notadas diferenças de um terreiro para outro. O tempero básico é composto por sal, cebola e azeite de dendê, presente em praticamente todas as preparações, exceto aquelas para Oxalá. O camarão seco ralado também é muito comum. A comida é usada como oferenda (obrigação) ou como remédio (ebó), ou seja, a pessoa oferece a comida e o orixá cura os males em troca. Oxum, por exemplo, cuida de problemas de gestação e gosta de omolocum. Exu é o único orixá que gosta de carne crua – come fígado, bofe e coração de boi, além de farofa, tudo com muita pimenta. Para o babalorixá, a equivalência dele com o Diabo no sincretismo não procede. “Exu, como qualquer santo, é a própria intenção”, esclarece. Já Xangô é o orixá mais guloso, aquele que nunca está satisfeito, e seus
Cardápio pratos favoritos são beguiri (carne ou galo com quiabo e temperos) e amalá (pirão de farinha, água e sal). As pessoas que seguem os preceitos compartilham os tabus alimentares dos seus orixás: as iniciadas de Iansã não comem abóbora ou caranguejo; as de Oxum, peixe sem escama; as de Omolu, siri. É preciso estar com o “corpo limpo”: sem fumar, beber, menstruar ou ter relações sexuais alguns dias antes e depois do ritual. Antigamente eram usadas apenas panelas de barro no preparo dos alimentos, mas hoje o alumínio é comum. O Sítio do Pai Adão guarda a memória das perseguições sofridas no início do século 20. A capelinha em frente servia para despistar, e até o interior da centenária gameleira do quintal virou esconderijo para objetos rituais. Mesmo sendo de outra geração, Manoel Papai teve que lidar com o preconceito contra a religião afro-brasileira no colégio de padres onde estudou: certa vez, mencionou Xangô e Oxum e foi suspenso da escola por 15 dias. O terreiro Xambá (ou Ilê Axé Oyá Meguê/ Terreiro Santa Bárbara),
4
Quem segue os preceitos compartilha os tabus alimentares dos seus orixás: iniciadas de iansã não comem abóbora
assentado em São Benedito, em Olinda, que completou 80 anos este ano, é considerado um dos últimos representantes da nação xambá no Brasil. De acordo com o babalorixá Pai Ivo, uma das particularidades culinárias dessa nação é servir os pratos aos orixás acompanhados por pirão de farinha de mandioca e azeite de dendê, enquanto as outras casas preferem a farofa como acompanhamento. A cebola também não faz parte do tempero básico aqui. Há mais de três décadas acompanhando a comida de santo, Lody diz que pouca coisa mudou de lá para cá. Alguns pratos foram criados, outros adaptados, mas a religião assegura a manutenção das tradições, como uma verdadeira “âncora de resistência e de
memória”. A influência sobre a mesa brasileira também está consolidada: pimentas variadas, canela com açúcar (de origem moçárabe), inhame e farofa são apenas alguns exemplos.
nA uniVeRSiDADe
A graduação em Gastronomia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) conta com uma disciplina optativa sobre a cozinha de matriz africana. Segundo o professor Alessandro Jacinto, o objetivo do curso é desmistificar o tema e mostrar que essa cozinha não é composta somente pela culinária baiana, mas que tem características próprias em cada local. Os alunos aprendem a teoria e a prática, apresentadas em pratos de café da manhã, almoço e jantar. O munguzá, parte dos ritos do culto da jurema, não fica de fora. Caruru, bobó, acarajé, vatapá e amalá são alguns dos pratos preparados nas aulas. “Partimos da gastronomia para chegar à história”, explica o professor, que busca fazer uma miscelânea do que é servido nos terreiros hoje. Ele ressalta que o acarajé dos santos é bem diferente daquele que ganhou fama
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 4 5
Cardapio.indd 84
23/07/2010 15:11:55
Calendário 5
4
teMPeRo
5
PeSQuiSA
Após o sacrifício dos animais, começa o preparo das receitas, que, no Sítio do Pai Adão, levam sal, cebola e azeite de dendê O babalorixá Manoel Papai aponta que, dos 528 terreiros do Recife, 80% são mistos, com influências africanas, indigenas e católica
na Bahia, que mais parece um hambúrguer. A iguaria surgiu quando se permitiu que as filhas de Iansã saíssem às ruas para vender quitutes. Depois de sofrer bastante preconceito, a comida acabou caindo no gosto popular. Bem menor, a versão original era comprida para Xangô e redonda para Iansã, sem recheio. Há quem diga que a mistura atual surgiu por demanda dos turistas. Além da disciplina, existe na universidade um projeto de extensão voltado para levar boas práticas de manipulação aos terreiros.
