Continente #130 - Ilustração

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ilustração de suzy lee para o livro espelho

outubro 2011

aos leitores Nesta edição, há variadas referências à infância, ou a manifestações artísticas diretamente relacionadas a essa fase da nossa vida. Não podemos dizer que todas elas foram deliberadamente colocadas em função do Dia das Crianças. Houve confluências, como o fato de o Festival de Circo do Brasil e o espetáculo Divinas cumprirem temporadas neste outubro. Ao lado disso, tínhamos a proposta de realizar uma reportagem que perfilasse dois importantes remanescentes da tradicional arte circense em Pernambuco, Índia Morena e Alakazam, que foram fotografados com excelência por Chico Ludermir. Juntamos, então, essa proposta de Perfil e os dois eventos da seção Palco, o que se reverteu em nove páginas editoriais de deliciosa atmosfera de picadeiro. Há alguns meses, pensamos em publicar uma matéria que tratasse com densidade do assunto “ilustração para livros destinados às crianças”, porque tínhamos em conta o alto nível dos trabalhos desenvolvidos nesse segmento no Brasil, fossem eles de autoria de artistas nacionais ou transmigrações de qualidade. O mês das crianças, portanto, pareceu-nos inadiável nesta empreitada. E o resultado é este que apresentamos: 16 páginas dedicadas ao assunto, num trabalho de pesquisas e entrevistas de autoria de Gianni Paula de Melo. Inevitável, aqui, mencionar o investimento feito pela Companhia Editora de Pernambuco no segmento editorial, evidenciado desde 2010, pela realização de Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, que selecionou 12 obras, algumas delas lançadas neste mês, e cuja edição 2011 terá vencedores divulgados até o final do ano. Ainda que de forma transversal, a infância também nos chega na reportagem que empreendemos sobre bandas marciais de música, um fenômeno característico

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das pequenas cidades, que continua a ser um elemento agregador de comunidades interioranas, fazendo chegar a elas um estímulo à criação artística através da música. Uma maravilhosa conclusão a que chegamos, quando lemos e vemos esse material, é que não há barreiras entre o mundo infantil e o mundo adulto, porque mesmo nós, que já ultrapassamos os limites dessa faixa etária, podemos nos encantar com as obras para ela destinadas. É com satisfação, portanto, que vivemos a nossa criança interior.

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sumário Portfólio

André Teixeira 06 Cartas

+ colaboradores

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07 Expediente

08 Entrevista

Marco Lucchesi O mais jovem membro da ABL fala sobre sua obra em prosa, poesia, ensaio, romance e tradução

12 Conexão

KidRex Site oferece sistema de buscas para o público infantil, filtrando imagens e textos inapropriados

20 Balaio

Burning Man Com 25 anos, evento congrega milhares de pessoas em torno de uma experiência de liberdade de expressão

54 História

Joseph Pulitzer Magnata norteamericano, morto há 100 anos, é considerado o pai do jornalismo moderno

62 Palco

Festival de Circo Sétima edição investe no diálogo com outras linguagens artísticas

Matéria Corrida José Cláudio Tanajura

70 Sonoras

Coquetel Molotov Em sua oitava edição, festival firma-se como uma das maiores vitrines da música alternativa

Ensaio do fotógrafo registra a prática de esportes, para além do esforço físico, mostrando a interação de seus adeptos com o ambiente em que vivem

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80 Claquete

Sudoeste Em seu primeiro longametragem, Eduardo Nunes aposta na desaceleração da narrativa

82 Leitura

avesso do romance O Livro de Marilda Vasconcelos de Oliveira transplanta personagens de Dostoiévski para o Recife do século 21

86 Artigo

Murilo Jardelino da Costa O universo plural de Vilém Flusser

88 Saída

André Balaio Hollywood não acredita em lágrimas

66 Visuais

Formação Livro apresenta para professores a poética e o modo de produção de 33 artistas

