Continente #127 - Os reis do riso

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reprodução

julho 2011

aos leitores Em A era do vazio, o filósofo francês Gilles Lipovetsky definiu o conceito de “sociedade humorística”. Para ele, o humor, hoje, está espalhado em todos os lugares: nos meios de comunicação, nos esportes, na internet, no teatro, na publicidade, no cinema e até em espaços reservados à seriedade, como a Igreja. Este mês, o humor também tomou as páginas da Continente. O jornalista Gilson Oliveira traçou um panorama do riso ao longo da história, mostrando que, em alguns momentos, ele foi reprimido e como, atualmente, chega a ter valor econômico. O historiador francês Georges Minois, autor de História do riso e do escárnio, acredita que, por ter se transformado num bem de consumo, o humor está em perigo, pois sua comercialização pode matar sua verdadeira essência. O recorte histórico trazido pelo jornalista é complementado por artigos de Daniel Kuppermann, que aborda o tema à luz da Psicanálise; Antonio Clériston de Andrade, que trata da relação entre riso e linguagem, através do uso do sarcasmo, da ironia e paródia; e de um depoimento do

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cartunista Miguel, que tem o humor como ferramenta fundamental do seu trabalho. Seguindo a trilha aberta pela temática, a revista tomou como referência um concurso humorístico realizado pela The New Yorker, para lançar um na mesma linha. A cada mês, disponibilizaremos em nosso site um desenho de humor sem texto, para que os internautas atribuam uma legenda a ele. As melhores serão premiadas e o primeiro lugar terá seu texto publicado na edição seguinte da revista. As informações já estão disponíveis em nosso site: www.revistacontinente.com.br. Ainda marcando as comemorações dos 10 anos da revista, completados em janeiro, promovemos o Festival Liszt/Mendelssohn, que tem patrocínio da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e da Chesf, com direção artística da pianista Elyanna Caldas. Entre 21 de julho e 30 de agosto, o público poderá assistir a uma série de concertos em homenagem a esses dois compositores. Liszt, cujo bicentenário de nascimento se comemora este ano, é assunto de reportagem especial desta edição, composta por textos de Carlos Eduardo Amaral e Leonardo Martinelli.

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sumário Portfólio

Luciana Buarque

6 Cartas

7 Expediente

+ colaboradores

8 Entrevista

Karim Aïnouz Cineasta fala do seu mais recente trabalho, exibido em Cannes, e de sua paixão por aeroportos

12 Conexão

Prezi Site oferece programa para apresentações em slide show

20 Balaio

Audrey Hepburn Atriz foi apontada como a dona do penteado mais influente

36 Filosofia

Evaldo Coutinho Legado do professor e filósofo é rediscutido nas comemorações dos 100 anos do seu nascimento

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Matéria Corrida José Cláudio Bondes e trilhos

78 Palco

Mão Molenga Companhia teatral completa 25 anos, com 14 textos originais encenados e acervo de mais de 300 bonecos

Estilista pernambucana, radicada no Rio de Janeiro, é profissional requisitada nacionalmente na composição de figurinos para o teatro, cinema e shows

14

84 Claquete

Pedro Almodóvar Em novo filme, cineasta sugere uma representação física do corpo como instrumento de prazer e obsessão

86 Artigo

Leonardo Dantas A trágica viagem de Cabral

88 Saída

Petrônio Freire de Lorena Salve o anti-herói

História

Amaro Quintas Relançados três estudos fundamentais sobre o contexto político do século 19, escritos pelos historiador

62 Leitura

Book trailer Mercado editorial investe em produções audiovisuais para divulgar lançamentos

Viagem Grécia

Um dos lugares mais procurados por turistas de todo o mundo, o país pode tornar-se uma jornada iniciática do encontro entre paganismo e cristianismo

54 Capa ilustração Laerte Silvino

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Especial

Erudita

Presente no cotidiano, a comicidade é encontrada nas ruas, mídias e artes, tornando a sociedade atual a mais hilária da história. Mas de que se ri?

Comemoração do bicentenário de nascimento dos compositores românticos contará com 40 dias de apresentações no Recife e em Gravatá

Visuais

Sonoras

Após 12 anos de sua morte, obra da artista é reapresentada ao público pelo lançamento de livro que expressa a densidade de seu pensamento

Fenômenos como Judy Garland, ontem, e Rebecca Black, hoje, revelam modus operandi da indústria fonográfica, que alimenta avidez paterna pela fama

Humor

22

Ladjane Bandeira

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Liszt/Mendelssohn

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Jul’ 11

Estrelas mirins

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cartas um livro chamado Urbanismo e preservação em Triunfo. MARIA DA CONCEÇÃO FEITOSA VIEIRA

a Continente ocupa lugar de destaque entre as revistas nacionais que tratam de cultura.

RELAÇÕES PÚBLICAS

XICO BIZERRA RECIFE – PE

RESPOSTA DA REDAÇÃO Sobre Triunfo, sugerimos a leitura da matéria Pelas ruas de Triunfo – Histórica e deliciosamente fria, da edição de nº 115 (7/2010), na qual abordamos as várias qualidades do município.

Contracultura Casas do interior Quero parabenizá-los pelo excelente conteúdo da revista. Gostei muito da matéria da edição nº 125, de maio deste ano, Casas do interior, com texto de Danielle Romani e fotos de Roberta Guimarães. Mas senti falta, na matéria, da referência a Triunfo (PE), pois é uma das poucas cidades do interior de Pernambuco que preservam a arquitetura tombada pelo Iphan. Paulo Souto Maior publicou

A edição da revista chegou e a reportagem sobre contracultura ficou ótima. Meus parabéns! ORIVALDO BIAGI LEME ATIBAIA – SP

Lugar de destaque Parabenizo-os e peço transmitir meus elogios a Thiago Lins, pela fidelidade aos fatos traduzida na matéria Candeeiros e neons junta-se à prole de Xico Bizerra, assunto da edição nº 126. Por razões como essa, aliada à qualidade sempre presente,

Do Twitter Cássio Uchoa (@ cassiouchoa) - Olinda-PE A @revcontinente deste mês é uma edição digna de colecionador. Especial com uma análise atualíssima sobre a telenovela no Brasil.

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).

Diego Lós @diego_los – Campina Grande-PB Tão bom, depois de um longo dia, receber um presente. Incrível o conteúdo de junho da @revcontinente!! Orgulho de assinar a melhor revista cultural! \o/

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas.

Mário Gerson - @mariogerson Lendo aqui ótima reportagem sobre cartas, na revista Continente, enviada pelo professor David Leite.

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FESTIVAL DE HUMOR INTERATIVO

Em concurso, Continente premia a criatividade Aproveitando a temática de capa desta edição, a revista lança, em seu site, o Festival de Humor Interativo da Continente. A cada edição, um cartum será publicado para que os leitores criem legendas engraçadas para a situação representada pelo desenho. O autor do melhor texto, eleito por meio do voto dos internautas e por uma comissão da redação da Continente, recebe R$ 350 e uma assinatura da revista. O primeiro cartum (ao lado) já está disponível também em nosso site. Utilize sua criatividade e confira o regulamento Este é o cartum do Mês. faça uma legenda bem humorada e concorra!

em www.revistacontinente.com.br.

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colaboradores

clériston de Andrade

Daniel Kupermann

José ernani Souto Andrade

Leonardo Martinelli

Chargista da Folha de Pernambuco e doutorando em Linguística pela UFPE

Professor do departamento de Psicologia Clínica da USP e psicanalista

Professor do dfepartamento de História da Unicap, especialista em História de Pernambuco

Compositor e professor, com graduação e mestrado pelo Instituto de Artes da Unesp

e MAiS carlos eduardo Amaral, jornalista, crítico musical e mestrando em Comunicação Social. Gilson oliveira, jornalista e revisor. Kleber Mendonça Filho, crítico de cinema. Josias teófilo, jornalista. Laerte Silvino, desenhista. Leonardo Dantas Silva, escritor e historiador. Marcos enrique Lopes, jornalista e cineasta, diretor do documentário A composição do vazio. Miguel Falcão, chargista do Jornal do Commercio. Petrônio Freire de Lorena, roteirista e diretor de audiovisual. Raul Souza, ilustrador. Rodrigo Dourado, jornalista e doutorando em Comunicação Social. Zeca Miranda, jornalista.

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KARIm AïNOUZ

“Decidi parar com os ‘não podes’ ”

Cineasta brasileiro, que vive em Berlim, fala do seu novo filme, O abismo prateado, e sobre o desejo de ter mais liberdade no processo de criação e produção TEXto Kleber Mendonça Filho

con ti nen te

Entrevista

Karim Aïnouz filmou a música

de Chico Buarque Olhos nos olhos em CinemaScope. O abismo prateado é o seu quarto longa-metragem, e esteve na seleção da Quinzena dos Realizadores, em Cannes, em maio. Esse bombom agridoce de filme junta-se a Madame Satã (2002), O céu de Suely (2006) e Viajo porque preciso volto porque te amo (2009, em parceria com Marcelo Gomes) para formar um quarteto autoral de tons reconhecíveis com o toque Aïnouz. É um cineasta que defende um romantismo político, quase sempre dotado de corações cruelmente partidos e panos de fundo realistas. Parecem reprocessar o Brasil sob grandes angulares emotivas. Aïnouz, que cresceu em Fortaleza, mantém algo do seu sotaque cearense, mas fala, de fato, a língua do mundo aberto e livre. Estudou em Nova York, mora em Berlim, seu pai é argelino. Seus deslocamentos pessoais estão no que filma. Dessa vez, respondeu a um convite do produtor Rodrigo Teixeira, e O abismo prateado virou uma interpretação livre da canção que Buarque cantou

em 1976 no LP Meus caros amigos. O diretor filmou Alessandra Negrini em quase todas as cenas, e depois de experiências interessantes com Júlio Bressane em Cleópatra e A erva do rato, confirma-se o interesse de Negrini em projetos autorais de cinema. Aïnouz estava em Cannes, falando apaixonadamente do seu filme, do seu processo, do quanto gosta de viajar. É um homem cheio de energia criativa, energia de vida. CONTINENTE Fale sobre o processo que o trouxe a esse filme. Sabe-se que é um projeto externo, mas você parece ter deixado uma marca pessoal facilmente perceptível. KARIN AÏNOUZ Em O abismo prateado, eu me dei conta de que talvez seja bom ficar ruminando um projeto tanto tempo. Para mim, foi uma aventura nova, que eu não soube muito como lidar. O abismo prateado foi um filme difícil para mim, pois quando acabamos de filmar e começamos a montagem, perdi uma pessoa da minha família que eu adorava. Portanto, fiquei muito distante da montagem. Atraquei-

me realmente com o bicho quando estava mixando. Foi aí que comecei a me apaixonar de verdade pelo filme. Não foi um trauma, mas um processo bem diferente. Fazer cinema tem um tempo, e acho que, às vezes, tudo está ficando mais rápido do que deveria ser. Antigamente, a gente montava durante seis meses, hoje tem que montar em três porque a máquina monta mais rápido. Mas eu não monto mais rápido... Outra coisa curiosa desse processo, e por ele ter sido feito muito rapidamente: decidi que ia parar com os “não podes”. Antes, todos os filmes que eu fazia tinham esse “não pode!”: câmera na mão, “não pode!”, pan “não pode!”. Nesse filme, fui tentando entender as emoções desse personagem nesse tempo, e como podia traduzi-las. Então, tem uma certa impureza de mise-en-scène. Ele vai do plano aberto, à camera na mão, termina com Steadicam... Tem um certo tatear que também foi bacana. Se eu tivesse planejado mais o filme, ele não teria isso. Acho que confere um certo charme, um certo sabor.

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DIVULGAÇÃO

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CONTINENTE Houve uma troca de registro para você, como realizador? KARIN AINOUZ Tenho pensado nessa coisa do registro em relação à câmera em si. Sempre achei que, para fazer um filme assim, teria que ter 50 anos, e ter feito 10 filmes. Eu acabava de fazer um trabalho para a HBO com (câmera) RED, e odiei. Foi a coisa mais chata que já fiz: a câmera tinha que estar no tripé o tempo inteiro, tudo era formatado. Aí fiquei com vontade de me lambuzar fazendo cinema: vamos pegar o melhor chocolate trufado e vamos comer essa porra. O Mauro (Pinheiro, diretor de fotografia) propôs fazer em CinemaScope, nesse sentido de se divertir mesmo. Eu falei: “Eu não sei enquadrar, não tenho a menor ideia

Entrevista

de como enquadrar em tela larga”. Ao mesmo tempo, o scope é pomposo, é um bicho chique, é black-tie. E a história não tem nada de black-tie. Aí, achei que podia ser interessante brincar com um formato épico, pomposo, elegante, para filmar uma aventura íntima, quase irrelevante. Tem horas que funciona, tem horas que tem muito vazio de um lado e de outro, você fica refém dele. Fico pensando que, se houvesse planejado muito, talvez não tivesse dado certo. Tem uma cena de plano fixo que cortei na mixagem, passa-se num bar. Já tinha printado, e decidi cortar no negativo. Agora, todo mundo quer filmar em scope porque é tão gostoso, tem ar. Eu gostaria de filmar em scope ou em 1:33, quadrado. O 1:85 é um meio de caminho esquisito.

o café da manhã... Portanto, tinha muita vontade de filmar no aeroporto e, por alguma razão, nesse filme, isso fez sentido. A gente ficou nesse dilema, porque é muito caro filmar em aeroporto, mas eu briguei muito por isso. Para mim, era pessoalmente emocionante, e, para o filme, seria muito bacana: é deixar essas pessoas aí e imaginar para onde iria esse avião. São três pessoas vagando por um lugar que permite você ir a qualquer lugar. Eu filmei em setembro, e depois voltei ao Rio para terminar o filme. Entrei no aeroporto de dia para fazer a ponte aérea: me senti tão mal, porque esse lugar parecia ter sido só meu durante a filmagem... Depois de ter feito o filme, fiquei imaginando um monte de outras

“Eu tenho um problema: sou meio viciado em aeroportos. Portanto, tinha muita vontade de filmar num deles e, por alguma razão, em O abismo prateado (página ao lado), isso fez sentido”

FOTOS: DIVULGAÇÃO

con ti nen te

CONTINENTE Uma coisa me chamou a atenção no filme, e parece bater com algo que reconheço em você como pessoa. Já tentei achá-lo, e sempre ouço coisas como “ele está em Barcelona”, “...Karim está em Berlim”, “está chegando ao Brasil semana que vem”. Esse aspecto viajante é curioso, assim como a atmosfera de deslocamento do seu último filme, Viajo porque preciso..., que parece voltar numa cena específica desse filme, na segunda visita ao aeroporto da personagem principal. Fale um pouco sobre a imagem de aeroportos vazios, de madrugada. KARIN AINOUZ É muito pessoal isso. Eu tenho um problema: sou meio viciado em aeroportos. Quando estava mixando o filme, o mixador perguntou: “não tem um ambiente de catedral para botar aqui?” Para mim, o aeroporto tem essa

coisa de catedral, arquiteturalmente. E tem uma sensação de “por vir”. Eu sou o cara que adora perder conexão de voo, por exemplo, e ficar preso no aeroporto, ter que dormir no hotel do aeroporto. Tenho um roteiro que escrevi depois de Madame Satã, chamado Flight (Voo), que é exatamente sobre isso: uma mulher tem um encontro amoroso num aeroporto com um cara que ela conheceu muitos anos antes. Ele vai embora e ela fica vagando nesse espaço durante três dias, atrás de alguém que aceite embarcar para algum lugar com ela. Eu adoro avião, também, é o lugar do mundo onde me sinto mais em paz. Não toca telefone, ninguém te enche o saco, você acorda de manhã com aquela musiquinha,

cenas que poderiam ter sido feitas no aeroporto. Tive vontade de fazer outro filme com todas essas ideias. CONTINENTE O Rio de Janeiro está discreto no filme. Isso foi deliberado? Como vê a imagem da cidade no cinema brasileiro? KARIN AINOUZ Eu nem sou muito fã do Rio, é uma cidade que me deixa muito triste, não sei por quê. Todo mundo fala que é uma cidade exuberante, maravilhosa, e eu fico muito triste, particularmente em Copacabana. Quando comecei a fazer o filme, imaginei São Paulo: essa mulher tinha que morar no Minhocão. Mas Chico Buarque e o Rio são uma coisa só. Por isso decidi filmar em Copacabana, que, para mim, sempre foi o lugar do

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abandono. Parece que tinha esse sonho de um lugar tropical à beira-mar, mas sempre ficou meio abandonado. Isso casa com a ideia da mulher abandonada. Tive que pensar a cidade como algo que era parte da história, algo mais importante, creio, do que se render a uma sedução imediata. Temos um plano da cidade que não usamos, quando ela está indo ao trabalho de bicicleta pela avenida Atlântica, pela ciclovia. Maurinho filmava sempre apontando para o lado dos carros. Eu falava para filmar o lado do mar, e ele falava: “você vai usar isso?”. E realmente não dá. A cidade é tão bonita, e já foi tão filmada, que sequestra qualquer coisa que você tenta fazer ali. Ela é como uma mulher de biquíni que chora para ser filmada,

o primeiro plano do filme em que o homem anda pela rua de sunga, no meio da bagunça. Eu tentei muito olhar para a cidade tentando traduzir a violência que eu vejo nela. Tem uma conjunção de coisas muito incongruentes: o mar, as pedras que parecem ter caído depois de uma explosão... No primeiro rolo do filme, tínhamos quatro planos do Rio de Janeiro, establishing shots (planos de localização). Quando vi aquilo, achei que tinham que sair. Em contrapartida, o plano do homem andando de sunga é muito mais significativo: aquilo é o Rio de Janeiro. CONTINENTE Sua filmografia parece composta por uma galeria de corações partidos, histórias podres de românticas,

e não é difícil pensar numa ligação entre Suely e o homem solitário de Viajo porque preciso..., essa mulher abandonada do filme novo. Esse conceito de romance aparece de maneira incomum, com uma sensação de realismo muito boa no seu trabalho. KARIN AINOUZ Isso não foi muito calculado. Quando comecei a fazer curtas, sem saber se ia continuar fazendo cinema, o que me interessava não era isso. Era Costa-Gavras, um cinema de impacto político para bagunçar a ordem das coisas. O Madame Satã começa assim. Dar um grito para falar de coisas importantes. Tinha uma vontade grande de mudar o mundo, de fazer um cinema de explosão, de confronto. No entanto, para mim, Madame Satã vale pelo menos por uma cena: quando Marcélia Cartaxo

fala que é apaixonada por ele. Juntando com O céu de Suely e o Viajo porque preciso volto porque te amo, eu já falei muito mais de intimidade do que jamais imaginei. O próprio nome do próximo filme, Praia do Futuro, já sugere que será um filme de coração. Ao mesmo tempo, acho que meus filmes também têm uma certa relevância política. Para mim, o negócio é o seguinte: se os franceses e os americanos falam tanto de amor, por que não podemos também? Então, vamos lá! Vamos ser cafonas! Meu próximo filme começou por causa de uma música do David Bowie, Heroes: quero fazer um filme que me arrepie quando estiver fazendo. Não podemos ficar reféns do que esperam da gente: filmes com poeira, favela... A nossa

geração se fodeu por causa disso: deixou de falar de coisas bobas, mas não de maneira boba. Há um aspecto pessoal também: eu venho de uma família despedaçada, então, tenho uma vontade grande de falar de abandono, de separação, de partida, de aventura. O filme novo é sobre a separação de dois irmãos, que se reencontram seis anos depois. Quando comecei a fazer O abismo prateado, fiquei em dúvida, porque é o mesmo eixo temático de O céu de Suely e do Viajo... Será que não estou me repetindo? Também fiz uma série para a HBO sobre uma menina que vai embora para São Paulo. Começaram a falar que eu era um ótimo diretor do universo feminino, tanto que no Viajo a gente botou um personagem masculino e heterossexual! Em O abismo prateado tem também a questão da música, que é escrita por um homem, mas sobre uma personagem feminina. Achei isso muito bonito e quis fazer a mesma coisa. Tentei, também, não vilanizar o homem, tanto que o filme começa e termina com homens. E o homem que ela conhece é um cara muito bacana. Acho que me interesso tanto pelo homem quanto pela mulher. CONTINENTE A música pop nos seus filmes é uma personagem? Além de Olhos nos olhos, de Chico Buarque, você usou Maniac, tema de Flashdance, algo que me chamou a atenção. KARIN AINOUZ Eu não tenho nenhuma relação com música, nem sei o que são notas musicais, acho misterioso. Minha mãe é cientista e meu pai engenheiro. Ao mesmo tempo, eu adoro dançar. A minha relação com música tem mais a ver com a dança. Eu colecionava LPs de novela, para dançar. Quando filmamos aquela cena, temos a relação da música com o corpo e a memória. Algumas músicas me levam a memórias ou lugares específicos, a saudade de uma certa alegria ou tristeza. Como eu achava que a cena da boate podia ficar fraca, ou clichê, comecei e entender o que a personagem precisaria sentir ali. No dia anterior, achei um DVD do Flashdance. O jeito com que a atriz dança é uma aula de ginástica, não é uma dança sensual. É uma dança de esvaziamento. E, para mim, é uma cena importante, pois é quando ela vira um bicho, vira descarrego, e a música pode ser muito isso na vida da gente.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

HUMOR

LISZT

Um dos temas mais debatidos hoje na imprensa e na internet, o humor, assunto da matéria de capa deste mês da Continente, também é destaque no nosso site. Para entender um pouco mais sobre o gênero na atualidade, e suas discussões, assista aos vídeos de comediantes populares e promissores do Brasil e do mundo e confira também nossas indicações de humor no Twitter, além de textos que circularam na rede sobre o assunto, como artigo de Marcelo Rubens Paiva e entrevista com o cartunista Arnaldo Branco.

Veja a programação completa do Festival Liszt/ Mendelssohn, promovido pela Continente, que homenageia os 200 anos de nascimento do compositor húngaro.

Conexão

GRÉCIA Confira a galeria com fotografias do legado helênico e do patrimônio histórico do país europeu tiradas por Josías Teófilo, na sua passagem pelo país.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

JORNALISMO

WALLPAPERS

ENTREVISTAS

cULTURA POP

Enciclopédia para entender as mudanças no setor

Site oferece papéis de parede com design simples

Página do Roda Viva traz acervo do programa transcrito na web

Arquivo virtual das bugigangas de MacGyver

niemanlab.org/encyclo

simpledesktops.com

rodaviva.fapesp.br

fathom.info/macrecipes

No tempo das revoluções digitais do jornalismo, grande parte do foco do estudo é sobre as novidades e os usos mais recentes de ferramentas tecnológicas. O Encyclo, projeto do Neiman Journalism Lab, da Universidade de Havard, dedica-se a transformar essas mudanças das mídias em artigos de uma enciclopédia dinâmica sobre os veículos de imprensa e empresas e suas inovações. As análises comentam o quanto há de inédito em cada nova proposta. Sugestões, correções e comentários são anunciados como bem-vindos para a melhoria da página.

Um dos passos básicos para personalizar o computador pessoal é escolher um fundo de tela. Fornecer papéis de paredes, ou wallpapers, pensados para os usos do computador, é a proposta do Simple Desktops. Nele, o criador do site, Tom Watson, seleciona imagens simples em alta resolução, com poucas informações visuais e sem gradações de cores para preencher a área de trabalho dos computadores. Todos as criações, feitas por diversos designers, estão disponíveis gratuitamente para download.

Adolfo Bioy Casares, Darcy Ribeiro, Mario Vargas Llosa,Tom Jobim, Edgar Morin. Em comum, além do fato de seres nomes representativos para a cultura e para o pensamento social, eles têm a participação no principal programa de entrevistas do país, o Roda Viva, da TV Cultura. No site, a produção está publicando as transcrições da participação de figuras fundamentais para se entender o Brasil e o mundo, várias delas em momento históricos, como Lula, quando ainda era deputado e pré-candidato à presidência da República, em 1988.

Mesmo quem pouco viu o seriado MacGyver, em que o ator Richard Dean Anderson interpretava um ex-agente secreto, sabe quem é essa figura icônica. Capaz de transformar os mais simples objetos em engenhocas improvisadas, o personagem quase se tornou mais conhecido que a própria série. No MacRecipes, os designers da informações da empresa Fathom listam tudo que o herói pacífico construiu e todos os artigos utilizados, indicando em que episódio cada um aparece.

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blogs MÚSICA amusicaportuguesa.blogspot.com

O nome do projeto é extenso (A música portuguesa a gostar dela própria), mas o objetivo é simples: filmar músicos portugueses tocando em locais inóspitos. Boa dica para conhecer os artistas menos conhecidos do país.

MEMÓRIA

eraumacasa.blog.br

SLIDES EM FORMATO INOVADOR Com influência da arquitetura, o Prezi ajuda os usuários a fazer apresentações visuais e criativas prezi.com/index

Organizar uma apresentação visual para o trabalho, para a faculdade ou para um

congresso profissional é uma demanda crescente. Os programas mais populares para isso, como o Microsoft Power Point, são utilizados para exposições lineares e de maior simplicidade, mas, em alguns casos, eles terminam limitando as próprias potencialidades do percurso demonstrativo de um assunto. Notando esse problema, o site Prezi oferece um nova formatação para esses arquivos. Criada por Adam Somlai-Fischer, a página traz para as apresentações visuais um modelo baseado na arquitetura, área de formação original do autor. A ferramenta permite que o usuário faça uma espécie de mapa de informação baseado na ideia de uma planta baixa, que deve mostrar a noção geral do local e permitir também a visualização de detalhes dos ambientes, a partir de aproximações. Como o próprio Prezi compara, é uma mudança de navegação de livros para uma dinâmica de sites da internet, com mais interrelações entre os slides e com uma inserção mais natural de vídeos, galerias e outros recursos multimídia. A página exige que se faça uma inscrição gratuita, mas possui também planos pagos que permitem funcionalidades adicionais, como trabalhar offline e retirar o logo do site dos arquivos gerados. DIOGO GUEDES

Um resultado do crescimento urbano é o esquecimento da história arquitetônica de um local. Com fotos enviadas pelos usuários, o blog Era uma casa busca justamente criar um registro de casas recentemente demolidas.

FOTOS

awesomepeoplehangingouttogether. tumblr.com

Com um nome que significa algo como “pessoas fantásticas saindo juntas”, o blog traz imagens que reúnem atores, artistas e celebridades cool se encontrando, como Marlon Brando e Paul Newman ou Madonna, Sting e o rapper Tupac.

ENSAIOS

godotnaovira.wordpress.com

O título faz referência a uma obra de Beckett, mas a temática do blog vai além da literatura, passando por comentários sobre política, feminismo, sexualidade e, claro, livros e outras suportes artísticos.

sites sobre

financiamento coletivo GERAL

MUSICAL

SHOWS

movere.me

embolacha.com.br

queremos.com.br

O Movere busca divulgar projetos de qualquer área, prometendo devolver o dinheiro dos financiadores em caso de desistência.

