Continente #124 - O papel das cartas

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REPRODUÇÃO

ABRIL 2011

aos leitores

E-mail, teleconferências, redes sociais... A tecnologia vem alterando profundamente as formas de comunicação entre os seres humanos. As antigas cartas, escritas a punho ou em máquinas de escrever, lacradas e enviadas via correio, parecem já esquecidas e obsoletas, para a amargura dos saudosistas. Sem se propor a questionar essas mudanças, a edição deste mês da Continente, em texto de Gianni Paula de Melo, dedica algumas de suas páginas à prática de enviar correspondências. Apesar de terem sido escritas para um só destinatário, ao longo do tempo, essas mensagens têm se prestado a outras funções. Ao ter acesso às cartas trocadas entre um artista e seu irmão (Van Gogh e Theo), ou entre um escritor e sua amada (Kafka e Felice), é possível conhecer um pouco da intimidade do gênio, como se a correspondência fosse um relato autobiográfico. Esse é o caso de uma carta inédita, publicada com exclusividade por nós, do escritor Osman Lins para sua filha Ângela, uma das tantas que escreveu para as três filhas, quando vivia em São Paulo. As qualidades desses textos levam à indagação: seria este um gênero literário?

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Um assunto que deverá ser discutido ao longo de 2011 são os 20 anos do final da Guerra Fria. A Continente busca anteciparse ao debate. A repórter Danielle Romani fez um vasto apanhado do reflexo dessa ação política no campo cultural, em especial nos EUA, o berço da contracultura. Na matéria histórica, ela se refere aos filhos do baby boom, aos filmes estrelados por James Dean e Marlon Brando, à influência dos beatniks Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, aos hippies. Para realizar esse trabalho, ela contou com a colaboração de historiadores especialistas no período. Ainda nesta edição, o jornalista Marcelo Robalinho e a fotógrafa Isabella Valle desvendam o Edifício Pirapama, um dos valiosos exemplares do acervo arquitetônico moderno do Recife, projetado pelos arquitetos Delfim Amorim e Lúcio Estelita, em 1956, e inaugurado no início dos anos 1960. Além dos aspectos construtivos peculiares ao imóvel, a reportagem atém-se ao elemento humano, riquíssimo e relevante, quando se trata de um dos mais complexos endereços do hoje decadente centro da cidade.

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sumário Portfólio

Kilian Glasner 6

cartas

7

expediente + colaboradores

8

68

Matéria corrida

76

Sonoras

80

Leitura

82

claquete

86

Artigo

88

Saída

entrevista

Arnaldo Saraiva Ensaísta e professor português expõe sua visão sobre a literatura de cordel brasileira e portuguesa

12

conexão

20

Balaio

46

comportamento

64

Visuais

BandCamp Site tem sido visto como a evolução do MySpace graças à navegação mais fácil e qualidade do áudio

Síndrome de Bartleby Entre os escritores que se negaram a escrever, figura o estranho Paranoico Perez

Anonimato Num meio de egos inflados, alguns artistas optam por manter suas identidades em sigilo Fotografia Livros recentes reúnem obras emblemáticas do francês Doisneau e do mexicano Juan Rulfo

José cláudio Exaltação a Hermila

Forró Estrangeiros descobrem o ritmo nordestino através do trabalho da banda Forró in the Dark

Com uma formação acadêmica sólida, o artista empreende, através de suas obras, uma vasta pesquisa sobre o papel do desenho na arte contemporanea

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Historiografia Guia politicamente incorreto da história do Brasil desconstrói mitos da história nacional, mas reforça preconceitos

CinePE Considerado um dos mais importantes do país, festival completa 15 anos tendo como marca a participação do público

Mania de zumbi Antes restrita à cultura pop, temática dos mortos-vivos começa a ganhar espaço também na academia

nicole cosh As nuances do colecionismo

Pernambucanas Pirapama

O edifício construído nos anos 1960, a partir da ideia, então original, de abrigar moradia, comércio e serviço, reflete hoje a decadência do centro do Recife

50 Capa iLuStrAção Índio San

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História

especial

Movimento surgido como reação à Guerra Fria caracterizou-se pela atitude pacifista, marcando profundamente a cultura mundial, pela emergência dos jovens

Cartas são originalmente escritas para leitura privada, mas pelo valor de sua escrita e pelos méritos do autor, podem tornar-se objetos literários

cardápio

Palco

Assim como ocorre na região de Languedoc-Roussillon, na França, o Vale do São Francisco desponta para o mercado mundial da produção vinícola

Interessado em estabelecer no Brasil o método cubano de balé clássico, o bailarino Luis Ruben Gonzalez instala-se no Recife e em São Luís

Contracultura

22

Vinhos jovens

60

Literatura

32

Abr’ 11

Dança

70

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cartas Revolução Mexicana Fernando Monteiro, poeta agreste do sonho de redenção e delírio que moveu e acalentou, entre tantos, os herdeiros dos Aztecas (povo guerreiro, cobiçoso e organizado). Suas palavras (na edição de março da Continente), como sempre, cheias de imagens ricas e complexas. Gostei muito do tom. O México e sua primordial revolução continuam a intrigar-me. A sensação é de que as perguntas não encontram respostas (ao menos, respostas “fáceis”). Ântônio Sérgio Bichir São Paulo-SP

Azulejos Uma grata surpresa ver a revista Continente do mês de março com a capa estampando azulejos similares aos do meu terraço. Quero dar parabéns a Danielle Romani pelo artigo, com as fotografias de Roberta Guimarães. Bom saber que existem pessoas preocupadas com a tradição, que reconhecem o valor de coisas que

preocupações e assuma o papel de fiscal do bem público. O texto sobre azulejaria moderna ficou adequado ao contexto da matéria e acho que ampliou o problema da conservação do nosso patrimônio. luiz amorim recife-Pe

Twittadas A matéria sobre os quilombolas de Caiana dos Crioulos está linda, parabéns pela delicadeza! Samuel freitaS

já não se fazem mais. Também é bom saber que a arquiteta Sylvia Tigre de Hollanda se interessa por esse tipo de arte. Sou morador de uma casa na Rua do Futuro, construída no início do século 20, que preservo como uma joia. rafael de Queiroz SantoS recife-Pe

Azulejos 2 Parabéns pela matéria sobre azulejaria. Espero que o poder público veja a mensagem e que a população conheça nossas

Você faz a continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho leite, 530, Santo amaro, recife-PE, CEP 50100-140).

Perfil: @SamuelfreitaS_

eRRAtA Diferentemente do publicado na página 33, da edição de março da Continente, o arquiteto Delfim Amorim projetou painéis para os edifícios Santa Rita, situado na Avenida Conde da Boa Vista, Independência, na Rua Sete de Setembro, e Barão do Rio Branco, na Rua do Giriquiti. Na mesma página, o nome correto do artista plástico que se dedicou à arte azulejar é Petrônio Cunha.

as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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colaboradores

Alfredo cordiviola

Marcelo Robalinho

Maria Alice Amorim

Antônio Martins neto

Doutor em Estudos Hispânicos e Latino-americanos pela Universidade de Nottingham

Jornalista e doutorando em Comunicação em Saúde na Fiocruz

Jornalista, pesquisadora de cultura popular e doutoranda em Comunicação e Semiótica

Repórter especial da TV Jornal e correspondente do SBT no Nordeste

e MAiS Daniel Buarque, jornalista e autor de Por um fio – O mundo explicado pelo telefone. christianne Galdino, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural. Flora Pimentel, fotógrafa. isabella Valle, fotógrafa. nicole cosh, especialista em arte-educação, mestra em Antropologia e coordenadora dos Cursos de Bacharelado em Artes Plásticas e Bacharelado em Fotografia das Faculdades Integradas Barros Melo. Luiz carlos Pinto, jonalista. Rodrigo Dourado, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação Social. tiago de Melo Gomes, doutor em História pela Unicamp e professor de História Contemporânea da UFRPE.

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE redaÇão, adminiStraÇão e ParQue grÁfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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ARNALDO SARAIVA

Evidente matriz do cordel do Brasil Com estudos dedicados às literaturas marginais, ensaísta e professor português traz ao Recife primeira exposição, em solo brasileiro, dos folhetos portugueses texto Maria Alice Amorim

con ti nen te

Entrevista

Poesia: foi essa a ponte que Arnaldo Saraiva construiu para transitar sobre o Atlântico. E é poeticamente que declara viver entre Portugal e Brasil, desde 1965. Sobre a obra de Drummond veio o primeiro texto a ser publicado no país – a apresentação para o livro Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema, preparado com o próprio poeta em 1967, e que acaba de ser republicado. Bandeira e João Cabral estão entre as paixões, além de outros brasileiros e dos portugueses sobre os quais se debruça, a exemplo de Fernando Pessoa. “Máquina subversiva”: assim define a poesia o professor universitário, pesquisador, ensaísta, poeta, cronista, tradutor e especialista em literatura de cordel, que, subvertendo ele mesmo os cânones literários, elegeu a poesia tradicional de cordelistas como um dos pilares de sua vasta e consistente produção acadêmica. Arnaldo foi o criador da cadeira Literaturas Orais e Marginais, na Universidade do Porto. É autor de uma série de ensaios – Literatura marginalizada, publicada em dois volumes nos anos 1975 e 1980 – e já tem material

suficiente para, pelo menos, mais dois volumes. Foi, ainda, professor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e na Universidade de Paris – Sorbonne Nouvelle. Tradutor de Brecht e Roberto Juarroz, passou décadas burilando a tradução dos 11 poemas do trovador Guilherme IX de Aquitânia. O “máximo de literalidade” e o “máximo de poeticidade” foram os critérios que adotou, inclusive o rigor quanto à rima e à métrica, para a produção dessa obra de referência, que, pela primeira vez, é traduzida e editada integralmente em língua portuguesa (Assírio & Alvim e Unicamp). Sua coleção de cordéis contabiliza hoje cerca de 700 títulos portugueses, muitos dos séculos 18 e 19, entre os quais seis dezenas de folhas volantes. O mais antigo é de 1602. Os cordéis brasileiros, que há muito não contabiliza, passam de 3.500, comprados a partir de 1965, ano em que decidiu conhecer o Recife, exatamente a mesma cidade em que primeiro havia pisado terras brasileiras, ainda que apenas no aeroporto. Em todas as vindas

ao Nordeste aproveita para ampliar o acervo, adquirindo novos títulos, além das ofertas de poetas e amigos. Em 2006, publicou o catálogo Folhetos de cordel e outros da minha colecção, editado pela Biblioteca Municipal Almeida Garrett, do Porto, e expôs 125 folhetos da coleção de raridades que possui. A exposição passou, ainda, pela Biblioteca Nacional de Lisboa e agora – ampliada para 253 exemplares – chega ao Recife, precisamente ao Museu de Arte Popular, no Pátio de São Pedro, onde poderá ser vista até o dia 30 de abril. É sobre literatura de cordel que Arnaldo Saraiva fala à Continente. continente É sabido que as matrizes textuais dos folhetos de cordel brasileiros são as dos folhetos portugueses. Explique-nos. ARnALDo SARAiVA O Brasil foi “descoberto” quando na Europa ocidental começaram a circular as primeiras folhas volantes e os primeiros folhetos. Devemos admitir que marinheiros e emigrantes portugueses muito ou pouco letrados, já no século 16, levariam consigo alguns deles, como de

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Flora pimentel

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que tanto pode dever-se a algum preconceito de gente que se supõe culta como à má qualidade textual de muitos deles. Porque é preciso dizer que nem todos os folhetos são de literatura, e nem todos são boa literatura. Genericamente, as suas qualidades são as dos textos literários: apuro verbal, formulações ou representações originais e sensíveis, trabalho do ou sobre o imaginário. continente Que outros aspectos, além do poético, são relevantes para os estudos do cordel?

imaGenS: reproDUÇÃo

certeza fizeram em séculos posteriores, até para os venderem. Curiosamente, foi também no século 16 que, esquecidos os cancioneiros medievais, incluindo o de Garcia de Resende, se começou a formar, em terras portuguesas, um cancioneiro oral em que são evidentes – a par da linguagem oralizante e concreta, da visão pragmática e popular do mundo ou da vida (com especial focalização nos campos do amor, do trabalho e da aventura, real ou fictícia), e da relativa brevidade textual – algumas preferências formais favoráveis não

con ti nen te

editoriais e textuais. É evidente que o folheto de cordel pede e pedirá sempre estudos de poética – e de história, de sociologia, de psicologia (da composição, mas também das “massas”), de economia, de antropologia, de folclore, de linguística, de teoria da comunicação… continente Tendo em conta os cinco séculos de produção, que características definiriam obrigatoriamente o folheto? ARnALDo SARAiVA Tanto do ponto de vista textual como do extratextual

“As qualidades dos folhetos literários são as dos textos literários: apuro verbal, formulações ou representações originais e sensíveis, trabalho do ou sobre o imaginário”

Entrevista só à fácil composição, mas também à boa recepção e memorização: o romance – um poema narrativo com afinidades com a balada –, geralmente assonantado, a quadra, a sextilha e a décima, com versos de rima cruzada e redondilhos, de cinco ou sete sílabas. O cordel brasileiro ou nordestino honrou essa tradição secular, mas fixou-se sobretudo na sextilha e no verso de redondilha maior. continente Que qualidades literárias você destacaria nos folhetos? ARnALDo SARAiVA Quando hoje se fala em “literatura de cordel”, nem sempre se pensa só em textos de folhetos, e insinua-se frequentemente uma depreciação,

ARnALDo SARAiVA Quando, em meados dos anos 1960, comecei a interessar-me pelo cordel, percebi que em Portugal quase ninguém o estudava e não havia, nem há ainda, uma só obra de referência sobre ele; e dei-me conta de que o Brasil só mobilizara quatro ou cinco universitários: Cascudo, Cavalcanti Proença, Mark Curran, Cantel… Nas últimas décadas proliferaram os estudos do cordel brasileiro, alguns dos quais muito incipientes e repetitivos, mas no Brasil, como em Portugal, há ainda muito a apurar à volta dos folhetos: biografias e identificação de autores, gravadores ou ilustradores, impressores, vendedores; condições e lugares de produção, venda, leitura e audição; relações entre textos e cantorias ou recitações; fontes de inspiração e métodos de trabalho ou composição; questões genéticas, linguísticas, comparatistas; tipologias

há uma enorme variedade de folhetos, mesmo considerando só os que são verdadeiramente de cordel (porque alguns são só imitações). Mas há também evidências e constantes: oposição à ideia de livro (mais ou menos extenso, mais ou menos sólido); brevidade textual ou escasso número de páginas (indo do extremo da volante – folha volante – ou das quatro páginas – a folha dobrada – até ao de um livrinho ou livrito de mais de 32 páginas, mas ficando geralmente pelas 8, 12, 16, 24 páginas); papel ordinário ou frágil; relativa despreocupação na impressão ou no grafismo, salvo o da capa, que durante séculos era do mesmo papel do folheto e se valia frequentemente de uma chamativa gravura ou xilogravura; leveza; baixo custo de produção e baixo preço de venda; temas ou matérias de interesse popular ou coletivo; linguagem escrita, mas geralmente próxima da ou comprometida com

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a oral; discurso de tipo jornalístico, de fácil ou simples comunicação, e com os olhos postos na atualidade; texto orientado quase sempre para o cumprimento de funções informativas, moralizadoras, críticas e distrativas. O folheto não se afastou muito, ao longo dos tempos, do mesmo modelo gráfico, que no Brasil se padronizou mais do que em Portugal; mas devem ser assinaladas as mudanças, a partir da primeira ou segunda década do século 20, da diferenciação do papel da capa e da introdução nesta da

deram grande relevância aos folhetos sobre João de Calais, e eu tenho em fase adiantada um longo estudo sobre esses folhetos, de que já inventariei mais de uma trintena de edições diferenciadas. Inspirado numa narrativa da francesa Madame de Gomez, que a publicou em 1722, o “romance” ou a “história” de João de Calais é exemplar a vários títulos: exemplo de migração ou emigração da França para Portugal (sem parar em Espanha), e de Portugal para o Brasil, onde aparece inicialmente em prosa portuguesa, depois em

“ não é possível contabilizar os milhares de folhetos sobre João de calais, clássico do cordel português e brasileiro, vendidos desde os fins do século 18” cor, ou de um novo tipo de gravuras (as zincogravuras) e de ilustrações (fotografias, desenhos, caricaturas…); mais recentemente, tornou-se notória a melhoria da impressão em offset, e, nos últimos anos, por computação. Como antes noutros países europeus, o típico folheto de cordel desapareceu (em Portugal por volta de 1970), quando no Brasil começou a ser mais difundido, até para fora do Nordeste, e a aumentar a sua produção, já não devida só a poetas populares, nalguns casos pouco alfabetizados, mas também a universitários, o que se evidencia nos textos, que também podem refletir muito epigonismo e artificialismo. continente Fale-nos sobre o romance João de Calais, clássico do cordel português e brasileiro. ARnALDo SARAiVA Luís da Câmara Cascudo e a minha saudosa amiga Francisca Neuma Fechine Borges

verso brasileiro, e também em verso português; exemplo de transições ou transcodificações da prosa para o verso, do oral para o escrito e do escrito para o oral; exemplo de modalidades de tradução e de adaptação, de variantes e de variações; exemplo de tratamento lírico de um personagem heroico, com características que podem lembrar heróis bíblicos, gregos (Ulisses), romanos, cavaleiros medievais, aventureiros e marinheiros renascentistas… Infelizmente, não é possível contabilizar os milhares de folhetos sobre João de Calais que se terão vendido desde os fins do século 18; mas temos testemunhos até de vários escritores cultos (António Nobre, Miguel Torga, Vitorino Nemésio…) que dão conta do sucesso ou do fascínio de tal personagem. continente O cordel feito hoje no Brasil mantém coerência quanto à secular tradição

poética arraigada na cultura nordestina? ARnALDo SARAiVA Há largas décadas que deixou de se produzir na Europa o típico folheto de cordel – por razões que se prendem à escolarização geral e à popularização da imprensa, do rádio e da televisão. Que no Brasil continuem a produzir tantos folhetos, que haja ainda um numeroso público, e não já só no Nordeste, e não já só popular, interessado nesses folhetos, que à custa dos folhetos viva uma poderosa indústria brasileira – é coisa que poderá causar espanto em todo o mundo, e que parece um milagre, como milagre parece ter sido o “nascimento” do típico cordel brasileiro nas fronteiras da Paraíba e de Pernambuco, na segunda metade do século 19, à volta de poetas excepcionais como Silvino Pirauá de Lima e Leandro Gomes de Barros, assim como de gravadores, cantores e tipógrafos populares, que às vezes se reuniam na pessoa do próprio poeta. O folheto nordestino foi claramente modelizado pelo folheto português, idêntico ao espanhol; prescindiu do teatro e, quase, da prosa, abundantes no cordel português, prolongou a produção de poemas de tipo tradicional como os debates ou as pelejas, os ABC, os testamentos, fixou-se em testados tipos populares de estrofe e de metro, como a sextilha e a redondilha maior, herdou ciclos e personagens de contos e de cordéis de sucesso europeu, como a Imperatriz Porcina, Carlos Magno, João Grilo, mas introduziu novos ciclos e novos personagens (o cangaço, o futebol, a história brasileira, a vida sertaneja… Lampião, Padre Cícero, Cancão de Fogo, seu Lunga, políticos e personalidades brasileiras, cabras da peste), valeu-se de uma língua mais oral, mais popular e mais afastada das normas gramaticais, contou com a produção de algumas mulheres, tendeu muito mais para a exploração do cômico e do jocoso, soltou-se mais na prática da crítica, na invenção e na exploração do imaginário. É possível que o folheto de cordel brasileiro tenha, também ele, os dias contados. Mas é impossível que a tradição que ele prolongou ou prolonga, revigora e transforma não tenha grandes repercussões na cultura brasileira e na cultura de língua portuguesa do futuro.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

cArtAs iLustres

contrAcuLturA

A literatura epistolar é tema de uma de nossas matérias de abril. Na página virtual da Continente, leia alguns exemplares de troca de cartas entre escritores e artistas, selecionadas do site Letters of note. Dentre elas, estão a de Hunter S. Thompson xingando a produtora Holly Sorensen, responsável adaptação de O diário de um jornalista bêbado para o cinema; Bob Dylan pedindo o fim do processo de deportação de John Lennon e Yoko Ono; e Ernest Hemingway comentando a insanidade do poeta Ezra Pound (ao lado).

Lembrando os 20 anos do fim da Guerra Fria, veja uma lista de obras que compõem o cenário da contracultura estadunidense.

Conexão

rAdioHeAd Ouça Little by little e Morning Mr. Magpie, canções do grupo britânico presentes no seu último disco, o The king of limbs.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AndAnçAs virtuAis

cineMA

idioMA

FotoGrAFiA

PoP

Endereço reúne documentários disponíveis na web

Site auxilia no treino de línguas estrangeiras através da música

Artistas e celebridades em encontros e momentos raros fotografados

Os armênios busca fazer um jornalismo cultural ao estilo “gonzo”

documentary.tumblr.com

lyricstraining.com

thisisnotporn.net

osarmenios.com.br

Os documentários, que raramente são exibidos fora de festivais e cinemas alternativos, encontram na internet um canal de distribuição. The documentary group (em inglês) é mais uma das iniciativas que disponibilizam filmes não ficcionais, mas com um diferencial: é feito coletivamente. Qualquer um pode se tornar um membro do grupo e passar a sugerir e aceitar obras, e mesmo quem é só visitante pode indicar bons documentários por postagens na rede de blogs Tumblr ou pelo Twitter, com a hashtag #documentary.

O Lyrics Training traz para a internet uma atividade comum aos cursos de línguas: o preenchimento de lacunas na letra de uma música enquanto ela é ouvida. Disponível para quem quer aprender inglês, espanhol, francês, alemão, italiano, holandês ou mesmo português, o site apresenta variadas canções, separando-as por nível e até avisando o sotaque delas, em alguns casos. O “aluno” escolhe, também, o quanto quer preencher de música: 10%, 20% ou mesmo a letra toda.

O título não é uma ironia: o This is not porn realmente não tem nada a ver com pornografia. Composto apenas de fotografias, o site dedica-se a divulgar imagens raras de celebridades. Na página, é possível ver Marylin Monroe plantando bananeira, os ex-concorrentes Bill Gates e Steve Jobs posando juntos e Charlie Chaplin ao lado de Mahatma Gandhi. Várias fotos são em preto e branco, mas algumas antiguidades em cores também estão disponíveis, como uma foto de Bill e Hillary Clinton jovens, com o ex-presidente estadunidense cool ainda com cabelos longos e de barba.

Eles avisam logo: não são armênios, embora tenham decidido assim se autodenominar Descrevendo sua área de atuação como “(anti)jornalismo (contra) cultural”, o site traz notícias sobre lançamentos em quadrinhos e as novidades do rock no Brasil e no mundo, focando no que passa despercebido à grande imprensa. Editado por Rodrigo de Andrade e Marina de Campos, Os armênios é feito por meio da colaboração de jornalistas e estudantes de Comunicação, influenciado pelo jornalismo gonzo, pela comunicação social alternativa de Haight-Ashbury e pelo quadrinista Robert Crumb.

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blogs PerGuntAs 30preguntas.blogspot.com

Para entender a situação dos quadrinhos em espanhol, o 30 preguntas con señores/as del comic solicita que quadrinistas respondam 30 questões, contando com participações de nomes como Liniers, Adão Iturrusgarai e Tute.

resenHAs meiapalavra.mtv.uol.com.br

revoLuçÃo indePendente nA WeB Com a queda do Myspace, o Bandcamp se lança como alternativa simples e eficiente, movimentando mais de 500 dólares em fevereiro bandcamp.com

Criado a partir de um fórum para discutir literatura, o Meia Palavra transformou-se num blog de resenhas literárias. Falando eventualmente sobre música, quadrinhos e cinema, a proposta da página é abordar livros sem preconceitos e com humor.

citAçÕes

Diziam que o MySpace era o futuro. Bem, “o futuro da vez” é o BandCamp. De navegação muito mais fácil que o agonizante irmão mais velho, o BC ainda oferece melhor qualidade de áudio – e sem os bugs que tanto incomodaram no MS. Outra vantagem: enquanto o MySpace não oferecia opções de compras diretas, na loja do BandCamp o conteúdo está disponível sob várias opções de pagamento, incluindo o “modo Radiohead”, ou dê-seu-preço. Os preços também podem ser definidos pelos detentores reais da propriedade intelectual: os artistas. Trata-se de um golpe de misericórdia nos intermediários, os antigos lobistas da indústria fonográfica. E ainda faz frente à hegemonia das megalojas virtuais mencionadas – as majors dos anos 2010. Exitosa, a iniciativa movimentou, apenas no mês de fevereiro, mais de 500 mil dólares. Isso só com um cast indie; o BC não hospeda nenhum top 10. O que não o impediu de, em menos de um ano, contabilizar mais de 12 milhões de downloads e quebrar paradigmas, como as vendas de singles. Para cada cinco álbuns inteiros, o site vende apenas um single (na web, geralmente são vendidas 16 músicas de trabalho para apenas um álbum). Quer mais? No modo dê-seu-preço, os fãs têm pago 50% a mais, em média, do que o lance inicial. Sim, o cadastro é grátis. tHiaGo linS

grifeinumlivro.tumblr.com

O Grifei num Livro é mais um site para reunir citações de autores, só que baseado em imagens. Com trechos em português e inglês, o blog traz páginas de obras de Jorge Luís Borges, Oscar Wilde e Umberto Eco.

crÍticA blogdozegeraldo.wordpress.com

O ex-crítico de cinema da Folha de S.Paulo, José Geraldo Couto, criou um blog para continuar falando de cinema e, a depender de sua vontade, de futebol e livros, sempre respondendo aos comentários dos usuários.

sites de textos

acadêmicos BUSCADOR

LIVROS

PERIÓDICOS

scholar.google.com.br

culturaacademica.com.br

scielo.org

O Google Acadêmico é a melhor forma de procurar artigos, dissertações e teses sobre um tema específico.

Selo da Fundação Editora da Unesp, o Cultura Acadêmica traz livros de ciências humanas, exatas e biológicas para download gratuito.

