Continente #117 - Arquitetura

Page 1



MATHIAS CRAMER/TEMPOREALFOTO.COM/DIVULGAÇÃO

setembro 2010

aos leitores No início do século 20, o arquiteto Lucio Costa reclamava da estrutura do Louvre para exposições. Sua visão modernista considerava aquilo um empilhado mausoléu. Anos depois daquela visita, ele seria responsável, junto com Oscar Niemeyer, pela realização de um dos projetos urbanísticos mais ousados do mundo: a construção de Brasília, que em tudo questionava modelos arquitetônicos históricos, como aquele palácio. Andando à frente na história, ocorreria de, hoje, o projeto de Oscar Niemeyer para o Museu de Arte Contemporânea de Niterói ser questionado por sua eficácia, ainda que elogiado por sua exuberância. Como edifício, aquele MAC seria uma beleza; como museu, um problema. Essas relações entre forma e função e entre a arquitetura e a arte são discutidas em uma extensa matéria, realizada por Mariana Oliveira, em que destaca os novos projetos para museus, que levam em conta não apenas o que é visível ao público, mas elementos estruturais como a reserva técnica, os acessos de serviço, as áreas de circulação, e mesmo a necessária rediscussão sobre o papel do museu na sociedade atual. O que se considera um museu ideal hoje em dia? É uma das perguntas lançadas por essa reportagem. Também questionando o fazer, trazemos nesta edição um assunto muito caro aos que

editorial.indd 4

convivem com a cultura de uma maneira geral: a atuação da crítica artística. A hipótese que nos orientou foi a de que havia um arrefecimento da chamada crítica militante, aquela que se estabelecia nas páginas de jornais e revistas. A nossa suposição era de que haveria não apenas um encolhimento do espaço para a análise, em detrimento da crescente prestação de serviços atrelada à divulgação de produtos da indústria cultural, mas que ela teria passado a ser exercida por outros agentes culturais. Qual seria a boa crítica? Onde encontrá-la? Quem a praticaria e a promoveria? Munido dessas e outras indagações, o jornalista e mestre em filosofia Fábio Lucas procurou diferentes fontes entre os envolvidos no campo, para trazer ao leitor da Continente variados posicionamentos e ampliar o debate. Ao folhear as páginas desta edição, o leitor observará que há nelas o privilégio da arquitetura e da arte. Seja numa abordagem histórica (retratando a arquitetura do ferro no Recife); seja sobre a arte popular (destacando a destreza dos santeiros da sertaneja Ibimirim); ou no registro do centenário de nascimento do artista Lula Cardoso Ayres. Lula pôde, assim como Lucio Costa, olhar as obras do Louvre naquela sua versão palaciana, no início do século 20. E como foi proveitoso para sua obra o contato com aquele acervo volumoso.

30/08/2010 14:45:51


sumário Arquitetura Museus 4

cartas

5

expediente + colaboradores

6

Anne cauquelin Pensadora defende que a produção artística, sobretudo visual, não pode mais ser analisada como obra-prima

conexão

12

Portfólio

18

Balaio

58

Matéria corrida

68

Leitura

72

claquete

80

Sonoras

84

Palco

88

Saída

entrevista

10

30

66

Wikileaks Site que reúne mais de 100 mil documentos sigilosos é fenômeno na internet

Kleber de Burgos Fotógrafo se dedica à documentação ambiental, colaborando com a preservação da natureza

cinema Truffaut e Godard foram cineastas amigos que se tornaram os piores inimigos, como registra recente documentário

Peleja

comportamento A vida pessoal dos artistas deveria interferir em nossa opinião sobre eles?

em primeira mão Jonathas de Andrade Artista prepara, para a 29ª Bienal de São Paulo, obra a partir de cartazes do método Paulo Freire de alfabetização

José cláudio O nascimento de Solange

O livro vermelho Ganha tradução no Brasil obra que evidencia o processo de aprendizado do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung

Hoje, projetos para salas de exibição de obras artísticas em todo o mundo investem em tecnologia, reservando espaços para as áreas técnicas, funcionais e de visitação

20

Música Novos documentários e filmes abordam a carreira de nomes expressivos do rock

Ópera-rock Trio californiano Green Day, que aporta no Brasil para show em outubro, resgata o gênero musical em seus festejados últimos álbuns

Lágrimas de um guarda-chuva Texto do mineiro Eid Ribeiro, dirigido por Antonio Cadengue, coloca os personagens em conflito com a força divina e a diabólica

Fabio cypriano A arte aponta para a urgência do corpo, com o incremento de performances em galerias, museus e bienais

História

Arquitetura do ferro Acervo urbano do Recife possui valor histórico, econômico e político, sendo marco das relações internacionais do país no século 19

50 Capa Foto Tiago Lubambo

co c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 3

Sumario.indd 2

30/08/2010 14:47:54


especial

tradição

Pesquisadores, jornalistas, artistas e curadores discutem o papel que a análise especializada tem no contexto contemporâneo

A arte de esculpir santos em madeira, que chegou a Pernambuco no período colonial, é traço marcante da cultura de Ibimirim, cidade do Sertão do Moxotó

Visuais

cardápio

Diversificada produção do artista pernambucano, que faria agora 100 anos, ainda carece de estudos aprofundados que tornem relevantes as reflexões sobre a sua obra

Feiras conquistam clientes com a comercialização direta de alimentos livres de agrotóxicos e fertilizantes químicos

Crítica cultural

32

Lula Cardoso Ayres

60

Imaginária popular

44

Set’ 10

Produtos orgânicos

76

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3

Sumario.indd 3

30/08/2010 14:48:02


cartas De Aracaju

Triunfo Passei o último domingo lendo a revista Continente, e me impressionei com a qualidade dos textos, da edição, das fotografias, enfim, com a qualidade e seriedade da revista. Como pernambucana que mora longe, adorei ler o material sobre Triunfo, uma matéria linda, no que diz respeito ao texto e às fotografias. Toda a redação está de parabéns pelo trabalho de qualidade! HYLDA CAVALCANTI BrAsíLIA – DF

Foi com agradável surpresa que recebi o último exemplar da revista Continente e, ao folheá-la, uma coleção de adjetivos me foi vindo à mente: bonita, elegante, contemporânea, conteúdo inteligente e instigante, diagramação criativa e impecavelmente editada. Já fiz minha assinatura pelo site (que aliás também está muito interessante e atualíssimo). Espero que haja remessa para este normalmente esquecido cantinho de Brasil (sabe como é, menor estado, menor capital, “quintal de Salvador”...). E vou divulgar entre os colegas da universidade. Tenho certeza de que também gostarão. sONIA AGUIAr ArACAJU – sE

Divulgação Sou escritor e vivo em Juiz de Fora, no interior de Minas. Venho acompanhando as edições recentes da revista

(tenho um amigo que assina e nos presenteia) e me identificado muito com a proposta editorial da Continente. Este ano, publiquei um livro por uma editora local e estou me esforçando para divulgá-lo fora de minha cidade, enviando a críticos, professores e veículos de comunicação. Ficaria muito feliz em fazer esse contato com vocês! ULIssEs BELLEIGOLI JUIz DE FOrA – mG

ReSPoStA DA ReDAÇÃo Para nós, da redação, é ótimo saber que a revista chega ao interior mineiro e que nossa proposta editorial encontra identificação. Quanto a correspondências, elas podem ser enviadas à nossa sede, no endereço indicado no quadro ao lado. eRRAtA Na matéria publicada na edição 115 sobre Triunfo: o nome do empresário que construiu o Theatro-Cinema Guarany é Carolino de Arruda Campos.

VOCê FAz A continente COm A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, santo Amaro, recife-Pe, CeP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

(81) 3183 2780

Fax

(81) 3183 2783

email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

c co o n t i n e n t e s et e m b r O 2 0 1 0 | 4 5

Cartas_colabotadores.indd 4

30/08/2010 14:54:55


colaboradores

Alexandre Figueirôa

Diana Moura Barbosa

Lívia Morais nóbrega

Vládia Lima

Jornalista, professor e doutor em Cinema pela Universidade Paris III

Jornalista, mestre em Comunicação e editora cultural do JC

Arquiteta e urbanista, mestranda em Desenvolvimento Urbano, MDU-UFPE

Fotógrafa free-lancer, atua em projetos sociais de fotografia

e MAiS Fabiana Morais, jornalista e doutoranda em Ciências Sociais. Fabio cypriano, professor da PUC-SP, crítico de arte da Folha de S.Paulo e autor de Pina Bausch (Cosac Naify). Fábio Lucas, jornalista e mestre em Filosofia. Léo caldas, fotógrafo. olívia Mindêlo, jornalista e mestranda em Sociologia. Renata do Amaral, jornalista, mestre em Comunicação. Rogério Soud, caricaturista e ilustrador. Sílvia Góes, jornalista e bailarina. thiago Soares, jornalista e doutor em Comunicação. tiago Lubambo, fotógrafo e sócio da Pick Imagem.

GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco

sUPErINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTATOs COm A rEDAÇÃO

ATENDImENTO AO AssINANTE

GOVErNADOr

Adriana Dória Matos

(81) 3183.2780

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

sUPErINTENDENTE DE CrIAÇÃO

Fax: (81) 3183.2783

Fone/fax: (81) 3183.2750

sECrETÁrIO DA CAsA CIVIL

Luiz Arrais

redacao@revistacontinente.com.br

assinaturas@revistacontinente.com.br

Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão rEDAÇÃO

PrODUÇÃO GrÁFICA

EDIÇÃO ELETrÔNICA

coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco – cePe

Danielle Romani, Débora Nascimento,

Júlio Gonçalves

www.revistacontinente.com.br

PrEsIDENTE

Mariana Oliveira e Thiago Lins (jornalistas)

Eliseu Souza

Leda Alves

Maria Helena Pôrto (revisora)

Sóstenes Fernandes

DIrETOr DE PrODUÇÃO E EDIÇÃO

Gabriela Lobo, Gianni Paula de Melo, Maíra

Roberto Bandeira

Ricardo Melo

Gamarra, Maria Doralice Amorim e Raquel

DIrETOr ADmINIsTrATIVO E FINANCEIrO

Monteath (estagiários)

PUBLICIDADE E mArKETING

Bráulio Mendonça Menezes

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

E CIrCULAÇÃO

CONsELHO EDITOrIAL:

Armando Lemos

Mário Hélio (presidente)

ArTE

Alexandre Monteiro

Antônio Portela

Hallina Beltrão, Karina Freitas e Sebastião

Rosana Galvão

José Luiz Mota Menezes

Corrêa (paginação)

Gilberto Silva

Luís Reis

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

Daniela Brayner

Luzilá Gonçalves Ferreira

Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE rEDAÇÃO, ADmINIsTrAÇÃO E PArQUE GrÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

c o n t i n e n t e s et e m b r O 2 0 1 0 | 5

Cartas_colabotadores.indd 5

30/08/2010 14:55:01


ANNE CAUQUELIN

Obras de arte são produtos

Pensadora francesa afirma que a criação contemporânea deve ser entendida a partir de critérios que deixam de avaliá-la como matéria de gênio, percebendo-a como parte de um sistema texto Olívia Mindêlo

con ti nen te

Entrevista

Até o início do século 20, a ideia de arte esteve centrada no autor e na obra e acreditava-se que isso constituía sua “essência”, como se ela tivesse vida própria. Com o tempo, as correntes antiessencialistas mostraram que a arte é uma construção social, um discurso. A esteta francesa Anne Cauquelin é uma das que defendem essa perspectiva, sobretudo quando analisa a arte contemporânea em contraponto à moderna. Para ela, a produção artística, especialmente a visual, não pode mais ser percebida como a criação de um gênio ou como uma obra-prima. Ela também defende que a arte não abre mundos, muito menos as portas do paraíso, conceito que se esvaiu, embora ainda exista muita nostalgia em torno dele. Acredita que é preciso pensar numa lógica de rede e no trabalho do artista como um processo, do qual apenas uma parte ou “peça”, como denomina, será exposta. Com a intenção de mostrar essa transformação, Anne Cauquelin escreveu o livro Arte contemporânea, uma introdução, o primeiro de uma série que vem sendo traduzida no Brasil

pela editora Martins Fontes, desde 2005. Seu objetivo, desde o início, tem sido o de “explicar às pessoas que as coisas mudaram”. E é a respeito de mudanças que ela continua a refletir, aos 84 anos. Em visita ao Recife, onde realizou conferências sobre modos de pensar a arte hoje, ela conversou com a Continente sobre estética e de como a produção contemporânea permite refletir acerca da lógica de supressão tempo-espaço que marca a atualidade. continente A filosofia, no âmbito da estética, foi durante muito tempo responsável por colocar a arte no pedestal, junto à obra e ao artista. Mas a arte contemporânea fez o contrário, derrubando essa aura. Como a filosofia da arte deve se posicionar hoje? Anne cAUQUeLin A estética, ao se preocupar só com a arte, não foi muito bem-recebida pelos historiadores da filosofia, porque, até a década de 1960, a filosofia era, na verdade, história da filosofia. Eles achavam que as pessoas que estudavam estética não eram nada, não eram sérias, eram tolas. Com o movimento de 1968, a filosofia da arte, a estética, começou

a ser mais reconhecida. Agora, teve uma corrente de pensamento que não é filosofia, é a fenomenologia, responsável por colocar a obra, o artista e a sua intencionalidade no centro. Não foi a arte contemporânea que fez essa ruptura. Foi toda uma corrente de pensamento contra o essencialismo. Foi o antiessencialismo que trabalhou essa ideia de que a obra não tem um “por si”. continente Então, a estética não contribuiu para a visão essencialista? Anne cAUQUeLin Sim, mas a partir da arte moderna, ocupando-se do artista, da obra, da criação... Isso é verdade. continente E qual é o papel da estética, hoje, com a arte contemporânea? Anne cAUQUeLin A estética tinha um papel até a arte moderna, mas agora está meio perdida. Isso vale para coisas como a crítica e a história da arte, porque não existe mais um grande sistema de pensamento. Se você diz que tem uma essência da obra, então isso cria um sistema de pensamento. Até o início do século 20,

co n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 6 7

Entrevista_ANNE CAUQUELIN.indd 6

30/08/2010 14:50:55


MaĂ­ra GaMarra

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 7

Entrevista_ANNE CAUQUELIN.indd 7

30/08/2010 14:51:05


a estética ditava leis. Os românticos também tinham um sistema e diziam que eram gênios. Falavam da obra. No caso de Kant (no livro Crítica do juízo), ele não cita artistas nem obra. São leis. Aos poucos, esse papel desapareceu. Os estetas passaram a procurar as obras para tentar entender como funcionam. continente E a senhora se insere nessa mudança? Anne cAUQUeLin Sim, não posso fazer diferente, não posso me achar um Kant. Tenho que tentar entender como funciona e tentar esclarecer. Tento explicar às pessoas que a arte não é só emotividade, não é só sensibilidade. Explicar, também, que

con ti nen te

continente Com qual se identifica? Anne cAUQUeLin Com os dois – com o pensamento não essencialista, voltado a entender como funciona a arte, a tecer uma reflexão sobre a arte. continente Autores como Pierre Bourdieu e Howard Becker também defendem uma abordagem antiessencialista da arte. A senhora se identifica com a sociologia da arte? Anne cAUQUeLin Não, porque a sociologia da arte se preocupa muito com o mercado. Por exemplo, uma socióloga como Raymonde Moulin. O mercado é importante, mas não é a questão principal da arte atual. continente Mas a sociologia da arte não trata só de mercado. Bourdieu se preocupou

Entrevista não tem uma essência. São produtos e devem ser analisados como tal, com marcas específicas. Então, quando fiz esse livro de arte contemporânea (Arte contemporânea, uma introdução), era só isso: explicar às pessoas que as coisas mudaram. É uma filosofia, mas bastante modesta. Segue as obras, mas não vem antes delas, não as julga em termos de valor. continente Mesmo assim, a filosofia da arte tem um papel hoje, não é? Anne cAUQUeLin Existem movimentos, como o pragmatismo e a filosofia analítica, que se preocupam com a arte. Com um pensamento não essencialista da arte.

com os distintivos sociais inseridos nos processos da arte, do gosto e do público. Anne cAUQUeLin Nesse caso, tem coisas muito mais interessantes que Bourdieu. Ele aplicou sua teoria sobre a arte, mas poderia fazer com qualquer coisa. É mais interessante a recepção do público. Tem outras pessoas que trabalham nesse campo, como Nathalie Heinich, que tem um trabalho interessante, por exemplo. Bourdieu é muito superficial. continente A senhora também não gosta dos historiadores nem da fenomenologia. Poderia explicar por quê? Anne cAUQUeLin Os historiadores? Porque não gosto de data. Estabelecem “começou aqui e

terminou lá”, e já falaram de tudo. Acabou a explicação. Não acham conceitos. É só arquivamento. continente E a fenomenologia? Anne cAUQUeLin Sim, tem conceitos. Mas eles insistem muito na intencionalidade, em saber se o artista tem uma intenção, uma espiritualidade – tudo de que não gosto. Eles tinham uma fórmula que muita gente usa, que é a questão de que a arte abre o mundo. A pergunta é: que mundo é esse? É sempre tudo muito sagrado, muito católico. Sempre existe uma coisa além, que é um objetivo para elevar sua personalidade, seu coração. Até hoje existe isso.

“A estética, ao se preocupar só com a arte, não foi muito bem-recebida pelos historiadores da filosofia, até a década de 1960. com o movimento de 1968, a filosofia da arte, a estética, começou a ser mais reconhecida” continente Mas não seria uma parte da fenomenologia? Anne cAUQUeLin Não, toda a fenomenologia. Existe uma ideia de arte como encarnação sagrada de uma intenção. Então, para ela, a arte contemporânea é impensável. continente O ponto de vista essencialista deu muito poder à arte. Qual o poder da arte contemporânea hoje? Anne cAUQUeLin Poder? Que poder? Acho que não. Na verdade, não é um poder de transportar ideias através da emoção. Existe um poder da arte contemporânea, que transporta as atitudes e as ferramentas típicas da nova geração. E permite pensar essa transição. É um esboço de um mundo diferente.

co n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 9 8

Entrevista_ANNE CAUQUELIN.indd 8

30/08/2010 14:51:07


É um instrumento para entendermos o mundo em que nós vivemos e não para abrirmos as portas para um outro mundo, como se fosse o paraíso.

FotoS: reprodução

continente A senhora associa o conceito de arte contemporânea à comunicação, à ideia de rede. E que até na arte moderna existia uma arte contemplativa. Essa é a grande diferença que separa a modernidade da contemporaneidade? Anne cAUQUeLin Não só. Falo que existe uma osmose entre arte e comunicação. Essa ideia de rede, de circulação das obras como sendo mais importante que a obra. Esquece-se a obra. A rede é um sistema, não o artista. Antes, não era assim. A arte era universal porque tinha que comunicar, não era um

Anne cAUQUeLin Sim, é possível. Adoro pintura. Também vou ao museu, sinto o cheiro da madeira, da tinta. Faço pinturas. Gosto, olho, mas não posso dizer que é assim que a arte contemporânea existe. continente A senhora falou que costumava ir muito ao Museu do Louvre com sua avó. É nostálgica em relação ao tipo de arte que costumava ver lá? Anne cAUQUeLin Não tenho saudade. Uma coisa é isso. A arte contemporânea é outra coisa. Eu preciso ver as duas. continente Além da ideia de rede, poderia resumir outras questões fundamentais que marcam a arte contemporânea?

“A questão da exposição, do deslocamento, das obras que não são mais obras, são processos. tem ainda o deslocamento dos críticos e de outras funções ligadas à arte. existe uma dispersão, você não consegue mais se encontrar” sistema em rede, era uma lei. Não tinha ferramenta, tinha leis. Era um artista com um galerista, um artista com um museu, casos individuais. Se você conhecia algum, tudo bem, mas se não tinha, como Van Gogh, não era considerado. Uma vez que essa ideia de rede apareceu, e se estabeleceu uma comunicação interplanetária, tudo mudou. Se você entra na rede, vai correndo em todos os lugares. Muitas coisas que caracterizam a arte contemporânea vêm disso que já foi falado também entre os teóricos da comunicação: a história de que o meio é mais importante que o conteúdo da mensagem. continente Então, não é possível contemplação na arte contemporânea?

Anne cAUQUeLin As questões da exposição, do deslocamento, das obras que não são mais obras, são processos. Tem ainda o deslocamento dos críticos e de outras funções ligadas à arte. Existe uma dispersão, você não consegue mais se encontrar. Não há mais os movimentos de cultura, como Cubismo, Expressionismo etc. Não há como diferenciar. Tem que esquecer a obra. Como não tem mais obras, você vai expor um projeto, um processo, uma pista. São processos inacabados. continente Mas a impressão é de que os curadores ainda tratam a arte contemporânea em termos de obra. Anne cAUQUeLin Acho que não.

Tem um artista que trabalhou com uma galeria que não expôs nada. continente Mas as bienais de arte contemporânea estão cheias de obras e artistas. Anne cAUQUeLin Penso que a arte contemporânea é um conceito, uma marca... continente Nesse caso, qual é hoje o sentido da exposição? Anne cAUQUeLin Tem duas coisas. Uma exposição do que você coloca na parede e o conceito de exposição. São coisas diferentes. Tenho um aluno que estudou a exposição, que fez um trabalho histórico e o que ele quis dizer foi que a arte é só a sua exposição. Por si, não é nada, a obra não é nada, só é a exposição. Então, poderia muito bem escrever no jornal “Fulano fez aquilo”. E pronto. Tem pessoas que simplesmente andam nas ruas. continente Sim, mas existem também exposições que pedem a contemplação e reforçam que a obra ainda existe. Anne cAUQUeLin É verdade. Não é fácil deixar a obra, é um trabalho consigo mesmo. Mas a exposição continua sendo importante. continente Visto que uma parte do público tem resistência à arte contemporânea, qual o sentido, na prática, de ele ser o “autor da obra”, como a senhora falou? Não seria só um discurso? Anne cAUQUeLin Para Nicolas Bourriaud (autor de Estética relacional), o público não precisa entender. As pessoas precisam estar, mas o fato de que entendam ou não, não importa. continente Então, que comunicação é essa? Anne cAUQUeLin Não é comunicação para comunicar, são as ferramentas. Comunicar, nesse caso, não é “eu te amo, você me ama”. É como o conceito de deslocamento. Não é você pegar uma coisa ali e botar aqui. É mais complexo. Quanto mais a gente se aprofunda, mais fica distante de conceitos do mundo da arte. A arte se afasta do mundo das obras, dos artistas. Permanece mais e mais longe. a entrevista foi realizada com auxílio da intérprete belga Sigrid Jaurus, da agência Comunicação, intermediada pela Fundação Joaquim Nabuco.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 9

Entrevista_ANNE CAUQUELIN.indd 9

30/08/2010 14:51:09


O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

devotos

ArQuiteturA PArA Museus

Leia um trecho do livro de Hugo Montarroyos em homenagem aos 20 anos da banda do Alto José do Pinho.

Nesta edição, a Continente lança seu olhar sobre os museus a partir de uma nova perspectiva. A matéria se debruça sobre as questões arquitetônicas dos espaços. Em nosso site, o internauta poderá conferir imagens de museus mundiais de destacadas arquiteturas; poderá fazer um tour virtual pela sede da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre e, ainda, assistir a um vídeo sobre o artista. Estará disponível um artigo do pesquisador Flávio Kiefer sobre o histórico da arquitetura de museus, publicado anteriormente na revista do Propar da UFRGS.

con ti nen te

Conexão

crÍticA Conheça o edital do III Concurso Mário Pedrosa de Ensaios sobre Arte e Cultura Contemporâneas, promovido pela Fundaj.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AndAnçAs virtuAis

BiBLiotecA

turisMo

cineMA

APLAuso

Artigos acadêmicos sobre comunicação disponíveis online

Relatos de viagens do mundo inteiro em um só lugar

A volta da revista Filme cultura, marco da produção crítica

Coleção reúne livros e roteiros cinematográficos do acervo brasileiro

bocc.ubi.pt

travelblog.org

filmecultura.com.br

aplauso.imprensaoficial.com.br

Para estudantes, professores e pesquisadores da comunicação, a BOCC – Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação pode ser uma importante fonte de consulta. Reunindo artigos de diferentes linhas de pesquisa da área, o site está dividido em categorias temáticas como cibercultura, ética da comunicação e semiótica. Os trabalhos também estão organizados de acordo com a autoria e o ano de publicação, um recurso que facilita a busca do internauta por uma publicação específica. A partir de uma lógica colaborativa, é possível contribuir para o acervo da biblioteca on-line enviando artigos que estejam de acordo com as normas do site.

Antes de embarcar para um novo continente, país ou cidade, todo viajante procura o máximo de referências sobre esse lugar. Para simplificar a pesquisa, o portal Travel Blog oferece depoimentos de pessoas de todo o mundo que relatam suas experiências de viagem, compartilham fotografias e vídeos, além de trocarem informações no fórum do site. O portal também traz dicas de segurança, indicações de hospedagem, mapas e informações gerais sobre países e continentes.

Entre 1966 e 1988, o Brasil teve a revista Filme Cultura como principal periódico sobre cinema em circulação, sendo considerada por muitos leitores a equivalente brasileira da francesa Cahiers du Cinéma. Em abril deste ano, a revista voltou a ser publicada e, paralelamente à sua produção trimestral, a equipe de críticos alimenta o site com matérias e vídeos. Enquanto a revista de nº 52 não chega às bancas, os internautas podem acessar gratuitamente todas as edições anteriores da Filme Cultura, página a página, em formato PDF – um verdadeiro acervo da crítica cinematográfica do país à disposição.

Lançada pela Imprensa Oficial, a Coleção Aplauso é formada por livros que celebram a cultura nacional. Seja através de biografias de figuras importantes do meio artístico ou de roteiros marcantes do cinema, teatro ou TV, a Aplauso busca difundir as obras brasileiras e seus criadores. No site, todo o acervo da coleção pode ser acessado gratuitamente e baixado em formato TXT ou PDF. Informações sobre os autores dos livros ou roteiros também estão disponíveis na página da internet.

c co on nt tiin neen nt tee sset eteem mbbr ro o 220 0110 0 || 110 1

Conexão.indd 10

30/08/2010 14:57:32


blogs AniMAçÃo ericpowerup.net

Apesar de nunca ter feito cursos de animação, o americano Eric Power decidiu criar alguns curtas a partir de técnicas simples que foi desenvolvendo em um processo de autodidatismo. É possível assistir às suas animações no blog.

FotoGrAFiA afdeautofoco.blogspot.com

AtivisMo, versÃo 2.0 Jornalistas, dissidentes chineses e militantes pró-direitos humanos se engajam no Wikileaks, que publica documentos confidenciais wikileaks.org

Entusiastas digitais já saudaram o Wikileaks como o último defensor da liberdade de expressão, o que não está longe da verdade. Agraciado no ano passado com um dos prêmios mais importantes da área de direitos humanos, o Amnesty International Media Awards, na categoria novas mídias (a única que deixou de ser abocanhada por gigantes corporativos, como CNN e BBC), o site virou notícia mais recentemente, por causa da divulgação de documentos secretos da guerra do Afeganistão. A polêmica em torno do Wikileaks era apenas uma questão de tempo. Em abril, o site já havia disponibilizado um vídeo completo com a ação de helicópteros americanos no Iraque, em que morreram 11 civis (sendo duas crianças) e um fotógrafo da Reuters. Até sua divulgação na web, o episódio, que ficou conhecido como “chacina colateral”, tinha sido acobertado pela assessoria militar americana. Esta, aliás, limitou-se a afirmar que os norte-americanos estavam seguindo “leis da guerra”. Muito pode ser esclarecido a partir dos quase 100 mil documentos disponíveis no WL, mas o tema “leis da guerra” deve permanecer escuso. O fato é que o cyberativismo vem estendendo seus tentáculos e, depois de abalar a indústria audiovisual de Hollywood, agora centra fogo no império belicista de Washington. THIAGO LINS

O professor e pesquisador José Afonso da Silva criou esse blog para dedicar um espaço exclusivamente à fotografia. Além de publicar ensaios próprios, ele apresenta vários fotógrafos e revistas especializadas para os leitores.

crÔnicAs carpinejar.blogspot.com

Fabrício Carpinejar, escritor do livro recém-lançado Mulher perdigueira, aborda questões cotidianas a partir de um olhar ao mesmo tempo poético e irônico.

desiGn printpattern.blogspot.com

Desenhos decorativos na superfície de objetos, este é o assunto abordado pela inglesa Bowie Style. No blog Print & Pattern, ela divulga trabalhos criativos de designers do mundo inteiro.

sites sobre

literatura LEITURA

CAPITU

CRÍTICA

skoob.com.br

revistacapitu.com

olaboratorio.wordpress.com

A rede social norteada pela pergunta “O que você está lendo?” permite que internautas avaliem os autores catalogados e publiquem resenhas opinativas sobre livros.