Afinal, eles oferecem banquetes para muita gente ao mesmo tempo. Iniciada em maio, a ação não é fiscalizadora, mas educativa, e acontece por meio de minicursos e da formação de multiplicadores. “É mais uma forma de combater os preconceitos e fortalecer a cultura”, afirma Jacinto. Ao prefaciar o citado livro de Lody, Gilberto Freyre ressalta que a alimentação dos santos, “ao caráter sagrado, junta alguma coisa de sensual nos gostos e nos cheiros”. Para além do teor religioso, o sabor inconfundível do dendê e a mistura de influências já se incorporaram ao cotidiano de tal forma que pouca gente se lembra de sua origem ritual. Ao lado de serem afro-brasileiras, são também belos exemplos da cozinha nacional, miscigenada como o próprio país.
COm ApEtItE DE ORIxá Os pernambucanos têm duas boas oportunidades de adentrar o universo da comida de santo: os festivais Comida de Santo e Comida de Terreiro. Enquanto o primeiro oferece releituras das receitas favoritas dos orixás feitas por chefs renomados, o segundo é uma chance ímpar de provar vários pratos de terreiro de uma vez só, em um evento aberto ao público e gratuito. O Comida de Santo faz parte do calendário do Ano da Gastronomia no Recife, evento realizado pela prefeitura para divulgar a produção gastronômica local. De 23 a 31 de agosto, 12 restaurantes vão oferecer pratos inspirados em 12 orixás diferentes. Entre os participantes, estão o Dalí Cocina, que homenageia Nanã; o Oficina do Sabor, que faz um prato novo para Oxum; e o Thaal Cuisine, cuja santa é Iansã. O chef Armando Pugliesi, do Afonso & Anísio, fez um menu especial para Xangô: como os ingredientes preferidos do orixá são quiabo, rabada, dendê, camarão seco, cebola, milho branco e maçã, o cardápio vai ser composto por abará de entrada; rabada desfiada em seu molho, farofa de camarão e dendê, polenta de milho branco e quiabo frito como prato principal; e éclair com recheio e calda de maçã para a sobremesa. Iemanjá vira patrona temporária do restaurante Varekai. Em fase de elaboração, o menu vai conter insumos como peixes de mar e camarão seco. A sobremesa é o tradicional manjar de ameixa seca, que ganha um toque diferente com uma calda de gengibre. De 24 a 26 de setembro, é a vez do Comida de Terreiro. O evento, realizado pela produtora Aurora 21, com patrocínio do Funcultura, teve sua primeira edição em 2009, no Museu do Estado de Pernambuco. Este ano, acontece no Museu da Abolição, com doze barracas, nas quais o público pode experimentar gratuitamente as comidas de cada orixá, representado por um terreiro. Na dúvida, a dica é provar um pouquinho de cada. (RA)
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 5
Cardapio.indd 85
23/07/2010 15:12:02
reprodução/acervo museu do estado de pernambuco
Artigo
MARIA FILONILA DOS SANTOS DIAS REGUEIRA ORIGEM E SIMBOLOGIA DOS EX-VOTOS De acordo com a literatura existente, ex-votos são objetos ou ações simbólicas que representam situações de vida de um indivíduo que agradece – por meio de oferta material ou ação corporal – à divindade ou entidade sobrenatural que o acudiu com algum benefício em momento de vicissitude. Apesar de sua origem pouco conhecida, o ex-voto é uma prática universal, observada em todas as épocas e culturas, sempre vinculada com rituais mágicos e religiosos. Cronologicamente, esse tipo de troca com o divino surge com os rituais de tradição pagã e torna-se hábito com a vigência do cristianismo. Na antiguidade greco-romana, era comum ofertar objetos votivos aos deuses durante as peregrinações, em sinal de gratidão por uma cura ou graça obtida. Na Idade Média, esse hábito, incorporado agora ao cristianismo, é adotado pela nobreza, que passa a encomendar pinturas votivas a artistas conhecidos. Acrescentado aos objetos votivos pelo cristianismo, o ex-voto pintado