Continente #116 ago 10 - Liêdo Maranhão

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ACERVO Um precioso museu de tudo

Liêdo Maranhão mantém às próprias custas, em sua residência em Olinda, um conjunto de cerca de 10 mil objetos do fabulário popular, que reuniu nos últimos 40 anos e gostaria de ver expostos em uma Casa da Memória Popular TEXTO Bruno Albertim FOTOs Maíra Gamarra

Final dos anos 1950, depois de um

estágio como odontólogo e algumas escapadas mais interessado em lábios que em dentes por Paris e outras cidades da Europa, Liêdo Maranhão retorna ao Recife vitimado por certo surto de egolatria. Impressionado com espaços dedicados a nomes como Victor Hugo e Goethe, sonha em ver algum casarão da velha Mauriceia adornado com uma placa exibindo as inscrições “Memorial Liêdo Maranhão”. Aos 85 anos, já livre da típica pretensão da juventude e acomodado no título de mestre – ainda que o status não lhe renda estadia permanente em veludo azul –, ele não abandonou o projeto. “Aquilo de botar um lugar com meu nome era frescura minha”, diverte-se, exímio e notório na arte veloz da picardia. Mais de 40 anos e 10 mil objetos depois, os planos de Liêdo são muito mais sóbrios, menos ególatras e, nem por isso, mais simplistas. Quer doar tudo o que reuniu em quase meio século como colecionador patológico em uma tão possível quanto desejada Casa da Memória Popular. Dentista de formação, pernambucano por batismo e vocação, poeta, pintor, escultor, fotógrafo e antropólogo bissexto, o escritor é daqueles que nos dão sempre certo trabalho

quando tentamos encaixá-lo num rótulo. Não é um espécime do pesquisador caro às elites intelectuais, interessadas num universo popular confortavelmente traduzido. Filtro não é coisa para Liêdo. Dono de uma obra marcada pela oralidade, capaz de nos transportar para praças, mercados e outras arenas privilegiadas da sociabilidade nesta porção cabocla do mundo, Liêdo é uma espécie de – se não o maior – demiurgo da grande e fértil entidade que chamamos de povão. “Nenhum outro intelectual, que se saiba, se aproximou tanto do popular e do populário”, definiu-o o escritor Marcus Accioly. Seu acervo é tão diverso quanto ele próprio. Compreende uma das mais importantes coleções de folhetos de cordel do País, e inclui livretos, panfletos, cartazes, revistas, peças de publicidade, remédios e raríssimos livros de medicina popular e cozinha. Ele possui, por exemplo, um original de O cozinheiro nacional, primeiro livro gastronômico publicado em português, de 1885. Fontes privilegiadas para a reconstrução da memória das relações sociais não só no Recife, mas no Brasil do século 20. Nas esferas pública e privada – a vida, afinal, e como bem

sabe a antropologia contemporânea, é feita de suas miudezas. Os cerca de 10 mil objetos são mantidos com zelo e esforço num cômodo permanentemente refrigerado, de modo a preserválos da umidade e dos fungos da orla de Olinda, onde mora. Liêdo quer compartilhar com o povo a coleção, bem como informações às quais apenas um pequeno grupo de privilegiados interessados costuma ter acesso. “Tem muito chupacabra que vem aqui em casa, pega minhas coisas, usa no cinema ou na TV e nem me dá um crédito. Guel Arraes, mesmo, já chupou muito”, comenta, gargalhando. “Gostaria muito de ver o prédio histórico do antigo Diario de Pernambuco transformado num museu do ferro do Recife”, diz ele, disposto a doar uma dezena de esculturas de ferro de grandes proporções. Preocupado com o destino de antigos portões, grades e outros objetos da memória urbanística do Recife, ele passou, entre os 50 e 60 anos, a comprar quase tudo o que via. “Peças belíssimas da fundição recifense estavam sendo derretidas. Tinha que salvar de alguma maneira”. Ferrolhos, dobradiças ornamentais e placas compõem esse extrato arquitetônico do Recife dos