Nada mais sugestivo (e até um pouco óbvio) que colocar o nome Capitu em um site sobre literatura. A página na internet traz indicações de livros, entrevistas e reportagens.

Escritores e críticos pernambucanos organizam encontros de discussão de literatura no Recife e os resultados dos debates podem ser conferidos no site.

co n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 1

Conexão.indd 11

30/08/2010 14:57:33


Port f

con ti nen te

1

Portfolio.indd 12

30/08/2010 15:02:57


t f贸lio Portfolio.indd 13

30/08/2010 15:03:20


2

con ti nen te

Portfólio

Kleber de Burgos

IMAGENS PELA PRESERVAÇÃO TexTo Dora Amorim

A questão ambiental tornou-se pauta obrigatória de debate a partir da década

de 1990. No tempo em que ser “verde” e salvar o meio ambiente está na moda, é fácil encontrar simpatizantes do Greenpeace ou do S.O.S. Mata Atlântica, mas, na hora de adotar um estilo de vida mais consciente e ecológico, nem sempre o comportamento corresponde ao discurso. Não para o jornalista e pesquisador Kleber de Burgos que, nos últimos anos, se dedica ao fotojornalismo ambiental, o modo que encontrou de colaborar na prática pela preservação do meio ambiente. Ele sabia que iria se deparar com algumas dificuldades nesse percurso, a principal delas, ele aponta, sendo a ausência de consciência coletiva sobre o que é o fotojornalismo ambiental e sua função na sociedade. A documentação e exposição de informações através da fotografia é amplamente trabalhada no jornalismo. Utilizá-la para denunciar o que já foi devastado pelo homem ou para mostrar que ainda existem ambientes a serem preservados tem sido o ofício de Kleber. Em 2009, ele lançou o livro Açude de Apipucos (Cepe Editora), que reúne uma série de fotografias e textos, fruto de pesquisa realizada com o objetivo de retratar o descaso com o ambiente num bairro recifense cheio de contrastes sociais. Para ter sucesso nesse tipo de trabalho, Kleber afirma que o fotojornalista precisa “deixar de conotar e passar a usar a sua foto para denotar o ambiente, para denunciar”.

Página anterior 1 cAchoeirA

Curso d© água corta a mata no antigo Engenho Jardim, em Bonito (PE)

Nestas páginas 2 inseto

Donzelinha-amarela habita o interior da Mata Atlântica

3 Formigueiro-deBArrigA-pretA

Ave é encontrada na caatinga pernambucana

4 réptil Tropidurus torquat, mais conhecido como lagartixa, é importante no controle de pragas

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 4

Portfolio.indd 14

30/08/2010 15:03:31


3

4

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 5

Portfolio.indd 15

30/08/2010 15:03:47


5

5-6 impActo Registros de devastação em canal e na mata

con ti nen te

7 Flor-do-cAmpo Espécie comum na Zona da Mata pernambucana

Portfólio

Foi de outra pesquisa, realizada no município de Bonito, situado no Planalto da Borborema, em Pernambuco, que o fotojornalista reuniu material para o seu próximo livro: Bonito–PE: História e ecologia. Dessa vez, ele se preocupou em retratar a beleza local, para ressaltar a importância de sua preservação. “A função do fotojornalista ambiental não termina em fazer a denúncia ou simplesmente mostrar o que pode ser preservado, ele deve também levar ao público essas informações”, observou Kleber. Por isso todos os seus trabalhos foram desenvolvidos com a preocupação de serem acessíveis, principalmente para os moradores das regiões abordadas. As suas fotografias são carregadas de significações que podem estimular ações pela preservação do meio ambiente e, principalmente, para a conscientização de quem as contempla.

6

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 6

Portfolio.indd 16

30/08/2010 15:04:03


7

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 7

Portfolio.indd 17

25/08/2010 15:22:34


FOtOS: DivuLGAçãO

GAVetA eMPeRRADA Em 2006, a viúva do escritor Julio Cortázar, Aurora Bernárdez, encontrou, por acaso, em uma gaveta emperrada do seu apartamento, em Paris, vários manuscritos inéditos do marido. Entre contos, poesias, reflexões e, até mesmo autoentrevistas, Cortázar deixou uma boa quantidade de material que poderia render um novo livro. Sendo assim, Aurora convidou Carles Álvarez Garriga, especialista na obra do argentino, para juntos selecionarem os textos. O livro Papéis inesperados foi lançado em 2009 na Argentina, em homenagem aos 25 anos de morte do autor, e este ano chegou ao Brasil, pela editora Record. (DA)

Lennon no FUtURo

Desavença à francesa Que François Truffaut e Jean-Luc Godard são cineastas fundamentais, todo mundo sabe. Mas pouco se fala das brigas entre os antigos amigos que, juntos, ajudaram a criar a Nouvelle Vague. O documentário Truffaut, Godard e a Nouvelle Vague, recém-lançado no Brasil, revisita a conflituosa relação entre eles. Desde 1968, os dois não se entendiam mais como no passado, quando eram colegas da Cahiers du Cinéma, porque o radicalismo político de Godard passou a incomodar Truffaut. O episódio mais dramático entre os dois, entretanto, ocorreu cinco anos mais tarde. Depois de assistir à estreia de A noite americana, Godard escreveu uma carta para Truffaut, provocando-o: “Provavelmente, ninguém irá chamá-lo de mentiroso, portanto, faço-o eu”. Ele ficou inconformado, pois o filme, que, supostamente, revelaria os bastidores de uma filmagem, tendo Truffaut atuando como um diretor de cinema apreensivo, não abordava a vida sexual do próprio cineasta nos sets. Por fim, Godard pediu uma contribuição financeira para o seu próximo filme: “Você deveria me ajudar, para que os espectadores não fiquem pensando que os filmes só podem ser feitos como você. Se quiser conversar a respeito, tudo bem”. Em uma carta de 20 páginas, Truffaut respondeu simplesmente: “Não vou coproduzir o seu filme”. DorA Amorim

con ti nen te

O projeto The John Lennon time capsule vai reunir as gravações solo do ex-Beatle e outros itens relacionados ao artista em três cápsulas, a serem lacradas no dia em que se comemora seu 70º aniversário, em 9 de outubro. Elas só serão abertas em 2040, no centenário de nascimento do artista inglês, morto em dezembro de 1980. Através do site boxofvision.com/ timecapsule, os fãs de Lennon poderão enviar mensagens sobre a obra do cantor para serem incluídas nas caixas. (Débora Nascimento)

Balaio

A FRASE

“Para que repetir os erros antigos, quando há tantos erros novos a cometer?”

noVo STAR WARS A saga Star Wars não acabou. O novo produto em torno da franquia milionária é a paródia pornô Star Wars XXX (XXX é a sigla de extreme ao cubo). Com lançamento estimado para 2011, o filme em 3D do diretor Alex Braun (que já corrompeu Batman e Superman) deve ser o mais caro da história pornô, superando This ain´t Avatar XXX, paródia da Hustler que mostra a “vida selvagem” dos na´vi e chega às prateleiras dos EuA neste mês. Haja sabre de luz. (Thiago Lins)

Bertrand Russell

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 9 8

Balaio.indd 18

25/08/2010 15:23:28


REPRODuçãO

cRiAtuRAS

AnoS 80 DeMAiS O saxofonista Leo Gandelman foi convidado para participar de uma faixa extra no novo CD da cantora Cindy Lauper. Sem saber exatamente como faria seu solo, o músico carioca, que já havia colocado seu talento em algumas músicas do rock nacional, levou em consideração o fato de a artista ser um fruto dos anos 1980 – a década em que o sax se destacou na música pop. Fez, então, a gravação. Após enviá-la, recebeu de volta um e-mail de Cindy com o seguinte comentário: “too much eighties”. Na realidade, a artista, autora de hits arrasadores, como Girls just want to have fun e Time after time (que ganhou até versão de Miles Davis), queria lançar um disco com blues e jazz, o bem-recebido Memphis blues, lançado em julho no Brasil. Leo regravou o solo e seu nome consta na ficha técnica entre BB King, Jonny Lang e Allen toussaint. (DN)

oS MAiS conFUSoS uma enquete divertida foi feita pela empresa de DvDs LoveFilm para saber qual seria o filme mais confuso da história do cinema. Em primeiro lugar, ficou Vanilla sky (2001). Dirigida por Cameron Crowe e estrelado por tom Cruise e Penélope Cruz, a produção é uma versão americana piorada para o interessante longa espanhol Abre los ojos (1997), de Alejandro Amenábar. O ranking conta ainda, em ordem decrescente, com Cidade dos sonhos (2001), Donnie Darko (2001), Matrix revolutions (2003), Amnésia (2000), Os 12 macacos (1995), Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004), 2001: Uma odisseia no espaço (1968), Revolver (2005) e Laranja mecânica (1971). Pela presença de dois dos clássicos de Stanley Kubrick, dá para perceber que os participantes da votação gostam de roteiros lineares com começo, meio e fim bem-explicadinhos. (DN)

USUÁRIO DeBUtAnte Lançado em 1995, o incensado Usuário, álbum de estreia do Planet Hemp, foi pródigo em “fazer barulho”, como até hoje prega o vocalista Marcelo D2, que depois seguiu uma bem-sucedida carreira solo. Lançado pela Sony Music, por pouco o disco não saiu pelo Banguela. O produtor que capitaneava esse selo, Carlos Eduardo Miranda, teve notícia do grupo muito antes deste virar um ícone da cultura hemp. Mas deixou de contratá-los sob uma alegação muito simples: “Eles precisavam de alguém que os tirasse da cadeia, e não de outro bando de doidões que fossem junto”. (tL)

Jimi Hendrix e Janis Joplin, a morte no auge, em 1970 Por rogério soud

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 1 9

Balaio.indd 19

25/08/2010 15:23:37


MATHIAS CRAMER/TEMPOREALFOTO.COM/DIVULGAÇÃO

con ti nen te

ARQUitetURA

NOVOS MUSEUS Muito mais que salas de exibição

1

c co on nt tiin neen nt tee sset eteem mbbr ro o 220 0110 0 || 220 1

ESPECIAL_arquitetura.indd 20

25/08/2010 15:25:18


No século 21, a arquitetura passa a desempenhar papel primordial na composição dessas instituições, que começam a colocar a tecnologia a serviço da arte, pensando espaços específicos para as áreas técnicas, funcionais e complementares texto Mariana Oliveira

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 1

ESPECIAL_arquitetura.indd 21

25/08/2010 15:25:33


con ArQUitetUrA ti nen te

FOTOS: DIVULGAÇÃO

2

3

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 2 3

ESPECIAL_arquitetura.indd 22

25/08/2010 15:25:46


DAVID HEALD/ THE SOLOMON R. GUGGENHEIM FOUNDATION, NEW YORK /DIVULGAÇÃO

“Levei dias para me aclimatar

com o Louvre. Que mundo, que inestimável tesouro. Pena é ser tão francamente museu – prefiro apreciar as obras de arte em palácios ou antigos hotéis. É menos catalogado, menos arrumado, empilhado. Por maior que seja o prazer que se tenha de ver cada quadro de per se, o conjunto, assim em massa, amontoado, cansa, aborrece. A vizinhança destrói, a quantidade desvaloriza... E os velhos guardas que se arrastam naquela atmosfera de catacumba, de coisa morta... .” Foi assim que o arquiteto Lúcio Costa relatou suas impressões sobre o Museu do Louvre, em 1926. O excesso de obras, a forma de dispô-las em exibição e o ar de necrópole que reinava nos museus nacionais jamais poderiam agradar a um modernista, como ele, naquele princípio do século 20. O espaço parecia conservador, cansativo e pesado. Mesmo depois de tanto tempo, o imaginário popular ainda é formado por um conceito antigo do espaço museográfico – como um depósito de coisas mortas e velhas. Apesar dessa crença, os museus mudaram sensivelmente ao longo do século 20 e continuam se reinventando nessa primeira década do século 21, deixando para trás aquilo que Lúcio Costa chamou de “francamente museu”. Em 1931, Le Corbusier propôs a construção do revolucionário projeto do Museu Sem Fim (em forma de uma espiral quadrada, que poderia crescer indefinidamente), nos arredores de Paris – um marco do pensamento modernista na área, apesar de nunca ter sido construído. Se as primeiras instituições tinham pouca luz, as novas foram inundadas por ela; as paredes perderam os ornamentos, passaram a ser limpas, leves, muitas vezes totalmente de vidro; o amontoado de quadros deu lugar a um fundo neutro, sem o contágio de uma obra sobre outra. O museu deixou de ser um lugar sisudo, em que imperavam a ordem e o silêncio; deixou de ser apenas um espaço de educação para ser também de cultura. A passagem dos antigos museus nacionais, palacianos, para os museus modernos, é o ponto mais revolucionário desse processo de mudança, mas outros avanços se seguiram. O projeto da Neue Staatsgalerie, de 1977, em Stuttgart, na Alemanha, de autoria de James Stirling,

4

recuperou alguns dos elementos dos antigos museus palacianos, criando uma nova fórmula para os museus pósmodernos, que abusam do ecletismo. O processo de “museificação” que tomou conta dos principais países do mundo, a partir da década de 1980, trouxe uma vez mais as questões que envolvem o planejamento arquitetônico e museológico desses centros culturais para o debate público. Arquitetos renomados passaram a ser requisitados para elaborar megaprojetos que, muitas vezes, se equiparam em importância aos acervos das próprias instituições. “Esse boom de construção e reforma consolidou a expressão ‘novos museus’ para designar os novos e velhos museus reformados no mundo desenvolvido”, afirma o arquiteto, professor da ULBRA e mestre em arquitetura pela UFRGS, Flávio Kiefer.

teRceiRA geRAÇÃo

Os “novos museus” passaram a colocar a tecnologia a serviço da arte, reservando espaços específicos, e, muitas vezes, maiores que as áreas expositivas para as áreas técnicas, de serviço e complementares. Outra

Página anterior 1 ibeRê cAmARgo

3 StAAtSgALeRie Obra do arquiteto James Stirling é considerada um projeto de museu pós-moderno

Nestas páginas 2 contRASteS

4 moDeRno O Guggenheim de Lloyd Wright foi inaugurado em 1959, em Nova York

O prédio da Fundação foi projetado por Álvaro Siza

O Louvre passou por uma grande reforma nos anos 1980

forma de denominar esses museus, segundo Kiefer, é categorizá-los como instituições de “terceira geração”, pois elas não seriam modernas, nem tampouco pós-modernas. Segundo ele, as suas principais características são o atendimento às condições museológicas, a preocupação com os métodos científicos de proteção de acervos e a criação de ambientes que proporcionem conforto aos seus visitantes. “Esses ‘novos museus’ voltam a ser mais fechados, passam a ter um espaço interior muito mais marcado e suas paredes podem ter cores. O ponto comum, que une a linguagem de quase todos, é a preocupação com a inserção urbana e o predomínio das grandes circulações internas”, explica.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 3

ESPECIAL_arquitetura.indd 23

25/08/2010 15:25:57


con ArQUitetUrA ti nen te Desde então, parte dos novos projetos desenvolvidos para museus tem atendido a algumas das demandas contemporâneas. Instituições mais antigas, muitas vezes alocadas em espaços adaptados ou mesmo tombados, têm promovido reformulações importantes para que possam ser alçadas à categoria de museus de “terceira geração”, como ocorreu ao Museu do Louvre. O tradicional centro passou por uma vigorosa revitalização, a partir de 1981, para se transformar no Grande Louvre. O arquiteto sino-americano I. M. Pei tomou como base a premissa de que um bom museu deveria ter 2m2 de área de serviço para cada metro quadrado de exibição. Seguindo essas proporções, Pei aumentou a área dos

TAMIRES KOPP/DIVULGAÇÃO

o processo de “museificação” tomou conta dos principais países do mundo, a partir da década de 1980 serviços técnicos de 24.200m2 para 77.200m2, e a de recepção, que se tornou uma grande praça aglutinadora, um marco zero na visita, de 1.800m2 para 22.300m2, sobre os quais instalou a famosa pirâmide de vidro. Outra intervenção parisiana referencial é a transformação de uma estação de trem no Museu D’Orsay, também nos anos 1980. Após um concurso realizado pelo governo, o projeto de R. Bardon, P. Colboc e J. P. Phillippon foi escolhido para dar a nova estrutura ao prédio do século 19. A proposta foi construir um novo edifício dentro da carcaça do primeiro. Todo esse processo fez parte do incentivo do governo de François Mitterrand à construção e reforma de museus.“Mitterrand quis deixar a sua marca como homem que valorizou a cultura francesa. Para isso contratou arquitetos famosos para as suas obras monumentais”, pontua a arquiteta, PhD em conservação e museologia e professora da UFPE, Franciza Toledo. Em 1994, a França tinha mais de 250 canteiros de obras simultâneos no setor. Nos EUA, museus relativamente

Entrevista

FLÁVIO KIEFER MUSEUS EM TRANSFORMAÇÃO o arquiteto, professor e

pesquisador Flávio Kiefer vem desenvolvendo vasta pesquisa sobre a arquitetura de museus ao longo dos últimos anos. Além da dedicação à academia, Kiefer pôde atuar na prática, projetando o Centro Cultural Érico Veríssimo e a Casa de Cultura Mário Quintana, ambos em Porto Alegre. Nesta breve entrevista, o arquiteto pontua questões importantes – desde os primórdios dos museus até a atualidade. continente Como era o planejamento arquitetônico dos primeiros museus? Quais eram as suas características? FLÁVio KieFeR Até o final do século 18 não existiam museus, mas as coleções privadas, particulares

ou da nobreza. Elas ocupavam normalmente as paredes ou gabinetes de palácios, ou mesmo casas. Quando foram criados, os museus substituíram esses espaços. O melhor exemplo é o Louvre, que, de palácio, sede de governo, teve uma parte de suas instalações transformada em museu. Passaram-se 200 anos até que todo o palácio se tornasse museu. Nessa mesma época, dentro da Academia de Belas Artes de Paris, os arquitetos começaram a pensar em como deveriam ser os museus. continente Qual a relação entre os museus e as bibliotecas? FLÁVio KieFeR A primeira associação que os arquitetos fizeram, ao final do século 18, para esse novo tipo de edifício, foi com as bibliotecas e com o próprio Louvre, que era a melhor experiência prática que todos tinham. Além disso, palácios como o de Versailles e tantos outros repetiam a fórmula consagrada da Galeria dos Ofícios, da Florença renascentista. Enfim, é toda uma cultura em

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 4

ESPECIAL_arquitetura.indd 24

25/08/2010 15:26:00


torno de corredores ou salas em sequência, onde se penduravam, de cima a baixo, os quadros nas paredes e se espalhavam esculturas pelo chão. Outro hábito, associado ao ensino das artes, era o da cópia. O estudante montava seu cavalete na frente de uma obra-prima e a copiava. Assim, não é de estranhar que Durand, professor de arquitetura da Politécnica de Paris, ensinasse que os museus deveriam ser construídos de uma forma muito parecida com as de um palácio, com seus pátios internos e tudo mais. Ele também teve o cuidado de propor uma série de compartimentos para os estudantes se alojarem. É por isso que a expressão “museus palacianos” é uma boa expressão para designar os primeiros museus. E isso vai durar mais de um século. continente Quais eram os principais problemas desses museus-palácios e quais eram suas vantagens? FLÁVio KieFeR A grande vantagem era o valor simbólico da transformação de algo da realeza em algo público (mesmo que muitos continuassem com o nome de “museu real”). No momento da criação dos museus não havia termo comparativo. Os questionamentos começaram a aparecer quando a própria academia passou a ser questionada, na época dos impressionistas. É aí que surge uma crítica, adotada depois pelo movimento moderno, mais ácida contra esses prédios, agora chamados de “depósitos” ou até “necrotérios” da arte. O que se reclamava era da falta de ar, de luz, de liberdade que esses espaços traziam. O amontoamento das obras também passou a ser malvisto. Mas isso foi um processo muito lento. A parede limpa, por exemplo, com os quadros livres do “contágio” de seus vizinhos, só nasceu nos anos 1930, no MoMA de Nova York. As obras deixaram de ser penduradas em paredes enquanto paredes, que representam um ente material do próprio edifício, para tornarem-

se suportes, que são superfícies abstratas que separam a obra de arte de seu contexto. continente Falando em museus modernos, qual a relevância da proposta do projeto de Lina Bo Bardi para o Masp? FLÁVio KieFeR Lina propôs um museu transparente, algo totalmente inédito, talvez o ápice dos desejos modernistas. Um museu sem paredes, no qual até os suportes para as obras de arte são de vidro. Para entender a importância disso, é bom lembrar que o museu do Mies van der Rohe, a Nationalgalerie, em Berlim, é posterior. O Masp é um museu importante, que expressa todo o pensamento de uma época. Não se pode simplesmente julgar com o olhar contemporâneo e dizer “está errado”, isso não serve para a arte. É impressionante que a gente deixe esse valor cultural se perder. Fiquei chocado com os tabiques coloridos que implantaram por lá. continente A arte feita hoje influencia os projetos arquitetônicos? FLÁVio KieFeR É bom lembrar que todas essas transformações por que passa o museu não estão relacionadas somente às mudanças do pensamento arquitetônico, mas elas têm a ver com as transformações da própria arte. É preciso lembrar, ainda, que um novo tipo de museu de arte começa a surgir. Há um tipo de arte que não cabe nos museus tradicionais – na verdade, nem é feita para eles. Mas tem gente que se preocupa em guardá-las e está fazendo coisas como o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, onde já não existe um prédio chamado museu. Lá, arte e arquitetura estão mais próximas, resolvendo, caso a caso, as necessidades espaciais para abrigar determinada intervenção artística de determinado artista. Ainda não sei dizer se é uma “quarta geração” de museus que está nascendo ou é uma ampliação das preocupações da “terceira geração” que, em princípio, tem um componente contextualista muito forte. É um contextualismo

amplo, bem-entendido. Pode estar voltado para preocupações urbanas, para as de turismo, negócios e, também, para a arte em si. continente Na sua opinião, quais são os principais problemas dos museus brasileiros? FLÁVio KieFeR O maior problema dos museus brasileiros é a baixa quantidade de projetos dos mesmos. A maioria deles é obrigada a viver em espaços precários. Quando o espaço não é emprestado, localiza-se em algum imóvel cheio de restrições e sujeito a outras prioridades, como a preservação do patrimônio por exemplo. O panorama dos museus, em muitos aspectos, melhorou muito, sem dúvida, mas a questão de sua arquitetura ainda não está em pauta. continente Qual o papel do museu como vetor de recuperação urbana? FLÁVio KieFeR Essa foi uma ótima contribuição pós-moderna – botar por terra a ideia de Le Corbusier de reconstruir as cidades elevandoas sobre pilotis, abolindo as ruas e determinando o lugar certo para cada coisa. A valorização da arquitetura dos centros históricos fez com que os gestores da cidade e seus arquitetos descobrissem formas de valorizá-los. Revitalizar o patrimônio arquitetônico existente, entre eles os museus, era o caminho natural. continente A arquitetura dos museus, atualmente, tem se tornado um verdadeiro atrativo. As pessoas têm visitado um museu mais por seu edifício que propriamente pelas obras. Por quê? FLÁVio KieFeR Porque o público das obras de arte continua pequeno. Os que gostam de arte continuam a procurar os museus pelas obras que contêm e também – por que não? – para ver arquitetura. Agora, tem um monte de gente que é atraída pela arquitetura espetacular, que é uma característica dos museus contemporâneos, e até acaba vendo alguma coisa de arte. Alguns talvez até passem a se envolver com a arte, gostar dela, mas duvido que sejam muitos. A formação do público das artes não passa, a meu ver, pela arquitetura. É outro assunto.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 5

ESPECIAL_arquitetura.indd 25

25/08/2010 15:26:00


con ArQUitetUrA ti nen te

FOTOS: DIVULGAÇÃO

5

recentes e de grande importância, tais como o Guggenheim de Frank Lloyd Wright, inaugurado em 1959, em Nova York, também foram adequados às novas necessidades.

mUSeUS bRASiLeiRoS

No Brasil, esse boom não teve a mesma amplitude e boa parte das instituições continua, até hoje, a funcionar em situação precária, com graves carências de verbas. Até bem pouco tempo, o paradigma dos projetos arquitetônicos para museus no país eram os de Lina Bo Bardi, para o Museu de Arte de São Paulo (Masp), e o de Affonso Eduardo Reidy, para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), ambos construídos por volta da década de 1950. Mas haveria, no Brasil, instituições que poderiam ser caracterizadas como de “terceira geração”? “Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, se o ingrediente tecnologia não é o forte, a questão de revitalização de zonas degradadas, aproveitamento de prédios históricos e uma arquitetura de extrema qualidade dão as condições para ser considerada um

‘novo museu’ ”, responde Flávio Kiefer. O prédio, que data do início do século 20, foi construído para o funcionamento do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Em 1993, dentro de um programa mais abrangente, que visava à revitalização do bairro da Luz, o edifício passou por uma reforma, capitaneada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, concluída apenas em 1998. O projeto previu toda a infraestrutura necessária, com instalação de elevador para transporte de material e de público, adequação da rede elétrica e das áreas de depósitos e acervo, e ampliação de laboratórios de restauro e biblioteca. “A intervenção é exemplar porque soube tirar proveito do edifício antigo”, afirma Franciza Toledo. Se a Pinacoteca comprova que edifícios construídos para outros fins podem, a partir de intervenções coerentes e eficientes de suas estruturas espaciais e técnicas, transformar-se em espaços adequados para os museus do século 21, o edifício projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza, para abrigar a Fundação Iberê Camargo,

5

PRoJeto

O Museu do Amanhã vai ocupar o píer Mauá, no centro do Rio de Janeiro

6

eXemPLo

A Pinacoteca de São Paulo adaptou o prédio histórico de forma eficiente

em Porto Alegre, inaugurado em 2008, demonstra como o espaço para um museu de “terceira geração” pode ser desenvolvido com eficácia, ainda na prancheta do arquiteto.“Do ponto de vista tecnológico, a Fundação Iberê Camargo é o melhor exemplo de museu contemporâneo do Brasil. A força e a presença de sua arquitetura, tanto externa quanto internamente, afastam-no dos bem-comportados ‘espaços neutros’ dos museus modernos. Ele é muito contemporâneo nessa liberdade em revisitar o moderno, talvez para sintonizar com a pintura moderna de Iberê Camargo, principalmente nas galerias de exposição”, explica Kiefer.

obRA De SiZA

Quando recebeu o convite para criar o edifício da fundação, Siza não conhecia a obra de Iberê Camargo. Foi preciso que o arquiteto se aproximasse da trajetória do brasileiro para que as afinidades

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 6

ESPECIAL_arquitetura.indd 26

25/08/2010 15:26:08


desafio dos arquitetos Thiago Bernardes e Paulo Jacobsen será unir o Palacete Dom João VI, em estilo eclético, ao prédio moderno no qual funciona atualmente o Hospital da Polícia Civil. Como o primeiro é tombado, o trabalho dos arquitetos deve obedecer a algumas regras. “Há uma grande discussão em torno da intervenção em patrimônios tombados, as adaptações deveriam ser sempre passíveis de serem removidas, assim poderemos saber ao longo do tempo o que de fato é original”, explica a arquiteta, professora e pesquisadora do núcleo de estudos de arquitetura de museus da UFRJ, Cessa Guimaraens, para quem, mesmo em situações como essa, é possível se encontrar soluções. Até

A ideia é que a instalação de museus e centros culturais em áreas degradadas e abandonadas ajude na revalorização local

6

pudessem aparecer. O resultado foi um centro em que os espaços expositivos refletem a condição moderna de Iberê Camargo. Ao mesmo tempo, Siza criou ambientes provocativos, que pedem intervenções e não exposições tradicionais, dialogando com os artistas contemporâneos. “O museu é dividido em dois, mas também é um só. É uma divisão sutil, intelectual; não é percebida fisicamente. Tem que ser pensada. Com isso, ele resolve perfeitamente bem o atendimento do programa – um museu moderno para um pintor moderno – e faz um museu contemporâneo. Uma solução genial”, define Kiefer. A Fundação Iberê Camargo, segundo o pesquisador, permite uma associação imediata com o Museu Serralves, do próprio Siza, localizado na cidade do Porto, em Portugal. É impossível também não reconhecer certa aproximação com a solução proposta por Frank Lloyd Wright para a circulação entre as salas do Guggenheim de Nova York (construído em forma de uma espiral, que é percorrida pelo visitante de cima para baixo). A diferença é que Siza separa as rampas das áreas

de exibição. Em sua obra, estão bemmarcados os momentos de distensão visual, durante a circulação, pelos tubos que ligam os compartimentos, e os momentos de apreciação das obras nas salas dispostas no entorno do átrio. Além dessa preocupação com o aparato visual do edifício, que se impõe como um objeto escultural por si só, Siza não esqueceu de levar em consideração aspectos técnicos fundamentais na projeção de um espaço para um museu. A questão do isolamento térmico, por exemplo, estava presente no projeto, indicando que todas as paredes e lajes exteriores deveriam ser revestidas com mantas de lã de rocha. Tal ação possibilitou uma sensível economia de energia, dadas as constantes variações térmicas da cidade de Porto Alegre.

noVAS conStRUÇÕeS

Atualmente, está em curso, no Rio de Janeiro, a execução de dois novos projetos de museus, dentro do programa Porto Maravilha. Dois edifícios situados na Praça Mauá, no Centro, estão sendo adaptados para abrigar o MAR – Museu de Arte do Rio de Janeiro, cuja inauguração está prevista para 2012. O

agora, a proposta prevê duas passarelas ligando os dois prédios, uma praça suspensa e um teleférico conectando o museu ao Morro da Conceição. Ainda na zona portuária carioca, outro museu começa a se desenhar. O Museu do Amanhã, patrocinado pela Fundação Roberto Marinho e voltado para a ciência e a tecnologia, foi projetado pelo renomado arquiteto espanhol Santiago Calatrava. O museu vai funcionar no píer Mauá, será totalmente sustentável, construído com materiais recicláveis, e com formas audaciosas. “Calatrava sabe utilizar estruturas técnicas de forma fabulosa”, pontua Cessa Guimaraens. A ideia é que a instalação desses museus numa área degradada e abandonada funcione como peça fundamental na sua revalorização. Nesse contexto, os museus terminam fazendo um papel parecido com o das igrejas e das catedrais, atraindo peregrinos que desejam conhecê-los. Não há caso mais referente que o Museu Guggenheim de Bilbao, cujo “prédio-flor”, de Frank Gehry, conseguiu transformar a cidade portuária em uma meca de turistas em poucos anos. “É o caso

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 7

ESPECIAL_arquitetura.indd 27

25/08/2010 15:26:13


con ArQUitetUrA ti nen te

DIVULGAÇÃO

7

da ‘shoppingnização’ de seus espaços e a venda de si mesmo como marca comercial ou grife. Ele já não é um passeio para as famílias cultas, mas para as massas, multidões formam fila em seus portões. Espero que esses museus criem raízes em suas comunidades e se tornem mais importantes para seus cidadãos do que para os turistas. Aí sempre haverá uma solução para sua manutenção”, reflete Kiefer.

