Continente #122 - Samba na terra do maracatu

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TOM CABRAL/FUNDARPE/DIVULGAÇÃO

FEVEREIRO 2011

aos leitores

No princípio, o samba no Rio de Janeiro se subdividia em duas frentes, o “amaxixado”, realizado na Cidade Nova, na casa de “tias baianas”, como Ciata, Gracinda e Maria Adamastor, em que se ouviam instrumentos como flauta, piano, clarineta, cordas e metais; e o partido-alto, promovido no Estácio de Sá, no qual imperavam rodas de batucada, acompanhadas por tamborins, surdo, cuícas, pandeiros, violão e cavaquinho. O primeiro era frequentado por intelectuais, políticos, “gente da alta”, como os Guinle; o segundo tinha entre seus participantes sambistas como Ismael Silva, compositor que veio a se tornar o fundador da primeira escola de samba do país. A partir desses dois estilos, o ritmo foi se espalhando pela cidade carioca até atingir todo o estado fluminense, para, em seguida, tomar conta do Brasil, com a devida colaboração das emissoras de rádios, que, transmitindo do Rio em rede nacional, transformaram o samba, antes confinado aos limites do sudeste, no “principal gênero musical brasileiro” ou o “símbolo musical do Brasil”, tornando “música regional” as sonoridades do resto do país.

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A repercussão do samba carioca alcançou estados como Pernambuco, que, por conta de sua riqueza cultural, não precisaria, em tese, “importar música”. Mas foi exatamente o que aconteceu por volta do anos 1940, quando ganhou força na “terra do frevo e do maracatu” a moda de sambar, de batucar, provocando a ira de defensores da cultura local. A reação não impediu que o ritmo crescesse e ganhasse força no estado, fomentando a criação de escolas e o surgimento de compositores voltados para o gênero. É sobre essa história que trata a reportagem do crítico musical José Teles. Ainda no contexto das manifestações intrinsecamente associadas ao período carnavalesco, embora não restrito a ele, também nesta edição observamos o importante papel das mulheres na origem e evolução tanto das músicas quanto das agremiações carnavalescas, como é o caso de nomes fundamentais da folia pernambucana, como o de Sevy Caminha, do Bloco Carnavalesco Misto Pierrot de São José, e de Joana Batista Ramos, autora da letra original da Marcha nº 1, do Clube Vassourinhas.

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sumário Portfólio

Lourival Cuquinha

6 Cartas

7 Expediente

+ colaboradores

74

76 Claquete

Sylvio Back Cineasta analisa sua extensa cinematografia a partir do documentário O Contestado

12 Conexão

20

80

Leitura

86

Artigo

88

Saída

Music meter Site da MTV lança lista diária dos 100 mais

Balaio

Adidas x Puma Briga entre irmãos levou à criação das duas marcas de tênis mais badaladas do planeta

54 Cardápio

Afrodisíacos Ainda que a ciência não comprove, acredita-se no poder estimulante de alguns alimentos

58

Palco

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Sonoras

Matéria Corrida José Cláudio Como era bom

Remakes A mania hollywoodiana de fazer as próprias versões de filmes estrangeiros de sucesso

8 Entrevista

Artista globetrotter explora diferentes linguagens e se identifica com a ideia, recorrente na contemporaneidade, de não separar a arte da vida

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odolfo Walsh R Importante título do jornalismo literário, Operação massacre esperou 50 anos para ser lançado no Brasil

Recife De como a cidade se desenvolveu a partir das ilhas do Recife, Santo Antônio e Boa Vista

Luís Henrique Pellanda Amy Winehouse é um gênio

Alternativos Grupos de teatro têm buscado espaços menores para aproximar seus espetáculos do público

Troy Andrews Trombonista de Nova Orleans, indicado ao Grammy, mistura rock, hip hop, funk e soul

Pernambucanas Urbanismo

Ainda que alguns transeuntes não percebam, as calçadas são um importante elemento do desenvolvimento paisagístico das cidades

40 Capa O sambista Jorge Ribas e Marivalda dos Santos, rainha do Maracatu Nação Estrela Brilhante foto Léo Caldas

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Especial

Carnaval

Estado de ritmos tradicionais, como o frevo e o maracatu, Pernambuco vem se tornando um destacado lugar de criação para o gênero musical

A partir do final do século 19, surgem em todo país agremiações carnavalescas tendo à frente as mulheres e as lutas classistas

Tradição

Visuais

Artista popular, que ingressou no campo das artes apenas aos 40 anos, tem sua obra escultórica em madeira reconhecida dentro e fora do Brasil

Os cadernos de rascunhos tornam-se objetos de afeto para artistas e ganham status de obra acabada para um ávido público

Samba

22

José Bezerra

48

Feminino

32

Fev’ 11

Sketchbook

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cartas Mudança no site

Qualidade da Continente

Sou uma estudante de jornalismo curiosa e não poderia deixar passar despercebidas as mudanças promovidas pela Continente em seu site (foto). Resolveram levar a interatividade para as páginas virtuais, com a inclusão do Twitter, das redes sociais, de vídeos e podcasts. A navegabilidade melhorou, o leitor consegue encontrar as matérias, mas precisa criar os TAGS, para facilitar a busca dos textos. Apesar dos inegáveis avanços, é preciso que o site seja mais participativo. O leitor sente a necessidade de interagir, dando importância ao cotidiano. Parabéns à equipe pelos 10 anos de trabalho à frente de um segmento que leva um olhar plural sobre a cultura local ou global, tentando sempre inovar.

Recentemente, conheci, com um amigo pernambucano que vem muito a São Paulo, a revista Continente. Fiquei impressionada com a qualidade, a inteligência e a delicadeza da diagramação. Escrevo para elogiar, agora que sou assinante. Aqui, em São Paulo, tenho uma revista muito inferior a de vocês, mas feita com amor e trabalho árduo. A Continente é uma referência. Quem sabe um dia chego aos pés de vocês!

Jullimária Dutra recife – pe

Edição dos 10 anos Recebi ontem a revista de janeiro. Fiquei muito feliz com o resultado da matéria para a qual

fiz as imagens. Na verdade, não só da matéria, mas da revista toda. Afinal, não é mole fazer 10 anos nesse mercado. Alexandre Severo recife – pe

À frente

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).

Cláudia Liba

Obrigado pelo envio do nº 121, geralmente os jornalistas se esquecem desse tipo de compromisso quando fazem uma matéria. Gostei da entrevista, vocês a editaram muito bem. Em termos de cultura, vocês, recifenses, estão bem à frente de nós, paulistas. Fiquei bem-impressionado com a publicação da revista, por aqui nos contentamos com o provincianismo da metrópole. Renato Ortiz são paulo – sP

são paulo – sP

Erratas • Na edição 121, jan/11, a foto publicada na página 49 é de Josias Saraiva. • Na edição 120, dez/10, a estrofe correta do poeta Ângelo Monteiro, citada na coluna Matéria Corrida é a seguinte: “Com palavras de cor verde/quero açucenar a vida/ a que vós, senhores, destes/ um gosto de formicida”.

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

Fax

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Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

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colaboradores

José teles

rodrigo carreiro

samarone Lima

Weydson Barros Leal

Jornalista, escritor, crítico de música e colunista semanal do Jornal do Commercio

Mestre em Comunicação, professor do curso de Cinema da UFPE e editor do Cine Repórter

Jornalista, escritor, blogueiro e autor do livro Viagem ao crepúsculo

Jornalista, crítico de arte, escritor e colaborador da revista Poesia Sempre

e Mais anco Márcio tenório, professor, doutor em Literatura Brasileira. andrea Marques, redatora, formada em Letras pela USP. eduardo Queiroga, fotógrafo e mestrando em Comunicação Social. Gilson oliveira, jornalista e revisor. Leidson Ferraz, ator, jornalista e pesquisador teatral. Léo caldas, fotógrafo.

Lívio Meireles, agente literário. Luís Henrique Pellanda, escritor, jornalista, músico e autor do livro de contos O macaco ornamental. olívia Mindêlo, jornalista, mestranda em Ciências Sociais. Paulo souto Maior, arquiteto, professor, mestre em Engenharia Civil e doutor em Construção, Restauração e Reabilitação Arquitetônica. Pedro Zenival, ilustrador. rafael teixeira, jornalista. renata do amaral, jornalista, webdesigner, especialista em Design da Informação e mestre em Comunicação pela UFPE. roberta Guimarães, fotógrafa.thiago Lubambo, fotógrafo.

GoVerno Do estaDo De PernaMBUco

SuperintenDente De eDiÇão

contatoS com a reDaÇão

atenDimento ao aSSinante

governaDor

Adriana Dória Matos

(81) 3183.2780

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

SuperintenDente De criaÇão

Fax: (81) 3183.2783

Fone/fax: (81) 3183.2750

Secretário Da caSa civil

Luiz Arrais

redacao@revistacontinente.com.br

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Francisco Tadeu Barbosa de Alencar reDaÇão

proDuÇão gráfica

eDiÇão eletrÔnica

coMPanHia eDitora De PernaMBUco – cePe

Danielle Romani, Débora Nascimento, Diogo

Júlio Gonçalves

www.revistacontinente.com.br

preSiDente

Guedes, Mariana Oliveira e Thiago Lins

Eliseu Souza

Leda Alves

(jornalistas)

Sóstenes Fernandes

Diretor De proDuÇão e eDiÇão

Maria Helena Pôrto (revisora)

Roberto Bandeira

Ricardo Melo

Gabriela Lobo, Gianni Paula de Melo, Maria

Diretor aDminiStrativo e financeiro

Doralice Amorim e Raquel Monteath

publiciDaDe e marKeting

Bráulio Mendonça Menezes

(estagiários)

e circulaÇão

conSelHo eDitorial:

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Armando Lemos Alexandre Monteiro

Mário Hélio (presidente) Antônio Portela

arte

Rosana Galvão

José Luiz Mota Menezes

Hallina Beltrão e Karina Freitas (paginação)

Gilberto Silva

Luís Reis

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

Daniela Brayner

Luzilá Gonçalves Ferreira

Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE reDaÇão, aDminiStraÇão e parQue gráfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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SYLVIO BACK

Contundente registro do Brasil

A partir de novo documentário, O Contestado, diretor catarinense analisa os temas de sua prolífica produção, enquanto prepara filme sobre Graciliano Ramos texto Weydson Barros Leal

con ti nen te

Entrevista

O diretor, roteirista, poeta e produtor cinematográfico Sylvio Back está lançando um novo filme. O Contestado – Restos mortais (2010) começou a ser apresentado, em agosto de 2010, em festivais de cinema no Brasil e no exterior. Em março de 2011 entrará no circuito comercial de todo o país. Catarinense de Blumenau, radicado no Rio de Janeiro desde 1986, Back começou sua carreira de cineasta paralelamente a outras atividades ligadas à arte da palavra e das imagens, ainda na década de 1950, em Curitiba, onde viveu alguns anos. Conta que despertou para o cinema “assistindo aos filmes do neorrealismo italiano e seriados de Hollywood no início dos anos 1950”, período em que foi editor do suplemento literário Letras e Artes do Diário do Paraná, no qual, segundo ele, foi um dos primeiros copidesques do Brasil. Foi crítico de cinema em jornais de Curitiba e colaborou com artigos de cultura em suplementos literários do Rio de Janeiro e de São Paulo. Teve uma breve experiência como diretor de TV, escrevendo e dirigindo programas como Globo Repórter e Globo Rural. Em cinema,

considera-se, acima de tudo, um autodidata: “Aprendi cinema vendo e lendo filmes”. De personalidade forte e afirmativa, de língua afiada e com sofisticado senso de humor, diz, com orgulho, nunca ter sido “assistente de outro cineasta”. Já roteirizou, dirigiu, produziu e coproduziu 37 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens – seu primeiro longa, Lance maior, é de 1968. Nesta entrevista à Continente, Sylvio Back fala do processo de criação e filmagem de O Contestato – Restos mortais (2010) e de seus futuros projetos. O Contestado é a sua segunda incursão no tema da guerra ocorrida na fronteira entre os estados do Paraná e de Santa Catarina no começo do século 20. Desta vez, Sylvio Back recorre a médiuns espíritas para ajudá-lo a contar uma história. CONTINENTE Em 1971, você realizou A guerra dos pelados, um longa-metragem de ficção em que interpretava episódios da Guerra do Contestado. Por que decidiu voltar ao tema nos dias de hoje?

SYLVIO BACK Nesses 40 anos que separam o filme de ficção A guerra dos pelados do documentário O Contestado – Restos mortais, uma sensação de “lesapátria” nunca deixou de me tentar, não apenas como cidadão, mas por ser um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter as falácias e o esquecimento da história oficial: o quão submersos, ignorados, omitidos, distorcidos e minimizados permanecem os fatos e atos dessa verdadeira guerra civil nos sertões de Santa Catarina, que foi a Guerra do Contestado. À época de sua eclosão, primeira década do século passado, na falta de melhor compreensão do inusitado levante, e até pela proximidade histórica, logo se alcunhou o Contestado de Canudos do Sul. Claro, há semelhanças com a tragédia de Vaza Barris, principalmente, com a crença na chegada de um messias, no fanatismo dos caboclos e na feroz repressão militar, mas seu espectro místico, bélico e geopolítico, socioeconômico e demográfico extravasa em envergadura, recorrência e reflexos nas décadas seguintes (e até hoje), a epopeia de

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imagem manipulada DIGITALMENTE/divulgação

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Antônio Conselheiro. Volto ao tema, talvez movido pelo desafio, que tento sempre responder em minha obra feita de 37 documentários e filmes de ficção, e por onde trafego impunemente, porque, afinal, qual a diferença entre a realidade bruta e o imaginário contemporâneo e sobrevivente, depois que um e outro são transformados em cinema? CONTINENTE Como explicar a diferença entre o atual documentário e a ficção: quem mudou? Os filmes, a realidade, a história ou você? SYLVIO BACK Meu cinema tem investido, quase de forma intuitiva, no desmonte de tabus, mitos e utopias da história do Brasil, seja

con ti nen te

dos pelados, lançando mão de uma narrativa que eu chamaria de insólita: a inserção do depoimento de médiuns em transe. Um discurso imagético que fosse ao âmago dessa história insepulta que o Brasil precisa homenagear com as merecidas exéquias morais. Assim, por vias transversas e transformando o invisível e o indizível em visibilidade e oralidade, frequentei cinematograficamente um pretérito mágico na pele de personagens que poderiam ter existido. CONTINENTE De onde vem a ideia de colocar médiuns no filme? Do misticismo que alimenta o Contestado? Você é espírita? Acredita no discurso que surge ao longo do filme? SYLVIO BACK Nessa retomada

Entrevista abordando o conluio do nazismo com o integralismo (em Aleluia, Gretchen), as polêmicas missões jesuíticas do Cone Sul (em República Guarani), o genocídio da Guerra do Paraguai (em Guerra do Brasil), a tragicomédia da presença da FEB na 2ª Guerra Mundial (em Rádio Auriverde); seja denunciando a militarização do índio brasileiro (em Yndio do Brasil), revelando a magnitude do criticado maior poeta negro da língua portuguesa, Cruz e Sousa (em Cruz e Sousa – O poeta do desterro) ou seja confrontando e colocando sob suspeita as próprias convicções e certezas político-ideológicas de toda uma vida e carreira. Para tanto, busquei formatar com O Contestado – Restos mortais um debate com a ficção de A guerra

ao tema sob outro registro, tomei como inspiração o substrato mítico e mitológico que cercava os monges João e José Maria (inspiradores do movimento – o primeiro, pacifista; o segundo, com vocação guerrilheira) e seus seguidores. Além de rezarem pela ressurreição de São José Maria, alçado à condição de santo depois de morrer desafiando a polícia militar do Paraná, no combate do Irani (1912), os caboclos começaram a acreditar fanaticamente na vinda de um “exército encantado”, liderado por São Sebastião, para tirálos da pobreza. E, igualmente, para enfrentar o “polvo” da modernidade, como alcunhavam a chegada do capitalismo à região, através de uma estrada de ferro e de uma serraria

multinacionais, que se instalavam no planalto de Santa Catarina com todo o ímpeto, expulsando-os de suas terras e transformando-os em operários ou, no caso da maioria, entregues à própria sorte, rima terrível para morte, seu único futuro. Ainda na fase das pesquisas, falando com o historiador Euclides Philippi, já falecido (estava com mais de 90 anos), expus que pretendia investir em médiuns para “ouvir” a história oculta, não presencial de caboclos e soldados envolvidos na Guerra do Contestado. Ele próprio, espírita, lascou à queima-roupa e em tom solene: “O senhor é espírita?” Mesmo pego de surpresa, consegui responder na lata: “Sou cineasta!” Depois, o transe,

“Carrego a primazia, nessa hora em que tanto espiritismo explode nas telas, de ter sido o primeiro cineasta brasileiro a incorporar o transe mediúnico à linguagem cinematográfica como elemento da narrativa de um documentário” como uma insondável camada do inconsciente coletivo e da história do homem, por isso mesmo matériaprima de altas indagações no campo da física quântica (a matéria perece, mas a consciência jamais desapareceria), para mim, é a mais pura e límpida poesia. Não sou espírita nem cientista, sou poeta. Nada no transe é real, ali tudo é imaginação e imaginário, um salto no escuro, na invisibilidade de fatos e feitos primevos, eu diria, como se fosse prestidigitação rumo ao mais denso dos mistérios da alma humana. CONTINENTE Aliás, essa não é a primeira vez que você se vale do transe mediúnico como elemento da linguagem de um filme. Qual é o histórico dessa opção?

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SYLVIO BACK Carrego a primazia, nessa hora em que tanto espiritismo explode nas telas, de ter sido o primeiro cineasta brasileiro (quiçá, do mundo!) que incorporou o transe mediúnico à linguagem cinematográfica como elemento da narrativa de um documentário – como, também, fui o primeiro realizador no país a eliminar a figura draconiana do narrador em documentários, de Revolução de 30 (1980) e Rádio Auriverde (1991) a Yndio do Brasil (1995), e de criar a “dramaturgia da entrevista” em República Guarani (1982), agora exponenciada neste O Contestado – Restos mortais. Esse mergulho primevo no transe ocorreu há exatamente 26 anos, no documentário O autorretrato

CONTINENTE Diante do insólito que são os médiuns pontuando a narrativa, que abordagem você utilizou para tornar crível a presença deles ante a câmara? SYLVIO BACK Ao longo de meses, sem muita nitidez e tateando pelas veredas que a história oficial do Contestado escamoteia, desvirtua e cala, arregimentei 30 médiuns em sessões espíritas dentro do perímetro bélico do conflito e, em Florianópolis (SC), transformei-os em “influxos condutores da linguagem” do filme, uma espécie de personagens plasmáticos. Não foi fácil convencê-los de que,

de Bakun, melhor filme (Prêmio Glauber Rocha) na Jornada da Bahia de 1984, quando pincei do passado, se a expressão couber, capturando pela manifestação mediúnica do pintor paranaense, que se suicidou em 1963, toda a tragédia dos seus últimos dias entre nós. Pensei que, pelo inaudito do procedimento, fruto de minha percepção de que, sendo Bakun um místico, portanto, um homem afeito a incursões ao universo espírita, jamais retornaria a esse procedimento num filme. Anteriormente, algo no gênero eu já havia tornado factível no citado longa, A guerra dos pelados, encenando um transe mediúnico nitidamente fake, para que a atriz DorothéeMarie Bouvier, no papel da “virgem”

sem sermos espíritas, jamais iríamos manipular o testemunho deles, nem colocá-los em alguma situação constrangedora. Dito e feito: todos os médiuns compareceram com dignidade e verdade impressionantes no decorrer de O Contestado. O que apenas ensaiei em A guerra dos pelados transformou-se nesse contundente poder narrativo da mediunidade, um discurso sempre cifrado, quando menos, profético e dispersivo, a assumir a condição de ogro cinematográfico, introduzindo o espectador à atemporalidade da Guerra do Contestado. Para atingir essa, digamos, intimidade com os médiuns, fizemos questão (o cineasta Zeca Pires, meu diretor assistente, e eu) de jamais industriá-los sobre o que queríamos

fotos: divulgação

Ana, incorporasse o monge José Maria, um dos mentores espirituais dos revoltosos do Contestado.

saber ou ouvir na hora da filmagem e da gravação. Foi o suficiente para, mais uma vez, tomarmos consciência de quanto o Contestado vem sumindo da memória das pessoas, reforçado pelo fato de que, nos livros didáticos, essa verdadeira revolução nos sertões do sul brasileiro é citada com meia dúzia de palavras, quando não inteiramente omitida entre os grandes perrengues sociais e políticos que tumultuaram a chamada Primeira República (1889-1930). CONTINENTE Você poderia adiantar algo sobre seus novos projetos? SYLVIO BACK Estou em plenas filmagens de um documentário de longa-metragem sobre e em torno do escritor Graciliano Ramos (18921953), previsto para ficar pronto e estrear nos cinemas de todo país em meados de 2011. Confesso que era um projeto nunca pensado antes dos meses em que me concentrei roteirizando o romance Angústia, desse genial escritor alagoano. Na época, descobri, mergulhado no fascinante livro, que até hoje poucos pesquisaram sobre a vida-obra-e-morte de Graciliano, cuja trajetória existencial, literária e ideológica é um capítulo soberbo da cultura brasileira. Inclusive, são previstas filmagens em Buíque (PE), onde Graciliano viveu na infância e de lá catapultou personagens de Angústia. Intitulado O universo graciliano, esse documentário vem se tornando uma espécie de ensaio geral para as filmagens de Angústia, projeto que venho acarinhando há décadas. Uma tormentosa história de amor, paixão, ciúme, ódio, crime e autopunição, que transcorre em Maceió, nos anos 1930, e que revela uma atualidade à toda prova. Ao mesmo tempo, está vindo a lume meu primeiro livro de contos, Guerra do Brasil (Topbooks), que, a exemplo do filme com título homônimo que realizei em 1987, é um resgate memorial histórico, crítico e poético, frequentemente autobiográfico, sobre o incomensurável universo mágico sobrevivente da desconhecida e mal-interpretada Guerra do Paraguai, talvez uma das últimas exorcizações da nacionalidade, como a própria Guerra do Contestado, que ainda precisam ser feitas para explicar os contornos anímicos do Brasil.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

SAMBA RECIFENSE

CLAQUETE

A matéria de capa da Continente deste mês aborda a trajetória do samba dentro de um estado repleto de ritmos musicais tradicionais. O tema também é destaque no site da revista. Quem quiser escutar sambas produzidos no Recife pode acessar a página, que traz algumas faixas interpretadas por nomes do cenário local. Um deles é Jorge Ribas, criado em rodas da Gigante do Samba e da Unidos da Vila de Rio Doce. Além disso, estão disponíveis para audição algumas músicas de Morro de samba, CD de estreia de Karynna Spinelli.

Veja o trailer do filme O Contestado – restos mortais, do cineasta Sylvio Back, que estreia no circuito nacional em março.

Conexão

leitura Leia um capítulo do livro Operação massacre, de Rodolfo Walsh, lançado pela coleção de jornalismo literário da Companhia das Letras

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

VINIL

BEATLEMANIA

ARTES CÊNICAS

QUADRINHOS

Saudosos dos LPs podem ver capas marcantes no LP Cover Lover

Voltado para fãs, site agrega vídeos sobre o quarteto de Liverpool

Site reúne textos e entrevistas sobre autores teatrais contemporâneos

O Strip Generator oferece a todos a possibilidade de fazer sua própria tirinha

lpcoverlover.com

beatlestube.net

dramaturgiacontemporanea.com.br

stripgenerator.com

Os LPs recuperaram parte do prestígio de outrora, a partir da revalorização da sua qualidade musical, mesmo nos tempos da MP3. O site LP Cover lover traz mais uma faceta dessa admiração pelo vinis, reunindo, a partir de acervo próprio e de colaborações, capas de discos do que chamam época de ouro da mídia. As diversas seções trazem temas interessantes, incluindo uma que se dedica ao acervo brasileiro. Destaque também para a Roda da fortuna, que sorteia uma das capas existentes no site para que o internauta conheça.