se restringe às classes abastadas até o século 16; depois desse período, as imagens votivas se disseminam pelo mundo ocidental, passando a figurar cada vez mais nas camadas populares. Ainda hoje, o ex-voto é uma prática corrente em vários países do mundo, como Suíça, Itália, Espanha e Portugal. Entre os brasileiros, essa prática remete ao período colonial; no Nordeste, popularizou-se como “arte votiva”. Já em Pernambuco, o ex-voto ficou conhecido como “milagre” ou “promessa”. Conceitualmente, o ex-voto pode ser entendido como uma “promessa materializada em um objeto” ou um “objeto a que se confere uma intenção
1
ex-voto pode ser uma pintura, uma escultura, ou qualquer objeto de intenção votiva usado para expressar fé
votiva”. Etimologicamente, a palavra ex-voto é um termo procedente do latim, composto pelo prefixo ex, que indica procedência, e do vocábulo votum, que significa voto. Conforme o Dicionário de expressões e frases latinas, exvoto é uma abreviação da forma latina ex voto suscepto, que significa “segundo uma promessa com que se está
comprometido”. Simbolicamente, o ex-voto tem a função de “pagar uma dívida divina”. Formalmente, o ex-voto pode ser um desenho, uma escultura, uma pintura, uma fotografia ou qualquer objeto de intenção votiva usado para expressar fé, demonstrar agradecimento ou dar testemunho da circunstância miraculosa que o consagrou. Materialmente, é um objeto produzido a partir de materiais como barro, madeira, cera, gesso, papel, tecido, osso, fibra, cabelo, fita ou outros materiais relacionados ao cumprimento da promessa feita pelo devoto ou suplicante. Do ponto de vista expositivo, os ex-votos são colocados em lugares
c o n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 6
artigo.indd 86
23/07/2010 15:14:14
1
públicos, como altares, salas de milagres, cruzeiros, igrejas, capelas, santuários, beiras de estrada e locais de peregrinação, para que todos possam ver e reconhecer atuações e fatos miraculosos. Sob o aspecto descritivo ou narrativo, é comum encontrarem-se inscrições como “testemunho de fé”, “pela graça alcançada”, “pelo milagre obtido”, nos objetos votivos. Esses relatos servem de comprovação e divulgação das curas e graças concedidas. Como “elementos materiais de ritual protetivo e produtivo”, os ex-votos apresentam um cunho mais protetivo (valor mais artístico e espiritual) ou mais produtivo (valor prático e material), diferenciando-se o caráter
de representação entre a oferenda votiva e a oferenda monetária. Finalmente, essa prática pela qual o povo conta a sua história – por meio de peças feitas em madeira, barro, pano, pedra, cera, chifre, osso; através das cartas e jornais, publicando orações em agradecimento aos santos e aos feitos divinos, manifestando seus pensamentos, dando seu testemunho, fazendo seus pedidos e transmitindo às várias gerações as notícias e tragédias de sua época – enfatiza o valor antropológico do ex-voto como agente de comunicação popular e artístico. Do mesmo modo, a criação de organizações e instituições
ex-voto cênico
as pinturas votivas se restringiram às classes abastadas até o século 16; depois se disseminaram pelas camadas populares
para satisfazer as necessidades ou reduzir os sofrimentos do ser humano ressalta o valor sociológico do ex-voto, como, na sua origem ou intencionalidade, uma realidade religiosa, mas que, na sua execução, se torna um fato social, pois envolve uma relação grupal marcada pelo relacionamento entre o ser humano (frágil e necessitado) e a divindade ou entidade sobrenatural (forte e poderosa), contexto no qual se reconhecem a graça (a divindade é generosa porque não precisa de nada) e a retribuição (o ser humano é orgulhoso, porque mesmo sem ter o que dar, faz questão de pagar sua dívida e de se tornar merecedor de novos créditos).
