Continente #126 - Hora da novela

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rEDE gLObO/DIVULgAçãO

junho 2011

aos leitores Hoje, a expressão “aldeia global” soa clichê, tão exaustivamente usada que foi. Afinal, faz meio século que ela vem sendo aplicada à sociedade mundial, desde que foi criada pelo canadense Marshall McLuhan. Ao cunhá-la, o professor – já àquela época um cinquentão – se referia ao aparato comunicativo de que dispúnhamos: impressos, rádio e – a luxúria do momento – a televisão. Suas ideias fizeram a cabeça de gerações, até ficarem escanteadas, dando lugar a diferentes perspectivas teóricas que surgiam. Dos anos 1990 para cá, quase não se ouviu falar (muito menos ainda se leu) de McLuhan. Agora, no ano de seu centenário, suas ideias voltam a ser discutidas, muito por conta das interrogações em torno da mídia da vez, a internet, e da rediscussão de uma outra formulação de sua autoria, tornada lugar-comum: “o meio é a mensagem”. À distância de 50 anos de história e pela convivência diária que temos tido com as diversas mídias, não temos como negar a pertinência do que afirmava o pensador canadense. Nesta edição, voltamos à importância de McLuhan, como fazemos com pensadores que o antecederam e dão excelente suporte às reflexões sobre comunicação e cultura.

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O meio televisão também se faz presente nestas páginas, sob o enfoque da teledramaturgia. O nosso ponto de partida foram os bons índices de audiência conquistados pela novela global Cordel encantado, cuja ambiência se dá no nordeste brasileiro. Mas de que “nordeste” estamos falando, quem olha e interpreta essa região? Os colaboradores convidados a participar desse debate são estudiosos do assunto e trouxeram enfoques diversificados. Há uma inventariação das novelas que têm o Nordeste como cenário; uma exposição sobre as características do gênero e uma discussão sobre sua sobrevivência (a partir da constatação de sua gradativa perda de audiência); e uma abordagem de como as emissoras têm mantido o interesse dos telespectadores pelas novelas, pela criação de conteúdos que migram da caixa de luz TV à caixa de luz computador. Por fim, uma entrevista com a coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da USP, Maria Immacolata Lopes. O leitor encontrará em outras matérias desta edição evidências de que não apenas “o meio é a mensagem”, mas de que há cada vez mais esforço por parte dos criadores em fragmentar e hibridizar os meios.

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sumário Portfólio

André Rosemberg 6

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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Agnaldo Farias Curador corresponsável pela 29ª Bienal de São Paulo critica atual cobertura jornalística cultural

Leitura

ernesto Sabato A um mês do seu centenário, morria em 30 de abril o escritor argentino, que, além do legado literário, deixa como exemplo seu ativismo contra os regimes de exceção

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Sonoras

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Matéria corrida

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claquete

78

Palco

Ryoki inoue Apontado no Guinness Book como o autor mais prolífico do mundo, com 1.100 títulos lançados, escritor brasileiro revela seu modus operandi

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Artigo

comunicação

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conexão

Google Art Project Site oferece mais de mil pinturas para visualização nos mínimos detalhes

Balaio

trio em fuga Um dia após o 11 de Setembro, Michael Jackson, Marlon Brando e Elizabeth Taylor fogem de Nova York num carro alugado

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Peleja

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Perfil

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60

Literatura A família tem o direito de publicar obras do autor, pós-morte?

Marshall McLuhan No ano em que faria 100 anos, o autor de Os meios de comunicação como extensões do homem tem revisitadas suas teorias sobre a “sociedade eletrônica”

Jornalista revela seu caderno visual de viagem, realizado em roteiros pouco comuns aos brasileiros, como estadas na Índia, Tailândia, Camboja, Vietnã e Malásia

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Arlindo dos oito Baixos Forrozeiro chega aos 50 anos de carreira como um dos raros mestres do instrumento

José cláudio A Vênus de Willendorf

cinema argentino O país latino-americano se firma como produtor de filmes que conquistam sucesso artístico e comercial

MU-TO Obra das espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras é construída sob proposições da dança, das artes plásticas e do audiovisual

Ângelo Marcos Arruda Mato Grosso do Sul e sua arquitetura

Fotografia Popular

Saída

Luciano Pontes Na perplexidade de um segundo

Coletivos propõem ações e projetos que desmistifiquem o repertório visual comumente associado a comunidades carentes e minorias sociais

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Capa Foto Chico Ludermir

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televisão

Pernambucanas

Sucesso de Cordel encantado provoca análise sobre como o Nordeste vem sendo retratado ao longo das décadas pela teledramaturgia brasileira

Criado em 1987, na residência onde o sociólogo viveu por mais de 40 anos, o espaço possui acervo que revela a vida familiar e profissional do intelectual

Visuais

cardápio

Projeto de levar para 13 cidades brasileiras trechos da exposição do ano passado na capital paulista chega ao Recife, com 134 obras de 24 artistas

Estrutura desse restaurante peculiar, que muda de menu a cada semana, existe para dar suporte aos movimentos populares e de minoria que apoia

Novelas

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29ª Bienal de São Paulo

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Fundação Gilberto Freyre

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Jun’ 11

Kovacic

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cartas Mais cinema Moro em Caruaru, sou curtametragista, dou aulas em faculdade, e também faço doutorado na Universidade Católica de Pernambuco, em Psicologia Clínica. O título da minha tese é As configurações de gênero no cinema de Cláudio Assis. Pela minha dedicação a atividades artísticas e acadêmicas, eu deveria amar tal revista, no entanto gostaria de explicitar algumas questões enquanto cliente. Fiz a assinatura da revista Continente no Festival de Triunfo, em agosto de 2010, onde eu estava exibindo um curtametragem. Lembro que me deram, no ato da assinatura, algumas revistas que falavam sobre cinema. Hoje, ligaram para mim perguntando se eu gostaria de continuar a assinar. Eu disse que não, no entanto, justifiquei o motivo. Parabéns para a revista; ela manifesta tudo aquilo que é diversidade: música, patrimônio, artesanato, fotografia, literatura, cinema, gastronomia, artes visuais... Mas direciono o meu olhar para o

conteúdo de cinema. Acho muito pouco o espaço dado a ele, num estado em que essa arte é uma das que têm mais propagação. Queria ver matérias sobre curta-metragem, longas, discussões, ensaios. Eu poderia fazer a assinatura de uma revista exclusivamente sobre cinema, mas amo o que é produzido aqui, e queria ver isso estampado no papel também. Penso que deveriam fazer um suplemento apenas sobre o assunto. Vocês possuem as razões, no entanto, coloco-me como cliente. No lugar de assinar esta revista, vou ver nas bancas se existe algo que valha a pena comprar mensalmente. Queria recebê-la em casa com prazer. Lembro que, depois de Triunfo, fiquei entusiasmado com seu recebimento, mas o tesão foi baixando, até que virou desprazer. TACIANO VALÉRIO CARUARU – PE

ReSPoStA DA ReDAÇÃo Lastimamos sua decisão, mas entendemos seus argumentos. Nosso projeto editorial, como

você mesmo observa, contempla diversos segmentos culturais, que também demandam atenção, tanto dos criadores e fomentadores quanto do público. Mais que “clientes” dessa ou daquela publicação, somos todos leitores, e o contato com informações sobre as várias manifestações artísticas de Pernambuco e alhures nos interessam e instigam.

Azulejos Parabéns pela reportagem dos azulejos. Uma lição de saber patrimonial. Muito bom! ANA VELOSO RECIfE – PE

Platibandas Parabéns! A matéria sobre platibandas (nº 125) ficou excelente! Agradecendo o envio da revista, aproveito a oportunidade para colocar a Diretoria de Preservação Cultural/Fundarpe à sua disposição para novos desafios. CÉLIA CAmPOS RECIfE – PE

VOCê fAz A continente COm A gENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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colaboradores

Alexandre Figueirôa

cleodon Pedro coelho

Marcelo Abreu

Yvana Fecchini

Doutor em Cinema, professor, coautor do livro Guel Arraes, um inventor no audiovisual brasileiro

Jornalista, roteirista de TV, autor de biografias da novelista Janete Clair e da atriz Lilian Lemmertz

Jornalista, professor, autor do livro De Londres a Kathmandu – Aventuras na estrada do Oriente

Jornalista e professora da UFPE, é mestre e doutora em Comunicação e Semiótica

e MAiS

Ana Lira, jornalista, fotógrafa e integrante do Trotamundos Coletivo e do Boivoador. Pós-graduada em Teoria e Crítica de Cultura. Andrea Marques, revisora, redatora graduada em Letras pela USP. Ângelo Marcos Arruda, arquiteto, urbanista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. chris Galdino, jornalista e mestre em Comunicação Rural. Daniel Buarque, jornalista e autor do livro Por um fio – O mundo explicado pelo telefone. Fernando Monteiro, escritor. Flora Pimentel, fotógrafa. Godofredo de oliveira neto, professor e doutor em Letras pela UFRJ. José teles, jornalista, crítico de música e escritor. Luciano Pontes, ator, palhaço e autor de livros infantis. Samarone Lima, jornalista e cronista.

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADmINISTRAÇÃO E PARQUE gRÁfICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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AGNALDO FARIAS

“Adianta oferecer inteligência?” Curador responsável pela 29ª Bienal de São Paulo analisa a valorização da atividade no Brasil e critica a cobertura jornalística das artes plásticas TEXTo Diogo Guedes

cON ti NeN te

Entrevista

A 28ª Bienal de São Paulo,

organizada por Ivo Mesquita em 2008, foi uma das mais polêmicas edições de toda a sua história. Apelidada de “Bienal do vazio”, teve todo um andar sem obras, a partir da disposição de refletir sobre a crise do sistema de bienais e da própria instituição que a organiza, a Fundação Bienal de São Paulo. Em meio às criticas sobre a edição anterior, o curador paulista Agnaldo Farias e o pernambucano Moacir dos Anjos assumiram a responsabilidade de recuperar o prestígio da exposição, em sua 29ª edição. A saída encontrada pelos dois foi fazer a mostra discutir a relação entre arte e política, ainda mais complexa e difusa nas obras contemporâneas. A Bienal é mais uma passagem do vasto currículo do curador paulista. Também professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte, Agnaldo Farias tornou-se um dos principais nomes da área no país. Nesta entrevista à Continente, feita após o lançamento do edital de artes plásticas do Programa Rumos Itaú Cultural, em São Paulo, do qual é curador convidado, ele

faz um balanço da mostra internacional, comenta a supervalorização da sua atividade e acusa a imprensa de se interessar apenas pelas polêmicas – caso da cobertura da proibição de exibição da obra do argentino Roberto Jacoby em apoio à candidatura de Dilma Rousseff à presidência, da tentativa de retirar da mostra a série Inimigos, do pernambucano Gil Vicente, que traz o artista executando políticos como Lula, George W. Bush e Fernando Henrique Cardoso, e da remoção por ordem judicial do viveiro de urubus da instalação Bandeira branca, do paulista Nuno Ramos. “É a mesma coisa que você deixar de discutir o Madame Bovary para comentar o fato de o Gustave Flaubert ter sido processado”, reclama o curador. continente O que você acha que a Bienal de São Paulo do ano passado conseguiu captar do cenário da arte contemporânea brasileira? AGnALDo FARiAS Eu não sou a pessoa mais indicada para falar disso porque fui eu que a organizei. Nós fizemos aquilo que pretendíamos: uma exposição com a presença de artistas significativos, dos mais variados

quadrantes do mundo, e com ênfase na questão latino-americana. Acho que a nossa intenção, recuperando sobretudo as experiências do Flávio de Carvalho, foi contribuir para a demarcação da amplitude do conceito de política, mostrando que o aspecto da invenção formal, da transgressão, é parte fundamental de um repertório político. Então, ficamos satisfeitos com o resultado. A exposição tinha muitos vídeos, muitas imagens em movimento. Isso não foi uma opção prévia, foi algo que se mostrou no momento em que começamos a fazer o levantamento, discutindo com os nossos curadores convidados. Tivemos também a constatação de que o campo das artes ditas plásticas está cada vez mais arejado, mais oxigenado e traz de tudo, inclusive experiências feitas no entrecruzamento de linguagens. O que o público viu, portanto, foram obras significativas de matrizes variadas, expandindo a noção de política, e que culminaram, no âmbito da exposição, nos terreiros, que eram não apenas pontos de encontro, mas, sim, lugares onde o público

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protagonizava a política – até porque ela só faz sentido na medida em que é praticada. Outro ganho, talvez até o mais importante, foi no setor educativo. A educação teve o estatuto de curadoria, com a Stela Barbieri, que trabalhou comigo e com o Moacir dos Anjos na concepção do evento como um todo. Ela elaborou um plano que terminou por atingir um feito inédito: 40 mil professores trabalhando nas suas classes, estimulados por um material que os informava acerca de 30 artistas de ponta.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

continente Você criticou a cobertura da mídia em relação à Bienal. Isso se deve ao fato de os veículos comentarem apenas as polêmicas do evento?

continente A escolha do tema contribuiu para esse foco da imprensa nas polêmicas? Ou é algo constante nas bienais? AGnALDo FARiAS O jornalista, movido pelo editor, vai atrás do que é escandaloso, do que é deficitário do ponto de vista deles. “Ah, prometeu um milhão e só tem 500 mil”. Não se analisa a exposição, não se discute. Até mesmo gente inteligente. O próprio Fábio Cypriano, da Folha de S.Paulo, falando da montagem menor em Belo Horizonte, disse que, agora que a exposição está pequena, dá para entender qual é a leitura da Bienal. O que ele quer dizer com isso? Que a gente deve então reduzir as exposições a mil metros quadrados, que a Bienal deve ter esse tamanho para que ele possa

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“o trabalho de nuno Ramos, o Bandeira branca, tem referências na arquitetura, no samba e em outras obras de arte. isso exige do curador uma formação sofisticada”

Entrevista AGnALDo FARiAS É um problema do jornalismo, hoje. A nossa imprensa, ao invés de discutir aspectos profundos e apostar na inteligência do leitor, tem cada vez mais se apegado a assuntos epidérmicos, a questões periféricas, que estão longe dos acontecimentos. É a mesma coisa de você deixar de discutir o Madame Bovary para comentar o fato de o Gustave Flaubert ter sido processado. A abordagem do campo da cultura atualmente é a de um caderno de costumes. A grande imprensa tem se tornado cada vez mais isso. Você faz um evento, junta gente inteligente, artistas magníficos e é francamente irritante ver o que vai sobrar disso. É desanimador.

AGnALDo FARiAS É bem mais tranquilo. No caso da Bienal, havia 159 artistas simultaneamente para serem atendidos. Isso esbarra em problemas de produção, e esse universo tão vasto é cansativo, desgastante, deixa você apreensivo com o que pode dar problema. São artistas que vêm do exterior, são comunicações remotas; é muito fácil entrar em discordância, ter tido problemas de compreensão. No Rumos, eu vou ter muita gente trabalhando comigo, é mais capilar. O curador-mapeador vai chegar até o ateliê das pessoas, vai estar junto. Fora que, no Rumos, é um trabalho de outra ordem, tem a ver com fazer prospecção, conhecer jovens artistas, ver como andam as coisas e sanar também certas expectativas e

compreender? Do que adianta a gente oferecer inteligência? Eu sei que de certa forma adianta, mas, lamentavelmente, o jornalismo não cumpre o seu papel. Está cada vez mais superficial, como tudo mais na nossa sociedade. O que não significa que não tenha gente interessada e boa nesse meio. Eu vejo, por exemplo, jornalistas que são pressionados pelos seus editores para buscar esse texto que vende. Eles acham que o público não tem condição de ler alguma coisa que demore, algo mais analítico. Isso é pensar muito mal do leitor. Se eu pensasse assim, não faria uma Bienal. continente Qual a diferença entre a curadoria da Bienal e a do Rumos Itaú Cultural?

lacunas de informação. O trabalho dos curadores, como está desenhado, é mais democrático e próximo; a equipe é boa e não existe muita hierarquia dentro dela. continente O papel do curador tem adquirido importância na arte contemporânea? AGnALDo FARiAS Tem, já faz tempo. Aqui no Brasil, ele começou a aparecer há 20 anos. Eu acho que ele sofreu e vem sofrendo uma espécie de inflação, tem sido supervalorizado, mas o que é mais importante é o trabalho do artista. O curador deveria somente dar luz e visibilidade a esse trabalho, ajudar nesse processo, porque supostamente ele tem conhecimento, estuda. Então, ele deve assinalar, junto com o artista, ou não, o que de melhor foi produzido e

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moldar um alinhavo em que se constrói uma narrativa, para potencializar o trabalho, mostrá-lo dignamente. Isso não acontece quando ele quer aparecer mais que o artista, quando se pretende mais autor que o próprio artista, quando quer que as obras sejam ilustrações de suas teses, quando expõe mal. Tem havido muito ressentimento de artistas, o que é perfeitamente compreensível, porque se sentem usados pelo curador nesse processo. Mas o trabalho do curador é um trabalho importante, como é importante você fazer a pauta de uma revista ou um festival cinematográfico. Esse trabalho de seleção, essa expertise, é relevante em qualquer área. O curador está entre o artista e o público, na mediação. É um trabalho que tem a ver

com formação intelectual e pedagogia, afinal, ele deve saciar uma carência do público, a de insumo estético. O desafio é manter-se atento. O que acontece, na maioria das vezes, é que a produção contemporânea tem fronteiras abertas e cada vez mais mescladas. O trabalho do Nuno Ramos, o Bandeira branca, por exemplo, tem referências na arquitetura, no samba e em outras obras de arte. Isso exige do curador uma formação muito ampla, sofisticada, para poder dar conta de um artista cuja sofisticação é oriunda de uma vasta gama de referências. continente E em relação ao público? Como os curadores buscam aproximá-lo da arte contemporânea?

AGnALDo FARiAS Primeiro, existem vários curadores, então não se pode pensar que há apenas uma forma de fazer isso. Eu sou extremamente preocupado com esse fato, entendendo que é importante em qualquer exposição a presença de um setor educativo, formado com a preocupação de não reduzir a fala sobre um trabalho a uma explicação. Ele deve tentar abrir essa mediação sem ferir o trabalho do artista. O que seria ferir o trabalho? Tentar reduzir, explicar, dissolver a sua carga de mistério. Os trabalhos são envoltos em mistério e, até certa medida, inabarcáveis, e é por isso que eles estão em uma exposição. Então, como você cria essa mediação é o X do problema.

continente Você falou antes da ausência de crítica nos jornais. E o meio acadêmico, ele faz esse papel? Existe hoje um espaço crítico independente? AGnALDo FARiAS Eu estou sem esperança em relação aos jornais. De um modo geral, eles não abrem espaço para discussão. Vejo nas pessoas que militam ali um grande heroísmo, porque existe um preconceito de que o jornalismo é mais voltado ao entretenimento e aos fatos do que às elucubrações analíticas. O jornalista é uma pessoa que sabe escrever e que pretende ser compreendido, o que é, a meu ver, muito saudável. A maioria das pessoas que sai da academia, enquanto ganha em profundidade, perde em comunicabilidade, porque

frequentemente a sua linguagem é cifrada, seus textos são críticos, caudatários de teses e conceitos, não circulam e não são acessíveis em uma primeira leitura. Há problemas e vantagens dos dois lados. E existe uma terceira via, que são os textos de catálogos. Eles também são problemáticos porque, embora possam conter carga reflexiva de alto nível, são afinados com o trabalho que tematizam. Eles são escritos de um ponto de partida positivo, pois ninguém faz um catálogo de uma exposição criticando o que está nela. O que não os impede de serem relevantes. No entanto, eles são textos superficiais também. Essas são as três grandes vias que nós temos hoje aqui no Brasil. Em que pesem todos seus problemas e suas qualidades, eu acho que a situação melhorou muito. Existe um número crescente de pessoas interessadas em arte contemporânea, e os jornais começaram a noticiá-la mais, ainda que focados em escândalos, fofocas. Isso não é um traço só das artes plásticas – de um modo geral, a imprensa tem essa abordagem. continente Como anda a produção artística contemporânea de Pernambuco? AGnALDo FARiAS Pernambuco é extraordinário. Nos últimos 15 anos, disparou. Começou com Gil Vicente e Marcelo Silveira, e agora tem Rodrigo Braga, Carlos Mélo, Jonathas de Andrade. É uma grande quantidade de gente de ótima qualidade também no campo da música, do cinema, da literatura. Isso não vem do nada. É um lastro, um caldo, já tem esse suporte, essa tradição, esse legado. Existe uma inteligência acumulada. Nas minhas passagens pelo estado, conheci o grupo ligado ao João Câmara, ao Francisco Brennand, ao José Cláudio, ao grande Gilvan Samico e ao próprio Ariano Suassuna, um grupo histórico significativo, de qualidade. Nem todos os lugares podem ostentar nomes como esses. A entrada em cena do Mamam e da Fundaj fez aparecer Oriana Duarte, Paulo Meira, Márcio Almeida, Manoel Veiga, Renato Valle, gente boa, ativa, inquieta. É um grupo grande. Até chegar nesses jovens de agora. Isso também acontece no âmbito da curadoria e da crítica: Janaína Melo, Júlia Rebouças, Clarissa Diniz, Ana Maria Maia, que está agora no Rumos.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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teLedRAMAtuRGiA

FotoGRAFiA

Um dos gêneros mais populares no Brasil, a telenovela têm uma importância cultural inquestionável no país. A matéria especial deste mês trata da presença do Nordeste na ambientação das histórias, como no caso da recente Cordel encantado, procurando também identificar a migração das novelas para outras plataformas e linguagens, principalmente na internet. No site da Continente, relembre aberturas e cenas de algumas tramas marcantes sobre a região, como Tieta, e conheça também sites de produções atuais.

Veja outras imagens dos coletivos de jovens fotógrafos, moradores de comunidades populares, citados na reportagem especial de Ana Lira.

Conexão

LeituRA Leia um trecho do livro O túnel, romance mais festejado do escritor argentino Ernesto Sabato, que faleceu em maio deste ano, prestes a completar 100 anos.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AndAnçAs viRtuAis

GALeRiA

PesQuisA

GAMes

ALteRnAtivo

A proposta do Behance network é facilitar a criação de portfólios

Multicolr permite busca de imagens por suas cores

Site divulga o desenvolvimento de jogos brasileiros

nego dito aborda literatura, música e cultura digital

behance.net

labs.ideeinc.com/multicolr

indiegamesbrasil.com

negodito.com

Para um artista, designer ou fotógrafo, selecionar seu portfólio e mostrá-lo a possíveis interessados é uma parte essencial do seu trabalho. O Behance networt é um site voltado tanto para quem quer divulgar suas produções como para quem busca nomes interessantes para um projeto. O nível das galerias é bom e o site promove uma boa integração com mídias sociais e outras páginas, como Vimeo, Youtube e Flickr. Além de divulgar, o Behance ainda permite a venda dos trabalhos por meio da página pessoal do artista.

Você está precisando urgentemente de uma imagem em terracota, a despeito do tema que ela enfoque? Esse tipo de busca virtual seria difícil até surgir um endereço que resolve parcialmente a demanda. O Multicolr Search Lab é uma das ferramentas que permitem a pesquisa de fotos sem utilizar palavras ou termos-chave. No site, vinculado a um acervo do Flickr de mais de 10 milhões de imagens, compartilhadas por meio da licença Creative Commons, o usuário pode escolher até 10 cores de uma palheta com 120 opções, encontrando resultados que as combinem.

Voltado para as pequenas iniciativas do mundo dos games, o Indie Games Brasil é mantido pelo designer Phellipe Lacerda. Com foco específico na produção nacional, seja para computadores ou para dispositivos móveis, a página traz resenhas de jogos, entrevistas com desenvolvedores e profissionais da área, artigos e debates. Para divulgar os jogos brasileiros, o designer pede que criadores de jogos enviem informações de seus lançamentos, tentando assim cobrir o nicho nacional dos games, normalmente esquecido pelos grandes veículos da área.

Nomeado a partir de uma música de Itamar Assumpção, o Nego Dito se dedica a comentar três áreas: música, literatura e cultura digital. Na melhor tradição dos bons fanzines, o site busca um viés alternativo às suas matérias e resenhas, constantemente atualizadas. Realizada por cinco editores e repórteres, a página ainda conta com colaborações e colunas de convidados e a seção Lado B, com matérias sobre contracultura.

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blogs tiRinHAs opintinho.com.br

Com personagens como Zé Sexo – referência ao dramaturgo José Celso Martinez –, além dos dois pintinhos, mãe e filho, personagens principais, a série de tiras criada por Alexandra Moraes é uma das mais criativas e divertidas da internet.

soLidARiedAde roteirosolidario.blogspot.com

Mantido pela jornalista Fabianna Freire Pepeu e sua irmã, Julianne, o Roteiro Solidário traz uma lista de locais e oportunidades para fazer caridade e doar objetos, dinheiro ou mesmo sangue para quem precisa.

oBRAs cLÁssicAs eM ALtA ResoLuçÃo Criação de uma das maiores empresas mundo, o Google Art Project oferece mais de mil pinturas para visualização nos mínimos detalhes googleartproject.com

cineMA

Diversos sites já tentaram reproduzir a experiência de observar um quadro. Claro, algo sempre vai se perder na transição para a tela eletrônica, por melhor que ela seja. Mas o Google Art Project é, até aqui, o ponto mais alto alcançado nessa busca pela virtualização de obras. Lançada em fevereiro, a página ainda tem um acervo reduzido, com pouco mais de mil peças, mas traz um diferencial em dois aspectos. O primeiro é a seleção, que privilegia realizações fundamentais para a história da pintura. O site reproduz parte da coleção de 17 museus e galerias, incluindo quadros do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, da Tate Britain e da National Gallery, ambas de Londres, e do Museu Van Gogh, em Amsterdã. Dentre as obras, estão a primeira versão de Quarto em Arles, de Van Gogh, Os embaixadores, de Hans Holbein, e diversos quadros de Cézanne. O outro traço do projeto é a preocupação com a qualidade da reprodução das peças. Alguma obras, com cerca de 7 bilhões de pixels, podem ser vistas nos mínimos detalhes, incluindo marcas das pinceladas e do tempo, permitindo análises das obras – as favoritas podem ser organizadas em uma galeria personalizada do usuário. Além disso, conta com informações sobre as pinturas e passeio virtual pelas salas dos museus. DiOGO GUeDeS

passarim.zip.net

O jornalista e crítico de cinema Daniel Caetano escreve no seu blog pessoal, com formato bastante simples, suas impressões sobre películas e diretores atuais, dando também dicas de links e artigos interessantes para os leitores.

RecontAGeM quadrinhosrasos.com

Criado em 2010, o Quadrinhos Rasos, blog de Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, cria histórias em quadrinhos a partir de trechos de canções populares, tanto brasileiras como estrangeiras.

sites sobre

músicos ACERVO

CRIATIVO

PORTAL

bobdylan.com

kraftwerk.com

caetanoveloso.com.br/?old

Dono de um imenso catálogo, Bob Dylan lista todas as músicas e letras por discos e ordem cronológica.

Experimental como as próprias origens do som da banda, o site da Krafkwerk traz informações sobre o grupo e animações exclusivas.

Além das informações sobre o cantor, o site de Caetano hospeda o seu polêmico blog e a revista Errática, sobre literatura.