Tradição

Ayahuasca Utilizado desde tempos imemoriais pelos índios sul-americanos, chá com efeitos alucinógenos é estudado como possível patrimônio imaterial da cultura brasileira

48 Capa ilustração André Neves

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Especial

Música

Hoje, os desenhos para publicações infantis têm ganhado cada vez mais destaque, tornando-se um elemento de tanta relevância quanto o bom texto

Conjuntos de sopro e percussão das cidades do interior transmitem o conhecimento musical a diversas gerações e congregam comunidades

Perfil

Cardápio

Com histórias de vida semelhantes, Índia Morena (acima) e Alakazam são remanescentes da tradição dessa arte que resiste aos novos padrões de espetáculos

Com uma culinária que preza por receitas tradicionais e porções generosas, o restaurante tem o charme extra de funcionar sob anonimato

Ilustração

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Circenses

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Bandas marciais

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Out’ 11

Mocó

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cartas Divulgador Chego de viagem e recebo a revista Continente. O portfólio sobre o meu trabalho ficou muito bom. Parabéns pela qualidade da revista e pelo conteúdo. Vocês ganharam um assinante e um entusiasmado divulgador aqui no Planalto Central. Zel Nunes Brasília – DF

para os estudantes, em nossa sala de reuniões, onde compartilhamos publicações acadêmicas e jornalísticas. Não sei se isso já é feito por vocês, mas creio que seria interessante se a revista fosse distribuída aos alunos de ensino médio, pois é esse tipo de reflexão que os jovens precisam aproveitar, para que se saiam bem em exames como o Enem. Márcia Marques

Qualidade

Rendas Foi um enorme prazer ler na Continente, edição nº 128, a matéria especial dedicada à produção das rendas artesanais desenvolvidas no nordeste brasileiro. Um rico painel sobre pontos e tramas foi traçado, colocando uma lente de aumento no importante trabalho de rendeiras-artistas que perpetuam a tradicional prática artesanal. Maravilhoso trabalho de pesquisa, contextualizando a renda historicamente no Brasil e no mundo, dando à edição sabor de peça para colecionador. Eduardo Ferreira Recife – Pe

Brasília – DF

Estive no Recife para participar do congresso do Intercom, realizado na Unicap. Sou jornalista e professora de Jornalismo da UnB e fiquei encantada com a revista Continente. Ao voltar à sala de aula, para a produção do jornal eletrônico Campus Online, aproveitei para apresentar ao grupo diversos exemplares da publicação. Mostrei a qualidade das pautas de cultura e como é possível buscar angulações interessantes no tratamento da informação. Levei as revistas para que vissem e trouxe-as de volta para casa, para ler. Depois disso, as publicações ficarão disponíveis

RESPOSTA DA REDAÇÃO Márcia, agradecemos sua atenção com a Continente, seus elogios e sugestões. Sabemos da relevância de se trabalhar conteúdos desse tipo em sala de aula. Com relação à distribuição da revista entre alunos secundaristas, destinamos uma tiragem de dois mil exemplares para escolas públicas estaduais e municipais de Pernambuco, acreditando na possibilidade de que eles estejam sendo tão bem aproveitados quanto você descreveu ter feito com os exemplares a que teve acesso.

samuca

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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Site

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FESTIVAL DE HUMOR INTERATIVO

Em concurso, a Continente premia a criatividade O Festival de Humor Interativo da Continente continua neste mês de outubro. A cada edição, a revista publica, na seção Cartas, um cartum que precisa ser completado com uma frase, fala ou diálogo que o torne engraçado. O autor do texto para o desenho ao lado, eleito o melhor por meio do voto dos internautas e por uma comissão da redação da Continente, recebe R$ 350 e uma assinatura da revista. Você pode participar do concurso e conferir a legenda vencedora da última edição, no Este é o cartum do Mês. faça uma legenda bem-humorada e concorra!

endereço www.revistacontinente.com.br.

