LEo CALdAS
DEZEMBRO 2010
aos leitores Certamente, uma das profissões que mais dependem de vestígios é a do arqueólogo. Em sua função, ele atua como um investigador que, com os fragmentos disponíveis, encaixa peças, reconstrói cenas e situações. Geralmente, quando pensamos nesses profissionais, a primeira imagem que nos ocorre é a da missão arqueológica inglesa no Egito, em que homens astutos vasculham tumbas e sarcófagos, transferindo bens ancestrais de seu lugar de origem para museus cosmopolitas. A realidade do arqueólogo que trabalha nos sítios brasileiros, em especial nos nordestinos, é bem diversa. Não apenas porque há muito ainda a ser explorado e descoberto, mas também porque nossos profissionais lidam com culturas primitivas de hábitos diferentes daqueles das civilizações à beira do Nilo. A pré-história pernambucana é tema central deste número, no qual buscamos mapear o que tem sido revelado nas recentes pesquisas em campo, num Estado surpreendentemente rico em sítios arqueológicos, que – pela sua beleza e majestade – atraem não apenas os que trabalham, mas os que viajam e contemplam.
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Nesta edição, dedicamos também espaço a Noel Rosa, que completaria 100 anos no dia 11. Noel foi um criador profícuo, morto precocemente aos 26 anos. Realizamos um retrospecto de vida e obra desse carioca da Vila Isabel, considerado o maior inovador da canção popular brasileira. Neste dezembro, uma harmoniosa relação entre texto e imagem revela detalhes da Festa do Lambe-Sujo x Caboclinho, que ocorre anualmente, no município de Laranjeiras, em Sergipe. Nossa próxima edição, de janeiro de 2011, marca os 10 anos da Continente, cujo primeiro número circulou em janeiro de 2001. Pensamos em comemorar a data, produzindo um conteúdo que refletisse a passagem dessa década no contexto da cultura e da sociedade. Para tanto, o próximo número contará com a discussão de temas que nos pareceram incontornáveis, como os novos fluxos que se estabelecem nas cidades, no ambiente virtual, e diferentes noções de tempo e autoria. A revista chegará aos leitores a partir do dia 10 de janeiro. Boas festas e até o ano que vem.
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sumário Portfólio
Amanda Melo 6
cartas
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expediente + colaboradores
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entrevista
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Dominique chateau Pensador analisa o cinema contemporâneo a partir da filosofia da arte e da semiótica
Produção cultural Site reúne mais de 100 entrevistas com nome das diversas áreas artísticas do Brasil
Perfil
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Pernambucanas
João Falcão A trajetória profissional do diretor pernambucano, marcada pelos desafios, pode ser comparada a dos personagens de sua peça Clandestinos
Pedro ii Construção moderna para sua época, o prédio do hospital, inaugurado em 1861, teve projeto de reforma finalizado e volta ao atendimento público
Sonoras
Vanguarda Paulista O box Caixa preta reúne 10 álbuns de carreira e dois inéditos de Itamar Assumpção
neorrealismo Há 65 anos, o filme Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, dava início ao gênero que privilegiou o real como tema
Palco
74
Leitura
86
Matéria corrida
88
cardápio
94
Artigo
96
Saída
Balaio
Weezer Fã do grupo norteamericano propõe a arrecadação de dinheiro para a aposentadoria de seus integrantes
claquete
72
conexão
40
66
68
Obra da artista, que contempla suportes como a fotografia, o desenho e a performance, é marcada pelo uso do próprio corpo como recurso narrativo e dramático
14
carlos carvalho Novo espetáculo do diretor une atores profissionais e brincantes da Zona da Mata
Lima Barreto As obras Diário do hospício e a inacabada Cemitério dos vivos ganham nova edição
José cláudio Memórias de Ismael Caldas
natal Chefs de Portugal, Espanha e Alemanha dão as receitas de pratos que anualmente põem às suas mesas na ceia natalina
televisão Rede latino-americana de TVs públicas articula-se por melhores distribuição e exibição de audiovisuais produzidos na região
célio Pontes Os próximos desafios das políticas culturais
tradição Embate
Uma das mais populares de Sergipe, a Festa dos Lambe-Sujos x Caboclinhos ocorre no município de Laranjeiras, encenando a disputa entre negros e índios na região
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Capa Foto Leo Caldas
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Arqueologia
História
Sítio pernambucano abriga importante acervo, ainda em fase de catalogação, que evidencia a presença humana pelas pinturas rupestres gravadas nas pedras
Fundado há 50 anos, grupo buscava uma maneira local de interpretar e de encenar, oferecendo ao Recife um teatro profissional de qualidade artística
especial
Visuais
Há 100 anos, nascia um dos maiores inovadores da canção popular brasileira, um compositor que ajudou a sedimentar e a “legitimar” o samba no país
Para o artista plástico argentino Pablo Bernasconi, a criação se principia no conceito, para depois ganhar cores e formas a partir de vários materiais
Vale do Catimbau
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Noel Rosa
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Teatro Popular do Nordeste
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Dez’ 10
Ilustração
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cartas Elogio Parabéns pelo excelente conteúdo da edição do mês de novembro. Considero a Continente a melhor revista cultural do Brasil e a cada nova edição supera os seus próprios êxitos. Mesmo diante das dificuldades inerentes ao processo editorial do segmento no Brasil, a revista firma-se a cada dia como referência de publicação cultural brasileira. Meus cumprimentos a todos os que a fazem acontecer.
irretocáveis. Ainda não recebi a de outubro, mas vi no site que tem coisa muito boa a caminho. Gostaria, entretanto, de lembrar-lhes os 90 anos de nascimento da Clarice Lispector; até o fim do ano queria ver algo publicado sobre a escritora. Sim, lembro que na edição de janeiro tinha uma matéria sobre um nova biografia a seu respeito, o que não configura necessariamente uma matéria sobre a escritora. PATRÍCIA VêNUS IGUATU – CE
JORGE LUIZ ALENCAR GUERRA
VOCê FAZ A continente COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).
BRASÍLIA – DF
Turismo Venho através desta verificar a possibilidade da reedição das revistas Continente do segmento Turismo, em especial, as capas com Recife, Olinda, Fernando de Noronha e Porto de Galinhas.
Saudade Sou pernambucana, porém moro em João Pessoa. Achei na revista Continente uma maneira de “matar” a saudade da minha terra querida!
HERBETH MARTINS SANTOS
EMÍLIA BARROS
RECIFE – PE
JOÃO PESSOA – PB
RESPOSTA DA REDAÇÃO
Clarice
Prezado leitor, levaremos em consideração a sua solicitação.
Parabéns pelas edições de agosto e setembro da Continente, igualmente
eRRAtA Na página 25, da edição nº 119, a primeira reportagem da série sobre tatuagem teve sua última frase suprimida. O texto completo seria: “No Rio de Janeiro, contudo, já existiam esses trabalhadores especializados, alguns menores de idade, como constatou o cronista João do Rio, na reportagem Os tatuadores, de 1908, que pode ser lida na coletânea A alma encantadora das ruas”.
As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone
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colaboradores
Alejandro Zambrana
camilo Soares
Flávia de Gusmão
Luís Augusto Reis
Fotógrafo profissional , trabalha na Prefeitura Municipal de Aracaju e no Governo do Estado de Sergipe.
Fotógrafo, doutorando em Cinema e professor do curso de Cinema da UFPE
Jornalista, editora assistente e crítica de gastronomia do Jornal do Commercio
Pesquisador, doutor em Teoria da Literatura e professor de Teatro da UFPE
e MAiS Ana Lira, jornalista e fotógrafa. André Dib, jornalista. célio Pontes, ator, arte-educador, designer, especialista em Economia da Cultura e gerente de teatros da Prefeitura do Recife. chico Porto/2nafoto, fotógrafo. christianne Galdino, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural. Gilson oliveira, jornalista e revisor. Guilherme carréra, jornalista. Laerte Silvino, ilustrador e quadrinista. Leo caldas, fotógrafo. Mariana camaroti, jornalista, radicada na Argentina. olívia Mindêlo, jornalista, mestranda em Sociologia. orlando Senna, diretor, roteirista e produtor de cinema. Atualmente, é presidente da Tal-Televisión América Latina. Rafael teixeira, jornalista.
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dominique chateau
“a hipermontagem atual é histérica” Professor da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, pensador francês analisa o cinema atual sob o ponto de vista da filosofia da arte e da semiótica texto Camilo Soares e André Dib
con ti nen te
Entrevista
Revolução e cinema. Assim foi Maio de 68 para o então universitário Dominique Chateau, que dividia seu tempo entre gritos sobre barricadas e sessões de cinema no Quartier Latin de Paris. Naqueles tempos conturbados, assistiu ao filme O homem que mente, dirigido pelo escritor do novo romance francês Alain Robbe-Grillet, que muito o impressionou, pois não compreendia como o filme funcionava. Foi assim que o estudante de Filosofia e professor de Matemática se apaixonou por essa arte enigmática. Pediu a um amigo que o iniciasse no mundo do cinema. O colega respondeu que, como o diretor da Nouvelle Vague Claude Chabrol disse que só eram necessárias quatro horas para se aprender cinema, ele lhe dedicaria apenas esse tempo. A breve lição foi determinante. Hoje, professor doutor da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e autor de diversos livros sobre estética, filosofia da arte, semiótica e estudos cinematográficos, Chateau esteve no Recife como convidado especial para proferir a palestra de abertura do 14° Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), organizado
pelo curso de Cinema da UFPE. Apesar dos 42 anos de imersão na sétima arte, de teorias que entram e saem de moda e dos novos paradigmas como a internet, o filósofo de 62 anos parece guardar o impulso original de sua cinefilia: “Até hoje, a grande razão de meu interesse é que amo o cinema. Acho que temos sorte por viver na época do cinema. Isso é verdadeiramente extraordinário”. continente Como o cinema pode ser utilizado como matéria para a filosofia? Como podemos pensar em filosofia a partir do cinema? DoMiniQUe cHAteAU Minha ideia é inversa. É usar a filosofia para pensar o cinema. Seria, por exemplo, pegar Platão, Kant, Heidegger ou Derrida como fundamentos da filosofia para ver se funcionam num filme. O que proponho é a teoria do cinema para extrair a filosofia. A montagem é um exemplo interessante para se pensar nisso. Quando Lev Kuleshov ouviu a palavra “montagem”, pronunciada pelos operadores de câmera franceses que foram trabalhar na Rússia, teve uma espécie de iluminação, ao entender que não designava apenas
uma operação técnica, como editing em inglês pode supor, mas uma ideia que indicava uma teoria fundamental do cinema e uma estética. É a partir disso que se deve tirar uma filosofia da montagem. continente Por que privilegiar essa teoria? Você acha que a montagem é a base do cinema? DoMiniQUe cHAteAU Não é privilégio, mas acho que o cinema moderno começa historicamente com a montagem. Mesmo aquele cinema que vai na direção de não utilizar a montagem vem dessa teoria. continente É o que diferencia o cinema de outras artes? DoMiniQUe cHAteAU Há montagem em outras artes, como na música e nos romances. Enquanto isso, houve uma tendência em dizer, com o Neorrealismo e a Nouvelle Vague, que a montagem ficou menos importante. Era mais ou menos o que achamos na oposição entre imagem-tempo e imagem-movimento de Deleuze. Então, a montagem não é todo o cinema. Mas Deleuze deve se mexer na sua tumba com a
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camilo soares
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hipermontagem feita no audiovisual de hoje, com efeitos extravagantes e decupagem rápida. Também chamo isso de montagem histérica. Isso é utilizado até nos canais de informação. continente Isso se aproxima da montagem de atração de Eisenstein? DoMiniQUe cHAteAU Sim, é verdade que foi Eisenstein quem inventou isso. Mas, para ele, tinha um sentido e uma ideologia, como na famosa cena de Outubro, na qual Kerensky se compara a Napoleão. Não existe tal ideologia para o cinema comercial. Ficou fora de moda. continente Glauber Rocha antecipou no título de seu célebre livro O século do
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continente O cinema brasileiro teve alguma influência em seus estudos? DoMiniQUe cHAteAU Alguns doutorandos brasileiros, como Paulo Cunha e atualmente Renato Guimarães, apresentaram Glauber de uma forma que eu não percebia. Antes o via simplesmente como um cineasta vanguardista que quebrava a estrutura lógica do filme. Mas a aparente incoerência modernista escondia arquétipos místicos e religiosos da cultura brasileira que desconhecia. continente O diretor Luc Besson compara os sites por onde se baixam gratuitamente filmes com traficantes de drogas. Você acha que a pirataria ajuda o cinema, tornando-o mais acessível, ou representa um perigo?
Entrevista cinema (1983) qual seria a arte do século 20. Para você, qual será a arte do século 21? DoMiniQUe cHAteAU Quando vemos a história das artes, não há necessariamente uma arte por século. Acho que estamos numa época de disseminação da arte por todos os lugares. Não haverá, a meu ver, uma só arte do século 21, mas uma dispersão de artes que se desenvolvem por todos os lugares. O que podemos perguntar é: será que é uma arte? Isso corresponde ao que Walter Benjamin chamou de estetização. Ou seja, tudo é estetizado hoje. Esse belo bairro (Recife Antigo), que está sendo renovado, também está sendo estetizado, como um lugar turístico. O cinema será, então, um elemento de estetização entre outros.
DoMiniQUe cHAteAU Não estou de acordo com o Luc Besson, pois acho que isso é como lutar contra moinhos. A pirataria não foi criada por piratas malvados, que querem destruir a indústria do filme, mas foi criada pelo próprio instrumento da web. A internet é um fluxo de informação de toda natureza com a qual podemos nos ligar de diversas maneiras. Foi a internet que criou essa facilidade. Não são traficantes os que a utilizam, mas gente normal que busca informação. Na universidade, dávamos aulas com filmes em película 8mm e depois 16mm. Diziam que não tínhamos o direito, pois deveríamos cobrar ingresso. Depois teve o VHS e o governo nos mandava parar de
fazer bibliotecas de VHS, pois era ilegal. Depois chegou o DVD e fomos para a internet encontrar velhos filmes que nem saíam comercialmente. Agora, isso não pode mais. Mas tal fato nunca nos impediu de usar esses meios de forma pedagógica. Eu nunca vendi um filme, exibo para os estudantes. Não sou um traficante. continente A internet também criou espaços para um novo tipo de crítica, qualquer um pode postar seus comentários e análises. Antes, isso era restrito àqueles que tinham acesso à escrita para jornais e revistas. Que impactos esse fenômeno terá sobre a teoria do cinema? DoMiniQUe cHAteAU É uma questão difícil, pois evolui rapidamente. No que concerne à França, acho que não
“Para eisenstein, a montagem frenética tinha um sentido e uma ideologia. isso ficou fora de moda. (...) A aparente incoerência modernista de Glauber escondia arquétipos místicos e religiosos da cultura brasileira” mudou muito, pois há revistas de cinema e editoras que ainda têm poder e legitimidade em relação a sites. A internet ainda tem muitos problemas, como sites que não são controlados. Na Wikipedia, por exemplo, há muitos textos que, quando lidos por especialistas, se revelam aproximativos ou completamente errados. E não se sabe quem escreveu. O mesmo acontece com os blogs. Às vezes, encontro um tipo que escreveu uma má crítica sobre um de meus livros. Eu leio, mas para mim não tem nenhuma importância. Agora também começam a aparecer textos, referências, e até livros, que também são uma espécie de pirataria. Não sei se durará, mas ainda há instâncias de legitimação que deixam de lado o
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que não é bom. Não sei o quanto isso vai durar. Para mim, a internet ajuda a trabalhar mais rápido, pelo acesso a referências e mesmo para solucionar dúvidas. Mas devemos tomar cuidado, pois quando aceleramos, podemos ser menos precisos. O futuro nos dirá.
incessante, mas sem nenhuma profundidade. É apenas um espetáculo de sangue e de morte.
continente Como a internet e os games influenciam o cinema e sua teoria? É algo que vai ficar ou só uma moda? DoMiniQUe cHAteAU Não é uma moda. Acho que a tentativa de trazer a terceira dimensão vem do videogame. É uma vontade de efeitos na simultaneidade, o que remete de novo à hipermontagem. Muitos filmes partem disso, mesmo que nem sempre sejam filmes bemresolvidos. Outras coisa é em relação à violência no cinema recente, que se dá em dois níveis. Uma, em relação à montagem, uma montagem histérica, uma violência visual da qual Benjamin
continente No Brasil, houve uma grande polêmica com o filme Cidade de Deus. Alguns teóricos defenderam ironicamente que se tratava da cosmética da fome, em alusão à estética da fome de Glauber Rocha. A teoria de hoje tem medo da estética? DoMiniQUe cHAteAU Não posso responder sobre um filme que infelizmente não vi. Mas ouvi falar nessa polêmica e a noção de cosmética é muito interessante.
Fotos: reprodução
continente Você viaja bastante, o que o coloca em contato com outras cinematografias e outras formas de pensar o cinema. Você acha que a estética do filme é ligada a uma cultura local ou o cinema é uma arte universal? DoMiniQUe cHAteAU Não diria universal, pois o cinema é uma arte nascida da modernidade ocidental, mas que se espalhou muito rápido e se universalizou. A técnica foi criada entre a França e os EUA, depois veio
diferentes e isso influencia a maneira de filmar, como a câmera na altura do tatame nos filmes de (Yasujiro) Ozu.
a montagem nos filmes por (Edwin) Porter e Griffith. Mas, rapidamente, ele se espalhou e apareceu uma cinematografia na Ásia, na América do Sul. Há pontos de estética em comum. Algo por exemplo que, apesar de ser francês, acho sufocante é o fato de que para onde eu for, Japão, Tunísia ou Espanha, só escuto falar de Deleuze. Mas isso significa que há possíveis pontos em comum. Mas penso também que há estéticas específicas. O cinema asiático, por exemplo, parte de formas de pensar e de ver a realidade que não são as mesmas. Gosto muito de uma disciplina que se chama de proxêmica, que é a relação que temos com o espaço a partir do corpo e do olhar. Penso que tal relação não é a mesma em países
já falava em sua época sobre os filmes de Chaplin e seus feitos visuais, que causam um certo traumatismo ótico. Por outro lado, há a própria representação da violência. Nos jogos, os jovens estão acostumados a matar o tempo todo, o que nos faz aceitar uma violência visual. Acho que é uma mudança de geração. Claro que não estou dizendo que isso influi nos crimes. continente Foi o que disseram de Laranja mecânica, de Kubrick? DoMiniQUe cHAteAU Laranja mecânica foi um filme que causou uma forte impressão, mas aí se trata de uma obra de arte. É um filme profundamente psíquico, que remói fantasmas. Kill Bill, por outro lado, tem uma violência
continente Também já ouvimos muitas críticas sobre os filmes de Wong Kar-Wai, que seriam estéticos demais para serem bons... DoMiniQUe cHAteAU É um velho debate sobre qual o limite entre o estético, onde há um certo trabalho e esforço para produzir impressões, emoções e sensações, e o que é do estetismo, ou seja, uma espécie de excesso. Essa crítica sobre a cosmética foi também feita contra outros cineastas, como no cinema italiano de uma certa época, quando muitos diziam que Antonioni é estético e Fellini é estetismo. Falar da pobreza, por exemplo, pediria um cinema herdeiro de Rossellini, que se apaga diante do mundo e tenta mostrá-lo como ele é. É um tanto falso, mas Rossellini falava: “As coisas estão aí. Por que manipulá-las?” Ou seja, se acrescentarmos muita firula ao mostrar o povo e a pobreza, caímos no estetismo. Esse acréscimo pode se dar nas imagens, quando fazemos belas tomadas de favelas por exemplo; pode ser também na montagem, em um documentário muito bem-articulado. Tem gente, então, que pensa que, quando temos um tema pobre, devemos nos adaptar formalmente a essa pobreza, buscar uma certa consonância com o tema. continente Você concorda com isso? DoMiniQUe cHAteAU Eu diria que pago para ver. Aí, retorno a Kant, que dizia algo que acho fundamental: “Na estética, queremos examinar as coisas com nossos próprios olhos”. Na estética, não há respostas gerais. Temos que ver. Ver e discutir. Quando diziam que Fellini era estetismo, eu não concordava, pois há em seus filmes algo de muito profundo e psicanalítico.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
cOn ti nEn tE
rAriDADeS De noeL
Livro
Os 100 anos de nascimento do cantor e compositor Noel Rosa, lembrados na matéria de Débora Nascimento, nesta edição, também são o destaque do site da Continente durante o mês de dezembro. Um dos principais nomes do samba brasileiro, o carioca morreu precocemente aos 26 anos. Conheça na página eletrônica da revista gravações do autor de Com que roupa? e Fita amarela, que já estão em domínio público, juntamente com o único choro composto por Noel Rosa, intitulado Choro (Baianinha).
Leia o prefácio de Alfredo Bosi para as obras de Lima Barreto Diário do hospício e O cemitério dos vivos, reeditadas em volume único pela Cosac Naify.
Conexão
PortFÓLio Confira outros trabalhos da artista plástica e fotógrafa Amanda Melo, que discute o corpo e a sua relação com o espaço.
Veja esses e outros links em www.revistacontinente.com.br
AnDAnçAS virtuAiS
PASSADo
SHoWS
LiterAturA
MÚSicA
Vídeos antigos são organizados por ano no Youtube time machine
Para conferir as setlists de shows em todo o mundo
Revista abriga coleção de entrevistas com autores
yttm.tv
setlist.fm
theparisreview.org/interviews
dragontape.com
Um grande nicho da internet é a nostalgia. O Youtube, por exemplo, é cheio de preciosidades históricas, como comerciais da década de 1970, clipes dos anos 1980 e vídeos ainda mais antigos. Para quem quer ir além do fragmento, ou seja, para quem pretende mergulhar no acervo de toda uma época, a indicação é o Youtube time machine. Criado por Justin Johnson e Delbert Shoopman III, o site permite que o usuário navegue por anos e décadas, definindo se quer assistir a eventos esportivos, comerciais, músicas, notícias ou filmes postados no site de compartilhamento.
Feito a partir de colaborações dos usuários, o Setlist.fm é útil para quem aguarda a chegada de uma turnê internacional no Brasil ou quer se manter informado sobre as performances dos seus cantores e bandas preferidos. Com mais de 185 mil listas de músicas, os internautas podem pesquisar as apresentações por artista, turnê, local ou data. Além disso, as contribuições podem ser feitas a partir da criação de novas setlists ou correções e acréscimos nas já existentes.
Criada há mais de 50 anos, a Paris Review é uma das mais respeitadas revistas sobre literatura no mundo. Apesar de publicar ficção e poemas, sua seção mais conhecida é a de entrevistas. É quase impossível pensar em um autor norteamericano ou inglês que não tenha falado à revista sobre sua obra e sobre a criação literária, sem contar a presença de nomes de outros locais do mundo, como Gabriel García Márquez, Pablo Neruda e Umberto Eco. O acervo está disponível no site da publicação, organizado por décadas.
As mixtapes, fitas com uma seleção pessoal de músicas, foram resgatadas há algum tempo pela internet. Atualmente, diversos blogs publicam arquivos com canções em MP3, prontas para serem ouvidas em iPods e computadores. O Dragontape simplifica esse trabalho, permitindo que os internautas criem uma mixtape de até três horas, composta só de vídeos do Youtube. Para compor os áudios, o site oferece uma plataforma de edição simplificada, além de integração com redes sociais, como o Twitter e o Facebook.
Site facilita edição de coletâneas pessoais dos internautas
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blogs cuLturA oglobo.globo.com/cultura/xexeo/
Editor do Segundo Caderno, Artur Xexéo fala de cultura com humor, destacandose a seção Talk Show, com entrevistas por e-mail, e a Dona Candona viu, com comentários sobre novelas – mesmo as ruins.
QuADrinHoS ilustrissimo.blogspot.com
coM A PALAvrA, oS ProDutoreS O site Produção Cultural no Brasil traz mais de 100 entrevistas com nome das diversas áreas artísticas e de todo o país producaocultural.org.br Antes de virem a público, livros, discos, filmes, exposições e peças passam
por um longo processo, que vai desde a criação artística até a articulação da cadeia produtiva – processo diferente do vivido pelo consumidor, que só tem contato com o resultado final. O projeto Produção Cultural no Brasil, coordenado por Fábio Maleronka Ferron, se propõe a mostrar em que consiste a atividade do produtor cultural, personagem-chave dessa cadeia, promovendo também discussões sobre o seu papel no cenário atual. Parceria entre a Casa da Cultura Digital de São Paulo e o Ministério da Cultura, o site mostra esse panorama a partir da reunião de entrevistas com 100 profissionais e nomes ligados à área. Assim, além da reunião dos depoimentos em vídeo, que têm de cinco a oito minutos e foram transcritos na íntegra, a página utiliza as redes sociais e seu blog para ouvir os comentários do público. O projeto ainda planeja o lançamento de cinco livros, com entrevistas mais longas, que também devem ficar disponíveis na internet. Entre os entrevistados, estão o dramaturgo Zé Celso Martinez, o tradutor e poeta Paulo Henriques Britto, o artista plástico e cineasta Cao Guimarães e os produtores Nelson Motta e Luiz Carlos Barreto, além do ministro da Cultura, Juca Ferreira, e do ex-ministro Gilberto Gil. DiOGO GUEDES
Colaborador constante da revista New Yorker e da Folha de S.Paulo, Fido Nesti mostra seu traço no blog Ilustríssimo. Além de ilustrações, expõe os seus quadrinhos, como Loucas de amor, parceria com Gilmar Rodrigues.
PoLÍticA culturaebarbarie.org/blog/
Alexandre Nodari aborda cultura, política e literatura no seu blog, o Consenso, só no paredão!. Lá, divulga o autointitulado “planfleto político-cultural” O sopro, que reúne colaborações voluntárias.
DeSenHo oglobo.com/blogs/anotandogente/
Munido de seu moleskine, o quadrinista Bruno Drummond anota frases ouvidas ao acaso em ruas e ilustra os personagens que encontra no seu caminho. O resultado são desenhos que funcionam como crônicas irônicas.
sites sobre
letras de música DEBATE
POPULAR
INSTRUMENTOS
songmeanings.net
letras.terra.com.br
cifras.com.br
O SongMeanings traz letras de artistas internacionais e propõe que os leitores discutam os seus significados.
Um dos principais portais do gênero em português, o Letras.mus.br mostra listas das letras e dos artistas mais acessados.
Junto com as letras, o Cifras ensina a tocar músicas em violão, guitarra, baixo, bateria, flauta, cavaquinho e até gaita.