FoRmA e FUnÇÃo

Mas, segundo Franciza Toledo, o problema não está na arquitetura espetacular da maioria das instituições construídas hoje. A questão que precisa ser discutida é a hipervalorização da forma em detrimento dos aspectos funcionais que um museu deve ter para funcionar adequadamente. Como os espaços expositivos são os ambientes frequentados e de maior visibilidade, muito projetos esquecem a necessidade de uma reserva técnica adequada, de entradas destinadas especificadamente para o público, para as obras e para os funcionários, a importância da climatização correta para o tipo de acervo, do espaço de quarentena para ambientar as obras. “Alguns arquitetos criam muitos projetos usando vidro, mas não pode ser qualquer vidro. Eles têm que saber que

vamos abrigar obras de arte e que a luz é um fator a ser levado em consideração. Há museus que gastam muito mais dinheiro para manter o resfriamento dos seus ambientes, devido ao uso excessivo de vidro”, critica Franciza. Segundo ela, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, projetado por Oscar Niemeyer, seria uma expressão dessa desconexão entre forma e função. “Ele presta-se bem a um restaurante panorâmico, não a um museu. Nele, obras de arte disputam com a paisagem. A reserva técnica não é adequada, a saída de emergência é complicada”, exemplifica. “O MAC de Niterói não é exatamente um museu, é mais um marco arquitetônico, uma sala de exposição e um belíssimo mirante”, complementa Kiefer. Problemas como esses podem apontar um sinal de falta de sintonia entre arquitetos e museólogos. Para entender a necessidade dessa parceria, basta imaginar a encomenda de um projeto arquitetônico para uma casa. Para iniciá-lo, é preciso obter informações básicas sobre quem vai morar lá, suas preferências, gostos e hábitos. “O processo de ‘encomendar um museu’ é mais ou menos semelhante. Primeiro, é preciso saber ‘quem vai morar lá’. Isso quer dizer: qual a missão e o perfil do museu, qual o seu acervo e quais suas linhas

7

incongRUente

O projeto do MAC de Niterói, de Oscar Niemeyer, é um marco arquitetônico, mas diverge dos requisitos básicos para abrigar um museu

programáticas”, explica Maria Ignez Mantovani Franco, museóloga e diretora da Expomus, empresa que desenvolve e coordena projetos museológicos. Enquanto arquitetos e museólogos tentam encontrar uma sintonia em suas ações voltadas para os projetos arquitetônicos dos museus, novas instituições começam a surgir com projetos que expandem suas propostas para além da questão física. “A ‘museificação’ está se ampliando, passa a ter uma base mais filosófica, antropológica e sociológica”, explica Cessa Guimaraens. Um exemplo disso é o Museu da Favela (MUF), no Rio de Janeiro. Mesmo sem uma sede física, o museu consegue atender ao desejo de memória das comunidades do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo. A ideia do MUF é “transformar o morro em monumento turístico carioca da história da formação das favelas, das origens culturais do samba, da cultura do migrante nordestino, da cultura negra, das artes visuais e da dança”. Parece que, no despertar do novo século, uma nova geração de museus, com características bem específicas, começa a se desenhar.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 8

ESPECIAL_arquitetura.indd 28

25/08/2010 15:26:15


PLAntA

Parte do projeto do arquiteto Álvaro Siza para a FIC

REPRODUÇÃO

8

8

Artigo

LÍVIA MORAIS NÓBREGA ATENTO À DEMANDA MUSEOLÓGICA São inúmeros os benefícios da globalização na arquitetura. Entretanto, conceitos como pré-fabricação e reprodução têm sido indevidamente difundidos através do uso de formas, imagens e padrões construtivos dissociados do contexto das cidades. Essa rápida transformação da cultura em artefato de consumo em massa muitas vezes tem repercutido negativamente na produção arquitetônica contemporânea. Nesse ponto, a arquitetura deve ser um instrumento capaz de reforçar as relações entre lugar e sociedade, e o arquiteto, mais do que produzir uma colagem de soluções importadas e anteriormente realizadas, deve equacionar homem, demandas universais e valores locais. Adequado às premissas museológicas atuais e abrigo da extensa coleção de um dos maiores nomes da pintura modernista brasileira, o edifício-sede da Fundação Iberê Camargo (FIC), projeto do arquiteto português Álvaro Siza, concluído em maio de 2008, em Porto Alegre, é um exemplo dessa negociação entre local e universal. Em sintonia com o fenômeno de “museificação” que vem ocorrendo nas principais capitais mundiais, o

museu da FIC insere Porto Alegre, e até mesmo o Brasil, nesse panorama. Ao contrário de outros casos, como o paradigmático Guggenheim de Bilbao, de autoria do norte-americano Frank Gehry, no caso da FIC, a encomenda de um projeto a um arquiteto estrangeiro não significou a dissociação entre edifício e lugar. A escolha de Siza para o projeto não parece ser apenas em função das suas premiações internacionais, como a Royal Gold Medal, conferida em 2009 pelo Instituto Real de Arquitetos Britânicos (Riba). Autor de outros dois museus, o Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela, e o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, bem como de outros projetos ao redor da Europa e Ásia, Siza apresenta uma notável sensibilidade às questões do lugar ao conceber um edifício. Sua estratégia projetual é caracterizada pela pesquisa e absorção da realidade em jogo, seja através da coleta de dados, seja através da percepção de necessidades humanas e do espírito de época e lugar. As maquetes e desenhos elaborados em Portugal, ainda em 1998, já reverberavam as linhas topográficas do terreno, um lote estreito e marcado pela presença de uma escarpa acentuada e de densa cobertura vegetal, e com a vasta paisagem do Rio Guaíba. Ao longo desse curso, o projeto sofreu ajustes para melhor se adaptar ao terreno, às funções, à luz, à vegetação e à sensação de espaço que se tem ao experimentar o local, segundo Siza. Como em muitos outros trabalhos do

arquiteto, o que poderia ser um entrave para o projeto foi tomado como ponto de partida para a sua concepção, pautada na sensível adaptação do edifício aos condicionantes do lugar. O aspecto final da construção, pontuada por pequenas aberturas, por vezes chamada de bunker e criticada pelo seu aspecto hermético diante da bela paisagem, é uma resposta às rigorosas exigências de controle de luz e temperatura das obras de arte. As reduzidas janelas, presentes apenas nas áreas de circulação, enquadram a paisagem local e a tornam outra obra de arte a ser contemplada. A configuração espacial do edifício favorece a inteligibilidade das exposições. O átrio articula os três pisos e diferencia os amplos espaços de exposição dos labirínticos túneis que se projetam da fachada, numa espécie de abrir e fechar de olhos. O jogo de percursos combinado com a abertura das salas para o átrio permite a visualização simultânea de vários espaços e favorece a construção da narrativa sobre as exposições em curso por parte do usuário que experimenta o edifício, estratégia utilizada em muitos outros museus modernos e contemporâneos, como o Guggenheim de Nova York, de Frank Lloyd Wright, e o High Museum, de Richard Meier, em Atlanta. As dificuldades de execução das soluções criadas tornaram lenta a execução do projeto devido ao caráter inovador, no âmbito brasileiro, dos recursos adotados. O treinamento de equipes brasileiras especializadas, o envolvimento de alunos e professores da UFRGS e a abertura da obra para a visitação fizeram com que o edifício inserisse práticas construtivas até então pouco usuais no país, como o concreto branco autoportante e os sistemas de isolamento térmico e eficiência energética. Capaz de elevar as práticas construtivas locais, o edifício da FIC também mostrou que é possível conciliar aspectos universais com especificidades locais, levantando reflexões atuais sobre as relações entre arquitetura, globalização e lugar e possibilitando o fomento de alternativas de concepção arquitetônica diante da ênfase cenográfica e imagética que permeia a disciplina da arquitetura na atualidade.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 2 9

ESPECIAL_arquitetura.indd 29

25/08/2010 15:26:15


HALLINA BELTRÃO

cOn Ti nEn TE#44

Peleja

A vida pessoal deveria interferir na nossa opinião sobre os artistas? Linda e carismática, ela foi apontada como uma das grandes promessas de Hollywood. Hoje, amarga a perda de papéis, com o impacto negativo de atitudes como dirigir bêbada. A opinião pública sobre o mau comportamento da atriz norte-americana Lindsay Lohan não difere muito do que sofreram o diretor Roman Polanski ou o cantor Wilson Simonal. Mas, se são profissionais competentes, suas carreiras deveriam ser julgadas devido à vida pessoal?

c co on nt tiin neen nt tee SSET ETEEM MBBR RO O 220 0110 0 || 330 1

Peleja.indd 30

25/08/2010 15:28:21


Thiago Soares

Mel Gibson vocifera nigger (ter-

mo perjorativo para referir-se aos negros) ao telefone; os nazistas retiram de Lohengrin, ópera de Wagner, o termo führer e o dedicam a Hitler; as irmãs Lynx e Lamb, crianças da banda norte-americana Prussian Blue, deixam-se fotografar com o cartaz “Stop imigration”. Você para, olha, Jornalistada e ouve e leva um susto. O primeiro é doutoranda em ciências sociais o cara que a gente quer colocar no colo, quando ele perde a família em Mad Max. O segundo é o homem que produziu belíssimas obras neorromânticas. E as meninas, como dizer? Bem, as meninas são duas loirinhas fofas que fazem folk-pop. A diferença é que elas usam camisetas com o símbolo do smile com o bigodinho de Hitler. É mais difícil do que parece responder à pergunta da Continente, até porque ela pode ter duas leituras: se a “vida pessoal” que pode afetar as obras dos artistas diz respeito a encher a cara, dar barracos, sair sem calcinhas, não, não acho que o comportamento bitch-pancadão seja um problema. Há algumas décadas, sim, mas, hoje, boa parte de escândalos e pecadilhos é produzida pela indústria do entretenimento. Se a vida pessoal tem relação com apoiar ou incentivar aquilo cujo objetivo é denegrir a carne, a alma (das gentes, dos bichos), fica mais complicado. Sente-se menos pena de Mel perdendo a família. Relacionar a cor à violência (ele disse que sua ex poderia ser estuprada por grupos de niggers) é bem diferente de encher a cara. Inventei de ser a minha própria advogada do diabo e levei a pergunta até os caras que tenho no meu MP3 e na prateleira de CDs e DVDs. Bati o olho em Bob Marley. Há sobre ele a acusação de homofobia – conta-se que rejeitou tocar certa vez no mesmo palco que Prince (que nunca se declarou gay, vale salientar). É uma atitude condenável? Sim. Bob Marley era um grande artista? Sem dúvida. Mas o que fazer com o polegar do like que eu dedico sempre a ele? Outro exemplo é Simonal: suas incríveis canções foram para o ralo desde que o cantor foi relacionado à Ditadura Militar. Tenho vários discos dele. O problema é que nem um nem outro confirmaram adesão aos tópicos citados. Ficamos no “será?” e no achismo – e não se deixa de consumir a obra de alguém nesses termos. É preciso cuidado para não matar a produção criativa a pedradas.

As meninas são duas loirinhas fofas que fazem folk-pop. Mas usam camisetas do smile com o bigodinho de Hitler

ACERVO PESSOAL

DIVULGAÇÃO

Fabiana Moraes

A vida pessoal influencia, sempre

influenciou e continuará integrando o processo de criação e fruição dos artistas e de suas obras. Não é difícil encontrar exemplos que demonstram isso: não costumamos achar uma tal sinceridade – ou “verdade” – em Billie Holiday, por causa da sua vida “barra pesada”? Será que, se não soubéssemos que o escritor Jornalista e doutor Álvares de Azevedo era tuberculoso e em comunicação e cultura vivia recluso, leríamos Uma noite na taverna com o mesmo afinco? O teórico francês Roland Barthes até criou um conceito para colocar em relevo essas aproximações entre vida e obra na criação literária: biografema. Segundo ele, existe uma biografia do artista que está “tatuada” nos escritos. Um artista gera uma obra e também casa, divorcia-se, vai ao supermercado, descobre que é portador de uma doença. Mesmo aqueles que tentaram criar uma “separação” entre vida e obra – lembro João Cabral de Melo Neto e toda a sua ideia de que a criação é uma labuta, uma disposição material – acabam tendo sua biografia evocada quase que por subtração. Obviamente, há artistas que usam os dispositivos biográficos como matéria-prima de suas inquietações. O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu tinha obsessão em relatar o universo da Aids porque, ele mesmo, assumiu ser soropositivo num de seus textos literários. Biografia é corpo, história individual imersa no caldo criativo. A artista sérvia Marina Abramovic tem séries de performances gravadas em vídeo em que testa os limites do seu corpo: grita até ficar sem voz, come cebolas para ver até onde verte lágrimas. Vemos a obra de Marina e seu corpo (que não deixa de ser sua biografia): expostos, entregues. Este debate ganha contornos mais complexos em função da presença de um terceiro elemento: a mídia. A chamada imprensa da indústria da celebridade altera nosso processo de fruição: lança foco sobre a vida pessoal do artista e traz meros “comentários” sobre as obras. Mas também não estamos falando de nada essencialmente novo: a diva Maria Callas, por exemplo, foi figura mais que presente nas páginas dos jornais e magazines de fofocas. Isso também sempre existiu. Agora, com a internet, tudo se agigantou. Onde está a “raiz” desse nosso hábito de “querer saber da vida do outro”? Quem sabe a psicanálise explique nossas ausências e frustrações cotidianas como matriz para irmos em busca da vida alheia?

Barthes até criou um conceito para colocar em relevo essas aproximações entre vida e obra na criação literária: biografema

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 3 1

Peleja.indd 31

25/08/2010 15:28:24


MAURICIO PLANeL

con ti nen te

eSPeciAL

DEBATE Os horizontes da crítica cultural Críticos, pesquisadores, jornalistas, artistas e curadores constatam que a análise especializada de obras na mídia arrefeceu ou se diluiu, mas reafirmam a sua relevância na formação de público TEXTO Fábio Lucas

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 2 3

Crítica Cultural.indd 32

25/08/2010 15:33:38


A memória oral como último refúgio da cultura humana, diante de um totalitarismo incendiário que criminaliza a literatura: eis o cenário final de Fahrenheit 451, romance escrito por Ray Bradbury em 1953, transformado em filme por François Truffaut em 1966. Diante da situação extrema, resultante da apreensão e incineração dos livros, a resistência pedia o exercício constante da lembrança, pois cada indivíduo viraria um arquivo vivo, responsável pela transmissão de um livro inteiro para as futuras gerações. Assim, o silêncio, para Bradbury, seria um momento de resgate: “Se os homens estavam silenciosos, era porque havia tudo em que pensar e muito para recordar”, pondera o narrador da obra. Extremismo da imagem distópica à parte, pode parecer que a crítica cultural no Brasil atravesse instante similar, de imersão e recordação.

Dois fatores contribuem para essa sensação. O primeiro é a diminuição notável, nas últimas décadas, do espaço da crítica nos jornais. E o segundo, que ocorre paralelamente, é o aumento do espaço editorial e publicitário para o lançamento de produtos culturais, dando à obra relevância instantânea enquanto novidade para o mercado. A esse respeito, o escritor tcheco Milan Kundera discorre, em A arte do romance: “O espírito do romance é o espírito de continuidade: cada obra é a resposta às obras precedentes; cada obra contém toda a experiência anterior do romance. Entretanto, o espírito de nosso tempo está fixado sobre a atualidade, que é tão expansiva, tão ampla, que expulsa o passado de nosso horizonte e reduz o tempo ao único segundo presente”. Para Kundera, nesse sistema, o romance deixa de ser obra (“destinada a

durar, a unir o passado ao futuro”), e vira um evento da atualidade, “um gesto sem amanhã”. Uma das tentativas de buscar o espírito de continuidade da crítica cultural no país, hoje, parte da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), que investiga a questão através do Prêmio Mário Pedrosa de Ensaios. Em sua terceira edição, o tema deste ano propõe uma abordagem que se debruce sobre a crítica equilibrada “entre o contingente e o histórico” – na tensão entre o atual e o contínuo, de que fala Milan Kundera. Para Cristiana Tejo, jornalista, crítica, curadora, atualmente à frente da Coordenação de Capacitação e Difusão Cultural da Fundaj, a impressão de que não se produz conhecimento ou mesmo obras de qualidade é quase onipresente, e se deve, em parte, às inovações tecnológicas e à proliferação de canais

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 3

Crítica Cultural.indd 33

25/08/2010 15:33:52


con especial ti nen te DIVULGAÇÃO

1

A situação da crítica se alterou, mas a transição não atenua a opinião de que, no Brasil, a crítica cultural de qualidade anda escassa de divulgação e circulação. “É como se a gente estivesse num momento de caos absoluto, e não houvesse mais lugar para o pensamento. Mas não é bem assim. Estamos num período de transição de paradigmas. É como se ainda habitássemos uma sociedade que está morrendo, e vendo o amanhecer de uma nova época. Sem saber exatamente o que vai sobreviver de modelos, de rotas, e o que vai ficar obsoleto.” Segundo ela, se houve um deslocamento de fato, e a crítica não é mais a

mesma, importa é que o papel do crítico continua existindo. “A questão é: Onde? Como? Por quê?”, indaga Tejo – e são essas perguntas que o concurso Mário Pedrosa busca ajudar a responder. Em visita ao Recife para dar um minicurso de três dias, em agosto, também promovido pela Fundaj, a francesa Anne Cauquelin pôs mais fogo na lenha da crítica contemporânea. Professora emérita de filosofia na Universidade de Picardia, e vice-presidente da Sociedade Francesa de Estética, Coquelin se pergunta se uma estética ainda é possível quando o fazer artístico se torna um fazer relacional, atrelado à comunicação, e o público não é mais mero espectador, mas é considerado como coautor do significado da obra. Para ela, o bom crítico contemporâneo é aquele que não se porta como

“crítico historiador”, e, sim, como artista. “Detesto os historiadores. Para que me servem as datas?”, perguntou à plateia recifense, provocando risadas – além do brio dos historiadores presentes. Por falar em história, o cenário é bem diverso do que se via até a década de 1970, segundo a diretora da São Paulo Companhia de Dança, Inês Bogéa. “Naquela época, havia um caldo de cultura, um nível de discussão que permitia à plateia interagir de formas diferentes com os espetáculos”, lembra Inês, que é jornalista e foi crítica da Folha de S.Paulo de 2002 a 2007. De qualquer ponto de vista, portanto, vê-se que a situação da crítica se alterou. Mas o flagrante da transição não atenua a opinião de que a crítica cultural de qualidade anda escassa no país. “A crítica de arte no Brasil passa por um momento

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 4 5

Crítica Cultural.indd 34

25/08/2010 15:34:16


MAÍRA GAMARRA TIAGO TheDIAk/DIVULGAÇÃO

acompanhando uma argumentação mais complexa. Isso, todavia, não pode ser lido apenas na chave da perda de qualidade. Creio que cada tempo exige um tipo de pensamento e de crítica e o nosso está descobrindo suas formas e canais.

2

1 FAHRENHEIT 451 Na obra de Bradbury, levada ao cinema por Truffaut, os livros eram apreendidos e incinerados

2 cRiStiAnA teJo Segundo ela, é como se estivéssemos num momento de caos e mudança de padrões

bastante opaco. Não se pode saber ao certo se os textos sobre arte que lemos por aí (em revistas, catálogos, sites especializados etc.) podem ser tidos como críticas de arte na dimensão que se tinha antes”, avalia Ana Luisa Lima, editora da revista Tatuí. Para o artista plástico Carlos Mélo – que cita como bons críticos Suely Rolnik, Paulo Herkenhoff e a própria Cristiana Tejo –, a produção crítica procura alcançar a produção artística, sem sucesso: “Eu gostaria de ver a crítica no mesmo nível e com o mesmo volume da produção artística. Além da convivência entre artistas e críticos, que, para mim, foi algo perdido na década de 1970, ficou por lá”.

ALcAnce DA cRÍticA

Agraciado com o prêmio de Revelação da Música Popular Brasileira, da Associação Paulista de Críticos de Arte – 2008, o jovem pianista pernambucano Vitor Araújo diz que o julgamento sempre esteve presente em sua carreira, desde o começo. “Principalmente as críticas negativas, vindas de uma parcela de dogmatismo que ainda existe no meio da música erudita. Elas tiveram um efeito engraçado em mim: fui (na verdade, ainda estou), pouco a pouco, me preocupando

Entrevista

LUIZ CAMILLO OSÓRIO TROCA COSMOPOLITA Para o professor do Departamento de Filosofia da PUC–Rio, curador do MAM–Rio, o novo foco da mídia impressa cultural na prestação de serviço, em detrimento da reflexão, faz com que a internet passe a figurar como canal imprescindível para o trabalho do crítico. Nesta entrevista, Osório aponta ainda o papel pedagógico necessário para a ampliação do público de arte no país. continente Como o senhor analisa a redução da crítica de arte nos jornais brasileiros, em comparação com algumas décadas atrás? LUiZ cAMiLLo oSÓRio Não vou falar de outras áreas, mas da crítica de artes plásticas, apesar de ela não ser muito diferente do resto. Não se trata apenas de diminuição de espaço na mídia impressa, mas de uma mudança do próprio jornal, que foi ficando cada vez mais focado no serviço cultural e com menos interesse na reflexão e no debate de ideias. Não se quer mais perder muito tempo lendo jornal e

continente A internet pode servir como canal prioritário de comunicação? LUiZ cAMiLLo oSÓRio Acho que sim, a internet é um canal imprescindível a ser trabalhado. Não tem mais volta. O que fica como questão é a tensão entre a dinâmica pública do jornal impresso e a setorização fragmentada dos blogs e sites, em que grupos de interesses já definem os acessos, reduzindo o conflito político intrínseco ao que é comum e partilhado por todos. continente Como vê a relação entre curadores, mercado e artistas no desenvolvimento da crítica? LUiZ cAMiLLo oSÓRio Uma relação perigosa, cheia de atritos, mas meio inevitável. Não dá para escapar do mercado, ao mesmo tempo em que não podemos sucumbir às suas regras. Há que estar nele, mas forçando a abertura de brechas e linhas de fuga. continente Em artigo de 2007, o senhor diz que “o mundo globalizado não deve se constituir pelo consenso ou pela identidade, mas no dissenso e nas diferenças em constante tensão e negociação. O que temos visto nas últimas décadas é justamente a produção dita periférica oxigenando e criando hibridações renovadoras para a produção central”. Como a crítica pode colaborar para essa oxigenação da arte globalizada? LUiZ cAMiLLo oSÓRio Reverberando e disseminando a potência crítica e criativa das obras. Além disso, o crítico-curador deve produzir exposições que levem em consideração nossas diferenças e nossa inserção no mundo e no circuito globalizado da arte. Cada vez mais temos que nos abrir para a troca cosmopolita, trazendo artistas internacionais para exposições em museus e galerias brasileiras.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 5

Crítica Cultural.indd 35

25/08/2010 15:34:22


con especial ti nen te 3

DIVULGAÇÃO

MiGRAÇÃo

A São Paulo Companhia de Dança é hoje dirigida por Inês Bogéa, que já atuou como crítica da área na Folha de S.Paulo

em buscar uma forma consistente e única de interpretar as peças, e de me portar no palco. Na minha cabeça, não adianta você sair da ‘regra’, se não buscar conhecê-la a fundo, e se não tiver algo forte e interessante para propor.” Segundo Vítor Araújo, o seu próprio criticismo em relação a vários artistas sofreu grande mudança depois que pôde conhecê-los. “Quando você conhece mais de perto o artista, consegue compreender melhor o que ele fala.

“Fazer crítica é pôr em crise, é análise, não através de um comentário pessoal”, afirma a crítica inês Bogéa E, aí, muitas das críticas negativas arrefecem um pouco, pois a arte, antes de tudo, é a expressão mais íntima do indivíduo, e, ao conhecer a sua beleza, descobre-se também a relevância do seu olhar sobre as coisas.” Por outro lado, o aumento da exposição na mídia – que suscita a ampliação do olhar alheio sobre o trabalho artístico – promove transformações no artista. “A autocrítica cresce vertiginosamente. Tenho sido cada vez mais rigoroso comigo mesmo”, aponta Vitor Araújo. O alcance da voz do crítico sobre o mundo da arte é questionado por Carlos Mélo. Para ele, a crítica exerce pouca influência na produção artística. “A crítica cultural abre uma reflexão em torno das questões gerais de uma época, trazendo grande contribuição. Mas, a arte, o processo, e o estado sensível do artista são ativados por outros fatores. São poucos os críticos que influenciam de fato uma geração, mas, não a partir da crítica e, sim, do seu envolvimento com a produção e proposições, às quais ele também pertence.”