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Portfólio

André Rosemberg

ásia easy rider TEXTO Adriana Dória Matos

talvez, o que cause mais estranhamento ao viajante comum – aquele que percorre muitos lugares em pouco tempo, numa agenda frenética, cheia de horários e compromissos – seja a declarada ausência de objetivos das empreitadas de André Rosemberg. Não que ele dispense planejamentos – sobretudo aqueles que antecedem a viagem, relativos ao mapeamento do percurso, ao tempo total de duração e aos gastos, por exemplo –, mas ele não se impõe limites, preferindo reagir aos acasos. Assim é que, se uma localidade se mostrar mais ou menos atraente que o imaginado, se surgir um curso interessante ou se houver um distúrbio imprevisto, ele pode estender ou encurtar sua estada, num exercício de liberdade pessoal. Não deixa de ser interessante, também nessas viagens, que ele escolha roteiros pouco comuns aos brasileiros em geral, cumprindo temporadas inteiras em lugares como Israel, Egito, Índia (na qual já esteve por três vezes), Nepal, Tailândia, Indonésia, Camboja, Vietnã, Malásia, Laos. Se tornarmos mais aguda a ideia de exercício de liberdade, poderemos supor que a ausência de uma interlocução direta com os moradores de cada um desses lugares – continente JUNHO 2011 | 16

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3 Páginas anteriores 1 tRAnspoRte

Trilhos de uma ferrovia nos arredores de Udaipur, uma das mais prósperas cidades da Índia Nestas páginas

2 tuRbAnte Pushkar significa flor de lótus, em sânscrito. Lótus é uma das posturas sagradas do hinduísmo 3 mulheRes É em Udaipur que ocorre o Mewar Festival, marco do começo da primavera, tendo como destaque a participação feminina 4 AlimentAção A cada 12 anos, Haridwar recebe a celebração do Kumbha Mela. Para atender à horda de peregrinos, há os diversos restaurantes de rua típicos do país

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Portf贸lio

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cujas línguas são estranhas ao aparato linguístico português – permite ao viajante um desprendimento maior, num estimulante aprendizado das regras e dos costumes locais. O que Rosemberg traz como caderno de viagem, para compartilhar as experiências de percurso com amigos e com quem quiser, são fotografias. Ainda que não seja fotógrafo profissional (ele é jornalista e empresário, dividindo com os irmãos a administração do bar Central, do Recife), as suas anotações visuais não podem tampouco ser enfeixadas entre os meros registros de presença, que reconhecemos muito bem quando nos oferecem para olhar álbuns em que o turista se interpõe entre a câmera e a situação fotografada, sempre. No caso de André, ele quase não aparece nas fotos, porque o que lhe interessa é o lugar e aquilo com o que é capaz de interagir. Como a fotografia expressa a visão de mundo de quem a realiza, podemos observar os interesses e a sensibilidade desse viajante easy rider. A cidade e seus habitantes, registrados

em composições despretensiosas, que colocam em cena o rotineiro, são constantes nas fotografias por ele selecionadas para este Portfólio, todas feitas numa viagem de sete meses pelo sudoeste asiático em 2010. Mesmo estando em localidades históricas e turísticas, grandes centros de peregrinação religiosa hindu, como Haridwar e Pushkar, e a superpopulosa Mumbai (ou Bombai), na Índia; ou em Siem Reap, um dos destinos turísticos mais populares do Camboja, André recolhe os pequenos acontecimentos que ocorrem sob a grandiosidade de eventos como o Kumbha Mela, registrados em coberturas jornalísticas. Ele se dedica especialmente ao assunto culinária e alimentação, bordejando mercados, frequentando restaurantes montados nas calçadas, atento ao comércio de vegetais, frutas, carnes e à gente que tem a rua como habitat, homens de turbantes, mulheres de sári, animais soltos pelas vielas, fiações precárias. Um repertório visual ao mesmo tempo estranho e comum aos que andam pelas ruas centrais das grandes cidades brasileiras.

5 secos e molhADos Desde o fim da ditadura de Pol Pot, nos anos 1990, o Camboja voltou a ser um importante destino turístico. Em Siem Reap, é intensa a movimentação comercial em torno do Mercado Antigo 6 DescAnso É em Hampi, cidade do estado de Karnataka, no sudoeste da Índia, que estão localizadas as ruínas de Vijayanagara. Por ali, descansam tranquilamente as vacas sagradas 7 poente Quem olha esse poente repousante, não suspeita que ele foi captado na agitada Mumbai, capital de Maharashtra, maior cidade da Índia e do mundo, localizada no centro-oeste indiano

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HALLINA BELTRÃO

FOTOS: DIVULGAÇÃO

De eLViS A MAicoU

Fugindo do terror Dá para imaginar essa cena: Michael Jackson e Marlon Brando se revezando no volante de um automóvel, com a atriz Elizabeth Taylor no banco de trás? O fato teria realmente acontecido, e foi descrito por um exassistente pessoal do Rei do Pop à revista Vanity Fair, do mês de maio. Segundo ele, os atores foram assistir a uma apresentação do cantor no Madison Square Garden, no dia 10 de setembro de 2001, quando o astro estava lançando o CD Invincible. Após os ataques terroristas ao World Trade Center, o artista reuniu toda a equipe que estava hospedada no mesmo hotel, inclusive Brando, e alertou que seria melhor partirem imediatamente de Nova York. A sua amiga Liz, que estava em um hotel próximo, se juntou a eles em direção a Nova Jersey. Pararam apenas para colocar gasolina e comprar comida em lojas de conveniência ao longo do caminho. Depois, em um carro alugado, o trio, já sem o restante do grupo, viajou pelo interior de Ohio. Para quem duvida da veracidade da insólita ocorrência, basta lembrar que Brando tinha em frente à sua mansão um imã gigante que, uma vez acionado pelo ator, poderia prender qualquer carro “suspeito”, Liz era conhecida por sua imprevisibilidade e Michael prescinde de comentários. Especula-se agora que a “aventura” será roteirizada para um road movie de Hollywood. Que tal Tarantino para a direção? DÉBoRA nASciMento

con ti nen te

A FRASE

Assim como no Brasil houve a febre dos rodrigos, diegos, diogos, cauãs, felipes, dos lucas, mateus, e por aí vai, os Estados Unidos também têm o costume de abusar de certos nomes por determinados períodos. Segundo o Seguro Social americano, um dos mais usados pelos pais para batizar seus filhos entrou em desuso. Pela primeira vez, desde 1954, “Elvis” saiu da lista dos preferidos. É uma prova de que o Rei do Rock não está mais tão popular em sua própria terra. Em 2010, os mais frequentes foram Jacob, seguido de Ethan, Michael, Jayden, William, Alexander, Noah, Daniel, Aiden e Anthony. O nome Michael, que, nos anos 1980, no Brasil, ganhou a versão Maicou, parece não querer sair da preferência nos EUA, mesmo após a morte do Rei do Pop. (DN)

Balaio DeSconStRUinDo PeRRY Ela já beijou uma garota e gostou. Mas aquilo foi só o começo. A cantora Katy Perry (foto) agora é “Katy Pervy” (abreviação de pervert), segundo uma paródia que tem tudo para ser um pornbuster. No “enredo”, a protagonista está disposta a fazer muito mais coisas pelo sucesso do que simplesmente beijar uma garota. Em sua escalada para o sucesso, a jovem Pervy esbarra em astros do showbiz, como Russel Gland e Snoop Dong Dong. A garota talvez não seja a nova Madonna, mas, pelo menos nessa versão pornô, já superou a boa e velha (sem trocadilhos) Rainha do Pop: seu badalado softcore Na cama com Madonna dá o maior sono. (Thiago Lins)

“Liberdade é escolher entre a amargura e o prazer.” Milan Kundera

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MeLAnciA no PALco Muito frequente no futebol brasileiro, o vandalismo já protagonizou verdadeiros “shows” também no campo da música. Quem foi vítima de um deles foi Alceu Valença, que, em 1982, teve de interromper uma apresentação no Ginásio Vermelhão, em Goiás, depois que um abacaxi e uma melancia (!) foram jogados no palco. Coincidência ou não, o atentado se deu bem na hora em que ele cantava Tropicana, música que exalta, de forma sensual, as cores, formas, gostos e cheiros das frutas: “Da manga rosa, quero o gosto e o sumo,/ melão maduro, sapoti, juá”... (Gilson Oliveira)

cRiAtuRAS

cHUVA De GARRAFAS Pior aconteceu com Raul Seixas, que, durante um show em São Paulo, em 1984, foi alvo de garrafas e latas de cerveja jogadas pelo público. A razão é que, como existiam muitos covers faturando em cima do sucesso do artista, o público, em determinado momento da apresentação, cismou que aquele se tratava de mais um. O caso foi parar na delegacia – onde o cantor, por estar sem os documentos, chegou a ser espancado – e também nas telas de cinema, com o curta-metragem Tanta estrela por aí, de Tadeu Knudsen, que tem Rita Lee no papel do “maluco beleza”. (GO)

LUtA PeLo tAMAnHo GG A epidemia de obesidade que assola os EUA está forçando as áreas de bens e de serviços à adaptação de novos padrões ergonômicos, com vários segmentos oferecendo versões de seus produtos em tamanhos maiores. O setor automobilístico, no entanto, ainda não se mobilizou pela questão. Um recente estudo afirma que motoristas moderadamente obesos estão sujeitos a uma probabilidade 21% maior de morte em um acidente de carro. No caso de obesidade mórbida, o risco aumenta para 56%. Por conta disso, entidades pedem, além de maior espaço interno nos automóveis, um upgrade nos manequins usados em testes de colisão, que ainda seguem padrões do que são consideradas “pessoas normais”. Os novos bonecos, que deveriam ser maiores, mais pesados e que forçariam a adoção de cintos de segurança mais resistentes, ainda estão em desenvolvimento. (Yellow)

João Gilberto, 80 anos Por Miguel

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divulgação

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eSPeciAL

tv o nordeste como protagonista Sucesso da novela Cordel encantado, da TV Globo, provoca discussão sobre como a complexidade sociocultural da região é retratada pela teledramaturgia brasileira texto Alexandre Figueirôa 1

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o nordeste está de volta ao

repertório audiovisual da televisão brasileira na mais recente telenovela da Rede Globo, Cordel encantado. Em exibição no início da noite, a produção vem alcançando bons índices de audiência para o horário, e apresenta uma trama que põe juntos realeza europeia e uma paisagem interiorana nordestina. Príncipes e princesas mesclam-se com cangaceiros e mocinhas sonhadoras na fictícia cidade de Brogodó, tecendo um enredo fabular que se utiliza de elementos típicos do folclore brasileiro. É a primeira produção do núcleo de teledramaturgia da Globo a ser gravada com câmeras digitais em 24 quadros, o que lhe confere textura e qualidade de imagem bem próxima à do cinema. Mais uma vez temos uma produção que se esmera em criar um clima pitoresco, falado num indefectível “nordestinês”, acompanhado por uma trilha musical que embaralha repente com acordes de canções populares, resultando no incontornável “samba do crioulo doido” em que se transformam essas obras da teledramaturgia que têm o Nordeste como inspiração. De qualquer forma, não podemos negar que, para as emissoras de televisão, principalmente a TV Globo, produções ambientadas nessa região parecem ser garantia de um bom retorno de audiência. Se compararmos com outras regiões do país, com exceção das inúmeras telenovelas cujo palco das ações são as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, o Nordeste – da Bahia ao Maranhão – já contabiliza, só na Globo, quase duas dezenas de histórias nele ambientadas. E basta uma rápida folheada no Guia Ilustrado da TV Globo, dedicado às novelas e minisséries, para vermos que a Bahia, de longe, é o estado preferido para essas aventuras regionalistas. A primeira produção da Globo com trama ambientada na região estreou em 1969 – Verão vermelho, de Dias Gomes –, passava-se em Salvador e destacava as festas de rua, rodas de capoeira e terreiros de candomblé. Outras novelas ambientadas na Bahia seguiram o mesmo caminho e foram grandes sucessos de público. Foi o caso de O bem-amado (1973), a primeira telenovela em cores da televisão brasileira, e de

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várias outras adaptações de romances de Jorge Amado, a exemplo de Gabriela (1975) e Tieta (1990). O Nordeste, por sua diversidade de manifestações populares, também foi um espaço perfeito para a criação de lugares fictícios e até experimentos na linguagem da teledramaturgia, como aconteceu na curiosa Saramandaia, escrita por Dias Gomes e cuja narrativa inaugurou o gênero realismo fantástico na televisão, fórmula repetida em outras produções, como Roque Santeiro, de Dias Gomes e Aguinaldo Silva (1986), e A indomada, de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares (1997). Fora da “Hollywood Tropical”, vamos encontrar poucas produções com o Nordeste como pano de fundo.

Entre elas, assinalamos O coronel e o lobisomem (1982), uma realização da TV Cultura, baseada no romance homônimo de José Cândido Carvalho, e Mandacaru, produzida pela extinta TV Manchete, entre 1997 e 1998, e reexibida pela Bandeirantes, em 2006. Essa foi mais uma trama no sertão da Bahia, ambientada nos anos 1930, com enredo desenvolvido a partir da morte de Lampião e Maria Bonita. Mais remotamente e em registro local, não podemos esquecer A moça do sobrado grande (1967), telenovela produzida e exibida pela TV Jornal do Commercio, do Recife, e que também foi exibida no ano seguinte pela TV Bandeirantes, de São Paulo. Escrita por Semiramis Alves Teixeira, teve a direção de Jorge

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acErvo PESSoal Paula diP

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1 CORDEL

ENCANTADO

Primeira produção da globo a usar câmeras digitais 24 quadros 2 GABRIELA da obra de Jorge amado, novela tinha Sônia Braga como protagonista, e foi sucesso de público 3 cAnGAÇo Em 1982, a minissérie Lampião e Maria Bonita centrou-se nos seis últimos meses de vida do cangaceiro 4 PioneiRA a primeira novela ambientada no NE foi Verão vermelho, de dias gomes,1969 4

José. No elenco, Carmen Peixoto, José Pimentel e Jonas Melo. Baseada em fatos pitorescos da história pernambucana, deve-se a essa telenovela um grande feito, pois foi a primeira, na televisão brasileira, a usar cenas externas.

MiniSSÉRieS

Como formato televisivo, as minisséries são uma variante da telenovela e também têm a TV Globo como sua principal realizadora. Embora seja uma narrativa construída com o mesmo tipo de estrutura, que se sucede linearmente ao longo de todos os capítulos, sua duração é menor, podendo ter apenas quatro ou cinco capítulos. A minissérie, no entanto, trabalha propostas textuais mais

As produções ambientadas na região exageram na caracterização dos personagens, sobretudo pelo “nortestinês”

inovadoras e tramas sofisticadas e o seu ritmo de produção é menos intenso que o de uma novela, apresentando, por conta desses fatores, um trabalho mais burilado, tanto de texto quanto de imagem. Adaptações literárias e enredos baseados em personalidades históricas ou artísticas são recorrentes no formato, o qual tem se mostrado

um espaço de experimentação, por conta da maior liberdade de criação dos autores e diretores. A primeira minissérie produzida pela TV Globo, em 1982, já teve o Nordeste como cenário. Foi Lampião e Maria Bonita, de autoria de Aguinaldo Silva e Doc Comparato, e se baseava nos últimos seis meses de vida do cangaceiro. A minissérie enfocou dois aspectos antagônicos do protagonista: o líder sanguinário combatido pelas autoridades, e o herói, como era visto por parte da população do sertão nordestino. As gravações foram feitas em diversas cidades nordestinas e nos estúdios da TV Globo, no Rio. A mesma dupla de autores seria responsável por Padre Cícero, minissérie de 1984 centrada na biografia de uma das figuras mais emblemáticas da região, pondo em cena personagens reais e fictícios. Ela foi gravada durante três meses num povoado do interior da Bahia e contou também com cenas rodadas em Alagoas e Pernambuco. No mesmo ano, foi realizada Rabo de saia, ambientada no Nordeste, nos anos 1920, história sobre um comerciante que mantém três famílias em cidades fictícias diferentes. Foi inspirada em Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas, do caruaruense José Condé. Em 1985, tivemos Tenda dos milagres, de autoria de Aguinaldo Silva, baseada em romance homônimo de Jorge Amado, o autor brasileiro mais adaptado para a televisão. Em 1988, foi a vez de Dias Gomes adaptar peça de sua autoria, O pagador de promessas, montada pela primeira vez em 1960, pelo TBC, e também levada para o cinema por Anselmo Duarte, em 1962, filme que conquistou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Gomes utiliza-se de um humilde devoto para discutir questões políticas e religiosas. A minissérie foi concebida inicialmente para ter 12 capítulos, mas acabou com oito, por causa dos cortes da Censura Federal. A minissérie Riacho doce, rodada em Fernando de Noronha, em 1990, numa adaptação da obra do escritor paraibano José Lins do Rego, retomou o interesse por temas nordestinos na televisão. Jorge Amado voltou a ter um romance adaptado como minissérie em 1992, com Teresa Batista. No mesmo

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ano, Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, romance sobre a saga de uma mulher contra a submissão na sociedade patriarcal do século 19, também virou minissérie. Embora se passe no sertão nordestino na trama original, na adaptação televisiva, essa produção foi situada em Goiás, por decisão de Carlos Manga, diretor artístico da obra. Em 1998, mais um Jorge Amado adaptado para a televisão, desta feita por Dias Gomes: Dona Flor e seus dois maridos. No ano seguinte, tivemos a microssérie O auto da Compadecida, uma produção do Núcleo Guel Arraes, baseada na peça mais famosa de Ariano Suassuna. Ela foi filmada em película, em Cabaceiras, no sertão da Paraíba, e nos estúdios do Projac e da Cinédia, no Rio de Janeiro, e ganhou uma versão cinematográfica de grande sucesso de público. Segundo um dos maiores estudiosos de televisão no Brasil, o professor Arlindo Machado, O auto foi um dos mais eloquentes exemplos do que se pode fazer em teledramaturgia, pela perfeita síntese do popular e do erudito, inovação de linguagem e acessibilidade a um público mais amplo. A invenção do Brasil, outra microssérie do Núcleo Guel Arraes – também depois transformada em filme – foi realizada em 2000, sendo um dos primeiros programas da TV Globo a usar tecnologia HDTV. Ela conta a trajetória de Caramuru, degredado que viveu no litoral da Bahia no século 16, combinando ficção e documentário. Temos ainda A Pedra do Reino, de Luiz Fernando Carvalho, a partir do romance de Ariano Suassuna. A minissérie, de 2007, foi uma homenagem aos 80 anos do escritor, numa coprodução da Globo e da independente Academia de Filmes. Abriu o projeto Quadrante, cuja meta era mostrar a diversidade cultural brasileira, a partir da adaptação de obras literárias nacionais, filmadas em regiões onde se passa a trama e com aproveitamento de elenco e mão de obra local. Ela foi filmada em 16 mm em Taperoá, na Paraíba, e finalizada em alta definição. A minissérie foi um misto de romance de cavalaria e novela picaresca, mostrando que a cultura sertaneja tem raízes ibéricas, com elementos da Idade Média,

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Ao contrário das novelas, alongadas em muitos capítulos, as minisséries podem encampar projetos mais experimentais da commedia dell’arte e da cultura árabe. A minissérie teve desfechos inexistentes no livro, contudo criados pelo próprio Suassuna. O Nordeste aparece também, de alguma forma, na minissérie Hoje é dia de Maria, de Luiz Fernando Carvalho, na qual contos populares, compilados pelo escritor potiguar Câmara Cascudo, foram incorporados à narrativa. Nela, Carvalho investiu no resgate de sons e do visual do folclore brasileiro, ressaltando uma representação marcada pela hibridação étnica, místico-religiosa e estética. Amazônia, de 2007, também remete a elementos da cultura nordestina, a partir dos personagens, migrantes do Nordeste que foram para o Acre viver nos seringais. Devemos assinalar, por fim, as minisséries: Santo por acaso e Cruzamentos urbanos, produções do Polo de Teledramaturgia do Nordeste, surgido

em 2007, na TV Jornal, do Recife, emissora afiliada ao SBT. A primeira, dirigida por Léo Falcão, mostra um rapaz puro que vive num sertão em que a maior autoridade ainda é a eclesiástica. A trama discute a questão dos milagres e santos e a notoriedade que a televisão confere às pessoas. Já Cruzamentos urbanos, dirigida por Pablo Polo, busca mostrar um nordeste com problemas urbanos, como drogas e conflitos sociais, recorrendo à paisagem e ambientação que procuram evitar os clichês regionalistas. Ambas as produções não chegaram, porém, a esboçar um projeto estético mais consistente, capaz de implementar uma diferenciação das obras realizadas pela Globo. A ideia do polo não foi adiante, limitando-se a essas duas realizações, o que certamente impediu a constituição de uma narrativa mais consistente e rica de um olhar sobre a região.

MitoS RecoRRenteS

Apesar de algumas mudanças trazidas por produções audiovisuais mais recentes, durante décadas, no imaginário nacional, o nordeste brasileiro teve como representações recorrentes duas imagens inconfundíveis. A primeira, a de região seca, pobre e palco de conflitos sociais agudos; e a segunda, a de detentora de

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5 CARAMURU Minissérie que se passava no litoral da Bahia, no século 16, combinava ficção e documentário 6 ARiAno SUASSUnA a adaptação de O Auto da Compadecida conseguiu fazer uma síntese do popular e do erudito 7 FoLcLoRe Hoje é dia de Maria tomou como base os contos populares compilados pelo escritor potiguar câmara cascudo

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um litoral exuberante e paradisíaco. Coube à literatura, inicialmente, e ao cinema, mais tarde, formularem as significações mais expressivas da descrição dessa paisagem e fixarem uma percepção cristalizada da imagem nordestina. Tal percepção consolidouse e definiu a face mais visível, ou mais facilmente manipulável, de nossa

identidade cultural: um nordeste mítico e idealizado, no qual persistem representações espetaculares e sensacionalistas da natureza local. Dessa forma, foram os caprichos do clima e a penúria econômica e social, observados e descritos em romances e filmes desde a primeira metade do século 20, que tornaram essa imagem

o paradigma da situação miserável a que boa parte da população do país estava submetida. Ela se consolidou, principalmente, quando os intelectuais brasileiros se engajaram no ideal de uso da arte como instrumento de transformação social. O fenômeno cíclico da estiagem e a estrutura agrária arcaica geradora de uma série de fenômenos socioculturais fizeram da região uma fonte inesgotável de mitos e lendas cultivados por seus habitantes, uma população marcada pela religiosidade fervorosa e forte tendência às práticas messiânicas. Esse universo tornou-se, então, motivo de inspiração para os artistas preocupados em retratar em suas obras aspectos da cultura popular, sobretudo os que realçavam resistência e oposição à cultura das elites e aos detentores do poder político e econômico. Foi desse modo que escritores brasileiros desbravaram os sertões e encheram páginas e páginas de relatos sobre a luta do homem sertanejo pela sobrevivência, enfrentando a seca, a injustiça, os coronéis, os pistoleiros, os cangaceiros e os que, na esperança por dias melhores, partiram para outras regiões em busca de água, comida e trabalho. Na ornamentação desse mundo particular, os autores registraram as histórias dos beatos – que proliferaram pelo sertão afora, sendo responsáveis pelos inúmeros episódios fantásticos marcados na alma nordestina até nossos dias – e revelaram a herança folclórica ibérica que o território acabou preservando. Esses elementos formam a base de iniciativas artísticas concebidas na região. Caso do Movimento Regionalista, deflagrado em 1926 – tendo como principal expoente o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre –, com a finalidade de desenvolver um sentimento de unidade regional nordestina. E também do Movimento Armorial, capitaneado pelo paraibano Ariano Suassuna, a partir dos anos 1970, que teve como meta criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular. Essa estética de inspiração política foi também seguida pelo cinema e, mais recentemente, pela televisão. Nos anos 1950, o cinema brasileiro deu continuidade ao que a literatura descortinou, e os filmes sobre o

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cON especial ti NeN te cangaço foram os melhores exemplos desse olhar estereotipado sobre o Nordeste. Na década seguinte, com o Cinema Novo – quando o cinema brasileiro partiu para um projeto que visava dotar o cinema nacional de uma identidade cultural própria–, foi também o Nordeste um dos celeiros de inspiração temática e estética. Os cineastas se apropriaram da iconografia da região, seus personagens, símbolos e mitos, buscando, contudo, eximir seus filmes de uma visão da realidade contaminada por aspectos que pudessem ser interpretados como uma exploração do exótico. Isso os levou a evitar planos em que a beleza da paisagem se sobrepusesse ao narrado; e a não utilizar encenações de manifestações folclóricas que evidenciassem a interferência do diretor, limitando-se a captá-las em sua desenvoltura natural.

ViSÃo LocAL

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A partir dos anos 1990, e na primeira década do século 21, vamos perceber no cinema uma mudança desse ponto de vista, nos filmes rodados por cineastas no Nordeste. No âmbito da produção de longas-metragens, por exemplo, já podemos apontar a quebra de certos paradigmas. A região

continua carente e com desigualdades sociais alarmantes, e isso é mostrado pelos filmes, todavia o audiovisual produzido pelos nordestinos vem incorporando ou recriando em suas obras experiências renovadas de registrar o lugar. Filmes, como Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas; Sertão das memórias, de José Araújo; O céu de Suely, de Karim Aïnouz; Cinema, aspirinas e urubus, de Marcelo Gomes; Amarelo manga, de Cláudio Assis; Viajo porque preciso volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, flagram o Nordeste desvinculado de uma identidade cultural congelada e apontam para a construção de características múltiplas e abertas, que reinterpretam as imagens e personagens locais. Já a teledramaturgia brasileira, ao ter o Nordeste como foco, parece-nos menos ousada que o cinema e permanece ainda presa ao velho mito do nordeste pitoresco, circunscrevendo as suas tramas, inúmeras vezes, aos clichês consagrados, colocando em segundo plano aspectos que evidenciem contradições e conflitos sociais mais profundos. Para isso, basta vermos as telenovelas e minisséries com histórias ambientadas no Nordeste que foram feitas, a partir dos anos

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8 O CÉU DE SUELY Filmes recentes apontam uma mudança na forma de enxergar o Nordeste 9 INSENSATO CORAÇÃO os produtores transmídia criaram o site do Bar do gabino, ponto de encontro de um núcleo de personagens da novela

1980, pelas emissoras de televisão, sobretudo a TV Globo. Muitas delas foram baseadas em obras literárias tradicionais de autores regionais. Se, por um lado, atualizam os dramas sociais denunciados por esses autores, por outro, descontextualizam os elementos políticos enunciados. Não queremos aqui impor um discurso pessimista sobre a ficção televisiva, e mesmo compartilhamos com o pesquisador paraibano Cláudio Paiva, que sugere que vejamos as novelas e minisséries no contexto multicultural da contemporaneidade, como expressões de uma arte globalizada, resultados de estratégias comerciais adequadas à assimilação do espectador. Sabemos, ainda, o quanto autores como Dias Gomes, Aguinaldo Silva e Guel Arraes estão empenhados em mostrar as cenas públicas e privadas da vida social nordestina, como enfatiza Paiva, ao afirmar que o conjunto dessas produções “consiste numa projeção histórica e numa construção sentimental que informa, subverte, amplia, recria os cenários da vida real nordestina”. Para Paiva, esses autores conhecem as paixões, os dramas, os sonhos e as tragédias dos nordestinos e os retratam de maneira reveladora. Todavia, mesmo quando ousam em narrativa, algumas novelas e minisséries não ultrapassam o limite de uma matriz em que prevalecem as aparências de uma exploração da paisagem pelo seu efeito pitoresco, e de personagens cujo atrativo principal é uma conduta muitas vezes sensual, humorística e caricata. Assim, deixam pouco espaço para que as relacionemos a uma postura social e política mais crítica, embora a própria Globo defenda que a sua criação na teledramaturgia se dê através do diálogo com a sociedade, acompanhando as mudanças sociais.