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colaboradores

carlos eduardo amaral

cristina almeida

Marcelo abreu

Murilo Jardelino da costa

Mestre em Comunicação Social pela UFPE e crítico de música clássica

Professora de Língua Portuguesa e Literatura e doutora em Teoria Literária

Jornalista e professor da Universidade Católica de Pernambuco

Linguista, tradutor e professor. Organizador da coletânea A festa da língua – Vilém Flusser

e Mais andré Balaio, músico. andré neves, autor de ilustrações e textos para livros infantis. augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Beatriz coelho silva, jornalista e roteirista. Gilson oliveira, jornalista. leidson Ferraz, ator, jornalista e pesquisador teatral. leo Martins, ilustrador e fotógrafo. renata do amaral, jornalista, webdesigner e doutoranda em Comunicação. ricardo Mello, fotojornalista, editor de imagens multiplataforma do jornal O Globo. Zeca Miranda, jornalista.

GoVerno do estado de PernaMBuco

sUPeRintenDente De eDiÇÃo

continente online

atenDimento ao assinante

goVeRnaDoR

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Diogo Guedes (jornalista)

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Gabriela Lobo (produtora)

DiRetoR De PRoDUÇÃo e eDiÇÃo

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Ricardo Melo

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Júlio Gonçalves

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Eliseu Souza

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(estagiários)

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conselHo eDitoRial:

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Roberto Bandeira

Antônio Portela

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PUBliciDaDe e maRKeting

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Karina Freitas (paginação)

e ciRcUlaÇÃo

Nelly Medeiros de Carvalho

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

Armando Lemos

Pedro Américo de Farias

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Alexandre Monteiro

diagramação e ilustração)

Rosana Galvão

Everardo Norões (presidente)

Gilberto Silva Daniela Brayner

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDaÇÃo, aDministRaÇÃo e PaRQUe gRÁfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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MARCO LUCCHESI

“Sou leitor do livro do mundo” Dessa forma, define-se o mais jovem membro da Academia Brasileira de Letras, um prolífico autor de prosa, poesia, ensaio e tradução em diversas línguas texto Beatriz Coelho Silva

con ti nen te

Entrevista

Há anos, num sarau na casa do violinista Cussy de Almeida, Marco Lucchesi teve um insight: Luiz Gonzaga chegou e os dois músicos, com histórias, estilos e públicos diversos, ficaram a brincar com melodias, ritmos e harmonias. Lucchesi teve a prova de que a integração das diferenças, das arestas, é possível. Desde criança, o hoje acadêmico Marco Lucchesi presta atenção no outro, no que está fora dele. Filho de toscanos que vieram ao Brasil trabalhar em rádio e televisão, cresceu falando italiano (em casa) e português (na rua). Talvez, por isso, a busca da alteridade e a dualidade sejam as marcas de sua obra em prosa, poesia, ensaio, tradução e na formação de intelectuais na Faculdade de Letras da UFRJ. Traduzir e ser traduzido em várias línguas, ter intimidade com intelectuais contemporâneos, como Umberto Eco, ou medievais, como Giambatista Vico, não o livra da timidez que o leva às metáforas para explicar/camuflar as ideias. Mas ele não fugiu das perguntas neste

encontro, ocorrido numa manhã de sábado, ao som do mar e à luz do céu profundo de Copacabana. CONTINENTE Professor, tradutor, ensaísta, poeta... Como o senhor se identifica? MARCO LUCCHESI Como escritor... ou como leitor. No fundo, é a mesma coisa, essas categorias se completam. Mas... sou mais leitor. CONTINENTE Leitor de quê? MARCO LUCCHESI Do livro do mundo e do mundo dos livros. A leitura é um desafio que nos atravessa. É o que somos, o que tentamos desvendar – e saímos derrotados. Leio dos autores mais altos aos não recomendáveis. Bandeira dizia que mesmo os poetas não interessantes o são, desde que um olhar generoso enxergue uma dimensão mais ampla do ponto de vista poético. As paixões são muitas neste campo. CONTINENTE Mas nem um nome? MARCO LUCCHESI Seria recorrente, falando dos que ocupam espaços de sempre. Que, apesar de mortos, estão mais vivos do que os vivos...