Um dos maiores portais de artigos e periódicos acadêmicos, o SciELO disponibiliza trabalhos de todo o mundo.

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Fotos: Kilian Glasner

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Fotos: Kilian Glasner

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Portfólio

Kilian Glasner

AS POSSIBILIDADES DO DESENHO TEXTO Mariana Oliveira

Uma grande investigação sobre os desenhos. Essa seria uma boa forma de definir o conjunto da obra do artista pernambucano Kilian Glasner. Trabalhando com instalações, fotografias, vídeos ou qualquer outro suporte, as suas inquietações sempre recaem sobre o desenho, sua posição e representação na arte contemporânea. Avesso a obras fechadas, que não se conectam com o público, Kilian preza bastante – algo raro no cenário artístico pós-pós-Duchamp – pela técnica, valorizando a plástica, a luz e as formas, não apenas o conceito, como dita a regra atualmente. Essa base acadêmica forte deve-se aos anos dedicados ao estudo e à sua formação como artista. Ainda criança, foi capturado pelo desenho nas aulas da Escolinha de Arte do Recife. Chegou a cursar Música e Arquitetura, mas voltou às Artes Plásticas. Durante mais de dois anos, Kilian aprimorou sua técnica com Shunishi Yamada, com quem estabeleceu uma clássica relação discípulo/mestre. Depois, foi para Paris, onde viveu durante oito anos e cursou a École Nacionale Supérieure des Beaux-Arts, o que, segundo ele, foi fundamental não apenas para o desenvolvimento de suas habilidades técnicas, mas para sua compreensão do mercado da arte. Valorizando o figurativismo, Kilian passeia entre o real e o imaginário em paisagens, e algumas vezes em figuras humanas. Num de seus primeiros trabalhos, visitando prisões e delegacias, ele fez uma série de desenhos de rostos de assassinos reais, que já apontavam para um universo sombrio, num jogo de luz e sombras – algo marcante em sua produção.

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em O brilhante futuro da cana-de-açúcar (2010), o artista utiliza a combustão da planta como metáfora da explosão econômica brasileira

Nestas páginas 2 tÉcnicA

trabalho da série Rua do Futuro (2009) une fotografia e desenho

3 QUinA ao fazer uso das características do espaço expositivo, como em L (2009), Kilian Glasner soma efeitos visuais às suas obras 4 instAlAção ruínas do ateliê do artista serviram de suporte para criação de efeito cenográfico

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Fotos: Kilian Glasner

5 CRIMES Dos poucos trabalhos do artista a explorar a figura humana, este retrata rosto de assassino real 6 SILÊNCIO na obra, um pastel sobre papel, Glasner brinca com efeitos de luz e sombra, conferindo-lhe um ar sombrio e fantasmagórico 7-8 PRoFUnDiDADe em Pista sobre o mar e Pista de decolagem, a opção foi por composições panorâmicas

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Portfólio

Algumas de suas paisagens saltam do papel e se expandem pelas paredes, portas e janelas, provocando efeitos visuais e dialogando com a Arquitetura, a exemplo das duas casas revestidas com suas obras, em São Paulo e no Recife. Em seu mais recente trabalho, O brilhante futuro da cana-de-açúcar, Kilian

volta a usar os espaços físicos como suporte para desenhos. Desta vez, foi-lhe cedido o estacionamento subterrâneo da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A partir das características do lugar, e levando em consideração que o fundador da instituição era conhecido como o “Senhor do Petróleo”, o artista se viu instigado ao questionamento do uso de certas energias e do surgimento de outras, tidas como mais naturais, a transformar aquele ambiente

num grande canavial. Para isso, ele ornou a parede poente do edifício com grandes desenhos de cana-deaçúcar, num tamanho 100 vezes maior que o real, transformando o espaço num ambiente de fantasia. Quando carros entram no estacionamento, os faróis refletem nos adesivos que compõem o desenho, dando a impressão de que as canas estão ali, queimando, numa cena que seria trivial para os que trafegam pela Zona da Mata da região nordestina, mas não para os portugueses.

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FOTOS: rEPrODuçãO

Veto A cÉLine

Plágio telepático Bartleby e companhia, de Enrique Vila-Matas, é um diário ficcional que reúne casos de escritores, existentes ou inventados, que pararam de escrever. Dentre os exemplos do que chama de “Síndrome de Bartleby”, nome emprestado do personagem de Herman Melville que se nega a fazer qualquer coisa, estão nomes como o do mexicano Juan Rulfo, que, após o sucesso de Pedro Páramo, passou 30 anos sem escrever, com a duvidosa desculpa: “É que morreu meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias”. O personagem mais singelo do livro, no entanto, é o fictício Paranoico Pérez. Seu motivo para nunca ter publicado uma linha sequer se deve ao fato de que, sempre, ao surgir uma ideia, José Saramago a escreveria antes. Seu primeiro livro se passaria em um convento na estrada de Sintrita, mas Saramago lançou antes Memorial do convento, um romance “espantosamente igual, igualzinho” ao que pensava. Outros casos como esse obrigaram Pérez a escrever uma carta para o português ameaçando-o de morte, caso seu próximo livro se passasse em Lisboa, como o que ele pretendia fazer. Quando surgiu História do cerco de Lisboa, ele enlouqueceu e passou a acampar na frente da casa de Saramago. Internado em um hospício, seu consolo era que, desde o Nobel, o autor não conseguia mais escrever, por conta de compromissos. Infelizmente, o fim dessa história acaba com a morte de Saramago, possivelmente uma libertação para o desafortunado Paranoico Pérez. DioGo GUeDeS

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É possível dissociar obra e artista? Ou, por que avaliar a obra artística a partir das convicções pessoais do autor? Essa questão divide o público, e o exemplo mais recente disso é Louis-Ferdinand Céline. Faz 50 anos que o autor de Viagem ao fim da noite (1932) e Morte a crédito (1936) morreu, mas isso não será mencionado pelo governo da França, graças à pressão feita por organizações humanitárias e associações do povo judeu. Durante a Segunda Guerra, Céline expressou seu antissemitismo em panfletos que escreveu entre 1936 e 1941. Apesar de abjeta, sua posição ideológica deve significar o banimento público de uma obra que é considerada equivalente em grandiosidade à do conterrâneo Marcel Proust?

Balaio cAsAis memoráVeis

A FRASE

Casais famosos são adorados (e perseguidos) pela imprensa, pois sempre estão mais vulneráveis a polêmicas. Na música, Tina Tuner e Ike Turner protagonizaram muitas brigas; no cinema, Jean Luc Godard já foi casado com a musa da Nouvelle Vague Anna Karina (foto) e com a também atriz Anne Wiazemsky. O site Flavorwite fez uma lista dos 10 casais mais famosos da literatura, argumentando que “todo mundo adora um casal de celebridades e eles amam casais famosos da literatura”. Entre os contemplados, o poeta da geração beat Allen Ginsberg e o seu companheiro, o também poeta Peter Orlovsky. Conheceram-se em São Francisco e mantiveram relacionamento aberto até a morte de Ginsberg, em 1997. (Dora Amorim)

“o vaso dá uma forma ao vazio, e a música, ao silêncio.” Georges Braque

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Boêmios e don juans Apesar de não ter sido considerado exatamente um homem bonito, o jornalista e compositor Antônio Maria (ao lado) atraía, com charme peculiar, a atenção de mulheres esculturais, como sua musa Danuza Leão, então casada com seu chefe, o jornalista Samuel Wainer. Nessa época, as badalações cariocas também contavam com outro boêmio não apenas famoso pelas composições singulares e porres nababescos. Para o tal, Maria escreveu uma divertida crônica, intitulada Vinicius de Moraes voltou de Paris, na qual um marido, plenamente feliz em seu primeiro ano de casamento, chega, certo dia, em casa, inconsolável com a notícia da capa da revista Manchete. “Ele voltou! Ele voltou! Essa não!”, gritava o esposo, louco de temor. O cronista poderia estar exagerando, mas não duvidava da capacidade do Poetinha de destruir lares alheios. (Débora Nascimento)

cRiAtuRAS

terrA de GiGAntes Como o personagem de As aventuras de Gulliver, de Jonathan Swift, os anões sempre viveram numa espécie de Brobdingnag, a terra dos gigantes. Diante de estruturas incompatíveis com seus tamanhos, de caixas eletrônicos a degraus de ônibus, eles têm se organizado em busca não apenas de acessibilidade, mas contra o preconceito, que costuma achar que eles são úteis apenas no circo ou em programas humorísticos. uma das entidades de luta é a Associação de Nanismo do Estado do rio de Janeiro (Anaerj), de 2007, que possui mais de 300 sócios, já organizou manifestações de rua e apresentou pautas às autoridades. (Gilson Oliveira)

terrA de GiGAntes ii A criação de instituições voltadas para a defesa dos anões tem se expandido em todo o mundo, com destaque para a norte-americana Little People, considerada a maior de todas. Nesse contexto, surgiram grupos inusitados e até irreverentes, a exemplo da francesa Frente de Libertação de Anões de Jardim. Criada em 1997 e especializada em roubar estatuetas alusivas aos pequeninos e “libertá-las” em florestas, tem gerado seguidores no plano internacional, como a italiana Fronte di Liberazione Nani da Giardino e as brasileiras Associação dos Libertadores de Anões de Jardim e Liga para Libertação de Anões de Jardim, que possui o site liberdadeaosanoes.multiply.com.(GO)

Antônio maria (1921-1964) Por ricardo Melo

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contracultura oposição aos excessos do racionalismo Desencadeado nos Estados Unidos nos anos 1960, como reação à Guerra Fria, movimento questionou o sistema num clima de liberdade hedonista, tendo como bandeira o repúdio à violência texto Danielle Romani

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o “breve” século 20 foi um

dos períodos mais férteis e velozes da humanidade. Compreendido historicamente entre o ano de 1914 e o de 1991, teve como marcos dois episódios emblemáticos: iniciou-se tardiamente, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial e terminou precocemente, há 20 anos, em dezembro de 1991, com o desmonte da União Soviética, encerrando a bipolaridade entre o comunismo e o capitalismo. Marcado por duas grandes e demolidoras guerras, por revoluções tecnológicas, por mudanças no pensamento, nos costumes e por novas fronteiras geográficas e políticas, foi um período, contraditoriamente, repleto de catástrofes coletivas e ganhos sociais. Entre os episódios determinantes, está a deflagração da Guerra Fria, em 1948, pelos Estados Unidos, motivada pela criação da bomba atômica soviética. Descrita pelo historiador Eric Hobsbawn como o equivalente “a uma terceira guerra mundial” – gerações inteiras se criaram acreditando que uma hecatombe nuclear poderia ser deflagrada a qualquer momento –, a Guerra Fria não chegou a ser um episódio “real”, pois, com exceção das duas bombas atômicas lançadas contra Hiroshima e Nagasaki em 1945, pelos EUA, a ameaça nuclear nunca foi concretizada. Ela consistiu, portanto, em “uma forma de ver as coisas, uma guerra de nervos velada, cercada por um imaginário que mobilizou e ‘imobilizou’ o mundo e deflagrou centenas de episódios correlatos”, explica Tiago de Melo Gomes, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Orivaldo Leme Biagi, doutor em História e autor de O imaginário da Guerra Fria, pondera que houve, sim, uma guerra entre as duas superpotências, mas que ela não aconteceu militarmente, de forma direta, entre os países, o que justificou a utilização da expressão complementar “fria”. “Houve também a criação de um novo referencial para as sociedades dessa segunda metade do século, de uma nova condição que justificaria muitas políticas e níveis de atuação dos dois lados”, observa. A corrida atômica, a conquista espacial, as interferências políticas

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nos países do Leste Europeu, pela URSS, e nos da América Latina, pelos EUA, os conflitos geopolíticos no Sudeste Asiático, a Revolução Cubana, são alguns dos episódios que marcaram o período. Mas se houve violência e o uso de armas, houve também tentativas de mudar o mundo a partir de novos paradigmas, de conceitos e manifestações que questionavam a guerra, a violência, a opressão; que discutiam os valores da cultura ocidental, especialmente os relacionados à racionalidade e privilegiada por essa mesma cultura. Foi no começo dos anos 1950, em território americano, que o movimento que viria a ser batizado pela grande imprensa como contracultura começou a se firmar.

FiLHoS Do BABY BOOM

Falar de contracultura é, num certo sentido, falar dos Estados Unidos, segundo afirma o sociólogo Carlos Alberto M. Pereira. Foi lá, pelo menos num momento inicial, onde se manifestou de modo marcante o novo espírito de contestação que os movimentos dos anos 1960 viriam a

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colocar na ordem do dia. Uma rebelião que se opunha à sociedade tecnocrata e massiva norte-americana, mas também ao comunismo soviético, principalmente após às denúncias feitas em 1955 por Nikita Kruchev sobre os crimes cometidos por Joseph Stalin. Protagonizada por jovens americanos, brancos, de classe média, filhos do baby boom (expressão que define os aproximadamente 86 milhões de nascimentos entre 1946 e 1964, apenas nos Estados Unidos), ela teve como um dos principais motivos o mal-estar provocado pelo uso da bomba atômica em território japonês. “As gerações que cresceram após o lançamento da bomba atômica sobre Nagasaki e Hiroshima, em 1945, perceberam que a ciência e o racionalismo tinham sido colocados à disposição da guerra e do genocídio”, observa Antônio Paulo Rezende, doutor em História e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Esse cientificismo, em nome da dominação e da opressão, da morte, não servia mais aos jovens nascidos logo após duas guerras mundiais.

Ideais como os da Escola de Frankfurt começaram a se sobrepor aos mandamentos leninistas e à tecnocracia e massificação capitalista. “O universo ampliado de exploração é uma totalidade de máquinas: humanas, econômicas, políticas, militares, educacionais. É controlada por uma hierarquia cada vez mais especializada de gerentes, generais e políticos profissionais, dedicados à manutenção e ampliação de seus respectivos domínios ainda competindo numa escala global, mas todos eles operando no interesse dominante do capital da nação como um todo”, denunciou Herbert Marcuse, um dos filósofos emblemáticos do período, no livro Contra-revolução e revolta. Sigmund Freud e Karl Marx também eram pensadores incontornáveis do período, mas com releituras e reinterpretações. “A rebelião estudantil toma a forma de uma renovação cultural e se inspira em pensadores antiautoritários como Marcuse; faz renascer o desejo da revolução sexual com a retomada das obras de Wilhelm Reich; o marxismo ortodoxo

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em meados dos 1960, jovens de roupas extravagantes e comportamento libertário ganharam amplo espaço na mídia

Nestas páginas 2 juventude trAnsviAdA

Filme, de 1955, com James dean e Natalie Wood, tornou-se ícone da rebeldia teen

3 O selvAgeM produção, de 1953, com Marlon Brando, inaugurou no cinema a atitude e o visual rocker 4 RocK’n’RoLL Bill Halley e elvis presley ajudaram na aceitação do gênero, vinculado aos negros

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ideais antibelicistas e antiautoritários se sobrepunham aos dogmas leninistas e à massificação capitalista

é posto em questão em nome do freudomarxismo e do pensamento libertário”, afirma Olgária Matos, em Paris 1968, as barricadas do desejo.

inDúStRiA cULtURAL

Antes que os jovens americanos e europeus começassem a incomodar o sistema, foi este que lhes deu munição para sair às ruas e se fazer ouvir. Um dos motivos que levaram a juventude americana a se destacar tão intensamente no pós-guerra, época em que os Estados Unidos tornaramse a superpotência do mundo ocidental, deveu-se a uma estratégia de publicidade, mas principalmente política, lançada no próprio território americano, que valorizava

o teenage (jovem) como imagem da modernidade, uma modernidade especificamente americana, a princípio, e, depois, mundial. “Calcada em pesquisas, era a combinação psíquica perfeita para a época: vivendo no agora, buscando prazer, faminto por produtos, personificador da nova sociedade global onde a inclusão social seria concedida pelo poder de compra. O futuro seria teenage”, explica Orivaldo Biagi. O mercado se prontificou em atender e a criar essa demanda juvenil, com filmes, discos e estereótipos que estariam associados à rebeldia adolescente. Ao mesmo tempo, era patente a tensão entre o universo jovem e o adulto, e o choque fica evidente quando se observa a formação de uma espécie de “cultura de delinquência” que surgiu na década de 1950, relacionando o aumento vertiginoso da criminalidade dos jovens. Relatórios das autoridades da época (influenciadas pelo macarthismo) diziam que um entre cada quatro jovens de 17 anos era um deliquente juvenil.

“Os filmes produzidos na época, e que procuram retratar tal realidade, eram conservadores: O selvagem (com Marlon Brando, de 1953) era uma denúncia a um fato realmente ocorrido no final da década de 1940, quando uma gangue de motoqueiros invadiu uma cidade pequena. Semente da violência (1955) denunciava explicitamente a delinquência juvenil. Mas o mais eloquente dos filmes sobre o tema é Juventude transviada (com James Dean, 1955). Embora isolasse o mundo jovem do mundo adulto, acabou, no final, conciliando as duas esferas”, explica Biagi. Os três filmes tornaram-se fontes visuais e sonoras dos novos tempos da iniciante cultura teen. Os corpos, atos e roupas de Marlon Brando e James Dean, além da música Rock around the clock, interpretada por Bill Halley and His Comets, em Semente da violência (o primeiro rock’n’roll executado num filme), seriam referências para toda uma geração. A propagação dos modismos lançados pela indústria cultural contou com aliados determinantes: os meios eletrônicos,

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allen ginsberg/corbis

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em especial a televisão, que tiveram grande expansão na década de 1950.

BeAtniKS

No livro A cultura da contracultura, Alan Watts aponta que o movimento se originou de jovens burgueses, vítimas de um trauma recente, beneficiados por um momento de economia estável, mas que mesmo assim alastrou fogo na mentalidade dos jovens em todo o mundo, alterou comportamentos, quebrou tabus, e mudou principalmente a sociedade americana. E a gênese do processo, afirma, foi o movimento beatnik. Os beats ou beatniks – expressão que pode significar oprimido, rebaixado, espezinhado – são considerados o autêntico e inicial ponto de partida da revolução que pregava mais imaginação, mais liberdade e o fim das amarras à sociedade de mercado e ao comunismo burocrático. A importância desse

no livro A cultura da contracultura, Alan Watts aponta que o movimento se originou de jovens burgueses movimento, e em especial dos seus três líderes, os escritores Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, é descrita pelos autores Ken Goffman e Dan Joy, no livro Contracultura através dos tempos. “Embora a explosão que anunciou um novo quadro mundial tenha sido atômica, um som muito mais baixo explodiu a aparente coesão cultural/ psicológica/política da cultura branca conformista dos Estados Unidos dos anos 1950 “, enfatizam os autores, referindo-se à leitura pública do poema Uivo, de Ginsberg, em 1955.

Os beatniks, também chamados de hipsters, eram inter-raciais, boêmios, viviam nos limites da economia, protagonizavam farras homéricas e coletivas, com drogas e sexo, tendo como pano de fundo os clubes de jazz. “O hipster floresceu na própria ansiedade nuclear... A possibilidade de um apocalipse instantâneo, desencadeado pela Guerra Fria, criava uma desculpa perfeita para fugir das responsabilidades... Para que construir uma carreira, uma família, uma reputação, quando não havia mais futuro?”, explicam os escritores. Apesar do potencial revolucionário dos beats, Hollywood se utilizou do visual deles, romantizando-os e transformando-os em personagens caricatos. Seus maneirismos foram incorporados aos estilos de atuação de Marlon Brando, Paul Newman, Montgomery Clift e James Dean. A cultura hipster foi tema, inclusive, de

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5 BeAtniKS Hal chase, allen ginsberg, Jack Kerouac e William burroughs criaram o movimento beat, ponto de partida da contracultura 6 joAn BAez e BoB dylAn as apresentações dos cantores trouxeram a poética contestatória para a juventude 7 timothy leAry o professor de psicologia de Harvard tornou-se o guru do lsD

noVA eSQUerdA e hiPPieS

“Nos anos 1960 todos os nossos tropos culturais ocuparam as ruas em alto e bom som ao mesmo tempo. Parecia que alguma espécie de prisão psíquica tinha sido aberta e todos os jovens estavam tentando escapar de lá. Maior liberdade para os indivíduos em pensamento, expressão e comportamento entraram em atrito – e tentaram se fundir – com uma crescente sensação de responsabilidade coletiva pelo fim da guerra, pobreza, e da justiça. Os ideais libertários do

fotos: reproDução

filmes populares como O homem do braço de ouro (1956), com Frank Sinatra. Nos anos 1950, o poema Uivo, de Ginsberg, e o revolucionário livro On the road, de Kerouac, foram publicados e distribuídos por todo os Estados Unidos, transformando-os numa obsessão em massa. “Por mais que fosse insultosa, a redução da rebelião boêmia hipster

a um estereótipo engraçadinho pode ter subvertido os Estados Unidos convencionais”, afirmam os autores de Contracultura através dos tempos.

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Iluminismo colidiam com a busca poética dos românticos, dos contatos humanos mais profundos, da libertação da alma, dando luz a movimentos culturais e políticos baseados no desejo de criar uma sociedade que fosse ao mesmo tempo humana e arrebatadora. Agora!”, descreveram Goffman e Joy. O primeiro grande impacto do movimento foi a defesa das drogas, feita por Timothy Leary, professor de Psicologia da Universidade de Harvard – seria demitido em 1962 por pressão da CIA –, que atuou como uma espécie de guru da expansão do LSD, defendendo experiências com o ácido lisérgico e induzindo milhares de pessoas a realizarem viagens que levariam a outras percepções e visões. Outro evento importante foi o surgimento da Nova Esquerda, ou Students for a Democratic Society (SDS), em 1962, grupo forjado a partir das revelações sobre as atrocidades de Joseph Stalin, e que não nutria culpa pelos crimes do ex-ditador soviético. Aquela era a história dos pais deles. “A esquerda jovem, libertina e defensora das liberdades civis ganhou fôlego e sua liderança de um movimento de protesto pelo desarmamento nuclear se ligou a uma crescente noção de conflito de gerações. Muitos estudantes universitários culpavam a geração de seus pais por legar a eles um planeta em situação aparentemente terminal”, explicam Goffman e Joy. E a morte de Kennedy, em 1963, transmitida em cadeia televisiva, só fez com que as ideias desses novos esquerdistas se tornassem ainda mais atraentes para os jovens. Em abril de 1965, a SDS desempenhava um papel político importante na mídia por ter promovido em Washington a primeira grande demonstração contra a Guerra do Vietnã. A Nova Esquerda era capaz de organizar protestos e seminários em dezenas de cidades. Aliados aos esquerdistas estavam os jovens reunidos no movimento Panteras Negras, formado para patrulhar e defender negros da própria polícia americana. Nesse contexto, um novo componente também começava a armar-se para a explosão da “bomba”

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cultural. Em 1963, Bob Dylan e Joan Baez, tornam-se fenômenos instantâneos, com músicas-hino da contracultura e dos movimentos sociais. Depois, em 1964, começa a “invasão britânica”, com a chegada dos Beatles aos EUA, sendo seguidos pelos Rolling Stones e outras bandas. Mas, a partir da segunda metade dos anos 1960, quem começou a ganhar grande espaço na mídia foi um grupo de jovens coloridos – que se destacava pela atitude hedonista, pelas roupas extravagantes e pelo discurso

anticonvencional. Eles se tornariam um fenômeno mundial. Os hippies viam na aliança entre arte, comportamento e contestação uma nova possibilidade de expressão e sustentação de suas identidades. O encontro que reuniu milhares de jovens em Haight-Asbury tinha tudo isso. Realizado em São Francisco, em 1967, foi um dos ápices da contracultura norte-americana, e ficou conhecido como o Verão do Amor. Ainda que de forma pacífica, os jovens começavam a intensificar os protestos contra a Guerra do Vietnã

De forma pacífica, jovens americanos intensificaram os protestos contra a Guerra do Vietnã e o alistamento militar

e contra o alistamento militar. E a protagonizar episódios que deixavam o establishment paralisado: primeiro, espalharam dinheiro na Bolsa de Valores. Depois, “exorcizaram” o Pentágono, e afirmaram que o prédio se ergueria no ar apenas com a força do pensamento da multidão. Daniel Fosse escreveu que “na política hippie o objetivo não era colocar o indivíduo acima da máquina, mas enlouquecer a máquina para incitar o inimigo a se ferir por intermédio da destruição cultural e da confusão de significados”. Apesar de não empunharem armas, e de pregarem a paz e o amor, eles entraram em confronto com a sociedade conservadora dos EUA. A ira do establishment não demorou a se manifestar. A partir de 1968, com os assassinatos de Robert Kennedy, irmão de John, e de Martin Luther King, o recado estava dado: os tempos haviam mudado. Com o advento da Era

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8 tHe BeAtLeS em paralelo à música, grupo difundiu em larga escala a psicodelia, a cultura oriental e ideais pacifistas 9 ocASo Mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin (foto) e Jim Morrison coincidem com final da contracultura 10 em oHio Morte de um dos quatro estudantes da universidade de Kent, em protesto contra a Guerra do Vietnã

as férias de verão. E os protestos estancaram. Repentinamente, à medida que 1970 se transformava em 1971, os estudantes pararam de participar das manifestações em massa. A separação dos Beatles, em maio de 1970, e as mortes de Janis Joplin e Jimi Hendrix, no segundo semestre do mesmo ano, pareciam anunciar o fim de tudo. De que o sonho havia acabado, como cantaria, também em 1970, John Lennon. No tocante ao que se propunha – mudar totalmente o mundo – o movimento fracassou. “O tal ‘sistema’era mais forte e complexo do que eles acreditavam. Mas, em alguns aspectos, a luta foi ganha, e a sociedade estabelecida acabou por aceitar muitas das contestações feitas. Problemas que antes não eram discutidos, como o feminismo, os hippies, o homosexualismo, os movimentos negros, passaram à pauta. O terceiro setor, com suas causas e formas de atuação criativas, devem muito à contracultura. As inúmeras formações de jovens e ações pela internet, como o Fórum Mundial, por exemplo, mostram que a contracultura não morreu realmente”, aponta Biagi. reprodução

11 encontRo HiStóRico em 1959, Nikita Khrushchev vai aos euA para debate televisivo com o vicepresidente richard Nixon

Richard Nixon, aproximadamente 250 mil novos-esquerdistas, hippies e até mesmo democratas liberais, além de astros de rock e outras personalidades, foram submetidos a um programa de estrita vigilância do FBI. O novo presidente também anunciou guerra às drogas, com uma lei que as tornava ilegais, e que levou Timothy Leary à prisão. E lideranças da nova esquerda (Os Sete de Chicago) foram levadas à cadeia, a partir de processos nem sempre legais. Woodstock, realizado em agosto de 1969, foi denominado pela revista Time como “um dos mais significativos acontecimentos políticos e sociológicos da época. Mas era o último suspiro de uma era. No dia 30 de abril de 1970, Nixon ampliou a guerra enviando 20 mil combatentes americanos para o Camboja. No dia 4 de maio do mesmo ano, estudantes e soldados se colocaram em posição de combate na Universidade de Kent, em Ohio. Dessa vez, os guardas atiraram para valer, e quatro jovens foram mortos. A revolta foi enorme e houve protestos e manifestações por todo o país. Mas, então, começaram

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Artigo

tIaGo DE MElo GoMES o tError EM outra ÉPoca nos anos que se seguiram aos

atentados de 11 de setembro de 2001, os EUA protagonizaram uma verdadeira caça às bruxas. Após ter sido surpreendido dentro de casa pelos terroristas, o país se viu em meio a uma histeria coletiva, na qual se acreditava que qualquer pessoa poderia ser um suspeito em potencial. Em especial, se fosse muçulmano ou de origem árabe. Após alguns anos de graves violações aos direitos civis e duas guerras malsucedidas (Afeganistão e Iraque),

o ambiente começou a se dissipar. O medo do terrorismo sobrevive, mas sem que isso gere um clima dominado pela irracionalidade. Algo muito parecido ocorreu na primeira metade dos anos 1950. Era o macarthismo, um processo que teve semelhanças com o que vimos nos anos Bush, com algumas diferenças; a principal era o fato de os inimigos serem os comunistas. Mas a intensidade foi semelhante: por razões frequentemente indefensáveis, pessoas foram presas, perderam seus empregos ou tiveram de sair do país. Tudo por serem acusadas (quase sempre sem o menor motivo) de “comunistas”. O macarthismo não surgiu por acaso. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o governo norte-americano estava convencido de que, após se livrar dos nazistas, o novo adversário eram os comunistas. Na verdade,

a URSS, devastada pela guerra, não tinha nenhuma condição de confrontar aquela que era claramente a potência dominante do mundo pós-1945, e nem pretendia fazê-lo. Mas, na avaliação norte-americana, todo cuidado era pouco com os soviéticos, vistos como ardilosos e traiçoeiros, contrários à liberdade, empenhados numa luta sem fim para destruir o capitalismo. Assim, nos corredores da Casa Branca e do Pentágono, nascia a Guerra Fria. Mas atenção: a Guerra Fria não é um fato, ou um episódio, mas uma visão de mundo, dividido de forma maniqueísta entre “nós” (defensores do capitalismo, da liberdade) e “eles” (defensores da ditadura, mentirosos, traiçoeiros). Essa visão originou um pânico generalizado. Famílias eram estimuladas a construir abrigos subterrâneos em seus porões e estocar provisões,

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para o caso de um ataque nuclear. Nas escolas, crianças recebiam treinamento de como sobreviver no caso de um bombardeio soviético. Nesse clima de histeria, não surpreende que rapidamente tenha nascido a necessidade de identificar e neutralizar os oponentes alojados dentro de seu próprio país a serviço dos soviéticos. Nascia o macarthismo, termo criado em referência a Joseph McCarthy (1908-1957), senador republicano que comandava o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas, que funcionou como o núcleo da perseguição ao comunistas, reais ou imaginados.