Para aquela que é considerada a maior banda da história, um site ambicioso: o BeatlesTube, que diz ter todos os vídeos sobre os Beatles que o Youtube armazena. Organizando-os em categorias, a página não se limita ao grupo, e traz covers de composições dos quatro integrantes e vídeos também de suas carreiras-solo. O visual é muitas vezes poluído, mas a separação de vídeos em categorias, por música, disco e palavras-chave vale a visita. Uma boa dica são os links do site, que levam a páginas similares, feitas para outros artistas, como Elvis Presley, Michael Jackson, Rolling Stones, Queen e U2.

Com o intuito de revelar o perfil da dramaturgia brasileira atual, o Dramaturgia Contemporânea busca reunir o que está sendo feito na área. Editado por Paula Chagas Autran e Thereza Dantas, o site é um excelente local de pesquisa de textos sobre autores em atividade, como Mário Bortolotto e Marçal Aquino, ambos presentes na seção de entrevistas. O site ainda traz ensaios, teses e textos originais para teatro, contando com colaborações de autores e incentivando o diálogo entre eles. O Dramaturgia Contemporânea também está sob a licença Creative Commons, sendo permitida a sua reprodução sem fins lucrativos.

As tirinhas em quadrinhos são um formato bastante popular na internet. Para ajudar os que não se arriscam sequer nos desenhos mais simplificados, o site Strip Generator fornece uma interface simples para que se crie uma tirinha. É possível escolher os personagens, a quantidade de quadros e outros inúmeros aspectos técnicos. A única ressalva é que todos são feitos com o mesmo traço – ou seja, não há variedade de estilos de desenho. A página já reúne cerca de 500 mil quadrinhos e mais de 70 mil membros.

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blogs LITERATURA wellingtondemelo.com.br

O blog do poeta Wellington de Melo traz, além de novidades sobre seus livros, comentários sobre a cena literária pernambucana e links para textos de outros autores. O escritor ainda disponibiliza alguns de seus livros para leitura online.

MODA patilima.wordpress.com

MUSIC METER indica O QUE É TENDÊNCIA Na sua lista diária de 100 mais, a página da MTV prioriza nomes menos conhecidos que fazem sucesso em redes sociais e outros sites mtvmusicmeter.com

Uma das grandes funções das empresas de jornalismo cultural é medir a

relevância e popularidade de um determinado assunto ou artista. Publicar uma matéria sobre uma temática é reconhecer a importância dela, mas existem outros meios de evidenciá-la. As listas de melhores trabalham com o mérito artístico, enquanto listas dos livros mais vendidos, como as da Veja, ou dos singles mais tocados, como a Hot 100 da revista Billboard, mostram a popularidade de uma obra. Em tempos de internet, em que as execuções em rádios podem ser, para alguns, menos relevantes que os downloads e as citações no Twitter, a MTV criou sua forma de sugerir bandas e músicos a serem escutados. Lançado no final de 2010, o site Music Meter se propõe a definir uma lista diária dos 100 artistas mais citados em notícias, blogs e redes sociais e escutados, visualizados e comprados na internet. A proposta é ser, de certa forma, um equivalente musical dos Trending Topics, do Twitter, priorizando os nomes em ascensão e acompanhando o burburinho que gera as novas revelações dos diversos gêneros musicais do pop. É possível ver tuítes recentes sobre um artista, escutar trechos de suas canções, assistir a clipes e ler notícias de sites variados. Quem se interessar, pode marcar uma banda ou cantor como favorito e até pedir para o site indicar outros nomes semelhantes. DIOGO GUEDES

Desde 2007, a publicitária e jornalista Patrícia Lima mantém um diário pessoal sobre moda no seu blog. No seu site, a editora da revista Catarina privilegia grandes imagens para mostrar relatos pessoais e tendências da moda.

CULINÁRIA naminhapanela.com

Com belas imagens, o Na minha panela traz receitas simples para os cozinheiros ocasionais. O blog é resultado da parceria de um casal: Camilla faz as receitas e Rafael ajuda no preparo, no visual das comidas, e cuida do site.

TIRINHAS overdosehomeopatica.com

No blog Overdose homeopática, o quadrinista Marco Oliveira posta regularmente suas tirinhas. Dono de um humor sarcástico, o autor trabalha em parceria com o roteirista Marcelo Saravá.

sites sobre

direito autoral PROJETO

JURÍDICO

CIRCULAÇÃO

a2kbrasil.org.br

direitoautoral.com.br

cultura-e-direito.blogspot.com

Parceiro do Ministério da Cultura, o Access to knowledge busca formular com os usuários uma proposta de alteração da lei de direito autoral brasileira.

Com visual simplificado, o Direito autoral é um dos pioneiros na área e dedica-se ao caráter jurídico dos direitos dos autores sobre as obras.

Mantido pela jornalista e produtora cultural Viviane Menezes, o Cultura e Direito traz novidades sobre direito autoral e circulação de cultura na internet.

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Lourival cuquinha

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fotos: Lourival cuquinha

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Lourival Cuquinha

arte = vida TEXTO Olívia Mindêlo

Nos anos 1960, Hélio Oiticica deixou sua marca na história, ao defender que a

arte brasileira deveria abandonar formalismos de “quadro de cavalete” e se politizar. Não exatamente se tornar partidária, mas ser capaz de nos aproximar da vida de forma crítica, levando-nos de “volta” à realidade depois de “experimentá-la” por outros sentidos que não fossem só visuais. Uma arte que se misturasse à vida – mais participativa e menos mimética. Mais objeto e menos tela. Artistas como o pernambucano Lourival Cuquinha, 35, são nomes da nova geração que, de alguma forma, trazem nas veias um tipo sanguíneo parecido com o de Hélio. Obviamente, o contexto atual é outro e a maneira de se lidar com o mundo também, não vivemos mais sob o regime militar e o circuito de arte no Brasil também mudou. “Vivo do operariado do edital”, brinca Cuquinha, referindo-se ao jeito mais comum que os artistas contemporâneos, sobretudo os brasileiros, encontraram hoje para sobreviver. Essa situação vem mudando para ele, que tem passado a vender mais seus trabalhos. De uma forma ou de outra, os ecos de Oiticica continuam fazendo barulho até hoje e ganham novos contornos. O próprio pernambucano já "surrupiou" um Parangolé do MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro e saiu pelas ruas da capital carioca fazendo uma performance com o objeto feito para vestir – obra símbolo do artista

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A intervenção urbana de 2006 ganhou fama ao ser instalada em diversos lugares

Nestas páginas 2 artraffic

esenhos explicam D como usar os colares de haxixe

3-4 INÉDITA O trabalho gira em torno é uma instalação interativa, resultante das experiências do artista como imigrante na Inglaterra

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5-6 contravenção Instalação exposta no Recife e performance realizada no Rio de Janeiro, após o "empréstimo" do parangolé de Oiticica 7 jack pound O projeto resultou numa bandeira com mil libras em notas costuradas, leiloada no ano passado

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chegou a ser pego com vários de seus colares feitos para o projeto Artraffic, a partir de pedaços de haxixe. Conseguiu ser liberado pelos policiais depois de convencê-los de que aquilo era arte. Ironicamente, foi com esse trabalho que começou a ganhar dinheiro no ramo, fora dos editais públicos. Vendeu seus adornos entorpecentes em exposições na Europa e no Brasil, e chegou a faturar quase R$ 20 mil em três anos. Por questões de vínculos pessoais em sua fase atual, o “artista-traficante” achou por bem "matar" o trabalho. Em breve, os colares poderão ser vistos como espécies de relíquias penduradas em ex-votos. As produções selecionadas para esta seção, incluindo Artraffic, são sintomáticas para entender um pouco do espírito criativo de Cuquinha – desde o registro da intervenção

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carioca. Claro que isso lhe trouxe complicações, mas também lhe rendeu outros trabalhos. Transitando no limite das convenções sociais, Cuquinha explora diferentes linguagens e se identifica com essa história de não separar arte de vida – discurso, aliás, bem recorrente na arte contemporânea. Utilizando o cotidiano como mote, gosta de mostrar como as leis são relativas, bagunçar regras sociais. O que é crime em um contexto pode não ser em outro. A venda de drogas é ilegal em boa parte do mundo, mas na arte pode ser consentida, por exemplo. O artista conta que, na fronteira da Suíça com a França, em 2006,

urbana com os varais, que o projetaram do Recife para outras cidades do mundo, até o projeto Jack Pound, que resultou numa bandeira com mil libras em notas costuradas, leiloada no ano passado. Há ainda produções inéditas, como O trabalho gira em torno, instalação interativa resultante de suas experiências como imigrante em solo britânico, onde vive atualmente; ela vai estar na exposição Topografia suada de Londres, programada para entrar em cartaz no Centro Cultural Correios, no Recife (ainda sem previsão de data). Enquanto não chega à capital pernambucana, podemos conferir um resumo do que tem sido Lourival Cuquinha desde que largou o Direito, há mais de 10 anos, para se jogar no território da arte, em que se pode quase tudo, desde que o artista e um punhado de gente acreditem na verdade inventada.

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KARINA FREITAS

LIMA E O CARNAVAL

Além das três listras Os irmãos Adolf (Adi) e Rudolf Dassler, que aprenderam a fazer sapatos na lavanderia de casa com seu pai, a partir de 1920, começaram a manufaturar e vender calçados esportivos, obtendo sucesso e prosperidade. Durante a 2ª Guerra, chegaram a vender 400 mil pares em um ano. Porém, divergências políticas levaram os dois a constantes brigas. Em meio a um bombardeio aliado, em 1943, os Dassler iniciaram uma discussão dentro do abrigo antiaéreo, que os levou a romperem relações para sempre. Em 1948, ambos decidiram abrir empresas concorrentes, Adidas e Puma, em lados opostos de sua cidade natal, Herzogenaurach, que passou a ser “dividida” pela lealdade aos dois principais empregadores. Os moradores passaram a checar os calçados de seus vizinhos para decidir entre amizade ou animosidade, e até os estabelecimentos comerciais eram segregados a apoiadores de uma ou da outra marca. Os irmãos não sobreviveram para presenciar a reconciliação dos habitantes da cidade, em 21 de setembro de 2009, quando uma partida de futebol marcou o evento. Enterrados em extremos opostos do cemitério da cidade, estão para sempre separados, a uma corridinha de distância um do outro.YELLOW

CON TI NEN TE

A FRASE

Mulato e socialista num tempo em que problemas sociais eram vistos como caso de polícia, Lima Barreto – considerado pelo crítico Agripino Grieco “o mais brasileiro de nossos romancistas” – provavelmente nunca imaginou que seus conterrâneos um dia se sentiriam felizes pelo fato de o Brasil ser conhecido como o “país do futebol”. A designação “país do Carnaval” é outra que não agradaria o escritor, que qualificava a folia como a “festa mais estúpida do Brasil”. A implicação, no caso, era mais artística do que ideológica: o escritor não suportava as letras das marchinhas, que considerava muito pobres. Imagina se Lima ouvisse as “pérolas” do cancioneiro contemporâneo... (Gilson Oliveira)

Balaio JACK, O APROVEITADOR O guitarrista Jack White, indignado com as transações no site de leilões eBay, em que vinis da gravadora gerida por ele, a Third Man, chegavam a ser negociados por 300 dólares, após serem vendidos por 10 dólares, decidiu tirar proveito. Com estoque pessoal de alguns bolachões do White Stripes, esgotados no mercado, o músico lançou a oferta no eBay. White quis acabar com oportunistas que compram raridades só para repassarem online, por um valor muito mais alto. Um LP do WS chegou a ser vendido por U$ 510. Fãs condenaram a atitude do compositor, que chegou a discutir com eles em fóruns virtuais. Soou inoportuno. (Thiago Lins)

“Por que será que todas as pessoas de bom senso pensam como nós?” Millôr Fernandes

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SÓ NO DICIONÁRIO Chamou a atenção de todos o fato de Dilma Rousseff, em seus discursos, se autodesignar, sistematicamente, como “presidenta”. No Brasil, pelo menos, a palavra praticamente só existia no dicionário. Como acontece, universalmente, com “papisa”, está fadada a ficar restrita ao mundo dos livros pelos séculos e séculos, amém... Destino semelhante parece ser o de “poetisa”, termo esquecido, hoje, até mesmo pelas mulheres que publicam poesia. Curiosamente, esse vocábulo terminou se transformando em substantivo comum de dois gêneros: “o poeta”, “a poeta”... (GO)

CRIATURAS

PRIMEIRA GOVERNADORA Quando se fala em pioneiras da política brasileira, normalmente se esquece da primeira governadora no país: Brites de Albuquerque. Nascida em Portugal e chegada em Olinda, em 1535, ela exerceu o cargo de “capitoa”, ou seja, mandatária da Capitania de Pernambuco, entre 1553 e 1560 (devido à viagem do marido, Duarte Coelho, a Portugal, onde faleceu em 1554); e, entre 1572 e 1573 em razão da ida dos filhos, Duarte e Jorge, para a batalha de AlcácerQuibir, onde morreu o rei D. Sebastião e na qual foram gravemente feridos. Ajudada pelo irmão Jerônimo de Albuquerque - conhecido como “Adão pernambucano”, pela grande quantidade de filhos -, Brites concorreu para o sucesso da capitania, como reconheceria, entre os estudiosos, o sociólogo Gilberto Freyre. (GO)

MEDO DA BARBIE Mais “inteira” que Sharon Stone, a Barbie atingiu seu jubileu de ouro com uma polêmica: a Barbie Video Girl. O jeans skinny e o colete imitando pele de zebra são meros detalhes, agora que a boneca carrega um certo “conteúdo” em suas costas delicadas: uma tela de LCD e memória para salvar arquivos de até meia hora. Os vídeos gravados podem ser retocados no site da loira. Basta plugar um cabo no USB dela, logo abaixo das costas, quer dizer, do LCD. Mas, antes que mentes poluídas façam (des)uso da boneca, o FBI despachou um alerta internacional: “A BVG é um possível método de produção de pornografia infantil”, sentenciou a nota. Espirituoso, o El País publicou a manchete: “FBI tem medo da Barbie”. (TL)

Cyndi Lauper

Por Pedro Zenival CO N T I N E N T E F E V E R E I R O 2 0 1 1 | 2 1

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novos artistas e espaços para shows, além de lançamentos de cDs, firmam a presença do gênero musical na terra do frevo e do maracatu

s amba TEXTO José Teles FOTOS Léo Caldas

PERnAMBUco

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con especial ti nen te “É o segundo mercado para o samba no país, tem público mais do que no Rio. Os dois maiores mercados para o samba, hoje: São Paulo, depois o Recife”, quem faz a afirmação, no mínimo, ousada, é Antônio José de Santana, ou melhor, Belo Xis, apelido que carrega desde criança. Ele vem acompanhando a evolução do gênero em Pernambuco há mais de três décadas. Ex-goleiro, na extinta categoria aspirante de times como o América e o Santa Cruz, pertenceu também ao Vasco carioca, e ao São Domingos alagoano, quando deixou os gramados e adentrou nas passarelas do samba. Integrou a bateria de Estudantes de São José, foi puxador de samba e da ala de compositores. Nos últimos anos, está na Gigantes do Samba, como puxador e compositor (no Rio, também compõe para a Mocidade de Padre Miguel). Ele é dos poucos autores renomados de música que se dedicam atualmente às escolas. A decadência dessas agremiações levou ao afastamento de quase todos. “Gigantes, se não fosse a intervenção da comunidade, e ter sede própria, já teria deixado de sair. No passado, a força do jogo do bicho sustentava a maioria das escolas”, comenta Jorge Ribas. Belo Xis emenda: “As escolas caíram muito por falta de apoio. Chega o Carnaval e a verba que recebem da prefeitura é de R$ 10 mil. Ora, para as fantasias de uma escola saírem, a despesa é de, pelo menos, R$ 50 mil. A Gigantes está numa fase boa, vem ganhando há quatro anos. Teve sorte de ter como presidente o senhor Lacerda, policial aposentado, que consegue motivar a comunidade da Bomba do Hemetério em torno da agremiação”. Belo Xis lembra os velhos tempos, quando o desfile do primeiro grupo na passarela do samba, na Dantas Barreto, era televisionado, e passava ao vivo: “Hoje em dia, pouca gente se importa com as escolas”, queixa-se o veterano sambista. Ele comanda o projeto Roda de bamba é 10, que acontece às quintas-feiras, na Rua da Moeda: “Reunimos ali os 10 melhores sambistas do Recife – digo, os que fazem samba exclusivamente de raiz. Cantamos tanto o samba autoral quanto os sambas clássicos que o povo gosta de cantar”, diz ele, que também frequenta outros

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“Se a gente conseguir massificar o samba autoral, é possível que não seja uma moda passageira por aqui” Jorge Ribas

pontos obrigatórios da cidade, entre esses a tradicional roda de samba criada por Valdemir de Souza, mais conhecida como Pagode Didi, que funciona, todas as noites, na Rua Ulhoa Cintra, onde até a década de 1980 funcionava um dos restaurantes mais chiques do Recife, o Adega da Mouraria. Nessa rua do Bairro de Santo Antônio, há mais de duas

décadas, a ordem é o samba. Ali se pode cantar, ou dançar, o autêntico pagode (que nada tem a ver com os grupos de pagodejo, ou cantores como Belo e Alexandre Pires). O local não é dos mais requintados, mas ali o samba é farto. Os sambistas cariocas já conhecem o pedaço. Arlindo Cruz, por exemplo. O lugar rivaliza com o Refúgio da Vanda, criado por Evanilda de Albuquerque Maranhão, na Torre.

clubes e RODAS

Mas enquanto o Pagode do Didi e o Refúgio da Vanda abrigam sambistas calejados, com mais tempo nas batucadas da vida, alguns ex-integrantes de grupos como Samba 5 ou Samba Chic, que animavam de rodas de pagode

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Página anterior 1 NO BOA VISTA

mercado é O um dos locais onde se reúnem bambas como Jorge Ribas (ao centro, de branco)

Nesta página 2 RENOVAÇÃO

Trio Pouca O Chinfra, um dos destaques da nova geração, já lançou o segundo CD

é tudo de bom. Nada se compara aos sambas de Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Ataulfo Alves (com a Seu Oscar, dele e Wilson Batista), Assis Valente, Geraldo Pereira, Wilson Batista... Lógico que existe uma geração maravilhosa: Paulinho da Viola, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho... Mas todos esses bebem ainda na fonte dos grandes mestres”. Xico de Assis, que tem feito temporadas, aos sábados, no Bar Biruta, no Pina, também elogia os novos sambistas pernambucanos: Rui Ribeiro, Paulo Perdigão, Dona Selma do Samba, Belo Xis, Manezinho da Gigantes, gosta também dos sambas de Zecafofinho. Xico, por vezes, parece saído do túnel do tempo. Da nova cena de sambistas pernambucana, ele é o único que passou pelo hoje extinto programa de calouros na TV Jornal, e viu, ainda criança, estrelas do Rádio de grande sucesso no estado, nos anos 1960: “Nerize Paiva, com Vai lavar teu siri, fazia o auditório tremer, assim como Mêves Gama, Woleide Dantas, Eunice Paiva e Marlene Baiana”.

NOvatos

até bailes de carnaval, vêm surgindo novos points para o samba. Um deles é o Morro da Conceição, onde o ritmo fez morada há décadas. Lá acontece, aos domingos, a reunião do Clube do Samba, idealizado pela cantora Karynna Spinelli, e que conta com a participação de sambistas locais e de outros estados, sobretudo do Rio de Janeiro. Segundo Maurício Spinelli, irmão de Karynna (de quem também é produtor), inicialmente, o Clube do Samba foi bancado pelos integrantes e por doações de simpatizantes: “Depois, aprovamos um projeto pelo SIC, mas a empresa ‘fuleirou’ com a gente e não nos repassou toda a grana que era devida. Voltamos às doações e lançamos uma campanha para os

frequentadores contribuírem com qualquer quantia, um real, cinco reais, para conseguirmos fazer o evento. Podíamos optar por algum espaço fechado, mas não é o que queremos”. Karynna e o irmão valeram-se da rede social Facebook para divulgar a primeira edição de 2011 do Clube do Samba, que recebe o reforço de outros sócios-fundadores: Lucas dos Prazeres, Rubem França e Daniel Coimbra. Além desses “clubes”, há os sambistas que correm por fora, não exatamente ligados a grupos. É o caso do jornalista Xico de Assis, que, em se tratando de samba, confessa que prefere as composições de autores clássicos: “O samba do passado é uma crônica cantada. Paulo Vanzolini, em Juízo final,

Da novíssima geração, destaca-se o Trio Pouca Chinfra, que lançou o segundo CD em janeiro deste ano. De trio não tem nada, são 11 integrantes. O Pouca Chinfra faz um samba com forte tempero pop, lembra alguns dos novos grupos cariocas que pontificam na Lapa. Esse viés se explica pela formação de alguns dos membros do grupo. Filipino, por exemplo, também faz parte banda de rock The Playboys, enquanto Demóstenes, cavaquinista e principal compositor, foi da Bande Ciné. O Trio Pouca Chinfra é um dos poucos formados na Zona Sul, em Boa Viagem, mas se integrou bem à cena, tocando tanto com Karynna Spinelli quanto com a Gigantes do Samba: “Está todo mundo no mesmo barco. Com a união, todos saem ganhando. Estamos formando um público para o samba”, diz Filipino. Assim como as escolas, nos anos 1950, assimilaram traços da cultura regional, o Pouca Chinfra faz samba inspirado no trabalho de Adoniran Barbosa, ou com acompanhamento de sanfona. Quem também faz samba com sotaque regional é Paulo Perdigão, da Mesa de Samba Autoral, uma das

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con especial ti nen te responsáveis pela atual movimentação local: “Antes, só se reproduzia o que se faz no Rio, e nós tivemos muito cuidado para não sermos um elemento a mais na cultura pernambucana. Nos meus sambas, procuro falar de Pernambuco, misturo o ritmo com forró ou maracatu; usamos alfaias, triângulos”. O conjunto foi criado há seis anos por Perdigão, Dona Selma do Samba, Ruy Ribeiro e Tadeu Júnior. O coletivo passou a ser mais conhecido a partir das rodas vespertinas do produtor Jair Pereira, no Clube Líbano, no Pina. Há quatro anos, ele promoveu eventos de samba, reunindo na programação ícones, tais como a Velha Guarda da Portela. Os músicos pernambucanos também se apresentavam no local, onde a Mesa de Samba Autoral era sempre destaque. “A Mesa de Samba Autoral tem bastante música para cantar só composições da gente, mas, no caso de um show muito longo, cantamos os clássicos”, comenta Perdigão. Assim como congêneres de outros estados, o novo samba carioca é bem menos purista. É o caso do inovador Trio Moinho, que abdica de instrumentos tradicionais e é formado pela percussionsta Lan Lan (que foi da banda de Cássia Eller), o guitarrisa Toni Costa e a cantora (e atriz da Globo) Emanuelle Araújo, todos baianos. A faixa mais tocada do CD de estreia da Moinho, Hoje de noite (2008), é Carnaval, do pernambucano Sambê. Ele lançou o primeiro disco Insano, em 2006, ainda com o nome de San.b, e é da mesma geração do Pouca Chinfra. A amizade com a turma do Moinho fez Sambê se mudar para o Rio, em 2010. “Faço samba, mas sem me prender a convenções; pode

ter alguma coisa de reggae, música regional, folclore”, afirma Sambê, acrescentando que sua mais recente empreitada é o Samba Massa, duo com Lan Lan, na base de voz, violão e percussão.

AUTORAL

Os vários impulsos isolados (incluindo aí o samba de latada, de Josildo Sá, com Paulo Moura, ou o Samba de São João, de Geraldo Maia) reforçaram em Pernambuco o gênero como um todo, admite o veterano Jorge Ribas, há quase 30 anos nas rodas de bamba, mas que só gravou o primeiro CD no final do ano passado, e crê na longevidade dessa onda de samba pernambucano: “Se a gente conseguir massificar o samba autoral, é possível que não seja uma moda passageira. Uma das características mais ricas do samba que se faz por aqui é que ele não repete fórmulas cariocas, nem vive de composições de autores clássicos como Cartola e Nelson Cavaquinho, embora esses gênios sejam cantados”. Karynna Spinelli lançou o primeiro CD Morro de samba, no final de 2010. O detalhe importante do disco: todas as músicas levam a assinatura da artista, sozinha ou com parceiros. Ela já passou a exportar o samba pernambucano para os cariocas. Jorge Ribas acha que o que se deve fazer, antes de tudo, é chegar ao povo: “O gosto do povo é incontrolável, precisamos chegar a ele”, diz Jorge Ribas, orgulhoso, que o samba autoral feito por ele e seus colegas no estado conseguiu ir aonde nunca foi antes: “O Marco Zero já não é um altar dos deuses, fizemos show lá, e ele, até uns tempos atrás, era inacessível para o samba de Pernambuco”.