Dante, Machado, Dostoiéviski, Clarice... A lista é imensa. CONTINENTE A literatura antiga é melhor do que a atual? MARCO LUCCHESI Não acredito e não faço defesa própria, porque haveria um conflito de interesses. Hoje, há uma grande produção em todo o mundo. O desafio está em construir uma sintaxe do olhar. Por exemplo, Galileu Galilei, ao ver a Lua pela primeira vez com um telescópio, fez um mapa com crateras e relevos imperfeitos. Descreveu-a tal como via. Parece simples, mas não é. Na Inglaterra, outro astrônomo a viu num telescópio parecido e desenhou-a feita de cristal, longe e distante de impurezas. Depois se deu conta do erro. Galileu acertara. É importante apurar essas lentes, porque hoje os relevos são acidentados, a pluralidade e as formas de construção estão em efervescência. Não aposto num momento apocalíptico da literatura, o que me seria cômodo, ao me desobrigar de atingir uma geografia difícil, árdua, nômade e dispersa. Prefiro essa geografia a mentir diante do real.

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rafael andrade/folhapress

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determinantes de reflexão, fragmentos de nossa biografia que encontramos numa frase ou poema. Às vezes, o tradutor acredita que o texto é dele (e não está errado), mas é preciso ter limite entre o que é seu e o que é do outro. CONTINENTE Sua necessidade de escrever vem do fato de ser filho único? MARCO LUCCHESI É uma desculpa que gosto de usar porque é difícil explicar uma vocação. Não há uma resposta, uma práxis clara. Nem a psicanálise ilumina esse campo, que é muito refratário.

Fotos: reprodução

CONTINENTE Como se treina o olhar? MARCO LUCCHESI Lendo e escrevendo sempre. É um processo de alteridade. Só se pode construir um projeto literário consistente com um olhar atento às demandas contemporâneas. O que não significa apostar num relógio literário. É preciso ter uma ideia pantemporal da literatura. Dialogar com Homero e com autores contemporâneos, porque o espírito crítico é movido pela demanda ecumênica, a polifonia e o respeito ao diálogo.

con ti nen te

“Leio dos autores mais altos aos não recomendáveis. Bandeira dizia que mesmo os poetas não interessantes o são, desde que um olhar generoso enxergue uma dimensão mais ampla do poético”

Entrevista CONTINENTE Como as lentes funcionam na tradução? MARCO LUCCHESI Quando somos capazes de polir as lentes para atingir a alteridade e a ideia de pantempo, alcançamos uma tradição que é a terceira ponta de um triângulo. Traduzir é uma forma de ler. Tenho algumas definições de tradução. A primeira é um naufrágio digno em que o capitão avisa aos passageiros e prepara os botes. Sua dignidade está em naufragar com o navio. Tradução é um processo alquímico com palavras, pode ser definida, ainda, como leitura pública. CONTINENTE O senhor escolhe o que traduz, sente-se escolhido ou aceita encomendas? MARCO LUCCHESI Eu ficaria com os três. Em geral, fui escolhido pelos poetas, mesmo os antigos. Desde criança, como filho único, quis conversar com todo o mundo. A tradução era um canal. Na escolha do que traduzir, há

CONTINENTE Como professor, o senhor quer ensinar o que sabe ou tirar o melhor do aluno? MARCO LUCCHESI Depende da circunstância. Tenho uma cota interna de partilhar o sentimento da ideia. Trabalho do ponto de vista da biografia de cada aluno. Não é determinante nas atitudes, mas é preciso ouvir a outra situação. A psicanálise me auxilia a perceber situações delicadas, a ler no canto dos olhos. É isso que me atrai. CONTINENTE O senhor fala por metáforas. Como diferencia a prosa e a poesia?