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movimento e resistência TexTo Olívia Mindelo
eleger imagens que ajudem a colocar o leitor-espectador na trajetória de uma artista
contemporânea é uma tarefa tão espinhosa quanto instigante. Toda escolha traz uma exclusão implícita. E isso parece mais evidente quando se tem que mostrar alguns dos trabalhos realizados em diferentes linguagens, num período de quase 10 anos. Esse é o tempo em que a pernambucana Amanda Melo, 32, vem se inserindo no circuito de artes visuais, a partir de criações cujo ponto de partida (ou chegada) geralmente é o corpo; ou melhor, a ação e o movimento (e a resistência) decorrentes de seu deslocamento no espaço. Uma poética que se constrói ora com a presença declarada da artista em performances ou fotografias, ora sorrateira em desenhos ou objetos. Nascida no município de São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife, Amanda já desenvolveu e expôs seu trabalho em diferentes cidades – do Brasil e do exterior. A seleção que aqui se apresenta é um dos possíveis olhares em torno de sua obra. É como captar o frame de um processo em ebulição, com a ajuda da própria artista, que contribuiu bastante para traçar uma leitura sobre suas criações ao longo desses anos. Há desde trabalhos inéditos, como a fotografia de Round 4 (2010), em que ela se expõe deitada como modelo sobre um boi arredio, a obras do início da carreira – é o caso de Notícias de isolamento, um registro fotográfico realizado em 2003, com bonecas que “tentam” se mover enroladas numa fita isolante preta. O trabalho é
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A fotografia de ação foi realizada na praia de Brasília Teimosa, no Recife
Nestas páginas 2 a 4 ReSiDÊnciA ARtÍSticA
Durante sua estada em Belo Horizonte, em parceria com o artista cearense Yuri Firmeza, desenvolveu o trabalho Álbum 21.10.2008
5 BODY ART Nos trabalhos de Amanda Melo, o corpo tem papel central, seja o da própria artista ou de outras pessoas, como em Tópico naval
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IMAGENS: rEprodução
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con ti nen te
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um desdobramento da performance Isolante, à qual a artista ficou associada durante muitos anos – haja vista o impacto da ação em que ela se lançou no caos urbano com o corpo nu coberto de fita isolante preta até os cabelos. Cada vez mais “diluído”, como ela mesma diz, o corpo também está presente de
forma indireta na série de desenhos Sal é mar (2009), feitos por ela dentro da água salgada com lápis aquarelável. Resultante do balanço das ondas, a partir de um percurso litorâneo feito em nove praias da costa brasileira, o trabalho foi desenvolvido para o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e trouxe vários outros a reboque, como as fotos de Em paragem e
Tópico naval (2009/2010). De uma forma ou de outra, a trajetória de Amanda Melo situa o corpo numa espécie de limbo, entre sua negação e exaltação. Mas, relembrando o que o artista Artur Barrio já disse em relação à body art brasileira, é um suporte em que está muito mais o corpo que transpira do que o que padece.
6 ROUND 4 Na obra, apresentada na feira SP Arte, Amanda Melo é fotografada em cima de um touro 7 a 9 SAL É MAR A série de desenhos, feitos dentro da água salgada com lápis aquarelável, foi criada para o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco
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RepRodução
ArAcy de AlmeidA
Para o resto da vida “Peguem nosso dinheiro e sumam!” A súplica foi feita ao Weezer por James Burns, um excêntrico internauta norte-americano, que lançou a inovadora campanha virtual pelo fim do grupo de rock alternativo. Divulgada no site de arrendamento Thepoint, a nota assinada por Burns se baseia no seguinte raciocínio: caso cada um dos 852 mil fãs que compraram Pinkerton, álbum clássico de 1996, doassem 12 dólares, o Weezer teria garantida uma aposentadoria milionária, de 10 milhões de dólares. Ainda segundo a nota, Burns estaria cansado de ver “os amigos decepcionados ano após ano”, com as declarações repetitivas do líder Rivers Cuomo (a cada lançamento, ele costuma dizer que fez o melhor disco desde Pinkerton). O blockbuster do Weezer, por sinal, está em vias de debutar, com direito a relançamento superproduzido. A ironia é que o baterista da banda, Patrick Wilson, acolheu a ideia – desde que a oferta seja dobrada, o que, segundo o músico, propiciaria uma aposentadoria deluxe ao Weezer. Apesar da ampla discussão que a curiosa iniciativa gerou nos fóruns virtuais, de acordo com o contador do site, apenas 1% da quantia necessária foi arrecadado. Em 1996, o guitarrista Johnny Ramone justificou o fim do lendário quarteto liderado por ele sob a alegação de que “certas bandas ficam ridículas depois de tanto tempo”. Parece que o Weezer já teve seu tempo. tHiAGO LinS
cOn ti nen te
A FRASE
“o que a gente esconde é mais ou menos o que os outros descobrem.”
Conhecida como a maior intérprete das músicas de Noel Rosa e pelo uso indiscriminado de gírias em seu linguajar original, a ex-jurada dos programas de Chacrinha e Sílvio Santos, falecida em 1988, mostrou-se certa vez irritada pelo retorno de um cheque emitido por ela. “Tenho certeza de que tinha dinheiro suficiente em conta para cobri-lo”, esbravejava. Ao mostrar o cheque a um dos amigos, ele descobriu o enigma: “Aracy, você escreveu ‘duzentos mangos’ em vez de duzentos cruzeiros”. (Luiz Arrais)
Balaio cAdê Bowie? o povo quer saber: david Bowie aposentou-se ou não? desde 2004, quando teve um infarte durante a turnê do fantástico show do Cd Reality (2003), o roqueiro parou de fazer concertos e lançar discos. A última notícia foi a de que estaria gravando um Cd na Alemanha, mas essa informação data de janeiro de 2009 e, até agora, nada. Bowie, que desde 1964 nunca deixou de trabalhar, é apenas visto raramente, em tapetes vermelhos, envergando ternos ao lado de sua elegante esposa, a modelo somali Iman. (débora Nascimento)
André Breton
c co on nt tiin neen nt tee d deezzeem mBBR RO O 220 0110 0 || 220 1
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evolução dA esPécie uma das maiores polêmicas entre evolucionistas e criacionistas no século 20 completou 85 anos em julho. Conhecida como “o julgamento do macaco”, terminou com a condenação do professor norteamericano John Thomas Scopes, que, ao invés de seguir a Bíblia e ensinar a origem divina do homem – como determinava a Lei Butller, que vigorou nos euA de 25 de março de 1925 a 1º de setembro de 1967 –, insistiu em difundir em comunidades religiosas a teoria da evolução das espécies, de darwin. Com o título O vento será sua herança, o episódio foi tema de peça na Broadway, bem-sucedida produção cinematográfica e ganhou três versões televisivas. (Gilson oliveira)
cRiAtuRAS
tudo Pelo PAlAvrão Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor... esses são alguns dos nomes a que se atribui a autoria de um artigo sobre o palavrão, encontrado em vários sites e blogs. o texto também tem mais de um título: Os palavrões e Direito ao palavrão, entre outros. Alguns, inclusive, não abrem mão do... palavrão. Achando pouco o número de autores, o leitor pedro Giglio postou no site Bambuzau a seguinte informação: o texto é de um “cara daqui do Rio (de Janeiro), chamado pedro Ivo Resende”. Giglio dá outras dicas sobre o mais novo autor: “Tinha uma coluna chamada Loser, publicada no finado E-Fanzine e no Cucaracha Zine”. ou seja, o palavrão é de todos, não é de ninguém... é uma instituição nacional e pQp! (Go)
o clérigo Byrne o músico, compositor, produtor, escritor, artista plástico, ex-vocalista dos Talking Heads, dono do selo de world music Luaka Bop e entusiasta do ciclismo david Byrne ostenta, desde agosto, mais um título: o de clérigo. Atendendo ao pedido do amigo Mauro Refosco, cantor da Forró In The dark, banda brasileira de arrasta-pé radicada em Nova York, Byrne solicitou (via internet) uma ordenação como pastor da universal Life Church, da Carolina do Norte, para que pudesse celebrar oficialmente a união entre o músico e a coreana Suyeon Kim. “por uma taxa extra, eu poderia receber um adesivo notificando guardas de trânsito que sou parte do clero, mas não tenho carro”, disse Byrne em seu blog. “Gostaria de oferecer meus serviços a outras necessidades: casamentos gays, héteros, exorcismos e confissões, mas por enquanto vou parar por aqui.” (Yellow)
laerte, em cross-dressing Por Laerte Silvino
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ArqueologiA Patrimônio pré-histórico Parque Nacional do Catimbau, área ambiental e turística de 62 mil hectares no sertão pernambucano, abriga dezenas de sítios com pinturas rupestres, vestígios milenares do homo sapiens no Nordeste TEXTo Danielle Romani FoTos Leo Caldas
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cOn capa ti nEn tE o parque nacional do catimbau
é dotado de uma beleza pétrea, imponente, agreste. Seus imensos paredões de rocha, cânions, vales e planícies, são indiscutíveis atrativos para o homem moderno, que dispõe na região de um santuário ambiental e turístico. Mas a atração humana pelo local é bem mais antiga. Há décadas, o Catimbau passou a ser visto como um importante laboratório para os estudiosos da pré-história nordestina, que vêm descobrindo, em toda sua extensão, dezenas de sítios com pinturas rupestres e vestígios milenares do homo sapiens. “O Catimbau é um patrimônio não apenas para o Nordeste, mas para o Brasil”, afirma Marcos Albuquerque, coordenador do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e um dos pioneiros na área, desde que, no final da década de 1960, passou a percorrer
em 1969, começaram as pesquisas no Vale do catimbau, onde foram encontrados, nos anos seguintes, mais de 20 sítios pré-históricos os 62 mil hectares do então Vale do Catimbau – como ainda continua a ser chamado –, que se encontram distribuídos por três municípios do sertão pernambucano: Buíque, Tupanatinga e Ibimirim. “Em 1969, começamos as pesquisas no Vale a partir dos relatos de guias e moradores. Nos anos seguintes, encontramos mais de 20 sítios préhistóricos, entre eles o batizado de PE-48-MXa, localizado dentro de uma caverna, onde obtivemos datação de 6.640 anos BP(Before Present).” Nesse sítio, foram achados esqueletos – incluindo o de uma mulher, que foi doado ao Museu de Buíque – , sepultamentos em posição fetal, material lítico lascado e fogueiras.
aLcoBaÇa
O trabalho de Marcos abriu caminho para a pesquisa de outro local, hoje considerado o mais importante núcleo
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de estudos pré-históricos da região: o sítio Alcobaça, que reúne um grande painel, com dezenas de pinturas e gravuras sobrepostas, realizadas em épocas diversas, por diferentes homens pré-históricos. Além de vestígios de fogueiras, enterramentos secundários – em que foram obtidas datações por carbono 14 – apontam ter havido ocupação humana entre 4.243 mil a 880 anos BP. O estudo da área foi realizado em 1989 por Gabriela Martin, responsável pela montagem e criação do Núcleo de Arqueologia da UFPE, em 1970. Num artigo publicado na revista Clio Arqueológica, de 2005, ela o descreve como um sítio a 800 metros sobre o mar, localizado no pé de um monte,
num vale fechado em forma de U, com aproximadamente 70 metros de comprimento e 14 de largura, com altura entre 8 a 10 metros, que teria servido de abrigo para vários grupos durante quatro milênios. “As pinturas são os vestígios mais visíveis, de maior impacto, porém, o mais importante em Alcobaça são os enterramentos secundários e as datações, que nos possibilitam entender as sucessivas passagens humanas. Pelos indícios de ocupação intensa, situação e acumulação de registros rupestres – gravuras e pinturas – nas suas paredes e blocos caídos, esse abrigo merece uma atenção especial e uma escavação arqueológica demorada e completa”, explica.
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PArA eNTeNDer oS TerMoS TÉCNiCoS Assim como as demais ciências com linguagem específica , a Arqueologia nem sempre é compreensível aos leigos. A sigla BP, largamente utilizada nesta reportagem, refere-se ao termo inglês Before Present, ou antes do presente, em português. Ela começou a ser mundialmente utilizada a partir de 1950, ano em que o químico Willard Frank Libby (19081980) obteve a primeira datação radiocarbônica na Universidade de Chicago. Em 1960, devido à descoberta, ele receberia o prêmio Nobel de Química. Deve-se prestar atenção para outra faceta desta sigla: todas as datas seguidas do termo BP, referem-se ao ano de 1950 como marco, quando a sigla foi criada por Libby, e não à época atual. Já o termo enterramentos secundários refere-se a casos em que os ossos foram retirados de uma sepultura inicial, e novamente enterrados no local. Quanto à era chamada de Pleistoceno, período em que está inserida a maioria dos achados arqueológicos, vai de 2 milhões de anos a 11 mil anos BP. O Holoceno, fase mais recente desses achados, é o nome atribuído aos últimos 11 mil anos da história da Terra. (DR)
As pesquisas realizadas por Gabriela Martin foram o começo de estudos mais aprofundados no Catimbau. Mas são apenas uma ínfima parte do que se tem disponível no Vale e em Pernambuco. Por causa das enormes possibilidades de estudo no Estado, um amplo mapeamento arqueológico sobre os sítios pernambucanos foi iniciado em 2009 por uma equipe de profissionais comandada pela professora francesa Anne-Marie Pessis. Patrocinado pelo Programa Nacional de Excelência, uma das linhas disponibilizadas pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia (Facepe) para pesquisas do porte, o trabalho coordenado por ela
promoverá, num primeiro momento, o mapeamento de todas as áreas com grafismos rupestres no Estado, incluídas todas as localidades do Catimbau, o que permitirá conhecer mais sobre vários sítios.
oUtRaS ÁReaS
O rio São Francisco foi um centro de atração e caminho natural de grupos pré-históricos. Tanto que uma das regiões mais importantes de estudos encontra-se em Petrolândia, localidade que abriga a mais antiga descoberta arqueológica em território pernambucano. Foi lá, na década de 1930, que o etnólogo Carlos Estevão realizou escavações na Gruta do Padre. Na década de 1960, o
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Igrejinha do Vale do Catimbau é um dos diversos atrativos do parque nacional
Nesta página 2 aLcoBaÇa
Sítio é considerado o mais importante local de estudos préhistóricos da região
arqueólogo Valentin Calderón tornou a escavá-la. Posteriormente, entre os anos de 1982 e 1986, a professora Gabriela Martin, então coordenadora do projeto Itaparica de Salvamento Arqueológico em Pernambuco, comandou novas escavações à gruta, com resultados satisfatórios. “A Gruta do Padre teve duas ocupações diferentes e delimitadas. Na fase mais antiga, compreendida entre 7 mil a 4,5 mil BP, serviu como abrigo de caçadores. No segundo período, entre 4 mil e 2,5 mil BP, teve o mesmo uso. Muito depois, ela foi ocupada como necrópole durante um longo espaço de tempo, possivelmente a partir de 2 mil BP”, explica Gabriela Martin, no livro Pré-História do Nordeste do Brasil, publicado em 1996 pela Editora Universitária/ UFPE, e hoje na sua 5ª edição. Outra importante região de achados arqueológicos é a de Brejo da Madre de Deus, no Agreste pernambucano. Lá, segundo o IPHAN, existem mais de 50 sítios com pinturas rupestres, o que permite afirmar ser uma das maiores concentrações do Estado. O mais importante é o da Furna do Estrago, onde foram encontrados vários sepultamentos, que permitiram comprovar que ali estiveram pessoas. Outro local considerado fundamental para melhor compreender a pré-história pernambucana é a região de Bom Jardim, município do Agreste Setentrional. Nas décadas de 1960 e 1970, o arqueólogo Armand Laroche escavou vários sítios, entre eles o conhecido como Chã de Caboclo, no qual se identificou uma indústria lítica de artefatos unifaciais. Mas o principal achado de Bom Jardim foi a datação de 11 mil anos BP, a mais antiga de todo o território do Estado. Outra importante localidade a ser estudada pelos pesquisadores é a região de Araripina, cujo destaque se deve ao achado de cerâmicas no local, indicativo de que pode ter sido ocupada por grupos sedentários. “A presença de cerâmica pode revelar que a região foi ocupada permanentemente”, diz Gabriela Martin.
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cOn capa ti nEn tE IluStração: pedro melo / FoNteS: CadaStro IpHaN/gaBrIela martIN
PiNTurAS ruPeSTreS eM PerNAMBuCo Comprovação da presença humana, os registros rupestres são a parte mais atraente dos sítios pré-históricos, e dividem-se em duas grandes tradições: nordeste e agreste. A primeira é identificada pela variedade de temas representados, riqueza de enfeites e atributos que acompanham os humanos. As figuras são de pequeno tamanho, estão sempre em movimento, tendo como temas recorrentes, luta, caça, dança, sexo e animais. A segunda, que se acredita ser posterior à nordeste, apresenta técnica gráfica e riqueza temática de qualidade inferior. Suas principais características são os grafismos de grande tamanho, geralmente isolados, que não formam cenas, ou, quando elas existem, apresentam-se compostas por poucos indivíduos ou animais.
aFoGaDoS Da inGaZeiRa
No local, foi encontrado painel da tradição nordeste, com diversas pinturas.
BUÍQUe No Sítio alcobaça, no Vale do Catimbau, situado ao pé de um monte, num vale fechado em forma de u, está a 800 metros de altura. apresenta paredes cobertas por grafismos da tradição agreste. as pinturas foram feitas em épocas distintas. datações radiocarbônicas a partir de carvão vegetal, coletadas no local, registraram ocupação do sítio desde 4.243 a 880 anos Bp.
petRoLÂnDia
a gruta do padre foi o primeiro sítio escavado em pernambuco, mas hoje se encontra sob as águas do lago de Itaparica. datações radiocarbônicas mais antigas do local são de 7.000 a 4.500 Bp.
iati
No Sítio Boi Branco, foi encontrada gravura da tradição itaquatiara, cujos eram usados pelos indígenas como sinal de orientação
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peDRa
BoM JaRDiM possui vários sítios, entre os quais se destaca o Chã de Caboclo, onde foram encontradas datações radiocarbônicas de até 11 mil anos Bp.
BReJo Da MaDRe De DeUS No município, existem inúmeros sítios com pinturas rupestres. o local, conhecido como Furna do estrago, foi utilizado como cemitério indígena a partir de 2000 anos Bp.
No sítio de pedra redonda, foi encontrada pintura da tradição nordeste.
SeRRa Do cacHoRRo localizada em Caruaru, suas pinturas da tradição nordeste mostram cenas de sexo.
VentURoSa . Sítio Peri-Peri datações radiocarbônicas de fogueiras mostram ocupação humana entre 1.760 e 2.030 Bp. . Sítio Pedra do Tubarão Suas pinturas da tradição agreste apresentam grafismos geométricos que se assemelham a carimbos.
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NorDeSTe grafismos retratam cotidiano pré-histórico
Em toda a Região são encontradas inscrições que, para os arqueólogos, se constituem sobretudo um meio de comunicação
o número e a variedade de
grafismos rupestres encontrados no Nordeste são abundantes. Somente no Piauí, que possui o maior acervo mundial de pinturas em um único sítio, o do Boqueirão da Pedra Furada, 1.300 figuras foram catalogadas. Os temas abordam situações cotidianas ou ritualísticas dos homens préhistóricos: cenas de sexo, danças, caçadas, figuras geométricas e antropomorfos estão por toda a parte. O registro rupestre é a primeira manifestação estética da pré-
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sítios pré-históricos, e dividemse, segundo catalogação dos profissionais da área, em duas grandes tradições: a nordeste e a agreste. A tradição nordeste, explica Gabriela Martin, é facilmente identificada pela variedade de temas representados, a riqueza de enfeites e atributos que acompanham os humanos. As figuras são de pequeno tamanho, estão sempre em movimento, às vezes possuídas de grande agitação, como se gritassem. Entre os temas, luta, caça, dança e sexo são as mais recorrentes. Animais também são constantemente representados. Segundo Gabriela, as pinturas da tradição nordeste não representam apenas cenas do cotidiano. “Eles utilizavam grafismos cujos significados nos escapam e são repetidos em vários abrigos, aos quais chamamos de emblemáticos, como
É grande o número de grafismos rupestres no nordeste. no piauí, um único sítio tem o maior acervo mundial, com 1.300 figuras
história brasileira, mas a utilização do termo “arte” para designar essas pinturas e gravuras ainda é motivo de controvérsia entre especialistas. A arqueóloga Anne-Marie Pessis prefere analisar as representações como um meio de comunicação, uma pré-escrita. “A nossa tendência atual é não interpretar as representações rupestres, mas apenas descrevê-las”, complementa Gabriela Martin. Comprovações irrefutáveis da presença humana, esses registros são a parte mais atraente dos
se fossem logotipos da tradição nordeste”, diz a arqueóloga. Quanto à tradição agreste, que se acredita posterior à nordeste, apresenta técnica gráfica e riqueza temática inferiores. Suas principais características são os grafismos de grande tamanho, geralmente isolados, que não formam cenas ou, quando elas existem, apresentam-se compostas por poucos indivíduos ou animais. “Um grafismo emblemático da tradição agreste é a figura de um antropomorfo, às vezes de grande tamanho, por volta de um metro, de aspecto grotesco, estático, e geralmente isolado, assemelhando-se a uma figura totêmica”, explica Gabriela. O nome agreste deve-se à grande concentração de sítios com pinturas localizadas nos pés-de-serra, várzea e brejos do agreste de Pernambuco e do sul da Paraíba, mas elas
3 tRaDiÇÃo noRDeSte Sítio dos Homens sem Cabeça apresenta pinturas com variedade de temas, riqueza de enfeites e figuras em movimento
podem ser vistas por todo território nordestino, tanto no Agreste como nas áreas sertanejas semiáridas. No Vale do Catimbau, dezenas de sítios pré-históricos possuem registros das duas tradições. Durante muitas décadas, os painéis pré-históricos locais – então desconhecidos dos cientistas – serviram como palco para brincadeiras e passeios dos jovens da região. “Quando era criança e adolescente, vivia pelos pés-deserra. Passava pelos sítios rupestres e vinha sempre a eles, mas não sabia o valor que tinham. A gente olhava e dizia que eram os desenhos dos caboclos”, explica o guia Genival Constantino da Silva, 29 anos, natural de Buíque e morador do distrito chamado, igualmente, Vale do Catimbau, principal porta de entrada para o Parque, que ajudou dezenas de arqueólogos a alcançarem os sítios da região. No sitio Alcobaça, que apresenta pinturas e gravuras apenas da tradição agreste, feitas em diversos períodos, a figura do antropomorfo gigante pode ser conferida. A alguns quilômetros, no caminho do cânion, em um matacão no meio da caatinga, um painel com pintura da tradição nordeste, conhecida como homens sem cabeça, mostra uma cena de luta. Muitos outros poderão ser vistos pelos turistas que visitarem as trilhas do Parque Nacional do Vale do Catimbau. No mundo, duas pinturas pré-históricas são amplamente conhecidas. Em Altamira, na Espanha, na primeira caverna descoberta, em 1879, os desenhos reproduzem vários animais e foram feitos no teto, o que lhes rendeu o título de Capela Sistina da arte pré-histórica. Outra caverna conhecida é a de Lascaux, na França, que tem composição de caça, datada de 17 mil anos, a mais antiga que se tem conhecimento. As figuras brasileiras passíveis de serem datadas são mais jovens, remontam a 12 mil anos. DaniELLE ROMani
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cOn capa ti nEn tE FotoS: FumdHam/dIVulgação
SerrA DA CAPiVArA o MAior ACerVo De ruPeSTreS Do MuNDo existe uma divisão na história
da arqueologia brasileira que pode ser descrita como o antes e o depois do início das pesquisas na Serra da Capivara, no sudeste de Piauí, que começaram em 1973, quando a arqueóloga Niède Guidon, nascida em São Paulo, chegou à região e se deparou com a riqueza e diversidade dos resíduos da pré-história no local. “Em 1963, quando eu era arqueóloga do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, um visitante piauiense me contou que, na sua terra, eu poderia encontrar desenhos de índios nas rochas. Mostrou-me as fotos, vi que eram totalmente diferentes de tudo que havia sido publicado. Dez
anos depois, em 1973, consegui montar uma missão para explorar o local, no qual descobrimos 55 sítios com pinturas, o que foi suficiente para demonstrar a importância da região para a arqueologia americana”, relembra. Hoje, quase 40 anos depois, mais de 700 sítios arqueológicos, dos quais 590 com pinturas rupestres, foram encontrados na Serra da Capivara, que é considerada a extensão de terreno que concentra maior acervo de pinturas rupestres no mundo, e que pode ser equiparada, pela quantidade e diversidade dos achados, às mais importantes cavernas europeias. Para se ter uma ideia da riqueza dos sítios piauienses, basta dizer que, apenas na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, 1.300 figuras foram detectadas. Lá, também foram feitas prospecções que mostraram ser a ocupação humana no Brasil bem
mais antiga do que se pensava, a partir da descoberta de ossadas com 12 mil e 10 mil anos BP. Aliás, exatamente nessa região foi encontrada Zazá, a mulher mais antiga do Nordeste, cuja ossada possui 9.670 anos BP, e que só perde em antiguidade para outra famosa mulher brasileira, Luzia, localizada em 1975 no sítio Lapa Vermelha, em Minas Gerais, cujo esqueleto data 11.500 anos BP. Zazá, segundo conta Gabriela Martin, no livro Pré-História do Nordeste do Brasil, morreu junto a uma fogueira, quando um bloco de cerca de seis toneladas desprendeu-se do teto do abrigo, lançando uma onda expansiva que separou sua cabeça do tronco. Escavações na região também permitiram o estabelecimento de uma coluna cronoestratigráfica que registrou datas entre 59 mil a 5 mil anos BP. (DR)
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origeNS Antigas questões ainda sem respostas
Chegada dos grupos humanos à América tropical continua uma incógnita e um desafio para estudiosos da pré-história brasileira
o maior desafio dos pré-historiadores brasileiros é descobrir quando chegaram e como se espalharam os grupos humanos que viveram há dezenas de milhares de anos pela América tropical. “O que até agora comprovamos é que houve ocupação humana bem anterior ao que se pensava, o que obrigou os pré-historiadores americanistas a reformular as teorias tradicionais da Beríngia”, explica a espanhola, radicada no Brasil, Gabriela Martin. Na atualidade, já se sabe que a ocupação deve ter ocorrido por vários
trajetos, em diversos períodos. A tese mais conservadora é a de que o ingresso teria se dado em torno de 15 mil anos BP pelo Estreito de Behring – no caso da América do Sul, a data decresce para 12 mil anos BP –, que, na era das glaciações, se tornou um enorme istmo entre a Sibéria e o Alasca. A teoria da Beríngia foi reajustada. “Pressupõe-se que podem ter havido duas entradas pela Beríngia, em períodos distintos: a continental, que seria a mais recente, quando caçadores ultrapassaram a pé o istmo; e a litorânea,
quando balsas devem ter margeado a costa oeste americana, descendo até o extremo sul do continente”, explica Daniela Cisneiros, professora do departamento de Arqueologia da UFPE. Outro percurso provável é de que o homem teria chegado à costa da América do Sul proveniente do Pacífico Sul, navegando de ilha em ilha. Probabilidade que encontra respaldo em datações radiocarbônicas feitas na Austrália, Nova Guiné e Papua, que revelaram presença humana a partir dos 60 mil anos BP, e que poderiam justificar datações feitas no Sítio do Boqueirão da Pedra Furada, localizado na Serra da Capivara, Piauí, que registra a presença humana a partir de 59 mil anos BP. Seriam os piauienses descendentes dos oceânicos? “Por enquanto, é impossível responder com absoluta certeza se as duas datas têm correlação. As teses sobre as origens do homem préhistórico nordestino encontram-se em fase de construção”, responde Daniela.