VELHA GUARDA Belo Xis: um bamba decano

O sambista, compositor e puxador da Gigantes do Samba, é um dos poucos veteranos do ritmo em Pernambuco

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que elas foram perdendo poder de fogo, deixando de receber tratamento de estrelas da festa. Não chegaram ao fausto das escolas cariocas, mas recebiam tratamento vip. Gigantes já saiu com 4 mil sambistas. “O pessoal se interessava mais em compor, porque, até 1978, a Rozenblit lançava os discos com os enredos das escolas. Depois do fim da gravadora, os admiradores da escola têm que aprender o enredo na quadra, nos ensaios”, rememora. Belo Xis conta com mais de três décadas como compositor e cantor de samba, cerca de 150 deles gravados; tem músicas com Bezerra da Silva, Leci Brandão, Djalma Pires, Sorriso Maroto, Marquinhos Satã; sua discografia foi feita quase toda por grandes gravadoras, RGE, Ariola, Continental, Sony, Band Discos. Uma prova do quanto Belo Xis é bem-relacionado entre sambistas está nas participações especiais no disco em que celebra seus 30 anos de carreira – um dos nomes envolvidos é o do caruaruense, mas desde criança no Rio, Rildo Hora, produtor de nove entre cada 10 estrelas do samba, entre elas Neguinho da Beija-Flor, Martinho

Os bons compositores afastaram-se das agremiações, à medida que elas foram perdendo poder de fogo O sessentão Belo Xis mantém a inquietude do adolescente Antônio José de Santana. Ele é dos poucos veteranos do samba pernambucano que não arredam o pé de uma agremiação. Começou na então imponente Estudantes de São José, nos anos 1960, e, atualmente, é compositor e puxador da Gigantes do Samba. Sai na passarela como quem cumpre uma obrigação a um orixá, mas cuidou de sedimentar sua carreira de cantor e compositor no início dos anos 1970. Ele é o decano dos sambistas pernambucanos, circula pela velha e nova ala de cantores, compositores pernambucanos, paulistas e cariocas, com a desenvoltura com que canta o enredo

na avenida Dantas Barreto, a passarela das escolas há quase 40 anos. A abertura da então polêmica e, hoje, conturbada avenida, e a demolição da Igreja dos Martírios, um histórico conjunto arquitetônico, são tidas por Belo Xis como marco inicial da decadência das escolas de samba: “O Bairro de São José era onde o carnaval do Recife tinha mais animação, vivia um clima de samba, com Donzelos, Saberé, Almirante, e o símbolo era Badia, no Pátio do Terço”. Com a derrubada de ruas inteiras, casas seculares, para rasgar uma avenida que “modernizaria” o Centro, muitos sambistas foram obrigados a mudar de bairro. Os bons compositores afastaram-se das agremiações, à medida

da Vila, e a Velha Guarda do Império Serrano: “O disco está quase pronto. Tem 16 faixas, apenas duas não são autorais; as outras fiz sozinho, ou com parceiros”, diz o loquaz e agitado sambista, que parece querer estar em todo lugar ao mesmo tempo, enquanto administra a Roda de Bamba 10. Tampouco se contenta em apenas abrir um show de outro sambista, sente necessidade de estar lá, participando. Foi assim, quando ajudou a produzir a vinda do mito Roberto Silva, para uma memorável noite no Clube das Pás, há três anos. À época, com 88 anos Silva desfiou com voz firme e forte clássicos como Normélia, Juracy e O escurinho, com Belo Xis no backing vocal, nem esperado, e muito menos ensaiado. José Teles

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conflitos Um passado de preconceitos

Para poder se firmar em Pernambuco e conquistar o gosto popular, entusiastas do ritmo tiveram que enfrentar críticas na imprensa e falta de incentivo estatal

A história do samba em

Pernambuco, até tempos recentes, foi uma demorada queda de braço entre sambistas e guardiões das tradições da cultura do Leão do Norte. Para estes, o estado era dotado de manifestações culturais em número suficiente para dispensar importações, além do que também condiziam com o caráter e índole do nativo, muito mais do que os dolentes ritmos importados. O jornalista Mário Melo, que militou durante décadas na imprensa local, foi um dos mais ácidos críticos da cultura vinda de fora, sobretudo marchinhas carnavalescas e sambas cariocas. Num artigo de dezembro de 1955, no Jornal do Commercio, ele conta a origem das escolas de samba pernambucanas: “... Mais tarde, na Segunda Grande Guerra, estando aqui ancorado o Cruzador São Paulo, os marinheiros formaram uma escola de samba e vieram à rua, à moda do carnaval carioca. E, quando partiram, deixaram aguçado o espírito da imitação. Começaram a surgir escolas de samba. Era a infiltração prejudicial ao nosso folclore. Deixávamo-las à parte como quistos. Nunca filiamos nenhuma, por prejudiciais ao nosso carnaval típico”. Com “nunca filiamos”, ele quer dizer que nunca permitiu que as escolas fizessem parte da Federação Carnavalesca, criada em 1935, da qual foi fundador e dirigente. No ano seguinte, Mário Melo se desligava da entidade, porque a União

“É melhor não termos o carnaval de rua, a vermos o samba imperando em nossos logradouros” Mário Melo das Escolas de Samba de Pernambuco foi oficialmente reconhecida pelo governo municipal como integrante do carnaval do Recife. Ele pediu ao então prefeito Djair Brindeiro, por carta, o veto às escolas nas festas carnavalescas da cidade. Não foi atendido, e deu por finda sua participação como dirigente da federação. Naturalmente, o genioso jornalista não se limitou pura e simplesmente a deixar a entidade. Passou a utilizar a imprensa para tecer artigos virulentos contra o “invasor”, como o que escreveu em 17 de janeiro de 1956, no Jornal do Commercio: “... É melhor não termos o carnaval de rua, o carnaval tipicamente pernambucano, a vermos o samba imperando em nossos logradouros, aqueles indivíduos de sexo duvidoso e ademanes (sic), que horripilam a dignidade masculinidade”. Dois dias mais tarde, ele insiste em bater na mesma tecla em outro artigo sobre uma manifestação cultural que considerava emasculada: “Teremos então um carnaval amargo, pífio, descaracterizado, como foi imposto pelo interventor Demerval Peixoto, que

pretende também sobrepor-se a nosso tradicionalismo, um carnaval contrário às tradições de masculinidade pernambucana, com desajustados sexuais em vestes femininas, rebique na cara, beladona nos olhos, seios supostos, voz de falsete e ademanes suspeitos, o que como noutros lugares, mas que horripilam homens e mulheres normais”. Se tais observações preconceituosas, nos ditas atuais, seriam responsáveis por uma avalanche de processos, e cartas à redação, o que dizer de artigos assinados, há 76 anos, pelo piauiense Berilo Neves (que militava na imprensa carioca, e foi um dos precursores da ficção científica no Brasil)? Adversário feroz do samba, em um dos seus artigos, de 1935, publicado no JC, ele destratava impiedosamente o gênero musical, que tratava por “batuques de negros”, e, lá pelo meio do texto, tecia o comentário: “Com a vitória do batuque dos negros, quem sofre é o país, quem sofre é a nossa paciência, quem sofre são as donas de casas, visto que nossas melhores cozinheiras trocaram a cozinha pelos microfones”. Em outro artigo, Berilo Neves foi virulento contra seu alvo predileto, as cantoras de rádio, definidas por ele como “mulatas ou semimulatas de cabelos insubmissos”, e sugeria: “O país está no dever de fazer voltar à cozinha certas estrelas cafuzas, que enchem de mau hálito os estúdios do nosso rádio, espalhando pelo mundo inteiro a florescência patológica musical dos morros”.

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Enquanto isso, o sociólogo Gilberto Freyre, que costumava discordar das ideias do primo Mário Melo sobre cultura, via com outros olhos as escolas: “...talvez do encontro não fortuito, mas profundo, do samba carioca com o frevo recifense resulte uma inesperada combinação nova, deliciosamente brasileira, de dança e de música...”. Ironicamente, 10 anos mais tarde, inconformado com o sucesso das escolas no carnaval do Recife, ele escreveria um irado artigo intitulado: Pernambuco, sim, subcarioca, não. Provavelmente, como arguto observador dos costumes e manifestações culturais, ele tenha notado que as primeiras escolas de samba do Recife abrigavam nuances não comuns “às congêneres do Rio. Utilizavam-se de instrumentos de sopro, e de um inusitado hino-regresso, ou “samba-regresso”, conforme noticiava o Diário da Noite, em 1956, anunciando um pioneiro festival de escola de samba, promovido pela Sociedade Folclórica de Apipucos, com 20 escolas, e realizado na semana précarnavalesca: “... escolas de samba se apresentarão cantando o hino regresso de cada uma delas. Integrando o show, um coro de mil vozes entoará o samba Praça onze (Herivelto Martins/Grande

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Em 1959, o cantor Claudionor Germano lançou o álbum Sambas de Capiba, ignorado pela crítica especializada Othelo). O festival será encerrado com um baile animado por duas das melhores orquestras do Recife”.

AGREMIAÇÕES

Inovações no samba, aliás, não eram incomuns em Pernambuco. Em 1924, o “velho” Raul Moraes, segundo os jornais da época, já tentava recriar o samba: “O conhecido musicista acaba de tirar da forja um intermezzocarnavalesco rag-step-samba, ao qual deu o nome de Pierrot e pierrette”. Infelizmente, Pierrot e pierrette não foi gravado, como não foi a maioria das composições de autores pernambucanos nas duas primeira décadas do século 20. Assim, não se conhece o samba composto por Edgar Ferreira, em 1937, para a Turma Boa, de Afogados (o mesmo Edgar Ferreira de 1x1, 17 na corrente, e Forró em Limoeiro, sucessos de Jackson do Pandeiro), portanto, bem antes da Segunda

Guerra, como assinalou Mário Melo. As “turmas” foram os embriões das escolas de samba pernambucanas. Outra agremiação carnavalesca contemporânea da Turma Boa era a Turma Quente, de Água Fria, que saiu às ruas do bairro pela primeira vez em 1937, fundada por um grupo de amigos, entre eles Waldomiro Silva, Guilherme Brás, Olímpio Ferreira da Silva, José Marques da Silva e Luís Ferreira Franco. Dona Confiança, uma das integrantes da turma, contou, ao Diário da Noite, em 1966: “Saímos batendo lata. Em 1938, desfilamos naquele subúrbio com outro nome, Garotos do Céu”. A Garotos do Céu seria rebatizada, em 1941, de Gigantes do Samba. As turmas, ainda esboços de escolas de samba, eram vistas, quando muito, como uma curiosidade. Os cronistas carnavalescos, de então, nem sabiam em qual categoria encaixá-las. No entanto, quando engrossaram suas fileiras com admiradores e passistas, começaram a ser consideradas por muito mais gente como um corpo estranho no reinado de Momo. Nos programas de música carnavalesca das rádios recifenses eram proibidos gêneros “alienígenas”, ou seja, marchinhas e sambas. A xenofobia e protecionismo chegou ao paroxismo

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tom cabral/fundarpe/divulgação

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de os foliões vaiarem os alto-falantes da Rua Nova, ao ouvirem sair deles sucessos do carnaval carioca. Mas, na medida do possível, os sambas foram aturados, até porque era praticamente impossível impedir que chegassem ao conhecimento do público. Antes mesmo de emissoras como a Rádio Nacional alcançarem o país inteiro, vendiam-se partituras, e discos de 78 rotações, anunciados nos jornais.

ROUPA SUJA

Em 1959, o cantor Claudionor Germano lançou, pela Rozenblit, o álbum Sambas de Capiba, sem críticas dos defensores das tradições pernambucanas, que continuavam a fustigar o samba infiltrado no carnaval da terra. Vale lembrar que Capiba, ainda morando na Paraíba, venceu seu primeiro concurso de música, promovido pela revista carioca O Malho, em 1930, com o samba Não quero mais, parceria com João dos Santos Coelho. Aliás, uma das mais acirradas discussões públicas entre os dois mais populares autores da história do frevo, Capiba e Nelson Ferreira, teve o samba como pivô, e desaguou numa “lavagem de roupa suja”, com réplica e tréplica publicadas pelo JC. Começou em janeiro de 1964, quando Nelson Ferreira dizia

não entender por que tanto samba no carnaval pernambucano. Dias mais tarde, Capiba comprou a briga – era favorável ao samba. A polêmica resvalou para o pessoal, nos últimos artigos. A popularidade cada vez maior das escolas do Rio certamente influenciou no crescimento das escolas recifenses, apesar de todas as barreiras erguidas contra elas. Mesmo admitidas entre as manifestações oficiais da cultura do carnaval pernambucano, as escolas tinham direito a apenas 5% das verbas destinadas às agremiações carnavalescas. Uma maneira sutil de cerceá-las, pois quanto mais agremiações, menos dinheiro receberiam. Políticos e bicheiros passaram a contribuir com o samba. Em 1965, elas já saíam com 400, 500 integrantes. Em 1966, a pesquisadora norte-americana Katarina Real, no livro O folclore no carnaval pernambucano, alerta para a ascensão das escolas de samba. Segundo ela, a classe média era favorável a essas entidades, e os próprios integrantes dos clubes de pedestres desfilavam nestes e também nas escolas. A tese da norte-americana (falecida em 2006) parecia haver se confirmado, quando revisitou o carnaval recifense, no final dos

3-4 embate Capiba passou a defender o samba nos jornais, após Nelson Ferreira criticar a presença do ritmo no carnaval pernambucano 5 subordinação No início, as escolas de samba locais tinham direito a apenas 5% das verbas destinadas as agremiações

anos 1980, época em que começou o declínio das agremiações de samba no estado. Em 1989, as escolas recifenses do primeiro grupo foram para a avenida Dantas Barreto, com até 2.500 integrantes. Dez anos mais tarde, as escolas estavam à beira da falência. Neste início do século 21, elas são um pálido reflexo do passado glorioso, quando traziam artistas famosos do Sudeste, e contratavam carnavalescos do porte de Joãozinho Trinta. Hoje, desfilam graças a alguns abnegados: “Falta apoio. A prefeitura libera R$ 10 mil, uma escola média precisa de, pelo menos, R$ 50 mil só para as fantasias”, comenta o sambista Belo Xis, que já foi puxador da Estudantes de São José, e há alguns anos está na Gigantes do Samba, vencedora dos últimos desfiles, sendo a única que tem sede, na Bomba do Hemetério, e fatura com os pagodes que ali promove. Porém sua supremacia se deve, antes de tudo, à debilidade das concorrentes. (Jt)

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JaSoN gardNEr

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História CARnAvAl Mulheres erguem o estandarte No universo das agremiações carnavalescas, tradicionalmente dominado pelos homens, elas se destacaram ao criar grupos a partir das entidades trabalhistas, já em fins do século 19 TEXTO Gilson Oliveira

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divulgação

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História

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Fundada em 2 de fevereiro de 1889, mais de sete meses antes da Proclamação da República, a Troça Carnavalesca Mista Verdureiras de São José não teve, obviamente, influência sobre esse episódio histórico, assim como a criação do Clube Carnavalesco Misto Pás Douradas, em 19 de março de 1888, não repercutiu na Abolição da Escravatura, acontecida quase dois meses depois. Mas uma observação mais atenta do panorama social e político da capital pernambucana no final do século 19 mostra que existe uma relação profunda entre esses fatos, e também entre eles e o surgimento de um dos ícones sonoros de Pernambuco – que teve como berço os clubes carnavalescos. “O movimento popular, que culmina com a denominação de frevo, nasce da realidade dos conflitos sociais das ruas do Recife, ao longo do século 19. Suas origens remetem às lutas e resistências. Os pernambucanos que reivindicavam a libertação dos escravos, a expulsão dos portugueses e a Proclamação da República foram os mesmos atores sociais que propiciaram

Muitas das agremiações surgiram num contexto de agitação político-social e de discriminação de gênero o surgimento do frevo”, diz a escritora e pesquisadora recifense Cláudia Lima, no artigo Um movimento popular chamado frevo. Essa visão é compartilhada pela pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Rita de Cássia Barbosa de Araújo, que afirma no ensaio Carnaval do Recife: A alegria guerreira: “O frevo seria, por um lado, o produto cultural mais bem-acabado e capaz de expressar o espírito de luta e rebeldia que tanto motivou o pernambucano ao longo de todo o século 19”. Foi, portanto, em um ambiente de grande agitação político-social, no qual a discriminação por gênero era tão radical quanto a econômica e a cultural, que surgiram, por volta de 1880, muitas agremiações

carnavalescas com denominações alusivas às mulheres. A maioria está extinta há muito tempo e praticamente não existem informações sobre elas, o que torna difícil afirmar que eram integradas exclusivamente pelo sexo feminino. Mas há quem garanta que muitas eram. É o caso da Verdureiras de São José. “Ela foi criada por mulheres que vendiam verdura no Mercado de São José”, afirma Maria Graciete, atual presidente da agremiação, acrescentando que a troça passou muitas décadas inativa e só voltou a atuar em 1985, a partir do incentivo de lideranças femininas como Badia, figura lendária da folia recifense, cuja casa, no Bairro de São José, centro do Recife, era uma espécie de quartel-general da folia no local. Como as classes trabalhadoras começavam a se organizar e as entidades trabalhistas passaram a manter uma estreita relação com os clubes, elas batizaram as agremiações a partir de suas atividades profissionais. Assim, surgiram, além da Verdureiras, a Parteiras de São José, Engomadeiras e Cigarreiras Revoltosas, entre outras.

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Página anterior 1 MARIVALDA DOS SANTOS

Entre os sonhos realizados pela costureira e presidenta do Estrela Brilhante, está a turnê que o maracatu nação fez pela Europa

Nestas páginas 2 NOVA GERAÇÃO

A irreverência feminina está presente em agremiações olindenses, como Hoje a Mangueira Entra

3 DONA SEVY “Os homens, antigamente, só nos aceitavam como costureiras”, lembra a presidente do bloco Pierrot de São José

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O mesmo espírito profissional orientou os batismos na área masculina, como demonstram não só o clube Pás Douradas (dos carvoeiros), o Vassourinhas (varredores) e outros, cujos nomes deixavam bem explícitas as atividades às quais estavam ligados, a exemplo de Carpinteiros, Marceneiros, Sapateiros e Funileiros. Na época em que surgiram essas agremiações, as camadas populares estavam voltando a participar da folia, o que, desde 1822, tinha sido reprimido pelas autoridades públicas,

principalmente na forma de entrudo – folguedo carnavalesco trazido para o Brasil pelos portugueses e caracterizado pela violência e falta de limites, com os foliões jogando coisas uns contra os outros, desde goma e pó de mico à fuligem e urina. Denominadas “clubes pedestres”, porque todo o desfile era feito a pé, as agremiações ligadas às classes pobres tinham como contraponto os “clubes de alegoria e crítica”, que haviam surgido a partir de 1855 e durante mais de duas décadas dominaram

os folguedos momescos do Recife. Ligados às sociedades carnavalescas, criadas pelas classes mais abastadas, essas agremiações eram inspiradas no carnaval europeu e tinham como ponto alto de suas festas o desfile de luxuosos carros alegóricos. Para tornar a folia ainda mais “civilizada”, a burguesia importou os bailes de máscaras de Veneza, Roma, Paris e Nice. Todo esse glamour, somado ao desprezo das elites, às críticas dos jornais e à repressão policial, não inibiu o povão de botar o bloco na rua,

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e as agremiações se multiplicaram rapidamente, sobretudo depois da Abolição. Como sempre, os desfiles eram acompanhados por fantasias de diabos, morcegos e outros bichos e arrastavam todo tipo de gente: vadios, moleques de rua, prostitutas e grupos de capoeiristas, esses últimos formados principalmente por ex-escravos, que

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História ficavam sempre na parte da frente dos desfiles e revidavam com violência a qualquer crítica feita a seus clubes. Com relação a esses brigões, é interessante ressaltar que ficaram na história também por terem colaborado com a criação de um novo tipo de música e de dança. É o que defende Valdemar de Oliveira, no livro Frevo, capoeira e passo, argumentando que o gingado dos capoeiristas influenciavam os músicos das orquestras das agremiações, levando-os a acelerar o ritmo das obras executadas, e, em contrapartida, a música interferia na evolução dos lutadores, criando original e frenética coreografia. Os nomes das modalidades do passo (“tesoura”, “dobradiça”...) e os títulos de alguns frevos de rua (Arengueiro, Satanás na onda...) esclarecem sobre a origem capoeirística de ambos. Quanto aos demais participantes dos clubes pedestres, embora admirassem a pompa da Mi-Caréme e do Bal-masquê – os desfiles de carros alegóricos e os bailes da burguesia – tratavam com ironia a folia burguesa. Uma ilustração disso está na fala da negra Isaura, do romance O moleque Ricardo, de José Lins do Rego: “Carnaval de bloco não presta, não presta não. É colégio. Ninguém pode sair de forma”, palavras que parecem repercutir na observação de Olga von Simson, pesquisadora da Unicamp, no estudo Mulher e carnaval: mito e realidade, no capítulo em que analisa a participação feminina nos antigos carnavais de São Paulo e do Rio de Janeiro: “tanto nos desfiles processionais (formados por grandes carros alegóricos ou de crítica, animados por banda de música e abertos por comissões

equestres), como nos animados bailes de máscaras, as mulheres de família não podiam tomar parte ativa, ficando restritas à situação de espectadoras da folia de Momo”. Na esfera dos maracatus nação ou de baque virado (o maracatu rural ou de baque solto surgiria depois) as mulheres sempre marcaram forte presença, nas figuras de rainhas e princesas, mas a visão que a sociedade tinha delas, como dessa manifestação cultural de maneira geral, pode ser avaliada por um artigo publicado no jornal A Província, de 1877, e reproduzido pelo pesquisador Evandro Rabello, no livro Memória da folia: o Carnaval do Recife pelos olhos da imprensa. Diz o texto: “Maracatu é uma coisa infame, estúpida e triste! Estamos todos de acordo, mas por quê consentimos nisto? Pois o povo (que é povo senão um horda de escravos vadios, que faz o maracatu) não pode divertir-se

Uma das primeiras a participar de agremiações foi Joana Batista Ramos, autora da letra da Marcha nº 1, do Vassourinhas pelo carnaval, de um modo menos estupidamente infame e triste, degradante e incômodo?”.