12 cAÇA ÀS BRUXAS o senador Joseph McCarthy (e) liderou o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas 13 VÍtimA Acusado de ser comunista, Charles Chaplin perdeu o visto de permanência nos euA

ARtiStAS nA miRA

O Comitê perseguiu sistematicamente todos os tipos de pessoas suspeitas de comunismo, fossem funcionários públicos, médicos, advogados. Mas seus alvos preferenciais estavam na indústria do entretenimento, historicamente vista pela direita norte-americana como esquerdista. E, já em 1948, uma dezena de produtores, diretores e roteiristas foram presos, suspeitos de “atividades antiamericanas” (o eufemismo legal para “comunismo”). A partir daí, nasceu a “lista negra”, pela qual passaram centenas de atores, produtores, diretores e roteiristas, a exemplo de Lauren Bacall, Humphrey Bogart, Lilian Helmut, Dashiell Hammett, entre outros. Todos foram investigados, muitos foram proibidos de trabalhar, alguns foram presos. A maioria desses nomes é de pessoas pouco conhecidas para o público de hoje. Mas a caça às bruxas não poupou aquele que certamente é um dos maiores nomes da história do cinema: Charles Chaplin. O genial artista tinha problemas de longa data com o Federal Bureau of Investigation, FBI, já que, embora jamais tivesse militado politicamente, tinha evidentes simpatias esquerdistas. Seu filme O grande ditador (The great dictator, 1940) ridicularizava abertamente Adolf Hitler e o nazismo num momento em que os EUA ainda eram neutros na Segunda Guerra, fato que irritou o presidente Franklin Roosevelt e as autoridades federais. Chaplin acabou entrando na lista negra, e,

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Após a Segunda Guerra, com o fim do nazismo, o governo americano considerou os comunistas seus novos inimigos sendo inglês de nascimento, viu o FBI revogar seu visto de permanência no país. Aborrecido, mudou-se para a Suíça e nunca mais residiu nos EUA. Outro nome de destaque a cair na teia do macarthismo foi o brilhante cineasta Elia Kazan. Graças a seu passado comunista, Kazan foi investigado e interrogado pelo Comitê. Com sério risco de perder o visto de permanência do país (havia nascido em Constantinopla, atual Istambul, Turquia), dedurou muitos de seus colegas. Ao se livrar das

garras do comitê, fez um filme que era nada menos que uma apologia da delação: o sensacional Sindicato dos ladrões (On the waterfront, 1954), com Marlon Brando no papel principal. Passou a ser odiado por muitos da comunidade artística de Hollywood, e quando, em 2009, recebeu um Oscar pelo conjunto da obra, muitos dos presentes (entre eles Sean Penn, Nick Nolte e Richard Dreyfuss) se recusaram ostensivamente a aplaudir a entrega do prêmio, como forma de demonstrar seu repúdio. Mas tamanha aberração no seio de uma sociedade fortemente marcada por valores liberais não poderia durar. Em meados daquela década, Joseph McCarthy (até pouco tempo um obscuro senador pelo estado do Wisconsin) foi duramente atacado pelo respeitado jornalista Ed Murrow, da Rede CBS. Uma série de reportagens do seu programa See it Now mostrava os absurdos da perseguição a pessoas que jamais haviam tido qualquer contato com o comunismo, desnudando o completo desrespeito às liberdades civis que marcavam a história dos EUA. O senador que representava a luta anticomunista e a defesa de seu país passou a ser visto como um paranoico ambicioso, que havia empurrado os EUA para uma vergonhosa sequência de atos intoleravelmente semelhantes àquilo que se via em ditaduras, enquanto posava de paladino da liberdade mundial. Desmascarado, McCarthy não perdeu o cargo de senador, mas recebeu uma reprimenda pública do senado, e perdeu toda a credibilidade. A partir daí, o macarthismo perderia força, e seu líder morreria na obscuridade em 1957. Naquele momento, a caça as bruxas já se tornara um capítulo vergonhoso da história norte-americana.

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CARTAS A correspondência e seus rumos Escrita inicialmente como texto pessoal destinado a um só leitor, a produção epistolar pode reverter-se em mosaico autobiográfico ou ser lida como obra literária texto Gianni Paula de Melo

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con especial ti nen te divulgação

no romance O primo Basílio, de Eça de Queirós, a desgraça de Luísa, chantageada pela criada Juliana, começa na ação, aparentemente inocente, de transcrever para o papel suas aflições quanto ao adultério consumado, na crença de um destinatário único, o próprio Basílio, para quem o escrito seria enviado. Em Uma carta roubada, de Edgar Allan Poe, o furto de uma correspondência da corte pelo Ministro D... evidencia o poder exercido sobre o outro quando o íntimo é desvelado através de um documento pessoal. Os rumos imprevistos dessas correspondências ficcionais parecem corroborar com a máxima de Jacques Derrida, que diz: “Uma carta sempre pode falhar ao seu destino”. À parte a reflexão psicanalítica proposta pelo filósofo argelino com sua “tesemetáfora”, tomada em stricto sensu, a reflexão também é válida. E nem só na ficção as cartas erram de caminho. Em 1944, quando Clarice Lispector vivia na cidade de Belém, acompanhando seu marido Amaury Gurgel Valente, em missão diplomática, o poeta Mário de Andrade lhe enviou uma carta de apreciação sobre seu primeiro livro, Perto do coração selvagem. Na época, a missiva foi extraviada e não chegou ao Hotel Central, onde a escritora estava hospedada. Mais: perdeu-se para todo o sempre ou talvez se encontre em algum acervo pessoal desconhecido. A história da correspondência desaparecida tornouse pública por Fernando Sabino, que soube da sua existência através do próprio Mário de Andrade. “Quase dois anos mais tarde, detendo-me em Belém a caminho de Nova York, vasculhei a recepção do Hotel Central, onde também me hospedei, na ingênua ilusão de encontrar para ela, esquecida num escaninho qualquer, a preciosa carta para sempre perdida”, diz Sabino no livro Cartas perto do coração, no qual reúne suas correspondências com a escritora. Há ainda outra forma de voltarmos à afirmativa de Derrida. Uma carta, objeto particular de um artista, intencionado a destinatário específico, pode falhar em seu destino de registro privado e, por razões das mais diversas, tornar-se parte de um mosaico autobiográfico ou ser inserida no contexto da produção

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existe uma expectativa do leitor de descortinar o comum por trás do gênio, de alcançar seus espaços de criação

literária propriamente dita. Porque são, geralmente, de escritores e pessoas do campo da arte em geral, políticos e personalidades públicas, os relatos pessoais que despertam interesse dos leitores, especialmente num tempo de alto voyeurismo. Embora haja esse caráter de pura curiosidade, existe também uma expectativa sensível

de descortinar o comum por trás do gênio, de alcançar os espaços de criação de extrema sinceridade e espontaneidade, pois esses depoimentos cumpriam, na sua gênese, uma função comunicativa prática. Da natureza pragmática das cartas emana certa desconfiança em relação ao seu viés literário, afinal, o escritor não pretendia fazer daquele texto uma obra artística. Mas será que o texto literário surge apenas intencionalmente? De nada vale a estética do intuído ou do espontâneo? O que é incontestável a respeito da epistolografia é sua colaboração à reflexão sobre a obra dos criadores, assim como outros gêneros que têm a realidade como alicerce.

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aCervo Pessoal Paula diP

1 leGADo Falecido há 15 anos, Caio Fernando abreu percebia suas cartas como uma herança que deixava para os amigos e declarou consentir com a publicação delas 2 RecoRDAÇÃo a jornalista Paula dip, que publicou o livro Para sempre teu, Caio F, guarda até hoje as correspondências do amigo em seu acervo pessoal

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DentRo Do conteXto

O conjunto de registros pessoais de um artista representa uma valiosa fonte para o entendimento do seu trabalho, permitindo desvendar o espaço entre a cena e os bastidores. No caso específico da literatura, a professora Cristina Almeida, doutora em Teoria Literária, relembra que a interpretação desse material é articulada com outras áreas do conhecimento, como a Psicanálise, a Sociologia e a Antropologia. “Foi-se o tempo em que o texto era considerado independente do autor e do contexto de produção. A intimidade do escritor tem sua relevância, não para gerar fofoca literária, mas para ampliar a percepção e a recepção da obra”, comenta.

Um bom exemplo de correspondências úteis para o amadurecimento do olhar ante a produção de um autor é o diálogo estabelecido entre Guimarães Rosa e os tradutores de Grande sertão: veredas para o italiano e o alemão. Erudito e poliglota, Rosa acompanhou esse processo e ajudou na busca das palavras exatas para traduzir o seu sertão poético, ao mesmo tempo em que o revisitava. No entanto, aí parece evidente o uso das cartas em pesquisas, considerando que o tema da comunicação eram os meandros da criação em si. Há outros casos nos quais podemos captar de forma mais sutil o entrelace da vida pessoal e profissional do artista. A leitura das cartas do pintor Vincent Van

Gogh, por exemplo, permite observar o esforço dele pelo aperfeiçoamento da técnica, a partir de um autodidatismo metódico, desmistificando a imagem de gênio perturbado atribuída ao holandês. Van Gogh dividia suas inquietações sobretudo com o irmão e confidente Theo, que também serviu de suporte moral e financeiro do pintor. Além de Theo, Vincent mantinha correspondência com artistas, como Émile Bernard e Paul Gauguin, revelando sua relação com as cores, com os ciclos da natureza e com a figura humana. Um personagem reservado, ao redor do qual se criou uma aura de mistério, que aos poucos está sendo desvendada pelo público através de cartas é o escritor norte-americano J. D. Salinger. Cultuado como autor de O apanhador no campo de centeio, ele se correspondia regularmente com o amigo Donald Hartog. As missivas trocadas entre eles, de 1986 a 2002, foram doadas recentemente à Universidade East Anglia e, assim, tornadas públicas. A leitura desse material tem revelado uma outra faceta do escritor recluso, que relata ao amigo viagens e preferências prosaicas, como hambúrgueres e jogos de tênis. O gênero epistolar se junta a outras publicações não-ficcionais também para auxiliar nos estudos biográficos. Memórias e diários parecem muito próximos neste sentido, porém precisam ser distinguidos naquilo que os faz gêneros autônomos. Diários e cartas, embora compartilhem a marcação do tempo, se diferenciam pelo caráter, a princípio, secreto do primeiro, enquanto o segundo pressupõe um destinatário imediato. Já as memórias, além de almejarem a publicação, são apreciações de experiências feitas em momento posterior aos fatos narrados. Do ponto de vista estrutural, pode-se dizer que o

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gênero epistolar se assemelha ao diálogo. Ou, como define precisamente o sofista grego Libânio: “A carta é um colóquio de ausente a ausente”.

FicÇÃo X ReAliDADe

Se toda criação é autobiográfica, como afirmou José Saramago no romance Manual de pintura e caligrafia, também é certo que toda tentativa de transmitir a realidade não passa de uma versão. A dificuldade em transpor o pragmatismo das cartas e fruí-las esteticamente muito se deve ao fato de elas fazerem asserções sobre o real. Quando o formato da carta é incorporado pelo universo ficcional, como verificamos em vários romances epistolares, não se questiona mais sua natureza literária. O pesquisador do gênero, Emerson Tin, organizador de A arte de escrever cartas, é taxativo nesse aspecto: “Não há de um lado cartas reais, ordinárias e não literárias, e de outro cartas fictícias e literárias. Cada tipo de carta, fictícia ou real, testemunha um certo grau de literariedade”. É evidente que nem toda carta será um exemplar de estética, mas,

de antemão, sabemos que aquele depoimento é uma recriação da experiência pessoal, capaz de sensibilizar não apenas pelo fato relatado em si, mas também pela escrita atenta e cuidadosa. Nesse sentido, o ficcional e o funcional parecem estabelecer antes uma relação dialética e não uma dicotomia. A controvérsia do assunto é inevitável. Monteiro Lobato, por exemplo, no livro que reúne suas correspondências com Godofredo Rangel, intitulado A barca de Gleyre, explicita a sua opinião: “o gênero ‘carta’ não é literatura, é algo à margem da literatura... Porque literatura é uma atitude – é a nossa atitude diante desse monstro chamado público”. Na contramão do argumento de Lobato, a professora Cristina Almeida resume a possibilidade estética desses registros a priori voltados para comunicação: “O literário pode fazer morada em todos os gêneros textuais, pois é a língua com tratamento artístico que provoca beleza, tanto pela seleção e experimentação de palavras, quanto pela estruturação sintática das frases”. Mas, num aspecto, o ponto de vista

de Monteiro Lobato deve ser levado em conta: afinal, é esse “monstro chamado público”, somado a outro possivelmente ainda mais temerário, chamado crítica, que acaba definindo a que gênero(s) se filia o texto dos remetentes no tocante à linguagem e o valor estético dos arquivos epistolares reunidos.

ViÉS oPinAtiVo

Do papiro ao e-mail, o ato de se corresponder atravessa a história e agrega funções para além da troca de informações pessoais. A produção epistolar existe desde a Antiguidade, época em que se destacam escritos da literatura latina, como as Epístolas, de Horácio, e as cartas, de Cícero. No princípio, o termo epístola era utilizado para definir um texto assinado, direcionado a uma pessoa ou ao coletivo, com um viés opinativo e crítico, literário ou religioso, enquanto a carta se limitava aos assuntos particulares e tinha um caráter utilitário. Mais tarde, os verbetes tornaramse equivalentes no uso cotidiano. Durante toda a história do gênero existiu um esforço pelo regramento não

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3 AMiZADe as cartas trocadas durante anos entre o empresário donald Hartog e J. d. salinger, recentemente divulgadas, revelam hábitos simples do escritor 4 PABlo neRUDA Postal enviado de londres, em 1952, pelo poeta chileno para Matilde urrutia, sua amada e principal correspondente

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o gênero epistolar se junta a outras publicações nãoficcionais também para auxiliar nos estudos biográficos só de seu formato, mas também de sua escrita. Dessa tendência de normatizar a produção epistolar decorre a dificuldade de conferir um tratamento artístico a esses registros. Na Idade Média, vários estudos foram feitos nesse sentido, como Regras para escrever cartas, do Anônimo de Bolonha. No século 16, surgiram novas publicações, como Brevíssima e muito reduzida fórmula de elaboração epistolar, de Erasmo de Rotterdan, e A arte de escrever cartas, de Justo Lípio. É curioso notar que um aspecto estilístico das cartas foi defendido desde seus primórdios e mantém-se até hoje: a coloquialidade. Obviamente, cartas de âmbito oficial, em contextos profissionais e políticos, pedem diferentes tratos, mas entre pessoas

próximas, o enciclopedismo e rebuscamento sempre foram rejeitados. “Se nós nos sentássemos a conversar, se discutíssemos passeando de um lado para o outro, o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado; pois é assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas, que nada tenham de artificial, de fingido!”, defendia Sêneca, contemporâneo de Jesus Cristo, em Cartas a Lucílio. Historicamente, enquanto as cartas ganhavam destaque nas relações sociais, devido à maior eficiência dos correios e a fatores políticos e econômicos como as navegações, a preocupação com a normatização do gênero se intensificava. Por muito tempo, na carência de uma imprensa regular, eram as cartas que informavam destinatários privilegiados sobre as atualidades e, assim, divulgavam notícias, difundiam polêmicas e formavam opiniões. Com a evolução da comunicação, a carta teve sua importância, pouco a pouco, reduzida. Depois de enfrentar o surgimento de uma imprensa organizada e de meios como o fax e o telefone, ficou ainda mais ameaçada de extinção devido

à instantaneidade permitida pela web com seus e-mails e redes sociais. Hoje, o gesto de se comunicar através do correio tradicional – e não do eletrônico – é visto pela maioria como uma nostalgia ou um fetiche, assim como ouvir disco de vinil ou fotografar com a câmera analógica.

eM teMPoS De e-MAil

“Ontem Zé telefonou, hoje eu telefonei para ele – quer dizer, começou a trip da fissura telefônica? Hoje mesmo eu fiquei muito tentado a ligar procê. Segurei e preferi a carta. É menos imediato, mas gosto mais. A gente não deve permitir que as cartas se tornem obsoletas, mesmo que talvez já tenham se tornado.” Na época em que escreveu essas palavras para Paula Dip, em 1980, Caio Fernando Abreu não podia imaginar as grandes transformações digitais que nos aguardavam; queria apenas resguardar as correspondências da instantaneidade do telefone. Hoje, procuramos não resguardar, mas compreender o que aproxima e afasta esse formato do gênero digital mais próximo: os e-mails. Facilmente entendido como uma continuidade da carta, a partir de novas condições tecnológicas, o e-mail se mostra ainda mais eficiente para manter vínculos rápidos entre os distantes. No entanto, a caracterização de um gênero não se reduz à sua finalidade, neste caso, fazer o ausente presente. “Não acho que o e-mail é uma continuação da carta, percebo-o como outro gênero que está em voga por conta da rapidez de nosso tempo. Ele é completamente diferente, cumpre um papel pragmático e imediatista exigido pela velocidade da época e também pode se manifestar de forma literária”, opina Cristina Almeida. O interesse do público em percorrer os espaços subjetivos, porém, se adequa às manifestações de seu tempo, e se hoje é na esfera digital que os artistas trocam conselhos, exercitam influências criativas e compartilham ideias, então esses e-mails, recados e tuítes se tornam relevantes tais quais as cartas. Baseado nesse raciocínio, o Instituto Moreira Salles (IMS) criou, este ano, um espaço em seu blog para a troca pública de correspondências entre o escritor Daniel Galera e o editor André Conti, no qual tratam de assuntos artísticos, mas também de temáticas cotidianas.

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con especial ti nen te A iniciativa do Instituto repercutiu bastante nas redes sociais, mas o que pouca gente sabe é que o Universo on Line (Uol) já havia desenvolvido uma ação parecida há mais de 10 anos. Em 2000, os jornalistas Mário Sérgio Conti e Ivan Lessa trocaram e-mails publicamente sobre cinema, música, jornalismo e memórias. Esse material resultou no livro Eles foram para Petrópolis – Uma correspondência virtual na virada do século, editado pela Companhia das Letras. Indiscutivelmente, o crivo seletivo de uma correspondência pública não é igual ao da troca particular, mas as duas experiências citadas (do IMS e do Uol) brincam com a fluidez da internet e sugerem caminhos para uma interação outrora dominada principalmente pelas cartas. A princípio, um gênero não condena o outro e a principal inimiga dos envelopes, selos e correios parece mesmo ser a pressa contemporânea. Só escapando a essa aceleração do tempo é possível manter o hábito de enviar e receber cartas, como ressalta a professora Cristina Almeida: “Apesar de o tempo do mundo ser dominador, existem pessoas que fazem questão de manter um ritmo próprio. Algumas delas não estão alucinadas por respostas imediatas e, como diz Roland Barthes, “respeitar o tempo de cada um é saber viver”.

AteMPoRAliDADe

O valor das cartas é definido por um somatório de peculiaridades. Quando a beleza da linguagem supera o caráter pragmático, este já é um fator determinante. A relevância histórica ou artística do seu autor é outro ponto importante. Se pensarmos no legado epistolar de Mário de Andrade, notamos

como um patrimônio pessoal pode se tornar um patrimônio artístico-histórico. Para se ter uma ideia, o próprio escritor confessava sofrer de “gigantismo epistolar” e estima-se que ele tenha trocado correspondências com cerca de 1.100 pessoas. Através de suas missivas, ele teorizava e influenciava não só gerações de novos escritores,

como Fernando Sabino e Pedro Nava, mas também artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, e músicos como Camargo Guarnieri e Francisco Mignone. No entanto, os seus correspondentes mais significativos foram Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, sendo conhecidas 289 cartas do seu diálogo com o

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Fernando Abreu: “Tanto em seus contos, romances, crônicas e peças, quanto em sua correspondência, mesmo a mais trivial, Caio falava de emoções humanas, das mais rasas (fofocas de amigos e inimigos) até as mais profundas (amores presentes, passados e futuros). Seu texto viajava pelos mistérios do céu e da terra, da vida e da morte. Temas perenes, que atravessam o tempo”. A epistolografia de interesse público garantido, com escrita poética, autor relevante e assuntos atemporais pode esbarrar, no entanto, em um recorrente dilema ético: E quando a autorização para publicar esse material foi negada ou não explicitada? No caso de Caio Fernando, falecido há 15 anos, Paula Dip conta que o escritor sempre demonstrou interesse em divulgar suas correspondências: “Ele disse claramente a alguns amigos que suas cartas eram a ‘herança’ que lhes deixavam e que estavam liberados para publicá-las. Combinamos, em uma carta de 1983, que iríamos escrever nossa história, dependendo de quem morresse ou ficasse AS CARTAS DE OSMAN LINS famoso antes. Ele me venceu, nos dois quesitos”. O escritor manteve, durante muitos anos, uma relação epistolar com suas filhas Mas nem sempre há “tem gente que pega a Bíblia, abre e encontra alento. Mas isso eu faço com as cartas do meu pai”, concessão e, geralmente, declara a advogada Ângela lins, a caçula de osman lins. Para ela, o pai – que, divorciado, se mudou cabe à família decidir a do recife para são Paulo quando a filha tinha apenas nove anos – era um “conselheiro à distância”. respeito da publicação Passados mais de 30 anos da morte do escritor, Ângela ainda guarda, a sete chaves, quase todas as póstuma. “Acho um campo cartas enviadas pelo pai. burocrático demais, muito aquém da literatura. Deveria ser respeitada último, entre 1922 e 1944. Poderíamos se declara a Matilde Urrutia ou a vontade de quem testamenta dizer, assim, que a obra epistolar de Rainer Maria Rilke dá conselhos algo por escrito, ao mesmo tempo, Mário de Andrade oferece um rico não de literatura, mas de existência, desconsiderar essa vontade pode ser panorama cultural das primeiras em Cartas a um jovem poeta, notamos um ganho para os estudos literários. décadas do século 20, no Brasil. a atualidade dos relatos, pois a O que seria de nós, leitores de Kafka, Nota-se ainda um terceiro aspecto vivência do sensível, do humano, sem o seu amigo Max Brod, que não determinante na perpetuação de é sempre de interesse do leitor. rasgou as cartas e obras conforme A jornalista Paula Dip observa esse determinadas cartas: as temáticas pedido do autor?”, questiona a aspecto na produção epistolar de Caio atemporais. Quando Pablo Neruda professora Cristina Almeida.