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rEProdução

Artigo

alexandre figueirôa e yvana fechine telenovela: um gênero em transformação Para garantir a sobrevivência do gênero e a manutenção da audiência, as emissoras de televisão contam hoje com uma forte aliada no processo de fidelização dos seus espectadores: a internet. Todas as produções da teledramaturgia brasileira estão lançando mão de estratégias ancoradas na web e o principal apoio vem dos sites criados pelos portais das emissoras. Na Globo, desde 2007, existe uma Central Globo de Desenvolvimento Artístico (CGDA), que tem como uma das atribuições pensar desdobramentos “transmídias” para as telenovelas. O seriado Malhação, a partir de 2009, passou a explorar com mais intensidade a internet e as redes sociais, lançando inclusive a primeira websérie da emissora com extensões dos conteúdos da TV. Depois, foi a vez das novelas Caminho das Índias e Viver a vida que, além de sites, tiveram blogs criados com temas relacionados aos seus enredos. Os produtores do CGDA trabalham em sintonia com os autores e roteiristas das tramas, de modo a buscarem alternativas que potencializem as ações, e permitam uma espécie de retroalimentação e complementaridade das narrativas. Nos sites das telenovelas, há colunas como “Capítulos”, “Personagens”, “Bastidores” e “Vem por aí”. Há também a disponibilização de vídeos com as cenas mais importantes já exibidas e trechos de próximas. Geralmente, são oferecidos ainda jogos em torno de personagens e cenas das produções, bem como enquetes sobre os destinos dos personagens ou das tramas, sobretudo quando vai se aproximando o final da novela. Nos sites, é possível encontrar ainda seções do tipo “Fale com o autor” ou “Fale com o diretor”, que oferecem

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Caminho das Índias e Viver a vida, além de sites, tiveram blogs criados com temas relacionados aos seus enredos uma ferramenta de contato direto do telespectador com a equipe de produção. Tem-se tornado também uma prática comum a utilização de cenas apresentando os personagens ou de “extras”, com atores dando o próprio depoimento sobre os tipos que vão interpretar e como se prepararam para isso. A Rede Record incrementou ainda mais essas ações, ao ofertar alguns conteúdos dos sites de suas novelas para telefones celulares. É muito frequente também a construção de seções com informações e serviços associados ao enredo das telenovelas. Em Caminho das Índias, por exemplo, foi criada uma seção intitulada “Conexão Índia”, que tratava dos costumes indianos, já que os protagonistas da história viviam no país. Em Viver a vida, foi colocado à disposição o “Portal da Superação”, que reunia depoimentos de pessoas anônimas que haviam enfrentado com coragem e determinação momentos difíceis na vida, como a personagem Luciana, modelo que ficou tetraplégica após um acidente de carro. Essas seções podem, no entanto, ser mais

despretensiosas e constantemente renovadas, como no site de Cordel encantado, em que foi disponibilizada a receita de um doce feito pela personagem da cozinheira do Palácio do Governo de Brogodó, Maria Cesária, e que encantou o rei Augusto. Outra estratégia recorrente é a criação de sites para divulgar empresas ou revistas fictícias que só existem no universo diegético da trama, mas que são apresentados na internet como se tivessem existência real. Em Ti-Ti-Ti, cuja história principal girava em torno da rivalidade entre dois costureiros famosos, foi construído, por exemplo, o site da revista Moda Brasil, na qual os dois disputavam espaço e prestígio. O site da revista divulgava tanto reportagens fictícias sobre o universo ficcional criado em torno dos dois costureiros (inclusive com conteúdos exclusivos para as coberturas da web), quanto apresentava matérias com acontecimentos e tendências de moda do “mundo real”. Na telenovela Insensato coração, ainda no ar, os produtores transmídias propuseram a criação do site da In Design, empresa fundada por Marina Drummond, uma das protagonistas da trama, na qual trabalha André Gurgel, um dos galãs da história. Também foi construído o site da Barão da Gamboa, a badalada casa noturna frequentada por personagens da novela. Em Morde e assopra, mais um exemplo: vinculado à homepage da novela, foi construído o site do SPA Preciosa, um lugar fictício

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cON especial ti NeN te que, na internet, é tratado como se tivesse existência real. Nesse esforço por envolver o telespectador com a telenovela, retroalimentando conteúdos, as redes sociais vêm sendo uma ferramenta importante, reunindo comunidades espontâneas, mas também criadas pela equipe de produção para que as pessoas possam conversar sobre a novela e trocar opiniões a partir de seus personagens e situações. No processo de propagação dos conteúdos, o Twitter assumiu um papel de destaque. A criação de um perfil no microblog de divulgação da telenovela tornou-se regra. Por meio dos perfis dos personagens, eles podem dialogar com os espectadores como se fossem dotados de existência real, tanto com os telespectadores que se tornam seus seguidores quanto com outros personagens da história. O número crescente de seguidores colocou rapidamente para as emissoras um dos problemas provocados pela “morte súbita” da telenovela: o que fazer para não perder esse público com o final da história? A resposta encontrada pela TV Globo foi a criação, a partir deste ano, de uma conta no microblog para o conjunto das telenovelas, @tvglobonovelas, uma estratégia que aposta em uma relação de maior duração e no crescimento ainda maior do número de seguidores, medida em que, a cada nova produção, eles tendem a se acumular, e não a se dispersar. A prova do quanto essas estratégias de envolvimento estimulam a participação espontânea dos telespectadores pode ser determinada pelas comunidades de fãs nas redes sociais responsáveis por amplificar o “fórum” de debates em torno de cada nova telenovela. As comunidades criadas são, geralmente, muito ativas e o número de integrantes costuma ser proporcional à audiência e ao tempo de permanência do produto no ar. Para se ter uma ideia, a novela Ribeirão do tempo, da Record, cujos índices ficavam em torno de 12 pontos pelo Ibope, tinha comunidades no Orkut com uma média de 12 mil membros, um número relativamente inferior ao da maioria das produções de teledramaturgia da Globo, líder absoluta de audiência. Por sua 5

longevidade, Malhação conta, por exemplo, com comunidades de fãs que reúnem cerca de 300 mil membros. Os seguidores do Twitter também apresentam números expressivos (em torno de 26 mil) e cenas que são postadas no YouTube chegam a alcançar cerca de 200 mil visualizações, sobretudo as que envolvem os pares românticos da trama. Ti-Ti-Ti, uma das novelas de maior sucesso no horário das 19 horas na TV Globo nos últimos anos, chegou a ter quase 60 mil seguidores no Twitter. Ela também ganhou muitas comunidades no Orkut e a maior delas tinha em torno de 42 mil membros. Cordel encantado, novela do horário das 18 horas e ambientada

As estratégias de transmídia utilizadas pela tV Globo estimulam a participação dos telespectadores no Nordeste, já conta com diversas comunidades no Orkut, algumas com quase oito mil membros. É bom assinalar, também, a existência de comunidades de internautas que não gostam dos programas. No Orkut, por exemplo, existe, há cinco anos, uma comunidade com cerca de 7.500 membros dedicada às pessoas que dizem “odiar” Malhação. Essas redes sociais têm desempenhado, assim, um papel decisivo na maneira de consumir televisão, instaurando uma espécie de boca a boca da era digital, que influencia o modo como a telenovela é recebida, ao mesmo tempo em que interfere na crítica especializada de TV. Os redatores de revistas e sites especializados em televisão passam agora também a atuar como filtros e editores dos conteúdos gerados pelos usuários da internet. Sempre que uma nova telenovela é lançada, os redatores postam comentários analíticos sobre o programa e, no decorrer dos meses de exibição, vão incorporando em suas observações elementos retirados dos comentários postados pelos internautas.

Isso é facilmente verificável, por exemplo, no site de Patrícia Kogut, colunista do jornal O Globo. Durante o tempo em que a novela Ti-Ti-Ti esteve sendo exibida, ela abria espaço para a opinião dos internautas e utilizava, em algumas ocasiões, o posicionamento daqueles que postaram comentários em seu blog para estruturar o seu próprio texto. Por vezes, apoiava os seus seguidores e ainda tentava interpretar o motivo da reação deles diante da atitude de um ou outro personagem ou de acontecimentos narrados na trama. Ela interagia, também, fazendo um balanço da recepção de seus comentários e análises. Da mesma novela, o crítico Maurício Stycer, em 15 de fevereiro deste ano, falou no seu blog sobre a polêmica em torno do casal gay formado pelos personagens Julinho e Thales. O colunista deu a sua opinião e ressaltou que o fictício estava cada vez mais próximo do real. Ele usou imagens e permitiu comentários dos internautas (com moderação). Nesse dia, o blog recebeu mais de 600 comentários. No dia 25 seguinte, Stycer retuitou a opinião de um internauta, Ti Ti Ti RT @pdralex: “Todo mundo se beijando o tempo todo na novela... Menos o casal gay”. Exemplos em que, claramente, os espectadores começam a ter suas opiniões amplificadas pela crítica. Ainda é cedo para avaliarmos em que medida essas ações contribuirão para a renovação da forma narrativa da telenovela. Ela é, certamente, um dos gêneros mais consolidados da televisão brasileira. Mas, como todos, esse também evolui a partir da dialética entre repetição e inovação, entre continuidades (tradição) e rupturas. Essa evolução dos gêneros depende da mudança progressiva de certos hábitos de produzir o texto e de certos hábitos receptivos (determinado sistema de expectativa do público). Por isso, ao mesmo tempo em que precisam estar atentos ao comportamento do público, imerso numa cultura de mídias cada vez mais dinâmica, com a internet potencializando seus efeitos, é preciso que os autores reavaliem, também, o próprio processo de criação e produção da telenovela.

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audiência Quem matou odete roitmann?

Presença forte na cultura de massa brasileira há cinco décadas, a novela continua arregimentando o interesse do público, é o que comprovam reprises como a de Vale tudo texto Cleodon Pedro Coelho divulgação

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Recentemente , na entrevista

coletiva que marcou o lançamento de Cordel encantado, atual cartaz do horário das seis da Rede Globo, o fundador do Teatro Oficina e estreante nos folhetins eletrônicos, Zé Celso Martinez Corrêa, pegou o microfone para falar em alto e bom som que odeia novelas. “Se eu tivesse juízo, não teria vindo”, bradou o diretor. Estaria ele arrependido por ter aceitado a empreitada ou simplesmente queria transformar o evento num happening à moda dos que caracterizam seu importantíssimo grupo? Polêmica à parte, a opinião de Zé Celso nos faz lembrar do quanto, assim como no futebol, as novelas podem suscitar relações de amor e ódio. Presença tão forte na cultura de massa brasileira, difícil mesmo é manter-se indiferente a elas. Como afirma o antropólogo Roberto DaMatta, “toda novela diz muito”. Há 23 anos, uma trama com o título de Vale tudo ganhava o horário nobre das oito para discutir a ética (e a falta de) do povo brasileiro. O país vivia uma hiperinflação, as classes sociais não se misturavam, não havia telefonia celular, nem tampouco o famigerado “politicamente correto”, o que permitia que os personagens fumassem e bebessem à vontade em cena. Os tempos são outros, mas nada disso compromete o sucesso de sua reprise, em cartaz no canal Viva, ainda que num horário ingrato: 0h45. Se toda novela diz muito, com certeza as discussões sobre ética continuam as mesmas. O fato chega a assustar. Não por acaso, Vale tudo é considerada por muitos especialistas como a melhor trama de todos os

VALE TUDO

Em 1988, o Brasil parou para saber quem havia matado a vilã interpretada por Beatriz Segall

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A novela é uma obra aberta e durante o período em que está no ar fica subordinada à audiência, que pode interferir na história

tempos, justamente por tratar de um assunto que nunca sai de moda. E a sua volta tem provocado um comportamento curioso: mesmo quem já viu a novela – exibida pela Globo em 1988 e reprisada quatro anos depois –, acompanha os capítulos com a mesma curiosidade de quem conhece a história pela

primeira vez. Foi Leila, personagem de Cássia Kiss, quem matou a vilã-mor Odete Roitmann, uma das perguntas mais repetidas em todos os tempos no mundo da televisão. Isso numa época em que não existiam Twitter, Facebook e que tais. O mistério em torno do nome do assassino liderava mesmo era o ranking dos trend topics dos botecos, dos salões de beleza e das salas de aula. Após mais de 20 anos, conhecer o final da história de Gilberto Braga e Aguinaldo Silva é o que menos importa. Parafraseando o Programa do Jô, ninguém vai mais para a cama sem Raquel, Ivan, Maria de Fátima e César, o quarteto fantástico que põe em cena todas as vertentes em que o bem e o mal possam se manifestar. Enquanto o

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cON especial ti NeN te FotoS: rEProdução

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o complexo de estúdios começou a funcionar em 1995, em curicica, zona oeste do rio de Janeiro

12 Sbt

atualmente, a emissora exibe Amor e revolução, que retrata a repressão a militantes de esquerda durante a ditadura (1964-1985)

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perfil dos personagens continua próximo do que a gente vê nos noticiários, é possível perceber claramente o quanto o aparato que envolve a realização de uma novela mudou, dos anos 1980 para cá. Para melhor. Naquela época, os estúdios da Globo funcionavam no prédio do Jardim Botânico, zona sul do Rio, onde hoje fica o setor de jornalismo. Era tudo junto e misturado. O local em que Odete foi “assassinada” – atualmente ocupado pela equipe do Jornal Nacional – é quase uma atração turística. As novelas, minisséries e seriados tomam agora as dependências do Projac, complexo de estúdios inaugurado em 1995 em Curicica, na zona oeste. Com espaço à vontade, é lá onde ficam as fábricas de cenários, os acervos de figurino e mobiliário e as cidades cenográficas, que nada devem às dos estúdios hollywoodianos. Ficaram para trás os tempos em

que a casa de um personagem era enfeitada com móveis tubulares e samambaias, como o apartamento de Solange, papel da atriz Lídia Brondi (que falta que ela faz!) em Vale tudo.

UnAniMiDADe

Novela pode não ser uma unanimidade, está aí o Zé Celso para endossar. Mas houve um dia em que o Brasil parou diante da TV para ver Rosana Reis ser desmascarada. A revelação sobre a falsa identidade de Simone, personagem de Regina Duarte na versão original de Selva de pedra (1972), deu à trama a espetacular marca de 100% no Ibope. Todos os aparelhos ligados no país acompanhavam o tão esperado momento. E esse é um feito que jamais se repetiu. Mesmo assim, ao longo dos anos 1970 e 1980 as novelas continuaram marcando pontos altíssimos, até que a chegada da TV por assinatura – no início da década de 1990 – e a oferta

de dezenas de canais ao alcance do controle remoto mudassem o panorama. Os fãs do gênero, no entanto, não precisam se amedrontar. Ainda está longe o dia em que as novelas deixarão de fazer parte do cardápio televisivo. Atualmente, por exemplo, a Globo exibe quatro tramas (incluindo Malhação), a Record tem duas e o SBT, uma. Sem contar com as reprises nos mesmos canais e as atrações do Viva, um verdadeiro parque de diversões para quem não se cansa de rever os clássicos do gênero. A televisão chegou de mala e cuia ao Brasil em 1950, mas as novelas no formato diário apareceram um pouco mais tarde: em 1963, mais precisamente em 22 de julho. O marco zero foi 2-5499 Ocupado, na extinta TV Excelsior, protagonizada pelo mítico casal Tarcísio Meira e Glória Menezes. Na verdade, a trama era mostrada às segundas, quartas e sextas, em seus dois primeiros meses. Só a partir de setembro daquele ano é que ganhou veiculação diária. Rapidamente, as outras emissoras quiseram se lançar no formato. A Tupi estreou Alma cigana no comecinho de 1964, ano que marcou o primeiro grande sucesso do gênero, O direito de nascer, no mesmo canal. E a TV Globo, que entrou em cena em 1965, abriu os trabalhos com Ilusões perdidas, com Leila Diniz, Reginaldo Faria e Norma Blum nos créditos. Em todas as emissoras, os dramalhões dominavam. As histórias se passavam ora na Espanha, ora no Japão. Os casais penavam nas mãos de vilões maquiavélicos, daqueles de fazerem inveja aos contos de fada. Tudo bem, o sofrimento continua, pois a base de uma boa novela é fazer o público torcer para que os pombinhos enfrentem todas as adversidades em busca do final feliz. Bráulio Pedroso, com Beto Rockfeller (1968), e, um pouco depois, Janete Clair, com Véu de noiva (1969), deram

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os primeiros passos na modernização da linguagem, conferindo às tramas tintas bem verde-amarelas, ainda que em tempos de TV em preto e branco. As condições de trabalho, claro, eram pré-históricas. As cenas externas tinham que ser realizadas nas próprias dependências da emissora. O ator e diretor Marcos Paulo, que estreou na TV Excelsior em 1967 e acompanhou todas as mudanças, lembra que a equipe tinha que ser bastante criativa para solucionar o que era escrito pelos autores. O figurino vinha, em sua maioria, do guarda-roupa dos próprios atores. Mesmo assim, aos trancos e barrancos, as novelas foram conquistando fatias generosas de telespectadores, transformandose numa paixão nacional.

bAStiDoReS

Diante de um produto que provoca tanta admiração, não faltam fantasias sobre seu modus operandi. Mas os bastidores de uma novela não têm nada do glamour que muita gente imagina e que as revistas de celebridades tentam alimentar. Para fazer a tal fábrica de sonhos funcionar, o trabalho é árduo. Uma jornada que se estende por longos oito ou nove meses, em média, com dezenas de cenas gravadas por dia, de segunda a sábado, e pilhas de textos para serem decorados em pouco tempo. Cenários são montados e desmontados diariamente. Equipes de cabelo e maquiagem estão sempre a postos, assim como contrarregras, faxineiros e bombeiros. É um exército em ação. Mas tem um ponto interessante que não pode ser esquecido: quem manda é o freguês, como dizia o velho anúncio da famosa rede de lojas Casas José Araújo. Por ser uma obra aberta, durante os meses em que está no ar, a novela fica ao belprazer da audiência. Se o público não embarca, o mais sensato a fazer é seguir a vontade coletiva e realizar os ajustes. Mesmo tendo a melhor das premissas, se a novela não conquista o telespectador, não há grande interpretação ou direção rebuscada que dê jeito. Um bom exemplo é As filhas da mãe (2001), de Sílvio de Abreu, comédia

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rasgada com personagens criados especialmente para seus intérpretes (Fernanda Montenegro, Raul Cortez, Regina Casé, Andréa Beltrão, entre outras estrelas), mas que teve índices bem abaixo das expectativas e saiu do ar antes de completar cinco meses. Até hoje ninguém sabe o que deu de errado na receita. E Sílvio – autor da histórica e hilariante Guerra dos sexos (1983) – segue fazendo sucesso em outra vertente: as tramas de suspense, como Belíssima (2005) e Passione (2010). Há quem fale em esgotamento do gênero, mas é inegável que autores como João Emanuel Carneiro e a dupla Duca Rachid e Thelma Guedes se esforçam para colocar pitadas de originalidade numa receita já testada com todos os ingredientes possíveis nos últimos 48 anos. Com uma trama em que, até o capítulo 60, ninguém sabia quem era a mocinha e quem era a vilã, João fez de A favorita (2008) um dos grandes títulos do gênero. Enquanto Duca e Thelma vêm brincando com muita graciosidade na mistura de reino encantado com sertão nordestino do Cordel das seis da tarde. E o que ainda pode ser mostrado nas novelas? Em maio, os telespectadores da novela Amor e revolução, do SBT, foram surpreendidos pelo beijo entre Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre). Esse pode ser considerado o primeiro beijo gay numa novela brasileira. Antes, houve “ensaios”, como o

selinho de Clara e Rafaela em Mulheres apaixonadas (2003), é verdade, mas as duas estavam encenando Romeu e Julieta, quando aconteceu. O jovem Bruno Gagliasso lamenta até hoje não ter entrado para a história das telenovelas como o primeiro ator a dar um beijo em outro homem numa novela – no caso, América (2005), em que seu personagem, Júnior, se apaixonava pelo peão Zeca (Erom Cordeiro). A expectativa foi enorme; a frustração (para muitos), idem. Para imaginar o alcance de uma novela, é só tirar dois dedos de prosa com um ator, mesmo aquele que não aparece nos créditos principais. Até gente que pavimentou sua trajetória no teatro e no cinema viveu a dor e a delícia de ser confundido com personagens televisivos. Enquanto filmava o premiado Central do Brasil, em Cruzeiro do Nordeste, interior de Pernambuco, Fernanda Montenegro era reconhecida nas ruas como a Zazá da novela homônima. Em Monte Belo do Sul, no Rio Grande do Sul, onde rodava Saneamento básico, Lázaro Ramos era chamado pela população de Foguinho, seu papel em Cobras & Lagartos. O diretor Zé Celso Martinez Corrêa, como a gente já sabe, odeia novelas. E a sua curta participação em Cordel encantado não o permitiu experimentar um dos maiores efeitos colaterais do produto: esse reconhecimento da grande massa. Se iria odiar ou amar, não vamos saber, infelizmente.

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Entrevista

maria immacolata lopes “não se chega mais a 50 pontos de ibope” A nação brasileira deve, em ampla medida, sua consolidação na contemporaneidade à existência da telenovela. É ela, segundo Maria Immacolata Vassallo de Lopes – uma das mais importantes estudiosas da ficção televisiva no Brasil –, que melhor representa o país e sua sociedade, ajudando ainda a criar um imaginário comum em todo o país. Coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da USP, no qual é professora titular da Escola de Comunicações e Artes, Lopes é doutora em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e tem pósdoutorado pela Università degli Studi di Firenze (UFIT), Itália. Segundo ela, há uma enorme qualidade e inovação na telenovela do país, mesmo que sejam frequentes as opiniões de esgotamento. Nesta entrevista, ela fala sobre a evolução dos folhetins na TV, o abrasileiramento das produções, o surgimento do “padrão Globo de qualidade” e a importância do gênero na atualidade. continente Por que a telenovela é um gênero tão forte no Brasil? MARiA iMMAcoLAtA As novelas vêm do desejo e da necessidade de o homem ouvir e contar histórias. As narrativas estão por aí em todos os formatos, mas sempre houve contos, romances; livros, rádio, filmes e televisão. O melodrama aparece como uma matriz popular da narrativa. Isso vem desde circos da Idade Média, grupos de teatro nômades, com espetáculos populares para rir, para mostrar a sociedade de forma crítica. Do melodrama, evoluímos e chegamos aos folhetins no século 19, às narrativas por capítulos impressos, seriados. Do folhetim fomos à fotonovela, à radionovela, até chegar à telenovela.

Isso, sempre com preconceito contra o melodrama, contra formas populares, em que os críticos não veem qualidade. A estética popular é sempre alvo de preconceito. continente Existe alguma característica especificamente brasileira nessa evolução? MARiA iMMAcoLAtA Nos anos 1950, com a instalação da TV no Brasil, tivemos os primeiros programas de ficção divulgados desta forma. Já se seguiam paradigmas internacionais, como a soap opera dos Estados Unidos. Tivemos também influência direta de Cuba, onde o folhetim já era forte. Entretanto, não podíamos falar ainda de telenovela, mas em seriados, com conteúdo absolutamente exógeno, adaptações e cópias de romances de fora do país. Daí chegamos a 1968, ao que nós, estudiosos da televisão, chamamos de marco: Beto Rockefeller, de Braulio Pedroso. Foi um momento de nacionalização do gênero, o abrasileiramento da novela. É a partir dali que temos a nossa marca, com gravações externas, linguagem coloquial e, principalmente,

a identificação com o homem comum do Brasil. Jesús Martín-Barbero explica que quem escrevia essas novelas eram autores de teatro, de tendência de esquerda (em pleno regime militar). Autores que, em função de questões sociais e históricas, viram na televisão uma forma de trabalhar, já que o teatro estava censurado e controlado pelos militares. Foram eles que ajudaram a desenvolver o trabalho que se diferenciou da abordagem que havia até então. A partir de 1968, há uma progressiva ascensão da Rede Globo e do formato que conhecemos hoje, em capítulos diários. continente De que forma a novela reflete a sociedade brasileira e como essa sociedade é representada no folhetim? MARiA iMMAcoLAtA Desenvolvo uma linha de pesquisa na qual a telenovela é uma narrativa da nação. Essa ideia é de Benedict Anderson, que fala da nação como uma comunidade imaginada. Ele mostra que, no século 19, o jornal criava um imaginário comum da Inglaterra, fazendo com que pessoas que não se

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conheciam lessem as mesmas coisas. Trago esse conceito para a telenovela e identifico nela algo que o cinema brasileiro não conseguiu, a imprensa não conseguiu. Ela é o produto audiovisual que representa a nação. A especificidade da novela brasileira é ser uma peça de ficção, mas que serve para as pessoas se informarem. Além de ficção e realidade, temos um binômio complicado de público e privado. A telenovela sempre levou coisas do público para o privado e vice-versa. Vale tudo, por exemplo, foi uma representação típica do país no fim da ditadura. Desde Beto Rockefeller, coloca-se o cotidiano brasileiro nessas histórias, mostrando os valores, os imaginários da população. A telenovela brasileira rompeu muitas convenções sobre vilões e mocinhos. Desde Beto Rockefeller ninguém é totalmente bom ou mau nas novelas. Há uma representação do brasileiro, mesmo que um ou outro tipo não seja representado com tanta frequência, como o goiano, ou o gaúcho. Cobra-se que as novelas mostrem o Brasil todo, mas isso é um exagero de expectativas.

de 200 capítulos, como acontece com as novelas brasileiras. Isso é a carpintaria da teledramaturgia, reconhecida mundialmente.

continente Os críticos costumam ser duros com as telenovelas, e chegam a falar do esgotamento do gênero. Isso pode ocorrer de fato? MARiA iMMAcoLAtA Sempre se fala em esgotamento do formato de telenovelas, do elogio de novos formatos de séries, com a incorporação da ideia de temporadas. Mas, mesmo com tantos formatos inovadores de ficção na televisão, a novela continua sendo o produto mais caro da TV brasileira, responsável pela indústria televisiva como um todo no país, mais importante do que o jornalismo ou qualquer outro gênero. As pessoas elogiam séries americanas e muitas vezes esquecem a qualidade da ficção brasileira. E essa qualidade não é só técnica. Costumamos nos prender muito em autores, mas o ambiente de produção é o que há de mais importante. Fazer uma novela funcionar em uma produção cotidiana, diária, não é algo que exista com qualidade nem nos Estados Unidos. As séries americanas têm outro ritmo de produção, mais lento. Não é uma obra aberta

voltam a fazer sucesso. O mesmo acontece com o DVD, formato em que é possível encontrar novelas clássicas inteiras, como Roque Santeiro, Irmãos coragem. Cada vez mais, elas seguem o modelo de séries, e as pessoas podem ter em casa, guardar para sempre. Com a tecnologia e a modernidade, passamos a ter uma multiplicidade de maneiras de assistir.

continente A crítica acadêmica e jornalística também costuma ser dura com a liderança da Globo em relação à concorrência. O que a senhora acha disso? MARiA iMMAcoLAtA No Brasil, existe o chamado “padrão Globo de qualidade”, que realmente traz um diferencial, já que a empresa investe em fazer um produto bem-feito. E o brasileiro se acostumou a ver isso, a comparar as novelas da Globo com as de outros canais. Ele vê o que é bem-produzido aqui. Chegamos a um patamar em que a concorrência mudou de foco, fazendo uma produção “mexicanizada” para tentar concorrer com a Globo. Essa emissora consolidou o gênero e foi a que mais cuidou historicamente da qualidade das tramas contadas. A ficção da Globo é 100% nacional, com remake de autores nacionais. O SBT, a Record e a Bandeirantes não seguem isso. A Record, por exemplo, está fazendo remake de Rebelde, buscando histórias não originais, adaptadas, algo que segue o que vem de fora. O que a Record tem feito de melhor é trazer novos autores. Ela ainda está abrindo e criando, e não se sabe o que vai acontecer.

continente A senhora acredita que existe preconceito contra a telenovela no Brasil? MARiA iMMAcoLAtA Tanto a telenovela quanto os programas de auditório e tudo o que há na televisão, a não ser o jornalismo, sofriam historicamente muito preconceito. A telenovela realmente é uma história muito estereotipada sobre as paixões, dirigida especialmente para as mulheres, e sofre preconceito como objeto de estudo. A USP estuda o gênero desde os anos 1990, no Centro de Estudos de Telenovela da Escola de Comunicação e Artes. Isso começou criando celeuma intelectual, devido a pesquisadores não verem importância na pesquisa desse objeto. Mas há

continente Não há crise na telenovela brasileira, então? MARiA iMMAcoLAtA Fala-se que a audiência está caindo, o que é verdade, mas isso é normal. Há novas plataformas, faz sentido que a recepção se fragmente. Não temos mais a família que assiste à novela reunida na sala. São novos formatos que não chegam mais a 50 pontos de Ibope, como acontecia no passado. Há uma diversificação da audiência, e as pessoas podem assistir a novelas depois, na internet, no celular, no DVD. A novela não morreu e não vai morrer, mesmo que haja uma ou outra mais bemsucedida, ou não. DaNiel bUarQUe

continente Como podemos explicar o sucesso da transmissão de novelas antigas, como Vale tudo e Vamp, na TV a cabo? MARiA iMMAcoLAtA O que vemos agora com o canal Viva é uma memória histórica e afetiva da telenovela brasileira. Como é uma narrativa que trabalha com emoção e razão, não podemos deixar de lado os aspectos afetivos. É assim que Vale tudo reaparece. Isso vai muito além do “Vale a pena ver de novo” e traz memória e história. Estamos falando de novelas da década de 1980, que

tirando o jornalismo, a novela e tudo o que há na televisão sofreram historicamente um grande preconceito

uma progressiva legitimidade, uma conquista dos estudos da televisão, que sempre foi considerado um veículo menor em comparação com os livros e o cinema – e, dentro da televisão, especialmente a ficção, a telenovela. Hoje, temos grupos de pesquisa por todo o Brasil que estudam a teleficção.