CONTINENTE Como se tornou professor? MARCO LUCCHESI Esses desdobramentos estão na circunvizinhança da relação entre a estante, os livros, a palavra, o mundo... Aprendi muito na minha primeira experiência, aos 17 anos, num curso supletivo, à noite, no Rio de Janeiro, numa zona de conflito social. Falava sobre o Egito Antigo, da unificação política sob a ideia do Sol e eles não tinham luz elétrica. Falava do Rio Nilo e eles não tinham água. Percebi que, do ponto de vista do ensino, a inteligência e a ética devem ser iguais em todas as classes; o professor deve respeitar o outro lado, não deve ser paternalista, disperso ou ultralivre, a ponto de não cumprir sua missão. Bebia muito em Paulo Freire. É árduo, mas guarda beleza, porque o professor deve ser eclipsado pelo aluno, esquecido e recuperado algum tempo depois. Se valer a pena.

MARCO LUCCHESI A metáfora é um vício... Trabalho numa oficina suja de graxa, com óleo vazando, uma desordem necessária. Para organizá-la, existe o sentimento da poesia, que não é inimiga da prosa ou vice-versa. Numa tradição brasileira, elas não conversam; e um exemplo clássico dessa injustiça é o caso de Machado de Assis, em que uma coisa expulsa a outra. Não acredito nisso. Creio em continuidade descontínua na obra de Machado. Se o leitor não se convence de sua poesia, aconselho a se debruçar diante do delírio de Brás Cubas. Se não encontrar chispas poéticas explodindo, dou as mãos à palmatória: poesia e prosa são distantes. CONTINENTE Mesmo sendo bilíngue, como surgiu o interesse por outros idiomas? MARCO LUCCHESI Posso explicar com clareza, porque sempre me perguntei isso. Nasci em Copacabana e meu pai trabalhava nos Diários Associados.

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Eu tinha um rádio de ondas curtas e, como era fluente em português e italiano, percebia outros idiomas desde cedo. Ser bilíngue é diferente de saber várias línguas. É como um laboratório interno de palavras, um duplo vitral, uma transparência que se sobrepõe à outra. Aos 12 anos, ouvia ondas curtas e escrevia para as rádios Deustche Welle ou BBC, não lembro em que língua. Eles me respondiam e eu amava bandeirinhas da rádio, cartão-postal dizendo que eu realmente tinha ouvido aquela rádio. A curiosidade começou daí.

CONTINENTE Como surgiu a opção de estudar árabe? MARCO LUCCHESI Foi uma escolha de mero prazer, como um sultão fascinado pelo corpo sinuoso da caligrafia. Além dela, uma beleza sonora, áspera, diversa do italiano e do francês. Na aspereza, descobri uma ligação profunda com os povos. Um amigo meu, o padre jesuíta Paolo Dall Oglio, faz uma obra espetacular na Síria. Vive a metáfora do que eu espero da vida, das questões republicanas em geral. No deserto, não deixa de ser

e de outra. O que hoje é banal, foi uma revelação para mim. CONTINENTE Como se deu sua eleição para a Academia Brasileira de Letras? MARCO LUCCHESI Nunca pensei na Academia. Falo sem ser blasé, pois respeito um número importantíssimo de acadêmicos. Tinha convites, mas não frequentava, porque sou um tipo mais isolado. Uma vez, o doutor Evandro Lins e Silva, que não me conhecia, lançou o meu nome e fiquei assustado. Pareceu-me um