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ROMANCE O espaço para as cartas na ficção

Ao longo dos séculos, escritores vêm utilizando as correspondências como elemento estruturante de suas narrativas literárias

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tRiloGiA

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AMóS oZ

em Griffin e Sabine, Nick Bantock preocupa-se tanto com a narrativa textual quanto com a parte gráfica escritor israelense lançou um romance epistolar que, além da intimidade dos personagens, reflete aspectos sociais de seu país

no início de 2010, o livro da

escritora chilena Carola Saavedra, Flores azuis, venceu a terceira edição da Copa de Literatura Brasileira, um projeto criado por Lucas Murtinho, em protesto aos prêmios literários, no qual a equipe discute publicamente os grandes lançamentos do ano e elege o melhor entre eles. A obra vencedora em questão é formada por nove cartas remetidas pela personagem A., intercaladas com nove capítulos em que elas são lidas por Marcos. Curiosamente, essas missivas também sofrem desvios acidentais e não alcançam seu destinatário legítimo, pois o personagem que as lê está recém-instalado no apartamento para onde elas estão sendo enviadas. A peculiaridade dessas correspondências consiste não apenas em sua gênese ficcional, mas principalmente por elas serem o elemento estruturante da narrativa, à medida que são transcritas parcial ou integralmente. O recurso é bastante antigo, como vemos nos clássicos Pamela (1740) e Clarissa (1748), de Samuel Richardson, dois enredos sobre jovens sequestradas por libertinos contados através de cartas. Para o século 18, essa construção ainda era intrigante e muitos leitores questionaram Richardson sobre a veracidade das histórias. Ocorreu ainda naquele século, em 1782, a publicação de um dos mais referenciais dentre os romances epistolares, As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos. Considerado ofensivo à época do lançamento, devido ao retrato crítico que faz da aristocracia, revelando sua vilania, a obra tem como principal mérito a eficiente construção

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A sensação de estar mais próximo da consciência íntima daquele que escreve as cartas é algo comum à vida real e à ficção

psicológica dos seus personagens a partir de correspondências. A sensação de estar mais próximo da consciência íntima daquele que escreve as cartas é algo comum à vida real e à ficção. No momento em que os leitores de Richardson se perguntam se aquelas mulheres foram realmente raptadas, fica evidente o bom uso do recurso

da verossimilhança no ato criativo. Porém, se na esfera do real as cartas se associam à comunicação bidirecional, na literatura, seu uso tem maior liberdade, podendo transformar-se em monólogos ou solilóquios. Em Cartas a Sandra, de Vergílio Ferreira, percebe-se o uso desse discurso, pois o destinatário de Paulo é sua amada morta e as cartas representam um esforço da memória, um resgate de Sandra. Como menciona a autora da tese O romance epistolar na literatura portuguesa na segunda metade do século XX, Claudia Atanazio, neste caso, “perde-se a possibilidade do diálogo: ganha-se a paixão da escrita”. Assim como Vergílio Ferreira, Goethe também oferece a paixão em forma de correspondências na obra-

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A COR PÚRPURA

No livro, adaptado para o cinema, Celie escreve cartas a deus e à sua irmã tratando das experiências de opressão que vive

Cartas, acrescidas de outros suportes comunicativos textuais mais dinâmicos, como o fax, também são a estratégia literária utilizada numa publicação de 1996, O defunto elegante, de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista. A possibilidade de interação mais veloz, associada à ansiedade pela aproximação, põe em xeque o prazer pela epistolografia, como explicita o personagem: “Confesso, ou protesto mais uma vez, que escrever cartas me chateia, ou melhor, já que escrevo, me entedia: é assim uma espécie de logografia, em que se vai dizendo ou escrevendo seja o que for, porque o mais importante é haver carta, a carta em si mesma e por si mesma, diga o que ela disser”.

MiMo GRÁFico 7

prima Os sofrimentos do jovem Werther. Nela, temos as cartas do protagonista enviadas a Whilhelm narrando suas desventuras em relação à Charlotte. Ela, por sua vez, é a medida da crise de Werther, jovem que leva seu drama às últimas consequências, frustrado por um envolvimento desditoso e não correspondido.

oPReSSÃo ReVelADA

Da safra mais recente de romances epistolares, a publicação da estadunidense Alice Walker ficou mundialmente famosa, principalmente por ter sido adaptada para o cinema por Steven Spielberg com título homônimo A cor púrpura. No livro, de 1982, a protagonista Celie escreve cartas a Deus e à sua irmã Nettie, narrando a experiência de opressão que vivencia, inicialmente, maltratada pelo pai, e, posteriormente, explorada pelo marido. Alice Walker evoca a

realidade racista, machista e patriarcal dos Estados Unidos da época, através do drama da sua personagem negra e de alfabetização precária. O israelense Amós Oz também lança, na década de 1980, um romance epistolar que acumula, por trás das questões íntimas dos personagens, aspectos sociais do seu país. A caixa-preta é formado por longas cartas, mas também por telegramas sucintos e práticos bilhetes. O acerto de contas entre o professor Alex Guideon e sua exmulher Ilana, depois de anos de silêncio entre os dois, é invadido por terceiros envolvidos naquela história: o filho Boaz e o novo companheiro de Ilana, Michel Sommo. A densidade do livro consiste nas incompreensões mútuas desveladas, na mágoa e no amor expresso por várias vozes que parecem estar em constante posicionamento defensivo.

Griffin e Sabine, trilogia criada pelo britânico Nick Bantock, demonstra uma preocupação que ultrapassa a narrativa textual propriamente dita. Esgotados no mercado editorial brasileiro, os livros são verdadeiras obras de arte, tanto por sua história fantástica – em que Sabine vislumbra imagens na sua cabeça dos desenhos de Griffin, no momento em que ele os cria, sem nunca tê-lo sequer conhecido – quanto pelo tratamento visual e a experiência de leitura. As obras trazem vários postais impressos nas páginas: de um lado visualizamos a ilustração e do outro o breve texto, acompanhado de selos e carimbos. Além dos postais, há também envelopes contendo as cartas mais longas, com tipologia que simula o manuscrito ou o datilografado, rasuras e ilustrações. Se a história apresentada parece absurda, com seus desencontros no tempo e no espaço, o suporte gráfico sugere o contrário, entretendo o leitor com o realismo dos registros acrescidos da colaboração estética. Gianni paUla De Melo

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Artigo

ALFREDO CORDIVIOLA KAFKA E FELICE, A FUNÇÃO DAS CARTAS A fotografia foi tomada num

desses ateliês que, como diria Walter Benjamin, “parecia um híbrido ambíguo de câmara de torturas e sala do trono”. Exibe uma mulher sentada, com as pernas cruzadas e uma bolsa no seu colo, e um homem em pé, de terno. Apesar do fundo neutro e opaco, cuja única função é destacar as figuras que aparecem no primeiro plano, e apesar da previsibilidade do figurino e da postura calculada e convencional dos retratados, há entre esses dois personagens uma delicada intimidade que o registro não consegue encobrir. Talvez o olhar levemente sarcástico e inquisidor do homem, ou sua mão encostada com certa dissimulação na nádega da mulher, ou talvez a displicência e a placidez que ela revela diante da câmera, contribuam a singularizar uma imagem que teria sido definida pela banalidade e pelo esquecimento. Uma imagem comum, como outra qualquer de felicidade breve, que teria se perpetuado apenas em lojas de antiguidades ou em recônditos álbuns de família, se esses dois personagens retratados não fossem Franz Kafka e Felice Bauer. Os dois tinham se conhecido em Berlim, através de Max Brod, em 1912. A foto em questão fora tirada em Budapeste, em 1917. Nesses cinco anos houve entre Felice e Franz um namoro marcado pelas ausências, pela distância, pelos anúncios de noivado, pela promessa de um casamento que nunca se consumaria. E pelas cartas, longas, numerosas cartas que se escreveram durante esse período. Ao longo da sua vida, Kafka foi um entusiasta leitor de cartas redigidas por escritores (como as dos seus favoritos Flaubert ou Kleist) e manteve o hábito de escrever cartas

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durante cinco anos, Felice Bauer e Franz Kafka trocaram longas cartas, publicadas, posteriormente, em 1967

para seus amigos, seus parentes e seus amores, textos que de forma alguma poderiam ser considerados menores ou meramente suplementares. A famosa Carta ao pai e os profusos vínculos epistolares com Grete Bloch e Milena Jesenska já seriam suficientes para evidenciar o papel central que as cartas desempenham no conjunto da sua obra. Kafka começa a escrever para Felice apenas algumas semanas depois de conhecê-la. Felice é a condição da escrita, e também seu limite. Paradoxalmente, será a musa que inspira a febril tarefa de escrever, será sua ouvinte sempre paciente e disponível, e sua copista fiel; será também uma eventual intrusa e um perigo latente, uma intromissão do mundo capaz de multiplicar em vão os pensamentos e consumir o tempo que resta para escrever. Nos cinco anos seguintes, haverá poucos encontros e muitos desencontros entre eles; o conturbado vínculo amoroso será sustentado pela escritura, a leitura e a espera ativadas pelas cartas. Escritas enquanto a Europa era devastada pela guerra, em um período extremamente prolífico durante o qual Kafka escreve textos tão fundamentais como O veredicto, A metamorfose, Diante da lei, O processo e alguns capítulos da inconclusa Amerika, as cartas a Felice operam como longas e intensas descrições de uma luta: por se tornar escritor, contra as armadilhas do corpo, contra o fracasso, o silêncio, a impossibilidade de escrever, a necessidade imperiosa e quase fatal de escrever. Kafka escreve a respeito de si o tempo todo: sobre seu penoso corpo, os inconvenientes do matrimônio (e da união com alguém como ele), a indolência que toma conta da sua vida, sobre a rejeição, o valor extremado da solidão. Se toda carta de amor se imprime acerca da ausência do outro e repete de muitas formas possíveis uma mesma frase que retorna (“você não está aqui”), no caso de Kafka,

as cartas parecem querer alimentar o tênue vínculo sob a condição do afastamento. Como se as cartas fossem escritas não para aproximar os amantes, mas para mantê-los a distância, porque essa distância seria a condição indispensável para que a literatura pudesse acontecer. Como as anotações de viagem, os lembretes, os rascunhos e os diários privados que compõem a escritura de Kafka, as cartas parecem estar sempre urgidas pelo tempo (tanto pelo excesso quanto pela falta de tempo) e pela necessidade manifesta de reclusão. Felice, que tinha se casado em 1919, guardara zelosamente as cartas; conseguiu fugir do nazismo e se exilou nos Estados Unidos. Quiçá intuía

As cartas de Kafka parecem querer alimentar o tênue vínculo sob a condição do afastamento que, com o tempo, essas cartas de alguma forma já tinham deixado de lhe pertencer e, em 1955, cinco anos antes de morrer, vendeu as centenas de páginas para a editora Schocken Verlag. A editora, que, além de muitos outros textos de Kafka, difundiu obras de autores diaspóricos fundamentais do pensamento do século 20 como Walter Benjamin, Hannah Arendt e Elie Wiesel, publicou as cartas, em alemão, em 1967. As respostas de Felice permanecem desconhecidas ou perdidas até hoje, o que enfatiza ainda mais a unidade fantasmática de uma trama feita de intervalos, omissões e lacunas. A partir de então, e da sua posterior tradução para o inglês, as cartas despertaram um enorme interesse pelo que mostravam, pelo que ocultavam e pelas continuidades que permitiam estabelecer com as ficções e os biografemas de Kafka. Certamente, as cartas foram escritas para um destinatário único, sem a intenção de serem conhecidas por um público massivo, dentro dessa condição peculiar que transforma a epístola em uma das maneiras da

conversação privada. Contudo, longe de pensar as cartas como gênero meramente subalterno dentro do corpus kafkiano, autores como Elias Canetti (O outro processo: as cartas de Kafka a Felice), Gilles Deleuze e Félix Guattari (Kafka – para uma literatura menor) e Ricardo Piglia (O último leitor) souberam enxergar esses textos como elementos cruciais dentro do universo kafkiano. Canetti vê nas cartas um contraponto que, situado no limiar entre a imaginação e o episódio biográfico, ilumina a elaboração e os sombrios labirintos de O processo. Piglia lê as cartas como palco dos conflitos e interferências entre a “realidade” e a “literatura”, e como ponto de acesso exemplar para analisar as relações entre os escritores e as mulheres. Para Deleuze e Guattari, as cartas, tanto como os contos e romances, são definidas como componentes da máquina literária em Kafka. Para eles, que as cartas sejam parte integral da obra não depende da intenção de publicação, nem do destinatário inicial, nem do suposto estatuto do real, mas das funções indispensáveis que cumprem dentro da sua escritura, e das operações de leitura que permitem atravessar os mecanismos que imperam dentro dessa máquina: “Impossível conceber a máquina de Kafka sem a intervenção do móbil epistolar. Quiçá seja em função das cartas, das suas exigências, das suas potencialidades e das suas insuficiências, que serão montadas às outras peças”. Assim, longe de ocupar uma função secundária, as cartas poderiam ser consideradas uma engrenagem principal, em torno da qual se articulam todos os textos de Kafka. Dessa forma, vistas como um centro possível de gravidade que movimenta todas as órbitas textuais, as cartas constituem pontos e interseções dentro de uma rede sem fim, em constante expansão. Frutos de um pacto alguma vez vigente entre dois amantes íntimos e estranhos, traços de revelações parciais e de encobrimentos definitivos, as cartas de Kafka a Felice sobreviveram, como a literatura sobrevive, à fugaz e desencontrada existência dos seus interlocutores.

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ANONIMATO O que há por trás da máscara?

No vaidoso meio artístico, que alimenta o culto às celebridades, raríssimos profissionais se aventuram em manter sua identidade em sigilo ou usar pseudônimo para esquivar-se de alguma situação de risco, em determinado momento da carreira TEXTO Débora Nascimento

coMPortAMento

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con ti nen te

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os dias que antecederam a 83ª edição do Oscar trouxeram rumores de que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não estaria sabendo como lidar com a seguinte questão: os procedimentos para o acesso de um indicado anônimo ao Teatro Kodak, no dia 27 de fevereiro. Com o surpreendente Exit through the gift shop concorrendo na categoria de Melhor Documentário, o grafiteiro inglês Banksy teria causado perturbação entre os organizadores da cerimônia, pois seu rosto e verdadeiro nome são desconhecidos. Como, então, a instituição, acostumada a gente que não precisa de crachá, como Tom Cruise, iria permitir o acesso ao sagrado templo das celebridades a alguém que não tem sua face estampada em revistas, sites, pôsteres, outdoors e TVs? Qualquer um poderia aparecer e se dizer Banksy. Com esse comportamento raro no vaidoso meio artístico, o ícone da street art integra uma lista de artistas que

optam por não revelar sua identidade. Seja qual for o motivo, essa estranha conduta, que vai contra as regras do mercado da arte, acaba por funcionar, em alguns casos, como uma inesperada e eficiente estratégia de marketing. Neste mundo em que a maior parte das pessoas está sedenta por bisbilhotar a vida alheia, surgir alguém querendo manter sua privacidade e identidade em sigilo configura-se um baita atrativo para o inconsciente coletivo. Mas esse subterfúgio não pode ser usado por qualquer um. Apenas funciona se for empregado por quem tiver uma obra de arte que se sustente por si só, a exemplo do próprio Banksy, que angariou não somente a admiração de seus colegas grafiteiros mundo afora, mas também de críticos, marchands, colecionadores e de celebridades, como o ator inglês Jude Law, o casal Brad Pitt e Angelina Jolie, que marcaram presença em mostras do artista.

Manter a identidade em sigilo funciona, em alguns casos, como uma eficiente estratégia de marketing

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No caso de Banksy, é bastante compreensível que ele prefira manter o anonimato, ao invés de saborear as glórias da fama, pois ao interferir diretamente em áreas urbanas, sua arte pode lhe render, por tabela, processos judiciais, como ocorreu com seu amigo norte-americano Shepard Fairey, que foi preso, em 2009, acusado, em dois tribunais diferentes de Boston, de ter grafitado e colado cartazes em propriedades públicas. Fairey recentemente saiu de outra pendenga judicial com a agência The Associated Press (AP), por ter alterado, em 2008, uma foto para criar um pôster do então candidato Barack Obama, criando em tons vermelho e azul a icônica imagem vetorizada do futuro presidente dos Estados Unidos. No mês de janeiro, as partes entraram em acordo, concordando em dividir os direitos autorais da imagem e, agora, estão

processando empresas que a usaram sem pedir autorização.

nA MÚSicA

Outro notório caso de anonimato na arte atual é o da dupla francesa de música eletrônica Daft Punk. Seja em shows, entrevistas ou videoclipes (dirigidos por badalados cineastas como Spike Jonze e Michel Gondry), os músicos GuyManuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter se apresentam vestidos de robôs, inclusive com interferência nas vozes para se assemelharem a sons robóticos. O fato de não mostrarem seus rostos não impede que seus concertos estejam lotados de fãs. Um desses chegou até a dedicar um estudo, divulgado no mês de janeiro, sobre as versões de todos os capacetes do duo, desde 2001, que, segundo ele, se dividem em quatro períodos (Discovery, Transition Helmets, Human After All e pós-Tron, a fase presente). Mais um nome que seguiu esse estilo misterioso de se apresentar é o do supergrupo de heavy metal norteamericano Slipknot. Formado em 1995, já foi mais conhecido pelas máscaras aterrorizantes usadas pelos integrantes do que pela música. O sucesso dos artefatos foi tanto, que a banda passou a vender através de seu site as cópias das diversas máscaras de cada um dos nove músicos, com preços que variam entre U$ 27 e U$ 35 dólares. Para o vocalista Corey Taylor, os simulacros horrendos não são apenas “enfeites”: “É uma forma de nos tornarmos inconscientes de quem somos e do que fazemos fora da música. Existe um pequeno aspecto de nossas personalidades nelas, mas, de certa maneira, é quase como vestir a música, que, para nós, é tão tangível, que podemos nos embrulhar nela e nos sentir seguros”. Usar o anonimato na arte pode ser um recurso praticado não apenas por capricho, mas para driblar alguma situação de risco. Ainda na música, o exemplo mais famoso no Brasil é o do compositor Julinho da Adelaide, pseudônimo que salvou a pele de Chico Buarque nos tempos da ditadura. Nesse período militar, os censores vetavam as canções do compositor só porque levavam a sua assinatura. A repercussão do pseudônimo foi tanta, que o tal Julinho chegou até a

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con comportamento ti nen te DivulgAção

dar entrevista ao Última Hora, em 1974. Numa das falas, o “sambista da favela”, autor de Jorge Maravilha e Chama o ladrão, ironizou: “Eu respeito muito o trabalho do cara (censor). Quando termina o dia, perguntam: quantas músicas você censurou hoje? O meu trabalho é fazer música. Hoje, fiz oito ou nove. No dia em que eu faço 10, eu vou dormir em paz com a minha consciência. Cada um no seu ramo”. O jornalista Mário Prata, que entrevistou o fenômeno musical, afirmou, anos depois: “Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite, nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro”.

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Anonimato do grafiteiro tem efeito de proteção contra processos judiciais

Nestas páginas 2 DAFt PUnk

Dupla francesa é conhecida pelo uso de capacetes robóticos

3 DAlton trUMbo Roteirista usou codinomes para poder trabalhar em Hollywood

no cineMA

Usar pseudônimo também foi a forma escolhida pelo escritor Dalton Trumbo para continuar escrevendo seus roteiros, após entrar na “lista negra” de Hollywood, durante o Macarthismo. O roteirista havia sido condenado a 11 meses em uma uma prisão federal em Ashland, Kentucky, depois de ter sido acusado de desobediência civil ao Congresso dos Estados Unidos por se recusar a denunciar, em 1947, os nomes dos supostos comunistas que trabalhariam na indústria cinematográfica americana. Após completar sua sentença, Trumbo mudou-se com a família para o México. Naquele país, passou a escrever dezenas de roteiros ou usando codinomes, como Robert Rich, para The brave one (1956), com o qual ganhou o Oscar de Melhor Roteiro, ou utilizando como fachada os nomes reais de amigos roteiristas, como Ian McLellan Hunter, para A princesa e o plebeu (1953), de William Wyler. O filme rendeu o Oscar de Melhor Atriz à estreante Audrey Hepburn, em 1954, e o Oscar póstumo ao próprio roteirista, em 1993. Com o apoio do diretor Otto Preminger, Trumbo recebeu crédito pelo filme Exodus (1960). Em seguida, o ator Kirk Douglas, protagonista de Spartacus (1960), tornou público que foi o escritor quem redigiu o roteiro do filme de Stanley Kubrick. Isso marcou o início do fim da perseguição ao ficcionista, que passou a ser reintegrado ao Writers Guild of America – West, o sindicato

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dos roteiristas de Hollywood, sendo, enfim, creditado em todos os roteiros seguintes que escreveu depois. Dentre os seus maiores sucessos, estão a direção de Johnny vai à guerra (1971), adaptação de seu próprio livro, e o último roteiro, Papillon (1973), baseado no romance autobiográfico de Henri Charrière. Além de Trumbo, outros nove diretores e roteiristas foram chamados para depor nessa comissão parlamentar de inquérito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos. Entre eles, Elia Kazan (Sindicato de ladrões), que forneceu ao Congresso os nomes dos companheiros. Muitos que depuseram contra os colegas passaram a ser criticados, evitados e/ou caíram no ostracismo. No entanto, Trumbo sempre os defendeu, argumentando que testemunharam sob a pressão da caça às bruxas comunista. Na literatura, o exemplo mais recorrente do uso de pseudônimo é o de George Sand, nome de fachada para a escritora francesa AmandineAurore-Lucile Dupin (1804-1876), baronesa Dudevant, mais conhecida como um dos ícones da história do

feminismo, por ter se comportado fora dos padrões da época, como se separar do marido Casimir Dudevant, ter diversos relacionamentos, entre eles, com Prosper Merimée, Alfred de Musset e Frederic Chopin, e ser admirada por gente como o economista e filósofo Karl Marx. O emprego do codinome George Sand foi inspirado em Jules Sandeau, o jovem que provocou o fim de seu matrimônio, e também foi um modo de driblar o preconceito da sociedade francesa da época – ainda conservadora no pósrevolução. Em 1832, estreou como romancista independente, com o livro Indiana, que alcançou grande sucesso. O uso do pseudônimo foi tão impactante, que a artista passou também a se vestir e se comportar como homem, chegando, inclusive, a fumar charutos, num período em que a mulher estava proibida de fumar. Seu trajes ajudaram também a emancipar os das mulheres do século 20, bem antes de sua conterrânea Coco Chanel (1883-1971). Em sua autobiografia, Histoire de ma vie, Sand narrou o fascínio de vestir-se de forma masculina:

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reprodução

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“Desejava ardentemente perder o meu provincianismo e informar-me diretamente sobre as ideias e as artes do meu tempo (…) mas estava a par das dificuldades de uma pobre mulher em gozar esses luxos (…) Assim, mandei fazer um redingote-guérite, bem como calças e casaco a condizer. Com um chapéu cinzento e um enorme lenço de lã, tornei-me a imagem de um estudante. Não consigo expressar o prazer que me davam as minhas botas. Com aquelas solas revestidas de ferro, sentia-me firme a andar pelas ruas e corri Paris de uma ponta a outra. Davame a sensação de que poderia dar a volta ao mundo. Com aquelas roupas não temia absolutamente nada”.

novas identidades

Existem também artistas que, mesmo famosos, resolvem em algum momento da carreira criar personagens para si, como são os casos do músico Neil Young, que assina como Bernard Shakey, quando ataca de diretor e produtor de documentários, e do escritor Nelson Rodrigues, que, em meio à estupenda repercussão de seu

neil Young e nelson Rodrigues são exemplos de artistas que, mesmo famosos, resolveram criar personas para si nome como cronista e dramaturgo, resolveu inventar duas escritoras. A primeira delas, Suzana Flag, “escreveu” o folhetim Meu destino é pecar (1944), cuja primeira edição não trazia o nome do autor na capa, ao contrário das edições posteriores – a mais recente delas, inclusive, retira totalmente o pseudônimo da capa, desrespeitando, dessa forma, a ideia inicial do autor. Em 1949, Nelson criou sua segunda figura, Myrna, colunista que dava dicas aos leitores (em sua maioria mulheres) do jornal O Diário da Noite de como se comportar nos relacionamentos amorosos. Myrna respondia às cartas com conselhos como, “fuja do homem bonito”, “conquiste todos os dias o seu marido”, “o amor que acaba não era

amor”. Os textos assinados por “ela” foram lançados, em 2002, no livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. O êxito dessas respostas alavancou as vendas do periódico, pois Nelson usava e abusava de sua perspicácia e bom humor para tecer comentários como o seguinte: “Você termina dizendo (na carta) que o seu bem-amado é ‘bonzinho’. Eu, se fosse homem, consideraria este elogio ofensivo. Às vezes, um simples qualificativo chega para invalidar um romance. Está neste caso o ‘bonzinho’. O nosso bem-amado não pode ser ‘bonzinho’, nunca. É formidável, único, fabuloso, deslumbrante. Menos ‘bonzinho’. Agora algumas palavras proféticas: você não se casará com o atual namorado. E por um motivo muito simples: você mesma se convencerá de que não o ama. E ele também. Daqui a três anos, você conhecerá seu verdadeiro amor. E não se esqueça: com senso comum não se fazem os grandes amores”. Mesmo artistas extremamente famosos, que têm seus rostos reconhecidos em qualquer canto do mundo, gostam de experimentar o sabor do anonimato, usufruindo um pouco das benesses que só os cidadãos comuns desfrutam, como poder circular pelas ruas livremente. Paul McCartney, por exemplo, revelou em entrevista à Rolling Stone, em abril de 1970 (o malfadado mês que marcaria o anúncio do fim dos Beatles), que, na estreia solo de George Harrison, no Madison Square Garden, em 1969, ele e Linda, disfarçados, estavam na plateia. Paul, que, nessa época, tinha rusgas com o guitarrista, estava com peruca afro, óculos escuros e bigodão falso (dá para imaginar?). Quarenta anos depois, em entrevista à Rolling Stone brasileira, em novembro de 2010, o artista, que já lançou disco assinando como Percy “Thrills” Thrillington, contou que seu desejo de levar uma vida de cidadão comum ainda é forte, tanto que, de vez em quando, resolve pegar o metrô em Londres (e já fez o mesmo em Paris, com o vagão lotado!), usando no rosto apenas óculos escuros, e se apoiando na dúvida das pessoas para cometer essa insanidade. “Você consegue ver nos olhos deles (a suspeita), mas eu olho de volta como quem diz: ‘Eu não poderia ser ele, poderia?’”