paRenteS aFRicanoS
Doutora em Arqueologia pela Sorbonne, e presidente da Fundação Museu do
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hiSTóriA leNDAS MArCAM PeSquiSA eM CAMPo a pesquisa arqueológica do Brasil nasceu graças à curiosidade e persistência dos viajantes, naturalistas, etnólogos, geólogos e paleontólogos estrangeiros. E as primeiras versões criadas em torno do país vinham, quase sempre, envoltas em lendas e crendices. Os primeiros relatos sobre a préhistória brasileira misturam dados científicos com fantasias sobre civilizações perdidas. O mito fenício foi um dos primeiros a ser difundido, tendo sido reafirmado por vários pesquisadores. O alagoano Ladislau Neto, diretor do Museu Nacional do Rio, encantado com a cultura fenícia, defendeu a tese de que esse povo da antiguidade havia chegado à Paraíba e deixara inscrições no local. O viajante austríaco Ludwig Schwennhagen, que percorreu os sertões nordestinos nas décadas de 1910 e 1920, acreditava terem os fenícios chegado e se instalado, por mais de um milênio, no território brasileiro. No livro Antiga História do Brasil, de 1110 a.C. e 1500 d.C., publicado em 1928, Schwennhagen elabora um tratado sobre a viagem dos fenícios ao Brasil, e – impressionado com as formações geológicas do município de Piracuruca, hoje transformado no Parque Nacional de Sete Cidades – supôs que ali estariam as sete fabulosas cidades do império colonial fenício de além-mar. Suas pesquisas fantasiosas em torno de inscrições rupestres levou-o a imaginar a existência de várias cidades fundadas da união entre fenícios e troianos no Brasil, entre o Maranhão e o Piauí, das quais a mais importante seria Tutoiá. Com o tempo, ficou comprovado que tudo não passava de um delírio criativo do alemão.(DR)
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Homem Americano, a paulista Niède Guidon é considerada uma referência em estudos arqueológicos. Foi a principal responsável pela descoberta e mapeamento, nos anos 1970, dos sítios da Serra Capivara, no Piauí. Aos 78 anos, 50 deles dedicados ao estudo da pré-história brasileira, trabalha com teses ousadas. A mais polêmica delas afirma que o homo sapiens chegou à América muito antes do que se pensa, por volta dos 120 mil anos, e que teria vindo da Africa. Defende, também, que o desembarque teria acontecido em dois
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No sítio, vestígios de fogueira e material lítico remontam a 100 mil anos Bp
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desenhos de enterramentos encontrados no Sítio do Justino (Se)
pontos: no Caribe e no litoral norte do Brasil, próximo ao atual rio Parnaíba. A hipótese utilizada para fundamentar sua proposta se pauta no seguinte argumento: ela acredita que, há cerca de 150 –120 mil anos, o Oceano Atlântico foi afetado pelos avanços e recuos das glaciações, o que ocasionou a redução de até 150 metros dos seus níveis. Período
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em que várias ilhas afloram em toda a extensão oceânica, permitindo que levas de homo sapiens tenham atravessado e chegado ao Brasil em balsas. “Se, há alguns milhões de anos, espécies de primatas passaram da África para o Brasil, navegando sobre troncos de árvores, como afirmar que o homo sapiens não teria também atravessado o Atlântico utilizando balsas? O povoamento da Ilha das Flores (no Atlântico Norte) prova que o homo navega há mais de 840 mil anos”, afirma Niède, que detalha a chegada: ao aportar no Nordeste, alguns grupos seguiram pela costa e alcançaram a Amazônia, outros optaram por margear o rio Piauí, um dos afluentes do Parnaíba, que corria na grande depressão da planície periférica do São Francisco. Daí se espalharam por todo o território. Ela não tem, ainda, as provas consideradas irrefutáveis, as ossadas, que afastariam qualquer dúvida sobre a questão. Mas se convenceu de que estava certa ao encontrar evidências de presença humana, vestígios de fogueira e material lítico, remontando a 100 mil anos BP, no sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, na Serra da Capivara.
natUReZa aBUnDante
Se ainda não podem confirmar as rotas utilizadas para o povoamento da América do Sul, os arqueólogos afirmam com segurança que os primeiros homens que aqui chegaram assemelhavamse aos índios atuais. “Racialmente, pertenciam aos grupos mongoloides, como, aliás, todos os habitantes das Américas anteriores à colonização europeia”, diz Gabriela Martin. Apesar dessa proximidade, não é possível fazer correlações entre os povos pré-históricos e as tribos hoje conhecidas. “Existe ainda um abismo entre a pré-história e a história indígena, pois se quisermos fazer uma ligação entre as pinturas rupestres e as tradições indígenas, não encontraremos nada, pois nenhuma tribo apresenta esse tipo de registro. Nos inúmeros relatos dos portugueses durante o Descobrimento, fala-se de cerâmica, mas não das pinturas em cavernas, apenas das corporais. Portanto, diríamos que, nesse caso, ainda temos muito a pesquisar e nada a afirmar”, explica Daniela Cisneiros.
O clima do Pleistoceno superior também era diverso do atual. Pesquisas realizadas por Niède Guidon sobre o paleoclima, no sudeste do Piauí, comprovaram que a paisagem da planície piauiense era de savana, com tufos de arbustos recortados por zonas florestais. Um clima muito mais úmido do que o atual. A desertificação da região, portanto, foi um processo contínuo e lento que se estendeu pelos últimos milhares de anos. De uma forma geral, os chamados brejos de umidade foram fundamentais para a presença do homem, atuando como lugares de atração e concentração, em que as estratégias de sobrevivência dos préhistóricos puderam se desenvolver.
os arqueólogos afirmam que os primeiros homens que aqui chegaram assemelhavam-se aos índios atuais Tanto que localidades como a região serrana de Taquaritinga do Norte e Vertentes até Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, todas áreas de brejo pernambucano, foram habitat dos caçadores pré-históricos.
cULtURa pRiMitiVa
O cotidiano daqueles “guerreiros” não era fácil. É provável que tenham se deparado com animais desmesurados, como a preguiça gigante, que podia alcançar até quatro metros de altura, ou com o tigre-dentes-de-sabre e o mastodonte, visto que esses animais, considerados da megafauna, viveram no Nordeste no mesmo período do Pleistoceno, no qual o homo também circulava pela região. “O que não é garantia que tenham convivido com o homem”, ressalva Gabriela. Portanto, que ninguém se engane: apesar de caçador, nômade ou seminômade, o homem pré-histórico não se alimentava de grandes animais, como se fixou no imaginário mundial. Ele era o que se convencionou chamar de “comedor de microfauna” – roedores, caracóis, lagartos e insetos –, tal a quantidade de
pequenos ossos encontrados em alguns sítios arqueológicos. “No Novo Mundo – com exceção dos criadores de perus, no México e no Sul dos Estados Unidos; dos patos almiscarados, no México; e do rebanho de lhamas e alpacas, nos Andes Centrais –, não houve qualquer domesticação de animais com aproveitamento econômico”, aponta Gabriela. Com o passar do tempo, a agricultura incrementou o cardápio dos nossos ancestrais. Tudo indica que, no Nordeste do Brasil, ela se desenvolveu no terceiro milênio BP, com agricultores sobrevivendo a partir de pequenas roças de subsistência. A mandioca foi o principal cultivo e o alimento básico de grande parte daquelas populações. A cerâmica, também inventada na América, pode ter sido utilizada a partir do oitavo milênio BP, no Sítio do Meio, no Piauí, e em Santarém, na Bahia. “Deve-se aceitar a cerâmica como uma invenção autóctone e independente no continente sulamericano”, afirma Gabriela, que observa: “a constatação de cerâmica indica grupamentos sedentários”. O culto aos mortos, observado através dos enterramentos e disposição dos corpos, também fornece boas pistas sobre nossos antepassados. “Os conhecimentos que temos dos rituais funerários no interior do Nordeste apoiam-se principalmente em quatro sítios-cemitérios, entre eles a Gruta do Padre, em Petrolândia; a Furna do Estrago, em Brejo da Madre de Deus; além da Pedra do Alexandre, no Rio Grande do Norte, e do Sítio do Justino, em Sergipe“, enumera Gabriela. Na Gruta do Padre, os rituais funerários foram sempre secundários, ou seja, os ossos foram transferidos para o local, o que indica que a caverna era usada não como cemitério, mas como ossário. Já em Brejo da Madre de Deus, mais de 80 esqueletos possibilitaram o estudo dos rituais funerários. Os enterramentos mais antigos mostram corpos em posição flexionada, embrulhados em esteira vegetal. Recémnascidos eram enterrados em pequenas cestas de fibras de palmeiras, ou embrulhados em esteiras de ouricuri. “O ritual e o mobiliário fúnebre permitemnos inferir comportamentos sociais”, atesta Gabriela. DaniELLE ROMani
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História
TPN Por um estilo próprio de encenar 1
Fundado há meio século, o Teatro Popular do Nordeste propôs uma atuação de inspiração popular e universal, aliada a uma pedagogia da encenação texto Luís Augusto Reis
Há 50 anos, nascia o Teatro Popular
do Nordeste (TPN), embasado em duas principais motivações: a busca por uma maneira nordestina de interpretar e de encenar, e o compromisso de oferecer ao Recife um teatro profissional de reconhecível qualidade artística. Ecoando princípios do regionalismo de Gilberto Freyre, o manifesto de fundação do grupo, assinado por Hermilo Borba Filho e por Ariano Suassuna, propõe um teatro de inspiração popular, ligado à tradição da cultura local, mas de franca aspiração universal, assumindo-se como tributário dos grandes momentos da dramaturgia no Ocidente. Embora esse documento não explicite um programa de ações pedagógicas
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propriamente ditas, o tom professoral das argumentações parece prenunciar algo que a história se encarregaria de comprovar: o TPN representou, no panorama do teatro moderno em Pernambuco, uma verdadeira escola, responsável pela formação de muitos artistas e professores que deram feição à atividade teatral pernambucana nessas últimas cinco décadas. Em certa medida, é possível pensar o TPN, inicialmente, como um campo de investigação prática do então recém-criado Curso de Arte Dramática da Universidade do Recife – hoje Universidade Federal de Pernambuco. Entre os sócios fundadores do grupo, encontram-se dois estudantes e quatro professores desse curso. Além dos seus
principais líderes, Hermilo e Ariano, que ensinavam, respectivamente, História do Teatro e Teoria Teatral, outros dois docentes do curso ajudaram a criar o TPN, o dramaturgo José Carlos Cavalcanti Borges, responsável pela cadeira de Psicologia, e o escritor Gastão de Holanda, que lecionava a disciplina Teatro Português e Brasileiro. Representando os alunos, a atriz Leda Alves e o dramaturgo Aldomar Conrado. Mas a presença, no TPN, de pessoas ligadas ao curso superior de Teatro é muito mais ampla. Vários alunos e mestres aparecem nas fichas técnicas dos seus espetáculos. Janice Lôbo, professora de Indumentária, assina cenários e figurinos de diversas montagens; Alfredo de Oliveira,
professor de Caracterização, e Maria José Campos Lima, professora de Técnica Vocal, também dão suas contribuições, sobretudo nos primeiros trabalhos do grupo; e Joel Pontes, professor de História da Literatura Dramática, tem destacada participação como ator. Fora de sala de aula, em ambiente menos formal e menos hierarquizado, as diversas competências desses artistasdocentes podiam aparecer de modo mais completo e mais espontâneo, maximizando o potencial formativo inerente a todo o processo de criação de um espetáculo teatral. Na segunda e mais prolífica fase do grupo, a partir de 1966, quando é inaugurada sua sede, em um casarão na Avenida Conde da Boa Vista, o caráter
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Hist贸ria
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dirigida por Hermilo, peça tinha no elenco José Pimentel, leonel albuquerque, Baby rosa Borges e Clênio Wanderley
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AtoReS
leda alves (e), no espetáculo O melhor juiz, o rei, foi um dos nomes revelados pelo tPN
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antes de fundar o tPN, teatrólogo mostrou sua vocação pedagógica no teP
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eM 1948
Hermilo Borba filho (ao centro) comanda ensaio com elenco do teP
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educativo do TPN se fortalece e se expande. Nesse espaço, são oferecidos cursos, seminários e palestras. Abrem-se portas para a literatura, para a música e para as artes visuais; discutem-se acaloradamente cultura popular, filosofia, religião e política. No palco e na plateia, o aprendizado se adensa, à medida que a experimentação estética torna-se mais ousada. Curiosamente, a essa altura, os professores do Curso de Arte Dramática, à exceção de Janice Lôbo, praticamente deixam de participar dos espetáculos montados pelo grupo. Até Ariano Suassuna, um dos mais vibrantes mentores do projeto, se retira do cotidiano produtivo do TPN, alegando discordar de certa aproximação com “a linha de Bertolt Brecht”. Sua fraterna amizade com Hermilo Borba Filho, todavia, não é abalada por tal decisão, nem a admiração que um tem pelo outro é diminuída. Agora, cada vez mais envolvido com suas pesquisas sobre os espetáculos populares do Nordeste, Hermilo deixa ainda mais evidente sua vocação pedagógica, traço revelado, na década de 1940, em sua atuação à frente do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). É, portanto, o seu pensamento mais maduro, essencialmente dialógico, que norteará a intensa atividade do
nos anos 1960, o grupo anunciou oposição tanto à “arte alienada” quanto à “arte de propaganda” e “demagógica” TPN, em seus melhores anos. Suas ideias, expostas por meio de estudos, como o livro Diálogo do encenador (1964), ou por meio de suas peças, como A donzela Joana (1964), transcendem às discussões meramente acadêmicas e ganham uma imediata dimensão prática, sendo reprocessadas a cada espetáculo produzido, mesmo quando Hermilo não os dirige. Por um lado, o modelo do Théâtre National Populaire, de Jean Vilar, cuja determinação era popularizar, na França, os clássicos da literatura dramática universal; por outro, o encantamento com a improvisação dionisíaca dos brincantes nordestinos, especialmente o Capitão Antônio Pereira, do Boi Misterioso de Afogados. Discordando da percepção de Ariano, Hermilo declara, em diversas oportunidades, que o acentuado caráter épico e anti-ilusionista de suas novas encenações tinha origem,
ANdorrA
Peça de Max frisch foi traduzida por Mário da silva e dirigida por Benjamim santos
não nas teorias do teatrólogo alemão, mas na arbitrariedade poética e no despojamento cênico das representações dramáticas do povo nordestino. “Meus atores não agirão como médiuns de sessões espíritas, deixandose tomar pelo personagem. Não. Eles brincarão (no sentido do jogo medieval e dos folguedos populares), criticarão permanentemente o personagem, criarão o processo de afastamento e desinibirão o público”, diz ele, na ocasião da estreia de O inspetor, de Gogol, em 1966. Assim, entre o amor ao texto e o prazer da comunicação direta com os espectadores, entre a racionalidade da escrita e a espontaneidade do gesto, o TPN foi percorrendo um caminho estético invariavelmente desafiador, evitando o atalho das facilidades, das soluções prontas.
neM À eSQUeRDA, neM À DiReitA Em relação à ideologia, a atitude não era de menor complexidade. No calor político da década de 1960, o grupo anuncia oposição tanto à “arte alienada” e “covarde”, provável referência ao Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), quanto à “arte de propaganda”, “demagógica”, crítica decerto endereçada ao Teatro de Cultura Popular (TCP) – grupo teatral do Movimento de Cultura Popular
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(MCP). “Acreditamos que a arte não deve ser nem gratuita nem alistada: ela deve ser comprometida, isto é, deve manter um fecundo intercâmbio com a realidade, ser porta-voz da coletividade e do indivíduo, em consonância com o espírito profundo de nosso povo”, lê-se no manifesto de fundação. Esse posicionamento logo predispõe Hermilo e seus companheiros contra setores mais conservadores da direita e, ao mesmo tempo, contra setores mais combativos da esquerda. No entanto, o próprio
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História repertório levado à cena, indicando uma postura de resistência à opressão política do governo militar, parece suficiente para esclarecer a verdadeira orientação ideológica do grupo. Dessa forma, a pedagogia do TPN, equilibrada entre a prática e a reflexão, parece ter se caracterizado sobretudo pela valorização das perguntas, bem mais do que pela satisfação com as respostas encontradas. Nesse ambiente, sempre produtivamente tensionado, se formaram, ou se aperfeiçoaram, espectadores, atores, diretores, dramaturgos, teóricos e técnicos. E os verdadeiros discípulos de Hermilo souberam encontrar seus próprios caminhos, herdando do mestre, entre outras qualidades, a inquietação artística, a postura livre de ideias preconcebidas e a enorme capacidade de se entregar ao teatro. Não importa se o objetivo inicial, de encontrar “uma maneira nordestina de interpretar”, não tenha sido completamente alcançado; tampouco se o desejo de implantar um profissionalismo autossustentável na cena recifense tenha se revelado demasiadamente utópico. As sementes plantadas seguem dando frutos, de geração em geração, criando e recriando, não apenas uma, mas várias maneiras nordestinas de fazer teatro. Eis decerto um dos mais importantes ensinamentos legados pelo TPN. Algo que, por si só, justifica plenamente a comemoração dos seus 50 anos de fundação.
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CRONOLOGIA Espetáculos que cumpriram temporada no Teatro do Parque 1960 – A pena e a lei, de Ariano Suassuna, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1960 – A mandrágora, de Nicolau Maquiavel, traduzido e dirigido por Hermilo Borba Filho. 1961 – O processo do Diabo, espetáculo composto por três peças: Em figura de gente, de José Carlos Cavalcanti Borges; A primeira lição, de José de Moraes Pinho; e A caseira e a Catarina, de Ariano Suassuna. Dirigido por Hermilo Borba Filho, que também escreveu o prólogo, os interlúdios e o epílogo do espetáculo. Espetáculos que cumpriram temporada no Teatro de Arena do Recife 1962 – A bomba da paz, escrito e dirigido por Hermilo Borba Filho. 1962 – Município de São Silvestre, de Aristóteles Soares, dirigido por José Pimentel. Espetáculos que cumpriram temporada na sede do TPN 1966 – O inspetor, de Nikolai Gogol, traduzido por Zygmunt Turkow e Isaac Paschoal, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1966 – A revolta dos brinquedos, de Pernambuco de Oliveira e Pedro Veiga, dirigido por Rubens Teixeira. 1966 – O cabo fanfarrão, escrito por Hermilo Borba Filho, a partir do Miles Gloriosus, de Plauto, dirigido por Rubens Teixeira.
1966 – O cavalinho azul, de Maria Clara Machado, dirigido por Rubens Teixeira. 1967 – Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen, traduzido e dirigido por Hermilo Borba Filho. 1967 – O santo inquérito, de Dias Gomes, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1967 – Antígona, de Sófocles, traduzido por Ariano Suassuna e dirigido por Benjamim Santos. 1968 – Andorra, de Max Frisch, traduzido por Mário da Silva e dirigido por Benjamim Santos. 1968 – O melhor juiz, o rei, de Lope de Vega, traduzido por Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo José, e dirigido por Rubem Rocha Filho. 1969 – Dom Quixote, de Antonio José da Silva, o Judeu, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1969 – Haja pau, de José de Moraes Pinho, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1969 – Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1969 – Cabeleira aí vem, de Sylvio Rabello, dirigido por Hermilo Borba Filho. 1970 – Buuum, espetáculo composto por duas peças: Auto do salão do automóvel, de Osman Lins; e Enquanto não arrebenta a derradeira explosão, de José Bezerra Filho. Dirigido por José Pimentel. Espetáculo estreado no Teatro Deodoro, em Maceió 1975 – A caseira e a Catarina, de Ariano Suassuna, dirigido por Hermilo Borba Filho. Montagem que teve ainda uma apresentação em Natal, no Teatro Alberto Maranhão, e outra no Recife, no Auditório da TV Jornal do Commercio.
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JOÃO FALCÃO De mansinho, a consagração Como a carreira do diretor foi construída sobre percalços que se confundem com os dos personagens de sua peça Clandestinos texto Rafael Teixeira
Passam poucos minutos das 20h quando João Falcão me recebe em seu apartamento, no Rio de Janeiro. Dali a algumas horas, ele vai ao Recife, prestigiar um casamento. Artisticamente, ele também está em trânsito. Seu mais recente projeto, Clandestinos, peça ainda em cartaz com enorme sucesso após mais de dois anos, viraria série de televisão dali a três semanas – estreou em novembro, na Rede Globo, e termina este mês. Um documentário dirigido por ele, com o registro de toda a trajetória do espetáculo até se transformar em seriado de TV, deve ser lançado daqui a seis meses. Para quem conhece Falcão, a desenvoltura com que este pernambucano de 52 anos transita por vários meios já virou uma marca registrada. Autor e diretor premiado, roteirista, compositor, também fez uma carreira bem-sucedida em publicidade. “Profissionalmente, eu não consigo fazer algo sem risco. Tenho que inventar alguma dificuldade. Isso é bom, mas você se dilui um pouco. Se eu me dedicasse a uma só área, circularia mais naquele meio, e isso talvez facilitasse algumas coisas. Mas jogar em várias posições me trouxe mais felicidade do que problemas”, avalia. Tal como o próprio Falcão, outras obras de sua lavra já tinham se metamorfoseado antes de Clandestinos. A dona da história, peça que ele escreveu e dirigiu, virou filme com roteiro dele; A máquina, um livro de sua ex-mulher, Adriana Falcão, foi transformado por
ele em peça e, depois, em filme; a peça Homem-objeto, que ele também assinou e dirigiu, serviu de base para a série televisiva Sexo frágil.
SeMeLHAnÇAS
Muito da trajetória de Falcão se revela em Clandestinos, cujo tema é a busca de artistas iniciantes por seu lugar ao sol. Quase todos os personagens são atores às voltas com aquelas questões típicas do começo da vida profissional – numa brincadeira metalinguística, eles são interpretados por elenco também de iniciantes. Há, ainda, um diretor com a cabeça imersa em dilemas artísticos. Qualquer semelhança não é mera coincidência. “É complicado entrar num estúdio da Globo para dirigir o programa mais cool da televisão brasileira da época, com um elenco incrível, sendo que você é baixinho, nordestino e estreante”, diz Falcão, referindo-se à Comédia da vida privada, série baseada na obra de Luis Fernando Verissimo, uma de suas primeiras experiências na TV. Não à toa, escrever Clandestinos foi catártico. “Um amigo que me conhece muito bem, depois de ver a peça, disse que eu não precisava mais fazer análise.” Mas ele voltou a fazer terapia depois de Clandestinos. Penúltimo de 13 filhos de um médico com uma dona de casa, João Barreto Falcão Neto nasceu no Recife, mas a família morava em Tiúma, uma vila operária no município de São Lourenço da Mata, a 30 km da capital. Ali, na
infância e juventude, divertia-se pelo cultivo da música e do cinema. Mais do que uma diversão juvenil, a música seria uma marca em sua carreira – são de Falcão composições que entraram na peça A dona da história e no filme Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes. Ele dirigiu um musical, Cambaio, junto com Adriana, com canções de Chico Buarque e Edu Lobo, e uma peça musicada, Divina Elizeth, baseada na vida de Elizeth Cardoso. Em Clandestinos, a maioria dos atores canta e toca instrumentos. Se o cinema era presente e a música, mais ainda, o teatro era algo distante da realidade de Tiúma, resumindo-se aos autos de Natal encenados no Cine Rex. Num deles, o pequeno João foi colocado às pressas para substituir um menino que faltara. Diante da atuação, a mãe disse que ele não dava para a coisa. Foi uma de suas poucas experiências como ator. Anos mais tarde, ele faria um teste para atuar em Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues. Passou, mas tem autocrítica suficiente: “Eu atuei muito mal, tenho certeza”. Nunca mais subiu num palco para encenar.
AudiÇõeS LotAdAS
Para chegar até o elenco de Clandestinos, Falcão esteve do outro lado da bancada, comandando os testes. Corria o ano de 2008, e ele fora convidado a gerenciar o extinto Teatro Glória, no Rio. Para ocupar os horários vagos, teve a ideia de abrir oficinas de atuação, que resultariam
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em uma peça. Um site foi colocado no ar, convocando o público para as audições. Ele imaginava, no máximo, 200 inscrições. Apareceram mais de 3 mil candidatos. No fim, restaram 14. Foi apenas a segunda experiência de Falcão com audições – o que nunca o impediu de ser uma catapulta de talentos. “Trabalhei com monstros consagrados, mas também com muita gente iniciante”, diz Falcão, confirmando seu apreço pelo risco. No primeiro grupo, Paulo Autran (no filme A máquina), Marco Nanini (em O burguês ridículo e em Uma noite na lua), Marieta Severo (em A dona da história e, depois, em Quem tem medo de Virginia Woolf, esta novamente com Nanini) e Glória Menezes (em Ensina-me a viver, baseada no filme homônimo). Já no segundo grupo, ele ajudou a projetar pessoas como Arlindo Lopes, coprotagonista de Ensina-me a viver, e Alinne Moraes, que estreou pelas mãos de Falcão no cinema, em Fica comigo esta noite, e no teatro, em Dhrama. Falcão também foi o responsável pelo lançamento dos então desconhecidos Wagner Moura, Lázaro Ramos e
“trabalhei com monstros consagrados, mas também com muita gente iniciante”, diz João Falcão
personagens, assim como os atores que os interpretam, saíram de cidades pequenas. A primeira mudança de Falcão, nada tinha a ver com questões profissionais: foi com a família, aos 13 anos, para o Recife – onde ele acabaria descobrindo a boemia. “Com uns 15 anos, tomei meu primeiro porre.” Começou a se dedicar mais à música, fez serenatas, participou de pequenos Vladimir Brichta, que integraram o elenco festivais, compôs. Na escola técnica, fez mais amigos que gostavam de música. de A máquina, em 2000. A intimidade com o assunto o tornou “Primeiro, conheci Vlad. Fui popular entre as moças. conversar com ele, fiz vários elogios. Ele Uma das que ele conheceu, em disse: ‘Tu tem que conhecer Wagner’. Fui ver o Wagner em uma peça, e depois 1977, foi Adriana, sua futura mulher. O encontro se deu na fila da matrícula para conversei com ele. Falei: ‘Cara, você a faculdade de Arquitetura. A amizade, é muito bom’. Ele disse: ‘Tu tem que no entanto, só evoluiu anos depois para conhecer Lazinho’”, conta, às risadas. o namoro e o casamento. “Na hora em Os três voltariam a trabalhar ainda por que a gente se conheceu, percebi que diversas vezes com Falcão – um hábito, ele era especial”, elogia Adriana, com aliás, que ele cultiva com muitos atores quem Falcão dividiu inúmeros projetos que já viraram amigos. profissionais ao longo de mais de 20 anos itineRAnte e teve duas filhas, Clarice e Isabel. “A Mudanças de cidade, como as que Adriana foi, é e sempre será minha maior vivenciaram Brichta, Ramos e Moura, influência de vida profissional e pessoal. após o sucesso, estão em pauta É a criatura mais talentosa que conheço”, também em Clandestinos. Alguns derrama-se Falcão.
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CLANDESTINOS
o espetáculo, de 2000, lançou vladimir brichta, Wagner Moura, lázaro ramos e gustavo Falcão
Para selecionar o elenco da peça que virou série de televisão, João Falcão recebeu mais de 3 mil inscriçôes para audições
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Mas o interesse pelo teatro veio por meio de outra moça, uma namorada de faculdade que iria fazer uma adaptação de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. O diretor precisava de um violeiro. Falcão topou o convite. “Eu vi que o teatro era fácil, era só juntar algumas pessoas e ter uma boa ideia.” Na mesma época, ele assistiu à peça Macunaíma, de Antunes Filho, e conheceu o grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone. “O Asdrúbal me despertou o fascínio pelo trabalho de grupo e pela temática contemporânea. Quando vi Macunaíma, descobri a figura do diretor, inventei que queria fazer aquilo”, diz. A terceira influência veio do Vivencial, grupo experimental de teatro de Olinda, surgido em 1974, sob influência da contracultura. “Era um grupo muito louco, muito diferente, underground mesmo. Tinha travesti, policial, um clima meio cabaré. Acho que deles herdei o gosto pela margem, pela clandestinidade”, afirma.