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KARINA FREITAS

CON TI NEN TE#44

Peleja

A família tem o direito de publicar obras do autor, pós-morte? Recentemente, a viúva de José Saramago, Pilar del Río, comentou que o livro póstumo do Nobel de literatura, O último caderno, era um “presente inesperado”. Ela tem administrado o espólio do português com tranquilidade, mas são recorrentes os desentendimentos entre herdeiros e editoras. O professor Godofredo de Oliveira defende que o texto literário é sempre descaracterizável. Já para a revisora e redatora Andrea Marques, a publicação após a morte resulta em incompletude.

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Godofredo de Oliveira Neto cabe, em primeiro lugar, deixar

claro que há uma diferença apenas de grau entre um inédito que venha a ser publicado após a morte do autor e um texto já lançado, mas que seja alterado depois do desaparecimento do escritor. A natureza do problema é a mesma. A ordem sintática e a pontuação, sujeitas a mudanças, são elementos da própria Professor e semântica narrativa. Pode-se então doutor em Letras pela UFRJ chegar a um outro resultado, não conhecido pelo autor, quase como se fosse um inédito, tal a descaracterização. Ou seja, os parentes autorizaram a publicação de um novo livro. Graciliano teve muitos romances publicados postumamente. Mas, mesmo em vida, o alagoano verificou erros em várias edições da sua obra. Após a sua morte, o fato se acentuou. O crítico Wilson Martins publicou um texto no qual prova que o monumental Memórias do cárcere, publicado após o falecimento de Graciliano, teve partes da narrativa alteradas pelo partido a que o escritor fora filiado. A vontade do autor, no caso, não foi respeitada em toda a extensão da obra. Ainda assim, foi melhor para a literatura, já que cabe ao leitor e à crítica o restabelecimento da escrita, até porque o texto literário é sempre incompleto e exige a cooperação de quem lê. Pode-se notar, a partir dessa constatação, a importância das chamadas edições críticas. Sei de uma obra da literatura brasileira contemporânea que, ao ser traduzida para o inglês, teve mais de 100 páginas suprimidas. É o mesmo livro? Faço essa observação porque várias obras, principalmente clássicas, mas não só, tiveram edições “resumidas”, o que em alguns casos representou a eliminação de 60% do texto! A autorização da família então se refere a que livro? A doutrina acadêmica ensina que a versão a ser considerada para estudos é a última revista pelo autor. O livro Magma, coletânea de poemas escritos por Guimarães Rosa, só foi publicado em 1997. Muitos estudiosos torceram o nariz. Se Rosa não quis publicá-lo, por que a família o edita décadas depois da morte do escritor? Ora: o autor submeteu esses mesmos versos a um concurso de inéditos da ABL. Revisou o livro, tornou-o conhecido e foi premiado! Por alguma razão não quis publicá-lo depois. A família agiu corretamente ao autorizar a publicação depois da sua morte. Não poderíamos estar diante de uma obra-prima, tal como acontece com boa parte da produção de Pessoa?

Graciliano teve muitos romances póstumos. Mas, mesmo em vida, verificou erros em edições da sua obra

Andrea Marques Já imaginaram um médico que tenha

cursado apenas o primeiro semestre? Um advogado sem registro na OAB? Pois bem, essa é a sensação que sentiríamos ao ler uma obra inacabada. É difícil imaginar como uma obra de Fernando Pessoa seria apresentada ao nosso “intelecto”, caso fosse publicada sem o seu toque final. Como ficaria Revisora, redatora Alberto Caeiro? E seus outros heterôgraduada em Letras pela USP nimos, existiriam? É certo que nossa imaginação tem toda a capacidade para criar vários finais, mas é improvável que tivesse o final arquitetado pelo artista e a dúvida pairaria eterna e cruel: qual seria o final ideal? Ou: seria isso mesmo que ele (o artista) imaginava para a história? O próprio leitor se tornaria inacabado. Faltaria coesão às suas ideias. E o ponto final do último parágrafo, quem teria a coragem de colocar, ou, no caso de uma obra inacabada, de não colocá-lo? Indiscutivelmente, só o verdadeiro artista é capaz de fazê-lo. Vocês, leitores, ousariam, em Machado de Assis, por exemplo, definir um final para Capitu, diferente do que ele propôs? Ela seria definitivamente uma adúltera ou uma Capitu vítima da mente doentia de Bentinho? Nesse caso, até optamos, opinamos, não por vontade própria, mas induzidos pela própria genialidade machadiana de deixar em aberto, nas entrelinhas, vários finais, porém estamos falando de uma dúvida proposital, característica do autor. O que dizer de Os sertões? Teríamos os fatos históricos narrados como aconteceram? E Vidas secas? Fabiano teria tido a coragem de fugir para sua felicidade, deixando sua seca espiritual e social para trás? E em Ensaio sobre a cegueira? Sem o final de Saramago, teríamos argumentos para os contextos atuais ou continuaríamos apenas cegos políticos e sociais? Não, a autonomia do autor é única; seu poder de criação é soberano, ímpar, e deve estar presente do começo ao fim da sua obra. Feito o parâmetro com esses argumentos “hipoteticamente” levantados, ainda que pareçam exagerados e sem propósito, torna-se mais sem propósito, ainda, o fato de a família de um artista morto ter o direito de publicar uma de suas obras inacabadas. Como fica toda a trajetória construída por esse artista? Seu direito de mexer na obra, de dar o seu último retoque e que por algum motivo não teve tempo?

A autonomia do autor é única; seu poder de criação é soberano, ímpar, e deve estar presente do começo ao fim da sua obra

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APIPUCOS Era uma casa, virou museu

Criada em 1987, a Fundação Gilberto Freyre abriga acervo que testemunha universo doméstico e profissional do sociólogo TEXTO Gianni Paula de Melo FOTOS Chico Ludermir

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Pernambucanas Gilberto Freyre deixou o Recife, aos 18 anos, para estudar na Universidade de Baylor, nos Estados Unidos. Concluída sua formação de bacharel em Artes, no ano de 1920, ele seguiu para a Universidade de Columbia, onde fez mestrado e defendeu sua dissertação. Daí em diante, trilhou o caminho de um cidadão do mundo – não à toa, seus textos sobre o Oriente integrarão as discussões da 7ª edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), na qual será homenageado. No entanto, por mais que tenha conquistado respeito nos incontáveis países por onde passou, Freyre não abdicava do aconchegante bairro recifense, escolhido para erguer o seu lar. “Ele podia rodar o mundo, mas os pés dele estavam fincados em Apipucos”, conta a filha Sônia Freyre. Foi na Vivenda Santo Antonio de Apipucos, localizada no tradicional e bucólico bairro da zona norte da cidade, que o sociólogo viveu por mais de 40 anos, ao lado de sua esposa Magdalena e dos seus filhos Fernando e Sônia. Em sua casa, Freyre reuniu toda sorte de objetos pessoais, itens

“A relação do homem com a casa é quase o que é a relação do homem com o ventre materno” Gilberto Freyre

artísticos, coleções, condecorações e, por trás da materialidade desses pertences, seus afetos. Pois, como ele próprio escreveu: “a relação do homem com a casa é (…) quase o que é a relação do homem com o ventre materno, o ventre gerador, o abrigo do útero”. Respeitando seus anseios pela preservação de sua memória, no dia 11 de março de 1987, os familiares converteram esse patrimônio privado em um espaço de acesso público, a Fundação Gilberto Freyre (FGF). Hoje, ela é formada não só pelo imóvel, que recebe o nome de Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, mas também pelo sítio ecológico restaurado – remanescente de quintais antigos – e pelo Espaço Cultural, construído em

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2000, ano do centenário de Freyre, para sediar eventos e cursos. Ao todo, a fundação conta com uma área de 10 mil metros quadrados, em que é possível testemunhar intimamente o universo do personagem histórico. Alinhado à preocupação ecológica explicitada no livro Nordeste, de 1936, Freyre cultivou a vegetação do seu terreno durante anos. Composto por pausbrasis, mangueiras, bananeiras, oitizeiros, pitangueiras, entre outras espécies, o sítio ecológico passou por alguns melhoramentos com a finalidade de facilitar a locomoção dos visitantes, já que os percursos eram originalmente de barro. Lá, entre fruteiras e palmeiras imperiais, repousam os ossos do casal Freyre, em um memorial fúnebre cercado por um mural de cerâmica construído para atender o desejo do sociólogo de retornar a Apipucos depois de morto. Uma curiosidade sobre a escolha por esse bairro é a de que o escritor considerava a existência de uma ordem religiosa como um bom indicativo do lugar. “Ele costumava

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Exemplar arquitetônico do século 19, a edificação mantém as mesmas características de quando foi adquirida pela família

Nestas páginas 2 SALA De eStAR

Era nesse cômodo que Gilberto Freyre recebia os convidados mais formais

3 GABinete De tRABALHo Local em que o sociólogo passava mais tempo. Boneco reproduz a posição relaxada na qual ele costumava escrever

dizer que os religiosos sabiam escolher seus locais para moradia e, no caso de Apipucos, havia o seminário Marista”, comenta Sônia, que atualmente é a presidente da Fundação.

MeMÓRiAS

De fachada bela e ar aristocrático próprio dos exemplares arquitetônicos do século 19, a casa-museu mantém a mesma estrutura da época de Freyre e todas as alterações feitas no imóvel datam do período em que a família ainda estava instalada nela. No início dos anos 1940, por exemplo, época de aquisição da casa pelo sociólogo, foi feita uma grande reforma, porque a construção se encontrava em ruínas. Segundo o arquiteto José Luiz da Mota Menezes, a distribuição dos cômodos indica que, originalmente, aquele imóvel não servia de residência e, sim, de escritório comercial dos engenhos daquela região. Até os anos 1950, na casa existia apenas um quarto, onde dormiam o casal e as crianças. Para melhor acomodar a família e sua coleção de livros – que não parava de crescer, começando a se acumular até

o patrimônio promove uma experiência sensorial que se soma ao que é possível conhecer sobre Freyre através do seu acervo

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mesmo em sua banheira –, Freyre ampliou a casa, construindo mais dois quartos (um para cada filho) e o gabinete de trabalho, que se tornou seu preferido. “Sem dúvidas, o local onde ele trabalhava é o que melhor o representa. Aquela cadeira onde se sentava bem à vontade, ali era o cantinho dele”, relembra Sônia. Para alguns, o gabinete de trabalho também poderia ser considerado a biblioteca de Freyre, mas parece um equívoco reduzir aquele espaço à função de abrigar livros, quando por todos os lados existem estantes reunindo seu acervo pessoal de mais de 40 mil obras. Nas paredes, os numerosos quadros também chamam a atenção, principalmente os dos amigos

Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. Este último dá nome a uma das salas da casamuseu, onde ficam, além de pinturas de sua autoria, coleções de porcelanas holandesas, francesas e alemãs. Como pesquisador preocupado em perceber o Brasil a partir da perspectiva da vida privada, Freyre também atentou em adequar o espaço doméstico à sua linha de pensamento. “Ele fez da casa a união perfeita entre o homem e o pensamento; por efeito, ela representa o espelho do seu rosto no sentido cultural e sociológico. Há um intenso mimetismo, que era fortalecido cotidianamente pela sua capacidade de adorná-la ao seu jeito”, analisa a antropóloga Fátima Quintas. Desde a elegante e solene sala de estar da família, por onde começa a expedição pela casa, até o solário intimista, local dedicado aos amigos próximos, várias faces do escritor são reveladas. Nesse ambiente, mantido com cuidado e requinte, a pesquisadora da obra freyriana aponta os detalhes que, em sua opinião, geram mais encanto: “Os azulejos me chamam a atenção pela dignidade estética e pelo estilo harmônico; os aparadores são belíssimos e imponentes; a escada principal transmite o tom heráldico e discreto”. O patrimônio e seus arredores promovem uma experiência sensorial que se soma àquilo que é possível conhecer sobre Freyre através dos seus livros e estudos. O pesquisador Rodrigo Alves Ribeiro analisa o diálogo entre o espaço e a memória, em sua dissertação Moradas da memória: a construção de um museu na casa de Gilberto Freyre: “Tudo que Gilberto Freyre enumerou como memórias de Apipucos, do Recife, de Pernambuco, do Nordeste açucarocrático, estava interagindo com a vida íntima

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Pernambucanas e intelectual do escritor. Os espaços foram por ele transformados em lugares de memória, num quebracabeça em que as peças não são em sua totalidade completas, em virtude do tempo da memória: fragmentado, disperso e velado”.

PeQUenoS notÁVeiS

Dentre os objetos íntimos ou decorativos, alguns carregam histórias significativas. Uma das mais famosas está associada ao conjunto de painéis de azulejos portugueses dispostos pela casa com ilustrações de cenas sacras. Antes de aportarem em Apipucos, eles pertenciam à Igreja Nossa Senhora da Soledade, em Lisboa, que foi demolida para ampliação de um aeroporto. Na

época, Freyre comprou os azulejos, mas foi impedido de trazê-los ao Brasil, pois eram considerados patrimônio português. Na tentativa de contornar o empecilho, escreveu ao governo do país e seguiu em viagem para a África, onde faria pesquisas. Ao retornar, seu pedido seria atendido com a ajuda de um “jeitinho português”: Freyre foi nomeado embaixador e, dessa forma, sua residência passou a ser considerada um pedacinho de Portugal no Brasil. Outro agrado vindo das terras ibéricas é a edição fac-similar de Os Lusíadas, distribuída pelo governo de Portugal para 150 pessoas de destaque. No Brasil, além de Gilberto Freyre, apenas uma pessoa recebeu

exemplar dessa edição: o presidente da república na época, Getúlio Vargas. De honrarias mais simbólicas às mais oficiais, toda a trajetória do intelectual está exposta no museu, através de medalhas, placas e homenagens. Entre elas, sobressai-se a condecoração que recebeu da Ordem do Império Britânico, pelas mãos da rainha Elizabeth II. Já os descendentes da família real brasileira agraciaram Freyre com uma mesa – na qual está gravado o símbolo do império – que ele havia elogiado na época em que era deputado federal. Dentre as coleções associadas à cultura popular, as esculturas de Zé do Carmo merecem destaque, em especial a réplica do cangaceiro

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4 tÚMULo Embora os restos mortais do casal Gilbero e Magdalena estejam depositados em outro local da propriedade, é nessa placa simbólica que os visitantes acendem velas 5 DetALHe Azulejos pertenciam à Igreja Nossa Senhora da Soledade, em Lisboa, que foi demolida. Freyre só conseguiu trazê-los ao país ao ser nomeado embaixador de Portugal no Brasil

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com asas de anjo que o artista plástico pretendia entregar ao papa, na época em que o religioso visitou o estado, mas não obteve autorização do arcebispo.

ViÉS eDUcAtiVo

Apesar da riqueza do patrimônio, a coordenadora de visitação da Fundação, Manuella Falcão, afirma que despertar o interesse dos recifenses para o museu ainda é um desafio. Mesmo assim, a equipe se esforça para desenvolver atividades temáticas e atrair escolas e turistas. O tour inspirado no livro Assombrações do Recife Velho é o mais conhecido e ocorre entre os meses de setembro e março, com um formato de apresentação

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cênica interativa. Durante o ano, também são organizadas visitações em consonância com as datas comemorativas, buscando resgatar o que Freyre disse em seus estudos sobre cada elemento festejado. A fundação fica aberta de segunda a sexta, das 9h às 17h, e, no fim de semana, pode ser visitada mediante agendamento prévio dos grupos. Porém, se muito esforço é feito para trazer o grande público ao espaço, também é verdade que os estudantes e pesquisadores que já possuem interesse na vida e obra freyriana enfrentam uma grande burocracia para terem acesso aos livros da casa, assim como às fotos de arquivo, documentos e aos

materiais multimídia. Para isso, é preciso não só agendar horário, mas escrever uma carta de intenção, apresentar o perfil da pesquisa e especificar os materiais necessários. “Infelizmente, esse controle se faz necessário para a manutenção de um acervo que se quer preservar para as futuras gerações. O zelo institucional reivindica tal tipo de comportamento, qualquer patrimônio reclama cuidados”, comenta Fátima Quintas. Com a homenagem à Gilberto Freyre na 7ª Fliporto, é de se esperar que aumentem as atenções voltadas à casa-museu. Na ocasião da festa literária, a fundação estará presente com estande de livros e uma área de exposição.

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RYOKI INOUE As histórias do “Sherazade”brasileiro Apontado no Guinness book como o autor mais prolífico do planeta, com 1.100 títulos publicados, escritor revela o “caminho das pedras” para escrever um livro inteiro em menos de 24 horas texto Daniel Buarque

em São José dos campos, uma

cidade tranquila a menos de 100 quilômetros do caos de São Paulo, vive o maior contador de histórias do mundo. Um brasileiro de origem luso-japonesa encarnou na vida real uma história que lembra a de Sherazade, a narradora dos “contos das mil e uma noites”, obrigada a inventar histórias para ter sua vida poupada pelo rei da Pérsia. Para garantir a sobrevivência (financeira) no Brasil das últimas décadas, Ryoki Inoue seguiu o modelo, e foi além. Ao longo dos últimos 25 anos, publicou 1.100 livros, consolidandose como o autor mais prolífico do planeta, segundo o Guinness. A proeza foi alcançada graças a uma enorme facilidade para inventar histórias, para contá-las por escrito em altíssima velocidade e por conseguir atrair os leitores para sua obra. Formado em Medicina, Inoue abandonou a carreira de cirurgião pelas letras em 1986, fazendo da escrita menos um ofício de arte e inspiração e mais um trabalho de transpiração e digitação. O problema, ele diz, era deixar a Medicina e ainda ganhar dinheiro suficiente para ter o padrão de vida desejado. “Na hora em que as editoras acertaram que publicariam o que eu

escrevesse, decidi produzir tudo o que conseguisse para poder ganhar dinheiro. Escrevia em média 12 livros por semana”, contou, em entrevista concedida durante a Bienal do Livro de São José dos Campos, em abril. Em pouco tempo, ele já conseguia escrever – à máquina – até três livros em um único dia, finalizando a citada média de 12 volumes por semana. Os livros não eram de grande porte e quase 90% de tudo o que Inoue publicou chegou aos leitores em formato de bolso. As obras eram como contos longos, histórias simples e diretas, para uma leitura rápida. “Era muito gostoso escrever os pockets”, disse. Os livretos iam parar nas bancas de revistas e eram lidos por um público diferente do que frequentava as livrarias. “Era uma febre”, conta. “Tinha livro por toda parte, e cada título vendia todos os 20 mil exemplares da tiragem.” Era o suficiente para poder ser chamado de best seller, o que sempre foi objetivo do autor.

LiteRAtURA PULP

O formato de bolso no Brasil nos anos 1980 era completamente diferente do que se vê hoje, com a entrada de grandes editoras no

setor. Até a virada do século, em vez de obras em domínio público (por expiração do prazo de vigência dos direitos autorais) e livros de autoajuda, o mercado de pocket books era formado por obras chamadas pulp, com histórias simples, rápidas e empolgantes, uma leitura barata. Os títulos de Inoue foram publicados sob quase 40 pseudônimos, americanizados, para atrair mais os leitores, de acordo com estratégia mercadológica dos editores. A sua fórmula da escrita, a exemplo do que fazia Sherazade, buscava prender o leitor à história a cada capítulo encerrado, tentando manter a sua curiosidade, impelindo-o a continuar a leitura até que se resolvessem os mistérios e a narrativa acabasse. A procura era tanta, que muitas dessas obras se esgotaram; o próprio Inoue não tem vários exemplares dos livros que escreveu e publicou. “Até hoje, recebo milhares de e-mails pedindo livros desse tipo.” Segundo ele, toda essa produção está sendo digitalizada e vai ficar disponível como e-book até o fim deste ano. Inoue conta que dominou 95% desse mercado na época. Fazia séries de histórias de faroeste, mistério, intriga, guerra, tudo no formato de

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HALLINA BELTRÃO

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Perfil bolso. Os livros não tinham mais de 100 páginas, ou cerca de 60 folhas batidas na máquina de escrever, de acordo com o autor. “Cada livro tinha 172.201 toques, e eu contava caractere por caractere”, disse, explicando como adquiriu uma boa noção do tamanho, permitindo-lhe escrever com o controle da história dentro desse espaço. A memória de uma pessoa que publicou 1.100 livros precisa ser muito prodigiosa. Inoue admite que não se lembra dos títulos de todos os seus livros. Conta mais: muitas vezes se pega lendo textos que sequer imaginava ter escrito.

oBRAS MAioReS

Foi somente quando escreveu seu milésimo livro, em 1992, que Inoue finalmente viu seu nome na capa de uma obra, mudando o rumo de sua carreira.Pela primeira vez, escrevia um livro em formato grande. A partir de E agora presidente?, Inoue assinou a maior parte da centena de livros que publicou na última década. Essas obras mais recentes somam até 500 páginas, escritas após longa pesquisa, e conseguindo grandes vendagens no mercado editorial nacional. Quatro anos depois dessa renovação profissional, Inoue encarou o seu afrontamento mais notório. Em

1996, ao saber do recorde do escritor brasileiro e ouvir dizer que ele já havia produzido até três livros no mesmo dia, o jornalista Matt Moffet, do Wall Street Journal, o desafiou. Decidiu acompanhar o processo e disse que queria ver Inoue criar uma história inteira, do nada, em seis horas. Moffet foi à casa do recordista e o viu começar a escrever – então, já no computador – às 22h, terminando às 5h30 as mais de 100 páginas, bemorganizadas e em português decente, de uma história policial de mistério em que se tornou o personagem principal do autor. A obra foi publicada alguns dias depois, com o título Sequestro fast food. Moffett contou o caso no jornal americano, e registrou um dos fatos mais curiosos a respeito de Inoue. Apesar de brasileiro e recordista no Guinness, o escritor é virtualmente desconhecido no país. Segundo Inoue, ser lembrado pela mídia mais pelo recorde de produção que por sua obra literária não o incomoda. “Não tive nenhuma intenção de ser o recordista e nunca busquei este título”, disse, lembrando que foi um jornalista que o indicou para ser reconhecido por esse aspecto. “É verdade que trouxe mais publicidade, mais visibilidade, mas isso não muda nada para mim.”

SeM coMentÁRioS

Entre os críticos literários, o escritor também é pouco lembrado, mas afirma não se importar com a situação. Para ele, mais que expressão artística, a literatura é trabalho, e escrever é uma forma de se sustentar fazendo algo de que gosta, não necessariamente uma arte superior. “A crítica não se incomoda comigo e não me incomoda”, comparou, com desdém, explicando que nunca foi avaliado por críticos sérios: “A crítica no Brasil não existe. Existem escritores frustrados que metem o pau em quem consegue escrever e vender”. Em entrevistas, Inoue sempre rejeita a ideia de que a literatura vem da inspiração. Branco, bloqueio de escritor, para ele, tudo isso “é preguiça mental”. Alega que nunca deixou de terminar um livro iniciado e conta que ainda tem mais de 300 livros prontos, mas não publicados. Depois de tanto ouvir a pergunta “de onde vem tanta inspiração?”, Inoue passou a ensinar o que chama de “caminho das pedras”, um manual de como escrever um romance de ficção com potencial de se tornar best seller. Ele explica que sempre monta um projeto antes de começar cada livro e segue a estrutura para finalizar a redação. “Penso sempre que é

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preciso um bom começo, um bom fim e saber encher bem o meio”, resumiu, ressaltando que o importante é trabalhar, escrever. “Eu imagino um filme, uma história completa, e saio escrevendo, direto, até terminar.”

De oLHo noS SUceSSoS

Prestes a completar 65 anos, Inoue não se parece mais com a figura jovial e bem-humorada que o descreviam no passado. Envelhecido e doente, ele passou a depender de uma cadeira de rodas, e parecia cansado, menos conversador, quando apareceu na Bienal de São José dos Campos. Mesmo assim, mostra-se simpático, garantindo que continua escrevendo muito, todos os dias. “Escrevo sempre. Faço uma média de um ou dois livros por ano”, diz. Além de escritor prolífico, Inoue afirma-se bom leitor, contabilizando a leitura de, pelo menos, quatro livros por mês. Ele diz manter-se atualizado com os lançamentos, de olho nos best sellers do momento, fontes de inspiração para que produza títulos de venda garantida. Leu os sucessos do sueco Stieg Larsson, autor da série Millenium, por exemplo, mas disse que não gostou dele e não entende por que vendeu tanto. Entre os mais recentes – e que tiveram grandes vendagens –, cita Dan Brown, autor de O código Da Vinci.

inoue rejeita a ideia de que a literatura vem da inspiração. Branco, bloqueio, para ele, tudo isso é preguiça mental A série do norte-americano inspirou Inoue. Um de seus livros mais recentes, Fruto do ventre, embaralha mistério, história e religião, como fez Brown. Em Inoue, grupos da Igreja Católica cogitam clonar Jesus. Com mais de 20 mil exemplares vendidos, número alto para o mercado brasileiro, Fruto do ventre foi lançado pela editora Record. Junto a Saga (Ed. Globo), o título foi uma das poucas incursões do escritor mais prolífico do mundo entre as gigantes do livro no Brasil. Isso porque Inoue afirma não ter gostado da experiência: achou o tratamento péssimo e o pagamento pelos direitos autorais lento e desorganizado. Desde então, publica ele mesmo seus livros, colocando-se como uma voz de oposição aos sistemas tradicionais de edição, impressão e distribuição dos livros, que costumam abocanhar a maior parcela do dinheiro envolvido na compra de um livro.

Foi de forma independente que saiu Também se lava com água benta, seu livro de número 1.100, publicado pela Ryoki Produções, pequena editora criada para cortar caminho e atrair novos escritores. “Não sou ‘mercadante’ de livros. Leio e avalio cada obra que lançamos, e sempre dou o último crivo antes de promovermos algum título”, definiu. Ele explica, entretanto, que edição e impressão dos livros são custeados pelo próprio autor, que assim controla melhor a vendagem e o recebimento dos seus direitos autorais. De acordo com ele, cabe ao produtor o trabalho de editar, divulgar e distribuir. O homem das 1.100 histórias ainda nutre outros projetos. Segundo ele, além de já ter um livro na agulha, Fraude verde, guarda três dezenas de ideias de livros, que pretende escrever nos próximos anos. Durante a conversa na Bienal de São José dos Campos, Inoue revelou que vai participar da Festa Literária Internacional de Pernambuco, a Fliporto, deste ano. Segundo ele, os organizadores do evento pediram que integre o encontro sobre o diálogo entre Ocidente e Oriente, a partir de uma de suas obras mais recentes, Saga, que trata de quatro gerações de japoneses. Ele fará palestra sobre o que acontecia no Brasil enquanto se desenrola a parte da história do livro no Japão.