Dedicando-se exclusivamente à música, o Embolacha reúne projetos de crowdfunding para músicos, discos e DVDs.

O Queremos obteve sucesso juntando dinheiro para levar ao Rio de Janeiro, por exemplo, artistas internacionais que vinham a outras partes do país.

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Fotos: divulgação

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Fotos: divulgação

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con ti nen te

Portfólio

Luciana Buarque

ARTESÃ DE PANOS TEXTO Zeca Miranda

A pernambucana Luciana Buarque não sabe identificar muito bem que

caminhos a levaram para o mundo do figurino. A aptidão pela costura, que se fez notar desde a infância, foi uma herança da mãe, mas por si só não apontaria para essa direção. Ainda adolescente, foi cursar História em Belo Horizonte. A partir daí, viagens surgiram à sua frente, “como mágica”. Rio de Janeiro, São Paulo, Estados Unidos foram alguns dos locais por onde passou. Hoje, mora na Zona Oeste do Rio com o marido e dois filhos, um de 11 e outro de oito anos. A vivência, a inquietação e as amizades geradas ao longo dos anos a empurraram para a confecção de roupas que iriam ajudar a contar a história de vários personagens no cinema, no teatro, na televisão e em espetáculos musicais. Só para citar a participação dela em cada uma dessas áreas, encontramos seus trabalhos em Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, Hoje é dia de Maria, minissérie da TV Globo, com direção de Luiz Fernando Carvalho, e shows de artistas como Antônio Carlos Nóbrega e Chico César. Luciana é uma figurinista sem leis. Cada trabalho, para ela, tem uma concepção diferente. Na contramão da profissão, ela não possui ateliê, não guarda um exemplar sequer de suas peças, nem costuma fazer croquis das criações. “Não desenhar é quase um drama para mim. Eu gosto muito de desenho, mas não é a minha linguagem”, lamenta.

Página anterior 1 A PEDRA DO REINO

A adaptação da obra de Ariano Suassuna para a televisão ganhou figurino de Luciana Buarque

Nestas páginas 2 PROCESSO

Sua modelagem é feita de forma direta, como se estivesse esculpindo a roupa

DIVERSIDADE 3 Além de atuar em novelas, minisséries e peças, a figurinista cria figurinos para artistas como Chico César

4 NOSSO LAR Ela trabalhou com desenhos fractais e estamparia digital em seda pura para dar um efeito de transparência INSPIRAÇÃO 5 Os bordados nordestinos foram utilizados em composições na indumentária da minissérie A Pedra do Reino

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Portfólio

A cada novo trabalho, uma forma diferente de moldar. Como exemplo, ela cita dois de seus mais recentes projetos. Primeiro, o filme espírita Nosso lar, de Wagner de Assis, para o qual trabalhou com desenhos de fractais e estamparia digital em seda pura para conseguir um efeito de transparência. “Como trabalho de ateliê, foi maravilhoso. Era uma coisa nova para mim, um filme grandioso”, explica. Em seguida, fez parte de um projeto com orçamento mais modesto, Sudoeste, o primeiro longa do diretor fluminense Eduardo Nunes. Alguns dias antes do começo das filmagens, ela partiu com uma pequena

máquina de costura e uns tecidos velhos, dela própria, para um pequeno vilarejo em Arraial do Cabo, região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro, onde o filme foi rodado. O longa, que tem previsão de estreia para setembro, foi o primeiro trabalho em preto e branco de que ela participou. “Isso trouxe um desafio a mais. Tive que usar muitas cores no figurino para obter contraste na tela”, explica. O começo como figurinista foi como assistente do artista plástico Romero de Andrade Lima, que, no início dos anos 1990, desenvolveu vários trabalhos com Gabriel Villela, diretor do Grupo

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6-7 HOJE É DIA DE MARIA Para criar os figurinos, foi preciso levar em consideração a fotografia, a iluminação e a direção de arte SUDOESTE 8 Luciana se instalou na região dos Lagos, no Rio de Janeiro, para conceber o figurino do filme

9 TEATRO Suas peças aparecem em espetáculos como Romeu e Julieta, do Grupo Galpão

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Galpão. Dessa experiência, também vêm os métodos pouco convencionais usados nas criações. Segundo a diretora de arte Lia Renha – que trabalhou com Luciana em Uma mulher vestida de sol, da TV Globo –, “o processo criativo dela é de artesã. Ela trabalha diferente, como se estivesse esculpindo um figurino.

É arte pura, intuitiva”. Para Luciana, o figurino é parte essencial para se contar uma história, mas deve ser criado em harmonia com todas as áreas envolvidas, como a fotografia, a iluminação e a direção de arte. “O figurino vai dar vida a um personagem, não a um modelo”, observa.

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UM EX PERFEITO

O prestígio de um penteado Eleita por diversas listas a mulher mais bonita do século 20, Audrey Hepburn, um dos maiores ícones do cinema e da moda, agora recebe outro título. A atriz foi apontada pelo Hairdressing Council como a dona do penteado mais influente de todos os tempos: o coque alto de sua personagem Holly Golightly em Bonequinha de luxo (1961), filme de Blake Edwards, inspirado no romance Breakfast at Tiffany’s, de Trumam Capote. O ranking montado pelo conselho de cabeleireiros britânicos segue com os cachos dourados de Marilyn Monroe, em segundo; o corte andrógino da modelo Twiggy, em terceiro, e os longos cabelos ruivos de Ariel (sim, a Pequena Sereia), em quarto. A atriz Jennifer Aniston, como não poderia deixar de ser, foi lembrada devido ao incessantemente copiado corte desfiado, que ganhou até nome, “The Rachel”, em referência à sua personagem na série Friends. A lista é finalizada com a ex-Spice Girl Victoria Beckham (6º), as cantoras Cheryl Cole (7º) e Rihanna (8º), e as atrizes Demmi Moore e sua cabeça raspada em Até o limite da honra (9º), e Eva Longoria (10º), da série Desperate housewives. Detalhe: mesmo com os gritantes cachos dourados de Marilyn, a única loira autêntica da lista é Aniston, que, mesmo assim, não dispensa algumas mechas clareadas artificialmente – presentes até no supracitado penteado da morena Audrey. Haja tinta. DÉBORA NASCIMENTO

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A FRASE

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Jack White não é somente um grande guitarrista, mas também vem se mostrando um ótimo exmarido. Depois de ter montado uma banda com sua ex-esposa, Meg, a baterista do White Stripes, em junho, ele armou uma superfesta em Nashville para comemorar sua separação da modelo e cantora Karen Elson, com quem teve dois filhos. Jack e Karen (foto), que voltam a ser amigos, se casaram numa cerimônia indígena na confluência dos rios Negro e Solimões, no Amazonas, quando o White Stripes tocou no Brasil, em 2005. (DN)

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PAUL NO RECIFE Em meio aos rumores de que a produtora brasileira da turnê Up and coming traria o show de Paul McCartney ao Estádio do Arruda, no Recife, o mais certo é que, em vez do músico inglês, os pernambucanos vejam, no Carnaval 2012, o boneco de Olinda que a fã Cláudia Tapety mandou confeccionar e levou à frente do Hotel Copacabana Palace, onde o artista esteve hospedado, quando se apresentou no Rio, em maio. A tiete, que já fora a Miami, São Francisco (EUA), Porto Rico, Porto Alegre e São Paulo para ver o seu ex-beatle preferido, pagou cachê, passagem e hospedagem ao manipulador do artefato. (DN )

“A crítica é a única forma civilizada de autobiografia.” Oscar Wilde

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O POINT DOS ETS A ufologia costuma viver períodos de alta e baixa temporada, com os discos voadores e ETs aterrissando e decolando no noticiário. Menos nas cidades de Quixadá e Quixeramobim, no sertão do Ceará, lugares famosos pelo grande índice de aparições e abduções registradas. O fenômeno é tema do livro ETs, santos e demônios na Terra do Sol, do ufólogo Reginaldo de Athayde, e de um artigo publicado na revista O Cruzeiro por Rachel de Queiroz, que testemunhou uma aparição em seu sítio em Quixadá. Atualmente, as cidades são cenários de dois filmes sobre o tema, Abduções em Quixadá, e Área Q, de Halder Gomes, previstos para estrear em 2012. (Gilson Oliveira)

criaturas

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APRENDER PARA OMITIR Para definir o que caracterizaria a pósmodernidade, o filósofo alemão Peter Sloterdijk descreve nossa situação hoje, em que, depois da busca iluminista e modernista por explicar o mundo, o homem volta a se interessar pela forma como o mundo se apresenta, e não como ele é. Para exemplificar esse reencontro com um olhar quase primitivo, ele cita uma história que se passou com Brecht. No ensaio de uma peça, o dramaturgo alemão viu um ator tocar de forma tosca uma melodia do enredo, originalmente feita com sete acordes. Para se justificar, o intérprete disse que seu personagem, por se tratar de um homem simples, dificilmente saberia tocar a composição completa, e que por isso ele estava executando-a com apenas três dos acordes originais, exatamente os que ele já sabia anteriormente. Segundo Sloterdijk, Brecht disse: “Tudo bem, então aprenda os quatro acordes restantes para depois omiti-los”. (Diogo Guedes)

FÃS FAZEM DINHEIRO Computadores fazem arte, fãs fazem dinheiro. É só desenhar uma capa, selecionar 10 faixas entre 20 e pagar 7,5 libras pelo download de The future is medieval, lançamento do quinteto britânico Kaiser Chiefs. O “disco-conceito” do fã será vendido na página dos KC e, a cada cópia baixada, o fã-colaborador ganha uma libra. As cifras ainda vão amadurecer, mas o certo é que a estratégia vem repercutindo mais do que o álbum em si, a exemplo do que aconteceu com o In rainbows (2007), do Radiohead. À época, o sistema pagueo-quanto-quiser proposto pela banda parecia soar mais interessante nos fóruns virtuais do que o hermetismo do disco. (Thiago Lins)

Vincent Price, 100 anos

Por Raul Souza (Estúdio Super Terra) continente JULHO 2011 | 21

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Laerte Silvino

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Riso Um personagem de todas as épocas

Quem disse que a vida do riso é só alegria? Entronizado no mundo de hoje, no qual adquiriu até valor econômico, ele foi muito reprimido ao longo dos tempos, chegando mesmo a ser associado ao “pecado original” TEXto Gilson Oliveira

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“Sorria, você está sendo filmado.”

Presente no dia a dia brasileiro, às vezes, nos mais insuspeitados lugares, essa frase, em sua essência, é a cara do mundo de hoje – a “sociedade humorística”. Não importa se a verdadeira mensagem da frase seja: “Todos os seus passos estão sendo registrados e, se você aprontar, temos provas para incriminá-lo”. Também não tem relevância, para o alvo das filmagens, ser visto como um transgressor em potencial ou se a sua privacidade é cada vez mais invadida pela tecnologia. O importante é que tudo seja dito de forma leve, engraçada. Nada mais sério que o riso. Dado à luz pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky, no livro A era do vazio, o conceito de “sociedade humorística” é dos mais mais fáceis de ser comprovado, bastando, para isso, um instrumental chamado olhos e ouvidos. O humor está em toda parte e em mais

alguns lugares. É facilmente encontrado no jornal, na TV, na internet, no futebol, nos celulares, na música, na publicidade, na Igreja (que, ao longo dos séculos, foi marcada pela seriedade) e no cinema. Considerado eficiente instrumento para a aproximação dos seres humanos – “O riso é a menor distância entre duas pessoas”, disse o humorista dinamarquês Victor Borge – e louvado por suas virtudes terapêuticas, o humor vem ganhando representações em todo o mundo. Caso da francesa Corhum e dos Clubes do Riso, hoje com mais de 1.300 unidades apenas na Índia, onde o primeiro surgiu em 1995, fundado pelo Dr. Madan Kataria, também criador da Yoga do Riso. Igualmente grande é o número de eventos ligados ao humor, como o Dia Internacional do Riso (18 de janeiro), o Dia Mundial do Riso (primeiro domingo de maio) e o Dia Internacional da Diversão no Trabalho (1º de abril).

No Brasil, onde existe o Dia Nacional do Riso (6 de novembro), o humor também vem adquirindo caráter associativo, com a criação de entidades que realizam cursos, palestras e outras atividades a ele relacionadas. É o caso do Clube do Riso Feliz (SP) e do Clube da Gargalhada do Brasil (MG), que, em 2009, promoveu o 1º Campeonato Nacional da Gargalhada. Muitos outros eventos do gênero vêm sendo realizados em solo brasileiro. Um exemplo foi Risadaria – Muito além da piada, realizado em março deste ano, em São Paulo. Com curadoria de Marcelo Tas (CQC) e Marcelo Madureira (Casseta & Planeta), o evento discutiu a relação do riso com a saúde, exibiu filmes de artistas como Mazzaropi e colocou no palco figuras e grupos como Paulo Caruso, Danilo Gentili e Doutores da Alegria. O humor, no entanto, não precisa de palco para se manifestar. Costuma ser produzido, consciente ou inconscientemente, em todos os espaços e tempos. Uma insuperável fonte de riso são as redações dos vestibulares, em que podem ser colhidas pérolas do tipo: “O Brasil é um país abastardo com um futuro promissório” e “A floresta tá ali paradinha no lugar dela e vem o homem e créu”. Mas, mesmo conhecido como o “país da piada pronta”, o Brasil, quem diria, não chega nem ao 10º lugar no ranking mundial do riso. Pesquisa realizada em vários continentes revelou que os países e blocos com mais senso de humor são: Canadá (10º lugar), EUA (9º), Nova Zelândia (8º), Noruega (7º), Reino Unido (6º), Finlândia (5º), Austrália (4º), Bélgica (3º), França (2º) e Alemanha (1º).

IDADE MÍDIA

A televisão ainda é um dos espaços em que o humor mais apela para o inusitado e o bizarro, com atrações que parecem encomendadas à Idade Média, época em que o riso e o grotesco andavam de mãos dadas. Às vezes inspirados em fórmulas criadas em países ditos de “primeiro mundo”, os programas da “idade mídia” costumam desfilar figuras que “topam tudo por dinheiro” e se submetem a qualquer coisa por “15 minutos de glória”, seja descascando coco com os dentes ou carregando um jumento nas costas. Por que as pessoas riem disso? Uma das explicações

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con humor ti nen te tanto tempo diminuído pela ditadura, que, quando a liberdade explodiu, podia tudo. Hoje, se você fala mal de uma árvore, todas as árvores se reúnem para reclamar. As pessoas estão mais atentas.” Também ouvido pela Folha, Miguel Falabella, criador de programas como Sai de baixo, da TV Globo, afirmou que a “base do humor é o politicamente incorreto”.

PRODUTO DE CONSUMO

Independentemente de estilos politicamente corretos ou incorretos, o humor, no mundo atual, “está em perigo, vítima de seu sucesso”, diz o historiador francês Georges Minois, autor de História do riso e do escárnio, acrescentando que o riso “é um produto de consumo. (...) Resta saber se esse riso comercializado não corre o risco de matar o verdadeiro riso, o riso livre. Rir de tudo é conformar-se com tudo, se tudo é risível, o riso perde a sua força”. O escritor francês Stéphane Audeguy não faz por menos: “Atrás de toda essa excitação, há o tédio que espera, embuçado... e, atrás da ‘festa maníaca’, a crise depressiva espreita”.

Outro representante das letras francesas, E. Cioran, é ainda mais negativista: “Algumas gerações mais e o riso estará reservado a iniciados e será tão impraticável quanto o êxtase”. Uma coisa é certa: a relação da economia com o riso é cada vez mais estreita, e não apenas devido aos milhões e milhões de reais, dólares e euros que o humorismo gera anualmente para a indústria cultural. O livro-clipping A essência do riso traz uma série de informações e curiosidades sobre a exploração do humor por empresas de várias partes do mundo. “Em 1996, a Elma Chips reuniu seus 300 vendedores da capital paulista num circo, para a apresentação de um novo produto. Os cinco gerentes das divisões estavam fantasiados de palhaços.” Ou: “Na americana Sun Microsystems, o tempo que o candidato a um emprego demora para demonstrar o seu senso de humor é um dos itens considerados na hora da contratação”. Autor dos livros Os chistes e a sua relação com o inconsciente (1905) e O humor (1927), Freud considerava o riso uma

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dadas pelos psicólogos é que, além de estimular a porção sádica que existe em todo mundo, assistir ao constrangimento e à humilhação de alguém faz com que nos achemos superiores. Claro que muitos reagem negativamente ao humor que explora a ignorância ou outro tipo de deficiência. Em abril deste ano, a MTV sentiu isso na pele, ao exibir o quadro Casa dos autistas (paródia do reality show Casa dos artistas), o que indignou o Movimento Pró-Autista e provocou ameaça de investigação pelo Ministério Público, levando a emissora a se retratar publicamente. O episódio foi tema de matéria publicada na Folha de S.Paulo, com o título Para comediantes, não há tabu no humor, em que foram entrevistados atores, apresentadores e roteiristas que trabalham com o riso. A ideia era saber se existe, na área, “um território sagrado onde jamais se possa pisar”. Um dos entrevistados, o ator Ney Latorraca, integrante do programa TV Pirata, nos anos 1980, disse que já fez piada com negros, mas acredita que esse tipo de humor só poderia existir naquela época. “O país havia ficado

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1 TV Pirata Programa usava o politicamente incorreto YOGA DO RISO 2 O Dr. Madan Kataria fundou o primeiro Clube do Riso da Índia, em 1995. Hoje, são mais de 1.300 unidades no país detalhe 3 Caricatura de Leonardo da Vinci, que se aproveitou dos avanços da tipografia para difundir sátiras imagéticas

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das mais altas manifestações psíquicas, ajudando o homem a enfrentar as adversidades. Fora o mestre vienense, muitos outros pensadores estudaram o humor no século 20, assim como aconteceu nos séculos anteriores. Caso do filósofo Henri Bergson. Para ele, o riso é um rompimento com o lado mecânico, automático, que marca a vida em sociedade. O filósofo também afirmava que não existe o cômico fora do humano. Uma paisagem pode ser bela ou feia, mas nunca risível. Um pensador atual que se destacou analisando o humor foi o norteamericano Robert Provine, autor de Risada: Uma investigação científica, livro que traz um dos mais intrigantes exemplos do quanto o riso é contagiante. O caso aconteceu em 1962, em uma escola da Tanzânia, onde três meninas começaram a rir sem parar e logo as gargalhadas tomaram conta das demais alunas. A “epidemia de riso” se espalhou por várias cidades e só foi debelada dois anos depois. Resultante de longa pesquisa, a obra também revela, entre outras coisas, que as mulheres riem mais que os homens.

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“O país havia ficado tanto tempo na ditadura, que, quando a liberdade explodiu, podia tudo.” Ney Latorraca RIMBAUD FUMISTA

Um pensamento pode ocorrer a quem ler sobre o humor na França, no final do século 19: o pessoal que produziu Casa dos autistas , da MTV, foi “lírico”, se comparado, por exemplo, aos humoristas de um movimento denominado “fumismo”, cujos integrantes eram vistos como “cômicos do absurdo” e “niilistas do burlesco”, por zombarem de tudo e de todos. O nome do movimento foi registrado no (sério) dicionário Litré, levando poetas como Rimbaud e Mallarmé, autores de obras delirantes, a serem rotulados de “fumistas”. Mal Paris se livrou dos fumistas, zutistas e de outros movimentos de espírito anarquista, foi abalada

pelo humor negro, que tinha como expoente o poeta André Breton, o “pai do Surrealismo”, movimento inspirado nas ideias de Freud. Breton, que considerava o riso “uma revolta superior do espírito”, foi o organizador da Antologia do humor negro, escrevendo no prefácio da obra: “Não há nada que um humor inteligente não possa tansformar em gargalhadas, até mesmo o nada...”. Se é verdade que, em termos de liberdade e ousadia, os fumistas dão de goleada nos mais polêmicos programas do Brasil de hoje, o mesmo pode-se dizer dos antigos gregos em relação aos porras-loucas franceses. Considerado por Georges Minois um “sexto sentido que não é menos útil que os outros”, o humor na Grécia Antiga não estava apenas no centro das várias atividades da sociedade: os deuses também riam, e muito, nem sempre de forma digna. Na Ilíada, diz Homero: “Eles caem uns em cima dos outros com grande estrépito; a vasta Terra treme; em volta, o grande céu faz soar as trombetas. Zeus os escuta, sentado no Olimpo, e seu coração ri de alegria quando ele vê os deuses entrarem nessa briga”. Analisando esse riso, Minois diz que “é sem entraves: violência, deformidades e sexualidade desencadeiam crises que não têm nenhuma consideração moral ou decoro. Os mitos o associam frequentemente à obscenidade e ao retorno da vida”. O autor de História do riso e do escárnio enfatiza que o humor “é a marca da vida divina, como testemunham numerosas histórias gregas de estátuas de deuses subitamente animadas por uma gargalhada”. As festas populares seguiam uma liberdade semelhante à dos deuses. Numa delas, conhecida como Krônia, os escravos se envolviam em zombarias e brincadeiras obscenas e podiam até fazer-se servir pelos senhores, que eles repreendiam. Minois observa que o “caos é indispensável para representar, em seguida, a criação da ordem. Durante essas desordens, em que o riso é livre, escolhe-se um personagem que preside e encarna esses caos, um prisioneiro ou um escravo que vai ser sacrificado no fim da festa, para um ato refundador da regra, da ordem”. Mas, no fim do século 5 a. C., na Grécia, o riso começa a ser percebido como prejudicial aos valores cívicos.

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con humor ti nen te reprodução/pieter bruegHel/COMBATE ENTRE O CARNAVAL E A QUARESMA

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Entre os inimigos do humor sem freios estavam Platão e Aristóteles, pioneiros também no estudo do fenômeno do riso, tendo, este último, escrito uma frase famosa: “O homem é o único animal que ri”. O combate, no entanto, não impediu que surgissem muitas coleções de blagues, sofregamente lidas. As investidas dos grandes filósofos não impediram o aparecimento de Diógenes, “o cínico”, um dos maiores gozadores de todos os tempos. Um “xará” seu, o historiador Diógenes Laércio, conta que, certa vez, ele estava comendo num lugar público quando um desafeto, querendo significar que ele era um cão, atirou-lhe um osso. Diógenes não teve dúvidas, e, como se fosse mesmo um cachorro, urinou na perna do adversário.

RISO ROMANO

“Os latinos não são mais sérios que os outros. Isso é uma mentira histórica. Foram os historiadores e os pedagogos que construíram e transmitiram essa imagem durante séculos: de uma imponente romanidade

No fim do século 5 a. C., na Grécia, o riso começa a ser percebido como prejudicial aos valores cívicos grave, heroica, solene, estoica”, diz Minois. A verdade é que o riso está presente em todo o mundo romano, principalmente nas brincadeiras do povão, herdeiras do espírito grego. Bom exemplo são as saturnais, em honra de Saturno, cujo reino, segundo os mitos, foi a Idade de Ouro. A alegria pelo retorno periódico das saturnais manifesta-se pelo riso, acompanhado por grosserias e obscenidades. As festas duravam uma semana ou mais e, como eram uma volta ao passado, tudo ocorria ao contrário: tochas e lanternas só eram acendidas durante o dia, homens vestiam-se de mulher... Roma também produziu um grande estudioso do humor, Cícero, o qual

já ressaltava que “os trabalhos sobre o riso eram muito enfadonhos”. Isso porque as abordagens filosóficas em geral megulham no “academiquês”.

JESUS SÉRIO

No capítulo Diabolização do riso na Alta Idade Média, do seu já citado livro, Georges Minois fala das origens do pensamento segundo o qual o riso tem a ver com o “pecado original”. De acordo com o historiador, tudo começa com Adão e Eva, que, por viverem no jardim do Éden, serem perfeitos, eternamente jovens e belos, não tinham motivos para rir. “Contudo”, afirma, “eis que o Maligno se envolve. Porque é ele, dizemnos os exegetas, que se esconde sob os traços da serpente bem-falante que tantos filósofos escarnecem. O pecado original é cometido, tudo se desequilibra, e o riso aparece: o Diabo é responsável por isso. Essa paternidade tem sérias consequências: o riso é ligado à imperfeição, à corrupção, ao fato de que as criaturas sejam decaídas”. Fiéis a esse princípio, os primeiros

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reprodução/ tiziano vecellio/adÃO E EVA

4 saturnais Festa em homenagem a Saturno era regada a risos, grosserias e obscenidades adão e eva 5 Segundo George Minois, por viverem no Jardim do Éden e serem perfeitos, eles não teriam motivos para rir

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cristãos, como São Pedro e São Paulo, sempre trataram o riso como algo diabólico. O mais radical adversário foi São João Crisóstomo, que dizia: “Vós que rides, dizeime: onde haveis visto que Jesus Cristo vos tenha dado o exemplo?”. A Idade Média foi profundamente estudada, sob a perspectiva do riso, por Mikhail Bakhtin. No livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento - o contexto de François Rabelais, o linguista russo diz que o humor se manifestava principalmente no Carnaval e zombava-se de tudo que provocasse medo, como a morte. Uma das fantasias mais emblemáticas era a da Velha Grávida. Sempre sorridente, ela fazia a fusão da velhice (etapa final da existência) com o nascimento (gravidez).

BOBO DA CORTE

Considerada “Idade das Trevas”, a Idade Média foi veementemente rejeitada na Renascença, sendo o riso popular uma das formas de ruptura. À época, também, o humor chegou à grande literatura, através de figuras

como Cervantes, Shakespeare e Erasmo de Rotterdan, e a caricaturra – que tinha em Leonardo da Vinci um grande cultor – desfrutou de grande difusão, embalada pela evolução da tipografia, inventada por Gutenberg. Nesse período, o Bobo da Corte protagoniza uma das mais expressivas chegadas do humorismo ao poder. Já não se trata de um simples palhaço, pois o riso que provoca é cheio de verdades, algo que faltava ao rei, sempre cercado de bajulações e mentiras. O historiador Maurice Lever assim explica a situação: “As relações do rei e seu bobo repousam, definitivamente, nessa convenção unanimemente aceita: o bobo dá o espetáculo da alienação e adquire, a esse preço, o direito à palavra livre. Em outros termos, a verdade só se faz tolerar quando empresta a máscara da loucura... E, se a verdade passa pela loucura, passa, necessariamente, pelo riso”.