PiRiQuito XiQue
A estreia como autor foi em 1981, com a comédia Muito pelo contrário –
um enorme sucesso no Recife. Em sua curta temporada no Rio, tinha gente sentada até no chão. No último dia, estiveram o comediante Agildo Ribeiro e o ator, diretor e produtor de TV Augusto César Vannucci, que foram falar com Falcão. “Eles queriam que eu participasse de uma reunião sobre um programa que eles iriam fazer na Globo. Fui, mas fiquei mudo. Depois, eles me pediram um texto. Dei a desculpa da faculdade e recusei. Foi uma proposta que nunca mais me fizeram. Eles queriam que eu escrevesse qualquer coisa”, lembra. Mas, a partir daí, a carreira de Falcão começou a deslanchar no Recife – sempre com base no risco. Depois da comédia Xilique peba piriquito xique, dirigiu peças alheias, compôs músicas para espetáculos de outros e teve uma experiência bem-sucedida artisticamente, mas de fracasso financeiro com a Caixa Mágica, uma espécie de teatro-bar em que havia performances e peças, que durou seis meses. Também fez teatro infantil, começando com O pequenino grão de areia, que teria
diversas remontagens, assim como A ver estrelas, escrita sob encomenda. Com o dinheiro conseguido com o texto de A ver estrelas, Falcão foi para o Rio de Janeiro, em meados dos anos 1980. “Foi uma merda. Morei por um tempo na casa de um amigo, mas logo ele teve que entregar o apartamento. Não conseguia montar meus textos. Passei fome, pegava ônibus circular para poder dormir nas viagens. Mas eu não queria voltar sem ter acontecido no Rio. Depois de quase um ano, desisti e voltei para o Recife”, conta, com uma ponta de frustração. De volta, ele conseguiu emprego numa agência de publicidade. E fez carreira brilhante na área – enquanto escrevia e dirigia algumas poucas peças, como Mamãe não pode saber, outro sucesso. Como publicitário, Falcão ganhou prêmios e fez dinheiro. Mas a comichão da mudança se fazia notar. “Se passaram seis, sete anos. Até que você diz: ‘Não aguento mais fazer isso’ ”. A oportunidade de ir para o Rio de Janeiro de novo surgiu por meio do diretor Guel Arraes, apresentado a Falcão por amigos comuns. Ele aceitou o convite de Guel para colaborar nos textos de alguns episódios do programa Brasil especial, que adaptava textos da literatura brasileira. Durante meses, Falcão conciliou o trabalho com a publicidade, viajando constantemente para o Rio. Àquela altura, era casado com Adriana, quando, em meados dos anos 1990, Guel sugeriu que se mudasse para a capital carioca. A proposta era que ele ganhasse mais para dirigir alguns dos episódios da Comédia da vida privada, além de ajudá-lo na direção conjunta de uma peça com Marco Nanini, uma adaptação da obra de Molière, que viria a ser O burguês ridículo. Falcão aceitou. O resto é história: o “clandestino” no Rio, o “baixinho, nordestino e estreante” se tornaria um dos autores e diretores mais admirados de sua geração. Um felizardo, segundo ele próprio – basta tomar, por comparação, os milhares de candidatos que ficaram de fora de Clandestinos, e que (ainda) não conseguiram deslanchar. “É uma parcela mínima de pessoas que consegue viver de arte no Brasil. E eu nem estou falando de fama, que isso é outra história. A fama é momentânea. Criar uma carreira, um vínculo com o trabalho, isso é que ainda é difícil.”
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PEDRO II Um hospital renascido
Referência da arquitetura pernambucana, centro hospitalar passa por reforma que preza pela manutenção do projeto original de 1847 texto Dora Amorim
Seria improvável que alguém
que passasse por ali, nas imediações do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, o Imip, não observasse a presença portentosa do edifício largo e de janelas em arco do Hospital Pedro II. Mas, até meados deste ano, essa visão era um tanto tristonha e vergonhosa: aquele prédio imenso e antigo abandonado, inútil, numa área do Recife que tanto demanda cuidado social, porque lotada de moradias pobres e modestas, de gente que precisa de todo tipo de suporte e assistência. O Pedro II ficou desativado por 28 anos. Depois desse hiato, que privou três gerações dos seus serviços, o hospital foi reaberto em agosto, recuperando uma das mais interessantes construções civis pernambucanas e seus usos. Projetado pelo famoso engenheiro José Mamede Alves Ferreira, responsável também por outras construções representativas do Estado – como a instituição de ensino Ginásio Pernambucano e o Cemitério de Santo Amaro –, o Pedro II era o que havia de mais moderno em termos de construção médico-hospitalar do século 19. O projeto original do engenheiro, datado de 1847, foi encontrado no acervo do Arquivo Público de Pernambuco e em nada
deixa a desejar em relação aos demais hospitais construídos na época. “José Mamede era antenado com o que acontecia de mais importante em termos de construção. O Pedro II tem, inclusive, um hospital-irmão, em Paris, o Lariboisière, construído em 1854. Daí a contemporaneidade dos projetos e do pensamento do engenheiro em relação ao resto do mundo”, observou Jorge Passos, arquiteto responsável pelo projeto de restauro e modernização do patrimônio, ao lado de Humberto Zirpoli. O arquiteto diz que, ao assumir o trabalho, soube que o seu maior desafio seria respeitar, ao máximo, as ideias de Mamede, sem comprometer a funcionalidade do hospital, tornando-o um eficiente centro de atendimento médico dentro dos padrões atuais.
inoVAÇÕeS Do SÉcULo 19
Após uma apurada pesquisa histórica, realizada através do estudo das plantas originais do prédio, foi definida uma diretriz de restauro que prezou pela manutenção do projeto original de 1847. Assim, durante as obras, foram deixados de lado vários apêndices e anexos construídos aleatoriamente, ao longo dos anos, para aumentar a operatividade do
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rEProdução
maíra gamarra
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a arquitetura é marcada pelas arcadas romanas
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No século 19, o Pedro ii funcionava como asilo. Hoje, destina-se a um hospital-escola 4
hospital. “A ousadia de abraçar um projeto de restauro se traduz em escolhas, tivemos que derrubar 4 mil metros quadrados de áreas construídas”, ressalvou Antônio Carlos Figueira, presidente do Imip. Graças às obras, o prédio entrará finalmente em processo de tombamento, iniciado em 1998, pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Foram três anos para restaurar um dos maiores exemplos do neoclassicismo imperial brasileiro. A partir da experiência na França, José Mamede projetou o Pedro II incorporando os ensinamentos modernos provenientes de pesquisas científicas realizadas na Europa.
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Seguindo os modelos da arquitetura neoclássica, ele é caracterizado, principalmente, pela presença das arcadas romanas em toda a sua fachada e interior. Contudo, desde o início, o projeto fez uso de materiais muito simples e só tem de importado o pórtico de entrada, feito em mármore de lioz, proveniente de Portugal. Esse pórtico é encimado por um relevo que traz a imagem de uma mulher que deposita moedas em uma caixa e tem ao seu lado uma criança de leite, símbolo da caridade, um dos pilares do atendimento público religioso. Até hoje, a obra do engenheiro José Mamede Alves Ferreira é respeitada pela inovação dos seus desenhos.
obras preservam o projeto original, mantendo sua funcionalidade e tornando-o eficiente para os padrões atuais Mas o grande segredo da arquitetura do Pedro II vem de conhecimentos trazidos do século anterior, como ressalva Jorge Passos: “Durante o século 18, o espaço hospitalar foi repensado. O médico Dr.René Tenon e o arquiteto Bernard Poyet perceberam que os ambientes destinados ao uso hospitalar tinham um problema
de contágio muito elevado, devido à umidade. Sendo assim, os dois desenvolveram estudos e teorias para redimensionar as enfermarias e o espaçamento entre elas, tudo para criar ambientes que permitissem uma melhor circulação, como os jardins. Além disso, foram separados pacientes por sexo e doenças, para evitar maiores problemas de contágio”. O Pedro II representou uma das primeiras aplicações corretas das ideias de Jacques René Tenon, preconizadas posteriormente pela Academia de Ciências da França, e que definiam a decomposição da planta dos hospitais em duas fileiras de enfermarias paralelas, uma para cada sexo, dispostas
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Em mármore de lioz, simboliza a caridade
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a área permite melhor circulação de ar entre os pavilhões
perpendicularmente e separadas por um amplo pátio central com jardins, que permitia a circulação de ar. Esses espaços podem muito bem ser utilizados para a reabilitação dos pacientes, como alternativa aos ambientes fechados dos hospitais. No
projeto inicial, Mamede idealizou 10 enfermarias, mas só seis foram construídas, recebendo nomes de santos. Durante as obras de restauro do prédio, foi possível localizar uma delas, a dedicada a São Anselmo.
HoSPitAL-eScoLA
Ao ser inaugurado em 1861, sob a tutela da Santa Casa da Misericórdia, o Pedro II recebia exclusivamente pacientes com doenças mentais. À época, as pessoas que apresentavam qualquer desvio comportamental
eram levadas a esses espaços “isolados”, para serem excluídas do convívio social. Contudo, com o passar dos anos e em função da sua dinâmica estrutura física, o hospital tornou-se a principal instituição de saúde da região, atendendo a pacientes em todas as especialidades médicas. Devido ao seu grande prestígio, o Hospital Pedro II transformouse, em 1920, num hospital-escola, passando a servir ao ensino médico da Faculdade de Medicina do Recife,
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salãO VIsITa DO IMPERaDOR “o novo hospital é obra magnífica”, disse Dom Pedro II, em passagem pelo Recife. Durante a estada na cidade, o imperador foi convidado a participar de um baile em sua homenagem, promovido pela Associação Comercial de Pernambuco, com o objetivo de arrecadar fundos para hospitais e orfanatos da região. Realizada em dezembro de 1859, dois anos antes da inauguração, no próprio Hospital Pedro II, a festa reuniu cerca de 2 mil membros da aristocracia pernambucana. Em uma sociedade escravocrata, senhores de engenho, barões e viscondes eram recebidos, enquanto uma multidão de populares se comprimia em frente ao
hospital. Segundo relatos de colunas sociais da época, o imperador dançou apenas cinco vezes, sendo algumas das privilegiadas a viscondessa da Boa Vista e a baronesa de Vila Bela. Ao fim da dança, essas damas depositaram em uma caixa suas joias como forma de doação para o hospital da Santa Casa da Misericórdia. Dessa visita, assim como dos primeiros anos de funcionamento do hospital, há pouquíssimos resquícios. Dentro do Pedro II, resta apenas uma pintura decorativa em uma das salas do segundo andar (foto), onde foi realizado o jantar , que antecedeu o baile, com o imperador e seus convidados. Esse local vai funcionar como enfermaria de neurocirurgia, possibilitando ao público o contato com um pedaço da história e a percepção do processo evolutivo pelo qual passou o hospital durante os seus 149 anos. (dA)
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a pedido de Otávio de Freitas, na época diretor da instituição. Em 1954, o Pedro II concentrou todos os serviços clínicos, de apoio e diagnóstico da Universidade Federal de Pernambuco, sendo denominado, então, de Hospital das Clínicas. Foi a partir daí que o projeto arquitetônico inicial de Mamede foi alterado, assim como entrou em colapso a administração do hospital. Para atender às necessidades da universidade, foram levantados prédios e outras estruturas que
descaracterizaram as ideias originais do engenheiro. A última construção que respeitou os seus conceitos foi a da capela, ainda na década de 1950. Em 1982, depois de diversos problemas administrativos, o Hospital das Clínicas foi transferido para o Engenho do Meio, local em que poderia atender as demandas de um hospital-escola. Teve início naquela década a desativação do Pedro II. Atuante por mais de 120 anos e considerado de vanguarda em sua inauguração,
o hospital passou todo esse período sem receber pacientes.“O fechamento do Pedro II nunca foi absorvido pela comunidade pernambucana e, para nós do Imip, a dor ainda era maior em função da vizinhança”, afirmou Antônio Carlos Figueira. Hoje, o hospital funciona acoplado ao Imip, instituição responsável pela sua reativação e que arrecadou recursos para as obras junto ao poder público, à sociedade e ao empresariado. Ele volta a ser um hospital-escola.
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SERGIPE O embate entre negros e índios
Festa do Lambe Sujo x Caboclinho ocorre anualmente, no segundo domingo de outubro, no município de Laranjeiras, interior do Estado, e tem cerca de dois séculos de história texto Ana Lira Fotos Alejandro Zambrana
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Um cheiro de melado vai chegando de mansinho à feira-livre, quando a manhã ilumina a cidade de Laranjeiras, em Sergipe. Pelo aroma, os vendedores sabem que é hora do Esmolado e preparam as suas doações. Um negro alto, com a pele brilhosa, vem amarrado pela cintura e estende uma cesta de compras aos comerciantes. Atrás dele, um índio de pele vermelha sustenta a corda durante o trajeto, que consiste em percorrer todas as bancas até que frutas, verduras, pedaços de carne, arroz, feijão e mesmo dinheiro sejam arrecadados pela dupla. O Esmolado é o ritual que sinaliza o embate entre negros e índios, na encenação da Festa do Lambe Sujo x Caboclinho, que ocorre a cada segundo domingo do mês de outubro, no interior de Sergipe. A festa dramatiza a guerra entre os índios que, sob a proteção dos jesuítas, rejeitaram o trabalho nas lavouras dos engenhos da região e os negros que, para fugir dos maus-tratos da escravidão e se vingar dos senhores de engenho, construíam quilombos em terras indígenas.
Laranjeiras é um dos berços da cultura negra sergipana, cujos traços aparecem em diversos festejos e rituais que ocorrem durante o ano Prometendo liberar as terras dos negros, os senhores trocavam favores com as tribos e agregavam guerreiros aos grupos, liderados por capitães-domato, até destruírem todos os quilombos localizados na região e enfraquecerem as tribos. Essa foi uma das táticas utilizadas para manter vivo o sistema escravocrata que, nas terras férteis de massapê e com acesso portuário privilegiado, garantiram durante quase três séculos o crescimento do comércio, a exploração da cultura da cana-de-açúcar, do coco e do gado nos engenhos. A cidade que hoje recebe o nome de Laranjeiras foi fundada em 1605, na região do Vale do Cotinguiba, distante cerca de 23 km de Aracaju. É a segunda cidade mais antiga de Sergipe
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e guarda um dos principais acervos da arquitetura colonial do estado. Este legado é da época em que ela foi um dos mais ricos distritos sergipanos, atraindo a elite política, econômica, científica e artística da região. Assim perdurou até o final do século 19, quando uma manobra política deu o título de capital a Aracaju e transferiu as benesses para o novo centro político.
PAtRiMÔnio iMAteRiAL
À cidade, além do patrimônio barroco a da experiência de grande centro comercial, foi deixada a herança cultural e religiosa dos negros que permaneceram na cidade. Laranjeiras é considerada um dos berços da cultura negra sergipana e seus traços aparecem desde a representação étnica até os diversos festejos e rituais que ocorrem no calendário local. Entre os elementos que mais se destacam, estão traços oriundos da tradição nagô, que influenciam manifestações populares como o cortejo das Taieiras, realizado em janeiro, e a tradição do Lambe-Sujo x Caboclinho. As origens da encenação podem ter até dois séculos de história. O
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que se vê, a cada segundo semestre em Laranjeiras, é uma intensa movimentação para a festa. Os mestres Zé Rolinha e Nininho, que coordenam os grupos dos lambe-sujos e dos caboclinhos, respectivamente, vão convocando os integrantes para organizar vestimentas, instrumentos e preparativos para os cortejos e os embates que ocorrerão na festa. Os lambe-sujos apresentam-se como um grupo cultural de origem nagô. O nome foi dado porque eles utilizam um pó preto misturado com sabão em pó e água para fazer a base negra sobre a pele e depois aplicam mel de cabaú para dar o brilho forte que é característico do grupo. Quando a cidade possuía um alambique, os participantes pilavam carvão e peneiravam para fazer a tinta. Depois, o carvão foi substituído por xadrez – um material utilizado pelos pedreiros para colorir piso – que é adquirido na cor preta. A pele negra ganha grande destaque na rua porque os lambe-sujos trajam um bermudão e uma gurita vermelhos e têm como instrumento de luta uma foice feita de madeira pintada de preto. As roupas
são confeccionadas em flanela, mas houve épocas da história da festa em que, na falta de dinheiro para adquirir esse tecido, panamá ou qualquer outro, os brincantes utilizavam sacos de açúcar para fazer as vestimentas. O tom vermelho era obtido tingindo o tecido com mangue (tinta) de sapateiro. Durante o cortejo, os lambe-sujos tocam instrumentos de percussão como atabaque, pandeiro, cuíca, ganzá, caceteira. Há algumas décadas, eles ainda eram feitos artesanalmente, com couro de boi ou de onça. Porém, nos últimos 50 anos, os participantes começaram a utilizar instrumentos de fabricação industrial. Os cantos são de domínio público e as melodias são ritmadas em maxixe e maracatu – que nada têm a ver com o baques executados em Pernambuco ou com outras variações de toques que são encontradas pelo Brasil. A única semelhança entre os lambesujos e os caboclinhos é o uso do mel de cabaú para dar brilho à pele, uma vez que a base da cor do xadrez utilizada pelos índios é vermelha. A simplicidade das roupas dos lambe-sujos contrasta
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Imagem sintetiza o sentido da festa, que encena conflitos entre povos sujeitados
Nestas páginas 2 -3 neGRitUDe
Os lambe-sujos usam uma mistura de ingredientes que dão a coloração escura à pele e remontam à origem nagô
com a roupa elaborada dos caboclinhos, que trazem referências à história da colonização do Brasil. Os cinturões, braceletes e cocares são adornados com penas de pavão ou de peru, miçangas, pedras, cordões dourados, moedas, entre outros. Uma união que, segundo o mestre Nininho, é uma forma criativa de lidar com o imaginário deixado pela ocupação do Brasil e os conflitos entre negros e índios nas terras sergipanas. Os arcos e flechas utilizados pelos caboclos são feitos com bambu, taquara ou cipó de goiabeira. Os instrumentos seguem o mesmo padrão de fabricação do grupo negro, mas como os caboclinhos participam da festa tocando apenas marchas de guerra, eles utilizam tambor e caixa como elementos
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percussivos. O desfile dos indígenas é mais comedido, com os participantes andando em fila e entoando cantos de batalha. Não tem a sensualidade do maxixe e nem as brincadeiras que permeiam o cortejo dos negros. Assim, os caboclos agregam um número grande de crianças e pré-adolescentes no grupo. E esta é quase uma regra na tradição do festejo: os mais novos começam nos caboclinhos e, quando estão perto da maioridade, migram para os lambesujos. Poucos são os que iniciam entre os negros desde cedo. Há relatos de participantes que fugiam da casa dos pais, fazendo a famosa “cama de travesseiros”, para apreciar a festa. A força dos lambe-sujos é tão expressiva que, dias antes do encontro, as pessoas circulam com guritas vermelhas pelas ruas de Laranjeiras.
DiAS De FeStA
Para acompanhar toda a encenação é preciso chegar ao município dois dias antes. O Esmolado sai às ruas na véspera do cortejo principal, às 5h da manhã. Os alimentos arrecadados são
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os taqueiros, armados com chicote de couro cru e ponteira, garantem que nenhum lambe-sujo saia do território estabelecido entregues na casa do rei dos lambesujos para o preparo da tradicional feijoada, que é servida no dia da festa. A quantia em dinheiro recebida pelos dois integrantes do Esmolado é dividida entre eles, o que faz com que o posto seja almejado por vários participantes dos grupos. Após o Esmolado, os lambe-sujos se preparam para ir à mata colher taquara e folhas de pindoba para construir a cabana que abrigará a batalha final. Logo após o almoço, eles seguem em direção à saída da cidade e atravessam o riacho Tramandaí em busca do material. A taquara é uma espécie similar ao bambu, mais grossa, que não armazena água. Para as folhas não murcharem antes
do final do embate, ela é sempre cortada na véspera do cortejo. A tarde do sábado, em geral, é dedicada à montagem da cabana, que hoje é construída no Largo do Quaresma, às margens do rio Cotinguiba. O processo de reurbanização da cidade forçou a festa a se adequar às exigências do município e, alguns dos locais onde os ritos e embates foram realizados no passado, hoje não são mais usados. Toda a festa, em si, vem passando por diversas mudanças. A população costumava deixar comida nas sacadas das casas para que os negros “roubassem” no alvorecer e depois procurassem os donos para negociar a devolução dos pertences. Hoje, isso não acontece mais e muitos participantes sentem saudades dessa etapa da encenação.
LAPADA De tAQUeiRo
O que existe de mais forte atualmente no festejo é a celebração na rua, que vira a noite do sábado para o domingo, aguardando o início do cortejo com a Alvorada. Pela simbologia da festa, a Alvorada é a tomada das terras de Laranjeiras pelos negros. Por volta
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SonS
O último confronto entre os dois grupos culmina com a prisão dos negros No desfile, os caboclos usam elementos de percussão e entoam marchas de guerra
das 3h da manhã, os lambe-sujos se concentram na frente da casa do mestre Zé Rolinha. Organizados em fila, eles esperam a ordem do rei para invadir a cidade. Ninguém se habilita a sair do lugar para evitar uma lapada dos taqueiros. Na festa, o taqueiro tem papel semelhante ao do feitor ou do capitãodo-mato, que, armado de chicote de couro cru e ponteira, garante que nenhum lambe-sujo saia do território estabelecido e nem que o povo invada a área do cortejo dos negros. A atuação dos taqueiros causa perplexidade a quem a vê pela primeira vez, porque as chicotadas são verdadeiras. Eles batem no chão e no ar para abrir caminho para o grupo e quem estiver na frente pode sair com o corpo marcado. Quando o desfile da Alvorada começa, às 4h da manhã, e os lambe-
sujos invadem a cidade, a relação com os taqueiros vira uma das atrações principais. A população corre, grita e instiga a atuação dos quatro feitores, que distribuem chicotadas entre sorrisos, olhares fortes e boas doses de ironia e sensualidade. A atuação deles, contudo, não pode ser vista apenas pela perspectiva da crueldade dos capitãesdo-mato, como ocorria pela tradição, porque a própria performance da festa agrega um tom de resistência e de fetiche às lapadas que cortam o ar. Não é raro ouvir jovens provocando os taqueiros. “Quero ver, bate!” é uma das frases mais ouvidas durante o caminho. O cortejo percorre parte do centro urbano de Laranjeiras. A população acompanha ou observa da sacada das casas. Cantos como “Samba nêgo/ branco não vem cá/ se vier/ pau há de levar” são entoados durante o percurso, que chega a ter 1h30 de duração. Os lambe-sujos, então, se recolhem para preparar o segundo desfile, que ocorre no meio da manhã. Na Alvorada, eles ainda não estão pintados para o combate, então, o cheiro do mel de cabaú invadindo as
ruas e pessoas correndo para evitar o melado são os primeiros sinais de que a mistura começou a ser usada.
iMPActo SenSoRiAL
A essa altura, outros visitantes começam a chegar à cidade. É possível notar quem já tem mais experiência com o festejo, porque esses sabem que não vão escapar do melado e usam suas peças de roupa velhas. Na concentração dos lambe-sujos, os corpos vão ficando cada vez mais brilhosos e adereços como chupetas de cores fortes, cachimbos, colares grossos de prata e óculos escuros completam a vestimenta. Quando o segundo cortejo começa, é impossível não se sentir inebriado pelo espetáculo visual e sensorial da festa. O cheiro, os toques da percussão, o colorido das casas, as roupas vermelhas, os adereços e o sol reluzindo nos corpos dos lambe-sujos causam um impacto forte. A hipnose, no entanto, não pode durar muito tempo, porque logo que o grupo se movimenta, os taqueiros lançam seus chicotes para abrir caminho. É nessa etapa que os negros imprimem marcas de suas mãos nos muros das
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A tradicional feijoada é servida para negros e caboclos
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As estreitas ruas da cidade são tomadas pelo cortejo dos lambe-sujos
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O brincante informa os companheiros sobre a chegada dos indígenas para os combates finais
casas, carros e roupas, conferindo à invasão um caráter de legitimidade. O segundo cortejo é liderado pelo príncipe dos lambe-sujos, que decide o rumo pela cidade. É ele quem acompanha o grupo para receber as bênçãos da mãe-de-santo no Terreiro de Santa Bárbara Virgem e do pároco na igreja da praça central. As orações são momentos importantes do festejo. Do outro lado da cidade, parte dos indígenas também se prepara para seu primeiro desfile. É a hora em que eles “tomam conhecimento” da invasão dos negros. Os dois grupos, com seus toques e cantos, seguem pela cidade. Os caboclinhos entoam “Preto correu,/ caboclo pegou” como marcha de guerra até chegarem ao local onde é servida
a tradicional feijoada que sela, fora da história oficial, a união entre caboclos e negros em uma pausa para o almoço. À tarde, eles retomam a terceira e última parte do cortejo, que se estenderá até o anoitecer. Novos personagens aparecem para o público. O rei finalmente se revela em trajes de combate e lidera o grupo em busca de seus protetores: a Mãe Susana, que tem um papel semelhante ao de Nanã na cultura negra, e o Pai Joá, que é um curandeiro com porte similar ao do Preto Velho. Cada um deles é recepcionado na frente de suas respectivas residências, ampliando o caminho percorrido. Os caboclos, por sua vez, saem pelas ruas em busca do príncipe, da rainha e do cacique. Os dois grupos seguem provocando um ao outro, aumentando a tensão para o embate final. Nessa etapa da festa, a quantidade de visitantes praticamente dobra e os focos paralelos tocando os cantos locais e outros nem tanto também aparecem com mais ênfase. Em meio à folia, os dois grupos alcançam as margens do rio Cotinguiba e a rainha dos indígenas é roubada e encarcerada na cabana.
Um negro sobe na torre de madeira para informar quando as embaixadas indígenas chegam para os conflitos, que culminarão com a prisão dos negros, que saem amarrados pelos caboclos pedindo dinheiro à população para comprar sua alforria. A beleza do embate final e a queima da cabana dos lambe-sujos fecham o ciclo de um festejo que tem como marca forte a participação popular. É perceptível que ele guarda a força da interação com os episódios ocorridos na região, mesmo que vários ritos importantes não existam mais e o povo não encene as etapas como antes. O que ocorre em Laranjeiras com o Lambe Sujo x Caboclinho é observado em outras cidades conhecidas como polos de tradições culturais que estão se urbanizando e ampliando suas trocas de influências. Apesar de vários participantes temerem que o festejo perca a reflexão sobre o período escravocrata e vire uma folia popular que carregue o mesmo nome, o significado do embate em Laranjeiras ainda é expressivo. A lapada verdadeira de um taqueiro nunca deixará esquecer.