BLOCOS MISTOS

O sexo feminino procurou ampliar cada vez mais seu papel na criação, organização, preservação e evolução das agremiações e dos festejos carnavalescos, mas inicialmente a reação masculina era forte: “Os homens, antigamente, só nos aceitavam como costureiras”, lembra a presidente do Bloco Carnavalesco Misto Pierrot de São José, Dona Sevy Caminha, 75 anos, baseando sua afirmativa, principalmente, na tradição oral dos muitos clubes pelos quais passou. Em Pernambuco, uma das primeiras a romper esses limites foi Joana Batista Ramos, autora da letra original da Marcha nº 1 do Clube Vassourinhas, mais famoso frevo

A invenção das foliãs olindenses Na antiga capital pernambucana, a presença feminina no Carnaval é cada vez mais, pode-se dizer, gigantesca. E não apenas pelo crescimento do número de bonecas gigantes, que, incorporadas à folia olindense em 1967, com a criação de A Mulher do Dia, somam dezenas. Uma das principais justificativas ao adjetivo é a multiplicação de agremiações fundadas e dirigidas por mulheres, embora nem todas ostentem isso nos seus títulos. Uma das pioneiras foi Laura Nigro, hoje nome de praça no sítio histórico da cidade. Falecida em 2007, aos 98 anos, ajudou a fundar algumas das mais famosas agremiações olindenses, como Pitombeira dos Quatro Cantos, Flor da Lira e Olinda, Quero Cantar, esta, em homenagem ao marido Clídio Nigro, autor da música do Hino do Elefante de Olinda, cujos versos costumam ser cantados por milhões de vozes durante a folia: “Olinda, quero cantar/ a ti esta canção”. As mulheres também estiveram à frente de alguns dos grupos mais irreverentes do carnaval pernambucano. É o caso do Siri na Lata, surgido em 1976, em plena ditadura militar, com o objetivo de, como diziam as organizadoras, “falar mal do governo”. Tendo como sede o extinto bar Maconhão, não é preciso dizer que seus desfiles naqueles tempos eram considerados “caso de polícia”. Outra agremiação que, nos anos de chumbo, sempre desfilou “escoltada” é o bloco Segura a Coisa, que tem entre as fundadoras a cineasta Andreia Mota, a pesquisadora Pii e a cantora Miúcha (ambas irmãs de Chico Buarque). Miúcha é autora do hino: “Segura a coisa que eu chego já/ (...) / o bumba batendo levantado a fumaça/ o bloco contente com a massa”. Atualmente, a irreverência feminina está cada vez mais presente em agremiações exclusivas, a exemplo de I Love Cafusú e Hoje a Mangueira Entra, que, devido ao nome (na verdade, uma homenagem à Mangueira, do Rio, que entra na passarela no domingo, mesmo dia em que as olindenses desfilavam), fez, inicialmente, os maridos das integrantes dizerem frases do tipo: “A mangueira hoje entra na rua e, em casa, o pau come!”. (GO)

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4 CABOCLINHOS Presidente do Oxóssi Pena Branca, Zuleide Alves integrava-se ao samba até ser conquistada pela cultura indígena

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pernambucano, que tem música de Matias da Rocha. Pouco se sabe sobre a vida de Joana, muito menos como conseguiu ser aceita como compositora, uma vez que a produção musical das agremiações sempre foi reduto masculino. Exemplo dessa realidade, ainda nos dias de hoje, foi dado por Dona Ivone Lara, da carioca Império Serrano, que, apesar de ser conhecida em todo o Brasil, se sentiu discriminada em sua escola, chegando a dizer, como registra o já citado estudo da pesquisadora Olga von Simson:“Começaram

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História a fazer política contra mim. (...) Achavam que mulher não deve tomar parte da ala dos compositores”. Como musas, a relação das mulheres com a música, dentro e fora da folia, também sempre foi cheia de contradições. Ao mesmo tempo em que eram tratadas como “estátua majestosa” (Rosa, de Pixinguinha e Otávio de Souza), viraram alvo de versos como: “Que mulher indigesta, / merece um tijolo na testa” (Mulher indigesta, Noel Rosa); “Esta mulher/ há muito tempo me provoca/ dá nela! dá nela!/ É perigosa/ fala mais que pata choca / dá nela! dá nela!” (Dá nela, Ary Barroso); e “Às vezes, passava fome a meu lado/ e achava bonito não ter o que comer” (Ai, que saudades da Amélia, Ataulfo Alves e Mário Lago, grande sucesso no Carnaval de 1942). Um velho sonho das mulheres de classe média, o de brincar o Carnaval de rua, tornou-se realidade no Recife com a criação dos blocos carnavalescos mistos (misto expressa exatamente a oficialização da participação feminina e seria incorporado também pelas troças e clubes de frevo). Os mais antigos grupos do gênero em atividade são Madeira do Rosarinho, de 1926, e Banhistas do Pina e Batutas de São José, de 1932 – mesmo ano em que as mulheres adquiriram o direito de votar. Quem morava nessa época na cidade era a menina Clarice Lispector, que anos depois diria no conto Restos do Carnaval: “E quando a festa já ia se

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O sonho das mulheres de brincar o Carnaval tornou-se realidade no Recife com a criação dos blocos mistos

aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse, de botão que era, em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”.

Pelo menos na área carnavalesca, faz muito tempo que as mulheres chegaram à presidência. Em Pernambuco, elas já estão no comando de agremiações como clubes de frevo, troças, blocos líricos, bois de carnaval, caboclinhos, tribos de índios, maracatus, escolas de samba, afoxés e ursos. Além de organizar ensaios e desfiles, muitas ampliaram o papel social dos clubes, oferecendo desde variadas atividades recreativoculturais a cursos de informática, buscando, entre outras coisas, colaborar para que os jovens não se envolvam com a marginalidade. Ao longo do tempo, também têm se multiplicado, em vários setores, os grupos formados exclusivamente pelo

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5 liderança

Vice-presidente do Clube das Pás, Zene dos Anjos Bezerra é a primeira mulher a exercer essa função na agremiação

sexo feminino, a exemplo das Traquinas de São José, fundado em 1977 e considerado o primeiro grupo de samba do Brasil formado só por mulheres; a Orquestra 100% Mulher, também do Recife, e o maracatu Conxitas, de Olinda. Foi em 1978 que Dona Sevy Caminha criou o Bloco Pierrot de São José, que ainda hoje tem sede em sua casa e é dirigido em conjunto com seus familiares. Segundo ela, a fundação do bloco foi uma forma de colocar em prática, com liberdade, uma série de projetos carnavalescos surgidos quando ainda era bem jovem. Atual vice-presidente do Clube das Pás – a primeira a exercer essa função na agremiação –, Zene dos Anjos Bezerra só começou a se

O Traquinas de São José é considerado o primeiro grupo de samba do Brasil formado só por mulheres envolver com a organização dos festejos carnavalescos em 1978, quando ficou viúva. Residente em Boa Viagem e formada em Relações Públicas, Zene diz que, no início, sofreu muitas críticas da família e de amigos, mas hoje eles até vibram com o seu sucesso. Uma de suas mais gratas recordações é a apresentação

da agremiação na sede da Mangueira, no Rio de Janeiro, e, em seguida, pelas ruas de Niterói, em 2007. Carnavalesca desde criança, Zuleide Alves, presidente do Caboclinhos Oxóssi Pena Branca, diz que sempre viveu na área do samba, mas terminou “virando a cabeça” pela cultura indígena, tanto pelo lado profano como pelo sagrado. Embora às vezes desanime pelas dificuldades de manter a agremiação, que tem como vice-presidente Kátia Xavier, Zuleide avalia que tem crescido o apoio governamental aos carnavalescos, que antigamente “viviam mendigando”. Um dos grandes feitos do Oxóssi nos últimos tempos foi a apresentação, em 2009, na cidade de Floresta, sertão pernambucano. “Os tambores acariciam a noite, Sinhá Marivalda acordou”. Esses versos de uma música do cantor e compositor Silvério Pessoa são apenas uma das homenagens que a presidente do Maracatu Estrela Brilhante, Marivalda dos Santos, tem recebido nos últimos tempos, devido ao trabalho cultural e social que vem realizando. “Um dos meus sonhos é continuar ajudando a comunidade e, com o apoio da família, fazer um Carnaval cada vez melhor”. Entre os sonhos já realizados por Marivalda, que desde os 12 anos trabalha como costureira, está a excursão que o Estrela Brilhante fez por países da Europa. Para dar maior visibilidade à participação das mulheres na preservação e condução das manifestações culturais da folia da cidade, a Prefeitura do Recife pretende lançar, no início de março deste ano, um livro com perfil de 30 carnavalescas. Escrito pela produtora cultural e professora da UFPE Claudilene Silva, a obra, cujo título provisório é Mulheres do Carnaval do Recife, focaliza lideranças femininas do presente e do passado, como Badia, Dona Ivanize de Xangô e Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante (fundado em 1880), que, durante o Estado Novo, foi uma das grandes lutadoras contra a perseguição que os governos Vargas e Agamenon Magalhães promoveram contra as manifestações culturais de origem africana.

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URBANISMO A história que está sob nossos passos De influência ibérica, as calçadas do Recife vêm acompanhando, desde o século 19, o desenvolvimento paisagístico e socioecônomico da cidade texto Raquel Monteath Fotos Tiago Lubambo

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Pernambucanas O solo urbano adquire sentido social na sua potencialidade de gerar ambiente construído (Vera Milet, em A teimosia das pedras)

Rosáceas, flor de lótus, botões

de tulipa e folhas de acanto. Não, você não está diante de um jardim, e, sim, em plena urbe, movimentada e complexa, com todos os elementos que uma metrópole pode apresentar. A atmosfera fitomórfica em questão é encontrada em um componente urbano pouco (re)conhecido por moradores e turistas que transitam pelas ruas do Recife: suas calçadas. Em nosso movimento diário de ir e vir, que realizamos quase de forma automática, é difícil perceber a beleza por trás, ou, mais precisamente, abaixo dos nossos pés, quando passamos apressados por diversos edifícios e pessoas até chegarmos ao destino da vez. Sobre as calçadas, a infraestrutura e os espaços de convivência de uma

cidade compartilham os mesmos caminhos. Resistir talvez seja o verbo que melhor caracterize a condição delas, que guardam tantas histórias entre suas pedras quanto qualquer outra manifestação arquitetônica de grande valor. Uma a uma, elas constituem o espaço público, esbanjando de forma bastante própria a relação entre o aspecto social e o urbano-paisagístico de uma cidade. “O valor de uma cidade se mede, essencialmente, pela qualidade de sua rede de espaços públicos. A rua é o elemento primário dessa rede, e as condições para a circulação das pessoas revelam, em parte, as características sociais de uma sociedade”, pontua a arquiteta e pesquisadora Amélia Reynaldo. O espaço público tem sido referência desde o século 19, quando o Recife abriu seus portos, atingindo importância nacional no mercado

algodoeiro. O aumento na demanda de mercadorias, as condições de moradia e o crescimento populacional nos arredores do porto repercutiram numa série de transformações para a cidade, inclusive de revitalização do Bairro do Recife, que sempre fora repleto de ruas estreitas e de casas conjugadas. Com as diversas reformas do centro, incluindo demolições de estruturas como arcos, pilares e pisos de igrejas (como foi o caso da Igreja do Corpo Santo, destruída em 1914), muitas pedras foram reaproveitadas na confecção de meio-fios no calçamento do bairro. “Tiveram que pagar uma indenização ao bispo pela demolição da igreja, porque era preciso abrir as três avenidas principais (Rio Branco, Marquês de Olinda e Alfredo Lisboa) para melhor circulação das mercadorias e do fluxo de pessoas. Foi basicamente uma decisão tecnológica, pois se vivia o processo de modernização do porto”, afirma o arquiteto Geraldo Santana. Com a abertura dessas três avenidas, a criação de ferrovias, o melhoramento nas condições de saneamento e os primeiros calçamentos das ruas,

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1 FLORAIS A composição presente na avenida Rio Branco lembra a forma de um ponto de cruz, que remete ao estilo art nouveau 2 RUA NOVA Blocos intertravados de cimento foram utilizados em substituição às pedras portuguesas, sob o argumento de melhoria do acesso à área comercial

o Recife passava definitivamente por uma “fase de modernização”, e as calçadas foram destinadas a passeios públicos. “Em toda cidade, calçar os espaços não construídos e margeados de construções foi tanto um ato de modernidade como também disciplinador da circulação dos veículos. As calçadas delimitadas pelo meio-fio e acima do leito carroçável marcam a diferenciação entre os espaços ditos ‘vias públicas’, ou seja, garantem a segurança do pedestre”, pontua Amélia.

PRETO NO BRANCO

O contraste das duas cores é característica singular dessas calçadas, compostas por pedras portuguesas que vieram em carregamentos de navios. Os desenhos em basalto (parte preta) e calcário (parte branca) são aplicados em sequências, formando um padrão que passa a ideia de fluidez. “Essas calçadas de pedras brancas e pretas, bastante encontradas em Lisboa, são uma transposição europeia. A combinação de cores parece ter sido reconhecida pela cultura urbanística brasileira como um padrão local de revestimento”, explica a arquiteta. Rapidamente, essa estrutura foi espalhada pelos espaços destinados à circulação de pedestres das principais cidades brasileiras, como no caso do famoso calçadão da avenida Atlântica, em Copacabana, motivo português que fora adaptado e agigantado na década de 1970 pelo paisagista Burle Marx. O estilo encontrado nas calçadas do bairro do Recife é o eclético. Seus moldes vazados imprimiram em suas ruas a diversidade da arte decorativa, embelezando fachadas de edifícios importantes e compondo os detalhes que pertencem ao patrimônio 2

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3 flor-de-lis Variações do motivo floral fazem parte do universo eclético encontrado no Bairro do Recife 4 PRAÇA OSWALDO CRUZ Desenho de Geraldo Santana, datado dos anos 1970, é recorrente nos espaços públicos da cidade

artístico da cidade. Apesar da forte influência ibérica, os desenhos prezam por certa propriedade no traçado. Isso se deve a um concurso realizado pela Prefeitura do Recife, em 1969, no qual os projetos dos arquitetos cariocas H. J. Cole e WitOlaf Prochnik e o do pernambucano Geraldo Santana foram aprovados e implantados nas ruas da cidade. “Numa pesquisa sobre os desenhos feitos em Portugal, identifiquei que os ornamentos eram, em sua maioria, oriundos do elemento fitomórfico, compostos por curvas de 50 cm de raio, que se seccionam, ora formando pontas de folhas, ora de pétalas”, comenta o arquiteto, que exerceu, durante 30 anos, a atividade de

técnico da Agência de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco. Munido desses dois elementos, o projeto de Geraldo Santana foi composto por 15 motivos florais, sendo utilizados como base estética aplicada no Recife ao longo desses 42 anos. “No concurso, utilizei a flor-de-lis enquanto matriz por ser uma flor tríplice, ou seja, seu desenho possibilita desdobramentos centrais e em ambos os lados”, completa. Essa diversidade foi aplicada por paisagistas e arquitetos em praças da cidade, como a Osvaldo Cruz, a de Casa Forte, e a do Arsenal da Marinha. Nessa última, por exemplo, o desenho foi agigantado, resultando num modo mais compatível com o tamanho médio do passo das pessoas, que, na concepção do arquiteto, andariam pelas calçadas com um sentido lúdico, como se caminhassem brincando. “Os mosaicos, à semelhança dos tabuleiros de xadrez, e de alguns jogos infantis riscados no chão, seriam as matrizes ancestrais das nossas calçadas de pedra portuguesa. Utilizei-os, nesse caso, para simplificar a execução da obra, visando tanto garantir a padronização

Apesar da forte influência ibérica, os desenhos das calçadas do Recife prezam por certa propriedade no traçado das calçadas, como também evitar erros grosseiros nos desenhos, porque, no que deforma, nega um dos conceitos básicos em comunicação visual, que é o de zelar pela indeformabilidade do traço”, afirma. A principal dificuldade enfrentada por ele foi a adaptação do traço aos solos recifenses. O mau detalhamento do projeto de alguns logradouros, feito por desenhistas e empreiteiros da prefeitura, deformaram certos desenhos na sua essência geométrica. “O caso mais grave ocorreu nos anos 1980, nos passeios do entorno do Museu da Cidade, no Forte de Cinco Pontas, pela grosseira introdução de um segmento reto, rompendo o princípio geométrico regulador”,

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aponta o arquiteto. Como as ruas fazem curvas irregulares, em certas praças, só foi possível adaptar o desenho “quebrando” um pouco seu traçado na hora da aplicação. “Os desenhos, numa malha de quadrado e hexágono, não sofreriam grandes alterações, mas, na hora da execução, o operário é orientado a adaptar, ajustar, assim como as costureiras fazem com o tecido”, compara Geraldo.

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MÁ CONSERVAÇÃO

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“A calçada é o espaço da riqueza e da miséria. Parece que elas ocupam uma suposta invisibilidade ou irrelevância, cuja materialidade só é parcialmente percebida e recuperada quando nela se tropeça”, opina a professora, doutora em Geografia, Edvânia Torres, da Universidade Federal de Pernambuco. Sobre esse aspecto, alguns erros e descasos foram cometidos tanto na manutenção quanto na restauração dos passeios públicos, comprometendo a história e a estética das pedras portuguesas. Os blocos intertravados de cimento são a opção comumente utilizada e econômica para remendos – com exceção de situações em que fenômenos naturais tenham debilitado a via pública, alterações de nivelamento e da manutenção de rampas nos cruzamentos. A Lei Municipal 16.890, de 2003, indica que são os proprietários e ocupantes dos estabelecimentos que devem fazer a manutenção de toda e qualquer alteração nas calçadas, o que pode ser considerado uma medida insuficiente quando se trata de um bem comum

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5 FITOMÓRFICA Composta por três folhas de acanto, o motivo é uma composição da flor-de-lis

a todos do município. “As calçadas são como corredores de fluxos de riquezas que movem os interesses do capital urbano, de forma cada vez mais incisiva. O desafio é discutir formas de corresponsabilidade, pois a calçada não é de ninguém, especificamente, mas, sim, interesse de todos, mediado pelo poder do estado”, opina a geógrafa. A pretexto de atender certas exigências de acessibilidade, um dos exemplos de descaso com esse bem público aconteceu na gestão do prefeito João Paulo Lima, em que oito quilômetros de pedras portuguesas legítimas do calçadão da praia de Boa Viagem foram trocadas.“Acho que há um lamentável descuido do poder público tanto na conservação, manutenção e preservação das calçadas antigas do Recife como na divulgação de sua importância, que, em suma, é um dos mecanismos de preservação. A grande maioria da população foi contra a substituição da calçada de pedras portuguesas da Avenida Boa Viagem: guardando as devidas proporções, as velas das jangadas deslizando sobre o mar estavam para o Recife assim como as ondas da calçada de Copacabana estão para o Rio de Janeiro”, defende Amélia Reynaldo.

6 ROSÁCEA A sequência, localizada à avenida Marquês de Olinda, compõe uma forma mandalística 7 ORGÂNCIO Na fachada do cinema São Luiz, a calçada dialoga com o projeto arquitetônico moderno do espaço cultural

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esculturas Animais nascidos de troncos e galhos

José Bezerra conta que ergueu seu museu mágico depois de uma revelação em sonho e de ter vivido como andarilho pelo Sertão. Ele se considera um homem rico que vive da própria criação artística texto Danielle Romani Fotos Léo Caldas

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O artista plástico José Bezerra

tem um repertório de histórias que deixam o visitante embasbacado, encafifado. Jura já ter avistado – bem em frente à sua casa-ateliê, na estrada que margeia o Parque Nacional do Catimbau – o Motoqueiro sem Cabeça, figura lendária, temida por vários moradores do lugarejo perdido no meio do sertão pernambucano. “Quando ele (o motoqueiro) vem, a gente só vê o farolzão da moto e aquele rastro de fogo. É coisa rápida, depois some!”, conta Bezerra, sem nenhuma cerimônia, como se estivesse comentando sobre um corriqueiro encontro com alguém das redondezas. O Motoqueiro não é a única entidade a fazer parte desse mundo mágico, com um quê de realismo fantástico, impregnado na pessoa e na obra do artista, que habita a zona rural da pequena vila do Vale do Catimbau, distrito de Buíque, distante 280 km do

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Recife. Nas suas jornadas pelo mato, garante, ainda, ter se deparado com personagens de um cortejo-fantasma, que aparecem e desaparecem na frente dos passantes num piscar de olhos, e com várias outras entidades lendárias do imaginário nordestino, a exemplo do fogo corredor e dos caiporas. Lendo esses relatos, de longe, na cidade, qualquer um vai duvidar da veracidade e lucidez do misto de artista e visionário. Mas frente a frente, olhos nos olhos de José Bezerra, instalado no seu ateliê batizado de Jardim das Esculturas, sob um céu de azul deslumbrante e um sol de rachar coquinho, que pontua toda a extensão do Catimbau, qualquer cidadão, por um segundo, pode se dar ao luxo de pensar que, diante de tanta beleza, de tanta coisa que a vida não explica, há fatos que devem apenas ser aceitos...

SAGA FICCIONAL

Afinal, a própria trajetória de Zé Bezerra, 58 anos, é um desses enigmas. Destino, golpe de sorte ou magia divina? Certamente, algo súbito, pois, caso contrário, como explicar que

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um cidadão analfabeto, desvalido de posses ou amigos influentes, sem profissão, sem formação e, ao que tudo indicava, com um futuro anódino, tornou-se, de repente, aos 40 anos, um reconhecido artista plástico, dono de uma indiscutível originalidade, que o faz, atualmente, ser convidado por importantes galerias de arte do Nordeste e do Sudeste do país, além de ter inúmeros trabalhos enviados para o exterior? “Era pobre, virei rico. Era ninguém, virei um artista”, gaba-se o pequeno e agitado homem, que cativa com sua fala fácil. A vida de José Bezerra Santos Filho, permite muitos elos com a ficção. É uma paródia às aventuras armorialistas de João Grilo e Chicó, do Auto da

Compadecida, ou do lendário Pedro Malazartes. Um destino digno dos mais nobres e valentes heróis sertanejos, capazes de driblar as agruras e rudeza da dura existência local, e serem felizes. Natural de Buíque, filho de um barbeiro e de uma costureira pobres, jamais foi para a escola, e seguiria a vida comum de agricultor, se aos 17 anos não cansasse da mesmice do interior e optasse por ser um andarilho na vida. “Queria ganhar o mundo!”, conta. Andou um bocado pelas cidades sertanejas, ora assentando trilhos de trem, ora distribuindo leite, ora fazendo biscates. Passou fome, comeu ração de porcos, lixo, sofreu um acidente que o deixou meses na cama, foi preso, amou e se juntou com muitas mulheres, teve

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1 materiais José Bezerra utiliza ferramentas simples como facão, grosa, formão e serrote 2 ar livre O sítio do artista funciona como galeria e chama a atenção de quem passa pela região

três filhos. “Quando criança nunca tive carinho, apanhava muito, meus pais eram ignorantes, rudes. Adulto, morei na rua, passei muito aperreio, muita fome”, lembra Bezerra, que também caiu nos “braços da cachaça”, e passava 24 horas bebendo, até “beijar o chão”. E quando tudo parecia estar perdido, como estivera para centenas de outros sertanejos, teve um sonho, uma grande revelação. “No sonho, um velho dizia que eu tinha que morar no Catimbau, no local onde eu encontraria três pedras amontoadas, (onde hoje habita, ele conta que encontrou essas três marcas) e ser artista, trabalhar com os elementos da terra, com os troncos de madeira da mata”, recorda José Bezerra, que, assim que acordou, resolveu cumprir a profecia.“Fui procurando

Nascido em Buíque, filho de barbeiro com costureira, Bezerra ganhou o mundo aos 17 anos, tornando-se artista aos 40 os galhos. Na primeira investigada encontrei uma preguiça, depois um gambá, depois um tamanduá. Aí foi só completar os detalhes, colocar um olho, uma mão, uma boca. A natureza me dá e eu aperfeiçoo o que recebo”, ensina Bezerra, que é comparado por especialistas ao polonês Frans Krajcberg, artista cujo trabalho se destaca pelo reaproveitamento de elementos colhidos da natureza, para denunciar agressões ao meio-ambiente. As madeiras naturais são transformadas em figuras de animais, com a ajuda de ferramentas simples como facão, grosa, formão e serrote, formando uma intrigante galeria, que fica exposta no quintal da casa onde

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3 FORMAS

Segundo o artista, é o formato dos galhos e troncos, encontrados na mata, que lhe serve de inspiração

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conquistada dificilmente consegue manter um grande estoque de peças no seu quintal.

indumentária

Suas únicas excentricidades, adquiridas após descobrir que a sua razão de viver era a arte, são os adereços e vestimentas que o acompanham nas exposições e contatos com o público, que tornam sua aparição uma verdadeira performance. “Depois do sonho e da visão, tive também umas intuições de como me apresentar”, conta Bezerra, que, há 12 anos, construiu o primeiro item da exótica indumentária que veste nas apresentações em público: um chapéu com fibra de palha e cabaça. O berimbau, com duas panelas de

A obra de Bezerra é comparada à do polonês Frans Krajcberg, pelo uso de elementos colhidos da natureza

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habita, e que pode ser apreciada por todos que passam pelo local. Esse seu exótico arsenal foi admirado pelo diretor, dramaturgo e autor Zé Celso Martinez, que, como muitos, durante viagem ao Catimbau, se encantou com o trabalho de Bezerra, e convidou outras pessoas para conferirem o rico universo do artista. No pacote, vieram os jornalistas, entre eles um que entrevistou o sertanejo para uma revista do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que foi vista por Vilma Eid, dona da Galeria Estação,

em São Paulo – para quem atualmente Bezerra trabalha com exclusividade. Vilma conta que, logo depois de ver as fotos e ler a reportagem, rumou para o Catimbau, somente para conversar com o artista, de quem se tornou agente. A rotina de trabalho não obedece a preceitos. Continua intuitiva, alimentada pelas buscas e achados na mata. “Dependendo do dia, posso fazer peças de mais de dois metros, ou uma miniatura. A inspiração vem sem pensar: aparece na hora.”O artista afirma que, depois da fama,

alumínio, manejado por um cabo de um garfo e por uma tabica de madeira, veio em seguida. O colete, estilizado, é mais um complemento. Para justificar tanta imponência, criou, também, toadas e forrós próprios. “Se eu me alegro com elas, todo mundo se anima!”, diz o artista, que imita o som de animais e aves, e que afirma: “Eu quero mostrar que tenho talento, que é vigoroso meu talento!”, enfatiza. O reconhecimento já é uma realidade. O crítico Rodrigo Naves, por exemplo, descreve o trabalho de Bezerra com as seguintes palavras. “Confinar seu trabalho ao gueto do popular significaria apenas pacificá-lo e reduzi-lo. José Bezerra não sabe sequer ler, mas há mais argúcia e clarividência em seu trabalho do que no daqueles, e são tantos, que confundem arte com erudição.” A profecia ditada no sonho, ao que parece, vem plenamente se cumprindo.