3

Para a crítica da revista Carta Capital, Camila Alam, o julgamento dos outros tem utilidade prática no exercício profissional. “Nas minhas leituras, muitas vezes vejo a crítica com olhos de jornalista. Se, por acaso, conheço o material ao qual o crítico se refere, faço um julgamento mais pessoal, comparo a opinião descrita com a minha. Caso não conheça, leio e armazeno a informação, para que no futuro possa fazer esse trabalho de comparação. Mas uma crítica positiva ou negativa pode influenciar o meu interesse e curiosidade sobre o material (filme, exposição, livro etc.) que não conheço”, diz Camila. Por sua vez, Ana Luisa Lima conta que a experiência da Tatuí, cuja

concepção se deu exatamente sobre um panorama de “crítica da crítica”, fez com que a proposta da revista seja exercer uma função “independente, crítica, reflexiva, propositiva, por vezes poética, noutras vezes um tanto quanto perversa. Ela se insere nesse bojo de textos sobre arte, complexificando ainda mais esse lugar não possível de delimitar”. A pergunta sobre a existência do distanciamento crítico é tida como essencial para a editora. A liberdade para questionar a crítica também é levantada pelo pianista Vitor Araújo. “Alguns críticos demonstram extrema sensibilidade ao receber críticas. Em certos casos, o jornalista especializado

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 6

Crítica Cultural.indd 36

25/08/2010 15:34:27


em crítica musical toma sua opinião como verdade. Nenhuma opinião é um fato, nem a do maior crítico, com o maior conhecimento do mundo sobre a história da arte.” Para Araújo, os grandes críticos sabem que a opinião deles não é a verdade, é apenas uma, das milhares de visões possíveis. “Críticos que não aceitam críticas, ou que se ferem com discordâncias, não são grandes críticos, são apenas pessoas que gostam de achar, e só. Achar, qualquer um acha. Achar é muito pouco, um crítico tem que saber.” Inês Bogéa concorda. “Fazer crítica é pôr em crise, é análise, não através de um comentário pessoal, mas, sim, contextualizando os elementos no espetáculo, como eles se relacionam com o presente e com o passado, quais são as forças e fragilidades desse espetáculo, a partir dos seus próprios pressupostos.” Para ela, a crítica cria um movimento que “amplia o próprio espetáculo cênico”. Nesse sentido, a formação do profissional deve ser cada vez mais valorizada, atrelada especificamente ao ramo da arte que será analisada. “O que leva alguém a se tornar crítico é a junção de experiência, vivência e conteúdo que a pessoa tem sobre determinado assunto”, afirma a jornalista Camila Alam. Para ser um bom crítico, segundo ela, é necessário entender o assunto em pauta, mas tal conhecimento pode ter vindo de maneira empírica ou da academia, ou de ambos. O jornalista e crítico de cinema Luiz Joaquim, da Folha de Pernambuco, reconhece que faz falta uma formação específica de crítica cultural no Brasil. “Para melhorar, talvez fosse interessante que durante todo o curso de jornalismo, cinema ou letras houvesse disciplinas ensinando história da arte e a evolução do jornalismo cultural”, sugere. Para ele, a formação deveria incluir desde a música clássica, a ópera, e as pinturas seiscentistas, até a videoarte.

eM cenA, o cURADoR

Ao mesmo tempo em que se nota a decadência do espaço concedido tradicionalmente ao crítico especializado, é possível enxergar a emergência de um novo ator: o curador. A atividade de curadoria é

mais valorizada, no ambiente de referências escassas, horizontes expandidos e obras individualizadas da arte contemporânea. Para a historiadora, antropóloga e professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Fabiana Bruce, a curadoria atende a uma necessidade de comunicação do artista com o público. “O que parece nortear a arte hoje em dia, uma arte menos retiniana, desde pelo menos Duchamp, é muito mais o que o artista propõe ao mundo. Daí, inclusive, que muitos artistas utilizem livros, vídeos e outras ‘mídias extensivas’ para, eles próprios, intervirem na explicitação de suas obras.”

“cada vez mais os textos de jornais sobre arte se resumem na republicação dos releases ”, pontua Ana Luisa Lima Nesse ambiente complexo, em que se misturam o artista, a obra, o curador e o mercado, “é possível enxergar políticas já instituídas que se arvoram em sobredeterminar ações de arte condizentes com interesses, às vezes, limitadores da própria arte. Com a época, por tradição, por propaganda, porque são, enfim, consumíveis na atualidade”, explica Fabiana Bruce. O que mais interessa, para ela, é saber: o que quer o artista? O professor de história Fel Viana dá uma resposta possível, buscando o sentido contrário ao do curador: “A arte está aí para ressignificar a gente, para representar e reiventar nosso cotidiano, para agradar, fazer rir e chorar. Não para financiar lucros de instituições que organizam e distribuem editais”. O protagonismo dos curadores no circuito artístico põe em relevo, por sua vez, a relação entre a obra e o mercado. O professor Fel Viana sintetiza uma preocupação dominante, em que a arte como mercadoria responde a padrões determinados (em

A CONQUISTA DO SERTÃO O surgimento do Sertão como noção cultural é retratado no livro Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII, de kalina Vanderlei Silva, lançado em agosto pela Cepe editora. A obra detalha o cenário socioeconômico e cultural que dá origem à conquista do sertão pernambucano, enfatizando uma história social: a dos personagens envolvidos na chamada guerra dos bárbaros, que combateram os povos indígenas habitantes de uma região temida e selvagem, durante o processo de expansão que levou à inclusão de amplas extensões continentais na jurisdição da colônia portuguesa.

MAIS UM LANÇAMENTO

NAS PRINCIPAIS LIVRARIAS OU PELO

0800 081 1201

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 7

Crítica Cultural.indd 37

25/08/2010 15:34:59


con especial ti nen te FOTOS: DIVULGAÇÃO

Entrevista

CAO GUIMARÃES “É PRECISO DIALOGAR MAIS COM AS OBRAS”

4

entrevista, nesta edição, o cineasta Cao Guimarães também trata da questão). Para Viana, os escolhidos pelos editais acabam sendo aqueles “considerados arte”, enquanto os demais trabalhos são descartados. “A crítica deve vir como consequência do trabalho, e não como causa. Digo causa porque já vi vários trabalhos aprovados em editais com uma crítica pré-pronta, antes mesmo da apresentação ou exposição. Desse jeito, é construção da arte, sem nenhum significado.” O professor e crítico Alexandre Figueirôa afirma que, nos veículos brasileiros de crítica de cinema, a abordagem segue a lógica do jornalismo cultural contemporâneo de priorizar os lançamentos e os filmes

exibidos em mostras e festivais. “Isso se resume em levar ao leitor informações genéricas sobre as obras fílmicas, como dados da produção, curiosidades, sinopses e, eventualmente, opiniões contagiadas (o que já foi demonstrado em trabalhos acadêmicos) pelo material de divulgação dos filmes.” Ana Luisa Lima expõe semelhante preocupação. “Cada vez mais os textos de jornais e revistas sobre arte se resumem na republicação dos releases tais quais são enviados. Quase não há produção de pensamento, tampouco reflexão sobre o que minimamente tem sido pensado. Isso é que precisa ser revisto urgentemente.”

o cineasta e artista plástico mineiro Cao Guimarães, que teve o filme Ex Isto exibido na sessão de encerramento do Festival de Gramado deste ano, veio ao Recife em julho para a Semana de Videoarte da Fundaj, para fazer palestra e abrir a exposição de seu trabalho Sin peso. Nesta entrevista, Cao defende a incorporação da história da técnica à história da arte para a crítica de videoarte, mas diz que o lugar de uma boa crítica ainda é o papel, e não a tela do computador. continente Como é a sua relação com a crítica, como artista e cineasta? cAo GUiMARÃeS É boa. Como eu transito entre esses dois universos – as artes plásticas e o cinema –, fico pensando se existe alguma distinção entre uma e outra, e acho que talvez, sim. Mais no sentido de quando e de onde chega essa crítica. Como o cinema é uma arte mais industrial, há uma tendência de os meios de comunicação se voltarem

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 8

Crítica Cultural.indd 38

25/08/2010 15:35:05


para esse tipo de trabalho, de perfil mercadológico. O que é horrível, geralmente, são críticas rasas ou superficiais. O jornal deixou de ser um local de reflexão. Nas artes plásticas, o diálogo entre o crítico e o artista talvez seja mais intenso, por ser uma arte em que a questão da autonomia do artista seja muito maior do que com o cinema. O artista como um ser solitário, como um escritor, talvez tenha uma interlocução mais interessante do que no cinema. continente Qual a importância da crítica para você? cAo GUiMARÃeS É fundamental porque é uma possibilidade de interlocução e de enriquecimento do trabalho. Todo trabalho de arte termina no artista e continua no outro. Então, esse outro, quando é uma cabeça também pensante, especificamente sobre cinema, arte, literatura ou o que seja, tende a intensificar a troca. Vários críticos já me mostraram coisas que eu nunca vi no meu trabalho. Como também pessoas não críticas já me mostraram coisas que eu nunca vi. Mas os críticos fazem a inserção desse trabalho num todo que é a história da arte. Para não deixar que a obra fique simplesmente pairando por aí. A gente sente a base de trabalhos artísticos dialogando com uma tradição histórica. continente Por não ter uma tradição de referência, a crítica de videoarte é mais complexa? cAo GUiMARÃeS Bom, nunca tinha pensado nisso, mas com certeza. A videoarte, enquanto forma de arte, ainda não consegui entender direito. Acho que não só eu, que me defino videoartista. Não entendo ou não conheço direito a história da videoarte, mas usava da ferramenta vídeo para fazer meus trabalhos que foram, por acaso, migrados, para o universo das artes plásticas. Nunca fui obcecado por tecnologia, não é a minha praia. Agora, a videoarte, em termos de crítica, se você considerála uma especificidade artística, como a pintura, o desenho, a escultura, ou

a fotografia, certamente os críticos vão ter um arcabouço menor para pensar a respeito. É muito cru ainda, muito novo. Mas eu acho que tende a dialogar mais com a história da pintura, da iconografia, do audiovisual. Tem várias etapas, a ideia da espacialidade, da relação da imagem audiovisual bidimensional com a arquitetura, com o tridimensional, tornando-se uma coisa mais sensorial. Tudo isso é uma coisa que anda junto com a revolução tecnológica. O interessante talvez seja esse diálogo, não só com a história da arte, mas com a história da indústria, da técnica, que gera outros tipos de linguagem possíveis. O fato de você poder gastar fita à vontade, isso, para o audiovisual, é uma coisa revolucionária. No cinema, era impossível ficar uma hora fazendo a tomada de um plano de uma formiguinha no chão. continente Você lê críticas na internet? cAo GUiMARÃeS Não. Eu sou um obcecado por jornal, morro de preguiça de computador. Não gosto nem de ler e-mail. Não sei se eu já sou um ser tardio... O local de uma boa crítica ainda é, para mim, no papel. A tendência no Brasil é a mídia impressa ficar mais opinativa e menos informativa, como acontece no exterior, e deixar a informação para a mídia eletrônica. Hoje, não faz sentido se informar pelo jornal. Jornal é um veículo mais para crítica do que para informação. continente O que acha dos novos críticos em atividade? cAo GUiMARÃeS O papel do curador tomou muito o lugar do crítico. Parece, às vezes, que artistas fazem trabalhos para ilustrar pensamentos de curador, o que é terrível. A arte sempre tem que ser mais importante do que qualquer outra coisa nesse sentido, nesse espaço. Mas existe, sim, um movimento de jovens críticos, muitas vezes vindos da academia – o que também é perigoso, misturar academia com arte. Há muitos críticos jovens vendo o que está

passando no cinemão, para falar desse cinemão que não tem exatamente a ver com a história do cinema. continente A ascensão do curador é uma coisa boa para a arte? cAo GUiMARÃeS Jamais busquei alguma referência crítica ou curatorial para fazer um trabalho. Eu acho perigosíssimo, a começar pela arte ensinada em universidades ou escolas. Arte é uma coisa dificílima de ser ensinada. É uma coisa que nasce do artista naturalmente. Então você já começa, dentro dessas escolas, a formar pequenos guetos em torno de um curador ou de um pensamento X. E os artistas já tendem a ter o início da arte como uma carreira – que não é uma carreira, para mim. Começam a acontecer pequenos movimentos estranhos à arte. Porque ela é estranha por si só, é da natureza de inutilidade, da falta de convenção, da falta de foco para fazer, causa estranhamento. Não é uma fórmula, que você vai atrás de uma coisa ou atrás de um segmento, de um pensamento qualquer para repetir ou ilustrar. Tem que ser o contrário. Essa explosão da expressão artística é que tem que ser captada pelos críticos, e não necessariamente ser categorizada, colocada em escaninhos. O que é interessante para a história da arte, mas a arte é muito maior do que esses escaninhos. continente Qual o risco da curadoria? cAo GUiMARÃeS É transformar o fazer artístico num trabalho em série. Coisas para ilustrar determinados pensamentos que vêm, às vezes, de universidades, ou de outras searas que não a própria arte. O crítico é importante, sim, mas o artista é quem tem que dialogar com a história da arte e com as obras da história da arte. Muito mais do que com o que se diz ou não. É preciso dialogar mais com as obras do que com os críticos. Os críticos são os ilustradores de um pensamento. Interlocutores maravilhosos que podem fazer críticas de uma poética, de uma fineza, de uma filosofia fantástica, mas que não substituem a obra de forma alguma.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 3 9

Crítica Cultural.indd 39

25/08/2010 15:35:05


con especial ti nen te RePRODUÇÃO

coMo VALoRAR

Outra face do problema é exposta pelo artista plástico Carlos Mélo. “Alguns estados do Brasil não têm, infelizmente, força institucional para abarcar a produção dos artistas. Pernambuco é um deles. Faltam estratégias de inserção”, lamenta. “Do que adianta o fomento à produção se, quando os artistas começam a voar, lhes cortam as asas? É preciso repensar as plataformas, menos show e mais continuidade. Quando o sistema não funciona de maneira integral e democrática, provoca a formação de ‘grupos de poder’ que acabam se beneficiando numa espécie de ciranda da autoajuda. É grave, mas é apenas um sintoma de um formato que não tem dado muito certo, até mesmo para quem está dentro da dança.”

Ao mesmo tempo em que se nota a decadência do espaço do crítico especializado, emerge o do curador

5

Entre a produção artística e o consumo cultural, como estimar o valor de uma obra? Nem sempre aquilo que vem a ser tido como bom, vende, na época em que foi concebido. Ana Luisa Lima percebe a contaminação do modelo de funcionamento do mercado sobre o exercício do olhar crítico. “A escrita sobre arte tem sido ativada mais por uma demanda institucionalmercadológica, e menos por um exercício crítico independente. Não quero dizer absolutamente que as demandas institucionais e de mercado em si configurem um mal, mas esse tipo de escrita, quase sempre, a priori, altera a rota e vai cumprir outra função que não tanto de pensamento reflexivo sobre o trabalho de arte, mas de afirmação (porque vem de uma necessidade de legitimação) de procedimentos, discursos e visualidades.”

Essa premissa cria um círculo vicioso que confunde valores superficiais e valores de outra ordem. “Quando se fala em valor de uma obra, associa-se imediatamente ao mercado. Mas e a importância imaterial-simbólica? E o peso de exibição? A obra de arte traz em si outros valores capazes de ativar outras economias que não só a do capital”, opina. No imenso contexto da arte contemporânea, o que está à mostra não é tudo o que há – apesar da nova configuração entre arte e comunicação antes descrita por Anne Cauquelin. A propósito da dificuldade de classificação e categorização da arte atual, Cauquelin lembrou que um artista que desponta na mídia é chamado simplesmente de “emergente” – seja lá o que isso signifique. “O que vende hoje, ou não, para mim, não é imediatamente

um problema. O que não é exposto, o que não está próximo e acessível, o que não se pode fruir, é que me preocupa mais. Por isso é preciso pensar numa política pública que nos assegure a permanência de coleções de arte substanciais em nosso país”, diz Ana Luisa.

cRÍticA nA inteRnet

Em contraponto à perda de espaço na mídia tradicional, há uma enxurrada de sites e blogs na internet com resenhas, críticas amadoras e profissionais. Para a jornalista da Carta Capital, Camila Alam, é uma transição gradativa, natural e, de certa maneira, benéfica ao público leitor. “Uma crítica amadora, feita em um blog pessoal, pode ser mais completa e informativa do que uma publicada em veículo tradicional. Já um breve post no Twitter, sem argumentação fundamentada, não pode ser

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 0

Crítica Cultural.indd 40

25/08/2010 15:35:11


MARCOS PASTICh/DIVULGAÇÃO

Página Anterior 4 PeRFoRMAnce

Obra de Carlos Mélo, que avalia ser pouco influente a opinião da crítica sobre a criação

Nestas Páginas 5 TATUÍ

A concepção da revista se deu sobre um panorama de “crítica da crítica”

6 nA ReDe Para o jornalista e crítico Luiz Joaquim, nem sempre os sites e blogs trazem uma avaliação gabaritada e enriquecedora

Para Alexandre Figueirôa, a internet transformou a atual crítica de cultura, fazendo surgir uma multiplicidade de vozes

6

considerado uma crítica. Cabe ao leitor saber filtrar as informações que aparecem na rede e usufruir da maneira que melhor lhe convir”. O professor Alexandre Figueirôa credita à internet a transformação atual da crítica de cultura, fazendo surgir uma multiplicidade de vozes em que também se localiza cada vez mais o consumidor dos produtos culturais. “É claro que nessa terra de ninguém, que é a web, fica difícil separar o joio do trigo, contudo, penso que um novo gênero de crítico está surgindo, alguém que seria muito mais uma espécie de ‘editor’ de opiniões do que propriamente um ‘emissor’ de opiniões”, sugere. O jornalista Luiz Joaquim (que mantém o blog cinemaescrito.com) compartilha dessa separação. “Não há necessariamente uma avaliação gabaritada e enriquecedora ali. A maioria funciona mesmo

computadores pode ser apenas a ponta do iceberg de um movimento muito mais amplo. Se, até o século passado, a crítica se restringia à esfera da observação e análise, hoje é comum que se ponha “a mão na massa”, havendo uma maior troca entre quem faz e quem julga a obra (críticos fazendo cinema, escritores assinando resenhas etc). Para a editora Ana Luisa, da Tatuí, “as linguagens estão cada vez mais híbridas, como também os agentes culturais já não se encerram mais nas gavetas: criação, produção, reflexão... Está tudo misturado”. Para ela, é cedo para falar de consequências. Podese falar de potencializações, nos modos da arte e no pensamento reflexivo sobre arte. A revista Tatuí, segundo sua editora, se insere nessa proposta de mover a crítica “para além

como um compartilhamento de opiniões. Nesse infinito de opiniões, não é muito saudável que o navegador acredite na primeira avaliação que acessa”. Alexandre Figueirôa lembra, no entanto, que a crítica acadêmica continua com fôlego. “Num encontro de pesquisadores de audiovisual, como o da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine e nas publicações resultantes desses encontros, vamos encontrar uma infinidade de abordagens críticas em torno de filmes, movimentos, cineastas, cinematografias, a partir de diversas possibilidades e de leituras interdisciplinares ricas, em que são estudadas questões estéticas, sociais, econômicas e culturais, com seriedade e profundidade.” Por sua vez, a explosão de possibilidades da rede mundial de

de”. É preciso continuar fazendo crítica de arte “a despeito da impossibilidade de se (de)limitar esse campo de atuação”. É uma publicação “que aposta na atuação bastante próxima à criação de arte e na forma experimental de textos (não necessariamente escritos) sobre arte porque se quer também afinada a essa condição porosa que é a contemporaneidade. Se nosso objeto de estudo (trabalhos de arte e seus arredores) vai se transmutando, é preciso também transmutar os métodos para pensar sobre ele. De outro modo, haveremos de empobrecer nosso repertório, insistindo em ver o que tomou nova forma com os mesmos olhos”. A afirmação cai bem para a realidade da crítica cultural brasileira, mais do que nunca, à espera de novos olhares preparados para os novos horizontes da arte contemporânea.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 1

Crítica Cultural.indd 41

25/08/2010 15:35:14


con ti nen te#44

Tradição

1

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 4 5

Tradição.indd 44

25/08/2010 15:39:10


IBIMIRIM Imaginária em madeira no Sertão Arte secular dos santeiros, que chegou a Pernambuco no período colonial, resiste ao tempo notabilizando-se pela numerosa produção de peças e por entalhe de alto requinte texto Danielle Romani Fotos Leo Caldas

A arte de esculpir santos em

madeira chegou a Pernambuco no período colonial, ainda no século 16. Foi introduzida, principalmente, pelas confrarias religiosas jesuítas, franciscanas, beneditinas e carmelitas, que abrigavam em suas irmandades artífices especializados na ornamentação de capelas e igrejas. Durante os séculos seguintes, mestres e aprendizes do ofício, no Recife, Olinda e em Goiana, notabilizaram-se pela numerosa produção de imagens e por entalhe de alto requinte. “Pernambuco, juntamente com a Bahia, o Rio de Janeiro, Maranhão e Minas Gerais, é uma das cinco mais importantes escolas de manufatura em madeira. Artistas como Manoel da Silva Amorim – nascido no Recife em 1780, e que atuou a serviço da ordem franciscana – se distinguiram por um trabalho primoroso, que traduz o apogeu do nosso barroco, dito colonial”, explica Fernando Augusto Gonçalves, diretor do Centro de Produção Cultural Mamulengo Só-Riso. No começo do século 20, entretanto, o trabalho desses artistas esteve próximo da extinção. A disseminação do gesso, material barato e de fácil manuseio, impôs-se como alternativa ao uso da madeira. As imagens do

passado foram, gradativamente, substituídas pelos santos de gesso que hoje ornam grande parte das igrejas e capelas metropolitanas. Enquanto rareava nas cidades litorâneas, a arte de esculpir figuras sacras em madeira migrou para o interior de Pernambuco. Encontrou adeptos excepcionais em Ibimirim, no sertão do Moxotó. A cidade, que fica a 316 km do Recife, especializou-se na escultura de imagens religiosas talhadas em toras de umburana de carrão – ou imburana, como pronunciam os moradores da localidade –, uma madeira flexível, porém resistente, apta ao trabalho de lapidação. A habilidade dos muitos mestres locais foi um fator fundamental para consolidar o município como polo santeiro no Brasil. “Ibimirim faz parte da rota de arte sacra brasileira devido ao estilo e à marca própria que os artistas locais imprimem à estatuária religiosa”, explica Marcela Wanderley, gerente do Museu de Arte Popular do Recife. O encontro entre a imaginária e os ibimirinenses se deu na década de 1960, época em que Josefa Paulino de Souza, ou Zefinha Paulino (19461984), nascida em Manari, iniciou a produção de imagens em madeira – carrancas, ex-votos, santos – e a retransmissão da técnica aos parentes

e moradores da cidade. As origens do trabalho de Zefinha têm versões diferentes. Alguns garantem que a vocação da sertaneja teria despontado após visita a São Paulo, no início da década de 1960, época em que esteve no ateliê do irmão, o artista plástico Luiz Paulino, que produzia peças sacras de estilo barroco. A versão é contestada por Fernando Augusto Gonçalves, que refuta a possibilidade de Zefinha ter sido influenciada pelas técnicas desenvolvidas em São Paulo. “Isso parte de uma visão colonialista, errada, de gente que pressupunha que o Nordeste não tinha tradição. Ela deve ter tido influência da imaginária praticada no interior da Bahia, que tem reflexos também no trabalho produzido em Petrolina. Suas peças são genuínas representantes do que convencionei chamar de ‘arte popular barroca’, gênero desenvolvido em Ibimirim. Zefinha fez escola”, diz o pesquisador. Gilberto Paulino, filho e herdeiro artístico de Zefinha, traz outras informações sobre a formação da mãe, com quem começou a trabalhar ainda criança. “Quem a estimulou foi meu padrinho, Casto Estelito, um homem de alta sociedade, que morava na Bahia, e que percebeu o seu potencial.”

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 5

Tradição.indd 45

25/08/2010 15:39:22


Próximo à sua morte, aos 38 anos, Zefinha chegava a mandar, mensalmente para o exterior entre 400 e 800 peças, afirma o mestre-santeiro que comanda a Associação dos Alunos e Artesãos Seguidores da Pioneira Zefinha Paulino, e que há quase uma década luta para inaugurar um museu em memória da mãe, no bairro de Lages, local em que estão instalados todos os artistas, e onde mora. “Para que o museu possa finalmente abrir suas portas, vamos vender uma carranca de 125 cm de altura, esculpida por ela em 1979”, diz.

FoRA DAS iGReJAS

Os artistas reclamam da ausência de interesse dos religiosos locais por suas imagens. Nenhuma peça dos mestressanteiros é vista nas igrejas e capelas ibimirinenses. “Não temos incentivo”, afirma Marcos de Almeida, ou Mestre Marquinhos, sobrinho de Zefinha. Também não se veem visitantes pelas ruas, apesar de a grande maioria das imagens ali produzidas se destinarem às coleções particulares e à decoração de espaços residenciais pelo país afora. “Antes, os turistas vinham à porta da casa da gente. Hoje, fazem encomendas por telefone ou correio”, explica Josué Rodrigues da Silva, que aprendeu o ofício há 17 anos com o marido de Zefinha, Pedro Ferreira.

Tradição

con ti nen te

O ritmo de produção dos santeiros, mestres e discípulos é constante: diariamente, instalam-se na porta de casa ou em oficinas domésticas, criando com as mãos imagens sacras. Os que visitam os ateliês se deparam com a multiplicidade dos instrumentos de trabalho nas banquetas de madeira: goivas, formãos, enxós, marretas e serrotes entalham as toras de umburana trazidas de localidades próximas à cidade. “A gente só se preocupa mesmo é com a falta de matéria-prima, pois a umburana foi largamente utilizada, sem que se pensasse no replantio, e hoje já é difícil encontrá-la”, afirma Nivaldo Gomes dos Santos, que desde 1984 se dedica ao ofício.

2

Os núcleos familiares são a base da produção artesanal local. “O mestre, ou mestra, treina filhos e parentes, mas também pode valer-se, como acontece com frequência, de vizinhos e amigos da comunidade. A mão de obra é predominantemente masculina. A divulgação é escassa, mas os grandes mestres, atualmente, têm clientes cativos, que procuram e encomendam peças periodicamente”, escreveu Fernando Augusto, no catálogo da exposição Santos e santeiros de Ibimirim, ocorrida entre dezembro de 2000 e janeiro de 2001 no Rio de Janeiro. Entre o final da década de 1990 e o começo dos anos 2000, ele desenvolveu um trabalho de formação com os santeiros,

Página anterior 1 conJUnto

Imagens, esculpidas em umburana de carrão, retratam santos católicos

2

pRimitivA

Obras de Zefinha Paulino mostram estilo naif, com cores fortes e traços rudes

ministrando oficinas e cursos, nos quais apontava a necessidade de afirmação de uma arte com feições próprias e características da região. “Numa viagem, passei pela cidade e me encantei com o que vi. A partir daí, desenvolvi um trabalho de profissionalização e alternativas de mercado. Mostrei a importância de fazer peças sem pintura, pois a tinta esconde os entalhes, enquanto a escultura em madeira polida mostra toda a perícia do escultor. O colecionador valoriza isso. Também

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 6 7

Tradição.indd 46

25/08/2010 15:39:28


3

sugeri que, ao invés de retratarem figuras ‘importadas’, esculpissem nas imagens animais encontrados na caatinga, referências à cultura sertaneja, para que seus trabalhos tivessem força e personalidade”, conta Fernando.

inteRvenÇÕeS eStÉticAS

A geração de mestres orientados por Fernando Augusto e formados por Zefinha e seus discípulos vem, a cada dia, diversificando mais o trabalho oferecido. Se, antes, nas oficinas e bancadas dos artesãos eram encontradas apenas obras primitivas, com cores fortes ou em madeira crua, hoje, muitos artistas se especializaram na

confecção de peças rebuscadas, com utilização de folha de ouro, olhos de vidro e douramento. Presidente da Associação dos Mestres-Santeiros de Ibimirim, José Bezerra esclarece os tipos de tratamento ou pintura que podem ser encontrados por visitantes e colecionadores. “O santo pode ter características totalmente barrocas, ser pintado, bordado e com detalhes em folha de ouro; semibarroco, com fitas douradas; ou só em madeira polida.” A reorientação, que trouxe mais rebuscamento às imagens, foi trazida pela Oficina de Técnica de Pintura Barroca, oferecida em 2005 pelo Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Segundo

Adriana Vasconcelos, gestora do Projeto Artesanato Caruaru, a oficina foi oferecida a partir de solicitação dos santeiros. “Nosso objetivo era prepará-los para competir no mundo de novas oportunidades ocasionadas pelas demandas do mercado. Em geral, eles vendiam suas peças sem pintura, ou ainda, com pinturas descaracterizadas, que não valorizavam o produto final”, explicou a gestora em e-mail à Continente. Se os artistas ficaram satisfeitos com o curso, especialistas em arte popular criticam a interferência estética dele advinda, por acreditar que o estilo ibimirinense perde com a introdução de elementos do barroco histórico. “Do mesmo jeito que o

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 7

Tradição.indd 47

25/08/2010 15:39:36


con ti nen te

Tradição Sebrae fez cursos de máscaras em couro, de estilo veneziano, para o pessoal de Bezerros, quer transformar os trabalhos ibimirinenses em peças ‘antigas’. Os douramentos desvirtuam a pintura de Ibimirim. Zefinha pintava figuras, e a arte local até evoluiu para uma pintura mais elaborada, mas sem cunho decorativo, sem esse exagero”, censura Fernando Augusto. Sem fazer críticas aos resultados daquela oficina, mas destacando que a arte popular tem características diferentes da erudita, a coordenadora do Programa do Artesanato Brasileiro da Agência do Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, Célia Delgado Novaes Carvalho, faz ponderações. Ela lembra que os santos de Ibimirim se destacam, justamente, por serem menos rebuscados que os barrocos. “Nas peças de Zefinha, as cores são mais fortes, primitivas. O movimento das roupas, talhado na madeira, é menos fluido e as feições são mais rudes. Isso faz a diferença”, aponta. Responsável pela escolha dos artistas que se apresentaram no Salão dos Mestres da Fenearte, na

Segundo os santeiros, nossa Senhora da conceição, São Jorge e São miguel Arcanjo são os mais difíceis de se elaborar edição de 2010, Célia elegeu apenas dois representantes ibimirinenses da arte sacra, apesar de ressaltar que o município tem vários mestres de qualidade, que poderiam também ter sido selecionados. Os escolhidos foram artesãos que apresentam, na maioria dos casos, trabalhos em madeira crua, apenas encerados: Manuel Cordeiro de Sá Filho e Maria Elda Alves. Natural de Floresta, Manuel chegou a Ibimirim em 1984, e aprendeu os segredos da escultura graças a Enoque Ferreira Lima, que foi discípulo de Zefinha Paulino na década de 1970. “Ajudava Enoque e depois comecei a produzir minhas peças”, diz o artista, que, ao lado da mulher Maria José, a Zeza,

4

administra a Associação dos Santeiros de Ibimirim – Arte Santa, na qual ministra aulas. Dois episódios, em particular, ajudaram Manuel a ganhar destaque nacional. Em 2002, ano de canonização da Madre Paulina, o então presidente Fernando Henrique Cardoso presenteou o Papa João Paulo II com uma imagem da religiosa produzida por Manuel. “Ela está na galeria de arte do Vaticano”, comenta. Anos depois, em 2009, o arcebispo de Recife e Olinda, Dom Fernando Saburido, presenteou o Papa Bento XVI com uma imagem de São Bento, igualmente produzida pelo artista. “Dificilmente pinto as imagens, pois sei que a madeira lisa é mais valorizada”, afirma Manuel.