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noel rosa Um século para o Filósofo do samba Há 100 anos, nascia o maior inovador da canção popular brasileira da Época de Ouro, que se tornou uma lenda ao criar mais de 200 composições em seis anos texto Débora Nascimento
Um vídeo no Youtube. O jovem Almirante, o “rei da embolada”, canta com desenvoltura à frente do animado Bando de Tangarás, grupo que ajudou a projetar a figura do violonista que está à esquerda da tela, com chapéu de palha, empertigado como se estivesse interpretando o personagem de um matuto brabo. A filmagem é uma espécie de videoclipe da música Façanhas do bando (na legenda está escrito Vamo fallá do norte), a única imagem em movimento daquele que é considerado o maior inovador da canção popular brasileira da Época de Ouro (1929-1945): Noel Rosa. Essa raridade é um dos itens disponíveis para se adentrar um pouco mais na história desse compositor de vida e carreira fugaz, cujo centenário de nascimento completa-se em 11 de dezembro. Nesse dia, em 1910, chegou ao mundo o primeiro filho de Martha e Manuel Garcia de Medeiros Rosa. Nascido numa família de classe média do Rio de Janeiro, com tradição de médicos (o bisavô, o avô e o tio), o menino contrariou as expectativas dos parentes. Em vez de se formar em Medicina, preferiu investir no hobby que mantinha desde a adolescência, a música, mais especificamente, o samba, gênero que ajudou a sedimentar e a “legitimar” no país, sendo um branco
o primeiro sucesso, Com que roupa?, tinha os acordes iniciais do Hino nacional, mas foi modificado à tempo da gravação fazendo “música de negro”. Outro aspecto que ajudou a erguer e firmar o nome de Noel foi a façanha, até hoje, surpreendente e raríssima: a gravação do repertório de mais de 200 canções (sem contar com as que ele vendeu e as que se perderam), compostas em apenas seis anos de atividade profissional. Algumas dessas figuram entre as melhores do nosso cancioneiro, como Fita amarela, Feitio de oração, O orvalho vem caindo, Conversa de botequim, Gago apaixonado, Três apitos e Com que roupa? Essa última ajudou a projetar Noel Rosa para além do Bando de Tangarás – grupo oriundo do Flor do Tempo, que surgiu em 1927 para seguir o estilo do pernambucano Turunas da Mauricéia. Esse, por sua vez, havia sido criado na esteira dos anteriores Grupo de Caxangá (que incluía João Pernambuco e Pixinguinha) e Oito Batutas (também com Pixinguinha). No entanto, um pequeno detalhe em Com que roupa? quase
acabaria precocemente com a carreira do futuro brilhante artista. Quando apresentou a canção ao músico Homero Dornellas, que transcreveria a melodia para partitura, este fez a seguinte observação: ela tinha os mesmos acordes dos que iniciam o Hino Nacional Brasileiro. Noel poderia ser censurado e até preso por isso. Com alguns ajustes, o samba foi lançado em janeiro de 1931, transformando, assim, o rapaz malvisto pelas famílias “sérias” de Vila Isabel em “orgulho do bairro”, apontado nas ruas como “o autor de Com que roupa?”. Noel Rosa, aos 21 anos, passa a ganhar fama e (um pouco de) fortuna – pois, como no costume daqueles tempos, vendera os direitos da composição por uma quantia irrisória, 180 mil réis. O quase plágio de Com que roupa? ou foi involuntário – devido ao fato de Noel ter sido um prolífico autor de paródias; costumava fazer diversas, até das próprias músicas já gravadas – ou intencional, devido à crítica velada ao governo federal. Na adolescência, seu alvo predileto era o Hino Nacional. Utilizava a composição de Francisco Manuel da Silva para os mais satíricos versos. Era uma fixação. Mas digamos que esse gosto pela imitação, geralmente jocosa, teve um fim bastante útil: contribuiu como um exercício de
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composição para o garoto. A prova é que, a partir de Com que roupa?, o músico deslanchou como criador, emendando uma série de sucessos, que conquistavam cada vez mais as camadas mais populares do país. “Noel Rosa não apenas caiu no gosto popular, ele também criou esse gosto”, afirmou o antropólogo Hermano Vianna, no ensaio O mistério do samba. Apesar de ter sido lançada em 1931, Com que roupa? foi composta em 1930, para ser divulgada no Carnaval daquele ano. No entanto, Almirante (Henrique Foreis Domingues), líder do Bando de Tangarás, convenceu Noel de que Na pavuna (Almirante/Homero Dornellas) seria mais interessante para o período momesco. A música se tornou o primeiro samba gravado com instrumentos de percussão (pandeiro, cuíca, tamborim, surdo e ganzá). Essa mudança abrupta de planos foi um dos motivos que afastaram Noel do grupo. Outro foi que o estilo nordestino pasteurizado do conjunto começou a se chocar com os interesses musicais do Filósofo do Samba. Além disso, os demais integrantes, moços bem-
o Bando de tangarás surgiu na esteira do sucesso de grupos nordestinos, como o turunas da Mauricéia nascidos e mais bem-comportados, não estavam no círculo da boemia de Noel, que preferia os amigos pobres, taxistas, malandros, biscateiros, desocupados, enfim, “gentinha”, como tachava sua vizinhança. “Noel Rosa e seu grupo viviam em um tempo em que as classes baixa e média da cidade, embora já o suficientemente distanciadas, a ponto de não se confundirem, coexistiam, por assim dizer, em uma mesma área urbana, por efeito da proliferação dos cortiços e das casas de cômodos, que apareciam ao lado das casas das boas famílias”, observa José Ramos Tinhorão, em Música popular, um tema em debate. “Quando os rapazes de Vila Isabel resolveram formar o seu conjunto, esse
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impulso representava o desejo de criar na sua classe um divertimento equivalente (embora necessariamente estilizado) ao dos conjuntos de batucada e de choro formado pelos componentes das camadas mais baixas”, complementa.
incReMentos Da inDÚstRia
O Bando de Tangarás surgiu numa época promissora para a indústria fonográfica do Brasil. Nesse período, as gravadoras passaram a se multiplicar, atendendo ao surgimento de novas tecnologias no país, como o rádio (1922), a gravação elétrica (1927) e o cinema falado (1929). “Ao terminar o ano de 1928, termina também esse período de transição em que as novidades do século 20 passam a ditar os rumos de nossa música
popular. Estávamos prontos para entrar em nossa primeira grande fase, a chamada Época de Ouro”, afirma Zuza Homem de Mello, no livro A canção no tempo. No entanto, havia um problema nesse mercado iniciante: achar bons artistas. Por conta dessa demanda, pessoas do meio artístico, como o cantor Francisco Alves, maior ídolo musical do país nos anos 1930, começaram a voltar seus olhos para a periferia em busca de novos compositores e instrumentistas (muitas vezes para comprar a coautoria das canções). “As gravadoras, engatinhando ainda de estrutura e organização precárias, com dificuldades mesmo para formarem os seus casts, recorreram a cantores, instrumentistas e grupo amadores como
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o Flor do Tempo para enriquecerem seus ainda modestos catálogos de lançamentos. Rapazes de classe média – muito mais interessados na novidade do disco do que nas incertas vantagens financeiras que podem obter da música – passaram a ser vistos nos estúdios cantando, tocando. Eram artistas baratos, se é que custaram alguma coisa. Eles próprios faziam rigorosamente tudo, compunham, cuidavam dos arranjos, ensaiavam, cantavam e se acompanhavam, de modo que para as gravadoras, a não ser no que dizia respeito aos gastos materiais (estúdio, eletricidade, cera, acetato), um disco saía praticamente de graça. Se acontecesse de fazer sucesso, tudo era ganho. Se não, pouco se perdia”, contextualizam Carlos Didier e João Maximo, em Noel Rosa: uma biografia. Almirante, o “cabeça” do Flor do Tempo, ao receber proposta do próprio presidente da Odeon para uma gravação,
viu-se obrigado a “enxugar” o seu grupo, que era quase uma orquestra, com mais de 10 pessoas. Procurou, então, ficar com os melhores: Alvinho, Henrique Brito e Carlos Alberto Braga, mais conhecido como João de Barro, o Braguinha (único que adotou o apelido de pássaro, sugestão de Almirante, para driblar a vergonha de suas famílias em ter um filho artista). Quando fez o convite a Noel, já o tinha visto pelas ruas, nas serenatas, e o conhecido vagamente em uma ocasião. Sabia do seu potencial como violonista, mas não como compositor, tanto que, no repertório dos Tangarás, poucas criações do Poeta da Vila foram aproveitadas. O virtuosismo de Noel como instrumentista se deveu às incontáveis horas em que passou tocando bandolim e, depois, violão. “Foi graças ao bandolim que eu experimentei pela primeira vez a sensação de importância. Tocava e logo se reuniam, ao derredor
1 aDolescÊncia Noel, com a farda do Colégio de são bento, onde zombava dos professores
2 tanGaRÁs e
conViDaDos
No estúdio da odeon, na cúpula do teatro phoenix, em 1930
de mim, maravilhados com a minha habilidade, os guris de minhas relações. A menina do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia completamente importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de garoto que começava a espiar a vida”, afirmou em entrevista a O Globo, em 31 de dezembro de 1932. “Ouvir o violão era como se ouvisse a mim mesmo, como se ouvisse a voz do próprio coração, o lirismo que nasceu comigo. Com o violão veio o período maravilhoso das serenatas.” À época, Noel já sabia que queria viver de música e almejava ser bemsucedido, só não tinha a proporção exata de como seria ter sucesso. Sonhava com a aclamação, tendo o
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Rio de Janeiro como o topo. “O que eu objetivara era ver a minha música difundida por toda a cidade, propagada pelas diferentes vozes, florescendo dos assovios anônimos, dos pianos dos bairros, das vitrolas. Imaginava o meu prestígio quando as minhas produções obtivessem essa projeção. Eu entraria nas festas e as meninas me apontariam: ‘Aquele é o Noel!’ No bonde, alguém, do banco de trás, diria: ‘Olha o Noel!’”. Morto aos 26 anos, o artista atingiu, de certa forma, o seu desejo.
3 sinHÔ Músico que sistematizou o samba era o maior ídolo de Noel. eles se conheceram em 1925, quando Noel, aos 15 anos, foi à casa de sinhô 4 Vila isaBel No bairro em que Noel rosa nasceu e viveu foi erguido monumento em sua memória
entRe a GalHoFa e o liRisMo
Como costuma acontecer na música popular, letras são totalmente autobiográficas ou guardam em algum trecho um quê da vida pessoal do artista. No caso de Noel Rosa, as canções tendem a revelar traços de sua personalidade ímpar (“O meu destino/ foi traçado no baralho/ Não fui feito pro trabalho/ eu nasci pra batucar”, Felicidade). Peralta, rebelde, fuzarqueiro, sarcástico e cínico, mas, acima de tudo, perspicaz desde garoto, o músico exibia a cada música características que o definiram como “cronista”. Uma das qualidades que o fizeram se destacar entre os contemporâneos era que abordava qualquer assunto. “Antes, a palavra samba tinha um único sinônimo: mulher. Agora, já não é assim. Há também o dinheiro, a crise. O nosso pensamento se desvia para esses gravíssimos temas”, declarou o próprio compositor em entrevista, no início da carreira. “Noel foi o grande inovador de nossa lírica, o primeiro a mostrar que tudo (fome, miséria, mentira, futebol, jogo do bicho, assassinato, roubo, prostituição, homossexualismo, bebida, política, corrupção) podia ser convertido em letra de música”, observa João Máximo, biógrafo do compositor, no texto de abertura do livreto de 160 páginas que integra a caixa Noel pela primeira vez (Velas/Universal), o mais completo acervo da obra do compositor, lançado em 2002, a partir dos esforços do pesquisador Omar Jubran. Do início da carreira se destaca a citada Com que roupa?, que caiu perfeitamente no contexto da crise que o país atravessava, pelos reflexos da Queda da Bolsa de Nova York, em 1929. “Essa gíria nasceu em Vila Isabel, ali na esquina no Ponto dos Cem Réis, negócio de pôquer. Foi
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a primeira vez que surgiu ‘Com que roupa eu vou ver o teu jogo?’, que quer dizer com que dinheiro? E depois ela se espraia de uma maneira terrível e foi sendo, vamos dizer, adaptada e aceita de outra forma”, lembrou o compositor e caricaturista Antônio Nássara, em entrevista ao programa Ensaio, da TV Cultura, em 16 de maio 1975. Nas diversas entrevistas que Noel deu a partir de então, sempre retrucava as perguntas dos jornalistas com falsas respostas. “A inspiração surgiu da minha mãe que escondia as minhas roupas para eu não sair à noite”, afirmou, aproveitando o fato de Dona Martha realmente ter escondido seus trajes para que o filho não saísse para as farras noturnas. Mas, às pessoas mais
próximas, o músico revelou que se tratava mesmo de uma crítica à situação econômica do país. Por conta da influência dos Tangarás, o autor passou a usar, por um curto período, elementos da música nordestina em suas composições, a exemplo da canção sertaneja Sinhá Ritinha e da toada Festa no céu. Então, a partir de 1932, migrou para o samba carioca, inspirado no ídolo Sinhô (1888–1930), considerado o compositor que estruturou o gênero musical e um dos “três maiores do samba carioca” (definição de Vinícius de Moraes) ao lado de Noel e Ismael Silva (1905–1978). Desde o começo da carreira, o Poeta da Vila compôs muitas marchinhas, cantadas pelos foliões do Faz Vergonha,
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fábio guiMarães /agêNCia o globo
polícia, em Mulato bamba) e expressões de duplo sentido (“mão no remo”, em Iça vela, uma das três parcerias com Ary Barroso). Fora isso, também ajudou a popularizar termos como “bossa”, presente na música Coisas nossas (“o samba, a prontidão e outras bossas são nossas coisas, são coisas nossas”), feita após ter assistido ao filme Coisas nossas (1931), de Wallace Downey. O rapaz conheceu a palavra na aula de frenologia, durante o curso de Medicina, que sugeria que as bossas frontais e as occipitais do crânio é que determinariam a aptidão. O termo também aparece na composição Riso de criança, que fez para uma das paixões de sua vida, Josefina “Fina” Telles: “Eu nascendo pobre e feio/ ia ser triste o meu fim/ mas crescendo a bossa veio/ Deus teve pena de mim”. Para ela, também compôs uma de suas mais belas canções, Três apitos, que narra o período em que descobriu que a namorada trabalhava numa fábrica de tecidos (“Mas você não sabe/ que enquanto você faz pano/ faço junto do piano/ estes versos pra você”). Uma das motivações mais inusitadas para a criação de músicas foi a histórica
noel conseguiu chegar às massas, pois utilizava muito bem o palavreado popular, gírias e expressões de duplo sentido
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bloco ao qual pertencia e no qual quase foi preso, em 1931, por mostrar a cueca ao “plantar bananeira” vestido de mulher. Em parceria com Lamartine Babo, foi autor da primeira música nonsense do país, antecipando o estilo dos Mutantes, com A.B.Surdo (“...é futurismo, menina/ pois não é marcha/ nem aqui nem lá na China”). Nessa mesma safra, demonstrou sua capacidade para criar composições originais, como o Gago apaixonado, que causou furor por sua inventividade – apesar do fato de os gagos não gaguejarem ao cantar. Outra criação que surpreendeu a crítica e o público foi o “monólogo” Conversa de botequim. Como tratava de temas usando a linguagem das ruas, muitas de
suas músicas atualmente precisam de “legenda” para dirimir possíveis malentendidos. Quem dá mais?, por exemplo, poderia indicar um Noel antissemita (“Ninguém dá mais que 50 mil réis?/ Quem arremata o lote é um judeu/ Quem garante sou eu/ Para vendê-lo pelo dobro do museu”). Nessa letra, o músico faz referência aos estrangeiros, mais conhecidos como “judeus” (sendo ou não), que emprestavam dinheiro a juros às famílias pobres.
Bossa FRenolÓGica
Noel conseguiu chegar às massas, pois utilizava com eficiência o palavreado popular (“Durma-se com esse barulho”, em Não me deixam comer), gírias (“Passear no tintureiro”, que significa carro de
batalha de sambas entre Noel e Wilson Batista. Este, em 1932, ainda um iniciante, resolveu pegar carona no sucesso de Noel e atacou com Lenço no pescoço. Há o revide com Rapaz folgado. Wilson faz O mocinho da vila, e Noel compõe o clássico Feitiço da vila. Wilson contra-ataca com Conversa fiada (“É conversa fiada/ dizerem que os sambas/ na Vila tem feitiço...”). Noel arrasou o rival com Palpite infeliz, que inicia com uma provocação (“Quem é você que não sabe o que diz?) e torna-se sucesso do Carnaval de 1936. O outro, sabendo que estava perdendo a disputa, fez Frankstein da Vila e Terra de cego. Noel encerra o assunto com Deixa de ser convencido. No início de sua carreira, o músico interpretava a maioria de suas canções,
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con especial ti nen te 5 cineMa os atores rafael raposo e Camila pitanga interpretam os amantes Noel e Ceci, no filme Poeta da Vila, de 2006
nÁssara, oUTra CrIa De VIla IsaBel berço de Noel rosa, o bairro carioca de vila isabel gerou também várias outras estrelas. entre elas, antônio gabriel Nássara, mais conhecido como Nássara, o caricaturista e cartunista de desenhos simples, porém marcantes. o artista atuou, no início de sua carreira, como habilidoso compositor de marchas e sambas, deixando seu nome registrado na música popular brasileira. Nascido em 11 de novembro de 1910, no rio de Janeiro, Nássara frequentou o curso de belas artes, mas não se formou. a partir de 1928, começou a trabalhar em jornais, quando se empregou no Crítica, dirigido pelo jornalista Mário filho, irmão de Nelson rodrigues. depois, passou por vários periódicos, inclusive O Pasquim, com o qual colaborou na década de 1970. o músico começou a compor marchinhas carnavalescas nos anos 1930, quando venceu concursos em que disputava com feras como lamartine babo, ary barroso e o seu vizinho Noel rosa. de suas criações, destaca-se a marcha de 1941, Alala-ô (com Haroldo lobo), Formosa (com Jota ruy), Balzaquiana e Mundo de zinco (com Wilson batista), e Retiro da saudade (com Noel rosa). Nássara também é reconhecido como o primeiro autor de um jingle comercial do brasil, criado em 1932, para uma padaria, quando trabalhava na rádio philips, no Programa Casé.
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com canto miúdo, irônico, quase falado. Depois, elas passaram a ficar bem mais encorpadas com o acréscimo das vozes de nomes de peso da música popular brasileira, como Francisco Alves, Mário Reis, Marília Batista, Orlando Silva, Carmem e Aurora Miranda, Sílvio Caldas e Aracy de Almeida. Ao passar dos anos, também vai crescendo o número de parceiros, Francisco Alves e Ismael Silva (Uma jura que fiz), Braguinha (a marcha Linda pequena ou As pastorinhas), Vadico (o samba Pra que mentir), Heitor dos Prazeres (a marcha Pierrot apaixonado) e Cartola, que revelou nos anos 1970 a coautoria de algumas composições. Noel, que era mais festejado por suas letras irreverentes, foi também bom melodista, com ou sem parceiro. É o que comprovam as diversas músicas que fez sozinho, entre elas as obrasprimas Fita amarela e Último desejo, e o choro instrumental Choro (ou Baianinha). Composto em 1929, não fora gravado por ele nem possuía partitura, mas por sorte não se perdeu no tempo, pois no dia em que Noel o tocou na Rádio Guanabara, em 1934, estava lá o músico
Jacob do Bandolim, que anotou os acordes. A música foi gravada, em 1983, pelo grupo “noelista” Coisas Nossas. “Noel Rosa pode não ter sido o melhor compositor popular de seu tempo, mas foi decerto o mais importante. Nele, ou em sua obra, estão mais marcadas do que nas de qualquer outro as transformações profundas pelas quais a música brasileira passou ao longo dos anos 30. Na música, ao trocar o samba amaxixado da Cidade Nova pelo samba menos dançante e mais melódico do bairro Estácio. Na letra, ao substituir a poesia pernóstica, preciosística, dos seresteiros românticos dos tempos de Catulo da Paixão Cearense, por versos que alguns estudiosos associam à Semana de Arte Moderna. Exageros à parte, Noel Rosa simboliza as duas transformações, na música e na letra. Não as fez sozinho, claro, mas foi seu mais eloquente representante”, avaliou João Máximo, no encarte do box Noel pela primeira vez. Máximo é autor, junto com o músico e pesquisador Carlos Didier, de Noel Rosa – uma biografia (Editora UNB), considerado um dos livros mais
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divulGação
A partir de então, ela se torna parte do patrimônio coletivo e qualquer pessoa pode utilizá-la. Sendo assim, pode ser regravada e executada de diversas formas, incluindo recursos como remixagem e sampling.
ViDa QUe Vale UM FilMe
Noel Rosa já foi tema de diversas produções cinematográficas nacionais, principalmente curtas-metragens, como Isto é Noel Rosa (1991), de Rogério Sganzerla. No entanto, nenhuma delas, nem a mais recente Poeta da Vila (2006), de Ricardo Van Steen, está à altura da importância do artista. Uma coisa é certa: sua vida, cheia de travessuras, tragédias, aventuras e amores, vale e merece um filme, um ótimo filme. Um dos pontos que mais se destacam na sua trajetória é o defeito na face, que se tornou sua marca. O afundamento na mandíbula foi consequência do difícil parto que sua mãe enfrentou, tendo o médico que usar o fórceps, que fraturou o maxilar do recém-nascido. Por conta desse problema, só percebido pela família quando o bebê gorducho deixou a mamadeira para os alimentos sólidos, Noel teria dificuldade para mastigar, motivo pelo qual preferia ingerir comidas pastosas (purês, papas, mingaus) feitas pela mãe, e não gostava de comer nos restaurantes e bares. A dificuldade em se alimentar tornou a criança um rapaz franzino, ao contrário do irmão Hélio, quatro anos mais novo, bonito e vistoso. O contraste entre os dois viria a se tornar mais evidente no passar dos anos. Enquanto Noel era bem-humorado e importantes sobre a história da música diplomático, Hélio era sério e arredio. popular brasileira, mas que se encontra, Enquanto o primeiro gostava das ruas, desde 1994, fora de catálogo, por um o segundo optava por ficar em casa embargo das filhas do irmão de Noel, lendo livros. O caçula era considerado o Hélio Rosa, que hoje se responsabilizam superdotado pela família, pois aprendera pelo legado do compositor desde a morte a ler sozinho aos quatro anos, e já lia de sua esposa, Lindaura, em 2001. Artigo em francês, aos nove; além disso, raro, o calhamaço chega a ser leiloado na gostava de se aprofundar na leitura dos internet por até R$ 400,00. mais diversos assuntos. O afinco nos Em 2008, passados 70 anos da estudos era tanto, que a avó costumava morte do compositor, 120 de suas dizer que ainda haveria de ter uma composições tornaram-se obras de inscrição no chalé onde moravam: domínio público. De acordo com as “Nessa casa morou Hélio de Medeiros regras do direito autoral no Brasil, as Rosa”. Dona Bella só errou de neto. criações são protegidas por toda a vida Mas não havia como a família prever do autor e mais 70 anos após a sua morte. que o filho mais velho se tornaria alguém Já nas obras produzidas em coautoria, o importante, visto que Noel vivia sendo prazo de proteção é contado a partir do reprovado. Chegou a passar oito anos no falecimento do último dos coautores. ginasial, só sendo “libertado” quando
em 2008, passados 70 anos da morte do compositor, 120 de suas composições tornaram-se obras de domínio público
Getúlio Vargas assinou um decreto anunciando que todos os estudantes do país seriam aprovados no final do ano, devido à interrupção das aulas a partir do mês de outubro, por conta da Revolução de 1930. Foi a salvação do garoto, que era o terror dos professores. Como uma espécie de Juquinha, famoso personagem das piadas pornográficas, Noel, da última fila da sala de aula, vivia importunando os mestres, sempre garantindo a diversão dos colegas. No tradicional colégio São Bento, fazia e distribuía um jornalzinho arremedando a publicação oficial da escola. Já o violão ganhou de presente do Tio Fábio, que se cansou de ver o rapaz chegando de madrugada carregando o instrumento furtado do pai – o gosto pela boemia começou na puberdade, quando, aos 13 anos, perdeu a virgindade, e aos 14, começou a fumar e a beber. Os vizinhos consideravam a família Medeiros Rosa “esquisita”, por ter um filho boêmio, outro que falava em almas de outro mundo (Hélio) e um pai (Manuel) que vivia recluso, absorto nos projetos de invenções, como a bicicleta aquática, e que se suicidaria anos depois da mãe, a citada Dona Bella. Em 1932, Noel abandonou a Medicina de vez, e começou a trabalhar no Programa Casé (de Adhemar Casé, avô de Regina Casé). Em 1934, conheceu sua última grande paixão, Ceci, a Dama do cabaré. Naquele ano, casou-se obrigado com Lindaura Martins, de apenas 13 anos, e começou a apresentar os problemas da tuberculose. A pedido médico, viajou com a esposa para Belo Horizonte. Porém, o tratamento durou poucos dias, pois passou a frequentar os bares locais. Em 1935, volta a se internar e, em seguida, a cair na boemia. No decorrer do ano, o pai se suicidou. Em 1936, teve nova recaída da doença, vindo a falecer em 4 de maio de 1937, na casa onde morou por toda a vida, na rua Teodoro Silva, onde hoje se encontra um prédio residencial que leva seu nome. O enterro arrastou pelo bairro uma multidão, entre amigos, vizinhos, amantes, parentes, fãs, artistas, imprensa e curiosos. Noel tornara-se uma lenda.
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hallina beltrão sobre foto de divulgação
Sonoras ITAMAR ASSUMPÇÃO A vingança do maldito em forma de box Obra do músico da Vanguarda Paulista é compilada na Caixa preta, que reúne os 10 álbuns de sua carreira e dois inéditos texto Gianni Paula de Melo
“Se eu tivesse que ouvir conselhos, pediria ao Hermeto Pascoal.” Do comentário, podemos tirar duas constatações: 1) Itamar Assumpção não fazia concessões no processo criativo, nem às gravadoras e seus interesses, nem às críticas simplistas que taxavam sua obra de difícil. 2) Ao perceber em Hermeto Pascoal o seu possível conselheiro, o músico também sinaliza um referencial da arte em que acreditava. Mesmo relutando contra o rótulo de “maldito”, a verdade é que Itamar,
assim como os demais integrantes da Vanguarda Paulista (Arrigo Barnabé, Premê, Rumo), enfrentou o desafio de divulgar suas obras à revelia das grandes gravadoras, numa época sem a popularização da internet, web 2.0 ou MySpace. Este ano, toda sua produção foi reunida no box Caixa preta, com os 10 álbuns de sua carreira e dois inéditos, sob o selo Sesc–SP. Parte desse projeto já havia sido idealizada pelo próprio músico. Itamar planejava lançar os novos discos Pretobrás II – Maldito Vírgula e
Pretrobrás III – Devia ser proibido que, juntos ao Pretrobrás – Por que que eu não pensei nisso antes, formam uma trilogia. No entanto, ao falecer em 2003, foram suas filhas, Anelis e Serena Assumpção, que assumiram essa responsabilidade. Foi necessário buscar os materiais inéditos distribuídos em vários estúdios e algumas faixas foram regravadas por outros intérpretes, como Elza Soares e Thalma de Freitas, já que a voz do cantor estava bastante debilitada em alguns registros. Tal qual as caixas pretas dos aviões permitem investigar detalhes de um voo, neste box, encontramos as particularidades de uma trajetória. Confluindo em sua obra audições e influências que iam de Adoniran Barbosa a Jimi Hendrix, Itamar experimentava os sons a partir de um processo de criação libertário. Como indica Arnaldo Antunes no texto do encarte, estamos diante de um mix de “compassos irregulares, frases atonais, incorporação das inflexões da fala no canto, dissonâncias, mistura de gêneros, formações instrumentais inusitadas”. Ao mesmo tempo, o compositor não descuidava da inventividade no uso da palavra, o que se torna mais evidente se lembrarmos que seu elenco de parceiros incluía poetas como Paulo Leminski e Alice Ruiz. Embora existisse a possibilidade de conseguir pela internet a discografia de Itamar Assumpção, o público que ainda credita os CDs como bens valiosos dificilmente os acharia à venda em lojas. Segundo Serena Assumpção, apenas o Petrobrás I e os três volumes do Bicho de sete cabeças podiam ser encontrados. Esse desdém das gravadoras se estende aos vários “malditos” da música popular brasileira. Por isso, também neste ano, assistimos de longe ao lançamento de uma caixa com a obra de Tom Zé, pelo selo americano Luaka Bop, enquanto no Brasil não existe coletânea parecida. Observando, também, que o apático mercado fonográfico ignora a possibilidade de relançamento da obra de outros artistas de discografia peculiar, como Sérgio Sampaio, Jards Macalé e Walter Franco.
