Continente #125 - Casas do interior

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rOBErTA guIMArãES

maio 2011

aos leitores Entre permanências e mudanças, em que lugar preferimos estar? Certamente, não há resposta unívoca para tal questão, não apenas porque ela será dada por pessoas diferentes, mas também porque uma mesma pessoa encontra respostas diferentes para ela, de acordo com a situação. No plano editorial, reagimos de formas variadas – e mesmo antagônicas – a esses diferentes estados do “ser”, buscando contemplar os elementos que continuam conosco, trazendo um sentido de permanência, e aqueles que se movem, transformam-se, desestabilizando nossas convicções. Sobre permanências, nesta edição, podemos identificar imediatamente assuntos como as fachadas coloridas das casas do interior nordestino, que impregnam a memória dos viajantes com suas platibandas estilizadas, projetos de mestres de obras caprichosos. Também, o prestígio até aqui inabalável do bolo de noiva, uma iguaria bonita, gostosa, cara e cercada de superstições. E elas, as efemérides, que não nos deixam esquecer os marcos: os 40 anos do Quinteto Violado, os 70 anos de Bob Dylan, os 80 anos da primeira exibição do filme Limite, de Mário Peixoto.

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Sobre mudanças, este número 125 da Continente observa aquilo que vem sendo chamado de novíssimo cinema brasileiro, termo que pretende dar conta de uma produção heterogênea, do ponto de vista geográfico, temático e estilístico, mas que se aproxima, quando se refere à experimentação de formas narrativas, tempos e espaços fílmicos e quanto ao fato de ser fomentada por jovens realizadores. Inquietação transposta para o campo das artes cênicas, temos nestas páginas, também, uma matéria sobre o Coletivo Angu de Teatro, que se permite questionar o texto dramático, a encenação e os postulados das montagens tradicionais. E se, numa viagem de metrô com estação marcada para descida, nos permitíssemos uma mudança de rota, e seguíssemos até o fim da linha? O que há no fim da linha, afinal? Foi essa pergunta que instigou a reportagem incomum que publicamos sobre Berlim. Esta, felizmente, nos coloca diante dos impasses das mudanças e permanências. E, num instante, nos damos conta: não há margens nítidas entre um estado e outro.

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sumário Portfólio

Fabiano Gonper 6

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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celso Marconi Jornalista e cineasta pernambucano reflete sobre a crítica, as vaidades, as novas tecnologias e a religião

conexão

Paper.li Site transforma em páginas diagramadas como jornais os textos, vídeos e imagens compartilhadas

Balaio

Assis Valente Compositor baiano chegou a fazer aulas de violão com o “padrinho” de Carmem Miranda para conhecê-la

68

Sonoras

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Leitura

80

Palco

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claquete

88

Saída

cinema

Geração Denominado novíssimo cinema brasileiro, conjunto de obras de jovens realizadores é marcado pela experimentação

Montez Magno Lançamento de livro e exposição reafirmam a importância da obra do artista

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em 1ª mão

Milton Hatoum O lugar mais sombrio, novo romance do escritor amazonense, está em fase final de produção

Visuais

As relações dos indivíduos com o entorno e a coletividade são alguns dos temas tratados nos desenhos e esculturas do artista paraibano

14

Bob Dylan Cantor e compositor completa 70 anos como a maior lenda viva da música popular americana

Fernando Pessoa O advogado e colecionador José Paulo Cavalcanti escreve uma “quase” autobiografia do poeta português

coletivo Angu Na peça Essa febre que não passa, baseada em contos de Luce Pereira, grupo centra-se em elenco feminino

Limite Há 80 anos, a obraprima de Mário Peixoto era exibida pela primeira vez

Mário Gioia O papel das feiras de arte

História

Quinteto Violado

Matéria corrida

Há 40 anos, surgia o grupo responsável por quebrar paradigmas no mercado fonográfico nacional e difundir a música nordestina no Brasil e mundo afora

José cláudio Panegíricos

34 Capa Foto Roberta Guimarães

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especial

Perfil

Casas do interior conservam em suas frentes as platibandas, elementos construtivos que têm um fim prático, mas que resultam em vistosos ornamentos

Celebridade esportiva dos anos 1990, o boxeador tem sua trajetória contada em documetário que foca sua personalidade megalomaníaca

Viagem

cardápio

Texto e ensaio fotográfico revelam uma capital alemã diversa daquela dos tradicionais pontos turísticos e do agito da vida noturna

A tradicional receita, composta, entre outros ingredientes, de ameixa, vinho e frutas cristalizadas, continua uma opção imbatível, a despeito dos modismos

Fachadas

22

Berlim

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Todo Duro

30

Mai’ 11

Bolo de noiva

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cartas Luxo total Recebi a revista de abril e estou devorando-a! Luxo total, muito boa! Não apenas o texto sobre Contracultura, mas toda a revista está ótima. Parabéns a todos!

de confecção de novas peças para o preenchimento das lacunas existentes. O resultado é admirável. Vale a pena conferir. JULIANA BARRETO RECIFE – PE

TIAGO DE MELO GOMES RECIFE – PE

Fachadas Quero parabenizar a equipe da Continente pela publicação da reportagem sobre a realidade do nosso belo acervo azulejar que, lamentavelmente, se encontra em risco de perda e falta de conservação. Principalmente pela importância dada à reportagem, que foi o assunto de capa da revista. Na oportunidade, venho destacar a relevante obra de restauração de azulejos históricos que foi executada em 2010 na fachada principal do Centro de Criatividade Musical, sobrado antigo da Rua da Aurora, que, além de ter realizado a conservação das peças existentes, trabalhou no resgate do processo tradicional

Restauro Moro em São Luís do Maranhão e sou estudioso de azulejos. Em recente viagem ao Recife, visitei a Capela Dourada e, naquela oportunidade, constatei que, ao contrário da matéria da Continente, Azulejos: um belo patrimônio sob ameaça, ali está ocorrendo uma perda silenciosa, camuflada de restauração. Santos Simões – importante referência no assunto – coloca que toda retirada de azulejo é uma perda. Os azulejos que precisam de restauração devem ser restaurados in loco, nunca retirados. Os painéis daquela capela nunca serão os mesmos, uma perda para o patrimônio azulejar do Recife. ROGÉRIO TEIXEIRA RODRIGUES SÃO LUÍS – MA

Newsletter Deslumbramo-nos com a nova forma tecnológica da comunicação da Continente e nos inspiramos em alguns artigos editados pela revista e reeditamos na nossa, sempre colocando a fonte original da editoração. A revista Continente é, sem dúvida, o marco da comunicação do jornalismo inteligente em Pernambuco. Pedimos permissão para editar no nosso blog o link do newsletter da revista, pois é uma fonte de tecnologia com a melhor equipe de jornalismo, não apenas de Pernambuco, mas do Brasil. Parabéns à equipe. E que continue sempre nos inspirando. SILVIO RABELO RECIFE – PE

errata Na matéria Pernambuco dá samba, publicada na edição de fevereiro deste ano, o nome do sambista Jorge Riba foi grafado de forma incorreta.

VOCê FAz A continente COM A GENTE o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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colaboradores

Daniel Piza

Luíz Joaquim

Schneider carpeggiani

Sérgio Lobo

Jornalista, colunista cultural de O Estado de S.Paulo e autor de diversos livros

Crítico de cinema, mestre em Comunicação e curador do Cinema da Fundaj

jornalista e editor do suplemento Pernambuco, doutorando em Teoria Literária

Fotógrafo, apaixonado por gastronomia e editor de fotografia da revista Engenho

e MaiS

adelaide ivánova, fotógrafa, blogueira do Vodca Barata que atualmente mora em Berlim. carlos eduardo amaral, mestrando em Comunicação Social pela UFPE e crítico de música clássica. Fernando Monteiro, escritor, poeta e cineasta, autor de O grau Graumann, entre outros. Kleber Mendonça Filho, crítico de cinema. José teles, jornalista, escritor, crítico de música e colunista semanal do Jornal do Commercio. Mario Gioia, jornalista, crítico de arte e curador independente. renata do amaral, jornalista, webdesigner, especialista em Design da Informação e mestra em Comunicação pela UFPE. roberta Guimarães, fotógrafa. rodrigo Dourado, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação Social.

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CELSO MARCONI

“Não sinto falta de ir ao cinema”

Aos 80 anos, jornalista, crítico e cineasta pernambucano, que continua a acompanhar a produção no setor, prepara lançamentos que apresentam sua obra às novas gerações TEXTo Gianni Paula de Melo

con ti nen te

Entrevista

Pendurado na parede da sala de Celso

Marconi, em Olinda, chama a atenção um pequeno quadro com a frase tão otimista quanto irônica: “A vida começa aos 100”. O crítico de cinema explica que aquele foi um presente da sua irmã e nos entrega um sorriso divertido e sereno. É este sorriso que dá o tom de toda a nossa conversa: coloquial, espirituosa e, sobretudo, serena. Aos 80 anos, Celso acredita que a filosofia budista tem função importante na sua leveza diante da passagem do tempo e não demonstra um sentimento nostálgico forte. Ao contrário, reconhece a modificação do mundo como algo que não pode ser evitado e por isso acompanha as novidades, baixa filmes da internet, comunica-se pelo Twitter e Facebook. Jornalista e professor universitário aposentado, o trabalho não existe mais sistematicamente em sua rotina, porém ele mantém projetos ainda sem previsão de execução. O único com dia e lugar marcados para lançamento é o DVD duplo O cinema de Celso Marconi, que o público pode adquirir a partir do dia 5 deste mês, na Livraria Cultura. Uma oportunidade de as novas gerações

conhecerem 22 filmes do crítico de cinema que não se considera cineasta. Acompanhado do seu cachorro JeanLuc Jomard, Celso Marconi recebeu a Continente e dividiu conosco não só suas impressões sobre cinema e crítica, mas também suas reflexões sobre as vaidades sociais, novas tecnologias e religião. continente Já faz algum tempo que este DVD está para ser lançado. Em 2009, surgiram os primeiros rumores sobre ele já estar pronto. Por que só agora ele vai chegar ao público? ceLSo MARconi As cópias do DVD foram feitas na França e, depois de resolver tudo, quando chegou na hora de trazer para o Brasil, nós não tínhamos mais dinheiro. Só trouxemos 50 para prestar conta com a prefeitura. Depois, Sérgio Dantas, produtor do projeto, arranjou verba e aí trouxemos uma parte. Tem uns dois ou três filmes que eu já fiz em vídeo, mas a base mesmo é a minha produção em super-8 da década de 1970. Inclusive, ainda tenho esses filmes. Na realidade, eu só tinha finalizado dois deles, todos os outros montei depois que passei para digital.

continente Havia incentivo para a produção em super-8 no Estado? ceLSo MARconi Não, era cada um por si. Eu tinha um equipamento, Fernando Spencer outro. Então, cada um tinha sua câmera e até mesmo montadeira. Como eu trabalhava em jornal e era muito ocupado, não montava os meus filmes. Jomard (Muniz de Britto) me esculhambava, dizia que eu era o cineasta dos filmes inacabados. Mas não havia lei de incentivo, o que tinha era polícia nos proibindo de fazer as coisas. continente Com a reestruturação do cinema pernambucano e o maior apoio para essa produção, você não teve vontade de voltar a fazer filmes? ceLSo MARconi Não, porque eu não sou cineasta. Assim, eu sou cineasta porque qualquer pessoa que trabalha com cinema é cineasta, mas a minha produção era mais por uma questão de participação, como uma brincadeira mesmo. Claro que os assuntos tinham um conteúdo mais público, mas o meu interesse não era fazer filmes para exibir, ganhar prêmios, porque profissionalmente sou crítico de cinema.

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RicaRdo MouRa/ ESPEciaL PaRa a coNTiNENTE

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Quer dizer, atualmente sou aposentado, mas minha profissão era de jornalista. Meu lado cineasta é como um deleite. continente O senhor acompanha as novas gerações do cinema pernambucano? ceLSo MARconi Eu acompanho mais ou menos. Meu hábito, atualmente, é de ver filmes em casa, baixo pela internet. O mais recente que eu vi foi o Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karin Ainouz. Fico pensando que Pernambuco tem uma característica um pouco diferente. Porque, no Brasil, nós vemos uma tentativa de fazer cinema comercial mais na linha do Tropa de elite ou filmes de espiritismo para ganhar dinheiro e público. Algo diferente da política dos anos 1960, quando se

se temos uma verba limitada, então temos que incentivar aquilo que não tem possibilidade realmente de ser feito sem o apoio do governo. continente Além do DVD, existem dois novos livros seus para serem lançados, não é? ceLSo MARconi Estou tentando lançar a minha produção no Jornal do Commercio, de 1981 a 1989, que daria dois livros. Mas também queria fazer outro só com o principal da cobertura de cinema estrangeiro. Além desses, queria fazer um álbum bonito sobre artes plásticas, porque nos anos 1970 e 1980 escrevia sobre artes. Tem muitos projetos, o que está mais perto para sair, pela prefeitura, é algo à parte do jornalismo, algo mais teórico sobre cinema e sobre o Cinema

ele já vem se modificando. A gente tem que se adaptar, porque a natureza é mais forte que nós. Então, acho maravilhosa a internet, sou a favor da tecnologia, inclusive sou a favor da energia atômica. continente A tecnologia utilizada em filmes 3D desperta seu interesse? ceLSo MARconi Nunca vi um filme em 3D, porque estou cego de um olho. Eu não estava vendo bem e com a cirurgia acabei perdendo a visão. Aqueles óculos do 3D são só para quem enxerga pelos dois olhos, então só vou poder ver quando inventarem uma coisa para um olho só. continente Então, a transição do referencial analógico para o digital lhe parece positiva.

FoToS: diVuLGaÇÃo

con ti nen te

“no Brasil, nós vemos uma tentativa de fazer cinema comercial na linha do Tropa de elite ou filmes de espiritismo. Pernambuco tem um certo sentido de fazer filmes sem essa destinação tão forte”

Entrevista faziam filmes para conscientizar as pessoas. E, ainda hoje, Pernambuco tem um certo sentido de fazer filmes sem essa destinação tão forte ao comercial. continente Atualmente, é possível imaginar uma produção cinematográfica estável em Pernambuco sem as leis de incentivo? ceLSo MARconi Acho essa política inteiramente errada, sabe? Essa política apoiada apenas nas leis de incentivo. Os museus estão praticamente abandonados, inclusive o Museu da Imagem e do Som, do qual fui diretor, está lá parado. Acho que deve haver uma política de incentivo sempre. O problema é que aquilo que está estabelecido não está certo. Porque se tivesse muito dinheiro, tudo bem. Mas

Novo. O título seria Por que gostamos mais do cinema de Hollywood?, parte dele escrevi de forma independente e outra parte trouxe da minha dissertação de mestrado em Antropologia, que acabei não defendendo. continente Geralmente, as pessoas mais velhas têm certa resistência às novidades da comunicação, mas Celso Marconi está muito à vontade no Facebook, no Twitter e no blog. ceLSo MARconi Nunca mais escrevi no Twitter e parei um pouquinho no Facebook, porque toma muito tempo. Mas acho que você tem que sentir a sua insignificância diante do mundo, porque o que é que podemos fazer individualmente? Nada. Nos anos 1950 e 1960, nós pensávamos que podíamos modificar o mundo, mas

ceLSo MARconi Como disse, sou a favor de toda a tecnologia, acho que não se pode ser contra ela. Agora, cada coisa tem sua especificidade. Por exemplo, o livro não vai morrer, mas vai deixar de ser o instrumento de comunicação mais comum. Ao mesmo tempo, você ainda tem o jornal, mas você já se informa tanto nele quanto por outros meios. Por exemplo, soube do episódio trágico em escola do Rio de Janeiro, no Bairro do Realengo, pelo jornal da TV espanhola. Quer dizer, estou aqui em Olinda e sei de uma notícia do Rio de Janeiro pela Espanha. As informações estão muito em cima de você. Aí o papel vai perdendo a sua importância, mas você não pode esquecê-lo, porque tem a ver com a sensibilidade do homem.

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continente E os cinemas de bairro? Têm a ver com a sensibilidade e a sociabilidade do homem e estão esquecidos também. ceLSo MARconi Eu não sinto falta de cinema, sabe? Eu gosto do novo. Acho que a gente vai se acostumando, tem mesmo que se acostumar com o novo. Existe a dificuldade para aprender a manipulá-lo, mas você aprende. Como vemos naquele filme, A pessoa é para o que nasce, você age diante do mundo de acordo com o que você é. Inclusive, fico pasmo com a humanidade, que não melhorou do ponto de vista da vaidade, as pessoas ficam disputando. Tanto os pobres quanto os ricos e milionários. Acho que o mundo tem que mudar dentro das pessoas, para poder fazer outro mundo. Voltando à

me permitiu. Claro que tem aspectos terríveis e o principal deles é a questão de você ser marcado para morrer, porque qualquer pessoa pode morrer de repente, mas isso é uma eventualidade. A pessoa que tem 80 anos, no entanto, sabe que está na reta. Isso é duro, perturba muito as pessoas.

sua pergunta, a relação mais pessoal, mais intimista com o cinema é o que ainda me interessa. Isso é diferente de você sair, ir ao cinema, encontrar com as pessoas. Na verdade, encontrar com as pessoas também é uma coisa boa e eu tenho feito pouco. Mas hoje vivo um tipo diferente de vida. É por isso que não sinto falta de cinema de bairro.

continente Foi também a filosofia budista que permitiu aquela fotografia com Ariano Suassuna, em 2007? Aquela imagem representa quase um desatamento de nó entre uma esquerda festiva e uma esquerda mais sisuda. ceLSo MARconi Tem uma foto minha com o Ariano? Ah, foi na entrada do Cine PE. Mas quem é mais sisudo para você? Você acha que é ele? Ele é tão gaiato. Engraçado você falar dessa foto, porque que eu não me lembrava dela. Tem coisas que a gente não sabe da vida da gente, tá vendo?

continente Com o passar do tempo, o ser humano se torna mais sereno? ceLSo MARconi Tem gente que fica mais serena e tem gente que não. Vejo muitas pessoas reclamando dos 80 anos. Eu, inclusive, passei por um processo duro, ia fazer uma festa no meu aniversário e acabei não fazendo, porque me deu uma emoção que não

continente Mas você parece, na maior parte do tempo, tranquilo com esse movimento natural da vida. ceLSo MARconi É porque sou um pouco budista, gosto da filosofia. Não sou propriamente adepto, porque acho que a igreja é sempre comercial, sempre algo para utilizar as pessoas. Porém a filosofia budista me parece muito explicativa do mundo e me ajuda muito.

continente O senhor concorda com essa ideia de falência da crítica cultural, na atualidade? ceLSo MARconi Acho que a crítica sempre foi esculhambada. As pessoas

falam que não existe crítica, mas quando se faz crítica de verdade, mais radical, aí ninguém gosta. continente O que é pior: a quantidade de Bolsonaros na política brasileira ou a quantidade de salas exibindo filmes como Tropa de elite? ceLSo MARconi O pior são as pessoas e o fascismo que existe nelas. Um dia desses uma mãe ligou para marcar uma consulta com a minha filha, que é pediatra. Seu filho, do outro lado da linha, gritava sem parar. Eu perguntei para a mulher se ele poderia falar mais baixo e ela disse que eu estava sendo grosso, que se dependesse do meu atendimento a médica morreria de fome. O que ela imaginou foi que a pessoa marcando a consulta dela era um pobrezinho que seria demitido se ela fizesse uma reclamação à médica. Foi isso que passou na sua cabeça: “Eu vou demitir esse cara que tá me tratando mal”. Mas eu não estava tratando mal e tive vontade de dizer: “Olha, no começo do livro do Marcel Proust tem uma frase dizendo: ‘Como é bom entrar em uma casa onde as pessoas falam baixo’ ”. Então, a educação é uma coisa fundamental para conviver com as pessoas e conviver no dia a dia, não só na rua. Porque a minha geração, inclusive, convivia muito bem na rua, mas quando chegava em casa tratava mal a mulher, a família. Eu também fui assim, mas procurei melhorar. É uma batalha diária para se mudar o mundo. continente E para mudar a arte também? ceLSo MARconi Não, a arte eu acho que não. Para mim, a religião é a arte. Eu vivo em função do que consumo de arte. Eu me acho até egoísta quando percebo o prazer que a arte me dá. É ela que me sustenta. Os artistas, em geral, são os mais maravilhosos seres humanos, porque eles não se submetem aos esquemas. Acho muito ruim as pessoas que dizem “eu penso assim e não vou mudar minha opinião”. Tenho um amigo que ficava danado porque eu dava uma opinião sobre um filme e depois dizia tudo diferente. Ele falava: “Vou mandar você escrever e assinar embaixo quando der uma opinião”. Mas eu não tenho culpa se as coisas mudam, se você muda.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

PLAtiBAnDAs

cAnnes

Para escrever a matéria de capa deste mês, a repórter Danielle Romani viajou pelo Agreste pernambucano, visitando as criativas fachadas populares, tradicionais do estado. Em maio, confira no site da Continente as fotos da matéria e outras imagens exclusivas das platibandas pernambucanas pela fotógrafa Roberta Guimarães. Além disso, leia também um trecho do livro Pinturas e platibandas, da fotógrafa e pesquisadora Anna Marianni, publicado pelo Instituto Moreira Salles.

Assista ao trailer das principais estreias de um dos mais importantes festivais de cinema do mundo, incluindo o novo filme de Las Von Trier.

Conexão

BeRLiM Veja outras imagens dos fins de linha dos metrôs berlinenses feitas por Adelaide Ivánova para a reportagem de Schneider Carpeggiani na seção Viagem.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AnDAnçAs viRtuAis

MeRcADo

RevistAs

ReDe sociAL

coLetivo

Site analisa importância de aplicativos para o futuro do cenário musical

cover Junkie faz das capas a representação da cultura pop

canv.as propõe que se converse apenas por meio de imagens

Mob social transforma fãs em produtores de shows no Brasil

Evolver.fm

coverjunkie.com

canv.as

mobsocial.com.br

Que as mudanças tecnológicas alteraram a organização da cadeia da música e da indústria do pop todos sabem. O debate sobre a virtualização da música desde a popularização da MP3 chegou, segundo o site Evolver.fm, a uma segunda etapa, baseada em aparelhos eletrônicos móveis, como smartphones e iPads. Nessa visão, o site traz notícias e análises sobre o comércio musical, divulgando iniciativas do público e de produtores, ciente de que no desenvolvimento de aplicativos específicos que aproximem bandas e fãs reside a rentabilidade do setor.

Capas de revistas são capazes de marcar uma época. Reconhecendo a importância delas para a cultura pop, o Cover Junkie reúne capas visualmente originais – a intenção, segundo o seu criador, o designer Jaap Biemans, é a de ser uma seleção completamente pessoal. Vice, New Yorker e Times são algumas das presenças constantes, mas a variedade é enorme. Anualmente, o site organiza um para escolher a capa do ano – a de 2010 foi a da edição da Granta sobre sexo – e indica outras relevantes do periódo.

Depois do sucesso das grandes redes sociais, diversos sites surgiram com adaptações de suas propostas. O Canv.as é uma das tentativas mais recentes na área, dedicando-se exclusivamente ao compartilhamento fácil e rápido de imagens. A ideia é parecida com a do Ffffound (ffffound. com), clube fechado em que são postadas fotos escolhidas pelos participantes, só que voltadas para imagens engraçadas. O site, restrito temporariamente a convidados, é intuitivo, facilitando que se postem respostas a fotos ou desenhos, gerando diálogos – normalmente humorísticos – visuais.

O financiamento coletivo é mais do que uma moda passageira. No ano passado, o projeto Queremos (queremos.com.br) trouxe para o Rio de Janeiro grupos como Belle and Sebastian e LCD Soundsystem. O Mob Social é um site que faz isso em qualquer local do país. A partir de uma lista de artistas, os usuários podem pagar parte do custo de um show. As cidades que conseguirem, por meio dos fãs, pagar 100% do cachê, recebem a apresentação e, caso os ingressos sejam todos vendidos, os financiadores ainda reembolsam todo o dinheiro.

