hallina beltrão, karina freitas e mariana chiappetta
ja n e i r o 2 0 1 1
aos leitores A revista Continente faz 10 anos. Além de um evidente motivo de comemoração, esse tempo é também de reflexão. O que ele significa? Tratando-se do mercado editorial pernambucano, é um feito. Até aqui, raras foram as revistas mensais publicadas por tal período e sem interrupções, sobrevivendo a uma série de desestímulos que se interpõem entre o desejo e a possibilidade de realizar e permanecer. Também do ponto de vista de um produto jornalístico, uma revista mensal de cultura que se mantém com a qualidade e com o respeito ao seu projeto editorial como esta é incomum, mesmo no contexto nacional. Porque temos muitas revistas, publicações ótimas, com projetos editoriais criativos, bons profissionais nelas envolvidos. Mas também temos os maus exemplos, as que cedem aos apelos, às pressões, as que não resistem, as que se encastelam... A Continente, nas suas várias fases, também conheceu momentos radiantes e opacos, e isso certamente continuará a acontecer, porque revista é como vida, passa por fluxos e refluxos. Esteve sob orientação de mais de um editor, por ela passaram vários colaboradores, já foi repensada para manter e ampliar o diálogo
Editorial.indd 4
com o leitor, está em movimento para se fazer relevante, agradável, inteligente, necessária. Foi com esse espírito esperto que planejamos a edição que agora você tem às mãos. Se essa década foi tão importante para a Continente, como compartilhá-la simbolicamente com o leitor? Se era uma “festa”, como tornar esse número especial? Então, fizemos como fazemos em casa, quando vamos receber os amigos: em essência, o lugar é o mesmo, mas conferimos a ele algo fora do comum e da rotina. E trouxemos outra densidade à conversa. Temas que nos parecem fundamentais a essa década, como o tempo, a cidade, a autoria, os relacionamentos, a tecnologia – e aspectos a eles correlatos – foram trabalhados em vários gêneros, como a reportagem, o artigo, o ensaio, a crônica, com a colaboração de vários profissionais, que produziram materiais exclusivos para esta edição. O que nós queremos é que a leitura deste número não se restrinja a este mês, mas que tenha um efeito positivo e duradouro sobre todos nós, independentemente do tempo, esse substantivo mais que abstrato. E que a revista Continente tenha vida longa e saudável!
29/12/2010 16:18:19
sumário Portfólio
Cia da Foto
6 Depoimentos
7 Expediente
8 Entrevista
74 Crônicas
João do Rio e Antônio Prata A partir de texto do escritor carioca, falecido em 1921, o cronista paulista imagina como será a vida do homem em 2020
+ colaboradores Renato Ortiz Sociólogo analisa temas urgentes da contemporaneidade, destituindo sensos comuns
80 Cibercultura
92
Artigo
24
96
Saída
Balaio
De volta para o futuro Um dos mais originais e bem-sucedidos exemplos de exercício de futurologia no cinema completa 25 anos
42 Trânsitos
72
16
Pierre Lévy Pensador francês observa os meios digitais com a experiência de quem foi um dos precursores da análise desse fenômeno
14 Conexão
Figment Além de incentivar os usuários a ler, comentar e criticar os textos publicados, site sugere que cada internauta poste suas obras
O tempo, em suas diversas camadas, é interpretado em imagens do coletivo de fotógrafos e texto do professor Eduardo Duarte
Aeroporto Filósofo Alain de Botton indica o aeroporto como ponto de convergência de temas marcantes da modernidade
alter Benjamin W A importância da obra do intelectual que teceu reflexões de prestígio sobre a crítica da cultura, teoria da história e da arte
Marcelo Pedroso O cinema em 3D está a serviço do espetáculo
Matéria Corrida osé Cláudio J Margarida Lucena da Hora
Autoria Criação
Diante das novas ferramentas e de modos de compartilhar o fazer artístico e da revisão da Lei do Direito Autoral, indaga-se qual o sentido da palavra “autor” no mundo atual
56 Capa foto Divulgação do filme Safety last (O homem mosca, 1923)
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 5
Sumario.indd 4
29/12/2010 16:21:57
Cidade
Profissões
O que acontece quando as metrópoles crescem sem planejamento, mantendo diferenças sociais abismais e negligenciando seu patrimônio histórico?
Nestes primeiros anos do século 21, surgem profissões que nem somos ainda capazes de nomear, ao mesmo tempo em que teimam em existir antigos ofícios tornados relíquias
Arte
Comportamento
Nas últimas décadas, a arte tem sido particularmente tocada pelos novos meios, gerando modificações significativas neste campo
Psicóloga Maria Consuêlo Passos reflete sobre as relações humanas no século 21, marcadas pela virtualidade e pelos novos modelos de família
Verticalização
26
Tecnologia
64
Ciclos
46
Jan’ 11
Relacionamentos
84
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5
Sumario.indd 5
29/12/2010 16:22:29
depoimentos Pautas criativas Desde que comecei a colaborar com a revista, em 2002, tive sempre o prazer de receber pautas diferentes, criativas, inspiradoras. Escrevi pensatas sobre a morte, o jornalismo de guerra, a utopia, o saber, o Modernismo, a relação entre arte e religião. Como sempre vi o jornalismo cultural como um herdeiro do ensaísmo de Montaigne, fiquei muito contente com as oportunidades. Também escrevi sobre autores e criadores que me atraem muito: de Graciliano Ramos ao dr. Johnson, de Antonio Candido a Rembrandt, de Mario de Andrade a George Orwell. Foram mais de 40 textos, e o espectro de assuntos e a liberdade das abordagens comprovam o lugar único que a Continente ocupa no cenário brasileiro. Outras revistas culturais cometem ao menos um de três pecados: ou estão a serviço da agenda, de forma submissa e previsível, e temem qualquer texto que não fique na superfície das “informações adjetivadas”; ou se voltam ao público acadêmico, com dossiês que nem mesmo seus autores devem ler na íntegra, escritos com pouca clareza e nenhum charme; ou são “alternativas”, feitas por um grupo de amigos para um grupo de amigos, sem pauta ou edição profissionais. Acho que a Continente buscou um espaço intermediário, em que os “especialistas” encontram algo novo e os “não especialistas” são convidados a descobrir; ou melhor, em que não existe essa divisão simplista entre especialistas e não especialistas... Que venham mais 10 anos! DANIEL PIZA jornalista
Tudo fervendo Sou do tempo do Wagner Carelli, na Bravo!, e a vi surgir, na Vila Olímpia, como a gente nunca imaginou ver surgir uma revista, cá em
Pindorama. Isso foi em 1998, e o impulso da publicação criada por Carelli viria a repercutir, não há como negar, no país inteiro, Pernambuco não sendo uma exceção. Então, apareceu a Continente, há 10 anos, com o esquisito “multicultural”, desnecessário, até ficar Continente somente, resistente por uma década também de bravura cultural disposta a dobrar o tempo. Saravá! Sou otimista a respeito dessas continentais páginas que contemplam o local, o regional e o universal, devidamente mixados para que não sejam paroquiais. Essa danada nasceu com cabelo na venta, respirando ali pelas quebradas de ventania do cais, onde se desenharam as naus holandesas, vindo amadurecer, a carbureto, as bananas de dinamite do Estado libertário, inquieto, desacomodado, Leão do Norte de sete cabeças e nenhuma, até agora, cortada do orgulho que estivemos recuperando nos últimos anos (Pernambuco aprendendo a amar a si mesmo, como Gilberto Freyre se amava: com sensualidades de Narciso apaixonado pelo próprio reflexo). Sem exageros, trata-se de aprimorar o nosso sentimento de “pátria basca” da cultura, ou nó do Nordeste se apertando aqui, sem bairrismos, pelos caminhos do caldo de cultura que vem dos portugueses, passa pelos flamengos e se plasma com a herança dos africanos e a cultura dos índios, tudo fervendo debaixo do sol que, neste janeiro, parece uma caldeira onde tudo se caldeia: literatura, cinema, teatro, música, artes visuais e cênicas, depoimentos, confissões, leituras, viagens para fora e para dentro. Façamos figa para que assim continue, e, acima de tudo, não envelheça na massa cinzenta, pois o futuro já começou na esquina de todos os tempos da semana passada. O resto é resto.
Frio na barriga
Número zero A equipe do número zero da revista Continente, que ostentaria um pretensioso “multicultural”, era exígua. Mário propôs que a capa e matéria principal fossem o Auto das portas do céu, que eu escrevera com Assis Lima e Everardo Norões. Preparamos os textos, as entrevistas, fizemos as fotografias. A peça estreou em agosto, a revista saiu apenas em dezembro. Resultado: a matéria foi para o Suplemento Cultural. Passei dias de cara feia. João Câmara ganhou a capa e uma matéria extensa, quase um quarto de revista. Nesse tempo – olha, faz apenas 10 anos –, as revistas de cultura publicavam verdadeiros necrológios. Será que alguém lia, além do autor? Era moda. Textos longos, alguns indigestos. Eu assinava a coluna Entremez, e Mário Hélio fazia cobrança cerrada. De vez em quando a amizade estremecia. Foi um tempo de rico aprendizado. Sempre me considerei da Continente: opinava, indicava colaboradores, como Mariana Oliveira. Não tinha semana que eu não passasse pela Cepe. Estreitaram-se os laços com Homero, Marco Polo, Luiz Arrais, Nélio, Eduardo... Coisa boa a revista chegar aos 10 anos se renovando. Viva, pulsante, uma voz de Pernambuco falando para o mundo. Sem modéstia.
FERNANDO MONTEIRO
RONALDO CORREIA DE BRITO
ESCRITOR
escritor
Lembro como se fosse hoje. Eu tinha acabado de me formar em Jornalismo, trabalhava no Jornal do Commercio e decidi ligar para a revista para sugerir uma pauta sobre o pintor pernambucano Zuleno, de quem eu havia vendido quadros na galeria Arte Maior em meu primeiro emprego. Mário Helio, então chefe de redação, me perguntou, na lata: “E por que você mesma não faz a matéria?” Topei na hora, e foram três as versões que escrevi e Mário Helio corrigiu ao meu lado – uma verdadeira aula – até que a reportagem foi publicada. De lá para cá, ele, Marco Polo, Homero Fonseca e Mariana Oliveira pediram ou aceitaram minhas pautas, no Recife ou em Buenos Aires, onde vivo há sete anos. MARIANA CAMAROTI jornalista
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
(81) 3183 2780
Fax
(81) 3183 2783
redacao@revistacontinente.com.br
Site
revistacontinente.com.br
co n t i n e n t e ja n e i r O 2 0 1 1 | 6
DEPOIMENTOS_COLAB.indd 6
29/12/2010 16:25:09
colaboradores
eduardo Duarte
Guilherme Wisnik
Giselle Beiguelman
Alexandre Severo
Jornalista e professor da UFPE, mestre em Antropologia e doutor em Ciências Sociais
Arquiteto e crítico, mestre em História Social. Autor de Estado crítico: à deriva nas cidades
Artista plástica, doutora em História da Cultura, professora da pós-graduação da PUC-SP
é fotógrafo do Jornal do Commercio
e MAiS Antonio Prata publicou oito livros, entre os quais Adulterado, de crônicas, e O inferno atrás da pia, de contos; é cronista do jornal Estado de S. Paulo. carolina Leão é jornalista, mestre em Comunicação e doutora em Sociologia. césar colera Bernal é mestre em Filosofia pela UECE e professor de Filosofia na Universidade Católica de Fortaleza. cia da Foto é um coletivo de fotografia baseado em São Paulo. costa neto é fotógrafo. Diana Moura Barbosa é jornalista, mestre em Comunicação e editora-assistente do Caderno C, do Jornal do Commercio. Fábio Lucas é jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio. João do Rio (1881-1921) foi o nome adotado por João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, que foi escritor, jornalista, tradutor e dramaturgo. Júlio cavani é jornalista e escreve sobre cinema, música e artes visuais. Luciano Gatti é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Marcelo Abreu é jornalista e professor da UNICAP. Marcelo Pedroso é jornalista e documentarista. Maria consuêlo Passos é doutora e mestre em Psicanálise, professora da Unicap e pesquisadora de família. Schneider carpeggiani é jornalista, mestre e doutorando em Teoria da Literatura. Val Lima é fotógrafa da Fundarpe.
GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco
sUPErINtENDENtE DE EDIÇÃo
CoNtAtos CoM A rEDAÇÃo
AtENDIMENto Ao AssINANtE
goVErNADor
Adriana Dória Matos
(81) 3183.2780
0800 081 1201
Eduardo Henrique Accioly Campos
sUPErINtENDENtE DE CrIAÇÃo
Fax: (81) 3183.2783
Fone/fax: (81) 3183.2750
sECrEtÁrIo DA CAsA CIVIL
Luiz Arrais
redacao@revistacontinente.com.br
assinaturas@revistacontinente.com.br
Francisco Tadeu Barbosa de Alencar rEDAÇÃo
ProDUÇÃo grÁFICA
EDIÇÃo ELEtrÔNICA
coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco – cePe
Danielle Romani, Débora Nascimento, Diogo
Júlio Gonçalves
www.revistacontinente.com.br
PrEsIDENtE
Guedes, Mariana Oliveira e Thiago Lins
Eliseu Souza
Leda Alves
(jornalistas)
Sóstenes Fernandes
DIrEtor DE ProDUÇÃo E EDIÇÃo
Maria Helena Pôrto (revisora)
Roberto Bandeira
Ricardo Melo
Gabriela Lobo, Gianni Paula de Melo, Maíra
DIrEtor ADMINIstrAtIVo E FINANCEIro
Gamarra, Maria Doralice Amorim, Mariana
PUBLICIDADE E MArKEtINg
Bráulio Mendonça Menezes
Chiappetta e Raquel Monteath (estagiários)
E CIrCULAÇÃo
CoNsELHo EDItorIAL:
Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)
Armando Lemos Alexandre Monteiro
Mário Hélio (presidente) Antônio Portela
ArtE
Rosana Galvão
José Luiz Mota Menezes
Hallina Beltrão e Karina Freitas (paginação)
Gilberto Silva
Luís Reis
Nélio Câmara (tratamento de imagem)
Daniela Brayner
Luzilá Gonçalves Ferreira
Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE rEDAÇÃo, ADMINIstrAÇÃo E PArQUE grÁFICo Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
co n t i n e n t e ja n e i r O 2 0 1 1 | 7
DEPOIMENTOS_COLAB.indd 7
29/12/2010 16:25:20
RENATO ORTIZ
“A internet não é a metáfora da vida” Sociólogo discute questões da contemporaneidade a partir de uma perspectiva crítica que procura desmitificar sensos comuns e ideias abarcantes sobre a comunidade internacional texto Gianni Paula de Melo
con ti nen te
Entrevista
Quando decidiu abandonar
São Paulo e o curso de Engenharia, Renato Ortiz tinha pouca clareza sobre os desdobramentos de sua decisão. Perdera os pais ainda jovem, não se adaptara à Escola Politécnica, tampouco às limitações do governo militar aos debates intelectuais no Brasil. Ao desembarcar na França, em 1970, o sociólogo se deparou com outra realidade, decisiva aos seus estudos. Experimentou a efervescência política e cultural de Paris, onde as inquietações de Maio de 68 permaneciam vivas. No percurso da sua formação, teve a oportunidade de ouvir de perto as considerações de teóricos como Edgar Morin, Roland Barthes, Michel Foucault e Roger Bastide, e trouxe para suas pesquisas influências desses intelectuais. Em conversa com a Continente, Renato Ortiz avalia a primeira década do século 21, problematizando questões centrais do debate sobre a cultura no mundo contemporâneo. Entenda-se cultura, aqui, não apenas no tocante aos bens simbólicos, mas como o conjunto de manifestações
coletivas que compõem o cotidiano da sociedade. Utopia, religião, sociedade de consumo e inclusão digital são algumas das temáticas abordadas pelo cientista social. Ele também comenta alguns dos fatos mais midiatizados nesses 10 anos, como a expansão dos partidos de esquerda na América do Sul e a Guerra do Iraque. O balanço feito pelo sociólogo evidencia a consolidação da globalização e enfatiza a necessidade de pensarmos a política no parâmetro da transnacionalidade. CONTINENTE Pode-se dizer que a contemporaneidade não possui um projeto político e cultural? RENATO ORTIZ Não é que não tenha, ela tem várias propostas. O problema é que nós não temos mais uma totalidade que nos encaminhe em uma direção consensual. Esse é um problema do contemporâneo, sobretudo em um mundo globalizado. Ou seja, não é que não existam utopias, elas existem. Foram criados vários discursos transnacionais como, por exemplo, o discurso ecológico. Ele tem uma vocação transnacional. Mas, evidentemente, não
tem a força que tinha, por exemplo, o marxismo. Quando eu digo força, estou me referindo ao encantamento de levar multidões a pensar uma transformação radical da sociedade. CONTINENTE O discurso ecológico hoje é a representação mais forte de um modelo de utopia? RENATO ORTIZ Não, existem outras. As religiões, por exemplo, representam outro tipo de discurso que tem capacidade de mobilizar as pessoas. Evidentemente, não existe um só. Capacidade de produzir discursos transnacionais nós temos, o que nós não temos é a capacidade de organizar o mundo em que vivemos. Mas isso não é ausência de projeto, isso é resultado da dificuldade de realizar politicamente um conjunto de ações em um mundo extremamente complexo. CONTINENTE A globalização foi exaltada em um primeiro momento e, posteriormente, evidenciaram-se seus mecanismos de exclusão, de promoção das disparidades sociais. Essa reflexão negativa também se aplica à ideia de mundialização?
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 9 8
Entrevista.indd 8
29/12/2010 16:28:24
Val Lima
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 9
Entrevista.indd 9
28/12/2010 12:57:23
atentado do 11 de setembro constitua marco de nada. Aquele foi um evento que repercutiu muito porque os Estados Unidos perceberam que fazem parte do mundo. Agora, não foi um divisor de momentos, porque o terrorismo já existia antes. O principal desse fato foi a tomada de consciência de que os ataques terroristas agora vão além da dimensão local, devido às transformações tecnológicas, porque você tem possibilidade de conexão, deslocamento e instrumento bélico disponível. Para os americanos, isso talvez tenha sido um marco. Para o mundo, não; não é a história do mundo. Isso reverbera, principalmente, por causa da mídia. Não existe o mundo antes do 11 de setembro e depois do 11 de setembro.
spencer platt
RENATO ORTIZ O debate sobre globalização evolui em um contexto muito específico de alguns economistas, dos homens de marketing e de administração de empresas, porém ele é marcado desde o seu início por um viés ideológico muito forte, então é esse viés que as pessoas chamam de “otimista”, da realização dos sonhos dos indivíduos dentro do mercado, porque havia essa ilusão. Apesar disso, o debate capta a noção de um processo de globalização que é real, concreto, independentemente da ideologia na qual ele foi trabalhado no início. Por isso que muita gente acreditava que a globalização era apenas uma ideologia, quando não era. Se o fosse, bastaria que nós construíssemos uma ideologia contrária e estaríamos
con ti nen te
Entrevista salvos. Mas quando se trata de um processo histórico, então ele é inexorável e os problemas começam a surgir. Mas não são entraves que estão fora da globalização, eles estão no seu interior como a desigualdade, as relações de poder, as hierarquias. Esses são temas que continuam, eles não foram e tampouco serão resolvidos com debate, serão solucionados se forem tomadas medidas concretas de transformação dessas condições. CONTINENTE Quais as consequências dos atentados terroristas nos EUA que são possíveis de se perceber ainda hoje? Como isso afetou a identidade da nação com maior poder belicista do mundo? RENATO ORTIZ Eu não acho que o
Não quero banalizar o evento, mas essa é uma percepção de norte-americano. CONTINENTE O senhor estava nos Estados Unidos alguns meses antes da invasão ao Iraque. Como eram conduzidas as discussões sobre o assunto entre os norteamericanos nesse período pré-invasão? RENATO ORTIZ Minha experiência em Stanford, durante a preparação para a invasão do Iraque, foi muito ruim. Os Estados Unidos estavam vivendo naquela época um clima pré-fascista de convencimento da população de que era necessária aquela invasão. Os meios de comunicação de massa tiveram um papel decisivo, desde a invenção da história das armas químicas até o convencimento
nacionalista mesmo. Eu me sentia amedrontado por ser estrangeiro. Só para citar um exemplo, na Universidade de Stanford, a discussão era se entregavam para a CIA o nome dos professores visitantes e dos alunos estrangeiros. O clima era assustador. CONTINENTE Qual a configuração da guerra na contemporaneidade? RENATO ORTIZ A ideia da guerra, hoje, parece um pouco distante, porque nós pensamos a nação em termos de princípios democráticos, eleições, igualdade, esse tipo de coisa. Fora da nação, pau em quem são nossos inimigos. Portanto, a guerra é sempre pensada como algo fora da nação e, como nós vivemos dentro
“O 11 de setembro não é marco de nada. Não quero banalizar o evento, mas essa é uma percepção de norte-americano. (…) Não comprei o pacote Obama da mídia. Uma coisa é a eleição de um presidente, a outra, as engrenagens de um país” dela, a guerra não nos atinge. No entanto, a guerra, que já existia antes, vai continuar. Mas agora ela vai tomar dimensão transnacional. Esse tema vai se tornar cada vez mais central e, pouco a pouco, vai entrar na consciência dos indivíduos, porque, agora, dentro do planeta, ela implica em distúrbios na sua própria vida pessoal. Vejam o caso dos Estados Unidos: eles representam uma sociedade democrática que invade democraticamente os outros para expandir a democracia. Não faz o menor sentido isso. Hoje em dia, a guerra faz parte da modernidade-mundo e não mais de um país contra outro país, então essas questões hoje são de relações internacionais e envolvem o planeta como um todo.
co con nt tiin neen nt tee JA JAN NEEIIR RO O 220 01111 || 110 1
Entrevista.indd 10
28/12/2010 12:57:26
mas tem o mundo de consumo do outro. Os indivíduos são obrigados a circular nesse contexto inserido na família, na escola, no shopping center, nos movimentos sociais. Com a globalização, o que mudou foi o surgimento de referentes transnacionais e não apenas vinculados ao Estado ou à realidade local. Mas isso não significa que nós estamos sem valores, essa é uma visão moralista. Do ponto de vista sociológico, ela não se sustenta. No século 19, as pessoas diziam a mesma coisa sobre o processo de modernização: “Nós estamos perdendo a religião”, “Nós estamos perdendo a tradição”, “O homem é nômade, não possui mais raízes”. A discussão dos valores acabam nos levando a uma concepção muito
recebeu foi bastante precipitado. A nação americana é muito mais complexa do que aquilo que vemos na poesia, na mídia e no mundo de Hollywood. Certamente, a política internacional norte-americana não pode mudar da água para o vinho em função da eleição de um presidente, porque existem interesses bélicos, financeiros e políticos. De certa forma, aqueles que acreditaram em demasia no espetáculo midiático se sentem frustrados.
distorcida da realidade, como se fosse possível recuperar os valores e, então, os problemas sociais seriam resolvidos. Isso é uma ilusão. Os problemas da sociedade não existem por causa da falta de valores. Eles existem porque a sociedade é desigual, porque existem hierarquia, poder e discriminação. Quando as pessoas não querem olhar esses problemas, elas os ocultam com uma discussão sobre valores.
divulgação
CONTINENTE Quais as principais implicações políticas percebidas a partir da eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos? RENATO ORTIZ Eu não comprei esse pacote Barack Obama da mídia, sempre fui muito cético em relação a essa eleição. Não no sentido de que isso não tenha nenhum significado, mas houve um exagero midiático.Talvez pelo fato de ele ser mulato e pelo fato também de ser o fim do governo Bush. Uma coisa é a eleição de um presidente, a outra são as engrenagens de um país. Evidentemente, eu nunca esperei grandes transformações nos Estados Unidos, e não ocorreu nenhuma delas. Talvez ele consiga melhorar um pouco a questão dos seguros sociais naquele país. Inclusive, o prêmio Nobel que
CONTINENTE Como se configura a identidade num momento histórico de tanta dispersão do ponto de vista dos valores? RENATO ORTIZ O que nós temos hoje são instituições concorrentes entre si, você tem a religião de um lado,
CONTINENTE A chegada de Lula à presidência e sua posterior reeleição indicam uma renovação na cultura política brasileira? RENATO ORTIZ As pessoas falam bastante dessa virada política sulamericana, no caso da Bolívia, da Venezuela e do Brasil. No entanto,
nós estamos falando de esquerdas políticas bastante diferentes. No caso brasileiro, houve uma conjunção de fatores muito favoráveis. Pelo menos, dentro da reacomodação da ordem mundial. De fato, o governo Lula foi o melhor governo que nós tivemos desde a redemocratização e a história vai julgar isso. Houve um conjunto de êxitos na economia, na distribuição de renda, na realização de um elenco de projetos. Evidentemente, isso não resolve os problemas do país como um todo, os problemas continuam existindo e precisam ser atacados. Mas, do ponto de vista de uma realização do Estado, Lula conseguiu o seu lugar na história. Às vezes, as pessoas têm dificuldade de enxergar isso. Fora do país, você enxerga melhor o Brasil do que dentro dele, porque, aqui, com essa polarização político-partidáriaideológica, você precisa tomar partido de um lado ou de outro. Agora, esse é um êxito da província do Brasil, não vamos confundir como um fenômeno do mundo contemporâneo. Tem a ver com a nossa conjuntura, a história do país, o seu desenvolvimento e também com a habilidade desse governo. Não foi sorte, como sugere o pessoal do PSDB, mas também Lula foi um hábil homem político dentro de um país com potencialidades. Se fosse no Paraguai, as coisas seriam diferentes, claro. Então é necessário levar em consideração, primeiro, as potencialidades da nação, a sua estrutura e história como um todo, coisa que não tem nada a ver com o Partido dos Trabalhadores, nem com o presidente da República, mas também é necessário entender a ação dos homens de Estado. CONTINENTE O afastamento de Fidel das atividades políticas de Cuba encerra o ciclo dos valores socialistas? RENATO ORTIZ Eu acho que isso se encerrou há mais de duas décadas, o Fidel é que não tinha percebido. Ele deveria ter reconfigurado Cuba na época em que ruiu o Muro de Berlim. Na verdade, o Fidel de hoje, desculpe-me dizer, não é sombra daquele do passado. Não é necessário nem ser muito crítico para perceber. Do ponto de vista hegeliano, nós podemos dizer que Fidel é um conceito que já se realizou.