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INDICAÇÕES BOSSA NOVA
LISA ONO Ásia Sbme Import
de Copacabana à ilha de Java, este gênero musical, consagrado na voz sussurada de João gilberto, nunca perde a sofisticação. foi com a cantora nipo-brasileira, lisa ono, que a bossa nova tornou-se popular no Japão e, aos poucos, em outros países asiáticos. no seu novo Cd, Ásia, o ritmo familiar aos brasileiros recebe interpretação em coreano, mandarim, malaio, bengali, tailandês, cingalês e mongol. o trabalho de lisa dialoga bastante com o de artistas como Paulo Jobim, daniel Jobim e Miúcha.
MPB
EXPERIMENTAL
ROCK
Independente
Independente
monstro
ZÉ RENATO E RENATO BRAZ Papo de Passarim Com apurada técnica vocal e afinação impecável, o ex-boca livre, Zé renato, e o cantor, violonista e percussionista, renato braz, se destacam num país onde predominam intérpretes mulheres. neste trabalho, o encontro de dois timbres bastante distintos e peculiares da música popular brasileira explora um repertório formado por canções do próprio Zé renato em parceria com outros compositores, como Ponto de encontro, Anima e A hora e a vez, além de clássicos nacionais.
MIRANDA KASSIM E ANDRÉ FRATESCHI Hits do underground a coletânea surge como uma introdução ao meio independente nacional. idealizado por andre frateschi e Miranda Kassim, sendo eles próprios quase famosos no incessante circuito paulista (fazendo as vezes de crooners, frateschi interpreta david bowie, e Kassim ataca de amy Winehouse) o Cd traz versões da dupla para músicas de artistas que conseguiram mais respeito do que fama, como Wado, Mombojó e Curumin. Hits dá um empurrãozinho nas bandas que entraram na seleção.
LUCY AND THE POPSONICS Fred Astaire subproduto daquilo que se convencionou chamar de “new rave brasileira”, cuja ponta de lança são as paulistas do Cansei de ser sexy, o trio lucy and The Popsonics não foge de um clichê, até sensato, de segundo disco: o batido ato de “aparar as arestas”. Pesou nisso a mão do produtor John ulhôa (do Pato fu), um expert em softwares de áudio e soft pop – um casamento ideal, considerando o estilo inofensivo do trio. o novo Cd é um avanço, mas passa longe de um ponto de virada dos independentes.
DVD
fim De feira: Peba DOs bOns vivemos um momento em que o forró eletrônico domina as paradas de sucesso, de um lado, e o chamado forró pé-de-serra faz resistência, do outro. Curiosamente, e felizmente, a obra do grupo fim de feira parece não se enquadrar em nenhum desses polos. sua música se inspira na fonte sertaneja, mas, avessa aos purismos, volta-se também aos ritmos e realidades urbanas. tal união entre a tradição e o contemporâneo não é novidade, porém o grupo consegue dosar esses elementos de forma bastante equilibrada. dois anos depois do Cd A revolução dos pebas, que marcou sua estreia, a banda lança o dvd Fazendo a revolução, formado pelas mesmas composições do primeiro disco. o material poderia soar como um produto atrasado e ultrapassado, mas essa é uma ideia enganosa. Mesmo trazendo as mesmas faixas, o dvd desconstrói o processo de criação do grupo. reunidos num estúdio (o plano, quando conseguiram o financiamento do funcultura, em
2008, era produzir um dvd ao vivo, mas o orçamento não foi suficiente para tanto), os integrantes da banda falam das letras, dos ritmos, dos arranjos e de como compuseram seu repertório. os comentários são entrecortados pela execução de algumas das faixas, ali mesmo, no estúdio, como se estivessem num grande ensaio. fechando o material, o grupo apresenta a música Vida de feirante, composta pelo vocalista bruno lins, numa parceria com o poeta dedé Monteiro. essa composição e outras ainda inéditas devem fazer parte do próximo Cd da banda, a ser lançado no ano que vem. segundo bruno lins, a segunda bolacha do fim de feira trará um repertório mais urbano, com mais elementos eletrônicos, embora sem esquecer as raízes sertanejas. Como explica luiz berto, na abertura do dvd, o adjetivo “peba”, no linguajar matuto, é sempre ligado a algo sem valor, porém aqui ganha o significado oposto – uma coisa de alta qualidade. (Mariana oliveira)
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NEORREALISMO Uma geração que mudou o olhar do cinema mundial Há 65 anos, era lançado Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, dando início ao modo de filmar que tinha no real o seu maior trunfo texto Guilherme Carréra
A primeira metade do século 20 foi profícua em relação ao desenvolvimento da arte cinematográfica, que rompia com a estrutura clássica norteamericana que se convencionava já a partir de sua segunda década. Marcado pelo horror das guerras mundiais, aquele contexto histórico definiria muito o que seria produzido artisticamente no período, tornando conteúdo e estética fortes aliados. Ocupada pelos nazistas de 1943 a 1945, a Itália e seus diretores foram mestres em equalizar contexto social e concepção artística.
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1 MARco Roma, cidade aberta, de roberto rossellini, inaugura, em 1955, o Neorrealismo 2 inFLUÊnciA rossellini (C) concatenou princípios que foram assimilados por Vittorio de sica (e) e Federico Fellini (d)
Durante a Segunda Guerra Mundial, o neorrealismo italiano foi responsável por agrupar cineastas que acreditavam na proposta de transpor para a tela a banalidade do cotidiano, valorizando as locações externas e o idioma falado nas ruas. Com isso, não eram apenas as temáticas, antes ignoradas, que ganhavam destaque, mas também uma nova abordagem fílmica, sustentada por uma montagem discreta e explorando mais os planos médios e gerais. Não interessavam assuntos alheios à condição do povo, mergulhado na
miséria que assombrava a Europa. Os filmes deveriam centrar-se no homem comum, no operário que sustenta a casa e nos elementos que compõem o ambiente desses personagens. Nesse sentido, ir ao encontro do povo era uma prerrogativa para a realização das obras. O lendário crítico de cinema André Bazin acreditava ser o Neorrealismo o patenteador da imagem-fato: quando os filmes trazem à tela acontecimentos que não precisam representar algo para além de si, eles valem por si mesmos.
eXPoenteS
O diretor Roberto Rossellini, um dos mais importantes do cinema italiano, concatenou princípios também assimilados por seus contemporâneos em Roma, cidade aberta, lançado em 1945 e hoje considerado o marco daquela corrente cinematográfica. Filmada logo após a retirada das tropas alemãs, a
obra é um comentário acurado sobre a situação em que os italianos se encontravam, em meio ao domínio dos oficiais de guerra. Evidenciando as ruas e edificações em ruínas, a cidade de Roma não funciona apenas como pano de fundo para as ações, mas ela própria é filmada como personagem. Os elementos definidores da estética neorrealista no longa-metragem avançam sobre o funcionamento da própria narrativa. Não à toa, Pina (Anna Magnani), uma das protagonistas, é baleada, ainda distante do desfecho do filme. O espectador se assusta, mas acredita que a personagem – relevante para o prosseguimento da trama – irá se salvar. Rossellini subverte o jogo, desestabilizando a plateia: não só Pina morre, como também a sequência é filmada sem o clímax esperado para uma cena-chave como essa. Dentre tantas outras, também sua morte havia se tornado banal. O fato de se tratar de uma obra marcada pela sobriedade temática não excluía o diálogo do Neorrealismo com outros gêneros cinematográficos. Uma de suas interfaces, por exemplo, se vincula ao melodrama, explorado de forma sutil no filme de Vittorio De Sica, Ladrões de bicicleta (1948). Nele, o enredo exemplifica a valorização do fato corriqueiro como alicerce dramatúrgico: um trabalhador passa a perambular pelas ruas romanas, ao lado do filho pequeno, em busca do ladrão que lhe roubou uma bicicleta. Diferentemente do cinema clássico, embora haja certa evolução dramática, o longa é estruturado de maneira episódica, e as situações vivenciadas por pai e filho não necessariamente influenciam a trama central. Quem dá vida ao protagonista em Ladrões de bicicleta é Lamberto Maggiorani, que não tinha formação como intérprete quando foi convidado para participar do filme. Se, hoje, o uso de não profissionais para desempenhar papéis de destaque no cinema se tornou comum, naquela época era ainda uma ousadia aliar improviso à interpretação. E o Neorrealismo manteve a estratégia de utilizar não atores para aproximar-se do público em parte de seus filmes, embora não abrisse mão de trabalhar com grandes estrelas da época – caso de Aldo Fabrizi
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LADRÕeS De BicicLetA
Filme valoriza o fato corriqueiro como alicerce dramatúrgico
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e Anna Magnani, par protagonista do próprio Roma, cidade aberta. Antes ainda da obra-prima de Rossellini, Luchino Visconti havia realizado, em 1943, o menos emblemático Obsessão, adaptado do romance norte-americano O destino bate à sua porta, de James M. Cain. Para Gilles Deleuze, já podem ser percebidos nesse filme elementos da estética neorrealista. Na visão do filósofo, o filme de Visconti representa uma mudança na construção comportamental dos personagens. Eles não mais reagem às situações, ao contrário do que acontecia no cinema de Hollywood. Tal qual o espectador, os personagens se veem paralisados diante dos acontecimentos à sua volta. Deleuze acredita que a passividade em situaçõeslimite e a ação descoordenada tenham início no Neorrealismo, característica depois retrabalhada por diversas cinematografias.
LeGADo
Embora, nos anos 1920, o cinema soviético de mestres como Eisenstein e Vertov já relacionasse fortemente o contexto social – a Revolução Russa e os ideais socialistas – aos temas abordados em suas produções, foi com a corrente italiana que essa equação
Para Bazin, o neorrealismo foi o criador da imagemfato, em que situações não representam algo mais além de si se desenvolveu ao longo das décadas. Críticos mais conservadores creditam ao Neorrealismo os filmes somente realizados em meados dos anos 1940, mas é interessante observar de que forma aquele ideário se expandiu. Na própria Itália dos anos 1950 e 1960, nomes como Federico Fellini e Michelangelo Antonioni – hoje considerados autores pop no circuito alternativo – trabalharam questões caras ao Neorrealismo. No caso de Fellini, A estrada da vida (1954) e Noites de Cabíria (1957) são histórias contadas em locações reais, muitas vezes incluindo a participação popular nas sequências. No filme de 1954, esse retrato da paisagem é intensificado pelo teor de road movie que há na trama – os protagonistas são artistas circenses que se apresentam de cidade em cidade. Em Antonioni, a ideia defendida por Deleuze ganha ressonância.
4 obsessão para deleuze, Visconti antecipou, em 1943, o Neorrealismo
Conhecido pela trilogia da incomunicabilidade, composta por A aventura (1960), A noite (1961) e O eclipse (1962), o diretor põe em cena personagens que se sentem paralisados em face ao imprevisível. Ele pretende explorar justamente os espaços vazios, os tempos mortos e os instantes em que os personagens não sabem qual caminho tomar, criando um universo próprio, porém ligado a diretrizes antecedentes. Ainda que o engajamento políticoideológico propulsor daquela filmografia tenha se arrefecido com o passar dos anos, os neorrealistas encamparam um projeto de reconstrução social, motivado pelos fatos da guerra. E, mesmo que tenha enfrentado dificuldades de inserção no mercado cinematográfico dominado pela produção norte-americana, não se pode dizer que o Neorrealismo tenha sido um fracasso de público. No ano de seu lançamento, Roma, cidade aberta obteve a maior bilheteria da temporada. Os filmes de baixo custo – se comparados aos orçamentos da indústria hollywoodiana – encontraram um nicho e foram responsáveis pela sedimentação de um estilo que mudaria a história do cinema, sendo reverenciado nas décadas seguintes.
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INDICAÇÕES CLÁSSICOS DO NEORREALISMO ITALIANO LA TERRA TREMA (1948)
DOCUMENTÁRIO DRAMA
O IMAGINÁRIO MUNDO DO DR. PARNASSUS
direção de Terry Gillian Com Heath Ledger, Johnny depp, Colin Farrell, Jude Law, Christopher Plummer, Lily Cole, Tom Waits
de Luchino Visconti
Longa bastante aguardado em função da morte prematura de Heath Ledger em meio às filmagens. o universo paralelo do dr parnassus, onde sonhos são materializados, possui um encantamento cênico próprio das obras de terry Gillian. depois de fazer um pacto com o diabo, parnassus oferece a sua filha em troca da imortalidade.
DZI CROQUETTES
direção de Tatiana Issa e raphael Alvarez Com ron Lewis, Gilberto Gil, Liza minelli, Ney matogrosso, marília Pêra
em meio à ditadura militar, um grupo de teatro incendiava a cena carioca e prezava pela irreverência. o espírito criativo e anárquico do dzi Croquettes é revisitado, nessa obra, por quem conheceu de perto os seus integrantes, a diretora tatiana Issa. Ótima surpresa do gênero documental, o filme mostra como 13 bailarinos brasileiros conseguiram chegar a paris. Quebrando tabus, os dzi Croquettes apostaram na liberdade sexual, mesmo em um período de restrições à liberdade de expressão.
A história se passa em Acitrezza, na sicília, num povoado de pescadores que se sentem explorados pela burguesia. para dar mais autenticidade à trama, Visconti filmou com os próprios habitantes da ilha, e os manteve falando o dialeto local no filme.
ALEMANhA ANO ZERO (1948) de Roberto Rossellini
A valorização da presença infantil pode ser considerada outro enfoque privilegiado nas produções neorrealistas. em Ladrões de bicicleta, uma criança forma com o pai a dupla protagonista. Aqui, mais uma vez, o personagem principal é um garoto – espécie de não ator por excelência, já que não possui experiência no ofício. Filmado na Berlim pós-guerra, o filme explora a caótica situação da Alemanha com o fim do conflito bélico.
STROMbOLI (1950) de Roberto Rossellini
POLICIAL
O PEQUENO NICOLAU
um dos grandes destaques de 2009, O profeta começa sem dar muitas explicações. o jovem de origem árabe, Malik, é condenado a seis anos de prisão, aparentemente por ter agredido um policial, e logo percebe que precisa arrumar aliados para sobreviver em um lugar que lhe é estranho. Ambientado na virada dos anos 2000, numa França repleta de problemas sociais, a obra agrada aos que se interessam pelos filmes de máfia e consegue retratar muito bem o amadurecimento e a superação.
um filme sobre a infância. escrito pelo coroteirista de Asterix (rené Goscinny), essa obra também pode ser apreciada pelos adultos em função da sua simplicidade e humor. desde o início, o filme é apresentado a partir de duas perspectivas: a de Nicolau e a dos seus pais. A criança faz de tudo para continuar sendo o filho único e não percebe o que realmente está acontecendo com a sua família. A inocência de Nicolau e de seus amigos, caricatos e divertidos, agrada aos espectadores.
direção de Jacques Audiard Com Tahar rahim, Niels Arestrup, Adel bencherif, Hichem Yacoubi, Slimane dazi
Ingrid Bergman interpreta Karen, uma lituana que se casa com um pescador, vivido por um nativo, para escapar de um campo de prisioneiros. A personagem, no entanto, não se adapta à ilha mediterrânea onde vive com o marido e, cansada dos conflitos com a população local, resolve enfrentar o vulcão que cerca a ilha para abandonar o lar.
UMbERTO D (1952) de Vittorio De Sica
A condição dos idosos é outro tema de interesse do Neorrealismo. Nesse filme, o foco é a decadência de umberto d, um aposentado que não tem como pagar o aluguel de seu apartamento, e não sabe se pede dinheiro nas ruas ou mantém sua cultuada dignidade.
INFANTIL
O PROFETA
direção de Laurent Tirard Com máxime Godart, Valérie Lemercier, Kad merad, Sandrine Kiberlain
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CULTURA POPULAR Um diálogo festivo entre o fantástico e o real A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar, novo espetáculo do diretor Carlos Carvalho, une atores profissionais e brincantes da Zona da Mata texto Christianne Galdino
ele já trabalhou no corte da cana, nos engenhos de açúcar. Logo cedo, depois de sofrer e ser abandonado nos primeiros anos de sua vida, foi morar com o Mestre Batista, que o criou como filho. Tinha apenas oito anos de idade, e lá aprendeu o que seria seu ofício, missão e paixão: a cultura popular. Com mais de 35
anos de atuação como brincante e folgazão, o personagem aqui descrito também ganhou merecida titulação. Morador de Chã do Esconço, distrito de Aliança, cidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco, há mais de 20 anos, ele é conhecido e reconhecido como Mestre Grimário.
Esse bem que poderia ser o perfil de um personagem de obra de ficção, mas são capítulos da história real de Grimário, que guarda muitas semelhanças com a vida de Miguel, o primeiro papel que o mestre vai desempenhar numa peça de teatro convencional. “Como somos habituados ao improviso e ao jeito de falar e cantar no cavalo-marinho e no maracatu rural, acho que o mais difícil foi conseguir decorar e dizer os textos nesse formato cênico”, relata Mestre Grimário. “E também aprender algumas técnicas circenses que são utilizadas no espetáculo, como andar de pernas de pau”, complementa Grimário Filho, que também faz parte do elenco. Ambos são líderes das brincadeiras populares, mas encaram pela primeira vez a desafiadora tarefa de serem atores, na peça A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar – uma produção da
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1 eSPetÁcULo da troca de experiências, surgiram uma linguagem híbrida e um elenco misto que canta, dança e interpreta, sem distinções entre brincantes e atores
pernambucanas (a exemplo do coco, da ciranda e do maracatu, além do cavalo-marinho, mote principal que perpassa todas as cenas). E dessa troca de experiências surgiram uma linguagem híbrida e um elenco misto, porém uniforme, que canta, dança e interpreta junto, sem distinções entre a participação dos brincantes e dos atores convidados. Nos bastidores, para garantir a unidade pretendida, uma equipe de peso: Beth da Mata, na direção de arte e criação de figurinos; André Freitas, na direção musical; Raimundo Branco, na preparação corporal e coreografias; e o próprio Mestre Grimário, como consultor de cultura popular. Apesar de ter pelo menos 15 músicas executadas ao vivo nas suas cenas, não se trata de um musical. Mesmo com notórias semelhanças entre a vida de parte do elenco e
o processo de criação funcionou como intercâmbio das artes circenses, técnicas de interpretação, cantos e danças populares Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, viabilizada pelo prêmio de teatro Myriam Muniz 2009 (Funarte/MinC), com texto e direção de Carlos Carvalho. “Tinha um projeto antigo de criar uma peça baseada no romance A mãe (1907), do escritor russo Máximo Gorki. E nossa ideia inicial era compor um elenco somente com brincantes e folgazões da Zona da Mata. Mas como não foi possível, depois de quatro meses de pesquisa em Aliança, voltei ao Recife e decidi convidar também atores daqui”, conta o dramaturgo, que teve a assistência de Quiercles Santana na direção da montagem. O processo de criação funcionou como um intercâmbio em que os integrantes vivenciaram, sempre em conjunto, exercícios das artes circenses, técnicas de interpretação, cantos e danças populares
seus personagens, também não se trata de uma obra biográfica. “A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar é – como declara o autor – um espetáculo de ficção da realidade, um diálogo entre o fantástico e o real, entre o teatro dramático e o pós-dramático. Um drama humano localizado na cultura regional, mas com um discurso universal.”
enReDo
“O meu nome é Mãe, até tenho outro de pia, como tantas se chamam Maria, que é santa e tem romaria, me deram de chamar Mãe sem ser Maria” – apresenta-se a protagonista, e única personagem sem nome da peça (interpretada pela experiente atriz Auricéia Fraga), afinal, como afirma o dito popular: “Mãe é tudo igual, só muda o endereço”. E igual, no caso específico deste espetáculo, significa a similaridade do amor
incondicional ao filho, que faz uma mulher comum se tornar líder social e/ou ativista política. Sua nobre causa? Abraçar a causa do amado filho. Mesmo sem entender direito os porquês implícitos, as razões da luta, ela peleja incansavelmente. Distâncias geográficas e temporais à parte, a mãe do operário russo do início do século 20 da obra de Gorki – que se envolve nas manifestações revolucionárias – é igual à mãe nordestina do trabalhador de engenho de açúcar que se torna líder sindical, na época da ditadura militar brasileira, criada por Carlos Carvalho. Com um enredo local e global ao mesmo tempo, A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar evidencia o papel das mães na construção da história. As mães da Praça de Maio, dos revolucionários russos e de tantas outras nacionalidades, as mães dos soldados mortos em combate, dos presos políticos, as mães dos mártires, as mães dos grandes líderes... todas estão ali representadas na força e dedicação dessa personagem abnegada, que sequer possui nome próprio. “Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir. Temos vergonha, porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E, muitas vezes, por causa desse embaraço, revoltamo-nos contra os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos de todas as maneiras e feitios, queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.” Esse trecho do livro de Gorki retrata a vida cinzenta da época, o ar pesado do ambiente das manifestações populares dos operários. Mas, ao contrário do tom duro presente nos momentos mais trágicos do romance, a versão de Carlos Carvalho mescla a espontaneidade típica dos brincantes e a disciplina das técnicas teatrais, costurados pela sua condução precisa e detalhista das cenas. Resultado: drama e comédia se misturam, fazendo – como afirma um dos integrantes do elenco, o ator Flávio Renovatto – “o equilíbrio acontecer no palco, fazendo um teatro reflexivo, provocador, crítico, mas também divertido e muito festivo”.
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KARINA FREITAS
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LIMA BARRETO Testemunho direto de um estado de opressão
Ganham edição em volume único o autobiográfico Diário do hospício e o inacabado Cemitério dos vivos, inspirados na experiência pessoal do escritor carioca texto Gianni Paula de Melo
Quando descreveu minuciosamente o interior do Hospital Nacional dos Alienados, no quinto capítulo de Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado no formato de folhetim em 1911, Lima Barreto não poderia imaginar que ele próprio vivenciaria, em dois momentos, a experiência da internação naquele lugar. A primeira ocorreria três anos depois, entre os meses de agosto e outubro de 1914. Mas é de sua segunda passagem pelo hospício que nos chegam registros de memória e declarações de uma crise íntima. Ao retornar ao manicômio na noite de Natal de 1919, acometido por novos delírios, consequentes do alcoolismo, ele iniciou a escritura de um diário sobre o universo psicótico onde fora inserido, não só relatando o seu dia a dia, mas analisando seus personagens – alienistas e alienados – e sua lógica social, sob um olhar de aguda lucidez. Esse repertório de lembranças, intitulado Diário do hospício, ganhou edição da Cosac Naify, juntamente com o romance inacabado Cemitério dos vivos, inspirado na experiência pessoal e interrompido devido ao falecimento do autor. Ainda no prefácio do crítico Alfredo Bosi, atentamos à particularidade desse livro. “São raras as obras que possam valer como testemunhos diretos e coerentes de um estado de opressão e humilhação”, comenta. Para o relançamento, os organizadores Augusto Massi e Murilo Marcondes de
Mesmo frustrado e dilacerado emocionalmente, o autor dotou de lucidez seus textos produzidos no hospício Moura consultaram os manuscritos guardados na Biblioteca Nacional, além de terem revisto as edições anteriores, inclusive a primeira delas, organizada pelo biógrafo de Lima Barreto, Francisco Assis Barbosa, em 1953. Embora estivesse destroçado emocionalmente pela falta de reconhecimento público à sua obra, a frustração do autor não embota formalmente os escritos, em nada obscuros ou herméticos, como, nesse caso, seria esperado. Ao contrário, as ideias, descrições e impressões são claras e densas. Agrega-se a elas a constante autocrítica do escritor perante o seu vício e as suas escolhas. A reavaliação do passado torna-se mais dolorosa quando confronta ambições e limitações: “Sonhei Spinoza, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei o Dostoiévski, mas me faltou sua névoa”. Referindo-se ao hospício como “meio hospital, meio prisão”, no romance protagonizado pelo quixotesco Policarpo Quaresma, Lima Barreto já demonstrava repúdio à instituição, associada, no seu
imaginário, à falta de liberdade e solidão. Não se enganou. Enquanto esteve internado, o homem do meio literário e jornalístico recebeu poucas visitas, o que acabou colaborando para intensificar o seu drama e tornar as suas contradições mais evidentes. No tocante à família, por exemplo, ora compreendia a decisão do internamento, devido ao incômodo que estava gerando a todos, ora censurava-os e julgava-os simplistas na resolução encontrada para o seu quadro de alcoolismo.