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FOTOGRAFIA Imagens de um olhar afetivo Coletivos propõem ações e projetos que promovam a desmistificação do repertório visual comumente associado a comunidades carentes texto Ana Lira

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cON especial ti NeN te RATÃO DINIZ

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Há um ano e meio, um coletivo

de fotógrafos populares do Rio de Janeiro observou uma transformação significativa nas favelas que compõem o Complexo do Alemão. As obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) trouxeram novas escolas, bibliotecas e melhorias habitacionais, mas também ocasionaram a separação de familiares, o desmanche de vizinhanças, um cotidiano de entulhos e construções inacabadas e falta de informação. Esse cenário motivou a criação do documentário fotográfico ImPACtos, que vem sendo realizado, desde 2009, pelo Coletivo Favela em Foco, e tem incentivado ações semelhantes de fotógrafos de outros estados, como São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Para um futuro próximo, eles pretendem construir uma rede de circulação de reportagens multimídias, ensaios fotográficos e relatos sobre as mudanças ocorridas nas favelas, a partir das políticas públicas de reestruturação das cidades. O trabalho, divulgado até o momento no site do coletivo (favelaemfoco.

a observação das mudanças nas suas comunidades incitou os fotógrafos populares a registrarem seus cotidianos wordpress.com), mostra que o olhar atento e crítico do grupo vem proporcionando uma perspectiva mais próxima dos ganhos e perdas da população envolvida no contexto. Por meio da fotografia, é estabelecido um diálogo entre os moradores, a sociedade civil e o poder público, de forma pouco vista em boa parte dos meios de comunicação do país. Esse compromisso de dialogar com diferentes setores da sociedade, a partir da perspectiva do morador de comunidades populares, é o grande objetivo do Favela em Foco, sendo o ImPACtos apenas uma das ações desenvolvidas pelos integrantes nesse sentido. Hoje, eles realizam a cobertura das principais atividades

realizadas nas favelas cariocas, tanto para ampliar o acesso do público a imagens com contextos positivos sobre elas quanto para evitar que injustiças sociais cometidas contra os moradores sejam esquecidas. Um exemplo é a cobertura dos protestos que marcaram um ano da tragédia em Niterói. Sob o título Em memória, o coletivo lançou na internet um audiovisual que abordou o esquecimento da situação dos moradores que tiveram as vidas transformadas pelo excesso de chuvas e quedas de barreiras em 2010. Por outro lado, o Favela em Foco também celebrou os melhores momentos do Carnaval, fazendo uma projeção do trabalho Folia de imagens para os moradores do Morro do Timbau e realizou coberturas jornalísticas dos Festejos de Reis, no Morro Santa Marta, e dos cortejos de São Sebastião, nos bairros de Olaria, Maria da Graça, na Favela do Jacarezinho e no próprio Santa Marta. Formado atualmente por 12 fotógrafos, na faixa etária entre 20 e 30 anos, moradores de comunidades populares cariocas, o Favela em Foco é considerado uma referência entre os

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FábIO CAFFé

Página anterior 1 lÉo liMa

Imagem de ensaio de fotógrafo do Coletivo Favela em Foco, sobre soltadores de pipas

Nestas páginas 2 PAISAGEM

Foto de Ratão Diniz, um dos 12 fotógrafos do Favela em Foco, formado por moradores de comunidades populares cariocas

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RETRATO

Moradora de favela carioca clicada por Fábio Caffé, que defende a construção de uma percepção ampliada da cidade

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que democratizam a comunicação e a informação por meio da fotografia. O coletivo surgiu durante ações de educação continuada da Escola de Fotógrafos Populares, na Favela da Maré – um importante centro de formação em fotografia documental e jornalística com foco em direitos humanos do país.

cRitÉRios VisUais

A escola foi fundada há sete anos pelos fotógrafos João Roberto Ripper e Ricardo Funari. Na época, Ripper recebeu uma proposta do Observatório das Favelas para fotografar as comunidades cariocas a partir de pilares como beleza, solidariedade, coletividade, resistência, sensualidade, compromisso e afeto. Durante a documentação, percebeu que, além das diversas histórias relacionadas com os temas propostos pela organização, havia muita gente interessada em estudar fotografia. Assim, ele propôs a criação de um centro de educação continuada na favela. O Observatório das Favelas acolheu a iniciativa, que passou por uma série de modificações até ganhar a configuração que tem hoje, sob a guarda do Projeto

Imagens do Povo. São 10 meses de formação, com encontros diários, numa carga horária de 540 horas/ aula, dividas em três módulos. Por meio de uma parceria com o programa de extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi possível certificar os participantes e garantir um conteúdo teórico e prático pautado pela reflexão do papel da imagem na sociedade e seus desdobramentos nas relações sociais, como aponta o coordenador acadêmico do projeto, Dante Gastaldoni. A Escola de Fotógrafos Populares propõe discussões sobre direitos humanos e cidadania. Os participantes estudam conteúdos como a fotografia como instrumento de transformação social e a diversidade de olhares e a importância dos contextos, entre outros. Além da escola, o Imagens do Povo também agrega o Curso de Formação de Educadores em Fotografia, pelo qual se aprendem metodologias de ensino; a Galeria 535, localizada na Favela da Maré e dedicada a mostras fotográficas gratuitas; as Oficinas Pinhole, em parcerias com escolas públicas e

instituições; a Agência Imagens do Povo, que desenvolve cobertura para uma rede diversa de clientes e parceiros; e um Banco de Imagens, com fotografias de várias regiões do país. Dante Gastaldoni conta que eles também realizam atividades de educação continuada ao longo do ano. “Temos encontros com fotógrafos, cursos de curta duração e também incentivamos os trabalhos independentes dos ex-educandos da escola e dos participantes da agência, como é o caso do próprio Coletivo Favela em Foco. Nós percebemos que essa relação fortalece as ações de todos os envolvidos e é muito importante para reverberar os bons resultados que conseguimos dentro e fora do projeto.” Um exemplo é a relação criada com o diretor argentino Guillermo Planel. Quando lançou o documentário Abaixando a máquina – Ética e dor no fotojornalismo carioca, Planel viu o filme ser questionado por parte do meio fotográfico carioca, ao tratar as favelas como território de guerra civil, sem tocar na perspectiva desenvolvida pelos fotógrafos populares, que vinham

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cON especial ti NeN te RATÃO DINIZ

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tentando quebrar esse estigma. O diálogo resultou no documentário Vivendo um outro olhar, que debate a necessidade de humanização da mídia a partir de um jornalismo feito pelos próprios moradores das favelas. Esse é o último filme da trilogia de Planel sobre o fotojornalismo no Rio de Janeiro, da qual também faz parte Imagens do jongo. O diálogo com profissionais da imagem é uma tentativa de refletir sobre o que Zuenir Ventura chama de “cidade partida”, que é a divisão das

metrópoles em territórios associados a conceitos como “lugar bom” ou “lugar ruim”, que mais servem para provocar conflitos do que para resolver problemas. Integrante do Coletivo Favela em Foco, Fábio Caffé defende a necessidade de construir uma percepção mais diversificada da cidade: “Um dos principais ideais é ver os espaços populares por sua beleza e resistência e vivenciarmos as favelas, quilombos, áreas indígenas também a partir de uma perspectiva positiva e amorosa. Precisamos valorizar cada vez

mais nossa identidade e realizar uma fotografia engajada com os moradores”.

FoRtaleciDos

A parceria efetiva com a comunidade foi uma das principais conquistas dos fotógrafos populares. Também membro do Favela em Foco, Elisângela Leite trabalha atualmente no Maré de Notícias, jornal que distribui cerca de 35 mil exemplares com pautas feitas por repórteres e fotógrafos da própria Favela da Maré. Naíma Santos, por sua vez, documentou a Família dos

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gRaFite

Imagem expressa como a arte pode modificar a paisagem urbana e sensibilizar os indivíduos para sua fruição

curso de excelência nas comunidades populares. Adoraríamos testemunhar isso funcionando. Não importa o tempo que demore para acontecer.”

inteRcÂMBios

Remédios, um grupo de caiçaras que residem na praia de Martim de Sá, na costa que liga o Rio de Janeiro a Paraty. Ela escolheu os pescadores porque “cultivam um modo de vida simples, em que a preservação e interação com a terra, o mar e o meio ambiente se fazem necessárias”. Durante seu trabalho de documentação, um dos pescadores recebeu uma oferta em dinheiro para deixar a área e a recusou. Os proponentes entraram com processo judicial, alegando propriedade

da terra. A fotógrafa afirma que a Família dos Remédios reside nas terras há décadas e que suas fotos podem ser usadas no julgamento do processo, em favor dos caiçaras. A fotografia compartilhada tem sido a marca do coletivo. Antes de estudar na Escola de Fotógrafos Populares e fazer o primeiro documentário, Léo Lima jamais havia lido um livro. Ganhou um exemplar do Caçador de pipas e o enredo o motivou a realizar um ensaio com Nenê, morador da favela do Jacarezinho, que é conhecido como um lendário soltador de pipas. Como Nenê é portador de deficiência mental, a aproximação foi cuidadosa. Léo desenvolveu um diário em que relatava aos colegas do coletivo as conversas e construção do relacionamento com Nenê, até a finalização do ensaio, que levou o mesmo nome do livro de Khaled Hosseini. Outro exemplo de confiança da comunidade ocorreu com Adriano Rodrigues, quando ele observou mudanças ocorridas nos jardins e quintais das comunidades por causa da necessidade de moradia. Essas áreas foram transformadas em cômodos ou até em novas casas, e o espaço para diversão transferido para as lajes. Nos últimos anos, Rodrigues vem fotografando festas, encontros e os momentos de contemplação dos jovens, com a permissão das famílias, abordando o lazer como direito humano. Além de trabalhos como esses, desenvolvidos dentro da própria comunidade, os integrantes do Favela em Foco estão mapeando grupos afins, em todo o país, para realizar projetos em conjunto. Segundo Ratão Diniz, que também integra o Coletivo, o plano não para por aí. “O nosso sonho é realizar um trabalho desses no Nordeste. Ver uma Escola de Fotógrafos Populares, com uma estrutura que pudesse proporcionar às pessoas um

Ainda que não haja estrutura física da escola no Nordeste, o Coletivo Favela em Foco costura intercâmbios na região. Ratão Diniz realizou documentações e parcerias na Paraíba, a partir do Projeto Revelando Brasis, do qual participa há cerca de quatro anos. Fábio Caffé, Francisco César e Naíma Silva estiveram no Recife em 2010, criando relação de afeto e colaboração com integrantes do Fotolibras e do Revelando o Coque, que também são consideradas propostas importantes na ampliação da discussão social por meio da fotografia. O Revelando o Coque surgiu de uma iniciativa da Rede Coque Vive, dentro do Programa de Extensão da

Difusão de informações sobre direitos humanos e cidadania e a troca de experiências são alguns dos objetivos desses projetos sociais Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em parceria com o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (Mabi) e o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (Neimfa). Começou com a edição de um jornal laboratório, o Coque, coautoria que rendeu aos participantes o Prêmio Caixa de Jornalismo. O lançamento do jornal, no entanto, trouxe uma situação polêmica: alguns pais dos alunos de Jornalismo impediram os filhos de participarem da produção do jornal laboratório para evitar que frequentassem a comunidade. Naquele 2006, a produção noticiosa que associava o Coque à violência e à exclusão era tão forte, que o aprendizado e a colaboração foram colocados de lado, por algumas famílias, para dar lugar ao medo estampado na imprensa. O impasse motivou os alunos que permaneceram no projeto a mostrar outro ponto de vista do lugar,

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cON especial ti NeN te AF RODRIguEs

no qual o Revelando o Coque assumiu um papel essencial. A ideia de usar a fotografia como elemento de comunicação foi de Lucas Cardim. O curso não seria focado numa linguagem fotográfica específica, mas nas entrelinhas de discurso que as imagens produzidas pelos moradores traziam. Com o tempo, a percepção que os participantes do bairro tinham sobre o próprio lugar em que moravam começou a mudar. Segundo Cardim, os dois grupos que eles tiveram nesses cinco anos de projeto possuem características distintas. “A primeira turma, até pela própria experiência do bairro, teve uma postura mais política, de tentar mostrar para a cidade que o Coque não era aquele espaço de violência sem lei que saía nos jornais. O segundo grupo preferiu circular pelas ruas e descobrir personagens diferenciados, pessoas que estavam associadas a alguma lenda, mas que ninguém nunca havia perguntado o porquê daquilo.” Os integrantes conseguiram, a partir disso, retratar as histórias do bairro e reforçar a luta política pela ocupação da Ilha de Joana Bezerra. Um dos educandos do projeto, Sandokan Xavier, acompanhou mais de perto as ações dessa documentação porque integrou as duas turmas. Ele é considerado um elo entre as fases do Revelando o Coque e pôde observar como a fotografia ajudou na mudança da representação da comunidade, ao estar dentro de um processo maior de transformação social, motivado pelas ações e parcerias da Rede Coque Vive. Desde que passou a fotografar, Xavier dedica-se à documentação da rotina no Coque, captando as sutilezas da relação entre os moradores e a perspectiva visual que apenas quem reside no local consegue ter do Recife. Em paralelo, faz cursos, participa de oficinas, acompanha os trabalhos realizados dentro do Revelando o Coque. Sua dedicação o levou a ser indicado pela Unicef, em 2008, para participar como fotógrafo da Caravana Selo Unicef, cujas equipes visitaram cidades no interior de Alagoas, Paraíba e Pernambuco com o intuito de elaborar um ponto de vista sobre as cidades e os avanços nos direitos da criança e do adolescente.

“a sociedade ainda está muito verde na leitura crítica da imagem, embora viva cercada delas.” eduardo Queiroga Com mais um educador, Chico Ludermir, o Revelando o Coque chega aos cinco anos de atividades. Um novo projeto, que está sendo coordenado por Ludermir, vai trabalhar o conceito de autorrepresentação. A partir da construção de autorretratos, cada integrante será convidado a olhar para a própria imagem como uma forma de falar e cuidar de si mesmo e do outro.

gUias VisUais

Para fortalecer a circulação de conteúdos sobre as iniciativas desses projetos, tanto na internet quanto fora dela, os coletivos e projetos fotográficos precisam ampliar o uso de ferramentas que permitam o acesso de um público mais diversificado. Os integrantes do Fotolibras, por

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exemplo, vêm usando a fotografia como forma de expressão, mas também incentivam outras propostas de diálogo, criando guias específicos de sinais para que o público de ouvintes e não ouvintes possa interagir com eles. Quem entra na página virtual do projeto recifense encontra duas publicações disponíveis em PDF. Uma delas traz um glossário de termos fotográficos, criado pelo próprio Fotolibras, com linguagem de sinais, que visa aproximar as pessoas dos códigos usados por eles no momento em que estão se referindo aos elementos da fotografia. Dessa maneira, os participantes e colaboradores utilizam a fotografia como alternativa de visibilidade da cultura surda dentro do campo da comunicação. No caso do Fotolibras, além de um incentivo para que os participantes documentem o universo dos surdos no país, a fotografia é utilizada para discutir também caminhos de expressão pessoal. Tatiana Martins, que hoje é uma das coordenadoras do projeto, nasceu ouvinte e ficou surda aos 6 anos em uma família de ouvintes. Ela relata

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sANDOKAN XAVIER

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que, mesmo com a língua de sinais, ainda enfrentava dificuldades em se comunicar e que, agora, três anos depois de ter ingressado no grupo, percebe a ampliação de seu vocabulário. “O projeto tem mostrado a identidade surda. E muitos surdos que não conseguiam se comunicar devidamente com a sociedade têm feito isso através da fotografia. Os ouvintes não sabem línguas de sinais, mas a fotografia é universal. Eu mesma adquiri mais autoconfiança, hoje tenho mais liberdade de me expressar e desenvolvo um trabalho fotográfico que está relacionado com as sombras e a contraluz. As sombras ajudam a refletir a linguagem dos sinais e, através delas, há comunicação”, comentou Tatiana. O Fotolibras cultiva a liberdade de atuação e, segundo o coordenador Eduardo Queiroga, o objetivo é trabalhar para que ele ganhe cada vez mais autonomia. A partir disso, será possível investir mais na discussão da própria fotografia e na sua importância para a amplificação dos discursos que permeiam a cultura surda, uma vez que, mesmo no campo da imagem, ainda

existem questões sutis que nem sempre facilitam o cotidiano do público surdo. “Quando eles chegam ao projeto, a gente percebe que muitos não prestavam atenção à imagem antes, porque ela está muito ligada ao universo da palavra. Então, como eles não falavam, isso os distanciava desse tipo de produção”, comenta Queiroga. Por outro lado, como diz Tatiana Martins, “o surdo acaba tendo facilidade de lidar com a imagem, porque a sua percepção de mundo é baseada na construção da visualidade. Esse é um código forte, porque ele não escuta, mas lê sinais e compreende muito bem as expressões”. Quando se consegue despertar o interesse deles e associá-lo à facilidade de abordar o mundo visualmente, os resultados podem ser trabalhos de qualidade discursiva. Um dos exemplos é o trabalho Sou surdo, sou feliz, que o grupo acabou de fazer e que será transformado em postais. Os integrantes investem também em grupos de discussão de projetos fotográficos, com o intuito de manter a produção. Segundo Eduardo Queiroga, essa é uma estratégia importante, porque “a sociedade não é

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lazeR

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conViVência

Adriano Rodrigues registra as mudanças nas casas das favelas com a construção de lajes sandokan Xavier documenta a rotina no Coque, buscando captar a relação entre moradores

organizada para lidar com pessoas que desenvolvem um pensamento crítico. Considerando que a escola formal não se prepara para receber surdos, eles ficam alheios ao conhecimento que contribui para a reflexão crítica”. Segundo Queiroga, ainda é preciso investir no pensamento crítico em qualquer projeto e apoiar as mais diversas formas de discussão. Ele comenta que “a sociedade – e isso inclui todos nós – ainda está muito verde na leitura crítica da imagem, embora viva cercada delas. A fotografia é vista apenas como registro e testemunho ativador da memória. Ela precisa ser vista como linguagem de expressão pessoal, discurso, possibilidade de comunicação. Dependendo de como for usada, pode reforçar estereótipos de exclusão. É isso que a gente quer mudar”.

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FLÁVIO PESSOA

cON ti NeN te

coMUnicAÇÃo

McLUHAN O filósofo pop e a aldeia global

No ano em que se comemora o centenário de seu nascimento, o pensador canadense tem suas teorias revisitadas na plenitude da “sociedade eletrônica” texto Marcelo Abreu

na década de 1960, a cultura pop

explodia em criatividade: Beatles, grafismos, swinging London, as minissaias de Carnaby Street, os desenhos de Norman McLaren, São Francisco no ácido, rock’n’roll, gurus indianos, contracultura, Timothy Leary, John Cage, novo jornalismo, pop art, black power, flower power, as primeiras televisões em cores e transmissões por satélite. No Brasil, Tropicalismo, movimento estudantil e teatro politizado. No meio de toda essa agitação, um introspectivo intelectual católico, professor de literatura inglesa do Canadá, já cinquentão, que se vestia tradicionalmente de paletó e gravata, começava a causar sensação: era Marshall McLuhan, que, a partir da publicação de dois livros seminais em 1962 e 1964, provocava espanto e interesse no meio acadêmico, e na mídia em geral, ao interpretar o novo momento com conceitos que

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nos anos 1960, as teorias de comunicação foram impregnadas pelas ideias do professor canadense

passariam a fazer parte do imaginário coletivo desde então: “aldeia global” e “o meio é a mensagem”. McLuhan fez tanto sucesso nos anos 1960 com sua erudita, inovadora e complexa interpretação da chamada “sociedade eletrônica”, que virou fenômeno de mídia e figura carimbada na televisão. O professor canadense tornou-se um convidado constante de universidades. Deu palestras em grandes corporações que queriam ouvir sua versão para o futuro. Seus livros se tornaram best-sellers. Foi estudado com atenção nas escolas de comunicação mundo afora e foi rotulado como o primeiro “filósofo pop”, o “profeta da modernidade”. Mas o tempo passou, a TV virou rotina no cotidiano das pessoas e, já perto de sua morte, em 1980, a badalação havia acabado. Vítima da própria sociedade pós-tipográfica, fugaz, voltada para as imagens rápidas

que havia explicado nos seus livros e conferências, McLuhan foi esquecido. Numa curiosa ironia da passagem do tempo, porém, como disse o The New York Times numa matéria publicada em 2000, Marshall McLuhan acabou sendo reabilitado, retirado “da lata de lixo da história”. Com o surgimento da internet, “suas ideias parecem de novo avançadas para o seu tempo”. Em 1993, foi lançada nos Estados Unidos a revista Wired, dedicada à discussão do mundo digital. Num misto de irreverência e homenagem, ela colocava o nome do filósofo no expediente, no cargo de “santo padroeiro” da publicação. Em julho de 2011, comemora-se o centenário de nascimento de Marshall McLuhan e sua obra está sendo debatida em conferências e seminários realizados de São Paulo a Ottawa, no Canadá, de Liverpool a Katowice, na Polônia. São Marshall, o “Santo Bobo”, como o definiu a Wired em 1996, está de volta. Suas ideias se aplicam com precisão à atual revolução digital, bastando que o leitor substitua a palavra “televisão” por “internet”. É curioso como McLuhan acabou se tornando o protótipo dos gurus digitais que pululam hoje em dia em congressos e na mídia, ganhando dinheiro com suas previsões infladas e utópicas. Curioso e injusto porque, ao contrário do que podem pensar aqueles que conhecem apenas alguns de seus slogans, o filósofo canadense não era defensor da tal aldeia global e via com pessimismo a transição para uma sociedade baseada nos meios frios e participativos, na qual a internet se encaixaria se existisse na sua época.

ReVoLUÇÕeS

Em síntese, a teoria de McLuhan estabelecia que o mundo viveu três grandes revoluções ao longo da história: a primeira foi a adoção da

escrita fonética, na Grécia antiga, que afastou o ser humano da sociedade tribal do passado, baseada na audição, fortaleceu o sentido da visão e introduziu a classificação do pensamento e também a fragmentação. A segunda revolução foi a invenção da imprensa, por Gutenberg, no século 15, que instituiu o chamado homem tipográfico, politizado, urbano, especializado, alienado, e deu início à revolução industrial posterior e à produção em série. A terceira revolução aconteceu a partir da invenção do telégrafo, no século 19, e colocou em marcha a chamada “era eletrônica”, que havia chegado ao seu auge nos anos 1960 com a popularização da televisão. A era eletrônica favoreceria uma volta ao tribalismo do passado, com o que ele tinha de bom e de ruim, a chamada aldeia global. McLuhan dividiu os meios de comunicação em “quentes” e “frios”. Os “quentes” têm alta resolução, deixam pouco espaço à imaginação, e pouco estimulam a participação. Entre eles estão a imprensa escrita, a fotografia, o cinema e o rádio. Os “frios” têm baixa resolução técnica (são completados pelo receptor que exercita seus vários sentidos). Esse tipo de mídia permite uma ampla participação do público e leva a uma nova tribalização da sociedade. Entre eles estão o cartum, a história em quadrinhos e o telefone. A televisão era, na época, o meio frio por excelência. A internet de hoje tem todas as características de um meio frio. O mundo digital, antecipado pelo professor canadense quando trata das possibilidades dos computadores, seria uma radicalização dos fenômenos já apontados em relação à televisão. Numa histórica entrevista dada à revista Playboy em 1969, McLuhan teve espaço suficiente para esclarecer suas posições. Perguntado sobre o que achava da mudança de um mundo baseado na palavra impressa para um mundo de imagens televisivas, que provocaria o que chamava de “novo tribalismo”, ele afirmou: “Eu não gosto de dizer às pessoas o que eu acho bom ou mau nas mudanças psíquicas e sociais causadas pela nova mídia, mas se você insiste em perguntar

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cON cOmUNicaçãO ti NeN te sobre minhas reações subjetivas quando eu observo a reprimitivização da nossa cultura, eu teria de dizer que vejo estas mudanças com uma total insatisfação e desgosto pessoal. (...) Como um homem modelado dentro da tradição literária ocidental (...) ninguém pode ser menos entusiasta dessas mudanças radicais do que eu. Não sou, por temperamento e convicção, um revolucionário. A TV e toda a mídia eletrônica estão desfazendo todo o tecido da nossa sociedade e, como um homem que é forçado pelas circunstâncias a viver dentro dessa sociedade, não tenho prazer na sua desintegração”. Dos anos 1960 até hoje, o mundo tomou caminhos que seriam criticados por ele. Apesar de evitar qualquer militância, há vários indícios na sua obra que mostram seu lado crítico. McLuhan nem gostava de televisão. Para ele, a experiência da aldeia (mesmo que global) era um retrocesso a uma vida tribal baseada no mito e no preconceito, em que os massacres e a intolerância, longe do controle do Estado, estariam mais presentes (qualquer semelhança com a boataria nas redes sociais, os sites que estimulam ações terroristas e o bullying virtual de hoje não é mera coincidência). Apesar de ser pop num certo sentido, beneficiária de uma ampla exposição na mídia, a obra deixada pelo filósofo é considerada erudita e difícil por muitos. Seu primeiro livro, publicado em 1951, foi The mechanical bride: folklore of industrial man (A noiva mecânica: o folclore do homem industrial), no qual explorava as relações da publicidade com a vida contemporânea. Em 1962, lançou A galáxia de Gutenberg – A formação do homem tipográfico, em que discorre sobre os condicionamentos resultantes da alfabetização nos últimos cinco séculos e volta à introdução do alfabeto na Grécia antiga. Em 1964, publicou Os meios de comunicação como extensões do homem, talvez o seu trabalho mais importante, em que estão os conceitos de meios de comunicação “quentes” e “frios”. Em 1967, McLuhan lançou um livro-jogo intitulado O meio são as massa-gens, espaço perfeito para

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Mesmo tendo contribuído para uma visão otimista dos avanços tecnológicos, McLuhan lhes fazia restrições

sua mistura de aforismos, reflexões, charadas, provocações, fotos e ilustrações visuais, com desenhos e diagramação arrojada feita pelo designer italiano Quentin Fiore. O livro se insere perfeitamente na estética pop dos anos 1960 e é uma preciosidade da época, mesmo que datado. O título original em inglês era The medium is the message, aforismo no qual está contida sua principal teoria. Ele defende que, mais importante do que o conteúdo transmitido por um meio de comunicação, é o próprio uso do meio de comunicação que condiciona o homem em todos os aspectos de sua vida. Quando recebeu a prova tipográfica do livro, o título veio erradamente como The medium is the massage (o meio é a massagem). McLuhan achou perfeito. “Deixem assim, está ótimo, acertou na mosca”, declarou. E o título virou um trocadilho cheio de nuances: O meio é a mensagem ou a massagem, ou também a mass age (era da massa), ou ainda a mess age (era da confusão). Bem ao gosto do autor. Em português, o tradutor Ivan Pedro de Martins,

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numa edição de 1969 da editora Record, resolveu deixar como O meio são as massa-gens (sic) para ressaltar as inúmeras possibilidades da frase. No livro, ele escreve: “As velhas ideias tradicionais de pensamentos e ações particulares e isoladas (...) estão seriamente ameaçadas pelos novos métodos de instantânea recuperação de informações (...), essa enorme coluna de mexericos que nada perdoa, nada esquece, da qual não há redenção, e da qual não se apagam os erros da mocidade”.

cAtoLiciSMo

Herbert Marshall McLuhan nasceu numa família protestante de Edmonton, no oeste do Canadá, em 21 de julho de 1911. Formouse em literatura em Winnipeg, e fez doutorado em Cambridge, na Inglaterra, onde, por influência de intelectuais que admirava, converteuse ao catolicismo. Ensinou em várias universidades católicas dos Estados Unidos até assumir um posto na Universidade de Toronto, no Canadá, onde fundou, em 1963, o Centro de Cultura e Tecnologia, que existe até hoje. Nos anos 1960, participou da Comissão Pontifícia para os Meios de Comunicação Social do Vaticano. Um de seus inúmeros livros de entrevistas é baseado em longas conversas com o padre e pedagogo francês Pierre Babin, que intitulou a publicação como Era eletrônica, um novo homem, um cristão diferente.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

1-2 SeMinAiS Esses dois títulos, lançados em 1964 e 1967, respectivamente, contêm os principais postulados de seu pensamento 3 McLUHAn Ele foi fundador, em 1963, do Centro de Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto, que continua a existir

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Sua erudição vinha dos anos em que foi professor de literatura inglesa, especialista no período elisabetano. Era fascinado também pela obra do irlandês James Joyce. Teve sua atenção voltada para a mídia somente nos anos 1950, quando observava, em casa, como os seis filhos lidavam com naturalidade com um mundo cheio de imagens de televisão, rádio, discos e cinema. McLuhan foi um dos homens maduros que souberam captar o espírito jovem dos anos 1960 e, com erudição, se tornou um dos gurus intelectuais da juventude de então, num caso parecido com o que aconteceu com Timothy Leary, em relação à exploração da mente através das drogas, e com Herbert Marcuse, no que diz respeito à rebelião político-estudantil. Seu estilo de escrever não era nada convencional. Os fatos expostos nos

livros são menos importantes do que suas ideias, devaneios e o gosto pelo aforismo. O estilo prolixo, repetitivo e cheio de referências eruditas tornou obscuros trechos de sua obra para o leitor comum e alvo de crítica no meio acadêmico tradicional. A rigor, ele escreveu apenas três livros. Todos os outros são como trabalhos de ilustração das ideias já defendidas na quase trilogia The mechanical bride, A galáxia de Gutenberg e Os meios de comunicação como extensões do homem. A partir de 1964, ele dedicou muito do seu tempo às entrevistas, aos programas de talk show e às conferências sempre muito concorridas. Seus críticos não pouparam rótulos depreciativos: “guru de televisão”, “Dr. Spock da cultura pop”, “o alto sacerdote do pensamento pop que conduz uma missa negra para diletantes diante do altar do determinismo histórico”, o “mágico

metafísico possuído por um sentido espacial da loucura”. Contrapondo-se aos críticos, o jornalista Tom Wolfe, um dos mestres do então novo jornalismo, escreveu em 1965 um perfil sobre o pensador canadense intitulado E se ele estiver certo?, hoje considerado um clássico. No texto, Wolfe compara a importância de McLuhan para a civilização ocidental à de Sigmund Freud. Descrevendo o cotidiano do personagem e suas contradições, Wolfe afirma que “num momento, ele parecia simplesmente um professor de inglês (...). No momento seguinte, ele parecia com o que, de fato, se tornou: o supersábio, o Freud do nosso tempo, o philosophe onisciente, o dialético inabalável.” Polêmico e provocador, McLuhan desafiava aqueles que aceitavam com naturalidade as novidades. Em 1969, disse, sobre a reação comportada das pessoas no momento em que surgem novas mídias: “Quando isso acontece, o sistema nervoso central aparece para instituir um entorpecimento autoprotetor da área afetada, isolando e anestesiando-a da percepção consciente do que está acontecendo. É um processo como o que ocorre quando o corpo está sob choque ou condições de estresse (...). Eu chamo esta forma peculiar de ‘auto-hipnose de Narciso como narcose’ (entorpecimento), uma síndrome pela qual o homem permanece tão desavisado dos efeitos psíquicos e sociais da sua nova tecnologia quanto um peixe em relação à água na qual ele nada”. E fazia um alerta para o futuro: “Se entendermos as transformações revolucionárias causadas pelas novas mídias, poderemos nos antecipar e controlá-las; mas, se continuarmos no nosso transe subliminar autoinduzido, nós seremos seus escravos”.