SAntoS popULAReS

Ainda que tenha esculpido Madre Paulina e São Bento, Manuel Cordeiro diz que os santos mais entalhados são Antônio e Francisco, considerados por ele e pela maioria dos artesãos locais como mais fáceis de elaborar, ao contrário de Nossa Senhora da

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 9 8

Tradição.indd 48

25/08/2010 15:39:42


PERFIL DOS MESTRES

5 Página anterior 3 Passo a Passo

Na sua oficina, mestre Manuel executa todas as etapas de lapidação da madeira: desbasta, esculpe e finaliza

Nestas páginas

4

elda

5

discíPulo

A artesã trabalha sozinha e é conhecida pela perfeição de suas peças Enoque Ferreira repassa conhecimentos da arte que aprendeu com Zefinha Paulino

Conceição, São Jorge e São Miguel Arcanjo, considerados mais difíceis, pelos detalhes. O tempo gasto na confecção de cada imagem depende do número de detalhes e adereços. “Os mais simples podem ser produzidos em um ou dois dias. Os maiores, às vezes, demoram até um mês para ficarem prontos”, afirma o artista. Única mulher a se destacar em meio a tantos homens nessa arte, Maria Elda Alves

nasceu em Ibimirim, dedica-se à arte há 15 anos e soma uma produção pequena, que atribui ao acúmulo de trabalho: cuida das tarefas domésticas e dos quatro filhos, enquanto entalha peças na sala de casa. Diz que já pensou em largar tudo e resignar-se ao cuidado da família. No começo, enfrentou o machismo dos companheiros, e chegou a pensar que nunca seria tão boa quanto eles. Mas o incentivo dos colecionadores e compradores impulsionou-a. “A fase difícil ficou para trás”, afirma a mestra. Sobre ela, são recorrentes os elogios: “É uma das melhores, inclusive na confecção de santos de roca. Em todos sentidos, é uma mestra excepcional”, opina Fernando Augusto.

enoque FeRReiRa lima

Josué RodRigues da silva

Começou a fazer santos com Zefinha Paulino, de quem foi aprendiz, ainda na década de 1970. Mora em Inajá e trabalha apenas em tempo parcial, na maioria das vezes por encomenda. Contato: (87) 8844.0501

“Josuel” é um dos mais novos santeiros e dono de grande capacidade de produção: esculpe centenas de santos num curto período. Trabalha com vários gêneros, mas prefere trabalhar com santos pintados. Contato: (87) 3842.1519

FRancisco vicente nogueiRa

manoel coRdeiRo de sá Filho

Nasceu em Betânia, vive em Triunfo, mas aprendeu o ofício com Zefinha. Habilidoso, talha, esculpe e pinta santos com maestria. Suas peças impressionam pela beleza e acabamento. Contato: (87) 9991.3599

Mestre Manoel ficou famoso internacionalmente ao ter uma imagem de Santa Paulina entregue ao Papa João Paulo II. É reconhecido pela elaboração de peças em madeira polida. Contato: (87) 8844.0501

gilbeRto Paulino de souza

maRcos RobeRto de almeida

Filho de Zefinha, comanda uma associação de artesãos. Aprendeu a esculpir com a mãe, ainda criança, e trabalha com vários estilos. Está envolvido na criação de museu em homenagem à matriarca. Contato: (87) 3842.1342

É sobrinho de Zefinha Paulino. A perfeição dos traços é um dos motivos que o tornam um dos artistas mais procurados pelos colecionadores. Trabalha, principalmente, com imagens no estilo barroco. Contato: (87) 3842.1545

José bezeRRa moRais

maRia elda alves sobRal

Conhecido como Zé Grandão, aprendeu o ofício com Nivaldo, e se destaca pela pintura impecável. É presidente de uma das associações do município. Aos 50 anos, é um mestre em plena maturidade do ofício. Contato: (87) 3842.1438

Única mulher a receber o título de mestra. Aprendeu a arte com Benedito Melquíades. Trabalha sozinha, e se notabiliza pela extrema personalidade de suas peças, que expressam sentimento e vida. Contato: (87) 3842.1019

José eveRaldo Paulino

nivaldo gomes dos santos

Esculpe há mais de duas décadas. É considerado um habilidoso artista. No final dos anos 1990, produzia madonas com pele cabocla, emolduradas por vastas cabeleiras de influência indígena. Contato: (87) 3842.2020

É o mestre com mais tempo de atividade, tendo ensinado a arte a toda uma geração de santeiros. Aprendeu o ofício em 1984, com Pedro Ferreira de Souza. Apresenta grande diversidade estilística. Contato: (87) 8844.6650

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 4 9

Tradição.indd 49

30/08/2010 15:11:42


con ti nen te

Hist贸ria

1

c co on nt tiin neen nt tee sset eteem mbbr ro o 220 0110 0 || 550 1

Historia_arquitetura do ferro2.indd 50

30/08/2010 15:14:12


PATRIMÔNIO O metal que adorna a cidade De importância artística e tecnológica, acervo arquitetônico do ferro reveste-se de valor histórico, econômico e político texto Danielle Romani Fotos Tiago Lubambo

A arquitetura do ferro tem relação íntima e secular com o Recife. Ao percorrer os saguões da Estação Central, no centro da cidade; ao caminhar pelos corredores dos mercados dos bairros de São José e de Casa Amarela; ao assistir a um espetáculo no Teatro de Santa Isabel, no bairro de Santo Antônio; ou, ao sentar no pátio interno da Faculdade de Direito, na Boa Vista, o cidadão pode contemplar edificações que integram um dos patrimônios arquitetônicos mais específicos e ricos do Brasil. Acervo que tem importância artística e tecnológica, mas que também está ligado à história, economia e política do século 19 e início do 20. A criação de um patrimônio de ferro, no Brasil, se deve à importância do metal para o desenvolvimento do capitalismo no século 19, época também conhecida como Civilização do Ferro. “O período se destaca por ser o apogeu da Revolução Industrial, protagonizada pela Inglaterra, e tem como cerne o grande desenvolvimento tecnológico com base em metais, como o ferro”, explica a historiadora e professora Socorro Ferraz. A larga utilização do ferro no Brasil, completa a historiadora, seja em obras de grande porte ou de pequena escala deu-se nas primeiras décadas oitocentistas, devido à pressão econômica da Inglaterra sobre o governo português, que havia chegado ao Rio de Janeiro, em 1808 –embora os prédios só tenham sido construídos a partir da década de 1860.

Prova disso foi o edital publicado em 1809, pelo então intendente da capital fluminense, Paulo Fernandes Vianna, no qual se ordenava a retirada de detalhes em madeira da fachada das casas coloniais, a exemplo de gelosias, rótulas e muxarabis (tipos de grades e treliças), herdados da cultura moura e árabe. Para justificar sua decisão, o intendente era enfático: condenava os artefatos de madeira, por alegar que eles “mostram a falta de civilização de seus moradores.” Em 1821, gesto semelhante, protagonizado pelo então governador de Pernambuco, general Luís do Rego, redundaria no episódio conhecido como Revolta de Goiana. Na ocasião, ele invadiu a cidade, à noite, e comandou pessoalmente o desmonte das urupemas (espécie de peneiras trançadas que protegiam as gelosias). Depois, fez uma fogueira e ateou fogo. “É fato inusitado que um governador vá a uma vila à noite e aja dessa forma”, pondera Socorro Ferraz, que registrou o episódio no seu livro Liberais & liberais. Ela observa que tanto o pedagogo Teobaldo Miranda quanto o sociólogo Gilberto Freyre levantam a hipótese de que a atitude do governador estivesse em sintonia com os interesses na venda de produtos ingleses. “Sem as urupemas, os goianenses foram obrigados a comprar vidros ou grades de ferro fabricados na Inglaterra”, diz.

MoDA e cLiMA

Estudioso das construções de ferro nas cidades brasileiras, o professor e arquiteto Geraldo Gomes da Silva afirma que os

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 1

Historia_arquitetura do ferro2.indd 51

30/08/2010 15:14:22


Página anterior 1 PioneiRiSMo

O Mercado de São José, de 1875, é o primeiro do gênero em ferro construído no Brasil

Nesta página 2 tecnoLoGiA

As peças em ferro da Faculdade de Direito do Recife foram adaptadas à realidade climática e cultural da cidade

2

con ti nen te

História ingleses podem até ter pressionado os brasileiros nos primeiros anos oitocentistas, mas que, na segunda metade do século 19, o principal fator para a profusão de prédios construídos no estilo foi simplesmente o modismo. “Como colônia, aqui se dava grande importância às coisas da metrópole. Portanto, a principal razão de trocar a madeira pelo ferro era o status e a necessidade de estar na moda”, diz, ressaltando que, por conta dos altos preços das construções, esse fenômeno ocorreu apenas nas cidades com próspera atividade econômica. Especialista no assunto, o arquiteto Paulo Souto Maior, autor do livro Nos caminhos do ferro – Construções e manufaturas no Recife (1830-1920), pondera que,

além do modismo, também foram determinantes outros aspectos para a introdução de tecnologias de construção metálica em Pernambuco. No Recife, argumenta, o que determinou a adoção do ferro em pontes e edificações foram, principalmente, os fatores climáticos, a exemplo das severas estiagens que atingiram a região, tornando a madeira material raro e oneroso. “A destruição da Mata Atlântica, desde a época colonial, contribuiu para a redução de oferta da madeira de lei. Aliado a isso, as constantes secas regionais escassearam o produto e encareceram as construções, o que tornou o ferro uma alternativa econômica, em muitos casos, bem mais viável e mais disponível para a construção. Outro entrave ao uso da madeira era a pouca mão de obra especializada para carpintaria”, diz Souto Maior, que tem mestrado em engenharia, na área de estruturas metálicas, e doutorado em restauração.

Tanto Geraldo Gomes quanto Souto Maior concordam que a utilização do metal se deu apenas nas regiões que vivenciaram ciclos econômicos ascendentes. “No Brasil, a arquitetura do ferro foi praticada, essencialmente, em regiões beneficiadas pelo rápido crescimento econômico. Ela esteve sempre subordinada à exportação de produtos agrícolas, como açúcar, algodão, café e borracha”, escreve Geraldo Gomes, no livro Arquitetura do ferro no Brasil, no qual cita o Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Pará como principais centros de importação do material. Outro fator preponderante para que os edifícios e a utilização de alicerces de ferro se multiplicassem pelas capitais, segundo o estudioso, foi a praticidade na montagem. “O ferro era muito caro, portanto produzir as peças no Brasil seria financeiramente inviável. Mas não havia necessidade disso. Os

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 2 3

Historia_arquitetura do ferro2.indd 52

30/08/2010 15:14:32


ferro, apesar de, no conjunto de prédios pernambucanos, vigorarem os estilos neoclássico e eclético, cujos elementos são percebidos em várias edificações. Mas o ferro não deixa de ser um material muito singular – que origina um estilo elegante – e que se comporta de forma diferente da pedra e da madeira. Logo, fica difícil avaliar os prédios construídos com o material pelo prisma estilístico”, opina Geraldo.

SAntA iSABeL, SÃo JoSÉ

No Recife do século 19 – como nas demais capitais brasileiras –, foram os franceses que impuseram estilos construtivos. A Missão Francesa, que chegou à corte em 1816, teve grande papel na difusão do Neoclassicismo no Rio de Janeiro, mas não teve influência direta na arquitetura pernambucana, segundo afirma Geraldo Gomes. O colóquio entre a França e o Recife iniciou-se com a chegada à capital

A utilização do ferro no Brasil aconteceu apenas nas regiões com ciclos econômicos ascendentes edifícios eram transportados de um continente para outro, pois os elementos de ferro e os prédios construídos na Europa eram montados em partes, desmontados e remontados no Brasil. Com isso, temos a primeira arquitetura que se pode chamar de pré-fabricada, o que facilitou sua propagação por todo o país”, explica Gomes. O processo de construção, ressalta o arquiteto, também permitia a cópia de prédios, similares aos europeus, ou ao gosto do freguês. “Era possível reproduzir infinitamente o mesmo modelo, com igual perfeição através dos moldes. Os catálogos exibiam vários estilos. Mas se podia adaptar o que quisesse, de forma que o ferro permitiu um vale-tudo estético”, diz. Ele também pondera, por considerar as particularidades do uso do material, que não se devem estabelecer relações entre as edificações e as escolas artísticas. “É difícil falar em estilo na arquitetura do

pernambucana, em 1840, do engenheiro Louis-Léger Vauthier, convocado por Francisco do Rego Barros, então barão e depois conde da Boa Vista, para modernizar e higienizar a cidade. Vauthier foi responsável pela edificação original do Teatro de Santa Isabel, primeiro prédio com linhas neoclássicas erguido no Recife. Também foi ele o executor da ponte pênsil de ferro, na Caxangá, em 1841 – primeira construção metálica do gênero no continente sul-americano. Mas a utilização de elementos de ferro no Santa Isabel – destruído por um incêndio em 1869 – só se daria na reconstrução do teatro, que ficou pronto em 1877. Segundo Souto Maior, três tipos de estruturas metálicas são observadas no atual prédio do teatro. “Tesouras Polonceau na cobertura, malha de vigas com chapas laminadas, que suportam os camarotes; e as vigas treliçadas sobre o palco. As três engastam-se nas

Sobressaindo-se na vida pública desde estudante, quando participou da Setembrada como aluno dos cursos jurídicos em Olinda, Sérgio Teixeira de Macedo vivenciou momentos marcantes da vida brasileira, tornando-se um dos primeiros diplomatas do Império. Defendeu o Brasil das pretensões imperialistas dos Estados Unidos de tomar posse da Amazônia e incentivou a construção de estradas de ferro. Como presidente da província de Pernambuco, fez um governo pautado na tolerância e no senso de justiça. A vida desse homem excepcional é retratada no livro de Fernando da Cruz Gouvêa, um dos mais premiados biógrafos brasileiros.

Autor: Fernando da Cruz Gouvêa Cepe Editora | 334 páginas

À VENDA NAS PRINCIPAIS LIVRARIAS OU PELO 0800 081 1201

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 3

Historia_arquitetura do ferro2.indd 53

30/08/2010 15:14:44


3

ecLÉticA

A obra da Estação Central do Recife seguiu a “receita híbrida” das estações inglesas

Próxima página 4 eStAÇÃo

Colunas metálicas podem ser vistas no salão central e na plataforma, que também ostenta tesouras Polonceau

con ti nen te

História

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 4 5

Historia_arquitetura do ferro2.indd 54

30/08/2010 15:14:55


paredes do edifício e não há continuidade entre elas”, destaca o arquiteto. Ele também revela um fato inédito para a historiografia do ferro: durante pesquisas que fez sobre o tema, descobriu que a primeira edificação em ferro, no país, data de 1860, com a importação de um farol, instalado em Abrolhos, na Bahia. “Ele foi trazido para o Recife e, depois, foi para o arquipélago”, conta Souto Maior. Em termos de logradouros, o recifense Mercado de São José, de 1875, é apontado como o primeiro do tipo construído em território brasileiro. E, para muitos estudiosos, é o principal.“Ele foi inspirado no Mercado de Grenelle, que funcionava num subúrbio de Paris. É a mais importante obra de ferro por ser a maior, a mais audaciosa como estrutura, e a que tem mais história”, defende Geraldo Gomes, que foi um dos responsáveis pela reconstrução do mercado, após o incêndio em 1988. Patrocinada pelo empresário José Augusto de Araújo, a construção do mercado contou com a colaboração de Vauthier, que, mesmo estando em Paris, à época, participou da empreitada corrigindo e fazendo anotações ao projeto.“Ele (Vauthier) fez 42 observações seguidas para o traçado do plano”, aponta o arquiteto. O mercado de São José é composto por duas naves, e a ornamentação ocorre principalmente nas fachadas, nas quais os elementos que mais se destacam são gárgulas, esculturas de ferro fundido representando felinos, que marcam a divisão dos pórticos. Internamente, a estrutura metálica é composta de tesouras Polonceau simples, com colunas em ferro fundido e cobertas de aço. Geraldo Gomes conta que, durante o incêndio, presenciou, aos prantos, “as colunas de ferro fundido quebrarem, enquanto as cobertas, em aço, se mantinham intactas”. Inaugurado no bairro de Casa Amarela, em 1930, o mercado homônimo tem história e estrutura bem diversas do de São José. “Suas origens são desconhecidas. Registros orais atestam que ele foi montado inicialmente na Caxangá, mas não há nada que comprove”, explica Gomes. O mercado, um dos mais populares do Recife, tem um único pavilhão, de 600 m2, modulado a cada cinco metros, em que se desenvolve uma estrutura composta de perfis de ferro,

recoberta por telhas tipo Marselha. Seu fechamento lateral consiste numa parede de meia altura de alvenaria, complementada até a coberta com grades de ferro compostas de varões, sem maiores atrações decorativas. “Há poucos elementos em ferro fundido e as peças que se apresentam com intenção ornamental, além de estrutural, o fazem combinando perfis de ferro e chapas recortadas caprichosamente, tirando partido plástico dos parafusos”, descreve o arquiteto, no livro Arquitetura do ferro no Brasil.

coMo A GARe De L’eSt

A inauguração da Estação Central, em 1888, foi um importante acontecimento para a provinciana capital pernambucana. De arquitetura eclética imponente, a obra, projetada pelo arquiteto mineiro Herculano Ramos, é descrita por Geraldo Gomes como seguidora da “receita híbrida” das estações ferroviárias inglesas. Entretanto, sua fachada, segundo Souto Maior, reproduz, em menor escala, a Gare de l’Est de Paris. O prédio tem a frente voltada para uma pequena praça e a Casa de Cultura (antiga penitenciária), e apresenta uma coberta em ferro, que servia para proteger da chuva os passageiros que chegavam de carro à estação. As duas torres, encimadas por pássaros em ferro, a fachada com um vitral em meia circunferência e o relógio London são detalhes decorativos que tornam o prédio especial. Colunas metálicas podem ser vistas no salão central e na plataforma, que também ostenta tesouras Polonceau. Outro belíssimo exemplar local da arquitetura do ferro é a Faculdade de Direito do Recife. Inaugurada em 1912, possui, segundo Paulo Souto Maior, três tipos distintos de colunas metálicas. “Dois são de seção circular de ferro fundido e ficam ao redor do pátio e no átrio. O terceiro modelo é composto por chapas de aço laminado e focaliza-se nas esquinas do pátio”, explica o arquiteto, que aponta a construção como a sua predileta. “Além de possuir tecnologia metálica, tentou-se adaptá-la à nossa realidade climática e cultural. É um bom exemplo da introdução dessa tecnologia no país”, observa.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 5

Historia_arquitetura do ferro2.indd 55

30/08/2010 15:15:07


con ti nen te

Hist贸ria

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 6 7

Historia_arquitetura do ferro2.indd 56

30/08/2010 15:15:21


ESTUDO Além de belas, feitas com alta tecnologia

Livro Nos caminhos do ferro observa o impacto do uso do material nas construções e manufaturas ao longo de nove décadas texto Danielle Romani Foto Tiago Lubambo

o interesse por materiais,

tecnologias e seus usos sempre se fez presente para o arquiteto Paulo Souto Maior. Por esse motivo, durante a realização do seu doutorado em restauração arquitetônica, na Universidade Politécnica da Catalunha, em Barcelona, decidiu pesquisar as construções e manufaturas metálicas do século 19 no Recife. Foi com base no material de pesquisa para a tese de doutorado que Souto Maior reuniu as informações necessárias à elaboração do livro Nos caminhos do ferro – Construções e manufaturas no Recife (1830-1920), lançado no dia 10 deste mês, pela Cepe Editora. “A ideia do livro é mostrar as questões pertinentes ao ferro e suas manufaturas ao longo do século 19: da assimilação do material pela sociedade pernambucana à chegada de engenheiros e especialistas estrangeiros até a elaboração das edificações. Abordo os aspectos sociais e econômicos que envolveram as construções e manufaturas. Não é um livro de estética, não discute influências, mas o impacto das novas tecnologias. É um livro de história social, de tecnologia da arquitetura e de história da arquitetura”, explica Souto Maior. Independentemente da categoria em que se enquadre, o livro configura-se num importante documento, bemescrito e ilustrado, para quem deseja estudar a sociedade pernambucana do período, recortado pelo viés arquitetônico e com enfoque no Recife. A publicação registra, também, os avanços e soluções tecnológicas empregados pelos engenheiros europeus na construção desses edifícios, tornando-se

uma obra de interesse específico para estudantes de arquitetura e engenharia. Na primeira parte do estudo, o autor mostra a reação local aos estrangeiros e às suas máquinas, com informações colhidas em jornais da época e estudos sobre o período. Desse modo, fica

A publicação registra avanços e soluções tecnológicas dos engenheiros europeus para construções com uso do metal patente a resistência dos pernambucanos às novas tecnologias na primeira metade do século 19; em especial, à instalação das estradas de ferro, que sofreu enérgica rejeição, chegando mesmo a população a ter arrancado trilhos em algumas localidades. “Houve situações de deboche, menosprezo e até de ira em relação às inovações que começavam a chegar”, explica Paulo. Mas, enquanto na primeira metade do século 19 as novas tecnologias eram rechaçadas, no início do século 20, o ferro e o aço foram associados ao bem-estar, ao bem-viver, ao desenvolvimento, e amplamente utilizados em propagandas de todos os tipos, levando a população a integrálos pacificamente ao seu cotidiano. Além de trazer informações sobre a recepção pública do material, Paulo Souto Maior também reúne as principais obras realizadas durante o século 19, com destaque inicial

para as pontes, erguidas para resistir às enchentes dos rios Capibaribe e Beberibe. Aliás, ele demonstra que, pelo menos no caso recifense, a tecnologia do ferro seria uma solução à ausência de matéria-prima para a construção civil. As repetidas secas do Estado faziam com que a importação da madeira encarecesse o andamento das obras e, em muitos casos, tornassem-nas inviáveis. Por esse motivo, afirma que – diferentemente de cidades como Belém, onde era fácil e barato obter troncos grandes e maciços – a arquitetura de ferro no Recife se consolidou, entre outros motivos, por substituir, com eficácia, a madeira que rareava. Nos caminhos do ferro – Construções e manufaturas no Recife (1830-1920) também aborda o trabalho realizado pelo engenheiro Louis-Léger Vauthier, que viveu no Recife entre 1840 e 1846, período em que realizou obras como o Teatro de Santa Isabel e a ponte pênsil da Caxangá – e enfrentou problemas com colegas e com os operários das obras que executou. Souto Maior observa que o francês, vaidoso e orgulhoso de sua origem, tinha um temperamento difícil, que complicava o relacionamento com os recifenses. Na construção da ponte pêncil, por exemplo, precisou chamar um destacamento policial, pois os operários se recusavam a acatar suas ordens. Também não se relacionava bem com os engenheiros locais. A segunda metade do livro tem abordagem mais técnica que a primeira. Nela, Souto Maior se concentra nas construções empreendidas no Recife, a partir da segunda metade do século 19, evidenciando que foram construídas como réplicas de exemplares europeus, o que justifica o fato de algumas delas não serem ideais ao clima tropical, já que foram projetadas para o continental (somente na virada para o século 20, a situação começaria a mudar). Nesse contexto, o livro aborda obras como o Teatro de Santa Isabel (na sua segunda construção), o Mercado de São José, a Estação Central, a Fábrica da Tacaruna, o Matadouro Público de Peixinhos, a Faculdade de Direito, o Mercado de Casa Amarela e até mesmo uma casa, na Várzea, importada da Bélgica pelos Brennand, entre outras.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 7

Historia_arquitetura do ferro2.indd 57

30/08/2010 15:15:21


divulgação

con ti nen te#44

Em primeira mão

BIENAL DE SÃO PAULO Sob inspiração do Método Paulo Freire Jonathas de Andrade, motivado por referências à memória, utiliza cartazes educativos como matriz de trabalho produzido para mostra internacional texto Olívia Mindêlo

na década de 1960, Paulo Freire

revolucionou a educação brasileira ao criar um método de ensino para adultos, responsável por uma rápida diminuição do analfabetismo no país. Em 1971, a Editora Abril Cultural publicou uma série de cartazes baseados na metodologia do educador, explorando a associação entre palavras e imagens. Cerca de 10 anos depois, a professora alagoana Maria Aucélia de Andrade Souza passou a usar a coleção em sala de aula. Agora, fim da primeira década

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 9 8

Em_Primeira_Mao.indd 58

30/08/2010 15:17:47


dos 2000, é o filho dela quem traz os cartazes ao contexto atual. Nem pedagogo nem historiador. Artista. Quem conhece o trabalho de Jonathas de Andrade sabe o quanto ele recorre à memória, dando-lhe novos contornos no presente – em geral, por meio da fotografia. Foi assim com Amor e felicidade no casamento (2007), baseado num manual de bons costumes para a vida a dois; com Ressaca tropical (2009), fruto de uma imersão no “obituário” arquitetônico do Recife, e nas palavras de um diário achado no lixo. Em Educação para adultos, ele volta a botar a mão na “poeira”, fazendo do legado de Freire, encontrado no acervo materno, o ponto de partida para uma obra inédita que poderá ser vista a partir deste mês na 29ª Bienal de São Paulo. A mostra fica em cartaz até dezembro, no Parque do Ibirapuera.

Radicado no Recife desde 2002, o alagoano, de 28 anos, é o mais jovem dos quatro artistas de Pernambuco convidados para expor. Além dele, participam Gil Vicente, Marcelo Silveira e Paulo Bruscky, compondo um total de quase 160 artistas de vários países. O convite foi feito pelo curador pernambucano Moacir dos Anjos, que assina o projeto da bienal ao lado de Agnaldo Farias. Há três anos, Moacir acompanha a produção do artista, que já participou da Bienal do Mercosul (2009). “O trabalho de Jonathas tem algo a ver com arqueologia. Ele escava o tempo, as utopias perdidas”, afirma o curador. O interesse pelo trabalho do alagoano perpassa ainda o tema da própria bienal, que este ano explora o potencial político da arte – para além da ideia de panfletário ou partidário. Jonathas não sabe ainda mensurar esse aspecto em sua obra, mas vê a realização de Educação para adultos como um projeto urgente em sua trajetória. A questão não remete diretamente, tal qual Freire, a um incômodo com o analfabetismo do país ou a uma urgência em erradicá-lo. Refere-se à sua necessidade de costurar tempos diferentes (anos 1960, 1970 e 2000), atribuindo-lhes outros sentidos. “É como se eu me alimentasse de um fôlego utópico dos anos 1960 e o sacudisse em 2010”, define Jonathas. Partindo de si mesmo como “célula geracional” de um tempo não vivido, mas no qual se sente inserido, ele se lança em direção a uma estrutura social anterior e tateia um despertar, no século 21, de questões adormecidas com os anos.