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 1 1
Entrevista.indd 11
28/12/2010 12:57:29
sob a lógica do consumo, sem outros referenciais, perceberia que essa pessoa simplesmente não conseguiria existir. CONTINENTE Na sociedade contemporânea, em termos práticos, poderíamos dizer que a cidadania está associada ao poder aquisitivo? RENATO ORTIZ De fato, ela passa por esse aspecto. Mas, aí, nós temos um problema, porque a noção de cidadania não surge originalmente da esfera do consumo. Na verdade, nós temos uma distorção da noção de cidadania, porque ela nasceu vinculada à questão da política, da liberdade e da igualdade. Quando você passa para o mundo de consumo, o que importa não é a liberdade, mas a escolha do produto, que não é sinônimo de
ricardo stuckert/divulgação
CONTINENTE Se compararmos com outros momentos da história do Brasil, poderemos afirmar que os jovens estão alheios ao processo político do país? RENATO ORTIZ A socialização do consumo, diferente da família ou da escola, implica em um tipo de individualização muito forte. Evidentemente que isso tem consequências, à medida que você vê crianças pequenas no supermercado empurrando carrinhos para fazer compras com a mãe. Significa que, hoje, se apreende o mundo a partir da esfera do consumo. Isso é problemático, porque o mundo não é aquilo que é imaginado, sonhado e representado nessa esfera. Certamente, essa geração tem orientações e disponibilidades sociais
con ti nen te
Entrevista distintas das gerações anteriores. Não digo que são todos os jovens, mas não resta dúvida de que a esfera do consumo é extremamente atraente e começa, inclusive, a concorrer com a escola. Tem educadores, hoje, que discursam sobre a escola ser chata, mas ela tem que ser chata. Se a escola mudar de perspectiva, ela vai virar um lugar de entretenimento. Os modelos pedagógicos podem mudar, mas a função de uma escola é uma formação específica. O espaço da escola não pode ser o espaço do mundo de consumo. Mas é importante perceber também que a lógica do consumismo, do ponto de vista social, encontra limites concretos na sociedade, ou seja, se você tentasse imaginar alguém que vivesse exclusivamente
liberdade. Então, existe uma conjunção distorcida de compreensões. Imaginar que consumo e cidadania participam da mesma esfera é um equívoco, essa associação indevida é feita em vários lugares, sobretudo por aqueles que trabalham na esfera do marketing. CONTINENTE Ainda que a sociologia defina eficientemente indústria cultural e cultura popular, poderíamos dizer que, na prática, essa delimitação é complexa e de difícil aplicação? RENATO ORTIZ Diversas manifestações culturais se veem obrigadas a contracenar com o mercado, ou seja, com a possibilidade, primeiro, de fazer circular os seus bens além dos limites locais e, também, de se afirmarem. Como, no entanto, a lógica de mercado
passa a ter um papel hegemônico no contexto atual, de alguma maneira essas manifestações da cultura popular estão permeadas por essa lógica. Não é possível você fazer uma análise, por exemplo, do Boi de Parintins apenas sob o ponto de vista da cultura popular, porque aquelas pessoas que se aglomeram não estão lá só porque torcem para o Boi de Parintins; elas estão lá por uma proposta de turismo, de serviço, de marketing. Então, o Boi de Parintins é tudo isso, hoje: uma manifestação folclórica transformada em cultura popular, inserida em um contexto turístico e de espetáculo da indústria cultural. Certamente, nós já não poderíamos fazer análise das culturas populares dentro do marco
“Lula foi o melhor governo desde a redemocratização e a história vai julgar isso.(...) Não vamos ter mais ou menos democracia por causa da internet. (...) Não significa que as pessoas vão ficar mais felizes, que elas vão mudar de classe social” das pesquisas anteriores, porque a transformação, de fato, é muito grande. CONTINENTE Então nós poderíamos dizer que dificilmente as manifestações culturais escapam à lógica do consumo. RENATO ORTIZ Na esfera desse tipo de manifestação, sim, mas em outras, não. Não vamos esquecer que a cultura não coincide exclusivamente com a lógica de mercado... Se nós estivéssemos falando de religião, nós estaríamos em outra dimensão. Se nós estivéssemos falando de família, também. Na esfera da produção de bens simbólicos, a presença do mercado é dominante. Por isso que é importante não falar em cultura no singular, mas em manifestações culturais. Quando falamos “a cultura”,
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 1 2 3
Entrevista.indd 12
28/12/2010 12:57:31
causa da internet, porque esse conceito (democracia) não está vinculado a uma técnica específica.
CONTINENTE Como você avalia a revolução tecnológica que vivemos e, principalmente, a reconfiguração da interação humana que ocorre a partir da criação de redes sociais como o Twitter e o Facebook? RENATO ORTIZ As transformações tecnológicas são importantes, mas não são causa das transformações atuais. Elas são relevantes porque nos dão possibilidade de circulação, de dilatação do espaço, de construção de comunicação, de vínculos de comunidades que estão distantes. Agora, tudo isso faz parte do nosso cotidiano. Não dá para você ficar discutindo isso
CONTINENTE Mas defensores de projetos como o de acesso de banda larga gratuita para todos usam um discurso de ampliação da democracia para defender suas propostas. RENATO ORTIZ É ótimo que todos tenham acesso à internet. Mas a inclusão digital é uma oportunidade para as pessoas serem incluídas digitalmente. Não é mais do que isso. Não significa que essas pessoas vão ficar mais felizes, que elas vão mudar de classe social, que elas vão, necessariamente, subir na vida, que elas vão ter melhor atendimento de saúde, que a aposentadoria vai
como se fosse a grande revolução do século 21 que vai transformar a essência dos homens. Primeiro, porque os homens não têm essência e, também, porque as transformações se explicam por várias dimensões. É claro que toda essa dimensão telecomunicativa é decisiva em termos do mundo contemporâneo, mas a internet, por exemplo, não é a metáfora da vida. Ela também não representa um espelho da sociedade. É importante ter claro o papel que essas configurações têm no mundo contemporâneo, mas nós não podemos entrar no delírio de achar que a cibercultura vai resolver o problema da democracia, como alguns autores escrevem. Não vamos ter mais ou menos democracia por
melhorar. Significa apenas que elas vão estar incluídas digitalmente. É importante que uma pessoa pobre, de periferia, tenha acesso a esse mundo digital, senão perde um conjunto de informações. Então, do ponto de vista político e de valores democráticos, é importante que isso ocorra. Porém, não vamos nos iludir que, ao ter esse acesso, a sociedade mudou e se transformou, porque você vai estar no mesmo lugar, na mesma favela. Do jeito que as pessoas falam do mundo técnico, bastaria você comprar um celular e um computador para se tornar um cidadão mundial – não é assim que as coisas se passam. Sem querer banalizar e nem depreciar a inclusão digital, pelo contrário, eu
grupo jbh/divulgação
acabamos essencializando algo, parece até que podemos pegar com a mão, mas isso não é verdadeiro.
acho importantíssimo. O problema desse mundo tecnológico é que a cada três meses nós temos uma revolução, mas ao final de um ano as coisas estão as mesmas. Como é que houve uma revolução, se não mudou nada? CONTINENTE Qual balanço é possível fazer desses primeiros 10 anos do século 21? RENATO ORTIZ Talvez não sejam os últimos 10 anos, mas se nós pegarmos os últimos 20 anos, eu acho que o processo de globalização se consolidou. Se você pensar na discussão sobre a globalização nos anos 1980, ela não só era incipiente, como muitos ainda desconfiavam da sua existência. Eu acho que, hoje, ela está consolidada. Um exemplo mais claro são aqueles movimentos antiglobalização que viraram altermundialização. “Anti” era contra e “alter” quer dizer que, dentro da globalização, nós queremos realizar outra coisa. A expansão da esfera do consumo também é transnacional. Isso fica claro na socialização dos jovens e das novas gerações. Outras transformações que aparecem nesse contexto são de ordem política. O estado-nação deixou de ser a referência principal da construção dos projetos e a unidade de pensamento do social. Então, nós temos vários problemas, porque fazemos política no estado-nação e praticamente nada fora dele. Ou seja, há uma questão complicada no século 21: Como fazer política fora do estadonação? Nós não temos resposta. Por isso que as incertezas políticas são maiores que no passado. Você tem, agora, um realinhamento na esfera das chamadas relações internacionais, isso é importante entender. O centro europeu e os Estados Unidos são apenas elementos importantes que atuam no contexto internacional, mas não são mais os únicos. Ao longo do século 20, nós já tínhamos a existência de outro país importante, mas que ficava isolado, o Japão. Hoje em dia, já com a ascensão da China, nós temos, claramente, uma rearticulação de forças. Também estão aí países da América Latina, como o Brasil. Dito de outra forma, a relação de forças no sistema internacional mudou.
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 1 3
Entrevista.indd 13
28/12/2010 12:57:34
O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
con ti nen te
NOVO SITE
NEWSLETTER
Para celebrar os 10 anos da Continente, o site da revista, em janeiro, ganha um novo visual, valorizando o caráter multimídia na cobertura da cultura brasileira e pernambucana. Sessões foram criadas e uma das mudanças é nossa participação nos principais sites e redes sociais, como o Twitter (@ revcontinente), o Facebook e o Youtube, buscando a opinião dos leitores sobre o conteúdo da publicação e do site e sobre os principais acontecimentos culturais. Confira as inovações no www.revistacontinente.com.br.
Outra novidade é a criação de uma Newsletter, mantendo os leitores e internautas informados via e-mail sobre as atualizações do site.
Conexão
ACERVO A partir de março, todas as 120 edições da Continente, desde o primeiro número, estarão disponíveis na íntegra, na diagramação original, para consulta no site.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
MÚSICA VIRTUAL
INFORMAÇÃO
RECRIAÇÃO
RÁDIO COLETIVA
Site possibilita a criação de melodias simples a partir de instrumentos
Site destaca as principais notícias e discussões do Twitter em tempo real
Ilustrações interpretam hermetismo experimental de James Joyce
inudge.net
emporianips.cloudapp.net
wakeinprogress.blogspot.com
Shuffler.fm cria listas de músicas a partir da seleção de blogs especializados
Cada vez mais, a música pop tem uma ligação direta com a tecnologia, seja em sua execução ou em sua pós-produção. Essa relação gera iniciativas como o Inudge, mistura de programa, site e instrumento musical. Com design simples, a ferramenta permite que o usuário manipule, por meio de uma matriz semelhante à de um tabuleiro de batalha naval, oito instrumentos, alternando entre os tipos de sons e as notas de cada um. Além de harpa, órgão, baixo e bateria, são diversas as opções de sintetizadores, gerando melodias cíclicas que podem ser salvas e escutadas pelos internautas, organizadas em ordem de popularidade.
Com a democratização inicial da banda larga, a internet passou a ser crescente o local ideal da troca instantânea de informações, o que tornou o acompanhamento de sites como o Twitter uma tarefa árdua. Patrocinado pela Microsoft, o Project Emporia é uma opção para separar o que é ruído e o que são notícias e conteúdos importantes dentro dessa rede social, dividindo sua página em categorias e destacando os principais tuítes sobre os assuntos. Assim, o Emporia termina funcionando como um jornal, selecionando os temas e as abordagens mais relevantes das conversas, muitas vezes efêmeras, dos usuários do Twitter.
O designer gráfico Stephen Crowe descreve a sua relação com James Joyce como de “amor e ódio”. No blog Wake in progress, ele está registrando progressivamente sua tentativa de ilustrar Finnegans wake, “comédia sobre a linguagem e a natureza humana” e, possivelmente, a mais densa obra do escritor irlandês. Segundo o próprio Crowe, a reconstrução da obra de Joyce é complexa porque várias vezes os enunciados ilustrados não possuem apenas um sentido. O site reúne esses desenhos de diferentes tipos de traços e técnicas, que buscam interpretar a obra, gerando fragmentos que podem ser lidos em ordem ou aleatoriamente.
shuffler.fm
Como a maioria das boas iniciativas da internet, a ideia do Shuffler.fm é bastante simples: criar uma forma de se navegar pelas recomendações de milhares de blogs sobre música. A página inicial traz 120 opções de estilos musicais e, escolhendo um, o usuário passa a navegar por posts de blogs especializados, podendo a qualquer momento pular a música ou ficar dentro do acervo de um só site. O resultado é uma rádio de acervo coletivo, com garantia de qualidade e diversidade musical, o que rendeu elogios de jornalistas especializados ao Shuffler.fm.
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 1 4 5
CONEXÃO.indd 14
28/12/2010 13:03:48
blogs PUBLICIDADE blogs.estadao.com.br/ reclames-do-estadao
Com intuito de resgatar anúncios antigos e marcantes publicados n’O Estado de S. Paulo, o Reclames do Estadão traz preciosidades até do século 19. Destaque para a seção de anúncios que seriam hoje politicamente incorretos.
SUSTENTABILIDADE colunas.epoca.globo.com/planeta/
LITERATURA SOCIÁVEL Criado por ex-editor da New Yorker, o Figment é uma rede social com o objetivo de romper a distância entre público e autor www.figment.com
Que a internet vem modificando a noção de autoria e os modos de produção das
diversas formas de arte todos já sabem. A circulação livre e quase instantânea da rede transformou obras despretensiosas em hits temporários e possibilitou a ascensão da cultura do remix, que cria colagens – com ou sem autorização – de músicas, filmes, imagens e textos. As possibilidades de interatividade, traço da Web 2.0, segunda fase da internet, vêm sendo utilizadas na construção coletiva de obras e na aproximação entre público e autor. Um dos exemplos dessas iniciativas é o Figment, que traz o ambiente de redes sociais como Orkut e Facebook para a produção literária. A origem do site vem do interesse do ex-editor da New Yorker, Jacob Lewis, pelos romances feitos para celular, febre já há alguns anos no Japão. De olho no público adolescente, o Figment é um microuniverso movimentado pela literatura, buscando incentivar os usuários não só a ler, comentar e criticar os textos publicados no site, mas sugerindo também que cada um escreva e disponibilize suas obras. Para conhecer alguns dos bons autores, a página traz seleções dos textos mais lidos, comentados e recentes, além de organizar concursos e de manter um fórum aberto para discussão. Além de tentar despertar um maior interesse pela criação literária, o site deve servir também para identificar os gostos e os modismos dos leitores mais jovens. DIOGO GUEDES
Repercutindo as principais notícias sobre o meio ambiente, o Blog do Planeta, mantido por Alexandre Mansur e Aline Ribeiro, debate a necessidade de agir contra problemas como o desmatamento e o aquecimento global.
TROCA blogs.estadao.com.br/p2p/
A proposta do P2P, nome que faz referência à troca pessoal de arquivos pela internet, é dialogar sobre as novas formas de se consumir cultura, abordando questões como pirataria, distribuição e direitos autorais.
MODA URBANA rioetc.com.br
O Rio Etc convida pessoas no meio das ruas do Rio de Janeiro para fotografar seus figurinos. Criado por Renata Abranchs e Tiago Petrik, o blog já virou revista e livro e é referência quando o tema é street style.
sites sobre
tecnologia NOTÍCIAS
ANÁLISES
TENDÊNCIAS
gizmodo.com.br
techcrunch.com
venturebeat.com
A versão em português do principal site sobre tecnologia do mundo traz com exclusividade as novidades e especulações da área.
O Techcrunch é leitura obrigatória para quem quer saber sobre os lançamentos das gigantes da informática do Vale do Silício, nos EUA.
Com o intuito de “interpretar as inovações”, o Venture Beat aborda as tendências tecnológicas de executivos, sites e da indústria do entretenimento.
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 1 5
CONEXÃO.indd 15
28/12/2010 13:03:51
Port f
con ti nen te
Portfolio.indd 16
28/12/2010 13:10:22
t f贸lio Portfolio.indd 17
28/12/2010 13:10:29
con ti nen te
Portfólio
Cia de Foto
INFINITOS TEMPOS QUE ENCANTAM EM UM MOMENTO Texto Eduardo Duarte A vida é assim, feita a golpes de pequenas solidões. Roland Barthes
Uma formiga carrega uma folha. Deixa-a cair. Retorna e volta a carregá-la. Desvia uma pedra e alcança um buraco, por onde tenta incontáveis vezes fazer sua comida descer. Um homem apressado para e atende o celular. Abre um sorriso e sua pressa se esvai. Um rapaz sentado sob a árvore conversa sozinho, respondendo às vozes da sua mente. Do outro lado da praça, senhoras falam animadamente sobre qualquer coisa. Uma moça aborrecida arranca o chiclete da sola de seu sapato, esfregando-o na areia. Do banco de praça, tenho o mundo diante dos olhos, em suas inúmeras camadas de acontecimentos, além do que se é capaz de descrever. Percebo árvores, crianças e suas bicicletas de formatos e tipos, senhores mergulhados concentradamente em suas leituras. Os sons da cidade chegam de longe e chegam como ecos de um trânsito de veículos que em nada se parece com essa imagem tranquila. Nos limites da praça, uma grade. Depois da grade, prédios contornam o perímetro das árvores e anunciam diversas vitrines, nos diversos andares. Por detrás das vitrines pessoas trabalham, criam ou simplesmente olham o mundo lá fora. Em cada acontecimento, uma experiência do tempo. Velocidades distintas percebem o discorrer do dia. co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 1 8
Portfolio.indd 18
28/12/2010 13:10:34
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 1 9
Portfolio.indd 19
28/12/2010 13:10:42
con ti nen te
Portfólio
Cavernas temporais recriam mundos que se mesclam no imaginário de uma cidade. Essa última, por sua vez, traduz uma colcha de vivências na sua arquitetura renovada e na sobrevivência de ruínas. Desenhos de prédios, que nem sempre se assemelham, arrastam justaposições arquitetônicas montadas em volta dessa praça. Os quarteirões foram se ajustando através de séculos às necessidades urbanas dos habitantes desse espaço. O que um dia foi uma igreja, hoje é um museu. Um posto dos correios virou um templo evangélico. O ambiente de um mercado veio abaixo, um posto de gasolina surgiu; modernamente, convive ao lado de um prédio de ateliês que foi um dia a residência de um nobre, vizinho às ruínas de um cinema, na esquina de uma rua sem calçadas, que tiveram que ser engolidas pelo
asfalto, para o alargamento da rua ao trânsito de veículos a motor. Em todos esses rearranjos, a cidade se adapta às novas necessidades de um desejo coletivo em constante mobilidade. Um desejo de ser cidade que desloca o centro comercial para outros espaços, estendendo a malha de edificações e expandindo o tapete de construções sobre colinas, planaltos e vales. Lugares se ressignificam. Ambientes são demolidos ou reaproveitados, fazendo com que um habitante contemporâneo seja inserido em novos espaços construídos no mesmo lugar. Surge um ambiente modificado, com temporalidades distintas, em contexto com a tecnologia da época e as diretrizes políticas, econômicas e culturais. E, assim, uma cidade se reinventa a cada momento, trazendo suas ruínas como diferentes ambientes museológicos, resquícios de outras
vidas e outros sentidos de existência. Reinterpreta no presente um acúmulo de temporalidades que viveu. Cada habitante trafega num tempo e espaço deslocado de seus mais diversos tempos e espaços para os quais foram criados. O desejo de cidade também está engravidado de futuro. A memória propõe alicerces para o sonho e novos espaços são planejados visando à praticidade, à circulação, ao movimento físico de outra época, que ainda está por ser inventada. Assim sobrevivem esses virtuais atualizados nas mais recentes imersões dos ocupantes desses mundos. Os turistas e os que não foram engolidos pela dinâmica cotidiana do ritmo da urbe percorrem melhor a arqueologia imaginária desses tempos sobreviventes e readequados em outras funções. É preciso algo de ócio, ou de descompromisso funcional para se deixar apanhar
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 0
Portfolio.indd 20
28/12/2010 13:10:47
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 1
Portfolio.indd 21
28/12/2010 13:10:55
con ti nen te
Portf贸lio
6
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 2
Portfolio.indd 22
28/12/2010 13:11:19
pela profunda mistura dos tempos físicos do desenho urbano, com os tempos particulares de cada animal pensante que sobrevive nesse cenário. Do banco da praça, vejo a formiga e azulejos portugueses de uma igreja. Tenho o desgaste dos postes do século passado amparando anúncios de cartomantes. Vejo a criança em sua bicicleta e o terreno que será desocupado daqui a 20 anos, para o prédio de escritórios que a criança, como adulto, um dia irá comprar. Desse lugar, todos esses momentos me atravessam. Do banco de praça, encontro uma ponta do cordão de memórias no detalhe de um tempo nos rostos ou nas pedras do asfalto. Não se trata de reencontrar o tempo perdido, mas de construir um tempo possível entre aquilo que foi, aquilo que será e aquilo que sou. Algo inicialmente tranquilo e divertido, mas gradativamente sedutor e vertiginoso como percorrer o fio de Ariadne para fora do labirinto, uma aventura única. Percorrer o fio dos desejos esquecidos e sonhados perpassa habitar as escolhas e conflitos de escolhas, soma-se ao passado fundador, geográfico da cidade, e com os sonhos de cada momento por futuros melhores. Desejos que sobrevivem a invasões, destruições e pilhagens; que se reconstroem em caminhos possíveis ou perdem a vontade de existir e sucumbem em ruínas. Desejos compostos por camadas ou estratos de vontades, sonhos, frustrações que constroem técnicas para satisfazê-los, mas que também são construídos pelas mesmas técnicas. No instante em que todos esses instantes me atravessam, reclino-me no banco de praça e olho ao longe o vasto horizonte de prédios iluminados. De um lado, as luzes seguem até as serras; do outro, perdem-se de vista na paisagem urbana. Contemplo as primeiras estrelas no céu. Vejo luzes siderais que vêm de muito mais distante e que percorrem uma coleção de imensuráveis anos-luz. Vários momentos possíveis de várias estrelas que emitiram luzes em tempos diferentes. Os brilhos de miríades de múltiplos tempos encantam um só momento.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 3
Portfolio.indd 23
28/12/2010 13:11:19
reprodução
o retorno das estrelas
O futuro, segundo o cinema Como será o mundo no futuro? Embora simples, essa pergunta fascina a humanidade há séculos, tendo sido abordada sob os mais diversos ângulos, da filosofia à biogenética. Nas artes audiovisuais, a questão tem despertado o interesse de cineastas desde o nascimento do cinema, em 1895; basta lembrar Viagem à Lua (1902), que imaginava como seria uma visita dos homens ao satélite da Terra. Em 2010, um dos mais curiosos exercícios de futurologia cinematográfica completou 25 anos: o primeiro título da trilogia De volta para o futuro (1985). Os filmes populares de Robert Zemeckis ressaltam duas características recorrentes das obras que olham além de seu tempo. A primeira é a convicção de que o homem deteria, nas primeiras décadas do século 21, a tecnologia capaz de produzir aparelhos voadores que substituíssem carros para trafegar nas cidades e vencessem, dessa forma, as dificuldades de locomoção geradas pela superpopulação – Metrópolis (1927), Blade runner – O caçador de androides (1982), AI – Inteligência artificial (2001) e Minority report (2002) se encaixam nesse padrão recorrente. A segunda está nas marcas indeléveis do seu próprio tempo, que cada um dos filmes futuristas carrega, mesmo que seus diretores tenham buscado escondê-las a todo custo. RODRIGO CARREIRO
con ti nen te
A FRASE
O visionário cineasta George Lucas, também conhecido por sua ambição e perfeccionismo, está com uma nova obsessão: a ideia de ressuscitar digitalmente astros de Hollywood. O projeto foi revelado pelo diretor britânico Mel Smith, assegurando que o criador da marca Star wars “comprou os direitos cinematográficos de estrelas mortas do cinema”. Segundo o ex-colaborador de Lucas, o diretor quer reunir artistas da Era de Ouro em um mesmo filme. Teria nomes como, por exemplo, Orson Welles (foto) e Barbara Stanwyck contracenando com atores, digamos, vivos. Levando em consideração os terríveis duetos de cantores com gravações de intérpretes já mortos, tudo indica que essa será mais uma forma bizarra de driblar a nostalgia. (Débora Nascimento)
Balaio uma fração do segundo
“Nunca penso no futuro, ele chega rápido demais.”
Em 2010, foi encontrado, até hoje, o menor intervalo de tempo já medido. Cientistas alemães comprovaram a capacidade de medir o tempo com uma incerteza de 12 attossegundos. Um attossegundo equivale a 0,000000000000000001 segundo e está para um segundo assim como um segundo está para a idade do Universo. A capacidade para medir tempos cada vez menores tem importância, por exemplo, para pesquisas que envolvem as reações químicas e os pulsos de luz, o que pode melhorar de forma extraordinária a velocidade da taxa de transmissão de dados via internet.(DN)
Albert Einstein
co n t i n e n t e ja n e i R O 2 0 1 1 | 2 4
Balaio janeiro.indd 24
28/12/2010 13:14:16
A NEVROSE DAS MáQUINAS Pairava naquele início do século 20 uma energia condensada, uma excitação de novidade que, de tão intensa, podia levar ao tédio. Assim como agora giramos em torno da internet como mariposas em torno da luz, os citadinos de um século atrás fascinavam-se pela eletricidade, que rapidamente iluminou e fez girar as máquinas. A literatura, tanto a prosa quanto a poesia, está farta de exemplos desse espírito de época futurista. Uma de suas mais expressivas traduções em língua portuguesa é a Ode triunfal (1914), em que nada escapa ao heterônimo pessoano Álvaro de Campos. Em uma das estrofes desse longo poema, ele afirma: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/ Ser completo como uma máquina/ Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!/ Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,/ Rasgarme todo, abrir-me completamente, tornar-me passento/ A todos os perfumes de óleos e calores e carvões/ Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!” (Adriana Dória Matos)
criaturas
ESQUEÇAM 2012 Um estudo, nos EUA, afirma que eventos de extinção em massa ocorrem na Terra a cada 27 milhões de anos, ou seja, pelo menos, 16 milhões de anos depois de 2012, data prevista para o fim do mundo, de acordo com a cultura maia. Um dos exemplos mais conhecidos de extinção em massa ocorreu com os dinossauros. A teoria mais aceita é a de que um asteroide de 15 quilômetros de diâmetro teria causado a morte de 50% de todas as espécies. Acreditase que o impacto teve a força de 1 bilhão de bombas atômicas de Hiroshima. (DN)
monumento ao tempo Mudar a percepção que a humanidade tem sobre o tempo é o que quer a Long Now Foundation, criada pelo empresário e pioneiro da computação Danny Hillis. Ao construir um relógio monumental, que deverá funcionar pelos próximos 10 mil anos, a organização espera estabelecer um contraponto à mentalidade fugaz da sociedade de consumo, incitando a noção de que as ações humanas merecem mais ponderação e responsabilidade, por serem capazes de marcar e mudar o futuro distante. O nome da fundação é de autoria de um de seus membros fundadores, o músico e produtor Brian Eno, que também é responsável pela engenharia de sons que o gigantesco mecanismo do relógio irá gerar. Embora uma montanha no deserto de Nevada já tenha sido comprada pelo grupo para servir de locação, ainda não há data para a inauguração. (Yellow)
Amy Winehouse Por Jason Seiler
co n t i n e n t e ja n e i R O 2 0 1 1 | 2 5
Balaio janeiro.indd 25
28/12/2010 13:14:18
urbanização A modernização contraditória
As grandes cidades não vêm conseguindo resguardar sua integridade histórica, cultural e ambiental, além da qualidade de vida, frente às intensas mudanças provocadas pelo acelerado desenvolvimento urbano texto Carolina Leão Fotos Alexandre Severo
con ti nen te
cidade
1
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 6 7
CIDADES.indd 26
28/12/2010 16:55:30
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 7
CIDADES.indd 27
28/12/2010 16:56:00
con cidade ti nen te
2
Cidades existem há milênios.