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blogs FotoGRAFiA doisminutosemeio.wordpress.com

No blog Dois minutos e meio, Felipe Lins seleciona vídeos e fotos interessantes que circulam na internet. O interesse do autor é principalmente por ensaios criativos ou singelos, mas bons casos de publicidade também aparecem na página.

coMiDA naminhapanela.com

JoRnAL PARticuLAR O Paper.li transforma textos, vídeos e imagens compartilhadas entre amigos nas redes sociais em páginas de notícias paper.li

O Twitter e o Facebook suprem nossa necessidade de troca de informações imediatas: notícias, vídeos e polêmicas passam de forma rápida (e desorganizada) pela timeline – a lista de mensagens com atualização dos amigos de cada um. Esses sites funcionam quase que de forma oposta aos jornais impressos, revistas e portais, que privilegiam a organização e seleção do que aconteceu de mais importante em um certo período. O Paper.li, criado pela dupla Edouard Lambelet e Iskander Pols, descreve-se como uma forma de ler as duas páginas com a formatação de um jornal diário. Para “capturar” os fatos mas importantes de um dia, o site acessa as mensagens publicadas pelos usuários cadastrados, selecionando as que compartilham links de notícias ou blogs para organizá-las em uma página independente. Os jornais particulares são divididos em categorias, como artes e entretenimento, esportes, política e tecnologia, mas os mais comentados ficam também na parte de destaques. Com versões em inglês, espanhol, francês, alemão e japonês, a página disponibilizou neste ano uma versão em português, buscando atender também os brasileiros, que estão entre os principais usuários de qualquer rede social. DioGo GUeDeS

Sites de culinária com um tom pessoal são uma nova febre na web. Na Minha Panela conta com despojamento e fluidez suas receitas e experiências gastronômicas, buscando também interatividade nas redes sociais.

LiteRAtuRA paisagensdacritica.wordpress.com

Júlio Pimentel Pinto, professor da Universidade de São Paulo, faz do seu blog um local para resenhar suas leituras. O imenso repertório de críticas também conta com alguns pequenos ensaios sobre autores.

tiRinHAs ryotiras.com

O Ryot Iras, mantido por Ricardo Yoshio, é um dos mais conhecidos e respeitados sites de tiras da web brasileira. O autor também usa o site para vender os fanzines com algumas de suas obras – atualmente esgotados.

sites de textos

faça-você-mesmo TECNOLÓGICO

VÍDEOS

NACIONAL

makezine.com

5min.com

diybrasil.com.br

Mantido por sete colaboradores, o Make traz conteúdo para ensinar a alterar e interferir em objetos eletrônicos em geral.

Dedicado exclusivamente ao audiovisual, o 5min Media tem mais de 20 categorias de vídeos “do it yourself” (faça-você-mesmo).

Com contribuições dos usuários, o DIY Brasil é um dos raros portais brasileiros dedicados a tutoriais.

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Flテ」io laMeNHa/divulgaテァテ」o

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ricardo alves/divulgação

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con ti nen te

Portfólio

Fabiano Gonper

ANTROPOLOGIA DO SUJEITO TEXTO Mariana Oliveira

Durante muito tempo, o desenho foi visto como esboço, verdadeiro estudo para a execução de grandes obras. Sempre foi tido como algo que antecedia o trabalho final. No século 20, apesar de seguir como croqui para o desenvolvimento de esculturas, pinturas e instalações, ele se emancipou, encontrou um fim em si mesmo. É com essa autonomia que Fabiano Gonper vê o desenho – uma das bases de sua obra. Ao iniciar sua trajetória artística, na década de 1990, o paraibano, que atualmente divide ateliê entre João Pessoa e São Paulo, dedicou-se à escultura, o que, segundo ele, teria garantido uma visão mais complexa e construtiva da arte de desenhar. Os indivíduos e suas relações com o entorno, com a coletividade e com as instâncias do poder, da arte e da sociedade sempre habitaram as suas obras. Daí o fato de ele considerar seu trabalho como “um tipo de antropologia do sujeito e do entorno”. Para explorar essas questões, Gonper aposta em narrativas e códigos específicos que, em alguns momentos, pedem uma simples contemplação dos espectadores ou sua ativa participação. Na série O manipulador (2008), por exemplo, o público contempla, seja na rua (como aconteceu durante a Street Bienal, em 2010, em São Paulo), seja em alguma instituição, traços que criam sujeitos sem rostos com atitudes autoritárias, numa provocação aos altos escalões do poder. O primeiro desenho da série tratava da manipulação entre continente maio 2011 | 16

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4 Página anterior 1 O MANIPULADOR

Sujeitos sem rostos com atitudes autoritárias sugerem provocação às instâncias do poder

Nestas páginas 2 na rua

Imagem da série O manipulador foi colocada em um prédio, na Avenida São João, durante a Street Bienal, no ano passado, em São Paulo

3 PeSQuiSa Ao longo de sua trajetória artística, Gonper abandonou o modelo clássico de escultura e passou a trabalhar com outros suportes 4 SuPorte Em Cuidado animais em você, o artista faz de um espelho a base da obra 5 PINTURAS VARIÁVEIS Feitas em espelhos foscos, variam de acordo com o posicionamento do espectador em relação à obra

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Portfólio

os sujeitos. Num segundo momento, Gonper começou a trabalhar com imagens de referência política, como homens engravatados, retirados de revistas e jornais. Em Pinturas variáveis, o público tem um papel mais ativo. As pinturas são feitas em espelhos foscos que refletem o ambiente e passam a variar de acordo com o posicionamento do espectador em relação à obra. Nesse constante flerte com as relações de poder, o artista também critica o campo da arte, do qual é sujeito atuante. Ao criar a obra Gonper Museum (2002), insere um novo espaço expositivo dentro da própria instituição. Só que nesse “espaço/obra” é ele quem possui o poder sobre o que será e o que não será exibido. Inicialmente, o Gonper Museum

abrigou apenas seus trabalhos, mas em outras mostras passou a receber também obras de artistas e instituições diversas, como em 2005, no Panorama da Arte Brasileira, quando o recebeu o acervo do MAM-SP. A sua produção escultórica começou com influências clássicas, era o que ele tinha como referência principal. Com o tempo, contextualizando sua pesquisa, passou a desconstruir esses ideais, chegando às suas Esculturas planas em mármore branco. Em seus trabalhos, Gonper redefine e reafirma a potência do desenho e da escultura. “Um desenho minúsculo pode ser mais arrebatador que uma grande pintura, assim como uma pequena escultura pode gerar questões mais pertinentes e fortes que um desenho em grande escala, em um campo ampliado. Não importa o meio, mas, sim, o que propõe o trabalho”, pontua.

6 ViDeoDeSenHoS Foram resultado da bolsa oferecida pelo Salão de Artes Plásticas de Pernambuco 7 GONPER MUSEUM com a obra, ele cria outro espaço expositivo, que recebe trabalhos seus e também de outros artistas 8-9 cotiDiano na série RDS – Do sujeito. Do poder. Da arte, o artista trabalha temas que lhe são caros, representando desde leilões artísticos a políticos engravatados

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ainda uM enigMa

carmen e os antigos baianos Foi em 1932, no Teatro João Caetano, que Assis Valente (1911-1958) viu, pela primeira vez, Carmen Miranda (1909-1955). Ficou fascinado diante do extraordinário volume de carisma, simpatia e talento da cantora. A partir de então, o compositor baiano, que aportara no Rio de Janeiro em 1927, não descansou até conseguir conhecê-la. Para tentar uma aproximação, chegou a ter aulas de violão com o padrinho da artista, o violonista Josué de Barros (1888-1959). Após serem apresentados, Valente ofereceu à intérprete a música Etc. ..., que foi a primeira das 24 composições suas interpretadas pela Pequena Notável, tornando-se o compositor baiano mais gravado por ela – o segundo foi Barros, com oito, e o terceiro, Dorival Caymmi (1914-2008), com apenas quatro, mas, entre elas, o estrondoso hit O que é que a baiana tem?, de 1939. Naquele ano, com a ida da estrela para os EUA, teve início o declínio da amizade e parceria entre Carmen e Assis, tendo como ponto alto a recusa dela em gravar Brasil pandeiro, em 1940. O samba-exaltação, feito especialmente para a musa, acabou sendo gravado pelos Anjos do Inferno, e, depois, tornou-se sucesso com os Novos Baianos, em 1972, 14 anos após a trágica morte de Assis, que se suicidara, em meio a uma crise financeira.

cOn ti nen te

A vida de Robert Johnson é cercada de enigmas – até sua data de nascimento ainda é uma incógnita. Embora tenha sido acordado o 8 de maio de 1911, alguns registros (documentos escolares, certidões de casamento e de óbito) sugerem entre 1909 e 1912. Outra dúvida acerca do mito é o suposto pacto com o Coisa Ruim, lenda que foi alimentada pelo filme Crossroads (1986), baseado em sua história. O músico teria feito esse acerto para poder tocar melhor seu violão, versão reforçada por músicas como Crossroads blues, Me and the devil blues e Hellhound on my trail. Verdade ou não, o certo é que ele se tornou um dos maiores instrumentistas do estilo e é considerado por muitos o maior nome do blues. Mesmo não tendo sido o criador do gênero, ajudou a formatar a técnica do Delta blues e do Chicago blues, influenciando artistas como Muddy Waters, Jeff Beck, Keith Richards e Eric Clapton. Robert Johnson gravou apenas 29 músicas e morreu aos 27 anos, em 16 de agosto de 1938, possivelmente envenenado. As motivações de sua morte são outro mistério. (DN)

Balaio

DÉBORa naScimentO

A FRASE

papo cabeça

“o que foi reduzido se acha, de certa forma, livre de significado.”

Não dá para verificar, de imediato, se o fato já foi registrado no Guinness World Records. Mas a primeira conversa entre sigmund freud e Carl Jung, depois de extensa troca de cartas, foi uma das mais longas de todos os tempos. Ocorrida em Viena, no ano de 1907, décadas depois, seria lembrada por Jung (que, em 1914, romperia definitivamente as relações com freud) em depoimento reproduzido no documentário A invenção da psicanálise: “Nem percebemos que estávamos quase mortos no final”. Pudera: o bate-papo durou 13 horas! (gilson Oliveira)

enrique Vila-Matas

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lula côrtes Maluco pra lá de beleza, o multiartista lula Côrtes costumava passar, entre outras mensagens, a de que vivia – e produzia – como se todo dia fosse o último. Num deles, é claro, acertou: 26 de março de 2011. Mas, com estilo próprio, até na forma de encarar a morte, foi além de Noel Rosa (“Quando eu morrer,/ não quero choro nem vela”): no dia seguinte, o cemitério de Jaboatão dos guararapes, cidade onde atuava como gerente de Cultura da prefeitura, recebeu aquele que, muito provavelmente, foi o primeiro velório de sua história em que, além de muita música e poesia, foi servido uísque. Quem comprou a bebida? O próprio lula, um bocado de tempo antes de ser visitado por aquela que Manuel Bandeira chamou de “a indesejada das gentes”. (gilson Oliveira)

cRiAtuRAS

lula côrtes ii Cantor, compositor, poeta, pintor e agitador cultural, o artista teve uma trajetória marcada pela psicodelia, o experimentalismo e a invenção - foi pioneiro no lançamento do primeiro disco independente do Brasil, Satwa, feito por ele e o cartunista laílson, em 1973. Outro exemplo é o pouco conhecido Livro das transformações, lançado na primeira metade dos anos 1970, cujas páginas eram compostas por diversos tipos de papéis e panos, com colorações e formatos diferentes, sempre em consonância com o conteúdo dos poemas. Da mesma época, é o buziola, instrumento criado a partir de um búzio encontrado numa praia e que, por sua sonoridade estranha até para ouvidos rebeldes, acabou por se transformar em mais uma produção sua no campo das artes plásticas. (gO)

o priMeiro 3d da warner

Em 1953, a Warner Bros produzia um remake do filme Mystery of the Wax Museum (1933) que, desta vez, foi lançado com o nome House of cax (Museu de cera). Algumas curiosidades rodeiam o longa-metragem de horror, como o fato de não constar nos créditos o nome do ator Nedrick Young, por ele ser malvisto no período do macarthismo nos EuA. Entretanto, Museu de cera se destaca, principalmente, por ter sido o primeiro filme em 3D da Warner (o primeiro de todos foi The power of love, de 1922), tendo sido dirigido pelo cineasta André De toth (foto). Este era cego de um olho e não teve oportunidade de perceber os efeitos do filme que dirigiu. (gianni Paula de Melo)

lula côrtes Por Shiko

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FACHADAS Líricas e coLoridas

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Nas casas do interior do Nordeste, ainda é possível observar ornamentos em vários estilos arquitetônicos, criados a partir de necessidades construtivas – mas curiosamente pouco estudados texto Danielle Romani Fotos Roberta Guimarães

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a platibanda é um elemento

construtivo que se disseminou no Recife, na primeira metade do século 19. Adornada por desenhos variados – rebuscados, ecléticos ou geométricos, dependendo da época em que foi erguida e do gosto do proprietário –, ela consiste numa faixa horizontal que emoldura a parte superior de uma edificação. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, não tem como principal finalidade decorar, e, sim, evitar que as águas das chuvas caiam diretamente nas calçadas. Mecanismo engenhoso, a platibanda é utilizada para esconder a calha e para que a água corra lateralmente, evitando que as ruas fiquem encharcadas. Atualmente, com as modernas plantas e sistemas de escoamento pluvial, as platibandas resistem apenas nas edificações seculares. Mas, em 1830, quando as casas com eiras e beirais ocupavam quase toda a paisagem recifense, sua adoção se mostrou essencial, e tornou-se obrigatória, a partir do Código de Postura que se aplicava aos bairros do Recife, Santo Antônio e Boa Vista.

Na tese Posturas do Recife Imperial, a arquiteta Maria Ângela de Almeida Souza mostra que a medida foi imposta pela Câmara Municipal do Recife, a partir de recomendações do engenheiro alemão João Bloem, contratado para modernizar e europeizar a cidade, que, na época, era criticada por apresentar “um aspecto pitoresco, mais oriental que português”. O Recife, com suas casas geminadas, foi um dos pioneiros no uso de “platibandas com cornijas”– faixa que se destaca da parede e acentua suas nervuras horizontais –, pois a obrigatoriedade de sua adoção, nacionalmente, começou a se dar somente a partir de 1886, após a criação do Código de Postura de São Paulo. No livro Quadro da arquitetura no Brasil, Nestor Goulart Filho explica que as platibandas começaram a se popularizar a partir da integração do país ao mercado mundial, com a abertura dos portos, o que possibilitou a importação de equipamentos que contribuiriam para a incorporação de novos elementos nas grandes capitais. Em muitos casos, esse uso procurava respeitar o primitivismo

das técnicas tradicionais, ou seja, das velhas casas coloniais. De construção simples, as platibandas consistiam em adaptação relativamente descomplicada para essas edificações. Por esse motivo, foram largamente utilizadas, seja em construções luxuosas ou em casas populares. Mas o que seria uma solução técnica e modernizante da paisagem imperial, além de uma inovação tecnológica e arquitetônica proveniente da importação de novos materiais europeus, acabou provocando uma verdadeira revolução nas fachadas das casas nacionais, que passaram a ostentar adornos múltiplos, tendo a platibanda como base.

GloBaliZaÇÃo

Rosa Bomfim, arquiteta e chefe da Unidade de Preservação da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), diz que as platibandas surgiram, inicialmente, nas casas que tinham frente para a rua, exatamente as passíveis do desaguar da chuva. “Elas são marcas da mudança da arquitetura colonial

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Tons aquarelados e desenhos simétricos são marcas registradas das construções interioranas

Nesta página 3 a 4 art déco

O geometrismo, influência do estilo decorativo, é uma constante nas casas populares

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para a globalização. A partir da sua introdução, os prédios públicos, em especial, começaram a se enfeitar, criando novos elementos, como as peças em louça, esculturas e, principalmente as pinhas, cuja simbologia está associada à hospitalidade”, completa Célia Campos, diretora de Preservação Cultural da Fundarpe.

Essa profusão de ornamentos pode ser vista no Recife em diversas partes, inclusive nos prédios públicos. Na Rua da Aurora, sobrados com platibandas ostentam adereços variados. O Palácio da Justiça, na Praça da República, é outro exemplar típico dessa fase inicial. Em bairros como a Madalena também são vistos alguns exemplares de casarões

decorados. “Quanto mais ricos os proprietários, mais enfeitadas eram as casas. A ornamentação demonstrava posse e dava status”, explica a arquiteta Rosa Bomfim. As platibandas também ocuparam as fachadas das casas populares. As casinhas de porta e janela, geminadas, típicas da arquitetura colonial, bem próximas das ruas, ajudaram no fortalecimento dessa tendência. Mas hoje, no Recife, as residências mais humildes com esse elemento são praticamente inexistentes. Ou foram derrubadas ou reformadas. Na cidade, pode-se conferir apenas os exemplares mais suntuosos. É no interior do Nordeste, nos estados de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba, em especial, que as platibandas populares não apenas

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ornamentos

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contraste

Nas casas mais abastadas, percebe-se maior rebuscamento e a presença de elementos ecléticos As duas edificações são boa amostra das diferenças entre as construções mais – ou menos – ricas

se mantiveram, mas foram ganhando diferentes feições, adaptando-se às novas escolas artísticas e criando um acervo arquitetônico que chama a atenção de gente de todas as partes, embora ainda seja um aspecto pouco estudado em sua especificidade.

estilos

No início, com adornos rebuscados típicos do Neoclassicismo e do Ecletismo, com o passar dos anos, as platibandas foram aderindo aos movimentos artísticos que surgiam – o Cubismo do espanhol Pablo Picasso e do francês Georges Braque; o modernismo brasileiro da Semana de Arte Moderna de 1922; e mesmo as linhas orgânicas da nova Capital Federal, que começaram a ser difundidas a partir de 1956, fizeram com que as platibandas mudassem, passassem a exibir formas mais lineares, simétricas, geométricas, cuja meta era “limpar” as fachadas. O artista plástico Raul Córdula, que chegou a se inspirar nessas construções na realização de trabalhos, diz que as platibandas encontradas nas habitações populares derivam, principalmente, do art déco, estilo decorativo amplamente difundido nas décadas e 1920 e 1930. “Elas são inspiradas no art déco ou são a sua diluição, pois o Nordeste não criou esse estilo, apenas o adaptou do modernismo europeu, movido pela racionalidade exacerbada, que chegou ao Construtivismo, ao Concretismo, ao Minimalismo, e que influenciou o mundo todo”, pondera Raul. Durante estudos realizados na década de 1980, quando coordenava o Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba, Córdula constatou que, no âmbito específico das habitações populares, a Revolução de 1930, com sua proposta de modernização sociopolítica, foi fundamental para a aparição das platibandas. Nesse período, houve um verdadeiro surto de modernização e de novas construções nas capitais brasileiras, que incluiu o Recife.

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“Essa verdadeira revolução transformou os meios de trabalho e os modos de olhar dos mestres de obras e pedreiros que faziam serviços nas capitais. Num momento seguinte, eles levariam essas transformações para as fachadas das casas do interior”, explica o artista plástico. “Esses mestres trabalhavam de forma intuitiva, não tinham qualquer conhecimento artístico, mas passaram a replicar as tendências que observavam na capital”, argumenta. As intervenções decorativas são não apenas frequentes, mas

sobretudo marcantes no interior pernambucano. Em qualquer parte, no Agreste, no Sertão ou na Zona da Mata encontram-se expressivos conjuntos do que se convencionou chamar estilo vernacular, ou seja, relativo à arquitetura espontânea, popular.

lirismo e poesia

A fotógrafa baiana Anna Mariani, radicada no Rio de Janeiro, percebeu a beleza singela desse acervo desde 1976, quando começou a registrar as fachadas caiadas das casas interioranas

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em seis estados nordestinos. Com olhar sensível e diferenciado, intuiu que as pinturas realizadas por esses mestres-obreiros populares formavam um conjunto dotado de lírica e colorida geometria. O trabalho redundou na publicação, em 1987, do livro Pinturas e platibandas, a mais completa obra visual sobre o gênero no Brasil. “Fachadas pintadas à cal, e pigmentadas com platibandas e enfeites, são constantes nas moradas populares do Nordeste, tanto no litoral quanto no sertão. Formam faixas nas ruas e praças dos vilarejos, cidades e periferias das capitais. Esse ‘correr de casas’ me encanta desde a infância”, escreveu a autora, no posfácio do livro, que enfoca, basicamente, as construções vernaculares com influência do art déco. Mais de três décadas depois do primeiro clique de Anna Mariani, as platibandas continuam em pé no interior pernambucano. Felizmente, elas são vistas em toda parte, apesar de, em algumas cidades, já se perceberem ameaças a esse patrimônio popular. As principais características dessas construções interioranas são os

os mestres trabalhavam de forma intuitiva, não tinham conhecimento artístico, e passaram a replicar as tendências da capital padrões geométricos encontrados nas fachadas; inclusive, algumas platibandas parecem ter sido redesenhadas com a intenção de criar formas geométricas específicas. Em Gravatá, município do Agreste pernambucano, elas têm presença marcante na área central, onde se misturam a casarões com telhados serrilhados, sobrados e prédios modernos. O mesmo acontece em Bezerros (mesma microrregião), que possui ruas inteiras com a presença desse elemento construtivo. Mas lá, diferentemente de outras localidades, elas são vistas em casas com pavimento elevado, nas quais se utiliza uma escada como entrada. Em Pesqueira, também no Agreste, as platibandas simples se

misturam aos casarões ecléticos, que ostentam ornamentos rebuscados. Na vizinha Poção, uma curiosidade: diversos estabelecimentos comerciais mantiveram o nome pintado nas platibandas, bem ao estilo do que se fazia na década de 1930. No Sertão, a cidade de Afrânio reúne exemplares coloridos, no melhor estilo vernacular. Em Goiana, no Litoral Norte do estado, elas também são abundantes. Ainda no Agreste, outro município que exibe belos exemplares é Brejo da Madre de Deus. Nele, encontramse desde construções simples até platibandas mais rebuscadas, vazadas, algumas com presença de azulejos portugueses do século 19. Um acervo rico e peculiar. Em Brejo, a Fundarpe vem atuando na preservação do casario histórico, que conta com platibandas de diferentes períodos. A equipe da Fundação afirma que, após anos de pesquisas e inventários, o tombamento do conjunto da cidade chegou à fase final; aguarda-se apenas a aprovação de lei estadual, a ser editada em breve. “O processo de tombamento da cidade já foi aprovado pelo Conselho

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Estadual de Cultura, mas, conforme exigência da legislação vigente, necessita, para ter caráter definitivo, de iniciativa governamental. Estamos na última etapa para garantir o subsídio à elaboração dessa lei, através do Plano de Preservação, concluído pela Fundarpe em 2010”, explicou Daniella Esposito, arquiteta da equipe responsável pelo acompanhamento do Plano.

Formas e cores

Mas é na agrestina Belo Jardim que as platibandas se destacam pela singeleza de formas, cores e temas, chamando a atenção tanto pela beleza do conjunto arquitetônico quanto pela necessidade de sua preservação. O município, que se autodenomina a “cidade das platibandas”, possui um dos maiores acervos nordestinos, com centenas de casas do gênero espalhadas pelos bairros e mesmo nos seus distritos, a exemplo do que se pode ver em Serra dos Ventos, onde existem exemplares multicoloridos. Se esbanja variedade, a cidade também tem se destacado pela rapidez com que vem executando o desmonte

desse patrimônio. Em visita à cidade em abril deste ano, a reportagem da Continente percebeu que, em várias ruas, as casas, originalmente pintadas com cal, em cores suaves, estão sendo descaracterizadas pela inserção de diferentes acabamentos. Alegando praticidade e facilidade de manutenção, os proprietários das casas estão revestindo as fachadas com cerâmicas. Vários moradores consultados sobre o porquê da mudança defenderam que a cerâmica “valoriza o imóvel e evita que se precise pintar a casa anualmente”, como explicou Juneide Silva, moradora da Rua Francisco Frade. Ela está à frente de uma reforma pela qual a parede frontal de sua casa está sendo revestida com o material. A moradora, como outros entrevistados, não valoriza a identidade visual que as platibandas conferem ao local. Consultada sobre a possibilidade do casario de Belo Jardim também ser transformado em patrimônio estadual, a diretora de Preservação Cultural da Fundarpe, Célia Campos, explica que isso é possível pela abertura de processo de tombamento, que pode

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Vernacular

Os desenhos são de autoria de mestres de obras, que os importaram das construções da capital

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ser solicitado ao Secretário de Cultura, por qualquer pessoa física ou jurídica. O processo, após análise técnica da Fundarpe, seria enviado ao Conselho Estadual de Cultura, que se posicionaria pela aprovação ou não do bem. A artista plástica AnaVeloso, que trabalha com o projeto Estado da Arte, na Serra dos Ventos, em Belo Jardim, reagiu favoravelmente às caraterísticas construtivas do acervo do município. “Deparei-me com uma galeria de arte a céu aberto, encantei-me com um número incontável de belas platibandas, ruas inteiras e casas pintadas de cal que aquarelavam a paisagem”, lembra. A beleza do conjunto fez com que Ana fizesse exposições e palestras nas comunidades, e até tentasse, juntamente com a prefeitura local, um projeto de tombamento. Mas afirma que tem encontrado entraves, e que teme pela perda do patrimônio. “Elas estão sendo devastadas. Só sei que é preciso correr, caso contrário, não vai sobrar nada.”