ViVÊnciA Do MÉtoDo

Mais do que em qualquer obra anterior, o processo de construção de significados, em Educação para adultos, alimenta-se da interação com o outro. A composição de cartazes à qual o público terá acesso na Bienal de São Paulo é resultado de uma série de encontros entre o artista e pessoas que não sabiam ler nem escrever, ou que

revelaram serem portadoras de um analfabetismo funcional. Um dos grupos com que trabalhou a maior parte do tempo tinha seis lavadeiras, com idades entre 35 e 50 anos. Durante pouco mais de um mês, elas aceitaram ceder a pausa pós-almoço para participar da experiência proposta por Jonathas, que se assumiu como artista. O que de início era uma reunião semanal tornou-se quase diária, com encontros de 1h30 cada. Entre julho e agosto, ele e uma assistente, a amiga e bióloga Renata Azambuja, desenvolveram as atividades por intermédio dos cartazes; os da Abril e os novos, produzidos por ele, a partir dos encontros. Cerca de 20 composições com imagens e palavras foram exploradas ao longo dessa troca, além das criadas por ele nesse processo. A tentativa não foi aplicar o método, mas vivenciá-lo, no intuito de provocar reações a partir dos temas. Os novos cartazes vão ser expostos ao lado dos publicados em 1971. “O trabalho vai ser o resíduo de um processo, no qual algumas entradas são possíveis. Cabe ao espectador ser capturado por um caminho e desenvolver seu percurso pelo trabalho”, ressalta Jonathas. Na prática, é um projeto de arte, mas poderia ser de pesquisa. Intuitivamente, o artista lançou mão de instrumentos metodológicos de um cientista social, como se fosse um observador participante; um mediador de um grupo focal. Aliás, diante do trabalho Recenseamento moral da cidade do Recife (2008), no qual entrevistou diferentes moradores sobre questões como cuspir no chão e se portar no elevador, também temos a mesma sensação. A diferença é que há nele uma liberdade maior no que concerne ao destino do material coletado, porque não se vê obrigado a se vincular ao rigor de uma método científico com fins acadêmicos. “Trabalho com uma série de combinações improváveis que não conseguiria como pesquisador. Posso me relacionar e manejar tradições com uma fluidez que só a arte permite, deparando-me com acidentes de percurso que me recolocam diante da história, do ontem e do hoje.”

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 5 9

Em_Primeira_Mao.indd 59

30/08/2010 15:17:54


REPRODUÇÃO

Visuais 1

LULA CARDOSO AyReS Uma obra à espera de novos estudos

Artista pernambucano, cujos 100 anos de nascimento são comemorados neste mês, ainda não tem toda sua produção analisada texto Diana Moura Barbosa

“o único artista culto que traduz nas telas fatos e lendas populares é Lula. Nos tempos em que os caminhos da arte não correm mais pelos trilhos da tradição figurativa de sempre, eis um pintor que, impertérrito, não só pretende corrê-los, mas se empenha em consertá-los. Por receber, ele, o máximo de aplausos, é de se frisar que as tendências futurísticas não eliminam as velhas, esperando que a história diga como, por que e quando foi”. A frase foi escrita por Pietro Maria Bardi, uma espécie de papa das

c co on nt tiin neen nt tee SSET ETEEM MBBR RO O 220 0110 0 || 660 1

Visuais.indd 60

30/08/2010 15:35:15


LEO CALDAS/ REPRODUÇÃO

1 MULtiARtiStA Lula Cardoso Ayres teve uma produção vasta, que se estende de 1920 a 1980, em diferentes suportes 2 AnoS 1950 Mulheres de Xangô faz parte da fase geométrica do artista, quando participou de todas as bienais de arte de São Paulo da década

2

artes brasileiras de meados dos anos 1940 aos 1970, sobre as pesquisas que realizou para o livro Profile of the new brazilian art, publicado em São Paulo e Nova York. A citação data de 1966. Passados 44 anos, pode-se dizer que a obra de Lula ainda aguarda as respostas das questões incitadas pelo marchand italiano, fundador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição que dirigiu até 1996. Lula Cardoso Ayres, que completaria 100 anos no dia 26 de setembro, morreu em 1987, sem que sua obra fosse devidamente analisada e comentada. Poucos estudos dão conta do trabalho do artista, que foi um dos pintores mais fecundos de Pernambuco, com uma produção que se estende dos anos 1920 até os anos 1980. Nesses mais de 60 anos dedicados à arte, Lula realizou obras em quase todos os suportes que lhe estavam disponíveis. Criou óleos sobre tela, pintou com guache, aquarelas, fez caricaturas, deixou inúmeros estudos, ilustrou revistas, criou painéis em espaços públicos e privados da cidade, forjou identidades visuais, fotografou e deixou um legado muito maior do que, até agora, já foi feito para celebrar o centenário do seu nascimento. Por causa desse relativo desinteresse institucional e acadêmico pela

o relativo desinteresse por sua obra faz com que as especificidades de seu pensamento artístico ainda não sejam explicadas obra de Lula, as especificidades de seu pensamento artístico, como as apontadas por Bardi, ainda não foram devidamente explicadas. Por que, no auge dos anos 1960, quando tantos artistas aderiam ao Abstracionismo, Lula voltava ao Figurativismo – depois de já ter experimentado influências abstratas, cubistas e bebido na fonte de outras vanguardas? É uma questão que ainda carece de respostas. Nos anos 1950, em sua fase geométrica, participa de todas as bienais de arte de São Paulo, a contar da primeira, em 1951. Dez anos depois, ele intriga a intelligentsia paulistana com uma série de telas figurativas, classificadas como surrealistas, expostas no Masp, em 1960, e na Oca do Parque do Ibirapuera (SP), em 1966. De novo, apesar de todo o reconhecimento, o artista não ficou estagnado nessa fase de sua pintura, estudando novas possibilidades plásticas até o fim da vida.

Para o pintor João Câmara, que também domina os caminhos da crítica de arte, a escassez de estudos sobre Lula deriva da pobreza e falta de curiosidade e argúcia acadêmica, da pobreza do mercado local, do fato de que há relativamente poucas obras de Lula fora de Pernambuco. Além disso, ele ainda aponta o vácuo que se formou na crítica brasileira entre a geração jornalística (uma vez que os jornais praticamente deixaram de lado esse papel) e um novo estamento “curatorial”. O maior guardião da obra de Lula Cardoso Ayres é o seu filho, que, com tanta devoção, só poderia ter o mesmo nome do pai. Lula Filho detém a maioria das obras que ficaram no acervo da família, cuida pessoalmente da conservação dos trabalhos e tenta divulgá-los sempre que pode. Para ele, a falta de empenho dos pesquisadores não se restringe ao seu pai, mas abarca toda a arte não contemporânea, devido à maneira como estão estruturados os cursos de arte atualmente. “Meu pai dedicou-se – a vida inteira – às pesquisas com a química da pintura, materiais, pigmentos e a estudos de geometria. O que ele buscava, em seu trabalho, era o equilíbrio perfeito de formas, materiais e cores, explorando aspectos pouco conhecidos da pintura”, aponta.

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 1

Visuais.indd 61

30/08/2010 15:35:19


IMAGENS: LéO CALDAS/ REPRODUÇÃO

Visuais

3

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 2 3

Visuais.indd 62

30/08/2010 15:35:32


Esse, entretanto, é apenas um elemento da obra de Lula. Certos aspectos de seu trabalho passam, também, por sua biografia. Filho de João Cardoso Ayres, das famílias canavieiras pernambucanas, o jovem Lula teve uma vida em tudo farta, inclusive de apoio e compreensão paternos. Seu pai fez tudo o que pôde para que o filho se tornasse um grande artista. Aos 15 anos, foi enviado à Europa para que estudasse pintura. Era 1925, e Paris fervia com ideias e obras vanguardistas. Lula travou contato com todas elas, sem precisar de intermediários. De volta ao Brasil, um ano depois, foi morar no Rio de Janeiro, cidade que, com a sua chegada, ganhou um dos ateliês mais completos que se possa imaginar. Na capital da República, estudou na Escola Nacional de Belas Artes, e ficou amigo de Cândido Portinari, seu colega no curso de pintura. Na boêmia das noites cariocas, conviveu com Noel Rosa e Procópio Ferreira, desfrutando da convivência de artistas e pensadores das mais diversas áreas. Ícones do seu tempo. Nesse contexto, foi convidado a criar cenários para peças de Procópio, considerado um autor de vanguarda. Usando seu talento e as ideias que tinha captado no Salão de Artes Decorativas, a que assistira em Paris, Lula foi um precursor, no Brasil, dos chamados “cenários estilizados”, nos quais os paineis cenográficos não tentam recriar, fielmente, objetos e cenas cotidianas. “Papai desenhou para Procópio, do final dos anos 1920 ao começo dos 1930. Esse estilo só chegaria ao cinema brasileiro, por exemplo, em 1937”, situa Lula Filho, cinéfilo, dono de uma das maiores cinematecas particulares de filmes antigos do mundo. Em meados dos anos 1930, entretanto, João Cardoso Ayres enfrenta problemas para administrar a usina Cucaú, de sua proriedade. A quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, fazia estragos na economia pernambucana, ainda muito suscetível aos fluxos internacionais – assim como a arte. Lula volta a Pernambuco para ajudar o pai e instala-se não no Recife, mas no território da Cucaú, em Rio Formoso. Seu pai, entusiasta que era do

4

5

engenho do jovem Lula, constrói outro ateliê. Esse estúdio permanece até hoje dentro da usina, adquirida, nos anos 1940, pela família Monteiro, a quem pertence desde então.

cAnAViAL e FoLGUeDoS

Os anos passados em meio ao canavial tiveram um impacto tão grande na obra de Lula, quanto Paris e o Rio de Janeiro. Foi na Zona da Mata que ele descobriu o bumba meu boi, o cavalo-marinho e o maracatu. Não demorou a reconhecer-lhes a beleza. Ficou fascinado pela indumentária do brinquedo, assim como Picasso encantou-se pelas máscaras africanas no início de século 20. Outra novidade que chega à obra de Lula

por meio de algo tão arcaico quanto a plantação da cana-de-açúcar no litoral brasileiro é a fotografia. Em seus longos passeios pelos caminhos do massapê, o artista começou a registrar cenas cotidianas, pessoas, paisagens, utensílios, o dia a dia simples da cultura canavieira. Inicialmente, um dos objetivos era capturar assuntos para a pintura. Depois, a fotografia ganhou autonomia estética. Esses dois elementos – os folguedos e as fotos – repercutiram na obra de Lula até o fim de sua vida. Aliás, essa face do seu trabalho foi uma das que mereceram atenção acadêmica. A professora Isabel Guillen, do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco, avalia que a presença

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 3

Visuais.indd 63

30/08/2010 15:35:41


IMAGENS: ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO

Visuais

6

7

dos maracatus na obra de Lula Cardoso Ayres serviu para diminuir a rejeição da elite pernambucana em relação a essa arte e manifestação popular. “Nos anos 1930 a 1945, em meio à intensa repressão aos maracatus e aos cultos afros, intensificada na interventoria de Agamenon Magalhães, houve um movimento de mediação cultural que alçou os maracatus-nação do lugar de ‘coisas de negro’ (…) para o lugar de cultura autenticamente pernambucana. (…) O maracatu é representado pontualmente na obra de alguns modernistas, notadamente Lula Cardoso Ayres, não mais com aquele caráter saudosista e melancólico (…), não mais meramente como uma manifestação folclórica, mas como portadora de uma identidade regional”,

defende a autora, no artigo Rainhas coroadas: História e ritual dos maracatus-nação do Recife, apresentado na XXIV Reunião Brasileira de Antropologia. Não por acaso, outro pernambucano, à época, muito interessado na cultura que vinha do maracatu, Lourenço Fonseca Barbosa, Capiba, inspirou-se em telas de Lula Cardoso Ayres para compor a suíte que lhe foi pedida para a comemoração do centenário do Teatro de Santa Isabel, em 1950.

cASAS ASSoMBRADAS

Além de pintor, fotógrafo, cenógrafo e inspirador de Capiba, Lula Cardoso Ayres também tem uma longa história ligada à programação visual no Estado. Depois que a família se vê obrigada a vender a usina, o artista começa a trabalhar para ganhar dinheiro. Passa a dar aulas no curso de

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 4 5

Visuais.indd 64

30/08/2010 15:35:47


Páginas anteriores 3-4 teMÁticA

O frevo, o maracatu e os folguedos populares são uma constante no trabalho do artista

5 VULTO DE MULHER A obra faz parte de uma das fases mais conhecidas do artista, dedicada às imagens fantasmagóricas Nestas páginas 6-7 cAnAViAiS

Nas cenas cotidianas, Lula descobriu a fotografia

8 ReSSiGniFicAÇÃo Apesar de suas primeiras imagens serem voltadas para a captação de temas para a pintura, com o tempo ganharam autonomia estética

8

Belas Artes, hoje ligado ao Centro de Artes e Comunicação da UFPE, e atua como criador de cartazes e projetos de identidade visual para a jovem e otimista indústria pernambucana daquele período. Entre os seus trabalhos mais lembrados até hoje está a marca da margarina Bem-te-vi e embalagens para a fábrica de biscoitos Pilar. Também assinou um cartaz para a propaganda eleitoral do seu amigo fraterno Gilberto Freyre, candidato a deputado pela UDN. Ao voltar de Rio Formoso para o Recife, Lula encontra a paisagen urbana alterada pela demolição sistemática dos antigos sobrados e palacetes das famílias tradicionais – ou nem tanto – de Pernambuco. É nesse ponto que começa a gestar uma de suas fases mais conhecidas, a dos casarões tristes e assombrados pelos vultos da grandeza pernambucana perdida. A esses ingredientes, ele acrescenta uma pesquisa plástica minuciosa, realizada com pigmentos e resinas, na tentativa de descobrir novas formas de criar transparências na pintura. Poética, delicada e melancólica, essa fase

entre os mais famosos painéis que pintou estão o do Aeroporto internacional dos Guararapes e o do cinema São Luís de seu trabalho, classificada por alguns como “surrealista”, é uma das mais comentadas de sua rica e diversificada obra. Têm grande repercussão, também, os painéis que pintou. Entre os mais conhecidos estão o do Aeroporto Internacional dos Guararapes e o do Cinema São Luiz. O primeiro deles foi realizado na clínica do otorrinolaringologista Arthur Moura, no prédio onde hoje funciona a Fachesf, na Boa Vista, centro do Recife.

ARte FotoGRÁFicA

Menos conhecidas são suas fotografias. Apesar do imenso número de obras nesse suporte, Lula Cardoso Ayres não é tão lembrado pela sua contribuição à arte fotográfica. A antropóloga Georgia

Quintas tem se dedicado a preencher essa lacuna, estudando o acervo de imagens captadas pelo artista. Segundo a pesquisadora, o trabalho de Lula nesse campo, geralmente descrito como mais documental e voltado à captação de temas para a pintura, pode ganhar novas interpretações. “Apesar da origem funcional atribuída à fotografia por Lula Cardoso Ayres, no presente, essa imagem é passível de vigorar por outros mecanismos de análise e de ressignificação. Apesar de histórica, a produção desse artista pode ser redimensionada em seus sentidos simbólicos e de memória”, explica Georgia, que já analisou todo o acervo disponível na Fundação Joaquim Nabuco, e agora começa a análise do material guardado por Lula Filho. Segundo Georgia, é possível notar, ainda, que Lula dedicava à fotografia o mesmo esmero que demonstrava na pintura, ressaltando que a acuidade plástica transparece nos trabalhos realizados nos vários suportes pelos quais transitou. “Vale a pena desvelar suas fotografias como expansão de sua poética por mecanismos e aparato distintos das pinceladas e cores que o notabilizaram”, destaca. Para dar mais visibilidade ao fotógrafo Lula Cardoso Ayres, Georgia Quintas organiza, em parceria com o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), uma exposição só dessa parte do seu acervo. Para a diretora do museu, Beth da Mata, esta é uma excelente oportunidade de dar a conhecer uma parcela tão pouco comentada da obra de um dos artistas pernambucanos mais marcantes do século 20.

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 5

Visuais.indd 65

30/08/2010 15:35:50


o NaScimENto dE SoLaNGE

matéria corrida José cláudio

artista plástico

não sei bem onde eu estava morando em 28 de agosto de 1953, um dia depois do meu aniversário. Só sei que Sossó (apelido de Solange: ela bem menininha dizendo com toda graça: “Solange Bernabó, baianinha só só”), enquanto eu fizera na véspera 21 anos, completara algumas horas. Acho que em Ipojuca não havia esse hábito de comemorar aniversário: tem muita coisa de que não lembro do tempo de Ipojuca, onde vim ao mundo, bem no centro comercial/residencial da cidade, pois os lojistas moravam no mesmo endereço geralmente, e meu pai não fugia à regra. Essa minha primeira vida, de Ipojuca, que continua intacta, pois cada pedaço, vez por outra, que salta com todo o viço de dentro de mim, como uma outra entidade sempre atenta, nem sempre me dá resposta com a mesma presteza sobre assuntos tais como esse de aniversário e outras efemérides.

Esse pedaço ipojucano compacto durou até os meus onze anos de idade, quando vim interno para o Colégio Marista, na Conde da Boa Vista, meu segundo lar; na época, só de meninos: inimaginável meninas andarem por ali. Nem em sonhos (uma vez vi, muitos anos depois, uma menina na janela, no primeiro andar, ao lado do dormitório dos maiores, onde dormi nos últimos anos de internato: pensei que tinha tido uma alucinação; aí lembrei que poderia ter sido minha filha, que estudara lá). Chega de mim. Era para dizer que, interno no Marista, aí foi que essa história de aniversário acabou de vez, embora, certa feita, meu pai me tenha trazido um relógio de pulso, uma quinta-feira, dia de comércio fechado em Ipojuca, aproveitado pelos comerciantes para virem ao Recife. O fato é que lembro não ter lembrado de dia de aniversário; nem meu nem, muito menos, de Solange, que nem

sequer existia, naquela noite em que Carybé me chamou para dormir lá no Rio Vermelho. Dna. Nancy aliás não estava. Dormimos: eu, Carybé, e Ramiro, o primogênito. Devo ter pensado que Dna. Nancy teria ido para a Argentina, para Salta, sua terra, como de vez em quando, ver a família: sempre imagino Salta umas colinas verdes, porque Dna. Nancy tem os olhos verdes e Colina era o seu nome de solteira: Nancy Colina. Depois botou esse Bernabó do marido, que não sei o que significa. Solange é Solange Bernabó, agora também Colina, porque o marido é Colina e de Salta, Daniel Colina. De formas que o nome de Solange deveria ser Solange Colina Bernabó Colina, ou o de Iara, sua filha, se viesse desde o nome da avó Dna. Nancy. Quando ele me chamou para dormir lá, pensei em algum trabalho muito cedo, trabalho mesmo, de pintura, seus murais, ou “trabalho” de

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 6 7

Mat_Corrida.indd 66

30/08/2010 15:37:12


1

1

candomblé, como Água de Oxalá, de madrugada, lá pelas grotas do Retiro, no Opô Afonjá, de Senhora, ou ali perto no Engenho Velho, de Tia Massi, que ambas conheci. Ou outro relativamente perto, Seu Cosme, que foi quem me disse que eu era de Oxóssi, depois de eu ter passado uma semana morando lá, pintando a casa toda de branco, até as telhas por baixo, em Amaralina. Mal clareava, Carybé me acordou, ainda no lusco-fusco. E já tinha acordado Ramiro, àquela altura com seis anos (nasceu em Buenos Aires, 06/maio/1947), já ali prontinho para sair, calcinha comprida jeans de boca arregaçada, sapato. “Vambora”, disse Carybé. Descemos lá do seu segundo andar do sobrado de Jesus na esquina dando para o oitão direito da igrejinha de Sant’Ana, solta no meio da praça, meio esconsa, olhando meio de banda para o mar, fora do alinhamento das ruas, uma das praças mais graciosas de todas que

essa minha primeira vida de ipojuca nem sempre me dá resposta com a mesma presteza sobre aniversários e outras efemérides vi, e olha que sou viajado. Atravessamos o Largo de Sant’Ana pelos fundos da igreja, e nos dirigimos à balaustrada, bem ali onde levam o presente de Iemanjá no dia 2 de fevereiro: um festão. Mas agora a praça estava deserta. Pulamos para uns arrecifes até uma ponta que avançava mar adentro. Eu, Carybé, e Ramiro. Carybé sem dizer nada. Não adiantava perguntar que ele não dizia. Ele ia responder: “Vamo, porra!” Até quando morreu disse: “Puta qui pariu. Me fudi!” Suas últimas palavras. Um homem branco, educado,

os bernabó

Dna. Nancy, Ramiro, Carybé e Solange no Rio Vermelho, 1955.

argentino, fluente em francês, italiano, espanhol e português. Podia ter dito como Goethe: “Mais luz! Mais luz!” Não era mais bonito? Embora não se imagine Goethe caindo duro na porta de um candomblé, como ele na porta do Opô Afonjá (Hector Julio Páride Bernabó, Lanus, Argentina, 1911 - Salvador, 1997). Andamos pois até a ponta da pedra. O mar batendo como a perguntar: “A que veio?” Carybé botou a mão no bolso e disse: “Abre a mão”. E encheu minha mão de moedas. Depois a de Ramiro. Disse “Solange nasceu! Joga as moedas no mar para agradecer a Iemanjá”. Ele era de Iemanjá, tinha uma sereia tatuada no braço, esquerdo, acho, perto do ombro. Mais tarde chegou Dna. Nancy com Solange no braço, quase sem cabelo, só umas penuginhas louras mas já com uns brinquinhos de ouro, uma bolinha em cada orelha. Por isso penso sempre que ela é de Oxum. Na batata! Conferi no telefone: ela é de Oxum.

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 6 7

Mat_Corrida.indd 67

30/08/2010 15:37:16


reprodução

Leitura

1

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 6 9 8

Leitura.indd 68

30/08/2010 15:43:50


carl GUSTaV JUNG Matéria-prima para a obra de uma vida inteira

Ganha tradução para o português O livro vermelho, edição de luxo que revela o processo de aprendizado do psiquiatra suíço no confronto com seu inconsciente texto Silvia Góes

Da janela do trem, a visão de corpos e destroços boiando num imenso mar de sangue invadia a paisagem enquanto uma voz sussurrava: “Observa bem, é totalmente real e assim será. Não podes desesperar por isso”. Menos de um ano depois, teria início a I Guerra Mundial. O viajante, naquele outubro de 1913, era Carl Gustav Jung (1875-1961), na época com 38 anos. Foi a partir desse acontecimento, conta o editor Sonu Shamdasani, que o pai da psicologia analítica começou a conceber o Liber novus ou O livro vermelho, mantido por anos inédito e agora traduzido para o português e lançado no Brasil numa edição primorosa da editora Vozes. No final do século 19 e início do século 20, nas artes, nas ciências, nas religiões, os dogmas e certezas seculares cambaleavam. Jung já tinha conquistado fama, reconhecimento e riqueza, mas queria novas respostas para antigas perguntas. Em busca de trilhas que o levassem a um reencontro com o divino, acessou o que chamou de “espírito da profundeza”, seu guia no mergulho ao universo interior. “O espírito da profundeza submeteu toda a vaidade e todo orgulho à força do juízo. Ele tirou de mim a fé na ciência, ele me roubou a alegria da explicação e do ordenamento, e fez com que se extinguisse em mim a dedicação aos ideais dessa época. Forçou-me a descer às coisas mais simples e que estão em último lugar.” Também, nesse processo, descobre o seu Deus criança: “Como eu era uma criança e crescia como árvore verdejante

Produzido entre 1913 e 1930, o livro passou 70 anos num cofre até ser liberado para publicação, sem alterações e deixava calmamente soprar através de meus ramos o vento, gritos distantes e a agitação dos opostos, como eu era um menino e caçoava de heróis mortos, como eu era um adolescente que afasta de si, tanto à direita quanto à esquerda, as amarras, não ligava para o poderoso, o cego e imortal que se dirigia ansiosamente para o sol poente, que queria partilhar do oceano até seus fundamentos e descer até a fonte da vida”. Daí em diante, o leitor se depara com narrativas de aventuras épicas, encontros e desencontros com deuses e demônios que, para o psicanalista, coabitam a essência humana. O Livro vermelho, produzido entre 1913 e 1930, traz imaginações do psicanalista e tentativas de compreensão de seus significados; fantasias e devaneios registrados inicialmente nos Livros negros, em escrita caligráfica e acrescidos de reflexões líricas, que não apelam ao racionalismo, mas, antes, se apresentam como um canto poético. O volume é um gigante de mais de quatro quilos, contendo o processo de aprendizado do psiquiatra suíço, no seu confronto com o inconsciente. Nele, estão suas

inquietações “subterrâneas”, expressas em imagens e metáforas do mundo dos sonhos, que depois o ajudariam a formular os conceitos que constituem parte importante do pensamento ocidental moderno. “Era a matéria-prima para a obra de uma vida inteira”, como Jung afirmou em 1957, quando também declarou que, por serem registros autobiográficos, ele não os queria publicados em suas Obras completas, o que deu margem à interpretação dos herdeiros de que o Liber novus deveria permanecer quase intacto, o que ocorreu até o final de 2009, quando o original foi exposto em Nova York e uma edição fac-símile bilíngue, com tradução para o inglês, foi apresentada ao mundo, pela editora W.W.Norton & Company. Depois da morte de Jung, O livro vermelho ficou em posse da família, que, inicialmente, o manteve no mesmo gabinete de trabalho em que foi escrito, na casa herdada por seu filho. Em 1983, o herdeiro depositou o volume no cofre de um banco suíço. Apesar de sua existência ter sido bastante difundida desde 1961, poucos tiveram acesso ao conteúdo, reforçando o mistério a seu respeito. Foram necessários 70 anos para que os fiéis guardiões acreditassem que a vontade de Jung era permitir a publicação, porém, sem alterações e num volume único. A liberação foi concedida em maio de 2000.

AFetoS MÍticoS

Ao mergulhar em si mesmo, Jung produziu uma surpreendente obra de

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 6 9

Leitura.indd 69

30/08/2010 15:44:07


divulgação

1 DeSenho Todas as ilustrações da volumosa obra foram feitas por Jung 2 bollingen Jung, aos 80 anos, em sua casa, próxima ao lago de Zurique

Leitura 2

arte, bela e profunda, realizada em iluminuras e manuscritos, todos de autoria do psicanalista. O livro vermelho é permeado por mandalas e pinturas figurativas simbólicas que trazem elementos de diversas sociedades, da arte nativa do Novo Mundo ao Extremo Oriente, poemas e diálogos espirituais. O Liber novus está repleto de centauros, ninfas, sátiros, deuses, deusas e labirintos, símbolos míticos presentes na história na literatura e nas artes. Muito além de outras obras autobiográficas, mesmo das importantes reflexões registradas no seu Memórias, sonhos e reflexões, O livro vermelho contém um esforço de autoconhecimento completamente livre de sistematizações racionais. São descobertas, reveladas sem pudor por um homem excepcional, que nos levam a um fantástico universo interior na discussão de temas como a comunicação entre o pensar e o sentir, a união dos opostos, a masculinidade e a feminilidade inerentes a todo ser humano, a loucura e a loucura divina e muitos outros. Em sua passagem pelo deserto, ele descreve a necessidade e a dor de se sentir só na estrada da busca interior. “Não pensava que meu si-mesmo fosse um deserto, um deserto seco, poeirento e sem bebida. A viagem conduz através da areia quente, vadeando lentamente, sem objetivo visível de esperança. Como é horrível este deserto! Parece-me que o caminho leva bem longe das pessoas. Ando meu caminho passo a passo e não sei quanto tempo vai durar minha viagem.”

O livro vermelho contém um esforço de autoconhecimento completamente livre de sistematizações racionais

jovial de fala mansa, com seu cachimbo inseparável, sua familiaridade com a alquimia e a identificação com as pedras. Um homem de desafetos (incluindo Freud, um de seus mestres), autor de um texto desfavorável a James Joyce (uma resenha desanimadora sobre Ulisses, que colaboraria para a suspensão, por Edith McCormick, do subsídio ao escritor irlandês), atraente ao sexo oposto (ao ponto de mulheres O Liber novus foi deixado inacabado. terem formado o grupo de seguidoras Nele, referências aos clássicos que conhecido como “Valquírias”), Jung marcaram a vida do autor, como o até hoje é apontado pelos psicanalistas Fausto de Goethe, se misturam aos mais ortodoxos como louco. Mas, como seus pensamentos, incluindo citações disse o pintor e poeta William Blake: “Se diretas das obras e autores. “Em 1914, o homem persistisse em sua loucura, Jung estudou detalhadamente Assim tornar-se-ia sábio”. falava Zaratustra, de Nietzsche”, diz Sonu O livro vermelho não está vinculado a Shamdasani. É possível identificar nenhuma época, é presente, passado e facilmente, no Filêmon de Jung, muitas características do Zaratustra de Nietzsche futuro em qualquer tempo em que se deseje contextualizá-lo: “Na profundeza e do Virgílio de Dante, no papel do guardamos futuro e passado. O futuro acompanhante do viajante que se lança é velho e o passado é jovem”. Chega ao pelo desconhecido. público em pleno século 21, como um A partir de 1920, Jung vai cada vez conjunto de indagações às questões mais se afastando da transcrição do Liber novus, dedicando-se à construção de sua contemporâneas e como um presente aos amantes do livro e da arte. Por moradia primitiva, a Torre de Bollingen, sua dimensão e peso, não é fácil de na qual exercitaria o desejo antigo de registrar em pedras os seus pensamentos. ser transportado de um lado a outro e está longe da possibilidade de ser A Torre de Bollingen é considerada a continuação tridimensional do Liber novus. apreendido numa leitura rápida. É um aliado ao desejo de se viver um O lugar, que ficou conhecido como o tempo mais lento, mais humano, santuário de Filêmon, pode ser visto no mais vida dentro da vida corrida dos documentário Jung na Torre de Bollingen, dias que vamos devorando sem pena. disponível para estudos, no Recife, no Jung ressurge nas páginas desse livro, Centro de Atenção Psicossocial/CAPS completamente exposto, para nos dizer – Casa Forte, com cenas e entrevistas que precisamos aprender a respirar. inéditas que nos aproximam do senhor

c co on nt tiin neen nt tee sset eteem mb br ro o 220 0110 0 || 770 1

Leitura.indd 70

30/08/2010 15:44:08


INDICAÇÕES ENSAIO ENTREVISTA

DJÉNaNE KarEH TaGEr Edgar Morin – Meu caminho bertrand brasil

um dos pensadores mais importantes do século 20 e também do 21, o sociólogo francês edgar Morin concedeu, em 2008, uma série de entrevistas à jornalista djénane Kareh Tager. o resultado dessas conversas foi reunido neste livro, que apresenta o pensador também sob aspectos comuns. as duas primeiras partes dedicam-se à sua relação com o pai e a mãe, seguidas por uma terceira claramente autoanalítica, daí ser intitulada simplesmente Morin. depois, há três capítulos nos quais o sociólogo discorre sobre suas teorias, fala da vida e da morte.