Como Jerusalém ou Roma, Atenas, ou mesmo as de algumas civilizações pré-colombianas. Núcleos altamente funcionalizados, com instituições burocráticas e órgãos de supervisão da vida em sociedade podem ser encontrados em diversos momentos da História. A cidade moderna, no entanto, é um fenômeno recente, que data do surgimento de um pensamento também moderno de organização social, que se estabelece na Europa a partir do século 17. Nos últimos 50 anos, em todo o mundo, foram intensificadas as mudanças pelas quais as sociedades têm passado, desde a Revolução Industrial, com a transformação de técnicas de trabalho
e, consequentemente, a alteração do estilo de vida dos cidadãos. Com a amplitude e velocidade dos meios de comunicação de massa e as facilidades nos meios de transportes, essas transformações se aceleram também no Recife, e vêm marcando pontualmente a experiência urbana nos últimos 10 anos. Nesse período, a cidade se destacou no intenso crescimento da economia regional, que recolocou Pernambuco no cenário financeiro nacional, e redefiniu trabalhos, moradias e opções de deslocamento para os seus residentes. Os primeiros dados do Censo IBGE de 2010 registraram 1.536.934 habitantes somente na capital pernambucana (em 2000, eram 1.422.905, o que significa
um afluxo de mais 114.029 moradores, sejam eles nascidos ou migrados). A estimativa do órgão era de que, em 2009, a população local – incluindo os municípios de Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Paulista, que integram a RMR – chegasse a 3,7 milhões. A contagem recentemente divulgada pelo Instituto aponta para 2,8 milhões, um milhão a menos que o estimado, embora não seja necessário o aporte estatístico para se constatar as consequências do aumento populacional e do crescimento urbano. Apesar de parecer uma cidade pequena – se comparada às principais capitais do país, como São Paulo (11.244.369 de habitantes) e o Rio de Janeiro (6.323.037) –, o Recife tem apresentado os mesmos problemas
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 9 8
CIDADES.indd 28
28/12/2010 13:30:31
Página anterior 1 EDIFÍCIO JK
ntigo prédio do INSS, construído A em 1960, na área central da cidade, está desativado desde 1999
Nestas páginas 2 “CASTELIZAÇÃO”
construção verticalizada aponta A para a rápida transformação da paisagem urbana, como ocorre no Bairro da Torre
3 contraste Casinhas miúdas que marcaram a paisagem histórica local, praticamente deixam de existir, dando lugar a condomínios residenciais luxuosos
3
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 2 9
CIDADES.indd 29
28/12/2010 13:30:44
con cidade ti nen te
4
urbanos das grandes metrópoles, como a estrangulação do deslocamento e das opções de moradia. Uma rápida passagem pelos bairros populosos e de classe média de Casa Amarela, Espinheiro, Torre e Madalena aponta para a verticalização como a saída mais recorrente ao enfrentamento de questões sociais como moradia e segurança. E o que sugeriria apenas uma reorganização do traçado urbano passa a refletir outra identidade social. Casinhas miúdas ou casarões opulentos, que tanto marcaram a paisagem histórica local, praticamente deixaram de existir, dando lugar a condomínios residenciais luxuosos, bunkers com parques de diversão. Poucos são os que conservam as residências originais – apenas quando são tombadas. Como reflexo do crescimento populacional e também do poder de compra, que impulsiona a aquisição de veículos particulares (entre outros bens), o Recife convive diariamente com um trânsito lento e confuso, que não apenas dificulta a circulação no espaço urbano como demonstra a dificuldade da cidade em lidar com a
O Recife apresenta os problemas de grandes metrópoles, como a estrangulação do deslocamento e das opções de moradia sua modernização. Bem antes disso, nos anos 1940, avenidas como a Guararapes – com seus prédios colossais, construídos como representações monumentais da ditadura Vargas – foram construídas sem levar em conta a rápida urbanização da capital. “As cidades atraentes são aquelas que resistem, no tempo, a pressões de mudanças extemporâneas e poderes circunstanciais, sabendo resguardar sua integridade, paisagem e qualidade de vida. São cidades onde os habitantes têm um papel ativo na defesa de seu estilo de vida e de seus espaços”, observa Circe Monteiro, coordenadora do Laboratório de Tecnologias de Investigação da Cidade – Lattice, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Para Circe, as cidades inovadoras conseguem romper com os seus antigos paradigmas de desenvolvimento, passando a questionar as suas opções históricas. Ela cita, como exemplo, metrópoles americanas que têm discutido a ocupação extensiva do solo, resultado do crescimento de subúrbios periféricos, que implica em grandes deslocamentos pendulares e baixa qualidade de vida urbana. No caso da Europa, reflete-se sobre a necessidade de cidades compactas. “Em ambos os lados do mundo, testemunha-se o crescente movimento de habitantes em prol de ambientes urbanos mais humanos, contra a pressa da vida moderna, da sociedade de consumo, as chamadas slowcities. Com menos carros, menos velocidade, com vias compartilhadas entre pedestres, bicicletas e carros, com prioridade ao movimento de pessoas e pela retomada da vitalidade urbana e da qualidade de vida coletiva”, descreve a especialista. Mas, e quando essa coletividade reproduz a cultura do consumo? A urbanidade também reflete essa lógica. Ao lado de seus enfrentamentos
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 0
CIDADES.indd 30
28/12/2010 13:30:49
4 CHANTECLAIR No Bairro do Recife, jaz uma das ruínas mais famosas da cidade, cuja recuperação, anunciada em 2001, ainda não foi concluída 5 guararapes Recorte das fachadas da avenida central do Recife, com prédios erguidos na década de 1940 e hoje desvalorizados
5
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 1
CIDADES.indd 31
28/12/2010 13:30:59
con cidade ti nen te
6
infraestruturais, a cidade – templo do excesso e da diversidade – emerge como o local por excelência da celebração do poder de compra. Nela, são estimulados investimentos, relações e experiências sociais atravessados pelo consumo – observado desde a popularização do lazer nos shopping centers e mini malls à exploração do mercado publicitário, epicentro dessa cultura. “A noção de cidade sempre foi consubstanciada pela ideia de pluralidade, vista como um ponto nodal de circulações, de passagens,
de combinações, de fluxos. Por isso, seu conteúdo informacional está em constante ampliação”, explica o pesquisador Lourival Lopes, professor do departamento de Design da UFPE e doutorando em Desenvolvimento Urbano pela mesma instituição. Lourival refere-se à distribuição da informação publicitária nos grandes centros como parte inerente da lógica econômica e comercial que os pontua. A ampliação do fluxo que caracteriza a cidade apoia-se também na dimensão que a informação visual tem nas sociedades
modernas, determinada pela influência das imagens e do consumo de signos imagéticos que é parte intrínseca da experiência contemporânea. Uma tentativa de reverter o excesso de informação visual que marca o traçado urbano foi concebida em 2008 pela Secretaria de Planejamento Urbano do Recife, a Lei de Publicidade, que entrou em vigor em dezembro de 2009. Ela limita a informação visual a 700 outdoors e, no máximo, 200 luminosos em toda a cidade. A lei deveria, ainda, possibilitar a valorização de fachadas de
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 2
CIDADES.indd 32
28/12/2010 13:31:15
da execução da lei foi baseada em multas onerosas e reforço na fiscalização. Mas esqueceram de criar aparatos para a conscientização da população e dos lojistas sobre a poluição visual. Durante muitos meses, em protesto contra a medida legal, os comerciantes mantiveram suas placas irregulares cobertas com lonas pretas”, lembra Lourival.
PATRIMÔNIO EM SUSPENSO
Um novo espaço público também se desenvolve na medida em que o crescimento econômico define a cidade. Desde os anos 1990, com o Plano de Revitalização de 1993, os esforços em preservar a memória e a história cultural do Recife têm sido feitos em áreas potencialmente turísticas, como o Bairro do Recife. No entanto, lá também jaz uma das ruínas mais famosas da cidade: o edifício Chanteclair. Há mais de uma década, a construção
A metrópole é o ambiente da celebração ao poder de compra, refletido nos shopping centers e na publicidade
prédios comerciais ou áreas residenciais completamente descaracterizadas pela intervenção publicitária. “Entre os impactos dessa nova regulamentação, destacam-se, até agora,as placas que identificam os estabelecimentos comerciais (que ficaram atrofiados em relação à massa arquitetônica das fachadas), a regularização de 70% das estruturas de porte complexo e maior controle sobre seu estado de conservação, e a permanência de esqueletos de alguns anúncios retirados. A garantia
do século 19 sofre um verdadeiro descaso. A recuperação foi anunciada em 2001 e envolveria a transformação do edifício num centro cultural. Até então, vários proponentes estiveram à frente da restauração sem que nenhum deles conseguisse ir adiante, após a insuficiência da declaração dos recursos obtidos, à época, pelo Programa Monumenta, do Ministério da Cultura. As obras estavam paradas desde 2004, configurando-o como mais um prédio-esqueleto abandonado. Em novembro de 2010, a Realises Empreendimentos, atualmente à frente do projeto, anunciou a retomada da restauração do Chanteclair. O arquiteto Jorge Passos, da JP Arquitetura e Restauro, é o responsável pelo trabalho. Segundo o especialista, é agudo o nível de degradação do imóvel. “Nossa empresa foi contratada para fazer ações que visem estancar o processo de degrado instalado no edifício”, pontua
6 INTERVENÇÃO A Lei de Publicidade, em vigor desde dezembro de 2009, limitou a informação visual a 700 outdoors e, no máximo, 200 luminosos em todo o Recife
o arquiteto, que classifica o prédio como uma ruína urbana. Ele afirma que já foram feitas obras preliminares, como a limpeza de canteiros, mas o processo de recuperação levará em torno de 15 meses. Outra carcaça relegada ao desprezo é o Edifício JK, na Avenida Dantas Barreto, também na área central recifense. Construído em 1960, quando a cidade só contava com 40 ônibus elétricos e o brasileiro médio não podia se dar ao luxo de comprar com tanta facilidade o próprio carro, a obra estava em consonância com a modernização opulenta da época e sua obsessão por gigantes que figurassem na paisagem urbana. Leiloado em 2008, o imóvel de arquitetura modernista, que pertencia ao INSS, foi arrematado por 2,3 milhões pelo empresário paranaense Carlos Cristo e deve abrigar um campus da Faculdade Boa Viagem. O processo, no entanto, vem se arrastando desde 2004, após o edifício ser desativado em 1999. Ari Diniz Júnior, diretor financeiro do Grupo Boa Viagem, que administra a faculdade, afirma que a instituição de ensino adquiriu apenas três andares do JK e está em processo de criação de cursos técnicos voltados para a área de saúde – a serem executados em parceria com o Imip.
A CIDADE A SEUS PÉS
Não muito distante dessa avenida, erguem-se – alheias às suas contradições – as torres gêmeas do Bairro de São José, como ficaram conhecidos os edifícios Píer Maurício de Nassau e Píer Duarte Coelho, construídos à beira da bacia portuária, sob o fogo cruzado da opinião pública. Os dois espigões alteraram não somente o skyline do Recife (podendo ser vistos em panorâmicas diversas, de Olinda, ao norte, a Boa Viagem, ao sul) como quebraram uma fronteira urbana de especulação imobiliária, que limitava aquela zona ao comércio.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 3
CIDADES.indd 33
28/12/2010 13:31:16
con cidade ti nen te Esse mesmo bairro de São José – avistado fartamente da área de serviço das torres gêmeas, que têm a cidade a seus pés – já foi morada da classe média urbana, que, no início do século 20, era formada por pequenos trabalhadores e, hoje, seria classificada como classes C e D, e reúne um dos maiores sítios históricos da cidade. Essas áreas de farto capital simbólico vêm sendo alvo da nova especulação imobiliária. Isso acontece em meio ao “esgotamento” de dois tradicionais bairros de moradia das
Estelita, nas proximidades do Bairro de São José, também se inserem nesse modelo, pela valorização da origem seminal do Recife. O Bairro de São José é o ponto nuclear do surgimento da vila do Recife e, assim, terreno mítico da própria origem da cidade. “Para vender unidades habitacionais em edifícios desses bairros de origem histórica, os folders e anúncios de jornais se baseiam no discurso do novo x velho, da modernidade x tradição. Eu pergunto: que tradição é essa, se estão sendo destruídos os ‘marcos’ que a
representam? É lógico que essa ação tem o respaldo de alguns setores da sociedade, que adquirem ou aprovam esse tipo de conduta. Assim, os valores simbólicos das nossas paisagens têm se transformado em valores econômicos pelo setor imobiliário e sendo consumidos pela sociedade”, pontua Vera Melo. Empreendimentos como o do Le Parc Boa Viagem, construído pelo grupo Cyrella Andrade Mendonça, também são modelos dessa nova opção de consumo. Trata-se do conceito de
“Conheço poucas cidades que se autodestroem tão rapidamente como o Recife” Circe Monteiro classes média e alta pernambucanas, Casa Forte e Boa Viagem. Em Casa Forte, a indústria da construção encontra sua atuação limitada pela definição de áreas de proteção ambiental, embora já tenha congestionado bastante o bairro. Já Boa Viagem, que emergiu na urbanização dos anos 1940 e se converteu no sonho de consumo da classe média local, encontra-se abarrotado de prédios e declina na preferência do pernambucano, tanto pela excessiva aglomeração humana, pela violência urbana ali existente, quanto pelo congestionamento de suas vias de acesso. Vera Melo, pesquisadora do departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, define a especulação imobiliária em áreas tradicionais como arbitrária. Em sua pesquisa sobre a valorização da Avenida Beira Rio, na Torre – onde prédios têm sido extensivamente construídos à beira do cartão-postal do Recife, o Rio Capibaribe –, concluiu que o setor imobiliário adota “estratégias de marketing”. Essas se utilizam das paisagens da cidade dotadas de valor simbólico para os recifenses, sendo justamente aquelas onde se localizavam os engenhos de açúcar. Áreas emblemáticas como o Cais José
7
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 4
CIDADES.indd 34
28/12/2010 13:32:22
“residencial resort”. Nele, o marketing simbólico se vale da venda da paisagem do manguezal do Pina, tombado como Área de Preservação Ambiental. A página virtual do condomínio reflete a emergência das ilhas urbanas: “Le Parc Boa Viagem é uma ilha cheia de magia, cercada por um lazer exclusivo e jamais imaginado. É uma nova experiência de morar: perto da natureza tranquila do Parque dos Manguezais e próximo ao mar serenamente agitado de Boa Viagem”. O que a publicidade oferece como ilustração é uma fotografia aérea
da bela área verde que ainda resiste por trás da cadeia de prédios que se insinuam da beira-mar, e que será inevitavelmente transfigurada quando ali forem construídas as nove torres de 22 pavimentos previstas para esse “projeto grandioso”. Para Circe Monteiro, o desgaste urbano do Recife é agudo. “Como será que os parisienses reagiriam a um projeto de arranha-céu perto da torre Eiffel, ou à beira do Sena?”, questiona a pesquisadora. “Conheço poucas cidades que se autodestroem
7 “TORRES GÊMEAS” Vista da cidade a partir dos edifícios Píer Maurício de Nassau e Píer Duarte Coelho, espigões que alteraram o skyline do centro histórico
tão rapidamente como o Recife. Para obedecer aos imperativos de um crescimento incessante, travestido de desenvolvimento, os novos espaços consomem e destroem a cidade preexistente. Esse processo tem significado não só a morte do passado, mas principalmente de uma vida urbana futura com qualidade”, opina. “Esse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes, vocês não têm o direito de desprezar ou dispensar”, diria um melancólico Baudelaire, à Paris do Barão de Haussman. Nada mais fadado à exaustão do que a modernidade, complementaria o frankfurtiano Walter Benjamin, em 1930. Em 1850, Baudelaire assistiria à mudança pela qual passou a capital francesa ao ser remodelada, com a destruição de seus antigos casarios, que deram lugar a amplos bulevares e largas avenidas e ao surgimento de zonas periféricas. Benjamin, no entreguerras, destacaria o caráter móvel e autorreferente da cidade, que, associado ao capitalismo, alternaria ciclos de investimentos e lucros com os de recessões. Em 1986, relendo ambos, o filósofo Marshall Berman citaria a experiência moderna como a tragédia do desenvolvimento, premissa formulada em torno do conceito de destruição criativa nietzschiniana. Se quisermos ir mais longe, ainda no século 17, Goethe simbolizaria essa destruição criativa na figura de Fausto, o espírito que tudo nega. Desde a ascensão da cultura industrial, as cidades tornaram-se parâmetros cabais da modernidade, a qual seria pontuada por transformações urbanísticas e estruturais que a ampliariam para o desenvolvimento do que é chamado civilização. No contexto local, esse conceito de civilização se estabeleceu nas ações da Liga Nacional contra os Mucambos, de 1939, que enxergou essas moradias miseráveis como “inimigas da cidade e da civilização”, como revelam os discursos políticos de Agamenon Magalhães, executor do projeto.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 5
CIDADES.indd 35
28/12/2010 13:32:25
con cidade ti nen te
8
Para acabar de vez com aquele “primitivismo” do Recife, foram erradicados os focos de “anticivilização”, pela transferência dos seus moradores para lugares distantes do centro, onde trabalhavam, e o aterro indiscriminado das áreas desocupadas. Muitos moradores dos mocambos passaram a ocupar a zona norte da cidade e daí surgiram alguns dos principais bairros pontuados por morros e favelas, como o de Casa Amarela. A questão social passou incólume a essa urbanização, já desenvolvida também sem a menor preocupação com o ecossistema natural da cidade. Essa modernização contraditória, no entanto, forma o ethos pernambucano, desde a decadência da cana-deaçúcar. A derrocada da monocultura gerou um dos elementos econômicos reestruturadores do estado: uma incipiente classe média, formada por comerciantes instalados em bairros como Boa Vista, Santo Antônio e São José. O centro do Recife deixou de ser apenas ponto de passagem para abastecimento e compras, tornando-se
Os condomínios, nas principais cidades brasileiras, constituem-se em espaços que se fecham em si mesmos núcleo de ocupação e movimentação urbana. A cidade deixou, assim, de se subordinar ao engenho e ergueu-se soberana. A arquitetura da casa-grande foi substituída pela dos sobrados; as festas populares saíram do palco rural para serem comemoradas nas vilas construídas ao redor desse núcleo central. No decorrer do século 19, o Recife iniciava a sua trajetória de desenvolvimento que tem como índices de modernidade a criação de instituições e espaço públicos, como o Teatro de Santa Isabel (1850) e o Mercado de São José (1872). Em 1891, a cidade realizou sua primeira eleição para prefeito,com a vitória do abolicionista José Mariano. Data da mesma época do Santa Isabel
a construção do primeiro cemitério público do Recife (1851), o atual Cemitério de Santo Amaro. A virada do século, a nossa belle époque, representa um crescimento extraordinário da nossa urbanidade, e com ela se instalou uma mentalidade social de utilização comum dos espaços pelos cidadãos. A abolição da escravatura também aproximou as camadas sociais. A doutora Lúcia Leitão, pesquisadora da pós-graduação em Urbanismo da UFPE, relendo o clássico Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre, obra que percorre exatamente o período citado acima, sugere que a cidade no Brasil produziu um espaço edificado claramente hostil. “O ambiente urbano no Brasil se constituiu inteiramente em torno da casa, aqui entendida como símbolo maior do espaço privado, em especial do sobrado que, na cidade então nascente, assumiu plenamente as funções reais e simbólicas da casagrande brasileira. Assim sendo, no tempo em que se deu o desenvolvimento do urbano em nossas terras tropicais, reproduziram-se, tanto no desenho
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 6
CIDADES.indd 36
28/12/2010 13:32:34
8 setúbal Bairro da zona sul, vizinho de Boa Viagem, é caracterizado por ruas em que predominam as “fortalezas” urbanas
quanto no uso do espaço urbanístico, as mesmas marcas de centralismo, de domesticidade, de privativismo anotadas por Freyre, características da organização social que deu forma à casa-grande patriarcal”, explica. Para a pesquisadora, essa realidade expressa uma profunda rejeição à rua, espaço público fundamental para a vida urbana, plena, citadina. Enfim, para a vida que se pretende moderna.
CASTELIZAÇÃO
“Rejeição” semelhante encontramos numa nova forma de habitação que emerge na cidade com uma nova “castelização”. A construção verticalizada na cidade, desde o tempo dos sobrados, erguida bem acima do nível da rua, aponta o espaço público como um local de desprestígio. “Em sua expressão atual, a primazia do espaço privado, exclusivo e excludente, materializa-se,
por exemplo, na construção, cada vez mais intensa, de condomínios fechados nas principais cidades brasileiras, cuja característica marcante é o fato de se constituírem em locais que se fecham em si mesmos”, observa Lúcia Leitão. Para ela, não é apenas o modo de habitação condominial que está em transformação, mas uma área partilhada entre coproprietários que difundem um estilo de vida, um modo de morar onde o espaço privado afastado do ambiente que lhe é externo se faz mais e mais valorizado. “O marketing feito para atrair potenciais moradores especifica, claramente, a oferta de diversos serviços a serem prestados dentro dos condomínios, de modo que seus habitantes possam usufruir o conforto de vivenciar o espaço da casa, mantendose ao mesmo tempo o mais distante possível do espaço da rua”, completa. Os ambientes excluem a experiência urbana na medida em que, com a oferta de serviço e lazer, a morada se estabelece como parâmetro da vivência social. “Os moradores desses ambientes não utilizam esses lugares
para a diversão ou para o encontro. As crianças brincam no playground enquanto os adultos se divertem no salão para festas ou em ambientes assemelhados, espaços onde, efetivamente, se dá a convivência. Do ponto de vista social, constituem-se, pois, no campo dos iguais (vizinhos com hábitos, costumes, renda etc. assemelhados), o que lhe tira qualquer característica ou função pública”, observa. Vera Melo defende que existe um novo espaço público, que podemos questionar se é democrático. “Mas ele é uma realidade que representa a sociedade de consumo global. Faz parte da dinâmica urbana as pessoas utilizarem as áreas públicas nas grandes cidades. No entanto, isso ocorre de forma diferenciada, que precisa ser analisada mais profundamente. Por exemplo, no Rio de Janeiro, apesar da violência que se reflete no espaço público em decorrência do tráfico de drogas, ele é muito utilizado, como as praias, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Parque do Flamengo e mesmo o centro da cidade, no qual as pessoas circulam pelas ruas e bares sem medo.”
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 7
CIDADES.indd 37
28/12/2010 13:32:34
con cidade ti nen te divulgação
Artigo
GUILHERME WISNIK O QUE ACONTECEU COM O URBANISMO? O que aconteceu com o urbanismo?
Essa é uma pergunta que tem sido feita insistentemente por pensadores nas áreas das ciências sociais, dado o descrédito que a disciplina conheceu desde a crise do Movimento Moderno, nos anos 1970, e o crescimento caótico das cidades que se seguiu. Enquanto, por um lado, o urbanismo estatal era acusado de cientificista e autoritário, face à tentativa de controlar nos mínimos detalhes a vida das pessoas através do espaço (veja-se Brasília), por outro, as cidades passaram a crescer de forma descontrolada, pelas mãos “livres” da iniciativa privada e especulação imobiliária. Criou-se assim uma situação paradoxal: o urbanismo desaparece justamente no momento histórico em que era mais necessário. Como se sabe, dada a urbanização acelerada das últimas décadas – desde os anos 1970 na América Latina, e desde os anos 1990 na Ásia e na África –, chegamos a um estágio de desenvolvimento em que, após 5 mil anos de História, a população mundial se tornou predominantemente urbana. As cidades, no entanto, foram entregues ao deus-dará. Segundo o polêmico arquiteto holandês Rem Koolhaas, a culpa por essa situação não é só do mercado, ou do neoliberalismo. É também dos próprios arquitetos e urbanistas, que, durante o PósModernismo, pretenderam redescobrir a cidade clássica em um momento impróprio, retirando-se da discussão sobre os problemas reais da cidade no capitalismo avançado. Enquanto desenhavam vielas e belas pracinhas para o passeio de pedestres, as cidades explodiam em favelas e subúrbios cada vez mais distantes, induzidos pela mobilidade do automóvel individual. Esse foi o “ponto de não retorno”, segundo Koolhaas, o momento de “fatal desconexão”, que transformou os urbanistas em “especialistas em dores-fantasmas:
1
doutores discutindo as complicações médicas de um membro amputado”. O diagnóstico fica ainda mais sinistro quando lemos o importante livro Planeta favela, do pensador americano Mike Davis. Apoiado em pesquisas das Nações Unidas, Davis descreve um cenário alarmante para as próximas décadas, no qual a favelização crescerá a um ritmo galopante, combinado à precarização do trabalho. É que a lógica excludente do atual estágio do capitalismo (“tardio”, ou “avançado”) constrói
subliminarmente cidades – sobre o cadáver já exumado do urbanismo moderno – profundamente dualizadas. Isto é, marcadas pela divisão crescente entre os setores ricos (os condomínios de luxo e as áreas de negócios), conectados a redes globais, e a massa informe de pobreza que permeia esses enclaves cada vez mais fechados e fortificados. Quando falamos hoje em “cidades globais”, estamos na verdade nos referindo a setores de cidades que se conectam a uma rede mundial de
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 8
CIDADES.indd 38
28/12/2010 13:32:53
1 coreia do sul
O projeto Cheonggyecheon, em Seul, transformou em passeio público um córrego que há mais de 50 anos se encontrava soterrado por obras viárias
adjacentes de estacionamentos e de garagens, e o que resta das calçadas é tomado por muros e guaritas. Onde está a cidade? Em vias de desaparecimento, elas vão se aproximando daquilo que a antropologia urbana definiu como “não lugar”: espaços de passagem, que não são apropriados por ninguém. No entanto, alguns exemplos positivos surgem na contramão dessa tendência predatória. O caso mais notório é o projeto Cheonggyecheon, em Seul (Coreia do Sul), onde foi recentemente demolida uma trama dupla de viadutos com extensão de aproximadamente cinco quilômetros, e destapado um córrego que há mais de 50 anos se encontrava soterrado por obras viárias. Com a reforma, foi criado um agradável passeio público dotado de jardins, escadarias, fontes, quedas d’água e iluminações
“O urbanismo desaparece justamente no momento histórico em que era mais necessário”
circulação de bens e de informações – isto é, de capital. São as suas faces integradas que precisam de marcos arquitetônicos espetaculares para colocá-las na rota internacional do “city markenting”. Trata-se de uma nova lógica de organização geográfica da produção em uma economia terciária, na qual os Estados Nacionais perderam força diante do desenvolvimento autônomo das cidades. Acontece que se você passeia por Nova York – talvez a cidade mais “global” do mundo, situada
no coração do capitalismo, e berço da liberdade individual –, não sente nem de perto as mazelas das nossas metrópoles da periferia, que seguiram o modelo de Los Angeles. Em Nova York, com o eficiente serviço público de transporte, vai-se com rapidez a qualquer lugar, e as ruas não são desertificadas pela falta de calçadas e de comércio local, muito ao contrário. Para não falar do Central Park... Nas cidades brasileiras, como em muitas outras do mundo, entupimos as ruas de carros, os terrenos
ornamentais. Sem qualquer solução viária paliativa, a opção local foi incentivar o transporte público, barateando o preço do metrô. Outro exemplo fundamental é o da cidade de Medellín, na Colômbia, que – graças a uma iniciativa inteligente e continuada da prefeitura na construção de equipamentos públicos, infraestrutura e habitação social – conseguiu, em menos de uma década, deixar de ser uma cidade violenta e dominada pelo tráfico de drogas, e se tornou um exemplo mundial de civilidade. Quer dizer, se por um lado a vocação totalizante do urbanismo moderno está de fato ultrapassada historicamente, por outro, a eficácia da vontade política em ações estratégicas nas áreas de infraestrutura é, ainda, não apenas bem-vinda como urgentemente necessária. Um certo urbanismo precisa renascer das cinzas para que as cidades não morram.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 3 9
CIDADES.indd 39
28/12/2010 13:32:54
con cidade ti nen te FOLHA PRESS
1
COMPORTAMENTO Para que aqueles caras iam querer tanto dinheiro, afinal? texto Adriana Dória Matos
Foi uma barulheira danada em
torno das chamadas “mansões do tráfico”, quando a polícia invadiu e ocupou as favelas do Complexo do Alemão, naquele fim de novembro. Todo mundo tomou conta. Todo mundo quer dizer: policiais, jornalistas e moradores. Principalmente as crianças, que era dia de muito calor e elas aproveitaram para se esbaldar nas piscinas privês recém-franqueadas. Um jornalista atento aos detalhes teria ouvido uma conversa entre um policial e um meninote na qual – tendo o primeiro “dado” a casa com piscina ao outro – este teria aceitado imediatamente o presente e afirmado “Vou morar aqui!”, antes de se largar num estrondoso mergulho na água azul.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 0
CIDADES.indd 40
28/12/2010 13:33:05
1 FAVELA DA GROTA
No último piso de uma casa de três pavimentos, que pertencia a um dos chefes do tráfico, crianças se divertem na piscina, tendo a visão do morro como paisagem de fundo
O que todo mundo viu naquelas fotografias e nos VTs das “mansões” do Alemão é o que se vê todo dia nas novelas, nos filmes e nas propagandas de TV: casas bem-montadas, com varandas com vista, piscina e churrasqueira, quartos de casal com cama box, banheira com hidromassagem, ar-condicionado split (“Rio 40 graus, cidade maravilha purgatório da beleza e do caos”, zune Fernandinha Abreu) , TV plasma LCD, quartos infantis decorados com os ídolos da vez (agora, por insistência, o garotinho loiro Justin Bieber; antes, podia ter sido Xuxa ou Ivete, também por insistência, claro), cômodos com revestimentos bacanas, como mármore, porcelanato e blindex. Tudo certinho e da moda. Sim, é verdade que naquelas
residências havia umas extravagâncias, tipo discoteca e academia de ginástica, mas isso era porque os moradores eram um povo jovem, que gostava de malhar e se divertir. O único problema, graça ou espanto, é que esses marcos da sociedade de consumo, da cultura urbana e midiática encontrados por ali pertenciam à bandidagem, aos traficantes mais procurados do Rio de Janeiro. A imprensa destacava que todo esse cenário de luxo se escondia sob fachadas simples, de casas como quaisquer outras do lugar. Ou os proprietários não queriam dar na cara – o que seria bem justificável, no caso de uma fiscalização do IR – ou ainda não tinha dado tempo de reformar a frente do imóvel também (sem dúvida, uma atitude sábia, pois devemos privilegiar o conforto interno, depois, as aparências). Estando aqueles imóveis tão de acordo com as normas da sociedade de consumo, do gosto pelo prazer imediato e dentro dos padrões do bem-decorar e viver, numa clara demonstração de savoir vivre de seus proprietários, por que o espanto, meu Deus, diante das “mansões” do Alemão? Afinal, inquire-se: para que aqueles homens se envolveriam no mundo do crime, entrariam com tudo na economia subterrânea, arriscariam diariamente a vida, nutririam uma existência de violência se não fosse para esbanjar e sorver rapidamente? Que outras expectativas os traficantes deveriam criar para suas vidas de ricaços do crime? Ah, não, claro, eles deveriam investir na própria educação, o bem maior, o futuro da nação. Abrir mão dos prazeres fugazes da vida, montar em casa uma sala de aula com equipamentos de última geração (é para isso que serve dinheiro, ora) e contratar o melhor educador da cidade para aulas particulares e intensivas de todas as disciplinas. Daí, quem sabe?, em dois anos aqueles rapazes empedernidos estariam em dia com os conhecimentos necessários para concluir um supletivo, encarar o Enem (que naquele ano não pode ser fraudado de jeito nenhum!) e batalhar por uma vaga num curso como o de Administração, Economia, Arquitetura
de Interiores, Educação Física ou Relações Internacionais, para os quais eles parecem vocacionados. Pensando bem, talvez fosse um investimento mais seguro, rentável e duradouro preparar-se para um concurso público; não há nada mais vantajoso que um emprego público hoje em dia. Mas é preciso levar em conta que muitos desses jovens senhores já haviam se comprometido com a instituição família, alguns tinham filhos e, quase todos, namorada, mulher, amante, e isso custa tempo e dinheiro – vocês sabem como filhos e mulheres são. Desse modo, nem todos poderiam se dedicar com o mesmo rigor aos estudos, precisando trabalhar, inclusive, para sustentar os mimos de suas amadas, ou “fiéis”, como disseram ser o termo normalmente usado para se referir às mulheres dos traficantes. Ou vocês não viram as joias que elas ostentavam? Pesadíssimas e de ouro puro reciclado (porque boa parte das peças era uma associação de um bocado de outras, colhidas por aí). Entre os adornos das namoradas sobressaíam-se os colares de design apropriadamente classificado por especialistas como no estilo gangsta, que nos evoca claramente o rap norte-americano. Um mix fascinante de culturas. Nas fotografias que a imprensa divulgou sobre as joias das “fiéis”, não pudemos deixar de reparar nos corpões sarados e milimetricamente bronzeados daquelas mulheres, fossem loiras ou morenas. Imagens que nos remetem de volta às piscinas e academias de ginástica privês das “mansões” do Alemão. Dando de cara com a hidromassagem do luxuoso quarto de casal de uma daquelas residências erguidas sob os auspícios da delinquência, um policial teria desabafado: “Assim vale a pena ser vagabundo!”. Enquanto isso, na cobertura, o menino se refestelava na piscina, certamente dando graças à ação militar que lhe permitia aquele lazer aquático inesperado. Foi quando ele ouviu a voz da mãe, da rua, gritando: “Vem-te embora, menino, tá na hora de ir pra escola!”. A vida tem dessas coisas...