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Pernambucanas

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pirapama Um edifício cheio de histórias

Situado na Avenida Conde da Boa Vista, prédio é importante referência arquitetônica para o Recife dos anos 1960, tendo sua trajetória marcada pelo apogeu e decadência do Centro texto Marcelo Robalinho Fotos Isabella Valle

A consultora em tecnologia da

informação Kalina de Moraes contempla a paisagem noturna do Recife e de Olinda do 9º andar do seu apartamento, enquanto a ambulante Maria da Glória Oliveira vende seus espetinhos na calçada da avenida ali embaixo. Apesar de distintas, essas duas cenas cotidianas são vividas por moradores do Edifício Pirapama. Situado na Avenida Conde da Boa Vista, esquina com as ruas do Hospício e Sete de Setembro, no centro do Recife, o prédio revela um importante passado arquitetônico da cidade, além de abrigar histórias que retratam o apogeu e a decadência do Bairro da Boa Vista e do próprio empreendimento, entre os anos 1960 e 2000. Projetado em 1956 pelos arquitetos Delfim Amorim e Lúcio Estelita, o Pirapama foi inaugurado no início da década de 1960, integrando um momento de expansão vivido pelo Recife, especificamente em direção ao Bairro da Boa Vista e arredores. Uma época em que a preferência pelas “casas de apartamento” – termo utilizado pelo escritor Gilberto Freyre – ainda era pouco comum, embora os antigos sobrados unifamiliares dos tempos coloniais já apresentassem uma mudança para unidades já separadas internamente nos anos 1930, quando as classes mais abastadas se transferiram para os subúrbios, deixando as áreas centrais da cidade. “Qual a grande diferença entre o Pirapama e outros edifícios construídos naquela época – como o Walfrido

Antunes, na Boa Vista, e o Califórnia e o Holliday, em Boa Viagem – e os sobrados antigos, afora a forma? É a escala, além de articularem numa única estrutura uma multiplicidade de pessoas. É como se a cidade invadisse o edifício, criando uma espécie de minicidade vertical”, diferencia Luiz Amorim, professor

Uma das características do prédio é o uso múltiplo, já que foi projetado para comportar comércio, serviço e moradia do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e filho de Delfim Amorim. “Para mim, o Pirapama é um bairro. Cerca de 80% da minha clientela é do prédio. Administro a minha lan house e aproveito para comprar material de limpeza para minha casa, almoçar e lanchar no comércio que faz parte do edifício”, diz Eduardo Magalhães, 34, dono da Open House, que funciona há cinco anos no térreo do edifício. Antes de abrir a empresa, ele trabalhava como funcionário de um bar no mesmo local. “Foi uma mudança radical na minha vida. Comprei o ponto por R$ 28 mil, com ajuda da família. Não tinha experiência no ramo, mas decidi tentar. Consegui recuperar o

dinheiro gasto em dois anos. Hoje, tiro mais de R$ 2 mil por mês”, revela. Embora não seja um bairro, muito menos uma minicidade, o Pirapama impressiona pelos números. Ao todo, possui 63 lojas de comércio e serviços, distribuídas pelo térreo, e duas sobrelojas, formando uma massa horizontal, e 156 apartamentos de diferentes tamanhos para composições familiares distintas (uma ideia arrojada para a época), divididos numa torre vertical de dois blocos com 13 andares cada. Enquanto o Bloco A conta com 26 apartamentos de maior porte, o Bloco B tem 130 unidades residenciais de tamanhos menores. Trata-se de um edifício de uso misto projetado para comportar um mix de comércio, serviço e moradia. Num dos apartamentos do Bloco B, vive a paraibana Ednete dos Santos, 33, que mora há 12 anos no Recife, dos quais oito no Pirapama. “Vim para cá quando namorava um rapaz que morava no 12º andar. Passei a gostar daqui porque é perto de tudo. Além disso, o condomínio é um dos mais baratos do centro da cidade. Pago R$ 70 pelo apartamento”, conta. Há um mês, Ednete foi contratada pela Academia Patrícia Almeida, situada na sobreloja 1 do Pirapama, ficando responsável por abrir o estabelecimento, às 6h da manhã, fazer a limpeza e trabalhar como atendente. Além disso, ela aproveita para malhar das 7h30 às 8h30 e tem um intervalo para o banho e o café da manhã; depois, retorna ao serviço. “É bom trabalhar no mesmo

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Pernambucanas 1

lugar em que moro. Economizo dinheiro com o transporte, pois só preciso pegar o elevador”, diz. Proprietária da academia onde Ednete trabalha, a microempresária Selma Almeida, 45, também mora no Pirapama desde 1986, primeiro como inquilina do Bloco B e, mais recentemente, como proprietária de uma unidade no 7º andar do Bloco A, adquirida por R$ 75 mil, em 2007. “Moro num apartamento muito bom. Da sala, é possível ver o mar de Boa Viagem e, da área de serviço, Olinda”, diz, orgulhosa. Um aposento que chama a atenção no seu apartamento é o banheiro espaçoso, que dispõe de banheira e um janelão de vidro. “Como há outro edifício na frente do nosso, não tenho como deixar a janela do banheiro

aberta, senão perco toda a minha privacidade”, comenta Selma.

enDeReÇo ReQUiSitADo

Segundo o vice-presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, José Luiz Mota Menezes, o Edifício Pirapama foi uma concepção diferente de moradia para sua época. “O perfil mais humano do trabalho de Delfim Amorim fez com que ele transpusesse uma visão ecológica decorrente do telurismo da arquitetura de Portugal, país onde nasceu e viveu parte de sua vida, revelando a presença do homem lusitano vinculado à terra e às coisas produzidas pelo espaço, inclusive das aldeias e dos lugares portugueses”, afirma.

Nos anos seguintes à inauguração, o Pirapama tornou-se um endereço comercial conhecido e requisitado, devido aos pontos que abrigava. Era a época dos escritórios de renome e das butiques e lojas alinhadas, como a Vandôme, a Motinha Calçados, a importadora Ipanema Presentes, a Tabajara S.A. Crédito Imobiliário, o Banco Mercantil do Brasil, a Sevagtur, a Ótica Imperatriz e a Music Center. O próprio Delfim Amorim teve um escritório lá, da década de 1960 até o ano de sua morte, em 1972, além do filho Luiz Amorim, entre 1982 e 1983. “Lembro que, quando vinha ao Recife, nos anos 1960, achava o Pirapama um luxo. Era uma coisa de primeira, decente. Hoje, é uma

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1 PAViMento Os moradores jogam lixo no espaço acima do térreo e da sobreloja, projetado para funcionar como área de lazer

avacalhação. Aqui, muitos moradores não têm modos e jogam lixo pela janela, num verdadeiro desrespeito ao prédio”, reclama o aposentado Geraldo Oliveira, 68, enquanto um saco plástico é jogado de uma das unidades de cima do seu apartamento, como que para corroborar sua queixa. Residente desde 2000 no Pirapama, ele conta que adquiriu o seu imóvel por R$ 10 mil, sendo sua primeira moradia própria. “Foi uma luta de 40 anos de serviço para conseguir uma morada, que obtive graças a ex-clientes da época em que eu tinha uma barraca de coco na Avenida Dantas Barreto. Eles me indicaram o imóvel aqui no Pirapama. Todos os meus irmãos já tinham casa, menos

eu. Achei bom poder comprar. Porém, se fosse para entrar hoje no Pirapama, eu não viria mais. Aqui, é fácil de adquirir, mas difícil de vender. Meu sonho é sair daqui”, relata Geraldo, que mora sozinho no apartamento 709 do Bloco B, composto de quarto, sala e banheiro. Diferentemente de Geraldo, a consultora em tecnologia da informação Kalina de Moraes, 44, sonha em poder comprar uma unidade no edifício e permanecer. Ela tornou-se inquilina em 2000. “Foi um período difícil para mim. Saí de um casamento sem nada, por opção. Buscava uma mudança de vida. Quando entrei no apartamento, mesmo com vários problemas estruturais visíveis no imóvel, sabia que era a minha casa. Só ajeitei as janelas, que estavam ruins. Peguei um colchão emprestado. Comprei apenas o essencial, no início. Fui me acomodando aos poucos, com sofá, TV e outros móveis e utensílios”, recorda. Identificando-se com o espaço, Kaline diz gostar do clima decadente do centro e da proximidade com o seu trabalho. “Gosto muito da noite, de poder voltar para casa a pé do trabalho e ir ao Carnaval no Recife Antigo para encontrar os amigos. O cantinho da minha casa preferido é a área de serviço, onde gostava de me apoiar na janela para contemplar a Lua. Porém, não faço mais isso porque as pessoas jogam restos de comida que entram pelas janelas dos cômodos.” Como se não bastasse a limitação de ter que deixar as janelas do apartamento fechadas, a moradora conta que ele já foi arrombado duas vezes, entre 2005 e 2006. Casos como os de Kaline não são isolados. Outros moradores já tiveram seus apartamentos invadidos. Em grande parte, isso se dá pela falta de controle no acesso de pessoas através do térreo e das sobrelojas ao bloco privativo dos apartamentos. Uma das saídas encontradas pela administração foi colocar câmeras de segurança para monitorar as entradas e saídas, os elevadores e corredores. Apesar das melhorias, a portaria não conta com interfone para os funcionários poderem se comunicar com os moradores. “Até bem pouco tempo, o ambiente do Pirapama era barra-pesada. Agora, melhorou muito. Trabalho à noite e,

embora o fluxo de pessoas aqui diminua, é sempre mais arriscado pelo horário”, comenta o porteiro Jorge Barbosa, que também já morou no edifício.

LUtA PoR MeLHoRiAS

“O prédio é muito aberto, permitindo uma grande circulação de pessoas diariamente. Por isso resolvemos fechar a entrada da Rua do Hospício, para ter um maior controle dos que passam por aqui”, afirma Marluce Maciel, síndica do Pirapama. Responsável pela administração do prédio há 10 anos, ela tem uma relação bastante próxima com o edifício, onde passou a trabalhar em 1979, primeiro como secretária de João Cleophas e, depois, para o advogado José Urbano da Costa Carvalho. “Na época, dr. João Cleophas morava no Rio e vinha ao Recife de duas a três vezes por ano. Ele dizia que ficava muito triste com a decadência do prédio. Em parte, acredito que ele tenha se arrependido de fazer apartamentos pequenos. O prédio foi construído para a alta sociedade, mas, com o passar do tempo, devido às más administrações e à inadimplência dos moradores, foi se

o projeto de Delfim Amorim aliou a arquitetura do Brasil e a de Portugal, a partir do uso de azulejos, tijolos aparentes e cobogós deteriorando, a ponto de chegar a uma situação bastante crítica”, aponta. Ela se tornou síndica por sugestão do próprio José Urbano. Para se candidatar ao cargo, Marluce obteve uma carta dele relatando a história do prédio e recomendando o seu nome para a administração. “Quando assumi o condomínio, me deram um crédito de confiança. Fiquei com medo da responsabilidade por ser um edifício grande e pelos inúmeros problemas que havia. Com o passar do tempo, fui criando força para tomar conta daqui”, diz Marluce. Uma das primeiras ações empreendidas, com ajuda da polícia, foi a retirada das casas de massagens e dos pontos de venda de drogas que existiam dentro do prédio. “Várias vezes, homens batiam aqui na

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Pernambucanas nossa porta pensando que era casa de massagem, porque tinha uma embaixo do nosso apartamento”, relembra a dona de casa Leonice de Melo, moradora do 608 desde 1980. O medo de ser abordada fez com que colocasse uma grade para impedir a passagem das pessoas. “De longe mesmo, eu dizia que aqui não era esse tipo de casa e evitava maiores

contatos. Ainda hoje, por incrível que pareça, tem gente que toca a campainha atrás disso”, afirma dona Leonice. Outro morador antigo do Pirapama, o militar inglês Peter Prior, 80, também lembra que passou por maus bocados entre os anos 1980 e 1990, com o processo de decadência do prédio. “Quando cheguei ao Pirapama,

ainda na década de 1970, a moradia era melhor. O edifício era bem mais organizado e bonito. Morei no 3º andar, no apartamento 308 do Bloco B, com a minha mãe. Mas, com o seu falecimento, em 1982, resolvi sair do apartamento para vir morar aqui no telhado do Bloco A. Aí, as coisas ficaram difíceis. Teve uma época em que eu tinha de subir as escadas correndo, com medo de ser abordado por algum ladrão”, relembra. Morando na antiga casa do zelador, Peter se diz um homem privilegiado

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2 coBeRtURA O inglês Peter Prior mora no telhado do Bloco A, de onde tem um visão privilegiada da cidade 3-4 PRAticiDADe Selma Almeida vive no Pirapama e é proprietária da academia que fica na sobreloja, onde Ednete Santos, também moradora, trabalha 5 cASA PRÓPRiA O aposentado Geraldo Oliveira adquiriu o seu imóvel por R$ 10 mil 6 ALUGUeL Inquilina desde o ano 2000, Kalina de Moraes gosta do clima decadente da área e sonha em poder comprar um apartamento no edifício 7 cooPeRAÇÃo O casal Luciano e Maria César Barbosa uniram-se aos vizinhos de porta para manter o 6º andar do Bloco B em boa situação

pela visão que tem do Recife e de Olinda. “Hoje, sinto-me mais seguro. Tenho uma grade que fecha a minha casa. A prevenção é o melhor remédio. Infelizmente, enxergo muito pouco, pois sofro de catarata.” Sua história de vida, segundo ele, inclui a participação na Guerra da Coreia (1950-1953) e a ocupação da vaga de vice-cônsul da Inglaterra em Pernambuco. “Como vice-cônsul, conheci o ex-presidente Costa e Silva”, afirma Peter. Sua atual casa, bem como a outra residência do zelador existente no Bloco B, não entram no levantamento de moradias ocupadas do condomínio. Desde os anos 2000, as casas de prostituição e de venda de drogas começaram a desaparecer do Pirapama, a partir de ações realizadas pela polícia em parceria com outros órgãos públicos, reabilitando a condição de um “prédio de bem”.

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SeM ÁGUA

Embora o nível de circulação tenha melhorado, problemas ligados à conservação do edifício ainda são visíveis. Instalações de água e luz expostas, infiltração nas paredes e substituição indevida dos cobogós por tijolos de cerâmica são exemplos desses problemas. Outra questão delicada é a inadimplência acumulada junto à Compesa, devido à falta de pagamento das contas de água e esgoto em décadas anteriores (a administração do condomínio estima que a dívida esteja em torno de R$ 600 mil), o que levou a companhia a cortar o abastecimento e a coleta

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Pernambucanas de esgoto nos anos 1990. “Ficamos, pelos menos, dois anos sem água, só abastecendo os apartamentos das pessoas com carros-pipa, através da tubulação dos bombeiros”, recorda o morador Hélio. O arquiteto Luiz Amorim, que já fez um estudo sobre as condições do Pirapama, afirma que o edifício carece de melhor infraestrutura. Para ele, a manutenção de edifícios desse porte está vinculada a uma ação administrativa eficiente. Caso contrário, o sistema pode entrar em colapso. “A direção atual tem feito um trabalho bom, se compararmos com o passado. Juntos, fizemos propostas para adequar as condições de uso atuais, aumentando a segurança, fazendo o restauro do prédio com a reinserção de materiais que já foram perdidos e melhorando a infraestrutura, mesmo com redução dos custos condominiais. Infelizmente, isso não avançou porque é necessário um capital

maior. Buscamos o apoio de bancos, mas não conseguimos”, justifica. “É uma pena que as benfeitorias não possam ser feitas plenamente porque nem todos pagam o condomínio”, lamenta a comerciante Maria da Glória Oliveira, 43. Mãe de três filhos, ela é uma das ambulantes que residem no Pirapama – e aproveita a localização privilegiada no centro para comercializar espetinhos, refrigerantes e água durante a noite em frente ao edifício. Mesmo com as dificuldades enfrentadas pelo condomínio, algumas iniciativas isoladas de moradores mostram do que é capaz a força de vontade. Como no caso do 6º andar do Bloco B, onde os vizinhos resolveram se unir para cuidar da preservação do andar. À frente do grupo está o casal Luciano Barbosa Filho, 50, e Maria César Barbosa, 59. Recentemente, os vizinhos se cotizaram para comprar tinta. Luciano

8 ARQUitetURA Os cobogós fazem parte do projeto original do edifício

e Maria se encarregam da pintura. “Isso deveria ser obrigação do condomínio, mas nós fizemos para deixar o andar com uma cara mais simpática e apresentável”, afirma o comissário de polícia. Além da pintura, eles colocaram uma mesa e plantas enfeitando o corredor. Recentemente, mandaram dedetizar o andar por conta própria, quando contaram uma centena de baratas na despensa do lixo. No Pirapama, desde 1999, quando chegou para cuidar do pai, Luciano conseguiu comprar, há nove anos, o apartamento 610 do Bloco B, de uma instituição filantrópica. “Gosto de morar aqui, mas não da bagunça”, opina Maria César. Atualmente, Luciano e Maria planejam passar uma temporada no Rio de Janeiro, junto aos dois filhos que moram lá. “Se der certo, a gente se muda, mas continuaremos com o nosso apartamento aqui. Afinal, de imóvel a gente não se desfaz”, diz Luciano.

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Pernambucanas 9

memória e ele um dia foi o lugar da moda

Situado entre o Pirapama e o prédio vizinho, Beco da Fome é lembrança pálida de um outro tempo, quando intelectuais e estudantes eram habitués

o Pirapama integra um conjunto arquitetônico especial do centro do Recife, segundo os especialistas, juntamente com outros edifícios

importantes, a exemplo do Duarte Coelho, sede do tradicional cinema São Luiz, e do Santa Rita, outro projeto do arquiteto Delfim Amorim

– o primeiro a ter caixas de ar condicionado na sua composição. Os três prédios estão situados no primeiro trecho da Avenida Conde da Boa Vista, que vai da Rua da Aurora à Rua do Hospício, esta, denominada Rua Formosa, até o século 19. “A Conde da Boa Vista formava um eixo importante com a Avenida Guararapes, que era um lugar fabuloso e teve o seu auge nos anos 1940 e 1950, sendo considerado o ‘lugar quente’ da época para a sociedade recifense. Com a decadência da Guararapes, entre os anos 1960 e 1970, vem a expansão do Bairro da Boa Vista, que é quando surge o Pirapama, e a Conde da Boa Vista assume um lugar de destaque. É nesse momento que a arquitetura

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correDor

Hoje, o espaço contabiliza uma perda de mais de 50% do movimento devido à concorrência com os ambulantes, afirmam os comerciantes

com clareza o período em que foi construída e certa unidade entre as edificações, da mesma forma que a Guararapes tem uma unidade própria. Então, é uma área que merece tratamento cuidadoso. Inclusive, não é qualquer profissional que pode intervir nas edificações. Caso contrário, a gente corre o risco de perder esse patrimônio”, afirma o arquiteto. Ele recorda que, nos anos 1980, Abrahão Sanovicz, um arquiteto paulista já falecido, foi contratado pelo Banespa para fazer o projeto da sede do banco na esquina oposta ao Edifício Pirapama, entre a Conde da Boa Vista e a Rua do Hospício, onde hoje funciona uma galeria com lojas e farmácia. “Quando Abrahão veio ao Recife conhecer de perto o terreno, viu o Pirapama e ficou impressionado com a qualidade do projeto. Ele procurou saber quem era o responsável pela concepção do edifício e, no seu projeto arquitetônico, buscou travar um diálogo entre o Pirapama e a sede do Banespa. Então, aquela superfície ondulada do extinto Banespa, ainda existente na atual galeria, foi concebida como um grande painel artístico de tijolo aparente, feito mais ou menos na mesma escala e relação da massa horizontal do edifício projetado por Delfim Amorim”, relembra Luiz, que conheceu Abrahão naquela época.

Beco DA FoMe

moderna vai se instalar na avenida, no lugar dos antigos sobrados; ora com características qualificadas, como é o caso do Pirapama, ora com edifícios com sacadas e balcões de alvenaria, muito comuns no Rio de Janeiro, como se fossem asas de avião, a exemplo do prédio do Clube Náutico Capibaribe”, explica o arquiteto José Luiz Mota Menezes, vice-presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Para o professor da UFPE Luiz Amorim, esse primeiro intervalo da avenida requer atenção, especialmente pela qualidade das construções existentes. “Esse trecho representa um tecido urbano bem-definido, com uma arquitetura que expressa

Por trás do Pirapama, outro local que fez história nas últimas décadas foi o Beco da Fome, que reúne parte dos bares do térreo do prédio. “O lugar possui esse nome porque aqui era um conhecido ponto para comercializar lanches e comidas mais baratas. Era cheio de estudantes de escolas e faculdades da região. Eles falavam: ‘Vamos lá naquele lugar que mata a fome’. A partir disso, pelo que sei, as pessoas batizaram aqui de Beco da Fome”, relata Vera Lúcia de Farias, proprietária do Bar do Timão, conhecido por reunir os torcedores do time do Corinthians em Pernambuco. Criado em 1993 pelo seu falecido marido, Fernando Gomes de Farias, o bar viveu sua fase áurea naquela década, quando o Beco ainda congregava artistas e boêmios. “O Beco era uma loucura de tanta gente. Às vezes, chegávamos

às 10 da manhã e já havia gente esperando para que abríssemos o bar. O local era muito animado. Tinha jornalistas, advogados, poetas, escritores, hippies e andarilhos”, relembra Elma de Lima, funcionária do Bar do Timão, desde 1994. Na opinião de Vera, o movimento começou a cair depois que a Rua Sete de Setembro foi liberada para o comércio de camelôs, nos anos 2000. “Começamos a perder a clientela, porque os ambulantes vendiam tudo mais barato, além do que a área ficava uma sujeira. Quando era vivo, meu marido foi ameaçado de morte por denunciar o problema na imprensa”, comenta Vera. Atualmente, ela contabiliza uma queda no movimento de mais de 50%. “Estamos junto à prefeitura pleiteando melhorias para o local.” Alheios a isso, alguns clientes se mantêm fiéis ao lugar. O pesquisador Sérgio Gonçalves, 44, por exemplo, é frequentador do Beco há 10 anos. “Sempre venho aqui de três a quatro vezes por semana para um happy hour. Como trabalho entre o Centro e o Bairro de Campo Grande, aproveito para encontrar os amigos, beber uma cerveja e colocar o papo em dia. Antigamente, o submundo rolava aqui, sendo tradicional por congregar pessoas de todas as tribos. Hoje, ainda tem de tudo, mas o local ficou menos politizado, porque os intelectuais não estão vindo mais.” De acordo com o arquiteto Luiz Amorim, o Beco da Fome fazia parte originalmente do terreno do edifício Pirapama, sendo uma área privativa, e que foi concebida como uma parte complementar ao edifício. “Pelo projeto, haveria lojas voltadas para a Avenida Conde da Boa Vista e outras voltadas para essa rua privativa, que depois foi doada à cidade por João Cleofas. Não era uma rua fechada, mas fazia parte do terreno. O político fez a doação porque comprou os terrenos da parte de trás e ali construiu o Edifício João Murilo, que é também conhecido como Pirapaminha, um outro projeto de Delfim Amorim, mais singelo que o do Pirapama e com salas menores, mas que guarda algumas semelhanças com ele”, explica. MarCElO rObaliNHO

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Cardápio

VINÍCOLAS O momento dos vinhos jovens

Há dois anos, o enólogo francês

Nordeste brasileiro e sul da França protagonizam as mais novas mudanças no velho mundo da vitivinicultura texto Antônio Martins Neto fotos Josicarlos Santana

Michel Fabre se divide entre o sul da França e o alto sertão de Pernambuco, mais precisamente o Vale do São Francisco, para participar de dois marcos simultâneos no mundo da vitivinicultura. Em LanguedocRoussillon, próximo ao Mar Mediterrâneo, ele administra uma pequena vinícola familiar, uma das tantas que há 20 anos têm ajudado a elevar a qualidade do vinho de uma das mais antigas regiões produtoras da Europa, mas de reputação

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1 VALe Do SÃo FRAnciSco

Região é a única do mundo com duas safras e meia por ano

Bordeaux, no sudoeste do país, e dão origem a uma de cada três garrafas de vinho consumidas na França. É uma tradição milenar, uma vez que o vinho é produzido na região desde o ano 600 a.C., quando os gregos plantaram ali as primeiras vinhas do país. Mas foi só nas duas últimas décadas que as cooperativas de produtores passaram a se preocupar com a qualidade, o que para os enólogos significa produzir menos e melhor. “A produção está caindo. Temos de saber que antigamente esta região era conhecida pelo vinho de baixa qualidade, que se vendia em quase toda a França e que se tomava todos os dias”, diz Fabre. O tinto de mesa tosco e barato do passado vem dando lugar a vinhos atraentes e com personalidade marcante, resultado de um processo

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historicamente duvidosa. Já no Brasil, Fabre está à frente de uma empresa italiana que ao lado de outras cinco vinícolas produz vinho de padrão internacional em pleno semiárido nordestino, um feito até poucos anos considerado impossível pelos especialistas do setor. O vaivém de Michel Fabre sobre o Oceano Atlântico – ele passa, em média, três meses por ano na França e nove no Brasil – ilustra bem os esforços dos produtores de várias partes do mundo para acompanhar

a mais recente mudança no mercado de vinhos. O aumento do consumo, em especial nos Estados Unidos e nos países emergentes, como China e Índia, tem estimulado a produção dos chamados vinhos jovens, com pouca longevidade, aromas frutados e coloração viva. Justamente o que o sul da França e o sertão de Pernambuco têm de sobra para oferecer. Em Languedoc-Roussilon, a produção tem sido abundante. Os vinhedos se espalham por uma área de 300 mil hectares, três vezes maior que

o aumento do consumo estimulou a produção dos vinhos frescos, com pouca longevidade, aroma frutado e cor viva iniciado nos anos 1990, quando uma nova geração de produtores percebeu que, apesar da falta de cepas populares e de habilidade para fazer bons vinhos comerciais, Languedoc-Roussillon tinha clima e terra à vontade. Fabre lembra que foi preciso viajar a outras regiões do país para aprender mais sobre o cultivo de uvas viníferas e escolher as cepas que fariam parte dos novos vinhos que seriam feitos a partir de então. “Melhoramos o nosso terroir”, lembra o enólogo.