MaL-humorados

Tempo de Voltaire, uma das mais engraçadas e ferinas línguas da

história, o século 18 foi também a época de Bossuet, bispo e teólogo francês e grande inimigo do riso, o que o fazia nutrir verdadeiro ódio pelo comediógrafo Molière. Autor do livro Política tirada das Santas Escrituras, em que desenvolve a doutrina do direito divino dos reis, Bossuet escreveu várias frases de grande repercussão, como: “Jesus assumiu nossas lágrimas (…) e até nossas fraquezas, mas não assumiu nossas alegrias nem nossos risos. (…) que seriam uma indecência para um Deus feito homem”. O século 19, apesar dos avanços científicos – ou principalmente por eles –, marca novos e fortes desencontros entre o humor e a Igreja, que rejeita com veemência as novas visões de mundo proporcionadas por invenções e descobertas. Já no século 20, período em que se afirma a “sociedade humorística”, uma das discussões a ser destacadas é o futuro do humor – e o riso, de acordo com Minois, “é um caso muito sério para ser deixado para os cômicos”. Muitos especialistas se manifestam sobre o destino do riso, com perspectivas às vezes totalmente opostas, mas tendo em comum a linguagem científica/ filosófica/sociológica/antropológica/ cultural/etnológica. A projeção do etólogo Konrad Lorenz é poética e utópica: “Acredito que o humor exerce, sobre o comportamento social do homem, uma influência análoga à da responsabilidade moral: ele tende a fazer de nosso mundo um lugar mais honesto e melhor. Acho que essa influência aumenta, entrando cada vez mais em nossos processos de raciocínio”. As perspectivas de Gilles Lipovetsky chegam a beirar o apocalíptico: “É com a sociedade humorística que começa a fase de liquidação do riso (...) A indiferença e a desmotivação de massa, a ascensão do vazio existencial e a extinção progressiva do riso são fenômenos paralelos: por toda parte é a mesma desvitalização que aparece, a mesma erradicação das pulsões espontâneas, a mesma neutralização das emoções (...) a capacidade de rir se encontra dopada”. Sorria, acabou a reportagem.

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con humor ti nen te reprodução/max halberstadt

Artigo

Daniel Kupermann O potencial criativo do humor Há algo no fenômeno

humorístico que parece provocar a incompreensão.“Perde-se o amigo, mas não a piada”, diz a expressão popular. O que seria esse elemento capaz não apenas de fazer rir, mas também de ferir suscetibilidades, comprometendo relações afetivas e mesmo provocando conflitos interculturais, como aqueles a que assistimos em passado recente em torno das charges do profeta Maomé publicadas por um jornal dinamarquês? Segundo Mikhail Bakhtin, autor de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais, há no riso uma dimensão ambivalente, a um só tempo destruidora e regeneradora, que amortalha o que se mostra velho e antigo e celebra o que é novo. E o humor – ao menos o freudiano, do qual tratarei aqui – é filho do realismo grotesco e do riso ambivalente cultivado nos carnavais medievais e renascentistas, configurando sua mais elaborada versão moderna. Talvez por isso ele se apresente sempre paradoxal, ferino e doce, sua faceta trágica sugerindo o cômico, sua vertente risível evocando a lágrima. Um exemplo da biografia de Freud (foto) é emblemático. Liberado pelos nazistas para expatriar-se na Inglaterra pouco antes do início da Segunda Guerra e do extermínio sistemático dos judeus, foi-lhe exigido que assinasse um documento declarando que não sofrera maus tratos, ao qual o psicanalista teria acrescentado: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”. O biógrafo Peter Gay, ao analisar o episódio, se embaraça, questionando se esse gesto provocador não indicaria um desejo inconsciente de Freud de morrer em Viena. Anos depois, Gay revê essa leitura, argumentando que, talvez, estivéssemos simplesmente assistindo a uma prova da vitalidade e do senso de humor “irreprimível” do criador da psicanálise.

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Mas se há uma força irreprimível na origem de um dito humorístico, isso não quer dizer que o humor não seja recorrentemente objeto de censura. À guisa de ilustração, retomarei um exemplo mais próximo de nós. Dias antes da morte do papa João Paulo II, assistimos a um episódio que provocou forte comoção. O papa dirigiu-se à sacada da sua janela no Vaticano para benzer a população, mas não conseguiu pronunciar palavra, malgrado o esforço visível em sua face contorcida, imagem amplamente divulgada pela mídia, a partir da qual o cartunista Aroeira desenhou uma charge para um jornal carioca com a seguinte legenda: “Serei breve”. Censurada, evidentemente. O papa veio a falecer no dia seguinte ao da não publicação da charge. O circuito da piada descrito por Freud, em 1905, na obra Os chistes e sua relação com o inconsciente, ajuda-nos a entender as forças em jogo na construção – e na censura – dessa expressão tragicômica. São sempre três envolvidos: a “primeira pessoa”, que conta a piada e nos faz rir; a “segunda pessoa”, de quem se ri – o alvo das pulsões sexuais e agressivas que encontram satisfação no chiste; e a “terceira pessoa”, o público, a quem se conta a piada. A empresa intelectual de Freud é entender de onde vem o tal impulso irreprimível que praticamente nos obriga a passar adiante uma piada da qual gostamos. Apesar de considerar algumas teorias da época – como a de que contamos a piada para podermos rir de novo dela, seja pelo fato de que ela se renova para nós através da surpresa manifestada pelo ouvinte, seja porque o riso é um fenômeno altamente contagioso –, Freud opta pela concepção de que o público, por meio da zombaria, consente e legitima a transgressão promovida pelo comediante. Afinal de contas, o humorista reivindica uma licença poética ao se permitir - e a nos permitir – rir com o que na vida prosaica não se pode brincar: a “burrice” do português ou da loura, as preferências homossexuais, a “presunção” dos argentinos, a “desfaçatez” dos governantes etc. Como já foi sugerido, o humor não é politicamente correto. Essa é a contribuição feita ao cômico pelo inconsciente.

Mas haveria uma política do humor? Qual seria? De um lado, podese pensar que uma piada reforça os laços estabelecidos na comunidade, funcionando como “lubrificante social”, aproximando os iguais às custas de um bode expiatório que, pela sua diferença, é eleito como alvo da agressividade do grupo. Como dizia o filósofo Bergson, para rir de uma piada é preciso pertencer à paróquia. Esse parece ser o caso das rodas machistas e preconceituosas. Porém, é fácil perceber outro tipo de humor, rebelde e não conformista, que elege como alvo as figuras representativas da autoridade idealizadas de modo a manter a ordem no tecido social. Nesse caso, ao invés de reforçar identidades, o humor exerce a crítica e estimula a imaginação, abrindo nosso pensamento a novos estilos de existência e a novas concepções de sociabilidade. Voltando à charge, pode-se afirmar com segurança que, no circuito freudiano, a “primeira pessoa”, a que provoca o riso, é o próprio humorista, mas a partir daí as coisas se embaralham. De quem se ri? Quem é o alvo, ou a “segunda pessoa” nesse caso? Ri-se do papa, uma leitura afoita indicaria. Mas o chargista ri, principalmente, de si próprio e de nós mesmos, igualmente angustiados pela iminência da morte do pontífice. Ao enunciar as palavras “serei breve”, ele expunha a céu aberto o horror da orfandade que todos – e não apenas os católicos, considerando a posição espiritual do papa em todo o mundo – sentiram durante o período da sua agonia. E, finalmente, quem ri nesse caso? Segundo o editor do jornal, a maioria dos leitores não acharia graça, mas se sentiria ofendida pelo rebaixamento do pontífice. Isso é bastante provável, uma vez que o humor facilmente provoca mal-entendidos.

RIR DE SI MESMO

Em O humor, de 1927, Freud sugere que o humorista ri, sobretudo, de si mesmo. Ou seja, extrai graça mesmo frente à situações dolorosas ou ameaçadoras. Mas, para isso, ele precisa dispor de bastante competência, uma vez que o humor se oporia, nesse sentido, aos nossos interesses narcisistas

mais imediatos – não são gratuitas as reações de ofensa ou de ressentimento, quando o sujeito se depara com sua impotência. O exemplo paradigmático é o do condenado à morte que comenta com os algozes que vieram buscá-lo, na segunda-feira pela manhã: “É, a semana está começando otimamente”. A operação psíquica empreendida pelo humorista implica tratar a si próprio assim como um adulto trata o sofrimento de uma criança desolada porque o seu sorvete caiu no chão. Para isso, é preciso “identificar-se até certo ponto com o pai”, o eu superinvestindo no supereu, o que o permite relativizar as angústias provocadas pela situação. Um modo de promover um distanciamento de si e de se perceber numa perspectiva mais elevada, a partir da qual o supereu enunciaria bondosas palavras de conforto, como: “Olhe, o mundo que parece tão perigoso não passa de uma brincadeira de criança, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria”. Essa é a contribuição feita ao cômico pelo supereu. É possível, assim, suportar a inexorável condição de desamparo que nos foi imposta desde o advento da modernidade, sem o consolo para a tragicidade da existência, antes obtido pela devoção ao rei ou pela crença inabalável em Deus. Não seria por isso que os humoristas suscitam tanta admiração (e estão, aliás, entre os artistas mais bem-remunerados pela indústria do entretenimento)? De fato, sua arte nos possibilita escapar do peso opressivo das idealizações e resgatar o poder da imaginação e da ilusão criadora infantil, permitindonos voltar a brincar, aliviando a carga imposta pela vida adulta. Por outro lado, é preciso reconhecer, atualmente, a onipresença do “humor de massa”, acrítico e publicitário, próprio de uma sociedade hedonista, como observa Lipovetsky a partir do diagnóstico de que vivemos em uma “sociedade humorística”, na qual nada mais é levado a sério. É preciso discriminar do que queremos rir, para que não sejamos transformados em cínicos entristecidos que, como professava Nietzsche, desaprenderam efetivamente a rir.

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LINGUAGEM Sim, sim, está tudo muito claro. Mas o que é humor? Não se sabe definir o gênero como numa receita, mas ele encontra escudeiros enunciativos, como a ironia e o sascarmo, que compreendemos bem texto Antonio Clériston de Andrade

Carlos Cecconello/Folhapress

Estava zapeando naquele fim

de domingo às 10 da noite, quando dou de cara, no GNT, com uma mulher ligeiramente desprovida de beleza exterior, usando um vestido seguramente horroroso. Parecia uma dessas tias antigas que ainda sonham em casar e fazem de tudo para chamar a atenção, pelo menos no visual: unhas em vermelho sangue, batom idem, o cabelo repartido de lado, sacolejado por uma rodada de rosto de um lado para outro, enquanto tagarela... Espere aí, eu conheço essa mulher, até já estive com ela na piscina de um hotel em Teresina, em pleno calor de um Salão de Humor do Piauí... É o Laerte, o genial cartunista! Gênio? Ah, isso é coisa para Caetano e Millôr que, segundo Laerte,

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numa entrevista para o iG, beiram o inexplicável. Fazer o quê? O cartunista se acha perfeitamente explicável, mesmo praticando o crossdressing, que significa apenas se vestir ao contrário, segundo o Brasilian Crossdresser Club (BCC), do qual Laerte é membro viril. E o que isso tem a ver com humor, que é o objetivo desse texto? É que o site do BCC tem como primeira frase “Existimos pelo prazer de ser mulher” e, segundo Schopenhauer, o humor estaria fundamentado na incongruência entre o pensado e a realidade objetiva, entre duas coisas que, juntas, formulam um terceiro efeito. As Virgens de Olinda atraem todos os anos milhares de foliões porque estes se divertem

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com o pastiche: homens vestidos de mulheres. Os efeitos de humor estariam na incongruência de pernas cabeludas, mãos enormes e voz grossa, emulando durante a folia os trejeitos femininos, com resultados entre graciosos e grotescos. Contraste, bizarrice, ironia, sarcasmo? Laerte quer descobrir uma feminilidade que seria negada ao homem, um apagamento de fronteiras entre o masculino e o feminino – que ele vê como impostura cultural. Para mim, telespectador, a cena era cômica, principalmente pelo ethos encenado pelo cartunista, de enfado e riso contido, diante das perguntas da jornalista Marília Gabriela. Esta, esbanjando entusiasmo e vigor gestual. Do protagonista, exala uma vontade de se constituir recatadamente moça – não pude evitar comparações com A praça é nossa. Minha expressão risonha advém, justamente, do que o Laerte deseja anular: as diferenças, pelo respeito e aceitação da estranheza. Será que o riso revela meu preconceito diante do tema? É, pode ser, mas faço a opção de ver na atitude da tia Sônia – ou simplesmente Sônia, como ele prefere – um lance do humor levado às últimas consequências. É no tom grave do travestismo do Laerte,

6 laerte

Desde 2010, o cartunista vem praticando o crossdressing, que significa se vestir ao contrário

7 mordaz

Em geral, as tirinhas de Laerte apontam o absurdo no real

embora ele o faça com leveza, que vejo a manifestação do humor, até porque o humor se alimenta justamente de seu oposto: o sério. O lance daquele senhor de pernas ligeiramente tortas, cruzadas, com os joelhos à mostra, imbricou o que seria do campo profissional e artístico ao pessoal. Vejo o Laerte na crueza, no experimento de levar suas inquietações e argumentos das tiras para a própria vida. O humor em carne, osso e minissaia, parafraseando o título da entrevista do cartunista no iG.

DESCONCERTO

Mas, o que é humor? É claro que não vou responder. Simplesmente porque não sei. Pelo que andei pesquisando, ninguém sabe, quer dizer, não sabe enunciá-lo através de uma cientificidade, de modo que, ao obedecer-se à receita, tenha-se humor, como quem faz bolo, ali, quentinho na hora. Mas a humanidade, diante de tal dificuldade, foi descobrindo que manifestamos o senso de humor

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através de fiéis escudeiros linguísticos e enunciativos, como a ironia, que todos sabem definir, ou explicar. A noção de ironia, para o analista do discurso francês Dominique Maingueneau, consiste em, além do contrário do que se quer fazer para que o destinatário compreenda, “uma fenda que o enunciador escava em sua própria enunciação, desconexão que se quer desconcertante entre discurso e realidade”. É nesse desconcerto que se configura o humor. Descobrirse mulher até o ponto em que suas particularidades físicas masculinas tornem-se um último incômodo, seria trágico. Mas fazer-nos crer que estamos diante de um avatar que prega o discurso pós-moderno do apagamento de fronteiras, metamorfoseia-se em Sônia a fim de merecer entrevistas na Bravo, no iG e no GNT, dentre outras que virão, seria cômico, e, mais que irônico, sarcástico. Afinal, Laerte seria o feminino em sentido literal, como quer seu discurso, ou seria tudo figuração, curtição, uma experiência sensorial e social nas entranhas do humor? Contradizendo-me, vejo certa candura na atitude do Laerte, que faz um discurso pela paz e pela harmonia entre as pessoas. Não digo entre gêneros, pois é exatamente essa figura

O humor faz parte das relações humanas, e nós somos irônicos, sarcásticos, grotescos, incongruentes que ele quer apagar, não pelo ódio, mas pelo apagamento dos limites impostos. Dizia do sarcasmo, que vem do grego como “riso amargo”, que tem a ver com zombaria, com mordacidade, com o cáustico – com o que desdenha, morde, corrói. Mas quando Laerte corrói, não dói, faz refletir. Pode corroer certezas, como as geniais tiras que ele fez usando Deus como protagonista. Duvida? Deus: Eu tentei, tentei e tentei... Mas não consigo fazer uma piada. Explica Ele, visivelmente irritado. O grupo de santos, no céu, escuta atento. Deus: Vocês sabem, é preciso uma certa dose de maldade... Continua Deus, agora desapontado, e desabafa: – Mas aqui só tem santo! Diante da risadaria geral dos santos, Ele conclui, meio arretado: – Não foi piada! Essa tira de Laerte tem como justaposição surpreendente dois

elementos discursivos incongruentes, que são os suportes para os efeitos de sentido e humor: a maldade e os santos. A igreja medieval viveu às turras com o risível, aliando-o à falta de decoro e reverência, o contrário do comportamento de Jesus, que jamais rira. Jacques Le Goff, pesquisador do medieval, diz que, no século 5, havia no proceder monástico regras que diziam ser o riso o jeito mais horrível e obsceno de se quebrar o silêncio. A Igreja não sabia o que fazer com um fenômeno que não podia controlar, como o riso, e por isso o considerava perigoso. Apenas no século 17, ela distingue o riso bom do ruim, os modos admissíveis de rir e os inadmissíveis. Retomando a tira de Laerte, ele põe os santos sob sentidos ambivalentes: o do ponto de vista de Deus, de que é impossível fazer piada onde só tem santo; e o ponto de vista dos santos. O mais óbvio é o de que ninguém é santo; numa segunda alternativa, estão rindo da impossibilidade do criador de todas as coisas realizar algo simples: fazer uma piada; numa terceira perspectiva, estão rindo da inocência de Deus, que poderia muito bem fazer uma piada: não faltaria matéria-prima. Os santos soltavam assim, um riso sarcástico, que remonta à tradição

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8 os fradinhos Humor ácido de Henfil foi rechaçado pelo público norte-americano 9 Rê Bordosa Personagem criada por Angeli trouxe graça ao tema da liberação feminina

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grega antiga, relativa aos baixos instintos para o que fosse do cômico. Chiques eram a tragédia e o épico.

NÃO PROFISSIONAL

Quero chamar a atenção, aqui, para o fato de que o humor é superdimensionado como “coisa” de profissionais, tanto que existem humoristas, chargistas, cronistas e palhaços em geral, todos remunerados. Mas o humor, atribuído por Aristóteles como próprio do homem, está presente no cotidiano, em todos os recintos, ocasiões e, claro, nas ruas. É tão comum, que nem se nota a presença dele. O humor faz parte das relações humanas, e nós somos irônicos, sarcásticos, grotescos, alegóricos,

metafóricos: somos incongruentes, deliberadamente ou não. Dizemos coisas com duplo sentido, somente para divertir, em defesa pessoal, para atacar ou para magoar. Era uma vez um Celta, dentro dele um pai trazia de volta as filhas da escola. Júlia, de 12 anos, disse: “Odeio ir à escola, odeio tarefas, odeio minha turma, só gosto de ficar em casa sem fazer nada”. O pai olhou de lado: “Que horror!”, censurou, carregando na indignação. Mas Alice, de 5 anos, não deixou por menos: “Calma, pai, ela só está sendo histórica”. Diante das risadas, ela retificou enfática: “Irônica, né?” Para mim, o nascido deixa de ser bebê para ser sujeito, quando descobre e pratica o humor.

Não, a Linguística, enquanto sistema, não dá conta sozinha dos modos configurados nos enunciados de humor. Sigo o pensador russo M. Bakhtin, para quem os enunciados são um todo compositivo em que seus elementos discursivos colaboram relativamente para os efeitos de sentido que quer suscitar. Uma piada razoável pode tornar-se mais engraçada num momento de tensão, ou se é dita por uma criança que parece não ter idade suficiente para compreendêla. A língua tem sua importância, há sempre o que explorar e aprender dela, porém, não se pode falar de sentido sem considerar a situação de comunicação, o quadro cênico, o tema, o contexto amplo e o imediato. Os efeitos de sentido a serem fruídos dependem do grau de intimidade e da formação ideológica do coenunciador – leitor, audiência, plateia, com o tema em evidência. Alguém pode torcer o nariz para o fato de Laerte ter feito de Deus um de seus protagonistas. Os americanos não suportaram o humor dos fradinhos do Henfil – lá, The mad monks –, pois os acharam doentes e execráveis. Lembro uma tira em que o Baixim dizia algo assim para o Cumprido: “Se for mentira, que um raio caia em minha cabeça!”. Ka-bum! Cai um raio. O baixinho fica apenas chamuscado. No último quadro, aparece o braço de Deus agitando o punho cerrado. Lá de cima, vem um grito: “Pô, errei!”. Os americanos achavam tudo uma blasfêmia. Para nós, só alegria. Henfil havia fechado um contrato de 15 anos com o Universal Press Syndicate (UPS). Publicaram uns dois meses.

CONTEXTO

O tempo e lugar contam. Não adianta fazer mil análises linguísticas, estilísticas ou psicológicas das tiras do Rango, de Edgar Vasques, publicadas nos anos 1970. Segundo a editora LPM, Edgar se propôs a “criar um personagem que tivesse a cara do Brasil: miserável, esfomeado, marginalizado, pobre e desempregado, que vivia dentro de uma

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Personagem criado por Edgar Vasques, na década de 1970, representava o brasileiro miserável, esfomeado e marginalizado

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lata de lixo (...)”. A partir de 1973, Rango ocupou as páginas de vários periódicos brasileiros, como o Pasquim e a Folha da Manhã. Fazendo parte do boom de humor da década de 1970, simbolizou a resistência à ditadura militar”. Ler Rango era como levar um soco no estômago, a tira tinha milhares de fãs; porém, na década de 1980, o personagem perdera sua força. As mesmas tiras não socavam ninguém, a ditadura era uma página quase virada e o sucesso tinha outros heróis, como Bob Cuspe ou a Rê Bordosa, do Angeli. O contexto fazia com que o Edgar desenhasse o Rango em pé, e seu estômago emitia um ruído que incomodava muita gente: Ronc!. Mais de 10 anos depois, o engraçado era a Blitz, uma banda carioca liderada por Evandro Mesquita, que vendeu mais de 100 mil cópias de um compacto que tinha o hit Você não soube me amar. Estávamos saindo da zona de combate, da sisudez da denúncia; a nova guerrilha tinha como linguagem o escracho urbano. O humor catava outros simbolismos, como o registro da aparição do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira usando uma sunga de crochê em Copacabana, no Rio. Ah, manifestamos o humor, também, através de paródias e alegorias. A paródia é comum em programas de humor na TV.

O grotesco “se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio”, descreve o Houaiss Seleciona-se, por exemplo, uma música conhecida, e ela é cantada jocosamente com uma letra substituta, geralmente depreciando alguém ou algum valor. Torcedores também apreciam destronar o adversário parodiando o hino do clube. Ao abrir um show de Falcão, no Teatro do Parque, no Recife, a turma do jornal O Papa-Figo, através do psiquiatra e cartunista Bione, parodiou os pastores que pedem dinheiro através da TV. Para esse fim, o pseudopregador fazia gestos exagerados e falava de modo inflamado, apelativo e eloquente. É uma técnica que consiste em transferir performaticamente propriedades retóricas do gênero que se toma como fonte, para reproduzilo de modo caricato, através de um novo discurso. Já alegoricamente, pode-se expressar, com humor, algo de uma forma figurada. Os chargistas, por exemplo, usam um dragão para

representar a inflação; e uma caveira sob um manto escuro empunhando uma foice é a alegoria da morte. O campo do humor também acomoda o grotesco em seu guardachuva. É atual uma das acepções do Houaiss: “que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato”. Talvez seu apogeu tenha sido na Idade Média, mas as centenas de programas de auditório, com direito à transmissão pela TV via satélite, me põem em dúvida: os produtores colocam pessoas nas condições mais constrangedoras, fazendo de sua miséria física, intelectual ou relacional, uma forma aética de conseguir e manter a audiência. Quanto mais bizarro, melhor. A aparição do Laerte, com a qual começo esse texto, foi vista por mim com um múltiplo olhar, e assumo todos eles: do filosófico ao jocoso; do acadêmico ao senso comum; do discursivo ao pantomímico; do profissional ao especulativo – sem excludência ou antagonismo, apenas um olhar dialógico. Concluo citando Graça Paulino, da UFMG: “Digamos que a imagem do leitor em interlocução humorística ou irônica é a de um antagonista provocado para reagir”. Assim o fui.

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Artigo

Miguel Falcão O humor nos tempos do cólera Em plena virada do milênio, estávamos às voltas com uma epidemia do cólera. A ironia de uma doença com um ranço tão medieval, fazendo vítimas no limiar do século 21, deixava indóceis os cronistas da imprensa, que se encolerizavam com o secular descaso das autoridades com a saúde pública, em geral, e com o saneamento básico, em particular. E nós, chargistas, claro, também éramos frequentemente agraciados com motes e temas para os calungas nossos de cada dia. E eu, além do mote, fui contemplado também com um episódio que beirou o surreal. O cólera, se não chega a ser assim uma peste negra, que dizimou um terço da população da Europa, no início da Idade Média, é uma doencinha muito chata, que deixa o freguês feito um rei, sentado no trono o dia todo, e, se der bobeira, vai ele também de água abaixo e entra pelo cano desta para melhor. Não é transmitida nem por vírus nem por bactéria, mas por um vibrante vibrião que se esconde nas cascas das frutas e verduras, e que só morre se a diligente dona de casa lavar as mesmas ditas

cujas numa sherlockiana solução a 7% de água sanitária diluída numa bacia d’água. Talvez até menos que 7%, mas, ainda assim, haja água sanitária para lavar tanta fruta e verdura do almoço de todos os dias. E quem tinha restaurante ou lanchonete, coitado, não podia se dar ao luxo de arriscar não lavar, pois poderia se tornar conhecido como o vendedor da refeição “jesus-me-chama”. Aí é que entram na história os nossos gloriosos políticos, pois o pânico já havia se generalizado e instalou-se um clima de apocalypse now. As populações carentes, sempre elas, não tinham dinheiro para comprar nem as verduras, quanto mais a água sanitária para lavá-las, e alguns vereadores tiveram a brilux ideia de distribuir água sanitária de graça para a população carente, a fim de que esta não ficasse assim tão carente – pelo menos, não de água sanitária. Mas, com um significativo detalhe: a garrafa de água sanitária trazia colado, à guisa de rótulo, um singelo “santinho” do vereador. Foi uma festa. O Ministério Público caiu em cima e a imprensa jogou alface no ventilador, pois se aproximavam as eleições municipais e logo se farejou propaganda eleitoral ilegal. Eu desenhei, e o Jornal do Commercio publicou, uma charge em que uma dona de casa, bem típica, com lenço na cabeça e sacola na mão, chega a uma venda e pergunta ao balconista:

miguel

-Seu Zé, tem água sanitária Ladrão? -Não seria água sanitária Dragão, minha senhora? -Não, é Ladrão mesmo, aquela que tem o retrato do vereador colado na garrafa. No dia seguinte, quando cheguei à redação do jornal, já foram me dizendo que um sujeito tinha passado o dia todo ligando para mim. Pensei que era algum frila, fui cuidar da vida e esperar ele ligar de novo. Daí a pouco me chamam para atender a uma ligação. Reconheci imediatamente a voz de bode rouco, que tinha ficado muito em evidência na televisão, uns tempos atrás: -Aqui, quem está falando é o vereador Fulano de Tal. Foi você que desenhou a charge de hoje? -Foi, sim senhor, fui eu mesmo. -Pois prepare-se para matar ou morrer, seu canalha. Você atingiu a minha honra e me chamou de ladrão, e eu o desafio para um duelo. Escolha as suas armas! Duelo? Ao pôr do sol no faroeste, feito Clint Eastwood e Randolph Scott? Ou seria mais um duelo medieval, com armadura, lança e cavalo, à Dom Quixote? Não ia eu agora discutir com um louco desse naipe, que o doutor disse para não contrariar. -Que é isso, excelência, aquilo foi uma brincadeira... -Eu exijo uma retratação, e só um de nós poderá sobreviver! Escolha as suas armas! -Deixa isso pra lá, excelência, eu não me referi especificamente ao senhor... -Diga o dia e a hora, e escolha as suas armas, porque a minha honra eu vou lavar com sangue! Aí também já era demais, que se dane o instinto de sobrevivência: -E quem já viu sangue lavar alguma coisa? Não seria melhor lavar com água sanitária? Aproveitei o momentâneo e apoplético silêncio do outro lado da linha para desligar. Passei algum tempo indo ao jornal olhando por cima dos ombros. Até o fechamento dessa edição, continuo vivo.