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 1
CIDADES.indd 41
28/12/2010 13:33:05
DIVULGAÇÃO
con ti nen te
estudo
TRÂNSITOS Muito além do não lugar
O filósofo Alain de Botton aponta o aeroporto como o espaço onde se encontram amostras de temas atuais, como a passagem do tempo, a coletividade e a noção de mortalidade TEXTO Schneider Carpeggiani
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 4 2 3
ANTROPOLOGIA.indd 42
28/12/2010 13:35:29
1 LIVRO
Em 2009, Alain de Botton passou uma semana no aeroporto de Heathrow, em Londres, experiência que resultou em Uma semana no aeroporto
Tal crença vem do estranho hábito de Botton de, secretamente, desejar um atraso em seus voos, apenas para vagar pelos corredores de um aeroporto, sem pressa. Seu sonho era um cancelamento de última hora, que o levasse a praças de alimentação vazias madrugada afora ou a pernoites em hotéis de letreiro com neon avermelhado. Tanto sonhou, que, em 2009, topou o convite da empresa que administra o aeroporto de Heathrow, em Londres, para passar uma semana em suas instalações, observando e fazendo anotações que renderiam um livro, Uma semana no aeroporto (Editora Rocco). Sua reportagem/ensaio é um exercício de voyeurismo que apresenta paisagens que um viajante comum nem imaginava existir, como a do galpão em que as aeronaves são consertadas. O livro ganha força quando nos ajuda a olhar através dos corredores por onde
“O problema com os aeroportos é que pensamos neles apenas como uma plataforma entre nós e um avião” Alain de Botton
1
Se sinceridade fosse moeda corrente, nossa pergunta diante de qualquer possibilidade de viagem não seria “Para onde?” e, sim, “O que eu quero mudar?”. Nas artes e na religião, jornadas são constantes metáforas de revolução, do desejo de desencadear uma transformação interna, uma subversão no destino. “Os teóricos cristãos não estavam preocupados com os perigos, desconfortos ou gastos envolvidos na travessia, pois encaravam todo aparente obstáculo como um claro artefato divino para revelar o aspecto espiritual latente da viagem”, explica o filósofo pop e escritor sueco Alain de Botton. Como bem sabemos, nenhuma mudança acontece sem o mínimo calvário no meio do caminho. E esse
calvário hoje é bem-representado (ou melhor: muito bemrepresentado) pela “instituição” aeroporto. Afinal, aeroportos são minados campos emocionais, onde esperas podem se verter em aventuras bíblicas, onde a noção de segurança ganha ares histéricos e refeições costumam ser servidas por funcionários com expressões de incurável sono perdido. “O principal problema com os aeroportos hoje em dia é que eles se transformaram em lugares pouco acolhedores, cada vez mais fechados em si mesmos”, afirmou Botton, em entrevista para a Continente por e-mail. Ainda assim, segundo ele, as coisas podem ser tratadas com mais leveza e humanidade.
passamos sempre com pressa ou certo enfado, com alguma garrafa de uísque na mão ou armados com revistas que servirão para o nobre propósito de “matar o tempo”. Na verdade, o que Botton nos propõe é fugir desse desejo de se teletransportar de um lugar para outro como num passe de mágica. Sua proposta é: onde quer que você esteja, respire e olhe ao redor com atenção. Quem conhece a carreira de Botton sabe que ele costuma lançar seu olhar sui generis e suas citações filosóficas por territórios nada usuais. Ele já escreveu um livro de autoajuda tomando como exemplo de revolução pessoal o lamuriento Marcel Proust, tentou compreender nossas leis trabalhistas e quis provar o quanto Aristóteles e seus contemporâneos ainda sabem das coisas, mesmo neste nosso mundo wi-fi. Diante de um currículo assim, é até “convencional” a nova empreitada. Mas o curioso da história é que ele
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 4 3
ANTROPOLOGIA.indd 43
28/12/2010 13:35:29
cON EStUDO tI NEN tE se preocupou em jogar por terra o conceito-clichê de que aeroportos são “não lugares”. “Sobretudo depois do 11 de Setembro, os aeroportos se tornaram de forma tão intensa sinônimo de ameaças terroristas, que viraram os lugares mais perigosos do mundo, hoje. Mas é preciso mudar essa ideia. O problema real com os aeroportos é que tendemos a pensar neles apenas como uma plataforma entre nós e um avião. E porque é tão difícil encontrar o portão de embarque certo, acostumamo-nos a nunca olhar ao nosso redor. Os aeroportos são o centro do mundo moderno. É aqui que você encontra, de maneira concreta, todos os grandes temas da modernidade que só costumamos visualizar de forma abstrata. Aqui você observa o que significa globalização, consumismo selvagem, famílias se partindo ao meio e todo o sublime por trás da palavra moderno”, empolga-se o escritor. A grande surpresa de Botton nem foi o que ele encontrou no Heathrow, mas a motivação do convite: “Achei surpreendente e até comovente que, nos distraídos tempos que correm, a literatura ainda pudesse ter prestígio suficiente para inspirar uma empresa multinacional. Entendi que o dinheiro acumulado nos campos de batalha, ou no mercado, poderia muito bem ser realocado em objetivos estéticos mais elevados. Tenho convicção de que é um compromisso do escritor permanecer engajado com a atualidade das questões políticas e econômicas. É claro que a tentação para quem escreve é sempre se fechar numa caverna ou se esconder numa torre. Mas quanto mais saímos para o mundo lá fora, mais os insights se tornam claros”. Na entrevista, Botton fez questão de enfatizar seu fascínio pelo objeto de estudo, que parece só ter aumentado depois desse livro: “Aeroportos são lugares onde a tecnologia encontra a cultura de consumo, onde nos sentimos na presença da mente gigante do mundo moderno. Frequentemente nos encontramos em ambientes que não mudaram muito desde o século 19, mas, de repente, num aeroporto, nós vemos as promessas concretas da modernidade: as promessas de
velocidade, transformação, burocracia infernal e de assustadora perda da individualidade. É uma mistura de horror e beleza, que o artista pode celebrar e lamentar”.
sensAÇÃo de MoRte
Toda essa conversa é muito bonita, mas estamos num período – janeiro = férias = longas esperas – em que aeroportos podem se transformar no pior dos pesadelos, aquele concreto calvário entre o início da viagem e a transformação sonhada, tal qual já falamos. Então, qual seria a dica de Botton para lidarmos com tamanha tensão? “Aeroportos sempre nos aproximam da possibilidade da morte – e essa sensação consciente ou semiconsciente tem a força de nos libertar de nossas inibições e, de certa forma, de fazer o amor potencialmente mais possível,
o livro ganha força quando nos ajuda a olhar através dos corredores por onde passamos sempre com pressa ou certo enfado porque nos deixa frágeis e reflexivos. Quando nos libertamos dos nossos hábitos diários e nos deparamos com nossa mortalidade, ficamos mais abertos ao encontro com o estranho e o inusitado. Pessoas que vivem casamentos frustrados e sem amor por décadas vão dizer inesperadamente coisas românticas em aeroportos. A perspectiva de um desastre ou de uma perda ou de um abandono pode fazer maravilhas para um relacionamento que não anda muito bem das pernas”, filosofa, fazendo-nos crer no aeroporto como utensílio afrodisíaco. Quem diria? Um dos pontos fortes do livro de Botton é a descrição (e ele é perfeito em descrever cenas aparentemente banais) da despedida de um casal, que se beijava com um grau de desolação comovente. Enquanto a namorada deixava seu amado para a imensidão da sala de embarque, Botton escrevia quase como quem suspirava:
“Os transeuntes demonstravam cumplicidade. Até eu já começava a sentir saudades dela. Podíamos estar prontos para oferecer nossa solidariedade, mas na verdade há razões mais fortes para querermos cumprimentá-la por ter um motivo tão contundente para se sentir triste. Se fosse capaz de ter distanciamento em relação à sua cena, talvez ela reconhecesse que essa despedida teria sido um dos pontos altos de sua vida”. Apesar de focar na humanização dos aeroportos, uma visão, ao menos, aproxima Botton dos teóricos do “não lugar”: “De certa forma, os aeroportos têm mais em comum uns com os outros do que com seus países de origem. Se houvesse a possibilidade de termos uma coisa chamada ‘país internacional’, ele seria ‘A Nação Unida dos Aeroportos’. Seja no Brasil ou na Rússia, na GrãBretanha ou na Austrália, sabemos o que encontrar num aeroporto. O charme real deles está no fato de nos ajudarem a colocar em perspectiva a ideia de uma alternativa para a vida: eles nos relativizam. Eles nos fazem sentir aqui, agora, sejam 10 da manhã ou três da madrugada, lembrando-nos ainda que, em algum lugar do mundo, alguma coisa está nos esperando. E mais: eles nos ajudam a lembrar que o mundo lá fora é mais estranho, excitante e variado, ótimos lembretes para quando estamos prestes a ser consumidos pelo tédio, que é a rotina”. A temporada no aeroporto parece ter inspirado Botton a voltar a escrever sobre o tema que marcou o início da sua carreira e que, de certa forma, percorre todos os seus livros, como um rio subterrâneo: o amor. “A gente nunca pensa ou diz o suficiente sobre o amor, por isso quero voltar a esse tema brevemente. Talvez escrever sobre o casamento e o que ele significa hoje”, adiantou. Não deu para concluir a entrevista sem perguntar o que o escritor fazia nos momentos em que o tédio batia forte durante sua “internação” no Heathrow: “Eu procurava um brasileiro para conversar. Os brasileiros em geral têm as melhores conversas, e o Heathrow está cheio de brasileiros ótimos”.
co n t i n e n t e JA N E I R O 2 0 1 1 | 4 4 5
ANTROPOLOGIA.indd 44
28/12/2010 13:35:30
con ti nen te
profissões
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 6 7
PROFISSÕES 2.indd 46
28/12/2010 13:39:20
Enquanto umas desaparecem... outras surgem de mansinho texto Júlio Cavani Fotos Costa Neto
Em 10 anos, o mundo não é mais o mesmo. A primeira década do século 21 não foi aquela prevista pela ficção científica, mas a ciência, em muitos casos, foi além da imaginação e da fantasia (apesar de carros ainda não voarem pelas cidades e outros planetas não terem sido colonizados). Profissões de outros tempos não existem mais, enquanto algumas, também antigas, se encontram em claro processo de extinção. A mesma tecnologia que ameaça, por exemplo, o uso de CDs de música, deu origem a atividades econômicas que não existiam no Recife há uma década, como a produção de games ou o motion design em 3D. Ao mesmo tempo, também aparecem novas necessidades humanas no campo das artes, não obrigatoriamente ligadas ao avanço da informática, porém frutos dos desdobramentos das experimentações autorais. Nestas páginas, seis personagens representam um futuro já presente ou um passado que insiste em sobreviver... co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 7
PROFISSÕES 2.indd 47
28/12/2010 13:39:20
con profissões ti nen te
CRIAÇÃO DE GAMES Maurício Carvalho Desde que ganhou seu primeiro videogame, um Atari, antes de chegar aos 10 anos de idade, Maurício Carvalho nunca desgrudou os olhos da tela. Enquanto crescia, estudou e se formou na UFPE, mas continuou a jogar, passou por várias gerações de consoles, até chegar ao ponto de transformar os jogos eletrônicos em sua principal atividade econômica. Hoje, é sócio e diretor de duas empresas de reconhecimento internacional, uma dedicada à internet (a Icorp) e, outra, aos games (a Playlore), ambas com atuação em setores que praticamente inexistiam no Recife há uma década. Graças ao empenho pessoal de Carvalho e seus colegas, mas também à disseminação da informática e ao ambiente favorável proporcionado pelo instalação do Cesar e do Porto Digital, no Bairro do Recife, a Playlore hoje produz material para jogos
de computador e de consoles de última geração, como o PlayStation 3 e o X-Box 360. Nos últimos anos, a empresa chegou a elaborar o visual de personagens, naves espaciais, veículos e cenários para games estrangeiros oficiais como Star wars galaxy (ligado à série Guerra nas estrelas) e DC Universe. “Nosso interesse principal sempre foi proporcionar um ambiente favorável para quem quiser trabalhar com games de nível avançado sem precisar sair do Recife”, especifica Maurício, que sempre está à procura de novos artistas interessados em integrar sua equipe, algo difícil de encontrar numa cidade onde essa mão de obra ainda é relativamente restrita. Entre os cerca de 50 funcionários da Playlore, há desde desenhistas fãs de ficção científica até ex-donos de fliperamas e locadoras. O novo projeto da Playlore é um jogo totalmente desenvolvido no
Recife. Não apenas a parte artística, mas toda a tecnologia e o sistema de jogabilidade foram criados por sua equipe, que deve lançar o produto no mercado estrangeiro e assim ajudar a consolidar a produção nacional. Estar com um pensamento à frente do que é lançado é fundamental: “Procuramos pensar em como será a 11ª edição de um jogo que ainda está no número 5”. Antes de se dedicar a essa experiência 100% autoral, eles produziram para as grandes marcas com o objetivo principal de pesquisar as novas tecnologias, estudar técnicas e manter contato direto com o que existe de ponta. De acordo com Maurício: “demos uma recauchutada no visual do jogo (Star wars galaxy) e melhoramos os gráficos, apesar de não termos sido contratados para fazer tudo isso. O resultado foi um sucesso nas feiras e convenções de fãs nos Estados Unidos”. “Não queremos fazer só para fora. A prioridade é nos estabelecermos como uma alternativa viável”, diz Maurício. Seu alvo não é o mercado de consoles, mas os jogos para computador (PC), que não dependem de toda uma indústria de produtos físicos que envolve impostos, distribuição e fabricação. “Isso tudo deixa o produto mais caro para o usuário final.”
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 9 8
PROFISSÕES 2.indd 48
28/12/2010 13:39:29
divulgação
usa estão sempre em transformação e não existiam em décadas passadas. “A tecnologia tem dissipado as barreiras entre as áreas de fotografia, vídeo, filme, áudio e design”, afirma. Empresas como Coca-Cola, Nike, MTV, Fox, Smirnoff, The New York Times e Toyota já estiveram entre os clientes que acreditaram em seu potencial para levar arte a vídeos publicitários produzidos com técnicas de animação, muitas vezes em filmes que sequer foram exibidos no Brasil, apenas na Europa ou nos EUA. O cineasta norte-americano Darren Aronofsky (Réquiem para um sonho, O lutador) o contratou para desenhar o selo animado de sua produtora. “Os mercados estão completamente saturados e as coisas que se sobressaem, geralmente, vêm de uma voz nitidamente pessoal”, enxerga Garcia, que procura associar os interesses dos clientes a seus próprios anseios
divulgação
O trabalho do motion designer envolve a criação de estruturas fisiológicas autônomas, que respondem à luz, à cor e ao som
MOTION DESIGN 3D Marcelo Garcia Dimensões paralelas à realidade são o ambiente de trabalho de Marcelo Garcia. Em seus vídeos digitais, o motion designer pernambucano desenvolve paisagens virtuais com uma complexidade comparável à de formas encontradas na natureza. Seu processo criativo envolve a harmonização do caos e o desenvolvimento de estruturas
fisiológicas autônomas, que respondem, a estímulos de luz, cor e som. Depois de desenvolver trabalhos para diversos estúdios brasileiros e estrangeiros, ele fundou sua própria marca, chamada Molho (www.molho.tv), na qual diz obter mais liberdade criativa. Pode-se dizer que é um novo tipo de artista, pois as ferramentas e suportes que
artísticos. “É importante mostrar personalidade e ser honesto consigo mesmo. Por existirem mais nichos de mercado do que jamais existiram e por a tecnologia ser tão acessível, a criatividade está muito em alta atualmente. Toda semana, aparece algo que surpreende.” Seu primeiro curta-metragem autoral, totalmente independente, começou a ser produzido em 2010. Apesar de ter sido mais reconhecido por obras em computação gráfica tridimensional, ele tem um grande interesse em experimentar as formas de filmagem mais convencionais, que retratem coisas do mundo real recontextualizadas para sua imaginação. Perfeição é uma palavra totalmente questionável em seu vocabulário visual, pois muitas vezes são os traços contorcidos que o encantam. “É difícil estipular o que é arte. Eu, pessoalmente, acho que é algo que vem de nossas
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 4 9
PROFISSÕES 2.indd 49
28/12/2010 13:39:33
con profissões ti nen te fotos: divulgação
conclusões e que, de alguma forma, remete à nossa experiência de vida. Arte é uma palavra supergeral que, por si, não diz nada, assim como música.” Quem assiste a seus vídeos (basta acessar o site da Molho) não tem dúvidas sobre seu valor artístico, mesmo quando eles estão associados a alguma marca comercial. “Michelangelo era comissionado pela Igreja para pintar tetos de templos, Dalí se repetia e pintava retratos de famílias ricas na Califórnia. Miles Davis, na sua fase eletrônica, preocupava-se mais com seu lazer e visual do que com sua embocadura”, cita, para exemplificar como essas questões de autoria são relativas. Ele não nega, contudo, que pode ser influenciado por tendências de mercado, ou mesmo influenciá-las: “Apesar da diversidade das culturas e dos tipos de expressão diferentes, nós, no mundo todo, nos movimentamos como um coletivo. Um vai levando para a frente onde o outro parou. Claro que o nível emocional, elementos-surpresa e o conceitual do trabalho dependem de quem está pensando e de quem está executando. Dá para ver claramente quando algo é simplesmente igual a tudo. Até uns cinco anos atrás, a estética de filmes e comerciais estava cultuando a tecnologia como fim, e não como um meio. Tudo tinha cara de computador, edições rápidas, defeitos digitais. Após a saturação, precisava-se de uma humanização, aí veio uma onda de stop motion. Existiu também uma adoração ao neon, ao air brush, reflexos, e flare, típico dos anos 1980. Não se sabe quem influenciou quem”. Mesmo com a trajetória internacional, Marcelo Garcia faz questão de manter um vínculo profissional e artístico com o Recife por meio das peças – como cartazes e vídeos – que produz para os projetos de sua família, especificamente os festivais de música Virtuosi e Coquetel Molotov. Em 2009, por exemplo, elaborou uma animação que serviu de cenário da ópera armorial Dulcineia e Trancoso. Assim como em uma partitura erudita, as composições gráficas de sua autoria seguem uma lógica mutante, formada por camadas que se alteram praticamente sem repetições.
PREPARAÇÃO DE ELENCO Amanda Gabriel “Preparação de elenco” é uma expressão que começou a aparecer nos créditos de filmes brasileiros na última década. Sucessos como Cidade de Deus (2002) e Bicho de sete cabeças (2001), cheios de personagens marcantes interpretados por pessoas que não têm formação de ator, foram os principais responsáveis por essa tendência. No Recife, a
atriz Amanda Gabriel foi a primeira profissional a assumir oficialmente o cargo, que desempenhou até agora em dois curtas e três longas-metragens. Amanda tem algumas hipóteses a respeito do surgimento dessa nova atribuição: “Nos últimos 10 anos, o cinema brasileiro se desenvolveu e se profissionalizou bastante. Aspectos
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 0
PROFISSÕES 2.indd 50
28/12/2010 13:39:37
técnicos e artísticos se aprimoraram. Surgiram também roteiros mais experimentais, que têm sido escritos com necessidades especiais, abertos a novas possibilidades de dramatização”. O som no cinema nacional também evoluiu muito após a retomada. Ela concorda que isso tornou a questão da fala muito mais delicada e detalhada nos filmes. “Não existia essa necessidade na época do Cinema Novo, quando ainda nem se trabalhava com som direto, pois todos os filmes eram dublados e Glauber Rocha podia gritar para comandar os atores no meio da cena”, acrescenta a atriz. “Nos Estados Unidos, não se faz preparação, a não ser quando é para um personagem específico, que eles chamam de coaching. Alguns atores têm seu próprio preparador, como Rodrigo Santoro, que trabalha com Sérgio Penna, um dos precursores da atividade no Brasil. Em outros casos, os assistentes de direção desempenhavam uma função semelhante, mas não era a mesma coisa”, compara Amanda, que vê em seu trabalho uma atenção maior para aspectos humanos, relacionados ao conteúdo dos roteiros, enquanto os diretores precisam estar atentos a todas as questões técnicas. Ela conta que o roteirista argentino (radicado na França) Gualberto Ferrari, que recentemente
Cidade de Deus e Bicho de sete cabeças, com seus não atores, foram dois dos responsáveis por essa tendência de preparar o elenco ministrou um workshop na Fundação Joaquim Nabuco, disse ser a preparação de elenco uma invenção dos brasileiros. Cada projeto exige uma forma diferente de trabalhar. “Não existe método único”, defende Amanda, que participou dos longas-metragens O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, Amigos de risco, de Daniel Bandeira, e Eles voltam, de Marcelo Lordelo, e dos curtas Muro (premiado em Cannes), de Tião, e Mens sana in corpore sano, de Juliano Dorneles. O trabalho não é direcionado apenas para os não atores. Em sua opinião, artistas com experiência profissional e formação acadêmica contribuem com o diálogo na hora de serem “preparados”. Irandhir Santos, Germano Haiut e Maeve Jinkings (O som ao redor) estão entre os que viveram a experiência com ela. Com exceção de um personagem, todo o elenco de Muro é formado por não
atores, moradores de Conceição do Meio, um distrito de Serra Talhada, minicípio do sertão pernambucano. “Primeiro, criei uma relação com as crianças, para depois começar a falar do projeto. A gente chegou devagar. Fui morar na cidade. Eu dormia na cama da menina que morre no filme”, explica. O roteiro de O som ao redor abrange mais de 70 personagens (com falas): “Antes do início das filmagens, 10 horas por dia, eu me sentia como um médico que recebe os pacientes no posto de saúde, um por um”. Para Eles voltam, Amanda fez preparação de elenco com os moradores de um assentamento de sem-terras. Foram feitas várias visitas prévias ao acampamento para identificar o que os assentados queriam levar ao filme, pois o diretor Marcelo Lordelo desejava evitar qualquer tipo de artificialidade. Além disso, o personagem principal do longa é uma garota de 13 anos que aparece em todas as cenas e precisou aprender muito sobre os bastidores do cinema. Em Amigos de risco, Irandhir Santos (Tropa de elite 2) interpreta um homem que passa mais da metade da história desmaiado, carregado por outros dois personagens: “Dedicávamos pelo menos uma hora, de cada ensaio, apenas para que eles se acostumassem com essas posições”.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 1
PROFISSÕES 2.indd 51
28/12/2010 13:39:44
con profissões ti nen te
TIPOGRAFIA Sílvio Silvino da Silva
De tão rara, a especialidade de
Sílvio Silvino da Silva já pode ser considerada de valor artístico. Ele é um dos últimos tipógrafos que ainda atuam no Recife. No lugar de um computador com teclado e impressora, seus instrumentos de trabalho, usados para imprimir textos sobre papel, são uma máquina rotativa, praticamente manual (chamada minerva), letras de chumbo (os tipos ou clichês) e ferramentas como o componedor (uma régua de madeira que serve de apoio para que o tipógrafo monte as palavras). “Sempre trabalhei com isso, desde os 14 anos de idade. Aprendi com meu irmão mais velho, que fez um curso técnico no Senai”, lembra Sílvio, cujos sobrenomes (Silvino da Silva) repetem as mesmas quatro letras iniciais de seu primeiro nome, em uma espécie de jogo de palavras que tem tudo a ver com seu ofício. “Eu poderia ter mudado para o
O tipógrafo tem uma clientela fiel que garante seu sustento anual e que prefere as formas antigas de impressão computador, mas, sinceramente, eu me divirto é aqui mesmo”, assume, para deixar claro que se mantém ativo por motivos mais emocionais do que racionais ou econômicos. Seu trabalho remonta às origens da imprensa, pois foi a partir da invenção da tipografia que os documentos deixaram de ser reproduzidos em caligrafia. Segundo Silvino, “até algumas décadas atrás, na época da máquina de linotipo, os jornais, revistas e livros eram impressos assim. As chapas eram montadas e desmontadas todos os dias”. Atualmente, alunos de cursos de jornalismo nem precisam mais entender como aquilo funciona, pois a informática revolucionou tudo. “Tenho uma clientela fiel há mais de 20 anos, com cerca de 30 fregueses que garantem meu sustento. Mesmo com a possibilidade do computador, as pessoas ainda
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 2
PROFISSÕES 2.indd 52
28/12/2010 13:40:04
gostam da tipografia”, atesta, enquanto mostra seu cartão de visitas, impresso (obviamente) por ele mesmo. É perceptível a olho nu a diferença entre as suas impressões e as de um computador. O resultado semiartesanal tem todo um charme retrô. Ele assume que é uma profissão em extinção (“creio que as minervas nem sejam mais fabricadas”), mas já tomou o cuidado de repassar as técnicas para novas gerações: “Já ensinei a cinco ou seis profissionais que hoje devem estar no mercado. Eles se interessaram por pura curiosidade mesmo”. Calendários, cartões de visita, contratos, recibos, rifas e santinhos estão entre os produtos que mais o ocupam. “As pessoas trazem o que querem anotado em um papel e eu monto as letras de chumbo no componedor, antes de começar a imprimir”, descreve Silvino, que usa 15 estilos diferentes de fontes e possui opções de tamanhos, “a menor é a 6 e a maior é 48” (medidas semelhantes às usadas pelos programas de computador). Por serem mais comuns, algumas expressões já são guardadas prontas, com as palavras e letras fixas, fundidas em uma mesma chapa. Exemplos: Entre Amigos; Feliz Natal; Prestação de Serviços; Certificado Nada Consta; + Saúde pra Você; Data do Recebimento; Deseja aos Seus Clientes e Amigos; Não Tem Valor como Recibo; Total Dessa Nota; Valor dos Serviços e Próspero Ano-Novo. A Veneza Art Gráfica, empresa de Sílvio, funciona no bairro da Boa Vista, no segundo andar do Edifício Novo Recife, um prédio que abriga outras especialidades em vias de extinção, como um laboratório de fotografia em preto e branco, uma fábrica de lentes artesanais e uma loja especializada apenas em CDs (ver pg. 54). Recentemente, uma empresa tipográfica brasileira, semelhante à de Silvino, foi descoberta pelos ingleses do programa televisivo independente Cool Hunting, veiculado na internet. Eles produziram uma bonita reportagem sobre a Gráfica Fidalga, que usa tipos de madeira para imprimir cartazes lambe-lambes espalhados pelos muros de São Paulo.