FraNcIScO rOcHa adoniran Barbosa – O poeta da cidade Ateliê editorial

Fruto de uma dissertação de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em História Social da uSp, o livro revela a obra de adoniran Barbosa contextualizada na rápida e constante urbanização da São paulo da década de 1950. as suas canções, segundo rocha, constroem uma “ideia de urbano”, representações que narram o cotidiano dessa metrópole. os capítulos se dividem numa sequência comum aos trabalhos acadêmicos, mantendo referências bibliográficas e citações. É interessante observar o registro em jornais de sambas famosos do compositor, tais como Trem das onze (1951) e Samba do Arnesto (1953), sendo evocados para destacar as vantagens do progresso então em curso.

ROMANCE

TaBaJara rUaS Varões assinalados record

a visualidade e a agilidade das primeiras linhas do romance histórico desse escritor e cineasta gaúcho prenunciam o ritmo empolgante que ele manterá ao longo de suas 574 páginas: “a sentinela abriu a porteira e o grupo avançou num trote parelho através do pátio até o branco vulto da casa. um peão afastou os cães que latiam, apanhou as rédeas dos cavalos e conduziu-os em direção ao potreiro. os quatro homens subiram os quatro degraus da varanda em passos simultâneos. os ponchos respingavam o chão de madeira”. publicada originalmente em 1985, a obra ficcionaliza um dos momentos mais marcantes da história riograndense e brasileira, a revolta Farroupilha. e o faz numa narrativa épica e humana. um modo prazeroso de ler o país.

INFANTIL

IrMÃOS GrIMM/ KVETa PacOVSKÁ João & Maria Cosac Naify

Certamente motivada pela própria ideia de que “as imagens de um livro infantil são a primeira galeria que as crianças visitam”, a artista tcheca Kveta pacovská (1928) desenvolveu as ilustrações desta edição do conto popular João e Maria (Hänsel und Gretel), escrito pelos irmãos grimm, e publicado, em 1812. o texto atém-se ao que já temos lido do drama dos irmãos abandonados, mas as ilustrações são diferentes das tradicionais, que buscam imitar o real. a princípio, parece tratar-se de um livro ilustrado por crianças, com os traços simples dos primeiros anos. Numa segunda olhada, entretanto, percebe-se o caráter experimental do trabalho de pacovská, que utiliza várias linguagens plásticas para contar visualmente essa impressionante história.

Produção cultural

PLANEJAMENTO E MÉTODO Faz tempo que a produção artística foi inserida no mercado, tornandose objeto de consumo. Surgiram expressões como “indústria cultural”, “economia da cultura” e “produção cultural”. Todas elas, cada uma a seu tempo, batizaram um novo cenário, uma nova forma de encarar esses bens. Hoje, há uma crescente relação entre cultura e os processos mercadológicos e é preciso entender que há especificidades nessa produção. a sexta edição do Guia brasileiro de produção cultural 2010-2011 (Sesc-Sp), com organização de Cristiane olivieri e edson Natale, investe justamente nessas

particularidades, esmiuçando os caminhos da produção cultural no Brasil. a publicação é um compêndio que reúne informações diversas, partindo dos procedimentos de um projeto, passando pelas questões jurídicas, direitos autorais, financiamento. outra publicação recente na área é Método canavial – Introdução à produção cultural (reviva), de afonso oliveira. Nesse trabalho, o autor apresenta sua experiência de mais de 20 anos, nos quais vem atuando como produtor voltado às manifestações da cultura popular e de pequenas comunidades. (Mariana oliveira)

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 7 1

Leitura.indd 71

30/08/2010 15:44:14


Fotos: divulgação

Claquete 1

MÚSICA Imagens e canções para ter na memória

Novos filmes e documentários sobre artistas e bandas de rock abordam situações que proporcionaram a criação musical texto Débora Nascimento

A relação entre cinema e música

sempre gerou bons frutos. Alguns deles tornaram-se clássicos, como A última valsa (1978), de Martin Scorsese, sobre o derradeiro show do The Band, e Bird (1988), de Clint Eastwood, sobre a dramática vida do saxofonista Charlie Parker. Por conta do empenho de cineastas, também ouvintes de canções, essa parceria continua a gerar novas obras. Neste segundo semestre, títulos em torno de astros do rock chegam tanto aos cinemas quanto às locadoras e, claro, à internet.

Um dos que devem atrair eternos fãs é O garoto de Liverpool (Nowhere boy), que chega no ano em que são lembrados o 70º aniversário de nascimento de John Lennon, em 9 de outubro, e o 30º de sua morte, em 8 de dezembro. A obra trata do período mais nebuloso da vida do artista, a juventude em Liverpool, quando vivia na casa de sua tia Mimi, com quem mantinha uma relação conflituosa. Naquela época, reencontrou sua mãe, Julia, que permaneceu ausente até a adolescência do jovem. Esse tema já fora abordado,

mas com menos ênfase, em Backbeat – Os cinco rapazes de Liverpool (1993). Dirigido pela novata Sam Taylor-Wood e com roteiro de Matt Greenhalgh (o mesmo de Control, sobre Ian Curtis, líder do Joy Division), o filme é protagonizado pelo belo ator inglês Aaron Johnson, cuja maior semelhança com o exBeatle é o timbre de voz, apoiada na colaboração de um estudo vocal. Com jeito de galã, Johnson derrapa em alguns momentos, demonstrando dificuldade para transmitir o bom humor cínico de Lennon. Mas, convenhamos, não deve ser uma tarefa fácil interpretar esse personagem. Apesar de focar um assunto atraente, O garoto de Liverpool não é marcante; é apenas um trabalho correto, mas que desliza em cenas relevantes, como na principal delas, a “lavagem de roupa suja” entre John, Mimi (interpretada por Kristin Scott Thomas) e Julia (Anne-Marie Duff), que revela o porquê de a mãe abandonar o próprio filho de cinco anos de idade. A produção explora o lado emotivo de Lennon e seus acessos de fúria juvenil.

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 2 3

Claquete.indd 72

30/08/2010 15:45:54


2

Em suma, o longa serve apenas para registrar a importância dessas duas figuras femininas para a construção da personalidade de John Lennon: a austeridade amorosa de Mimi e a leveza inconsequente de Julia – que o ensinou a tocar banjo e o incentivou a curtir rock, tornando-o um dos artistas mais adorados do mundo. A mãe, assim, ajudou a mudar o curso da história desse gênero musical.

MeninAS Do RocK

Outro nome iniciante e também atuante em videoclipes, a diretora Floria Sigismondi faz seu début no cinema trazendo à tona The Runaways. O grupo integra o rol das bandas de rock B dos Estados Unidos, que, mesmo não angariando uma posição de destaque no panteão do rock’n’roll, possui seu mérito. No caso do quinteto liderado pela guitarrista Joan Jett, foi o de ser a primeira banda de rock só de mulheres. Mesmo contando com atributos que podem torná-lo cult (filme sobre banda de rock, drogas, sexo entre garotas e com jovens talentosas atrizes), The

As diretoras novatas Sam taylor-Wood e Floria Sigismondi são mais conhecidas como autoras de videoclipes de rock runaways sofre do mal do cineasta estreante. A consequência é que algumas de suas cenas fortes acabam perdendo peso e potencial, o que torna o filme uma prosaica sessão da tarde. Sua melhor qualidade, no entanto, é contar com duas ótimas performances. Primeiro, a da menina-prodígio Dakota Fanning (Guerra dos mundos), em seu primeiro papel como teenager, interpretando a vocalista Cherie Currie, cuja autobiografia serviu de base para o filme; segundo, a esquisita Kristen Stewart (Crepúsculo) que, sem desperdiçar a chance de mostrar que não é apenas um rostinho lindo, quase se tornou a própria Joan Jett. Outra produção – imperdível – dessa leva é o documentário Stones

in exile, sobre um dos melhores discos dos Rolling Stones, Exile on main street. Trata-se de um making of póstumo da gravação, feita em 1971 no sul da França, onde os músicos se autoexilaram para poder fugir dos altos impostos de renda cobrados na Inglaterra. Como não havia filmagens do período, o diretor compensou essa lacuna com a montagem de diversas fotos da época e depoimentos dos integrantes e demais pessoas, como o filho do fornecedor de drogas da banda, que, morando com o pai na mansão de Keith Richards, enrolava cigarros de maconha para os artistas e convidados. Isso ainda criança. Mais um depoimento incrível é o do fotógrafo Dominique Tarlé, que foi à mansão para fazer uma sessão de fotos dos artistas e acabou passando três meses lá, a convite de Keith Richards (vale lembrar que os Stones também cooptaram para o universo das drogas a fotógrafa Annie Leibovitz, durante a turnê de 1975). A casa do guitarrista na França era o quartel-general do grupo. Os outros músicos, que moravam em lugares distantes, diariamente tinham

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 3

Claquete.indd 73

25/08/2010 15:46:17


FotoS: DivuLgAção

Página anterior 1 O GAROTO DE LIVERPOOL

Aaron Johnson e Anne-Marie Duff interpretam John Lennon e sua mãe Julia, na fase da adolescência do artista

2 RUNAWAYS Kristen Stewart e Dakota Fanning dão vida à guitarrista Joan Jett e à vocalista Cherie “Bomb” Currie, líderes da banda de rock de garotas Nesta página 3 WHite StRiPeS

Meg e Jack White percorreram pequenas cidades do Canadá e lugares inusitados no documentário que marca a última turnê da dupla

Claquete 3

que fazer longas viagens para chegar ao local. O baterista Charlie Watts, por exemplo, foi um dos que acabaram desistindo do percurso de seis horas e passou a morar na residência-estúdio, e, assim, o lugar ia se enchendo de gente, até ficar inabitável.

cHoRo no PALco

Com uma trajetória bem mais recente que a dos Rolling Stones, a banda inglesa Blur tem sua história revisitada em No distance left to run. O documentário foi produzido a partir da turnê que o quarteto, extinto em 2003, promoveu em 2009 na Inglaterra. Costurando depoimentos dos músicos Damon Albarn (vocal), Graham Coxon (guitarra), Alex James (baixo) e Dave Rowntree (bateria), a obra registra a opinião de cada um a respeito dos anos de sucesso. Bem-dirigida, reúne momentos cômicos, a exemplo da cena em que Albarn revela como começou inesperadamente a rivalidade com o Oasis, e outros emocionantes, como o instante em que o vocalista abaixa a cabeça e chora em pleno palco do

Blur, White Stripes e Rolling Stones são temas de excelentes documentários que detalham momentos de suas carreiras festival Glastonbury 2009. A produção No distance left to run é quase tão tocante quanto o já clássico End of the century (2003), sobre os Ramones, e tão bem-desenvolvida quanto Some kind of monster, do Metallica (2004). Por fim, um dos lançamentos que merecem destaque é Under great white northern lights, do White Stripes. A produção registra a turnê do CD Icky Thump, em 2007, que acabou sendo a última da dupla. Depois, a baterista Meg White pediria para sair, gerando muita repercussão, mas pouca explicação na mídia especializada. São exibidas imagens das apresentações que os americanos fizeram nos recantos mais inusitados de pequenas

cidades do Canadá, como em clubes de sinuca, barco pesqueiro, salas de aula e até num asilo de velhos remanescentes de uma tribo indígena. O filme mostra Meg e Jack White conhecendo a cultura de cada lugar visitado, e traz comentários espirituosos do vocalista sobre a carreira. Mas alguns de seus melhores trechos dizem respeito à baterista de performance tosca. Extremamente tímida, de fala acanhada, ela precisa de legendas para que possamos entender o pouco que está sendo dito. Há, por exemplo, um momento engraçado em que o talentoso guitarrista pergunta: “Meg, o que você diria para as pessoas que acham que sou eu que não deixo você falar?” Bem-construído e montado, alternando canções e falas, e com trabalho fotográfico bastante criativo, Under great white northern lights tem final sublime, com Jack tocando White moon ao piano, ladeado por Meg, que derrama lágrimas discretamente. Ele a abraça e o filme termina. Poucos meses depois dessas filmagens, a moça anunciava sua saída e, por ora, acabava uma das bandas mais legais da atualidade.

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 74 75

Claquete.indd 74

25/08/2010 16:51:14


INDICAÇÕES Drama

CHICO XAVIER

Diretor: Daniel Filho Com: Nelson Xavier, Ângelo Antônio, Tony Ramos, Christiane Torloni e Letícia Sabatella

o médium Chico Xavier (19102002) possui uma trajetória admirável e povoa o imaginário popular do brasileiro. No entanto, a empatia pelo homem não deve comprometer as discussões estéticas sobre a recente cinebiografia a seu respeito. o filme, dirigido por Daniel Filho e com elenco de atores globais, oferece ao público uma narrativa correta e mesmo bem-humorada, mas falta-lhe o sopro de criatividade que anima os melhores do gênero.

ClássiCo

ADEUS ÀS ILUSÕES

Diretor: Vicente Minnelli Com: Elizabeth Taylor, Richard Burton, Eva Marie Saint e Charles Bronson

A diva Elizabeth taylor contracena com Richard Burton pela terceira vez, seu marido na época e parceiro em 15 de seus filmes. A atriz vive Laura, uma artista liberal que tem questionada sua competência como mãe quando seu filho é obrigado pelas autoridades locais a frequentar uma escola tradicional, apesar das aulas que recebe em casa. Burton interpreta o pastor que dirige a instituição. Filmado em 1965, Adeus às ilusões é um produto que reflete as mudanças comportamentais da década.

Drama

UM OLHAR DO PARAÍSO

Diretor: Peter Jackson Com: Mark Wahlberg, Rachel Weisz, Susan Sarandon e Stanley Tucci

o conceituado diretor neozelandês Peter Jackson teve a sua carreira bastante associada aos “filmes de efeitos especiais” após o competente trabalho na trilogia O Senhor dos anéis. Em seu novo título, uma adaptação do romance Uma vida interrompida: Memórias de um anjo assassinado, o cineasta foi criticado por fazer uso abusivo desses recursos. Um olhar do paraíso trata das consequências da morte de uma adolescente. o elenco de estrelas dá credibilidade ao filme.

ComéDia

FORA DE CONTROLE

Diretor: Barry Levinson Com: Robert De Niro, Sean Penn, Bruce Willis e Catherine Keener

Ao desenvolver um olhar caricato sobre a atual indústria cinematográfica hollywoodiana, repleta de atores egocêntricos e produtores intransigentes, o diretor Barry Levinson (Rain man) faz uma sátira a um modelo de produção do qual faz parte há quase 30 anos. Robert De Niro vive um produtor em crise que tenta conciliar os interesses do estúdio com o ímpeto criativo do diretor e do roteirista. Sean Penn faz uma das participações de luxo do filme, interpretando a si mesmo.

Documentário

MICHAEL MOORE E O CAPITALISMO Michael Moore volta a atacar. Desde 1991, com Roger & Eu, o cineasta norte-americano vem lançando filmes nos quais denuncia os males do poder em seu país. o mais recente é Capitalismo: Uma história de amor (Capitalism: A love story), documentário que parte do estouro da crise financeira em 2008 para questionar o sistema econômico. Mais uma vez, o controverso diretor se coloca como narrador-protagonista (no caso, uma posição questionável) que defende suas ideias através de linguagem sarcástica, misturando dados, estatísticas e personagens escolhidos. Moore aborda algumas das monstruosas consequências dessa economia: empresas que lucram com a morte de seus empregados, pilotos de jato que também trabalham como garçons para

complementar suas rendas e famílias que são despejadas após anos de pagamento das mensalidades abusivas de suas hipotecas. Ao mesmo tempo, narra como teve início a paixão pelo consumo no país e como os EuA foram se afundando até chegar à bancarrota. Assim como Sicko: $O$ Saúde (2007), Capitalismo: Uma história de amor não é sua melhor produção. Michael Moore já soube tecer melhores narrações, como Fahreinheit – 11 de Setembro (2004). No entanto, é, ao menos, um registro de revolta contra o sistema daquele país, com movimentos sociais desmobilizados e imprensa calada diante dos fatos, como ele mesmo aponta. um filme sobre esse tema mereceria duração maior que duas horas. A história não é tão simples quanto a descrita ali. (Débora Nascimento)

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 5

Claquete.indd 75

25/08/2010 15:46:32


Cardápio

1

ecologia Por uma vida bem distante dos agrotóxicos

livres de agrotóxicos e fertilizantes químicos. Foi o primeiro espaço para isso em Pernambuco – agora, pelos cálculos do agricultor Jones Severino Pereira, de Abreu e Lima, o Estado conta com quase 80. O lado social da feira também entra na conta. É comum ver clientes que Preocupação com a saúde e meio ambiente faz chegam cedo e ficam horas por lá, crescer número de adeptos das feiras de bairros jogando conversa fora, quase como que comercializam produtos orgânicos numa confraria. O engenheiro José Neto, que há 11 anos frequenta o lugar, diz que texto Renata do Amaral Fotos Vládia Lima é comum pegar um produto em uma barraca, seguir comprando em outras e pagar depois, ao fim da feira: “É uma Ainda é madrugada de sábado os primeiros clientes, mas o pico do relação de confiança e amizade”. quando a movimentação começa. Por movimento é das 4h às 6h. Às 10h, os Para o agricultor Rafael Justino volta de 1h, os produtores de cinco agricultores já se preparam para regressar. Braz, de Bom Jardim, participar municípios pernambucanos – Chã Parece a rotina de uma feira da feira resultou na mudança da Grande, Bom Jardim, Gravatá, Abreu e qualquer, mas aqui o foco é outro: qualidade de vida. Como a venda Lima e Vitória de Santo Antão – chegam apenas orgânicos estão à venda. Há acontece sem intermediários, o ganho à rua Souza de Andrade, no bairro das 13 anos, o Espaço Agroecológico das econômico é maior. No espaço, desde Graças, zona norte do Recife, para iniciar Graças reúne produtores e clientes para sua inauguração, ele passou por uma a montagem da feira. Às 2h, já aparecem comercialização direta de alimentos mudança radical de hábitos: seus pais

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 6 7

Cardapio 4 paginas.indd 76

25/08/2010 15:54:16


e jaca e sucos de açaí com limão ou de capim santo. Ele vê vantagens no beneficiamento por agregar valor, durabilidade e diversidade. Desde 1994, trabalha com agrofloresta, sistema de plantação na mata nativa, geralmente de leguminosas, grãos e frutíferas. Um dos fundadores da feira, ele assistiu à verdadeira novela que foi sua implantação. Ela teve início no Parque da Jaqueira, depois se mudou para a Praça Elvira Souza, no fim da rua onde fica atualmente, mas foi retirada de lá. Segundo Pereira, quem apoiou a causa foi o ex-prefeito João Paulo, macrobiótico de carteirinha. A coordenação é feita pelos próprios agricultores, que criaram um regimento, realizam assembleias periódicas e se preocupam com o controle de qualidade dos produtos. Do início da feira para cá, ele percebe que o público está cada vez maior e mais diversificado. “São pessoas que estão investindo na vida. Para um público de classe média alta vir à feira às 3h, devemos ter um diferencial”, afirma.

PReÇo tABeLADo

trabalhavam com monocultura e ele usava queimada para limpar as terras. Hoje, seu terreno de 10 hectares está completamente recuperado. Coordenador da Associação de Agricultores e Agricultoras Agroecológicos de Bom Jardim (Agroflor), Braz vende frutas e hortaliças e explica que os produtores fornecem alimentos para fazer parte da merenda das escolas do município, melhorando também a alimentação dos próprios filhos. “No início da feira, as pessoas ainda não conheciam os orgânicos. Era uma coisa nova. Com a divulgação na mídia, isso mudou”, afirma. Não são apenas os produtos in natura que fazem sucesso no local. A barraca de Jones Severino Pereira é ponto de encontro por causa dos lanches variados e da simpatia do dono. Aqui, a banana vira bolo, chips ou doce em calda, pastoso ou de corte. Há também pães, pastéis de forno em sabores, como fruta-pão

Quem não conhece bem os orgânicos, pode vê-los apenas como alimentos mais mirrados e caros que os comuns. Não é o que se verifica nas feiras: além de viçosos, os produtos apresentam preços competitivos. O técnico agrícola Marcelino Bezerra de Lima diz que isso acontece porque os valores são tabelados para o ano inteiro. Depois de fazer uma pesquisa no comércio e em outros estados, eles definem o preço mínimo e máximo, o que evita variações na entressafra. Por isso, ele afirma que até pessoas de baixa renda vêm se tornando consumidoras de orgânicos. Quanto ao visual dos alimentos, eles só ficam feios quando não recebem bom manejo ou estão fora de época. Para evitar isso, os produtores são assessorados pela ONG Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá. Agente de comercialização da feira, Lima esclarece que os produtos agroecológicos são aqueles sem nenhum adubo externo, enquanto os orgânicos dispensam adubo químico ou veneno, mas podem levar esterco, compostagem ou adubo orgânico. É o caso das hortaliças, que costumam ser

orgânicas porque precisam de adubos externos e defensivos naturais. Também há preocupação com a proteção das nascentes de água no entorno. No início da feira, havia apenas 45 itens à venda. Hoje, são quase 200, distribuídos em 20 barracas. A necessidade de rodízio de culturas para descansar a terra faz com que a diversidade aumente. Lima afirma que há famílias que antes produziam uma só variedade e hoje plantam até 50. “Com toda a família empenhada, o custo da mão de obra é menor e a renda cresce. É melhor para o solo e para a alimentação das próprias famílias”, diz.

A PÉ oU nA WeB

Também aos sábados, acontece há sete anos a Feira Agroecológica da Praça de Casa Forte. Ela abriga 44 famílias de Goiana, Rio Formoso, Vitória de Santo Antão, Pombos e Chã Grande. Segundo o coordenador José Fernandes, a média

Há também o lado social dessas feiras, em que os clientes costumam chegar cedo e passam horas conversando de lucro por barraca é de R$ 300 a cada semana. Quanto mais diversificada, maior o lucro. Ele afirma que o principal público são as pessoas da terceira idade em busca de qualidade de vida e segurança alimentar. De bicicleta, capacete e sacolas de nylon penduradas no guidom, o servidor público Sérgio Murilo percorre, toda semana, o circuito das feiras: Graças, Casa Forte e Sítio da Trindade. Faz isso há quatro anos, pensando na saúde, no sabor e na distribuição de renda proporcionada pela produção em pequenas propriedades. É um dos poucos consumidores a circular com ecobag – a quantidade de sacolas plásticas ainda é grande por lá. Já a gerente de assistência técnica Anilis Cavalcante foi ao local, pela primeira vez, levada pelo filho Rodrigo, de 10 anos, que fazia um trabalho escolar sobre alimentos livres de venenos. Antes disso, só comprava

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 7

Cardapio 4 paginas.indd 77

25/08/2010 15:54:25


Cardápio

2

frutas orgânicas eventualmente, na BR-232, a caminho de Gravatá. Agora, pensa em aderir ao movimento. “Quando cuidamos do meio ambiente, cuidamos de nós mesmos”, diz. O marido, Ricardo Xavier, destaca o preço mais barato devido à compra direta. Ninguém duvida de que os orgânicos fazem bem à saúde e ao planeta, mas nem todo mundo está disposto a madrugar para pegar os melhores horários das feiras de bairro. Para esses preguiçosos ecológicos, existe o site Comadre Fulozinha, criado pelas sócias Silvia Sabadell e Luciana Alves, há quatro anos. O cliente faz seu pedido e recebe em domicílio. A lista vai desde produtos de cuidados pessoais a frutas secas, grãos, laticínios e carnes. O público é formado principalmente por mulheres de cerca de 45 anos com filhos, que trabalham e têm escolaridade de grau superior. “Elas preferem a praticidade de receber o produto orgânico em casa”, diz a coordenadora Sabadell, que já vendia produtos de sua horta orgânica junto com o marido desde 1996. A área de entrega abarca o

3

Recife, Região Metropolitana, Gravatá e Vitória de Santo Antão. No caso das carnes orgânicas, o diferencial está no respeito ao bemestar do animal e na proibição de drogas para forçar o crescimento. “No mínimo, 80% da dieta alimentar devem ser de origem orgânica, sem fertilizantes químicos ou agrotóxicos nas pastagens, e o abate segue normas de abate humanitário”, explica o agrônomo Carlos André Cavalcanti. Todos os produtos processados vendidos no site são certificados.

SeRtÃo oRGÂnico

A historiadora, geógrafa e jornalista carioca Cláudia Bjorgum mora na Noruega, onde desenvolve pesquisa sobre os benefícios da agricultura orgânica no semiárido nordestino. Ela informa que a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou um estudo indicativo de que a conversão da agricultura convencional em orgânica pode aumentar a produtividade em regiões com solos menos férteis ou já desgastados.

“A agricultura convencional, aquela dependente do uso de agrotóxicos, insiste em manter uma imagem de ‘salvadora’ da agricultura, querendo nos fazer pensar que, sem ela, a fome do planeta vai aumentar. Mas a realidade é diferente: a fome mundial aumentou consideravelmente durante as últimas décadas, apesar das inovações da indústria de sementes, agrotóxicos e pesticidas”, afirma. A hipótese da sua pesquisa é que o Nordeste brasileiro pode ser a região do Brasil mais beneficiada pelo cultivo de orgânicos. “A agricultura orgânica é mais efetiva em solos áridos e semiáridos. Pode contribuir para um aumento significativo da produtividade, já que solos manejados organicamente são capazes de reter mais água da chuva por causa da grande capacidade de absorção das matérias orgânicas”, explica. Segundo a pesquisadora, ainda predomina uma visão errônea da agricultura orgânica como um sistema atrasado. “É preciso ter em mente que 70% da pobreza no mundo se concentram nas áreas rurais e uma

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 9 8

Cardapio 4 paginas.indd 78

25/08/2010 15:54:35


Página anterior 1 cASA foRte

A feira acontece no bairro há sete anos, abrigando 44 famílias de Goiana, Rio Formoso, Vitória de Santo Antão, Pombos e Chã Grande

Nestas Páginas

2-3 SÍtio

A arquiteta argentina Silvana Maríncola e o agrônomo pernambucano Flávio Duarte mantêm uma plantação de produtos orgânicos e um forno à lenha para pães integrais

urbana que levavam para entrar nesse novo ritmo. Nas terras reflorestadas, plantam frutas e hortaliças orgânicas, que vendem na Feira do Sindicato dos Bancários, na Boa Vista, na sexta à tarde, e na Feira de Olinda, na Praça do Carmo, no sábado pela manhã. Nesta última, já estão há oito anos, desde a sua inauguração. Duarte, que também é professor e consultor de agroecologia, afirma que Pernambuco é um dos estados com mais feiras agroecológicas do país. A política de tabelamento contribui para firmar um preço justo tanto para quem vende quanto para quem compra. “Hoje contamos com 73 tipos de plantas diferentes no sítio, segundo o

A agricultura orgânica ainda é apontada como atrasada, apesar de ser um sistema viável e rentável mudança dessa natureza no campo pode alterar significativamente a qualidade de vida dos agricultores pobres”, diz. Para ela, a agricultura orgânica não é uma febre, mas um sistema agrícola viável e rentável que não vai parar de se expandir. Para além da saúde, da natureza e do impacto social, as vantagens também aparecem quando se fala em paladar. “Eles são mais tenros e, por serem menores, concentram mais sabor. Eu aprecio bastante essas características nos alimentos”, opina a chef Fabíola Medeiros, do café-bistrô Novo Grão, nas Graças. Nos últimos anos, ela vem percebendo um aumento no número de clientes que procuram orgânicos. Para ela, o interesse pelos produtos sem agrotóxicos faz parte de uma busca mais geral por qualidade de vida. “Aí se encaixa a preocupação com o que se come, a procedência do alimento, a forma de preparo. Os restaurantes vegetarianos partiram na frente. A gastronomia, como todas as outras áreas, revela o comportamento das pessoas e também o acompanha ”, afirma.