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AFRODISÍACOS “Eu quero um ovo de codorna pra comer...”

Mesmo sem comprovação científica, alguns alimentos mantêm a fama de provocar a libido, povoando o imaginário de diversas culturas TEXto Renata do Amaral Fotos Eduardo Queiroga

Filha caçula, Tita não pode nem

pensar em casamento: sua obrigação é cuidar da mãe até a morte. Quando ela e Pedro se apaixonam, ele decide se casar com a irmã de Tita, Rosaura, apenas para ter sua musa por perto. Proibida de ficar a sós com ele, Tita – tão sensível, que chorava até dentro da barriga da mãe, quando alguém picava cebola por perto – usa a comida para entrar em contato com o amado. Depois de receber um buquê de rosas de Pedro, ela resolve usar as pétalas para preparar um prato de codornizes com purê de castanhas. “É um prazer dos deuses!”, diz o rapaz à mesa. Impedido de se manifestar no casal, o poder afrodisíaco se transpõe para a outra irmã, Gertrudis. O calor

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que alguns alimentos podem, sim, ajudar no prazer indiretamente, ao equilibrar os hormônios sexuais e melhorar a irrigação sanguínea. Banana, gengibre, ostra, oleaginosas, aspargo, romã, chocolate, café, vinho, pimenta, cereais integrais e alimentos com ômega 3 são alguns exemplos. “Eles são estimulantes, aceleram o metabolismo e provocam aumento de sangue nos músculos, inclusive nos órgãos sexuais. Dessa forma, facilitam o ato sexual tanto em homens quanto em mulheres. Outros estimulam hormônios sexuais, aumentam a lubrificação da vagina ou liberam serotonina, substância que provoca sensação de prazer semelhante à do orgasmo. Isso pode potencializar o prazer do sexo”, explica. A ostra é rica em zinco, mineral que contribui para a formação do hormônio masculino testosterona. O amendoim é uma oleaginosa rica em vitamina B3, que ajuda na vasodilatação sanguínea, o que pode aumentar a libido. “Muitos desses alimentos podem ajudar o prazer, porém não são capazes de

Alimentos podem ajudar no prazer, indiretamente, ao equilibrar os hormônios sexuais e melhorar a irrigação sanguínea do prato faz com ela saia da mesa direto para o chuveiro, de onde é raptada nua, con mucho gusto, por um estranho montado a cavalo. Quem leu ou viu a sequência não esquece. É parte do romance Como água para chocolate, de 1989, da mexicana Laura Esquivel, adaptado para o cinema por Alfonso Arau em 1992. Na vida real, porém, os amantes podem contar com alimentos responsáveis por trazer o desejo à tona? Ostra, chocolate, pimenta, ovo de codorna e amendoim são alguns dos ingredientes conhecidos por dar uma forcinha ao amor. A nutricionista Fábia Moura desconhece comprovação científica sobre afrodisíacos. Ela afirma, porém,

provocar reações exageradas, ditas afrodisíacas”, diz. A apresentação do prato também conta para estimular todos os sentidos. Na contramão, alimentos de difícil digestão atrapalham o desempenho sexual, pois o sangue se concentra nos órgãos digestivos e foge dos órgãos sexuais. “Então, nada de feijoada antes do sexo!”, alerta. Para os casais enamorados, a nutricionista sugere um prato leve, com ingredientes estimulantes, como um filé de peixe grelhado com molho chutney de abacaxi e pimenta. Também para o psiquiatra Tárcio Carvalho, os afrodisíacos carecem de comprovação científica. “A sexualidade é uma constituição

1 CHEZ GEORGES O restaurante prepara pratos com a cor da paixão, a vermelha, como o royalle de cordeiro ao molho de chocolate, com galette de batata e coulis de pimenta

psicológica e afetiva. O aumento da libido está muito mais associado ao bem-estar emocional, humor e à autoestima”, explica. “Se estamos deprimidos, não há alimento ou companhia que melhore a sexualidade.” No entanto, boa alimentação e exercícios físicos podem contribuir para um bom desempenho sexual, segundo o médico. Apesar de não acreditar em ingredientes afrodisíacos, o chef executivo do restaurante francês Chez Georges, Robson Lustosa, gosta de mexer com a imaginação dos clientes e crê no poder de sugestão de certos pratos. Ele lembra que, quando a casa começou a oferecer ostras, um cliente comeu 30 unidades e sua acompanhante brincou: “Está bom de parar ou eu não vou aguentar você hoje!” Nos menus especiais do Dia dos Namorados, ele gosta de preparar pratos que levem a cor vermelha, cujo apelo visual remete à paixão. Além disso, insumos como gengibre e pimenta geram uma sensação de calor, que pode causar o mesmo efeito. “O importante é trabalhar a libido das pessoas”, diz. O prato royalle de cordeiro ao molho de chocolate, com galette de batata e coulis de pimenta, que ilustra essa reportagem, é um bom exemplo disso.

RESTAURANDO A FORÇA

Mesmo sem disparar reações físicas ou psicológicas comprováveis, os afrodisíacos povoam a imaginação de diversas culturas há tempos. O livro Cântico dos cânticos, do Antigo Testamento, considerado o mais carnal da Bíblia, traz trechos assim: “Ele me conduziu à casa do banquete, onde a bandeira era para mim sinal de amor. Restaurai-me as forças com tortas de uva, revigorai-me com maçãs, porque desfaleço de amor!” Passando de escritos religiosos capazes de enrubescer os mais puritanos à música popular, o rei do baião Luiz Gonzaga, preocupado

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2 a 5 protagonistas Pimenta, ovo de codorna, ostra e amendoim estão na lista dos alimentos que supostamente estimulam o apetite sexual

com a perda do vigor, pediu ovo de codorna: “Eu quero um ovo de codorna pra comer/ O meu problema ele tem que resolver/Eu tô madurão/ Passei da flor da idade/Mas ainda tenho/Alguma mocidade/Vou cuidar de mim/Pra não acontecer”. No cinema, a mesma codorna que causou furor em Pedro e Gertrudis aparece em A festa de Babette, de Gabriel Axel (Dinamarca, 1987), vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Ex-chef de cozinha do Café Anglais, Babette se refugia na Noruega e vira empregada de duas filhas de um pastor protestante. A pequena cidade era tão refém de princípios religiosos, que seus moradores não se permitiam sentir qualquer prazer. Nem na cama, nem na mesa. Até o dia em que Babette ganha 10 mil francos na loteria e resolve gastá-los em um jantar de agradecimento às irmãs que a acolheram. “Lembrem-se: perdemos

o paladar”, avisa um dos comensais antes da refeição de sopa de tartaruga e codornas em sarcófago. Convidado de honra, um general não consegue se abster de elogiar nem de comer com as mãos, lambendo os dedos. No final, todos estão em êxtase. Mas é o excepcional Tampopo, de Jûzô Itami (Japão, 1985), que leva as possibilidades gastrossexuais ao extremo. A personagem que dá nome ao filme tenta aprender a fazer o melhor talharim tipo lámen da cidade, enquanto uma história paralela mostra um casal se divertindo, passando uma gema de ovo boca a boca, sugando alimentos variados (de camarão a limão com sal), derramados sobre o corpo ou comendo uma ostra que acabou de sair do mar.

endosso científico

“Embora comer e fazer sexo pareçam atividades complementares, formas de sensualidade que se incentivam mutuamente, cada afrodisíaco é um passo no escuro. Nenhum deles tem qualquer coisa que poderia ser minimamente chamada de endosso

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científico”, escreve o historiador Felipe Fernández-Armesto, no livro Comida: uma história. Com ou sem endosso, são muitas as histórias que rondam esses alimentos. As ostras já passaram por seus altos e baixos: se na Antiguidade e Idade Média eram consideradas uma cara iguaria, no século 19, chegaram a ser comida da classe proletária na França – para, em seguida, ganhar nova ascensão. Apesar de haver algumas receitas célebres, a ostra crua é a mais apreciada. “No repertório da cozinha ocidental moderna, a ostra é a única coisa que comemos crua e ainda viva”, defende. “Se não nos livrarmos dos utensílios e, jogando a cabeça para trás, levarmos a meia-concha à boca, extraindo a criatura da toca com nossos dentes, provando seu suco salgado e espremendo ligeiramente contra o céu da boca, antes de engolila viva, estaremos nos privando de uma experiência histórica”, afirma Fernández Armesto, numa descrição em que quase dá para sentir o gosto de mar do animal.

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É comum que alimentos tidos como excitantes tenham sido ligados a valores como força e poder. O amendoim, conta Maria Lucia Gomensoro no Pequeno dicionário de gastronomia, era tão valorizado pelos povos pré-colombianos do Peru, que era enterrado junto com os mortos para alimentá-los na jornada. Se era capaz de restaurar as forças até dos defuntos, então poderia despertar Afrodite, a deusa grega do amor, bem mais facilmente. O chocolate era o tônico do rei asteca Montezuma, que tomava 50 xícaras, por dia, de uma mistura de cacau em pó, água, farinha de milho e mel. O sociólogo Ariovaldo Franco, no livro De caçador a gourmet: uma história da gastronomia, explica que a bebida chegou a ser um segredo da corte antes de se tornar a bebida da moda na Europa. Teólogos diziam que os monges deveriam ser proibidos de tomá-lo, para evitar desejos inconvenientes. A escritora Isabel Allende, que se aprofundou no assunto em Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos,

Se tudo depende da intenção, qualquer comida pode ser afrodisíaca. É o que defende a chef Nina Loscalzo considera que eles funcionam como um placebo. “No caso desse livro, os amigos que desfrutaram dos afrodisíacos, informados do seu poder, revelaram pensamentos deliciosos, impulsos velozes, arroubos de imaginação perversa e conduta sigilosa, mas os que nunca souberam do experimento devoraram os alimentos sem mudanças aparentes”, conclui. Se tudo depende da intenção, qualquer comida pode ser afrodisíaca. É o que defende a chef de cozinha Nina Loscalzo, no e-book Fogo alto, disponível no site Panelinha. “Uma caipirinha de limão siciliano com pimenta dedo-de-moça pode ser muito mais afrodisíaca que uma

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porção de ovos de codorna perdidos na salada”, defende. O livro traz três sugestões de menus para casais cozinharem juntos, sejam pares recentes ou amores antigos. Um dos cardápios inclui até espaguete ao alho e óleo, para desespero daqueles que têm medo do cheiro de alho. Arroz libanês e risoto de frutos do mar são outras receitas, que contam com modos de preparo sugestivos como “em fogo médio, depois que a água começar a ferver, a cebola e o frango cozinham juntinhos por 15 minutos. Para afastar os olhares curiosos, a panela deve ficar parcialmente tampada”. A palavra final cabe à sempre sábia escritora M. F. K. Fisher, no livro Um alfabeto para gourmets: “Se duas pessoas querem, esperam e planejam ficar juntas, não precisam ter nenhuma preocupação com o que devem comer antes e, na verdade, não precisam se interessar nem um pouco por isso. (...) Podem comer lagosta, queijo derretido na cerveja, ostras, filé mignon ou até pudim frio, e se erguerão impávidas”.

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atuação Espectadores, mas também cúmplices

Prezando cada vez mais pela proximidade com o público, grupos de teatro do país vêm ocupando espaços alternativos e menores para suas apresentações texto Leidson Ferraz

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Em sua mais pura essência, o teatro

é uma arte para poucos apreciarem. Esse conceito, que reafirma o caráter intimista do fazer teatral, vem sendo cada vez mais valorizado por coletivos de Norte a Sul do país. Na contramão de montagens mais comerciais, alguns grupos estão abdicando das grandes plateias, e de um possível maior retorno de bilheteria, para apostar numa relação mais próxima, direta e, dizem, verdadeira, com um número reduzido de cúmplices espectadores. Na capital amazonense, Coisas para depois de meia-noite, projeto do ator, diretor e dramaturgo Denni Sales, vem ocupando, desde o final de setembro do ano passado, inicialmente às quintas-feiras e, a partir deste mês, aos sábados, o pequenino palco do Teatro Oficina, sala de experimentações teatrais do Sesc Amazonas para até 55 pessoas. Reunindo um jovem e disponível elenco, a peça aborda a delirante jornada de duas personagens em profunda crise de identidade: uma prostituta que acaba de ser estuprada e questiona as ações de Deus sobre os desviantes da Terra; e o filho de um pastor incestuoso que transforma sua revolta familiar em feroz apetite por violência e perversão. Além da linguagem crua e direta, é praticamente impossível manterse indiferente à sucessão de cenas de agressão física, heresia, castração e até sexo explícito (projetadas em vídeo num ângulo de 360 graus, plateia adentro). “Eu queria fazer algo mais alternativo e verdadeiro sobre uma Manaus urbana, underground – e ocupar um teatro mais íntimo passou a ser fundamental para isso”, diz o diretor Denni Sales, consciente de que esse hiper-realismo a pouca distância nos faz pensar, como reféns em um espaço diminuto, que o inferno é mesmo aqui. Coisas para depois de meia-noite deve chegar ao Recife, na 1ª Mostra do Teatro Amazonense em Pernambuco, em maio. Outra produção manauara, que também deve aportar nesse mesmo evento, traz como linguagem primordial a intimidade com seus espectadores. [OFF] INFERNO ou lave o céu para que eu morra, da Cia. Cacos de Teatro, é livremente inspirado n’A divina comédia, de Dante Alighieri. A encenação tem início ainda na rua,

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osmário marques/divulgação

denni sales/divulgação

Página anterior 1 ALICE

O solo foi pensado originalmente para um público formado por apenas 12 pessoas

Nestas páginas 2 INTERPRETAÇÃO

O texto da peça O acidente precisava ser dito de forma mais baixa, por isso a opção pelo galpão do Espaço Muda

3 INTIMIDADE Coisas para depois de meia-noite é encenada num espaço pequeno, apostando no hiper-realismo 4 [OFF] INFERNO A peça teve estreia para 300 pessoas, mas atualmente recebe apenas 25 pagantes por sessão

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fora do espaço cênico, com direito à compra – paga pela produção da peça – de uma atitude agressiva por parte do público, incitado a jogar farinha de trigo em um intérpretecorpo-performer que transita entre a dança butoh, as artes visuais e o teatro físico. Permeada por sensações, a montagem resulta em um mergulho conceitual sobre nossos próprios “subterrâneos”, em que pesam a ganância, a ira e a gula como alguns dos sentimentos presentes. “O processo de criação passou por muitas crises, tanto que construímos um banco de cenas para seis intérpretes, até entendermos que dessa forma não iríamos comunicar”, diz o ator e bailarino Francis Madson, principal artista em cena. Além de transformar-se num solo, o espetáculo, que fez sua estreia para 300 espectadores no Teatro Amazonas, passou a ser apresentado em espaços pequenos, com até 25 pagantes por sessão. “Hoje, não queremos essa espetacularização para um público de massa, mas, sim, uma comunicação melhor. Falar para poucas pessoas é sinônimo de retroalimentação, pois quem vê de perto amplia outras relações. Somos conscientes dessa escolha”, garante o diretor Dyego Monnzaho.

ARTE E TECNOLOGIA

No outro extremo do país, em Porto Alegre, mais coletivos teatrais também vêm pensando em públicos mínimos para suas realizações. Fugindo do teatro convencional, a Cia. Espaço em Branco traz em seu repertório propostas cênicas performáticas que conjugam arte e tecnologia. Um dos trabalhos mais recentes, o solo Alice, propõe como “prato principal da cena”, numa experiência totalmente nonsense, o próprio corpo da atriz e diretora Sissi Venturin, servido como depositário de alguns dos personagens de Lewis Carroll em Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho. Os dizeres “Coma-me” e “Beba-me”, presentes no primeiro livro do autor inglês, serviram como mote para essa criação. A aposta é numa linha narrativa mais onírica, cuja percepção sensorial faz com que os poucos espectadores presentes – originalmente, a peça foi concebida para apenas 12 pessoas, e hoje pode ser assistida por até 30, de todas as idades – atuem como cocriadores da obra, com participação ativa. “Na linguagem da performance art, o conteúdo é muito íntimo porque há uma persona que é extravasada. Assim, utilizando fragmentos de vários textos de Caroll, falo de alguma

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coisa minha através das personagens dele. Portanto, intimidade é algo essencial nesse trabalho”, revela Sissi Venturin, intérprete de um espetáculo cujo significado é um não à imaginação inerte. Por enquanto, a montagem circula apenas pelo Sul e Sudeste do país. No Recife, até mesmo por possuir teatros bastante aconchegantes, como o Joaquim Cardozo, Capiba, Marco Camarotti ou Hermilo Borba Filho, uma parcela dessas encenações vem ocupando vários palcos da capital pernambucana. O mais recente deles é o galpão do Espaço Muda (Rua Capitão Lima, 280, Santo Amaro), inaugurado em janeiro de 2010 como um local múltiplo a

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receber espetáculos teatrais e de dança, em diálogo com filmes e vídeos, exposições, shows musicais, moda e bistrô. Das montagens que lá estiveram em cartaz, O acidente, realização do Visível Núcleo de Criação, traz em seu próprio contexto essa intimidade mais do que necessária. A obra do paulistano Bosco Brasil mostra o patético encontro de dois seres solitários numa festa de aniversário à qual mais ninguém aparece. “Quando me juntei à atriz Sandra Possani e ao diretor Fausto Filho, a montagem, até então, independia do espaço. Só durante o processo de criação chegamos à conclusão de que o texto necessitava ser

dito de forma mais baixa e numa interpretação minimalista”, afirma o ator e produtor Kleber Lourenço. Concebida para até 35 espectadores por sessão, a peça cumpriu temporada às quintas e sextas-feiras no Espaço Muda, de agosto a outubro de 2010, com apresentações extras no Teatro Capiba e nas cidades mineiras de Belo Horizonte e Itaúna. “A necessidade de termos um público reduzido tem a ver com a maneira como o espetáculo toca cada espectador. É uma interpretação que não pode ser eloquente. Toda a emoção precisa ser percebida pelo olhar do público e não projetada pelo ator. Por isso os espectadores estão tão próximos, um pouco dentro da cenografia em semiarena, o que faz com que vejam, inclusive, de ângulos distintos”, garante Lourenço. O acidente deve voltar à cena recifense ainda neste primeiro semestre.

BILHETERIA PEQUENA

Se cada vez mais coletivos em todo o país estão primando por essa relação tão íntima com plateias diminutas, em contraponto à necessidade de um teatro de multidões, como manter-se financeiramente com uma bilheteria tão pequena? Entre aqueles que conquistaram algum tipo de apoio em

Para os grupos teatrais, é preferível uma renda mais modesta ao desajuste da encenação que se pretende próxima editais, ou investiram nesse projeto com verba própria, o ator Kleber Lourenço (que representa o segundo caso) diz que ainda é possível produzir dessa forma, “basta ter planejamento, acordo entre os profissionais envolvidos e pensar nas diversas maneiras de se vender o espetáculo, mesmo ele estando em cartaz”. Consciente de que encarar tal desafio é um exemplo de maturidade artística, complementa: “O mais legal é que, nesse tipo de trabalho, tão íntimo, você volta ao exercício de que teatro é verdade acima de tudo, independentemente da estética. E, assim, diminuindo as ansiedades, sinto-me feliz por perceber que as poucas pessoas que vêm me assistir são tocadas por aquelas atmosferas e isso vai reverberar, sim. O sucesso para mim, nesse trabalho, está nisso”, opina. É no que todos, intimamente, querem acreditar.

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hans von manteuffel/divulgação

DRAMATURGIA O decantado fim do teatro mais uma vez foi adiado

A morte do artista popular, peça dirigida por Antonio Cadengue, firma a versatilidade para a criação dramática do autor Luís Augusto Reis texto Anco Márcio Tenório Vieira

Palco

Três gratas surpresas nós

vamos encontrar em A morte do artista popular, de Luís Augusto Reis, com direção de Antônio Cadengue, e que teve estreia em dezembro de 2010, no Teatro Marco Camarotti, do Sesc Santo Amaro (Recife) – e que continua sua temporada em fevereiro deste ano, no mesmo local.

A primeira surpresa é que temos um texto escrito sob encomenda para a terceira turma de formandos do Curso de Formação e Aperfeiçoamento Profissional do Ator, da Escola Sesc de Teatro (Unidade Executiva de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes). Sendo uma obra encomendada, a

peça atendeu a uma determinada demanda: fazia-se necessário que tivesse tantos personagens quantos eram os atores em formação: 12 (sete homens e cinco mulheres). Porém, o que nos parece mais importante é que, sendo um texto que tinha dia e hora para ser concluído (pois os atores precisavam ler, decorar

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mão da mais fina ironia) também promove momentos de grandes tensões entre os personagens. Com A morte do artista popular, Luís Reis foge do vaticínio de que era um dramaturgo de uma obra só – A filha do teatro (2003) –, já que ele próprio considera Thy name (2009), sua segunda peça (também realizada sob encomenda), apenas um exercício de teatro. Firma sua versatilidade para a criação dramática (já que no campo da reflexão ensaística ele é, hoje, no Brasil, um dos nossos melhores críticos de teatro), e termina por consolidar seu nome como um dos grandes da nova dramaturgia brasileira. Uma arte construída com artesanato e como fruto da sua reflexão sobre um universo que lhe é tão bem-conhecido: o do teatro.

DESAFIOS

Teatro Marco Camarotti recife

A morte do artista popular 5 – 27 Fev

e começar a ensaiá-lo), termina por denunciar que quem o compôs se valeu antes da técnica e do pleno domínio da linguagem dramática do que do expediente da inspiração. O resultado é que temos um drama enxuto, com diálogos precisos, que, sem abdicar do riso inteligente (aquele que não se furta de lançar

Sendo uma peça inédita, A morte do artista popular foi desafiante tanto para os atores quanto para o diretor. No caso dos atores – e aqui está a segunda surpresa –, eles se viram privados de tomar como modelo, quando da construção psicológica dos seus personagens, gestos e modulações à fala que, caso se tratasse de um texto já conhecido, eles poderiam utilizar como referência (como acontece com certa frequência naqueles que vão encenar as obras de Shakespeare ou Molière, por exemplo). Assim, os atores em formação tiveram que mergulhar mais verticalmente na construção dos seus personagens e, por extensão, isso terminou por lhes dar ferramentas para uma formação mais bemacabada (o que mostra que o curso cumpriu com os seus objetivos). Ver jovens atores (alguns no palco pela primeira vez) levarem a termo tão competentemente uma peça como A morte do artista popular, já vale a ida ao teatro. No caso do diretor, ter diante de si um texto inédito o salvou, de um lado, da angústia da influência (angústia que todos aqueles que se voltam para a encenação de um texto clássico são tomados, pois, inevitavelmente, têm a sua encenação comparada com as outras versões da obra que

anteriormente foram levadas ao palco) e, de outro, foi instigado a criar uma encenação a partir do seu próprio conhecimento (que não é pouco) da carpintaria teatral. O resultado, e aqui reside a grata terceira surpresa, é que vamos encontrar em A morte do artista popular um diretor completamente renovado, reoxigenado, livre de certas marcações ou traços de direção que tanto caracterizaram suas encenações anteriores, e que identificavam seu estilo como diretor. Cadengue construiu, assim, a partir do seu repertório profissional, um espetáculo que poderia ser definido como impecável: na direção, na sonoplastia, na cenografia, nos figurinos, na iluminação e na cenotécnica. Observando que a experiência profissional não deixa de ser uma faca de dois gumes – tanto pode levar um profissional a ficar

Elenco é formado por alunos do Curso de Formação e Aperfeiçoamento Profissional do Ator da Escola Sesc de Teatro prisioneiro dos seus próprios métodos e teorias quanto pode lhe servir de ferramenta para que ele possa experimentar novos caminhos. Foi essa última opção a que foi tomada pelo diretor. O resultado é que assistir à peça A morte do artista popular nos inscreve em um universo de surpresas. Seja pelo texto encenado (mais uma vez o teatro e o fingimento dramático são as matérias-primas de Luís Reis), seja pelo diretor que não se deixou aprisionar por fórmulas já consagradas e, principalmente, pelos atores (Roberto Brandão, Biagio Pecorelli, Ingrid de Souza, Camilla Rios, Mauro Monezi, Diogo Testa, Thaysa Zooby, Evilasio de Andrade, Tiago Gondim, Julyana Caminha, Felipe Cavalcanti e Dolores Efrem) que nos dão a certeza de que a tão decantada morte do teatro mais uma vez foi adiada.