“A poesia não é inimiga da prosa ou vice-versa. Numa tradição brasileira, elas não conversam. Um exemplo clássico dessa injustiça é o caso de Machado de Assis, em que uma coisa expulsa a outra” CONTINENTE Como é aprender línguas que não têm qualquer raiz latina? MARCO LUCCHESI É como entrar num túnel escuro sem lanterna. Você vai às apalpadelas. O persa, o árabe e o turco não têm o contexto latino que existe no alemão e no inglês. Passam-se meses e vem um período em que você acha que não aprendeu, tudo parece igual e você não entende nada. Tenho dificuldade de dizer quantas línguas sei, porque, para mim, não é virtude. Não sou linguista como Bechara. Gosto da sonoridade e quero chegar às línguas do original, sempre que possível. É sofrimento, mas é delicioso. Uma vez, num campo de palestinos, falei em árabe com Ahmed, editor da revista Bálsamo. Ele agradeceu, com os olhos marejados. Fiquei orgulhoso por ter escolhido uma língua que me aproximava. Não me tornava superior ou inferior, mas quase um igual. Aí, fiquei muito contente de saber aquela língua.

padre, mas é apaixonado pelo Islã, consegue ver-lhe a beleza. CONTINENTE Qual a sua relação com Pernambuco e com a cidade do Recife? MARCO LUCCHESI Profunda! Vou a Pernambuco desde a adolescência, porque meu pai trabalhava em rádio e televisão. Um episódio define meu amor ao estado. Uma tarde, o jornalista Antiógenes Chaves me levou à casa de Cussy de Almeida, na praia de Piedade. Havia poucos prédios e um verde/azul absurdo, exclusivo dos mares do Nordeste. Chegou alguém que eu achava que conhecia, pegou uma sanfona, e era o Luiz Gonzaga. Os dois brincavam com a música. Para mim, foi muito importante e definitivo considerar que não havia distâncias entre as culturas, que a música, a palavra, a poesia, a arte eram a busca da alteridade. Estava habituado a tradições, à separação de uma música

absurdo, mas fiquei comovido. No ano passado, em novembro, dei outra palestra lá, logo após a morte de um acadêmico. Mais de 10 vieram me dizer para eu me inscrever. E aconteceu porque eu não gosto de disputar, tenho imensa dificuldade e timidez. CONTINENTE Você se situa no mundo acadêmico, no popular ou não vê diferença? MARCO LUCCHESI Meus pais vieram ao Brasil, conheceram Assis Chateaubriand, mas não esperavam ficar. Aprendi com eles a ideia do fluxo, de migração. Interessa-me não perder o pé dos lugares. E não me confundir, porque o projeto humano é mais amplo, não cabe em nenhuma geografia exclusiva. Cabe no fluxo e na impermanência, nas grandes amizades e nos projetos éticos realmente fundamentados. Acredito só nisso, o resto é secundário.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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LIVROS INFANTIS

MOLOTOV

A capa da Continente deste mês aborda a importância da imagem no livro infantil – em muitos casos, relegada a segundo plano. Sobre o assunto, leia no site a íntegra da entrevista publicada na revista com o ilustrador Daniel Bueno. Além disso, veja uma galeria com alguns belos trabalhos dos nomes citados na matéria e conheça também o cátalogo de obras infantis lançadas pela Companhia Editora de Pernambuco, premiados no primeiro Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, realizado em 2010.

Confira a programação completa do festival, que acontece nos dias 14 e 15 de outubro, e músicas das principais atrações presentes.

Conexão

TRADIÇÃO Veja mais fotos da matéria sobre a ayahuasca, que aborda o uso religioso do chá alucinógeno pelos cidadãos da Floresta Amazônica.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

MECENATO

MÚSICA

REVISTA

CLÁSSICOS

Site se propõe a unir fãs para ajudar a sustentar artistas

O Tastebuds.fm busca unir pessoas a partir de suas preferências musicais

Com diversidade de temas, a Obvious reúne análises e comentários sobre cultura

Sheets Search reúne partituras de música erudita digitalizadas

minimecenas.com.br

tastebuds.fm

obviousmag.org

sheetsearch.com

Criado a partir de uma ideia da cantora pernambucana radicada em São Paulo, Lulina, o Minimecenas é mais um dos sites preocupados com o futuro dos artistas e da arte. A ideia é fazer com que os usuários se unam para pagar pequenas quantias mensalmente, buscando sustentar projetos de nomes como Arnaldo Baptista, Fábio Trummer e Alexandre Soares Silva – as contrapartidas deles vão desde compor músicas a publicar contos e postagens em blogs. A intenção é trocar o foco do financiamento coletivo da obra para os artistas, permitindolhes uma maior liberdade.