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antônio maRtins neto

Cardápio 2

Foram plantadas, então, grandes áreas com uvas chardonnay, merlot, sauvignon blanc, viognier, syrah e cabernet sauvignon. A colheita e o processo de fermentação também passaram por transformação e chegaram a receber supervisão de enólogos da Califórnia, onde técnicas mais modernas de vinificação já eram adotadas. O resultado foi o crescente reconhecimento de LanguedocRoussillon, que nos últimos anos passou a figurar nos livros de enologia como uma região digna de ser conhecida. “São varietais com ótima relação custo/benefício, muitas vezes rotulados sob a grande categoria regional Vin de Pays d´Oc”, afirma o crítico britânico Robert Joseph, autor de mais 20 livros sobre enologia e fundador da revista Wine. “Hoje, produzo entre 25 e 32 mil garrafas e devo chegar a 40 mil, em dois anos. Não quero passar dessa produção, para manter a qualidade do meu vinho”, diz Fabre, que controla sozinho o processo de vinificação e divide com o pai e a mulher os cuidados diários com o vinhedo. A vinícola produz o

As regiões do Vale do São Francisco e de Languedoc-Roussillon têm semelhanças geográficas, propícias à produção vinícola rótulo La Croix de Saint Jean, um tinto com cortes de grenache, mourvèdre e syrah, que chega a Pernambuco pelas mãos do próprio produtor. A safra de 2007 recebeu 91 pontos do renomado crítico americano Robert Parker, cujo olfato está assegurado em um milhão de dólares e as avaliações podem arruinar uma vinícola ou lançar o preço de seus vinhos às alturas.

teRRAS noRDeStinAS

Já no Vale do São Francisco, Michel Fabre é responsável pela vinícola Chateaux Ducos, uma propriedade de 124 hectares às margens do Velho Chico. A casa faz no Brasil quatro tintos: um cabernet sauvignon, um syrah, um petit verdot – único

do país – e uma assemblage dessas três castas. Os vinhedos produzem apenas 4 mil quilos por hectare, mil quilos abaixo da proporção-limite para garantir a qualidade das uvas, colhidas manualmente ao atingir a maturidade ideal e em horários bem específicos, das cinco às dez da manhã e das três às seis da tarde. Detalhe: elas são cultivadas ao som de música clássica, emitida por alto-falantes. Mas, na aridez do Sertão, a combinação de sol ininterrupto, solo fértil e água na medida certa, distribuída pelo processo de irrigação, é o que tem feito do vale a nova fronteira do vinho brasileiro. A região produz cerca de 10 milhões de litros por ano, apenas 15% da produção nacional e fração ínfima da produção mundial, que chega a 27 bilhões de litros. No entanto, o potencial é surpreendente. A região é a única do mundo com duas safras e meia por ano, o que permite colher uvas e fazer vinho a todo momento. Na Europa, e mesmo nos países produtores do Novo Mundo, há apenas uma safra anual e a colheita ocorre em meses específicos, devido às estações climáticas bem-definidas.

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Nestas páginas 2 mineRVoiS

Cidade medieval está incrustada em área de produção vinícola no sul da França

3 micHeL FAbRe enólogo francês divide-se entre sul da França e sertão pernambucano para a produção de vinhos

3

De resto, o Vale do São Francisco tem muito em comum com Languedoc-Roussillon. Enquanto os vinhedos do sul da França estão, no máximo, a 500 metros acima do nível do mar, as vinícolas do sertão ficam numa área cuja altitude varia de 350 a 400 metros. As duas regiões têm presença de rochas e areia, o que fornece boa drenagem. No caso francês, há predominância de xisto e calcário. No brasileiro, de calcário e quartzo rochoso. O que falta hoje ao vale é um sistema de certificação que ateste a qualidade dos produtos mais sofisticados, além de uma legislação capaz de garantir parâmetros entre os diferentes rótulos. Mas antes é preciso conhecer o vinho feito na região, uma missão assumida pelos cientistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. “O apoio que nós damos ao setor é tentar caracterizar e descrever os vinhos obtidos dessas variáveis, do clima, do solo, diversidades, data de elaboração”, diz o engenheiro agrônomo Giulliano Elias Pereira, supervisor do Laboratório de Enologia da Embrapa Uva e Vinho.

o que falta hoje ao Vale é um sistema de certificação que ateste a qualidade dos produtos mais sofisticados Os pesquisadores também estão atentos às inovações tecnológicas e aos novos vinhos que valorizem as condições do vale e que possam ser adotados pelo setor. “Não queremos copiar vinhos da região da França, da Austrália ou dos Estados Unidos, mas tentar definir, por exemplo, qual é o mês do ano em que nós conseguimos aqui vinhos de alta qualidade, vinhos que possam ser de guarda, de alta longevidade”, completa. Já a França possui uma complexa legislação sobre rotulagem e certificação, com denominações e regras regionais, surgidas no início do século 20 como forma de proteger o consumidor de práticas fraudulentas por parte dos comerciantes. Por lei,

os rótulos devem trazer informações como volume, endereço do produtor, origem geográfica, declaração de safra e cepa, teor alcoólico e classificação. As principais são vin de table, vin de pays, vin délimité de qualité supérieure e appellation d´origine contrôlée, mas há ainda diferentes classificações regionais. Todas elas determinam as uvas que podem ser usadas e em que proporção, além do método de cultivo e do processo de vinificação permitidos. Nesse intrincado sistema, os vinhos de Languedoc-Roussillon recebem a denominação de vin de pays e estão, portanto, sujeitos a uma legislação mais frouxa que a rigorosa appellation d´origine contrôlée. Isso permite às vinícolas fazer bons vinhos varietais com cepas não tradicionais, além de misturar uvas nativas e de outras regiões mais conhecidas internacionalmente como Alsácia, Bordeaux, Borgonha e Vale do Rhône. “As denominações de Languedoc-Roussillon são hoje responsáveis pelos mais atraentes vinhos da França, com cortes ricos e caráter nítido da região. É a resposta francesa ao Novo Mundo”, afirma Robert Joseph.

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ROBERT DOISNEAU Um dos gênios do humanismo Acervo de 500 imagens selecionadas no vasto acervo do fotógrafo francês denota seu afeto pela gente simples texto Adriana Dória Matos

Se tivéssemos de nos restringir a

uma palavra para definir a atividade de Robert Doisneau (1912-1994), seria cronista. Não, não, o leitor objetaria, ele era fotógrafo. Bem-lembrado. Sendo que a fotografia, no caso dele, é apenas o meio de expressão. O que ele disse ao mundo está perfeitamente relacionado à crônica, esse gênero informal, lúdico, afetivo, gracioso e despretensioso por excelência. Os adjetivos não se encerrariam por aqui, mas não vamos cansar o passante, afinal, temos todo um caminho pela frente. O cronista é aquele indivíduo que faz do seu assunto – geralmente uma minúcia, um pedacinho de nada – algo tão leve, que parece que ele não teve trabalho, e até se divertiu um bocado com a tarefa. É assim que nos sentimos olhando as fotos de Doisneau, que teve nas ruas parisienses e nos seus personagens comuns o seu grande tema. Aliás, os depoimentos dele sobre o próprio trabalho e as espirituosas legendas que escreveu para suas fotos atestam um espírito zombeteiro e despojado. Comentando a instalação de estátuas de Maillol nos jardins do Louvre, em 1964, ele escreve: “Naquela manhã eu tinha um encontro com um areópago de publicitários que preparavam uma campanha para o lançamento de vasilhas de poliestireno ou talvez de poliéster. Como de costume, eu estava atrasado – o caminhão da empresa Gougeon ‘transporte de obras de arte’ retardou

minha travessia das Tuileries. A aparição das estátuas de Maillol me fez esquecer completamente das vasilhas. Foi mais ou menos a partir daquele instante que perdi o contato com a agência de publicidade”. Uma das fotos que resultou desse encontro fortuito, intitulada Vênus pega à força, integra um divertido recorte do livro Paris Doisneau (Cosac Naify), em que estão reunidas imagens libertinas de esculturas públicas. O cronista chega mesmo a criar, com reproduções de monumentos urbanos, a fotonovela A simples história de um garoto de Paris, bom menino e bom soldado, diante da qual ninguém duvida da potência imaginativa do autor, isso, por conta do conteúdo das legendas. Todas as 500 imagens selecionadas para Paris Doisneau são um testemunho de identificação do autor com a cidade em que vive, embora esta não seja desbragada, porque concentrada na gente simples e nos seus ambientes de frequentação. Diante do conjunto, o leitor se dá conta do tempo enorme que Robert Doisneau dedicou ao registro do movimento das ruas e a importância que atribuía aos acasos. Mais uma vez é a própria voz do cronista que declara sua relaxada metodologia, quando ele afirma que sua gigantesca documentação não sofria qualquer premeditação. “Caminhei tanto sobre os paralelepípedos e depois sobre o asfalto de Paris, sulcando a cidade em todos os sentidos durante meio século”, escreve. “Ao longo dos anos, essas imagens que

hoje flutuam e vêm se agrupar como rolhas de cortiça na correnteza do rio foram feitas durante horas roubadas a meus diferentes tipos de empregadores.” Doisneau declara-se um desobediente (“Desobedecer parece-me uma função vital”), e essa é mais uma qualidade que nos leva ao seu caráter deambulador e resistente. Ainda que vários momentos de sua obra declarem isso, é no conjunto de fotografias sobre o mercado público de Les Halles que visualizamos essa sua “desobediência”, expressa na insurgência contra uma sociedade que se transforma, a despeito da vontade do cronista, que observa seus cenários adorados desaparecerem rapidamente. E aqui verificamos também a importância da conservação de acervos, porque são eles que nos possibilitam a compreensão histórica. Doisneau vinha fotografando Les Halles e seu entorno (o frenético 1º arrondissement parisiense, que a gente poderia traduzir livremente como o “centrão” da cidade) desde os anos 1940. Nas 32 imagens aqui publicadas, somos induzidos pelo olhar do fotógrafo (e também pela ótima edição) a uma resposta reativa à derrubada do antigo mercado, ocorrida em 1971. O depoimento textual reforça seu desgosto: “Técnicos debruçaram-se sobre o problema dos Halles de Paris. Homens astutos, urbanistas, políticos, financistas. Debruçaram-se, isto é, olharam lá do altos as pessoas comuns se agitando. Eu tinha muitos amigos ali, naquele tipo de aldeia eu era um fotógrafo

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Visuais 2 Página anterior 1 tReM-FAntASMA

Na foto de 1953, as expressões revelam como cada uma das meninas reagiu ao brinquedo

Nesta Página 2 concReto

A partir do final dos anos 1970, o olhar do fotógrafo sobre a cidade converte-se em crítica

inofensivo, considerado um maníaco dócil, de modo que não posso compreender nada das concepções dos tecnocratas embebidos em geometria. As metas rumo às quais eles tendem chamam-se rentabilidade, especialização, divisão de trabalho, eficiência. (…) Paris perde seu ventre e um pouco do seu espírito”. Imagine então esse homem, de afetividade declaradamente popular, integrando a equipe de fotógrafos da sofisticada Vogue e seu enfoque haute culture. Por três anos, através da Agência Rapho, Doisneau fotografou para a revista a gente fina de Paris, suas festas, seus casamentos e também editoriais de moda. Ele atribuiu o convite para integrar o elenco da revista a uma demanda por frescor: “Eu era o filho do

jardineiro convidado para vir com as crianças do castelo sob a condição de trazer junto um olhar novo”, define ele. Fantástica síntese sobre esse mundo Vogue, de glamour, distanciamento e afetação, é uma imagem de 1947, Uma mulher passa, em que uma endinheirada vestida com um casaco chiquérrimo, bordado em brilhos de penas de pavão, provoca um olhar de esguelha e assombro num homem que a vê caminhar. “O homem das chaves de ouro, até ele”, comenta o fotógrafo, “que trazia normalmente sobre sua cara hirsuta todo o desdém do mundo, não tirava os olhos dela”. Podemos dizer então que, com este volumoso título de 400 páginas e 500 imagens, nos aproximamos da alma libertária e simples de Robert Doisneau. Como muitas de suas fotos, embora maravilhosas, têm sido excessivamente veiculadas (caso das séries sobre crianças e da controversa O beijo do Hôtel de Ville, de 1950), a opção por evitar suas imagens mais conhecidas é um trunfo desta edição. Claro que há aqui algumas recorrentes, mas o melhor é o encontro com aquelas menos midiatizadas. Outro

mérito de Paris Doisneau é o excesso controlado. Ou seja, vemos muitas fotografias, sem que isso signifique diluição, mas acuidade. Exemplo bom desse exagero é apreciarmos as sequências realizadas pelo fotógrafo. Entre elas, A vitrine de Romi (em que ele se delicia em registrar as variadas expressões dos transeuntes diante de uma pintura de nu exposta), Place da la Concorde e Os pés passantes (ambas captando o ritmo frenético do trânsito), e O pintor do instituto (que daria um excelente stop motion). Toda a vibração positiva que percorre quatro quintos de Paris Doisneau tornase melancólica nas últimas páginas. Isso porque a cidade ali retratada mostra-se estranha ao fotógrafo. Ele escreve: “Todas essas agências bancárias, todos esses edifícios de vidro, todas essas fachadas de espelho são a marca de uma arquitetura de reflexo. Não se vê mais o que se passa na casa dos outros e tem-se medo da sombra. A cidade torna-se abstrata. Ela não reflete mais senão a si mesma”. Acabava o namoro entre Paris e um de seus mais gentis cronistas.

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JUAN RULFO Fotografias de um caixeiro-viajante reprodução/ juAN rulfo

inevitável olhar as fotografias de

Juan Rulfo (1917-1986) sem associálas à sua criação literária, sobretudo aquelas imagens relativas à natureza, à gente, à arquitetura, ou, numa palavra, à memória mexicana. Não que devêssemos evitar tal comparação, mas talvez valha a pena dispensar hierarquias de importância dessa ou daquela linguagem desenvolvida pelo artista, já que, no final das contas, ambas são reveladoras de suas virtudes. A produção literária e fotográfica de Rulfo ocorre simultaneamente e

se concentra nos anos 1940-1960. Tornou-se proverbial o “silêncio” do escritor, que publicou apenas duas obras literárias – a coletânea de contos O chão em chamas (El llano en llamas, 1953) e o breve romance Pedro Páramo (1955) – tendo também mantido seu acervo fotográfico relativamente desconhecido do grande público, que apenas tomou conhecimento de sua diversidade depois da exposição em sua homenagem nos anos 1980. Somente a partir de miradas dispersas, foi possível acompanhar seus ensaios fotográficos para o cinema

e a dança, bem como suas imagens do México publicadas em revistas. Chega agora ao público brasileiro o livro 100 fotografias: Juan Rulfo (CosacNaify), pelo qual é possível vislumbrar a visão do artista sobre seu país. Boa parte do material de Rulfo foi fotografada quando ele trabalhava como caixeiroviajante. Ele pôde, nesses trânsitos, revisitar o México rural de sua infância, esta, marcada por acontecimentos trágicos, como o assassinato do pai e o precoce falecimento da mãe. Além de memórias de orfandade, impregnavamno também aquelas relativas ao passado pré-hispânico e colonial nacional, marcado por injustiças, desarranjos, pobreza e conflitos entre indígenas e espanhóis. E é sobre esses despojos pessoais e nacionais que Juan Rulfo vai sedimentar sua obra, seja ela textual ou imagética. Embora, como observa o historiador de fotografia italiano Daniele De Luigi, em texto publicado em 100 fotografias: Juan Rulfo, haja uma clara distinção de registro literário e fotográfico a respeito desse grande tema em comum. Enquanto sua literatura é “constelada de metáforas que se imprimem na memória com excepcional vividez”, sua fotografia “mantém com o real uma inegável relação de referencialidade direta”. Dadas as distâncias entre a literatura e a fotografia do escritor mexicano, que chegou a afirmar: “Não sou fotógrafo”, há nelas o mesmo sentimento do trágico, do abandono e da solidão. Algo como se o passado estivesse sempre ali, latente. aDriaNa DÓria MaTOS

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exaltação a hermila

matéria corrida José cláudio

artista plástico

Que não precisa ser exaltada por ser já em si uma exaltação da natureza. Já faz mais de quinze dias que vi o filme e ainda continuo exaltado. Fiquei anotando coisinhas em qualquer pedaço de papel, como esse aqui por cima de uma recomendação de Emmanuel, do Núcleo Espírita Aristides Monteiro, “Ante o golpe da ofensa,/Não te vingues. Perdoa” etc., escrito atravessado por cima da letra azul do impresso: “arrancam a blusa e os peitos pulam em sua dupla divindade dignos dos versos de um poeta persa ou do Cântico dos Cânticos”. No verso de outro impresso: “Bendita a invenção da fotografia, bendita a invenção do cinema, bendita a invenção da cor no cinema”. Noutro: “A cara dela é serena, de quem está tranquila porque sabe que tem bom guardado”. Ainda: “Olha a cara dela, a perna no ar, vê se não é o retrato da felicidade de ser, da glória de existir”.

Eu nunca tinha visto Hermila Guedes pessoalmente e nem em filme ou televisão, apenas em fotografia de jornal, sempre muito discreta, numa entrevista ou numa ou outra notícia sem maior relevo. Natural de Cabrobó ou Ouricuri, não lembro. Assim, pude reconhecê-la na calçada do restaurante em Olinda. Eu ia saindo, cedo da noite, que eu durmo cedo, e a dona do restaurante, numa mesinha na calçada, ofereceu-se para me chamar um táxi. Fiquei esperando. Nisso, sai uma moça que por acaso estivera sentada perto de mim dentro do restaurante, costas com costas, ela um tanto caladona numa mesa grande onde todos falavam ruidosamente. O poeta Garibaldi Otávio cumprimentou-me, também ele nessa mesa grande e também meio de costas para mim. Aí, enquanto eu esperava o táxi, ela saiu para fumar. Caiu uma pecinha do

sapato dela e entrou numa brecha do piso no batente da porta. Coisa sem importância. Procurei ajudar. Acho que era a ponteira do salto. Sumiu. Perguntei: “Você é Hermila?” Ela disse: “Sim”. Estava vestida com muita simplicidade, sem nenhuma pintura, uma blusa branca sem mangas tomara-que-caia arrochada no sutiã duro, não dando para adivinhar o busto, e calças jeans. Eu lera que era casada e caseira, gostando de ficar em casa com a filha de poucos meses, ou poucos anos. Mas isso serviu para identificá-la, aumentando a emoção do Baixio das bestas: “É ela!” Era como se o incêndio do canavial, o maracatu de Nazaré da Mata, o velho sem dentes de boca para cima torcendo a cana para espremer o caldo (depois de bater o gomo com o cabo da foice, como fazia Seu Afonso, avô de Breno, lá em Ipojuca), o pessoal do maracatu vestido a caráter em cima do

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caminhão contra o vento, a mocinha de cara emburrada com a trouxa na cabeça, tudo ali comparecesse como circunstância terrena, brilhante, atores escolhidos, mas terrena, para a chegada de Hermila, aparição descida do céu. A cena passa-se naquela luz exata, meia-claridade ideal para mostrar uma obra de arte, que modela delicadamente e revela melhor do que às escâncaras, momento de recato que se isola no meio da algazarra e escangalho a lhe servirem de moldura, mas sem hiato. A diferença é que, as outras cenas, sabe-se que não passam de simulação, enquanto nessa não há o que simular: o que é, é. Pare o filme, olhe a cara dela, não só o busto, veja quadro por quadro, cada um mais belo do que o outro, dessa sequência maravilhosa, o desenho, grão a grão como se executado a carvão:

eu nunca tinha visto Hermila pessoalmente e nem em filme ou televisão, apenas em fotografia de jornal, sempre muito discreta eu tentei algumas vezes com pincel e nanquim mas é no máximo uma referência medíocre, “qual pincel em tela fina debuxar jamais pôde ou nunca ousara”, arremedando nosso conterrâneo Maciel Monteiro, “qual se a natureza e a arte jamais soube imitar no todo ou em parte”. Foi providencial ter visto a fita aqui em casa, solitariamente, em DVD, num fim de tarde de fevereiro 2011, aos 78 anos e meio, com a experiência estética que, independentemente de lastro cultural, a própria existência nos

dá, nesse remanso, o tempo, onde a maré junta o cisco. Sempre fui, hoje mais ainda, pacato. A princípio, como menino do interior sem conhecer ninguém na cidade grande e, depois, com a sabedoria vinda com os anos. Não acreditava que nada mais me pudesse arrebatar, a um passo de ouvir as trombetas celestiais. Em cinema, tinha voltado aos filmes de caubói. Mas em vez de subir aos céus como o profeta Elias num carro de fogo, fui arrebatado de volta, reinserido no contexto do paraíso terreal, achando Jesus que ainda não esteja suficientemente pronto. Isto é, morto. Coisa que nem eu mesmo sabia. Hermila acordou-me dessa letargia. Nesta croniqueta (faz como disse Emmanuel, Hermila, perdoa), minha carta de agradecimento, toda feita de obviedades, terminando por mais uma (“Honni soit qui mal y pense”): a beleza faz milagre.

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Palco BALÉ Um clássico de mestiçagem

Luis Ruben Gonzalez utiliza o método cubano, configurado por técnicas de vários países, na busca pela quebra de estereótipos texto Christianne Galdino fotos Flora Pimantel

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Um país cuja história começa a se

construir a partir do encontro de raças e etnias diferentes; que têm a mestiçagem como identidade cultural, como marca. Essas características parecem perfeitas para descrever o Brasil, mas também servem com precisão para contar sobre Cuba. Olhos menos habituados podem achar que essas são as únicas interseções entre cubanos e brasileiros, porém, o bailarino Luis Ruben Gonzalez enxergou além e encontrou outras tantas semelhanças, seja no biótipo, ou na forma de se movimentar. Essa percepção fez surgir em Ruben o sonho de aproximar os dois países, sabendo que ambos tinham muito a aprender e ensinar um ao outro. O balé clássico tornou-se popular no Brasil, na segunda década do século 20, a partir da criação da Escola de Dança Maria Olenewa, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Porém, o alto custo da formação, a técnica importada da Europa (e a maioria dos professores também), e/ou o universo fictício das produções acabaram por dar ao clássico um caráter excessivamente sofisticado, um selo de expressão artística de elite. Em terras brasileiras, a prática do balé era um luxo para poucos, e nem todo corpo servia à rigidez exigida pelo estilo, moldado a partir dos biótipos dos povos da Europa. Assistir a um espetáculo de balé clássico também não era um hábito comum, nem acessível à maioria da população brasileira. O quadro se agravava ainda mais nos locais de forte herança cultural africana e indígena, caso da maioria dos estados nordestinos, em que os tipos físicos mais frequentes não chegam nem perto do ideal de corpo exigido para um bailarino. É possível que esse histórico tenha feito com que o clássico fosse encarado como um “passado ultrapassado”, algo sem valor na sociedade contemporânea. Foi esse cenário pouco atrativo que o bailarino Luis Ruben Gonzalez – formado na Escuela Nacional de Ballet de Havana – encontrou, quando, em 2003, decidiu morar no Brasil e transferir para o litoral nordestino seus sonhos mais audaciosos. Fixado no Recife, Ruben logo observou que sua missão não ia ser fácil, tal a dimensão do preconceito e o estereótipo negativo do bailarino clássico por essas bandas.

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“Mas vi que as características físicas dos nordestinos eram muito parecidas com as dos cubanos. Por isso achei que o método de formação em balé clássico de Cuba teria bons resultados aqui, seria mais que apropriado ao corpo dos nordestinos.” Desde então, Ruben começou a buscar maneiras de abrir, por meio da dança, uma via de mão dupla entre Cuba e o Nordeste do Brasil. O primeiro passo foi divulgar a metodologia que praticava, através de aulas, criação de coreografias e montagem de espetáculos. Não demorou muito até conquistar o público. Havia algo de forte e até acrobático, mas também doce e sensual, quebrando a rigidez das formas perfeitas características dos movimentos do estilo.

UM MiX De eScoLAS

Uma técnica mestiça para um povo mestiço. Foi essa a receita utilizada pelo criador do método cubano, o coreógrafo e professor Fernando Alonso, no final dos anos 1950. “O balé clássico cubano surgiu de um estudo aprofundado nas quatro principais escolas de formação da época, e da combinação de elementos de todas elas, levando em consideração o biótipo dos cubanos. Então, da escola francesa, herdamos a limpeza dos pés, a leveza e a delicadeza; dos russos, os grandes saltos e giros, além do viés mais circense, acrobático. A velocidade e as séries de saltitos são influência dinamarquesa. E a dramaticidade, a força da interpretação são contribuição da metodologia italiana”, descreve o

professor. Essa conjunção de elementos, fragmentos de culturas diversas, só podia encontrar ressonância na conformação étnica brasileira, mas entrou em choque com o ensino da dança clássica no Brasil, que não era compatível com a formação proposta pelo método cubano. Implantar uma nova estrutura, livrando-se de formatos já consolidados, é, no mínimo, uma tarefa desafiadora. Ruben Gonzalez lembra que, em Cuba, existe um sistema público de formação em arte muito bem-estruturado: “Cada um dos 14 estados cubanos possui uma escola provincial de artes, que funciona em regime de semi-internato, e oferece uma sólida formação gratuita a crianças e adolescentes com aptidão para música ou dança. Tínhamos aulas

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da dança, maquiagem e figurino, técnica moderna, danças folclóricas/ populares, música e idioma. Tudo isso com a adaptação de técnicas clássicas aos elementos da cultura nordestina, visando o melhor desempenho técnico e estético dos bailarinos. Gonzalez e seus parceiros estão elaborando projeto para que esse curso também seja oferecido gratuitamente, o que garantiria a continuidade da formação de bailarinos. Sua proposta é promover a merecida valorização aos bailarinos clássicos do Nordeste. “Quero colocá-los em patamar de igualdade aos demais profissionais do país, para que sejam capazes de dançar em qualquer parte do mundo. Quero tornar o Recife uma referência em dança clássica,

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o balé clássico de cuba tem raízes nas principais escolas de formação da década de 1950, mas não esquece o biótipo do seu povo

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1 a 4 rotinA As aulas de clássico são compostas de preparação física, estudo de técnicas de dança e conhecimentos teóricos

práticas pela manhã e, à tarde, as disciplinas regulares. Ao final de cinco anos, os melhores alunos em cada linguagem de cada escola fazem um teste de passagem de nível na escola nacional de artes, em Havana”. Mas, para oferecer esse tipo de formação na realidade do Nordeste brasileiro, o bailarino tinha um longo caminho pela frente, principalmente porque na maioria das instituições locais de ensino da dança, como ele observou, “ainda prevalece a relação comercial, são poucos os que realmente colocam as questões pedagógicas e artísticas em primeiro plano”. Decidido a mudar essa realidade, iniciou, em 2008, o projeto de implantação de uma escola de formação em balé clássico, no Recife; e

organizou, na Escola Adagio, de São Luís do Maranhão, um curso regular com o mesmo intuito. “Para nivelar as turmas, tive que começar do zero, concentrar esforços na parte de preparação física, sempre seguindo os parâmetros da metodologia cubana, que é baseada em um trabalho de consciência corporal. Os bailarinos não executam os movimentos por imitação, e, sim, por compreenderem qual o grupo muscular e as articulações que estão sendo utilizadas e com que finalidade”, explica.