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kirk edwards/divulgação

troy andrews Um estilo chamado supafunkrock Backatown, álbum indicado ao Grammy de melhor CD de jazz contemporâneo, mistura rock, hip hop e soul texto Rafael Teixeira

Sonoras O jazz, alguém já disse , é como um elástico: parece poder se esticar indefinidamente, até que a tensão ultrapassa o ponto do suportável e – plac! – ele arrebenta. Também os limites do jazz, à primeira vista, podem se alargar mais e mais, juntando no mesmo balaio estilos tão distintos quanto o dixieland, jazz

orquestral, bebop, cool, jazz modal, free jazz, hard bop, fusion, samba jazz e por aí vai. Mas seria o jazz tão generoso, a ponto de abarcar tudo que se apresenta com esse nome? É essa a pergunta que se impõe à audição de Backatown, disco do trombonista Troy Andrews – ou Trombone Shorty. Aos 25 anos, natural de Nova Orleans,

ele vem sendo apontado por crítica e público como a nova face do jazz. Até aqui, Backatown é o ponto mais alto de uma trajetória que começou com Shorty de calças curtas. Aos 3 anos, ele aprendeu a tocar bateria e trompete. “Minha família inteira tocava. Então, em vez de brinquedos, tínhamos instrumentos

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Andrews faz parte da banda Orleans Avenue, que une pessoas com diferentes gostos musicais, gerando um som multifacetado cuja receita inclui doses generosas de rock, hip hop a gosto, pitadas de funk e soul, além de, last but not least, jazz. As músicas com vocais (há instrumentais também) são cantadas com a pinta dos jovens artistas da black music americana atual. Para alívio dos puristas do jazz, o próprio trombonista define seu estilo como supafunkrock. O que, para Shorty, por outro lado, não exclui o jazz. “Alguns acham que se você não toca de certa maneira, então não é um jazzista. Mas, para mim, isso é só uma plataforma para ser livre. Não quero ser um daqueles músicos que ficam reciclando o que já foi feito. Assim eu não conseguiria crescer”, afirma. Foi esse olhar para o futuro que possibilitou a Shorty conquistar admiradores como o trompetista Wynton Marsalis e o guitarrista The Edge, do U2. Ou o pianista Allen Toussaint, uma lenda viva do jazz, e o roqueiro Lenny Kravitz, em cuja banda Shorty tocou durante

jane richey/divulgação

pela casa, e eu naturalmente tentava produzir sons com eles. Aos 4 anos, já estava tocando trombone”, diz, referindo-se ao instrumento que adotou para valer – ainda que, eventualmente, toque trompete em seus shows, além de percussão, bateria e teclados no estúdio. Desde a adolescência, ele vem gravando diversos discos independentes, mas Backatown é o seu primeiro por uma gravadora de peso, a Verve. As diferentes influências adquiridas ao longo dos anos em Treme, um dos bairros mais musicais de Nova Orleans, forjaram o artista e ajudam a entender de onde veio Backatown. “Crescer em Treme foi como estar no paraíso da música. Na vizinhança, havia (o tocador de tuba) Tuba Fats. Havia (o trompetista) Kermit Ruffins e a Rebirth Brass Band. Quando era garoto, eu tocava jazz, mas ouvia mais hip hop. Eu colocava os fones e fazia solos por cima da música de Mystikal, Master P e Juvenile (rappers de Nova Orleans)”, lembra. Sendo assim, é de se esperar que o produtor de Backatown tenha sido Ben Ellman, do grupo Galactic, de jazz-funk. A indicação do trabalho ao prêmio Grammy de melhor disco de jazz contemporâneo não esconde – antes, evidencia – a salada musical de Shorty,

alguns anos. “Lenny me tirou da escola para tocar com ele. Um amigo nosso o convenceu a me colocar em um voo para Miami, eu toquei para ele e pronto. Foi incrível poder tocar naquela banda e ganhar tanto conhecimento.” Não por acaso, tanto Toussaint quanto Kravitz fazem participações especiais em Backatown. Ao piano, Toussaint pontua a segunda das 14 faixas do disco, On your way down – um clássico do compositor que ganha releitura mais agitada com Shorty. “Estive com Allen em alguns shows no ano passado, e é sempre uma honra dividir o palco com ele. Graças a Deus, ele gostou de On your way down do jeito que fizemos. Construimos uma ponte entre o novo e o velho”, diz. Já Kravitz faz backing vocal e empresta certa pegada roqueira à suingada Something beautiful. Right to complain é outro exemplo de como o rock está a serviço do som de Shorty. Mas é em Suburbia, Where Y’at e The cure que ele mostra todo o peso que sua música pode ter, com guitarra e sopros colaborando um com o outro. Para jazzófilos tradicionalistas, é “deixe-o”, mais do que “ame-o”. Hurricane season (referência ao furacão Katrina, que assolou Nova Orleans em 2005), Quiet as kept e In the 6th são da mesma safra, caminhando pelo funk e privilegiando os sopros. Seguindo por outra linha, Neph começa com um batuque percussivo abrindo caminho para o trompete de Shorty, ecoando os tempos do Dizzy Gillespie afrocubano. E, sem perder a unidade sonora, a mira de Shorty ainda pode apontar para a baba romântica mais rasgada, como em Fallin’. Ou para um pop como One night only (The march), radiofônico, mas com um insuspeito solo de trombone. Ou para as bandas de rua de Nova Orleans, como na faixa-título, e, principalmente, na curtíssima 928 Horn Jam – composição dele próprio com três dos seis integrantes do seu conjunto, o Orleans Avenue. Banda que também é responsável pelo som multifacetado de Shorty. “Temos gente de diferentes experiências culturais, que escuta música de vários estilos, e fazemos isso funcionar. O som do grupo se desenvolveu dos gostos de cada um, filtrados pelo som que eu queria.”

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nicolas gomes/divulgação

Sonoras ousadia pop Uma banda que se aprimora na estrada

Grupo instrumental potiguar Camarones Orquestra Guitarrística destaca-se através do boca a boca, prepara o segundo álbum e agenda turnê no exterior texto Thiago Lins

Trinta mil downloads, mil discos físicos vendidos, mais de seis meses em turnê pelo Brasil e datas confirmadas na América Latina afora. Os números da Camarones Orquestra Guitarrística – que em três anos não contabiliza, propriamente, um sucesso radiofônico, até por ser uma banda instrumental – apontam para a revisão de parâmetros

imposta pela era virtual: hoje, o boca a boca, ou melhor, o peer-to-peer, soma mais do que o jabá. “A gente começou a bombar de 2008 para 2009”, conta o articulado Anderson Foca (efeitos), que, junto com sua mulher, Ana Morena (baixo), se divide entre o Camarones e as ações da produtora DoSol, responsável pelo

festival homônimo que acontece em Natal e vem marcando a cena independente local. Foi no DoSol, aliás, que a banda fez uma de suas apresentações mais importantes, segundo Foca. Começaram a surgir os convites, como o do festival Rec-Beat 2009, que, ao longo de 15 anos, cresceu a ponto de deixar de ser uma “alternativa” ao carnaval do Recife, agregando até os foliões mais tradicionais. Foi a esse festival recifense que se seguiu uma reunião de autocrítica da banda: era a hora do “vai ou racha”, o dilema que mais cedo ou mais tarde chega para quem quer viver no tortuoso mundo da música. E por ele passaram bem, como mostra a história. O primeiro bom fruto foi o CD que leva o nome da banda. Gravado há um ano, o álbum apresenta um quinteto azeitado, que, apesar do pouco tempo de formação que tinha à época, se valeu da experiência adquirida em outros projetos. Camarones

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INDICAÇÕES 1 na estrada

Quinteto, que se define como uma “banda de palco”, improvisa ensaios nos quartos de hotéis

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Orquestra Guitarrística intriga faixa a faixa, mesmo sem um refrão para o ouvinte cantar junto. Ousados, os Camarones conseguem driblar os clichês e, ainda assim, atingir o pop. As 11 faixas da bolachinha vão da surf music à new wave, passando por outros estilos, como reggae e ska, sem perder o compasso. Além de Foca e Morena, completam o grupo o baterista Xandi Rocha e os guitarristas Karina Monteiro e Leo Martinez. O quinteto, como gosta de sublinhar Foca, é uma banda de palco: “Gravamos pensando em como o disco vai soar ao vivo”. E soa bem, o que é resultado do incessante modo de produção do

grupo. Sem tempo de sobra para entrar em estúdio, os Camarones desenvolveram uma logística on the road. Passagem de som virou ensaio, quarto de hotel virou estúdio. É assim que Leo Martinez e Foca desenvolvem a maior parte do repertório do quinteto, que já trabalha no segundo disco, ainda sem título. O que pode ser dito, por enquanto, é que será lançado via web, com apoio da Petrobras. Junto com Móveis Coloniais de Acaju e Nancy, duas bandas candangas, os Camarones ficaram entre as três únicas bandas pop contempladas no edital Petrobras Cultural, geralmente mais voltado para a música regional. O prêmio, além de divulgação na rede, inclui a gravação do CD. Foca adianta, ainda, que a produção fica a cargo do ex-Forgotten Boys Chuck Hipolitho, que passou o mês de janeiro com os potiguares, no seu estúdio em São Paulo, o Costella. Apesar de Foca e Hipolitho terem começado os primeiros registros do segundo álbum desde o ano passado (sem o resto da banda, com os dois se revezando nos instrumentos), não houve discussão em torno de um suposto conceito para o sucessor de Camarones Orquestra Guitarrística. Como uma boa banda de palco, devem levar a gravação no improviso, mas sem deslizar.

jazz

DIzzy gillespie No Brasil com o Trio Mocotó Biscoito Fino

mpb

marcelo jeneci Feito pra acabar Slap/ Natura Musical

Reza a lenda que Gillespie queria aproveitar a estadia no Brasil, em 1974, para gravar com 100 ritmistas, tendo sido dissuadido pela sua gravadora, a Philips. A solução foi buscar uma banda, contemplando o Trio Mocotó. O trompetista, por motivo desconhecido, engavetou a gravação, que seria encontrada mais de 30 anos depois por um produtor. Gravado em apenas três sessões, o álbum, inevitavelmente, soa como uma colagem de improvisos certeiros: puro jazz.

Jeneci já fazia barulho antes mesmo de estrear: virou hit na voz de Vanessa da Mata (se você não vê novela, o single se chama Amado) e até do agroboy Leonardo, que, por sua vez, regravou Longe. Como boa parte da geração que floresceu nesses anos 2000, o paulista foi conseguindo espaço com trabalhos colaborativos até alçar vôo solo: tinha deixado sua marca em parcerias com Arnaldo Antunes, Chico César e José Miguel Wisnik. Feito pra acabar, álbum de estreia, mostra que Jeneci não estava brincando.

rock

indie

walverdes Breakdance Monstro

Quarto CD do trio riograndense, capitaneado pelo vocalista e guitarrista Gustavo Mini. O Walverdes chega à maioridade este ano, mas sem fazer concessões: Breakdance é tão garageiro quanto os álbuns anteriores do grupo. Mantém a sujeira e a rapidez que renderam ao grupo o rótulo de grunge tupiniquim. No entanto, a experiência foi insuficiente para que a banda desenvolvesse refrões irresistíveis ou letras substanciais: vão continuar na garagem, pelo menos a julgar por este lançamento.

belle and sebastian Write about love Rough Trade

Uma das maiores unanimidades do indie pop, Belle and Sebastian traz agora seu 8º disco, o aguardado Write about love. O CD é uma continuação do seu último trabalho, The life pursuit, e contém a mesma mescla agradável entre o folk e o pop, sem falar nas letras – genuinamente ou não – pessoais do vocalista Stuart Murdoch. O grande mérito é que, para além da personalidade de Murdoch, os escoceses provam mais uma vez que conseguem, como banda, gerar simultaneamente unidade e diversidade.

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SKETCHBOOK Pequeno diário do pensamento artístico

Cada vez mais popular, o caderno de rascunho torna-se fetiche entre artistas e público como importante objeto de estudo do processo criativo texto Diogo Guedes

1 lourenço mutarelli

O quadrinista, presente na coletânea Sketchbooks, diz que seus cadernos são “geradores de ideias livres”

2 sem fim Bruno Kurru entende os skecthbooks como parte de um processo criativo que nunca se conclui

“Uma vez, levei um caderno

para a praia, em Copacabana; era uma terça-feira. Estava tentando desenhar com grafite; nada muito bom. Então pensei: ‘E se eu entrar na água com o caderno?’, e dei um mergulho agarrado ao sketch, sem piedade.” O depoimento de desapego do designer Yomar Augusto, no livro Sketchbooks – As páginas desconhecidas do processo criativo, organizado por Cezar de Almeida e Roger Basseto, é uma amostra da relação íntima – mesmo na semidestruição de um objeto, mergulhado na água – que um artista pode ter com sua produção e com seu processo de criação. A coletânea de cadernos de autores, lançada no final de 2010, reflete um fenômeno atual nas artes visuais: a valorização, tanto por parte dos autores como por parte do público, dos livros de rascunhos, também chamados de sketchbooks. Para quem desenha, eles, além de práticos, são úteis para fins documentais e criativos. Já o público, afastado de galerias e exposições, passou a se interessar pelo lado antes escondido da criação, visto parcialmente em blogs pessoais de autores e em sites sobre o tema, como o Urban Sketchers. O interesse é tamanho, que os produtos da marca Moleskine, conhecida pelo acabamento cuidadoso, tornaram-se fetiches mesmo para quem não desenha. Um dos que expõem abertamente seus volumes, recheados de

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anotações pessoais e observações, é o quadrinista do jornal O Globo, Bruno Drummond. Autor de tiras, ele mantém o blog Anotando gente, que traz páginas do seu diário de referência com desenhos de observação em caneta nanquim e aquarela. “Os cadernos surgiram em paralelo à criação da coluna Gente fina. Eu fazia anotações de tipos para usar nos cartuns que não tinham personagens fixos. Primeiro, em folhas soltas, depois, em cadernos”, conta. Segundo Drummond, só quando os desenhos passaram a ter uma unidade é que pensou em mostrá-los na internet. Para a produção dos seus

livros, não usa os termos rascunhos ou esboços. “São anotações. Simples anotações que tomaram de tal forma meu tempo, que me permito divagar sobre elas. O fato de manchá-las de aquarela, queimá-las com as cinzas do meu cigarro e derramar o meu café sobre elas nada mais é do que uma tentativa de torná-las mais próximas de mim”, define. Nome também ligado ao universo dos quadrinhos, João Lin não chega a expor seus esboços, mas atribui a eles um papel fundamental no processo de criação. “O caderno é a minha oportunidade de desenhar”, diz, explicando que, dentro do seu ateliê,

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se dedica quase exclusivamente a ilustrações para revistas semanais e livros infantis. Assim, só em saídas e em reuniões é que ele arranja tempo para rabiscar. “Levo meu caderno comigo, mas desenho coisas que não estão nos locais aos quais vou. Não falo do que está lá, mas, de certa forma, altero o resultado do que faço em cada lugar. Não faço observação direta, mas os lugares me influenciam”, reflete o quadrinista. Definindo-se como um criador disperso, Lin fala da criação a partir de uma metáfora que atribui ao cartunista Fábio Zimbres: criar é como ser um ímã, atraindo influências de outros trabalhos e artistas para o seu próprio objeto. Segundo o quadrinista, os cadernos são o local onde ele se sente mais à vontade com seu desenho. “Eles têm importância para mim porque significaram o meu retorno ao

O interesse crescente por esses cadernos tem uma ligação com a ideia de rascunhos como desenhos de observação desenho autoral. Eu estava fazendo muitas ilustrações para revistas semanais, trabalhos mais comerciais. O meu desenho tinha começado a ficar convencional, com uma anatomia até mais realista”, lembra.

RELAÇÃO CONTEMPORÂNEA

O interesse crescente do público por esses objetos tem uma estreita ligação com a ideia de rascunhos como desenhos de observação. Até por isso, uma seleção como a que foi feita em Sketchbooks – As páginas desconhecidas do

processo criativo acaba sendo composta majoritariamente por artistas que se destacam em campos de atuação mais pop, como designers, quadrinistas, grafiteiros e ilustradores – ainda que existam, no livro, nomes que se definem como artistas plásticos – e valorizam as técnicas de desenho. No entanto, se desenhar parece uma atividade menos valorizada dentro do caráter multimídia e da pluralidade de formatos da arte contemporânea, não se pode dizer que os rascunhos e esboços perderam o sentido dentro dela. O artista plástico Gil Vicente diz ter o costume de fazer esboços e desenhos ocasionais, mas eles não chegam a ser hábitos. “Não é para todo trabalho que eu faço estudos. Em alguns, quando eu quero que a imagem fique mais próxima do real – e nem é tão próxima assim –, eu uso um modelo”, aponta.

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3 detalhes O calígrafo Cláudio Gil já chegou a ficar oito horas trabalhando em cima do mesmo caderno 4 anotando gente O quadrinista Bruno Drummond faz desenhos de observação em caneta nanquim e pinta com aquarela, posteriormente

“Rascunhos servem para livrar as ideias ruins, livrar aquilo que não parece possível de ser resolvido durante a execução. É para livrar, pelo menos, aquelas ideias ruins que a gente consegue identificar”, diz o artista. Apesar de guardar com cuidado os esboços e até presentear amigos com eles, Gil Vicente não é um adepto dos cadernos. Seus desenhos são feitos em folhas soltas, organizadas posteriormente em gavetas, no seu ateliê em Boa Viagem. O artista plástico Marcelo Silveira, que trabalha com diversos formatos, como colagens, livros de

artista, escultura e móveis, faz mais uso dos cadernos, ainda que com especificidades. Primeiramente, ele ressalta que suas criações não vêm sempre do papel: “Elas podem vir de várias formas. Podem vir de seis molduras douradas, por exemplo”, afirma, ao apontar os objetos, comprados em um brechó, ainda sem destinação definida. “A minha relação com o desenho é o rabisco, o esboço. Faço a repetição de uma linha até chegar a uma certa exaustão”, define o artista. Dentro dos cadernos, ele mescla rascunhos, colagens e esboços de projetos com anotações e memórias “afetivas ou financeiras”. Silveira admite ter pouco apego às anotações, mas reconhece nelas importância para a realização de trabalhos ligados ao desenho e ao papel. “Neles, você registra certos momentos, cola, desenha, e ele passa a ser um livro

de anotações e a ajudar a memória. Ainda assim, é apenas secundário como forma de alimentação artística e de renovação”, observa.

RASCUNHO COMO CRIAÇÃO

Para o professor e pintor escocês radicado no Brasil, Charles Watson, referência na área de processo criativo, o desenho se valorizou nos últimos anos. “Sempre houve interesse. É possível, sim, que nos últimos cinco anos tenham sido feitas mais publicações internacionais sobre desenho do que nos últimos 20 anos anteriores”, afirma. João Lin concorda: “Digo isso por amigos desenhistas que tenho, que há cinco ou seis anos não falavam disso e, atualmente, quase todos têm cadernos de desenho”. Watson defende que os cadernos de rascunhos são espécies de “pedágios do pensamento”. “O pedágio é um lugar onde você para e ‘cobra’

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imagens/reprodução

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5 caixa de retratos Apesar de não ser apegado às suas anotações, Marcelo Silveira ressalta a importância delas para a criação artística 6 acervo Nos seus cadernos, João Lin retorna ao desenhos mais autorais, distanciando-se dos trabalhos comerciais 7 estudos Os esboços de Gil Vicente são essenciais para o resultado final de séries como a Inimigos, exposta na Bienal de Artes de São Paulo de 2010

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uma ideia passageira, modificando, assim, sua relação com ela. O ato de traçar o pensamento é o ato de transformar nossa relação com ele, fazendo com que ele seja menos efêmero. É uma maneira de marcá-lo”, explica. Assim, rascunhar ou anotar algo serve “para

mudar o relacionamento que nós temos com aquela ideia, para dar uma palpabilidade a ela”. Outra imagem utilizada pelo educador é a do rascunho como um oráculo: “Em várias culturas, existe a ideia de um oráculo, como o Oráculo de Delfos, dos gregos. Os romanos, os gregos, para saberem o que ia acontecer no futuro, pegavam uma galinha e abriam suas entranhas. Com base naquilo, diziam: ‘Não é uma boa época para uma guerra’. Não eram as entranhas que diziam isso, mas, sim, o processo de externalização de alguma coisa. O desenho em cadernos é uma espécie de oráculo. Ele permite que sejamos testemunhas de uma ideia”, define. O escocês diz que é comum que o público só tenha interesse pelas

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Ano11 Galeria Mariana Moura recife

Até 12 Fev T. 3465 5602

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obras finalizadas. “Para o artista, muitas vezes, o produto termina sendo até desinteressante. O bom criador está inevitavelmente mais interessado no processo. O produto para ele é uma mera consequência de um processo vicenciado. O criador, uma vez que termina seu trabalho, já quer um novo problema”, defende. Lin afirma que o pensamento dos cartunistas ainda é muito moderno, relegando o processo a segundo plano. “A gente fica na limitação de que a obra de arte é o que está acabado. E quem disse que é assim? O pensamento contemporâneo já entende isso de uma ‘obra finalizada’ como algo anacrônico”, expõe o quadrinista. Para Watson, no entanto, o público ainda tem uma visão simplista, quando

diante da possibilidade de ver partes do processo artístico de criação, como os sketchbooks. “Ainda existem ideias equivocadas de que a arte está associada ao talento, de que ela é algo que vem de cima. As pessoas têm essa imagem ideal do artista, e, quando acessam o processo, ficam fascinadas”, comenta. Sua experiência como pesquisador aponta que os autores têm uma visão contrária. “O que diferencia um artista de um amador é a paixão pelo que faz. Eles são mais apaixonados, por isso trabalham mais no que fazem. Entrevistei vários artistas em projetos de pesquisa. Eles ficam até insultados, se você fala com eles sobre talento; ficam ofendidos. Dizem: ‘Talento? Eu ralei muito para chegar até aqui!’”, finaliza.