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ERNESTO SABATO O adeus ao último dos renascentistas

Autor de O túnel e Sobre heróis e tumbas, escritor argentino, viveu e trabalhou, por quase 100 anos, com a inexorável consciência da solidão humana texto Fernando Monteiro

ernesto Sabato quase chega aos 100 anos. Glória da literatura argentina, o décimo dos 11 filhos varões de um casal oriundo da Calábria, ele veio ao mundo em Rojas, província de Buenos Aires, no dia 24 de junho de 1911. O lugar passou a constar do mapa literário internacional como cenário da infância do escritor e pintor da perplexidade em face das dores humanas e do inconformismo perante as injustiças que agravam o “desconforto de existir”, o tema central da sua obra. A trajetória do artista e do homem se confunde, em Sabato, com a história – politicamente conturbada – da Argentina ainda buscando a si mesma, entre golpes e crises que parecem fazer parte de algum tango com passos de dança forçados por populistas e generais de opereta. No campo artístico, o país é pródigo de altos talentos: Borges, Torre Nilsson, Sabato. Para muitos, Sabato é um escritor mais vital do que Jorge Luis Borges, ao menos para se compreender o que los hermanos viveram desde o “justicialismo” de Perón até a corte de militares que lhes impuseram uma das mais cruéis ditaduras da América Latina. Nesse sentido, podemos dizer que o escritor foi uma consciência sobrevivente de si própria e das circunstâncias. Mais do que nunca solitário após a morte da mulher – Matilde, falecida em 1998 –, depois de ter perdido o filho mais velho, Jorge, em acidente de carro três anos antes, Sabato viu aumentarem as sombras em torno dos seus fantasmas, na mesmíssima casa de Santos Lugares apontada como a residência de uma

espécie de herói. Explica-se: Sabato foi o presidente da já legendária Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas – Conadep –, criada por decreto do presidente Raúl Alfonsín, no dia 15 de dezembro de 1983. E o “herói” da denúncia dos militares que sequestraram e mataram adultos e até crianças é também o autor de pelo menos duas obras-primas indiscutíveis: O túnel (1948) e Sobre heróis e tumbas (1961). Seja logo dito: quem “ama” Borges, tem menos empatia com a arte do comunista antistalinista que é esse escritor bem distante das fantasias borgianas imersas no universo de bibliotecas reais e imaginárias. “Comunista”? Sim, ninguém foi mais comunista, na juventude, do que o ancião que se declarou “anarcocristão”, com a plena consciência do que lhe custa ser uma consciência alheia às ideologias de rebanho. Homem que sempre se sentiu metafisicamente só, Sabato escreveu ficções e ensaios de acordo com essa arraigada noção de que nascemos e morremos sozinhos com o nosso destino (möira) imerso em mistério, no sentido mais antigo da velha palavra. Quando era um promissor cientista com doutorado em Física pela Universidade de la Plata, o inquieto Sabato abandonou a ciência para se refugiar em Pantanillo, nas serras de Córdoba. Recém-casado com Matilde, “mulher forte como as mulheres fortes da Bíblia”, ele abandonava o altiplano científico – para espanto de todos os

seus colegas de pesquisas – a fim de se dedicar exclusivamente à literatura. “Literatura?” O doutor Enrique Gaviola, físico notável, foi um dos mais inconformados com a súbita decisão do seu brilhante assistente. Anos mais tarde, depois da leitura de Sobre heróis e tumbas, Gaviola reconhecerá que a ciência perdeu um talento, porém as letras ganharam um gênio, cuja estreia se assinalara já com romance de primeira grandeza: O túnel. Em Heteredoxia, o autor fala sobre o livro: “Enquanto eu escrevia esse romance, arrastado por sentimentos confusos e impulsos inconscientes, muitas vezes me detinha, perplexo, para avaliar o que estava saindo, tão diferente do que havia previsto. E,

A trajetória de vida de ernesto Sabato se confunde com a história politicamente conturbada da Argentina sobretudo, me intrigava a importância crescente que iam assumindo o ciúme e o problema da posse física. Minha ideia inicial era escrever um conto, o relato de um pintor que enlouquecia ao não conseguir comunicar-se com ninguém, nem mesmo com a mulher que parecia tê-lo entendido por intermédio de sua pintura. Ao acompanhar o personagem, porém, constatei que ele se distanciava consideravelmente desse tema metafísico para ‘descer’ a problemas quase triviais de sexo, ciúmes e crimes. (...) Mais tarde compreendi a origem do fenômeno. É que os seres de carne e osso não podem jamais representar as angústias metafísicas sob o estado de ideias puras: fazem-no sempre encarnando essas ideias, obscurecendoas com sentimentos e paixões. Os seres carnais são essencialmente misteriosos e se movem em impulsos imprevisíveis, mesmo para o próprio escritor que serve de intermediário entre esse estranho mundo da ficção, irreal, mas verdadeiro, e o leitor, que acompanha seus dramas. As ideias metafísicas se transformam, assim, em problemas psicológicos, a solidão metafísica passa a ser o

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DIVULGAÇÃO

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pArceriA

Depois da morte da sua mulher Matilde, em 1998, Sabato se afastou da vida pública e tornou-se cada vez mais recluso

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Leitura 2

isolamento de um homem concreto numa cidade concreta, o desespero metafísico se transforma em ciúme, e a história que parecia destinada a ilustrar um problema metafísico se transforma em romance de paixão e ciúme. Castel procura apoderar-se da realidademulher por intermédio do sexo. Mas esse é um empenho tão vão!”... Castel é o pintor cujo “eu” enclausurado assume a nervosa voz narrativa de O túnel, fazendo ecoar as interpolações que vão desenhando o interior do personagem e o entorno magnificamente compostos das mesmas tumultuosas impressões que dão ao livro a carnadura viva de um túnel de sangue, de uma veia aberta para misturar plasma e literatura, material algo biográfico e invenção em grau superlativo. Desde as primeiras linhas, o leitor se sente atraído para um tipo de “confissão” direta e sem truques: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não serão necessárias maiores explicações”... Nesse momento em que se ensinam tantas tolices – principalmente nas “oficinas” de criação literária que começam por duvidar da eficácia do narrador na primeira pessoa –, Ernesto Sabato dá sua lição de mestre: “Adotei a narrativa na primeira pessoa em O túnel,

o romancista argentino seguiu o caminho do aprimoramento durante os anos de elaboração do épico Sobre heróis e tumbas depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos cotidianamente, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total...” Autor que se examina com a lente do cientista, o romancista argentino seguiria no caminho do aprimoramento da sua arte durante os anos de elaboração do épico Sobre heróis e tumbas, narrativa construída sobre três planos que se interpenetram e logram transmitir tanto os “impasses” tipicamente sabatonianos quanto o substrato do passado de uma nação que se plasmou a partir do zero do pampa, com a ajuda – fundamental – dos emigrantes, cuja melancolia, para Sabato, estaria na raiz do tango: “Aqui, nós não tivemos civilizações indígenas, como no Peru e no México. A Argentina foi levantada sobre o pampa, essa metáfora do nada. Olhem para Buenos Aires: ela atraiu milhões

de emigrantes, em poucas décadas. A cidade passou dos 200 mil habitantes do fim do século 19 para se tornar esse monstro contemporâneo. Ninguém pode viver sem pátria, sem terra a que fixar-se e a que amar. Os que vieram para cá buscavam algo sólido a que se agarrarem, ou seja, necessitavam de uma pátria com urgência. E naquele crepúsculo da passagem do novecento, chegaram a estas praias de lama multidões de gentes corroídas pela miséria das aldeias italianas, espanholas, polacas, russas, alemães, libanesas... Elas vinham alentadas pela esperança. A maior parte encontrou outro gênero de pobreza, agravada pela solidão. Haviam deixado mães, noivas, irmãos. Como não teria que nascer, de toda essa melancolia, a dramaticidade do tango?”

ciDADÃo

Este escritor foi também um cidadão que jamais renunciou a se posicionar politicamente. Tal exercício vigilante dos deveres cívicos, ele se impôs muito cedo, desde a “descoberta” dos males sociais, quando ainda era um ginasiano. Na ideologia, Sabato encontrou o bálsamo para as dores precoces do ser consciente. Deixemos que mais uma vez fale o próprio protagonista de um tempo diferente deste atual, no qual “é difícil ser Homem” (tomandose essa investidura também como o compromisso com o Outro): “Na escola secundária, me vi diante de uma encruzilhada de ordem social, já não pessoal, ao tomar súbita consciência da injustiça que rege nossa sociedade. Refiro-me a um lapso de cinco anos, entre 1924 e 1929. Para mim, foi como dar entrada num recinto maravilhoso; nós nos sentíamos como eleitos, falávamos com entusiasmo durante horas e líamos folhetos que transmitiam a boa-nova; participávamos de manifestações de rua a favor de Sandino, de Sacco e Vanzetti, e em geral

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INDICAÇÕES terminávamos correndo da polícia em nosso encalço”. O jovem Ernesto chegou a ser secretário da Federação Juvenil Comunista, e foi preciso ir a Paris, viajando na clandestinidade, para ver ruir a sua primeira confiança na ideologia, ao tomar conhecimento dos crimes stalinistas ignorados pela orientação do partido. O passo seguinte do militante foi endossar o clamor de denúncia desses crimes que a fidelidade canina a Moscou evitava enxergar. Divulgálos era, já, “traição” – aos olhos do segmento estudantil do PC cuja ortodoxia, de imediato, fez cobrar a Sabato o preço pago pelo exercício da liberdade de pensamento. Mais tarde, outros lhe cobrarão da mesma maneira, na Era Perón: como professor de escola pública, será demitido por haver assinado documento de repúdio à violência policial contra estudantes dispostos a comemorar a vitória das Forças Aliadas sobre o nazifascismo. E as contradições não pararão aí. Quando cai o regime de Juan Domingo e Sabato fica sabendo que muitos peronistas (das antigas hostes inimigas) estão sendo torturados em nome do movimento “libertador” etc., o escritor assume o ônus de condenar a violência contra os ex-violentos. Será preciso dizer mais sobre as imposições da consciência a esse “homem que luta só”? O poeta e jornalista Franco Mogni – um dos escritores dos quais Sabato jamais se apartou– lhe fez justiça, nesta apresentação de entrevista para a revista Che, nos anos de 1970: “Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura

que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Ernesto Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos grossos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E nos diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Quanto termina as frases – às quais não falta uma ponta de ironia –, tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.” Perto dos 100 anos e da morte, esse último dos moicanos chegou a uma idade bem longeva para um quase suicida. Já havia posto o ponto final num livro de memórias intitulado Antes do fim. Em mais de uma oportunidade, o homem que lutou contra si mesmo pensou em acabar com a vida ameaçada pela dúvida, pela precariedade financeira e pela angústia que clama contra Deus – e o resto. Dessas lutas, ele saiu na verdade vitorioso, como o último dos renascentistas, no seu périplo amplo desde o terreno das ciências exatas até o território movediço das artes, como humanista, pintor de talento e escritor mundialmente reconhecido. Nos últimos 15 anos, os pincéis substituíram a caneta na mão do autor de Notícia sobre cegos. Não apareceu mais nenhum inédito do autor de Abaddón, o Exterminador, e, desde 2005, os vizinhos não mais avistaram o viúvo que avisou não poder sobreviver à morte de sua Matilde. Seja como for, Sabato agora pertence ao mais seleto lugar da literatura: aquele que garante a imortalidade artística como luz no fundo do túnel.

ROMANCE

JORDI SOLER A última hora do último dia Record

Cronista musical e autor de ficção, ele tem se destacado por mesclar elementos filosóficos e da cultura pop em seus textos. Neste romance, eleito o livro do ano pelo jornal La reforma, ele evoca as memórias da sua infância na província de Veracruz, criando uma história baseada na trajetória dos exilados espanhóis.

ROMANCE

ADMALDO MATOS DE ASSIS A muralha e o cavalo Bagaço

A história parte de uma metáfora com o cavalo de Troia. A muralha como força intransigente e o cavalo como símbolo de inteligência expõem uma contradição: muitas vezes falta às pessoas sagacidade para vencer obstáculos ou o acaso faz o que a argúcia produziria. A obra venceu o Vânia Souto Carvalho da Academia Pernambucana de Letras.

CONTOS

ANTONIO TABUCCHI O tempo envelhece depressa Cosac Naify

Com histórias que se passam em diversos países, o autor cria situações envoltas por reflexões sobre política, história, civilização e barbárie. A guerra também paira sobre os relatos do livro, eleito pela francesa Lire como o melhor de contos de 2009. As narrativas trazem marcas da melancolia e do tempo.

ARTES

SILVIA RODRIGUES COIMBRA, FLÁVIA MARTINS E MARIA LETICIA DUARTE O reinado da lua Caleidoscópio

Em sua 4ª edição, o estudo conta com o registro fotográfico de obras, retratos e ambiente de trabalho de 109 escultores, de nove estados do Nordeste. A pesquisa se deu em 32 municípios, entre 1976 e 1980. Em cada um dos 12 capítulos, há depoimentos dos artistas populares.

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ricardo moura

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OITO BAIXOS O meio século de fole do mestre Arlindo

Forrozeiro pernambucano, ex-integrante da banda de Luiz Gonzaga, vem mantendo a tradição do “pé de bode” em aulas e shows no quintal de sua casa texto José Teles na página do Instituto Memória Musical Brasileira, o mais completo arquivo de informação e pesquisa de discos da MPB do país, não se encontra o nome de Arlindo dos Oito

Baixos, ou Arlindo Ramos Pereira, nome de batismo do sanfoneiro. No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, também digital, citam-se oito Arlindos. No verbete de dois deles não

há informação alguma, com exceção dos nomes. Esses são exemplos do total desconhecimento sobre Arlindo dos Oito Baixos, um dos maiores sanfoneiros vivos, com 69 anos de idade (completa 70 em 2012), e 50 anos de sanfona, que deverão ser comemorados com CD, DVD e livro, segundo a produção do músico. Arlindo dos Oito Baixos nasceu em Sirinhaém, Zona da Mata Sul pernambucana. Filho de agricultores, ele próprio trabalhou na cana-de-açúcar, no engenho Jaguaribe, e iniciou cedo a aproximação com seu instrumento: “Comecei a aprender com 10 anos, num oito baixos que pertencia ao meu pai, que tocava, mas não era profissional. No começo, ele era contra, mas depois que

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obrA

arlindo, que tem discografia de 14 títulos, pensa em lançar dVd, cd e livro comemorativos dos 50 anos de carreira

O nome de Arlindo passou a ser mais popular em Pernambuco desde que inaugurou, há 10 anos, uma concorrida domingueira de forró, no quintal da casa onde mora, em Dois Unidos, no Recife, onde já se apresentaram os maiores nomes do gênero. Mas, antes disto, já era cultuado entre músicos. Cego, em consequência de diabete, Arlindo passa o dia consertando sanfonas e foles de oito baixos, numa oficina em sua casa. É trabalho e passatempo. Escuta rádio o tempo inteiro, mas raramente uma música sua, apesar de ter uma discografia com 14 títulos. Lançou a maioria por grandes gravadoras. “Comecei na RCA, levado por Gonzaga. Depois passei para a PolyGram, Esquema, a Ingazeira, de Alcymar Monteiro, e agora faço no Recife mesmo, particular”, enumera. O Gonzaga a que se refere é, obviamente, Luiz Gonzaga, citado por 10 entre 10 forrozeiros, muitos gabando-se de ter privado da intimidade do irascível Gonzagão.

GonZAGÃo

viu que eu levava jeito, comprou uma sanfoninha pra mim”. A carreira começou como a de Luiz Gonzaga, décadas antes. O menino passou a ser conhecido na Região pela sua habilidade no fole. Surgiram convites para animar sambas nas cidades vizinhas. Quando deu fé, havia deixado de capinar roça, cortar cana, e passou a viver da música. “Fui morar em Ponte dos Carvalhos”, conta, “aí fui me entrosando, conheci outros sanfoneiros, depois toquei nas caravanas que havia naquela época. A de J.Austregésilo, a de Silveirinha, a de Paulo Marques. Com Coruja e seus Tangarás, eu toquei um tempo, quando fui apresentado a Luiz Gonzaga, que me convidou para tocar com ele”.

Arlindo dos Oito Baixos, como todos os que compartilharam da intimidade do Rei do Baião, fala de seu nome com reverência, não costuma propagar que foram amigos. Do meio século de sanfona e estrada, para Arlindo, o que mais o marcou foram os 18 anos anos que viajou pelo Brasil com Luiz Gonzaga. “Ele tinha as coisinhas dele. Quando chegava de cara emburrada, a gente não falava nada, sabia que havia discutido com a mulher, dona Helena. Mas era muito engraçado, qualquer coisa que se passava ele comentava, e todo mundo ria muito. Nos hotéis em que ele se hospedava se hospedavam todos seus músicos”, lembra o sanfoneiro, que evita contar causos que testemunhou de Gonzagão. Mas às vezes o causo é contado, feito um que aconteceu em Arcoverde. Um show em praça pública, na carroceria de um caminhão, como tantos que Lua fez ao longo dos anos. Ele colocou o pé na escada para subir na carroceria, quando um rapaz chamou seu nome: “Gonzaga voltou-se e perguntou o que o rapaz queria. Ele respondeu que era a carteira da Ordem dos Músicos. Gonzaga olhou para ele, sem dizer nada, e só fez dar o dedo, mas não vá escrever isso não”, diz Arlindo.

Só no começo dos anos 1980 foi que Arlindo dos Oito Baixos gravou o primeiro disco individual. “Viajei esse tempo todo com Gonzaga. Nunca gravei com ele, mas com outras pessoas. Gravei na Rozenblit, gravei também com Coruja e seus Tangarás, com Déo do Baião. Uma vez cheguei para Gonzaga, a gente estava no Braz, em São Paulo, e disse que estava querendo fazer um disco meu. Ele aconselhou a deixar a sanfona de lado. Que tinha muito sanfoneiro no mercado. Agora, tocando oito baixos, muito poucos, e era isso que as gravadoras queriam”. Ele começou gravando músicas de ases do “pé de bode” (outro nome para o oito-baixos), Dominguinhos ou Zé Calixto. “Meu primeiro disco foi gravado no Rio, no estúdio Havaí. Quem tocou comigo nele foi Jackson do Pandeiro, que fez reco-reco e pandeiro, os irmãos dele, Cícero, na zabumba, e Manoel, no melê (instrumento de percussão, feito de borracha de câmara de ar de pneu)”. Arlindo é de falar manso, não levanta a voz nem quando comenta a invasão das bandas de fuleiragem music nos arraiais juninos nordestinos. “Acho que não atrapalha não. Não sou contra, mesmo que use o nome do forró. Tem algumas com umas músicas que até acho bonitas. Agora, não gosto é do duplo sentido. Aí, sou contra.” Tampouco critica o excesso de xote no repertório dos chamados forrozeiro pé de serra: “Acho que eles tocam tanto xote porque o xote é bom para se dançar. Minha música é mais instrumental, e o xote é bom mesmo cantado, com letra”. E até quando dura o fole de oitobaixos, do qual ele é um dos poucos nomes de destaque? O instrumento, provavelmente introduzido no Nordeste por soldados que participaram da Guerra do Paraguai, é de difícil execução, e não tem o mesmo charme de uma sanfona. Os grandes nomes do pé-debode, no entanto, são mitos do forró e contam-se nos dedos: Zé Calixto, Geraldo Corrêa, Truvinca, Camarão, Bastinho Calixto e o próprio Arlindo. “O pessoal prefere a sanfona. O oito baixos não está mais resumido porque a gente ensina. Ensino em casa, tenho uns 20 alunos, uns são bons, levam muito jeito. Tem um Severino, de Prazeres, outro João Leite, de Moreno, mais outros, um pessoal muito bom.”

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LANÇAMENTO Candeeiros e neons junta-se à “prole” de Xico Bizerra

Compositor que nunca interpreta as próprias músicas chega ao nono disco da série Forroboxote, uma espécie de franquia musical de sucesso, com a voz de diversos cantores texto Thiago Lins

diVulgação

Hoje, Forroboxote é uma marca bem-sucedida. Em 2002, era a estreia arriscada – em álbuns temáticos – de um tal de Xico Bizerra, funcionário público em vias de se aposentar. Depois de trocar o balcão pela música de raiz, Xico começou a soar ousado, ainda mais por não cantar. Por se considerar desafinado, convidou os amigos cantadores Nico de Pádua e Serginho Luiz para assumirem a tarefa. Entre parcerias e regravações, Pádua e Luiz são dois dos primeiros nomes da extensa lista do “selo” Forroboxote: Alcymar Monteiro, Chiquinha Gonzaga, Quinteto Violado, Dominguinhos, Maciel Melo... Todos regravaram ou tocaram com Xico numa determinada altura da sua prolífica carreira. Apesar de ter se lançado tarde, Xico vem gravando praticamente um CD por ano, desde então. O mais recente, Candeeiros e neons, a propósito do nome, vai “do tradicional ao moderno, do simples ao sofisticado”, conforme atesta o próprio autor. O nono volume chega depois de Xico já ter sido gravado por 230 vozes diferentes. Sozinha, Se tu quiser, sua música mais gravada (do Forroboxote 2, de 2003), soma 126 interpretações, algumas feitas por medalhões como o caboclo sonhador Maciel Melo e Xangai. Candeeiros e neons, apesar de ser esteticamente mais amplo do que os discos anteriores, foi composto à velha maneira de Xico:

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INDICAÇÕES 1

prolífico

desde 2002, compositor vem gravando praticamente um cd por ano

intuitivamente, “sem receita”, a partir de seu teclado. Dali partiu para 200 horas em estúdio, num processo que envolveu 58 pessoas, divididas entre instrumentistas, técnicos, produtores e daí em diante. Mais uma vez, Xico é “cantado” por terceiros: Maciel Melo, Silvério Pessoa e até Zé Brown (o rapper que virou repentista) engordam o time de Candeeiros e neons. O destaque entre as parcerias fica para o Quinteto Violado, que arranjou a faixa Olinda, Holanda: Xico dedica o CD ao saudoso fundador do grupo, Toinho Alves. O baixista, que morreu em 2008, aos 64 anos, é o autor da música que o Quinteto interpreta nesse disco. Olinda, Holanda é uma das melhores faixas do volume. O álbum ainda traz uma parceria póstuma com Luiz Gonzaga. Ocorreu de Xico ser convocado para participar de um projeto idealizado pelo compositor baiano Gereba, que convidou diversos compositores (de Caetano Veloso a Zeca Baleiro) a escreverem para músicas instrumentais do velho Lua. Xico letrou Pise de mansinho, que data de 1942: “Seja bem-vinda/ Chegue, pise de mansinho/ Bote carinho nesse teu belo pisar/ Tenha cuidado pra não deixar magoado/ Um peito cansado de apanhar”, diz a letra de Xico. Outro ponto alto do disco, Pise de mansinho conta com um vocal inspirado do conterrâneo

Santanna (Xico é cearense radicado em Pernambuco) e arranjo preciso de Bozó. Para divulgar seu novo trabalho, Xico conta com os parceiros já mencionados, que usam o poder de suas vozes para isso. O compositor costuma dizer que nem a mulher dele compraria seus discos, caso ele cantasse. É assim, calado, que hoje Xico contabiliza 350 músicas gravadas, que chegam a quase 700, se somadas às regravações. Façanhas que o levaram a se tornar verbete no estimado Dicionário Cravo Albin da MPB. É com saldo positivo que o artista admite encerrar a numerosa série. “É complicado chamar o povo para cantar, e o formato está exaurido”, explica. Mais fácil deve ter sido improvisar com Dominguinhos, o que se deu recentemente. Tudo começou com Elba Ramalho encomendando um forró ao sanfoneiro. Este pediu uma letra a Xico, com quem se reuniu para improvisar no Recife. Dominguinhos, que tira melodias da sanfona com a mesma fluidez que os cantadores improvisam versos, provavelmente nem se deu conta de que Xico, meio atento e meio impressionado, estava gravando tudo. Os dois, que tinham se encontrado para fazer uma música para Elba Ramalho, deixaram o estúdio com 11 melodias inéditas, que viraram um “presente” do sanfoneiro para Xico, desde que o último se comprometesse a letrar as músicas. Xico sabe que, dessa vez, escrever não vai ser tão fácil quanto tocar, dada a responsabilidade de firmar parceria com o sanfoneiro, visto como um gênio.

INSTRUMENTAL

ANDRÉ MEHMARI E HAMILTON DE HOLANDA Gismontipascoal Microservice S&D

o pianista e arranjador andré mehmari e o bandolinista Hamilton de Holanda se juntaram para prestar homenagem a Egberto gismonti e Hermeto Pascoal. além de recriar músicas dos compositores, agregaram três músicas próprias ao projeto. os homenageados, por sua vez, retribuiram a gentileza, reunindose ao duo para gravar duas faixas: Fala da paixão (com gismonti) e Música da nuvem e do chão (com Hermeto).