BALLet GonZALeZ

Enquanto se prepara para inaugurar a sede própria de sua companhia, Ballet Gonzalez, Ruben mantém turmas regulares na Escola de Artes Zenilde Maria, em Boa Viagem; e faz a coordenação pedagógica da citada escola maranhense Adagio, que trabalha exclusivamente com a metodologia cubana. Entre as disciplinas da grade curricular do curso, que tem duração total de oito anos, com carga horária diária de três horas (segunda a sexta-feira), estão aulas de preparação física, história

um polo de produção e difusão dessa linguagem. Esse é o desafio que me estimula a continuar trabalhando aqui. Esse é o meu sonho. A meu ver, a arte precisa ser entendida e valorizada como profissão para o Brasil poder avançar.” Nesse caminho, um tecido afetivo tem servido de ponte entre Cuba e Pernambuco. Ruben Gonzalez firmou um intercâmbio com o Ballet de Camagüey, companhia estatal cubana em que ele iniciou sua carreira de bailarino profissional. O primeiro grupo de bailarinos do grupo local esteve em Cuba, no início deste ano, participando de um curso intensivo de 15 dias com os mais renomados mestres da companhia cubana. Ruben diz que “a ideia é manter essa atividade e também proporcionar a vinda de profissionais de Cuba para oferecer cursos, participar de residências criativas e da montagem de espetáculos do repertório cubano e internacional nos palcos pernambucanos”. A tenacidade do bailarino em defender sua metodologia sugere que o balé clássico pode surpreender, reinventar-se – e ainda guarda lições a ensinar.

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vAl limA/divulgAção

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MAGILUTH Entre trocas e novas encenações

Companhia formada por quatro atores realiza intercâmbio com grupo brasiliense e prepara-se para encenar novo espetáculo, a peça Gregório texto Rodrigo Dourado

Marcelo, Giordano, Lucas e Thiago. Da união desses quatro atores e das iniciais de seus nomes nasceu o Magiluth, grupo formado por alunos

do Curso de Artes Cênicas da UFPE em 2004, que experimentou uma vertiginosa trajetória dos corredores da universidade para o mercado

profissional do teatro. Com três montagens no currículo – Corra, Ato e Um torto –, participações em vários festivais pelo país e diversos prêmios na bagagem, a trupe estreia em 2011 sua nova montagem, Gregório, e trabalha num intercâmbio com o Grupo Teatro do Concreto, de Brasília, tendo como tema central a cidade. O intercâmbio foi contemplado pela primeira edição do Rumos Itaú Cultural Teatro e o contato com o grupo brasiliense aconteceu graças às andanças pelo Brasil e à preocupação permanente do Magiluth em se articular com diversas redes que congregam grupos de teatro pelo país. Como o título Do concreto ao mangue, aquilo que meu olhar guardou para você, duas ações estão contempladas

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ato

os quatro atores que fundaram o grupo contracenam no espetáculo, cujo roteiro foi influenciado pela peça Ato sem palavras 1, de Samuel Beckett

na primeira terça-feira de cada mês, demonstrações desse processo – as primeiras já aconteceram no Teatro Joaquim Cardozo, da UFPE – visando dialogar com o público local sobre a pesquisa em curso. O objetivo dessa investigação, no entanto, não é construir um espetáculo, afirma Pedro Vilela, integrante do Magiluth, mas sedimentar e enriquecer a formação de cada coletivo envolvido. Em agosto, Concreto e Magiluth se encontrarão em São Paulo para a criação de duas microcenas.

DiÁLoGo crÍtico

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no intercâmbio, uma chamada Janela de Gestão, na qual os coletivos trocam informações sobre o gerenciamento e a manutenção das atividades; e uma segunda, chamada Janela de Criação, em que as trupes se provocam mutuamente através de fotografias, tendo a cidade como paisagem. Mensalmente, os grupos trocarão três imagens do tecido urbano capturadas por seus integrantes. Cada coletivo realizará improvisações e exercícios a partir das imagens recebidas, produzindo assim dramaturgias e pequenas cenas. Os “laboratórios” de criação estão sendo registrados num blog, criado exclusivamente para o intercâmbio (doconcretoaomangue. blogspot.com). O Magiluth fará ainda,

Mas, se o concreto é a grande síntese da capital planejada por Niemeyer, seria o mangue ainda o principal catalisador da cena cultural pernambucana? Teria o Magiluth alguma identificação com o Manguebeat? “As primeiras imagens feitas por nós têm, sim, a ver com o movimento”, diz Vilela. “Lemos os manifestos, e achamos que o Manguebeat é algo grande que não se concretizou, principalmente quando alguns de seus mentores chegaram às esferas de poder”, observa. Para Vilela, o grupo não faz coro ao discurso do Manguebeat, mas tem interesse pela discussão social levantada pelos manifestos sobre a cidade. “Buscamos dialogar com os diversos contrastes da cidade, olhá-la de uma forma diferenciada. Numa das imagens que enviamos para Brasília, esse contraste fica muito evidente. Nela, vê-se um barco e uma placa de proibido estacionar dentro do rio. É isso que tentamos capturar. Deslocamo-nos diariamente pelo Recife observando as mudanças na paisagem”, explica o ator. Se a relação da geração pósmangue do Recife com o Magiluth é apaixonada, revelando o poder de comunicação dos espetáculos do grupo com espectadores ávidos por uma linguagem mais pop no palco, a trupe agora dá um passo arriscado em sua curta história, montando o espetáculo Gregório, a partir do texto original O canto de Gregório, de Paulo Santoro, anteriormente encenado no Brasil por ninguém menos que Antunes Filho. A peça é um monólogo da personagem-título sobre as questões da ética e da bondade. Gregório se encontra, em sua mente, com mitos da

religião e da filosofia, como Jesus Cristo e Sócrates, para discutir os limites e paradoxos do bem no mundo, enquanto se prepara para ser julgado por um gesto que põe em xeque sua própria bondade.

teAtro DA PALAVrA

“Enquanto Um torto, nosso espetáculo anterior, apelava para a emoção, Gregório apela para a razão. É um teatro da palavra, o que não é nossa marca, mas não mexemos no texto e, sim, na forma. Trabalhamos com quatro atores, desconstruindo o monólogo, e utilizamos o humor, o nonsense, para representar as figuras que vão aparecendo na mente da personagem”, afirma Vilela, que dirige pela primeira vez o coletivo. Ao longo de nove meses, o grupo dedicou-se à construção do trabalho, sem abandonar a horizontalidade que caracteriza sua pesquisa, num processo colaborativo. Num espaço branco e neutro como a mente de Gregório, sem recursos cenográficos, com uma trilha sonora que traduz o fluxo de pensamento da personagem, e com os atores vivendo

em Gregório, peça à espera de pauta nos teatros do recife, a personagem-título reflete sobre ética e bondade tipos tão complexos como Buda, o Magiluth aposta desta vez num teatro mais reflexivo. “Queremos tirar nosso público do lugar de conforto, porque temos que alimentar nosso desejo como artistas e não cair em armadilhas”, pondera o diretor. Realizado com recursos próprios, Gregório já enfrenta uma primeira dificuldade ao nascer: a falta de pauta nos teatros. Com estreia prevista para abril, o grupo ainda não sabe onde exibirá seu novo rebento. “Há a possibilidade de levarmos o espetáculo para a rua”, arrisca Vilela. Lugar mais indicado para debater as questões da ética e da cidade no mundo contemporâneo certamente não haverá.

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divulgação

Sonoras Forró Para arrastar a chinela em inglês

Formado por músicos brasileiros em Nova York, grupo Forró in the Dark leva ritmo nordestino a diversos países e começa a fazer seguidores texto Débora Nascimento

A partir do último 18 de fevereiro,

ficou disponível para todo o mundo The king of limbs, o novo disco do Radiohead, o quinteto inglês que, desde o aclamado Ok computer (1997), tem cada lançamento

seu recebido com ardorosa ansiedade por fãs e críticos. O oitavo CD de estúdio do mais incensado grupo da atualidade trouxe consigo também a expectativa de superar o espetacular In rainbows

(2007). Logo nas primeiras horas daquela sexta-feira, o que se leu nos tuítes no Brasil trazia as palavras “forró” e “Radiohead” numa mesma frase. Tudo porque duas de suas oito faixas lembram bastante o ritmo nordestino. O impensável teria acontecido? Para atestarmos a suspeita, entramos em contato com o professor do Conservatório Pernambucano de Música, Sérgio Barza: “Principalmente Little by little (a terceira faixa do The king of limbs) tem elementos rítmicos identificáveis de forró, baião, ou xaxado. Uma das características é a linha rítmica da zabumba. A ideia do triângulo também fica clara, especialmente no final. O conjunto de elementos é suficiente para não ser considerada uma coincidência, mas uso intencional de elementos musicais. Faço uma observação, no entanto: o emprego de elementos rítmicos de forró, baião ou xaxado é apenas uma parte do todo

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usado pelo conjunto, dá para ouvir algo de ponteados de viola. Fica a dúvida se todos os elementos teriam sido conhecidos e absorvidos na visita ao Brasil (para shows, em março de 2009), ou por contato com músicos brasileiros no exterior, como o Forró in the Dark.” Aqui, deixamos o Radiohead um pouco de lado e abrimos uma brecha para falar do Forró in The Dark, grupo formado por músicos brasileiros residentes em Nova York, que vem sendo um dos principais responsáveis por divulgar o ritmo nordestino “lá fora”. A banda não faz um forró tradicional, com sanfona, zabumba e triângulo. Os arranjos geralmente contam com guitarra, violão, baixo, zabumba, pífano e até sax barítono. A sonoridade é uma mistura de baião, xote, arrasta-pé com elementos do jazz, rockÁ nÁ roll e até música brega, e vem agradando a crítica, como a do jornal The New York Times e do site All Music, além da admiração de gente

quArteto

o grupo é formado por davi vieira, Jorge Continentino, Mauro Refosco e guilherme Monteiro

como o ex-Talking Heads David Byrne e as cantoras Miho Hatori e Bebel Gilberto. “Tudo começou como uma brincadeira informal, em 2002, mas a repercussão foi tão grande, que resolvemos formar a banda”, conta o percussionista catarinense Mauro Refosco. O músico foi aos EUA, em 1994, para estudar na Manhattan School of Music, e resolveu ficar na Big Apple, após ter sido aprovado num teste para integrar a banda de Byrne, em 1996. Desde então, acompanha o artista. Nos anos seguintes, conheceu os instrumentistas que formariam, com ele, a Forró in The Dark, os cariocas Jorge Continentino (pífano, sax barítono e voz) e Guilherme Monteiro (guitarra e vocal) e o baiano Davi Vieira (percussão e voz). Numa das viagens da turnê do CD Grown backwards (2004), de Byrne, Refosco foi abordado pelo compositor, que afirmava ter uma versão em inglês para o clássico Asa branca (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira), e que queria gravá-la. A releitura acabou sendo feita pelo músico e a Forró in The Dark, fato que ajudou a projetar o nome da banda – a interpretação foi registrada em videoclipe, disponível no YouTube e também em O homem que engarrafava nuvens (2009), documentário de Lírio Ferreira sobre Teixeira.

LinHAGeM DA PoLcA

Mas o que o Radiohead tem a ver com tudo isso? Há a possibilidade de o quinteto inglês ter sido influenciado pelo trabalho do quarteto brasileiro e pela versão de Asa branca, pois o vocalista Thom Yorke é um grande fã do Talking Heads, e trouxe até um pouco dessa influência (exploração de polirritmias) para o ovacionado Kid A, CD de 2000, e para algumas músicas do The king of limbs. Além disso, Mauro Refosco, que participou de um dos melhores álbuns de 2010, Contra, do Vampire Weekend, também integra a superbanda Atoms for Peace, que acompanha o trabalho solo de Yorke. O “grupinho” paralelo foi formado, em 2009, pelo baixista Flea (Red Hot Chili Peppers), Nigel Godrich

(“o” produtor de gente como Paul McCartney, Beck e o próprio Radiohead) e pelo baterista Joey Waronker (que tocou com o REM) para executar o repertório do CD The eraser (2006). Mas Refosco minimiza a possibilidade de ter influenciado a sonoridade de The king of limbs (leia mais sobre o CD adiante): “Acho que foi apenas uma coincidência. Tocamos dois meses juntos e não houve muita troca de informações musicais. Não teve espaço para isso. Se há uma presença de forró neste disco, pode ser explicada pela linhagem da polca (gênero europeu que contribuiu com a formatação do forró)”. Pelo sim ou pelo não, o certo é que o Forró in the Dark já está conseguindo ampliar a teia da música nordestina em Nova York, que parece ter se transformado no quartel-general do ritmo nos Estados Unidos, contando agora com mais quatro grupos tocando arrasta-pé, xaxado, xote e baião, tendo brasileiros e gringos em suas formações. “Isso é muito legal. Antes da gente, música brasileira aqui era só bossa nova e axé music”, lembra o percussionista, garantindo que o forró é muito bem recebido onde se apresente. Após um começo em que dividia as regravações de clássicos do gênero, como Sebastiana e Baião, com músicas de sua autoria, a Forró in the Dark tem investido mais em composições próprias, e mostra que vem amadurecendo. É o que comprovam Forrowest, Lilou e Nonsensical. O grupo agora prepara o CD que vai suceder o Ligth a candle (2009), lançado pelo selo Nublu Records e National Geographic. Desde a estreia, com Bonbfires of São João (2006), o conjunto já passou por mais de 20 países, como México, Canadá e até Brasil – foram três passagens pela própria terra, mas apenas no Sudeste. “A gente quer tocar forró no berço do forró”, afirma o percussionista, que pretende, neste ano, integrar a programação junina do Recife, de Caruaru e Campina Grande. “Vai ser a nossa prova de fogo”, supõe Refosco. Por enquanto, o local exato para assistir ao show da Forró in the Dark é na boate Nublu, no East Village, onde o rala-bucho ocorre há oito anos, às quartas. É a opção certa para quem está disposto a gastar um pouco mais para arrastar a chinela em inglês.

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AUDIÇÃO Não se apresse em não gostar do novo do Radiohead

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ingleses

Quinteto é formado por Phil Selway,Thom Yorke, Ed o’Brien, Jonny e Colin greenwood

Quinteto inglês lança oitavo disco de estúdio, o polêmico The king of limbs, que avança nas experimentações sonoras e até apresenta faixas que nos remetem ao forró divulgação

Sonoras 1

na época de seus primeiros discos, Pablo honey (1993) e The bends (1995), o Radiohead era apenas mais um ótimo grupo de rock inglês, com hits tocando em rádio. Depois de seu terceiro álbum, Ok computer (1997), o “caldo engrossou”: a banda virou “a” banda, e seu líder, Thom Yorke, foi alçado ao status de gênio. Parecia difícil ouvirmos algo que superasse o que já seria seu ápice. Daí, surge Kid A (2000), um disco tão estranho, complexo e diferente, que parecia ter vindo de outro planeta. O Radiohead começa,

então, a fazer músicas complicadas – dificílimas para o fã tocar no violão ou de serem reproduzidas por bandas covers. Seguiram-se Amnesiac (2001), uma continuação menos impactante de Kid A, e o mediano Hail to the thief (2003). Daí, quando não se esperava mais uma surpresa, chega, em 2007, In rainbows, o discaço que abriga uma das composições mais surpreendentes da banda, 15 step, um jazz rock psicodélico que faria Miles Davis, se estivesse vivo, querer saber “quem são esses ingleses?”.

Esse prólogo serve para nos ajudar a entender a recepção que obteve The king of limbs, o novo CD do grupo. A crítica apressou-se em publicar as resenhas – um perigo, em se tratando do Radiohead, pois suas músicas costumam ficar melhores com o tempo. O disco pode não superar o In rainbows, mas tem muitas qualidades. A primeira delas é o nítido empenho do quinteto inglês em não repetir clichês e fórmulas, e querer fazer sempre algo incomum, mesmo que, para isso, corra riscos. Saber fazer hits, esses britânicos sabem.

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INDICAÇÕES Estão aí Creep, Fake plastic trees e Karma police, que não deixam mentir. Mas é preciso ir além. E é isso o que o grupo vem ensinando a seus colegas, ao elevar o nível do rock atual. O Radiohead, quando se libertou, por conta própria, do contrato com a Capitol, em 2004, estava dando um belo exemplo de dignidade e independência artística. Depois, mandou um outro recado à indústria quando disse, em 2007, “paguem o quanto quiserem pelo download”, que já seria gratuito, do In rainbows. A resposta dos fãs foi tornar esse o álbum mais rentável da banda. Com o The king of limbs, o conjunto, mais uma vez, procura não parecer com nada do que está por aí. No máximo, pode-se dizer que “o estilo é radioheadiano”. No entanto, dessa vez, a banda não conseguiu se superar, as músicas não trazem muita surpresa, apesar de ainda manter a escala de qualidade bem acima da média. O álbum abre com o piano de Bloom, que engata num emaranhado de polirritmia, na qual a bateria parece que foi gravada invertida, lembrando até o ritmo do cavalo-marinho nordestino. Há milhões de barulhinhos, camadas de vozes que se misturam, sintetizadores, metais etéreos ao longe, baixo jazzístico. Tudo contornado pela incrível voz de Yorke e o importantíssimo baixo de Colin Greenwood. Em seguida, surge o que podemos chamar de “os dois forrós do Radiohead”, Morning Mr. Magpie e Little by little. Na primeira, há uma viola dialogando com o baixo e uma marcação rítmica gutural que entremeia os instrumentos. Já a segunda começa com um entrelaçamento de violão,

baixo, bateria e vários sons de percussão. Como se fosse um mashup, a faixa vai sendo pontuada pelo som que parece ser de triângulo, zabumba e sanfona, num volume mais baixo (e aqui vai uma dica: esse disco deve ser ouvido num aparelho de som decente ou com um eficiente fone de ouvido – caso contrário, a audição vai perder diversas nuances). Outro destaque é a faixa seguinte, Feral, dubstep, que parece uma colagem de vários ecos na voz e nos instrumentos. E, então, chegamos ao hit Lotus flower, mais conhecido como a música do clipe em que Thom Yorke faz “uma dança bem diferente”, como diria Raul Seixas. No YouTube, o vídeo conta com quase 8 milhões de acessos e já ganhou dezenas de paródias e remixes, até com Minha mulher não deixa, não. Lotus flower surgiu, pela primeira vez, em outubro de 2009, em versão acústica no show do projeto solo do cantor, The eraser, e já exibira sua força apenas com voz e violão. A partir dessa música, o curtíssimo The king of limbs apresenta menos danações rítmicas e fica mais melodioso. Codex se apoia no piano e na interpretação emocionante e precisa do vocalista, tendo ao fundo sintetizadores e um trompete cheio de reverbs. Os barulhinhos de passarinhos ao fundo anunciam Give up the ghost, com violão folk, e uma batida no instrumento marcando o ritmo. E aí, o disco encerra-se após a belíssima Separator, cuja melodia protagonizada pela guitarra intrincada de Jonny Greenwood ou Ed O’Brien (o encarte não traz ficha técnica das faixas) deixa um gosto de quero mais.

MPB

DANIellA AlcARpe Qué que cê qué? independente

BOSSA NOVA

VáRIOs Johnny Alf – entre amigos

o Brasil parece mesmo ter vocação e elenco para ser o país das cantoras. Entre as novíssimas intérpretes que emprestam sua voz para a MPB está daniella alcarpe com seu primeiro álbum solo. Baião, samba, choro e frevo compõem o Cd e, nas entrelinhas do projeto, nota-se a influência de sonoridades de músicos como dorival Caymmi e Chico Buarque. o estilo da artista e a escolha do repertório fazem lembrar a já consagrada Roberta Sá, até mesmo os timbres de voz se aproximam.

lua Music

ROCK

INSTRUMENTAL

TAme ImpAlA Innerspeaker Universal

o disco é de 2010, mas ainda vale a pena falar dele, pois esteve nas listas dos melhores álbuns do ano passado. Innerspeaker, estreia da banda australiana Tame impala, é um trabalho que fará a alegria de saudosos dos sixties. Neopsicodélico, o Cd é tão interessante, que se torna difícil apontar as melhores. a abertura, It is not mean to be, emociona logo de cara pela voz do vocalista e guitarrista Kevin Parker, que lembra o timbre vocal de John lennon; ainda tem Why won’t you make up your mind e a incrível Lucidity.

o box que reúne três Cds é uma homenagem a esse nome importante da bossa nova, falecido no ano passado. No primeiro, Johnny Alf – Por seus amigos, há uma compilação de músicas do compositor, cantor e pianista , na voz de grandes nomes da MPB. No segundo, Em tom de canção, alaíde Costa canta composições do pianista. Fechando o trio, em Ao vivo e à vontade com seus amigos, encontramos a voz e o piano de alf, que recebe Cauby Peixoto, Cida Moreira, Ed Motta e leny andrade.

AlessANDRO peNezzI e AlexANDRe RIbeIRO cordas ao vento Funarte

o choro é o carro-chefe deste trabalho, que reúne os dois virtuosos músicos alessandro Penezzi, no violão, e alexandre Ribeiro, no clarinete. Eles já haviam tocado juntos, mas nunca gravado. das 12 faixas, nove são composições inéditas de Penezzi, que passeia por choros “balançados” ou “delicados”, por uma saltitante polca, chegando até a uma valsa lenta. as outras duas músicas são o tango Famoso, de Ernesto Nazareth, e Chorinho triste, de João dias Carrasqueira.

DÉbOra NaSCiMENTO

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CONTRADITOS Apenas uma retórica desconstrucionista

A título de discutir um suposto maniqueísmo da historiografia “politicamente correta” do Brasil, livro acaba reforçando preconceitos

divulgação

texto Luiz Carlos Pinto

Leitura o Guia politicamente incorreto da

história do Brasil, de Leandro Nardoch, editado pela Leya, conheceu o status de best-seller durante meses, no segundo semestre de 2010. O livro reúne histórias que se colocam diretamente contra aquilo que o autor chama “historiografia politicamente correta”. E, nesse caminho, o autor desfia “só erros das vítimas e dos heróis da bondade, só virtudes dos considerados vilões”. De fato, ele consegue o seu principal intento: uma pequena coletânea de pesquisas históricas escolhidas para enfurecer um bom número de cidadãos. Infelizmente, ou felizmente, isso não é suficiente para atender à reivindicação por uma historiografia livre de uma moral edificante ou de heróis, vilões

e vítimas. É difícil, aliás, identificar no Guia politicamente incorreto da história do Brasil alguma contribuição nesse sentido. Isso porque lhe falta uma reflexão sóciohistórica. E, como tal, o que prevalece é uma retórica desconstrucionista da noção de que índios e negros foram vítimas no processo de constituição das culturas brasileiras – e é precisamente essa fórmula que tem encontrado acolhida entre os leitores. Retórica que se estende à imagem de Machado de Assis (por ter sido censor do Império), José de Alencar (que escreveu ao Imperador em defesa da escravidão), Jorge Amado (por ter aceitado escrever pago com dinheiro nazista), Graciliano Ramos (por ter escrito contra o futebol numa crônica de 1921), Gilberto Freyre

(por ter elogiado a Ku Klux Klan) e Gregório de Matos (considerado pelo autor como “dedo duro”, por atacar desvios de conduta em seus poemas). Preso à necessidade de desconstruir os mitos da chamada historiografia politicamente correta e denunciar que alguns dos heróis da nação eram picaretas, o livro flerta com o reforço do discurso que afirma o índio como sujeito preguiçoso e indolente; e o negro africano como não confiável. Nesse sentido, o caso do alcoolismo entre os índios, que se verificou em 1646, no Rio de Janeiro, é emblemático; assim como, no mesmo capítulo, a participação de indígenas na caça e genocídio de outras tribos durante a ocupação portuguesa; o desaparecimento dos indígenas, para o autor se deve também, além dos assassinatos e das doenças, à adoção pelos índios de costumes e de nomes portugueses. No mesmo sentido, o autor revela como a natureza europeia fascinou os indígenas – o universo de tecnologias, plantas, animais e modos de pensar trazidos do Velho Continente – e essa seria mais uma evidência da necessidade de superar a valorização da cultura indígena pregada por antropólogos e cientistas sociais. O mesmo pressuposto é adotado quando da recuperação da história dos negros no Brasil. Havia africanos escravocratas no Brasil. O próprio Zumbi tinha escravos. Muitas das sociedades africanas eram escravocratas; na verdade, os próprios portugueses aprenderam com os africanos a comprar escravos, e os africanos lutaram contra o fim da escravidão. Esses são alguns dos pontos tocados pelo autor, quando trata da história da gente da África trazida à terra brasilis. Ainda que amparado por diversos “estudos sérios”, também esse capítulo padece da falta de uma análise que lhe permita ser mais que um conjunto de contraditos. Mas o principal problema do Guia politicamente incorreto da história do Brasil é fazer com que o seu resultado final seja refém dos objetivos iniciais de seu autor, que é ex-jornalista da revista Veja. Em detrimento de uma visão mais globalizante e profícua, que contribuísse com a compreensão da virtuosa heterogeneidade do Brasil, o autor preferiu a generalidade a partir de casos específicos ou sem comprovação.