Mariana Moura

galeria em novo espaço Em 2004, quando foi aberta, a Galeria Mariana Moura ocupava um agradável casarão, no bairro das Graças. Mudou-se em 2007 para Boa Viagem, e, agora, depois de consolidar-se como uma difusora da arte contemporânea, em Pernambuco, inicia uma nova fase. A galeria inaugurou, em janeiro, um espaço próprio, no mesmo bairro (Rua Professor José Brandão,163), e organizou a exposição coletiva Ano 11, com 18 artistas da casa, que fica em cartaz até 12 de fevereiro. A mostra teve curadoria coletiva dos artistas e da equipe da galeria. O mais curioso é observar o convívio e diálogo entre as diferentes gerações. Artistas como Gil Vicente, Marcelo Silveira e José Patrício expõem os seus trabalhos no mesmo espaço de Bruno Vilela, Bruno Vieira (foto) e do coletivo A casa como convém, artistas mais jovens. “Ter na mesma sala trabalhos de Eudes Mota e Amanda Melo, por exemplo, é um traço bem interessante da exposição”, defendeu a galerista Mariana Moura, que dá nome ao espaço. Nessa mostra, é possível encontrar um panorama das artes plásticas brasileiras, em especial, de Pernambuco. Gil Vicente apresenta dois desenhos em nanquim sobre papel, ainda inéditos no Recife. Outro contemporâneo de Gil, Eudes Mota expõe 19 peças da série Cruzadas, que faz alusão a palavras cruzadas. No novo espaço, foi inaugurada também a loja Banca. Comum às galerias de arte europeias, a venda de múltiplos, livros de artistas e outros objetos atraem pessoas que normalmente não possuem o hábito da frequentar galerias de arte. O preço mais baixo desses produtos é ideal para quem pretende adquirir peças de arte pela primeira vez. “A arte contemporânea precisa abrir portas, precisa chamar o público e não se esconder”, defendeu a galerista, que vê na Banca uma oportunidade de conquistar novos apreciadores . (Dora Amorim)

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como era bom

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Ai como era bom quando, mesmo

morando na Europa, em Roma, eu não sabia nome de nenhum time europeu! Na mensa, refeitório para estudantes e outros de baixa renda, falavam de um “Zulinho”, Julinho, brasileiro, respeitadíssimo, jogador de time italiano. Acho que o único. 1957. E, morando em São Salvador, como prefiro e está no samba de Geraldo Pereira cantado por Ciro Monteiro Falsa baiana, não tinha a menor ideia do nome do governador da Bahia nem de Pernambuco nem do presidente do Brasil. Não sabia do dia da semana nem do mês nem do ano: 1953? Por isso tenho dificuldade de fixar com precisão quanto tempo andei por lá, muito mal os lugares onde residi, alguns desaparecidos como Avenida Garibaldi e Buraco Doce, ambos no Rio Vermelho, e a lagoa do Pau Miúdo, aterrada com lixo, onde eu pescava traíra com Dna. Carmó, preta retinta,

ou negra retinta, não sei como é politicamente correto, bela e risonha, muito nova, belos dentes alvíssimos que vivia limpando com uma pele de fumo, o guarda-comida sempre absolutamente vazio, na casa não tinha nem prato, grandes risadas, feliz e fiel ao seu marido José, pedreiro, igualmente risonho e negro como ela, da mesma idade, tocava cavaquinho, tinham uma filha neném, e nunca me lembro de Dna. Carmó sem a filha no braço como se fizesse parte dela fisicamente, uma irmã siamesa colada no braço, a não ser de noite, a criança dormindo em casa com o pai, eu e Dna. Carmó na beira da lagoa onde as traíras dormiam entre os capins, eu com a pilha e ela com o facão, ela gritava: “Aqui, Seu Zé”, eu alumiava, ela metia o facão na cabeça da traíra. Depois tratava e estendia num varal para secar no sol, muitas vezes nossa única fonte de proteínas. Só saí de lá quando deu

uma cheia que levou as paredes da casa, descrevo isso no livrinho Viagem de um jovem pintor à Bahia, 1965. Como era bom quando eu não lia jornal, revista, nada, nem livros, por cuja leitura sempre tive paixão, pura vaidade! Como era bom meu retorno paulatino ao analfabetismo! De que nunca consegui sair, dirão as más línguas, e de que me gabo. Ai como era bom, muito antes de tudo, quando o Recife era uma ameaça distante, para onde se ia quando não tinha mais jeito! Naquela época, 30, 40, perdia-se o dia para chegar ao Recife, às vezes voltando do caminho, hoje Ipojuca tão perto. Era como ir a outro planeta. Mas mesmo assim quando meu pai perguntou: “Seu Zezé, quer ir estudar no Recife?” respondi “Quero” em cima da bucha. Eu tinha 10 anos. 1942. Seis anos interno no Marista. Ai como era bom quando eu não sabia nada e sabia tudo! Quando eu

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1 jean fouquet

Virgem com o Menino e anjos. Óleo sobre madeira, 91x81cm, 1450. Museu de Belas Artes de Antuérpia

pensava que um dia me assenhoriaria de todas as palavras de todas as línguas, teria lido todos os livros: continuo imaginando a eternidade suportável apenas se se pudesse dispor de todos os livros em todas as línguas, podendo entendê-los. Não sei se era bom ou se era ruim mas acreditando o suficiente para querer comprovar, como quando, eu e outros meninos, Henrique de Seu Otávio na certa, sempre meu parceiro em tudo, conseguimos arrancar cabelos de rabo de cavalo e botar numa bacia com água para ver se viravam muçus ou botar cinza de cavalo-do-cão do rabo vermelho em cima da urina ainda quente de uma menina, assim, claro, que ela tivesse acabado de urinar: ela seria da gente, conquista-la-íamos. Eu e Henrique nos escondíamos dentro das canas, num brejo no fim da Rua d’Água, onde as mães iam lavar roupa e levavam as filhas, mas nunca obtivemos êxito na empreitada, assim como fracassamos na caça ao cavalodo-cão do rabo vermelho: ainda hoje, aos 78 anos, quando me deparo com um cavalo-do-cão, chamado pelos meninos daqui de Olinda de zig-zig, verifico automaticamente se do rabo vermelho e, se ao alcance da mão, como ocorreu há alguns dias, tenho ímpetos de a ele me atirar mas aí me lembro de que não sou mais menino, de que a vida já passou, e o encanto se desfaz, restando a lembrança de Henrique, falecido há poucos anos em Ibotirama, BA. Desse riacho da Rua d’Água uma senhora aparentada à família de Henrique, Áurea, tirava massapê para fazer bonequinhos de barro, quem sabe uma das fontes de minha queda pela arte, o que me alegra pela origem popular que tanto prezo. Coisa boa nunca mais ter querido ser outra coisa senão pintor. Oxóssi pelo mato adentro. Não ter esmorecido. Pular da cama cedo. Viver e morrer

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Como era bom quando eu não lia jornal, revista, nada, nem livros, por cuja leitura sempre tive paixão, pura vaidade!

disso. Ser forte, o que sinceramente não fazia parte dos meus planos, “eu que sou fraco”, como diz o vate. Como foi bom a travessia no Conte Grande, 15 dias de mar, a viagem de Colombo às avessas, olhando a quilha do navio cortar a água desse meu mar ignoto, os peixes-voadores como se gerados das espumas. Como era bom pegar o ônibus toda manhã, seguir pela Via Nomentana, Porta Pia, ver o Tritão bebendo água num búzio na Praça Barberini, descer na Praça Colonna, seguir a pé pelo Corso, encontrar rapazes e moças risonhos, estimulados pelo frio, no Ferro di Cavallo, uma pracinha em forma de ferradura onde ficava a Academia de BelasArtes, desenhar modelo vivo, ouvir

professores dedicados falar de Ovídio e de Lorenzo Lotto. 1957. Como era bom andar de barco pelos canais de Bruges, ver os retratos pintados por Memling com a tinta bem fininha, vendo-se às vezes os riscos de lápis, sem aparatos, deixando-nos sós com os quadros, e assim em todo lugar, a Mona Lisa no Louvre, a Virgem de Fouquet, que Murilo Mendes me intimou a ir lá a Antuérpia ver, porque considerava o mais belo quadro já pintado no mundo. Como era bom eu não saber nada do que estava se passando no mundo. Um domingo, em Louvain, parece que em português é Lovaina, um mexicano, que eu via pela primeira vez, me deu um grande abraço, eu sem saber por que. “Mostramos a esses europeus o quanto valem nossos índios!” Ante minha surpresa: “O Brasil ganhou a Copa do Mundo!” O jogo tinha acabado naquele minuto na Suécia. Ele era estudante e na ocasião dava uma mãozinha na portaria da casa de estudante de Madame Morrin. Ai, Madame Morrin, como eu gostaria que a senhora estivesse viva para receber meus votos de Feliz 2011!

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HalliNa BElTRão SoBRE FoToS dE divulgação

REMAKES Por que Tio Sam não gosta de estrangeiro?

Refilmagem americana do argentino O segredo dos seus olhos atesta a aversão de produtores hollywoodianos e público a diferentes culturas TEXTO Rodrigo Carreiro

Claquete Março de 2010. O filme argentino O segredo dos seus olhos (2009), do diretor Juan José Campanella, fatura o Oscar de melhor produção não falada em língua inglesa. O prêmio coroa uma carreira internacional vitoriosa e recheada de elogios da crítica. Seis meses depois, em outubro, a Warner anuncia que fará um remake do longa-

metragem, adaptando o enredo para a língua inglesa, transportando a ação dramática para os Estados Unidos. Essa sequência de acontecimentos explicita um fenômeno que começou durante os anos 1980 e vem se tornando cada vez mais comum: as refilmagens de produções estrangeiras, levadas a cabo pelos maiores estúdios de Hollywood.

Os exemplos que confirmam a exacerbação dessa tendência são cada vez mais numerosos. O caso mais evidente tem como protagonista o thriller policial Os infiltrados (2006), responsável por dar a Martin Scorsese o primeiro Oscar de direção da carreira – e, também, por ter sido o primeiro remake de produção estrangeira a

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holandês O silêncio do lago (1988), o dinamarquês Perigo na noite (1994), o espanhol Preso na escuridão (1998), o japonês O chamado (2002), o sulcoreano Oldboy (2003) e os suecos Deixa ela entrar (2009) e Os homens que não amavam as mulheres (2009). Esses são apenas alguns dos títulos mais conhecidos a serem submetidos a uma espécie de tratamento de “americanização”. Via de regra, todos os longas-metragens citados passaram pela mesma experiência: após fazerem grande sucesso de público e crítica em sua região de origem, e assim chamarem a atenção de executivos de Hollywood, eles acabaram tendo os direitos comprados por produtoras norte-americanas. Então, receberam

Os infiltrados, longa dirigido por Scorsese, foi o primeiro remake de produção estrangeira a receber o oscar de melhor filme lançamentos em pequena escala dentro dos EUA (exibições restritas no circuito de cinemas alternativos ou venda direta em formatos de consumo caseiro, como VHS e DVD). Em seguida, foram reescritos e refilmados com elenco americano.

AMBientAÇÃo

receber a estatueta de melhor filme. Os infiltrados apenas duplica, cena após cena, uma engenhosa trama de espionagem oriunda de Hong Kong e popularizada em Conflitos internos, obra lançada em 2002, que alcançara grande sucesso na Ásia. A trajetória dessa adaptação foi semelhante à seguida por filmes como o franco-

Outro aspecto em comum, nesses casos de refilmagem, é que todos os novos roteiros mantêm os aspectos dramatúrgicos da progressão da trama, mas sempre transpõem a ambientação geográfica e cultural para algum ponto dentro do território dos Estados Unidos, além de eliminar da trama todos os aspectos exóticos que possam soar estrangeiros demais para o americano médio. O clima de repressão política na Argentina (pano de fundo de O segredo dos seus olhos), a viagem de bicicleta feita entre países (quando ocorre um evento crucial da trama de O silêncio do lago) e o polvo engolido vivo (cena de Oldboy) são aspectos retirados dos remakes. Afinal, pelo raciocínio dos produtores, nada disso faria sentido para o públicoalvo dessas produções, para quem esse

tipo de experiência cultural soa como incompreensível. Esse raciocínio explica, em parte, um enigma que tem assombrado todos os estudiosos desse fenômeno: por que Hollywood simplesmente não lança os filmes originais, ao invés de perder tempo e dinheiro refazendo as obras, muitas vezes com resultados que copiam plano a plano os originais (caso do austríaco Funny games, de Michael Haneke, de 1997, refilmado pelo próprio diretor em 2007, e até mesmo do mitológico Psicose, de Alfred Hitchcock, refeito em cores por Gus Van Sant, em 1998, numa estratégia equivocada de marketing, que quase enterrou a carreira do respeitado diretor independente)? A resposta, no entanto, admite ainda uma série de variáveis que precisa ser considerada.

BiLHeteRiA

A principal delas é a rejeição do público americano aos filmes realizados em outras línguas. As estatísticas mostram que, de 1980 a 2010, quase 997 longas-metragens de língua não inglesa foram lançados oficialmente nos cinemas dos Estados Unidos. No entanto, 70% desse total tiveram bilheterias inferiores a US$ 1 milhão, o que faz com que qualquer obra a ultrapassar essa cifra seja considerada um “sucesso” (para filmes em inglês, uma arrecadação inferior a US$ 50 milhões é sempre contabilizada como fracasso). Em 30 anos, somente 24 filmes não falados em inglês ultrapassaram os US$ 10 milhões arrecadados dentro dos EUA (entre eles, O labirinto do fauno, de Guilermo del Toro, e Diários de motocicleta, do brasileiro Walter Salles, ambos vencedores de categorias técnicas do Oscar). Esse número cai para nove, se a barreira a ser superada for de US$ 20 milhões. A lista é liderada por O tigre e o dragão (2000), de Ang Lee – único título a superar os US$ 100 milhões arrecadados – e inclui o italiano A vida é bela (1998) e o chinês Herói (2004), nas três primeiras posições. Nem sempre foi assim. Nos anos 1960, auge da Nouvelle Vague – e é importante ressaltar que, se os filmes de François Truffaut, JeanLuc Godard e conterrâneos não chegavam a ser exibidos nas cidades

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divulgação

2 EXCEÇÕES Deixe-me entrar (2010), versão americana do sueco Deixe ela entrar (foto), de 2008, recebeu diversos elogios da crítica internacional

cognitivo de informações visuais é simplesmente maior para quem precisa lidar com as legendas, e isso termina por afastar aqueles que não exercitam esse hábito com frequência.

CRISE CRIATIVA

Claquete 2

rurais dos EUA, eram extremamente populares entre universitários e junto ao público jovem intelectual de grandes metrópoles das costa oeste (Los Angeles, San Francisco) e leste (Nova York, Miami) –, cerca de 10% da arrecadação financeira do circuito de exibição cinematográfica do país vinham de filmes estrangeiros. Essa cifra havia caído para 7% em 1986, quando o fenômeno das refilmagens realmente ganhou corpo. De lá para cá, o número despencou para menos de 1% em 2009. Em outras palavras: o mercado cinematográfico para filmes não ingleses nos Estados Unidos vem encolhendo dramaticamente. Onde estaria a origem desse encolhimento? Mais uma vez, a resposta vem de aspectos culturais. O star system – tendência natural do público consumidor de cultura popular a transformar uns poucos atores e atrizes em grandes celebridades, cujos rostos familiares atraem mais pessoas para os cinemas do que os elogios da crítica ou o nome do diretor – contribui bastante para que os filmes estrangeiros, carentes de astros, passem despercebidos. O circuito exibidor contemporâneo, com cadeias de entretenimento que procuram oferecer menos opções de filmes para, assim,

Em 30 anos, somente 24 filmes não falados em inglês ultrapassaram os U$ 10 milhões arrecadados nos EUA maximizar o lucro com as produções de maior potencial, também prejudica os filmes mais obscuros. Por fim, há uma questão cultural importantíssima, que é o obstáculo final às produções estrangeiras em Hollywood: as legendas. A Motion Picture Association of America (MPAA) calcula que sete em cada 10 espectadores dentro dos Estados Unidos não assistem a filmes legendados. Acostumadas a ver a produção cinematográfica maciça ser falada na própria língua, essas pessoas não se sentem confortáveis para ler legendas. Há um componente cultural nessa rejeição – a força do hábito –, mas, de todo modo, existe também um componente puramente cognitivo: ao ter que dividir a atenção com a leitura de legendas, o espectador reduz significativamente o tempo dedicado à interpretação daquilo que vê na imagem. O processamento

Alguns críticos e pesquisadores também têm levantado, nos últimos anos, suspeitas de que os roteiristas norte-americanos têm passado por uma suposta crise criativa, algo que poderia ser comprovado pela tendência massiva de refilmagens de grandes sucessos do passado, inclusive norte-americanos (A fantástica fábrica de chocolate, o vindouro O mágico de Oz), e também pela preferência acentuada dos produtores por franquias de sucesso (O senhor dos anéis, Harry Potter, Crepúsculo, os filmes da série Batman) e adaptações de outras mídias, como quadrinhos e videogames (Scott Pilgrim contra o mundo, 300, Sin city). No entanto, é difícil sustentar essa afirmação a partir de estatísticas, uma vez que os roteiros originais são historicamente menos numerosos, e isso nunca foi garantia de qualidade. De todo modo, é importante olhar de modo crítico o preconceito atávico da comunidade cinéfila, para quem o fato de carregar consigo o status de remake faz de qualquer filme um produto de menor qualidade. Embora a maior parte das refilmagens dilua a força do original, seja limitando-se a atualizar os efeitos especiais (O planeta dos macacos, de Tim Burton) ou eliminando dos personagens qualquer tipo de complexidade moral (Vanilla sky, de Cameron Crowe), existem as sempre bem-vindas exceções, em que os diretores das versões mais recentes conseguem incluir temas ou comentários críticos de ordem pessoal ou social. É o caso de Os infiltrados e de Let me in, remake do sueco Deixe ela entrar, coberto de elogios pela crítica internacional.

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INDICAÇÕES DRAMA

A SUPREMA FELICIDADE

Direção de Arnaldo Jabor Com Marco Nanini, Dan Stulbach, Jayme Matarazzo, Maria Flor Paramount Pictures Brasil

A volta de Arnaldo Jabor aos sets de filmagem foi bastante esperada. Mas, depois de mais de duas décadas, o diretor exagerou no tom saudosista e fez de A suprema felicidade um filme preso ao passado. Jabor tenta contar várias histórias, mas acaba abandonando alguns dos seus personagens, ao longo da narrativa. A obra, no entanto, pode cativar ao mostrar a relação entre o protagonista Paulo e o seu avô, interpretado por Marco Nanini.

DRAMA

VINCERE

Direção de Marco Bellocchio Com Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Michela Cescon Imovision

Uma personagem esquecida pela história, Ida Dalser, morreu tentando provar que foi esposa do ditador italiano Benedito Mussolini, antes do seu governo. Ida não existia até o ano 2000, quando o jornalista Marco Zeni descobriu o drama da mulher e do filho que Mussolini tentou apagar da história. Com esse material em mãos, Marco Bellocchio fez um dos melhores filmes de 2010 e conseguiu retratar com primor a figura de um líder egocêntrico e seduzido pelo poder a qualquer custo.

DRAMA

COMÉDIA

Direção de Jan Kounen Com Anna Mouglalis, Mads Mikkelsen, Elena Morozova, Natacha Lindinger Imovision

Direção de Woody Allen Com Larry David, Evan Rachel Wood Paris filmes

COCO CHANEL E IGOR STRAVINSKY

Depois do insípido Coco antes de Chanel, a estilista francesa foi retratada à altura de sua polêmica e criatividade pelo diretor Jan Kousen. O confronto entre as personalidades fortes de Coco Chanel e Igor Stravinsky, personagens que marcaram o século 20 em suas respectivas artes (ela, na moda; ele, na música), são o grande contraponto do belo filme e da suposta paixão entre os dois.

TUDO PODE DAR CERTO

Woody Allen já fez algumas tentativas de pôr atores em papéis que poderiam ser interpretados por ele próprio. Mas nenhuma delas deu tão certo quanto a da escolha de Larry David (cocriador da imbatível série Seinfeld) para interpretar o neurastênico Boris Yellnikoff. Se, de um lado, Match point e O sonho de Cassandra são seus melhores dramas da década, por outro, Vicky Cristina Barcelona e Tudo pode dar certo são as mais acertadas comédias do período.

Policial

Para os espectadores que não quiseram ir ao cinema, que tentaram fazer o download ou comprar, em vão, cópias piratas de Tropa de elite 2 – O inimigo agora é outro, uma boa notícia: chega, enfim, o DVD do filme mais visto na história do cinema brasileiro, que ultrapassou Dona Flor e seus dois maridos (1976) e que mais arrecadou no país até hoje – com R$ 102,6 milhões –, transpondo, inclusive, os números do arrasa-quarteirão Avatar (R$ 102,3 milhões), de James Cameron. Além do forte esquema de segurança na distribuição do filme, garantindo que o público realmente fosse às salas de projeção, boa parte da explicação para esse megassucesso deve-se ao mais carismático e - agora icônico - personagem do cinema nacional, o Capitão Nascimento. Interpretado com maestria pelo ator Wagner Moura, que, com seu sotaque carioca, nos faz esquecer até de que ele é baiano. O líder

do Bope incorpora o primeiro super-herói brasileiro, o avatar de uma população revoltada com a corrupção na política e atravancada pelo excesso de violência gerada pelo tráfico de drogas. Reforçando a inesquecível atuação de Moura, estão atores competentes como Irandhir Santos (Fraga), Sandro Rocha (Rocha) e André Ramiro (Matias). Outro motivo que contribuiu para o êxito da produção foi o uso permanente de um discurso claro e direto, que analisa os graves problemas do país de forma “mastigada” e simplista. Essa narrativa linear é amarrada pela direção apurada de José Padilha, que lembra o trabalho extremamente realista de Kathryn Bigelow em Guerra ao terror (2009), sustentando a “veracidade” de cenas impactantes, como a rebelião na penitenciária e os tiroteios na favela. (Débora Nascimento)

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UM ARRASA-QUARTEIRÃO tupiniquim

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Imagens: divulgação

Leitura

américa latina Operação massacre, um clássico tardio O livro de Rodolfo Walsh é uma aula do mais alto rigor jornalístico, aliado a uma narrativa extremamente competente texto Samarone Lima

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Estamos em 18 de dezembro de 1956. Rodolfo Walsh tem 29 anos, não sabe ainda que será um mito da literatura latino-americana. Por enquanto, é capaz de passar muitas horas jogando xadrez, debruçado em seus livros de literatura fantástica, ou escrevendo contos policiais. A exemplo de grande parte de jornalistas de qualquer época ou geografia, rumina um “romance sério”. Pensa nas “outras coisas” que faz para ganhar a vida. Coisas que ele chama de jornalismo, “embora não sejam jornalismo”. Walsh não sabe, ainda, que, entre os dias 9 e 10 de junho daquele mesmo ano, após um motim peronista, um grupo de civis, confundidos com militantes do peronismo, foi pego pela polícia, levado para um lixão e fuzilado. Era o governo do general Pedro Eugenio Aramburu, que derrubara Juan Domingos Peron, através de um golpe, no ano anterior. Ele está num café, numa “sufocante noite de verão”, meditando sobre a vida, diante de um copo de cerveja, quando o acaso toca de leve seus ombros para mudar sua vida. “Um fuzilado está vivo”, diz um homem, secamente. A voz que sopra a frase em voz baixa chama-se Carlos Livraga. Tem um buraco na bochecha, outro maior na garganta, “a boca estraçalhada e os olhos opacos, em que ficou pairando uma sombra de morte”. Livraga também não sabe, ainda, que será descrito no capítulo 11 do livro Operação massacre, publicado

O mito Walsh, hoje, é nome de rua, praça, biblioteca, e é reverenciado em estudos e homenagens na Argentina no ano seguinte, graças à sua frase, como um sujeito magro, de estatura mediana, traços regulares, olhos pardo-esverdeados, cabelos castanhos, bigode, quando faltavam poucos dias para completar 24 anos. O encontro desses homens, diante de um copo de cerveja, resulta numa história que ninguém sabe, e que só Walsh, nesse momento, poderá agarrar. Livraga é um dos sobreviventes do fuzilamento. “A história me pareceu cinematográfica demais, apta a todos os exercícios da incredulidade”, escreveu o jornalista na introdução da primeira edição. “Essa impressão, no entanto, pode ser apenas a máscara da sabedoria. O incrédulo rematado costuma ser tão ingênuo quanto aquele que em tudo crê; pertencem, no fundo, a uma mesma categoria psicológica.” Walsh sai da conversa e a vida já não é a mesma. Toma uma série de decisões que o levariam ao extremo. É estranho dizer, mas aqui também começa sua morte, levada a cabo em 1977, pelos militares comandados por Jorge Rafael Videla, que tomariam o poder em 1976.

Durante quase um ano, ele deixa sua casa, o trabalho, muda o nome para Francisco Freyre, usa identidade falsa, consegue com um amigo uma casa no Bairro de Tigre, em Buenos Aires. Viveria dois meses “numa cabana gelada em Merlo”, e levaria consigo um revólver, possivelmente o mesmo que tinha, quando foi abatido. Durante os meses em que mergulhou na história, Walsh encontrou pessoas que deveriam ter morrido, mas que conseguiram milagrosamente escapar, numa noite de fuzilaria, correndo no descampado ou fingindo-se de mortas, tal como Livraga. Ao todo, sete homens estavam vivos. “Falei com familiares das vítimas, tive contato direto ou indireto com os conspiradores, asilados e foragidos, delatores presumidos e heróis anônimos”, diz Walsh, num livro que se torna uma aula do mais alto rigor jornalístico, aliado a uma narrativa que é um esplendor literário.