PINTURA SOBRE foTOS João Figueiredo (Dão) “Sou uma espécie de dinossauro”,
admite João Figueiredo, conhecido como Dão, que acredita ser o último pintor de retratos fotográficos em atividade no Recife. O produto de seu trabalho são aquelas fotos emolduradas, coloridas à mão, que hoje em dia costumam ser associadas às casas de famílias mais tradicionais do interior, mas que, na
verdade, são dificílimas de se encontrar até mesmo nas cidades mais arcaicas. “Eu chegava a ganhar até 15 salários mínimos por mês. Hoje em dia, não ganho nem um”, constata o artista, que é um verdadeiro patrimônio vivo. “O avanço científico acabou com minha profissão. Antigamente, o Recife era cheio de ateliês de pintura organizados
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 3
PROFISSÕES 2.indd 53
28/12/2010 13:40:16
con profissões ti nen te e famosos. Todos fecharam.” A necessidade de pintar fotos diminuiu principalmente a partir da década de 1970, quando começaram a se popularizar os filmes coloridos e as câmeras automáticas no Brasil. “Antigamente, até a metade do século 19, só existia pintura e desenho. Quando a fotografia foi inventada, era tudo em preto e branco, então vários pintores montaram estúdios especializados em colorir as fotos. Criaram um estilo próprio, que misturava as duas linguagens. Isso ficou muito popular entre o povo mais pobre, que não podia pagar aos artistas para pintarem um retrato totalmente à mão”, rememora Dão, que se considera um herdeiro direto dessa tradição. Sua profissão era conhecida como “retocador de ampliação”. Para ter uma foto pintada por Dão, é necessário lhe entregar uma foto 3x4 qualquer (ou duas separadas, se for para o casal, que vão ficar juntas no quadro final). Com uma máquina de ampliação manual, ele aumenta a imagem e a revela sobre um tipo de papel fotográfico adequado para a aplicação da tinta. Além das cores, ele faz retoques na pele e nos cabelos dos retratados, cria um cenário e acrescenta roupas, brincos e colares. De acordo com Dão, “antigamente, até quatro profissionais podiam trabalhar na mesma foto, pois havia especialistas para retirar as manchas e pintar apenas as roupas ou a pele”. Ele considera seu trabalho “70% artístico e 30% técnico”, pois cada profissional tem seu estilo e a mesma foto nunca ficaria igual se fosse pintada por duas pessoas diferentes. Ele também pinta naturezasmortas e paisagens, mas não a partir de fotos. Suas maiores referências são Monet e o Impressionismo. Por causa do trabalho, Dão chegou a viajar para a Bahia, o Ceará e Brasília (onde passou 10 anos). Hoje, mantém a atividade por amor, não por dinheiro. A oficina de Dão funciona em uma pequena sala nos fundos do segundo andar de um prédio na Rua da Imperatriz, Centro do Recife. Para chegar às escadas, é preciso atravessar uma loja de óculos que ocupa o corredor. É fácil de achar o “esconderijo”, pois, simbolicamente, a última árvore da rua fica em frente à sua entrada.
LOJA de cds João Carlos Soares da Silva Os discos de vinil, no início do século 21, quem diria, voltaram a ser valorizados, produzidos e comprados. Por outro lado, o MP3 (disponível de graça na internet) e a pirataria já dominam o cotidiano de quem ouve música. No meio dessa chacoalhada no mercado musical, com as grandes gravadoras em crise, o CD virou um “patinho feio”, esquecido, estagnado e falido, com os dias aparentemente contados... Mas não para todos. No Centro do Recife, por trás do Cinema São Luiz, a Flowers Records sobrevive como um oásis. Além de ser uma das últimas lojas de música especializada da cidade (dedicada, sobretudo, ao rock), o Compact Disc ainda é seu produto principal.
João Carlos Soares da Silva, fundador e dono da loja, é o grande guardião do legado dos CDs no Recife. Em defesa de seus ideais, ele sintetiza: “Nunca vendi vinil, até por uma questão de espaço. Vim da geração do LP, mas não gosto. Dá muito trabalho. Essa onda retrô é puro modismo. A maioria dessas pessoas que começou a comprar vinil agora nem sabe a diferença. O som do vinil também pode ter qualidade ruim, muitas vezes pior que a do CD. Às vezes, vejo garotos orgulhosos porque acabaram de comprar um disco velho e todo lascado. Eles acham que é uma relíquia, mas está tão arranhado, que realmente não presta. Eu aviso logo que aquilo ali
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 4
PROFISSÕES 2.indd 54
28/12/2010 13:40:33
é possível encontrar alguns discos. A internet me ajuda a ficar antenado com os lançamentos. Meu público baixa música para conhecer novos artistas, mas prefere comprar CD original.” Outro trunfo da Flowers são os discos “fora de catálogo”, aqueles que foram lançados no passado, já se esgotaram em todo canto, e não devem ser mais fabricados pelas gravadoras que detém os direitos sobre eles. Ciente desse tipo de limitação, João Carlos encomenda grandes quantidades de um mesmo lançamento, para que o álbum ainda esteja disponível em seu acervo depois de alguns anos. Isso ocorreu, por exemplo, com o primeiro CD da banda pernambucana Devotos,
Um trunfo da Flowers são os discos “fora de catálogo”, os que se esgotaram e não devem mais ser fabricados por suas gravadoras não vai tocar bem. O som do MP3 também é pior que o do CD, porque teve de ser comprimido para deixar o arquivo mais leve para download”. Algumas características especiais garantem a sobrevida da Flowers. A primeira delas é o acervo especializado. Diante de tanta concorrência dos mais diferentes tipos, o aprofundamento artístico costuma ser uma das melhores saídas. Nas prateleiras, abarrotadas de discos, é possível encontrar desde a última banda descoberta na Inglaterra (as distribuidoras brasileiras praticamente pararam de apostar nesse tipo de lançamento) até exemplares arqueológicos de grupos pernambucanos da década de 1990. O grupo londrino The XX, por exemplo, é ouvido no mundo todo, mas ainda não foi lançado no Brasil (apenas pode ser importado, como fez a Flowers). “Quando comecei, em 1999, ainda não havia tanta concorrência com as mega stores e os pontocom. Hoje, alguns vendedores das livrarias Cultura e Saraiva chegam a recomendar que os clientes procurem minha loja, pois sabem que aqui é o único lugar onde
Agora tá valendo (1997), que não está mais disponível em nenhuma loja, mas até poucos meses ainda podia ser visto em sua prateleira (foi arrebatado por R$ 50, pois a raridade fez o preço subir). O mesmo se verifica com títulos internacionais. “Em primeiro lugar, gosto muito disso aqui. Não toco nenhum instrumento, mas em outra encarnação devo ter sido músico. Eu sempre soube que me sentiria realizado se pudesse abrir um comércio de discos. Depois de 18 anos trabalhando como bancário, resolvi abrir a Flowers. Comecei a comprar discos e abrir canais com distribuidoras e gravadoras. Faço permutas com lojas de São Paulo e do Rio de Janeiro. É uma espécie de rede”, explica João. Para oferecer bons discos importados a preços razoáveis, ele tem algumas estratégias. Uma delas é importar da Argentina, onde o mercado nacional ainda lança bastantes CDs de artistas europeus e norte-americanos. Um exemplo é a banda islandesa Sigur Rós, que praticamente não foi distribuída no Brasil, mas teve todos os seus álbuns comercializados no vizinho
sul-americano. Outros, como Third, do Portishead, chegaram a ganhar edições brasileiras, mas com tiragens restritas demais, que se esgotaram rápido. O dono da loja chega a ser radical para manter a credibilidade: “Eu não curtia coisas como The Smiths, U2 ou Manic Street Preachers. Mas os clientes pediam tanto, que acabei ouvindo e gostando. Eu abomino o forró eletrônico, o axé, a música sertaneja e o pagode. Aqui, eles não entram. Sinto-me um vitorioso por não precisar vender discos desses estilos. Minha vingança é não me entregar a esses canalhas que dominam tudo, principalmente as rádios. Só não vou falar que é ruim porque sei que também é cultura”. Ele tem uma visão particular sobre o mercado recifense: “Das bandas do Recife, as que eu mais gosto acabaram ou nunca decolaram. O Recife é engraçado. As rádios não tocam música boa, mas a cidade é cheia de curtidores de Frank Zappa. Sempre que chega alguma coisa nova dele, alguém aparece para comprar”. Ele também se assume um saudosista. Fã absoluto de Iron Maiden, Rush, Boston, Status Quo e Bachman Turner Overdrive, não tem gostado muito de novidades. “Entre as bandas novas, poucas se salvam. Gosto de The Darkness, The Mars Volta, Kings of Leon e, principalmente, The Black Keys.” As regras da casa também são bastante particulares. Há caixas de som, mas apenas João escolhe o que vai ouvir em seu ambiente de trabalho. “Não disponibilizo fones de ouvido. A maioria dos frequentadores já sabe o que quer e conhece o som do disco antes de comprar. Às vezes, a pedidos, aceito botar um CD pra tocar, mas só quando quero conhecer um artista novo ou o projeto solo do integrante de alguma banda.” Mesmo assim, quer que todos se sintam em casa: “Nunca pedi para ninguém se retirar da loja. É sempre um prazer estar aqui com eles, não vendendo, mas ouvindo. Faço parte da vida deles. Gosto de passar meus dias aqui, mesmo quando não vendo nada. Tenho um cliente alemão que costuma passar dias inteiros aqui dentro. Ele disse que é difícil encontrar lojas assim na Europa”.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 5
PROFISSÕES 2.indd 55
28/12/2010 13:40:33
con ti nen te
autoria
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 6 7
Autoria.indd 56
28/12/2010 13:44:34
CRIAÇÃO O dono da história
Fragmentação promovida pela cultura digital e debate sobre a nova Lei do Direito Autoral instigam a pergunta: e agora, o que é o autor? texto Fábio Lucas ILUSTRAÇÕES Índio San
Para o português José Saramago,
o escritor é um lugar em que o tempo escreve: a Ilíada não poderia ser concebida hoje, assim como as obras de agora não poderiam ter surgido antes. Aproveitando o raciocínio, todo trabalho autoral seria cria legítima de sua época. E o nome, dessa maneira, a principal referência cronológica dos frutos do espírito humano. Qual o papel do autor e o seu valor, no século 21? Como se encaixa num cenário de múltiplas assinaturas em sobreposição, típica da cultura tecnológica atual? A essa altura do ponteiro da criação artística no Brasil, o governo federal e o Congresso se debruçam sobre a revisão da Lei de Direitos Autorais, tida como ultrapassada com apenas 12 anos de vigência. E o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) finalmente começou, em dezembro de 2010, a distribuir a arrecadação de R$ 1,2 milhão para cerca de oito mil músicos. O dinheiro é referente à música veiculada na internet. A distribuição inédita deve se repetir e crescer este ano. A porcentagem cobrada pelo Ecad é de 3,75% sobre o faturamento das empresas que comercializam músicas na rede mundial de computadores.
Nesse cenário de mudanças é que se insere o debate sobre o conceito de autoria. Ainda mais quando um dos traços da chamada pós-modernidade é justamente a quebra do paradigma autoral, em contraponto à tese da obra aberta, interativa, construída a várias mãos. Pós-modernidade, ou hipermodernidade – caso se prefira o argumento de Gilles Lipovetsky de que os fundamentos modernos, longe de terem sido superados, foram acentuados nas últimas décadas. Confirmando o cenário de paradoxos coexistentes, desenhado por Lipovetsky, em livros como A sociedade pós-moralista e A sociedade da decepção, o que vemos é o duelo de duas correntes que se opõem sobre o tema, representando visões de mundo divergentes. Visões baseadas, de um lado, no imperativo do dever rígido que reprime e, de outro, na autonomia do indivíduo que quer a liberação de antigas amarras morais. Duelo que também se anuncia no debate sobre a nova Lei de Direitos Autorais. A primeira corrente solicita o respeito aos direitos do autor e da imagem como valor absoluto, quase sem levar em conta a fruição da obra pelo público. Nesse sentido, trata-se de um movimento conservador, contrário ao uso sem regras e à mistura proporcionada pelas
novas tecnologias da informação e comunicação, mistura que resulta em um mosaico cuja atração está mais na fusão do que na originalidade. Criação e consumo se fundem, mas ainda a esse respeito há dois aspectos a serem isolados. Um, a influência das práticas de colagem sobre o conceito tradicional de autoria, em grande parte carregado da ideia romântica de originalidade. Outro, tem mais a ver com o direito de uso (ou não) do que é produzido, com a limitação (ou não) da distribuição num ambiente cultural em que cada vez mais vale a regra do compartilhamento. É como se a autoria estivesse se diluindo em meio à profusão de informações e novas experimentações – que quase nunca são novas em si mesmas. Essa seria a segunda tendência, num contexto em que o autor perde relevo em detrimento do resultado de uma obra “sempre em aberto”. O jornalista e mestre em Teoria da Literatura, Cristiano Ramos, lembra que o debate passou por diferentes ciclos. “Há cerca de um século, a discussão seguia rumo inverso: vanguardas tentavam minimizar o papel mediador da linguagem (e estetizar a própria existência) e questionavam ou mesmo violentavam a autoria.” Ontem e hoje, polêmicas semelhantes. “Especulações sobre
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 7
Autoria.indd 57
28/12/2010 16:46:26
con autoria ti nen te
o futuro da arte, do livro, anúncios de profetas-coveiros. Decerto, algo nesse universo de informações há de perder sua autoria. Mas, também não existem casos de grandes obras cujos autores mal conhecemos? Na ‘Era do Ctrl C, Ctrl V’, do mundo em rede, quantos livros nós diríamos que têm autoria duvidosa?”, questiona Ramos. Para o músico Silvério Pessoa, o mercado da música – e, poderíamos estender, toda atividade artística – precisa lidar com a emergência de novos paradigmas. “Isso envolve olhares diferenciados sobre a questão da autoria, da propriedade privada, do que se cria e se coloca no mundo para ser consumido.” Silvério reconhece que o ato de criar exige subjetividade, e as canções, ritmos e linhas melódicas da música não constituem exceção. No entanto, “a contemporaneidade coloca em xeque o que é propriedade no momento em que os samplers, os DJs, as montagens, os remixes, decalcam partes de obras, que, ressignificadas em beats, em levadas, passam a ser criação sobre a criação. Essa é a tendência, e
é sem volta”, diz o músico. Para ele, novas relações devem ser criadas, principalmente envolvendo o artista, o que se cria, e o que se pensa sobre propriedade. “O compartilhamento do que é criado faz da obra de arte um elemento socializante, não tratado como mais-valia.”
ARTE É EMPRÉSTIMO
O filósofo da Universidade de Campinas (Unicamp), Roberto Romano, possui visão semelhante. “Devemos ter em mente que a cultura não é propriedade desse ou daquele indivíduo, grupo, classe ou povo. André Leroi-Gourhan, etnólogo brilhante do século 20, mostra que toda e qualquer mudança tecnológica, artística, científica, se faz por meio de dois processos aparentemente contraditórios, mas complementares. Cada ato e cada artefato exige, para sua finalização, o empréstimo e a invenção. Só é capaz de inventar quem é capaz de emprestar, e vice-versa.” Onde mora a originalidade, então? Certamente fora da aura
de ineditismo que acompanha o imaginário sobre o gênio criativo. “A noção de originalidade, sobretudo quando absolutizada pelo Romantismo, trouxe graves mutilações para a compreensão das ordens culturais”, avalia Roberto Romano. “Não por acaso, pensadores apegados ao coletivo, em detrimento do individual (Hegel, entre outros), indicavam no Romantismo uma sede tão grande de originalidade, que, finalmente, o trabalho artístico ficava melancolicamente inacabado.” O também filósofo Pablo Capistrano, do Rio Grande do Norte, tampouco sacraliza a ideia de autoria. “Essa é uma noção histórica, como todas as noções que se constroem nas sociedades humanas, e por isso tem uma determinação temporal. Na antiguidade, não fazia sentido pensar em autoria”, lembra Capistrano, citando como exemplo o caso de Aristóteles, cujos textos foram editados e reeditados por alunos que modificavam os manuscritos. “É compreensível, porque o nome Aristóteles fazia
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 9 8
Autoria.indd 58
28/12/2010 16:46:43
criar novas versões. Nenhuma empresa que administra sites de postagem de conteúdos teria condições de fiscalizar todo conteúdo enviado e compartilhado nos seus servidores.” Para o público, é o melhor dos mundos. Mas, e para os artistas? Segundo Filipe, a tendência é que o artista cada vez mais possa ter o controle de seus direitos autorais, longe de intermediários, e se responsabilize pela produção, divulgação e distribuição das obras. “Pessoalmente, acredito no modelo em que o público escolhe o grau de envolvimento com o artista. Se ele quer ir ao show e baixar o disco, ótimo. Se quiser comprar vinil, camisa e qualquer coisa relacionada à gente, maravilha também. Essas pessoas repassam nossas informações, fazem vídeos, fotos, escrevem sobre a gente. Isso tudo só faz com que o nosso som chegue mais longe do que poderíamos esperar. Fico muito feliz se alguém posta uma frase, no Twitter, de uma música da Bande Ciné ou produz algum conteúdo com nossas músicas.” Um dos mais claros fenômenos da facilidade atual de empréstimo e referência mais a uma escola de pensamento do que a um autor.” A tradição das escolas filosóficas foi resgatada, ainda que sob diferentes princípios, pela indústria editorial contemporânea. Escritores cujos nomes se transformaram em marcas famosas continuam a ter livros assinados, mesmo depois de mortos. É o caso do best-seller Sidney Sheldon. Agora, quem produz as histórias que são vendidas com seu nome na capa é a inglesa Tilly Bagshawe. Outro campeão de vendas que tem a obra continuada é Harold Robbins, cujo “herdeiro autoral” chama-se Junius Podrug. De acordo com Pablo Capistrano, vivemos numa época de “dissolução da visão romântica de gênio, da ideia moderna de ‘Eu’, e aí a autoria e o domínio do autor (ou da indústria) sobre sua obra vão para o ralo dos conceitos históricos”. A dissolução tem componente tecnológico perceptível. Para Capistrano, autor de Simples filosofia, não há como imaginar alguém que possa, sozinho, superar os impasses que as novas tecnologias impõem ao escoamento do seu trabalho. O domínio sobre a
própria obra está cada vez mais difícil. “Eu mesmo passei por um processo de redimensionamento de minhas expectativas em relação à minha produção literária, porque sou um cara do século passado, que começou escrevendo numa Remington, mas que já não tenho controle sobre meus textos desde que entrei na internet.” O integrante da Bande Ciné, Filipe Barros, reforça esse aspecto dizendo que o grande nó da autoria, hoje, está relacionado ao compartilhamento e acesso a conteúdos nas mais diferentes mídias e suportes. “O que antes acontecia de maneira mais lenta (gravar uma fita, copiar um DVD, esperar horas para baixar) agora acontece no tempo de um clique. Basta clicar no download ou compartilhar em uma rede social e, pronto, qualquer conteúdo artístico já foi enviado para centenas de pessoas simultaneamente.” Para o guitarrista e vocalista da banda, cujo trabalho faz a releitura da música francesa, a cultura de compartilhamento atual é incontrolável. “Essa cultura também leva consigo outras ideias, a de colaboração e a de criação derivada, ou seja, de remixar,
“A noção de originalidade trouxe graves mutilações para a compreensão das ordens culturais” Roberto Romano reinvenção vem do universo musical. São os mashups, quando duas músicas são recortadas e unidas para dar origem a uma terceira. É o que faz o DJ Faroff – como ficou conhecido mundialmente o economista Leonardo Bursztyn, com doutorado em Harvard e professor universitário da UCLA, na Califórnia. Suas versões trazem os vocais de uma composição e os instrumentais de outra. Além de juntar músicas, ele costuma colar videoclipes. Alguns foram retirados do You Tube pelas gravadoras. Mas Leonardo nem se abala. “Ao se fazer mashup de um artista, você está na verdade divulgando-o – muitas vezes para um público novo. Hoje em dia, é impossível evitar que terceiros se apropriem e
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 5 9
Autoria.indd 59
28/12/2010 16:47:00
con autoria ti nen te reciclem sua música – e a indústria vai ter que se adaptar a isso. Estamos em uma era onde tudo é reaproveitável e misturável. E acessível. Isso é ótimo”, declarou o DJ, em entrevista ao jornal O Globo, no último novembro. Nesse mesmo mês, foi realizado no Paraná o 4º Congresso Internacional de Direito Eletrônico, no qual foi mencionada a importância da reformulação na lei de direito autoral brasileira. Ao fim do encontro, foi divulgada a Carta de Curitiba, com sugestões sobre o monitoramento eletrônico de presos, o ensino jurídico, a certificação digital e os direitos autorais. Em seu trecho final, o documento aponta para a descriminalização da pirataria: “Os direitos autorais, tradicionalmente concebidos como um monopólio das editoras e gravadoras, precisam ser pensados hoje sob a perspectiva prioritária de proteção do autor, sem, no entanto, dificultar o acesso das obras à significativa parcela da população que não pode pagar por elas”. Segue a polêmica em torno do assunto. Alguns meses atrás, um tribunal de Nova York ordenou a retirada do ar do Limewire, site de troca gratuita de conteúdos, que funcionava desde o ano 2000. O Limewire utilizava a tecnologia P2P – ou peer to peer –, que possibilita aos usuários o download e compartilhamento de arquivos em rede. A decisão do tribunal nova-iorquino foi fundamentada na violação dos direitos autorais do material compartilhado. Batalha judiciária semelhante tirou do ar o pioneiro Napster, em 2001, e retornou em 2004 realizando downloads legais e pagos.
RESPEITO AOS CRIADORES
No ano passado, o mundo literalmente parou para assistir ao drama de 33 mineiros soterrados no Chile. Todos foram resgatados com vida após 69 dias, numa operação que contou com a ajuda de uma cápsula da Nasa e maciça cobertura da mídia. A expectativa do público foi disparada por uma frase: “Estamos bem, em um refúgio, os 33”, escreveu o mineiro José Ojeda, em um bilhete que chegou à superfície por meio de uma sonda,
17 dias depois do desastre. O resgate aconteceu no dia 14 de outubro. Uma semana mais tarde, aconselhado pelo escritor Pablo Huneeus, Ojeda registrou a frase e se tornou o seu proprietário intelectual, para evitar que outras pessoas lucrem com ela. Terá sido um exagero? Na discussão sobre o direito autoral também se insere o direito de imagem, em que as distorções se evidenciam. A divulgação de uma foto, que continha a imagem de Manuel Bandeira sem autorização da família, foi suficiente para que os herdeiros solicitassem a retirada de um livro – que nem tratava do poeta – do mercado. Em caso recente, um documentário sobre o compositor Walter Alfaiate, produzido quando ele estava vivo, com seu consentimento e participação, foi proibido de ser exibido até que a sua herdeira entre num acordo com os produtores. Para o poeta e cronista Affonso Romano de Sant’Anna, casos como esses não podem interferir na essência da discussão. “Sou artista, exijo respeito pelos direitos autorais do que produzo. Posso ou não conceder a alguém o direito de utilização, mas isso é prerrogativa minha. Por causa de meia dúzia de herdeiros neuróticos, que devem ser tratados à parte, não se pode punir todos os criadores”, afirma, em referência aos novos proprietários de obras de artistas falecidos que dificultam a sua divulgação. Affonso Romano condena o que chama de face perversa da contemporaneidade, que estaria “deixando o sujeito atônito. Primeiro, dizendo que ele não existe. Segundo, que sendo ele um ‘objeto’ entre outros, é, sobretudo, mercadoria. Há também um conceito de que ‘todo mundo é artista’”. Para Affonso, é falsa a democratização que prega o acesso impune e livre às obras. De fato, quando tudo se assina por todos, perde-se talvez o que Julio Cortázar definiu como a felicidade da autoria: “Sentir que em torno da minha obra há uma grande quantidade de leitores, sobretudo jovens, para quem meus livros significam algo, são companheiros de estrada, me faz muito feliz”.