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EVALDO COUTINHO Pensamento à espera de (re)leituras

Apesar de ser considerado pela inteligência nacional um dos maiores filósofos brasileiros, escritor, que completaria agora 100 anos, é pouco estudado e lido, sobretudo por seu comportamento reservado e pela ausência de traduções de sua obra densa texto Marcos Enrique Lopes

con ti nen te

filosofia

Para um personagem de vida

reclusa e de atos contidos, até que não faltam episódios contundentes, capazes de serem destacados e apreciados, na vida do professor, crítico de cinema, escritor e filósofo Evaldo Bezerra Coutinho. Comumente associada à excentricidade, sua obra não repercutiu como deveria, devido ao pioneirismo e à abrangência de seus escritos. Nascido em 23 de julho de 1911, no Pátio do Terço, no Bairro de São José, no Recife, estudou o primário no Colégio Americano Batista, o secundário no Ginásio Pernambucano e se formou em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, na qual ensinou de 1938 até 1981, quando se aposentou. Exerceu por 10 anos a profissão, entre 1936 (ano de seu casamento com Giselda Lopes Bezerra) e 1946, época em que viajou para o Rio de Janeiro e começou a tomar as primeiras notas do que viria a se tornar a elaboração de um dos raros

sistemas filosóficos realizados por um brasileiro, rivalizando com Farias Brito pelo mérito de concluir um método. Os que o conheciam mais de perto costumeiramente se surpreendiam com detalhes de sua biografia. Poucas vezes, fatos pitorescos de grande relevância foram relatados, por conta da particular sobriedade e modéstia de seu interlocutor. Qualidade ou defeito de sua personalidade, essas atitudes acabaram contribuindo para as proposições de suas teses. A ausência de análises críticas sobre sua obra evidencia a carência de especialistas no Brasil, embora pudesse sugerir também um desconhecimento a respeito de seu autor. Não é verdade. Para onde quer que voltemos o nosso olhar, uma pesquisa mínima sobre o seu legado vai estar agregada a inúmeros admiradores, formadores de opinião, personalidades, cujo alcance nacional, e até internacional, seria capaz de fazê-lo

um reconhecido nome da literatura brasileira, com ideias “vazadas num estilo barroco da língua portuguesa”, nas palavras do poeta Ângelo Monteiro. Imagine escrever para leitores num país de pouca leitura, tendo manuscritos todos os seus textos! Essa carência deve-se ao fato de Evaldo Coutinho sequer dominar a datilografia, função exercida por parentes, amigos e colegas de trabalho. Ao longo de duas décadas, foram eles os responsáveis pela divulgação de seu tratado junto a editores e jornalistas. Uma outra razão para sua escassez de leitores está no fato de não haver tradução de seus livros. Nesse ponto, torna-se ainda mais emblemático o episódio do plágio envolvendo trechos inteiros de O espaço da arquitetura, apresentado por um ex-aluno como tese de doutorado à Universidade de Madri, no início dos anos 1980. Sobre o ocorrido, tratou com desprendimento

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walter carvalho/divulgação

Outro tema recorrente, a sua teoria crítica de cinema, A imagem autônoma, serve de exemplo para essa discussão. Lançada inicialmente pela Editora Universitária, em 1970, teve sua edição esgotada, assim como a segunda tiragem pela Editora Perspectiva, 26 anos depois. Hoje, há uma terceira edição, a segunda pela Perspectiva, diferenciada por possuir um novo tratamento gráfico e uma capa sobreposta.

CONVÍVIO

a imitação fraudulenta: “Ao menos tive parte do que escrevi traduzida na língua de Cervantes”, comentou à revistaVeja. Quem se detém sobre a obra evaldiana vai notar a ausência de citações, apesar de ele admitir uma profunda admiração pelos présocráticos e, em especial, por Baruch Spinoza. Foi, aliás, por conta das

comemorações do tricentenário de nascimento do filósofo holandês, de origem judaica, que Evaldo, aos 23 anos, escreveu um dos mais significativos estudos já publicados no país e que levou Marilena Chauí a concluir que se tratava “de uma antecipação em 30 anos de estudos sobre Spinoza no Brasil”.

O arco de abrangência de sua obra pode ser constatado pela presença de profissionais importantes em sua trajetória de vida. Do convite de Joaquim Cardozo para substituí-lo na cadeira de Estética, na Escola de Belas Artes, à relação com Paulo Freire, a quem confiou como assistente o jovem discípulo Luiz Costa Lima, ou ainda os colegas de trabalho no Ipase, como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos (vez por outra incluindo a participação de Carlos Drummond de Andrade), muitos acompanharam seus passos. Entre intelectuais brasileiros, com quem conviveu, também estão os membros do Conselho Curatorial da Perspectiva (Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Augusto e Haroldo de Campos, Bóris Schnaiderman, Celso Lafer, Leyla Perrone-Moisés, Zulmira Ribeiro Tavares, entre outros). E também críticos conceituados de cinema. Do Jornal do Brasil (Clarival do Prado Valadares), do Estado de S. Paulo (Paulo Emílio Salles Gomes) e do Chaplin Club (Octávio de Faria). Personalidades com um grau de influência excepcional no meio intelectual brasileiro. O tempo foi bastante duro com Evaldo Coutinho. Foram necessárias quase cinco décadas, desde que começou a escrever a exegese para que fosse integralmente publicada. A partir de O lugar de todos os lugares (1976), livro-síntese de sua filosofia, até a esperada reedição de A imagem autônoma (1996), os livros foram saindo um a um até completarem nove títulos. “Nove capítulos de um livro só, por conta da coerência interna que preside a todos”, em suas próprias palavras. Some-se aí uma verdadeira relíquia publicada ainda no início dos anos 1960, mais precisamente em 1963, pela Imprensa Universitária. A compilação Discursos trazia o então

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con FILOSOFIA ti nen h te imagens do documentário a composição do vazio

Depoimento

Benedito Nunes “um fraseado aliciante” Com os volumes de A ordem fisionômica, podemos constatar que Evaldo Coutinho é um verdadeiro filósofo, pois elaborou um sistema num estilo que lhe é próprio porque traz a medida de seu pensamento. Cita pouco ou quase nada, mas não pelo vezo muito nosso de ostentar autossuficiência. Com o seu ritmo sintático, de um fraseado aliciante, seduz o leitor pela riqueza do vocabulário, principalmente de cunho metafórico.

professor de Arquitetura, Letras e Filosofia proferindo cinco aulas como paraninfo de turmas e homenagens a ele, falando em solenidades no Teatro de Santa Isabel ou na antiga Faculdade de Arquitetura do Recife (FAUR), entre os anos de 1957 e 1962. Um pouco mais adiante, repectivamente em 1970 e 1972, a Editora Universitária publicaria dois de seus livros seminais: O espaço da arquitetura e A imagem autônoma, escritos após a quintologia A ordem fisionômica, base de sua doutrina. No entanto, recusou-se a publicar os livros de filosofia. Por conta dessa recusa, Evaldo buscou alternativa no sul do país. E encontrou em Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira e editor do Suplemento Cultural do jornal O Estado de S. Paulo, seu principal incentivador. Foi ele quem fez chegar a Jacó Guinsburg, semiólogo e editor da Perspectiva, os originais de seus livros. Faltava pouco para ser editado. E ainda muito para ser entendido. Há, nesse caso, um perfeccionismo latente em suas atitudes. Em relação ao seu postulado, chegou ao ponto de se antecipar a possíveis críticos, ao explicar num livro (O lugar de todos os lugares) as razões de sua Ordem fisionômica, um conjunto altamente bem-estruturado e minucioso de cinco

Entre 1978 e 1983, todos os tomos que compõem A ordem fisionômica foram publicados pela editora Perspectiva livros em que defende um solipsismo de inclusão. Não satisfeito com a sua própria síntese, escreveu outro (A artisticidade do ser, lançado em 1987), com um grau de hermetismo ainda maior. Para não deixar dúvidas a respeito de sua envergadura e o lastro de seu pensamento, pensemos nas peculiaridades e, ao mesmo tempo, no prosaísmo com que o professor lidou com a visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, em 1960, ao Brasil, incluindo passagens pelo interior de São Paulo, capital paulista, Rio de Janeiro, Recife e Belém. No Recife, houve uma solenidade na Faculdade de Arquitetura, então presidida por Evaldo Coutinho, ocasião em que Sartre proferiu uma palestra em francês, traduzida por Celso Furtado, à época superintendente da Sudene. Personalidades do mundo artístico e intelectual estavam presentes. Evaldo era o anfitrião.

O mais intrigante é que as edições de seus livros esgotavam constantemente e, em alguns casos, chegavam à lista dos mais vendidos nas livrarias locais na década de 1970 e nas seções de recomendações da imprensa nacional. Mais curioso, ainda, são os colegas de Academia, críticos literários influentes do país, escritores e especialistas o considerarem uma sumidade em termos de pensamento nacional. Em todos os casos, entusiastas da construção de seu pensamento. Nada disso, no entanto, foi suficiente para torná-lo mais lido, mais comentado, senão respeitado e até mesmo cult. O perfeccionismo presente em tudo o que fez se reflete em dois incidentes no início dos anos 1950, quando de seu retorno do Rio de Janeiro. No primeiro deles, um acidente de avião em Sergipe vitimou um quase homônimo, Ivaldo Coutinho, fazendo com que os jornais anunciassem sua morte na tragédia. Ironicamente, um de seus temas principais são os vaticínios da morte. Nesse mesmo tempo, desfez-se de mais de 1.500 páginas, rasgando-as por considerar medíocre o seu conteúdo. Ao lado desse rigor, podemos verificar o que o qualifica em vários aspectos: um sistema filosófico próprio, a evitação de estrangeirismos, a criação de neologismos, o uso de

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um português culto, um estranho estado natural de reclusão. Para um leigo, A ordem fisionômica pode parecer hieróglifo. Ao menos, os livros saíram em série, permitindo maior entendimento e coerência de leitura. A sequência começa com A visão existenciadora (1978) e continua com O convívio alegórico (1979), Ser e estar em nós (1980), A subordinação ao nosso existir (1981) até culminar em A testemunha participante, em 1983. Somados a esses, as duas teorias críticas de arquitetura e cinema e mais os dois volumes explicativos anteriores e posteriores à Ordem, além da compilação de textos Discursos, então teremos um total de 10 livros. Como crítico de cinema, sua experiência foi bem variada, incluindo colaborações para o Jornal do Commercio, no Recife, no final dos anos 1920, na revista Momento, nordeste e agitação, nos anos 1930, em jornais do Rio de Janeiro, como a Tribuna das Letras e o Diário Carioca, ao longo das décadas de 1940 e 1950, chegando até o início da década de 1980, nos jornais O Estado de S. Paulo e Diario de Pernambuco, nesses últimos dois casos por curtos períodos.

PRESTÍGIO

As homenagens também foram muitas. A Universidade Federal de Pernambuco concedeu em 1971 o título de professor emérito e a Fundarpe outorgou o título de Cultura Viva de Pernambuco, em 1985 (mesmo ano em que sai a primeira tese a seu respeito, de autoria de Adelson Santos). Em 1986, a Fundação Joaquim Nabuco oferece a Medalha do Mérito e a Universidade Católica realiza um simpósio em torno de um de seus livros. Dois anos depois, entra para a Academia Pernambucana de Letras, ocupando a cadeira 23, cujo patrono é Joaquim Nabuco. Em 2003, está entre os participantes de um ciclo de debates na III Feira Internacional do Livro de Pernambuco e, em 2004, é a vez de uma mostra de cinema, I Panorama Recife de Documentários, reverenciá-lo. Ao escrever, outra especificidade: o grau de concentração era tamanho, a ponto de ele se alimentar pouco, lendo durante todo o dia, na maior parte do tempo de forma isolada, ao som de música erudita. O Concerto para violino (Opus 64, em mi menor), de Felix Mendelssohn, era o preferido.

Depoimento

Paulo Cunha “ele tinha um texto duro” Os livros do professor Evaldo sempre venderam, esgotaram as suas edições. Mas ele nunca foi muito comentado pelos especialistas em cinema no Brasil. Até porque ele tem um texto muito duro, em que não faz nenhuma concessão. Sua escrita procura entender o sentido do cinema. Esse

Inclusive, o tempo de duração da composição, bem como a quantidade de anos que demorou para ser concluída, oito anos a partir de 1838, guarda semelhança com o modo de trabalho e a meticulosidade na elaboração de Evaldo Coutinho. Cada um de seus escritos filósoficos levava anos até ser considerado definitivo. Em sua extensão de vida, durante pelo menos três décadas distintas, há períodos de intensa reclusão, sendo o último deles, em fins dos anos 1990, coincidente com uma saúde já frágil,

processo levou-o a desenvolver ideias extremamente pioneiras a respeito da ontologia do cinema, sobre os princípios essenciais do ser no cinema. São trabalhos, por exemplo, anteriores aos de André Bazin, na França, sobre o mesmo tema. E isso é incrível, porque sabemos que ele trabalhou em condições muito precárias, quase em total isolamento. De certa forma, Evaldo Coutinho é um homem que nunca fez filmes, mas fez cinema porque a maneira como ele escreveu sobre a 7ª arte é mais importante do que muitos filmes na trajetória do gênero.

refletida na perda paulatina de audição e visão. Isso prejudicou sobremaneira a possibilidade de desenvolver novos conceitos acerca de sua teoria crítica de arquitetura, a exemplo de um estudo não acabado sobre o tema, integrado agora às riquezas de seu acervo manuscrito e deixando que a história, após o dia 12 de maio de 2007, data de seu falecimento aos 95 anos, possibilite a abertura de um novo tempo. Qual seja? O tempo do descobrimento e desdobramento de sua impecável, majestosa e sólida tautologia.

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ROMÂNTICOS POR EXCELÊNCIA A Continente celebra neste 2011 uma década de existência. Para comemorar o aniversário, a revista promove o Festival Liszt/Mendelssohn, que tem patrocínio da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e da Chesf, com direção artística da pianista Elyanna Caldas. O festival terá duração de 40 dias, será aberto ao público, com concertos nos teatros de Santa Isabel e da UFPE e participação de talentos nacionais e internacionais. A escolha de um evento desse porte para marcar a data indica o interesse da Cepe em atuar pela realização de projetos que aliem diversão e conhecimento, lazer e educação, binômios que jamais deveriam ser dissociados no âmbito do fomento cultural brasileiro. 1

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FRANZ LISZT Um cabeludo que mudou o formato dos recitais

Aos 200 anos do nascimento do compositor húngaro, ele é lembrado tanto pelo talento para tocar partituras difíceis quanto pelo status que trouxe ao intérprete texto Carlos Eduardo Amaral

Imagine o quão estranho você acharia, hoje, se entrasse numa sala de concertos para ouvir um recital de piano solo e o instrumento estivesse com a cauda virada para o fundo do palco, de modo que o solista ficasse de costas para a plateia; ou que, num ano de efemérides, ninguém promovesse um programa dedicado exclusivamente a um compositor falecido; ou, ainda, que o intérprete não se preocupasse em memorizar as partituras, e sempre desse lugar a outros pianistas e findasse sua participação com apenas uma obra executada. No início do Romantismo, esses eram costumes vigentes, e talvez viessem a caducar em um dado momento devido a algum estalo de bom senso, mas coube ao maior pop star da era pré-fonográfica modificar as convenções, respaldado pelo prestígio junto a nobres, clérigos e casas reais por toda a Europa. De início, Liszt Ferenc (batizado conforme a prática húngara de se antepor o sobrenome ao prenome) fez perceber, simplesmente, que o som do piano se propagaria melhor, se a tampa estivesse aberta em direção ao público. Todavia, Liszt (1811-1886) possuía intenções mais recônditas,

Após Beethoven, Liszt foi o maior responsável por elevar a condição social da profissão de pianista e compositor e paradoxalmente mais narcisistas – sem deméritos nessa observação. Sabendo que tocar sem encarar os ouvintes equivalia a proteger-se deles em uma redoma psicológica e, seguro que era de sua virtuosidade sobrehumana, comparável somente à do ídolo Niccolò Paganini (1782-1840), adotou o posicionamento de perfil (tal qual o de um violinista), a fim de que o público pudesse conferir sua técnica, e de que o mulherio em especial cultuasse suas feições. Se, ao longo do Romantismo, a figura do intérprete passou a competir com a do compositor, prevalecendo sobre a deste na música popular do século passado até aqui, essa conquista deve-se ao músico magiar, que, segundo o pianista e compositor Amaral Vieira, foi o maior responsável por elevar a condição social de sua profissão, após Beethoven. Tamanho status

Liszt atingiu, que ditou moda de forma sem precedentes aos seus pares. Acrescente-se ao que falamos antes o fato de que Franz Liszt – como Ferenc passou a se chamar ainda criança, posto que vinha de família germano-falante – foi o primeiro músico que se conhece a fazer fama pelos longos cabelos naturais, algo trivial apenas do surgimento do rock and roll para a frente. Liszt também impeliu outros pianistas a tocar de memória e, por tabela, a focar na interpretação em si, enquanto ela ocorria; afora ele ter disposto do privilégio de produzir concertos em que fosse a única estrela ou demonstrasse o domínio do repertório de um único compositor à sua escolha, a exemplo de Bach ou Beethoven. Paralelamente a esses aspectos, Amaral Vieira, grande divulgador da obra lisztiana no Brasil, evidencia que a revolução inaugurada pelo húngaro na técnica pianística não buscava a mera pirotecnia com que diversos intérpretes o trataram após a morte; em contraste, o virtuosismo extremo servia de suporte para a condução de ideias musicais – fossem abstratas ou programáticas – que Liszt, ajudado por seu raro dom para lidar com partituras difíceis à primeira vista,

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a pintura de Joseph Danhauser, N Franz Liszt fantasizing at the piano, o compositor toca para amigos diante de um busto de Beethoven

Nesta página 2 JUVENTUDE

iszt foi o primeiro músico, L de que se tem notícia, a conquistar fama pelos seus longos cabelos naturais

desenvolveu em peças como os Estudos transcendentais e a Sonata em si menor. “As passagens de dificuldade transcendental não são meras guirlandas, mas, sim, elementos interpretativos do mais alto interesse, que exploram novas possibilidades. Liszt em mãos erradas pode soar de modo abominável… Um intérprete egocêntrico e de visão estreita enfatizará sempre de modo desequilibrado os elementos que fazem parte de suas composições: transformará as oitavas, escalas, arpejos e cadências endiabradas em fogos de artifício, sacrificando a visão de conjunto e a arquitetura musical”, discerne Amaral Vieira. Depois de um 2010 em que Chopin e Schumann – amigos de Liszt, mas de concepções e temperamentos bem diferentes – foram veementemente lembrados, agora, o gênio-mor do piano romântico recebe as atenções e completa o painel do imaginário sonoro que formou ao lado dos outros dois celebrados contemporâneos, desenhado em cores que expressaram, respectivamente, delicadeza, sonho e ímpeto. A Liszt, Pernambuco prepara uma digna homenagem este mês, no Recife e em Gravatá, em recitais abertos e estrelados por intérpretes competentes de sua obra .

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con especial ti nen te reprodução/gravura de eugène delacroix, para fausto

Artigo

leonardo martinelli PEREGRINAÇÕES MUSICAIS O século 19 testemunhou uma enorme mudança no status da música. Se, anteriormente, músicos das mais diversas categorias tendiam a ser tratados como serviçais, a partir de então eles seriam alçados à condição de verdadeiros rock stars no período que ficou conhecido como Romantismo. Na época, o crítico inglês Walter Pater chegou mesmo a afirmar que “toda arte aspira constantemente à condição de música”. Um dos resultados dessa verdadeira apoteose sonora foi uma inédita autonomia experimentada pelos mais célebres músicos do período, principalmente econômica, que se constituiu base para a independência artística, a partir da qual os compositores passaram a realizar seus projetos guiados mais por suas experiências e sentimentos íntimos do que pelos desejos e caprichos de um nobre ou monarca.

Projetado ao estrelato por seu incrível talento como pianista, a estrada era o caminho natural para o jovem húngaro Ferencz Liszt. Conforme foi ganhando idade e maturidade artística, o menino-prodígio do piano passou a realizar suas primeiras composições, testamentos gráficos de sua excepcional habilidade técnica. Analisando as centenas de títulos que integram o catálogo de sua extensa e diversificada obra – além de peças para piano, compôs sinfonias, poemas sinfônicos e uma série de composições vocais –, é notória a estreita relação existente entre seus trabalhos e os temas e questões que interessaram Liszt ao longo de sua vida. Não faltam associações de suas realizações artísticas com os diversos amores (quase sempre proibidos) que teve em vida, tal como a condessa Marie d’Agoult e a princesa Carolyne von Sayn-Wittgenstein. Porém, outros temas mostram-se igualmente essenciais em sua vida e obra, em especial, reflexões de caráter místico e religioso e a perigosa proximidade da humanidade com forças maléficas. Entre as composições de caráter místico, estão – além daquelas notoriamente sacras, como o seu Pai nosso – as meditativas, tais como suas Harmonias poéticas e religiosas, a suíte Árvore de Natal, as Consolações e as Légendes,

verdadeiro oratório pianístico em honra a São Francisco de Assis e São Francisco de Paula. Essa cultura religiosa de Liszt foi vastamente alimentada ao longo das diversas amizades que travou com místicos e religiosos católicos de seu tempo, inclusive o papa Pio XI, de quem foi amigo, quando radicado em Roma. O lado oposto dessa faceta celestial são as peças de natureza diabólica, nas quais reina a figura de Mefistófeles, o famoso satã de Fausto, obra máxima do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. O tema, verdadeira obsessão em Liszt, surge em sua forma mais grandiosa na monumental Sinfonia Fausto, mas de forma igualmente impactante no ciclo de quatro Valsas Mefisto, que compôs para piano solo. Em Liszt, o monstruoso e o sublime ocupavam o mesmo espaço criativo, e não raro ele se dedicava de forma simultânea a projetos conceitualmente antagônicos. Outro testemunho dos encontros e experiências vividas por Liszt está na extensa série de transcrições e paráfrases de obras de outros compositores, todos eles pessoas que conheceu em vida. Numa época em que, para ouvir música, era necessário tocar um instrumento (e não apenas apertar o play de um aparelho elétrico), Liszt não se cansava de fazer arranjos, para piano, de peças de seus colegas, entre os quais se destacam aqueles sobre óperas da Rossini, Verdi e Wagner (de quem também foi amigo e que se tornaria marido de sua filha, Cosima). Entretanto, é com os três volumes de seus Anos de peregrinação que Liszt coroa a simbiose entre experiência de vida e atividade artística. Compostas entre 1848 e 1867, as diversas obras contidas neste ciclo constituem verdadeira crônica sonora nas quais as impressões de viagens a países como Suíça e Itália (que batizam os dois primeiros volumes) ganham corpo em forma de partitura. À época, ovacionado como pianista, ao estreitar a relação entre vida e obra, Liszt confere profunda dimensão emocional à sua música, destacandose entre outros compositores-pianistas de sua geração (à sua altura estão apenas Schumann e Chopin), o que torna a sua obra, ainda hoje, moderna e instigante, seja por sua exuberante sonoridade, seja pelos traços de uma vida intensa que elas evocam.

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LISZT/MENDELSSOHN Dois amigos se encontram virtualmente no palco reprodução

Entre os dias 21 de julho

e 30 de agosto, o Recife homenageará, lado a lado com Liszt, outro dos grandes nomes do Romantismo: Félix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847). Com patrocínio da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e direção artística da pianista Elyanna Caldas, o Festival Liszt/Mendelssohn seguirá a mesma linha do Festival Chopin/Schumann, realizado em 2010, e priorizará concertos e recitais com músicos nascidos ou radicados em Pernambuco, além de convidados com longa presença em palcos recifenses, como o paulistano Gilberto Tinetti. A professora Elyanna Caldas explica que a celebração atrasada de Mendelssohn tem a intenção de compensar a quase ausência de concertos dedicados ao compositor alemão no Recife, no bicentenário de seu nascimento, pois somente após o sucesso do Festival Chopin/Schumann, também patrocinado pela Cepe, foi possível pensar em uma programação que contemplasse à altura o autor das Canções sem palavras – cuja maioria das obras é tão pouco valorizada no Brasil quanto à de Liszt. Acerca da relação entre os quatro compositores em questão, a pianista comenta: “Liszt, Chopin, Schumann e Mendelssohn nasceram e viveram numa época de plena afirmação

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wellington dantas /divulgação

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Embora seu bicentenário tenha ocorrido em 2009, o festival o homenageará, reforçando a proximidade entre os músicos românticos

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Os pianistas Maria Clara Fernandes, Yuri Pingo e Gilberto Tinetti irão compor o sexteto que executará a Hexameron, escrita por Liszt em 1837

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ana lúcia /divulgação

“Liszt e Mendelssohn viveram numa época de plena efervescência do Romantismo” Elyanna Caldas

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e efervescência do Romantismo; foram amigos, respeitavam-se e se admiravam entre si. Liszt foi um grande intérprete e divulgador da música de Chopin. Schumann, a propósito de Chopin, escreveu: ‘Tirem os chapéus, senhores, eis um gênio’. E Mendelssohn foi grande divulgador da obra de vários compositores – principalmente de Bach, esquecido até então”. Para enfatizar essa proximidade entre renomados músicos românticos, a apoteose do Festival Liszt/Mendelssohn caberá à primeira execução do Hexameron (1837), uma das obras homéricas do século 19, fora do Eixo Rio-São Paulo. Encomendado a Franz Liszt pela princesa lombarda Cristina Belgiojoso, o húngaro convidou

outros cinco parceiros de prestígio a escreverem, junto com ele, variações sobre a Marcha dos puritanos, da ópera I puritani de Vincenzo Bellini (1801-1835), e então criou uma introdução, um final e as interligações da peça. Concebido originalmente para seis pianos e estreado por Liszt, Chopin, Carl Czerny, Henri Herz, Johann Peter Pixis e Sigismond Thalberg, o Hexameron só foi tocado no Brasil em três ocasiões, duas em 1979 e uma em 2010. No Teatro da UFPE, dia 26 de agosto, será executada a transcrição para seis pianos e orquestra, feita pelo norte-americano Robert Linn (19251999), com a participação de Maria Clara Fernandes, Gilberto Tinetti, Fernando Müller, José Henrique

Martins, Yuri Pingo e Elyanna Caldas, sob regência de Henrique Gregori. Àqueles que desejam conhecer interpretações memoráveis de Liszt, a professora Elyanna Caldas recomenda gravações de Busoni, Paderewski, Arrau, Richter, Bollet, Alicia de Larrocha, Brendel e, mais recentemente, Martha Argerich, Nelson Freire e Arcadi Volodos. Mas ela avisa: “Acho inadequado afirmar que ‘esse ou aquele é melhor’, em se tratando de arte. Cada um é único na execução de uma determinada obra. Cada artista traduz o que foi escrito pelo compositor de acordo com a sua visão, o seu sentimento, procurando ser fiel ao estilo do autor e à sua época”.