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FOTO: marcOs andrĂŠ

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TODO DURO Ele ainda quer (e muito) estraçaiá O boxeador pernambucano, que viveu seu auge nos anos 1990, tem sua trajetória de vitórias e provocações revista em documentário texto Thiago Lins

ele é tão “modesto” quanto Romário, tão “talentoso” quanto Rocky Marciano e tão “carismático” quanto Cristiano Ronaldo (ok, quem sabe seja, ainda, tão controverso quanto o “animal” Edmundo, dadas as qualidades que costuma atribuir a si mesmo). Mas Todo Duro é o cara. Ou pelo menos insiste que é. Prestes a ter sua trajetória “de muito pau” revista no documentário Eu vou estraçaiá, dirigido por Tiago Leitão, o boxeador – que não revela a idade e diz que ainda vai viver muito até “morrer com 36”– não mudou nada. Não perdeu a mania de interromper entrevistas para desafiar meio mundo. Nem Vitor Belfort (meio-pesado de outra modalidade, o UFC) escapa. A provocação ao lutador é apimentada: “Quero a mulher dele de troféu. Mas não vou bater nela, só pegar”, esclarece. Belfort é casado com a turbinada Joana Prado, a ex-Feiticeira, uma “assistente de palco” que ocupou o imaginário poluído de quem cresceu na passagem dos anos 1990 para 2000. É, Todo Duro não mudou mesmo. Desde o começo da carreira, ele costuma dedicar mais atenção às mulheres dos adversários que aos próprios. O maior deles, o baiano Reginaldo Holyfield, ex-campeão brasileiro, sul-americano e mundial dos supermédios (categoria que vai até 76 kg), travou brigas antológicas com o pernambucano, tanto dentro quanto fora do ringue. (Claro, Todo Duro faz questão de sublinhar que a mulher de Holyfield o teria traído com ele.) Os dois protagonizam uma rivalidade que atravessa o tempo, nos moldes Pelé versus Maradona, ou Beatles versus Stones. O documentário, inclusive, conta com uma passagem hilária, em que TD visita uma casa funerária, munido de um documento, supostamente um atestado de óbito, à procura de um caixão para o rival. Nos anos 1990, durante uma entrevista coletiva que precedia o combate, TD, à sua maneira, interrompeu a coletiva acertando em cheio um tapa no peito de Holyfield, que respondeu com uma sequência de jabs e uppers. Os adversários só pararam a briga com a intervenção de suas respectivas equipes, que se arriscaram em meio aos supermédios. Depois, irado, Holyfield afirmou que só iria “bater na boca (de TD) para ele engolir toda a empáfia”.

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Todo duro nunca vai esquecer Holyfield, seu arquirrival. Embate registrado em 2001

Boxeador "encara" o documentarista Tiago Leitão

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Holyfield bem que tentou (venceu o pernambucano duas vezes), mas o rival não engoliu a tal empáfia. Até hoje, lembra o ocorrido com doses de recursos dramáticos. Afirma veementemente que o baiano “voou” com o tapa. “Acabei com a carreira de muito boxeador na Bahia”, reforça o excampeão do WBS (World Bridge Series, campeonato mundial da federação homônima). “Naquela época (os anos 1990), quem mandava na Bahia era ACM, mas quando chegava lá eu era o cara. Eu mandava ali”, completa o pernambucano, que “nunca” foi nocauteado. Na verdade, chegou a “jogar a toalha”, numa luta clássica com o arquirrival, na terra do axé. Mas ele tem uma explicação para esse fato isolado: “Tinha gente com revólver perto do ringue, era muita pressão”. Ah, sim: não foi no braço.

tAPA no oUViDo

Ainda sobre Holyfield, o atleta afirma que o baiano ficou “meio doido, de tanto pau que eu dei no pé do ouvido dele”. De fato, alguns vídeos com o baiano no YouTube (o da briga durante

a entrevista já contabiliza mais de 400 mil acessos, um clássico) mostram uma oralidade comprometida, especialmente quando TD, piadista de plantão, faz alguma surpresa. Numa dessas, descobriu que Holyfield estava participando de um programa de auditório. Não perdeu tempo. Conseguiu o número da emissora, entrou no ar (o programa era ao vivo) e começou a provocar Holyfield – e a mulher dele, como sempre. O baiano, aparentando um mix de choro com embriaguez, não consegue responder à altura e o episódio é encerrado pelo apresentador: “Holyfield não está em condições nem de falar”, atesta o jornalista. “Quando Holyfield escuta minha voz, ele perde a dele. Ele sabe que fui eu que arruinei a carreira dele”, diz o oponente. Quanto à suspeita do baiano ter enlouquecido, Todo Duro faz pouco caso: “Todo mundo que eu nocauteei, endoidou”. E, reza a lenda, foram muitos: conta-se que, ainda nos tempos da capoeira (esporte que ele praticou na adolescência, antes do boxe), o atleta

mandava “dois, três (adversários) por dia pro hospital”. O bom e velho Todo Duro encerra o “capítulo Holyfield” chamando o mesmo “e a Bahia todinha pro cacete”. Repete, pela enésima vez, que pegou a mulher de Holyfield e que nunca vai passar dos 36 anos, sugerindo que seja feita uma fila de “cinco, seis baianos pra eu estraçaiá tudinho”. O fato: os baianos teriam medo dele. Seria esse o caso de outro campeão baiano, o Popó? TD, que não deixa passar nada, levanta a voz e olha para o gravador, de dedo em riste: “Eu vou estraçaiá você de pau. E provar pra Bahia toda que você não é Popó. É o Popozinho, Popozinho (imprimindo uma delicadeza, na voz, de fazer inveja à atriz Zooey Deschanel)”. Todo Duro tem um dom, com o qual nem George Foreman, nem Muhammad Ali (os dois maiores boxeadores da história) foram contemplados: instantaneamente, ele transforma os adversários em “gafanhotos pra estraçaiá”. Mas se engana quem acha que sua lista de dádivas fica por aqui.

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fábio monteiro/divulgação

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“Eu sou um psicopata, até hoje dou sete, oito (imagine o quê) todos os dias”, declara de peito aberto o pai de três filhas – com mulheres diferentes, como faz questão de ressaltar. O atleta, revelando sua faceta Charlie Sheen, acrescenta que, entre tantos relacionamentos que teve, chegou a manter três simultaneamente. Sobre as filhas, afirma que são “todas gatas”, o que lhe propiciou o “pagamento de todos os pecados”. Diz-se que, nos tempos áureos, as jornalistas que quisessem entrevistar Todo Duro eram submetidas a uma sabatina: ele gostava de saber antes o que o esperava. Mas, seja a mulher loira ou morena, alta ou baixa, repórter ou fã, ele parece tratar com o mesmo respeito reservado aos “gafanhotos”. O lutador jura que, até hoje, volta com “três ou quatro periguetes” de qualquer viagem que faça. “É muita lapada”, gaba-se, usando a gíria nordestina para algo não mencionável. Ele pode até ser um abençoado, porém deve, ainda, ter algum segredo para tanta performance (sob toda e qualquer acepção da palavra), mas

nos priva desse furo de reportagem. Revela, apenas, que tem a própria Caixa de Pandora. Um livro, ditado por ele e redigido por uma colaboradora. Algo como um manual para futuros campeões, que tem apenas 40 páginas (além de tudo, o camarada tem poder de síntese!). Por enquanto, tudo o que o nosso Sun Tzu pode adiantar é que quem colaborar com o desenvolvimento do livro “vai ficar rico”. Não bastasse conter toda a sabedoria necessária à formação de qualquer campeão, Todo Duro afirma que o livro vai “abalar o mundo”.

PeLA FAMA

Enquanto o mundo está em compasso de espera para o lançamento do bestseller porradeiro, o astro vai ocupando espaços, estrelando o documentário. “Eu sempre quis algo que me desse fama e destaque”, assume TD, empolgado em levar seu jeitão expansivo e magnético às telas. Tiago Leitão, o responsável pelo resgate da lenda local, se diz surpreso com a repercussão que o documentário alcançou antes mesmo da estreia. “Já

fomos para programa de TV, jornais em Pernambuco e em São Paulo, além de vários sites e revistas divulgando o filme”, destaca. O diretor conta que registrar o personagem era uma ideia antiga, ocorrida depois de testemunhar tantas lutas e “situações engraçadas” vivenciadas pelo boxeador. Leitão, outro morador de Casa Forte (bairro da Zona Norte recifense onde Todo Duro é figura fácil), comprava frutas na quitanda da família do atleta, aproximação que o fazia pensar mais e mais no futuro filme. Certo dia, estava discutindo os planos com os colegas da Opara Filmes, produtora que dirige. Mais tarde, a caminho de casa, avistou o atleta na calçada. Sem titubear, deu meia-volta no carro e fez contato. Estava fechada a parceria. “Daí para frente, foram algumas conversas de pesquisa, ajuste da equipe e preparação das gravações”, resume Leitão. Por último, o diretor sensível fala de seu astro durão: “Ele, realmente, é um personagem incrível”. É isso aí. Todo Duro estraçaia.

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QUINTETO Apenas uns caras “tirando um som”

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Chega aos 40 anos o grupo pernambucano que rompeu vários paradigmas na indústria fonográfica, entre os quais o de ter sido o primeiro conjunto-empresa texto José Teles

con ti nen te

História

no dia 26 de junho de 1972, a boate

carioca Monsieur Pujol, em Ipanema, esteve apinhada de celebridades. Nenhuma novidade nisso. Afinal, a Monsieur Pujol pertencia à dupla Miéle & Bôscoli, que produzia o primeiro show “adulto” de Roberto Carlos no Canecão. Mas aconteceu uma grande novidade naquela noitada, que trouxe para a casa noturna não apenas socialites, mas nomes ligados à música como Braguinha, Humberto Teixeira, André Midani, os radialistas Big Boy e Ademir, Mister Eco (jornalista e jurado do programa Flávio Cavalcanti), Roberto Menescal, Tárik de Souza. O motivo da festa: o lançamento do disco de estreia de um grupo pernambucano, ilustre desconhecido, um certo Quinteto Violado. O “um certo”, pois, com pouquíssimas exceções, ninguém entre eles tinha ainda ouvido a música do QV. O lançamento foi um acontecimento histórico na indústria fonográfica, a sua entrada na idade adulta. Até então nenhum conjunto (como então se chamavam as bandas) havia chegado ao LP, sem música gravada ou sem passar pelo estágio probatório do compacto

simples. E mais: o LP Quinteto Violado recebeu da Phillips um investimento para divulgação, inédito no Brasil. Dali a uma semana, o QV lançaria o álbum no Dimonico, outro badalado ponto da época, em São Paulo, também com a presença do grand monde da Pauliceia, e convidados de outros estados. Toinho Alves (baixista), Luciano Pimentel (bateria e percussão), Marcelo Melo (violão), Fernando Filizola (violão, viola, sanfona) e Sando (flauta, zabumba) haviam se tornado o Quinteto Violado apenas oito meses antes. Com exceção do flautista, eram músicos calejados, apesar da pouca idade (o mais velho era Luciano Pimentel, com 32 anos, o restante estava entre os 20 e 25 anos). Começaram em meados dos anos 1960, uns tocando em combos de samba-jazz, em musicais engajados, reflexo ainda do Movimento de Cultura Popular, ou até no iê-iê-iê. Toinho Alves e Marcelo Melo foram integrantes do Bossa Norte. Marcelo integrou o grupo Construção, que montara espetáculos tendo como base a cultura popular (dele faziam parte Teca Calazans e Naná Vasconcelos,

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que foi baterista do Bossa Norte). Fernando Filizola foi guitarrista do Silver Jets, o mais famoso grupo da Jovem Guarda pernambucana (que teve como vocalista Reginaldo Rossi). Luciano Pimentel tocou na Banda Municipal do Recife e em vários grupos de samba-jazz. Generino Luna, o flautista da formação inicial do QV, também era outro tarimbado músico dessa cena. Parte do QV trabalhava na recémnascida TV Universitária, criada como emissora modelo, com seu próprio grupo musical TVU-3 (Toinho Alves, Luciano Pimentel e Sérgio Kyrilos). Marcelo Melo, formado em Agronomia, voltava de um mestrado na Bélgica, com passagem pela França, onde

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Quando Gilberto Gil veio para o show no teatro do Parque, nos anos 1970, conheceu o som do grupo e passou a divulgá-lo de músicos (era neto por parte de mãe do inglês Jones Johnson, um dos pioneiros do frevo): “Quando me chamaram para tomar parte num conjunto nordestino, logo imaginei uma sanfona, um gibão e um chapéu de couro. De início, não quis aceitar, porque não sabia o que iria fazer, nesse meio, com a minha flauta. Quando vi a coisa de perto, descobri que não era nada disso, e larguei de lado Cat Stevens, James Brown, e toda minha formação de música americana, para me dedicar de corpo e alma ao trabalho”, conta Sando, que saiu do grupo em 1975, para se dedicar à música erudita, e atualmente mora em Natal (RN).

eDiÇÃo eSPeciAL

participou da gravação do LP Das terras do bemvirá, último disco de Geraldo Vandré. Fernando Filizola, entre outras virações, era produtor da TVU. Passaram a “tirar um som” juntos, até que José Pimentel, da TVU, sugeriu a Plínio Pacheco que eles tocassem no I Festival de Verão de Fazenda Nova, no Teatro de Nova Jerusalém, antes de uma montagem, dirigida por ele, da peça Calígula, de Albert Camus. No dia 21 de outubro de 1971, o grupo fez sua primeira apresentação em público, nem nome tinha ainda escolhido. José Mário Austregésilo, que apresentou a banda no palco, recorda: “Eu estava em Fazenda Nova com o ator de Calígula. Fiz a apresentação do Quinteto, mas não foi assim um show comum, em palco.

Eles tocaram em cima de uma grande pedra, para um público pequeno, atores, pessoas que trabalhavam na peça”. Quando terminaram o show, os cinco músicos, de instrumentos na mão, foram vistos por um bando de garotos que brincava ali perto, um deles gritou para os amigos: “Lá vem os violados!”. Eles gostaram do “violados”, e surgiu daí o nome Quinteto Violado. Pouco tempo depois, Generino deixou o grupo e, para o seu lugar, foi convidado Alexander Johnson, ou Sando, que tocou na sinfônica, e participou da nascente Orquestra Armorial, sob a batuta de Cussy de Almeida. Se os integrantes do grupo eram jovens, Sando era um pirralho. Estava com 13 anos. Talento precoce da flauta, vinha de uma família

De imediato, o Quinteto Violado recebeu o apoio do escritor Hermilo Borba Filho, que o indicaria para um projeto sobre música nordestina a Aluísio Falcão, um pernambucano que trabalhava na agência Marcus Pereira. O publicitário Marcus Pereira costumava fazer edições especiais de discos para distribuir como brinde aos clientes. Ele passou à história da MPB como o empreendedor que mapeou a música popular de todas as regiões do Brasil, numa das mais importantes séries da discografia nacional. No entanto, os louros do projeto deveriam ser de Aluísio Falcão. Ele foi da seção pernambucana do jornal Última Hora, assessor especial de Miguel Arraes, em seu primeiro mandato, e um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular. Dificilmente o paulista Marcus Pereira teria o mesmo conhecimento que Falcão do filão inexplorado que era a música de cultura popular do Nordeste. O disco com que Marcus Pereira iria brindar os seus clientes em 1972 seria o álbum quádruplo Música popular do Nordeste, e a empreitada seria entregue ao Quinteto Violado, com Hermilo Borba Filho e Aluísio Falcão contribuindo nas pesquisas. O Quinteto caiu em campo já sabendo onde buscar o que desejava. Foi um

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FoTos: reprodução/ ArQuIVo QuINTeTo VIoLAdo

con ti nen te

História

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disco que mexeu não apenas com a indústria fonográfica (que raramente se preocupou com tal tipo de música), mas também com a cabeça de toda uma geração que, pela primeira vez, teve acesso a cantadores de viola, emboladores, cirandas, frevos. Música popular do Nordeste foi tão bem-recebido pela crítica, com tantas premiações, que Marcus Pereira decidiu mudar de ramo. Fechou a agência e abriu uma gravadora. Iria mapear o Norte, o Sul e o Centro-Oeste, e daria à MPB vários álbuns antológicos, até cometer o suicídio em fevereiro de 1981, por problemas pessoais. O trabalho realizado sob encomenda para Marcus Pereira carimbaria o passaporte do Quinteto Violado para o talento reconhecido entre os especialistas da MPB (o disco somente seria comercializado em 1973). Porém, fundamental para o sucesso do grupo foi a volta de Gilberto Gil da temporada forçada na Inglaterra, que durou de 1969 a 1971. O primeiro show de Gil, no Brasil, aconteceu no Teatro do Parque, tendo como base o LP Expresso 2222. O baiano tem um carinho especial pelo Recife, cidade onde realizou a primeira temporada do seu disco de estreia, Louvação, em 1965 (antes do lançamento pela Phillips, em

com o patrocínio de instituição financeira, o grupo foi pioneiro na revitalização do carnaval de rua do Recife e de olinda 1966). Gil passou mais de um mês na cidade, foi levado para conhecer manifestações da cultura popular, na Zona da Mata, e em Caruaru (quando voltou para São Paulo, começou a elucubrar o que seria batizado de Tropicalismo), e um dos músicos que o acompanhou na temporada que realizou no Teatro Popular do Nordeste foi o baterista Luciano Pimentel. Quando Gil veio para o show no Teatro do Parque, conheceu o som do grupo e passou a divulgá-lo em entrevistas. Caetano Veloso nunca ouvira o Quinteto Violado, mas numa extensa entrevista à badalada revista carioca O Bondinho, ele declarou: “No Recife, Gil viu coisas incríveis. Um grupo chamado Quinteto Violado, ou Quarteto Violado, não sei, que é um coisa extraordinária”. Foi a senha para a Phillips assinar com o grupo, instado pelo produtor Roberto Santana, que acompanhou Gil na

sua passagem pelo Recife em 1965, e estava com ele em 1972, no show da volta. Baiano de Irará, cidade natal de Tom Zé (de quem é primo), Roberto Santana dirigia a Phillips na região Norte/Nordeste, e seria o produtor do Quinteto Violado (e mais do que isso, já que também compunha, e escreveu textos como o do espetáculo A feira, em 1974).

MAtoLÃo De SUceSSo

A Phillips não teve do que se arrepender pelo que gastou para promover o QV. O disco esgotou nas primeiras semanas, a crítica foi unânime nos elogios. O QV virou, do dia para a noite, do grupo que fazia shows em casas de mecenas no Recife a fim de amealhar dinheiro para viajar para o Sudeste, numa das maiores atrações da MPB. Nisso, sua história se assemelha muito à do grupo Chico Science & Nação Zumbi. Ambos pousaram no “Sul Maravilha”como óvnis. Se o maracatu atômico de CSNZ era uma incógnita até para Liminha, produtor de Da lama ao caos (1994), o que o QV trazia em seu matolão também não era menos estranho. Música de cavalo-marinho, ciranda, embolada, repente, frevos: o Quinteto Violado contribuiu para que essas tradições fossem incorporadas

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Página anterior 1 PeLo MUnDo

Ilustração de Toinho Wanderley representa o sucesso do grupo

Nestas páginas 2 Rei Do BAiÃo

em 1973, o Quinteto e Luiz Gonzaga (C) fizeram turnê pelo país

3 berra-boi Com o disco, o Quinteto Violado passou de “grupo regional” à MpB

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ao idioma da MPB, e cantadas do Oiapoque ao Chuí. Sua música gerou, por sinal, como ocorreria com Chico Science & Nação Zumbi, um interesse de músicos jovens pelas manifestações populares de suas regiões, levando ao surgimento de grupos assemelhados Brasil afora, como Bolo de Feira (SE), Tapes (RS), Banda de Pau e Corda (PE). O que estourou nacionalmente, no entanto, foi um arranjo com toques jazzísticos da “ene” vezes gravada Asa branca (de Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), até hoje a assinatura do conjunto. Coincidentemente, em 1972, Luiz Gonzaga “voltava para curtir”, num show histórico no Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, que o trouxe para perto da juventude universitária. O QV era um grupo de jovens universitários (com exceção do adolescente Sando, que, naturalmente, parou os estudos no terceiro ginasial, uma das razões pelas quais deixou o QV). Em 1973, o quinteto e Luiz Gonzaga fizeram disputadas turnês pelo país. Com eles viajava Dominguinhos, que começava a ser conhecido por ter participado do show Luiz Gonzaga volta

pra curtir e por ter entregado a Gilberto Gil o maior sucesso de sua carreira, Só quero um xodó (de Dominguinhos e Anastácia). Viajava também Gonzaguinha, ainda chamado de Gonzaga Jr. – num conturbado início de reaproximação com o pai adotivo. Berra-boi (1973), A feira (1974, de que fez parte a então desconhecida paraibana Elba Ramalho), e Folguedo (1975) foram os discos que demarcaram o espaço do QV na MPB, que tornaram facilmente identificáveis gêneros musicais até então restritos aos que os faziam, e que levaram à primeira mudança no grupo, com a saída de Sando e a entrada de Zé da Flauta. A intensa rotina do QV cansou o adolescente Sando. Em 1974, o grupo comprou um ônibus no qual passou a viajar pelo país.

PÉ nA eStRADA

Entre 1974 e 1983, contabilizou o recorde de 1 milhão de quilômetros rodados (mudando de veículo, naturalmente). A compra do ônibus foi bastante comentada na época. O QV foi o primeiro grupo musical brasileiro a viajar em seu próprio ônibus e

também o pioneiro em alterar as regras do show business. Foi, por exemplo, o primeiro grupo musical que nasceu como empresa, a ser pessoa jurídica. O primeiro também a criar uma fundação. Outros artistas antes do QV fizeram shows e turnês patrocinados por empresas privadas, como Luiz Gonzaga, cujo nome por muito tempo foi relacionado ao do Colírio Moura Brasil. Por quase 10 anos, o quinteto manteve uma relação com o Banorte, que lhe rendeu críticas de puristas, entre os quais o crítico José Ramos Tinhorão, por ter impressa na contracapa de um disco a logomarca do banco. Patrocinado pelo Banorte, o QV viajou pelo Brasil, fazendo concertos, gratuitos ou beneficentes, tanto em teatro quanto em praça pública. Com patrocínio da instituição financeira, foi pioneiro na revitalização do carnaval de rua do Recife e de Olinda, com o Bloco Azul, que saía pelas duas cidades, em um caminhão, levando o grupo e uma orquestra de frevos, a arrastar uma multidão de foliões, que bricavam gratuitamente no bloco, bastando para isso apenas fazer sua inscrição no escritório do grupo, nas Graças. O grupo era irrequieto, e não se ateve apenas a retrabalhar o folclore nordestino em geral, e pernambucano em particular. Gravou a seguir a Missa do vaqueiro, um evento relativamente novo (começou em 1976); iniciou as aulas-espetáculo, em Pernambuco, num convênio com a Secretaria de Educação do Estado, e depois pelo Brasil, em convênio com a Funarte. Fez as primeiras turnês internacionais, no Midem, na França, e no Peru, e uma antologia do baião, em 1977 (faria dois anos depois o Pilogamia

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reprodução/ ArQuIVo QuINTeTo VIoLAdo

do baião). Despreocupados com o mercado, arquitetaram o conceitual Até a Amazônia, baseado na saga do repentista Pinto do Monteiro que, nos anos 1940, trocou o sertão paraibano pela selva amazônica, onde foi trabalhar como seringueiro. Foi se reformulando, adaptando-se aos tempos, mudando os integrantes. Zé da Flauta saiu do grupo em 1981, para entrada de Ciano Alves. Em 1983, Luciano Pimentel deixou o QV, e foi substituído por breve tempo pelo ex-Ave Sangria Israel

con ti nen te

História Semente, cuja vaga foi assumida pelo mineiro Márcio Batista, que saiu em 1985, para entrada de Kiko, cearense do Crato, que ficaria no grupo de 1985 a 1989 e, desde 1996, participa do QV como músico convidado. Roberto Medeiros entraria para o QV no mesmo ano. Já o sanfoneiro e violeiro Fernando Filizola saiu do Quinteto Violado em 1984. Gravou um disco, dois anos depois, Tá cheirando a coisa boa (Polydisc). Desde então, tem trabalhado com artes plásticas e como produtor, em Natal. Dudu Alves, filho de Toinho, entrou no grupo em 1991. Toinho Alves, Marcelo Melo, Ciano Alves, Roberto Medeiro, e Dudu Alves foram a formação mais duradoura do Quinteto Violado, infelizmente obrigado a mudá-la com o prematuro falecimento de Toinho, de um infarto, em maio de 2008. Em seu lugar, entrou o músico Thiago Fournier, que sairia para a entrada de Sandro Lins. A partir deste mês, o Quinteto Violado comemora suas quatro décadas. O primeiro evento em torno dessa celebração é a exposição Lá vêm os Violados!, que permanece aberta à visitação de 3 a 31 de maio, no Centro Cultural dos Correios (Avenida Marquês de Olinda, Bairro do Recife), com fotos, todos os discos, filmes e debates em torno da trajetória do “conjunto”. No contexto da exposição nos Correios, também ocorrerá o Concerto 40 Anos de Quinteto Violado (dias 5, 6, 19, 20, 21, 26, 27 e 28 de maio, sempre às 19h, com entrada gratuita).