ROCK

REM Collapse into now Warner

os americanos continuam acertando a mão em seu 15º álbum de estúdio, Collapse into now. o trio chamou um timaço de convidados, que vão de Eddie Vedder (na balada It happened today) a Patti Smith (em Blue, faixa mais declamada do que cantada, como manda a cartilha da poetisa). as participações especiais são muitas, mas não chegam a ofuscar o trabalho sólido do rEm, cujo lançamento não faz feio frente a seus clássicos.

MPB

CAETANO VELOSO E MARIA GADÚ Multishow Ao Vivo Caetano e Maria Gadú

THE VACCINES What did you expect from The Vaccines?

a parceria entre o artista e a cantora dividiu opinões e gerou polêmica, mas, a despeito das críticas, caetano seguiu em turnê com maria gadú e acaba de lançar um cd duplo com a jovem intérprete. o disco, assim como o show, se divide em partes individuais em que executam canções de seus repertórios e momentos nos quais cantam juntos. a controversa Shimbalaiê é interpretada pelo ídolo baiano, o que pode fazer os detratores reverem sua opinião sobre a música.

Não é comum uma banda estrear sob pressão: esta fica para o batido “teste do segundo disco”. acontece que os Vaccines já tinham o seu viral (o vídeo da irresistível Post break-up sex) antes do álbum completo. contendo apenas meia hora, o disco não apresenta outro single bombástico, mas ainda assim traz um punhado de músicas agradáveis e animadas. Sem falar no oportuno título: What did you expect from the vaccines?

Universal Music

ROCK

Columbia

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Visuais 1

itinerância 29ª Bienal de São Paulo agora em versão pocket

Projeto de levar para 13 cidades brasileiras trechos da exposição do ano passado na capital paulista chega ao Recife, através de mostras em três espaços texto Mariana Oliveira

em 2008, a crise rondava a 28ª Bienal de São Paulo, que seria marcada pela opção curatorial de manter um andar inteiro completamente vazio. Ela apontou uma tensão profunda na Fundação Bienal de São Paulo. Foi na esteira desse processo que Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias assumiram a curadoria da edição de 2010. Coube aos dois recuperar a imagem desgastada da mostra anterior e avançar na reflexão sobre o papel da Bienal num país continental como o Brasil. Entre as mudanças positivas, está o projeto que prevê a itinerância da exposição, numa forma de dar ao Ministério da Cultura uma contrapartida aos seus altos investimentos. A Fundação procurou instituições em várias cidades e formulou parcerias para levar pequenas amostras do que foi a exibição, que contou com 850 obras, de 159 artistas, realizada entre 25 de setembro e 12 de dezembro do ano passado, em São Paulo. Desde o início deste ano, 13 cidades brasileiras (Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador, Juiz de Fora, Santos, Araraquara, Ribeirão Preto, Porto Alegre, Campinas, Brasília, São José dos Campos e Recife) estão recebendo pequenos conjuntos de obras, que refletem o universo original criado no Pavilhão do Ibirapuera, dentro da proposta de mostrar as relações entre a arte e a política em seu sentido mais amplo. “Cada uma das cidades está recebendo um recorte completamente diferente, ainda que algumas obras se sobreponham”, explica Moacir dos Anjos. O Recife receberá obras em três espaços distintos: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), Museu do Estado de Pernambuco (Mepe) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), com inaugurações agendadas para os dias 29 e 30 de junho, e 1º de julho, respectivamente. No último dia das aberturas, haverá ainda uma conversa com os dois curadores. Segundo Moacir, diferentemente de outras cidades, a mostra que vem ao Recife teve que ser dividida em três blocos, já que não havia espaço suficientemente grande na cidade

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1 lima museun of art Na obra/museu, a peruana Sandra Gamarra Heshiki exibe cópias idênticas da obra de Gerard Ritcher sobre o grupo Baader-Meinhof 2 AfetividAde The ballad of sexual dependency, de Nan Golding, é um álbum de família, com fotos de 1979 a 2004, apresentadas em slide show

2

para receber a exposição. No total, são 134 obras de 24 artistas, que poderão ser vistas até o dia 21 de agosto.

ciRcUito

O recorte que vai ocupar o Mamam é voltado para as questões da afetividade. O térreo do museu receberá os trabalhos de Leonilson, que evocam um certo discurso amoroso, em diálogo com pequenas esculturas de corpos masculinos desnudos, em madeira, em que o artista Efrain Almeida se autorretrata, num tom extremamente confessional. Do pernambucano Gil Vicente, vem a série Suíte safada, cujos primeiros estudos foram exibidos no começo dos anos 2000, no Recife. “O cerne da exposição, excetuando algumas obras pontuais, é a afetividade, a sexualidade. É uma discussão sobre formas de relacionamento, essas questões circulam pelas obras”, detalha Moacir dos Anjos. Entre os trabalhos, está ainda o slide show de 40 minutos com fotografias de Nan Golding. A obra é uma espécie de álbum de família junkie, com fotos de 1979 a 2004, sincronizadas com músicas do período. De acordo com o curador, esse foi um dos trabalhos que mais geraram empatia com o público jovem durante a exibição paulistana.

A mostra foi dividida em três, já que não havia espaço no Recife em que coubessem as 134 obras de 24 artistas A Fundaj, por sua vez, se tornará um espaço tomado pela “marginalidade”. Hélio Oiticica será representado pelo seu Seja marginal, seja herói, uma “homenagem” ao bandido Mineirinho, ao lado do Lima Museun of Art, obra/ museu da artista peruana Sandra Gamarra Heshiki, na qual ela reproduz e expõe aquilo que quer. A pedido da organização da Bienal, o Limac traz para a mostra cópias idênticas da obra de Gerard Ritcher sobre o grupo terrorista alemão Baader-Meinhof, que o MoMa não quis emprestar para a mostra. Ao lado das apropriações feitas pelos artistas, estão a foto do bandido Mineirinho morto e o catálogo produzido pelo museu novaiorquino com as obras de Ritcher. Unindo esses elementos, os curadores brincam com a questão da cópia e do original, do bandido e do herói, do central e do marginal. A proposta do recorte do Mepe é discutir o dito e o não dito, o visível e

o invisível. Nele, estarão expostas as colagens do pernambucano Marcelo Silveira e a apropriação dos cartazes do método pedagógico de Paulo Freire, feita pelo alagoano radicado no Recife, Jonathas Andrade, inéditas na cidade. Gustav Metzger apresenta fotografias de eventos catastróficos do século 20, exibidas atrás de paredes falsas, de panos, de dispositivos que interceptam a visão. O espectador é obrigado a se colocar em posições desconfortáveis para conseguir enxergar algo, cortinando e descortinado as imagens. Moacir dos Anjos destaca a obra de Antonio Vega Macotela, que discute sobre o tempo. O artista visitou uma prisão na Cidade do México e propôs intercâmbios com os detentos. Ele passaria algumas horas fazendo coisas para os presidiários fora da prisão, enquanto eles fariam algo para o artista atrás das grades. Dessas 365 trocas, surgem resultados como um exemplar furado do Conde de Monte Cristo devido ao gesto repetitivo de um preso, que tinha TOC. O projeto educativo da Fundação Bienal de São Paulo, que se tornou um departamento permanente, vai promover atividades nas três exposições do Recife. Uma visita virtual da exposição original também estará disponível aos visitantes. Contudo, para Moacir dos Anjos, as mostras em tamanho reduzido podem facilitar a apreensão da proposta. “Eu acho que, paradoxalmente, por ela ser menor, permite uma apreensão melhor do que foi e do que tentou ser a Bienal, da forma como se quis trabalhar a relação da arte com a política”, diz.

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A proposta é mostrar que a busca por uma essência brasileira não é mais um ponto central no mundo da arte

Visuais 1

coletiva Breve ideia de nacionalidade

Exposição Vestígios de brasilidade compila conceitos de identidade brasileira na obra de artistas de várias gerações

como definir a identidade brasileira? Estaria ela bem-representada no Carnaval, no futebol, no samba e na malandragem? Falar disso, em tempos pós-modernos, como nos garante Stuart Hall, é discorrer sobre uma situação indefinida, difusa, híbrida. Para o pesquisador, o sujeito pós-moderno é formado não por uma única identidade,

mas por várias, muitas vezes contraditórias entre si. Torna-se difícil apontar um núcleo, seja ele de raça, de gênero, de nacionalidade. Essa nova condição identitária está exposta em vários eixos da vida, inclusive na arte. Enquanto o nacionalismo modernista acreditava ser possível criar representações

daquilo que seria a “real” essência brasileira, os artistas contemporâneos parecem acreditar na inexistência de uma brasilidade a priori; creem que o propriamente brasileiro é um conceito, uma construção. Percorrendo essas reflexões, o curador Marcelo Campos concebeu a mostraVestígios de brasilidade, em cartaz no Santander Cultural até 31 de julho. No título, já começa a se desenhar a proposta curatorial, cuja ideia é mostrar como a busca por uma essência brasileira não é mais um ponto central no mundo da arte. Como escreve o curador, a “valorização de elementos nacionais, constituintes de um determinado contexto social, é a projeção de vestígios de brasilidade construídos ao longo do tempo e que se tornaram recorrentes na criação artística”. Ele reuniu 57 obras de 42 artistas, fragmentos poéticos que relembram o país, sem se fecharem em “símbolos unívocos”. A curadoria aposta em situações poéticas que possam mostrar um Brasil tocado pela criação artística. São sete eixos temáticos, ou “vestígios”: Quarta-feira de cinzas; Fetichismo; Vento; Preguiça; Sortilégios; Geometria e Casa. Os restos de serpentina, confetes, fantasias e instrumentos musicais próprios do Carnaval são apropriados

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1 SONHO DE PROSTITUTA A obra de Cícero Dias compõe o eixo dedicado à preguiça 2 neLSon LeiRneR Em Missa móvel, skate, o artista trabalha a diversidade de crenças religiosas do Brasil

e ressignificados pelos artistas, seja de forma melancólica, como no filme de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, ou como alegoria, no vídeo em que formigas carregam confetes, de Rivane Neuenschwander e Cao Guimarães. Na segunda etapa, temos as representações de objetos de culto aos quais se atribuem poderes de magia. Nela, aparecem as armas e os animais silvestres apreendidos nas fotografias de Bob Wolfenson e a polêmica em torno da intervenção urbana de Alexandre Vogler, que realizou um site specifc em Nova Iguaçu (RJ), com o desenho em grande dimensão de um tridente em um terreno próximo a uma cruz, provocando reações da população local e da imprensa. No eixo dedicado aos sortilégios, destaca-se o culto religioso, tão diverso no país. Para simbolizar tal hibridismo, a obra de Nelson Leirner Missa móvel, skate é imbatível. Quebrando a assepsia do ambiente, Carybé, Rosângela Rennó, Brígida Baltar e o coletivo Chelpa Ferro trazem o vento, evocando Iansã, as memórias da infância

ou os mitos da literatura de Guimarães Rosa. A preguiça, qualidade ou defeito do personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, é recuperada numa aquarela de Cícero Dias, numa escultura malemolente de Ernesto Neto, e nas fotografias de homens cochilando, de Pierre Verger. A questão geométrica, que marcou a passagem do modernismo para a contemporaneidade, é trabalhada através das heranças do construtivismo e do popular, expostas em trabalhos de Volpi, Roberto Lúcio ou Delson Uchôa. “Figurativo ou abstrato? A pergunta permanece frutificando-se em exemplos como os azulejos de Adriana Varejão”, pontua o curador. Fechando a mostra, a ideia de privacidade se manifesta no eixo Casa. “Até que ponto o artista encontra sua subjetividade ao expor sentimentos em formas, proposições materiais ou desmaterializadas?”, pergunta-se Marcelo Campos. A resposta virá nas obras de Efrain Almeida, Farnese de Andrade, José Rufino e Alberto da Veiga Guignard, que expressam seus afetos. Essa diversidade de obras, lado a lado, gera variações de leitura e propõe múltiplas identidades. Enquanto algumas trazem elementos ligados à questão da identidade brasileira, como o uso das cores azul, verde e amarelo, ou da bandeira nacional, a maioria não tem sequer um elemento que aponte para o Brasil. Mesmo assim, ao sair da exposição, os brasileiros se sentirão ali refletidos. Trata-se de uma oportunidade para que sejam discutidas as questões identitárias e os estereótipos construídos a partir delas.

30 anos de carreira

RiNalDo Silva RevÊ SUa oBRa Este ano, o artista plástico pernambucano Rinaldo Silva está completando 30 anos de carreira. Para comemorar a data, empreendeu uma releitura de obras suas que considera mais relevantes. O resultado está na exposição Luzia dos olhos d’água protege o que vejo, em cartaz até o dia 19 deste mês, na Arte Plural Galeria, no Recife. Os novos trabalhos não levaram, necessariamente, o mesmo título daqueles em que foram calcados. O medo de se repetir é um fantasma que assombra o artista. Por isso ele pediu proteção à Santa Luzia, protetora dos olhos, segundo o catolicismo, para desencadear o processo de reinvenção artística. A influência da cultura nordestina nas obras de Rinaldo fica mais uma vez evidente nessa mostra. A literatura de cordel, por exemplo, atravessa seus trabalhos, quando o artista relaciona imagem e texto, em curiosos títulos de obras. Na criação das linhas e sombras que compõem os trabalhos, o artista serviu-se de técnicas mistas sobre papel montval. Gravuras, desenhos (em grafite e giz pastel), em tonalidades que variam entre o cinza e o cobre, e pinturas (em tinta acrílica), dão vida às figuras humanas. Nas pinturas de santas católicas, prevalecem o vermelho e amarelo. Mesmo com esse repertório de caráter místico, o artista diz que a constante dúvida, essencial para a vida, é o que liga os trabalhos que fazem parte da mostra. “A insegurança e angústia são sentimentos que fazem parte da existência humana. No mundo, é como se não existisse nada além da razão. Mas existe algo nesse meio, a dúvida.” PEDRO PAZ

MARIAnA oLIVEIRA

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a Vênus de Willendorf

matéria corrida José cláudio

artista plástico

não devemos ser imediatista com a pintura que praticamos. Não se trata da oposição regional/universal, velho/novo, presente/passado nem do maior, menor ou nenhum valor em dinheiro que o artista obtenha pelo seu trabalho, por mais crucial que esse dado lhe signifique no orçamento para a sobrevivência física atual. O futuro, sim, em parte, porque devemos ter noção do que subsistirá quando o que houver de superficial nos movimentos que dominam o cenário da arte hoje em dia no lugar em que vivemos tiver se evaporado, e em parte porque não se pode adivinhar tudo, até a sobrevivência do que entendemos por arte. Não importa nome de “arte moderna”, como foi ontem, “pósmoderna”, “contemporânea” ou outro que se imponha na mídia. “A Arte é sempre jovem”, já dizia Vargas Vila. O que interessa é se o quadro continuará a existir na serenidade do

tempo perene como a Vênus de Willendorf, longe de todas essas disputas infantis, o olhar compreensivo que se adivinha a partir do rosto inexistente, o sorriso sem boca ante as nossas criancices, a nos falar do seu longínquo vigésimo quarto milênio. Tratemos de ser sincero, de pintar o que vem do fundo de nossa memória, como se fosse a última oportunidade, como se nossa civilização tivesse desaparecido e sobrado apenas esse nosso testemunho, a imagem que estamos produzindo na tela, no barro, seja onde for. A contribuição dos grandes pintores de todos os tempos, seja próximos geograficamente seja distantes, servirá para nosso aprimoramento, para nos tornar mais destro, para descobrir em nós outros eus, desbloqueá-los, e a isso devemos nos entregar com todo desprendimento. Mas é imprescindível chegar um dia a nós próprio, não por vaidade mas por

nitidez, sem nos perdermos de vista durante a difícil caminhada. É bom, um belo dia, depois do escuro, nos perguntarmos isto: para que era mesmo que eu queria aprender a pintar? Para ficar rico? Para agradar críticos, curadores? Ficar famoso? Ou algo mais pessoal: superar nossa insignificância, alguma desvantagem que a natureza acaso nos tenha impingido, alguma incapacidade física ou psíquica, inferioridade social? Tudo isso um dia será ultrapassado quando chegar a hora da verdade. E ao mesmo tempo tudo serve, até os equívocos mais absurdos. Me lembro que Abelardo da Hora queria ser mecânico e o irmão Luciano, artista. Quando chegaram na escola profissional o professor de mecânica olhou para Abelardo e disse: “Não tá vendo que esse magrelo não tem força para apertar um parafuso!” Trocou: botou Abelardo para estudar arte e Luciano para mecânica. Resultados ótimos. Abelardo é o grande

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REPRODUÇÃO

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Vênus de Willendorf

Pedra calcárea, 11,1 cm de altura, 22 mil a.C., desenterrada pelo arqueólogo Josef Szombathy, Willendorf, Áustria, 1908

desde que o indivíduo tenha tempo de chegar à ideia e amadurecê-la, mesmo que não se preocupe com isso obsessivamente. O imperador romano Marco Aurélio diz que o homem que, aos 40 anos, não souber do seu futuro, é imbecil. Quem está interessado ou não no que você está pintando não conta a longo prazo. Faça. Mesmo

A contribuição dos grandes pintores de todos os tempos, seja próximos seja distantes, servirá para nosso aprimoramento

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escultor que nós conhecemos e Luciano chegou até a montar estaleiro para fabricar navio. Um dia você terá noção exata do valor do que faz. Do que depende dos outros e do que depende de si. Sem dramas, sem rancores, sem precisar que ninguém lhe diga pagando bem com a moeda de César. Você estará tranquilo a seu respeito e a respeito de sua arte que serão a mesma coisa inclusive quanto ao lugar de morrer. Chegar ao lugar de morrer tem a maior importância, não somente o lugar

cidade mas o lugar estético. E não é que você fique estático: pelo contrário, alcançará o máximo de dinamismo, lamentando as horas necessariamente perdidas com o sono. Ócio, nem pensar. Quando vemos falar em turismo, o coração se nos confrange. Seria como nos meter na prisão. Nem sempre se leva em conta, na vida de Cristo, esse fato de, como homem, fora as profecias, já saber como deveria morrer. O homem é capaz de saber como vai morrer, independentemente de ser morte matada ou morrida,

que você achar que não saiu nada brilhante, faça. Você aprenderá por si. Tem hora que ninguém acode. Perca a fé em tudo menos em si próprio. Passe necessidade, passe humilhação mas siga. Tudo o que é sincero aquece-nos a alma mesmo que nos crucifiquem, dia que não foi vivido em vão. Essa arte essencial, que amanhã dará notícia de nosso tempo, pode nem ser o que de melhor se produza neste lugar hoje chamado Brasil. Quem sabe quantas Vênus de Willendorf não se teriam perdido e se, apesar de maravilhosamente bela, não seria uma entre mil? Qualquer que seja tua contribuição, será de uma importância infinita, a gota d’água que faz o mar, o azul do mar.

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CRIAÇÃO O segredo do olhar dos hermanos O cinema argentino se firma como produtor de filmes de variados gêneros, mesclando qualidade e apelo comercial texto Dora Amorim

Claquete 1

Quem é melhor, Pelé ou Maradona? Todo brasileiro que gosta de futebol odeia perder para os argentinos e viceversa. Rivalidades à parte, é sabido do público e, principalmente, dos realizadores brasileiros que, há algum tempo, o cinema argentino é sinônimo de qualidade. Famoso pela ótima literatura, imortalizado por grandes escritores como Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, o país fortalece o seu nome em outro campo da cultura: o do cinema. Se, na década de 1960, o Brasil estava contagiado pela novidade e pelo experimentalismo do Cinema Novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, os hermanos lançavam uma nova geração

de diretores muito jovens que se destacou pelo caráter autoral, herdado dos franceses da Nouvelle Vague. Entre as principais obras desse período, estavam: El jefe, de Fernando Ayala, Alias Gardelito, de Lautário Múrua, e Los jovenes viejos, de Rodolfo Kuhn, marco daquela geração e do cinema latinoamericano em geral. Entre elogios e ironias, os brasileiros acusavam esses realizadores argentinos de não possuírem uma alma latina, uma essência regionalista, que era a grande marca do Cinema Novo. Na verdade, a Geração de 60 ou nuevo cine argentino, como ficou conhecida, queria combater o cinema comercial, dominado pelos grandes estúdios do país desde a década

de 1940. Contudo, essa produção independente sucumbiu por não ter distribuição (muitos filmes eram comprados pela indústria mexicana para evitar concorrência), pela censura da ditadura militar e por sofrer de uma crise de “equívoco moral”, como pontuou Glauber Rocha. “Evidentemente, a maioria dos cineastas da Geração 60 refletiu sobre os erros, atingiu a consciência latina, mas não pôde fazer filmes. O espírito independente, contudo, produzirá mais cedo ou mais tarde um novo surto, embora nada faça prever uma democratização política e cultural para um breve futuro”, observou o cineasta brasileiro, no livro Revolução do Cinema Novo, de 1967.

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nos anos 1960, os cineastas brasileiros acusavam os argentinos de não possuírem uma alma latina

RetoMADA

Em 1986, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para A história oficial, de Luis Puenzo, dava indícios de que a produção argentina poderia despontar como uma das mais reconhecidas e respeitadas do continente sul-americano. A década seguinte ao prêmio ainda foi bastante tímida em relação ao sucesso alcançado durante os anos 2000. Sem se abaterem com as sucessivas crises econômicas, os realizadores argentinos desenvolveram histórias que tratavam de temas universais, mas pontuavam seus roteiros com personagens e situações típicas de um país latino-americano em crise. Esse segundo nuevo cine argentino ou buena onda fortaleceu nomes como o de Juan José Campella, que viria a

ser o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2010, com O segredo dos seus olhos, e de Fabián Bielisnky, responsável pela produção Nove rainhas (2000), que rodou todo o mundo e ganhou mais de 20 prêmios internacionais. Com essa retomada, o cinema argentino popularizou-se e ficou conhecido, especialmente, pelo tom dramático. Entre brigas de famílias, histórias de amor, e trapaças, esses filmes, regados a discussões acaloradas e reviravoltas surpreendentes nos roteiros, sensibilizaram o público e contabilizaram milhões de espectadores por todo o mundo. Contudo, mesmo se “aliando” a um projeto cinematográfico mais popular e comercial, diretores como Marcelo Piñeyro (O que você faria?) e Campella (Filho da noiva, O clube da Lua) conseguiram abordar a realidade nacional, que se manifestava artisticamente através do cinema, sem nunca deixarem de lado os conflitos pessoais. Além do melodrama, é curioso observar que, longe dos holofotes, diretores mais jovens começaram a produzir um cinema minimalista, sugestivo, que tinha como principal interesse a análise e a investigação dos seus personagens. Sem grandes produtoras ou financiadores, esse núcleo independente conquistou seu espaço pela boa qualidade dos filmes apresentados. Nesse contexto, não há como esquecer o nome do cineasta Daniel Burman. Em 2004, com apenas 29 anos, ele lançou O abraço partido, seu terceiro longametragem, marco do início dos anos 2000. Com essa obra, ele se tornou referência no circuito alternativo sul-americano e figura obrigatória nos principais festivais de cinema. Outro nome importantíssimo é o da cineasta Lucrecia Martel. Em 2001, com O pântano, ela ganhou o prêmio Alfred

Bauer, em Berlim, dado a filmes que “abrem novas perspectivas para a arte cinematográfica”. Sua última produção, A mulher sem cabeça (2008), participou da seleção oficial de Cannes; lenta e fragmentada, a obra não é para todos os gostos. Através de uma narrativa densa, a diretora expõe um cinema deliberadamente humano, o grande diferencial da sua geração. Embora não possua uma unidade estética e, por isso, não configurem num movimento, os nomes de Lucrecia, Burman e Pablo Trapero são sempre lembrados em conjunto. Eles também foram responsáveis por abrir portas e dar visibilidade a um cinema pouco comercial e bastante intimista. Entre filmes restritos a um circuito mais “alternativo” de festivais e outros que seguem um modelo comercial menos arriscado, e chegam às salas de multiplex, produz-se muito no país. “Hoje, há vários tipos de cinema, na Argentina. Eu, na verdade, estou buscando uma mescla do cinema de autor com o comercial, é muito difícil de ser feito e poucos diretores tem tentado, um exemplo é Carlos Sorin. Mas, cada um faz cinema como é possível, meus filmes são assim porque saem assim e não necessariamente porque eu me propus a algo”, observou Pablo Meza, diretor dos filmes Buenos Aires 100 km e A velha dos fundos.

APoio eStAtAL

É interessante observar o apoio dado pelo Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (Incaa) à produção audiovisual do país. Criado como um órgão ligado à Secretaria de Cultura de La Nación, mas com autonomia financeira, a instituição desenvolve políticas de fomento para levantar recursos, através de taxas sobre os ingressos dos cinemas, sobre o aluguel e venda nas locadoras e sobre as emissoras de televisão. Cerca de 10% do que é arrecadado com ingressos nas bilheterias das salas argentinas de cinema, por exemplo, revertem-se para o instituto, que investe na produção de novos filmes. Além de ser responsável pelo incentivo financeiro, o Incaa também distribui os filmes produzidos para fora do país e possui espaços culturais com salas de cinema espalhados pelo

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DIVULGAÇÃO

Claquete

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território nacional. Divulgando para os argentinos a cinematografia local, mantém uma programação variada, contemplando filmes premiados e outros produzidos em mostras universitárias. As coproduções internacionais também estão crescendo; depois de assinar um convênio com a Itália e a Alemanha, é a vez do Brasil. No último Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que discutiu a cinematografia argentina, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão oficial do governo federal brasileiro, e o Incaa firmaram um acordo de cooperação que estimula a produção conjunta entre os dois países. O instituto também foi responsável indiretamente pelo reconhecimento do trabalho desses novos autores. Em 1995, um grupo de cineastas ganhou edital do Incaa para curtasmetragens e decidiu apresentar suas produções conjuntamente, sob o título Historias breves. O projeto, desenvolvido como incentivo a jovens realizadores, foi um sucesso de crítica e público, revelando os nomes de Adrián Caetano, Bruno Stagnaro,

Sandra Gugliotta, Daniel Burman, Lucrecia Martel y Ulises Rosell.

SUceSSo inteRnAcionAL

Maior bilheteria nos últimos 35 anos do cinema argentino, O segredo dos seus olhos ganhou o Oscar de 2010, desbancando os favoritos A fita branca (Michael Haneke) e O profeta (Jacques Audiard). Com 2,5 milhões de espectadores e arrecadação de 8,5 milhões de dólares no seu país de origem, o filme foi um sucesso no Brasil, onde teve cerca de 200 mil espectadores, número considerado alto para os padrões do cinema “alternativo”. Com essa obra, Campella fez um filme noir invejável para os padrões norteamericanos, mas Hollywood (é claro) não ficou para trás e já garantiu o remake, com possível direção de Billy Ray (O preço de uma verdade). Outro filme argentino que ganhará uma releitura é Abutres, de Pablo Trapero. O longa-metragem foi o candidato oficial da Argentina para concorrer ao Oscar de 2011, mas não ficou entre os cinco finalistas. A obra

explora o trabalho de advogados “abutres” (caranchos) que lucram com os acidentes automobilísticos e investiga a cidade de Buenos Aires. Trapero, com José Juan Campella em O segredo dos seus olhos, se arrisca num filme de gênero que agradou ao público por não cair nos excessos comuns às produções hollywoodianas. Até agora, o diretor mais cotado para assumir o remake é Scott Cooper (Coração louco). Além de receberem refilmagens de grandes estúdios norte-americanos, essas obras têm em comum o fato de serem estreladas pelo ator Ricardo Darín. Embora resista ao título de “ator mais importante da produção argentina” ou “rosto do cinema porteño”, ele participou, na última década, de produções que marcaram a filmografia argentina contemporânea. Filho de atores, Darín começou a trabalhar no teatro com apenas 10 anos e assumiu o título de representante dessa buena onda. Na semana de estreia, o seu novo filme (abril de 2011), a comédia Un cuento chino, teve 250 mil espectadores,

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INDICAÇÕES Na página anterior 1 abutres

Filme de Pablo Trapero, com o ator Ricardo Darín, é outro título argentino a ganhar remake em Hollywood

Na página ao lado 2 dois irmãos

Obra de Daniel Burman comprova talento dos argentinos em filmar temas delicados

provando o sucesso e o reconhecimento do ator em seu país. Recentemente, ele recebeu a proposta de trabalhar com Walter Salles, ao lado do também ator Gael Garcia Bernal, e está avaliando a participação em mais três filmes brasileiros.