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con especial ti nen te flora pimentel/divulgação

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NA IGREJA Frio serrano de Gravatá acolhe o III Virtuosi

A música clássica no interior pernambucano acorda de sua longa hibernação anual, justo no inverno, graças ao frio, à chuva e às férias de meio de ano, que empurram a classe média e alta do Grande Recife para as localidades de maior altitude no Agreste. Mesmo assim, esse fenômeno fica restrito a apenas duas dessas localidades: Garanhuns e Gravatá, fora as apresentações isoladas da Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música, durante o segundo semestre. Garanhuns encontrava-se isolada nessa paisagem, recebendo o Virtuosi na Serra (cuja oitava edição acontecerá este mês, entre os dias 19 e 23) e a programação elaborada pelo CPM,

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Maestro Rafael Garcia está à frente da curadoria do festival gravataense

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Músico coreano se apresentará em recital com a esposa Jihye Chang

9 victor asuncion

Pianista filipino tornou-se presença constante neste festival

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mas, em 2009, Gravatá tomou a iniciativa de patrocinar diretamente um festival do gênero. Confiando a tarefa à “grife” mais conhecida da música clássica no Estado, surgiu então o Virtuosi em Gravatá, que chega ao terceiro ano com uma duração maior do que sua versão original, realizada no mês de dezembro. Tal conquista doVirtuosi colocou no roteiro dos festivais de inverno do país um município que, a despeito de sua vocação turística, ainda não possui um espaço adequado para receber concertos e que, por isso, teve de recorrer à igreja matriz, dotada de acústica insuficiente – permeável aos ruídos externos –, incômodos bancos de madeira e

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Um dos destaques da terceira edição deste festival é a presença do acordeonista ucraniano Alexander Hrustevich

um coro (área onde se situa o altar) que mal acomoda uma orquestra de cordas e faz as vezes de palco. A lotação de todos os concertos nas edições anteriores e a excelente acolhida aos artistas convidados, porém, revelaram a grande disposição do público local e impeliram a produção a providenciar toldos, telões

e ventiladores no adro da igreja a partir de 2010. E indicam que será inevitável um projeto de reforma na Matriz de Sant’Ana ou, como também se cogita, a criação de uma sala de concertos de grande porte em Gravatá, a qual serviria para outros grandes eventos que a cidade sedia, como os espetáculos de Semana Santa, a Festa da Estação (integrante do Circuito do Frio) e a Festa do Morango. Igual lotação é esperada entre 9 e 17 de julho, quando o III Virtuosi em Gravatá homenageará o bicentenário de nascimento de Franz Liszt com recitais de suas peças mais complexas, a cargo dos pianistas Victor Asuncion, filipino de presença obrigatória do festival, Volodymyr Vynnytsky, da Ucrânia, e Jihye Chang, coreana que fará um segundo recital ao lado do marido, o também conhecido dos gravataenses Benjamin Sung, dedicado aos Grandes estudos de Paganini para violino e piano (apesar do nome do virtuose italiano no título, a obra é de Liszt). Também concorrida promete ser a apresentação de Antonio Meneses com Victor Asuncion, mas o violoncelista recifense certamente dividirá as atenções e as emoções mais interessadas dos ouvintes com o acordeonista ucraniano Alexander Hrustevich, um dos expoentes vivos do instrumento e debutante no Brasil. Hrustevich acumula excelentes críticas de suas transcrições de arranjos de canções folclóricas eslavas e obras orquestrais, porém, segundo nossa reportagem apurou, haverá surpresa sob medida para quem estiver pela Serra das Russas.

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História

AMARO QUINTAS Um entusiasta da tarefa de ensinar Professor e pesquisador, que tem importantes obras de sua autoria agora relançadas, influenciou gerações de estudiosos da história pernambucana TEXTO José Ernani Souto Andrade

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e historiador, que terá agora reeditadas pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) três de suas obras: A Revolução de 1817, O Padre Lopes Gama: um analista político do século passado e O sentido social da Revolução Praieira. A história das regiões e dos estados, enfim, “localizada”, hoje não é mais chamada de “micro” ou “pequena”, pois essa hierarquização, no entender de muitos, estabeleceria uma relação historiográfica discriminatória. Todavia, essas abordagens particulares são importantes para a busca da própria identidade numa sociedade heterogênea, desde que trabalhem, com equilíbrio, o geral e o particular. Nos últimos tempos, as histórias de municípios e de estados vêm sendo adotadas nos currículos escolares, incentivando, assim, a busca das raízes como base para a compreensão do hoje e a ampliação de perspectivas futuras. Valem as máximas “conhece tua aldeia e conhecerás o mundo” e “conhecete a ti mesmo” (nessa questão, tem dado notável contribuição o Centro de História Municipal do Condepe – Fidem). Nesse contexto, a colaboração de Amaro Quintas para a memória de Pernambuco constitui feito louvável.

humanidades

Pernambuco foi centro de irradiação e convergência da formação histórica do Nordeste. Polo administrativo, religioso, econômico e cultural, teve, e tem, papel importante na construção e dinâmica do espaço regional e nacional. Movimentos e personagens de resistências às mais diversas opressões foram decisivos na formação da nacionalidade. Daí sua historiografia ser muito rica e marcante nos planos nacional e internacional. No caso pernambucano, o registro histórico conta com uma plêiade de autores notáveis: Abreu e Lima, Pereira da Costa, Mário Sette, José Antônio Gonsalves e Rostand Paraíso, entre outros. Destaque para o professor Amaro Quintas, como pesquisador

Amaro Quintas assumiu a sala de aula muito jovem e nela permaneceu associando, com maestria, a pesquisa e o ensino. Lecionou em várias instituições particulares, no Ginásio Pernambucano, Escola Normal, Unicap, Fafire e no mestrado de História da UFPE. Destacava-se por estimular nos alunos o gosto pelas ciências da sociedade, sobretudo a História. Gerações de professores e estudiosos de História foram por ele influenciados. Entusiasta da liberdade, dava ênfase à “ardência natural dos pernambucanos” na formação da nacionalidade. Essa sua definição de atitude valeu-lhe arbitrária cassação profissional, em 1965. Proibido de ensinar em qualquer instituição, foi acolhido pelo curso de Direito da Unicap (História do Direito) e pelo Colégio Torres (Sociologia), do professor Manuel Torres. Voltou à UFPE, com a anistia, mas, durante quase 20 anos, o ensino de História foi privado de sua atuação.

Seu A Revolução de 1817 tem origem na tese com a qual concorreu à cátedra de História no Ginásio Pernambucano. O movimento justifica o nome de revolução porque, inserido no quadro mundial – crise do antigo sistema colonial – teve governo provisório (cerca de 70 dias), símbolos definidos e propostas de mudanças significativas; não foi uma mera inconfidência. Ao abordá-lo, Amaro Quintas não se limita à sua cronologia e ao desempenho de seus heróis. Quintas inicia a obra com um panorama do Brasil colonial, analisando o problema da descentralização iniciado com o Sistema das Capitanias, não totalmente resolvido com a centralização de 1549, e gerador do “espírito local” e do persistente regionalismo. Ainda na primeira parte da obra, mostra a evolução do espírito nativista, autonomista de Pernambuco e a resistência às prepotências e desmandos da metrópole e às medidas autoritárias do império sob o comando de Pedro I. Na segunda parte, a Revolução é estudada nas suas condições internas

Quintas começou a dar aulas bem jovem, e lecionou para secundaristas, universitários e menstrandos e externas. Em cinco capítulos, trata da gênese do movimento até as causas da derrocada, passando pelo “sentido da revolução”, pelos “condutores do movimento” e “participação popular”. Apoiado em fontes primárias e secundárias, o autor abre caminhos, já em 1939, para novos estudos sobre o processo de independência, não só do Brasil, mas também das Américas.

PADRE LOPES

Na obra O Padre Lopes Gama: um analista político do século passado, Quintas investe no difícil gênero da biografia sem limitar-se a narrar feitos e qualidades de um personagem. Na verdade, contextualiza-o, no espaço e no tempo, em suas dimensões

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1 sala de aula Entre os temas de seu interesse, Quintas focou, sobretudo, as revoluções do século 19

História

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subjetivas e objetivas. Afinal, o homem é ele e suas circunstâncias. Trata da atuação do padre Carapuceiro como crítico da sociedade – no fim da primeira e início da segunda metade do século 19 – em seus usos e costumes, além dos aspectos políticos e culturais. De fato, o livro nos fornece um quadro real da vida sociopolítica de Pernambuco no período. Num estilo cáustico e irreverente, o padre Gama fustiga aquelas que considera serem as mazelas de sua época, não poupando nem o próprio clero. Frade, depois padre secular, jornalista, professor e político, foi um polêmico por excelência. A reação às suas críticas enriqueceu a história do jornalismo pernambucano. O periódico A Carranca, entre outros, foi inclemente no combate ao padre Carapuceiro. Graças a isso, temos muitas fontes primárias para, inclusive, uma história da caricatura. Waldemar Valente, no livro O Padre Carapuceiro: Críticas de costumes na primeira metade do século XIX (Departamento de Cultura da SEEC, Recife, 1969),

construiu outra importante fonte para conhecimento do biografado e sua época. Vários são os trabalhos que abordam o padre e sua obra, pois, como disse o escritor Gilberto Freyre, no prefácio da obra acima citada, “o padre-mestre Lopes Gama, ao falecer, não se aquietou em figura de museu histórico. Continuou a despertar interesse e admiração em não poucos de seus pósteros, dentre os mais lúcidos e mais sérios”. A reedição do trabalho de Amaro Quintas confirma o pensamento do autor de Casa-grande & senzala.

PRAIEIRA

A primeira impressão do livro foi levada a efeito pela Imprensa Oficial de Pernambuco, atual Cepe, e, desde então, já recebeu várias reedições, o que demonstra o valor histórico da obra. Utilizando como fontes primárias as notícias de jornais, Amaro Quintas reconstrói a época em seus vários matizes. Fatos, atores e ideias propostas, expressas ou subjacentes, são apresentadas e interpretadas sob uma visão

científica e, felizmente, acessível. A Revolução Praieira (1848-49) encerra o “ciclo das revoluções pernambucanas”. Durante muito tempo, foi reduzida a mais uma rixa entre a oligarquia conservadora (guabirus) e a liberal (praieiros). Em 1948, sendo governador de Pernambuco o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, comemorou-se o centenário do movimento e o professor Amaro Quintas consagrou-se com sua abordagem em letra de forma. A composição de forças da Revolução foi corretamente ampliada com o destaque de componentes sociopolíticos como os caixeiros, os comerciantes e pensadores diferenciados (socialistas, republicanos etc.). O antilusitanismo, o problema da propriedade territorial, o desemprego urbano dos “nacionais” e o domínio alternado das oligarquias (“Quem não é Cavalcanti é cavalgado”) compunham um quadro interno explosivo, que atingira seu ápice em 1848. Some-se a tudo isso o espírito quarante-huitard, apogeu das revoluções burguesas no dizer de Eric Hobsbawn. Intelectuais como Antonio Pedro de Figueiredo, Borges da Fonseca, o padre Lopes Gama, Abreu e Lima e Nascimento Feitosa, dentre outros, apesar de algumas ideias discrepantes, preocupam-se com os problemas da época e propõem soluções. A obra do professor Amaro Quintas mostra as contradições dentro do movimento: os escravocratas e donos de terras queriam reformar para conservar; os setores mais radicais, mas não hegemônicos, pretendiam reformas mais profundas. Predomina, como mostra Amaro Quintas, o sentimento federalista e social. Sem as limitações temáticas impostas pelo academicismo esterilizante de muitas instituições, ele consegue manter um padrão científico, porém inteligível para os leigos. As três obras têm, portanto, um sentido social que tornam sua reedição uma contribuição marcante para a historiografia pernambucana.

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GRÉCIA O legado da civilização helênica Além da visão de um mar de azul profundo, passeio pelo país fundador da arte e da filosofia ocidental é um mergulho na história do encontro entre paganismo e cristianismo texto e fotos Josias Teófilo

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É o mar que causa a primeira

forte impressão ao viajante que chega à Grécia. Pelo seu profundo azul-marinho, que se encontra dramaticamente com o litoral montanhoso, acidentado e recortado, e com as milhares de ilhas que pontuam a superfície marítima. Essas são de tamanhos diversos: algumas minúsculas, outras de grande extensão; algumas habitadas, outras inóspitas; poucas visitadas pelas rotas turísticas. O Mar Egeu – que atualmente divide a Grécia e a Turquia, e, em diversos graus, Ocidente e Oriente, cristianismo e islamismo – é a porta de entrada para quem pretende conhecer o que restou da civilização que originou o que conhecemos como mundo

Da Acrópole, é possível avistar toda a cidade, pontuada por sítios arqueológicos e domos das igrejas ortodoxas ocidental. Um lugar que esteve sempre sob influência do oriente próximo, inclusive em épocas nas quais a geopolítica que divide a Terra nas polaridades, tal como a conhecemos hoje, era tênue ou inexistente. No Novo Museu da Acrópole, inaugurado em 2009, em Atenas, vemos a evolução da arte grega,

que passa pelo arcaísmo criado sob influência oriental e chega à época de Péricles, o governante grego que iniciou o Partenon e o período áureo da civilização helênica, da qual participou Fídias, o escultor máximo da antiguidade. Péricles o teve à disposição para pôr em prática o ideal de embelezamento da cidade-estado, Atenas. Fídias, esse mestre da forma, que Rodin identificava como a mais alta expressão do gênio grego, foi o responsável pelo projeto do Partenon e de um sem-número de obras esculturais que influenciaram diretamente tanto a arte romana como o renascimento italiano. Seu nome, entretanto, se não é desconhecido, é,

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3 Página anterior 1 ilhas

as encostas de D Míconos e Patmos, é possível observar a força do mar

Nestas páginas 2 PaRtenon

O templo pagão é dedicado à Atena, deusa que nomeia a cidade

3 teatro de dionísio No espaço, foram encenadas muitas das mais de 123 peças de Sófocles

no mínimo, pouco falado nos nossos dias, muito menos se comparado ao igualmente escultor e arquiteto Michelangelo Buonarroti. Essa sobreposição do gênio renascentista ao mestre da antiguidade (que pode se explicar também pela integridade das peças do italiano, em oposição à precariedade das obras que sobraram do grego) nos faz refletir sobre como o Renascimento ainda está vivo no nosso imaginário coletivo, e como a antiguidade se torna cada vez mais distante. E, além disso, em como a concepção estética do Renascimento contagia nossa visão da antiguidade clássica: constantemente, vemos Botticelli ilustrando a mitologia grega, e Rafael, os filósofos helênicos. São

muitas as camadas que filtram nossa visão dessa época que, entretanto, fala tanto de nós mesmos: “Todos somos gregos”, dizia Shelley. A experiência de entrar em contato direto com as ruínas arquitetônicas e com a atmosfera natural em Atenas, todavia, pode motivar a imaginação a uma descoberta que vai muito além do que se pré-concebe sobre a civilização grega e o helenismo. O papel da imaginação nessa descoberta é preponderante, já que o que sobrou em pé é muito pouco – diferentemente de outras capitais europeias, como Paris ou Roma, onde é possível ver edifícios e templos completos, e a imaginação é desencadeada pela simples observação. Na Acrópole, em Atenas, de onde podemos ver toda a cidade contemporânea pontuada por sítios arqueológicos e pelos domos das igrejas ortodoxas, está o emblemático Partenon, tal como ele ficou depois de ser explodido, em 1687, pelo canhão veneziano que detonou a pólvora turca lá depositada. Esse templo pagão, dedicado à deusa que deu nome à cidade, Atena, tornou-se, sob o período bizantino, uma igreja dedicada à Virgem Maria (Pathena Maria) e, em seguida, até um templo muçulmano, sob o Império Otomano. Foi quando o

Lord Elgin, embaixador britânico nesse império, levou para a Inglaterra as esculturas de Fídias que compunham o friso do Partenon, país onde ainda se encontram. A construção do Novo Museu da Acrópole, que custou 130 milhões de euros, representa antiga reivindicação da Grécia pela devolução dessas obras, já que os ingleses negavam o pedido sob a alegação de que o país não tinha um museu à altura para recebê-las. Bem em frente ao moderníssimo prédio sobre pilotis do Novo Museu da Acrópole, projetado pelo franco-suíço Bernard Tschumi, vemos o Teatro de Dionísio, em que muitas das 123 peças do longevo Sófocles foram vistas, assim como as de Ésquilo e Eurípedes – ali onde se poderia dizer que nasceu o teatro. De novo, a imaginação do viajante se põe a recriar o espaço no qual foram feitas as obras universais da trilogia tebana de Sófocles – Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona –, naquele teatro ao ar livre, que tinha a acústica impecável, e onde os gregos punham seus dilemas coletivos em catarse. O curioso é que esses temas da tragédia grega, nascidos no teatro, suscitaram séculos de discussões não só artísticas, como políticas, científicas e filosóficas. “Toda história ocidental é o eco do grito

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Viagem de Antígona”, frase atribuída a Hegel, mostra o universalismo dessas obras, que desconcertaram Marx por conservarem sua força muito tempo depois de dissolvidos os conflitos econômico-sociais em que foram escritas. E nem é preciso ir tão longe para reconhecer a universalidade do teatro grego: a própria vida de Sócrates incorporou o problema da tragédia – a oposição do indivíduo em relação às leis estabelecidas da coletividade, que se volta contra este, fazendo-o de bode expiatório. O viajante que caminha pelas ruínas antigas pode refletir, a partir dos relatos dos guias ou dos próprios estudos, sobre como, para além da tragédia, da filosofia e dos mitos, a civilização helênica nos leva ao âmago de um outro fenômeno substancial do ocidente: o cristianismo.

OS CRISTÃOS

Foi em Atenas que o apóstolo Paulo discursou para a plateia culta da cidade, incluindo filósofos estoicos e epicuristas, naquele momento que Werner Jaeger considera decisivo para a o futuro do cristianismo como religião mundial. No seu livro Cristianismo primitivo e paideia grega, o humanista alemão nos mostra como

apóstolos e apologistas cristãos se imbuíram da tradição grega, inclusive de paideia (termo que significava, inicialmente, somente a “criação de meninos”, mas que se tornou o ideal da educação grega clássica), para se dirigir aos judeus helenizados e aos pagãos que habitavam a Palestina e o Mediterrâneo. Quando se chega a Corinto, cidade próxima a Atenas, que deu nome ao estilo arquitetônico, deparamo-nos com as origens do cristianismo: foi para a igreja situada nessa cidade, então a capital da Grécia dominada pelo Império Romano, que o apóstolo Paulo endereçou sua famosas Epístolas aos coríntios. Na primeira delas, aparece a célebre mensagem sobre o amor: “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse o amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”. O próprio gênero epistolar utilizado por Paulo se baseia na forma literária grega. O helenismo era recorrente: até as citações do Velho Testamento eram feitas a partir da tradução grega – já que o principal público dessas missões do cristianismo eram os judeus, que naquela época se encontravam altamente helenizados. É ainda em Corinto que São Clemente, então bispo de Roma, se dirige à igreja para sanar disputas de autoridade lá existentes. Ele usa a retórica à maneira antiga e exemplos caros à tradição filosófica grega (como o das partes do corpo que se rebelam,

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4 caverna

egundo a tradição, S nesse lugar o apóstolo Paulo teria escrito o Apocalipse

5 apolo

O Oráculo de Delfos era o principal templo grego dedicado à divindade

6-7 santorini

o oceano, os 75 mil D metros quadrados da ilha surgem na paisagem como uma muralha de topo branco

comprometendo o funcionamento do conjunto, até serem convencidas de que fazem parte de um só corpo), para demonstrar como a igreja depende da união dos seus fiéis. No final da carta, o terceiro papa do catolicismo chega a falar em “Paideia de Deus”, ou “Paideia de Cristo”, como força protetora na vida do cristão. Não é somente na Grécia continental que se pode entrar em contato com as origens do cristianismo. Em Patmos, ilha grega de 34 quilômetros quadrados que fica próxima à Turquia, está a caverna onde, segundo a tradição, o apóstolo João escreveu o Apocalipse, livro bíblico dos mais enigmáticos e controversos, que significa simplesmente “revelação”. A caverna,

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008 kalambaka

s mosteiros de Meteora foram O construídos nas rochas, com alturas entre 305 e 549 metros

009 patmos

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ignificativo conjunto de S monumentos mostra a força da tradição religiosa originária de Bizâncio

É difícil reconhecer, ao longe, que essa faixa branca que domina o alto da ilha é composta de casas e construções, todas uniformemente pintadas na cor que Le Corbusier defendia como revestimento de todas as construções humanas.

INFLUÊNCIA BIZANTINA

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hoje um pequeno templo ortodoxo, onde são realizadas cerimônias da igreja grega, recebe constantemente visitantes, que nela vivem experiências das mais diversas. O próprio lugar parece ter uma “alma” que envolve os que ali estão, pela energia própria ou pelo simbolismo do local. Entretanto, as pessoas que se deixam fotografar ao lado da placa “Cave of Apocalypsis” podem não sentir nada a esse respeito. Mais acima da caverna, existe o mosteiro dedicado a São João, com uma vasta iconografia sobre a vida do

evangelista nas paredes e nos arcos. O mosteiro, em estilo bizantino, construído em 1088, fica no topo da ilha, sendo visto desde quando chegamos de navio. Sua forma exterior se assemelha a um castelo medieval, às fortificações que se preveniam contra os invasores. Do mar, também se observa o predomínio das igrejas na paisagem ilhoa. É assim em Santorini, grande ilha com 75 mil metros quadrados, que aparece como uma muralha, branca no topo, no meio do oceano.

Em Míconos, uma das mais belas e badaladas ilhas do Mar Egeu, além das ortodoxas, existe uma igreja católica bizantina que, mesmo mantendo o rito oriental tradicional, aceita a autoridade do papa – fruto de uma cisão da Igreja Ortodoxa em 1829. Também na Grécia continental, uma série de monumentos mostra a força da tradição religiosa originária de Bizâncio: os mosteiros de Meteora, perto da cidade de Kalambaka, que foram construídos nas rochas, a uma altura entre 305 e 549 metros, com a principal função de protegê-los do invasor otomano. É fascinante a visão dos mosteiros em cima das rochas – a sensação é de algo inacessível e remoto, pertencente a outra era, definitivamente diversa da nossa, na qual tudo parece ser feito para ser acessível e claro. Lá, o espírito monástico, de isolamento e contemplação, encontra sua expressão espacial máxima. Atualmente, os seis mosteiros que sobraram (cinco masculinos e um feminino) são mais acessíveis, alguns dispõem de escadas e estradas para carros – coisa que não existia até

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a década de 1920. Ainda hoje, a comida e outros objetos menores são abastecidos por cordas. Esses mosteiros, erguidos ainda na época do Império Bizantino, herdeiros helenizados e cristãos do Império Romano, são hoje considerados Patrimônio da Humanidade, segundo a Unesco – o que ajuda a atrair uma quantidade grande de turistas, que lotam todos os mosteiros abertos à visitação. Entende-se por que as regras de não se falar com os monges e de não fotografar dentro dos mosteiros são tão bem-divulgadas, apesar de não serem sempre cumpridas dentro daquele espaço originalmente silencioso. Aquele que quiser ter um momento de silêncio contemplativo, em contato com os ícones dourados da ortodoxia ou das flores que adornam os jardins do mosteiro, tem que aproveitar o curto intervalo entre a chegada de um e outro grupo de turistas.

A cidade de Thessaloniki abriga o túmulo do pai de Alexandre, o Grande, ruínas romanas e muralhas bizantinas A segunda maior cidade da Grécia, Thessaloniki, parece fundir muitas das fases aqui descritas: foi uma grande cidade na antiguidade, por seu importante porto. Sob o Império Romano, foi visitada pelo apóstolo Paulo, que a ela dedicou duas de suas epístolas; foi ainda uma importante cidade bizantina, com grande atividade comercial, até ser vendida para Veneza, na decadência do Império. Após 1430, foi ocupada pelos otomanos, e só foi retomada pela Grécia na Guerra dos Balcãs, no começo do século 20.

Em Thessaloniki, as sedimentações da história estão expostas e convivem lado a lado. Essa grande cidade abriga o túmulo do pai de Alexandre, o Grande, as ruínas romanas, as muralhas bizantinas, os fortes venezianos e o que restou de construções otomanas – e ainda tem o mais rico acervo de igrejas ortodoxas, como seus habitantes se orgulham de afirmar. Nossa viagem termina no caminho de volta para Atenas, a eterna capital do mundo grego, onde as constantes manifestações contra as medidas do governo não parecem afetar a vida perene dos museus e sítios arqueológicos. Nessa contemporânea e agitada capital europeia, ainda é possível a reflexão sobre a civilização e sobre o homem como ser histórico. E ali existem grandes pretextos para tanto. Difícil é um indivíduo voltar indiferente àquilo que foi visto, sentido e imaginado.