ESTILO Eles eram muito estranhos para os ouvintes brasileiros No início dos anos 1970, nem nordestinos de classe média nem moradores de outras regiões do país se interessavam pelas músicas tradicionais da região

ouvindo-se hoje os primeiros

quatro discos do Quinteto Violado, pode-se apreciar a música, o talento dos músicos, e dificilmente o ouvinte irá estranhar as harmonias, os temas das letras, os ritmos contidos nos CDs. Mas não foi bem isso o que aconteceu no já longínquo início dos anos 1970. A informação que o grupo levou em seu

matolão era inteiramente nova para os “sulistas”. Aliás, não apenas para esses. Em sua própria terra, manifestações populares como cavalo-marinho, maracatu, variações de cocos, não chegavam à classe média. Apenas a ciranda tornara-se mais conhecida, por ter virado moda no começo da década, e era dançada pela burguesia no Pátio

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4 nA RUA Quinteto é cercado por transeuntes em show no Mercado de são José

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de São Pedro, e na Praia do Janga, um modismo que logo passou. O Nordeste que se conhecia no Sul e Sudeste do país era o de filmes do Cinema Novo. O álbum quádruplo Música popular do Nordeste foi um dos mais influentes da história da indústria fonográfica brasileira. O que o Quinteto Violado, responsável pela pesquisa, incluiu nos quatro LPs era um mundo sonoro que grande parte do país desconhecia por completo, até porque, com exceção de pesquisadores, essa música era ignorada pelas gravadoras, inclusive pela Rozenblit, que só a partir daí passaria a gravar a cultura popular nordestina com mais frequência. Foi com esses quatro discos que jovens músicos, inclusive nas capitais nordestinas, tiveram contato com modalidades de cantoria de viola, martelo agalopado, galope à beira mar, oito pés a quadrão, meia quadra, emboladas, cocos não estilizados. Esse

álbum, que teve grande aceitação pela crítica especializada do Sudeste, de certa forma, abriu caminho para o próprio Quinteto Violado, que trabalhou nele, antes de ter o primeiro disco lançado. Mesmo assim, tanto público quanto jornalistas sentiam dificuldades para decifrar aquele óvni surgido de uma hora para outra na MPB. Até o “Violado” do nome causava controvérsias, muita gente supunha que tinha a ver com “violência”. No Jornal de Minas (21/6/1973), uma matéria sobre o show que o QV faria em BH foi iniciada assim: “O nome do Quinteto é Violado, mas não existe violência nisto, é um trabalho que sai espontâneo de cada um, ligado à vida de cada um”. Não raro, o repórter tinha uma leve noção do que era ou de onde exatamente vinha o Quinteto Violado. Uma jornalista mineira, no mesmo junho de 1973, perguntou numa coletiva: “O que vocês fazem tem alguma identificação com Luiz Gonzaga?”. Toinho Alves respondeu: “Claro que tem. O trabalho de Luiz Gonzaga é nordestino e tem muitas ligações conosco. As próprias composições dele são tocadas por nós”, uma pergunta redundante, se a repórter tivesse o disco de estreia do grupo, que abre com sua famosa versão de Asa branca (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira). O desconhecimento do Nordeste pelos jornalistas e público em geral levou o Quinteto Violado a chegar a um impasse com o espetáculo A feira. Como aconteceu nos dois discos anteriores, A feira foi levado ao palco como um musical, com ênfase no cenário, que emulava uma feira nordestina, com toda sua complexidade. Mas imprensa e plateia esbarraram diante da quantidade de informações que lhe foi servida (do espetáculo participaram a estreante Elba Ramalho e o cantor Ray Miranda, então bastante atuante na TV recifense). O produtor Roberto Santana foi o autor do texto, e de algumas músicas. E A feira continha realmente uma excessiva carga de Nordeste. Depois de tantas críticas negativas, Roberto Santana e os integrantes do Quinteto Violado repensaram o espetáculo, que se tornou um show musical, com o mínimo de

textos. Uma mudança que contribuiu involuntariamente para a carreira de Elba Ramalho, que continuou no Rio, e três anos depois estaria no elenco da badalada Ópera do malandro, de Chico Buarque. Apesar de alguns percalços, o Quinteto Violado, quando deixou a Phillips, em 1979, depois de gravar o LP Pilogamia do baião, tinha cumprido bem a tarefa a que se propôs. Bumba meu boi, maracatus, cocos, cirandas, frevos de bloco foram incorporados à linguagem da MPB no país inteiro. Até então, a música nordestina que se escutava no Sudeste era estilizada, com as exceções de praxe, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, e outros grandes do forró.

QUinteto VeRSUS QUARteto

Não foram poucas as comparações que se fizeram do Quinteto Violado com o Quarteto Novo. Surgido em 1966, para acompanhar Geraldo Vandré, o Quarteto Novo foi um supergrupo, formado por

o álbum Música popular do Nordeste é até hoje um dos mais influentes da indústria fonográfica nacional Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Theo de Barros e Airto Moreira. É certo que a instrumentação de ambos os grupos era semelhante, e o Quinteto Violado sofreu influência do quarteto (embora só tenha passado a usar teclado em 1991, com a entrada de Dudu Alves). A fonte onde beberam foi a mesma: o Nordeste. Entre os grupos, porém, havia uma diferença básica. Todos os integrantes do quinteto cresceram com aquela música, na capital, no interior. Enquanto, do quarteto, só quem conhecia bem parte aquelas manifestações era o alagoano Hermeto Pascoal, da interiorana Lagoa da Canoa. Heraldo do Monte, recifense, conhecia parte delas. Théo de Barros, carioca, e Airto Moreira, paraense, aprenderam nos discos. Tanto que, ao se tornarem independentes de Vandré, causaram mais impacto pelo inegável talento dos músicos, do que pelo repertório que tocavam. JoSÉ teLeS

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renato alarcão

con ti nen te#44

Em 1ª mão

MILTON HATOUM Entre exílios e paixões em Paris

Escritor amazonense está na fase final de seu novo romance, que deve ser publicado no segundo semestre, mesclando personagens reais e fictícios na capital francesa texto Daniel Piza

Desde 2005, quando publicou Cinzas

do Norte, Milton Hatoum não escreve nenhum romance. Em 2008, fez uma novela, Órfãos do Eldorado, e, em 2009, uma coletânea de contos, A cidade ilhada. Mas há três anos trabalha num romance novo, com título provisório de O lugar mais sombrio, que tem previsão de lançamento para o segundo semestre de 2011. Em se tratando de Hatoum, não se pode afirmar com certeza que o romance será lançado, apenas que “tem previsão de lançamento”. Isso porque ele é

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um escritor cuidadoso e meticuloso e, mais ainda, um revisor exigente: está revendo o livro pela quarta vez. Para cumprir o prazo prometido à editora Companhia das Letras, reduziu a dedicação a crônicas e aulas e trabalha no livro novo em regime intensivo. Ainda assim, pondera: “Não sei se entrego até julho, não”. Num restaurante em São Paulo, no bairro de Higienópolis, onde viveu até alguns anos atrás antes de se mudar para Pinheiros, Hatoum falou sobre seu novo romance e seu método de

trabalho. Aos 58 anos, tem cinco livros publicados, premiados e traduzidos. Além dos três citados acima, escreveu Relato de um certo Oriente (1991) e o memorável Dois irmãos (2000), seu maior sucesso de crítica e público, com 120 mil exemplares vendidos (o segundo que mais vendeu, Cinzas do Norte, está em 50 mil exemplares). A espera de, pelo menos, seis anos pelo novo romance, portanto, está dentro de sua média – e dentro de sua absoluta aversão a fazer média, a escrever um livro atrás do outro como se seu ritmo fosse esse. Hatoum nunca deixa de lado a autocrítica; quer sempre chegar aonde não chegou. E aonde quer chegar com o novo romance? Os críticos midiáticos, que insistem em rotular os autores de acordo com temas e preconceitos, vão levar um susto: O lugar mais sombrio não se passa em Manaus, nem sequer se refere à Amazônia. Mas Hatoum não fez essa mudança de cenário em relação a seus quatro primeiros livros para mostrar aos maus analistas que não é um escritor “regionalista”. Afinal, já em seus contos havia boa parcela de páginas distribuídas em outros endereços. E é de um desses textos, Bárbara no inverno, que se desdobra a história do novo romance, que se desenrola em Paris do final dos anos 1970 ao final dos anos 1980 e envolve personagens exilados, como brasileiros e cubanos, e sua relação com franceses. “É um livro sobre exílio e paixão em Paris”, define. É o primeiro romance de Hatoum narrado por uma mulher, uma tradutora francesa que morou na América Latina e divide seu coração entre um brasileiro e um cubano. O autor conta que é seu livro com mais personagens até agora e que, apesar de ser menos descritivo do que Cinzas do Norte, por exemplo, tem um grande teor realista, pois identifica a geografia da capital francesa (Hatoum comprou mapas para checar ruas e localidades com precisão) e inclui figuras reais como artistas e autoridades do período (Carpentier, Lam, políticos franceses e cubanos etc.). Em diversas ocasiões, não à toa, Hatoum já falou de sua admiração por Flaubert, especialmente pelo Flaubert de A educação sentimental. A atitude literária de Flaubert, seu cultivo da palavra exata e

do distanciamento moral, é a principal inspiração de Hatoum. O livro tem outras inspirações, claro. Uma delas é o ensaio do intelectual palestino Edward Said sobre o exílio, sobre a condição do desterro, do lugar incerto, do “amador” que nunca se sente em casa, que busca dominar um idioma que não é o seu (daí que as metáforas da tradução e do exílio se encontram), e tudo isso potencializa tanto seus dramas como suas possibilidades. Mas a principal fonte de Hatoum, novamente, são suas memórias. O romance tem muito de autobiográfico, pois o escritor não apenas viveu na Europa entre exilados e tradutores, mas também conviveu com o engajamento político desde cedo: aos 15 anos, em Brasília, foi detido durante um protesto contra a ditadura militar. Seus romances sempre partem de experiências de seu passado e as recriam com uma densidade que

esse será o primeiro romance do autor narrado por uma mulher e sua obra com maior número de personagens vai da circunstância histórica e social até as ressonâncias míticas. Ele trata de afastar logo a classificação de “romance político”, embora concorde que essa tradição é fraca no Brasil – com exceção de livros como Reflexos do baile, de Antonio Callado – em comparação com a literatura argentina ou chilena. Hatoum também não quer que o romance seja visto como “geracional”. O foco, diz, não é a política ou a frustração de uma geração sonhadora, mas “a impossibilidade de misturar esses dois fogos, o da política e o da paixão”, como a narradora francesa experimenta na própria pele ao se envolver com o engajado cubano. O texto conta como as relações amorosas ficam ainda mais conturbadas num contexto de paixões ideológicas, no conflito entre utopias individuais e coletivas. “O lugar mais sombrio é no coração”, diz, no final do livro, a narradora.

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DIVUlGaÇão

Entrevista

MILTON HATOUM UM PRIMEIRO NARRADOR FEMININO nesta entrevista concedida para a Continente, Hatoum não se abstém de comentar o estado atual de uma geração que afinal chegou ao poder, bastante transformada, inclusive no Brasil; e as revoltas da juventude nos países do norte da África e do Oriente Médio. Também comenta o fato de que três de seus livros estão sendo filmados por diretores de renome. Tal interesse confirma não apenas o alcance de Hatoum entre o público leitor, que o converte no romancista brasileiro mais respeitado da atualidade, mas também a força de suas narrativas, que transcendem seu tempo e lugar pela abrangência de seu olhar e estilo. continente Você sempre faz muitas revisões em suas obras, não? Que tipo de corte faz? Mario de Andrade disse que primeiro escrevia, no automatismo, depois cortava.

MiLton HAtoUM É assim comigo também. No caso do Cinzas do Norte, cheguei a fazer 10 revisões. São cortes pontuais, de palavras excessivas, não cortes temáticos ou de personagens. Corto os disparates, as anacronias; coisas da linguagem mesmo. Prefiro deixar o texto fluir e depois limpar. Esse romance ficou maior que Cinzas, mas quero que fique menor. Acho que o único livro meu que saiu de primeira, mais rápido, foi Órfãos do Eldorado. Fazia tempo que eu tinha a ideia de escrever uma história sobre esse mito.

aulas, fazendo traduções, convivendo com exilados brasileiros e cubanos.

continente O lugar mais sombrio é o primeiro romance seu que se passa fora de Manaus. Por algum motivo em especial? O cenário é só Paris? MiLton HAtoUM Sim, é um livro sobre exílio e paixão em Paris. Mas não é para evitar repetir Manaus ou algo parecido, e, sim, porque a história há muito tempo mexe comigo, pelas possibilidades que ela tem. É um romance narrado por uma francesa que morou no Rio e em Buenos Aires, tem um amante brasileiro e faz tradução de autores hispanoamericanos. Também traduz os textos de um amigo cubano, então é um livro sobre Cuba também. Ela conta em paralelo as histórias desse amante e desse amigo.

continente E você? DAnieL PiZA Estou no primeiro grupo. Acredito em transformações, mas acho que utopias só existem no horizonte das possibilidades. Não acredito em socialismo. Todos os sistemas são criticáveis, claro, e me irrita o que é injusto, desumano, brutal. Hoje, porém, vejo uma geração mais jovem que não se interessa pelo passado recente e acho triste.

continente Em que época exatamente se passa? É um livro político? MiLton HAtoUM Não, é sobre a impossibilidade de misturar esses dois fogos, o fogo da política e o fogo da paixão... Começa em 1978 e vai até 12 anos depois. Ao mesmo tempo, é um romance com bastante realismo, no sentido de que trabalhei com um mapa de Paris, situei fatos históricos, incluí personagens verdadeiros como Alejo Carpentier (escritor e diplomata cubano) e Wifredo Lam (pintor cubano). continente Você foi preso numa passeata em 1968? MiLton HAtoUM Fui detido e depois solto. Eu só tinha 15 anos e morava em Brasília. Morar ali mudou minha vida, fez-me ir embora para a Europa. O romance traz muito dessa experiência que tive em Paris e Barcelona, dando

continente Como você vê essa geração, hoje em parte no poder? MiLton HAtoUM Era uma geração “missionária”, né? Acho que hoje ela se dividiu. Há os que estão desiludidos, mas sem perder a esperança de justiça; há os totalmente desiludidos, os céticos; há os que ainda são ativistas, que trabalham em ONGs, por exemplo, mas sem vínculos partidários; e há os que viraram casaca...

continente E o que pensa das revoltas no mundo árabe? Surpreenderam? MiLton HAtoUM Não muito, na verdade. Aquilo ia explodir a qualquer momento. O governo Mubarak foi terrível. Chegava a deportar opositores para serem torturados em outros países. Um amigo egípcio, que mora no Brasil, me disse que isso tudo estava prestes a acontecer, que só ia depender das Forças Armadas. Ele mantinha contato com seus amigos do Cairo pelo Facebook, pessoas de 20 a 45 anos que acompanham a TV Al Jazira e querem democracia. E os EUA vão ter de optar, agora, entre Israel e o petróleo... continente Há três livros seus em processo de adaptação para o cinema. Como vê isso? MiLton HAtoUM Acho ótimo, e os diretores estão animados também. O Luiz Fernando Carvalho já está com o roteiro de Dois irmãos, escrito por Maria Camargo, que talvez participe dos outros. O diretor de Órfãos do Eldorado será Guilherme Coelho, o de Relato de um certo Oriente, Marcelo Gomes. São grandes profissionais. Veremos, mas adaptações demoram.

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NOVA SAFRA Um jeito diferente de fazer cinema Geração contemporânea de realizadores se destaca em importantes festivais nacionais e oferece um olhar esteticamente diferenciado dos já consagrados diretores do país texto Luiz Joaquim

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con cinema ti nen te fotos: divulgação

em 19 de outubro de 2010, quando o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – o mais tradicional do país –, em sua 43ª edição, anunciou a seleção de longas-metragens em competição, algo diferente era sinalizado. Tratava-se da relação de nomes dos diretores que iriam disputar o Troféu Candango. Dos seis concorrentes, apenas um deles, João Jardim, era razoavelmente conhecido pelo público por trabalhos anteriores (Janela da alma, 2002; Pro dia nascer feliz, 2005; Lixo extraordinário, 2010), e isso por seus filmes terem sido projetados em salas de cinema. Seu novo filme no Festival de Brasília, Amor? (lançado comercialmente no dia 15 de abril), também era o único com rostos familiares no elenco: Lilian Cabral, Eduardo Moscovis, Fabíula Nascimento, Ângelo Antônio, Júlia Lemmertz. Não à toa, a sessão que o apresentou no festival foi a que registrou o maior número de pessoas na plateia, além de ter angariado, ao final do evento, o prêmio do público. Outro nome na lista com um histórico também considerável, tendo já circulado em festivais internacionais com documentários – mas ainda assim estranho ao espectador comum – era o de Eryk Rocha. Tenso em Brasília, o diretor de 32 anos exibia seu primeiro longa-metragem de ficção, Transeunte. Os outros nomes na disputa eram os dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande (por A alegria), dos mineiros Sérgio Borges (por O céu sobre os ombros) e Tiago Mata Machado (por Os residentes), e de Marcelo Lordello (por Vigias), cineasta radicado em Pernambuco. Cinco ilustres desconhecidos, em torno dos 30 anos de idade, que projetavam suas primeiras experiências num longa-metragem (com exceção de Marina e Felipe) no mais emblemático festival de cinema do Brasil. Essa exposição chamou a atenção da mídia tradicional para uma geração de cineastas que vem produzindo incessantemente, há cerca de 10 anos, um cinema cujo maior comprometimento é com suas inquietações a respeito do mundo contemporâneo e com as próprias possibilidades de linguagem que o cinema oferece. Sobre Vigias, Lordello afirma: “É fruto das reflexões de uma pessoa comum que sente seu entorno

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Uma das características dessa cinematografia é a dissolução dos gêneros, na qual classificações deixam de ser relevantes se modificar, de um habitante que assiste à desfiguração da cidade. Que é contra certas imposições de formas de vida que desconsideram as necessidades humanas”. O diretor de fotografia de Vigias, o cearense Ivo Lopes Araújo, reforça: “Sempre sou aberto a cada novo trabalho que assumo, e me abstenho de

questões políticas ou estéticas. O que importa ali é a construção do filme, e ela é sempre fruto de um belo encontro”. Ele mesmo tornou-se uma espécie de aglutinador nacional dessa geração, mais marcadamente ativa no Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Geras, Ceará e um pouco em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Talvez o maior reflexo disso tenha se mostrado na mais recente edição (a 14ª) da Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece anualmente em janeiro, na histórica cidade mineira. Lá, Ivo era responsável pela assinatura da fotografia de quatro longas em exibição. Além de Vigias e O céu sobre os ombros, ele fazia parte da equipe do pernambucano Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro, e

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Página anterior 1 SÍMio FiLMeS

Avenida Brasília Teimosa é o filme mais recente (2010) de gabriel Mascaro, autor do elogiado Um lugar ao sol

Nestas páginas 2 VIGIAS

o diretor Marcelo lordello diz que o filme reflete sobre as rápidas mudanças que desfiguram as cidades

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A ALEGRIA

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OS MONSTROS

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TRASEUNTE

longa de felipe Bragança e Marina Meliande estreou na 43ª edição do Festival de Brasília filme foi dirigido por luiz e Ricardo Pretti, guto Parente e Pedro diógenes Primeiro longa-metragem de Erik Rocha, apresentado em Brasília. diretor já havia participado de festivais internacionais com documentários

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do seu conterrâneo, Os monstros (2010), dirigido e atuado conjuntamente por Luiz e Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, integrantes do coletivo Alumbramento. Entre os pontos de interseção formal presentes em O céu sobre os ombros e Avenida Brasília Formosa, há os personagens não atores, numa espécie de performance do cotidiano de suas próprias vidas, para cujos resultados Ivo Lopes Araújo foi figura determinante. “Assim que terminou de gravar comigo, Ivo começou a rodar com Gabriel (Mascaro); chegou lá contaminado e ajudou na construção do filme pernambucano, assim como no meu”, afirma Sérgio Borges. A consequência, diz o cineasta mineiro, é que esses filmes conversam entre si. Uma “conversa” que gerou até uma análise do pesquisador Cezar Migliorin, no artigo Construção da cidade. Ainda sobre Tiradentes, registra-se que a mostra vem se apresentando não apenas como o principal palco de exibição, encontro e discussão intelectual da obra dessa nova geração que brilhou em novembro em Brasília, como também o palco central no qual se travam os primeiros contatos entre eles. No alargamento dessas relações, no encontro na cidade mineira, são geradas novas ideias, parcerias e produções. Os realizadores concordam que o evento tem sido uma peça fundamental para aproximar o público dessas obras e chamar a atenção da mídia sobre elas.

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con cinema ti nen te Marcelo soares/ esPecial Para a continente

divulgação/katásia FilMes

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Um de seus curadores, desde 2007, o crítico de cinema e realizador Eduardo Valente (responsável pela seleção de curtas-metragens, ao lado do crítico e cineasta Cléber Eduardo, que elege os longas) diz que, em 2011, a Mostra Aurora do festival, responsável por apresentar jovens diretores no início de sua trajetória, ganhou tratamento igual ao dado a grandes competições brasileiras, como Gramado e Brasília, no jornal O Globo. Gabriel Mascaro diz: “Tiradentes é um festival que espero o ano inteiro para estar lá. É quando nos surpreendemos ao encontrar obras com semelhanças de propostas e participamos de discussões profundas, que ultrapassam questões estéticas ou temáticas”. Felipe Bragança lembra que a mostra “teve o mérito nos últimos cinco anos de procurar os filmes por aspectos estéticos, acima de tudo, e não pelo potencial como produto de consumo”.

Sem cLicHÊS

O fotógrafo Ivo Lopes diz que hoje não é preciso esperar três anos para ver, por exemplo, um novo filme filipino. É só acessá-lo no computador. E diz que o cinema feito por esses jovens realizadores brasileiros é reflexo mundial de uma juventude que observa as mudanças ao seu redor com a urgência em que elas acontecem. Ainda que concorde que os filmes dialogam com o estado das coisas no momento em que vivem, Gabriel Mascaro alerta que isso não pode ser entendido como um “fetiche geracional”, e Bragança reforça, “as características que marcam esse cinema não podem se tornar um clichê do cinema-jovem-filme-barato”. O diretor de A alegria (exibido na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, em 2010) e A fuga da mulher-gorila (vencedor da Mostra Aurora, em Tiradentes, 2009) esclarece que há também, em comum, um diálogo cinéfilo com clássicos do cinema universal, em particular dos anos 1960 e 1970, misturado a uma digestão de aspectos do dito “cinema contemporâneo”. “Há ainda um tom de fábula, de sonho, que chama a atenção no panorama do começo dos anos 2000. As imagens do cinema nacional costumavam ser associadas ao desvelamento do ‘real’

brasileiro. Acho que nossos filmes driblam, enfrentam ou passam ao largo disso”, pondera Bragança. Sérgio Borges, integrante do coletivo Têia, de Minas Gerais, lembra que sua geração foi formada com a tecnologia digital, bem diferente das anteriores. “Nós editamos nossos filmes em casa, todos os integrantes da equipe dirigem, todos produzem e é assim que vai se formando essa construção criativa”.

aLcUnHa

Com a crescente exposição dessas produções, surgem novas discussões e, com elas, as polêmicas. Uma delas (leia a respeito na página 50) surgiu a partir de um texto do crítico Carlos Alberto Mattos, publicado em resposta a um artigo escrito anteriormente pelo próprio Felipe Bragança, que é também um respeitado crítico cinematográfico. Nesse contexto, uma expressão surgiu, designando

o cinema dessa geração: “novíssimo cinema brasileiro”, que já era pronunciada nos debates promovidos entre a crítica, os realizadores e o público na 14 ª Mostra de Tiradentes. Eduardo Valente explica que o termo não foi criado como definidor de uma geração. “Ele surgiu como nome de uma sessão de cinema mensal, que teve seis edições em um cinema no Rio de Janeiro (o Cine Glória), cujo site, Novíssimo Cinema Brasileiro, ainda está no ar. A ideia nunca foi ser restritivo, mas, sim, chamar a atenção de um panorama carioca bastante árido para alguns filmes que mal estavam sendo exibidos por aqui. Mas a sessão foi encerrada com o fechamento da sala, interditada para reforma; quando reabriu, já não fazia sentido”. Posteriormente, a ideia das sessões do Cine Glória, de certa forma, transformaram-se num evento chamado

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Semana dos Realizadores, coordenado por Valente e Lis Kogan, que acontece desde 2009, dias antes do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, em setembro. “Ficávamos impressionados com a falta de espaço local para uma série de filmes que admirávamos; e que até o Festival do Rio, com seu gigantismo de mais de 300 filmes por edição, parecia não se interessar”, lembra o curador Eduardo Valente, ressalvando, ainda: “Mas, de novo, a Semana também não se arvora do desejo de definir gerações nem nada assim”.

temPo DiStenDiDo

Essa redução do grupo ao termo “novíssimos” também não agrada ao realizador mineiro Affonso Uchoa, diretor de Mulher à tarde (2010). “Se a única coisa que pudermos retirar desses filmes brasileiros recentes for a confirmação de certo clima, ambiente e estilo contemporâneo, ficaremos

muito restritos; e os filmes acabariam morrendo de inanição. Claro que se poderia falar, entre outras coisas, do tempo distendido dos planos em A casa de Sandro (2009), Os monstros e Mulher à tarde, mas acaba por ser pouco, pois o importante seria pensar a que serve a distensão em cada um dos filmes; como esses tempos são articulados, o que o filme pretende construir, e por aí vai”, analisa. Gustavo Beck, diretor de A casa de Sandro, acredita que ainda é prematuro apontar semelhanças estéticas ou discursivas. Com relação a Os residentes (projetado também no programa Fórum do 61° Festival de Berlim), por exemplo, Gustavo diz gostar da obra de Tiago Mata Machado “não por se aproximar dos demais filmes, mas pelo contrário. Acho que esse filme faz o caminho oposto de todos, que se constrói num espaço que não tem referência entre nós”.