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Página anterior 1 RecoRte

LiêdoM aranhão evidencia interesses pelo prosaico, pelo popular e pelo escracho

Nestas páginas 2 SAcAnÓLoGo

Consta do acervo do pesquisador uma série de fotografias e postais eróticos

3 FoLHeto Peçasd e publicidade antigas fazem parte dos impressos colecionados

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4 SUcAtA Nas prateleiras do “museu” de Liêdo estão expostos objetos do cotidiano vertidos em arte

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5 cAtALoGADoS A casa também acabou se tornando um museu informal e um ateliê

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velhos sobrados, substituído hoje pela moderna arquitetura.

soldadas, propondo sistemas de relações perenes opostas à morte pela fragmentação, pela dispersão no nosso vazio brasileiro”, discorreu sobre ele, num ensaio, João Câmara. Catalogando histórias de camelôs, prostitutas, vendedores de remédios populares, cordelistas, lambelambes e outros tipos outrora mais comuns nos arredores do Mercado de São José, sua grande universidade em vida, Liêdo é também “sacanólogo”. “O povo gosta mesmo é de safadeza”, costuma dizer o

eScULtoR FoRJADo

A experiência como artista num coletivo, ao lado de gente como João Câmara e Vicente do Rego Monteiro, acabou por transformálo em escultor diante da sucata que se acumulava no quintal. De quase dois metros, as esculturas conferem uma dimensão totêmica a símbolos da cultura popular pernambucana. “As esculturas de Liêdo (...) são fixas,

autor de livros como Conselhos, comidas e remédios para levantar as forças do homem. Prateleiras preciosas de sua coleção contam muito da vida entre paredes (e extraconjugal) do Recife do pós-guerra. Obtidos nos velhos sebos da cidade, onde ele é sempre tratado como doutor Liêdo, álbuns reúnem fotografias originais de orgias cometidas em rendez-vous históricos como o Chanteclair, no condado da prostituição em que damas da noite, como a lendária

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Maria Magra, tinham a estima de alguns dos responsáveis pela política de Vargas no Recife. “Quase todos os homens se deixavam fotografar apenas mascarados”, ri ele, agora dedicado a um livro sobre o meretrício do Cais do Porto. “Ninguém até hoje fez justiça à importância da zona para a memória do Recife”, diz ele, amigo, ou mais que amigo, de prostitutas: é presença contumaz e testemunha ocular. “Rosselini foi para a zona a conselho de Gilberto Freyre. Ele pediu para não ter a identidade revelada, para ficar anônimo, como uma pessoa comum. Chegou uma mulher e não quis ficar com ele. Ele, casado com Ingrid Bergman, levou o fora de uma puta do Recife”, gargalha Liêdo. Estratégicas para os americanos, Recife e Natal receberam milhares de homens que nunca chegaram efetivamente a ir à guerra. Em vez disso, fizeram

o pesquisador vem coletando objetos em sebos, no entorno de mercados públicos e em acervos da cultura popular florescer como nunca a economia do sexo nas zonas portuárias. “O Gambrinus, o Texa’s Bar faturavam alto”, diz o pesquisador, dono de folhetos publicitários da época, nos quais, pela primeira vez, os bailes de carnaval ofereciam “finas bebidas importadas”. Liêdo diz ter herdado a vocação de colecionador do avô Methodio Maranhão, dono da Usina Matary, de Nazaré da Mata, e de uma lustrada biblioteca de 14 mil livros. “Ele era usineiro e intelectual, o que era uma coisa raríssima.

Tinha os primeiros livros de arte da Europa. E a gente ia lá, na biblioteca, ver aqueles nus clássicos de Ticiano. E chamava aquilo de ‘O primeiro dicionário de punheta’”, diverte-se. “Meu avô era muito irreverente, muito chato. Era ateu e eu herdei isso dele também”, diz o também proprietário de uma inocentíssima coleção de mais de mil santinhos e livretos de primeira comunhão, alguns em madrepérola. Em sua casa, está ainda o anuário da quinta série do Marista de 1942. Entre os alunos, os irmãos Ricardo e Francisco Brennand. “Francisco era muito ruim de matemática”, diz, ato contínuo com sua tradicional e rápida gargalhada. Com patrocínio da Petrobras e execução de alunos de biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco, todo o acervo de Liêdo já foi catalogado. Só não se sabe ainda quando – e se – encontrará abrigo na Casa da Memória Popular.

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