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INDICAÇÕES FICÇÃO

JOÃO ALMINO Cidade livre record

Brasília, tema do romance do escritor e diplomata João Almino, é a cidade “mais levantada no mundo”, segundo ele, tomando de empréstimo a expressão de João Guimarães Rosa. Em Cidade livre, o autor retrata, mesclando ficção e narrativa histórica, o momento da construção material e simbólica da capital, descrevendo tanto as suas grandes figuras, incluindo Juscelino Kubitschek, como candangos, empreiteiros e aproveitadores. A cidade livre do título, local em que viviam os trabalhadores, estava destinada a ser destruída, mas acabou multiplicando-se em diversas cidades-satélites, essenciais para Almino para que se entenda o mosaico social da construção de Brasília.

HISTÓRIA

CRÍTICA

CLARISSA DINIZ E GLEICE HEITOR (ORG) Gilberto Freyre Funarte

Muito já foi dito sobre o sociólogo, antropólogo e escritor Gilberto Freyre. Mas ainda há o crítico de cultura. Gilberto Freyre (Coleção Pensamento Crítico), fruto de esforços conjuntos da crítica de arte Clarissa Diniz e da historiadora Gleyce Heitor (responsáveis pela organização), reúne escritos que vão de 1920 a 1980, publicados em jornais pernambucanos e até na extinta Revista O Cruzeiro. O livro, que traz uma faceta menos conhecida de Freyre, se adequa à proposta da coleção da Funarte/ Minc de lançar um novo olhar sobre nichos da arte, e enriquece ainda mais o catálogo dedicado ao autor de Casa-Grande & Senzala.

ASSAAD ZAIDAN Letras e História Edusp/ Escrituras

Naturalizado brasileiro, o libanês Asaad Zaidan redigia crônicas em árabe para jornais e revistas iraquianas, no início da década de 1960. Reconhecido pelo governo daquele país (foi homenageado pela Associação de Escritores Iraquianos), Zaidan começou a colaborar com jornais brasileiros logo depois, escrevendo crônicas sobre política internacional. Desde então, tem publicado diversos livros (em árabe e português). Letras e História, lançado em 2004, acaba de chegar à segunda edição. Além de esboçar um breve panorama da formação da literatura oriental, o livro traz um inusitado dicionário árabe-português com mil palavras, algumas bemparecidas em ambas línguas.

ENSAIO

NELSON SALDANHA Pela preservação do humano: antropologia filosófica e teoria política a Girafa

Nos ensaios da obra, o escritor e filósofo pernambucano Nelson Saldanha busca voltar a atenção do leitor para um conceito de “humano” para além das suas definições biológicas ou metafísicas. Para o autor, a humanidade se realiza a partir da concretização da consciência histórica do homem, em suas operações modernas que o situam na passagem do tempo. No livro, com orelha assinada por Evaldo Coutinho, Saldanha passeia com desenvoltura pelos pensadores fundamentais da modernidade, trazendo sua preocupação com a história para a filosofia, a antropologia e a teoria política.

Poesia

CONTOS E CRÔNICAS EM VERSOS “A pessoa falou - olha/o amor/ pode até não existir/mas sem ele/14h não chega nunca mais”. As crônicas e contos em forma de poemas de João Henrique Souza se alimentam de um universo conhecido da cultura pop: de bares, cômodos tediosos de uma casa com uma TV ligada, sexo, amor, de tudo que, por trás de uma aparência simples e suja, possa esconder a revelação final de um conto, a ruptura do convencional. ÓculosBLUE, lançado pela Livrinho de Papel Finíssimo Editora, em capa dura, marca a estreia do autor, com 44 poemas ilustrados

pelo também capista e designer da obra Camilo Maia. O livro, com uma tiragem de mil exemplares, também está disponível no hostsite www.oculosblue.com.br. Em poemas como O amor existe, os versos de João Henrique levam o leitor por um caminho narrativo – um homem bem de vida esbarra com uma empregada doméstica – só para quebrá-lo, mostrando que as imagens que o cercam existem apenas para serem observadas pelas lentes de seus óculos azuis. Como ele mesmo sugere em Está tudo certo: “Depois/deus /toca fogo nessa porra”.

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FESTIVAL Casa cheia e plateia eufórica

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AudiênciA

A cada edição, 30 mil pessoas circulam pelo Teatro Guararapes

Com 15 anos de história, o Cine PE, líder nacional em público, é considerado um dos mais importantes eventos do setor no Brasil texto Dora Amorim

Claquete na noite de 12 de março de 1997,

o Festival de Cinema Nacional do Recife teve sua abertura com a avant-première de Baile perfumado, dos cineastas Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Marco da retomada da produção audiovisual em Pernambuco, primeiro longa-metragem depois de 18 anos de apatia, o filme era um dos resultados do fértil momento da produção cultural no estado, iniciada com o movimento Manguebeat. Essa primeira edição, sediada no tradicional Cinema São Luiz, reuniu cerca de 10 mil pessoas, em seis dias de exibições, e teve como vencedores os curtas-metragens Criaturas que nasciam em segredo, de Chico Teixeira (16 mm) e Mr. Abrakadabra, de José Araripe Jr. (35 mm). Quinze anos se passaram e o festival triplicou o seu público, mudou de nome (em 2003, para Cine PE – Festival do Audiovisual) e de casa (Teatro Guararapes), sendo hoje considerado um dos três mais importantes eventos de cinema do Brasil, ao lado dos tradicionais festivais de Brasília e Gramado, fundados em 1965 e 1973. Paralelamente ao seu desenvolvimento, a produção audiovisual de Pernambuco se tornou uma das maiores expressões artísticas do país. “Jamais diria que esse crescimento do cinema pernambucano se deu exclusivamente ao papel do Cine PE. Mas não há a menor dúvida de que o festival contribuiu, e muito, para deslanchar os que já apostavam no cinema e despertar o interesse das novas

gerações”, defendeu Alfredo Bertini, criador e diretor do Cine PE, ao lado da esposa Sandra Bertini.

MAioR Feito

Com a retomada do cinema brasileiro, paralisado desde o governo Collor em função do fechamento da Embrafilme, vários festivais surgiram no território nacional: o Vitória Cine Vídeo (ES), o Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá (MT) e, em Pernambuco, o Cine PE. Motivado pela visita ao Festival de Gramado, em 1994, e pelos apoios aos filmes O cangaceiro e Baile perfumado, na figura de secretário-adjunto estatal de Indústria, Comércio e Turismo, Alfredo Bertini investiu num festival de cinema sediado em Pernambuco, pois havia uma grande carência para a exibição de filmes nacionais. O momento era oportuno: o cinema local ressurgia com a gravação de alguns curtas-metragens e com o projeto do longa-metragem de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. “O Cine PE surgiu num momento importante de autoafirmação do audiovisual local. Ele é, ao mesmo tempo, causa e sintoma dessa efervescência. Se, de um lado, a produção local vem chamando a atenção do cenário nacional, de outro, o evento se estabelece como uma referência da participação do público no Brasil”, analisa o cineasta pernambucano Daniel Bandeira. Depois de uma estreia bemsucedida, o Cine PE saiu do Cinema São Luiz, de acordo com o diretor do

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festival, por conta do alto preço do aluguel, transferindo-se para o Teatro Guararapes, no Centro de Convenções de Pernambuco. O tamanho do lugar parecia desproporcional aos padrões de festivais nacionais de cinema, já que era grande demais, com capacidade para 2.400 pessoas. “Alfredo Bertini e equipe foram audaciosos ao transformar aquele lugar gigantesco numa sala de cinema. Ele já havia definido com Walter Salles a primeira exibição no país de Central do Brasil, ou seja, antes do prêmio de Fernanda Montenegro em Berlim. A sessão histórica, com a atriz ao lado do ex-governador Miguel Arraes no meio de plateia colossal – e excitada – foi marcante: nunca mais a imprensa

nacional esqueceu o Cine PE”, relembra o crítico de cinema Luiz Joaquim. E aquele se tornou o maior feito do Cine PE: o seu gigantesco público. Para um estado que adora superlativos, ter o festival de cinema que reúne a maior quantidade de pessoas por sessão no país (em alguns casos com 2.700 espectadores) é um feito respeitado. No Brasil, a maioria dos filmes nacionais, produzidos sem o apoio de grandes estúdios e distribuidoras, percorre festivais e dificilmente entra em circuito comercial multiplex, restringindo-se a salas de cinemas “alternativas”. Então, para os realizadores, exibir seus filmes para uma plateia de 2.400 pessoas é animador. O título de “maior festival de cinema em número de público do Brasil”

tornou-se o slogan publicitário do Cine PE, revelando o quão importante é a democratização do acesso ao cinema no país, ao mesmo tempo em que aponta problemas no seu formato.

AGRAdAR Ao eSPectAdoR?

“Parece-me que se trata de um evento aberta e assumidamente voltado a um diálogo com o público. Isso está não apenas na escolha dos filmes, mas também na dos homenageados. Não foi por acaso que o Cine PE prestou recentes tributos à Globo Filmes, a Guel Arraes e, este ano, a José Padilha. São todos nomes e entidades que, de alguma forma, trabalham em consonância direta com a tomada de posição no mercado. E isso me soa evidente no Cine cine pe/divulGAção

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divulGAção

cine pe/divulGAção

Claquete 2

PE: a inserção numa tentativa de diálogo com esse mercado, consumido pelos que frequentam o festival”, analisou Marcelo Miranda, crítico de cinema e um dos curadores do Festival de Brasília de 2010. Agradar aos espectadores é o maior objetivo da mostra, que se orgulha das 30 mil pessoas que circulam pelo Teatro Guararapes, a cada edição, e que por isso desenvolve uma programação com forte apelo popular. Porém, ao invés de apontar caminhos e dar espaço a novas linguagens e olhares cinematográficos, o evento acaba não contemplando uma produção audiovisual mais inovadora. Com isso, não corre riscos e, por vezes, desconsidera seu público. Em São Paulo, o Paulina Festival de Cinema se aproxima do modelo popular do Cine PE e já foi protagonista de grandes polêmicas. Na edição de 2010, no debate de imprensa do filme Dores e amores, de Ricardo Pinto e Silva, críticos e realizadores entraram em choque e os jornalistas chegaram a escutar a célebre frase “Todo crítico de cinema é um cineasta frustrado”. Um dos mais tradicionais do país, o Festival de Cinema de Gramado, desde 2006 sob a curadoria do cineasta Sérgio Sanz e do crítico José Carlos Avelar, tenta se livrar do título de “mostra decadente”, embora tenha percorrido um caminho bastante irregular nesses anos, prezando pelo glamour em detrimento dos bons

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“talvez seja a hora de assumir riscos, com filmes de estéticas, temáticas e linguagens diversas” daniel Bandeira filmes. Em contraponto, festivais muito menores conseguem se aproximar do público através de um diálogo aberto e, embora não ofereçam uma programação de fácil consumo, atraem uma plateia cada vez maior, interessada em refletir e discutir cinema. No Recife, o Janela Internacional de Cinema cumpre bem esse papel ao promover um contato direto entre o público e os realizadores. A Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais, também se destaca nesse sentido, pois há 14 anos é considerada uma vitrine do que está acontecendo de novo e instigante no país, dando espaço ao trabalho de novos autores. A Semana dos Realizadores, no Rio de Janeiro, com apenas duas edições, torna-se conhecida pela boa qualidade das obras exibidas e pelo grande interesse do público que acompanha até tarde da noite os debates com os cineastas. “Não há fórmulas nem direcionamentos. Há olhares, recortes,

escolhas. Não necessariamente buscamos os ‘melhores’ filmes – porque isso era algo relativo naquele momento –, mas os que apontavam caminhos, inseriam questões, problematizavam o próprio fazer cinema”, afirmou Marcelo Miranda, sobre a experiência como curador no último Festival de Brasília. Com o prestígio conquistado ao longo desses 15 anos, o Cine PE não deveria se acomodar com o status que ocupa hoje no cenário do audiovisual brasileiro. Pelo contrário, poderia potencializá-lo para tornar-se um festival que propõe novas temáticas, investiga a produção cinematográfica e abrange diferentes linguagens. “Com o grande público, ele conquistou seu espaço junto aos grandes festivais de cinema do Brasil. No entanto, já é hora de usar esse respaldo adquirido para algumas ousadias. Se, não raro, os filmes de apelo popular geram críticas à qualidade geral da seleção. Talvez seja a hora de assumir riscos, com filmes de estéticas, temáticas e linguagens diversas, mesmo que choquem o seu público. Afinal, não conheço nenhum diálogo que seja produzido sem a estranheza entre as partes”, defendeu Daniel Bandeira, já premiado pelo festival, com o filme Amigos de risco, de 2008.

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INDICAÇÕES cine pe/divulGAção

POLICIAL

ABUTRES

Direção de Pablo Trapero Com ricardo Darin, Martina Gusman, Carlos Weber, José luis arias Paris Filmes

destaque da nova geração de diretores argentinos, pablo Trapero conquistou reconhecimento internacional com Família rodante (2004). Seu novo trabalho é um suspense policial que revela o mercado lucrativo que existe por trás dos acidentes automobilísticos. nessa obra, Trapero tentou encontrar um equilíbrio entre o seu cinema observacional e os excessos visuais comuns aos thrillers policias, decepcionando antigos “seguidores” e conquistando novos públicos.

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PRAtA dA cASA

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COMÉDIA

VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS Direção de Woody allen Com Gemma Jones, Naomi Watts, Josh brolin, anthony Hopkins, antonio banderas Paris filmes

com uma produção bastante regular, Woody Allen lança a cada ano um novo filme. embora seu último trabalho seja mais “leve” e menos marcante do que Tudo pode dar certo e Vicky Cristina Barcelona, o diretor não deixa de lado seu tom ácido. Formado por um elenco de estrelas, o filme debocha, com a ironia peculiar do diretor, de personagens insatisfeitos com suas vidas.

diveRGênciA

o cineasta

pernambucano daniel Sem dúvida, a exibição de Bandeira questiona o Central do Brasil, em 1998, foi modelo do festival um dos grandes momentos 01 -3 cuRtA Acercadacana, Melhor do festival, com a citada Filme do Festival de presença da atriz Fernanda Brasília de 2010, está Montenegro e do jovem na programação ator Vinícius de Oliveira na 01 -4 oRGAnizAção Alfredo Bertini, criador plateia. O filme acabava de e diretor do Cine PE, ser premiado no Festival de comemora o sucesso Berlim e fazia sua primeira exibição nacional no Cine que propiciam momentos PE. “É muito difícil dizer o de grande euforia, basta melhor momento, entre lembrar a sessão de Recife tantos. De qualquer forma, frio, de Kleber Mendonça vê-lo nascer em 1997, Filho, na edição de 2010. firmar-se com aquela Em 2011, o festival histórica exibição de Central acontece entre os dias 30 de do Brasil, em 1998, para ver abril e 6 de maio e confirmou depois a casa cheia sempre, a presença de oito curtas tem sido mesmo uma pernambucanos na mostra emoção sem igual”, lembra oficial: Acercadacana,de Felipe Bertini. Foi ele quem, em Peres, Café Aurora, de Pablo 2009, convidou o cineasta Polo, Calma Monga, calma, grego Costa Gavras para de Petrônio Lorena, Janela receber uma homenagem do molhada, de Marcos Henrique festival pelo conjunto de sua Lopes e Mens sana in corpore obra, além de exibir o novo sano, de Juliano Dornelles filme Eden à l’ouest (O Éden é no (todos no formato 35 mm); e oeste), nos palcos do festival, As aventuras de Paulo Bruscky, de numa sessão histórica para Gabriel Mascaro, Peixe pequeno, os cinéfilos da cidade. de Vicent Carelli e Altair Porém, ainda são os Paixão, e Vou estraçaiá, de Tiago filmes pernambucanos Leitão, no formato digital.

DRAMA

COMÉDIA

Direção de Stéphane brizé Com Vincent lindon, Sandrine Kiberlain, aure atika imovison

Direção de Cristian Mungiu, ioana Uricaru e outros Com alexandru Potocean, Diana Cavaliotti, radu iacoban, Tania Popa, Teo Corban imovision

MADEIMOSELLE CHAMBON

contido e delicado, o filme de Stéphane Brizé retrata o dilema amoroso de Jean. Apaixonado pela professora do filho, ele não tem coragem de abandonar a sua família e assumir esse novo romance. com um roteiro bastante simples, o filme agrada pela sutileza. com diálogos curtos e cenas belíssimas, o drama é essencialmente real e possui personagens carismáticos. A trilha sonora, primordial à aproximação do casal, também merece ser apreciada.

CONTOS DA ERA DOURADA

o celebrado diretor romeno cristian Mungiu (Quatro meses, três semanas e dois dias) reuniu quatro amigos cineastas e, juntos, realizaram um belo panorama da Romênia comunista. Através de cinco histórias baseadas em mitos populares do país, o filme retrata, com bom humor, as dificuldades enfrentadas durante os anos do domínio soviético.

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Artigo

DANIEL BUARQUE A VOLTA DOS MORTOS-VIVOS eles estão por todos os lados. Os zumbis conquistaram a raça humana e podem ser vistos por todos os cantos. Na TV, no cinema, nas livrarias, na internet e nas ruas, não há expressão cultural que não tenha forte presença dos mortos-vivos, que se tornaram tão relevantes, que agora são estudados por acadêmicos de universidades pelo mundo afora. Durante o Carnaval, centenas de curitibanos se fantasiaram de mortosvivos numa caminhada pelo centro da cidade, em uma das últimas edições do evento globalmente conhecido como Zombie Walk – São Paulo, Nova York, Montreal e Sydney já tiveram desfiles semelhantes. São milhares de “devotos” desses seres em decomposição em todo o mundo. As histórias de zumbis surgiram da crença espiritual afro-caribenha do vodu. Contava-se que indivíduos eram controlados magicamente, e a própria etimologia da palavra costuma ser ligada à ideia de fantasma, espírito, ou, de acordo com a cultura do Haiti, de uma pessoa que morre e volta à vida sem falar e sem livre-arbítrio. Segundo essa lenda, um morto pode voltar à vida pela ação de um feiticeiro, que passa a controlar o zumbi. O tema se tornou parte da cultura pop nos anos 1960. Em 1968, George Romero lançou o filme A noite dos mortosvivos. O filme foi um sucesso, e deu início à tomada dos zumbis em outras áreas da cultura. Segundo um estudo recente, na última década, mais de 300 filmes sobre zumbis foram lançados no mundo. Somente em 2009, foram publicados mais de 200 livros em inglês com a palavra zumbi no título. Nos Estados Unidos, no ano passado, a série de TV de maior audiência foi o The walking dead, que mostra um mundo dominado por zumbis em que humanos não infectados tentam sobreviver. Em 2009, uma das principais obras da escritora britânica Jane

divulgação/the walking dead (seriado)

Austen foi apropriada pela subcultura zumbi. Através do trabalho de Seth Grahame-Smith, Orgulho e preconceito foi reescrito para se tornar uma história em que os zumbis dividem espaço com os conflitos amorosos e de classe na Inglaterra da virada do século 19. Na introdução de Orgulho e preconceito e zumbis, a narradora alerta que “um zumbi que tem miolos, sempre quer mais miolos”. Segundo a escritora responsável por adaptar a obra de Austen, os zumbis, apesar de ameaçadores, são amáveis, engraçados, e servem facilmente como metáfora para outros males do mundo. De fato, a ideia de zumbi como metáfora é bem comum na sociedade contemporânea e ela já foi aplicada para diferentes tipos de doenças, para confusões populares e até mesmo como comparação da dialética marxista. Os zumbis da cultura, entretanto, apesar de se inspirarem na tradição vodu, têm características diferentes. Os mortos-vivos de filmes e livros são monstros em decomposição, sem mente e que não sentem dor e se alimentam de carne humana, especialmente de cérebro. Eles perseguem pessoas, que são infectadas nesse contato. Sempre aparecem em histórias que tratam do fim dos tempos trazido pelos mortos-vivos. Segundo Max Brooks, autor de algumas das obras de ficção que mais exploraram o mito dos zumbis em uma atmosfera de realidade, outros monstros da ficção também amedrontam indivíduos. O fascínio dos mortos-vivos está no fato de que eles ameaçam toda a humanidade. Entre as obras de Brooks, está Guerra Mundial Z, considerada a descrição mais realista de como seria um ataque zumbi na Terra. No livro, os primeiros desses seres aparecem na China, mas logo são registrados casos no Rio de Janeiro e em todo o mundo. A ficção é uma “história oral” dessa guerra contra os mortos-vivos. Uma adaptação do livro está em produção e brevemente chegará aos cinemas. Assim, o que começou com o cinema, livros, video games, histórias em quadrinhos e cultura jovem começa a aparecer também em trabalhos ligados à academia. A revalorização do

tema fez com que fossem produzidas cerca de 100 publicações acadêmicas tratando dos mortos-vivos. Em um dos mais importantes desses estudos, quatro pesquisadores canadenses levaram a questão para o lado científico. Philip Muns, Ioan Hudea, Joe Imad e Robert Smith publicaram, em 2009, uma pesquisa sobre ataques zumbis do ponto de vista biológico. Eles desenvolveram um modelo matemático para um suposto ataque desse tipo, analisando os efeitos de uma epidemia. Partiram das informações mais comuns em ficção sobre zumbis para desenhar “soluções numéricas” para a infecção no mundo. O estudo, por mais bobo que possa parecer, é a base de planejamento para

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Por conta da revalorização do tema, até pesquisadores acadêmicos voltaram-se à temática dos zumbis lidar com o problema, considerando as formas de tratá-lo, esquemas de quarentena e até mesmo a busca por uma cura, objetivando a erradicação dos zumbis. A tese deles é que somente com ataques rápidos e agressivos seria possível evitar um cenário de colapso da sociedade por conta desses monstros. Os estudiosos canadenses

defenderam que, mesmo não se tratando de uma questão exatamente realista, o estudo serve para desenvolver cenários para infecções imprevistas, que é um grande desafio para a Biologia. Em uma linha semelhante, e se baseando em trabalhos desses cientistas e no de escritores como Brooks, Daniel Drezner, pesquisador da Universidade Tufts (Massachusetts, EUA), projetou o ataque zumbi no mundo para analisar seus efeitos sobre as relações internacionais. Ele diz que apenas parte do mundo estaria pronta para lidar com os efeitos de um hipotético ataque desse tipo. A tese dele integra o livro Principles of international politcs and

zombies (Princípios de política internacional e zumbis), que foi publicado neste ano pela editora da Universidade Princeton, nos Estados Unidos. “É um livro que tenta ser ao mesmo tempo sério e engraçado”, explica. A pesquisa dele usou como base os trabalhos existentes sobre “política de desastre”, que é como os estados respondem a problemas parecidos com zumbis, como pandemias, furacões, terremotos, bioterrorismo. Segundo ele, zumbis são um exemplo clássico do que os departamentos de inteligência dos Estados Unidos chamam de “desconhecidos desconhecidos”, que são ameaças não antecipadas para as quais o governo quer estar preparado.

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Nicole Cosh

entre FÓSFOrOS e CAnIVeteS

colecionar objetos é prática humana há milênios, e existem

coleções que acompanharam seus donos até a morte, sendo com eles enterradas para deleite dos que as descobriram. No meu caso, coleciono caixas de fósforos, que hoje somam cerca de 600. Os objetos colecionáveis são, arriscaria dizer, quase infinitos: LPs, vassouras, casas de boneca, latas de cerveja, bottons e existe até o cantor que afirmou colecionar calcinhas de suas fãs. Diante dos milhares de canivetes exibidos no Instituto Ricardo Brennand, questionei-me sobre o que faz uma pessoa reunir séries tão grandes de objetos. Alguns anos trabalhando ali, outros pesquisando e, ao mesmo tempo, também aumentava minha coleção. Bastava alguém viajar e eu pedia: “Traz um fósforo para mim?” Muitos colaboraram e, nessa busca por fósforos e por respostas sobre os canivetes e outros objetos reunidos pelo empresário pernambucano, deparei-me com Philippe Lejeune (2008) e suas pesquisas sobre as escritas de si. Seguindo seu pensamento, seria a coleção um tipo de autobiografia? No caso da coleção de canivetes, creio que tal autobiografia é efetivamente escrita e assim lida pelos visitantes do Instituto. O público comenta, por exemplo, que Ricardo Brennand possui raízes europeias e é muito apegado à história do Brasil. Esses e outros registros colhidos em minha pesquisa de campo ratificam que o colecionador reuniu objetos de sua predileção, lidos pelo público como uma autobiografia, pois são indissociáveis de sua vida. Enquanto escrita de si, essa coleção exibe aspectos como a ascendência europeia ou o interesse pela cultura brasileira voltado para períodos históricos específicos. Como se vê, Ricardo Brennand reúne mais do que armas em seus castelos, exibe aspectos de sua vida que deseja tornar públicos. Continua adquirindo novas peças, sem interesse por tipologias específicas, seguindo apenas a lógica da aglomeração. Pela amplitude dessa coleção, percebe-se o que move o colecionismo: a vontade de possuir o maior número possível de exemplares de um mesmo tipo de coisa – além da perenidade que a escrita por meio de objetos permite aos seus colecionadores (pois objetos podem ser mais duráveis que seus donos). Colecionando, há, ainda, o desejo de obter objetos que – em sua categoria – são raros. Baudrillard (2006) comenta que completar uma coleção pode ser equivalente à morte do colecionador. Talvez isso explique a constante aquisição de novos objetos por Ricardo Brennand. No meu caso, ainda há muitas caixas de fósforos a serem acrescentadas; assim, creio que escolhi uma coleção que, talvez, permita minha longevidade... Quem sabe?

nicole cosh

é mestre em Antropologia e coordenadora dos cursos de bacharelado em Artes Plásticas e em Fotografia das Faculdades Integradas Barros Melo.

con ti nen te

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