O cineasta Eduardo Coutinho declarou em entrevista sobre seu último filme, Um dia na vida, que seu trabalho não tem nada de criativo. “O princípio é o da pilhagem. Tudo a certa medida é plágio, cópia, referência. A figura do artista original é uma farsa romântica”, falou. O cineasta pernambucano Leo Falcão lança um olhar cauteloso sobre o problema. “Se, por um lado, não consigo entender a autoria como um bem material, dotado de um sentido de posse – de que não sou partidário –, por outro, não acho que se trata de uma pura e simples articulação de linguagem, desprovida de caráter subjetivo. Acho que ser autor é assumir um discurso, semântica e estilisticamente, especialmente diante de tanta impessoalidade na cultura.” Filipe Barros, da Bande Ciné, afirma que a ressignificação – mencionada por Silvério Pessoa – tem se acentuado graças às facilidades tecnológicas. “Os programas estão aí, basta um pouco de tempo e criatividade. Mas é importante creditar sempre, dizer quem foi
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 0
Autoria.indd 60
28/12/2010 16:47:11
o autor da história e, se for usar comercialmente, pedir o direito de utilizar aquele conteúdo ao criador.” Em complemento ao que falou Leo Falcão, Filipe diz que a ideia de autor não morreu. “Em algum momento, alguém criou algo (seja isso possível de ser chamado de ‘novo’ ou não) e registrou em algum suporte. O autor está lá, a criação também. Se a obra usa samples, referências, aí vai depender da estética de cada um, mas existe uma singularidade naquela inscrição.”
decisão autoral
A singularidade do registro é o que se persegue na relação entre o nome e a obra. Para ordenar a selva de usos e abusos na internet, por exemplo, o que se tem disseminado é o conceito creative commons, em que o criador decide o que está liberado ou não. E a reprodução pode ser feita com a devida referência da autoria. “O importante é o artista se informar, conhecer os modelos de licenciamento e escolher o melhor para o seu trabalho”, pondera
A autoria pressupõe, além da subjetividade, a difusão da visão de mundo que ela compreende Filipe Barros. Mas o creative commons é criticado pelo presidente da Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA), José Carlos Costa Netto. Para ele, que também é compositor letrista, de músicas como Verde, interpretada por Leila Pinheiro, “o discurso liberatório dos teóricos desse sistema cai por terra com a exigência de que o upload da obra pelo autor seja precedido de cessão de direitos autorais em caráter definitivo: a situação é muito mais de abandono (pelo autor em relação à sua obra) do que da democratização de uso cooperado, alardeada pelos seus defensores”, declarou, em entrevista para o site do escritório de advocacia e consultoria
em propriedade intelectual de Rodrigo Moraes, da Bahia. O que a autoria pressupõe, além do reconhecimento da subjetividade, é a difusão da visão de mundo que ela compreende – do tempo em que a obra se inscreve, ou do tempo em que a obra escreve, para recordar Saramago. “É preciso que nos perguntemos: os artistas que têm obras sendo mais compartilhadas possuem menores rendimentos provenientes de seu trabalho? Creio que não. Para esses, qualquer perda é acompanhada também de um enorme público pagante. Quando sua produção deixar de ser compartilhada, aí, sim, deverão se preocupar, e muito”, analisa o jornalista Cristiano Ramos. Afinal de contas, a obra é o elemento essencial, embora a autoria mereça respeito. O autor não é o que se expõe, o que se lê ou se escuta, para o deleite dos sentidos e o vagar da imaginação. O que se aprecia – a obra – antecede o nome, a despeito do prestígio conquistado pelo autor.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 1
Autoria.indd 61
28/12/2010 16:47:25
con autoria ti nen te
Artigo
CÉSAR COLERA BERNAL A LIBERDADE E A CRIAÇÃO Pureza ou mistura? Nova criação ou
collage de originais? Nossa época parece assistir a um deslocamento do primeiro ao segundo desses polos: no esteio do desenvolvimento informacional, prevaleceria hoje – não sem prejuízo para a verdadeira arte – a mediocridade da criação coletiva frente à singularidade do gênio individual. Essa tese – uma de tantas a associar modernidade tecnológica e decadência espiritual e cultural – olha para o passado com os olhos de quem consulta um dicionário de homens ilustres, um fichário de luminares em que cada página encerra, explicando-as, as respectivas contribuições. E olha para o presente com o desgosto que provoca a desordem e o emaranhamento, a repetição ad nauseam e a falsificação. Em termos de autoria, passado e presente se oporiam, nessa visão, como o legítimo do sucedâneo, o criar do macaquear, o diáfano do marrom, o assumir-se do esconder-se e – para resumi-lo – o sagrado do profano. Mas, como todo maniqueísmo, essa é uma tese errada, em desavença com os fatos, pois com raízes em dois prejuízos: contra a mestiçagem e contra a tecnologia. O primeiro desses prejuízos ignora que nunca existiram arte e autores puros. Na verdade, a hibridação foi sempre a regra, e o original imaculado, uma simplória e interesseira quimera. Prova-se essa afirmação em múltiplas instâncias do binômio autor-obra. Biológica: o genótipo humano já é miscelânea de traços de inúmeras espécies. Biográfica: cada indivíduo é um nó de infinitas e longas influências espaciais, culturais e temporais. Procedimental: toda criação se apoia em recursos (alfabeto fenício, papel chinês, tinta pré-histórica etc.) que a remetem a cenários exóticos. E, finalmente, conteudística: na obra criativa – romance ou catedral, livro revelado ou
sinfonia –, recapitulam-se os estros de inúmeras nações, raças e profissões. A prensa renana e a sabedoria egípcia coproduziram a Bíblia de Gutemberg. Quem é Agostinho de Hipona? Um platônico africano? Um latinista romano e sacerdote de uma religião oriental? Antes, a mistura disso tudo. Cada autor rumina e recicla, mesmo quando sem sabê-lo, toda a produção cultural anterior. Em sua obra, desembarca tropel de outros autores, ressoam os ecos e imagens de tudo o que a experiência humana registrara antes em símbolos e artefatos. E isso nos remete ao segundo prejuízo, pois, de fato, a arte é sempre artefato. O autor invariavelmente se apoia em técnicas, seja para executar a sua inspiração (até a música, a mais abstrata e evanescente das artes, nasce de instrumentos), seja para lhe dar suporte. Assim, se a ciência é tão antiga quanto a filosofia, a técnica o é tanto quanto o próprio homem. Tecnologia – como linguagem, inteligência ou liberdade – é sinônimo de humano. Malgrado a tecnofobia de tantos, tão grandes e tão influentes pensadores, a tecnologia – do atabaque ao iPad – é liquidamente humana e humanizante, desde que, como em tudo na vida, não se abuse dela. Por quê? Talvez, porque é tão arte quanto tudo o que busca solucionar um problema ou anseio vital pela via da excelência, tão linguagem quanto qualquer símbolo a apontar conceitos, tão lídima expressão da inteligência
quanto qualquer manifestação do espírito. Sobretudo porque é tão mestiça quanto o próprio homem: é articulação insólita, aglutinação aberta e dinâmica de plêiade de elementos que, em si, são também misturação do heterogêneo. É, pois, nesse sentido, que se dá patente a um remédio como se registra um romance: apenas reivindicando o último elo, a derradeira costura de relações entre materiais previamente recepcionados. Talvez o artista medieval, que não julgava necessário assinar a sua obra, compreendesse melhor que nós, hoje, o estrito caráter comunitário e institucional inerente a toda criação. Possivelmente, assim se aperceberia de imediato da falsidade daquela inicial disjuntiva: arte pura ou mistura de estilos? Trata-se, na realidade, de um pseudoproblema, pois são ambas as artes uma só: um compósito de velho-e-novo, de forasteiro-epróprio, de comunal-e-individual em que sempre cabem os extremos da originalidade e da contrafação, da autoria e da imitação vulgar. Dê-se, pois, curso amplo, patente legal e apreço público às obras do engenho que os mereçam. E, mais importante, para determinar quais são essas, faça-se da irrestrita liberdade – pois é origem e efeito de toda criação – o fulcro que, desde a perspectiva do espectador/leitor, discrimine com o passar do tempo autoria e pseudoautoria, arremedo de criação e arte verdadeira.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 2
Autoria.indd 62
28/12/2010 16:47:43
REPRODUÇÃO/CATÁLOGO DA 29ª BIENAL DE SÃO PAULO
CON TI NEN TE
ARTE
MÍDIAS A obra independe do suporte No século 21, dissemina-se na produção artística uma maior aproximação com o pensamento e o fazer tecnológicos, associando-os ao seu desvirtuamento funcional TEXTO Diana Moura
1
CO N T I N E N T E JA N E I R O 2 0 1 1 | 6 4 5
ARTE E TECNOLOGIA.indd 64
28/12/2010 16:49:40
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 5
ARTE E TECNOLOGIA.indd 65
28/12/2010 13:53:27
con arte ti nen te Fotos: reprodução
2
Entre as várias formas pelas quais podemos observar a relação do homem com a tecnologia, está a do processo de disseminação dessas novidades. Elas se consolidam num ciclo que se inicia no desejo e na necessidade, passando pela descoberta, apreensão e popularização até a decadência. Essa última coincide com sua superação técnica e substituição por outra tecnologia mais eficiente, baseada em novos desejos ou necessidades. De tempos em tempos – ou de coisas em coisas –, o ciclo se repete. De uma maneira geral, uma nova tecnologia se estabelece pela sua funcionalidade e eficiência – e esse processo, vulgarmente falando, só é desvirtuado por dois motivos: erro/casualidade ou estética. Ou seja, salvo engano, só a arte é capaz de retirar a utilidade prática dos objetos, transportando-os para o mundo dos valores puramente simbólicos.
Para o curador Moacir dos Anjos, o uso disseminado da videoarte reflete a geração que cresceu diante do vídeo Esse procedimento estético se tornou mais evidente a partir do dadaísmo de Marcel Duchamp, com seus ready mades. A subtração do princípio da funcionalidade, ou a sua distorção, converteu-se num recurso que ocupou boa parte da arte do século 20. Nesse início de século 21, a produção artística se aproximou bastante do pensamento e do fazer tecnológicos, associando-os, por conseguinte, ao seu desvirtuamento funcional. Quer dizer, a arte contemporânea dessa primeira década dos 2000 ocupa-se em apropriar-se
dos meios tecnológicos e modifica a maneira como o homem lida com esses aparatos. Embora essa prática não seja exclusiva de nosso tempo, torna-se cada vez mais popular, uma vez que, nunca, como hoje, a relação do homem com o mundo foi tão intensamente mediada pelos recursos técnicos e tecnológicos, digital em sua maioria. Não foi por casualidade, nem por determinação expressa de seus curadores, que a Bienal de Arte de São Paulo de 2010 teve um volume de vídeos até então inédito na mostra internacional. Segundo o curador Moacir dos Anjos, corresponsável por essa edição do evento ao lado de Agnaldo Farias, o crescimento da videoarte como forma de expressão apenas reflete o amadurecimento de uma geração artística que cresceu diante da onipresença do vídeo, principalmente a televisão. Ao trabalhar com meios audiovisuais, eles transportam para a
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 6 7
ARTE E TECNOLOGIA.indd 66
28/12/2010 13:53:41
Página anterior 1 amar kanwar
ineasta indiano apresenta seus C filmes-ensaio em instalações
Nestas páginas 2 DESEJO EREMITa
Rodrigo Braga registra performance em ensaio fotográfico de 2009
3 CARLOS MÉLO Máscara de mergulho é perfomance realizada em Sintra
entre arte e tecnologia. Um de seus trabalhos mais conhecidos, Fantasia de compensação, apresenta o rosto do artista reconstituído com as feições de um cachorro. Impactante, a série de fotografias, realizada em 2004, suscita críticas inflamadas ainda hoje, pelo uso do corpo do animal como matériaprima para a realização de uma obra de arte. Extremamente complexas, as peças foram construídas pela combinação bem-sucedida de perícia técnica (moldes de gesso, recorte dos pedaços da cara do cachorro, montagem dessas partes no molde, fotografia) e domínio tecnológico. Manipulando softwares gráficos, o artista substituiu com perfeição o modelo de gesso de sua cabeça por fotografias de sua face. Essa criação de Rodrigo é um exemplo claro de uma obra que, antes da disseminação das tecnologias digitais, não seria possível – pelo menos em todos os seus níveis. Claro que uma pintura hiper-realista seria capaz de proporcionar um efeito alegórico similar, mas a verossimilhança das imagens transmite uma sensação de completude e incômodo muito maiores. Tanto que diversas pessoas chegaram a perguntar ao artista se ele realmente teria se submetido ao transplante das partes do cachorro em sua face durante a feitura de Fantasia de compensação.
CAMPO PERFORMÁTICO
3
arte o suporte pelo qual se acostumaram a ver e interpretar o mundo. O artista plástico amazonense Rodrigo Braga, radicado no Recife, é um dos nomes da produção contemporânea que se vale do vídeo como forma de expressão estética. Um de seus trabalhos mais delicados – e também polêmicos – mostra dois pássaros de tamanho
similar, presos um ao outro, por um cordão atado aos pés. Um deles está vivo, o outro morto. Quando um levanta voo, é puxado pelo peso do animal inanimado. Doloroso, o vídeo traz consigo o sugestivo título de Vontade (2007). Rodrigo Braga, aliás, é um dos nomes mais fortes da arte pernambucana quando se pensa na associação
A popularização e o barateamento das tecnologias digitais também mudaram, nos últimos 10 anos, o processo de construção e exibição das performances, não apenas no Brasil, como em outros países. Hoje, com a onipresença das mídias de todas as naturezas e escalas, é quase impossível escapar de alguma forma de registro e reprodução imagética dessas ações, que acabam se transportando e gerando outro produto estético. É o caso, em Pernambuco, do artista plástico Carlos Mélo, que, apesar de também se expressar por meio de
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 7
ARTE E TECNOLOGIA.indd 67
28/12/2010 13:53:54
con arte ti nen te Fotos: reprodução
vídeos, múltiplos e objetos, encontrou na realização de performances e na sua documentação um campo vasto para a representação de sua poética. No pensamento plástico de Mélo, o corpo é ponto de partida e de chegada. O artista revela especial interesse por esse corpo que se move no espaço e por seus vestígios. Depois de ter atuado em muitas de suas obras, atualmente ele tem convidado outras pessoas para fazer parte das criações. Como acontece com a maioria dos artistas performáticos, as ações a que o público assiste diretamente são, muitas vezes, inferiores ao potencial de visualização do resultado quando exposto, seja por meio de fotografias, vídeos ou em outras circunstâncias. Essa especificidade acaba por criar duas obras distintas – a performance, propriamente dita , e sua representação –, mesmo que compartilhem uma só gênese. Apesar de evidenciarem a ausência da ação, no momento em que são vistas, as fotografias são a única forma possível de apreender a realização anterior. Uma obra de arte que expõe a ausência de outra, sua antecessora, e que não existiria de outra forma. Embora esse tipo de trabalho venha sendo realizado desde meados do século 20, não há como negar que as tecnologias digitais lhe ofereceram novo impulso e mais possibilidades. Aliás, a massificação de fotografias computadorizadas proporciona, ainda, o surgimento de duas outras formas de utilização estética desse recurso, ou de sua negação. Uma delas é a apropriação, pelo campo da arte, do excesso e da saturação de imagens absolutamente casuais, clicadas todos os dias, em todos os lugares do planeta, e disponibilizadas aos montes nas redes sociais online. Como contraponto, há uma reação a essa banalização fotográfica, sentida nas obras de artistas como Cristiano Lenhardt e Jonathas de Andrade, que produzem, atualmente, fotografias propositadamente com aparência envelhecida. Claro que esse é apenas um dos aspectos de suas criações, mas não deixa de ser interessante observar a proposta de artistas que se estabelecem na contramão do fluxo da produção imagética midiática. Ao adotarem novos critérios para a imagem, resgatando texturas, locações e temas relacionados a décadas que ficaram para trás, eles
reafirmam o caráter menos banal e corriqueiro da fotografia, fazendo incidir um olhar diferente sobre ela. Para isso, utilizam meios ambíguos a fim de concluir esse percurso. Primeiro, porque também acabam por se pautar por temas cotidianos – que se tornam menos cotidianos quando nos iludem em relação ao tempo que parece acumular-se sobre elas. Depois, porque também podem sofrer processos tecnológicos para que se tornem antigas, amareladas, rotas e gastas, num processo que usa aparatos digitais quase que para negá-los. Há nessa dualidade um caso cada vez mais comum de apego e negação das imagens ditas computadorizadas. Atualmente, essa questão também tem impregnado o cinema. Há uma tendência de se usar recursos avançados de produção, gravação, montagem e acabamento digitais em filmes que podem ser realizados em casa, com
As performances são, muitas vezes, inferiores ao potencial visual do resultado da obra, quando exposta em fotos ou vídeos softwares operados com simplicidade. O resultado é um artesanato – aqui usado como contrário a um processo industrial pesado – que leva alguns artistas do audiovisual a criarem produtos que, de tão livres, são híbridos, não importando se estão enquadrados na categoria cinema, vídeo, videoarte, ficção ou documentário. O diretor pode amalgamar características pertinentes a todas essas linguagens e criar um produto único, que possua linguagem própria de seu criador, longe de rótulos e amarras. Obras desse tipo têm se multiplicado, só para explicar (aos apocalípticos) que arte é aquilo que o autor traz consigo antes de decidir em que suporte vai realizá-la. Pode ser numa folha de papel. Ou num código binário impalpável, só existente, na prática, como um arquivo digital. O processo e os resultados, ou seja, a poética, é a única coisa que verdadeiramente importa.
4 fotoinstalação
Amor e felicidade no casamento, de Jonathas de Andrade, é uma obra composta por 80 fotografias-pôsteres
5 nostálgico
Entre suas experimentações artísticas, Cristiano Lenhardt produziu fotografias com aparência envelhecida, que resultaram na série Europa
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 8
ARTE E TECNOLOGIA.indd 68
28/12/2010 13:54:04
4
5
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 6 9
ARTE E TECNOLOGIA.indd 69
28/12/2010 13:54:11
con arte ti nen te
Artigo
GISELLE BEIGUELMAN EMERGÊNCIA TECNOFÁGICA A produção brasileira no campo da cultura digital indica uma emergente vertente tecnofágica, um processo de devoramento e trituração da tecnologia mediado pelo uso crítico e criativo das mídias. Essa vertente aparece em modelos econômicos alternativos, práticas artísticas agenciadoras de outras ações e sistemas de pirataria voltados para usos coletivos das telecomunicações. A tecnofagia não é um movimento, mas uma conceituação que desenvolvi para dar conta de operações de combinação entre a tradição e a inovação, arranjos inusitados entre saberes científicos e artesanais e ações micropolíticas de apropriação das tecnologias. Essa tendência pode ser um primeiro esboço de uma prática política e estética que opera pela combinação e remodelagem de equipamentos, revalidação das noções de hi e low tech, e produção de dispositivos capazes de agenciar outras formas de criação. Seu contexto é o da globalização e do processo de digitalização da cultura em todos os níveis. A intensidade desse processo, no Brasil, vem alterando não só a economia e a posição geopolítica do país no mundo, mas as formas de relacionamento com os dispositivos tecnológicos, incluindo-se aí o perfil social do acesso à internet. Ele é feito, hoje, majoritariamente, pelas lower middle e lower classes (52%) e a partir de lan houses, localizadas na periferia e em favelas. Não só o perfil social de acesso às tecnologias de informação e comunicação (TICs) mudou muito nos últimos anos. Mudaram também as formas de produção e circulação da cultura. Isso tem culminado em diversas ações independentes, como os projetos Overmundo e Casa da Cultura Digital, voltados para o estabelecimento de circuitos de veiculação da produção cultural. E
tem culminado também na formação de redes temporárias de criação de dispositivos, que podem resultar em outras ações criativas, propondo novos modelos econômicos. Nessa perspectiva, destaca-se o Circuito Fora do Eixo, uma rede de pequenas iniciativas na indústria da música, dedicada ao intercâmbio de tecnologia, criada em 2005 por produtores culturais de cidades situadas fora do circuito mainstream da economia cultural brasileira, ou seja, fora do eixo Rio-São Paulo. A rede, hoje, tem nós em todo o país, sendo responsável por festivais e iniciativas internacionais, como o Grito Rock South America. Essa efervescência de novos modelos de produção se dá em um contexto de notável expansão do poder aquisitivo. Entre 2003 e 2008, a renda da população mais pobre do país cresceu 72%, implicando a saída de 18,5 milhões de pessoas da pobreza
“A tecnofagia é uma conceituação que desenvolvi para dar conta de operações de combinação entre a tradição e a inovação” e no ingresso de outros 32 milhões às classes mais ricas. O impacto dessas transformações em relação à capacidade de consumo é inegável e criou novos perfis sociais nas classes C e D, que vem sendo chamados pelos especialistas de “consumistas impulsivos”. O resultado perverso dessa súbita amplificação da capacidade de consumo é o desperdício e a rápida descartabilidade dos bens tecnológicos. O contraponto a essa situação aparece em grupos fluidos, como Gambiologia. net, MetaReciclagem, Estúdio Livre e LabOCA, que combinam atividades de procedimentos de reciclagem de equipamentos e exploração de software de código aberto. No conjunto, esses coletivos vêm configurando uma estética hi-low tech, com forte potencial de agenciamento ecológico e político e que tem marcado a obra de artistas como Fernando Rabelo, Mariana Manhães e Lucas Bambozzi, entre outros.
Mobile crash, de Lucas Bambozzi, por exemplo, tensiona a esfera do consumo, dando ao público o papel de protagonista no jogo obsolescência planejada. Trata-se de uma instalação baseada em quatro projeções interativas, que reagem à presença dos visitantes. Apresenta uma sequência de pequenos vídeos de dispositivos tecnológicos sendo esmagados por um martelo. Os vídeos são ritmados e divididos em 12 níveis de intensidade, acionados em resposta aos gestos do público. Quanto mais nos movemos, mais rapidamente os vídeos são processados e mais rapidamente os antigos símbolos de luxo são transformados em lixo eletrônico. O resultado é um processo interativo catártico que desperta a consciência sobre as dimensões políticas dos circuitos tecnológicos. Enfatiza, assim, uma hipótese do antropólogo Néstor Canclini, que observa como as novas tecnologias de comunicação têm ampliado a noção de cidadania, incorporando práticas de consumo ao seu exercício. Essa relação entre consumo relacionado às TICs e cidadania atravessa certas estratégias de pirataria, como a da TV Nova Baixada, uma rede “clandestina” de TV a cabo que atendia a 30 mil assinantes no Rio de Janeiro. Vale lembrar que essa rede não só era mais barata, como chegava a lugares que as corporações não atingiam, utilizando o parque tecnológico delas. Além disso, a Nova Baixada exibia cópias piratas de filmes recém-lançados nos cinemas e tinha programação própria com canais dedicados ao funk e esportes. Movimentava cerca de US$ 300 mil por mês e empregava 40 pessoas. Foi fechada pela polícia, recentemente. Outras estão surgindo para ocupar o seu lugar. De perfis variados, essas diferentes práticas tecnofágicas são um fenômeno diretamente relacionado ao processo de digitalização cultural pelo qual o Brasil passa. Caracterizam-se, por um lado, pela reinvenção irônica da tecnologia e, por outro, pela capacidade de agenciamento, colocando em circulação modelos alternativos de economia criativa seja porque propõe novos circuitos no mercado de consumo, seja porque os põem em questão.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 7 0
ARTE E TECNOLOGIA.indd 70
28/12/2010 13:54:13
margarida lucena da hora 1924-2010
matéria corrida José Cláudio
artista plástico
Era uma vez, mais uma vez,
a polícia invadindo a Folha do Povo, a Folhinha, tão pobrezinha coitada, empastelando tudo, comunista fugindo pelo telhado, caindo em cima da mesa de jantar de família cristã em pleno jantar feito peru de Natal, Abelardo levando um soco que ficou seis meses de olho roxo, quase perdia uma vista, quem salvou foi o médico da Detenção. Era uma vez Para Todos, Novos Rumos, Horizonte, Voz Operária, o realismo crítico, Os retirantes de Portinari, A fome e o brado de Abelardo da Hora, os meninos magros, a mão crispada cujo modelo foi a do próprio escultor, de tanto ser preso estudou Direito para ter direito a prisão especial, mas nem adiantou porque até a pena de morte foi condenado na ditadura. Era uma vez a estudante de Direito Margarida Maria de Sampaio Lucena (Engenho Juá, Guarabira, PB, 16/abril/1924 – Recife, PE, 17/novembro/2010), que deve ter morrido tantos anos depois do medo acumulado durante a vida inteira e de fato nos seus últimos dias vivia gritando de medo pedindo à filha Lêda para segurar na mão dela, era uma
vez, dizia eu, a estudante Margarida na Associação dos Empregados do Comércio do Recife na Rua da Imperatriz, na exposição de esculturas de Abelardo da Hora, nobre Rua da Imperatriz, onde o pintor Hélio Feijó fazia ilustrações para o jornalzinho Praeiro, distribuído na fila do ônibus de Boa Viagem aos domingos na frente do cinema Trianon, atelier dividido com Ladjane Bandeira, vinda de Nazaré da Mata, que desenhava com batom e fazia ilustrações para o Suplemento do Diario de Pernambuco dirigido por Mauro Mota. Era uma vez uma exposição de Cícero Dias na Faculdade de Direito feita pelo estudante Aloísio Magalhães que fazia cenário para o Teatro do Estudante de Pernambuco dirigido por Hermilo Borba Filho, e duas exposições de Lula Cardoso Ayres, uma na mesma Faculdade e outra na Rua da Imperatriz, expondo também nas vitrines da livraria Cruzeiro juntinho do Armazém Potiguar, o “Gigante da Rua Nova” (obrigado Rostand pelo ótimo Livros, livreiros e livrarias), e que desenhava as latas de biscoitos Confiança e cartaz para eleição de Gilberto Freyre para
deputado federal com as três raças, o negro, o índio e o branco, quando o único chinês que existia na face da Terra era o da lavanderia da Rua da Matriz e o único japonês o Guemba da sorveteria da Rua da Aurora que já naquela época fazia sorvete de frutas amazônicas, região tão lendária quanto as amazonas guerreiras, e de fato amazonense eu só conhecera um no internato do Colégio Marista mas duvidando que existisse, com perdão de Milton Hatoum. Era uma vez eu encontrando com Ivan Carneiro na Rua de Santa Cruz, meu ex-colega de classe no Marista, ele me perguntando se eu inda gostava de desenhar, me convocando para fazer parte do Atelier Coletivo que ia ser fundado, estavam procurando casa para alugar, eu disse que não sabia nada de arte, ele disse que era mesmo para gente assim, cada um dava vinte cruzeiros, eu dei para me livrar, dias depois ele voltou dizendo: “a casa está alugada na Rua da Soledade”, ali começou minha vida de novo, nunca mais pisei na Faculdade de Direito onde nunca estudei, gastei a tinta verde todinha
co n t i n e n t e ja n e i R O 2 0 1 1 | 7 2
Mat_Corrida.indd 72
28/12/2010 13:58:02
imagens: reprodução
1 Retrato de
margarida
Aguada de nanquim sobre papel, 1950
2 documento
Texto da sentença de morte de Abelardo da Hora
1
2
que era para todo mundo somente no fundo do primeiro quadro feito de lona de cama que eu pedi a meu pai, da loja em Ipojuca, que fazia cama de lona, a tela sem preparação, eu não sabia que se preparava, chupou a tinta todinha, nem que se usava solvente, Ionaldo querendo me botar para fora, Abelardo dizendo a ele que o culpado era ele que não tinha me ensinado e de fato fui o primeiro a começar um quadro no Atelier, logo grande, inspirado em Diego Rivera, um metro ou mais, uma mulher num fundo verde imitando canavial, Reynaldo Fonseca disse que a mulher que eu pintara estava caindo, que no outro dia quando eu chegasse ia encontrá-la no chão, minha primeira lição, depois disseram que o quadro deveria ter um tal de equilíbrio, um lado não podia pesar mais do que o outro. Era uma vez Lêda se arrastando, a fralda melada do barro de modelagem, eu levando Lenora carregada no braço para ver filme no cinema Parque, Ionaldo desfilando na Rua da Imperatriz com o cabelo arrepiado, antecipando-se à moda black power, com o judeu Bernardo
Ludemir, os dois fumando cachimbo, eu não sabia que existia judeu a não ser na Bíblia, apesar de passar todo dia na porta do Clube Israelita pensando ser um clube como outro qualquer como o Tramways ou o Santa Cruz, uma vez fomos Abelardo, Ionaldo, Marius Lauritzen Bern, Gilvan Samico e eu desenhar pelos canaviais de Ipojuca, Joãozinho-do-Ônibus cubou bem Ionaldo de cima abaixo, disse sério em segredo a meu pai: “Seu Amaro, aquele ali parece que trabalha nas fumaças”, chamando de catimbozeiro. Era uma vez o realismo lírico de Abelardo, adivinhando Margarida na escultura Bacante de que sobrou apenas uma foto de Delson Lima, outra versão de Margarida esculpida diretamente no mármore pelas mãos de Abelardo, sendo essa a primeira vez que cheguei a ver alguém esculpir no mármore, de maceta e cinzel (Mulher, 124cm de altura, col. Cid Sampaio, 1952) no exíguo corredor da casa da Rua Velha, pertencente a um parente de Gilvan Samico, nossa segunda sede, onde uma vitrolinha tocava Pássaro de fogo de Igor Stravinsky, A Dança dos curdos de
Aram Katchaturian, Introdução ao rondó caprichoso de Camille Saint-Saëns e Old man river cantada pelo grande baixo americano Paul Robinson. Era uma vez as gravuras de Käthe Kollwitz, Mário Gruber, o clube da gravura de Porto Alegre, de Danúbio Vilamil Gonçalves, Glênio Bianchetti, Carlos Scliar, Vasco Prado, Glauco Rodrigues, as xilos de Renina Katz e Fayga Ostrower. Era uma vez Margarida lendo as poesias de Nazim Hikmet e escrevendo as suas próprias. Era uma vez a gente conversando a noite toda num banco da Praça Maciel Pinheiro, no bilhar de Seu Arnaldo, no bar de Bigodinho, ninguém bebendo nem comendo, todo mundo liso, o único que comia sanduíche e tomava guaraná e comia macarronada na leiteria Vestal da Rua do Hospício era Wellington que trabalhava na Mala Real e de noite pintava enquanto um barbante pendurado num prego se mantinha aceso a noite toda para acender o cigarro, economizando fósforo, noutro prego o quadro, que ninguém tinha cavalete. Era uma vez eu, Abelardo, Ionaldo na Rua do Hospício andando atrás de uns soldados americanos, que no Recife inda tinha muito, eu testando meu inglês: “Go home salambambite”, eles se viraram, a gente disfarçou. Era uma vez eu na cozinha discutindo com Margarida a melhor maneira de dissolver o leite em pó das crianças, dizendo que era melhor botar a princípio somente um pouquinho d’água até ficar uma pasta e então acrescentar o resto da água, ela achando que era melhor botar a água toda logo, acrescentar o pó e ir mexendo, Margarida que nunca reclamava nem dizia palavrão, no máximo, no auge de uma briga com Abelardo, dizendo: “Você quer me transformar numa Ana Bolena”. Era uma vez Ionaldo propondo para hino do Atelier Coletivo o frevo cantado do bloco Bebé Chorão: “Porque sem Bebé [apelido de Abelardo]/ninguém pode brincar/vamos cair na folia/ divertir no carnavá”. Ai, Margarida, era uma vez todos nós, até quando não exista mais ninguém que nos tenha visto, não possa dizer, se lembrando de nós, “era uma vez”. Era uma vez e sempre Margarida Lucena da Hora no coração da gente.
co n t i n e n t e ja n e i R O 2 0 1 1 | 7 3
Mat_Corrida.indd 73
29/12/2010 16:30:09
reprodução
divulgação/editora 34
mauricio planel
crônicas Futuro: sempre presente
Na primeira década do século 20, o carioca João do Rio escreveu uma crônica em que supunha como a sociedade estaria vivendo dali a 10 anos, num texto centrado na pressa e impessoalidade das relações, mediadas pelos novos “brinquedos” tecnológicos. A partir do texto desse grande escritor, pedimos ao paulista Antonio Prata que imaginasse como seria o dia de um homem em 2020 e nos enviasse a sua crônica. O resultado desse “duelo” está nas páginas a seguir.