DeStAQUeS RecenteS

Nos últimos meses, dois filmes argentinos circularam pelos principais festivais de cinema do Brasil, recebendo elogios e comprovando a boa mão dos argentinos para o tom mais intimista de seus filmes. Dois irmãos (exibido no Festival de Gramado, no Festival do Rio de Janeiro e na Mostra de São Paulo), sétimo longa-metragem de Daniel Burman, revela um diretor maduro e novamente interessado nos assuntos familiares – afinal de contas, “tudo passa pela família”, em suas próprias palavras. Adaptação da obra Villa Laura, de Sergio Dubcovsky, o filme acompanha os dois irmãos do título: Suzana (Graciela Borges) e Marcos (Antonio Gasalia) e reflete sobre as suas diferenças. A produção aborda também a relação entre dois primos distantes: Argentina e Uruguai. Há uma ligação

muito forte entre os países que, assim como os irmãos, estão separados pelo Rio Del Plata e por rivalidades passadas. Outro filme que, por coincidência, está centrado em dois personagens é A velha dos fundos, do diretor Pablo Meza, ganhador dos Kikitos de Melhor Roteiro e Ator (Martín Piroyansky), no último Festival de Gramado. A ideia do filme surgiu quando Pablo estava olhando os classificados do jornal e percebeu que havia muitos anúncios de idosos que alugavam quartos para estudantes, não por dinheiro, mas pela companhia. Na obra, Rosa é uma senhora que “aluga” um dos quartos da sua casa para o estudante de medicina Marcelo (Martín Piroyansky), sob a condição de conversarem todos os dias. Com apenas dois longas-metragens no currículo, é notável o cuidado de Pablo Meza ao tratar do assunto “humano”. “Eu gosto de mostrar a intimidade das pessoas dentro das suas casas. Quando escrevo um roteiro, sempre penso mais nos personagens do que na história em si, porque essa história vai se desprendendo dos personagens. É mais fácil escrever um bom filme quando se conhece muito bem os seus personagens”, observou o cineasta. “Temos muitas histórias para contar”, afirmou Pablo Menza, entusiasmado quanto à produção argentina, em certo momento da entrevista. Quanto ao público brasileiro, deixamos qualquer sentimento de competitividade de lado e esperamos (boas) novas produções dos hermanos.

DRAMA

O BOM CORAÇÃO Direção de Dagur Kári Com Brian Cox, Paul Dano, Bill Buell, Stephanie Szostak Imovison

Ao intercalar momentos de humor negro a outros bastante dramáticos, o diretor islandês Dagur Kári criou o seu universo particular e apostou numa fórmula bastante simples: confrontar dois personagens antagônicos, mas que precisam desesperadamente um do outro. Se Jacques é um velho chato e egoísta, Lucas é o seu contraponto, um jovem bondoso. Mesmo com um roteiro pouco sugestivo, O bom coração consegue ganhar a simpatia do público.

suspense

UM HOMEM MISTERIOSO

Direção de Anton Corbijn Com George Clooney, Irina Björklund, Johan Leysen, Paolo Bonacelli. Paramount Pictures

Com roteiro de Rowan Joffe, esse thriller americano tentar fugir ao máximo do previsível. Não há explosões, cenas de perseguição de carros e lutas. A direção do diretor holandês Anton Corbijn (de Control, sobre Ian Curtis) não cai nos excessos. Ele constrói uma narrativa lenta, mas não cansativa, e se apoia na atuação de Clooney para fazer um filme sobre um homem solitário que está interessado em alcançar algo grandioso.

COMÉDIA

REFLEXÕES DE UM LIQUIDIFICADOR De André Klotzel Com Ana Lúcia Torre, Selton Melo, Aramis Trindade Europa Filmes

Tudo na obra soa estranho, não só o fato de um dos seus personagens ser um liquidificador, dublado pelo ator Selton Melo. O filme, ambientado em São Paulo, acompanha a história de dona Elvira (Ana Lúcia Torre). Depois do desaparecimento do seu marido Onofre, a trama ganha um viés fantástico, em que a realidade é sempre questionada e um liquidificador se torna um seu confidente.

DRAMA

MALU DE BICICLETA Direção de Flávio Tambellini Com Marcelo Serrado, Fernanda de Freitas, Marjorie Estiano, Otávio Martins Paris Filmes

Adaptação do romance de Marcelo Rubens Paiva, que assina o roteiro, a obra foi uma boa surpresa no cenário nacional. Com uma narrativa descontraída, o diretor Flávio Tambellini fala do amor de uma forma simples, sutil, sem os exageros comuns à cinematografia brasileira atual. O casal de atores Marcelo Serrado e Fernanda de Freitas foi premiado no Festival de Cinema de Paulina, de 2010, pela atuação. Ambos transitam pelo drama e pela comédia apoiados na direção.

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IMAGENS: dIvulGAção

MU-TO E se o que estamos vendo não estiver pronto? Obra das espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras é uma experiência cênica que gera dúvidas sobre o estágio em que ela se encontra texto Chris Galdino

Palco

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Processo ou produto? Volta e meia, essa questão ressurge no universo das artes. O cenário contemporâneo estabeleceu a era do processo, quando este tem sido protagonista e foco das atenções, pelo menos entre artistas, pesquisadores e críticos. Em contrapartida, percebe-se que o público não está completamente atento a esses deslocamentos, tampouco familiarizado com as novas configurações. Independentemente dessa recepção tardia, aumentam as mostras de processo, em que os criadores organizam cenicamente o que estão investigando e apresentam publicamente. É possível que a ideia de exibir uma obra ainda na fase da elaboração siga a lógica das produções interativas, cuja proposta é estreitar a relação artista-público. MU-TO, trabalho das espanholas Laida Azkona e Verónica Eguaras, é uma dessas experiências de produtos cênicos que são processos. E a proposta vai além da participação da plateia em cena. As pessoas são convidadas e direcionadas a uma coautoria, já que podem interferir no processo criativo. Outra questão recorrente na arte contemporânea, e que marca essa primeira criação conjunta da dupla, é o diálogo entre linguagens artísticas. Laida vem da dança contemporânea e Verónica, das artes plásticas e do audiovisual. O trânsito, nesse caso específico, não se dá apenas entre formatos, mas é também o assunto da performance e sua metodologia. “Eu estava realizando uma pesquisa a pedido de um centro cultural de Pamplona, minha cidade natal, para criação de um solo de dança contemporânea, e, paralelo a isso, preparava- me para uma viagem de intercâmbio ao Brasil. Naturalmente, reflexões sobre o conceito de viagem passaram a ser o foco do projeto. Assim começou a se desenhar MUTO”, conta a bailarina Laida Azkona. Aos poucos, várias contribuições foram ampliando e aprofundando o significado inicial de viagem. Dentre elas, o encontro com Verónica Eguaras foi a de maior efeito transformador. Laida já estava na fase de mostrar os primeiros resultados de sua pesquisa, quando Verónica juntou-se a ela. Iniciaram, então, um processo de continente JUNHO 2011 | 79

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IMAGENS: dIvulGAção

2 mu-to Na apresentação, as pessoas são convidadas e direcionadas a uma coautoria, interferindo no processo criativo 3 PeRFoRMAnce As espanholas laida Azkona e verónica Eguaras misturam elementos da dança contemporânea com as artes plásticas e o audiovisual

Apolo Hermilo, nos dias 18 e 19 deste mês. A “parada” começa uma semana antes, com a realização de um workshop/residência, em que a dupla partilha com os participantes os mecanismos e estratégias de criação de MU-TO e propõe trocas com os artistas de cada local – que costumam resultar em novas células e modificações do que será mostrado em cena. No Recife, esse encontro se chamará “La forma de la memória” e acontecerá no próprio Centro Apolo Hermilo, entre os dias 13 a 17, aberto à participação de qualquer pessoa que se interesse por um processo de investigação criativa em arte, sejam atores, bailarinos, performers, artistas plásticos ou videoartistas.

tRAJeto

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montagem, descobrindo um método de criação comum, já que ambas desejavam mudar sua forma de trabalhar, “queriam se dedicar mais à construção de uma linguagem criativa do que à produção de espetáculos”, como defendem. A metodologia surgiu das necessidades e limitações. Forçadas a criar à distância, já que Laida morava em Barcelona e Verónica transitava entre Pamplona e Madri, usaram o blog como ferramenta de trabalho (www.mu-to.blogspot. com). “Cada uma de nós lançava, via

internet, tarefas criativas para serem realizadas, discutidas, contestadas, desenvolvidas pela outra, enfim. Daí surgiram vídeos, fotografias, textos e coreografia. Em seguida, encontramos um jeito de organizar todo o material, fazendo novos arranjos e combinações a cada apresentação da pesquisa”, explica Laida. Outra particularidade da composição da obra é o que as criadoras chamam de “paradas”. E a próxima será no Recife, na 9ª Mostra Dança Contemporânea, no Centro

Antes de aportar no Recife, a dupla “parou” em Civivox, em Pamplona; no festival Luna KREA, em Vitoria-Gasteiz; na mostra La Poderosa, em Barcelona, e no museu Reína Sofía, em Madrid, e no Mestrado em Práticas Cênicas e Cultura Visual, que Verónica está cursando. Isso quer dizer que a “parada” pernambucana será a primeira fora da Europa. “Sem dúvida, partilhar nosso processo com outra cultura será enriquecedor, uma nova e proveitosa aprendizagem. Estamos com bastante expectativa nesse reencontro com o Recife, já que minhas primeiras ideias para criação do projeto MU-TO surgiram exatamente no período em que estive aí, em 2009. Além disso, muitos dos

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nossos materiais audiovisuais foram gravados nesta cidade e estamos curiosas para observar a reação do público local, quando reconhecer as imagens”, comenta Laida. Ela diz que o registro em vídeo não é a única ponte entre a Espanha e o Brasil. “Admito que não conheço suficientemente a dança contemporânea brasileira para fazer uma análise crítica, mas sei que existe uma imensa variedade de propostas e que muitas são de grande qualidade. Acredito que essa diversidade se origina nas muitas raízes culturais e sociais às quais os trabalhos fazem referência. Cada autor cria a partir de sua percepção, das suas preocupações e de seus gostos. Mas acho que as produções cênicas diferem umas das outras por causa dos interesses de cada criador, e não pelas características particulares de cada país.” Seja como for, ícones culturais – a exemplo de alguns passos de samba e do clássico do cancioneiro popular Aquarela do Brasil – estarão presentes no processo em trânsito das espanholas, lançando de maneira lúdica reflexões sobre identidades

estão presentes, na obra em processo, reflexões sobre identidades, relações humanas e o papel da arte na sociedade nacionais, relações humanas e o papel da arte na sociedade contemporânea. A descontextualização, o contraste, a mudança de cotidiano e de ponto de vista que o encontro com outras realidades proporciona é o discurso e, ao mesmo tempo, o formato dessa performance de natureza mutante. As inquietações, os percursos internos das artistas servem de ponto de partida para a construção coletiva de itinerários reais e imaginários que são experimentados junto com o público, enquanto vão sendo mostrados, alterados, reelaborados, quase simultaneamente. As imagens originam outros movimentos e, na troca, novas relações são estabelecidas, mudando o contexto

que, por sua vez, modifica as coreografias…e assim as mudanças vão se processando sucessivamente. Será sempre difícil descrever MUTO. Seu caráter cambiante não é compatível com nenhum formato fixo e não cabe nas descrições de nenhuma linguagem artística específica. É uma instalação ou intervenção de artes plásticas, mas é também uma mostra de vídeos e uma performance de dança contemporânea. Tudo isso junto, nas inúmeras combinações possíveis. Produto ou processo? Seja qual for a resposta, é um convite à viagem, não apenas no sentido literal, mas entendendo esse conceito de uma forma ampla. É produto e processo. Afinal, quando colocamos em cena parte de um curso criativo, o que mostramos não pode ser chamado e tratado como um espetáculo? Mais importante do que chegar a um consenso sobre essa questão, é entender que a arte saiu definitivamente da era da contemplação. Não somos mais chamados a ver, mas a experimentar, vivenciar... fazer parte do processo.

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AFETO Comida que alimenta movimentos sociais No restaurante Kovacic, a receita é aglutinar num só cardápio o prazer criativo da refeição ao desejo de melhorar a vida de minorias texto Samarone Lima Fotos Flora Pimentel

Cardápio 1

Um pequeno quadro-negro,

pendurado do lado de fora do portão de uma casa simples, cercada de plantas, nos arredores da Universidade Católica de Pernambuco, informa: “Kovacic Almoço”. Quem vem abrir o portão é um homem de idade incerta, que se define como croata-chileno, com sangue cigano circulando nas veias, tão apegado a viver pelo mundo, que é mais fácil saber quantos países ele não conhece. Pelas contas dele, são uns três ou quatro.

São 30 cadeiras brancas e sete mesas, dispostas em um salão principal e dois menores. Na mesa principal, além de velas apagadas da noite anterior, o cliente pode não entender muito bem a presença de livros como Saúde e prevenção na escola; Pesquisa sobre abuso sexual; Direitos humanos no Brasil, além de um grande livro sobre mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Em outra mesa, o contraponto. Livros como A comida baiana de Jorge Amado, A rainha que virou pizza – Crônicas em torno da comida do mundo, entre outros.

Mas não se espante com a mistura. No térreo, funciona o Restaurante Kovacic, com almoço e jantar de quinta a sábado (consulte no www.kovacic.institutosois. org). O detalhe é que os cardápios são temáticos, e ficam disponíveis por uma semana. “Uma receita nunca volta a ser repetida. Utilizamos para introduzir determinadas misturas e sabores, para provocar uma certa reflexão”, explica Claudio Kovacic. Numa semana, é possível se deparar com o “Cardápio da chuva”, na outra, com o “da liberdade”, o “das mulheres”, e inovações como

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1 clAUDio kovAcic Mesmo antes de virar cozinheiro, o croata-chileno já era apaixonado por temperos

viável para canalizar apoio. Não tem que doar dinheiro, tem apenas que vir e comer bem aqui”, diz. Pelos cálculos de Kovacic, se o restaurante funcionar satisfatoriamente nos três dias da semana, consegue viabilizar projetos que terão impacto na vida de 1.600 pessoas.

coZinHA De FUSÃo

o “Festival dos Dons Divinos”. Tudo, inclusive receitas, é compartilhado pelo Facebook (Kovacic A Cozinha). No primeiro andar, outras misturas, dessa vez envolvendo grupos, profissionais que atuam na sociedade civil em questões como segurança e saúde pública. É o Instituto Sois (www. institutosois.org), que atua em cinco comunidades do Recife e Região Metropolitana. De segunda a quarta, o espaço pode abrigar encontros dos mais variados, envolvendo diversos atores que tentam mudar o cotidiano de

violência e opressão contra minorias, como o Coletivo de Entidades Negras (CEN), a Oficina Fotolibras, o Seminário para Formação de Lideranças Políticas do Movimento Lésbico, as reuniões da Associação de Trabalhadores Domésticos de Águas Compridas, o Grupo de Apoio aos Transexuais de Pernambuco. “De quinta a sábado, é restaurante”, afirma Kovacic. O detalhe é que o movimento na cozinha tem repercussão na sobrevivência da organização. Quase 80% do caixa vai para a manutenção do Instituto Sois. “Nós somos um caminho

O “comer bem” não é conversa de cozinheiro que conheceu países e se deslumbrou com o Brasil. É a vivência de um homem que andou pelo mundo, durante mais de 20 anos, pesquisando, colhendo temperos, cheirando, testando receitas. Toda a comida é feita na hora, exceto a sobremesa, que é feita de manhã. Não se usa comida congelada. “É uma cozinha de fusão. Colecionei temperos a vida inteira. No Sudão, encontrei a pétala de uma flor chamada karkaré, que se usa para fazer suco, com tamarindo, e também é utilizada como tempero e na sobremesa”, exemplifica. A comida servida na casa simples, aconchegante, que à noite tem muitas velas, música boa e o bom papo do proprietário, é a síntese de uma vida intensa. Kovacic trabalhou em cooperações internacionais, a serviço da ONU. Depois das infindáveis reuniões, encontros, trabalhos, relatórios, ele se atirava sem medo às ruas, percorria as áreas mais fechadas, subúrbios, mercados; sem contar aquelas instigantes, nas quais os visitantes são recomendados a visitar sob a condição do aviso universal “ali é perigoso”. O fascínio por temperos sempre falou mais alto que qualquer preocupação com segurança. Ele conta que o único grande perigo por que passou aconteceu no sul da França, quando esbarrou com um grupo de árabes que estavam um pouco irritados. Kovacic conseguiu repetir várias vezes, em árabe, “eu não quero problemas”, e tudo terminou por ali. O momento decisivo para tornar-se um cozinheiro de verdade aconteceu em 1992, quando fazia um trabalho em Hamallah, na Palestina, com mais de 30 pessoas, de várias partes do mundo. Kovacic, claro, era o cozinheiro oficial. Saía para o mercado em busca de

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2 AMBiente O Restaurante Kovacic tem um ar intimista: salão principal e dois menores, com apenas sete mesas e 30 cadeiras 3 coZinHA Toda a comida é feita na hora, pelo próprio Kovacic, menos a sobremesa, preparada pela manhã

comida fresca e os ingredientes certos para uma bela janta. “Eu comprava os temperos à mão aberta, como os muçulmanos. Você bota as moedas na mão, eles tiram exatamente o valor correto, nunca vão te roubar. Para cada tempero, me davam dois ou três outros diferentes, de cortesia. Voltei para casa com uns 30, 40 tipos diferentes”.

BUScA PeSSoAl

Foi somente em 2008 que Kovacic resolveu abrir o restaurante, depois de uma paixão arrebatadora pelo Brasil. “Não achava nada que me fizesse deixar minha casa, em Amsterdã, para morar no Brasil. Minhas relações com o país passavam por cidades de que eu tinha informações, como São Paulo, Rio

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4-5 MenU No jantar, são servidos sete pratos (entradas, prato principal e sobremesa), alterados semanalmente

de Janeiro, Porto Alegre. Na verdade, nunca gostei muito do Brasil”, confessa. Até que um dia, em 2005, decidiu que seu compromisso com a “família Nações Unidas” havia terminado. Pensava em morar numa ilha entre a Tailândia e a Malásia. Antes, veio participar de uma reunião sobre saúde pública, no Recife. “Depois de dois ou três dias, me vi envolvido em um espaço social e político que achei fascinante. Fiquei tomado pelo cheiro, pelo sol, pelas cores, pela rua. Depois, vim mais umas 20 vezes”. A decisão de morar no Recife era também o resultado de uma necessidade pessoal.“Eu não me vejo novamente morando na Europa. Acho que não tem a ver com a minha busca. Queria me concentrar nas atividades de ação de base. Acho que o micro transcende o macro.” No começo, o restaurante era desconhecido, o local não tinha visibilidade, mas foi resistindo e criando raízes, graças à persistência e ao humor irônico de Kovacic e seu pequeno grupo de quatro funcionários. “A gente abria, ria, criava um novo cardápio a cada semana. Foi o aniversário de um amigo que, de fato, iniciou os trabalhos.” Hoje, os resultados começam a aparecer. Para o jantar, é recomendável telefonar e fazer uma reserva. Ao contrário de alguns lugares do Recife, que se transformaram nos “bares e restaurantes da moda”, com sua alta rotatividade, aonde as pessoas vão também para “verem e serem vistas”, o pequeno restaurante de Kovacic tem outra proposta. “Às vezes, as pessoas vêm aqui mais para se esconder, para comer bem, compartilhar uma mesa a dois, ou com seu grupo, de corpo e alma. As pessoas ficam em seu próprio mundo, e ficam muito bem.”

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Artigo

REPRODUÇÃO/LIVRO História da arquitetura de Mato GROssO

ÂNGELO MARCOS ARRUDA O MATO GROSSO DO SUL E SUA ARQUITETURA Foi no ano de 1524 que o português desbravador Aleixo Garcia e sua comitiva atravessaram o território do estado de Mato Grosso do Sul em busca do ouro inca, a pedido de Juan Diaz de Soliz e do rei de Portugal D. Fernando V. Essa missão simboliza a presença primeira de um homem branco em Mato Grosso do Sul e dá início à história de sua arquitetura e urbanismo. Porção oeste do Brasil, fronteira com a Bolívia e com o Paraguai, tendo uma imensa planície com o Pantanal, o estado foi sendo ocupado de acordo com os ciclos que ocorreram ao longo desses quase 500 anos. Esses ciclos apontam caminhos para o surgimento de espaços de moradia e de edifícios de grande importância histórica para a arquitetura brasileira. Quem poderia imaginar que Mato Grosso do Sul já foi espaço ocupado por espanhóis, inclusive com a instalação de um núcleo urbano? Santiago de Xerez é hoje, do ponto de vista histórico, a cidade mais antiga do estado e tem sua trajetória atrelada à colonização espanhola na região da Província do Itatim, no sudoeste matogrossense. Xerez data de 1593 e, em novo local, ela é implantada em 1600, com o traçado típico do urbanismo espanhol dos séculos 16 e 17, sendo dizimada pelos portugueses. A presença indígena na região, através dos povos guarani, caiuá, terena e kadiwéu, principalmente, deixou marcas culturais de muita força, presentes ainda hoje, seja no modo de alimentação à base da mandioca, na matriz gráfica das peças utilitárias ou no modo de cobrir as suas casas. Sem a presença de metais ou de materiais de interesse econômico para a capitania, a porção

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sul de Mato Grosso, nos séculos 16 e 17, foi de fato esquecida pelo colonizador, interessado no ouro cuiabano. Mas, para proteger as grandes fronteiras, o governador Luís de Albuquerque de Mello e Cáceres manda construir fortificações e é nessa aventura que se ergue o edifício mais antigo do estado, conhecido como Forte Coimbra, em 1775. Essa fortaleza, típica construção de arquitetura militar do século 18, tombada como patrimônio histórico pelo Iphan, está localizada às margens do Rio Paraguai e é uma edificação ainda utilizada pelos militares, tal a sua privilegiada localização. Anos antes, o governador da capitania de São Paulo, Morgado de

Matheus, ergue no Rio Iguatemi, porção sul do estado, outra fortificação, denominada Forte Iguatemi ou Povoação e Praça das Armas Nossa Senhora dos Prazeres e São Francisco de Paula, que foi destruída em 1777. Apenas vestígios arqueológicos foram encontrados pelos pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Ainda no século 18, duas cidades são criadas e instaladas em Mato Grosso do Sul e fazem parte da história do Brasil Colônia e, portanto, da arquitetura colonial brasileira. Corumbá (1778) e Miranda (1797) são cidades coloniais brasileiras que começaram com uma implantação de vila, protegidas por muros, com

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1 MiLitAR Construído em 1775, o Forte Coimbra é a edificação mais antiga de Mato Grosso do sul

uma vida voltada para as atividades pecuárias e de troca de mercadorias com os estados e países vizinhos. A arquitetura histórica presente nessas duas cidades é de grande valor para a região e para o país. Corumbá, localizada às margens do Rio Paraguai e capital do Pantanal, é uma cidade que foi quase destruída com a Guerra do Paraguai, tendo parte de suas edificações e de seu traçado urbano tombada como patrimônio da União pelo Iphan desde os anos 1990. Os casarões do século 19 também presentes no sítio retratam um período de imensa riqueza econômica, com a importação de produtos da Europa que chegavam pela Bacia do Prata. Em Miranda, o

os ciclos do gado e a ferrovia noroeste do Brasil foram fundamentais para o crescimento e integração do estado processo de tombamento federal de algumas edificações importantes já está encaminhado. Mas foram os ciclos do gado e da ferrovia Noroeste do Brasil que trouxeram o desenvolvimento e a integração para Mato Grosso do Sul. Fazendas rurais e sua arquitetura tipicamente mineira se fundem

com o estilo eclético dos edifícios ferroviários – estações, rotundas, residências e armazéns, desenhando o mosaico da arquitetura histórica do estado. Com a ferrovia vieram os construtores, os materiais e os novos estilos arquitetônicos em voga nas cidades mais importantes do país e do mundo e, assim, os casarões, os edifícios comerciais e os novos prédios institucionais começam a ser erguidos. Técnicas da ornamentação e elementos de revestimento impregnaram as edificações que foram sendo erguidas no final do século 19 e início do século 20. Novas cidades surgem – a capital do estado, Campo Grande, é de 1899; abrem-se fronteiras para o gado e para a erva-mate; fundam-se colônias agrícolas e, com isso, Paranaíba, Nioque, Coxim, Aquidauana, Três Lagoas, Maracaju, Ponta Porã, Ribas do Rio Pardo, Rio Brilhante, Anastácio, Terenos, Porto Murtinho, Ladário, Bela Vista e Dourados aparecem no cenário geográfico como municípios dotados com a presença de importantes edifícios em estilo eclético e art déco. Os idealizadores da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, inaugurada em 1914, sonhavam em fazer a ligação do Oceano Atlântico ao Pacífico. A obra, que atravessa o Pantanal, corta o território de Mato Grosso do Sul do leste, entrando por São Paulo, ao oeste, encostando-se a Corumbá e à fronteira boliviana. Todo esse patrimônio é desconhecido do povo brasileiro, que tem referências sobre Mato Grosso do Sul através das belezas naturais de Bonito ou através das notícias ruins de drogas e contrabando. Chegou a hora de apreciar a sua arquitetura histórica. Fica aqui o convite.

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Luciano Pontes

NA PERPLEXIDADE DE UM SEGUNDO

Luciano Pontes

é ator, palhaço e autor de livros infantis LUCIANA DANTAS/DIvULgAção

Os dias passam e as promessas de mudança parecem ficar guardadas como imagens fotografadas na perplexidade de um segundo. Empilhadas, vão se amontoando em álbuns as imagens indesejáveis de uma vida inteira. E não é preciso encher as prateleiras das estantes, porque a cada instante elas disparam flashes em nossa memória. Falo disso porque ando, assim como Manoel de Barros, catando nas miudezas as grandezas significativas para vida; e delas faço questão de contar. “É da poeira do cotidiano que se extrai poesia”, diz Elisa Lucinda. E, só para elucidar, retiro a pouca poeira do álbum arquivado recentemente e abro o verbo ao falar de uma dessas atitudes flagradas diariamente. Imagens que fazem a agressividade esbarrar ou mesmo se engarrafar em tons de verde, amarelo e vermelho nos cruzamentos constantes do trânsito das avenidas. Essas mesmas imagens são retornáveis, porque, ao conduzir um carro, as miudezas de suas regras tornamse grandezas e uma simples seta não acesa numa curva aciona o alerta e a agressividade destampa a garrafa e eclode em tom verbal – “liga a seta!” – ou mesmo de perplexidade. Muitos, eu sei, estão preocupados com a alfabetização no trânsito. É que ela é tão importante quanto a formal; por que ler por imagem também não é uma alfabetização? Mas, se nessas pequenas grandes coisas deixamos nossa educação se relevar, passa-se a mão como afago de erro cometido sem dano algum. Os florais tentam amenizar minha irritação: quem é pedestre sente no corpo vários sustos a cada travessia; não há sinal na esquina de cada rua e não é que queira amenizar as esfarrapadas e “afoitices” dos pedestres. Mas sem fazer vista grossa, até porque sou míope. O IBGE já deve ter feito algum levantamento do número de carros “sem seta” que existem e não sabemos. Os números crescem como os algarismos digitais que contabilizam os valores que pagamos aos impostos no telão exposto em plena rua. O país tem 5,9 habitantes por veículo. Para algum esperto, isso pode até dar sorte, e apostando – quem sabe – pode ganhar no bolão ou acertar no jogo do bicho. E assim seguimos montando álbuns e criando casos, alguns pela afirmação, outros pela indagação ou mesmo indignação. Por isso faço questão de falar, tentando encontrar, nessa poeira, a poesia do cotidiano. Tomo como ilustração uma amiga que cobra os centavos dos trocos. E isso é tão digno quanto defender as geleiras do Himalaia.

cON ti NeN te

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