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gabrieL maScaro

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OS RESIDENTES

diretor é um dos entusiastas do Festival de Tiradentes, onde afirma encontrar afinidades de propostas estreia do filme de tiago Mata Machado no Festival de Brasília chamou a atenção de público e crítica

Ainda assim, Gustavo reflete que, mesmo sendo alguns desses filmes irmãos, apresentam uma filiação completamente indefinida, alguns dos quais com personalidade própria muito incisiva. “Mas acho que, de alguma maneira, eles estão se ajudando, somatizando-se, construindo um pequeno recorte de um cinema nos dias de hoje.” Já Valente se pergunta se há realmente o “novíssimo cinema brasileiro”, como grupo, geração, proposta estética. “Mas também acho que nos tempos de figuras como as do Cinema Novo, Cinema Marginal, Nouvelle Vague, viviam dizendo que eles não existiam. Ou seja, existem coisas que realmente ultrapassam os desejos, interesses, o domínio dos criadores no que se refere a como suas obras são recebidas, entendidas e historicizadas. E eu, particularmente, vivo tranquilo com isso.”

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con cinema ti nen te

debAte A crítica discute a renovação

Diante do processo de reinvenção do cinema nacional, especialistas refletem sobre questões cruciais para a produção independente

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Felipe bragança é celebrado por suas

análises fílmicas publicadas, antes, na revista eletrônica Contracampo e, posteriormente, na Cinética. Depois, teve sua carreira marcada pelas realizações que já somam a direção de três longasmetragens (dois deles, A fuga da mulhergorila e A alegria, coassinados com Marina Meliande; e um, Desassossego, fruto de

um coletivo experimental). Em março, Felipe publicou na coluna Prosa e Verso, de O Globo, o artigo Meu último texto de cinema, que originaria uma polêmica no meio cinematográfico, sobretudo com Carlos Alberto Mattos e Filipe Furtado. No artigo, Bragança contextualiza o cinema brasileiro da época em que criou seus primeiros textos, em 2000,

dizendo que “fora do Brasil, Walter Salles e Fernando Meirelles apareciam como os dois únicos do cinema brasileiro de ficção a conseguir uma aura em torno de seus filmes”, para, na sequência, anunciar seu desejo: “que entre o humanismo polido de Salles e o espetáculo habilidoso de Meirelles pudesse emergir outra

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forma, uma derivação mais arriscada e afiada de cinema que nos ampliasse esteticamente o horizonte”. Felipe cita Abbas Kiarostami, Tsai Ming-Liang e Manoel de Oliveira como nomes obrigatórios de encantamento e descreve o anseio de ver “aquelas questões cênicas, de luz, de tempo e de montagem ecoarem ou serem digeridas pelos longas realizados no Brasil”. Mas, desde 2006, diz o crítico, “aquela velha agenda da ‘renovação de linguagem’ do cinema brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em filmes”. Mais adiante, pondera: “Pela primeira vez, em 20 anos, talvez a crítica brasileira – a independente e a de grandes meios – tenha que se ver diante do desafio de não mais propor agendas geracionais no deserto, mas descer para acompanhar e comentar e destrinchar os filmes e suas inter-relações geracionais sem a obsessiva fixação pelo ‘cinema contemporâneo’ internacional como único oásis no horizonte, ou, nos anos 1970, como nosso maio de 1968”. Para daí constatar: “Estamos diante de um processo de longa transformação, de reinvenção do cinema brasileiro – ainda que não se dê de maneira homogênea entre os diferentes realizadores (ou críticos) dessa ‘geração’”. Uma semana depois, Carlos Alberto Mattos, em seu blog ...rastros de carmattos, publica Menos silêncio, por favor..., no qual questiona com veemência não apenas os pontos colocados por Bragança, como a própria validade de alguns filmes dessa já famigerada “nova geração”. Mattos diz que o artigo do colega pede para ser lido “como peça política de um movimento que se autointitula de ‘reinvenção do cinema brasileiro’”, e que apesar das “muitas novidades por aí, é necessário não confundir manifesto com panegíricos”. Diz que Bragança, para elevar os chamados novíssimos, rebaixa os que os antecedem. Destaca que, exceto por certos trabalhos pernambucanos, pelos recentes longas do Alumbramento (Ceará) e alguns mineiros, “são poucos os filmes aptos a ultrapassar o filó de uma certa patota e a curiosidade prospectiva de alguns festivais internacionais”.

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tiraDenteS

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braganÇa

Festival que acontece na cidade mineira tem se notabilizado por se constituir num espaço de reflexão diretor, também conhecido como crítico, desencadeou polêmica pela publicação do artigo Meu último texto de cinema

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Lembra também a Mostra de Tiradentes como “frequentemente citada como ‘prova’ de sucesso... Mas, sem contar as comuns debandadas em meio à projeção, muita gente sai rindo dos filmes e fazendo comentários bem distantes do que os seus diretores gostariam de ouvir”. E é duro ao descrever que “há uma síndrome de autocontentamento com o filme barato e sem rumo. Uma espécie de masturbação coletiva acompanha os intercâmbios de talentos entre grupos e estados da federação”. E que “as realizações dos críticos-cineastas, praticamente sem exceção, têm naufragado num misto de pretensão, infantilismo intelectual, umbiguismo cool e referencialismo blasé. Elas se somam a um panorama de cinefilia e filosofia maldigeridas, transformadas em filmes abúlicos”. Mais uma semana à frente, e o crítico e realizador Filipe Furtado

relativiza os dois textos com o seu artigo É, acho que a publicidade venceu..., postado no seu blog Anotações de um cinéfilo. Furtado chama de indulgente o artigo de Mattos, e de tão ideológico quanto o de Bragança. Ele explica que se Bragança olha com desconfiança o deslumbramento com o “cinema contemporâneo”, o de Mattos mostra “uma certa fobia do mesmo”. E diz: “O que (Mattos) sugere é que esses filmes do tal novíssimo cinema brasileiro foram até hoje festejados por uma suposta rede de proteção, seriam filmes intocáveis, em suma”. E resume assim: “O discurso pró-ordem estabelecida do Carlos Alberto Mattos e o discurso radical da Contracampo se encontram na mesma recusa aos ‘novíssimos’, vistos por sina sob o mesmo olhar generalizante”. Ao final, Furtado nos conclama a falar mais dos filmes e menos dos manifestos e contramanifestos. LUiZ JoaQUim

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BERLIM Pelo princípio, meio e fim Um passeio pela capital alemã para além do seu neon para turistas, chegando até os extremos das linhas de metrô da cidade texto Schneider Carpeggiani fotos Adelaide Ivánova

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Andrew, meu colega de hostel, tem 26 anos e trabalha numa linha de cosméticos chamada Androginy. Nas poucas vezes em que nos encontramos (ele estava quase sempre dormindo ou indo para alguma festa), carregava uma garrafa de Bacardi prateada, enfeitada de glitter, e um copo longo com uma rodela de limão. Acho que bebia até quando tomava banho. “I love Bacardi, tem certeza de que não quer?”, repetia com um sotaque australiano que, de tão carregado, fazia o seu sobrenome de 20 consoantes soar ainda mais impronunciável. Era sua quarta viagem a Berlim em três anos. Conhecia Londres (“Muito cara”), Paris (“Eu vivo para a moda...”) e sobre Amsterdã tinha lembranças impublicáveis. Mas por que mesmo insistia em voltar a Berlim? “Aqui, a gente vem para dançar...” Por mais inclusivo que soe, o “a gente” define os gostos de um grupo específico. “A gente” nunca implica

em todos, mas enfatiza a preferência de alguns. O “a gente” de Andrew responde pelo turismo clubber que invade há duas décadas a capital alemã. Esse “a gente” passa longe do Portão de Nuremberg ou do Monumento aos Judeus, que tão bem sinaliza os melindres de uma cidade apavorada com a possibilidade de esquecer, ou da estátua do anjo dourado que nos remete logo ao filme de Wim Wenders. Também não se interessa pela Nefertiti, a Mona Lisa local. Nem pelas galerias de arte do Mitte, ex-região moderna e hipster, que agora recebe uma horda endinheirada de turistas, que em nada lembra a atmosfera de ponto de encontro de squatters e punks do começo da década passada. A modernidade berlinense já é tão fotografável quanto as ruínas do Muro. O turismo clubber não assistirá a uma das remontagens de O anjo azul, sempre em cartaz pela cidade. Nem caçará as lembranças dos exageros químicos de Christiane F., espécie de Perna Cabeluda local, que vagava perdida pela (hoje) iluminada estação de Metrô Zoo. E muito menos perderá uma tarde de domingo num lugar como o Clärchens Ballhaus,

Página anterior 1 Antes que A noite termine

As promessas de uma pista de dança perfeita levam multidões para a capital alemã desde a década de 1990

Nestas páginas 2 reAlezA à vendA

As peculiares vitrines que negociam a moda para imigrantes turcos em Neukölln

3-4 detAlHes

Lixo e lojas de acessórios são comuns nas ruas do mesmo bairro

restaurante que sobreviveu a uma guerra e a muitos modismos, onde você pode dançar uma valsa (ou algo parecido) enquanto espera seu prato (sempre ótimo). Na verdade, turista algum vem até aqui. A vida noturna berlinense é um clichê, que sempre encontra portavozes que a renovem, como num museu de velhas novidades. Nos anos 1970, foi nela que David Bowie encontrou inspiração e refúgio para fazer alguns dos seus melhores álbuns (a trilogia Heroes, Low e Lodger). Nos anos 1980, era simbolizada pelo punk operístico da colorida Nina Hagen. Foi também techno nos anos 1990. Há pouco, o vocalista do grupo norte-americano Scissor Sisters, Jack Shears, disse que precisava dos excessos das noitadas

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de música eletrônica e de sexo que só a capital alemã podia oferecer, para voltar a compor. É como diz o slogan: “Berlim é pobre, mas sexy”. Pobre em termos. Mas sexy, definitivamente. Turistas como Andrew e seu “a gente” vão a lugares como o Berghain, clube noturno já eleito pela DJ Mag como o melhor do mundo, instalado numa antiga usina termoelétrica, que mais parece uma prisão. Aqui, a revista na porta é severa: grupos de amigos, gente careta ou com (naturais) cabelos brancos nem pensar. É preciso ser independente, jovem e exótico – seja lá o que essas três coisas hoje signifiquem. Ou no S036, que abriga uma animada e notória noite “gay-lésbica-oriental” (sic) e festas de disco music bregona (tipo Rita Pavone) para a comunidade imigrante italiana. Ou no Rote Rose, bar fecha-nunca, que Christiane F. adoraria. Ou também no Chantal’s House of Shame, bate-ponto do underground berlinense às quintas. Na noite em que estive lá, apresentou-se “um novo artista da cena electro” (tal e qual a drag queen Chantal nos apresentou), todo vestido de couro.

Pankow, no fim da linha da u2, é uma ótima opção para quem quer conhecer uma Berlim longe dos seus cartões-postais Tocou teclado com a mão esquerda e com a língua (!). Andrew estava lá. Adorando, claro. Apesar de não ter ido a Berlim só para dançar, resolvi, ao menos por uma noite, fazer parte daquele “a gente”. Das 23h até o começo da manhã seguinte, percorri sete clubes diferentes. Era sábado e, no final de semana, o metrô funciona 24 horas. A aventura começou na White Trash, festa indie semanal do restaurante White Trash Fast Food, e passou até por um (ótimo) clube sem nome na porta ou qualquer outro tipo de indicação, no fim de uma rua sem saída. Mais sugestivo, impossível. Como cheguei lá? Segui um grupo com cara de que ia para uma festa ou de que, ao menos, precisava

ir para uma desesperadamente. Quando esse povo desceu na estação Kottbusser Tor, fui atrás. Perdido, sempre siga o fluxo maior que salta do metrô. Conselho duvidoso (confesso), mas que (dessa vez) funcionou. Após entrar e sair de clubes e estações, tive certeza de que queria escrever sobre a cidade, mas sobre o que mesmo? A vida noturna de Berlim era interessante, sim, mas talvez. Talvez. A ideia desse texto surgiu de um daqueles “e se” que nos perseguem quando estamos sozinhos: e se, durante essa odisseia, perdesse a parada e acabasse numa daquelas estações de nomes impronunciáveis? Ou pior: e, se, num cochilo, terminasse parando no fim da linha do metrô – um destino de riscos mais psicológicos do que físicos, claro, mas ainda assim uma possibilidade assustadora. É incrível o quanto a ideia do fim da linha é, em medidas iguais, atrativa e apavorante. Verdadeira porta de entrada para todo tipo de metáfora. Raramente vamos até o fim da linha, mas sabemos que, se descuidarmos, é lá que vamos parar. Bingo: iria para o fim da linha e sobre isso escreveria.

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5-6 Pankow

O bairro é cheio de detalhes, que exigem olhar apurado do visitante; estátua de cervo num dos parques do bairro

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Surpresa na descida do metrô: apenas a visão de um lago congelado

8-9 simBologiA

O metrô que leva iniciados e iniciantes ao fim, meio e princípio da linha; declaração de amor eterno nas paredes de Pankow

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Num sábado pela manhã, acompanhado da fotógrafa pernambucana, residente em Berlim, Adelaide Ivánova (que mesmo no inverno chama a capital alemã de “minha garota”), fui aos extremos da U2, linha por onde Andrew e todo aquele “a gente” se perdem, encontram-se e forjam suas fantasias do que seria a noite perfeita. No caso, uma noite em Berlim. Além da U2, fomos também ao bairro Neukölln, um dos extremos da U7, habitado por imigrantes turcos que vivem numa espécie de fim da linha como cidadãos. Detalhe curioso: para nossa surpresa, uma das estações finais da U2 estava em obras. Fomos obrigados a descer uma antes. O que acabou oferecendo uma ótima lição: tem horas que o fim da linha chega quando a gente menos espera. E não há (literalmente, como você verá em seguida) nada que temer por lá.

neuKölln

“Eu não sou preconceituoso, mas...” Quando você se depara com um “mas” acompanhando uma afirmação, pode ter certeza de que logo, logo, vai ouvir

alguma besteira. Dito e feito. Foi o que aconteceu comigo durante uma conversa com um daqueles amigos instantâneos que a gente faz num clube noturno, mais especificamente no clube Chantal’s House of Shame. Ele, berlinense da “gema”, me disse, orgulhoso, que essa história de neonazista é lenda urbana e que o “problema” de Berlim eram os turcos. Pois esse alemão, nada “preconceituoso”, ficou emudecido quando lhe contei uma rápida historinha. No domingo pela manhã, saindo do meu hostel, no abastado bairro Nollendorfplatz, eu e alguns amigos (nenhum deles alemão) fomos surpreendidos por um senhor que gritava na rua (em inglês) “Fora, estrangeiros! Os alemães são os melhores!”. Foi uma cena tão assustadora, que saímos em disparada. Não deu para ver se era um bêbado, um louco ou se suas palavras eram, de fato, dirigidas a nós. Os berlinenses são orgulhosos de que sua cidade é segura e repetem isso o tempo inteiro. De fato, parece ser. Mas sempre há os fantasmas...

Esse prelúdio é uma boa introdução para falarmos de Neukölln, um dos extremos da U7, subúrbio onde mora a fotógrafa Adelaide Ivánova desde fevereiro e pelo qual nutre uma relação também extrema. Ao mesmo tempo em que faz questão de ressaltar seu pouco apreço pelo bairro (mantém na bolsa um spray de pimenta e posta frases como “Jesus, me dê um lugar decente” em seu blog Vodca barata), passa horas vagando pela vizinhança tentando encontrar um Neukölln que mereça ser fotografado. Quer se deparar na foto com o que não achou (ainda) no afeto. Quer fazer de Neukölln um amor à última vista. Mas não é fácil. Neukölln é sujo, escuro e pobre (e nunca pobre e sexy, como Berlim faz questão de bradar que é). É uma alegoria viva da relação que a cidade mantém com os imigrantes de países árabes. Sobre seu complicado bairro, Adelaide comentou: “Neukölln lembra a Teodoro Sampaio, rua onde morei em São Paulo. As lojas são uma baixaria, o povo larga resto de comida no chão, bitucas de cigarro e há cocô de cachorro por toda parte.

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con ti nen te#44

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Os carros são antiquados, as butiques são um mix de roupas tradicionais com roupas de festa cafona ou então um mix bizarro. Uma loja que se chama ‘The sexy way of princess’ vende esses lenços muçulmanos feitos para deixar a mulher tudo, menos sexy. É um bairro não só de imigrantes, mas de muitos alemães desempregados ou sem estudo, por isso é considerado perigoso”.

PAnKoW

Você sabe que está longe de casa quando uma desconhecida o olha de cima a baixo, curiosa, e não resiste à pergunta: “Por que vocês vieram até aqui?”. Foi a reação da vendedora Sandra Kuerig, que trabalha na loja

não havia nada no fim da linha. esse nada era materializado por uma parada de ônibus vazia e por um lago congelado fetiche Cathe Fleur, especialista em chás, chocolates e outras desnecessárias necessidades, como um carrossel de brinquedo que pousa reluzente na vitrine. Sandra tem dois empregos. Um deles numa farmácia na turística Alexanderplatz, na qual se comunica basicamente em inglês. Na Cathe Fleur a coisa é diferente. “Aqui

não vem turista. Quem frequenta a loja são as pessoas do bairro”, explicou-nos. Foi a deixa para a primeira lição da viagem: fins da linha são para iniciados e moradores. Se você quiser saber o que existe por trás da Berlim noturna e cosmopolita, Pankow é seu fim da linha. Aqui não há neon. Mas estúdios de fotobeleza, em que fotógrafos prometem uma juventude instantânea à força de boás coloridos e falsas paisagens amareladas de Alpes Suíços. Há também um fajuto restaurante italiano chamado Happy Pasta (com um nome desses, é impossível exigir grandes verdades) e um cemitério que o inverno faz parecer ainda mais desolador. “Por que alguém compra uma casa com vista para

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um monte de túmulos?”, perguntou Ivánova, quando percebeu que algumas das melhores residências de Pankow eram coladas ao cemitério. Quando estava a caminho de Pankow, descobri que uma amiga já havia passado por lá há alguns anos. Pelo Facebook, ela mandou a eufórica mensagem: “As pessoas lá são verdadeiros museus ambulantes. O Muro de Berlim parece que não caiu em Pankow ”. Essa sensação ficou mais forte quando descobrimos uma rua chamada Herman Hesse e um parque chamado Maiakóvski, que era onde os líderes da Alemanha comunista moravam. Mas Pankow é fascinante porque é extremamente banal. De uma banalidade que não encontramos fora

da Alemanha, ou mesmo fora de Berlim, que sobrevive sem o polimento de uma cidade que está sabendo trocar a história pelo status de ser um dos maiores destinos turísticos do mundo. Pankow parece a salvo dessa troca. No retorno para a estação de metrô, comentei com Ivánova que esse era um daqueles lugares perfeitos para alguém (querer) se perder e nunca mais voltar. Sensações típicas de fim da linha.

olymPiA-stAdium

O fim da linha não era aqui, mas acabou sendo. Próximo a Ruhleben, a outra estação final da U2, descobrimos que ela estava em reforma, e o fim havia sido, subitamente, antecipado. Era preciso saltar uma estação antes. Ao

descermos na Olympia-Stadium, a grande surpresa: não havia nada ali. Esse nada era materializado por uma parada de ônibus vazia e um lago congelado. Ao longe, duas senhoras caminhavam com um cachorro. Ivánova saiu em disparada, pensando nas metáforas que suas fotos poderiam suscitar. O “fim” e o “nada” parecem conceitos irresistíveis para os fotógrafos. Enquanto ela corria fascinada em meio ao playground que era o nada ao seu redor, fiquei pensando numa frase publicada há algum tempo no seu blog: “O mais difícil do inverno não é o frio, mas o silêncio”. Um silêncio tão profundo, que as atrações de luz neon que nos atraem a Berlim fingem jamais escutar.

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tradição Sem bolo de noiva, não tem casório

Com ameixa, vinho e frutas cristalizadas, a receita pernambucana resiste aos ataques da pasta americana, do bem-casado e do cupcake texto Renata do Amaral Fotos sérgio Lobo

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numa festa de casamento, pode haver

uma mesa cheia de cupcakes, aqueles bolinhos enfeitados com cobertura cremosa e colorida que estão na moda. Os bem-casados de massa fofa e doce de leite – não confundir com os docinhos de brigadeiro branco e preto, também conhecidos como casadinhos – também podem aparecer, trazendo bons votos até no nome. Mas, se o casório é pernambucano, não pode faltar bolo de noiva tradicional, com massa molhada e compacta de ameixas (sempre) e frutas cristalizadas (de vez em quando). Engana-se quem pensa que o costume é predominante no país. A pesquisadora Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti explica que o bolo reina em Pernambuco, mas também existe

“nós podemos brigar pela paternidade deste bolo, pois aprimoramos a receita e agregamos nossos sabores” cleonice Ferraz em Alagoas, Sergipe e outros estados nordestinos próximos. A receita aportou por aqui junto com os ingleses, no início do século 19. O bolo servido até hoje na época do Natal na Inglaterra, o Christmas Cake, tem ingredientes e modo de preparo semelhantes. Sofreu, porém, adaptações um tanto sincréticas antes de chegar à nossa mesa.

“No Brasil, os bolos de casamento têm preparos diferentes. No Sul, com massa branca e recheios variados – ainda herança do colonizador português. Diferentes dos de Pernambuco, com massa escura à base de vinho, ameixas, passas e frutas cristalizadas – herança britânica que chegou a bem poucos lugares do Brasil”, escreve ela no livro História dos sabores pernambucanos, que traz uma receita com manteiga, açúcar, ovos, limão, noz moscada, cravo, canela, ameixa, frutas cristalizadas, passas, conhaque, vinho do Porto e farinha. A pesquisadora conta ainda que a pasta de amêndoas e o glacê branco são herança inglesa da época da rainha Vitória, levada à Península Ibérica em 1906 por conta de um casamento da

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Página anterior 1 hiStóRiA

O glacê branco é herança inglesa da época da rainha Vitória, levada à Península Ibérica em 1906

Nestas páginas 2 FinAlizAÇão

A pasta ajuda no acabamento, mas não deve substituir o glacê “mármore“, que tem mais sabor

A delicada composição manual de flores, rendas, bordados e pontos, porém, tem sofrido com a concorrência desleal da moda da pasta americana. Ao lado dos modelos tradicionais, repousam no álbum de fotos das boleiras outros com todo tipo de adereço em cima: casais (alguns com a inevitável camiseta do time de futebol) sozinhos ou junto de carros, barcos, cavalos e motos. “A confeitaria em açúcar exige muito mais habilidade”, diz Jane, que não trabalha com a pasta, mas não pode se negar a instalar os famigerados bonequinhos em cima de sua obra.

MoÇAS PRenDADAS

realeza. Já a decoração com flores de goma e açúcar vem da Ilha da Madeira. “Nós podemos brigar pela paternidade deste bolo, pois aprimoramos a receita e fomos agregando sabores nossos”, defende a professora de confeitaria e pastelaria das Faculdades Boa Viagem e Universo, Cleonice Ferraz. Foi pelas mãos de uma jovem de ascendência palestina – nascida no Piauí e com nome francês – que o bolo de noiva se espalhou. Nascida em 1921, Leonie Asfora se formou na Escola Doméstica de Pernambuco em 1937 e foi a laureada da turma. “A escola deu uma base, que ela desenvolveu pela curiosidade”, conta Eliane, uma das duas filhas que viam a mãe trabalhando e aprenderam o métier. Leoni se foi em

1993, mas as irmãs Asfora, Jane e Eliane, continuam com a tradição familiar de mais de meio século. Um dos diferenciais da versão delas é a pasta de amêndoas opcional entre a massa e o glacê. A receita lembra a do marzipã, doce de origem árabe que leva amêndoas, claras de ovos e açúcar – mas a pasta é mais macia, enquanto o marzipã é feito para ser moldado em formatos variados. Por cima, a decoração é toda feita com açúcar, à exceção das flores de goma. A confeitaria fica a cargo da imaginação da boleira e da cliente. Há até quem leve o tecido do vestido para inspirar a confecção de uma renda semelhante, confeccionada de puro glacê.