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Marketing Você ainda vai comprar um livro pelo trailer

1 Romance Entre os VTs nacionais de divulgação, A mulher de vermelho e branco, de Contardo Calligaris, tem sido o mais elogiado

Vídeos feitos para circular na internet e divulgar obras literárias, os book trailers ganham espaço na estratégia de vendas das editoras TEXto Diogo Guedes

reprodução

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Depois do que aconteceu com

a indústria fonográfica no final da década de 1990 e no começo dos anos 2000, os produtores de outras mídias ficaram preocupados com as consequências das novidades tecnológicas. Os veículos de imprensa também precisaram lidar com essas inovações, que popularizaram arquivos em formato PDF, fomentando a leitora virtual de texto. Com as telas e-ink e a simulação bastante aproximada de um papel, a indústria editorial passou, também, a repensar seus produtos e a forma de divulgá-los. Mas, ao contrário das outras cadeias, que sofreram baques maiores, tudo parece estar bem entre negociantes do livro: as empresas registram boas

vendas e o mercado de e-books – a despeito do compartilhamento ilegal – tem crescido significativamente, mostrando-se uma alternativa segura. Nesse contexto, o surgimento dos trailers em vídeo para livros, os book trailers, é natural. Enquanto parte da venda de obras foi se deslocando de livrarias para as lojas online, a internet ganhou importância, também, como veículo de divulgação. Somando-se às formas tradicionais, o novo formato já se tornou uma realidade editorial nos Estados Unidos e tem recebido cada vez mais a atenção no Brasil. A definição do que seriam os book trailers ainda é um pouco dúbia. Em um sentido mais amplo, eles são quaisquer vídeos oficiais de divulgação de uma publicação, incluindo, aí, leituras, meras propagandas televisivas, entrevistas ou depoimentos. Na acepção mais utilizada atualmente, o termo se refere às adaptações para um universo visual, por meio de encenações reais ou animações, basicamente no formato de um trailer de filme, só que com um trecho da narrativa lido ao fundo. Uma das

Os book trailers são adaptações de trechos de obras ficcionais por encenação ou animação, como nos trailers de filmes principais produtoras do gênero e a responsável pela patente da expressão em 2003, Sheila Clover English, descreve-os genericamente como “uma sinopse visual”. Ainda um tema raro na academia, Katherine Fitzpatrick, da Universidade de Sidney, na Austrália, indica que eles servem para vender a paisagem imaginativa da obra, antecipando elementos dela ao mesmo tempo em que a extrapolam. Atualmente, o fenômeno é o tema de uma premiação nos Estados Unidos, a Annual Moby Award, em sua segunda edição. Lá, os principais lançamentos do mercado ganham bem- produzidos trailers – principalmente os de foco mais comercial, como séries de literatura pop, livros infantis e obras

de autoajuda. Os autores de ficção mais respeitados pela crítica e pela academia ainda têm uma atuação tímida nesse campo, mas um dos vídeos campeões de audiência no mundo é o de Vício inerente, de Thomas Pynchon, com cenas em uma cidade litorânea e uma narração em off que ambientam elegantemente a narrativa. Os trailers que mais conseguem conquistar a audiência da internet são os que investem intencionalmente na sua capacidade de se tornar um viral, ou seja, um assunto curioso que as pessoas voluntariamente passam à frente. Abraham Lincoln: vampire hunter (em tradução literal, Abraham Lincoln: caçador de vampiros), por exemplo, como o título sugere, traz uma inusitada cena de batalha entre o histórico presidente americano e um vampiro – o livro foi escrito pelo mesmo autor da recontagem pop Orgulho e preconceito e zumbis, também um sucesso na web.

NACIONAIS

No Brasil, ainda são poucos os investimentos nos book trailers, mas os que foram produzidos já sugerem interesse de autores, editores e público. Duas das principais empresas do setor no país, a Companhia das Letras e a Record, afirmam que a tendência é fazer cada vez mais vídeos para os seus lançamentos. Segundo Juliana Vettore, do departamento de divulgação da Companhia das Letras, a atenção dada aos trailers faz parte de um plano da empresa, que buscava mais canais de interação com o leitor, principalmente por meio da internet. Eles pretendem abarcar cada vez mais publicações. “A ideia é fazermos vídeos de apresentação para todos os lançamentos nacionais de ficção da editora”, conta a assessora de imprensa, ressaltando que algumas obras infantis e de não ficção importantes também devem receber adaptações. O método de produção é simples. Em parceria com pequenas produtoras de vídeos, a empresa chama os autores para ajudarem na definição do roteiro. “Escolhemos trechos fortes e importantes para serem lidos e, a partir daí, pensamos nas imagens que o ilustrarão”, explica Juliana. Normalmente, os escritores

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2 Iniciativa

Fotos: reprodução

Miguel Sanches buscou produtor para o vídeo do seu livro Então você que ser um escritor?

3 Independente

A sordidez das pequenas coisas, dirigido por Frederico Cabral, foi o primeiro trailer da Não Editora

4 michel laub

Para o escritor, uma das vantagens dos trailers é o fato de ficarem disponíveis na web

5 carol bensimon

A segunda edição de Pó de parede, da escritora gaúcha, contou com um trailer de divulgação

Leitura ainda participam lendo a passagem selecionada – além, é claro, de terem a palavra final nas decisões do trailer. Falando de vídeos de divulgação, como um todo, a Record já acumula mais de 150 no seu canal do Youtube. A editora, segundo o diretor de marketing Bruno Zolotar, trabalha com diversas formas de apresentar suas publicações, passando por comerciais tradicionais, entrevistas e leituras, e trazendo até “quase curtas-metragens feitos em cima dos livros”. “Independentemente do formato, todos eles tentam abrir o ‘apetite’ do leitor para uma obra específica”, define Bruno. Para ele, o formato é tanto versátil quanto viável. “Hoje, o Brasil tem mais de 50 milhões de pessoas que usam a internet constantemente, e o book trailer é uma mídia relativamente barata”, argumenta. O estilo dos vídeos varia de acordo com a necessidade, mas eles normalmente têm menos de 3 minutos, buscando atender ao desejo de velocidade dos espectadores da rede.

QUALIDADE

Na verdade, são raros os vídeos que realmente causam algum impacto no espectador. Muitos parecem apenas uma propaganda de qualquer produto, e outros trazem apenas sucessões de fotografias-clichê, com chamadas dramáticas, típicas de trailers cinematográficos hollywoodianos. Algumas produções brasileiras, no entanto, fogem com sofisticação dessa tendência, como provam lançamentos recentes como Então você quer ser um escritor?, de Miguel Sanches Neto, dirigido por Douglas

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Machado, Diário da queda, de Michel Laub, coordenado por Caio Zerbini, e Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli, assinado por Murilo Hauser. No entanto, o trailer mais representativo dessa crescente qualidade é, sem dúvida, A mulher de vermelho e branco, da obra de Contardo Calligaris, criado pela Arara Productions, de Guilherme Pierri, Maximilien Calligaris e Tales Penteado. Sem leitura de trecho do livro e quase nenhuma palavra, o vídeo tenta recriar, apenas com imagens e encenações silenciosas, o ambiente, o ritmo e o clima da narrativa. Maximilien, filho de Contardo, conta que, assim que leu o romance, pensou em produzir um filme para

divulgação. “Foquei-me na atmosfera e no gênero do romance mais do que em detalhes específicos da sua narrativa, sempre com o cuidado de não revelar muito mais do que as primeiras informações que o leitor recebe antes de ler o livro”, aponta o produtor. Ele diz que teve contato com o formato quando fazia mestrado em Novas Mídias, em Nova York. “Acho que Contardo gostou bastante, e falou-se do trailer no Twitter dele. Pelo feedback da Companhia das Letras, e se consideramos o número de hits no Youtube, eu diria que, sim, o vídeo teve boa recepção”, conclui Maximilien. Um dos que gostaram do resultado foi o escritor Michel Laub. Seu elogiado Diário da queda também foi

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bel pedrosa/divulgação

dia apenas isso bastou –, é preciso trabalhar o livro, criar espaços de reflexão sobre ele”, defende. Para fazer o trailer, Miguel escolheu um trecho da obra e escreveu um roteiro, chamando depois o cineasta Douglas Machado, da Trinca Filmes, para a direção. O resultado, que contou com sua narração, o agradou. “As imagens captam de forma nervosa um ato tão comum entre os leitores: buscar um livro nas livrarias. A música é perfeita. E há uma parte publicitária que faz o reclame do livro”, observa.

INDEPENDENTES

ieve holthausen/divulgação

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Para além das grandes editoras, o mercado independente e as casas menores também dão atenção ao formato, tentando tornar a internet uma aliada na difícil competição com os livros de nomes consagrados e best sellers. Definindo-se como uma oposição às práticas convencionais do mercado, a gaúcha Não Editora já conta atualmente com belos trailers, dirigidos por Frederico Cabral, para duas de suas publicações. O primeiro foi A sordidez das

“O Brasil tem 50 milhões de pessoas que usam a internet e o book trailer é uma mídia barata” 5

transformado em trailer neste ano, a partir de uma sugestão da editora. “Dei algumas ideias, como o uso de fotos antigas minhas. Mas a concepção e o resultado em geral se devem à equipe que fez o filme”, expõe, satisfeito com o vídeo. Para ele, além da vantagem de serem baratas, essas produções ajudam a despertar a curiosidade em futuros leitores. Miguel Sanches Neto foi atrás de construir seu book trailer. Atuante nas redes sociais e responsável por um blog, viu na criação do vídeo uma oportunidade para divulgar melhor o recém-lançado Então você quer ser um escritor?. Para ele, a postura do autor hoje em dia é outra. “Não basta apenas escrever – se é que um

Bruno Zolotar pequenas coisas, de Alessandro Garcia. “Nesse, eu tive a ideia de sair pela noite, buscar lugares que tivessem a ver com as histórias dele e filmar tudo, editar com uma locução feita por um ator de algum trecho do livro. Ele falou: ‘Tipo um book trailer?’, e eu concordei, embora nunca tivesse visto um”, relembra o diretor. Pó de parede, de Carol Bensimon, foi adaptado na sequência, depois que a autora gostou do resultado do primeiro vídeo. “Não me lembro exatamente de quem partiu a ideia, mas sei que logo todos estavam de acordo: eu, os editores e o diretor. Foi curioso, porque meu livro é de 2008, e lançamos o trailer agora, em 2011”, explica a escritora gaúcha. “Digamos que é

para comemorar a segunda edição.” Segundo ela, depois de uma reunião, para “afinar as visões”, Frederico coordenou a filmagem sozinho, com apenas algumas trocas de referências – incluindo a indicação da música que toca ao fundo – pela internet. Uma das preocupações do diretor era ser fiel ao original: “O trailer deve seguir o estilo e o clima do livro e as imagens que ele evoca. Tanto A sordidez como Pó de parede são obras sensoriais, embora de maneiras muito distintas”. Samir Machado, um dos “não editores”, defende que um trailer não deve se restringir à encenação de uma passagem, dando prioridade à imagem, mas, sim, destacar a narrativa original – por isso, ele explica que não é ainda uma prioridade da casa fazer vídeos para todos os seus lançamentos. Para ele, o nível da produção ainda é baixo. “Para ser bem sincero, e correndo o risco de parecer arrogante, a maior parte dos book trailers brasileiros, que vi, me deixavam constrangido ou entediado”, polemiza. Na verdade, mais problemática que o questionamento da qualidade dos trabalhos é a impossibilidade de se medir seus resultados efetivos. Mesmo em campeões de visualizações, seria um completo chute tentar dizer que parte das vendas acontece por conta deles – e, com nisso, editores, autores acadêmicos, escritores e produtores concordam. Para Samir, eles são úteis quando apresentam as obras de uma nova forma para um público, Michel Laub, além de ressaltar o pequeno custo de produção, vê na perenidade do resultado uma vantagem em relação à publicidade impressa – visão compartilhada por Carol. Assim, os vídeos terminam sendo uma introdução a quem procura informações iniciais na internet. Já Bruno Zolotar, da Record, ressalta que a finalização de um vídeo não é a etapa final de divulgação: é preciso ter um mecanismo eficiente para anunciá-lo em redes sociais. Mas anuncia: “É uma ferramenta que tende a crescer”. Então, antes de desprezá-los como modismo ou mero fenômeno publicitário, tome cuidado: você possivelmente já comprou um livro pela capa, e pode acabar comprando um deles pelo trailer.

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IMPRENSA O “blogueiro” do século 19

O livro Angelo Agostini – A imprensa

Obra revela a trajetória do jornalista Angelo Agostini e mostra a evolução da mídia impressa no Brasil imperial texto Danielle Romani

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ilustrada da corte à capital federal, 1864-1910 (Devir Livraria – 256 páginas – R$ 39,50) pode soar ultrapassado, à primeira vista, em tempos de convergência de mídias, e de discussões em torno de qual será o futuro dos jornais impressos e da velocidade da web na veiculação de notícias online. Mas quem se dedicar à leitura de suas páginas vai rapidamente mudar de ideia, e perceber que o trabalho em mãos é uma importante contribuição para entendermos não apenas o papel de um dos homens que mais se empenharam na consolidação da imprensa livre brasileira – o italiano Agostini -, como para compreender de que forma a mídia impressa nacional deu seus primeiros passos. Escrito pelo professor de Jornalismo, Gilberto Maringoni, que é também doutor em História Social, o livro ajuda a conhecer a figura de Angelo Agostini (1843-1910), e também a acompanhar a evolução da imprensa no Brasil imperial do século 19, época em que sequer se imaginava a possibilidade de uma transmissão radiofônica, que só viria acontecer décadas depois, e na qual pareceria loucura falar na formação de uma aldeia global. Maringoni, entretanto, consegue situar com pertinência o papel que Agostini ocupou, e chega a afirmar que o italiano – com as devidas proporções – foi uma espécie de “blogueiro” do século 19, devido à rapidez com que difundia e acompanhava os principais fatos da época. Além de ressaltar a sua versatilidade de atuar em várias frentes. O jornalista Joseph Mill, contemporâneo de Agostini, o descreve como o mais importante artista gráfico do Brasil da segunda metade do século 19. Mas, no livro, Maringoni mostra que ele foi além. “Entre 1864 e 1910 ele desenhou 3,4 mil páginas, em dezenas de publicações. Foi ao mesmo tempo caricaturista, pintor, um dos inventores das histórias em quadrinhos, jornalista, repórter, editor e militante político... Ele, seguramente, produziu entre nós a mais extensa representação gráfica de uma sociedade que sai da monarquia e do regime de trabalho servil, rumo a se tornar uma república elitista que teima em empurrar para a frente suas contradições profundas”, escreveu o autor.

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INDICAÇÕES 1 PERIÓDICO Fundada por Agostini, a Revista Illustrada deu fundamental contribuição à crítica social

CABRIÃO

O livro busca mapear a passagem da imprensa brasileira artesanal para a industrial. E, também, mostrar como o Brasil foi um dos últimos países a formar uma imprensa livre no continente americano. Enquanto ela surge no Peru em 1538, no México, em 1539, e nas colônias inglesas por volta de 1650, as primeiras publicações aportaram no Brasil apenas após a chegada da família real, em 1808. Antes disso, a metrópole havia reprimido qualquer tentativa de aquisição e funcionamento de maquinário de impressão por aqui. Somente na segunda metade do século 19 o setor ganhou impulso e as competências locais puderam se revelar. Foi justamente nessa época – em 1859 – que Agostini chegou à cidade de São Paulo. Algum tempo depois, em 1864, o italiano de Piemonte, unido a um grupo de amigos, começou a fazer “barulho”, assinando as caricaturas do jornal batizado de Diabo Coxo. Mas foi com o Cabrião, lançado em setembro de 1866, que o nome de Agostini passou a ser reconhecido. Foi nesse jornal que o artista publicou a primeira charge a ser alvo de um processo no Brasil. Nela, mostrava homens poderosos confraternizando com mortos e desrespeitava, segundo os críticos, a paz dos “que já se foram”. Um atentado aos costumes dos conservadores. Agostini deu, também, uma imensa contribuição à cobertura da Guerra do Paraguai e à defesa da abolição da escravatura. No

caso da guerra, ele defendeu o governo brasileiro. Mas, crítico, não se deteve nisso: diversas vezes questionou o envio de tropas, nitidamente despreparadas, e a manutenção de um conflito caro e longo demais. Em 1867, ao se transferir para o Rio de Janeiro, nova reviravolta e mais prestígio profissional. Na então capital federal, ele iniciou a produção dos quadrinhos que redundariam na primeira saga do gênero produzida no Brasil, As aventuras de Nho Quim. No Rio, também, fundou a Revista Illustrada, que foi um dos mais importantes periódicos nacionais e um dos mais ferrenhos críticos à escravatura. Em 1886, o impresso veiculou uma série de desenhos mostrando os horrores do trabalho escravo. Em 1888, Agostini, que era casado, engravidou uma aluna e foi obrigado a se refugiar na Europa. Ao retornar, em 1894, fundou a revista Don Quixote, que, como todas as outras que capitaneou, tinha como ponto forte as matérias gráficas. Mas, àquela altura, com o advento da fotografia, e com as novas técnicas de impressão, esse gênero de jornalismo já se encontrava ultrapassado. Amargo e ressentido, no final da vida, foi acusado de conservador e racista. Ironicamente, como milhares de brasileiros que ajudaram a acabar com a escravidão, expunha ideias preconceituosas contra os negros livres, que considerava responsáveis pela decadência da sociedade brasileira. Agostini foi um homem que revolucionou uma época, sendo depois “atropelado” pela rapidez das mudanças do seu próprio tempo.

ENSAIO

REGINA MACHADO A voz na canção popular brasileira Ateliê Editorial

ROMANCE

VICTOR HUGO Notre-Dame de Paris Estação Liberdade

A obra mitiga a ausência de estudos sobre a voz e sobre o canto popular no Brasil. Regina Machado estudou as vozes dos grupos paulistanos dos anos 1980, conhecidos como “vanguarda paulista”. Segundo Luiz Tatit, que assina o prefácio, o trabalho investiga o papel do canto na formação de todo o repertório popular midiático.

Essa tradução do clássico romance de Victor Hugo, de 1831, traz à imaginação do leitor um dos grandes personagens da literatura francesa: o Corcunda de Notre-Dame. O herói grotesco, que já virou até animação, seria um reflexo monstruoso da sociedade europeia do século 15. As contradições do período se manifestam no quasímodo que é, ao mesmo tempo, risível e temível.

DIÁRIO

ANÁLISE

ELIO VITTORINI Sardenha como uma infância Cosac Naify

Na Itália fascista, Elio Vittorini, aos 24 anos, segue para uma viagem pela Sardenha com o objetivo de escrever um diário que lhe garanta o prêmio da revista Italia Letteraria. Esses fragmentos deram origem ao livro, cujo foco não está nas questões históricas e monumentais da ilha, mas nas figuras humanas, nas paisagens e nas emoções do autor.

DANIEL PIZA 2001-2010 – Dez anos que encolheram o mundo LeYa

O livro propõe uma reflexão sobre os fatos que marcaram os últimos 10 anos. A primeira parte, vinculada à política e à economia, começa com o 11 de Setembro e chega até Barack Obama. Os outros capítulos se dedicam à cultura, ciência, tecnologia, ao comportamento, meio ambiente e aos esportes.

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LADJANE BANDEIRA Um profundo desejo de permanência Artista falecida há 12 anos dedicou a última década de vida à produção de obra que fosse capaz de expressar sua agudeza mental

1 metamorfose nº11 Composições de figuras femininas e elementos da natureza caracterizam a série colorida ladjane 2 Antes de optar pela reclusão, a artista foi atuante crítica cultural na imprensa pernambucana

TEXto Adriana Dória Matos

O que é feito de nós quando já não

estamos por aqui? Muitos banem o assunto. Alguns, especialmente quando o desaparecimento se torna tangível, cogitam a respeito. Poucos, no entanto, dedicam-se a essa ideia de modo a considerar que não há distinção entre vida e morte, ou, de forma radical, que, mortos, estamos para sempre vivos. Embora não possamos ser taxativos, esta é uma interpretação razoável do impulso artístico de Ladjane Bandeira (19271999), sobretudo quando observamos seu comportamento na última década de vida, manifestado neste depoimento, de 1989: “Minha filosofia de vida? Tornar a solidão cuidadosamente construída, cada vez mais congnoscente para conhecer-me cada vez melhor e projetar-me inteiramente em minha arte. Só me conhecendo bem os outros me poderão conhecer um pouco, e assim me terei comunicado, mesmo depois da morte, através dos meus trabalhos”. Essa artista pernambucana de Nazaré da Mata – que viveu dos 21 anos até sua morte no Recife – levou tão a sério a ideia de construir uma obra perene, que, para isso, abriu mão da convivência real com as pessoas, canalizando sua energia para o trabalho criativo, resultasse ele em desenhos e pinturas, poemas e peças teatrais ou em anotações e aforismos. De uma profissional que participava da vida artística pela crítica, exercida no jornalismo impresso, Ladjane passou, aos poucos, a uma reclusa, considerada excêntrica e ininteligível. Embora esse comportamento tenha

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se acirrado do final dos anos 1980 até 1999, ele já se anunciara antes. Em 1979, ela registrou em seu diário: “É feliz quem tem a sorte de viver só. Quando se tem uma vida inteira cognoscente, plena, criativa, povoada de ideias, não se sente necessidade de presença física, e sim do pensamento das pessoas. Esse eu encontro nos livros, na música, na filosofia”. Somente com tal demonstração de força interior, apontada nos escritos de Ladjane, um artista pudesse ignorar as exigências do circuito de arte, que forçam o autor a agir como produtor e divulgador da própria obra, fazendose afirmar num ambiente cada vez mais competitivo, com demandas muitas vezes artificiais, que não dizem

respeito às necessidades criativas daqueles que acabam se adaptando forçadamente. Ladjane abandonou quaisquer motivações provenientes da resposta “de público”, fosse este um crítico, um leitor, um contemplador, um comprador. Ela não estava para negociar com ninguém que não fosse ela mesma e seu complexo mundo interior. Para a medicina, ela era um caso de esquizofrenia, que podia ser tratado mediante o uso de medicações. Mas o que significava ser “tratada”? Voltar ao que para ela era a imolação do convívio social? Não havia interesse para a artista, o importante era construir uma obra, original, intensa, relevante. Todo o seu esforço poderia ter-se extinguido com ela, como aconteceu a tantos. Afinal, quantos não estão submersos para sempre? Mas, nessa história insólita, tomou corpo um insuspeito personagem, a sobrinha de Ladjane Bandeira, filha de um de seus irmãos. Márcia de Miranda Lyra, que, como ela mesma descreve, não tinha nenhuma relação com arte, no seu sentido estrito, tampouco privava da convivência com a tia. Mas, desde que, em 2004, teve acesso ao seu espólio, seus interesses deram uma guinada. “Quando me dei conta da relevância da obra de Ladjane, passei dois anos chorando com a possibilidade de ela desaparecer.” Foi então que a sobrinha deu início a uma pesquisa pelo reconhecimento da herança recebida. A primeira materialização do empenho da cientista da computação,

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3 Cosmobiótica III Desenho em bico de pena é um dos quatro que representam cabeças na série Transformação da natureza em conhecimento

que se tornou curadora e mantenedora da obra dessa artista peculiar, é o livro-catálogo Biopaisagem de Ladjane Bandeira – A transformação da natureza em conhecimento, recentemente lançado, distribuído para instituições de 14 países (a edição recebeu traduções para o inglês, espanhol e francês) e adquirível em contato direto com Márcia Lyra (fone: 81-3226.0593)

TELÚRICA E reflexiva

Ainda cabem estudos críticos sobre o trabalho de Ladjane Bandeira, mas para isso será necessário mais que a publicação dessa obra, cuja importância reside em mostrar a intensidade temática e a qualidade técnica do trabalho da artista, sobretudo em artes plásticas. “Ladjane não faz arte, faz pesquisas”, afirma Márcia Lyra, no sentido de não restringir seu acervo a um locus específico. Embora sua virtude de pesquisadora esteja evidente no livro, grandes artistas foram pesquisadores e,

Visuais ainda assim, encontraram legitimação no campo artístico e não entre os cientistas naturais, por exemplo. Se a linguagem escolhida por Ladjane foi a arte, que nela ela seja inserida parece o caminho natural e exato. “Seu acervo é vasto e ilustra a diversidade de interesses que marcou a existência e a atuação da artista ao longo de sua vida. Nosso esforço aqui é o de divulgar um de seus mais fascinantes trabalhos estéticos, uma obra de intenso magnetismo e potencialidades múltiplas, intitulada Biopaisagem, projeto no qual Ladjane buscou expressar plasticamente suas ideias filosófico-científicas, especialmente sobre os mistérios da Natureza Humana”, escreve Márcia Lyra, no prefácio ao livro. Além dela, participa da publicação a professora da pósgraduação em Letras da UFPE, Ermelinda Ferreira, que foi uma das pessoas que, no âmbito acadêmico, acolheram e apoiaram o projeto da herdeira. O olhar de Ermelinda sobre o trabalho de Ladjane observa aspectos de gênero, tanto quando analisa a série de pinturas coloridas A metamorfose humano-vegetal (Suíte

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Livro reúne duas séries, uma colorida e outra em preto e branco, criadas a partir de especulações filosóficas

colorida), quanto no comentário acerca dos desenhos em bico de pena de Transformação da natureza em conhecimento (Suíte em preto e branco). No primeiro conjunto, ela encontra uma representação que “parece evocar o estereótipo ecofeminista da mulher-deusa”. No segundo, ela encontra aproximações estéticas entre os desenhos de Ladjane e as composições maneiristas de Giuseppe Arcimboldo, relidas em estilo ultrafuturista pelo suíço H. R. Giger, ao mesmo tempo em que aponta na série a “temática da autocriação ou da gestação artificial do humano”. Deter-se em Biopaisagem é também perceber as complexas relações engendradas nessa obra entre o

conhecimento filosófico-científico e o esotérico-intuitivo, algumas vezes de caráter contemplativo e religioso. Todos esses elementos perpassam a maior parte das 83 obras reproduzidas e evidenciam a intensidade do pensamento de Ladjane Bandeira, que se permitiu a independência. Ainda tomando as palavras da própria artista, para entendê-la, lemos o que diz a respeito do processo criativo: “A liberdade excessiva estimula o visionarismo. Estimula e deve, às vezes, mais que estimular. Até hoje, muitas das obras literárias mais permanentes são aquelas que se apresentam com um conteúdo aparentemente visionário. Por trás do visionarismo há um sentido profundo e sempre atual de interpretação para os que saibam interpretá-lo. A arte que se prende apenas ao dia a dia passa com a transitoriedade maior do cotidiano. O visionarismo culto, com uma intenção determinada, transcende essa transitoriedade absoluta e se projeta através do tempo, às vezes até a sua própria revelia”. Que Ladjane viva, então.

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DESENHO Espaços em branco não são permitidos

Dupla de ilustradores do Mulheres Barbadas se diverte revestindo qualquer superfície de imagens, em preto e branco texto Gabriela Alcântara

Com o acordo de só pararem o trabalho quando preencherem todo o espaço – ou quando estiverem cansados demais para continuar, o que vier primeiro –, os ilustradores Henrique Lima (Gringo) e Julio Zukerman fazem de suas peças objetos criativos e divertidos: de paredes a objetos, a variedade é palavra-chave. “Essa

ricardo moura

Monstrinhos, elementos da cultura skatista, quadrinhos, bonecos de barbas grandes e uma quantidade gigantesca de informações. Ao entrar no universo dos rapazes do Mulheres Barbadas, prepare-se: ou você ficará tonto com a quantidade de desenhos, ou observará os painéis, quadros e paredes por horas, sempre descobrindo algo de novo.

diversidade de suportes é algo que sempre nos interessa, pois uma hora nós cansamos de trabalhar com paredes”, afirma Julio. Uma das características da dupla é o compartilhamento de seus trabalhos. No site do Mulheres Barbadas – que é tão cheio de informações quanto seus desenhos –, o usuário pode fazer o download das ilustrações no formato digital, em alta qualidade. Essa iniciativa surgiu porque, segundo Gringo, não existe preocupação com o uso do que é feito pela dupla, desde que seja sem fins lucrativos. Pelo contrário, Julio afirma que a ideia surgiu ainda no início do Mulheres, quando eles acreditavam que, se o trabalho fosse colocado online num tamanho pequeno, e o usuário não pudesse ver os detalhes de cada desenho, ele não seria tão interessante. Utilizando nanquim, pincéis japoneses e poscas (canetas que cobrem de tecidos a paredes), e ilustrando desde cadeiras até um minicooper, um aspecto nunca muda: os desenhos são sempre feitos em preto e branco. O importante aqui não é a possibilidade da experimentação de cores, e, sim, os traços que podem ser feitos. O imaginário da dupla é rico, e as ilustrações são compostas de personagens e objetos que podem ser associados a imagens de sonhos e de histórias em quadrinhos. A criatividade e a brincadeira estão presentes, também, no nome: ao serem indagados do significado, os rapazes, dependendo do humor, podem dar respostas diferentes. Julio fica com as respostas mais elaboradas e fantasiosas, enquanto Gringo prefere confundir: “A que eu mais gosto de falar é a que é Mulheres Barbadas porque a gente é mulher e tem barba. Aí a pessoa fica olhando com uma cara meio ‘quê?’, e é mais simples assim...” Inventivos e detalhistas, Gringo e Julio sempre observam seus desenhos depois que terminam. Eles buscam espaços em branco, que serão preenchidos, seja com os macarrões ou com panos de fundo – tudo que é ilustrado acontece por cima de um pano de fundo –, o que importa é incluir informações em todo o objeto, mesmo que leve dias, como o projeto de pintar a fachada do Museu Murillo La Greca, no Recife, em que o trabalho dos rapazes esteve exposto recentemente.