FUGA DA cRiSe
O exercício literário e o apreço pela palavra tornavam, em certa medida, o confinamento menos penoso para o escritor. Optando pelo diário, Lima Barreto dava passos na direção do autoconhecimento, a partir da prática solitária de notificação da rotina instituída pelo gênero autobiográfico. No contexto de degradação explicitado, o diário incorpora uma função psicoterapêutica, pois, como aponta o especialista no gênero, Alain Girard, nessa documentação o indivíduo recupera a consistência da identidade, atacada por acontecimentos externos. No entanto, Diário do hospício está muito além da busca pelo conforto pessoal. A obra se apresenta híbrida, incorporando não só o “eu” atormentado e deprimido nos seus últimos anos de vida, mas também o analítico cronista que ele nunca deixou de ser e o leitor de
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DocUMento
Nova edição da obra de Lima conta com fotografias da época e textos de outros autores relativos ao tema
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formação e erudição, a despeito das dificuldades implicadas pela sua classe social e sua mestiçagem. Enquanto esteve internado no Hospital dos Alienados, Lima foi frequentador assíduo da biblioteca do hospício. A possibilidade de escapar dos estorvos através da literatura residia não apenas no ato de escrever, mas na prática do duplo criação/fruição de textos literários. Por isso, menciona algumas vezes a leitura de Plutarco e tece observações sobre a obra dele. O lado cronista, por sua vez, está presente em todo o diário, enfocando principalmente a ineficiência dos tratamentos para psicóticos, mas pontuando também as contradições morais da sociedade carioca que lhe chegavam através dos jornais. A multiplicidade de papéis assumida pelo escritor confere peculiaridades à publicação, que extrapola o formato tradicional do gênero diário. O tratamento do tempo é o elemento mais evidentemente desconstruído, pois os relatos nem sempre se apresentam referenciados
São atuais as observações do escritor carioca quanto aos procedimentos da psiquiatria por data, como demanda o gênero, podendo às vezes estar implícito (Dia de São Sebastião) ou completamente velado. Isto também se deve às diferentes nuances do registro, que ora é autobiográfico, ora adquire tom de crônica e ora incorpora elementos da ficção.
teSteMUnHo e FicÇÃo
“ Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido, mas devido à oclusão muda do meu orgulho intelectual.” A confissão lamentosa presente no diário é, no entanto, fictícia. Sabe-se que Lima Barreto nunca se casou. Da mesma
forma, o autor apresenta a própria mãe como portadora de transtornos mentais (embora ela tenha falecido à época da infância dele), e refere-se a um filho doente, também irreal. Essas experimentações ficcionais desenvolvidas no espaço do relato íntimo culminaram na publicação do Cemitério dos vivos, romance que oferece continuidade de sentido à produção do autor naquele período, visto que as duas obras dialogam incansavelmente. Assumindo o caráter de romance autobiográfico, o livro apresenta o protagonista Vicente Mascarenhas, extensão fictícia do próprio Lima Barreto e com muitas características convergentes. Entre elas, estão a origem humilde, a ambição da formação intelectual, a atividade no funcionalismo público convivendo com o exercício do jornalismo e da literatura, as dificuldades financeiras, o alcoolismo acompanhado de delírios e, por fim, as internações psiquiátricas. O Cemitério dos vivos parece mesmo uma consequência inevitável da vivência de Lima Barreto que, ao seguir da memória ao romance, leva para este trechos intactos do seu diário. O ceticismo de Lima Barreto em relação aos procedimentos da psiquiatria não foi leviano. Ainda hoje não há um diagnóstico de cura para os psicóticos, e os tratamentos são questionáveis. O desinteresse das instituições ante o drama individual de cada paciente, tratando os casos de distúrbios de forma generalista, continua sendo regra, e o cronista anteviu as falhas do sistema manicomial. A presente edição dos dois textos amplia a reflexão sobre a história social da loucura, através das notas organizadas por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Os comentários contextualizam os relatos de Lima Barreto de acordo com informações divulgadas nos jornais da época, além de identificarem precisamente os psiquiatras citados e discriminar os seus posicionamentos médicos. Soma-se ainda ao conjunto o apêndice, composto por crônicas de Machado de Assis, Raul Pompéia e Olavo Bilac sobre o hospício e os valores presentes nessa instituição.
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MÁRIO SOUTO MAIOR A cultura popular pelos olhos do eterno menino Folclorista nunca perdeu a curiosidade e o encantamento que lhe serviram de combustível para traçar o retrato do homem brasileiro texto Gilson Oliveira
Mário Souto Maior, quem diria,
teve seus dias de Carlos Zéfiro, aquele autor de quadrinhos eróticos avidamente lidos, às escondidas,
pelos jovens nas décadas de 1950 e 1960. Essa experiência underground do escritor e folclorista pernambucano é lembrada pelo jornalista e crítico
de cultura Luís Antônio Giron, em resenha publicada no seu blog sobre o Dicionário do palavrão e termos afins, obra censurada pelo regime militar em 1974: “O malfadado livro virou uma espécie de catecismo pornográfico que circulou de mão em mão dos adolescentes no fim dos anos 70”. “Catecismo” era o apelido dado aos clandestinos e disputadíssimos gibis de Zéfiro. O texto de Giron, como muitos outros recentemente veiculados nas várias mídias, foi motivado pelo lançamento da 8ª edição do Dicionário do palavrão pela Editora Leitura, de Minas Gerais, em 14 de julho deste ano, mesmo dia em que Souto Maior, nascido em 1920, completaria 90 anos. Na orelha do livro, o escritor revela um pouco da gênese da obra e algumas turbulências por ela – e ele – vividas: “Eu estava coletando material para um trabalho que se intitularia Vocabulário popular do sexo. Gilberto Freyre mostrou-me uma notícia numa revista sobre a publicação de um dicionário do palavrão na Alemanha e me disse: ‘Souto, você que tem uma paciência franciscana, por que não transforma seu Vocabulário num dicionário dos nossos palavrões?’”. As chuvas e trovoadas trazidas pela censura são detalhadamente apresentadas no capítulo O dicionário do palavrão – um pesadelo que deu certo, do livro As dobras do tempo: quase memórias, ensaio autobiográfico de 1995: “Para espanto meu, os jornais recifenses, uns dois dias após (a conversa com o sociólogo) já noticiavam que eu estava trabalhando num dicionário de palavrões. Os jornais do sul, por sua vez, passaram a explorar a notícia, dizendo, também, que Gilberto Freyre ia escrever o prefácio do livro. E não havia ainda pensado em como iniciar a pesquisa quando recebi um telefonema da Censura Federal pedindo os originais do livro”. Se o objetivo do veto prévio era desestimular a conclusão da obra, isso aconteceu porque os censores não conheciam nem um pouco o pesquisador, que enviou um questionário com mais de 20 indagações para quatro mil pessoas de todos os estados brasileiros. “Foi uma despesa danada porque eu já enviava, junto ao questionário, um envelope selado para agilizar as respostas”, escreveu Souto Maior, que muitas vezes tirava do
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próprio bolso o financiamento de suas obras, que muito ajudaram a sociedade brasileira a conhecer um pouco mais de si mesma, conhecimento garimpado nos ricos filões da cultura e tradições populares, especialmente as nordestinas. “O folclore é o alicerce e a alma de um povo”, dizia o estudioso.
DeSAFoRoS e LoUVoReS
Embora os questionários para o Dicionário tenham provocado “cartas desaforadas e telefonemas anônimos combatendo a publicação do livro ainda em elaboração”, também colheram louvores de importantes intelectuais, segundo os quais a obra preencheria grande lacuna no estudo da língua portuguesa. Entre os ilustres defensores de Souto Maior – que também ressaltaram o peso linguístico do palavrão na boca dos brasileiros –, estavam, além de Gilberto Freyre, Jorge Amado, Mauro Mota, Nelson Saldanha, Valdemar de Oliveira e Hermilo Borba Filho, que, respondendo ao questionário, disse: “Palavrão é amor e amor é poesia”. Liberado em 1979, após os originais ficarem cinco anos silenciados pela censura, o livro mostrou que sua proibição funcionou como excelente marketing. A primeira edição se esgotou em pouco tempo, o que, segundo comentários, ensejou a venda de exemplares xerografados. Antes, o Dicionário do palavrão foi elevado à condição de símbolo de resistência cultural, tornando-se uma espécie de termômetro da abertura política, com os principais veículos de comunicação do país registrando, como numa novela, os vários capítulos da polêmica que gerou e a sua liberação. No Jornal do Brasil, Carlos Drummond de Andrade aproveitou a queda do veto para fustigar a ditadura: “A carga de tais preconceitos é tamanha, que o Dicionário do palavrão, de Souto Maior, levou anos trancado em gavetas de censura, porque certo ministro da Justiça considerava atentatória aos costumes uma obra que tem similares de nível universitário na Alemanha, na França e em outros países. Foi necessário que a opinião pública forçasse os governos militares à abertura democrática (...) para que esse
Leitura
Antes mesmo de iniciar a pesquisa para o Dicionário do palavrão, Souto Maior recebeu aviso da censura livro conquistasse direito de circulação e, portanto, de ser criticado. Seu autor, julgado sumariamente em sigilo de gabinete, seria assim um pornógrafo, quando na realidade se trata de um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação”.
UM SUPeRAUtoR
Elogios de grandes nomes das letras brasileiras eram comuns na vida do folclorista. Jorge Amado, por exemplo, afirmou que ele é “um desses trabalhadores intelectuais que realmente contribuem para a nossa cultura”. Em seu livro Mário Souto Maior – cronologia e bibliografia, de 1995, Lúcia Gaspar, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), registra que, apenas entre livros e opúsculos, ele deixou 87 obras de gêneros diversos, pois era também etnólogo, poeta e contista. Incluindo-se
prefácios e apresentações para livros de vários autores, organização de obras individuais e coletivas (como Antologia do Carnaval do Recife, em parceria com Leonardo Dantas Silva), além de artigos para jornais e revistas de quase todo o Brasil, sua produção supera 600 trabalhos. Sem falar que foi responsável pela publicação de mais de 300 micromonografias editadas pela Fundaj, que abordam os mais variados temas folclóricos e foram produzidas com a participação de outros grandes estudiosos. A produção de livros não foi maior porque ele só começou a sistematizála em 1969, quando, já trabalhando no Instituto Joaquim Nabuco (atual Fundaj), publicou Como nasce um cabra da peste, que depois seria lançado também em CD, com leitura gravada pelo próprio escritor. Antes, publicara apenas Meus poemas diferentes, em 1938, e Roteiro de Bom Jardim, com o irmão Moacyr, em 1954, sobre o município em que nasceu, no Agreste de Pernambuco. A dedicação aos livros fez com que tirasse “de letra” até um problema que teria afetado muitas vidas literárias: a perda da visão do olho esquerdo.
MAGnÉSiA BiSURADA
Extenso e multifacetado painel sobre o cotidiano nordestino, focalizando
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INDICAÇÕES 1
conDecoRAÇÃo
Mário Souto Maior (E) recebe a Medalha Nordeste de Humanidades de Fernando Freyre (D)
os costumes e crenças mais representativos da Região, a obra de Souto Maior incursiona pela culinária, medicina, cangaço, comportamento... Uma infinidade de assuntos. Alguns títulos são autoexplicativos: Comes e bebes do Nordeste, Dicionário folclórico da cachaça, O puxasaco aqui e acolá e A mulher e o homem na sabedoria popular. Às vezes, as informações são tão inusitadas, que só a credibilidade alcançada pelo pesquisador permite nelas acreditar. É o caso do livro Nomes próprios pouco comuns. Prefaciado por Drummond e resultante de pesquisa feita até em catálogos telefônicos, registra nomes de batismo como Magnésia Bisurada do Patrocínio, Antônio Manso Pacífico Sossegado e Francisco Facada Sargento de Cavalaria. “Ele vivia na mesa de trabalho, normalmente ficava até depois do horário de expediente e ainda fazia muita coisa em sua casa”, diz a antropóloga Rúbia
Lóssio, que trabalhou com o escritor de 1997 a 2001 e lançou, em parceria com ele, o livro Dicionário de folclore para estudantes. Há oito anos coordenando o Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior, Rúbia relembra com carinho as milhares de conversas que teve com o “guru”, evocando, entre outras coisas, seu bom humor, memória privilegiada, senso de organização, capacidade de observação, jeito de contar histórias, preocupação com a educação e sintonia com as novidades tecnológicas. Rádio-amador durante muitos anos, atividade que ele utilizava para ampliar suas pesquisas, era também fascinado por computador e já estava colhendo na internet dados para novos trabalhos. Com um nome próprio pouco comum, pelos seus dois destacados adjetivos, “Maior” e “Boaventura”, que ele nunca usava, o escritor – ganhador de importantes prêmios nacionais e internacionais – era conhecido, principalmente, pelo jeito humilde de ser, além de uma timidez quase infantil. Não sem motivo, quase todos o chamavam de “Dr. Soutinho”. O fascínio pela infância era outra marca, levando-o a iniciar a Coleção Aprender Brincando, na qual chegou a publicar os títulos Um menino chamado Gilberto Freyre, Uma menino chamado Hélder Câmara, Um menino chamado Joaquim Nabuco e Um menino chamado Capiba. E o seu filho Jan lançou Um menino chamado Mário Souto Maior. Ele havia completado 80 anos, mas continuava a enxergar o mundo com o olhar curioso, insaciável e mágico da criança que continuou a ser até o seu próprio “encantamento”, em 25 de novembro de 2001.
ROMANCE
MARIA CAROLINA MAIA Ciranda de nós Grua
A história de uma mulher que relembra sua infância vivida numa praia do litoral pernambucano, enquanto anda pela Avenida Paulista. Essa é a sinopse do romance de estreia da jornalista paulista. Nele, são evidentes – pelo cenário e pela linguagem, um tanto caricata em alguns trechos – as influências de José Lins do Rego e Guimarães Rosa.
MISCELÂNEA
HOMERO FONSECA Blogosfera Calibán
Seleção de textos publicados no blog do jornalista e escritor, o volume reúne crônicas, artigos, muitos comentários, tanto do autor quanto dos leitores. Tudo é perpassado pelo efêmero que caracteriza esse templo virtual que é a blogosfera. Para dar estofo ao conjunto, o autor o organizou por afinidades temáticas, relativas à literatura, ao cinema, à musica, às cidades e à memória.
HISTÓRIA
RAUL CÓRDULA Memórias do olhar Linha d’Água
A quem interessam as memórias? A pergunta inquieta os que se lançam ao memorialismo, que ganha a contribuição do artista plástico paraibano Raul Córdula. O livro é feito de fragmentos de textos e imagens que evidenciam a tarefa de remexer arquivos, com enfoque no círculo intelectual pessoense dos anos 1950 e 1960.
ARTES
VERA BEATRIZ SIQUEIRA Iberê Camargo: origem e destino Cosac Naify
Rico em iconografia, o livro reúne e analisa cronologicamente a produção deste artista gaúcho. A cada capítulo, obras são reproduzidas e comentadas por um especialista. Trata-se de uma publicação introdutória à obra de Iberê, que pode ser agregada a títulos de consulta sobre pintura brasileira do século 20.
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ILUSTRAÇÃO O mundo inventivo de Pablo Bernasconi
Artista argentino defende a criação gráfica a partir da experimentação conceitual, desenvolvendo obras para adultos e crianças texto Mariana Camaroti
com variedade de temas e conceitos, e uma mistura original de técnicas, o trabalho do argentino Pablo Bernasconi, 37 anos, é de ampla classificação. Primeiro, porque ele é ilustrador, mas seu trabalho vai além do conceito tradicional de estampas que dão suporte a textos. São também colagens que resultam em imagens com volume, aproximando-se tanto do desenho quanto da escultura. Segundo, porque o que ele constrói não é um simples cenário, mas uma leitura conceitual e discursiva sobre um acontecimento, uma pessoa ou tema existencial. Além de atuar como ilustrador, ele também é autor de livros para crianças e adultos, alguns publicados no Brasil. Bernasconi é dono de um estilo facilmente identificável, não só pelas suas ilustrações, cheias de experimentos, mas pela forma metafórica com que aborda os temas. As imagens que ele cria complementam as palavras, acrescentando informações, interpretações. Juntas, palavra e estampa, são ferramentas de comunicação entrelaçadas, com um só significado. Em alguns casos, como nos livros voltados para adultos, a ilustração é o próprio motor da interpretação, catalisadora do conceito que pretende transmitir. Esse entrelaçamento está presente de maneira mais acentuada em Bifocal, livro que acaba de ser lançado na Argentina e que, por enquanto,
em suas obras, palavra e estampa funcionam como ferramentas de comunicação entrelaçadas, com um só significado ainda não chegou ao Brasil. Nele, o autor visita 23 temas, como céu, inferno, crise, sucesso, amor, morte e política, através de visões polarizadas: uma positiva, outra negativa. Cada assunto é abordado sob essas duas perspectivas, cada qual pela união de uma frase de uma pessoa que disse algo importante – como Buda ou Jorge Luis Borges – e um desenho alegórico, feito a partir dessa citação. A frase “Doem-me a cabeça e o universo”, de Fernando Pessoa, por exemplo, é escolhida para encarar de forma pessimista o tema crise; enquanto Albert Camus – “No meio do inverno, descobri que havia em mim um verão invencível” – traz seu lado otimista. O livro tem duas capas diferentes, impressas de ponta-cabeça. Enquanto um dos lados é sombrio, escuro (e o autor aconselha percorrê-lo tomando um merlot e escutando Tom Waits ou John Coltrane), o outro é luminoso, claro (e pode, segundo o autor, ser lido acompanhado de um malbec, ao som dos Beatles, Chopin ou Ella Fitzgerald).
oS DoiS LADoS
“Experimento conceitualmente e trabalho de forma que esta seja uma questão primária e, não, secundária na criação”, explica Bernasconi. Ele afirma que se debruçou sobre cada um dos temas de Bifocal instintivamente, em dias de bom ou mau humor. O trabalho levou dois anos de elaboração e, hoje, migra de uma seção a outra nas livrarias. “Não é um produto convencional. Geralmente, livro para adulto é de texto e pronto. Por isso, é difícil encontrar editoras que apostem nesse tipo de publicação”, afirma. Além de ser mais ácido que os seus livros anteriores, este traz mais experimentações. Bifocal é o segundo da trilogia conceitual do autor. O primeiro foi Retratos – lançado em 2008 e também inédito no Brasil –, que reúne frases de ícones de diversas áreas, como Vincent Van Gogh ou Freddie Mercury, e suas caricaturas. Marco da música, Louis Armstrong, um dos 57 personagens do livro, é retratado com um trompete na mão. No lugar do nariz, uma nota musical, e a frase ao lado: “Toda minha vida, toda minha alma, todo meu espírito em tocar esse trompete”. Os cabelos de Isaac Newton foram feitos com cascas de maçã; os óculos de Woody Allen são de película de filme e seus cabelos e pelos, marcas de beijos de batom. A boca de Mike Tyson é uma orelha (em alusão à mordida que ele deu em um adversário) e o boxeador Rocky Balboa – personagem de Sylvester Stallone,
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Visuais que marcou o cinema de grande bilheteria – tem o rosto feito com um pedaço de carne crua e ensaguentada. Pablo Bernasconi conta que anda pela rua olhando para o chão e recolhendo materiais em desuso. Frequenta depósitos, onde compra quinquilharias; e antiquários, em que adquire peças raras, enquanto um turbilhão de informações ocupa a sua mente. Também há dias em que ele dá uma volta com a máquina fotográfica na mão – para usar as fotos em suas criações – e uma sacola para carregar bugigangas. “Vejo um objeto e penso de que maneira ele pode servir para o meu trabalho”, afirma. Depois da “coleta”, leva tudo para o estúdio, montado em casa, e se entrega às possibilidades de criação. Ali, cria ilustrações através de composições e colagens de objetos, trabalhando a tridimensionalidade e o jogo de luz. Como é seu estúdio? Cheio do que, inicialmente, pode ser chamado de “lixo”. “Chega um momento em que já não posso mais andar dentro dele e nem posso trazer mais nada.” Mas Bernasconi prefere chamar seu ateliê de “laboratório perigoso da imagem”. Naquele lugar, um botão vira o escudo de um super-herói; uma bola de gude torna-se a boca de um leão e a palha, sua juba; um pedaço de couro
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é a pele de uma vaca; e uma moldura de espelho barroco, o contorno do rosto de Oscar Wilde. Há ironia, sarcasmo, humor e crítica nas suas peças, como naquelas em que uma máquina de gasolina dá corpo a George W. Bush e um megafone substitui a boca de Luciano Pavarotti. Autor do texto e das ilustrações de 10 livros infantis, oito deles publicados no Brasil pela editora Girafinha, Bernasconi diz que busca se aproximar das crianças através do humor e da criação. “Meus livros não têm moral
da história ou pedagogia, nem buscam ensinar nada a ninguém”, afirma. Seus títulos foram publicados na América Latina e na Europa – alguns deles traduzidos em oito idiomas.
DeSDe cRiAnÇA
A infância e adolescência influenciaram seus livros. Quando era pequeno, Bernasconi queria ser veterinário, e os animais são um tema predominante nas publicações infantis – O zoo de Joaquim, Hipo pode nadar, Vaca branca, mancha preta – do artista. O espaço aéreo e seus
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Página anterior 1 CIUDAD MACETA
Bernasconi tem um estilo facilmente identificável, não só por suas ilustrações cheias de experimentos, mas pela forma metafórica com que aborda os temas
Nestas páginas 2 KAte MoSS
A modelo é uma das celebridades que ganhou forma nas criações do artista argentino
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subtemas também são recorrentes, talvez por ele ter crescido em aeroportos e aviões – já que o pai era piloto – e ter licença para pilotar desde os 16 anos. Além de Telônio, o ambulante do espaço, Bernasconi lançou com essa temática O diário do capitão Arsênio – a máquina de voar, vencedor do Prêmio Zena Sutherland da Universidade de Chicago de melhor livro infantil de 2008. Entre os livros para crianças, esse último é o mais surpreendente. A história do sonhador e incompetente Arsênio é contada numa mistura entre
o texto propriamente dito e o diário de bordo do personagem, apresentado em ilustrações. Essas trazem máquinas mirabolantes criadas pelo personagem – que o autor concretiza com uma combinação de sucatas –, seus cálculos antes de cada tentativa de voo e a linha do tempo com a qual conta a experiência, incluindo medições de altitude (e de queda livre após as consecutivas falhas das engenhocas). Completando a série de infantis, são dele também O mago, o horrível e o livro de feitiçaria, Super-herói ou supervilão
BIFOCAL
Neste livro, o autor elege temas em seus aspectos positivo e negativo. A partir deles recolhe citações importantes e desenha
e Excessos e exageros. A revolução de Tortoni – que narra a história de um rapaz do qual os pensamentos começam a fugir e aparecem escritos no ar para todo mundo ver, criando situações embaraçosas – chega às livrarias brasileiras em 2011. Já Espacio para colorear é inédito no país. Para promovê-los e ter contato com o público, todos os anos, ele visita o Brasil, principalmente São Paulo, onde participa de feiras de livro, visita escolas e dá palestras. Leitor ávido desde pequeno, em parte por influência dos pais, Bernasconi é apaixonado não só pelo conteúdo, mas também pelo objeto livro. “Gosto de atesourá-los. E olhálos de um lado, do outro, observar como eles ficam numa estante, nas minhas mãos, explorá-los sob várias perspectivas.” Sua relação com a literatura era apenas de leitor – e ilustrador de mais de 10 livros de outros autores –, até que sentiu que precisava lançar seus próprios títulos. Nos livros infantis, Bernasconi se sente mais livre e o trabalho flui mais rápido, em torno de um ano para cada título, conta ele. Já as publicações para adultos levam dois anos em média, além de exigir muito mais reflexão e dedicação. “Exponho-me completamente nesses livros conceituais, pois expresso exatamente o que penso.” O processo é longo. “Mas, antes de expressar, preciso definir realmente o que penso a respeito de um assunto, como em Bifocal, ou sobre o ícone de determinada área, em Retratos. E minha opinião muitas vezes muda em um período de dois anos.” As criações começam com um esboço no papel, e o autor procura
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ser fiel à ideia inicial. Suas imagens não têm linha, medida, formato nem técnica que as delimite. Tudo depende do lugar para onde sua imaginação o levará. Alguns traços em papel ou tinta podem completar a ideia, assim como desenhos ou retoques feitos em computador. Mas, ao contrário de muitos ilustradores, o computador não
é o eixo das suas estampas. “Manter a gestualidade, a sensibilidade e a abstração no meu trabalho continua sendo primordial”, argumenta.
eScoLA PoLoneSA
Nascido em Buenos Aires, mudou-se com os pais para Bariloche, no sul da Argentina, ainda pequeno. Depois de
MAteRiAiS
os óculos de Woody Allen são de película de filme e seus cabelos e pelos, marcas de beijos de batom
voltar para a sua cidade natal, onde cursou desenho gráfico e foi professor universitário, decidiu se mudar para a bela cidade sulista e viver rodeado de neve, lagos e montanhas. “Buenos Aires tem muitas opções e tira o foco”, diz ele. Do sul do país, Bernasconi continua fazendo hoje o que já fazia antes de ser escritor. Suas ilustrações são publicadas em jornais do mundo todo, como o Clarín, The New York Times, Saturday Evening Post, Telegraph e The Times, da Inglaterra, além da revista Rolling Stone, entre outras. Também ilustra livros de outros autores, faz trabalhos publicitários e voluntariado. São suas, por exemplo, as ilustrações de todo o material gráfico e promocional das Mães da Praça de Maio, organização argentina que há 30 anos busca os 30 mil desaparecidos durante a última ditadura militar. Respeitado na Argentina e reconhecido internacionalmente, ganhou vários prêmios internacionais. Para construir sua carreira no país de Quino – consagrado criador de Mafalda e sua turma –, Bernasconi bebeu na fonte da escola polonesa de cartazes do pós-guerra, principalmente em Roman Cieslewicz e Jan Lenica. Também são referências suas o pintor alemão John Heartfield, o ilustrador norte-americano Brad Holland e o artista e designer Luba Lukova. Mas ele também se remete aos seus ídolos na literatura – Jorge Luis Borges, Edgar Allan Poe; na filosofia – Friedrich Nietzsche; e no cinema – Woody Allen, para citar alguns, quando está trabalhando. Mesmo sendo dono de uma técnica peculiar e de um traço agradável, Bernasconi prioriza a mensagem. “É necessário que as direções tomadas dentro da plástica não façam desaparecer aquelas sobre a ideia, a mensagem”. Assim, desenho e semiótica, fato e análise, tema e interpretação andam juntos no trabalho de Bernasconi, mas são precisamente as ideias que determinam para onde sua imaginação deve viajar.
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JOÃO CÂMARA 18.250 dias de dedicação à pintura Artista celebra seus 50 anos de atuação com obra que fala de sua experiência no campo das artes texto Mariana Oliveira
“não quero que alguém se iluda com o conteúdo do presente livro. Ele trata de pintura e de minha experiência com ela ao longo destes últimos 50 anos. Se você, por qualquer razão e motivo pessoal, íntimo ou filosófico, não tem interesse em pintura, ou mesmo, se acha que essa é uma forma de arte que perdeu o sentido e a função no ambiente contemporâneo, pare de ler exatamente agora e ponha o livro onde o achou.” Essas são algumas das palavras escritas pelo pintor João Câmara na abertura (apropriadamente intitulada de “Advertência ao leitor”)
do livro comemorativo à sua trajetória artística, lançado em novembro. Aqueles que persistirem na leitura após tal advertência, ao virar da página, encontrarão uma verdadeira acolhida: “Quanto a você outro que, com perspicácia e gentileza, cruzou as linhas acima e até aqui chegou, portando simpatia pelo assunto anunciado, saiba que não posso prometer conclusões lógicas ou andaimes críticos de construção acadêmica. Este é um livro em primeira pessoa cindida entre folhas pintadas e escritas (e, talvez, faladas)”.
Em João Câmara – 18.250 dias, o artista narra o início de sua relação com a pintura, desde o primeiro teste para ingressar no Curso Livre da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco, com apenas 16 anos, em 1960, até suas recentes séries baseadas em obras lidas durante sua juventude, como Robinson Crusoe, que deu origem à Diorama da ilha (foto acima). Destrinchando suas técnicas, Câmara conta como foi a tentativa frustrada de fazer uma pintura abstrata, na ânsia de tornar-se “moderno”. O resultado, segundo ele, foi uma pintura figurativa de uma abstração. A importância do desenho no planejamento de suas pinturas, bastante fragmentadas e com recortes nos campos de fundo, é outro tema sobre o qual ele discorre. A cada página do volume bilíngue, ilustrado com imagens de suas pinturas organizadas em ordem cronológica, vai-se compreendendo os universos habitados por esse pintor e percebendo os diálogos, interações e pontos de discordância entre ele e tantos outros nomes importantes na história da arte pernambucana e mundial.