A boleira Dílvia Monteiro também aprendeu a receita com a mãe, que teve 15 filhos, dos quais oito mulheres. “Aprendemos muita coisa com ela. A mãe era quituteira e todas as filhas são prendadas, como se dizia antigamente”, conta. Os produtos da fazenda próxima a Garanhuns eram vendidos em uma loja da família – ao lado da manteiga e do queijo, sua mãe fazia bolos pernambucanos como o Souza Leão e o pé-de-moleque. Dílvia herdou a mão de boleira e diz que tem prazer em confeitar bolos. Faz isso há quase 15 anos. Hoje, sua produção é limitada: faz apenas um bolo por semana, ao contrário do que fazia antigamente. Resolveu diminuir o ritmo, atendendo aos apelos da família. Ela usa vinho do Porto legítimo, trazido por uma irmã que mora em Portugal. “Quem conhece, sente a diferença”, opina. O bolo é bordado com glacê, mas pode ter detalhes em pasta americana nos enfeites como faixas, laçarotes e flores. E ela entrega: há até quem use isopor em vez de bolo verdadeiro em alguns “andares”, só para o resultado final parecer maior e mais vistoso. Dona de um curso de culinária com foco na confeitaria e boleira há 17 anos, Cássia Pereira atende a cerca de 10 pedidos por semana. A metade é de casamento. Para ela, ainda é bastante forte a preferência pelo tipo tradicional, com glacê mármore na cobertura e glacê real no acabamento. Ambos levam clara, limão e açúcar, mas em diferentes proporções. A professora Cleonice, há 23 anos na área, ensina aos seus alunos a confeitaria tradicional, mas sempre

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3 heRAnÇA Decoração com flores de goma e açúcar vem da Ilha da Madeira 4 PeRSonAlizADo Novos modelos trazem bonecos representando os noivos com adereços peculiares

Cardápio 3

ouve deles a pergunta: “Vamos ver pasta americana também?” Cleonice diz que não discrimina a pasta, mas acha que não tem nada a ver usá-la no lugar do glacê. “Vira um bolo de noiva americano. Com glacê mármore é bem melhor, mas a trabalheira é tão grande, que muita gente prefere a pasta”, afirma. Para ela, a pasta ajuda no trabalho de acabamento e detalhes ornamentais, mas não substitui o glacê, pois não tem gosto de nada. “Basta ver nas festas: ela fica no chão, pisada pelos convidados”, brinca. “Como Gilberto Freyre, neste caso eu defendo a receita ortodoxa”, diz.

AMUleto

O bolo de noiva se revestiu de tamanha carga simbólica, que há até quem o veja como uma espécie de amuleto. É prática corrente congelar fatias, ou até mesmo um dos andares inteiros, para comer no aniversário de um ano de casamento. Alguns casais acreditam que a mandinga traz sorte e vida longa à relação. O bolo de casamento da filha da boleira Eliane está congelado há quatro anos. Há 25 pacotinhos com duas fatias para os noivos, previstas para durar até as bodas de prata. A composição da receita, com frutas secas e vinho no lugar do leite, é a culpada pela boa durabilidade do

bolo. Além disso, algumas boleiras, como Dílvia, acreditam que o tempo apura os sabores e deixa o bolo melhor ainda após uma semana de vida. Na hora de ir ao freezer, é preciso tomar alguns cuidados. Ela exemplifica: sua mãe se esqueceu de tirar o arame que sustentava a estrutura dos andares e o bolo azedou. Com o acondicionamento correto, não há perigo. “Há até quem faça uma nova festa só para comer o bolo”, conta Cleonice. Mesmo com as festas de casamento cada vez mais megalomaníacas, há uma corrente contrária que opta pela antiga combinação de apenas bolo de noiva e espumante para brindar. “A indústria do casamento está tão grande, que as pessoas não podem mais arcar com os custos”, diz Eliane. “Acho que essa tendência está voltando. Alguns casais preferem empregar o dinheiro da festa para outras coisas”, conta Dílvia. Nessa versão simplificada, o bolo passa a ser o centro das atenções. E o que fazer quando bate uma vontade de comer o bolo e não há nenhum casamento em vista? É possível apelar para os minibolos de noiva, vendidos em padarias, restaurantes e lojas de conveniência. É o caso da marca Tia Flora, de Érika Leal Pacheco Meira. Formada em Letras, ela queria montar um

negócio diferente, que não existisse no mercado. A pequena fábrica em Camaragibe, fundada em 1998, já fornece seus produtos para quase 80 estabelecimentos do Grande Recife. “Na época em que começamos, o bolo não era vendido em padarias, só no Natal”, lembra Érika. A receita foi criada pela mãe, especialmente para o casamento da própria Érika – sua avó já confeitava bolos há tempos em Arcoverde. Além de ameixa e passa, o bolo leva abacaxi. A produção é de 1,5 tonelada por mês só de bolinho de noiva. Redonda e embalada em porções individuais, a versão míni só se ressente da falta do glacê branquinho, com cor de véu, vestido e grinalda.

onDe encontRAR Algumas boleiras do Recife

cáSSiA PeReiRA Fone 3442.9087

dílvia Monteiro Fone 3468.1751

leoni BoloS Fone 3221.4363

tia Flora Fone 3458.4901

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panegíricos

matéria corrida José cláudio

artista plástico

Posso ser acusado, digo aqui antes que passe pelo constrangimento de ouvir, de faturar a morte de meus amigos, usando-a, ou usando-os, para dar vazão ao meu irrefreável beletrismo, humilhando-os ao servirme deles para praticar essa minha subliteraturazinha, aproveitando-me dos seus méritos, dos seus valores, para obter algum retorno. E de um jeito covarde, porque o outro não tem oportunidade de responder, pelo menos perguntar: “Quem lhe deu o direito de escrever sobre mim?” ou “Quem disse que estou precisando dos seus elogios?” Não deixa de ser um tipo de oportunismo isso de escrever sobre a morte dos outros, uma forma de devassar a vida alheia, entrar sem aviso, sem ser convidado, sem pedir licença. Pergunto-me se não seria uma agressão, uma ofensa, invadir a privacidade do outro numa ocasião

tão íntima, tão pessoal, como a morte. Dá vontade até de não morrer para não passar por essa vexação. Ofensa, dá para rebater; de elogio, ninguém escapa. Quando alguém elogia, dá vontade de perguntar: “De onde tivemos o prazer de nos conhecer?” Para elogiar, é preciso ter alguma intimidade. Logo, o próprio elogio já carrega em si ou dá a entender um certo grau dessa intimidade que pode ser absolutamente apócrifa, que pode não ter cabimento nem de longe. E o sujeito ainda recebe elogios. Ora, para elogiar é preciso ter estatura. Até ser maior e mais rico, em todos os aspectos, gozar de maior credibilidade para poder emprestá-la ao elogiado, sendo público e notório que não precisa nem vai precisar deste nem do seu clã. Caso contrário, poder-se-ia pensar em adulação. Os escritores de verdade não vivem se gastando em escrever

panegíricos. Bem que Jesus disse: “Deixa aos mortos o enterrar os seus mortos” (Lucas 9,60). Escritor de verdade tem mais o que fazer. Eu mesmo atribuo esses meus artigos, como quando escrevi sobre a morte de Wellington Virgolino, Ionaldo, Tereza Dourado, Ivan Carneiro, Gina, Margarida da Hora, Delano, mortes que realmente senti e continuo sentindo e de fato é como se tivesse morrido, estivesse entre os mortos de que fala Cristo, atribuo, dizia, a uma certa ingenuidade, vejo isso agora, embora possa haver quem se apresse em dizer: “Ele é é muito do esperto”. Às vezes noto um silêncio que não é apenas indiferença ou ausência natural, que ninguém é obrigado a saber que penso que existo, mas mais do que isso, um silêncio contido, um silêncio crítico a respeito dessas minhas ousadias. O ato de escrever, aliás, já é em si um gesto de despudor:

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reprodução

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daí talvez o vezo ancestral de se destruírem tantas bibliotecas. Ao mesmo tempo houve uma amiga que disse valer a pena morrer somente para merecer uma dessas minhas louvações. Há os que compram terreno em cemitério, escolhem e deixam pago o caixão e serviços funerários, as “pompas fúnebres” lembrando Jean Genet. Vamos pegar a deixa, o tom de brincadeira, da minha amiga. Poderíamos incluir no pacote, ao lado de frases para santinhos distribuídos na missa de sétimo dia e inscrições nas coroas de flores, dísticos em cártulas (conhecidas como faixas-falantes) pintadas à mão por calígrafos, também uma oração à beira do túmulo, estabelecendo de antemão os diversos níveis de comentários da vida da personagem, o tipo de tratamento, mais solene, grandiloquente, ou mais coloquial, à feição do extinto, espécie de

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Pergunto-me se não seria uma agressão, invadir a privacidade do outro numa ocasião tão íntima, tão pessoal, como a morte preparação do corpo do falecido como vi dizer fazem nos Estados Unidos incluindo até maquiagem e enxertos. Um serviço a oferecer, senhores empresários. Poderiam contratar pessoas que escrevessem bem, colunistas de jornal para ganharem algum por fora, textos tabelados sobre a “inestimável perda”, sem tais lugares-comuns, é claro, empregando muita gente: pesquisadores de biografia, linhagistas, declamadores, podendo haver um incremento à arquitetura funerária, a retomada

roma

Tumba de Cecília Metela. Século I a.C.

dos belos mausoléus que já deram emprego a tantos escultores, ramo da estatuária hoje completamente esquecido, glória de tantos cemitérios, como o de Gênova, na Itália, até opção turística, ou a tumba de Cecília Metela na Via Ápia Antiga, em Roma, diante da qual me quedei tantas vezes tomado pela emoção, sem falar das pirâmides do Egito, mas aí já passamos para o delírio. Voltemos à realidade. Quanto à encenação à beira do túmulo, poderiam ser contratados artistas de renome local ou nacional, das televisões daqui ou do Rio e São Paulo, o cachê dependendo do ibope. Com garantia de ineditismo dos textos, em prosa ou verso, citações em outras línguas, especialmente o latim, como língua morta, mais adequada a uma cerimônia mortuária. Tais encômios poderiam até ser conferidos pelo futuro destinatário. Infelizmente a maioria dos pintores estariam fora da programação, dado o alto custo da empresa. A não ser amparado por alguma lei de incentivo à cultura. O inconveniente é a demora. Mas morto tem todo o tempo do mundo. Abelardo, Samico, Guita, prometo não importuná-los com meus louvores. Tratem de não morrer.

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MONTEZ MAGNO Experimentação e atuação política

Olhar retrospectivo sobre a trajetória do artista evidencia a autonomia que manteve e seu trânsito por vários gêneros

1 ABStRAÇÃo A música influenciou a obra de Montez em Sonata para olho e ouvido 2 concRetiSMo Escultura manipulável refere-se à repressão da ditadura militar

TEXTO Diogo Guedes

AcERVO PEssOAL

na década de 1950, as artes plásticas

recifenses encontravam-se em um dualismo simplista. De um lado, ficavam os pintores acadêmicos, defensores da veia retratista da Escola de Belas Artes e ligados ao projeto de uma arte elitista; do outro, os modernos, vinculados ao Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, que buscavam, com suas obras, provocar denúncia política. Os poucos que mantinham alguma liberdade, no intuito de experimentar formalmente e evitar filiações, sofriam ataques de ambos os grupos. Um dos exemplos disso foi a reação indignada de famílias burguesas à abertura do Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife para uma retrospectiva de obra abstratas de Cícero Dias, ainda em 1948. Nesse contexto, Montez Magno também se recusava a se encaixar num dos dois polos. Sua obra, de relevância incontestável para a arte pernambucana, vai da experimentação formal à contestação política sem partidarismos. Montez, no entanto, ainda é pouco conhecido do grande público, apesar de sua constante atuação pública nas décadas de 1960 e 1970. Este ano, ele finalmente ganhou um estudo cuidadoso sobre sua trajetória, reunido no livro Montez Magno, organizado pela crítica de arte Clarissa Diniz, autora de um dos três textos da obra, completada pelo crítico e curador Paulo Herkenhoff e pelo poeta e crítico literário Luiz Carlos Monteiro. Além dessa edição, a obra do artista recebe atenção este ano pela realização, este mês, de uma exposição composta

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de 150 de suas obras, com curadoria de Bete Gouveia e Itamar Morgado, e montagem no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). O livro, financiando pelo edital do Funcultura de 2009, faz um resgate analítico da obra de Montez, desde os seus primeiros trabalhos até as produções recentes. Enquanto cabe a Clarissa Diniz esse panorama mais geral, Paulo Herkenhoff se debruça sobre dois projetos arquitetônicos do artista, O ovo e MMMausoléu, ambos de 1969. Luiz Carlos Monteiro traz à luz uma faceta menos conhecida de Montez: sua obra poética. As 190 páginas do livro, ilustradas com mais de 200 imagens de Breno Laprovítera e Gabriel Matos Laprovítera, ainda

contam com uma cronologia e uma relação bibliográfica sobre o artista. Idealizadora da obra, Clarissa conheceu o trabalho de Montez quase por acaso há 14 anos. “Meus pais eram amigos de um casal de franceses que estavam aqui e queriam visitá-lo, e eu acabei indo meio como tradutora”, lembra. Em 2008, quando começou a fazer seu primeiro livro, Crachá – Aspectos da legitimação artística, sobre o mercado de arte pernambucana entre 1970 e 2000, ela se deparou novamente com o pintor. “Um dos critérios de seleção dos artistas para a pesquisa era a atividade deles em jornais. Montez era um dos que mais apareciam, não só com exposições e entrevistas, mas se posicionando sobre o assunto nos periódicos”, explica.

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“Por isso, decidi entrevistá-lo. Foram dois ou três dias indo ao seu ateliê; fiquei encantada com esse contato. No mesmo ano, escrevi para a Continente sobre ele, e foi de fato quando comecei a pensar em fazer o livro”, relata. A vontade de realizar a obra foi reforçada pela vinda de Paulo Herkenhoff ao Recife para pesquisa sobre artistas locais e o seu imediato aceite ao convite para participar do projeto.

cAMALeÔnico

“Montez é o tipo de artista que encarna a ideia da palavra invenção. Ele sempre está criando. Você vai à casa dele e tem algo sendo feito ali”, define Clarissa. Para entender o artista pernambucano, ela diz ser necessário observar que seu trabalho não se restringe a um formato, a uma temática, a um material ou a uma técnica. “Ele é aquela frase do Fernando Pessoa, ‘eu sou muitos’. Ele mesmo se diz camaleônico”, comenta. A trajetória de Montez Magno tem início na década de 1950 quando, ainda sem contato com a obra de Cícero Dias, já produzia influenciado por mestres do abstracionismo como Piet Mondrian, Wassily Kandinsky e Paul Klee. Em 1957, conheceu Aloísio Magalhães, frequentando a oficina Gráfico Amador e aprendendo com o pintor técnicas como a monotipia.

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“estou fazendo uma pesquisa sobre o lado esquecido e omitido da arte popular brasileira: o abstracionista.” Montez Magno As telas de Montez Magno, em geral, são marcadas pela busca de diferentes temáticas não figurativas. A série Caatinga, de 1963, transforma a paisagem nordestina em abstração, assim como ele faria depois com elementos construídos pelo homem em Barracas do Nordeste (1973), Teares de Timbaúba (1979-1988) e Fachadas do Nordeste (1996). O próprio Montez comenta essa veia atemporal de sua obra: “Estou fazendo uma pesquisa ou estudo sobre o lado esquecido e omitido da arte popular brasileira: o abstracionista. É incrível o que o povo faz em termos de abstração geométrica”. Além disso, como Clarissa Diniz mostra no texto Desdobrar. A obra de Montez Magno, a observação de duas telas do italiano Georgi Morandi gerou, em 1964, uma série com o sobrenome do pintor. Uma palheta de cores com contrastes suaves fez da ausência e do vazio o

centro de seus quadros – alguns anos depois, a série Caixas, com pinturas sobre madeira, iria pelo caminho oposto, usando cores vibrantes para compor espaços geométricos. O contexto da ditadura militar brasileira também contaminou a obra de Montez Magno, levando-o a experimentar fora dos limites da tela. Um dos primeiros exemplares dessa reação é Escultura manipulável (1968), objeto formado por placas de alumínio manejáveis. Para Clarissa, a obra faz parte do projeto – político – do pernambucano de reintegrar o homem à vida, trazendo o público para interagir com a escultura. “A obra de Montez não faz parte do lado panfletário ideológico, ela não se dobra em nenhum momento à política. Mesmo o que ele fez durante a ditadura não é subjugado pelo tema”, descreve Clarissa. Esse primeiro passo leva a diversas novas esculturas conceituais e críticas, como Objeto vouyerista (1972) e a série Conservas (1973). No texto do livro, Paulo Herkenhoff comenta os projetos arquitetônicos do artista. O ovo, uma composição de 300 cm x 450 cm em formato de um ovo deitado, com um periscópio dentro, representa a resistência frágil e utópica proposta por Montez. A obra, para o crítico, é um espaço intrinsecamente

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3 GeoMetRiSMo A paisagem local aparece em Barracas do Nordeste, de 1973 4 DeSenHo Estudo de O ovo, um dos projetos arquitetônicos do artista 5 oBJeto Caixa marca a retomada de cores fortes na obra de Montez

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feminino, uma “espécie de ventre”: “O ovo não é o lugar ideal nem sítio de utopia. Ao contrário, é a estranha alegoria de um lugar entre o real e o irreal que pudesse garantir refúgio”, aponta o crítico. Já MMMausoléu representa a união das ideias de mausoléu e museu, sendo este visto como o local de sepultamento da arte. “A construção linguística do título MMMausoléu também embute as iniciais do artista Montez Magno e contém as letras e a terminação da palavra ‘museu’, envolvendo não só a instituição, mas sobretudo a morte e o sujeito da produção simbólica”, sugere Paulo Herkenhoff.

AFAStAMento

O principal período de atuação de Montez Magno foram as décadas de 1960 e 1970, quando morava no Rio de Janeiro. “Ele fazia exposições individuais, tinha obras em galerias e participou de uma bienal (a V Bienal de São Paulo) também”, conta Clarissa. A volta para Pernambuco, por motivos pessoais, diminuiu a sua participação nos embates e eventos artísticos brasileiros. “Não só para ele, mas para qualquer artista, é mais difícil se relacionar do Recife com a arte nacional”, opina. Assim, Montez entrou num período de certo isolamento, ainda que não

se tratasse de uma reclusão hostil. “O isolamento dele tanto era geopolítico como uma opção pessoal. Quando veio para cá, começou a se recusar a participar de eventos do mundo da arte”, explica Clarissa. Para ela, essa negação era uma resposta à situação da circulação das obras nas décadas de 1970 e 1980. “A produção era muito permeada pelo mercado, não havia tantas instituições como hoje. Montez sempre foi um crítico severo de como as obras eram transformadas em mercadoria, e reclamava que as galerias não davam conta de criar uma situação que permitisse a reflexão sobre o trabalho”, aponta. “Além disso, para ele, a cobrança dos 50% em cima de todas as obras é uma total inversão dos valores da arte”.

PoeSiA MetAFÍSicA

Apesar de sempre ter escrito poesia, desde antes de começar a pintar, nos últimos 10 anos, Montez Magno tem se dedicado cada vez mais à literatura. O artista conta com 11 livros publicados, nove deles em edição do autor. “Ele já está com dois livros prontos, mas inéditos. E talvez, agora, as obras saiam por editoras”, anima-se a curadora. A poesia de Montez, ainda ignorada pela crítica, como Luiz Carlos Monteiro aponta, é feita de momentos filosóficos

e indagações metafísicas, para além das traduções que costuma fazer, todas inéditas. Um dos textos selecionados pelo crítico literário no livro mostra as reflexões cotidianas e transcendentes do artista: “Há muito que pratico yoga/ e leio sobre o zen./ Nunca tive uma iluminação/ a não ser quando vejo,/ pela manhã,/ a claridade do sol;/ ou quando estoura,/ na minha cara,/ uma lâmpada de 100 velas”. Para Clarissa, o fundamental é que – seja com novas telas, esculturas ou poemas – Montez continua produzindo, mesmo alheio ao grande circuito das artes. Na verdade, a pesquisa para o livro, incluindo o processo de fotografar as obras do pernambucano, desempenham um papel importante no reconhecimento do artista. “Ele, como vários nomes daqui, era um dos prejudicados pela ausência de pesquisadores e curadores interessados, pessoas que atuassem para dar conta de compreender e organizar a obra dele”, diz Clarissa. Para ela, o livro Montez Magno é apenas um passo inicial no resgate do acervo e da trajetória de artistas pernambucanos. “Existem grandes e belos acervos que não recebem olhares críticos, destinação ou cuidado museológico”, alerta. A ideia dessa obra é também, além de mostrar o trabalho de Montez, despertar iniciativas parecidas. “Espero que pesquisas e obras possam aparecer, com o trabalho de outros nomes como Rodolfo Mesquita, Daniel Santiago, dentre outros. Vale até fazer uma coleção com esses artistas todos”, sugere, esperançosa.

Montez Magno CLaRiSSa DiNiZ (oRg.) editora Páes Livro documenta toda a produção artística e literária do pernambucano.

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Sonoras BOB DYLAN O inigualável trovador solitário

Cantor e compositor chega aos 70 anos como a maior lenda viva da música popular americana e um mistério a ser decifrado texto Débora Nascimento

Ainda sob o reflexo da Grande

Depressão, na década de 1930, o cantor Woody Guthrie, em busca de trabalho, migrou do Texas para a Califórnia, praticamente sem um dólar no bolso. Lá conseguiu se firmar, tendo um dos programas de rádio mais ouvidos dos Estados Unidos. Nesse período, os patrocinadores passaram a cobrar do artista a entrega de uma lista semanal com as canções que iria cantar. Isso porque, Guthrie, que criava canções de protesto, nas quais defendia as classes trabalhadoras, principalmente os camponeses que recebiam salários desonrosos, sempre se esquivava do acintoso pedido dos patrões, e as cantava, mesmo sob ameaça de demissão, enquanto paralelamente ia

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ao campo para cantá-las pessoalmente para seu público-alvo, instigando-o a se sindicalizar, a se rebelar. O importante papel político e musical de Woody Guthrie, o nome mais marcante da música folk, poderia ter ficado perdido na história dos EUA, se ele não tivesse sido valorizado posteriormente por um certo fã de olhos azuis e cabelos assanhados. Na virada da década de 1950 para a de 1960, o jovem judeu de Duluth (Minnesota) Shabtai Zisel ben Avraham – nome em hebraico de Robert Allen Zimmerman – leu a autobiografia de Guthrie, Bound for glory, e não sossegou até conseguir conhecer o músico, que já convalescia da doença degenerativa que iria matá-lo em 1967. Aspirante

a artista, recém-saído do “mato” em busca de fama, morando em Nova York, com alguns poucos dólares na bagagem, o garoto Bobby (que até então era aficionado por rock’n’roll), inspirado por Guthrie e pelo revival do folk naquele período, optou pelo som caipira para trilhar sua carreira musical. Saltamos 50 anos no tempo e chegamos a abril de 2011, quando o tal Robert, mais conhecido como Bob Dylan, maior lenda viva da música popular americana, se vê diante de mais uma polêmica na sua carreira. Ao ter agendado seu primeiro show na China, marcado para o dia 6 daquele mês em Pequim, o artista recebeu do governo chinês a seguinte solicitação: o envio prévio do setlist. E ele o enviou – ao contrário do que o seu ídolo Guthrie possivelmente faria e do que o próprio Dylan fez em 1963, no programa Ed Sullivan Show, que cancelou sua apresentação. A submissão à ditadura chinesa foi o bastante para provocar uma discussão resvalada até no The New York Times, que publicou uma crítica raivosa da jornalista Maureen Dowd, sob o título Blowin’ in the idiot wind. A questão dividiu opiniões. Dylan, um senhor prestes a completar 70 anos, no dia 24 deste mês, preferiu, até agora, não se defender das acusações. Possivelmente, ninguém irá ouvir uma sílaba dele sobre o assunto. Desde o começo de sua carreira fonográfica, quando foi publicada uma matéria desmentindo várias histórias fantasiosas e aventureiras que ele inventara, o artista passou a não falar com a imprensa ou a dar respostas evasivas, o que pode ser conferido nos documentários Dont look back (1967) e Dylan speeks: the legendary 1965 press conference in San Francisco.