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Bondes e trilhos

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Alexandre Furtado, autor do livro De ruas e inti-nerários (Cepe Editora), “revela que, apesar de jovem, cultiva grande nostalgia de um Recife que não chegou a conhecer, como a época dos bondes e trilhos” (suplemento Pernambuco, março/2011). Eu, apesar de velho, morro também de inveja não de quem alcançou os bondes, que isso também alcancei, mas de quem viveu no tempo da maxambomba. Lembro até a quadrinha, por certo lida no Maxambombas e maracatus de Mário Sette: “Subi na bomba/Chupei pitomba/Atirei o caroço/Na maxambomba”. Perante estes, me curvo, se é que inda existe algum. Já em relação aos que não viram os bondes, reino soberano. Tenho até histórias a contar, aproveitando a deixa para outros bichos de trilhos que desapareceram, como os trens da Great Western e as marias-fumaças que carregavam canas pelos engenhos: “Eu vi/O vapor apitá/

Que vinha/De Santa Luzia/A carga/ Que ele trazia/Era grã-fina e cristá”, samba-de-matuto cantado por Seu Crescêncio, barraqueiro do Engenho Piedade, perto do Gaipió, Ipojuca. Grãfina e cristá (cristal) tipos de açúcar. Os vagões da máquina da Usina Ipojuca só carregavam cana. Eu era doido para andar de trole, os homens empurrando na vara, mas mamãe nunca deixou. Também nunca andei de carro de linha (não consta no Aurélio nem no Houaiss) de que ouvia falar, uma espécie de trole com capota e movido a motor. Parece que a estação de Santa Luzia era do trem de Barreiros, onde ficava a Usina Central Barreiros, a maior do litoral sul, páreo para a Catende, Palmares. Acho que era nessa linha de trem que ficava a Usina Mercês, visitada pelo Imperador Pedro II, diz a lenda, única vez que o território ipojucano foi pisado por um imperador. Nessa linha de Barreiros ou Palmares (parece que Barreiros era um

ramal) ia-se também para Garanhuns e Alagoas, havendo uma bifurcação em Glicério, onde o poeta Ascenso Ferreira, palmarense, parava para tomar sopa. E eu paro para contar a história, que os mais novos talvez não conheçam, dando ensejo a Joca Souza Leão de contá-la melhor. Na parada de Glicério o trem demorava um pouco mais para a troca de passageiros e bagagem, indo uns para Maceió e outros para Garanhuns ou Palmares como era o caso de Ascenso. Ascenso se encabulava porque a sopa servida num daqueles hoteizinhos, que viviam desses passageiros em trânsito, vinha quente demais. Um dia, o trem apitou, “o trem apitou/pediu mala/ cadê Ascenso Ferreira/que não fala”, todo mundo saiu correndo menos Ascenso. O garçom veio avisá-lo de que o trem já tinha apitado. “Vou ficar”. Tomou a sopa, pediu outra, o preço era por cabeça, e mais outra e mais outra

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REPRODUÇÃO

1 Carro-de-linha

José Cláudio. Xilogravura da capa do álbum Catente, 19x19cm, 1971

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enquanto tivesse sopa. No fim, o dono disse: “Não precisa pagar nada. Eu só queria que amanhã o senhor fosse tomar sopa no hotel ali defronte”. Minha primeira história de trilhos é emocionante. Quer dizer, foi, para mim. Eu devia ter seis anos (1938) e nunca tinha saído de Ipojuca com exceção de uma ou outra vez perdida que devia ter vindo ao Recife. E agora, ainda por cima, de mudança, para Garanhuns, onde minha mãe ia passar seis meses, por problema de saúde, erro médico, aliás. Não deu em nada mas para nós foi ótimo. Saímos ainda noite de Ipojuca no carro de Dudu, um carrão velho de capota de pano, além de minha mãe e minha irmã Nena, ainda não nascidas três outras, minha tia Maria José, meu avô paterno Joaquim Pedro da Silva, mais conhecido como Pedro Taveira, por ter sido morador do Engenho Taveira, Cabo de Santo Agostinho, e meu pai

que ia nos levando, Amaro Joaquim da Silva. Pela primeira vez vi Vovô Pedro calçado de sapatos, um par de botinas reiunas pretas novas, com uma alcinha de couro atrás na boca para ajudar a calçar. Como papai não podia ficar muito tempo longe da loja, Vovô Pedro ia como o homem da casa. Ainda noite chegamos à estação da Ilha, Cabo, e descarregamos a bagagem à luz de candeeiro. Às cinco pegamos o trem. Ajudado por Lourdinha, de Quipapá, mulher de Roberto Nóbrega, lembro de muitas estações sem puxar demais pelo juízo: Maraial, São Benedito, Jaqueira, Gameleira, Glicério, Cuiambuca, Canhotinho de onde Clóvis Cavalcanti vez por outra me traz oiticoró e tantas outras estações. A gente conversando no trem disparado, as paisagens passando, sem medo de catabi, ou almoçando no carro-restaurante, até hoje trem para mim é a melhor forma de viajar.

Os espaços urbanos de Garanhuns pareciam enormes, a praça, a calçada do Santa Sofia, a feira, o Parque dos Eucaliptos onde a ema, que eu só tinha visto nos livros de Felisberto, passou o pescoço por cima da cerca e tirou o chapéu de papai (homem feito, voltei ao Parque dos Eucaliptos e só encontrei um chão esturricado e mais nada). Também a primeira vez que vi cinema, um filme de desenho animado, passando a haver uma cumplicidade entre mim e mamãe ao ouvirmos certo tipo de música no rádio, até mesmo depois na volta a Ipojuca, de chamá-la de “música de desenho animado”, como muitos chamavam música sinfônica de “música de filme de terror”. Foi em Garanhuns a primeira vez que senti frio: de lã, só conhecia novelo, vendido na loja para fazer bordado. As aventuras tranviárias ficam para a próxima vez.

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HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Sonoras

MERCADO A fantástica fábrica de estrelas mirins

Indústria fonográfica alimenta-se da ansiedade de pais em revelar o talento de seus filhos, gerando fenômenos como Justin Bieber e Rebecca Black TEXTO Débora Nascimento

Um videoclipe com uma adolescente

bonitinha cantando e dançando uma música pop de refrão grudento é postado no YouTube. Dias depois, alcança milhares de acessos. Em poucos meses, chega a centenas de milhões. A imprensa publica matérias, os blogs e as redes sociais comentam, surgem outros vídeos fazendo paródia, e aqueles que

seriam “os 15 minutos” de fama de uma aspirante à artista se estendem pelo tempo necessário que poderá levá-la a um contrato com uma gravadora, rendendo à teenager uma promissora carreira no meio artístico. Essa é – até agora - a curta trajetória de Rebecca Black, garota de 13 anos que virou febre com sua pegajosa

Friday, música do vídeo que estava, em junho, perto da casa dos 200 milhões de replays no YouTube. Mas sua história não é inédita; repete a do jovem canadense Justin Bieber, que, com a mesma idade, começou a ganhar fama ao inserir na internet vídeos caseiros de sua performance musical. Agora, poucos anos após o estouro do cantor do refrão “Baby, baby, baby, oh!”, Rebecca aparece. Mas esses jovens também apresentam diferenças. Enquanto Bieber veio da classe baixa e levou o dobro do tempo para chegar a ser o número um do YouTube, com 600 milhões de views de Baby, já sendo um astro quando lançou esse vídeo, Rebecca Black, que alcançou os 100 do total de 200 milhões de acessos em apenas um mês, não tinha um compacto lançado e nunca fez um show na vida. Segundo a patricinha, que mora numa das regiões mais abastadas da Califórnia (EUA), o

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Empresas como essa estão investindo em crianças e adolescentes na esperança de emplacar algum deles, como aconteceu com Rebecca Black - a revista Billboard estima que a cantora fature US$ 27 mil por semana com publicidade, vendas no iTunes, ringtones, entre outros. Só com as visualizações no YouTube, a menina angariou mais de U$ 100 mil (cerca de R$ 160 mil) – atualmente, com a queda das vendas de CDs e DVDs na indústria fonográfica, o site de vídeos é a fonte mais segura de retorno financeiro para gravadoras e selos independentes. Em meados de junho, no entanto, o vídeo de Friday foi retirado do site. A cantora e sua mãe, Georgina Marquez Kelly, acusaram a empresa que produziu o hit de explorar sua imagem e de descumprir acordos e usufruir da fama da menina. A organização também foi acusada de obter lucros com a canção no YouTube, no iTunes e na Amazon, criar um ringtone sem a devida permissão, além de

“A Ark Music Factory proporciona aos jovens talentos as ferramentas para se tornar uma estrela pop”, garante o site da produtora vídeo foi feito “apenas por diversão”, após ganhar da mãe U$ 4 mil (cerca de R$ 6,4 mil) para gravar a canção na Ark Music Factory, produtora voltada para “jovens talentos musicais”. A empresa é comandada por Patrice Wilson e Clarence Jey, produtores que compõem músicas para serem gravadas por “baixinhos”, com melodias grudentas e muito retoque de Auto-Tune (programa de computador que “aprimora” o canto). Os empresários produzem os vídeos, as fotos, a consultoria de imagem e a assessoria de imprensa de sua clientela. “Ark Music Factory é uma plataforma online que ajuda jovens artistas a alcançar seus sonhos, e aflorar seus talentos. Das músicas, composições e uso da marca à produção audiovisual certos, a Ark Music Factory proporciona aos jovens talentos todas as ferramentas para que se tornem estrelas pop”, dizem no site.

“vender” a imagem da garota como sua artista exclusiva. Só então, o nome de Rebecca foi retirado do site oficial da Ark Music Factory. Agora, a garota está gravando canções no estúdio de Charlton Pettus, produtor musical que já trabalhou com jovens artistas como Hilary Duff e Clay Aiken. Em entrevista à Associated Press, Georgina afirmou que Rebecca estava despreparada para a incrível exposição: “Depois que percebi que a minha filha ia ser uma celebridade, sabia que este seria um momento em que eu precisava focar completamente nela 100% do tempo. Tenho lido e visto as histórias infelizes de tantas crianças no centro das atenções”. Esse depoimento revela a ponta de um terrível iceberg. Por trás de “descobertas”, como as de Justin Bieber e Rebecca Black, oculta-se um fenômeno não tão recente na cultura de massa, principalmente na americana: pais ansiosos por verem seus

filhos estampando capas de revistas, concedendo entrevistas na TV, tendo seus supostos talentos reconhecidos, virando celebridades a qualquer preço. O caso mais famoso deles vem dos Estados Unidos e atende pelo título de The Jackson Five. O grupo surgiu no final dos anos 1960, quando um pai de família de classe média baixa, chamado Joseph “Joe” Jackson, decidiu reunir cinco de seus nove filhos numa banda de R&B. Logo, logo, Jackie, Tito, Jermaine, Marlon e Michael deixaram de conviver com a figura paterna e ganharam um empresário, que os obrigava a chamá-lo de “Joseph”, em vez de “pai”. “Então, não apenas ensaiávamos muito, mas estávamos sempre nervosos quando ensaiávamos, porque ele se sentava ali, e tinha um cinturão nas mãos, e se você não fizesse da maneira correta, ele te faria em pedaços. Te pegava de verdade. Eu levei muitas vezes, mas acho que meu irmão Marlon foi quem sofreu mais, porque era mais difícil pra ele no começo, e ele se esforçava tanto, mas era sempre, sabe, ‘faça como o Michael! Faça como o Michael!’ E os outros ficavam muito nervosos, e eu também, porque ele era severo”, revelou o Rei do Pop, em entrevista ao jornalista Martin Bashir, no documentário Living with Michael Jackson, de 2003. O rigor de Joe – aliado, claro, ao talento dos garotos - transformou o Jackson Five no grupo infanto-juvenil mais popular dos Estados Unidos e, por tabela, potencializou o dom de Michael para compor, cantar e dançar. Mas, à medida que os filhos atingiam a maioridade, iam tentando se ver livres das garras do pai. Jermaine, por exemplo, casado com a filha de Berry Gordon, presidente da Motown, foi o único Jackson que permaneceu na gravadora, e não assinou com o selo Epic Records, da Columbia. Michael, em seguida, deixou os irmãos para seguir carreira solo, uma forma de se desvincular dos maus tratos paternos. Ele foi o único que conseguiu – até então – o impensável: fazer mais sucesso que o Jackson Five. Antes dos Jacksons, porém, os EUA já tinham assistido à ascensão de um outro conjunto que começou com a forte presença de um pai, os Beach Boys – a primeira banda americana a fazer sucesso em escala nacional, tendo seu auge em 1963, um ano antes da invasão

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HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Sonoras

britânica, capitaneada pelos Beatles e Rolling Stones. O grupo foi formado a partir do incentivo de Murry Wilson, compositor bissexto e, assim como Joe Jackson, também pai de classe de média baixa. O chefe de família incentivou seus filhos Brian, Dennis e Carl a aprender a tocar instrumentos e a cantar, após se emocionar ao assistir aos garotos cantando de forma espontânea. Com a repercussão do primeiro single dos Beach Boys, Surfin, Murry Wilson largou o seu emprego e se autointitulou empresário do grupo, passando a acompanhar as gravações e interferindo nelas como se fosse o produtor musical. Registros de sua voz durante essas sessões comprovam sua presença opressora nos sets, dizendo coisas como, “Brian, eu sou um gênio também. Vamos!”. Murry tinha conflitos com seus três filhos, chegando a usar a violência física para impor suas vontades, mas quem mais sofria era Brian, por ser o principal compositor e arranjador do quinteto, que ainda incluía o primo dos rapazes Mike Love e seu amigo Al Jardine. Era um embate constante entre pai e filho. Murry não admitia

transformar crianças e adolescentes em estrelas é um costume ligado à ascensão da indústria cultural americana que o rebento, considerado o Mozart do rock, o havia superado artística e financeiramente. Os abusos seguiram até 1964, quando Brian demitiu o próprio pai de suas funções empresariais, durante uma briga numa sessão de gravações. Um ano depois, o líder dos Beach Boys começou a dar sinais dos problemas psíquicos que carrega até hoje. Assim como aconteceria com Michael Jackson, anos depois, as exigências paternas de Murry levaram Brian a virar um extremo perfeccionista, que alimentava ideias obsessivas, como a gravação de Good vibrations, considerado o melhor, o mais demorado e mais caro single da história da música da época, com seus U$ 50 mil. Brian também não admitia que os Beatles tivessem vindo

da Inglaterra ocupar o espaço que seria dos Beach Boys e tentou, então, superar as criações dos Fab Four, originando a obra-prima dos Beach Boys, Pet sounds, em 1966. Também não custa lembrar que Michael, outro obsessivo, passou o resto da vida querendo ultrapassar os números do avassalador Thriller, o disco que mais vendeu em todos os tempos, com cerca de 45 milhões de cópias. Essa mania de querer transformar crianças e adolescentes em estrelas, uma forma tolerada de trabalho infantil, diga-se, é algo que está fortemente ligado à ascensão da indústria cinematográfica e musical dos Estados Unidos. Em 1930, a pequena Shirley Temple, estrela de 58 filmes, virou fenômeno mundial, com apenas seis anos de idade, atuando e cantando filme após filme. A pequenina de cachinhos loiros foi uma pioneira involuntária desse traço cultural americano e é, até hoje, um raro exemplo de estrela mirim americana que não se envolveu em escândalos nos anos seguintes – vide Judy Garland, Drew Barrymore, Macauley Culkin e tantos outros.

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INDICAÇÕES A simpatia, o carisma e o talento de Shirley Temple passaram a inspirar programas de TV a encontrar crianças-prodígio. Uma delas foi uma certa pirralha chamada Britney Spears, que era levada por sua mãe para participar de diversos concursos de talentos mirins; e também a jovem atriz e cantora Miley Cyrus, protagonista do seriado musical Hannah Montana, cujo estrelato acabou por criar uma fissura na família, levando seu pai – também compositor malsucedido – como o citado Murry Wilson - a revelar, no começo deste ano, que se arrependeu de ter aprovado que sua filha começasse a se envolver no meio artístico tão cedo. Após os escândalos envolvendo Miley, Billy Ray Cyrus desabafou à revista americana GQ: “Aquele maldito programa destruiu minha família. Detesto dizer isso, mas voltaria atrás, se eu pudesse. Para que minha família estivesse aqui e todos estivessem bem, seguros, felizes e normais”. Eleita pelo site de notícias pop Just so you know a celebridade que exerce a pior influência entre os jovens dos EUA, devido a escândalos envolvendo drogas, Miley Cyrus, sem querer, passou a ser uma espécie de “provedora” do lar. Caso semelhante aconteceu com Elis Regina, que, aos 14 anos, já sustentava a família com os cachês que recebia como intérprete. “Elis começou a se impor porque pintava com a grana para solucionar os problemas”, lembrou Rogério, irmão da cantora gaúcha, na biografia Furacão Elis, de Regina Echeverria, que revela os atritos da Pimentinha com o pai. Começar a trabalhar cedo na música tem se

mostrado um problema, também, porque, ao se tornar adulto, o artista mirim tenta provar que o seu trabalho amadureceu; e nem sempre isso acontece ou é reconhecido. Alguns exemplos dão conta da dificuldade que encontram. Nikka Costa, aos 9 anos, fez enorme sucesso no início da década de 1980, incentivada por seu pai, Don Costa, que era seu compositor e produtor musical. Após a precoce morte dele, em 1983, a cantora não conseguiu mais firmar seu nome no mercado, mesmo mudando de estilo e retomando sua carreira em diversas ocasiões. No Brasil, o exemplo mais notório é o de Sandy & Júnior, caso raro em que os filhos conseguem ter tanto êxito comercial quanto os pais. Rebentos do cantor e compositor sertanejo Xororó, os irmãos venderam mais de 15 de milhões de discos, mas hoje, em carreira solo, vivem sob a sombra do sucesso do passado, quando faturavam com centenas de shows anuais e com a renda de diversos produtos licenciados em nome da dupla. No final de março deste ano, uma notícia passou despercebida, mas revelou um pouco da filosofia que pode estar por trás de toda essa história. O pai de Beyoncé, Mathew Knowles, que fazia as vezes de empresário da cantora americana desde a época do trio Destiny’s Child, anunciou que estava se demitindo do cargo, e apresentou um argumento cheio de sabedoria em sua simplicidade: “Negócios são negócios e família é família”.

ERUDITO

NELSON FREIRE Harmonies du soir Decca/Universal

O compositor e pianista húngaro Liszt tem muitas partituras negligenciadas, que ainda não dispõem, pelo menos no Hemisfério Sul, de uma diversidade de interpretações que possam orientar os estudantes de piano. Neste novo CD, Nelson Freire optou por uma amostragem fora do mainstream do catálogo lisztiano, que abarcasse as peças mais virtuosísticas, densas ou contemplativas, como no Soneto 104 de Petrarca, na Balada n° 2 em si menor, ou em Au lac de Wallenstadt.

FORRÓ

PÉ DE MULAMBO Segura essa muganga aí, menino! Tratore

Estreia do conjunto que se autodefine como “power trio pé-de-serra”. Segura essa muganga aí, menino! soma 10 faixas, a grande maioria autoral, com bases levadas firmemente pela rabeca e a viola caipira de Filpo Ribeiro (o trio ainda conta com o zabumbeiro Guluga e Rone Gomes, no triângulo). O disco é marcado por instrumentos rústicos (os arranjos são completados por zabumba e triângulo), tocados com originalidade e destreza.

ERUDITO

ANNA NETREBKO E MARIANNA PIZZOLATO A tribute to Pergolesi

Deutsche Grammophon/Universal

Em 2010, as comemorações pelos 300 anos de nascimento de Giovanni Pergolesi, nome mais representativo da transição do barroco para o classicismo europeu, passaram despercebidas no Brasil. Agora, chega aos seus admiradores uma interpretação da magnus opus do compositor italiano, Stabat mater, nas vozes da célebre diva operística Anna Netrebko e da meio-soprano Marianna Pizzolato, em um registro de magnífica simbiose entre ambas.

ERUDITO

QUINTETO VENTO EM MADEIRA Quinteto vento em madeira Maritaca

O grupo debuta com uma proposta inusitada: unir música improvisada e ensaiada, camerística e popular. Dois quintos da banda, a flautista Léa Freire e o saxofonista Teco Cardoso são parceiros desde os anos 1970. Requisitado, este já colaborou com nomes como Edu Lobo e Baden Powell. Fecham o time de instrumentistas: Tiago Costa (piano), Edu Ribeiro (bateria) e Fernando Demarco (contrabaixo).

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MÃO MOLENGA Um grupo teatral com o tempo a seu favor

Com 25 anos de atividades ininterruptas, companhia de teatro de bonecos transformou o autodidatismo num trunfo, conquistou o público e, hoje, pretende formar profissionais texto Pedro Paz

Estigmatizado pelo senso comum, quando comparado ao de atores, o teatro de bonecos é visto como “menor”, por ser evidentemente fantasioso e ter como público-alvo as crianças. No entanto, o grupo pernambucano Mão Molenga Teatro de Bonecos mostra, há 25 anos, que isso não passa de bobagem, fruto da supervalorização midiática da imagem dos atores. Com temas universais, os espetáculos transmitem a essência das coisas em imagens cênicas capazes de fascinar espectadores de todas as faixas etárias. Papel, cola, massa, tinta, madeira, tecido e espuma são os ossos, órgãos e pele dos seres inanimados que, inicialmente inspirados nos personagens da série The Muppets, nasceram na Rua Doutor Sabino Pinho, 214, Bairro da Madalena, Região Metropolitana do Recife. A história do Mão Molenga Teatro de Bonecos começou exatamente nesse endereço, em 1986, no condomínio onde moravam os pais dos irmãos Fábio e Fátima Caio, dois dos integrantes do quarteto de atoresmanipuladores que formam o grupo. Juntaram-se com o casal Marcondes Lima e Carla Denise, e passaram a fazer apresentações cênicas em um corredor comprido, chamado por eles

A história do grupo começa na casa dos irmãos Fátima e Fábio Caio. A eles se juntaram, depois, Clara e Marcondes de “o beco”. Hoje, a casa funciona como o ateliê da trupe. Não se aponta com exatidão quando surgiu o teatro de animação. Mas é certo que sua história é tão ancestral quanto à do próprio teatro tradicional. Presentes nas sociedades milenares do Oriente, os místicos bonecos moldados de barro foram difundindo-se por toda a Europa e, posteriormente, pelo mundo, no período das grandes navegações, nos séculos 15 e 16. No Brasil, acredita-se que as primeiras artes dramáticas com a participação de bonecos surgiram do processo de catequese, protagonizadas pelos colonizadores portugueses. As encenações, que eram realizadas, geralmente, em presépios animados, conventos e igrejas franciscanas, com o tempo, passaram a ser exibidas em templos, sacadas, pátios, até chegarem às praças, tornando-se manifestações profanas.

Apesar de Pernambuco ser o berço dos populares mamulengos, a manifestação delesno estado somente teve reconhecimento no século 20, nas experiências dos grupos Teatro Popular do Nordeste e Mamulengo Só-Riso, fundados, respectivamente, por Hermilo Borba Filho e Fernando Augusto Gonçalves dos Santos. Foi a partir do trabalho dessas duas companhias que esse tipo de teatro de animação ficou reconhecido como uma forma de expressão dramática legítima. No entanto, até hoje, não há escola que ensine a arte da manipulação em Pernambuco. Nesse cenário, o Mão Molenga surgiu pela iniciativa de autodidatas. O jeito era testar, na prática, as técnicas que aprendiam em livros. Mão mole, mão molenga, mamulengo. A união semântica das palavras que deram origem ao nome do gênero de teatro de bonecos foi a inspiração para denominar o grupo. Entretanto, o Mão Molenga se especializou no boneco de luva, feito de espuma, tecido e papel machê. Na grande maioria, com boca articulada e manipulação de forma direta. O início das atividades, como quase sempre, foi muito difícil. Vontade e ajuda das famílias dos atores foram essenciais na empreitada. Naquela

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época, Fábio Caio tinha um bar chamado De vento em polpa, no mesmo bairro em que fica hoje o ateliê. O estabelecimento virou point no Recife, frequentado pelo público descolado da cidade. E essa foi, possivelmente, como eles atestam, a fase de maior experimentação que viveram, por meio de encenações para crianças e performances para jovens e adultos, essas últimas inspiradas em filmes como Uma cilada para Roger Rabbit (1988). Na sua jornada, o Mão Molenga ganhou dinheiro se apresentando em festas de criança, antes de circular por todo país no Projeto Palco Giratório, do Sesc, a partir de 2006. Um dos primeiros desafios que a trupe enfrentou foi dominar o disperso público infantil das festas, atraí-lo para a encenação, enquanto os pais se divertiam em suas rodas de adultos. Desde aquele início, o exercício de metateatro – falar dele no próprio fazer teatral – está presente em quase todas as montagens do grupo, assim como o humor, sua grande tônica. Outra especificidade da companhia

A palavra que designa o gênero de teatro de bonecos, mamulengo, foi a inspiração para que grupo se autodenominasse é desenvolver coletivamente as produções, desde o serviço “sujo” (lixar, cortar, esculturar e modelar os bonecos) até a assinatura do texto e direção. Estreando em 1987, com o espetáculo O retábulo da Barafunda, os primeiros personagens Fanhoso e Cia conquistaram o público, e sobrevivem até hoje no ateliê do Mão Molenga.