PUBLICAÇÃO

A história foi publicada num jornalzinho de sindicato, em meia dúzia de artigos, entre janeiro e março de 1957. Poderia ter morrido ali mesmo. Saiu sem assinatura, maldiagramada, com os títulos trocados. Coisas do jornalismo. Depois, foi ampliada para a revista Mayoria, entre maio e julho. Por fim, se transformou em livro.

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“Enquanto isso, a grande divindade dos choques elétricos e das metralhadoras começava a trovejar a partir de La Plata”, diz o escritor, numa premonição do terror total que a sociedade argentina passaria a viver, com o golpe militar de 1976, que deixou cerca de 30 mil desaparecidos. No dia em que os militares comemoraram um mês de ditadura, Walsh faria o percurso inverso da frase de Livraga. Escreveu uma Carta aberta de um escritor à junta militar, entregue a jornalistas de vários países, fazendo um balanço da “divindade dos choques elétricos e metralhadoras”.

Leitura Até aquele momento, 15 mil desaparecidos, 10 mil presos, 4 mil mortos. Ele era já um vivo que seria fuzilado. No dia seguinte, 25 de março de 1977, Walsh foi cercado no centro de Buenos Aires, resistiu com a arma que adquiriu possivelmente naquele distante ano de 1956, foi gravemente ferido e assassinado. Seu corpo nunca foi encontrado. Alçado à condição de mito, Rodolfo Walsh hoje é nome de rua, praça, biblioteca, é reverenciado em estudos e homenagens na Argentina e reconhecido como o precursor (ou “inventor”) da não ficção, que ainda não tinha sido “batizada” por Truman Capote, 10 anos depois, em seu renomado A sangue frio. Dividido em três partes, o livro começa com “as pessoas”, desdobrase nos “fatos” e termina com “as provas”. “Nicolás Carranza não era um homem feliz nessa noite de 9 de junho de 1956. Protegido pelas sombras, acabava de entrar em casa e talvez viesse remoendo algo por dentro. Nunca saberemos ao certo. Os homens levam para o túmulo muitos pensamentos amargos, e no túmulo de Nicolás Carranza a terra já está ressecada.” É apenas o primeiro parágrafo de Operação massacre, um clássico da literatura de língua espanhola que chegou ao Brasil no final do ano passado, com cinco décadas de atraso. Um atraso não ocasional e cheio de revelações.

litEratura hisPÂnica Encontros e desencontros entre irmãos latinos A tradução tardia para o português

de um clássico argentino como Operação massacre, (50 anos depois de sua publicação em espanhol) não chega a ser novidade, quando se fala da relação entre o Brasil e os vizinhos latino-americanos. Nos cursos de jornalismo, é mais fácil citar o trio norte-americano, formado por Truman Capote, Gay Talese e Tom Wolf, apontados como criadores do “Novo Jornalismo”, que olhar para os que estão ao lado. “O brasileiro médio ignora a América Hispânica”, observa o professor de espanhol, poeta e tradutor Wellington de Mello, um dos organizadores e tradutores da antologia Miguel Hernández – Ventos do

povo, editado pelo Instituto Cervantes/ Recife, em 2010. O livro, uma pequena celebração de um dos maiores poetas de língua espanhola, foi praticamente a única lembrança do escritor, em português, no ano do seu centenário. “Entre os iniciados em literatura espanhola, você vai ter gente que leu até Jorge Luís Borges, mas dificilmente chegará a Juan Rulfo”, lembra. A opinião de Mello é compartilhada por Martin Palácio Gamboa, uruguaio recém-chegado ao Recife, e professor do Cervantes. Há 12 anos trabalhando com literatura, dando aulas, traduzindo, ele deixou em Buenos Aires uma biblioteca de 3 mil livros, mas observa que há também um processo inverso.

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HallIna BelTrão

iniciativa própria, conheci Arnaldo Antunes, Roberto Piva, Lau Siqueira.”

ASSUMiR-Se

“A América Latina sempre se interessou pelo Brasil. Falo da literatura, do cinema, da música. Num passado recente, houve uma grande articulação cultural das esquerdas. O Tropicalismo e Ferreira Gullar chegaram em minha casa”, observa. Exílios, durante as ditaduras no Cone Sul da América Latina, fizeram com que escritores se deparassem com os vizinhos. Ferreira Gullar escreveu o clássico Poema sujo num período de desespero, quando achava que iria morrer, em Buenos Aires. Palácio observa, porém, que o Brasil “começa a perceber” que faz parte da América Latina. Nos últimos cinco, 10 anos, avalia, há mais aproximações, traduções, encontros. Ele cita os programas das universidades, que vêm passando por grandes mudanças. Em muitos casos, o interesse pessoal, a curiosidade, a vontade de ampliar horizontes acabam se tornando o impulso para os encontros. “Conheci Murilo Mendes já velho”, exagera Palácio, que tem 33 anos. “Mas, em literatura, nada se perde, pode chegar atrasado também. Por

Em 1973, Eric Nepomuceno foi morar em Buenos Aires, fez inúmeros amigos, e começou a traduzir, para que seus amigos daqui lessem o que era produzido em língua espanhola. “Assim comecei a traduzir: por afeto”, diz. Ao longo de 35 anos, são mais de 60 livros traduzidos. Ele avalia que lemos muito mais os hispano-americanos do que eles nos leem. Mas observa que recebemos muitos autores que “não passam de fenômenos de mídia”, deixando muitos outros de fora. Depois, pergunta: “Quantos de nós são conhecidos por eles?” Sobre o mito de que o Brasil dá as costas para a América Latina, ele vai ao ponto. “Acho que o Brasil tem demorado demais a se assumir como um país latino-americano”. Mas observa que o panorama começa a mudar. “Espero que seja uma mudança definitiva.” O escritor, tradutor e editor Mário Hélio, à frente da Editora Massangana, nos últimos oito anos, conseguiu incluir no catálogo vários autores de língua espanhola, especialmente na área da Antropologia. Dotado de uma memória prodigiosa, é capaz de citar dezenas de autores do mundo hispano-americano, que leu no original, e que não foram traduzidos. Ele também avalia que o Brasil está “mudando o olhar”, nos últimos anos. Aos poucos, o país vai se abrindo para “outras literaturas”, diz. Curador do Festival Literário de Porto de Galinhas (Fliporto), Hélio recorda que a presença de escritores de língua espanhola já se incorporou de forma natural à programação. Em 2009, o uruguaio Eduardo Galeano fez a conferência de encerramento da Fliporto. Em 2010, foi a vez do argentino Ricardo Píglia – que tem quase todos os seus livros traduzidos para o português. Hélio acredita que “Pernambuco é que está abrindo mais seu horizonte.” Ele concorda com o grande interesse do mundo de língua hispânica em torno da literatura brasileira. Cita uma viagem do poeta Affonso Romano de Sant’anna à Colômbia. “O tempo inteiro, as pessoas perguntavam a Affonso se ele conhecia um poeta brasileiro, chamado

Geraldino Brasil.” Numa de suas muitas viagens à Espanha, Hélio encontrou, em uma grande livraria de Madri, uma “antologia” de Geraldino. Em 2010, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) publicou A intocada beleza do fogo, com os poemas do alagoano Geraldo Lopes Ferreira, o Geraldino Brasil, morto em 1996. Um exemplo desse interesse de fora é o livro Un clásico fuera de casa – Nuevas miradas sobre Machado de Assis, que será lançado em março pela Editora Massangana. A obra é fruto de uma jornada sobre o escritor carioca, no Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca, sob a coordenação de Ascensión Rivas Hernández.

“o Brasil tem demorado demais a se assumir como um país latino-americano”. eric nepomuceno, escritor e tradutor Nepomuceno diz que “continuam faltando autores fundamentais” em língua portuguesa, como os argentinos Hector Tizón, Juan Forn, o venezuelano Luis Britto García, o cubano Eduardo Heras León, o nicaraguense Sérgio Ramirez e o mexicano Juan Villoro. “Repare que não mencionei ícones, como o nicaraguense Juan José Arreola, o peruano Júlio Ramón Ribeyro ou o guatemalteco Augusto Monterroso.” Os dois últimos foram traduzidos, mas “meio que em brancas nuvens”, afirma o tradutor. A lista é enorme. O autor deste texto levantou, junto com seus entrevistados, alguns grandes autores de língua espanhola, cujas obras ainda não chegaram em língua portuguesa: Antônio Muñoz Molina, José Maria Merino, José Pacheco, Benjamin Valdívia, David Huerta, Eriberto Cypes (México), Cesar Vallejo (Peru), Julio Inverso (Uruguai), Vicente Huidobro, Nicanor Parra (Chile), Roberto Juarroz, Antonio Porchia (Argentina). Mas, como diz Nepomuceno, a lista é “longa, longuíssima”. (sL)

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Imagens: reproduçÃO

Leitura quadrinhos The Spirit retratado por mestres da HQ

Publicação de luxo apresenta personagem a uma nova geração de leitores, mas não se compara aos originais de Will Eisner texto Danielle Romani

Representante da Era de Ouro dos quadrinhos norte-americanos, The Spirit, criado pelo desenhista e roteirista Will Eisner, em junho de 1940, é um dos personagens mais reverenciados do gênero, em todas as épocas. Elegância, humor e um marcante estilo noir – influência dos filmes e dos romances policiais – caracterizam a criatura atlética, que vive às voltas com bandidos esquizoides, mulheres fatais e perigosas, e muitas aventuras mortais. Qualquer publicação que envolva o herói mascarado causa expectativa.

O relançamento do álbum The Spirit: As novas aventuras, com o selo da Devir, foi comemorado como um evento especial. Nessa coletânea, com capa dura e produção de luxo, a editora reúne as primeiras quatro edições da raríssima série – publicadas nos EUA em 1998 – que mostram o herói retratado por grandes nomes dos quadrinhos mundiais, a exemplo de Alan Moore, Dave Gibbons, Neil Gaiman, Eddie Campbell, Mike Alfred, Daniel Torres, David Lloyd, Carlos Ezquerra, entre outros desenhistas e

autores. Will Eisner também participa do álbum, mas apenas retratando pin ups e as artes das capas das revistas originais, que só agora foram reunidas em um único volume. A história de abertura mostra a origem do clássico personagem sob o olhar de Moore e Gibbons, a mesma dupla que assina Watchmen! Nela, eles recordam como um dos maiores fascínoras da galeria de inimigos do justiceiro, o dr. Cobra, tenta matar Denny Colt, dando origem ao The Spirit, que, curiosamente, passa a habitar debaixo da cripta onde enterraram o suposto corpo de Denny. A ideia de reunir tantos mestres para uma releitura do personagem é válida e tem como propósito apresentá-lo a uma nova geração de leitores. Mas nenhum dos intérpretes consegue chegar perto do perfeccionismo de Will Eisner, que esmerava-se em recursos de luz e sombra, e sabia aproveitar-se da diagramação das páginas, utilizando retoquadros e balões como ninguém. O desenho clássico de The Spirit, e de suas mocinhas, inimigos e vilãs lindas e malvadas são um marco desse universo noir, que está intimamente ligado aos anos 1940/1950. Causam, portanto, estranhamento as adaptações que trazem traços mais modernosos, a exemplo da história ilustrada por Eddie Campbell, que soa como um croquis malfeito, apesar do bom roteiro assinado por Neil Gaiman. Ao contrário de outros ícones pops das HQs, como Batman e o SuperHomem, que se prestam a adaptações e readaptações diversas, The Spirit é algo tão bem-resolvido, com todos os elementos perfeitamente moldados, que qualquer alteração incomoda. O álbum vale como curiosidade e traz boas histórias? Sim! Mas bom, bom mesmo, é folhear e reler os clássicos assinados pela equipe de Will Eisner.

The Spirit: as novas aventuras vários autores Devir Livraria Nomes importantes das histórias em quadrinhos fazem releitura do clássico personagem.

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INDICAÇÕES CONTOS

ROMANCE

MARCELO BACKES Três traidores e uns outros Record

As estações mudam, as pessoas não. Partindo dessa premissa, o gaúcho Marcelo Backes desenvolve a trama de Três traidores e uns outros, que, em princípio, pode parecer um romance de formação, dado o dilaceramento existencial de seu protagonista, um tradutor que retorna ao interior e se isola depois de sucessivos fracassos mundo afora. Mas o estilo mencionado sugere movimento, enquanto a obra em questão, com doses de cinismo, perversão e desprezo pelo mundo (e vice-versa), disseca a estética da vida, com prováveis toques de autobiografia (Backes também é tradutor, professor e crítico literário).

ROMANCE

LETICIA WIERZCHOWSKI Os Getka Record

A profícua Leticia Wierzchowski (autora do best-seller A casa das sete mulheres, inspirador da minissérie global de 2003) chega ao seu 16º livro, pouco mais de um ano depois do lançamento de Os aparados. Sua obra mais recente, Os Getka, conta a história de um escritor em plena crise de meia-idade, cuja vida falida se resume a um casamento terminado e um livro sem começo. Resta ao protagonista Andrzej se fechar em suas memórias (e em seu escritório). São as lembranças da infância e juventude e a decorrente fuga do presente que permeiam a trama desta nova obra, que mescla os dilemas do personagem com história e tradições.

CARLOS EDUARDO MAGALHÃES Cama de pregos Grua

Primeiro livro de contos do paulistano Carlos Eduardo de Magalhães, que já publicou diversos romances, Cama de pregos agrega 28 narrativas, divididas em duas partes. A primeira inclui histórias que chegaram a ser publicadas em seu livro de estreia, escritas entre 1990 e 1993. A segunda abrange textos escritos entre 2000 e 2003, alguns dos quais veiculados em periódicos culturais, como a Bravo!. Apesar da distância temporal, os personagens de ambas as partes são marcados por conflitos internos. Leitores acostumados com o rigor de seus livros anteriores devem estranhar o lançamento, que consiste numa colcha de retalhos.

estudo

ANA LÚCIA ALTINO GARCIA O quinteto para piano no século XIX – Brahms Opus 34 Cepe

Após compor um quinteto de cordas para dois violinos, viola e dois cellos, Brahms, descontente com o resultado, tocou fogo na partitura sem permitir que o mundo conhecesse a obra. Não sem antes ter feito uma transcrição para dois pianos, que, depois, deu origem a um quinteto para piano e cordas, finalmente do agrado do compositor. O desafio de reconstruir hipoteticamente a peça original, a partir de um único fragmento deixado por Brahms em uma carta, motivou a pianista Ana Lúcia Altino Garcia a executar a tarefa em sua tese de doutorado, na qual traça um perfil de todos os quintetos com piano do século 19.

Biografia

A voz escrita de patti smith O ano de 2010 foi pródigo no lançamento de biografias sobre astros do rock. Dessas biografias, vale a pena destacar Só garotos (Cia das Letras), de Patti Smith, relato da carreira vertiginosa da cantora e poeta, hoje com 64 anos, ao lado da grande paixão de sua vida, o fotógrafo Robert Mapplethorpe, cuja estética visual viria a chocar setores conservadores e patrocinadores oficiais das artes nos EUA dos anos 1970. Mais do que elencar fatos, a autora de Horses, disco que redefiniria o papel da mulher e da poesia no rock, narra as

dificuldades da ascensão em uma sociedade às voltas com as drogas e consequentes mortes de Jimi, Janis, Jones, os conflitos envolvendo a guerra do Vietnã, numa atmosfera hostil de mudanças, e o verão em que ela conheceu Mapplethorpe – essa relação levou-os a superar o preconceito e os padrões intolerantes. Há doses de humor no livro, quando por exemplo, Allen Ginsberg a confunde com um menino e, ao perceber o engano, dá o fora. E o apelo dramático de Robert, ao fim do namoro: “Se você me deixar, eu viro homossexual”. (Luiz Arrais)

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Artigo

karina freitas sobre foto de arquivo

Paulo Souto Maior o Recife pelo olhar estrangeiro No século 19, a capital da província de Pernambuco possuía três freguesias, cada uma com usos e características espaciais e construtivas próprias. É nos escritos de viajantes europeus que se podem colher registros e descrições físicas da cidade naquela época. Em grande maioria ingleses, eles estiveram no Recife por questões comerciais, mas também políticas — e alguns aqui aportaram em busca do nosso clima tropical, mais adequado à cura de enfermidades pulmonares. Não esquecendo que muitos desses relatos estão carregados de preconceitos, valores morais e crenças religiosas, pode-se, ainda assim, deles extrair o reflexo íntimo de assuntos que não aparecem em documentos oficiais. Portanto, essas impressões particulares nos falam da intimidade de algumas cidades brasileiras. Dentre aqueles que viram e escreveram sobre o Recife no século 19, Koster, Tollenare, Henderson, Graham, Rugendas, Kinder, Darwin e Figueiredo nos deixaram relatos minuciosos. Segundo esses viajantes, ao se aproximarem por mar do principal porto da região, avistava-se, ao norte, uma colina na qual se edificou a antiga capital, a cidade de Olinda, e, um pouco mais ao sul, o cabo de Santo Agostinho. Eram essas as principais referências desde o oceano. Antes do desembarque, já se percebia que a cidade do Recife era em grande parte insular, localizava-se justamente entre as desembocaduras dos rios Capibaribe e Beberibe; pois os limites das freguesias do Recife, de Santo Antônio e da Boa Vista estavam determinados por água. Tal situação geográfica atribuiu a cada uma dessas áreas características espaciais e construtivas — e usos — que permaneceram durante grande parte daquele século. Alguns mapas da época fornecem um dado simples, mas de grande relevância para definir

a cidade: esses três núcleos urbanos eram praticamente ilhas. Assim, os rios e canais foram os meios de transporte mais cômodos. Isso porque, com as péssimas estradas que existiam, e que as abundantes chuvas estragavam ainda mais, a navegação fluvial representava um meio seguro e rápido. É tão significativo este fato, que grande parte do açúcar, antes da introdução das estradas de ferro, chegava ao porto em canoas. O porto estava localizado na freguesia do Recife. Nela, que podia

ser considerada uma ilha, vivia e trabalhava a grande maioria daqueles que se dedicavam ao comércio, ou seja, que exportavam algodão cru e açúcar e importavam os mais variados gêneros da Europa. Como ali se concentrava a atividade mercantil da província, as construções particulares eram as mais altas da cidade, uma vez que as edificações serviam de residência e armazém. Naquela área, na primeira metade do século, podiam ser vistas várias construções com três, quatro e até cinco pavimentos,

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o presidente da província. Além dessas características, Santo Antônio apresentava uma grande diferença em relação ao Recife, pois seu comércio era basicamente varejista. Em resumo, essa área caracterizava-se pelo pequeno comércio e pela administração pública. De Santo Antônio, também atravessando pontes, chegava-se à Boa Vista, onde ficava, como diziam alguns, “o continente”. No entanto, a Boa Vista também estava, curiosamente, cercada de água por quase todos os lados. Suas fronteiras eram delimitadas, ao norte, por um afluente do Beberibe e, a sudoeste, por um braço do Capibaribe e pelos manguezais que

De Santo Antônio, também atravessando pontes, chegava-se à Boa Vista, onde ficava, como diziam alguns, “o continente”

a maioria com paredes de alvenaria pintadas de cal. As ruas, à exceção da principal, a Rua da Cruz, eram estreitas e irregulares, mas quase todas estavam calçadas e tinham meios-fios azulados e pequenos blocos de granito. Lá também existiu um bar-café, onde se reuniam e faziam negócios os comerciantes da área, um pequeno mercado, o edifício da alfândega e vários depósitos. Do Recife se acedia a Santo Antônio através de duas pontes. Ali as ruas eram mais largas, embora muitas

ainda estivessem por calçar. Existiam diversas construções térreas, seguidas por um número menor com dois e até três pavimentos. Com quatro, havia poucas. Segundo aqueles que visitaram a cidade antes de meados do século, essa era a parte mais atrativa. Seguramente tinham razão, pois, além de não estar tão aglomerada como o bairro do Recife, concentrava bom número de edifícios públicos. No local, foram construídos o Teatro de Santa Isabel, o Mercado de São José e a casa onde vivia

existiam onde hoje se situa o bairro de Santo Amaro e que a separavam de terra firme. Houve até quem se referisse à cidade como a Veneza Pernambucana, mas não seria de estranhar que, aos estrangeiros, isso mais parecesse uma anedota local. Dos três núcleos originais, esse era o mais disperso, em que as ruas podiam ser mais largas, embora a maioria delas fossem sem pavimento. É que não havia restrições geográficas tão definidas, como se dava com as outras duas freguesias. Ali se construiriam, principalmente, residências que se permitiriam o luxo de possuir grandes jardins. Ao longo daquele século, a aristocracia rural do açúcar começava a se mudar para a capital. Na época, os senhores de engenho passavam a substituir a casa-grande por uma residência fixa na cidade, e a única freguesia que dispunha de grandes áreas era a da Boa Vista. Ainda que a maioria das casas fosse térrea, algumas podiam ser consideradas quase palacetes. Era o reflexo do modelo rural que se transferia e adaptava.

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Luís Henrique Pellanda Amy é um gênio

Luís Henrique Pellanda

é escritor, jornalista, dramaturgo, roteirista e músico. É autor do livro de contos O macaco ornamental matheus dias/divulgação

A professora Mary Ashley, especialista em assuntos do leste europeu, é convidada pelo presidente dos Estados Unidos a assumir a embaixada americana na Romênia. Mas seu marido, o doutor Edward, desaprova a ideia. Não quer abandonar seu consultório no Kansas. Mary se submete e recusa o cargo. Pouco depois, o médico morre num acidente automobilístico e a viúva, abalada, decide voltar atrás. Atende à convocação presidencial e dá início a uma eletrizante carreira diplomática. Eis o enredo do livro Um capricho dos deuses, lançado por Sidney Sheldon, em 1987; e era esse o best-seller que Amy Winehouse lia à beira da piscina do Hotel Santa Teresa, no Rio, na tarde do dia 8 de janeiro. Notícia quentíssima. Juntos, Winehouse e Sheldon ganharam até manchete na Folha.com. Chamada de capa no UOL. Coincidentemente, naquela mesma semana, tomado por uma espécie de “siricotico” arqueológico casual, eu havia me dedicado a vasculhar, sem objetivo definido, uma porção de gavetas e baús da velha casa de meus pais, onde passei a infância, nos anos 1970. E dali desenterrei uma preciosidade: os cinco volumes do Dicionário do lar, organizado por uma tal de Cláudia Santos, e que, em 1969, já estava em sua 20ª edição. A obra fornecia às suas leitoras noções básicas a respeito de qualquer coisa; ensinava-as a saborear bananas com o auxílio de um garfo e uma faca, a polir pedras preciosas e escolher nomes apropriados à sua prole. Nada disso, claro, nos interessa hoje, é coisa morta e sepultada. O que nos interessa é discutir literatura, um tema cada vez mais atual. Portanto, aí está um trecho do capítulo que a autora reservou aos livros em seu Dicionário do lar: “A mulher deve lutar contra o enjoamento, que relaxa e destrói o caráter, contra a obsessão da coqueteria e o complexo de inferioridade. Para isto, deve ocupar sua vida de coisas úteis”. Em seguida, após aconselhar o mulherio a fugir de novelas em quadrinhos e romances baratos, Cláudia passa a enumerar dicas de outra natureza. Em encadernações de couro, diz, deve-se esfregar óleo de alfazema. Mas, para desinfetar livros usados — um perigo! —, a solução é apelar à seguinte fórmula: cianureto de mercúrio 3.0, creosoto 120.0, óleo de cravo 2.0, essência de alfazema 10.0 e álcool a 90 graus 1000.0. E, assim ilustrados, chegamos à pergunta final: o que não deve faltar em nossa biblioteca? Ora, essência de sândalo e um pedaço de cânfora. Xô, insetos! E pensar que, naquela mesma década de 1960, Sidney Sheldon libertaria as mulheres de seus afazeres domésticos. Quem poderia supor que, nos anos 1980, elas já estariam trabalhando fora, e até seriam sensuais embaixadoras em Sófia? Amy Winehouse está mais do que certa em pagar tributo a ele, o imortal criador de Jeannie é um gênio. Aliás, Amy e Jeannie não têm um penteado parecido?

con ti nen te

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