FoLK-RocK

O nome de Dylan que muitas vezes foi associado às adjetivações de “profeta”, “deus” e “messias”, pelo impacto de sua obra, também era associado a “engajado”. O músico, que chegara a participar de alguns eventos políticos, como de um comício de 1963 que incentivou os afro-americanos do Sul a se registrarem como eleitores, começou a ser apontado como uma pessoa “politizada”. Mas os seus anseios

passavam bem longe dessas expectativas em torno dele. Para contradizê-las, em 1965, apresentou-se no show do Newport Folk Festival, o templo sagrado do gênero, ladeado por uma banda de rock – gênero considerado fútil pelos entusiastas do folk. A enxurrada de vaias era apenas a expressão mais evidente da indignação da plateia. Com essa quebra, o músico – paparicado pela imprensa e pelo público – deixou também de se apresentar ao lado da cantora folk Joan Baez, um de seus muitos affairs. Dylan, a partir dali, seria o principal nome do folk-rock – gênero que ajudou a criar em paralelo ao The Byrds e sua irresistível versão eletrificada de Mr. Tambourine man (1965) – uma das primeiras das incontáveis releituras de composições do autor, hoje o mais regravado na música popular. Inspirado pela reformulação de sua canção pelo grupo, o cantor, já influenciado pelo bem-sucedido uso do rock’n’roll pelos britânicos Beatles, então, decidiu voltar à sua primeira grande paixão musical, mas sem abandonar o folk. Mesmo antes desse “basta”, em agosto de 1964, o músico havia lançado seu quarto disco, que já no título mandava um recado para os que queriam aprisioná-lo sob o termo “cantor de música de protesto”, Another side of Bob Dylan. Este, foi seguido de Bringing it all back home (março de 1965), que flertara com o rock em faixas como Subterranean homesick blues, e de Highway 61 revisited (agosto de 1965), o álbum que mergulha no rock’n’roll e abre com “a melhor canção da música pop de todos os tempos”, Like a rolling stone. Desde seu primeiro disco, Bob Dylan (1962), o músico já havia comprovado que as letras de canções poderiam ir bem além de temáticas como “Ela me deixou por outro alguém, o que será de mim?”. O artista criou um novo modelo que libertou os compositores de rock: as letras poderiam ser mais poéticas, no sentido exato da palavra. Trouxe para o gênero novas possibilidades, que incluíam estrofes longas, mistura de personagens reais e fictícios, imagens surreais ou autobiográficas, citações, simbolismos, Dadaísmo, nonsense, referências bíblicas, literárias, cinematográficas e até narrativas verídicas, como em Hurricane (do

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disco Desire, de 1976), que narra os acontecimentos que levaram à prisão do boxeador americano Rubin Carter. Os primeiros a se beneficiarem com a lição dylaniana foram os Beatles, que elevaram a poética de suas músicas, superando a temática iê-iê-iê de canções como She loves you para letras mais elaboradas como as de A Day in the life, Eleanor Rigby, Tomorrow never knows.

MAis vendidos

Mas o talento de Dylan para compor não se converteu em vendagem. Em comparação com os próprios Fab Four, seu desempenho é um fiasco. Nessas cinco décadas de carreira, foram pouco mais de 60 milhões de discos vendidos no mundo, contra 650 milhões do quarteto inglês. Nunca um single do Trovador chegou ao 1º lugar nos EUA e, segundo a Associação da Indústria Fonográfica da América, o músico ocupa apenas a 41ª posição na lista dos artistas que mais vendem naquele país. No entanto, Bob é dono de alguns dos melhores álbuns da história da música popular, como Bringing it all back home (1965), Highway 61 revisited (1965),

Blonde on blonde (1966), e Blood on the tracks (1975) e Time out of mind (1997). Por que Dylan, que está há 50 anos em atividade, não superou em termos comerciais os Beatles, que acabaram em 1970? E não ajuda dizer que, enquanto os rapazes de Liverpool (e os Rolling Stones), seus maiores concorrentes nos anos 1960, compunham em esquema de parceria, ele criava sozinho suas canções. Só, compôs cerca de 500 músicas, entre elas, obras-primas como The times they are a-changin, Tanglep up in blue, Desolation row, ItÁ s all over now, baby blue, KnockinÁ on heavenÁ s door, A hardÁ s rain is a-gonna fall e I shall be released. Os Beatles, além de possuir a máquina Lennon-McCartney de compor, eram “ratos” de estúdio, gostavam de gravar e de atender às orientações do “produtor dos produtores” George Martin. Bob, por outro lado, era e ainda é um verdadeiro terror para os técnicos de gravação e instrumentistas. Costuma aparecer com as composições inéditas apenas na hora de gravá-las – talvez para evitar possíveis colaborações dos

HigHway 61 revisited

o álbum, que inicia com a canção Like a rolling stone, traz forte influência do rock’n’roll

músicos e ter que admitir coautorias – e não gosta de fazer mais de um take. Nesse meio século de carreira, poucas foram as vezes em que o músico se deu férias, como em 1967 e 1968, quando se retirou com sua família à sua casa em Woodstock, Nova York (bem antes do famoso festival acontecer). Desde os anos 1970, é mais comum vê-lo em atividade, seja gravando (são, ao todo, 56 discos, sendo 35 de estúdio), escrevendo (além de Crônicas, lançado em 2005, assinou contrato para lançar mais seis livros), apresentando programa de rádio (Theme Time Radio Hour), pintando (inclusive uma série sobre o Brasil) e se apresentando na Never ending tour – anualmente, são cerca de 200 shows. Cada concerto é uma surpresa para os fãs – ninguém, nem a própria banda, sabe exatamente o que será tocado e como será tocado – por isso também a surpresa quanto ao comentado envio do setlist ao governo chinês. Os relatos dos que conviveram ou ainda convivem com Bob Dylan dão conta da dificuldade de decifrar o mito e suas atitudes. Estariam entre suas características ser: mulherengo, ambicioso, vaidoso, excêntrico, engraçado, sério, beberrão, introspectivo, determinado, maconheiro, cinéfilo, leitor, jogador compulsivo de xadrez e sinuca, inventor de histórias mirabolantes e, claro, apaixonado por música. “É muito rico, mas prefere viver como um cigano, passando mais tempo em seu ônibus de turnê do que em qualquer uma das 17 propriedades que possui”, afirma o biógrafo Howard Sounes, autor de Dylan: A biografia (2002), um dentre as dezenas de livros escritos por fervorosos estudiosos dedicados a desvendar a vida e a obra do gênio. Já o amigo Liam Clancy lamenta: “É um homem muito solitário. São poucas as pessoas que restam no mundo com quem ele possa conversar”.

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INDICAÇÕES João MeireLeS/diVuLGAção

ELETRÔNICO

ROCK

independente

DoSol Netlabel

DiGiTAL GrOOVe Manual Não fossem os discretos 14 anos de carreira, o digital Groove seria uma boa surpresa. Antes um duo, composto por Felipe Falcão (baixo) e Zezão Nóbrega (programações), o dG ganhou com a entrada da vocalista Luana Mallet. embora as letras não digam muito, o trio segura as pontas: Mallet é dotada de voz melíflua e convidativa, Nóbrega não exagera e acerta nas programações, enquanto Falcão conduz o baixo com firmeza. um bom time de convidados dá consistência ao Cd.

MONsTer cOYOTe stoner to the boner power trio genuíno de Mossoró. e, antes que o determinismo geográfico implique num julgamento precipitado, é bom saber que estamos diante de uma banda com muito poder de fogo para provar. Ainda não se ouviu falar porque o ep acaba de sair do forno. Com um vocalista rasgando suas cordas e fazendo algo parecido na guitarra, um baterista e um baixista espancando seus respectivos instrumentos, a Monster Coyote leva o ep inteiro no talo, fazendo jus ao título (Stoner to the boner).

Bafrik

sONs DO BrAsiL e áfricA Longe de lugares-comuns que apresentassem a música erudita contemporânea ao grande público como algo falsamente cult ou vinculado ao repertório standard, um coletivo de compositores baianos adotou uma estratégia de comunicação inusitada para o lançamento de um portal nesse âmbito – um híbrido que mescla linguagens de site, blog, rede social e compartilhamento de arquivos, e traz em seu nome toda a carga cultural que o justifica. O Bafrik (foto) surgiu para promover a troca de ideias entre músicos da Bahia e da África, ligação evidenciada na música popular, mas não nas salas de concerto brasileiras. Os que foram ao Teatro Vila Velha, no lançamento, ouviram um programa construído para reforçar o potencial do Bafrik, dado que sete compositores, quatro baianos e três africanos, conceberam peças de câmara para a ocasião. O empreendimento, contemplado em um edital de incentivo à cultura do governo da Bahia, teve início através de uma viagem dos compositores Paulo Rios Filho e Alex Pochat à África do Sul, onde se encontraram com representantes das instituições musicais, e promoveram palestras sobre o portal em Joanesburgo e na Cidade do Cabo. Nesse país, angariaram três compositores e encontraram-se com Justinian Tamusuza, de Uganda, e o sul-africano Michael Blake, consultores do projeto ao lado de Paulo Costa Lima. Conquistada a primeira etapa – a composição de obras para a estreia –, o desafio passou a ser a maior participação dos músicos africanos no Bafrik. Para tanto, uma série de iniciativas vem sendo articulada para os próximos meses: intercâmbio de maestros, execução de obras em orquestras sinfônicas profissionais e jovens, além de grupos de câmara; difusão via rádio, inserção em festivais de música contemporânea e utilização de estúdios de música acusmática. Tudo isso está garantido por parte da Bahia; será preciso agora consolidar as parcerias firmadas na África. Os integrantes do coletivo lembram que o Bafrik não se restringe a músicos baianos e convidam intérpretes, compositores e pesquisadores do país a participar, legitimando o intercâmbio musical no eixo Sul-Sul. Essa via direta pelo Atlântico Meridional pode servir de reforço às parcerias que o país vem desenvolvendo no campo da política e da economia com nações africanas. CARLOS EDUARDO AMARAL

ROCK

ROCK

fOO fiGHTers Wasting light

THe sTrOKes Angles

No trailer do documentário Back and forth, o vocalista dave Grohl lança um dilema: o que fazer depois de lotar uma arena com 80 mil pessoas? Bem, os Foo Fighters resolveram voltar para a garagem. resolveram, ainda, convidar Krist Novoselic e Butch Vig (ex-baixista e ex-produtor do Nirvana, nessa ordem) e até pat Smear, músico de apoio do trio: coisa fina. Tinha tudo para ser outro revival grunge. Mas os FF não voltam na história, pelo contrário: com Wasting light, Grohl e companhia continuam escrevendo (bem) a própria história.

Há 10 anos, com o disco Is this it, o Strokes surgiu causando furor. No entanto, desde então, o quinteto novaiorquino não conseguia lançar nenhum disco tão redondo quanto esse debut . depois de cinco anos, o grupo lança o esperado Angles. o álbum, assim como a estreia solo do vocalista Julian Casablancas (Phrases for the young, de 2009), investe pesado em arranjos oitentistas, e se sai bem exatamente nessas faixas, como Machu Picchu, Games, Two kinds of happiness, apesar de não ter uma estupenda “música de trabalho”.

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BIOGRAFIA Seguindo os passos do poeta português

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PINCE-NEZ Óculos de leitura do poeta e exemplar da revista da qual foi editor integram coleção de José Paulo

Advogado e colecionador José Paulo Cavalcanti revela os caminhos que o levaram a produzir Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia texto Schneider Carpeggiani

Leitura Ficção “pega”. José Paulo Cavalcanti

Filho põe a gravata na hora em que precisa tirar fotos relativas a seu trabalho como advogado. Retira o acessório, quando a imagem é para algo relacionado a Fernando Pessoa, objeto de uma década de obsessiva relação, que resultou em Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia (Record). “Por isso ‘uma quase autobiografia’: há mais palavras dele do que minhas”, faz questão de justificar o inusitado do título escolhido. São mais de 700 páginas em que seu texto se mistura ao do escritor, destacando que a escrita foi resultado de intensa simbiose. A interação foi tamanha, que podemos pensar no detalhe da gravata como um “sintoma de heterônimo”, que contaminou o biógrafo em meio à pesquisa. Pessoa necessitava se transformar em outros para escrever. Para cada novo texto, outra personalidade, novos detalhes e manias precisavam emergir. Sua marca literária era a fragmentação. Advogado e biógrafo parecem personas distintas de José Paulo. Mas seu contágio foi além da gravata. Se Pessoa colecionava heterônimos, José Paulo coleciona “Pessoas”. “Nunca fui um colecionador. Só depois dos 50 anos é que essa história começou”, explica o biógrafo, 62 anos. E não estamos falando de um

colecionador qualquer. Há dois anos, a Fundação Roberto Marinho montava uma exposição sobre Fernando Pessoa para o Museu da Língua Portuguesa (SP). Mas o acervo de itens originais do poeta era mínimo, quando comparado à mostra virtual que estava sendo montada. Os curadores souberam que um advogado pernambucano escrevia uma biografia do português e que havia angariado alguns dos seus objetos pessoais em leilões. “A Fundação Roberto Marinho queria saber se eu tinha alguma coisa de Pessoa que pudesse emprestar. Eu disse que não tinha alguma coisa. Eu tinha ‘tudo’”, lembra José Paulo, enfático. Esse “tudo” tem suas limitações. Mas poucas. Falta, por exemplo, a arca em que Pessoa guardava seus escritos e a correspondência, ativa e passiva, entre ele e Ophélia Queiroz. Um dos seus sonhos eram as cartas enviadas para Mário de Sá Carneiro. Reza a lenda que elas foram enterradas junto com o poeta. José Paulo cogitou (seriamente) pedir a exumação do corpo. “Só essas cartas já dariam um livro...”, continua sonhando. Depois de ter recebido um público de 200 mil pessoas, entre agosto de 2010 e fevereiro deste ano, na capital paulista, a mostra Fernando Pessoa, plural como o universo está agora em cartaz no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro.

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José Paulo ressalta que paulistanos e cariocas viram pouquíssimo do seu acervo. Em meio a esse ínfimo, relíquias como um poema-charada assinado pelo heterônimo Gaudêncio Nabos, o original da célebre Tabacaria e exemplares de revistas que Pessoa dirigiu, como Orpheu e Athena. Naquele começo do século passado, as revistas eram o grande meio de renovação e divulgação da nova literatura portuguesa. José Paulo gostaria de colocar em exposição seu acervo de Pessoa, em larga escala, para o público pernambucano. Mas confessa que a logística é complicada. Dificilmente, a mostra Fernando Pessoa, plural como o universo chegará ao Recife. “Eu não coloco meu acervo em exposição sem um bom seguro por trás. Os museus daqui não têm segurança necessária para abrigar uma coleção como essa. Por enquanto, esses objetos estão mais seguros comigo”, observa.

O acervo de José Paulo tem caprichos de colecionador, como o notório pince-nez do poeta, primeiras edições, manuscritos, cartões com sua assinatura, uma foto aos sete anos, retratos que nunca foram expostos e até uma raridade: o livro que estava no bolso do escritor quando ele morreu, no caso uma coletânea de poemas de Boccage, que o levou a dizer as célebres últimas palavras “Dai-me os óculos.” Espera ainda, para breve, a chegada de um cachimbo de Pessoa. Detalhe: toda vez que vai falar do tal cachimbo, tropeça no

Foram 10 anos de uma obsessiva relação do biógrafo com seu personagem, que o levou a tornar-se um contumaz colecionador

ato falho e começa a dizer as primeiras sílabas de “charuto”. Mas Pessoa não fumava charutos. José Paulo não para de fumá-los. Inconsciente é a linguagem; literatura é contaminação.

cAricAturA

Escrever o livro e montar a coleção renderam ao advogado histórias pitorescas. Há alguns anos, soube que a famosa caricatura de Pessoa estava à venda (a mesma que ilustra a capa da biografia). O leilão seria em Portugal, no dia do aniversário de José Paulo. Ele não pensou duas vezes e cruzou o Atlântico para participar do pregão. No dia marcado, estranhou a tal caricatura exposta: de um tamanho bastante reduzido e feita num papel que estava longe de ser o ideal para esse tipo de desenho. Em meio ao leilão, os lances foram subindo, subindo... Chegaram a inacreditáveis 100 mil euros. José danilo lins galvão/esPecial Para a continente

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Fotos: danilo lins galvão/esPecial Para a continente

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Paulo sabia que o valor era excessivo para uma caricatura tão pequena. O aniversariante voltou para o hotel sem seu “presente”. Antes de dormir, lembra até hoje que, da vista do seu quarto, havia um reluzente anúncio da companhia de seguros portuguesa Tranquilidade. Ficou com a tal palavra na cabeça, repetindo-a como um mantra. Alguns meses depois, ficou sabendo que a caricatura real de Pessoa estava sendo vendida por uma viúva portuguesa. Que aquela do seu aniversário era, na verdade, um estudo.

José Paulo voltou a Portugal e conseguiu comprar o desenho por um valor bem inferior aos extorsivos 100 mil euros de antes. Durante a compra, inventou de contar uma piada (real) à viúva. José Paulo lembrou que, há alguns anos, vagando por Lisboa, encontrou no meio da rua o que ele acreditou ser o “sósia mais perfeito de Pessoa”. Impressionado com a semelhança, começou a seguir o tal homem pela cidade. O sósia notou que estava sendo seguido e apertou o passo, sumindo em meio à multidão. Ao brincar que

AutoBioGrAFiA

José Paulo cavalcanti diz que seu livro reúne mais frases de Pessoa que de sua lavra AcerVo

entre os itens da coleção, uma foto do poeta português aos sete anos e volumes de sua biblioteca

se tratava do fantasma português, o biógrafo não esperava o que viria em seguida: a viúva não só não riu da “piada”, como suspirou, enfática: “Era o fantasma de Pessoa”. Com o dinheiro da gravura já depositado em sua conta, a vendedora passou a desconversar sobre a entrega da compra. Chegou a acenar que, talvez, o desenho não chegaria às mãos do seu comprador. Detalhe: José Paulo não tinha um recibo da transação. Até que, prestes a voltar para o Brasil, já desenganado, recebeu a visita dela com a gravura e uma história em mãos: “Meu genro quis comprá-la de mim, porque achava um absurdo um objeto tão raro sair da família. Disse que só venderia para ele se o fantasma de Pessoa lhe aparecesse também. Não apareceu. Como Pessoa apareceu para o senhor, acho que a gravura tem de ser sua”. Ficção não só “pega”, como “assombra”.

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INDICAÇÕES ENSAIO

CHANTAL HORELLOU-LAFARGE E MONIQUE SEGRÉ Sociologia da leitura Ateliê Editorial

os dois pesquisadores franceses fazem, nesta obra, um estudo panorâmico sobre a trajetória da leitura no mundo. eles partem da discussão sobre o suporte, passando pela relação entre o ato de ler, as instituições e escolas, suas modalidades e seus aspectos culturais. É possível entender como a leitura linear do livro, por exemplo, foi mudando para dar lugar a múltiplas formas de ler. a sociologia da leitura, que vem se desenvolvendo fortemente na França há 40 anos, no Brasil ainda é pouco estudada. o estudo é oportuno para ocupar essa lacuna.

CONTOS ROMANCE

ULRICH PELTZER Parte da solução Estação Liberdade

o autor tem se destacado entre os escritores contemporâneos alemães por construir muito bem personagens que habitam o dia a dia de uma grande cidade. essa habilidade lhe garantiu o Prêmio literário Berlinense para o conjunto de sua obra. o personagem central de Parte da solução, o jornalista christian eich, começa uma investigação sobre como estão hoje os membros da luta armada que vivem entre a legalidade e a ilegalidade. nesse processo, ele passeia por Berlim, Paris e pela itália. Mas é a capital alemã, com sua paisagem urbana em recomposição, que se destaca, quase como uma coprotagonista da história.

REGINALDO PUJOL FILHO Quero ser Reginaldo Pujol Filho Não Editora

o jovem escritor gaúcho reginaldo Pujol Filho decidiu construir uma obra na qual pudesse, escancaradamente, exibir suas influências e referências literárias, prestando homenagens aos escritores que, de alguma forma, foram importantes à sua formação. no primeiro conto, ele deseja ser Miguel de cervantes, depois segue querendo ser: luigi Pirandello, rubem Fonseca, luis Fernando veríssimo, italo calvino, amílcar Bettega Barbosa, Machado de assis, gonçalo M. tavares, Mia couto e altair Martins. a dezena de contos é rica em pastiches, brincadeiras e emulações.

ENSAIO

MARLI FANTINI (ORG.) Machado e Rosa – Leituras críticas Ateliê Editorial

em 2008, comemorou-se o duplo centenário de Machado de assis e guimarães rosa – da morte do primeiro e de nascimento do segundo. os textos reunidos na coletânea surgem justamente nesse contexto, dando aos leitores a possibilidade de acompanhar o percurso da recepção crítica à obra desses dois cânones da literatura nacional. ao estudá-los, por diversas abordagens e leituras, os pesquisadores envolvidos chegam a novos enquadramentos e recepções, comprovando a sua atualidade. Um dossiê contemporâneo, sobre dois autores que seguem contemporâneos.

Poesia

MEIO BOSSA NOVA E ROCK’N’ROLL na poesia Novíssima literatura, a carioca Bruna Beber ironiza a vaidade dos escritores e o interesse em serem pesquisados: “você quer um dia/ ser estudado/ numa sala de aula qualquer/ por uma turma de pirralhos/ que vão zoar suas roupas hoje modernas/ falar que o que você escreve é chato pra caralho/ fazer chifrinho na sua foto/ interrogação”. com apenas 27 anos, o tiro parece ter saído pela culatra. a breve, porém intensa, obra

de Bruna já chegou às salas de aula em coletâneas como Traçados diversos (editora scipione) e Poesia do dia: poeta de hoje para leitores de agora (editora Ática), duas publicações que reúnem poetas contemporâneos. conhecida por um estilo rock’n’roll, de humor ácido e cortante, a escritora mescla referências pop com um olhar prosaico do mundo e um trato sonoro das palavras. assim como Manuel Bandeira, em Poética, Bruna Beber não quer saber de

lirismo que não é libertação. Parte de sua produção literária pode ser conferida nos livros A fila sem fim dos demônios descontentes (7letras), que terá sua segunda edição lançada este ano, e Balés (língua geral), além de antologias que incluem obras da autora. atualmente, a poetisa está engajada em vários projetos artísticos, entre eles, a finalização do seu terceiro livro intitulado Rua da padaria. (gianni Paula de Melo)

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tadeu gondim/divulgação

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coletivo angu algumas espetadas no coração feminino

Com Essa febre que não passa, peça baseada em contos de Luce Pereira, centrados em mulheres, companhia firma seu processo criativo de grupo texto Rodrigo Dourado

o teatro pernambucano enfrentou, na primeira década deste século, uma pequena revolução. Pequena, porque silenciosa, ela foi acontecendo aos poucos e seus resultados ainda estão por ser devidamente aferidos. Mudança que não se fez sentir somente na cena local, mas atingiu gradualmente todo o teatro brasileiro, tendo como marco o Movimento Arte contra a Barbárie, que reuniu, ainda nos anos 90 do século 20, coletivos teatrais de São Paulo em busca de reconhecimento e políticas públicas para um tipo de criação e pesquisa artística que não pode viver à mercê das leis de mercado. Essa pequena revolução tem como eixo e principal aglutinador o teatro de grupo. Embora a história do teatro local não possa ser contada sem recorrer à presença de elementos tão diversos e destacados quanto, entre outros, o Teatro Popular do Nordeste, o Teatro de Amadores de Pernambuco, o Vivencial Diversiones, a Cia. Teatro de Seraphim, a noção de grupo sofre um deslocamento razoável neste novo século. Enquanto, antes, as figuras do encenador e do dramaturgo desempenhavam papéis centrais, as tarefas artísticas eram definidas a priori e o espetáculo era o objetivo, nos grupos contemporâneos, a horizontalidade do trabalho e as instabilidades de um processo criativo cada vez mais compartilhado são as principais características. Perdem força o encenador, o dramaturgo e o produtor e ganha destaque o grupo. Nesse novo modo de produção, os artistas visam trocar conhecimentos, experimentar formas de fazer, intercambiar funções, investigar escritas não estritamente dramáticas, provocar – mais que agradar – as plateias e intervir politicamente no mundo. Em Pernambuco, não é possível avaliar os efeitos dessa pequena revolução sem citar o Coletivo Angu de Teatro, grupo que assume boa parte dos princípios que norteiam sua existência: um processo criativo altamente coletivizado e a mistura de artistas oriundos de várias linguagens, que resultam em encenações de estética híbrida, dialogando com a performance, a videoarte e a literatura. Criado em 2003 com o espetáculo Angu de sangue e contando ainda com outras duas peças no currículo, Ópera

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fOtOs: tadeu gOndim/divulgaçãO

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O processo de montagem do espetáculo foi orientado pela horizontalidade de funções