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 7
artigo.indd 87
23/07/2010 15:14:44
Galiana Brasil Liberdade de criação?
não é preciso ser um especialista para entender a
Galiana Brasil
é atriz e curadora de teatro e dança do SESC-PE maíra gamarra
expressão tendência de mercado. Esse conceito é aplicado no mundo dos negócios, em diversas esferas. Entretanto, há um universo criativo que entendemos por Arte que parece ser regido por leis bastante distintas, e que, aliás, desde que existe, não se encaixa em linhas e regras que não aquelas que obedeçam a uma lógica própria. Pousando o pensamento sobre as artes cênicas, venho acompanhando um movimento um tanto ingênuo, de orientação dos meandros da criação para este ou aquele caminho em obediência às tais tendências de mercado, entrando em acordo com as suas leis. Curioso, pois sabemos que obedecer e entrar em acordo nunca foram os melhores papéis desempenhados pelas manifestações artísticas, e, menos ainda, pelo teatro. Refiro-me ao mercado composto pelo conjunto de editais de financiamento ou apoio à montagem, circulação e participação em festivais. Tudo que envolve seleção, seja pública ou privada, vem desempenhando, com competência, o papel-chave de opressor, interferindo no campo estético. Os verdadeiros provedores, que promovem as artes cênicas no país, são também aqueles que elegem, ditam tendências. É preciso refletir sobre as consequências e reações em cadeia originadas por esse poder. Existem os critérios explícitos, mas coexiste um conjunto de leis que vem determinando escolhas, privilegiando estilos, ameaçando a contramaré. Há alguns anos, houve a epidemia dos monólogos. Não falo de escolha artística, pesquisa de linguagem, desafio profissional, mas de economia de pessoal, redução de gente para melhor atender às leis do dito mercado. Hoje, algumas profissões pedem socorro. Camareiras e contrarregras viraram artigos de luxo. Cenotécnicos e maquinistas trabalham bem pouco quando a onda é “a peça sou eu e uma mala”. Não que não seja possível. Todos sabem que o é. Mas há que se ter espaço para as duas coisas. Para que se amadureça a experiência estética de cada espectador, para que se desenvolva o senso, é preciso que se veja o bom teatro feito com um ator e sua malinha, e o bom teatro repleto de signos visuais. O triste é perceber que há uma minoria de companhias no Brasil autorizada a apresentar espetáculos de alta complexidade técnica, enquanto que a absoluta maioria dos artistas queima células criativas debruçada sobre os editais, pensando numa maneira de cortar recursos de toda ordem para atender às leis operantes. É preciso não perder de vista não só a natureza, mas o histórico revolucionário do teatro brasileiro. É preciso não descansar. É preciso estar atento e não se deixar automatizar, pois não há nada pior num país em desenvolvimento do que uma classe artística domesticada, afinal, em se tratando de artes cênicas, o Brasil ainda alimenta uma dívida imensa com os seus artistas e com uma população sem nenhum acesso a esse bem.
con ti nen te
co n t i n e n t e ag o s to 2 0 1 0 | 8 8
Saida.indd 88
Saída 23/07/2010 15:15:39