O FIO MÁGICO

Este ano, percorrendo o país com a peça O fio mágico, no citado Projeto Palco Giratório do Sesc, o Mão Molenga conta a história de Gérard, um menino impaciente que recebe o dom de adiantar o tempo, manipulando o fio da própria vida. A ação, que acontece na primeira metade do século 20,

utiliza-se de máscaras e bonecos em diferentes técnicas – como recortes, fantoches e manipulação direta – para contar uma parábola sobre o tempo e a importância de vivermos e aprendermos com todos os momentos. Como pano de fundo, deparamo-nos também com situações e temas atuais: dificuldades econômicas de uma família comandada por uma mulher, trabalho infantil, devastação do meio ambiente pela expansão das áreas urbanas e industrialização, conflitos armados, assim como o amor entre jovens. A peça é baseada na ação das parcas da mitologia grega - Cloto, Láquesis e Átropos - e traz à cena bonecos originais, confeccionados partir das criações de Mozart Guerra, escultor pernambucano residente em Paris. Explorando o improviso e o humor, os manipuladores incorporamse à trama como personagens e, ao mesmo tempo, narram e contracenam com os bonecos. A concepção da peça também

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Página anterior 1 o fio mágico

Espetáculo está circulando pelo país no Projeto Palco Giratório

Nestas páginas 2 ateliê

Oficina e acervo funcionam na antiga residência dos atores

3 quarteto

Fábio, Fátima, Clara e Marconi são os atoresmanipuladores do Mão Molenga

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privilegia a música como elemento narrativo. A cenografia, composta em torno de uma mesa circular de tampo móvel e modulável, remete à forma e aos elementos de um relógio, ou à própria roda da vida. Uma “máquina do tempo” que permite mudanças rápidas de cena e alterações no lugar da ação dramática.

EM 24 QUADROS

As produções do Mão Molenga, em sua maioria, caracterizavam-se pela atuação no interior de uma tenda, com personagens confeccionados basicamente em espuma e tecido. Contudo, essa lógica de produção foi alterada a partir do convite, em 1998, para participar da série 500 anos, realizada pela Massangana Multimídia (Fundação Joaquim Nabuco) para a TV Escola/MEC e veiculada em todo país, o que acabou aproximando o grupo da linguagem cinematográfica. A série, com quatro módulos de seis a oito episódios cada, finalizada em 2002 e com 805 personagens nos roteiros, reproduz os principais personagens, acontecimentos e

cotidiano de diferentes períodos da História do Brasil, apresentando um retrato sociocultural de cada época. Nela, os bonecos ganharam uma estética mais escultórica, com técnicas de papel machê. A textura deles precisava ser mais lisa, por exemplo, para que os materiais utilizados não chamassem mais a atenção do que a própria história que estava sendo contada no vídeo. Depois dessa experiência, os trabalhos em vídeo não pararam mais. Destacam-se as campanhas do Festival Sesi Bonecos do Mundo, realizadas em 2004 e 2005, além de trabalhos para produtoras e instituições públicas e privadas, como Unicef, TV Jornal/SBT, REC Produções, Museu do Estado e Rede Globo Nordeste. Com um quarto de século de experiência, o Mão Molenga comemora o feito com mais um espetáculo e investimentos na formação e teoria do teatro de bonecos. Os dois projetos foram inscritos no último editais de fomento da Fundarpe e da Funarte, este, aguardando aprovação.

Algodão doce é o nome do projeto aprovado, um espetáculo de formas animadas em que figuram atoresmanipuladores, bailarinos, máscaras, bonecos e objetos. A peça remete aos processos da formação do povo brasileiro que definiram alguns dos seus traços identitários. A proposta é mostrar o amargo passado escravagista do país de forma lúdica e poética. No plano da pesquisa, o grupo pretende aprofundar questões práticas e teóricas do fazer cênico em um livro, além de realizar oficinas abertas a não integrantes do Mão Molenga, instigando outros realizadores a dar continuidade ao teatro de bonecos. Paralelamente, serão estabelecidas iniciativas em que seja possível uma aproximação do teatro de formas animadas a públicos portadores de deficiência, como surdos e cegos. Em O fio mágico, o Mão Molenga já exercita o trabalho com recursos táteis, além da audiotranscrição para cegos. Eles também experimentam apresentações para surdos com tradução simultânea na linguagem de sinais.

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GRACILIANO RAMOS Novo olhar sobre A terra dos meninos pelados Grupo de jovem atores Arte em Foco monta texto do escritor, desta vez, relacionando a obra à prática do bullying texto Rodrigo Dourado foto Ricardo Moura

Numa época em que as diferenças, na

infância, geram todo tipo de violência e reações de histeria coletiva, o teatro para crianças vê-se obrigado a debater o assunto. Abandonar os clichês que subestimam o potencial reflexivo dos pequenos, e assumir a cena como espaço do lúdico, mas também do pensamento, é uma decisão – mais do que nunca –

política que muitos grupos no Brasil vêm enfrentando com criatividade e ousadia. Em 1937, muitas décadas antes da noção de bullying emergir com a força de agora, Graciliano Ramos escreveu o conto A terra dos meninos pelados, em que narra as aventuras de Raimundo, garoto careca que tem um olho azul e outro preto, e é considerado “estranho” no

mundo em que vive, permanecendo isolado das outras crianças e recebendo o apelido jocoso de “Raimundo Pelado”. Para escapar à segregação, o menino inventa um lugar em que todas as crianças são como ele e no qual não sofrerá preconceito. Essa primeira e única incursão do autor pelo universo infantil está intimamente ligada à sua experiência carcerária, em 1936, sob acusação de atividade comunista. A terra dos meninos pelados é um tratado de integração humana e contra toda forma de perseguição e sectarismo. O grupo pernambucano Arte em Foco encenou, em 2002, uma versão da história, arrebatando oito dos 10 prêmios concedidos pelo festival Janeiro de Grandes Espetáculos na categoria Teatro para Infância. Além disso, a peça viajou para outros festivais, teve excelente aceitação do público e da crítica, e realizou várias temporadas, sendo a última em 2005. A adaptação teatral

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1 ARte em foco Os atores optaram por manter a simplicidade, investindo na poética, e não em efeitos especiais

de A terra dos meninos pelados representou um avanço no panorama cênico para crianças em Pernambuco, não só do ponto de vista dos conteúdos abordados, mas principalmente na forma de apresentá-los. Com direção do jovem Samuel Santos, a montagem chamou a atenção pela simplicidade e economia visuais, pelo forte investimento nos recursos artesanais do teatro, pela jovialidade e talento do grupo de atores iniciantes e pela trilha sonora, executada ao vivo, cheia de lirismo. Quase uma década depois daquela montagem, o Arte em Foco reencena o texto, revelando a premência da abordagem. “Quando comecei a trabalhar na nova versão, pensei: não posso deixar de fora o bullying. Na primeira versão, Raimundo sofria o preconceito, sem maiores danos físicos. Nesta encenação, explicitei mais a violência, ele é arrastado, agredido pelos colegas, por ser diferente”, comenta

Samuel Santos. O diretor, que se tornou pai desde que a primeira versão estreou, revela a mudança de olhar promovida pela presença da filha de sete anos em sua vida e a necessidade, ainda maior, de discutir a questão: “Minha filha é uma das vítimas da violência na escola. Então, meu desejo de trabalhar, através do teatro, as diferenças, a aceitação de si e do outro, só aumentou”. Com o apoio do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, a equipe realiza, este mês, o projeto Geografia poética, uma referência direta à viagem onírica de “Raimundo Pelado”. Na fábula, o garoto dorme e, no sonho, desembarca em Tatipirun, terra do rio Sete Cabeças, de outros meninos pelados e de olhos azuis e pretos, lugar onde não chove, não anoitece, automóveis não atropelam pedestres e nenhuma planta tem espinhos, para não agredir as pessoas. Já na itinerância poética que realiza, o espetáculo pernambucano visita Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Alagoas. Em cada praça, promove intercâmbio com um grupo de teatro local: Clowns de Shakespeare (RN), Piollin (PB) e Imbuaça (SE). Em Alagoas, A terra dos meninos pelados será apresentada em Palmeira dos Índios, cidade onde Graciliano foi prefeito, e Quebrangulo, sua terra natal. “Não temos certeza de que a casa onde ele nasceu ainda está de pé, por conta das chuvas que arrasaram várias cidades no ano passado; mas, lá, pretendemos nos apresentar na rua. Queremos prestar essa homenagem, levar de volta sua obra, sua poética, o Graciliano menino, o moleque. É um retorno simbólico, porque Raimundo, no texto, vive falando que precisa estudar a lição de Geografia, mas não se trata só de uma geografia física, mas também interior, do imaginário”, esclarece o diretor. A viagem é um retorno à infância afetiva e artística do grupo, que permanece quase integralmente o mesmo. Na primeira montagem, a maioria acabava de sair da adolescência, e o espetáculo se tornou a maior aventura de suas vidas. Samuel Lyra, que vive, na atual versão, o protagonista, tinha somente 13 anos quando se tornou músico de A terra dos meninos pelados. Agora, aos 21, fala da responsabilidade de interpretar Raimundo: “Na época, eu

não entendia muito, mas ficava preso ao encanto do espetáculo, chorava sempre. Hoje, entendo. Sinto-me agraciado com o convite, e muito cobrado. Tenho de atuar e tocar flauta transversa, uma sincronia difícil entre cena e música, como se meu cérebro tivesse que se dividir em dois”. Já Amaro Vieira, um dos responsáveis pela rearticulação do grupo e pelo retorno do espetáculo, conta: “As pessoas sempre cobravam a volta da montagem e nós achávamos que o ciclo ainda não havia se completado. Mas se, antes, tudo era instinto, agora, temos técnica. Podemos fazer um aprofundamento, sem perder a simplicidade necessária à comunicação com a criança, sem apelar para a grandiosidade. Lição que aprendemos com Marco Camarotti e que ficou para sempre”. Camarotti, falecido professor de Artes Cênicas da UFPE, que escreveu o

O espetáculo vai circular pelo Nordeste e será apresentado em Quebrangulo, terra natal do escritor, em Alagoas livro A linguagem no teatro infantil, é uma referência nos estudos do teatro para crianças no Brasil e, segundo Samuel Santos, permanece uma importante influência na realização do trabalho. “Quando viu o espetáculo, ele nos chamou para um diálogo e nos trouxe um aprendizado eterno, a atenção à criança. Na época, o teatro que se fazia para os pequenos tinha pouco conteúdo, não tinha poesia, parecia um bolo de noiva. Foi necessário o espetáculo acontecer, para recuperar o respeito a esse público”, reflete. Com novos arranjos na trilha sonora, um dos pontos altos do trabalho, executada ao vivo, misturando ritmos tradicionais como coco, maracatu, frevo e forró; mudanças na direção de arte e no desenho da cena, A terra dos meninos pelados só retorna ao Recife ao final de sua viagem pelo Nordeste, realizando temporada em setembro, no Teatro Apolo.

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Claquete ALMODÓVAR O corpo, a vaidade e suas obsessões

La piel que habito, que estreou em Cannes, faz uma interpretação artística da relação que a sociedade moderna tem consigo mesma, no espelho texto Kleber Mendonça Filho

Além de funcionar como um relógio grande e barulhento, o Festival de Cannes possui, também, uma precisão notável para confirmar o sentido de autoria de um grupo de realizadores que, há anos, décadas em alguns casos, apresentam suas obras na mais vistosa vitrine de cinema do mundo. O filme de Almodóvar, em especial, sugere uma representação física do corpo humano como criação divina e uma arma mortal dele mesmo, ao virar instrumento de prazer, de obsessões, psicoses e perversões, não tão distantes de uma ideia de apocalipse. É um filme sobre o colapso do espírito sobre a massa física que é o ser humano, tentando administrar um poderoso e sofisticado equipamento: o corpo.

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INDICAÇÕES La piel que habito foi o primeiro filme de Almodóvar a ser exibido em Cannes sem uma estreia prévia na Espanha, onde só entra em cartaz em setembro. O realizador parecia preocupado antes do festival, pois seu filme contém uma revelação importante, um segredo narrativo que não deveria ser divulgado pelos que o viram. É apenas a mais importante de uma série de caixinhas que o filme disponibiliza, e que são abertas pelo espectador durante e, também, tempos depois da sessão. La piel que habito, aliás, cresce em senso de estilo autoral, força e demência, algumas semanas depois do ruge-ruge do festival. É, claramente, um dos trabalhos mais inusitados de Almodóvar, cineasta espanhol de 61 anos, cuja obra é marcada por um olhar generoso para com a condição humana, esta, pontuada por sentimentos de amor, saudade, tesão e uma liberdade sexual refrescante dentro de um sentido de cinema. Antonio Banderas, que trabalhara pela última vez com Almodóvar em Átame (1990), interpreta um brilhante cirurgião plástico – este, aliás, de origem brasileira. O personagem regula o filme ao conceito do cinema B de ficção científica do passado, o mito de Frankenstein ou do Frankenfurter do Rocky Horror Picture Show. Ele tem um trauma, pois perdeu sua esposa num inferno de fogo, além de ver sua filha, mais tarde, ser estuprada. Talvez estejamos no território da obsessão, traçado por Hitchcock, em Vertigo. De qualquer forma, o filme é Almodóvar, sempre.

La piel que habito é de grande interesse. Aspectos camp da narrativa parecem entrar em choque com o estilo elegante do todo, como se parte da equipe de câmera, décor e figurino não soubessem que a senha para o filme é o cinema B das mais loucas ideias e transgressões. Cria-se uma tensão interna incomum, deixando o espectador sempre numa bolha de estranheza. Almodóvar costura a narrativa com a sofisticação peculiar, desenvolvida ao longo dos últimos 15 anos, mas La piel que habito sugere ter como base algumas das transgressões ligeiramente assustadoras e muito vivas da primeira fase de sua carreira. Nesse corta e costura, conhecemos uma bela garota (Elena Anaya, fez Fale com ela) que vive presa como um animalzinho na enorme mansão desse cientista louco, sempre usando uma roupa especial de corte médico, cirúrgico. A governanta da casa (Marisa Paredes, de Tudo sobre minha mãe) esconde chaves para o mistério. A garota seria o protótipo de uma nova experiência, a materialização egoísta de algumas das principais encruzilhadas da condição humana. Um corpo que concentra carne, sexo, ciência, perversão, perda, prazer e a manipulação artificial da beleza. O espectador logo perceberá que está diante de uma interpretação artística poderosa da relação que a sociedade moderna tem consigo mesma no espelho, e tudo mais que vem a partir desse olhar vaidoso. É um filme calmo, mas delirante, absurdo e sofisticado, e totalmente dodói como expressão remixada de como somos social e intimamente.

FAROESTE

BRAVURA INDÔMITA Direção de Joel e Ethan Coen Com Jeff Bridges, Matt Damon, Hailee Steinfield e Josh Brolin Paramount Pictures

DOCUMENTÁRIO

KFZ-1348

Direção de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso Com Ana Lúcia Torre, Selton Melo, Aramis Trindade REC Produtores Associados

Adaptação do romance de Charles Portis, Bravura indômita chegou aos cinemas cercado de expectativas. Conta a história da jovem Mattie Ross, que contrata o xerife Rooster Cogburn (Bridges, excelente) para ajudá-la a vingar a morte de seu pai, capturando o assassino, Tom Chaney. No caminho, encontram Texas Ranger LaBoeuf (Damon), que também quer Chaney, em troca de uma recompensa. O filme conta com atuações maravilhosas e com o humor típico dos Coen.

A partir da história de um fusca e seus oito proprietários, o longa de Mascaro e Pedroso constrói um retrato do país. O filme traz relatos sentimentais dos antigos e diferentes donos do fusquinha. KFZ–1348 passou por vários festivais, sendo premiado no Cine PE 2009 como o Melhor Filme da Mostra Pernambuco, além do Prêmio Especial do Júri na 32ª Mostra Internacional de São Paulo, em 2008.

DRAMA

DRAMA

Direção de Chang-dong Lee Com Jeong-hie Yun, Naeh-sang Ahn, Hira Kim Imovision

Direção de Francis Ford Coppola Com Vincent Gallo, Alden Ehrenreich e Maribel Verdu Imovision

POESIA

O longa coreano conta a história de Mija, que, aos 66 anos, decide escrever seu primeiro poema. A trama exibe o drama da finitude da vida humana, e também da relação do homem com a natureza. Mija passa por um processo de autoconhecimento, ao mesmo tempo em que entra nos primeiros graus do Alzheimer. Chang-dong é um diretor atraído pelo ser humano, e aqui vemos o seu pessimismo em relação à passagem do tempo. O filme ganhou o prêmio de roteiro em Cannes, em 2010.

TETRO

Contando com bela combinação entre dramaturgia e estética, Tetro é mais um clássico de Coppola. A história de Bennie, que está prestes a completar 18 anos e viaja em busca de seu irmão Tetro, revisita questões pessoais da história familiar do diretor, assim como em O Selvagem da motocicleta. A fotografia em preto e branco e o majestoso jogo de luzes – que não estão ali por acaso, pois Tetro é iluminador de teatro – trazem ainda mais poesia ao drama de Coppola, que nos lembra a importância das origens.

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HALLINA BELTRÃO

Artigo

LEONARDO DANTAS SILVA A TRÁGICA VIAGEM DE CABRAL numa sala de aula, diante da pergunta “Quem descobriu o Brasil?”, qualquer criança responde com precisão: “Pedro Álvares Cabral!”. Ao que a professora complementa: “No dia 22 de abril do ano de 1500”. A verdadeira história, porém, nos seus meandros de grandeza e tragédia, só os versos do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) podem melhor enunciar: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram/ Quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!” Na década final do século 15, graças aos informes seguros trazidos pelo navegador Duarte Pacheco (14601533), D. Manuel I, o Venturoso, resolve consolidar o chamado Caminho das Índias, descoberto por Vasco da Gama (1469-1524), em 1498, iniciando a exploração das terras desconhecidas ao sul do Equador. Para isso, vem a constituir uma grande esquadra formada por seis naus, três caravelas redondas, uma nau mercante, uma naveta de mantimentos, acrescida da nau capitânia e da sota-capitânia, comandada por Pedro Álvares de Gouveia, depois Pedro Álvares Cabral, com o falecimento do seu irmão mais velho, por carta régia de 15 de fevereiro de 1500. Na manhã de 9 de março daquele ano, zarpou de Lisboa a armada, levando em seu bojo entre 1.200 a 1.500 homens. Na tripulação, soldados, besteiros, feitor, agentes comerciais e escrivães, além do cosmógrafo mestre João Faras, especialista em Geografia e Astronomia, do capelão frei Henrique de Coimbra, oito sacerdotes seculares, oito frades franciscanos. Levava como intérprete o cristãonovo Gaspar da Gama, também continente julho 2011 | 86

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conhecido como Gaspar da Índia, um judeu polonês, capturado por Vasco da Gama, que lá vivera 30 anos e que, em Lisboa, fora convertido ao cristianismo e batizado com o nome de família do seu padrinho. Contando com a experiência de navegadores consagrados, como Nicolau Coelho, que acompanhara Vasco da Gama em sua primeira viagem; de Bartolomeu Dias, o primeiro a contornar o Cabo da Boa Esperança (1487) – conhecido pelos mareantes como Cabo das Tormentas ou Cabo Não –, e de seu irmão, Diogo Dias, Pedro Álvares aventurou-se ao mar. As demais naus eram comandadas por representantes da nobreza de então: Simão de Miranda Azevedo, Aires Gomes da Silva, Vasco de Ataíde, Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Gaspar de Lemos, Luís Pires e Simão de Pina. Na terça-feira após a Páscoa, 21 de abril, segundo testemunho do escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha, foram encontradas “muita quantidade d’ervas compridas a que os mareantes chamam de botelho e assim outras, a que também chamam de rabo d’asno”, confirmando assim os primeiros sinais de terra. No dia seguinte, 22 de abril de 1500, segundo a mesma fonte, “pela manhã, topamos aves conhecidas por fura-buchos, e nestes dias, a hora das vésperas, houvemos vista de terra, primeiramente dum grande monte bem alto e redondo e de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos; ao monte pôs o capitão o nome de Pascoal e à terra, Terra da Vera Cruz”. Estava assim lavrado o Auto de Achamento do Brasil, culminando com Pedro Álvares a série de incursões de navegadores anônimos. Nas suas expedições, anteriores a 1500, procuravam esses anônimos portugueses, tendo à frente Duarte Pacheco, situar um ponto do desembarque oficial, de modo a obedecer a raia estabelecida a 7 de julho de 1494, quando da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que reservara para a coroa portuguesa as terras existentes dentro das 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.

EM BUSCA DA ÍNDIA

Passada uma semana, Pedro Álvares continuou sua viagem com destino à Índia, seguindo as recomendações de Vasco da Gama, navegando, no sentido sudeste, em busca do Cabo da Boa Esperança (África do Sul), denominado então pelos marinheiros de Cabo das Tormentas. A sorte, porém, que o acompanhara até então, parece tê-lo abandonado: logo no dia 23 de maio, quando uma forte tempestade, já nas proximidades do Cabo, veio a provocar fortes baixas na esquadra. Na ocasião, naufragaram as naus de Aires Gomes da Silva, Luís Pires e Simão Dias, levando consigo mais de 300 homens, seguindo-se da caravela de Bartolomeu Dias, o mesmo que houvera descoberto o dito Cabo da Boa Esperança, com 80 homens. Somente a 16 de julho, os cinco navios restantes da esquadra se reencontraram, completamente

Dos 13 navios, somente regressaram a Lisboa a nau Anunciada e a nau capitânia de Pedro Álvares Cabral avariados e com as suas tripulações em pânico, na ilha de Quiloa, na costa do atual Quênia. A viagem se seguiu com o que restou da primitiva frota, atingindo Sofala (Moçambique), em julho, e Melinde (Quênia), a 2 de agosto, onde, com o apoio do xeque Omar, conseguiu os serviços de um piloto hindu que a conduziu até a Índia. Em 13 de setembro, aportaram em Calicute (Índia) a capitânia de Pedro Álvares, a sota-capitânia de Sancho Tovar, e a Anunciada, de Nuno Leitão da Cunha, além de duas outras comandadas por Nicolau Coelho e Simão de Miranda. No final de setembro, o capitãomor teve o esperado encontro com o Samorim de Calicute – ou SamudriRaj, o Senhor do Mar –, quando lhe fez entrega da carta do D. Manuel I, escrita em árabe, e presenteou-o com moedas de ouro e prata, sedas e brocados, recebendo em troca autorização para

instalação de uma feitoria naquele movimentado centro comercial. Mas o pior estava por vir. Enquanto os portugueses carregavam suas naus de especiarias, enfrentando a concorrência dos comerciantes árabes, que os viam como uma ameaça aos seus negócios, a esquadra veio a ser atacada, a 16 de dezembro de 1500, por cerca de 300 árabes e hindus. No embate, perdeu a vida o escrivão Pero Vaz de Caminha, juntamente com o feitor Aires Corrêa, seis frades franciscanos e 50 outros portugueses. Em represália, segundo relato do Piloto Anônimo, foi Calicute bombardeada durante dois dias pelos portugueses, “matando infinita gente e causando muito dano à cidade”. Em seguida, Pedro Álvares buscou abrigo no reino de Cochim (hoje a maior cidade do estado de Kerala, na costa do Malabar), distante 200 km de Calicute, para onde se dirigiu no dia 20 de dezembro. O rajá local, rival de Calicute, permitiu a instalação de uma feitoria e o carregamento das naus de pimenta, gengibre, canela e outras especiarias. Em 16 de janeiro de 1501, com uma cabeça de ponte instalada em Cochim, os navios que restaram da esquadra de Pedro Álvares iniciaram sua viagem de retorno a Lisboa. No seu regresso, foi encontrar em Bezeguiche, hoje Dakar, a nau desgarrada de Diogo Dias, com uma tripulação de apenas sete homens, e, numa feliz coincidência, com a expedição de Gonçalo Coelho que seguia em busca do Brasil. Dos 13 navios, somente regressaram a Lisboa a nau Anunciada, sob o comando de Nuno Leitão da Cunha, em 23 de junho de 1501, seguindo-se a nau capitânia de Pedro Álvares, que veio aportar no Tejo, a 21 de julho de 1501, unindo pela primeira vez os quatro continentes: Europa, América, África e Ásia. O restante dos navios e suas tripulações perderam-se no mar, bem de acordo com a descrição do poeta Fernando Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena/ Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor/ Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu”.

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Petrônio de Lorena Salve o anti-herói!

Ao assistir ao filme X-Men, first class, que revela a origem dos

mutantes, alguns questionamentos sobre o imaginário do herói no cinema americano e brasileiro ficaram me arranhando as ideias. O herói é uma representação humana que reúne os atributos necessários para superar um problema de dimensão épica. É guiado por ideais nobres e altruístas: liberdade, sacrifício, coragem, justiça e paz. Abriga sentimentos humanos junto a qualidades e/ou poderes de um humano elevado ou mesmo de um deus ou semideusdeus. O cinema pop americano sempre se apropriou do imaginário dos heróis. Além de filmes de guerra e de aventura, existem aqueles oriundos das histórias em quadrinhos: Super-homem, Homemaranha, Batman, Homem de Ferro, Surfista Prateado, Quarteto fantástico, entre outros. Todos eles seguem a linha de defensores da humanidade e, às vezes, trabalham em conjunto com a CIA, o exército ou a polícia norte-americana. Tentam transmitir uma sensação de confiança sobre as instituições de vigília social, o que afirma o direcionamento para temas institucionais de seu próprio governo, sobretudo a “segurança”. Com o novo X-Men não é diferente. A história passa na primeira metade dos anos 1960 e os mutantes estão divididos entre o governo americano e o governo soviético, no cenário da Guerra Fria. Já o herói cinematográfico brasileiro é bem diferente. Embora muitos filmes exaltem nossos grandes nomes pátrios, instituições, cidades, os heróis que marcaram nossa cinematografia no imaginário popular são picarescos ou de índole duvidosa. Macunaíma, João Grilo, Oscarito, Teixeirinha, Mazzaropi, Grande Otelo, os Trapalhões, o Bandido da Luz Vermelha, Vadinho (de Dona Flor e seus dois maridos), a Dama do lotação, Lampião, Lúcio Flávio, entre muitos outros. Esses personagens pertencem a filmes que obtiveram estrondosa bilheteria no Brasil, segundo o site Filme B. Enquanto os heróis americanos executam missões de teor militar a serviço de sua pátria ou da manutenção da ordem mundial, os heróis brasileiros ultrapassam obstáculos apenas para garantir sua sobrevivência. Como somos engraçados e pícaros em nosso heroísmo, talvez o melhor seja realizar filmes que satirizem o modelo do herói americano, já que não dá para levá-lo a sério no Brasil. A única coisa séria é que esses semideuses da indústria cinematográfica ocupam nossas telas, faturam muito, divertem os brasileiros com uma mensagem da época da Guerra Fria e ainda se colocam como salvadores da humanidade. Portanto, salve o anti-herói brasileiro!

Petrônio de Lorena

é roteirista e diretor de audiovisual

con ti nen te

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