“Às vezes, os produtos comuns são mais bonitos pela introdução de agrotóxicos, mas em compensação não são tão saudáveis quanto os orgânicos e acabam não tendo o mesmo sabor”, diz a chef Sofia Mota, do restaurante Jalan Jalan, em Boa Viagem. Apesar de achar que o fornecimento ainda deixa a desejar e a durabilidade é menor, pela ausência de químicos, ela lança este mês novo cardápio, incluindo uma seção vegetariana com insumos orgânicos.

oPÇÃo De ViDA

A arquiteta argentina Silvana Maríncola, conhecida como Shivi, fez da plantação de alimentos orgânicos uma escolha para ajudá-la a realizar seu sonho: criar os três filhos – de 1, 6 e 8 anos, todos nascidos em casa – em contato com a natureza. No Brasil há quase 10 anos, ela casou com o agrônomo pernambucano Flávio Duarte e foram morar no sítio Nova Canaã, no Alto da Conquista, zona rural de Olinda. Antes, ele vivia em Olinda e ia ao sítio de seis hectares apenas nos fins de semana. Ambos fugiram da vida

último levantamento que fizemos. Isso é sinal de aproveitamento da biodiversidade”, diz. Além dos vegetais in natura, eles possuem uma pequena agroindústria de beneficiamento para abastecer a “barraca do lanche” da feira olindense – com mel, doces, geleias, pães, sucos e broas. Criam galinhas para ter ovos e cabras para fabricar queijos. Entre as frutas, plantam manga, jaca, carambola, laranja, jambo, banana. No público da feira, segundo Shivi, predominam jovens de classe média conscientes, ou idosos em busca de alimentação saudável. Da padaria de forno à lenha saem pães com trigo integral moído na hora e recheados com ervas, frutas e sementes. “A alimentação integral busca ser a mais próxima possível da natural, sem refinamento”, explica. Para o biscoito de canela, a especiaria é extraída da árvore. O casal realiza intercâmbios e cursos sobre sustentabilidade, agroindústria e construções ecológicas. “É uma inspiração para as pessoas verem que um outro tipo de vida é possível.”

c o n t i n e n t e S ET E M B R O 2 0 1 0 | 7 9

Cardapio 4 paginas.indd 79

25/08/2010 15:54:40


ópera rock Do underground à Broadway

Green Day, que aporta no Brasil em outubro, resgatou o gênero nos seus dois últimos álbuns texto Thiago Lins

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Sonoras 1

Quando, em 2003, o frontman do

Green Day, Billie Joe Armstrong, anunciou que o próximo disco do trio seria uma ópera-rock, os conservadores torceram o nariz. Revelado no começo dos anos 1990, junto com Blink 182 e Offspring, o grupo faz parte da açucarada leva pop-punk que sobrecarregou a MTV da época. Billie Joe parecia estar pregando uma peça nos fãs e na imprensa, e era difícil assimilar aqueles três moleques que conquistaram o mundo com um disco-tratado sobre tédio adolescente

(o já clássico Dookie, de 1994) se levando a sério demais. Mas a idade da razão tinha chegado para o Green Day. Lançado em setembro (mês emblemático para os americanos) de 2004, American idiot rompia com o narcisismo da discografia anterior: a banda estava olhando para o mundo pós-11 de Setembro – sem gostar do que via. Era um passo à frente na carreira dos californianos, e outro no pop contemporâneo. O discaço de quase 60 minutos era um libelo antibush, a começar pela pungente faixa-título.

O desastrado “homem-gasolina” (assim Billie Joe se refere a Bush e suas conexões petroleiras no single Holiday) ainda passaria seis anos no poder até deixar a Casa Branca pela porta dos fundos, mas muito estrago já tinha sido feito: recessão, Guerra do Iraque e a queda das Torres Gêmeas. A pena afiada de Billie Joe não deixou passar nenhum desses fenômenos da Era Bush. A faixa-título American idiot, pedrada que abre o disco, saúda o ouvinte com boas-vindas à “era da histeria e da paranoia”. Segue Jesus of

c co on nt tiin neen nt tee sset eteem mbbr ro o 220 0110 0 || 880 1

Sonoras.indd 80

25/08/2010 15:52:29


suburbia, uma miniópera nos moldes eternizados pelo The Who em A quick one, de 1966: dividida em cinco atos, a música de nove minutos precede Holiday, um dos ganchudos singles do CD. As três primeiras faixas, aliás, dão uma ideia do que seria esse disco: crítico, comprido, oportuno e ousado. “American idiot flagrou, como nenhum outro disco até

o vocalista Billie Joe ganhou status de porta-voz da juventude americana, como um Bruce Springsteen de tachinhas hoje, o sentimento do americano acima da média depois do 11 de Setembro. Nenhuma música traduz melhor aquele misto de tristeza, impotência e ódio do que Wake me up when september ends. Um clássico”, atesta o crítico Arthur Dapieve, coautor do Guia do rock – Uma discoteca básica (editora Jorge Zahar). Dois anos se passaram até que o Green Day lançou Bullet in a bible, uma coletânea ao vivo. Foi um ato arriscado: coletâneas soam como obituário para bandas de rock, e os ouvintes mais desconfiados vislumbraram outro lapso

criativo. Aclamado por fãs e críticos como um retorno triunfal, American idiot carecia de um sucessor à altura, e esse era um compromisso tão difícil, que chegou a desorientar a banda. No ano passado, durante as entrevistas de divulgação do então recém-lançado 21st century breakdown, Billie Joe admitiu a pressão e os subsequentes acessos de esgotamento nervoso pelos quais a banda passou. Cinco anos separam a primeira da segunda ópera-rock do Green Day. Nesse intervalo, os rapazes haviam mudado o suficiente. 21st century breakdown não representou necessariamente um avanço em relação à ousadia de American idiot, mas era tão incendiário quanto: manter-se no topo já foi uma façanha e tanto – o grupo não precisava ir mais longe. Divididos em três atos, os petardos do último disco (premiado com o Grammy de Melhor Álbum de Rock) miram desde a Era Nixon até os dias de hoje, “a Era estática”, na definição de Billie Joe. Ele ganhou status de porta-voz da juventude americana, como um Bruce Springsteen de tachinhas (o trovador fez fama com críticas à terra do Big Mac).

VocÊ PoDe Me oUViR?

O gênero resgatado pelo Green Day foi febre na passagem dos anos 1960 para

2

1 eXPeRiÊnciA American Idiot representou um passo à frente na carreira do Green Day

2 MARco ZeRo O álbum Tommy, da banda The Who, desencadeou a febre da ópera-rock nos anos 1970

1970. E tudo começou com um garoto que não via, ouvia ou falava. Tommy, o protagonista-título do seminal disco do Who, perde os sentidos ao testemunhar o assassinato do padrasto. O ato é cometido pelo seu pai, que tinha sido dado como morto na Segunda Guerra, ao voltar de surpresa para casa. Pressionado a relatar que não escutou nem viu nada, o garoto fica cego e surdo e passa a interpretar com músicas as sensações físicas. “Tommy não apenas unificou tematicamente as canções, mas as fez contar uma mesma história com início, meio e fim”, sintetiza Dapieve. Tommy, o álbum, continha uma crítica contundente à indústria cultural. Ironicamente, a crítica virou produto: o vinil duplo vendeu mais de 20 milhões de cópias mundo afora. E rendeu subprodutos. Em 1974, cinco anos após o lançamento do álbum, entrou no circuito o longa-metragem homônimo (dirigido por Ken Russel) e, claro, o musical na Broadway. O estilo ópera-rock já tinha se tornado sinônimo de franquia lucrativa naquela época. O ápice foi em 1970, com Jesus Cristo superstar, de Andrew Lloyd Weber (ele mesmo, o homem por trás de Cats e O fantasma da ópera). Um ano depois, o vinil com a trilha sonora da peça Tommy atingiu o primeiro lugar nas paradas da Billboard. Do progressivo ao hard rock, passando pela invasão britânica, diversas bandas se arriscaram no gênero: Pink Floyd, Queen, Small Faces... Em abril deste ano, estreou na Broadway a peça American idiot, baseada no multiplatinado CD do Green Day. A peça continua em cartaz, tendo inclusive abocanhado dois Tony Awards (Melhor Cenário e Melhor Iluminação), tradicional prêmio do teatro norte-americano. A crítica daquele país tem comparado American idiot ao cultuado Hair, musical que marcou o fim dos anos 1960 (e que também virou filme em 1979, sob a direção de Milos Forman). Resta saber se, com as performances de Ladies Gagas e subdivas, a ópera-rock vai ser uma marca destes anos 2000, ou “Era estática” .

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 1

Sonoras.indd 81

25/08/2010 15:52:34


DeVoToS Vinte anos de ativismo musical

Banda-patrimônio da comunidade do Alto José do Pinho, zona norte do Recife, tem trajetória documentada em livro texto Thiago Lins KARINA FREITAS SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO/mIchELE SOUzA

Sonoras “o Alto José do Pinho existe, a nossa realidade é essa e não adianta você tentar esconder.” O jornalista Hugo Montarroyos considera que essa colocação, tão sintética quanto os três acordes de um single punk, define, até hoje, o discurso da Devotos (ex-Devotos do Ódio), a banda-patrimônio que eternizou o grito de guerra “Punk, rock, hardcore, sabe onde é que faz” e voltou recentemente de uma bem-sucedida turnê pela Europa, numa parceria com os conterrâneos da Subversivos. Montarroyos é autor de Devotos 20 anos, livro-documento que sai do forno este mês, pela Editora Aeroplano. O jornalista diz que o embrião do livro foi uma entrevista feita para o seu blog RecifeRock! (www.reciferock.com.br), espaço-referência na trôpega cena rock da Cidade Mangue. Dividindo os créditos com o inseparável Guilherme Moura (seu parceiro de blog), Montarroyos afirma que aquela foi uma das entrevistas mais longas dos seus sete anos de jornalista, recompensada com o burburinho dos 50 comentários postados no blog. Ficou claro que aquele longo papo entre amigos (Montarroyos confessa “ter perdido em jornalismo e ganhado em espontaneidade”, na ocasião, dada a fluente informalidade do texto) poderia render frutos. Que fosse um livro, então. Muito já foi dito sobre o hoje incensado Alto José do Pinho, bairro da zona norte do Recife. A comunidade sempre concentrou grupos de expressão popular, como o maracatu e o reisado, mas virou notícia com a ascensão dos Devotos e bandas parceiras, como a Matalanamão e a extinta Faces do Subúrbio. Montarroyos

lembra que, no começo dos anos 1990, quando os Devotos começaram a ficar conhecidos com o supracitado refrão (seguido de um sonoro palavrão), uma das primeiras reportagens sobre o bairro foi publicada pela Folha de S.Paulo. Dividir um espaço da página com anúncio de butique fina, em princípio, poderia até dar a impressão de que aqueles

três jovens de periferia estariam se tornando ícones de inclusão social. Uma demonstração de hostilidade editorial acabou com essa possibilidade: naquele texto, o Alto José do Pinho foi definido como “a Seattle dos miseráveis”, numa referência à Meca do grunge. Os três punks suburbanos ainda passariam por poucas e boas, na longa

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 2 3

Sonoras.indd 82

25/08/2010 15:52:41


e sinuosa estrada rumo à aceitação. Caminho, aliás, que foi trilhado “de ônibus, caminhão e jegue”, como lembra o baterista Cello, na entrevista mencionada, convertida em apêndice no livro. A banda seguiu à risca a cartilha do faça-você-mesmo, algumas vezes por escolha, outras por... falta de escolha. Montarroyos recorda que, de 1994 até 1998, a banda tocou em todas as edições do tradicional festival Abril Pro Rock. O detalhe é que, às quatro edições, eles foram e voltaram a pé. Na volta, de madrugada, não passavam

numa ousadia marqueteira que não deu certo. Disponibilizou os braços e corpos de guitarra separadamente, sem nenhum componente eletrônico. A procura foi tão baixa, que as lojas reduziram os preços dos produtos. O inquieto Neilton juntou uns trocados e comprou as duas peças, que ganharam uso por causa de conhecimentos em eletrônica (sua antiga área de atuação) que ele adquiriu sozinho. Hoje, ele é um feliz proprietário de uma Fender Strato e de uma Gibson Les Paul, os dois sonhos de consumo de qualquer candidato

se fazem. Devotos 20 anos, o CD que leva o mesmo nome do livro, foi lançado de forma independente, em dezembro de 2008. Mais recentemente, a turnê pela Europa rendeu um contrato com o selo underground Mass Production. A produtora vai distribuir uma coletânea do trio em vinil. O grupo, de acordo com Neilton, ainda está se articulando em torno de uma excursão Brasil afora, intercalando com as sessões do que deve vir a ser o álbum Devotos póstumo (título provisório), uma colcha de retalhos com material que a banda, ao longo dos anos, deixou de gravar. O frontman Cannibal bem define a banda como “um projeto meio social, meio musical”: os três ainda estão à frente da ONG Alto-Falante, numa tabelinha com bandas do Alto José do Pinho. Afinal, o baixista e vocalista gosta de sublinhar que a ideia da banda sempre foi “mudar um quadro social através da música”. Com as oficinas, a

Se neilton fez uma guitarra, e faz até hoje, os Devotos também se fizeram – e se fazem, gerindo turnês e lançamentos

sem o “baculejo” policial. No fim das contas, andar quilômetros com quilos de equipamentos nas costas é até fácil. Difícil deve ter sido aprenderem a tocar sozinhos (o trio é autodidata). Mas o guitarrista Neilton foi mais longe: ele montou o próprio instrumento. Na metade dos anos 1980, a fabricante de instrumentos Dolphin se lançou

a guitar hero. Mas Neilton também é o responsável por toda a identidade visual e até pelo backline da banda, inclusive fabricando equipamentos sonoros sob encomenda. “Neilton é um Da Vinci punk”, arrisca Montarroyos, sobre o guitarrista, luthier e designer. Se Neilton fez uma guitarra, e faz até hoje, os Devotos também se fizeram – e

molecada daquela região não precisa aprender música no improviso. Hoje, a Devotos é quase sinônimo de Alto José do Pinho, assim como o Alto é quase sinônimo de inclusão social. A “Seattle dos miseráveis” tornou-se praticamente ponto turístico à época do Manguebeat – a banda nunca fez parte do movimento, mas a brodagem típica dos pernambucanos terminou por associá-la a ele. Devotos 20 anos pode ser o primeiro livro sobre o emblemático Alto José do Pinho, mas são inúmeras as teses, reportagens e documentários que o tem enfocado. Cannibal diz não conseguir assimilar tal burburinho.“Uma vez, uma banda de Boa Viagem (bairro da próspera zona sul do Recife) veio aqui. Eles não vieram tocar, vieram até o Alto só porque queriam dar uma entrevista aqui. Fiquei sem entender nada”. E foi assim que, num bafejo, a “Seattle dos miseráveis” se tornou a Seattle dos abastados.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 3

Sonoras.indd 83

25/08/2010 15:52:47


OsmáriO marques/divulgaçãO

drama deus e o diabo em terra de ninguém

Lágrimas de um guarda-chuva, peça dirigida por Antônio Cadengue, expõe personagens circenses em confronto com seus destinos texto Alexandre Figueirôa

Palco Dois artistas mambembes – o mágico Sansão e a mulher-macaco Angelina/Zambê – chegam a uma cidade abandonada. O cenário é de desolação: o solo está coberto por folhas secas, as paredes estão desgastadas pelo tempo, as vidraças estão quebradas e as cortinas em farrapos. O vento sopra, inclemente, um eterno ar de tristeza e danação. Nesse lugar indefinido, um misto de antessala do inferno/ inverno e palco entre dois mundos, os personagens de Lágrimas de um guarda-chuva vão se confrontar com o seu destino. Em um dia, depois de percorrerem um longo caminho com seus apetrechos circenses, eles terão que decidir se continuarão a viver a poesia torta da existência, a despeito da vontade de Deus, ou se entregarão de uma vez por todas aos caprichos do Demônio, essa criatura que habita nossos sonhos, nossos mitos e nos afaga com a ilusão para, no instante seguinte, nos escancarar sua face pérfida de devorador de almas. O texto do mineiro Eid Ribeiro, encenado e adaptado por Antonio Cadengue, nos revela em sua essência estética o encontro entre a força divina e a diabólica. O espetáculo, em cartaz no Teatro Barreto Júnior, no Recife, é marcado pela intertextualidade. Ribeiro, além de autor de peças como Corra enquanto é tempo e Cigarros Souza Câncer, dirigiu e montou textos teatrais de Samuel Beckett, Nelson Rodrigues e adaptou para o teatro A obscena Senhora D., de Hilda Hilst. Na sua construção, Lágrimas de um guarda-chuva reflete traços dessa trajetória. É uma fábula marcada pelo cinismo,

mas que, ao mesmo tempo, revela um desejo de redenção e de crença diante do imponderável. O guarda-chuva e as lágrimas, nesse sentido, são as metáforas desse drama em que os protagonistas – entre o amor e o desprezo que sentem por si próprios –, a cada gesto e a cada palavra, buscam apegar-se ao sonho e à fantasia que forjaram para suas vidas, embora, diante deles, só restem como espectadores três homens cegos e um rei que se autocoroou. Lágrimas de um Cadengue, um leitor sagaz guarda-chuva do que está relacionado ao que teAtro BArreto Júnior pode ser expresso num palco, T. 81 3355.6398 demonstra sua habilidade em Sab e Dom 20h traduzir em imagens o universo R$20 e R$10 pensado e criado por um autor. Percebendo o quanto as influências dos já citados Beckett e Rodrigues, e dos cineastas Federico Fellini (num de seus filmes mais belos, A estrada da vida, também sobre atores mambembes) e Ingmar Bergman (em Noites de circo) emanam do texto de Ribeiro, recorreu às próprias referências para dar corpo e alma ao material que tinha em mãos.

conciSÃo

A partir da alegoria da estação de outono – que nos é apresentada como emblema de uma sociedade cuja única saída parece ser a derrisão diante da necessidade de continuar existindo –, ele opta por uma cena que converge para a multiplicidade de sentidos, de modo que o espectador experimente, no espaço de tempo da duração do espetáculo, as sucessivas variações de estados da alma dos personagens propostas pelo autor. Isso nos é oferecido a partir de uma teatralidade concisa, palpável, em que os elementos cênicos – em sua

Antônio cadengue demonstra sua habilidade em traduzir em imagens o universo pensado e criado por um autor

simplicidade e significação – permitem conduzir nossa visão ao mistério mais fascinante do teatro: a possibilidade do jogo, espaço onde o real e o sonho se mesclam para nos falar de dentro de nosso próprio coração. Para atingir tais objetivos e aprofundar as implicações das referências intertextuais pedidas

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 4 5

Palco.indd 84

25/08/2010 15:56:23


pela montagem, Cadengue contou com a precisa concepção de cenário e figurino elaborada por Marcondes Lima. Ambos, cenário e figurino, funcionam como personagens, traduzindo, a cada movimento dos atores em cena, funcionalidade e beleza. Há tanta força de poesia na cenografia quanto nas palavras. Desde a primeira cena, quando apenas o vento sopra sob a luz amarela, há uma antecipação do enredo e do sentimento que transpassarão a construção dos personagens. A música é também outro elemento de vital importância na fruição do espetáculo, pois alinhava o lirismo da encenação em seus instantes suaves e pontua com precisão os momentos sombrios.

É preciso, ainda, apontar o desempenho do elenco. Silvio Pinto compõe um Mestre Sansão – o mágico – com a intensidade dramática exigida pelo personagem, graças à segurança e maturidade de sua interpretação. Ele empreende uma caracterização que revela o conflito interno em que o mágico faminto e desesperançado está mergulhado e dá força ao tom fáustico de sua figura. Cira Ramos, como Angelina, a mulher-macaco, obrigada a entregar seu corpo aos homens, quando a farsa de sua encenação fatalmente é sempre revelada, está correta, embora a representatividade do elemento feminino, no contexto da peça, talvez exigisse dela um maior empenho no sentido de explorar com mais vigor e

mais precisão os diferentes estados de espírito de Angelina. O mesmo é válido para Arilson Lopes, muito bem ao lado de Bobby Mergulhão e Marcelino Dias, no trio de cegos, porém, aparentemente, ainda um pouco tímido na sua performance como Carmelo, o rapaz que roubará o coração da personagem. Lágrimas de um guarda-chuva, portanto, no atual cenário teatral pernambucano é um desses espetáculos que nos levam a acreditar novamente na capacidade dos artistas locais de empreenderem uma renovação saudável de nossa tradição nas artes cênicas. A dedicação e o esforço na sua construção são recompensados por um trabalho de beleza inquestionável, capaz de expressar a vitalidade de quem continua apostando na poesia.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 5

Palco.indd 85

25/08/2010 15:56:36


Palco 1

LUA CAMBARÁ O drama dançado de uma guerreira

Espetáculo baseado em conto de Ronaldo Correia de Brito volta aos palcos depois de sua última montagem, há 20 anos texto Gianni Paula de Melo Fotos Maíra Gamarra

“não deixem o olhar perdido,

meninas!”. Durante o ensaio, essa é a recomendação mais enfatizada pelas coreógrafas Ana Emília Freire e Carla Machado, diretoras responsáveis pela nova montagem do espetáculo Lua Cambará. A preocupação com a expressividade das bailarinas é mais que pertinente, numa dramatização

que traz à tona emoções densas, movimentos que pretendem expressar ideias de vida e de morte. Baseada no conto homônimo do escritor Ronaldo Correia de Brito (posteriormente adaptado para o palco em parceria com Assis Lima), o espetáculo volta à cena para contar uma história de perversidade e força. Escrito em 1970,

o texto havia sido filmado em Super 8, em 1975, e dançado pela primeira vez em 1990, sob a direção do coreógrafo Zdenek Hampl. A remontagem foi proposta pela bailarina Cecília Brennand, coordenadora do Ária Espaço de Dança e Arte e realizada pelos professores e alunos do Ária Social. “Há 20 anos, quando produzi e encenei Lua Cambará, o projeto já me parecia ousado. A peça foi um sucesso, mas teve curta duração. Fiquei devendo uma remontagem e pensei nisso durante essas duas décadas. Sempre achei que um texto e uma música tão marcantes para a nossa cultura mereciam sair do esquecimento a que foram submetidos nesses anos”, comenta Cecília. Já naquela primeira encenação, o diálogo entre as tradições nordestinas e a expressividade contemporânea caracterizava o drama de Lua Cambará.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 6 7

Palco.indd 86

25/08/2010 16:54:40


1 passado A remontagem foi proposta pela bailarina Cecília Brennand, coordenadora do Ária Espaço de Dança e Arte

Lua cambará

teatro Barreto Júnior

6-13-20 set 20h

teatro de s. isaBeL

4 out 20h

2 ensaio A preparação de elenco foi realizada com enfoque na expressividade das sensações

2

Esse foi o nome dado pelo autor à sua personagem, criança nascida de um estupro que se torna uma mulher de poder, quando herda as posses do pai e renega sua origem escrava. Embora as trocas entre tradição e contemporaneidade tenham sido preservadas, há aspectos que diferenciam as duas montagens. Em primeiro lugar, a atual suprime as falas, tanto as dos personagens quanto as do narrador. Alguns elementos são oferecidos através de alusões. É, por exemplo, no movimento dos quadris que se indica a existência de um chicote em cena, suprimindo a presença do objeto cênico. Para atingir o resultado estético desejado, a preparação de elenco foi realizada com enfoque nas sensações, trabalhando o conto parte a parte, para que ele fosse interiorizado individualmente pelos integrantes

Há aspectos que diferenciam as duas montagens, como a ausência de falas e o aumento no número de atores

do grupo. Para as diretoras, era importante que eles concebessem a expressividade a partir das abstrações propostas pela história. Outros diferenciais da atual montagem são a quantidade de atores envolvidos – 40, agora, 10 nos anos 1990 – e a execução das músicas, que são cantadas ao vivo pelo elenco acompanhado de seis instrumentistas, sob direção musical de Rosemary Oliveira. A trilha sonora, criada por Antônio Madureira, traz elementos da cultura popular para um repertório de matriz erudita. Nessa montagem, o canto agrega-se à densidade do gesto, como se fossem indissociáveis. O figurino, por sua vez, explora tons sombrios, incorporando a

atmosfera do cenário, composto por painéis de tecidos rústicos, sobre os quais foram aplicados rosários, menção ao objeto litúrgico recebido por Lua Cambará após a morte da mãe. Criado por Beth Gaudêncio, responsável pelo figurino das duas montagens, o cenário foi inspirado numa pintura de sua autoria, feita à época da primeira encenação, na qual também atuou. Cecília Brennand considera o espetáculo Lua Cambará o mais ambicioso do Ária Social, entidade sem fins lucrativos que surgiu em 2004, vinculada ao Ária Espaço de Dança e Arte, para atender aos jovens de baixa renda. A formação continuada em dança e canto, além de ser uma atividade extra no cotidiano desses jovens, permite uma experiência de amadurecimento através da criação artística. Sobre as transformações trazidas por Lua Cambará, a coordenadora aponta os relatos de descobertas pessoais dos bailarinos, sobretudo a partir das reações aos temas da crueldade e da morte.

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 7

Palco.indd 87

25/08/2010 16:54:54


Fabio Cypriano A URGÊNCIA DO CORPO

Fabio cypriano

é professor da PUC-SP, crítico de arte da Folha de S.Paulo, e autor de Pina Bausch (Cosac Naify) DIVULGAÇÃO

Há poucas semanas, a loja virtual Amazon anunciou que para cada 180 livros digitais vendidos, outros 100 em papel eram comercializados. Esse fato aponta para mais um capítulo da supremacia do mundo virtual sobre o físico: já não se escrevem mais cartas, apenas e-mails; nas residências, primeiro foram as estantes de CD e discos que desapareceram, agora as condenadas são as bibliotecas. Atualmente, salas de bate-papos e games online tornaram-se locais de encontro. Alguns críticos apocalípticos, como Andrew Keen (O culto do amador, Editora Zahar), apontam em tais rumos uma banalização da cultura, marca dessa chamada “geração Y”, que resolve tudo através do universo virtual, no qual são extremamente questionáveis as fronteiras entre ficção e realidade. Youtube, Facebook e Wikipédia, apesar de criados para serem usados por amadores, já se tornaram canais potentes para o mundo corporativo. Contudo, se por um lado há, de fato, um esgarçamento entre os limites do real e do ficcional, por outro, essas novas ferramentas tornam a vida contemporânea muito mais prática. É inegável que a venda de livros virtuais incentiva a leitura: são mais baratos, de acesso muito mais fácil, e ecologicamente muito mais adequados. No entanto, outro fenômeno pode ser constatado como resistência à “virtualização” das relações: o renascimento da arte da performance. Se, nas décadas de 1960 e 1970, a body art foi uma das vertentes decisivas da contracultura, essa situação se verifica novamente. Nos últimos 10 anos, a performance voltou a ter presença marcante em galerias, museus e bienais e, agora em 2010, essa situação se radicalizou. Artistas como Trisha Brown e Yvonne Rainer, precursoras de experimentos com o corpo na arte contemporânea, participaram da última edição da Documenta de Kassel, na Alemanha, em 2007, remontando seus trabalhos iniciais. Em Nova York, existe uma bienal de performance, a Performa, e em Londres há uma agência pública, criada em 2003, chamada Live Art Development Agency (Agência para o Desenvolvimento da Life Art), criada para estimular a performance. Mesmo em São Paulo, a galeria Vermelho organiza, anualmente, desde 2005, um festival de performances denominado Verbo, que, em julho passado, durante uma semana, reuniu cerca de 2 mil pessoas. O auge dessa tendência alcançou o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), no início deste ano, com a mostra A artista está presente, na qual Marina Abramovic, outra pioneira da performance, recriou algumas de suas obras mais famosas com estudantes, além de permanecer sentada durante toda a exposição, mobilizando a mídia de forma inédita. Ela chegou a ser a segunda artista a levar o MoMA a ser capa do New York Times – o primeiro foi Van Gogh, quando foi tema de uma mostra no museu. São apenas alguns exemplos, mas não se trata de casos isolados. É certo que frente à crescente tendência de relações virtuais, a arte aponta para a urgência do corpo.

con ti nen te

c o n t i n e n t e s et e m b r o 2 0 1 0 | 8 8

Saída.indd 88

Saída 25/08/2010 15:57:51




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.