Nestas páginas 2-3 diáLogo

Para se aproximar da proposta da autora, todo o elenco é formado por atrizes

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e Rasif, o grupo estreia este mês sua nova montagem, Essa febre que não passa, construída a partir de contos de livro homônimo da jornalista Luce Pereira. Essa febre que não passa segue a trilha do repertório do grupo, que vem utilizando contos como material dramatúrgico desde o primeiro trabalho. “O conto instiga, dá mais liberdade ao ator, estimula a criação, a troca e o debate com o elenco”, explica André Brasileiro, integrante do Coletivo, que, depois de atuar como ator e produtor nos espetáculos anteriores, encara pela primeira vez a função de encenador. São cinco os contos, todos tendo mulheres como personagens centrais. Em Clóvis, um casal lésbico deposita na adoção de um gato a esperança de salvar o relacionamento desgastado; Talvez já fosse tarde revela a presença de Bernarda, espécie de figura maternal, velha e enferma, na vida de uma narradora que tenta aproximar-se dela e render-lhe um último gesto de carinho; Nomes conta a história hilária de Maria do Ó, aspirante a uma vida sofisticada, que odeia nomes de pobre; Um tango para Frida Khalo mostra o encontro e as memórias de duas irmãs: uma conformada com o cotidiano doméstico e provinciano, a outra insatisfeita com a pequenez de sua vida; Dora descompassada, por fim, trata do gesto

Ao todo, cinco contos do livro foram adaptados e tiveram elaboração de todo o elenco, sob direção de Marcondes Lima extremo e desesperado de uma mulher perturbada com a separação do marido.

no FeMinino

Se, nos trabalhos anteriores, o Coletivo Angu levou para a cena narrativas de grande apelo social, desta vez, o grupo dramatiza questões da intimidade feminina, expondo conflitos de natureza mais interior. Enquanto a escrita de Marcelino Freire (autor dos contos que deram origem a Angu de sangue e Rasif) revela as feridas do mundo contemporâneo, e a obra de Newton Moreno (responsável pelos contos de Ópera) investe fortemente nas questões da homoafetividade, com Luce Pereira, o grupo se aproxima de uma narrativa menos virulenta e mais suave, sem, no entanto, perder a principal característica de sua cena, a ironia e o humor. “Se os outros textos eram ‘socos no estômago’, os de Luce são ‘espetadas no coração’”, compara Marcondes

Lima, que assinou a direção dos três espetáculos anteriores e, neste, assumiu a dramaturgia e a direção de arte. O dramaturgista ou dramaturgo está cada vez mais presente no trabalho dos grupos teatrais contemporâneos. Além de uma assessoria teórico-crítica ao encenador, em geral, cabe a ele organizar o material dramatúrgico e arrematá-lo, tendo como ponto de partida as improvisações e laboratórios de criação, nos quais os atores exercitam soluções possíveis para as cenas. Em Essa febre que não passa, esse trabalho consistiu em analisar a natureza da narração, se em primeira ou terceira pessoa; transformar algumas passagens em diálogos; depurar o toque literário de alguns textos e transpô-los para uma linguagem mais coloquial; convocar as experiências pessoais do elenco para mesclá-las à ficção; além de criar elos entre os contos/quadros, apesar de muitas vezes as temáticas exibirem aparente distância. “Somos fiéis, mas não reféns dos contos”, explica Marcondes Lima. “Os textos de Marcelino Freire têm um formato quase de depoimento, o que ele chama de ‘vexames’, porque as personagens chegam e dão escândalo. Por isso, foram levados por nós quase que integralmente para a cena. Já os de Newton Moreno se aproximam

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muito do formato dialogado do texto dramático. No caso de Luce Pereira, tentamos equilibrar essas duas estruturas”, esclarece, acrescentando: “Na Febre, buscamos uma âncora para a dramaturgia/encenação, algo com que pudéssemos alinhavar esses estados de solidão, insatisfação e crise. E só encontramos isso ao acessar a memória das atrizes”.

UMA FiLosoFiA

Respeitando o desejo de falar da experiência feminina, a equipe do espetáculo é composta quase integralmente por mulheres. Em cena estão Ceronhas Pontes, Hermila Guedes, Hilda Torres, Márcia Cruz, Mayra Waquim e Nínive Caldas. Além delas, compõe o time uma musicista – que toca violoncelo ao longo de todo o espetáculo –, uma iluminadora, uma videomaker e uma preparadora de elenco, Amanda Lyra. Paulistana, Lyra foi convidada especialmente para introduzir no grupo o treinamento de viewpoints, desenvolvido pelas americanas Anne Bogart e Tina Landau, e ainda pouco conhecido no Brasil. Os viewpoints são, para os seus praticantes, mais que um método de treinamento de atores. São uma filosofia. Eles consistem em práticas de improvisação que privilegiam as

conexões do coletivo, as relações do corpo com o espaço e o tempo, além da harmonia do movimento conjunto. Dividem-se em viewpoints físicos e vocais – cada um deles com subdivisões específicas – e objetivam trabalhar a atenção dos atores para a origem de cada gesto e ação, estabelecendo uma relação mais orgânica entre eles e o universo ficcional. “É um trabalho feito junto com atores, mas com regras e balizas, para que eles possam encontrar canais criativos além dos já costumeiros, tirando as cartas da manga e abrindo a percepção. Como foi desenvolvido por americanos, é muito pragmático e objetivo, e tem o mérito de instaurar rapidamente a vocação comunal daqueles indivíduos, levantando muitas possibilidades e organizando rapidamente o coletivo”, afirma Lyra. Esse sentimento de coletividade guiou o trabalho de direção. “Como diretor, acabo lançando o meu olhar de ator para quem está em cena, tentando me colocar no lugar dos colegas”, pondera André Brasileiro. Ele reforça que há no grupo um enorme estímulo para o ator-criador, que colabora com todas as etapas do processo e é propositivo. “Tentamos apreender o imaginário dos contos e discutir as experiências pessoais de cada

atriz a partir daquele universo, quais personagens tocavam em questões que lhes eram comuns, buscando as relações familiares: mães, avós, tias etc. Então, elas criavam as cenas, colocandose dentro das histórias”, lembra.

FAces

Se as noções de coletividade e família nortearam a criação de Essa febre que não passa, a constituição de um elenco totalmente feminino também teve papel decisivo na construção do espetáculo. “A encenação mostra as faces de uma mesma mulher e só ela poderia lançar um olhar delicado e agudo sobre as questões do abandono, da insegurança, das perdas e do amor na experiência feminina”, garante Brasileiro. O Coletivo Angu vem representando essa alteridade em personagens que ganham visibilidade e voz em cena, como homossexuais, miseráveis e vários “outros” da cultura normativa. E se as representações da mulher no palco não são exatamente uma novidade, não deixa de ser notável que, neste espetáculo, as imagens do feminino sejam produzidas a partir de um texto assinado por uma mulher – algo raro no teatro – e rearticuladas em cena por outras mulheres. Para bem traduzir essa visão do mundo, a direção de arte do espetáculo trabalha ideias de carnalidade e sexo nas cores e formas da cena. Além disso, a transparência é referência para a criação de figurinos e cenários. “Também passeamos pelas obras de vários artistas plásticos citados nos contos, mulheres fundamentais como Frida Khalo e Louise Bourgeois, mas também homens como Lucien Freud, Miró e Leonilson”, adianta Marcondes Lima. Como nos espetáculos Angu de sangue e Ópera, a nova montagem dialoga ainda com a videoarte, ampliando o experimento com projeções. Depois de estrear e realizar temporada no Teatro Hermilo Borba Filho até o mês de junho, o espetáculo circulará pelas cidades de Natal, Salvador e João Pessoa. Enquanto isso, o Coletivo Angu se prepara para nova empreitada: encenar os contos de Retratos imorais, mais recente publicação de Ronaldo Correia de Brito, que tem na experiência masculina seu ancoradouro.

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reprodução

LIMITE O maior enigma do cinema brasileiro Mesmo transcorridas oito décadas de sua primeira exibição, longa de Mário Peixoto continua a ser obra sem descendentes texto Fernando Monteiro

Claquete os 80 anos de Limite – o filme-enigma

de Mário Peixoto – se marcam pela data da pré-estreia não comercial: foi numa sala carioca que, pela primeira vez, aturdidos espectadores puderam ver uma das mais radicais experiências da modernidade cinematográfica, no dia 17 de maio de 1931. Iniciava-se ali a lenda brasileira de um filme de vanguarda, artefato estranho no seu tempo – e ainda agora, oito décadas depois. Cinema feito espaço e tempo desdobrados 24 quadros por segundo – depois da restauração minuciosa de Plínio Süssekind Rocha e Saulo Pereira de Mello. Limite foi criado por um neófito na sétima arte, auxiliado por um diretor de fotografia experiente (Edgar Brazil) que nunca dizia “não”. A obra continua a exibir um frescor de novidade ainda à espera de decifração, no seu desenrolar com a linguagem convencional do cinema. Está mais próximo da poesia de e.e. cummings do que dos Lumière.

Desde logo, passo a palavra a Saulo Pereira de Mello, o Saulo da estrada de Damasco de Limite, seu apóstolo e melhor exegeta. Ele explica, com a clareza dos devotos fiéis do “filme-rio” ainda a caminho do desconhecido: “É uma obra insólita tanto no cinema brasileiro quanto no mundial. No primeiro, não tem ascendentes nem descendentes; no segundo, tem ascendentes e até irmãos – mas não tem descendentes. É último e único”. O que significa dizer que, mesmo internacionalmente, o filme de Peixoto é um puro filme de cinema, goza a liberdade de ignorar tudo que veio antes e liga-se a espectadores futuros muito mais do que conosco que, a rigor, ainda não o compreendemos, nem o “vimos”, nem sabemos como funciona, não entendemos seu mar, não sabemos subir no bote solitário da vida que naufraga no filme-síntese da visão de mundo do Rimbaud do cinema tupiniquim.

Mário não parecia conscientemente dominar as intenções que o levaram ao limite da linguagem cinematográfica. Na gênese desse experimento, apenas a capa de uma revista, como “protoimagem” das imagens-enigma de um tipo de filme que nos persegue “como um louco com uma navalha” (Tarkovski não entra ao acaso, aqui): “Peixoto declarava” – relata Saulo – “que não queria dirigir a película, mas apenas atuar nela, e que o roteiro tinha sido escrito diante da visão súbita, em Paris, de uma capa da revista Vu, depois de discussão particularmente dolorosa com seu pai. Na capa da revista se via a imagem de uma face feminina, de frente, os olhos fixos, tendo, em primeiro plano, mãos masculinas algemadas. Mário sempre disse que essa imagem disparou a ideia de Limite, e insinuava que os dois fatos estavam indissoluvelmente ligados”.

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Adianta acrescentar mais detalhes de uma “história” que não importa? Ou melhor, de uma história que não existe, no limite do limite da condição humana voltada para si mesma? Limite é o olhar de todos os olhares (como dizia Herman Melville, “no mar talvez haja espaço para se olhar, sem temer, toda a horrível extensão da verdade”)... Pessoalmente, Peixoto vivia, então, noutro limite. Mesmo grande, o resto da fortuna de sua aristocrática família não podia durar para sempre, e ele se tornaria o diletante diretor de um único filme – incompreendido –, enquanto passava a viver precariamente e a sonhar com novas películas nunca concretizadas como produções efetivas. “A partir do final da década de 1980” – revela Saulo – “a situação econômica de Mário começou a se agravar de maneira alarmante. Foi a generosidade do cineasta Walter Salles Júnior, para quem a visão de Limite foi marcante, que impediu que a marcha de Mário Peixoto para a morte fosse penosa, degradante e indigna de um dos maiores cineastas do mundo”. Mário Peixoto morreu dormindo, no seu pequeno apartamento da Rua Souza Lima, em Copacabana, no dia 2 de fevereiro de 1992, não sem antes deixar mais um enigma boiando na água parada do seu Limite.

nÁUFRAGoS

Do que trata o enredo? (Se é que se pode dizer que “trata” de alguma coisa a pura imagem do filme.) As ações que acompanhamos – não sem algum esforço – são quase mínimas: três náufragos num bote no meio do oceano. Um homem e duas mulheres desesperançados, e conformados com o destino (já deixaram de remar etc.). Vemos uma das mulheres oferecendo um biscoito ao homem – que desalentadamente o mastiga – e depois sabemos que ela fugiu de uma prisão, tentou trabalhar como costureira, mas terminou por sair ao léu pela vida, vencida pela “monotonia”. Noutro momento, a segunda mulher também conta a sua história: fugiu do seu casamento fracassado com um pianista alcoólatra, porque queria escapar ao espetáculo de degradação do marido. Quando acaba a pouca água que eles tinham, sobrevém uma tempestade...

teXto APÓcRiFo?

Um dia, apareceu na revista Arquitetura (nº 30, agosto de 1965) um artigo sobre Limite. O título era “Um filme da América do Sul”, e trazia a assinatura do mais célebre diretor russo, o não menos que genial Sergei Eisenstein. Na época, Cacá Diegues era o editor de cinema da revista, e o artigo chegou às suas mãos através dos editores Joca Serran e Alfredo Brito, supostamente traduzido por Edgar Brazil. Essa é uma das mais curiosas histórias que cercam Limite, na sua fase já lenda, quando tudo faz crer que Mário, na sua solidão feroz, cercado de silêncio e indiferença, inventou o “artigo” de Eisenstein, supostamente escrito após uma exibição de Limite em Londres (?). Aqui, pelo menos, não parecia haver enigma algum: Mário Peixoto nunca mostrou a edição original da revista The Tatler, na qual Eisenstein teria publicado o texto altamente elogioso sobre o filme. Conforme foi se tornando claro com o passar do tempo, tudo parecia indicar

que o brasileiro escrevera, ele mesmo, o artigo atribuído ao russo, inventando a tal “tradução” por Brazil e fazendo chegar o original apócrifo aos editores de Arquitetura. Mais uma lenda – com o sabor da humana fraqueza de um artista solitário – em torno da obra que, como diz Cacá Diegues, “se Eisenstein não viu, não sabe o que perdeu”... Só que o blogueiro carioca Pedro Afonso, estudante de cinema em Londres, veio recentemente anunciar que, “ao visitar o Britsh Film Institute, numa tarde de verão londrino, motivado pela controvérsia em torno do famoso ‘artigo de Eisenstein’, resolvi procurar na biblioteca do instituto qualquer coisa que mencionasse Limite, uma espécie de fixação para mim. Não só pelo seu conteúdo e forma, mas pela aura que o envolvia. Naquela época os arquivos ainda eram no formato de microfilme. E, para minha surpresa, eis

As ações que acompanhamos nesse filme insólito são mínimas, como a de três náufragos no meio do oceano que encontro nada mais nada menos que um texto, supostamente escrito e assinado por Eisenstein, falando exatamente de um filme chamado Limite. Na mesma hora transcrevi para uma folha de papel o texto do russo: “LIMITE. O encontro de três almas arruinadas pela vida, dentro do limite de um barco à deriva no mar. Duas mulheres, um homem, três destinos. Constantemente limitados em seus desejos e possibilidades, a vida os reúne afinal no mais limitado dos espaços. O filme é uma vasta cadência de desespero, angústia, de isolamento, de limitação. Todas as coisas têm ritmo neste filme. É o ritmo que, em cada sequência, define seus limites. O ritmo explica e interpreta ao longo do filme, marcando o início e o fim de cada aventura. É o ritmo que define os limites, os quais definem LIMITE. S. Eisenstein, 1932.” E agora? Como fica mais essa nova “charada” na história do nosso filme mais enigmático, ultrapassando todos os limites?...

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divulgação

Claquete

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CANNES À espera da avalanche de respeitáveis filmes

Lista de exibições nutre a expectativa pelos trabalhos inéditos de nomes que já pertencem à história do festival, como Pedro Almodóvar e Lars Von Trier texto Kleber Mendonça Filho

Desde dezembro, o Festival de Cannes começou, como a máquina precisa que é, a emitir os primeiros sinais de que já estaria ativo e entraria em ebulição no mês de maio. Primeiro anunciaram os presidentes dos júris (Robert de Niro para a competição, Emir Kusturica para a mostra Un certain regard). Em março, divulgaram

o cartaz do festival, uma foto maravilhosa dos anos 1960 da atriz Faye Dunaway tirada pelo então fotógrafo Jerry Schatzberg, vencedor da Palma de Ouro de 1973 como cineasta por O espantalho (Scarecrow). No dia 14 de abril, foi divulgada a seleção oficial, um nocaute de filmes que chama a atenção pela

expectativa de ver novos trabalhos de grandes nomes que já pertencem à própria história de Cannes (La piel que habito, de Pedro Almodóvar, Melancholia, de Lars Von Trier, Le gamin au vélo, dos Irmãos Dardenne, e Le havre, de Aki Kaurismaki) pelos novos nomes que chegam à competição, como a australiana Julia Leigh, que exibirá seu Sleeping beauty. A lista também chama a atenção por destacar quatro cineastas mulheres na competição. Além da estreante Julia Leigh, teremos a muito respeitada autora japonesa Naomi Kawase, com Hanezu no Tsuki, a escocesa Lynne Ramsay (Ratcatcher, Morvern Callar), este ano competindo com We need to talk about Kevin, e a francesa Maïwenn Le Besco, que mostrará Polisse. A seleção destaca também, pela primeira vez, cineastas que já têm pelo menos 10 anos de estrada, e que haviam sido reconhecidos por

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INDICAÇÕES 1

melancholia

o filme de lars von Trier vai estrear mundialmente em Cannes

estúdio, mais normalmente associada aos anos 1970, década que viu o início de sua carreira.

BRASiL

outros festivais e pela massa crítica, mas não por Cannes. Como Radu Mihaileanu (de Trem da vida), que apresenta La source des femmes, o dinamarquês Nicolas Winding Hefn (Pusher, Bleeder) que mostrará Drive, e a própria Lynne Ramsay. Um dos maiores nomes do cinema americano de autor, Terrence Malick (Terra de ninguém, Cinzas no paraíso, Além da linha vermelha), traz o muito aguardado A árvore da vida (The tree of life), ainda na competição, certamente um dos eventos este ano em Cannes. Malick merece especial atenção, pois é um autor no sentido mais puro do termo, que ainda continua servido por uma estrutura cara de

Na mostra Un certain regard, que será aberta este ano com Restless, o novo filme de Gus Van Sant (Palma de Ouro por Elefante, em 2003), um belo presente para o cinema brasileiro é a seleção de Trabalhar cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas, o primeiro longametragem de uma dupla que fez belos curtas com marca muito pessoal, como O lençol branco e Um ramo (exibidos, respectivamente, na mostra Cinefondation, para curtas de escolas de cinema, e na Semana da Crítica). Na própria Semana da Crítica, paralela prestigiosa de Cannes, entrou também o média-metragem Permanências, do mineiro Ricardo Alves Júnior, lindo ensaio de 34 minutos sobre moradores de um conjunto habitacional de Belo Horizonte. Na mostra Cinefondation, a carioca Alice Furtado (da Universidade Federal Fluminense) exibe Duelo antes da noite. Encerrando a participação brasileira, o quarto filme é o novo de Karin Ainouz (seu Madame Satã esteve na Un certain regard, em 2002, e O céu de Suely em Veneza, 2006), O abismo prateado, longa que compõe a seleção 2011 da Quinzena dos Realizadores. Esse cardápio chama a atenção para um cinema feito no Brasil que está longe das preocupações de um outro cinema brasileiro, sempre numa busca desenfreada pela popularidade e pelo mercado. São filmes autorais, de escala financeira reduzida, mas de reconhecimento que sugere algo maior.

DRAMA ANIMAÇÃO

AÇÃO

Direção de Clint Eastwood Com matt Damon, Cécile de France, Frankie mcLaren, George mcLaren Warner

Direção de Sylvain Chomet Playarte

ALÉM DA VIDA

O MÁGICO

um dos nomes mais respeitados do cinema de Hollywood, o diretor Clint eastwood foi bastante questionado ao apresentar seu novo trabalho Além da vida. a obra acompanha três personagens que estiveram muito próximos da morte e, agora, tentam lidar com ela para seguir em frente. embora ofereça soluções simples e um roteiro pouco inovador, eastwood conseguiu abordar nessa obra uma temática extremamente delicada, com respeito próprio de um diretor experiente e maduro.

a nostalgia de algo que não existe mais. Com esse tom saudosista, o diretor de As bicicletas de Belleville construiu uma bela obra, baseada em um roteiro inacabado de Jacques Tati, realizador de clássicos como Meu tio e Playtime. em O Mágico há sempre uma volta ao passado, uma resistência às rápidas transformações. a partir dessa ideia, surge a figura de um ilusionista que faz de tudo para impressionar a jovem alice com seus truques. a obra consegue ser uma crítica ao consumismo com uma delicadeza própria das produções de Chomet.

DRAMA

COMÉDIA

O VENCEDOR

Direção de David o. Russell Com mark Wahlberg, Christian Bale, amy adams, melissa Leo imagem Filme

Com o pano de fundo do mundo do boxe, o diretor retrata a relação entre dois irmãos. dicky (Christian Bale) foi um grande lutador, o “orgulho de lowell”, mas perdeu as suas oportunidades; já Mickey (Mark Wahlberg) é a nova promessa da família. Não há como saber quem é o vencedor do título, mas Bale é o destaque do filme. Neurótico e hiperativo, seu personagem rouba a cena. ele e Melissa leo ganharam a estatueta dourada de melhores coadjuvantes.

O PRIMEIRO QUE DISSE

Direção de Ferzan ozpetek Com Riccardo Scamarcio, Nicole Grimaudo, alessandro Preziosi imovison

Foi preciso coragem para o diretor Ferzan ozpetek construir essa crônica de costumes que revela uma itália conservadora e machista. o protagonista Tomasso decide assumir a sua homossexualidade para a família, mas é surpreendido pelo irmão, que também se diz gay. a avó, personagem mais sóbria e liberal de todo o filme, protagoniza momentos de extrema lucidez que se contrapõem ao comportamento de todos os “jovens” que a cercam.

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Mario Gioia

EM MEIO ÀS ENGRENAGENS

Mario Gioia

é jornalista, crítico de arte e curador independente. patrícia stavis/divulgação

com a abertura da SP Arte agora no dia 12 de maio, a 7ª edição da feira paulistana pode atestar de modo mais vigoroso o bom momento da arte brasileira, incluindo o lado dos negócios. Se o evento do ano passado foi celebrado pelo grande número de visitantes estrangeiros – entre eles, diretores de instituições, colecionadores de monta e curadores diversos – a reboque do renascimento da Bienal de São Paulo, em sua 29ª edição, conhecida agora como “Bienal da retomada”, a versão 2011 da feira deve ampliar a sua importância. Além das tradicionais galerias, que devem exibir suas grandes estrelas, a organização de feiras como a SP Arte tenta criar expedientes menos mercadológicos, ao menos a priori. Assim, convidados internacionais ministram palestras – o evento paulistano tentava confirmar o nome da curadora britânica Tanya Barson, da Tate Modern, e o de Agustín Pérez Rubío, do Musac –, um andar inteiro é destinado a instalações de grandes dimensões – podem ser destacadas a de Ana Holck, pela Zipper, reeditando peça que esteve no CCBB carioca até janeiro passado, e a do lituano Zilvinas Kempinas pela Leme – e editoras estrangeiras instalam seus estandes no Pavilhão da Bienal niemeyeriano. Galerias do exterior, como a Stephen Friedman londrina e a La Fabrica madrilena, também marcam presença no edifício localizado no Parque Ibirapuera. Alguns artistas torcem o nariz para as feiras, mas elas são importantes catalisadores da circulação de obras de arte. Inúmeros acervos museológicos têm aquisições importantes fechadas nos diminutos espaços típicos de tais eventos. Não dá para pensar a forte presença de artistas brasileiros em instituições espanholas sem a Arco, que ocorre anualmente em fevereiro na capital espanhola. Mesmo já tendo vivido melhores dias, a feira de Madri continuará sendo um importante cartão de visitas de variadas produções nacionais, dentro de um escopo latino-americano (que a Arco quer incrementar). E, mesmo na SP Arte, museus como a Pinacoteca do Estado conseguem ampliar seu acervo a partir da doação de patrocinadores. Na edição 2010 do evento, jovens artistas do Ateliê Fidalga, como Carla Chaim, Henrique de França e Julia Kater, fizeram elogiáveis site specifics no meio do edifício. Outras feiras de peso dentro do cenário internacional voltarão seu foco para o Brasil, hoje mais detidamente (em razão do refreado comércio de obras de outros emergentes de produção não tão fortes, como Índia e Rússia), como a Frieze londrina e a suíça Basel (esta ainda mais forte neste ano, pela proximidade de datas com a Bienal de Veneza). Ao final, cifras expressivas, recordes quebrados e outras informações similares percorrerão o noticiário. Para os mais ligados às artes, uma feira pode não ser o lugar mais agradável e adequado para a exibição de trabalhos, mas o sistema de arte já a incorporou como ferramenta essencial dentro da sua engrenagem.

con ti nen te

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