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memória de ismael caldas
matéria corrida José cláudio
artista plástico
Há pintores de tal modo voltados
para si mesmos que qualquer comentário sobre a sua obra torna-se ingerência indébita. É como se imiscuir nos assuntos da casa alheia, em coisa que não nos compete; além de ele, através do próprio discurso muito bem expresso pelos quadros, demonstrar, de antemão, antes até de executar os quadros, a postura que assume; sendo o quadro, como peça em si, secundário, portador que não merece pancada; e quanto mais propositalmente canhestro e risível melhor transmitirá o escárnio, mais ácido o hálito dirigido a essa “coisa malcheirosa”, como ele chama a humanidade, a espécie humana. Há indivíduos que parece já nasceram cansados, que já perderam a paciência com a imbecilidade humana: e quem não tem dentro de si algum momento dessa descrença, do quanto é vã a esperança de melhorar a fera humana? Contrariamente à ideia de
Rousseau de que o homem nasce bom e a sociedade corrompe, há a crença de que o homem nasce ruim, para rimar com Caim, desde Adão e Eva e a expulsão do paraíso, e daí a necessidade do batismo, para quem acredita nessas coisas. Ismael Caldas admite ter ao seu redor grandes pessoas “mas não se pode julgar com base apenas nas amizades”. Apesar de deixar transparecer uma grande sensualidade, suas mulheres são pintadas com um certo nojo ou determinação coprófila e ao mesmo tempo em antiposes que lhes expõem o ridículo, denunciando o falso pudor, revelando aqui e ali o requinte de sadismo, a crueldade da representação, maquiagem que não esconde a feiura, a peruca em vez do cabelo, nessa coleção de seres grotescos, nesse “discreto charme da burguesia”. E aí está uma das chaves da obra de Ismael, a da representação da burguesia, já que é
esta a meta a atingir de todo o Ocidente e não sei se da humanidade inteira, o peru de Natal na mesa de todo chinês, como prometia Mao Tsé Tung (e parece que estão chegando lá), uma negra utopia, a generalização de um mundocão (em tempo, a “negra utopia” está na busca do padrão burguês e não no “peru de Natal”). Mas quando se denuncia, subentende-se haver alguma escuta e mesmo quando se prega no deserto há a possibilidade de as ondas sonoras baterem nas oiças de algum receptor, deixando entrever nisso a crença em algum milagre, talvez num planeta distante, ou número reduzido de componentes de improvável confraria. E que seriam abatidos impiedosamente pelos blindados membros do Consilium Fraudis, título que agrupa alguns quadros. Antigamente se falava em “paleta do pintor”. Todo pintor que se prezasse tinha a sua paleta, aquela placa de
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madeira de misturar tintas, alusão às cores ou matizes da predileção desses pintores, algumas cores até ficando na história com o nome do pintor, como “verde veronese”, ou “verde veronês”, de Paolo Veronese (Verona, Itália, 1528-88) ou “azul natier” de Jean-Marc Nattier (Paris, França, 1685-1766) ou os cinzas de Velázquez (Sevilha, Espanha, 1599-1660). Nunca mais ouvira falar nisso mas me ocorre agora, vendo os quadros de Ismael Caldas, pois ele segue rigorosamente a sua paleta inconfundível. Não se trata aqui das cores das nossas paisagens tropicais, da cor do céu e do mar, das árvores ou das flores ou dos pássaros, da nossa natureza “perpetuamente em festa”. As cores de Ismael Caldas não são para “açucenar a vida”, lembrando o poeta Ângelo Monteiro, de uns versos que botei como epígrafe no meu livrinho Ipojuca de Santo Cristo: “com palavras de cor verde/quero açucenar a vida/a que voz, senhores, destes/um gosto de formicida”. É esse “gosto de formicida” que Ismael consegue captar magnificamente. São terras que vão desmaiando na medida da palidez esquálida de suas figuras, uma
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consilium fraudis
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decúbito dorsal
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a dona do galgo
Acrílica sobre tela, 90x60cm, 1993
Óleo sobre duratex, 35x122cm, 1998 Óleo sobre duratex, 120x90cm, 2008
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Apesar de deixar transparecer grande sensualidade, suas mulheres são pintadas com um certo nojo ou determinação coprófila espécie de Juízo Final, os condenados ainda com os seus disfarces, suas roupas pretas sobre fundo de lambris cor de jacarandá qual esquifes envernizados de tabuinhas perfeitamente rejuntadas, interiores tumulares mas como se as personagens nos olhassem de um trono, de uma cátedra e somente admitissem ou contassem com nossa absoluta subserviência; o pintor nos revela, mesmo num dos seus nus, absolutamente irrepreensível, sem nenhum traço caricato, sugerindo até, através de uma triangulação de linhas, um interesse altamente estético, geométrico, científico, um lado pútrido onde azuis cianóticos transpiram do cianureto de que se nutre. Suas mulheres nos convidam a esmiuçar até o limite
do perverso, atraídos que somos pela excelência da representação pictórica. Mas logo recuamos como se diante de um corpo exumado cuja pele se rompesse ao menor toque e se desfizesse como uma pústula. Alguma coisa paira no ar, além dos aviões do Barão de Itararé, para que três dos nossos melhores artistas, e os artistas são “a antena da raça”, nos alertem, convocando-nos a um “exercício de lucidez” (do texto Memória distribuído no recinto da exposição, onde o pintor também cita, de Mark Twain: “Eu não pergunto de que raça é um homem; basta que seja um ser humano; ninguém pode ser nada pior”): Gil Vicente, com seus “assassinatos”; Roberto Ploeg com a série dos “fora da lei”; coincidindo com essa visão pessimista da sociedade em que vivemos, de Ismael Caldas, que pregou atrás de cada quadro um papel com o fragmento de Jorge Luis Borges: “... essa peculiar majestade que têm os canalhas encanecidos, os facínoras venturosos e impunes”. Um aceno à tenacidade de Vera Magalhães, sua dedicação até braçal à arte.
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INTERNACIONAL A comida que vai à mesa no final do ano Chefs sugerem pratos para compor a ceia natalina, com elementos da tradição culinária portuguesa, espanhola e alemã texto Flávia de Gusmão Fotos 2nafoto
Há toda sorte de estrangeiros:
aqueles que não conseguem digerir a ausência que lhes foi imposta; aqueles que de bom grado abraçaram os hábitos do país anfitrião; aqueles cuja antiga pátria está impressa apenas no código genético; e até aqueles que se sentem estrangeiros em seu país de origem. O mais curioso tipo de expatriado talvez seja aquele que reúne uma pitada de cada uma das categorias relacionadas, mesmo porque a saudade é algo inexplicável, móvel, sorrateiro e despropositado. E é à mesa que ela dá vazão às suas mais expressivas manifestações físicas. E como seria diferente? Não é este o lugar onde somos expostos, simultaneamente, a um bombardeio de estímulos sensoriais? O aroma que nos joga para um certo lugar do passado, geográfico ou emocional. A contemplação do prépreparo, do preparo e do resultado, que antecipa e confirma um jeito de fazer que combina com as nossas raízes. O sabor que advém do somatório, não só dos ingredientes, mas também do amassa, aperta e mexe, necessários para o cumprimento exato de qualquer receita. É à mesa também onde as conversas fluem compassadamente
principal e, finalmente, a beatitude que a chegada da sobremesa proporciona, quando corpo e alma parecem alcançar em uníssono a quietude e a completude.
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1 sUPeRstiÇão Lentilhas são símbolo de fartura e prosperidade
2 ALemães Marlene Konrad não deixa faltar em sua ceia natalina pratos que levam porco
– primeiramente, num ritmo apressado de antecipação que só o apetite imprime; velocidade que vai crescendo e acalmando ao som de uhnnnnns! e ohhhhhs!, onomatopeias que traduzem elogios vindos do prazer quando os primeiros pratos chegam. O silêncio reverente que se segue depois de um portentoso prato
João Barbosa, empresário português responsável pela chegada ao Brasil da marca de cafés Delta, é o que se pode chamar de um ser híbrido, fruto do perfeito amálgama entre duas nacionalidades. Das sandálias Havaianas ao gosto pela feijoada com caipirinha; do prazer de jogar conversa fora num boteco, rodeado de amigos, à paixão pela praia. Enfim, tudo o que definimos como estereótipo nacional pode contar com seu endosso e entusiástica aprovação. Mas é nas ocasiões em que a comida é protagonista que ele estende uma grande bandeira de Portugal, reverenciando, primeiramente, suas origens culinárias. Embora o peru de Natal seja a peça de resistência entre os brasileiros, nesta festividade, João Barbosa, nascido em Aveiro, Norte de Portugal, não abre mão do prato mais representativo da data: ganhou a aposta quem pensou em bacalhau. O que seria de nós
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SALAdA dE LENTILhAS dA FAmíLIA KONRAd Ingredientes 500g de lentilha 1l litro e meio de água 3 batatas inglesas 300g de linguiça portuguesa (assada) 300g de costelinha de porco (assada) 200g de calabresa (assada) 3 folhas de louro 5 dentes de alho 1 cebola picada Sal e pimenta a gosto Preparo Colocar as lentilhas e as folhas de louro de molho em 1 litro de água por 40 minutos. Acrescentar o restante da água e levar ao fogo médio por 30 minutos. Refogar as carnes com cebola, alho, orégano, sal e pimenta até dourar. Acrescentar à panela das lentilhas junto com a batata em cubos até dar o ponto (se engrossar colocar mais água). Para decorar, sementes de romã.
se os portugas não nos tivessem apresentado esse pescado e suas mil e uma formas de preparo? Ao contrário do que estamos acostumados – pois os pratos natalinos se apresentam até nós com pompa e circunstância –. o tradicional “Bacalhau com Todos” é até decepcionante em sua apresentação. As postas de bacalhau cozidas na companhia de ovos e legumes, principalmente couve, têm um aspecto descorado, quase hospitalar. Mas é justamente na sua modéstia que está a explicação para sua função: este é um prato que representa a abstinência e recato que se devem preservar na véspera de Natal. “De uma maneira geral, o ritual da festa natalina é muito similar entre Brasil e Portugal, afinal, preservamos a mesma origem fortemente cristã”, diz João. “É nos traços culinários que mais temos nos
A salada de lentilhas é uma mistura do grão cozido e refogado com linguiça, paio, calabresa e costelinha de porco distanciado ao longo do tempo, com pratos salgados e doces que vemos lá e não vemos por aqui.” Outro exemplo dado por João é a receita que ajuda a aproveitar as sobras do bacalhau da ceia do dia 24: “Para o almoço do dia 25, ele vira a roupa velha, quando todos os ingredientes são triturados para formar uma pasta e compor uma espécie de empadão”, diz, antecipando a delícia que já passa a pertencer à sua família brasileira. Sua mulher Karlla, entusiasta da
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BACALhAu COm TOdOS (4 a 6 porções) Ingredientes 1,200 kg de lombo de bacalhau dessalgado (ou 1 kg de lombo de bacalhau salgado e seco) 10 batatas médias (cortadas ao meio) 3 cebolas grandes (cortadas aos quartos) 3 cenouras (cortadas longitudinalmente) 1 molho de couve (as folhas cortadas ao meio) 1 cabeça de nabo (aos quartos) 4 ovos 3 dentes de alho 1 xícara de azeite extravirgem Sal a gosto e 1 folha de louro (opcional) Preparo (Se o bacalhau é salgado e seco, deve antes ser dessalgado conforme as instruções.) Numa panela grande, cozinhar em fogo brando, com a água temperada de sal, as batatas descascadas e cortadas ao meio, a cenoura, o nabo, a couve e o bacalhau, que deve ser acrescentado por último, quando as batatas e as cenouras estiverem quase cozidas. Cozinhar os ovos à parte e cortá-los em gomos. Misturar os ovos com os demais ingredientes e deixar em fogo mínimo por mais cinco minutos. Enquanto isso, picar bem três dentes de alho e deixar dourar em uma xícara de azeite. Retirar o bacalhau do fogo e servir bem quente, regado com o molho de azeite e alho. 4
culinária lusitana e cozinheira de mão cheia, aumenta a cada ocasião o seu receituário para dar conta do recado nesta ponte gastronômica que une as duas pátrias, cimentada pela relação entre sogra e nora, marido e mulher, pais e filhos.
esPAnHA
O espanhol Juan Gattel, este ano, vai a extremos para se sentir em casa. Numa época em que poucos restaurantes abrem – costume que também é observado em seu país natal –, ele estará confortavelmente instalado em seus próprios domínios, o Juanito (Rua Prof. Wanderley Filho, 336, Boa Viagem, fone: 33272089), e pronto para oferecer a seus clientes um menu de Natal à moda do seu torrão. Aliás, nada mais natural do que estar dentro de uma cozinha para quem vem de uma família que tem no DNA a arte de
o “Bacalhau com todos” representa a abstinência e recato que se devem preservar na véspera de natal gerir um restaurante desde 1929, no município de Valls, na província da Tarragona, comunidade autônoma da Catalunha: o Masia Bou. Lá, a casa de seus parentes tem uma especialidade no mínimo curiosa para nossos hábitos. A calçotada, que consiste num amontoado de cebolinhas jogadas sobre uma grelha e que, depois de assadas e retirada a primeira pele, são vorazmente consumidas pelos comensais com o acompanhamento de um molho apropriado. Para a
época natalina, Gatell não traz nada tão “exótico” quanto a calçotada, mas vai oferecer receitas que deixarão o seu peru recheado com jeito de comida de todo dia. “Normalmente, a mesa de Natal é o lugar em que nos lançamos aos comes e bebes sem comedimento. Nesse dia, retrocedemos às antigas tradições pagãs da Saturnália, festa que acontecia de 17 a 23 de dezembro, em honra ao Deus Saturno, padroeiro da agricultura. Atualmente, na Nochebuena (véspera de Natal), as famílias se reúnem à mesa, preparando pratos de confecção laboriosa e sofisticada. Cada região tem produtos próprios. No norte da Espanha, há abundância de peixes e frutos de mar; no centro, o cordeiro, o leitão e as carnes de porco, além de legumes e verduras; na parte mediterrânea, predominam os frutos secos, amêndoas, avelãs,
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PERNA dE CORdEIRO AO PERFumE dE ALECRIm Ingredientes 1 perna de cordeiro (tem que fazer vários cortes para que o molho penetre) 1 cebola grande ou duas pequenas 1 copo de vinho de xerez espanhol Suco de meio limão siciliano 100 g de pinhões 100 g de uvas-passas sem caroço Grãos de pimenta preta do reino 1 raminho de alecrim 1 folhas de louro 2 dentes de alho Preparo Limpe o pernil e, em seguida, coloque-o em uma tigela de vidro com vinho xerez (se não tiver, substitua por vinho do Porto, sumo de
limão, pimenta, louro, alecrim e alho picado). Cubra e deixe na geladeira durante a noite. Três horas antes de servir, pré-aqueça o forno a 150 graus. Vire o cordeiro para que a parte que esteve no líquido durante a noite fique agora por cima. Adicione o sal e cubra novamente. Coloque no forno e reduza a temperatura para 130 graus. Depois de 15 minutos, adicione a cebola, os pinhões e as passas. Tampe e coloque de volta ao forno com azeite de oliva e algumas folhas frescas de hortelã para decorar. Após uma hora, vire o pernil e, desta vez, deixe-o descoberto, elevando a temperatura para 170 graus. Aos 45 minutos, transfira o suco (deve haver muito) para uma panela, tendo cuidado para não perder os pinhões,
passas e cebola, que devem ficar com o cordeiro. Coloque de volta no forno. Quando o cordeiro estiver a gosto (com a carne bem macia), pode desligar o forno, tendo o cuidado de mantê-lo com algum calor. Enquanto isso, leve a panela com o suco da carne ao fogo alto para engrossar um pouco. Você pode adicionar algumas gotas de molho de soja ou suco de maçã ou um pouco de amido de milho dissolvido no vinho tinto. Sirva as fatias da perna de cordeiro, cada uma com pinhões, cebola e passas, e um pouco de molho por cima. O resto do molho pode ser servido numa tigela à parte. Para acompanhar, batatas cozidas com sal, legumes no vapor e vegetais verdes (brócolis, feijão verde, couve) puxados no azeite.
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Página anterior 3 “BAcALHAU com toDos”
Com uma apresentação simples, as postas do peixe são cozidas com ovos, legumes e couve
4 ReAPRoVeitAmento A família de João Barbosa já aderiu à ideia de preparar o almoço do dia 25 com as sobras do bacalhau Nestas páginas 5 esPAnHA
A perna de cordeiro ao forno, com preparos variados, é típica da culinária do país
6 HeRAnÇA O espanhol Juan Gattel é descendente de família de restauranteurs da Catalunha
no cenário gastronômico pernambucano: a grife também conhecida como Grupo Spettus. O que não mudou para Marlene foram as lembranças gustativas que a acompanham desde a sua origem. Entra ano e sai ano, ela não dispensa, seja na mesa natalina da sua casa ou nos bufês dos restaurantes da família, que tradicionalmente abrem para a ocasião, a salada de lentilhas que resulta da mistura entre o grão cozido e refogado com linguiça, paio, calabresa e costelinha de
o pernil ganha sabor e aroma especiais quando mantido em molho de especiarias de um dia para o outro
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carnes de frango, peru ou faisão, também frutos do mar e variadas carnes”, situa. Entre as receitas tradicionais que Juanito apresenta na noite de Natal estão: leitão ao forno cozido à baixa temperatura com nozes e frutas; escudelha e carne d´olla (cozido típico catalão com massa, carnes de boi e porco, linguiças e a pelota, uma espécie de almôndega); peixe recheado ao forno com batatas coradas e geleia de pimentão vermelho; creme de cogumelos com avelãs e presunto pata negra; peru recheado com castanhas e linguiça, servido com purê de maçã e perna de cordeiro ao forno, ao perfume de alecrim com damascos e amêndoas, entre outros.
ALemAnHA
Marlene Konrad é neta de imigrantes alemães que se instalaram há muitas décadas no Rio Grande do Sul. Da infância na cidade de Lajeado, quando acompanhava a oma (avó) nos seus afazeres culinários, até os dias de hoje, no Recife, muita coisa mudou na vida dela: o casamento com Julião Konrad, um caminhoneiro paranaense de Chapecó de origem igualmente germânica; a mudança de Estado da família inteira, formada também pelas filhas loirinhas e de olhos claros, até o estabelecimento do seu sobrenome de casada como um dos mais representativos
porco. Pesada? Nada que não possa ser absorvido e apreciado por quem foi criada entre joelho de porco, kassler, batatas e chucrute, sem esquecer as famosas wurst (linguiças e salsichas) de sabor marcante. “Ainda hoje, não há possibilidade de terminar o ano sem comer um focinho de porco”, diz, “porco é animal que fuça para a frente e a gente tem que seguir sempre em frente”, explica. Vai também um pitada de simpatia nessa salada feita por Marlene Konrad: “Diz a tradição que lentilhas são símbolo de fartura e prosperidade”, explica. Para garantir, ela finaliza seu prato com sementes de romã, outra fruta associada a bons augúrios.
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Artigo
orlando senna em defesa do audiovisual da américa latina Sabemos todos que o xis do problema do audiovisual é a distribuição/exibição. Esse aspecto centraliza a atividade desde 1906, ano em que o governo dos Estados Unidos, por decreto, expulsou os filmes franceses do seu território. O motivo dessa medida pioneira e drástica foi o sucesso de bilheteria dos filmes da empresa francesa Pathé, que superava em muito os filmes da nascente Hollywood. Um século depois, essa disputa feroz por espaços de exibição (casas de cinema) também inclui tempo de exibição, já que a nave mãe Cinema se desdobrou em televisão, internet, DVD, recepção móvel e, daqui a pouco, em outras mídias que estão em gestação. A Europa e os Estados Unidos disputaram durante décadas os mercados nacionais consumidores – atualmente, a predominância é dos EUA, ocupando 80% das telas (pequenas e grandes) do mundo. A América Latina enfrentou essa situação com inventividade e ousadia, inclusive disputando mercados com o cinema de Hollywood nos anos 1940 (os melodramas da Pelmex mexicana) e, na era da televisão, criando grandes empresas de comunicação como a Televisa do México e a Globo do Brasil. Na primeira década do século 21, a proliferação dos meios de produção (vídeo, edição eletrônica) e difusão (internet, webtv, canais locais), resultantes da digitalização dos suportes e das mídias, abriu a possibilidade de um mercado mais equilibrado. É na perspectiva desse equilíbrio, de uma comunicação mais democrática nas escalas regional e mundial, que se insere a TAL– Televisão América Latina, um formato de empresa cooperativa, um modelo de negócio não comercial que vem demonstrando
divulgação
surpreendente capacidade de juntar energias no continente. O casal de empresários inovadores Roberto e Malu Viana são os responsáveis pela ideia e implantação dessa Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), com um desenho operacional avançado, adequado ao novo cenário audiovisual, ao século digital que estamos começando a viver. A plataforma é a internet, ancorada em www.tal.tv, que abriga os mecanismos da distribuição de conteúdos, uma webtv à disposição de todos, catálogos e conexões importantes. Trata-se de uma cooperativa de comunicação envolvendo mais de 200 associados na América Latina e na Península Ibérica. Esses associados são produtores independentes, instituições governamentais e culturais e canais públicos de televisão. Dezenas de emissoras públicas de TV de 21 países conformam a Rede TAL, horizontalizada, democrática, sem “cabeça de rede”, com conselho consultivo e diretoria plurinacionais. Utilizando tecnologias avançadas de transmissão de dados (e também meios menos sofisticados, quando necessários, devido às assimetrias tecnológicas dos países iberoamericanos), a TAL é como um complexo de pontes e viadutos entre as emissoras, permitindo a circulação de conteúdos entre elas. Outra imagem é a de uma caixa cibernética, um storage coletivo – nele, quem põe conteúdo tem direito a todo o conteúdo da caixa. O acervo e a rede foram organizados de maneira contínua e crescente durante sete anos e, em 2010, alcançou um nível de maturidade (e também complexidade) que exigia a renovação de suas estratégias e a ampliação de suas operações. O primeiro passo foi dado em julho, em uma reunião das emissoras associadas no Uruguai, realizada em cooperação com o Docmontevideo. O segundo passo foi dado agora, com a realização no Recife do Encontro de TVs Públicas e Culturais da América Latina, auspiciado pelo Ministério da Cultura e Governo de Pernambuco. Os recursos da TAL são oriundos de projetos compartilhados com
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governos ibero-americanos e dos serviços que oferecem como complementação da difusão de conteúdos, sua atividade central (produção de telesséries, concepção e empacotamento de programas, assessorias tecnológicas). O encontro no Recife, envolvendo cerca de 50 emissoras públicas de TV do continente, 30 instituições culturais e uma centena de especialistas em comunicação de todas as partes do mundo, busca aperfeiçoar os procedimentos da rede e a qualidade da programação – e materializar novos modelos de negócio e cooperação, adiantandose ao crescimento exponencial da produção e distribuição audiovisual
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1 os paraguaios Making of do documentário que integra a série Os latino-americanos produzidos pela Tal
previsto para os próximos anos, com a instalação plena da digitalização. Realizamos lançamento de novos conteúdos, reflexões e encaminhamentos, abordando mídias alternativas e estratégias de coprodução envolvendo muitos parceiros. Outra linha de reflexão importante é a economia da cultura, principalmente o conceito de Cidades Criativas (inclusive com a inauguração do esperado portal Observatório da Economia da Cultura, do MinC). A filosofia e a ação da TAL estão focadas na aproximação cultural entre os povos latino-americanos. O princípio que possibilita o cumprimento dessa missão é a
o problema central para o audiovisual brasileiro continua sendo o binômio distribuição/exibição, o que inclui novos meios unidade política, histórica e orgânica que está no olho do furacão da nossa diversidade cultural, da nossa efervescente multiculturalidade. É o princípio da comunidade, de um grupo de individualidades diferentes que se sentem ligadas umas às outras por laços indissolúveis. A outra palavra para tudo isso é integração,
com o entendimento de que o melhor caminho para alcançar essa meta é interagir, é o binômio interação/ integração, é a proliferação de parcerias, é cooperar. O êxito da TAL, traduzido na ampliação de seu quadro de associados e em um aumento notável de acessos à webtv, está diretamente relacionado ao desenho contemporâneo de seu modelo negocial e a outro aspecto de igual peso: o ícone, o mito, a utopia, ou qualquer outro nome que queiramos dar ao desejo latinoamericano de sermos um povo, uma nação com muitos países. Uma nação que possa se ver com seus próprios olhos, para que nos vejamos, realmente, tal como somos.
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Célio Pontes
POLÍTICAS CULTURAIS, PRÓXIMOS DESAFIOS
célio Pontes
é ator, arte-educador e designer maíra gamarra
Pensando no cenário de desenvolvimento econômico projetado para as próximas décadas no Brasil, e refletindo sobre o papel das políticas culturais no recente contexto histórico, é possível vislumbrar desafios que pautam avanços estruturadores para o setor. Com a redemocratização, as expressões culturais se fortalecem, reorganizam-se e projetam, a partir de 1986, o conceito de políticas públicas para a cultura, com ênfase nos modelos de mecenato e renúncia fiscal. Apesar de alguns efeitos perversos da subvenção, seu foco principal é definido a partir do estímulo à produção do bem cultural. No âmbito da difusão e distribuição, também é possível identificar investimentos em novos equipamentos culturais, com aportes públicos e privados para recuperação e abertura de espaços. Agora, emergem outras demandas igualmente relevantes para o desenvolvimento da atividade cultural e sua sustentabilidade no país. Inicialmente, há o desafio da manutenção continuada dos ativos culturais, com a infraestrutura que garanta a qualidade da difusão e da prestação de serviços. Numa frente paralela, os desafios no campo da formação e da profissionalização se impõem, especialmente, por sua transversalidade ao universo da cultura. São demandas fundamentais, presentes desde os arranjos produtivos e distribuição até a fruição. Nenhum setor produtivo se desenvolve plenamente sem investimentos na formação profissional, sobretudo o setor cultural, cujo elevado capital humano contribui para que as atividades se firmem com significativo percentual de participação no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Por sua abrangência, e considerando os investimentos estruturadores em curso no Brasil, é urgente, também, ampliar a capacidade instalada da produção cultural. Há que se pesquisar sistematicamente, planejar e definir indicadores de avaliação. Além de democratizar ainda mais o acesso do cidadão comum a essa construção coletiva. A definição de lastros qualitativos para o setor cultural deve se traduzir na educação de qualidade, na elevação do bem-estar e melhoria da saúde coletiva; na segurança pública, e em outras tantas externalidades positivas para a sociedade. Quanto mais clara for a percepção do papel estratégico da cultura no desenvolvimento do país, mais obstáculos estruturais devem ser superados. Um dos principais estrangulamentos passa por uma necessidade de formação cultural abrangente. Não basta formar praticantes nas diversas cadeias criativas, mas, antes, cativar e cultivar apreciadores de bens culturais. Se há demanda por conhecimento, certamente, haverá campo para uma oferta generosa de produção. O ambiente virtuoso, que se inicia com a formação específica de gestores, pesquisadores, produtores, artistas e técnicos da cadeia produtiva, deve contribuir para um ciclo de desejável sustentabilidade nas próximas décadas. São os desafios do presente traduzidos na construção de uma sociedade que se reconhece por seus laços culturais.
con ti nen te
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