1910
JOÃO DO RIO O DIA DE UM HOMEM EM 1920 Dentro de três meses as grandes capitais terão um serviço regular de bondes aéreos denominado aerobus. O último invento de Mamoni é a máquina de estenografar. As ocupações são cada vez maiores, as distâncias menores e o tempo cada vez chega menos. Diante desses sucessivos inventos e da neurose de pressa hodierna, é fácil imaginar o que será um dia de um homem superior dentro de dez anos, com este vertiginoso progresso que tudo arrasta... O Homem Superior deitou-se às três da manhã. Absolutamente enervado por ter de aturar uma ceia
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 74
Crônicas 2.indd 74
29/12/2010 16:36:27
com champanhe e algumas cocotes milionárias, falsas da cabeça aos pés porque é falsa a sua cor, são falsas as olheiras e sobrancelhas, são falsas as pérolas e falsa a tinta do cabelo nessa ocasião, por causa da moda, em todas as belezas profissionais beige foncé. Acorda às seis, ainda meio escuro por um movimento convulsivo dos colchões e um jato de luz sobre os olhos produzido pelo despertador elétrico do último modelo de um truste pavoroso. – Caramba! Já seis! Aperta um botão e o criadomudo abre-se em forma de mesa apresentando uma taça de café minúscula e um cálice também minúsculo do elixir neurostênico. Dois goles; ingere tudo. Salta da cama, toca noutro botão, e vai para diante do espelho aplicar à face a navalha maravilhosa que em trinta segundos lhe raspa a cara.
Caminha para o quarto de banho, todo branco, com uma porção de aparelhos de metal. Aí o espera um homem que parece ser o criado. – Ginástica sueca, ducha escocesa, jornais. Entrega-se à ginástica olhando o relógio. De um canto, ouve-se uma voz fonográfica de leilão. – Últimas notícias: hoje, à 1 da manhã incêndio quarteirão leste, 40 prédios, 700 feridos, virtude mau funcionamento Corpo de Bombeiros. Seguro prédios 10 mil contos. Ações Corpo baixaram. Hoje 20.12 um aerobus rebentou no ar perto do Leme. Às 12 e 45 presidente recebeu telegrama encomenda pronta Alemanha, 500 aeronaves de guerra. O cinematógrafo Pão de Açúcar em sessão contínua estabeleceu em suportes de ferro mais cinco salas. Anuncia-se o crack da Companhia da Exploração Geral das Zonas Aéreas do
Estreito de Magalhães. Em escavações para o palácio da Companhia do Moto-Contínuo foi encontrado o esqueleto de um animal doméstico nas civilizações primitivas: o burro. Instalou-se neste momento, por quinhões, a Sociedade Anônima das Cozinhas Aéreas no Turquestão. O movimento ontem nos trens subterrâneos foi de três milhões de passageiros. As ações baixam. O movimento de aerobus de oito milhões havendo apenas vinte desastres. O recorde da velocidade: chega-nos da República do Congo com três dias de viagem apenas no seu aeroplano de course o notável embaixador Zambeze. Foi lançada na Cafraria a moda das toilettes pyrilampe feitas de tussor luminoso. Fundaramse ontem trezentas companhias, quebraram quinhentas, morreram cinco mil pessoas. Com a avançada idade de 38 anos, o marechal
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 7 5
Crônicas 2.indd 75
29/12/2010 16:36:28
Ferrabrás deu ontem o seu primeiro tiro, acertando por engano na cara do seu maior amigo, o venerando coronel Saavedra. Impossível a cura, aplicou-se a eletrocução... Dez minutos. O Homem Superior está vestido. O jornal para de falar. O Homem bate o pé e desce por um ascensor ao 17º andar onde estão a trabalhar quarenta secretários. Há em cada estante uma máquina de cortar, e uma máquina de escrever o que se fala. O Homem Superior é presidente de cinquenta companhias, diretor de três estabelecimentos de negociações lícitas, intendente geral da Companhia de Propinas, chefe do célebre jornal Eletro Rápido, com uma edição diária de seis milhões de telefonógrafos a domicílio, fora os quarenta mil fotógrafos informadores das praças, e a rede gigantesca que liga às principais capitais do mundo em agências colossais. Não se conversa. O sistema de palavras é por abreviatura. – Desminta S.C. Aéreas. Ataque governo senil vinte nove anos. Some. Escreva. Os empregados que não sabem escrever entregam à máquina de cortar a operação, enquanto falam para a máquina de escrever. Depois o Homem Superior almoça algumas pílulas concentradas de poderosos alimentos, sobe ao 30º andar num ascensor e lá toma o seu coupé aéreo, que tem, no vidro da frente em reprodução cinematográfica, os últimos acontecimentos. São visões instantâneas. Ele tem que fazer passeios de inspeção às suas múltiplas empresas com receio de que o roubem, receio que aliás todos têm uns dos outros. O secretário ficou
Crônicas 2.indd 76
encarregado de fazer oitenta visitas telefônicas e de sensibilizar em placas fonográficas as respostas importantes. Antes de chegar ao bureau da sua Companhia do Chá Paulista, com sede em Guaratinguetá, o aparelho Marconi instalado no forro do coupé comunica: “Mandei fazer quinze vestidos tussor luminoso. Tua Berta.” “Ordem Paquin dez vestidos pirilampos. Condessa Antônia.” – “Asilo dos velhos de trinta anos fundado embaixatriz da Argélia dia completou 12 aniversário, pede proteção.” – “Governo espera ordem negócio aeroplanos.” – “Casa 29 das Crianças Ricas informa falecimento sua filha Ema.”
“Qual a sua opinião? É preciso pensar! Sempre a questão social! Se houvesse uma máquina de pensar? Mas ainda não há! ” – “Guerra cavalaria aérea riograndense cessada fantasma Pinheiro miragem.” O Homem Superior aproveita um minuto de interrupção do trânsito aéreo pelo silvo do velocipaéreo do civil de guarda da Inspetoria de Veículos no Ar, e responde sucessivamente: – Sim, sim, sim. Perfeito. Enterro primeira classe comunique Mulher Superior, Cortejo Carpideiras Elétricas. Oculte notícia cavalaria entrevista fantasma.
E continua a receber telegramas e a responder quer ao ir quer ao voltar da companhia onde se produz um quilo de chá por minuto para abafar a produção da república chinesa, porque todas as senhoras, sem ter nada que fazer (nem mesmo com os maridos), levam a vida a tomar chá – o que segundo o Conselho Médico embeleza a cútis e adoça os nervos. Esse Conselho, decerto, o Homem comprou por muitos milhões e foi até aquela data o único conselho de que precisou. A ciência super omnia... Ao chegar de novo ao escritório central das suas empresas, tem mais a notícia da greve dos homens do mar contra os homens do ar. Os empregados das docas revoltam-se contra a insuficiência dos salários: 58$500 por dia de cinco horas, desde que os motoristas aéreos estão ganhando talvez o dobro. O Centro Geral Socialista de que o Homem Superior é superiormente sócio benemérito, concorda que os vencimentos devem ser igualados numa cifra maior que a dos homens do ar. Qual a sua opinião? É preciso pensar! Sempre a questão social! Se houvesse uma máquina de pensar? Mas ainda não há! Ele tem que resolver, tem que dar a sua opinião, opinião de que dependem exércitos humanos. Ao lado da sua ambição, do seu motor interno deve haver uma bússola, e ele se sente, olhando o ar, donde fugiram os pássaros, igual a um desses animais de aço e carne que se debatem no espaço. Não é gente, é aparelho. Então, esquecido das coisas frívolas, inclusive do enterro da filha, telefona para o atelier do grande químico a
29/12/2010 16:36:34
quem sustenta vai para cinco anos na esperança de realizar o sonho de Lavoisier: o homem surgindo da retorta; e volta a trabalhar, parado, mandando os outros, até a tarde. Depois, sobe a relógio, duchase, veste uma casaca. Deve ter um banquete solene, um banquete de alimentos breves, inventado pela sociedade dos Vegetaristas, cuja descoberta principal é a cenoura em confeitos. O Homem Superior aparece, é amável. A sua casa de jantar é uma das maravilhas da cidade, toda de cristal transparente para que poderosos refletores elétricos possam dar aos convidados, por meios de combinações hábeis, impressões imprevistas; reproduções de quadros célebres, colorações cambiantes, fulgurações de incêndio e prateados sons de luar. No coup du milieu, um sorvete amargo que ninguém prova, a casa é um iceberg tão exato, que as damas tremem de frio; no conhaque final, que ninguém toma por causa do artritismo, o salão inteiro flamba num incêndio de cratera. Para cada prato vegetal há uma certa música ao longe, que ninguém ouve por ser muito enervante. As mulheres tratam negócios de modas desde que não têm mais a preocupação dos filhos. Algumas, as mais velhas, dedicam-se a um gênero muito usado outrora pelos desocupados: a composição de versos. Os homens digladiam-se polidamente, a ver quem embrulha o outro. O Homem Superior, de alguns, nem sabe o nome. Indica-os desde o colégio. Insensivelmente, acabado o jantar, aquelas figuras,
sem a menor cerimônia, partem em vários aeroplanos. – Já sabes da morte Ema? – Comunicaram-me – diz a Mulher Superior. Tenho de descer à terra? – Acho prudente. Os convites são feitos, hoje, pelo jornal. – Pobre criança! E o governo? – Submete-se. – Ah! Mandei fazer... – Uns vestidos pirilampos? – Já sabes? – É a moda. – Sabes sempre tudo... O Homem Superior sobe no ascensor para tomar o seu coupé aéreo. Mas sente uma tremenda pontada nas costas. Encosta-se ao muro branco e olha-se num espelho. Está calvo, com
“O homem rebenta de querer tudo de uma vez, querer apenas, sem outro fito senão o de querer para aproveitar o tempo” uma dentadura postiça, e corcova. Os olhos sem brilho, os beiços moles, as sobrancelhas grisalhas. É o fim da vida. Tem 30 anos. Mais alguns meses e estalará. É certo. É fatal. A sua fortuna avalia-se numa porção de milhões. Sob seus pés fracos um Himalaia de carne e sangue arqueja. Se descansasse?... Mas não pode. É da engrenagem. Dentro do seu peito se estrangularam todos os seus sentimentos. A falta de tempo, numa ambição desvairada que o faz
querer tudo, a terra, o mar, o ar, o céu, os outros astros para explorar, para apanhá-los, para condensálos na sua algibeira, impele-o violentamente. O homem rebenta de querer tudo de uma vez, querer apenas, sem outro fito senão o de querer, para aproveitar o tempo reduzindo o próximo. Faz-se necessário ir à via terrestre que o seu rival milionário arranjou em pontes pênseis, com jacarandás em jarras de cristal e caneleiras artificiais. Nem mesmo vai ver as amantes. Também para quê?... De novo toma o coupé aéreo e parte, para voltar tarde, decerto, enquanto a Mulher Superior, embaixo, na terra, procura materialmente conservar a espécie com um jovem condutor de máquinas de 12 anos, que ainda tem cabelos. Vai, de repente com um medo convulsivo de que o coupé abalroe um dos formidáveis aerobus, atulhados de gente, em disparada pelo azul sem fim, aos roncos. – Para? – indaga o motorista com a vertigem das alturas. – Para frente! Para frente! Tenho pressa, mais pressa. Caramba! Não se inventará um meio mais rápido de locomoção? E cai, arfando, na almofada, os nervos a latejar, as têmporas a bater, na ânsia inconsciente de acabar, de acabar, de acabar, enquanto por todos os lados, em disparada convulsiva, de baixo para cima, de cima para baixo, na terra, por baixo da terra, por cima da terra, furiosamente, milhões de homens disparam na mesma ânsia de fechar o mundo, de não perder o tempo, de ganhar, lucrar, acabar...
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 7 7
Crônicas 2.indd 77
29/12/2010 16:36:34
2010
antônio prata O DIA DE UM HOMEM EM 2020 Em 5 de dezembro de 2020, data em que escrevo esta crônica, o título acima não fará muito sentido. Se o mantenho é porque esta foi a encomenda da revista Continente, em dezembro de 2010: queriam que o texto assim se chamasse para publicá-lo ao lado de um outro, do magnífico cronista carioca João do Rio, O dia de um homem em 1920. O problema é que, após todas as rápidas mudanças do último decênio, nem “dia” nem “homem” são mais conceitos estanques, como eram em 2010 – aqueles anos tão próximos e distantes, de tal maneira distintos
dos atuais, que são tidos por nossos historiadores mais como um rabicho do caquético século 20 do que como o início do 21. Sobre o fim do binômio dia/ noite, Eric Hobsbawn – que, graças à dieta de suco de alfafa com células-tronco, completa 103 anos no mês que vem – escreveu em seu A era das ambivalências: “As exigências de um mercado global, a hiper-sociabilidade on-line e a flexibilização do trabalho acabaram com a dicotomia dia/ noite, que acompanhava os homens desde seus primeiros passos sobre a Terra. O tempo segue seu fluxo, sem interrupções, como as informações que cruzam o globo por ondas e impulsos elétricos. (...) A hora do sono, como a hora das refeições, torna-se assim decisão de foro íntimo: aurora e crepúsculo não são mais início e
fim de coisa alguma, a não ser para agricultores orgânicos e engenheiros dedicados à energia solar”. Os calendários continuam em uso, claro, afinal ainda é necessário marcar conference calls ou sair de casa para ir ao dentista e jantar fora, vez ou outra, mas tornaram-se obsoletas as palavras “ontem”, “hoje” e “amanhã”. Uma vez que cada pessoa está vivendo em seu próprio fuso horário, é considerado deselegante usar tais termos, pois entende-se que, assim, impõe-se ao outro a sua própria divisão temporal. Dia e noite se misturaram, os gêneros também. Diz Hobsbawn, no já citado A era das ambivalências: “A ultra-sociabilidade advinda da penetração do Twitter, do Facebook e demais redes de relacionamento na intimidade dos indivíduos criou o que tenho chamado de maisvalia social. Permanecer no mesmo sexo é visto como um limitador de
co co nn t itni n en en te t eja an br eir l o2 021001 1| 7| 9 87 8
Crônicas 2.indd 78
29/12/2010 16:36:44
Tive a sorte de voltar ao gênero masculino justamente quando o churrasco foi liberado, em novembro de 2017, após dois anos e quatro meses banido, devido ao aquecimento global. Em 2014, quando as calotas polares derretiam em velocidade recorde e parecia que estávamos todos condenados a ser cozidos em banho-maria, aconteceu um milagre. A Johnsons & Johnsons, na tentativa de aperfeiçoar a tecnologia do floc-gel das fraldas geriátricas, acabou criando o Ice-floc™, cristais capazes de congelar qualquer líquido, ao simples contato, na proporção de 1g/10l. Em novembro de 2017, aviões da força aérea americana, sob o comando da presidente Sarah Palin, bombardearam com Ice-flocs™ os Pólos Norte e Sul. Os ecologistas fizeram um escarcéu, pois todos os ursos polares, focas, leões-marinhos, pinguins e demais espécies da fauna e
“Eu mesmo fui mulher entre 2014 e 2017. Encorajado por Laerte, aderi às Piranhas do Tietê, movimento crossdresser” oportunidades. Ser apenas homem ou somente mulher restringe as vivências, os contatos, causando prejuízo para a empresa social em que se transformou cada cidadão”. Os movimentos GLS de 2010 ficarão felizes em saber que, desde 2018, todos os formulários brasileiros trazem as questões “Sexo (nascença)” e “Sexo (atual)”. Eu mesmo fui mulher entre 2014 e 2017. Encorajado pelo cartunista Laerte, aderi às Piranhas do Tietê, movimento crossdresser boêmio libertário que, no momento de inserção econômica e cultural do Brasil no cenário mundial, ajudou a quebrar a caretice global da primeira década do século 21, ainda dominada pelo puritanismo norte-americano. Depois de três anos, contudo, desisti: depilar as pernas dói muito (eis aí um problema que a ciência ainda não resolveu) e, além do mais, estava com saudades de fazer churrasco.
flora daquelas regiões viraram picolé, no mesmo instante em que as ondas se transformaram em icebergs, mas assim que os novos SUVs a diesel puderam voltar ao mercado, as usinas a carvão derrubaram drasticamente o preço das contas de luz e o churrasco foi liberado, a opinião pública resolveu tratar de outros assuntos. Uma vez por mês, chove Ice-flocs™ no cocuruto e no calcanhar do planeta, diminuindo a temperatura, compensando a emissão de gases e garantindo, provavelmente, um terceiro mandato do Tea Party americano. O fato de a extrema direita estar no poder nos EUA não teve grandes implicações mundiais, porque em 2020 eles já não são mais um país tão importante quanto eram na virada do século. Brasil, China, Índia e Qatar foram, aos poucos, dominando o mercado global. (A Rússia, cotada para ser uma das grandes potências,
foi pelos ares quando três ogivas nucleares, perdidas desde a Guerra Fria, explodiram no subsolo de um Burger King, em São Petesburgo). Se os EUA já estavam abalados pela chegada dos emergentes, foi depois do Big One, terremoto que arrasou toda a costa oeste do país, que eles de fato se estatelaram. A China exigiu, em troca de ajuda financeira, que os EUA lhe vendessem Los Angeles e as cidades do Vale do Silício. Todas as construções foram desmontadas, tijolo por tijolo – ou, bem, o que ainda estava de pé, depois do abalo sísmico –, levadas em containers, de navio, e reconstruídas, exatamente como eram antes, no deserto de Gobi, entre a China e a Mongólia. Hoje, toda a produção audiovisual – LA – e tecnológica – Silício – é made in China. E foi num desses laboratórios sinoamericanos que um físico indiano e um hacker paraense chegaram àquela que foi aclamada como a maior descoberta científica da humanidade, ainda mais importante do que o Ice-flocs™: o Past-post™, máquina capaz de enviar e-mails para o passado. A descoberta ainda não é consenso entre os estudiosos, uma vez que o dispositivo só envia, não recebe, não há como saber se os e-mails estão de fato chegando em algum lugar ou apenas sumindo da caixa de saída, e toda a comprovação da teoria é puramente matemática. Mas, na dúvida, resolvi arriscar. Como encontrei, entre minhas coisas, uma revista Continente de 2011, cheia de besteiras escritas por mim, sobre como seria a vida de um homem em 2020, pedi para o Azambuja (o hacker paraense, amigo meu) enviar uma nova versão, corrigida e ampliada, para o final de 2010. Caros editores: por favor, se ainda houver tempo, publiquem este texto aqui, não aquele que escrevi lá atrás, dizendo que carros voariam, o apocalipse térmico nos mataria e teríamos escravas sexuais mecanizadas. Muito obrigado. E, agora, licença, são duas da manhã e prometi que às três e meia iria ensinar minha mãe a fazer a barba. Será sua primeira vez e, com essas novas Gilettes Mach XII, a laser, todo cuidado é pouco.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 7 9
Crônicas 2.indd 79
29/12/2010 16:36:44
KARLA VIDAL/DIVULGAÇÃO
con ti nen te
cibercultura
co con nt tiin neen nt tee ja jan neeiir ro o 220 01111 || 880 1
cibercultura_LEVY.indd 80
29/12/2010 16:39:21
FILOSOFIA Primeiro, entender. Depois, criticar Pierre Lévy, um dos principais pensadores da cibercultura nos anos 1990, observa criticamente a pesquisa cultural dos franceses e discorda das ideias conservadoras sobre a internet difundidas entre os norte-americanos texto Marcelo Abreu
Mãos nos bolsos da calça,
elegante no seu mais de um metro e oitenta de altura, cabeça erguida, jeitão tranquilo de quem está de bem com a vida, Pierre Lévy caminha impávido dentro de uma sala de aula do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, em frente a um pequeno grupo de jornalistas e curiosos. Falando um inglês propositalmente pausado, explica aos ouvintes como usa a internet em suas aulas na Universidade de Ottawa, no Canadá, onde ensina. “Enquanto dou aula, os alunos estão todos com laptops com conexão sem fio, e ando assim pela sala, observando se eles estão no e-mail ou no Facebook, em vez de estarem, como deveriam, checando o que eu digo no Wikipedia ou em sites relacionados ao assunto. Tenho de acompanhá-los pela frente, mas também por trás, para ver os computadores. Mas é como as coisas são agora. Estamos todos completamente interconectados.” No meio do passeio, porém, uma surpresa: Lévy tropeça no fio de um microfone de uma câmera de vídeo. Por pouco, não se esparrama no chão. A pequena plateia dá um gritinho de susto. Recuperado, ele solta uma risadinha marota característica,
“Filósofos como Virilio e Baudrillard, que estavam falando sobre ‘o fim de tudo’, não tinham nem um e-mail” Pierre Lévy em tom agudo, e não perde a pose. Continua a falar sobre inteligência coletiva, esfera semântica, hipercortex, metadados e temas correlatos, que são assuntos de seus 10 livros já publicados no Brasil e que fizeram sua fama internacional. Aos 54 anos, o pensador francês nascido na Tunísia, considerado um dos principais gurus da cibercultura, esteve pela primeira vez no Recife, no mês de dezembro, convidado para falar no 3º Simpósio de Hipertexto e Tecnologia da Educação. Fez palestra sobre o tema de seu próximo livro, que será publicado em fevereiro na América do Norte, chamado A esfera semântica – Computação, cognição, economia da informação. Sua postura é geralmente fria, sóbria, mas com uma pitada de bom humor que se expressa na risada fácil. Seu discurso não demonstra a euforia de pesquisadores e profetas digitais ligados ao mercado.
O pensador, que teorizou sobre o mundo digital a partir dos anos 1990, em livros como As tecnologias da inteligência (1995), A inteligência coletiva (1998) e Cibercultura (1999), foi recebido no Recife como o “filósofo do futuro”. Mas, afinal, o que pensa Pierre Lévy sobre os problemas atuais relacionados à cultura digital? Para ouvir algumas respostas, a reportagem da Continente conversou com ele, reservadamente, após sua participação no simpósio.
CRÍTICAS À FRANÇA
Doze anos após ter se mudado para o Canadá, Pierre Lévy não se nega a comparar o ambiente intelectual da América do Norte com o da França. “A Europa em geral, e a França em particular, são mais orientadas para o passado do que para o futuro.” Segundo ele, nos anos 1990, “todos os pensadores e pesquisadores de ciências sociais interessados em novos meios de comunicação na França estavam criticando seus objetos de estudo, o que em si não é errado”. Mas Lévy acha que, quando o primeiro movimento é a crítica, as pessoas se esquecem de entender os fenômenos. “Primeiro é preciso entender – e digo ainda mais –, entender com a prática. Depois, se quiser, pode
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 1
cibercultura_LEVY.indd 81
28/12/2010 14:01:28
con CIBERCULTURA ti nen te criticar. Mas filósofos como Virilio e Baudrillard, que estavam falando sobre ‘oh, o fim do mundo’, ‘o fim da cultura’, ‘o fim da mente’, ‘o fim da linguagem’, ‘o fim de tudo’, não tinham nem um endereço de e-mail. Falavam de coisas sobre as quais não conheciam nada. E na esfera pública da França é perfeitamente normal falar sobre um tema que não se conhece (risos). No Canadá, espera-se que a pessoa estude o tema antes. Na França, eu havia publicado muitos livros, era bem conhecido, mas não estava satisfeito, porque a cultura em torno não era realmente receptiva às minhas ideias nem às mudanças globais.”
NOVA IDEOLOGIA?
Considerando toda a onda mundial em torno da internet, na mídia e na academia, pergunto a Pierre Lévy se ele acha que a cultura digital tornouse uma nova ideologia, no sentido marxista, isto é, um mecanismo da classe dominante que impede as pessoas de ver a realidade. Ele diz ter “grandes reservas” sobre a visão marxista. “Primeiro, não acredito que a base é material e que a ideologia é uma coisa superficial que coloca um véu na realidade material. Ao contrário, acho que o motor real da sociedade humana é a forma de pensar, a cultura. Em segundo lugar, na internet, estão os republicanos e os democratas, capitalistas e socialistas, cientistas e criacionistas, e assim por diante. Não é o vetor de uma ideologia e, sim, de todas”. E prossegue: “Agora, se você pergunta sobre o discurso do marketing, este não é uma ideologia, é apenas as pessoas gritando no mercado, dizendo: ‘venham ver minhas coisas, venham comprar’. A ideologia é o barulho. O problema é que muitos jornalistas ouvem o barulho e acham que isso é a coisa mais importante, mas não é verdade. É preciso ir além da superfície.” Pergunto o que ele achou do artigo que a revista Wired publicou recentemente, intitulado A web acabou, no qual Chris Anderson defende que o futuro serão os tablets e as redes sociais fechadas. Será que um texto como esse não evidencia que estamos, afinal, no meio de uma guerra entre
setores industriais pelo controle do mercado, já que nada parece estar seguro, nem mesmo a web? “Chris Anderson? A propósito, quem é Chris Anderson? O que ele fez?”, pergunta o filósofo. Anderson é editor-chefe da Wired, a mais importante publicação sobre cultura digital do mundo, o cara que inventou o conceito da “cauda longa”. “Ah, sim. Ok”, diz Lévy. “Acho que ele está errado. A web, que é o sistema abstrato que conecta os dados e permite os hiperlinks, nunca vai desaparecer. O artigo é absurdo, se pensarmos em termos técnicos. Tem algum significado em termos de tendência de marketing, se formos vender aplicativos (para tablets) em vez de vender endereços na web.” O assunto passa a ser a crescente crítica à internet feita por intelectuais norte-americanos, expressa recentemente em livros. Citamos, por exemplo, Lee Siegel, que escreveu
“O texto já é uma fortificação da linguagem. A linguagem pode dizer a verdade ou mentir” Pierre Lévy Against the machine, livro badalado nos Estados Unidos (Lévy balança a cabeça indicando que não conhece) e mencionamos Andrew Keen, autor de O culto do amador (agora ele faz um sinal afirmativo). E ainda outros como David Shenk, que escreveu The end of patience, e Mark Bauerlein, que fez The dumbest generation (A geração mais burra). Lévy dá uma gargalhada e parece se divertir muito com os títulos. E o que ele acha desses livros e ideias? “Todos têm sua parte de verdade”, diz o filósofo. “O culto do amador, por exemplo: é óbvio que os blogs não são do mais alto padrão, vamos colocar assim (risos). E sobre o fim da paciência, tem gente que não deseja estudar profundamente nada. Sim, esse é um aspecto das coisas. Mas, fundamentalmente, eu discordo. Completamente (risos). Acho que, no nosso caso, temos um problema de poder. As pessoas
que eram os mediadores, como intelectuais, críticos, jornalistas, professores, publishers, não gostam da internet porque é uma ameaça, um meio de comunicação que permite comunicação direta. O trabalho deles era a mediação. Para eles é um grande problema, eu posso entender isso. Mas dizer que um blog não é interessante...”. Lévy se exalta: “E o que as pessoas estão falando é interessante? E nós vamos dizer a elas para calarem a boca? Elas dizem idiotices porque são seres humanos. Eles escrevem idiotices nos blogs porque são seres humanos. Qual é o problema? Você não é obrigado a ler isso. Você pode escolher. Você escolhe, não o mediador tradicional. Esse é o verdadeiro problema de poder”.
COMO DEUS
Insisto no tema perguntando se, 15 anos depois da popularização da internet, ele ainda está otimista, apesar do acirramento de problemas pela rede como fraudes, terrorismo, pedofilia, plágio, dispersão, pirataria, entre muitos outros. “Pense nessas palavras. Havia terrorismo antes da internet? Fraude? Plágio? O plágio ficou mais fácil com a internet, mas detectá-lo ficou também muito mais fácil. Então, é ao mesmo tempo o veneno e o remédio, como o pharmakon dos gregos. O melhor e o pior.” E passa à sua reflexão preferida: o aumento do poder cognitivo. “O texto já é uma fortificação da linguagem. A linguagem pode dizer a verdade ou mentir, podemos ganhar conhecimento ou podemos aumentar a ilusão, nós aumentamos a linguagem com o texto, com a imprensa, com a mídia e com a internet. Mas é só um aumento da razão humana básica, do poder humano básico que é a linguagem. Para mim, todo aumento do poder humano é bom. Aí você diz: mas os seres humanos podem usar isso para o bem ou para o mal. Claro, essa é a definição de poder. Sou como Deus. Eu crio o homem com a habilidade de fazer o bem ou o mal. Dou a ele a liberdade. Agora, com a liberdade você tem a responsabilidade.”
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 2 3
cibercultura_LEVY.indd 82
28/12/2010 14:01:29
con ti nen te
RELACIONAMENTOS
SUJEITOS Tão sós, mas sempre acompanhados A ausência do outro e o excesso de si mesmo são dois dos principais temas de reflexões sobre os relacionamentos no século 21, marcado pela emergência de novas formas familiares e pela desafetação texto Maria Consuêlo Passos ILUSTRAÇões Hallina Beltrão, Karina Freitas e Mariana Chiappetta
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 4 5
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 84
28/12/2010 14:04:16
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 5
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 85
28/12/2010 14:04:17
con reLacionaMentoS ti nen te
Um grupo de porcos-espinhos ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavamse, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhado e o enregelamento.
Shopenhauer
A afi rmação do título desta matéria, contida no silêncio dos adoecimentos da alma, nos gritos daqueles que denunciam a banalização do humano ou mesmo nos sussurros dos que procuram reinventar seus
relacionamentos, traz sempre o mesmo princípio: vivemos cada vez mais sozinhos. Tal constatação encerra, no entanto, alguns paradoxos: vemos surgir cada vez mais espaços públicos, como associações, centros de convivência, clubes desportivos; a criação de grandes corporações ao redor do mundo, a proliferação de coletivos que lutam pelos mais diversos interesses da cidadania, as redes sociais tornam-se cada vez mais um imperativo do “bem viver” etc. Não obstante tantas iniciativas, continuamos insatisfeitos, carentes, a solicitar a presença de um outro “inexistente” nos dias atuais. Talvez seja o caso de buscarmos uma razão para esse vazio em
nós mesmos, é o que nos ensina a Psicanálise. Mas ela própria nos diz que sem o outro não é possível existir sujeito, que nossa existência retira seus sentidos da presença de um outro, sem o qual não nos humanizamos. A saída, então, parece ser enfrentarmos o paradoxo implícito à toda relação humana, assumirmos os impasses que se revelam no intermédio entre dois sujeitos, concebendo a dependência entre eles e, ao mesmo tempo, a autonomia que deve ser buscada, permanentemente. É possível que encontremos aí as razões para as expressões relacionais contemporâneas, e também para as recriações que têm sido feitas a partir delas. Evidentemente,
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 6 7
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 86
28/12/2010 14:04:25
essas expressões trazem consigo as imposições das contingências sociais, marcadas por relações efêmeras e virtuais, pela velocidade e fragmentação das experiências, pelo prazer instantâneo e consumo desmedido, tanto de bens materiais quanto de aditivos que aceleram o gozo, reduzem o desejo e mergulham o sujeito no vazio de si mesmo. As diferentes formas de relacionamento hoje são marcadas pelas mudanças que ocorrem no Ocidente, nas últimas décadas, sobretudo no que se refere à democratização de algumas sociedades que favoreceram a emergência de um cotidiano mais libertário.
Entre as mudanças mais importantes é possível assinalar a expansão do universo feminino, que levou a mulher a se inserir cada vez mais na vida pública e a obter uma autonomia profissional e econômica nunca vista. Isso teve grandes repercussões no campo dos afetos e principalmente nos deslocamentos ocorridos no interior da família. Nesse contexto, a educação e os cuidados com os filhos deixam de ser atribuições exclusivas da mulher e passam a ser compartilhados com o pai e outros cuidadores. Além disso, a posição da mulher em relação ao casamento e à procriação muda significativamente, em direção a uma maior autonomia. Tudo isso é reforçado pelo surgimento das técnicas de controle da natalidade e dos recursos – cada vez mais sofisticados – das tecnologias médicas que possibilitam diferentes formas de reprodução. No esteio dessas mudanças, é possível assinalar também o declínio das grandes referências institucionais, como a Igreja, que durante muito tempo legitimou o poder supremo do pai e sustentou a hegemonia do sistema patriarcal. Tal enfraquecimento contribuiu para que o homem perdesse seu lugar de mantenedor e autoridade máxima da casa e do grupo familiar. Esses e outros aspectos geraram uma verdadeira inflexão nos valores e padrões de funcionamento da família, levando-a a se diversificar. Esse grupo passa então a operar uma verdadeira metamorfose nas suas relações internas, nos lugares que cada membro ocupa diante do outro, e, sobretudo, na criação de um estatuto, com o qual irá assumir um lugar na rede social mais ampla.
A FALtA Do oUtRo
Essas mudanças apresentam diferentes facetas. Em uma delas, prevalece a presença fria do outro, de face opaca e virtual, com quem mantemos uma relação instrumental e precária. Tal relação se caracteriza pela fragilidade do “encontro” e pela inexistência das tensões próprias a um laço de afeto. Nela, podemos travestir o outro, e, como num passe de mágica, deletá-lo.
Mas podemos falar também da ausência do outro, daquele cuja presença firme e integral nos humaniza, delimita nossos espaços e aponta para as fronteiras de cada um. Esse outro, com quem aprendemos a ser diferentes, que nos contém e nos apresenta a lei, é aquele que nos introduz no mundo dos símbolos, na cultura, nas trocas de afeto. Ele desapareceu, deixando-nos órfãos de referências. Para Dufour (A arte de reduzir as cabeças), a ausência desse outro e
Relações efêmeras, fragmentação das experiências, prazer instantâneo e consumo desmedido marcam a contemporaneidade a falência das trocas simbólicas deram lugar às trocas de mercadoria, o que levou à preponderância do pragmático, do concreto, do imediatismo, enfim, a uma busca incessante pelo gozo fácil e efêmero. Nessa trilha, apegamo-nos ao que é possível, como uma espécie de compensação para tão dolorosa ausência: os consumos que vão dos shopping centers, aos diferentes tipos de “encontros” virtuais, passando das devoções mais desmedidas às academias de ginástica ou mesmo aos templos religiosos e políticos. Enfim, quanta droga temos fabricado em nome desse vazio do outro! Esse mesmo autor nos mostra, ainda, alguns esforços empreendidos hoje como forma de remediar essa solidão. Para ele, os bandos e sua versão mais negativa, as gangues, funcionam como espaço ilusório no qual não há encontro, mas apenas aglomerado de pessoas. As seitas seriam outra forma de manter a ilusão de um ser superior que nos protege e nos referencia. A adicção às drogas químicas, por sua vez, teria também um papel fundamental nessa busca por um outro, por um continente. Nesse caso, ela representaria a procura de uma satisfação imediata capaz
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 7
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 87
28/12/2010 14:04:25
con RELACIONAMENTOS ti nen te de eliminar a falta irremediável e, portanto, impossível de ser estancada por qualquer tipo de efeito químico. Por fim, é possível apontar a tentativa que faz o sujeito ocupar o lugar do outro como mais uma forma de remediar sua falta. Isso significa que, tomando para si essa supermissão, o sujeito nega a falta, procurando criar uma espécie de sobreposição de lugares, tentando ele próprio ocupar o espaço deixado pelo outro. Evidentemente, trata-se de uma solução destinada ao fracasso, posto que fundada numa onipotência sem limites. Segundo o mesmo autor, isso se revela quando “assumimos o direito de vida e de morte sobre nossos semelhantes, dotando-nos de poderes supostamente mágicos”. Seria essa uma maneira de sublinhar o narcisismo nos dias atuais? Parece que sim, já que revela uma tentativa de superdimensionar o eu. Não esqueçamos, entretanto, que quanto mais o eu é “insuflado”, mais chance ele tem de implodir. Vê-se, portanto, que a falta do outro se inscreve num registro diferente, no qual o vazio de sua ausência precisa ser tolerado, sustentado subjetivamente, e não escamoteado. Afinal, teremos sempre que conviver com ele, pois o que nos move é essa busca incessante por uma completude, por uma presença que nunca será integral. É essa busca que nos torna autônomos, já que podemos viver sozinhos – ao mesmo tempo em que nos faz dependentes, porque sem o outro não existimos psiquicamente. Eis o paradoxo que funda nossa existência!
FILHOS E LEI
Todas as saídas apontadas indicam a vulnerabilidade que caracteriza as relações de afeto hoje. Seus efeitos são múltiplos e se tornam visíveis, quando observamos a desafetação com a qual as crianças são recebidas e cuidadas na família. Refiro-me aqui, mais especificamente, ao empobrecimento nos investimentos de afeto nas relações familiares. Alguém poderia contestar tal afirmação, indicando que a criança nunca foi tão bem-provida pela atenção dos pais como hoje. Que jamais foi tão requisitada, haja vista os contingentes de pessoas que querem
ter filhos a todo custo. Tudo isso é verdade, mas será que ela está de fato recebendo aquilo de que precisa para amadurecer e ser capaz de “criar” sua vida com autonomia? É aí, nesse ponto sensível, que encontramos as principais dificuldades. A desafetação, que tem tornado frágeis e efêmeras as relações humanas, começa em casa, como diria Donald Winnicott. Ou seja, as condições fundamentais para a saúde psíquica e emocional se originam nos primórdios da nossa existência e dependem da qualidade de investimentos afetivos feitos pelas figuras parentais nesse início. Ora, se a família reflete as condições ambientais nas quais ela se produz, como
É a partir de regras que a criança é introduzida na cultura, concebendo seu lugar nela e respeitando o do outro podemos pensar as repercussões, no seu interior, da velocidade, descontinuidade e fragmentação que impregnam as relações vividas pelos pais nas diferentes esferas de suas vidas sociais? A transposição das condições sociais para o contexto da família não é nada simples e deve ser feita
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 8
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 88
28/12/2010 14:04:34
criteriosamente. Mas é impossível não constatar as transformações que vêm se dando nas suas funções. Entre elas, a que mais preocupa os estudiosos é o enfraquecimento da autoridade parental, dada sua importância na introdução da lei e dos limites que devem regular os lugares de cada membro da família. Essa função tem repercussões fundamentais no processo de amadurecimento da criança, pois é a partir de regras que ela é introduzida na cultura, concebendo seu lugar nela e respeitando o do outro. É a partir desse lugar que o sujeito poderá transitar no mundo, observando os limites que ele impõe a cada momento.
Pois bem, a introdução da lei e da autoridade depende da qualidade dos investimentos afetivos que organizam a relação com os filhos. Quanto mais frágeis os afetos, maior será a dificuldade para que sejam construídas as referências das quais a criança precisa para encontrar seu lugar no mundo e poder constituir-se como uma referência no futuro. Dito de outro modo, para se impor aos filhos, os pais precisam captar suas demandas e oferecer aquilo que é necessário para que eles amadureçam: afeto, sustentação para suas frustrações e angústias, um nome próprio, contorno e limites para seus excessos. Também é preciso
apresentar-lhes o mundo com todos os seus interditos, oferecendose como suporte nas eventuais encruzilhadas, construindo com eles uma história na qual cada um possa encontrar suas singularidades. Atualmente, tem sido lugar comum acusar a família pela falta de legitimidade dos pais, uma vez que os princípios de concepção e manutenção da lei se tornaram obsoletos com o declínio do patriarcado. Pergunto: será que esses princípios não podem ser recriados, tendo em vista o surgimento de outros contextos relacionais que parecem exigir uma ética diferente para as distintas formas de exercício da parentalidade?
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 8 9
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 89
30/12/2010 08:50:27
con RELACIONAMENTOS ti nen te DESERTO RELACIONAL
Nem tudo no mundo se transformou de modo a acompanhar as exigências da vida relacional, com suas demandas surpreendentes. Segundo Dufour: “Ainda restam vastas zonas modernas e até zonas pré-modernas. Por outro lado, ali mesmo onde a ofensiva pós-moderna é predominante, há resistência, ao menos pelo momento: o pensamento crítico e a neurose têm ainda belos restos e belos dias diante de si”. É verdade. Diante do deserto relacional que vivemos, têm surgido várias experiências de resistência. O Movimento Devagar, por exemplo, é um apelo bastante sedutor que vem, ao redor do mundo, conquistando adeptos que se esforçam para resistir aos imperativos da velocidade e do egocentrismo que reinam no mundo contemporâneo. Em suas proposições, ele sugere uma atenção mais voltada para nossas demandas interiores, nas quais o contato com o outro é fonte primordial de humanização. Além disso, o surgimento de novas formas de família pode ser entendido também como uma forma de não submissão aos ditames vigentes. Embora o declínio do patriarcado nas sociedades ocidentais seja um fato consumado, ele não se dá linearmente, alguns padrões hierárquicos ainda sobrevivem, mas o poder não é mais suficiente para sustentar suas leis. Assim, vemos surgir novas formas relacionais que revelam, por um lado, certa resistência à tão propalada crise familiar e, por outro, uma maneira de reinventar as relações de afeto. As famílias monoparentais e homoparentais são exemplos disso, na medida em que suas composições independem das leis parentais e reprodutivas que dominavam o patriarcado. Essas modalidades de família revelam novas formas de conjugalidade, procriação e parentalidade. Isso significa que, cada vez mais, mulheres e homens desejam cuidar dos seus filhos sozinhos; casais não querem compartilhar o cotidiano da vida conjugal; homossexuais desejam ter filhos com seus companheiros ou suas companheiras e escolhem uma maneira, entre as várias existentes, para procriar. Enfim, parece que quanto menos o grupo familiar é regulado pelo
As novas famílias e a amizade apontam a necessidade de renovarmos as fórmulas da vida afetiva patriarcado, mais ele torna-se flexível e mutável. Condição que permite a reinvenção dos relacionamentos familiares, exigindo, para isso, a manutenção dos parâmetros necessários ao amadurecimento e à saúde psíquica dos seus membros. Assim, se por um lado, as mudanças processadas na família respondem às imposições de uma sociedade cada vez mais enfraquecida do ponto de vista de suas sociabilidades coletivas, por outro, as subjetividades individualizadas aí produzidas se ressentem desse isolamento e tentam se reinventar, criando modelos relacionais diferentes daqueles já saturados, mantidos por um controle social excessivo. É nesse panorama que surge um campo propício para a criação de novas modalidades de família, as quais, em muitos aspectos, se aproximam das relações de amizade. Essas relações podem ser vistas hoje como uma alternativa às imposições
sociais que colocam o cidadão cada vez mais aprisionado a si mesmo. A amizade foi um tema muito caro a Foucault, que a via como possibilidade que temos de transpor as normas institucionais que controlam as relações, dando lugar à criação de novas formas de estar com o outro. Assim, a amizade seria um modo privilegiado de encontro, uma forma de convivialidade na qual deveriam estar ausentes as amarras dos padrões sociais pré-estabelecidos. Por isso mesmo, ela potencializa maior espontaneidade e mais possibilidades de reinvenção da vida. Nesse sentido, o filósofo francês considerava necessário incentivar as transgressões que expressam resistências a tudo aquilo que negligencia o potencial humano para estar criativamente com o outro. As novas famílias e a amizade denunciam, assim, a necessidade que temos de renovar as antigas fórmulas da vida afetiva, possibilitando mais flexibilização e criatividade entre os indivíduos. Essa flexibilização, entretanto, cobrará um alto preço, caso não esteja voltada para os sentidos do convívio e da coletividade. Afinal, o sujeito contemporâneo, quanto mais busca se libertar do outro, mais se aprisiona nas armadilhas do próprio eu.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 9 0
Relacionamentos_ANUNCIO.indd 90
30/12/2010 08:50:57
karina freitas sobre foto de arquivo
Artigo
LUCIANO GATTI O TEMPO E A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN Um dos intelectuais mais
influentes do século 20, Walter Benjamin sempre procurou associar seu pensamento às questões de seu tempo. Sua trajetória intelectual pode muito bem ser lida como esforço de um autor comprometido com a reflexão crítica sobre sua época. Nascido na cidade de Berlim, em 1892, de origem judaica, Benjamin estudou filosofia e literatura nas universidades de Freiburgo, Berlim e Munique. Durante a I Guerra
Mundial, emigra para a Suíça, onde, em 1919, obtém o título de doutor na Universidade de Berna, com um trabalho sobre o conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Nos anos seguintes, período conhecido na Alemanha como República de Weimar (1919-1933), Benjamin trabalhou como crítico literário publicando em importantes jornais da época. Também foi nessa época que entrou em contato com o marxismo e com intelectuais como Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, os quais comporiam mais tarde a tradição intelectual da teoria crítica. Com a ascensão do nazismo em 1933, Benjamin abandona a Alemanha e instala-se em Paris, cidade onde viveria até o final da década de 1930. Diante do avanço das tropas nazistas sobre a França, Benjamin foge, mas é barrado na fronteira com a Espanha, onde, sob a ameaça de ser preso,
é enviado de volta à Alemanha e comete suicídio no ano de 1940. Essas circunstâncias históricas permeiam uma trajetória intelectual de amplo escopo, que vai da filosofia à crítica da cultura, passando pela teoria da história e da arte. Em textos que privilegiam a forma do ensaio, Benjamin dedicou-se tanto a grandes autores da tradição literária quanto a avaliar as mudanças na experiência estética provocadas pelo surgimento da fotografia e do cinema. Estudiosos de sua obra costumam dividir sua produção em dois períodos: um primeiro, marcado por uma perspectiva metafísica e teológica, mais próxima da tradição literária e filosófica alemã e de autores como Goethe, Hölderlin e Kant; e um segundo período, de teor materialista, durante o qual surgiram os textos que usualmente são associados ao vínculo de Benjamin com a tradição da teoria crítica.
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 9 2
Artigo_Walter Benjamim.indd 92
30/12/2010 14:33:53
A aproximação de Marx e do marxismo é um marco desse último período de sua produção, embora não seja um dado suficiente para caracterizá-lo. É necessário lembrar, também, que, nessa mesma época, Benjamin manteve um diálogo intenso com os mais diversos fenômenos artísticos de seu tempo: o movimento surrealista francês; o cinema de Sergei Eisenstein e de Charles Chaplin; o teatro de Bertolt Brecht e a prosa de escritores como Marcel Proust e Franz Kafka, sem contar as referências do século 19, necessárias à compreensão da modernidade, como o poeta francês Charles Baudelaire. Durante a última década de sua vida, uma perspectiva interdisciplinar – teoria da literatura, filosofia da história e da linguagem, crítica de arte – foi colocada a serviço do exame de uma questão central: a transformação das formas de produção e recepção das
Os 70 anos de sua morte, em 2010, marcaram a entrada de sua obra em domínio público, dando margem a novos estudos obras de arte. Não se tratava, contudo, somente de prestar atenção ao próprio tempo, mas também de entender como as formas tradicionais de produção e transmissão da cultura haviam se inviabilizado na modernidade. De modo geral, o tempo presente exige ser entendido por meio de uma relação cada vez mais problemática com a cultura e com a experiência legadas pela tradição. Nesse sentido, o trabalho de crítica de fenômenos atuais se associa a um outro trabalho, de teor historiográfico, destinado a compreender a emergência daquilo que chamamos de modernidade. Para Benjamin, a tarefa de compreender o próprio presente era indissociável da compreensão da relação do presente com o passado. É assim que ele se dedica ao longo da década de 1930, quando vive exilado na cidade de Paris, a uma ampla pesquisa historiográfica sobre o século 19 parisiense,
denominada por ele de “projeto das passagens”, a qual foi publicada há poucos anos no Brasil sob o título de Passagens (Ed. UFMG/Imprensa Oficial).
ATUALIDADE
Duas questões se destacam do conjunto de materiais reunidos e elaborados por Benjamin a partir de suas pesquisas na Biblioteca Nacional de Paris: a investigação do desenvolvimento técnico e social em torno das galerias parisienses, entendidas por ele como centros de consumo responsáveis por terem colocado, pela primeira vez, a mercadoria como objeto de destaque da paisagem urbana; e o desenvolvimento de uma historiografia de imagens, ou seja, o emprego de técnicas vanguardistas de montagem e colagem do material histórico de modo a colocá-lo numa constelação com o presente, produzindo assim uma intensa relação entre passado e presente, capaz de iluminar as duas épocas. Benjamin não pretendia apenas se reportar aos eventos do tempo decorrido, mas examiná-los do ponto de vista de sua atualidade para o momento presente. Essa forte preocupação com a atualidade do passado não se fundamenta de modo algum no mero esforço de conservá-lo, muito menos no pretenso valor da “tradição”, da “cultura” ou dos “bens culturais”, ou seja, porque o passado ou a tradição teriam um valor por si mesmos. A preocupação de Benjamin se orienta, muito mais, pelo esforço de estabelecer uma relação viva e crítica com o passado num contexto em que a relação entre passado e presente não é mais regulada pela tradição. No momento histórico – a modernidade – em que os laços que nos unem à experiência passada se enfraquecem, aumentando a descontinuidade entre as gerações, torna-se uma necessidade do tempo presente elaborar formas de relação com o passado que não se guiem por sua mera conservação, como valor desconectado das exigências do tempo presente. Pensar sobre essas questões implica a retomada do sentido forte dado por Benjamin ao conceito de atualidade.
Pensar essa questão exige ir além do exame de mais um tema no interior da sua obra. Ela também diz respeito à maneira como podemos ler seu trabalho hoje. Pouco conhecido em vida, Benjamin foi redescoberto pelo movimento estudantil nos anos 1960 e, desde então, seus textos têm atraído cada vez mais a atenção, sendo objeto de traduções, estudos especializados e congressos acadêmicos. Desde as primeiras publicações no pós-guerra, por iniciativa de seus amigos Theodor W. Adorno e Gershom Scholem, a recepção de Benjamin é objeto de disputas, as quais dizem respeito não só à interpretação dos textos, mas também à organização dos mesmos em coletâneas, obras completas e edições críticas. O ano de 2010 marcou uma nova etapa dessa recepção: o aniversário de 70 anos da morte de Benjamin foi celebrado com a entrada de seus textos em domínio público, fato que dará margem a uma nova onda de publicações e interpretações de sua obra. Esses dados salientam elementos trabalhados pelo próprio Benjamin: se ele é um clássico, um autor incorporado ao que podemos chamar de tradição ou de cultura; se sua importância está fora de questão, ele também pode ser objeto de uma disputa no presente. Entender os termos dessa disputa implica explicitar uma série de variáveis que compõem nossa relação com o passado. Em outros termos, ela diz respeito à possibilidade de avaliar a atualidade do passado em função de uma reflexão a respeito do próprio presente. Se Benjamin refletiu a respeito de conceitos associados à relação com o passado – cultura, tradição, experiência, transmissão –, ele também estabeleceu uma diferenciação entre dois modos de relacionar-se com o passado: a presentificação e uma noção forte de atualidade. O primeiro conceito se traduz numa concepção mais trivial de atualidade. Ele parte de uma imagem acrítica do presente para buscar no passado algo que se assemelha à época presente. Em vez de refletir sobre as diferenças entre passado e presente, ou seja, sobre a distância histórica que transforma o passado em algo distinto do presente,
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 9 3
Artigo_Walter Benjamim.indd 93
30/12/2010 14:33:53
reprodução
1 CENTROS DE CONSUMO Galerias como esta serviram de fontes de pesquisas de Benjamim sobre o século 19 parisiense, reunidas no livro Passagens
tal conceito sugere uma identificação do presente com o passado. O historiador em busca da compreensão do passado deveria assim esquecer-se das ideias e preconceitos de sua época, de sua maneira histórica de entender a realidade, para tentar trazer à tona o passado tal como ele foi. No último texto de Benjamin, as conhecidas teses Sobre o conceito de história, essa forma de relacionar-se com o passado caracteriza o trabalho do historiador historicista. Como ele abstrai os interesses de sua época com o intuito de melhor conhecer o passado, também deixa de refletir sobre as formas de dominação social presentes em toda relação com a cultura e com a tradição. Seu método – a identificação, a empatia – reverte-se, então, em um compromisso com os vencedores. Com quem, pergunta Benjamin, o investigador historicista estabelece uma relação de empatia? A resposta é inequívoca: com o vencedor. Contra esse modo de relação com o passado, Benjamin formula uma ideia forte de atualidade, a qual caracterizaria o trabalho do historiador educado pelo materialismo histórico. Esse não coloca o presente entre parênteses. Ao contrário, para ele a reflexão crítica sobre o próprio presente é condição para toda relação com o passado. Ele parte da ideia de que o passado é objeto de um processo histórico de transmissão da cultura e que esse processo é um objeto de disputa social no presente. Esquecer isso implica compactuar com o modo de escrever a história estabelecido pelas classes sociais dominantes. É nesse contexto que ele lembra a necessidade de adotar uma postura crítica perante as narrativas dominantes, de modo que a tradição não seja vista como o cânone das grandes obras e dos grandes feitos, mas como o processo conflituoso que subjugou e silenciou muitos dos que nele tomaram parte.
1
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 9 4
Artigo_Walter Benjamim.indd 94
30/12/2010 14:33:54
Marcelo Pedroso
o INEXORÁVEL TRIDIMENSIONAL
No recorrente debate envolvendo cinema e tecnologia,
Marcelo Pedroso
é jornalista e documentarista divulgação
parece sensato evocar um sujeito que, nos últimos 50 anos, nunca parou de filmar e sempre soube se posicionar com propriedade e até mesmo antecipação diante das diferentes mudanças de plataformas e paradigmas da arte. “A cultura é a regra, a arte é a exceção.” É com essa frase que Jean-Luc Godard arma seu modesto e ao mesmo tempo grandioso Je vous salue, Sarajevo. O curtinha de dois minutos, disponível no Youtube, é dessas obras capazes de tecer comentários amplos e precisos sobre diversas coisas. O entrelaçamento entre arte e vida, por exemplo. Ou a relação de forças entre estética e política. A última Bienal de São Paulo, realizada em 2010, adotou esse binômio como tema central. O vídeo foi estratégica e sutilmente posto numa tela logo na entrada do piso térreo da exposição e dali passou a servir como um farol de alta voltagem para quem quisesse ver, ouvir e sentir o que se era dado a experimentar nos demais pavimentos. Mas aqui, concentremo-nos na afirmação de Godard para o que ela pode nos sugerir sobre as transformações por que está passando o cinema, especialmente com a chegada do 3D, artifício irresistível que, num prazo de talvez 10 ou 15 anos, terá substituído o delgado feixe de luz atualmente projetado nas salas por desconcertantes imagens que roubam da tela sua planitude e chegam à ponta do nariz dos que assistem. Estranho, porém, é pensar no 3D como uma revolução, como vem propagandeando a indústria cinematográfica. Decerto que o futuro está nessa nova (talvez, nem tão nova assim) tecnologia. Não porque assim o quer o mercado, mas por nosso desejo atávico de mimetizar o mundo através da arte. Estamos engajados nesse projeto estético desde os tempos rupestres, estopim da arte figurativa. Sempre procuramos por técnicas que tornassem as imagens mais e mais reais. E o 3D seria apenas mais um passo (tão transitório quanto os anteriores) nessa escalada do signo que se quer objeto. Mas, voltando a Godard, eis o ponto. A tridimensionalidade da imagem, tal qual se nos anuncia, vem a serviço do espetáculo, do entretenimento industrializado. Não representa, portanto, ruptura, mas continuidade. E, a despeito dos (nostálgicos, puritanos, conservadores?) que relutam à galopante chegada do 3D, ele há de se tornar fato consumado muito em breve. Provavelmente, ocorrerá o que houve quando da introdução do som na película – ou da guitarra elétrica na MPB. Muitos foram contra, insurgiram-se, reclamaram, mas acabaram silenciados. O 3D, ao que parece, será cultura, regra. E não arte, exceção. Algo tão comum quanto ver imagens coloridas na televisão. E com a mesma potência adormecida que ali habita.
con ti nen te
co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 1 | 9 6
Saida.indd 96
Saída 30/12/2010 14:37:24