Com a teoria de que a música pode ser um fator em comum entre duas pessoas – usando a premissa de Rob, do romance Alta fidelidade, que diz ser importante aquilo de que você gosta, e não como você é –, o Tastebuds. fm indica aos seus usuários possíveis amigos. Existem duas formas de medir a afinidade com os outros participantes do site, criado pelos britânicos Alex Parish e Julian Keenaghan: ou se conectando a partir de uma conta no Last.fm, espécie de rádio online que armazena as músicas executadas por um usuário, ou escolhendo suas bandas favoritas.

O tudo, o nada, o intemporal e o aparentemente sem importância: esse é o foco da revista online Obvious. Propondo-se a uma reflexão mais demorada sobre os acontecimentos e mudanças culturais, o projeto seleciona blogs e colaboradores que tenham uma proposta semelhante para hospedar suas matérias e encaminhar usuários para a página. Com atualizações frequentes, as temáticas do endereço vão de artes, arquitetura, música e cinema até tecnologia, design e carros.

Com mais de 10 mil peças, o Sheets search é um dos sites essenciais para músicos eruditos. Seu sistema de busca direta traz a partitura de diversas composições de nomes clássicos, como Beethoven, Bach, Schubert e Wagner, chegando ao contemporâneo Philip Glass e ao brasileiro Heitor Villa-Lobos. Os arquivos estão disponíveis em PDF e podem ser encontrados pelo nome ou pela listagem de artistas, organizada em ordem alfabética.

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blogs COLUNA blogsdoalem.com.br

Na sua página, Vitor Knijnik continua sua coluna mensal na Carta Capital, a Blogs do Além, escrevendo toda semana um diário pessoal como se fosse uma celebridade morta, como Mussum, Marx ou Balzac.

PÔSTERES geisterstadt.tumblr.com

NAVEGAÇÃO SEGURA PARA CRIANÇAS Com aparência infantil, o KidRex cuida para que o público dessa faixa etária não se depare com conteúdos inapropriados kidrex.org

Mesmo que a maioria das empresas de internet se preocupem em

classificar e limitar os conteúdos inadequados para adolescentes e crianças, é bem provável que se esbarre em páginas sobre violência ou pornografia fazendo, por exemplo, pesquisas em um site de buscas. Adultos podem escolher o que querem acessar com maior discernimento, mas o consenso alerta que é preciso proteger os usuários mais novos, principalmente quando eles navegam sozinhos na rede. É exatamente essa a função do KidRex (em inglês), mais um dos projetos virtuais voltados para atender ao universo infantil. Ele serve como uma boa página inicial para crianças que precisam fazer pesquisas escolares ou procurar sites de jogos, dando destaque àqueles centrados em informações de interesse das crianças e pensados especialmente para elas. Além disso, oferece para os pais dicas de como seus filhos devem navegar pela internet, recomendando que se observe os mais novos e também que os ensine quais locais da rede são seguros. O design do KidRex é feito com traços infantis, e os usuários de todo o mundo podem mandar desenhos inspirados no leiaute da página para serem mantidos em uma galeria. DIOGO GUEDES

O Geisterstadt é um dos Tumblrs mais interessantes da internet, reunindo belos pôsteres de shows – estrangeiros, na maioria – de grupos como Mudhoney, High on Fire, Wolfmother e Queens of the Stone Age.

CINEMA iwdrm.tumblr.com

Com um ano de existência, o If we don’t, remember me produz alguns do mais interessantes gifs animados, pegando cenas de filmes como Blow Up, 2001, uma odisseia no espaço e O iluminado.

POP colunas.epoca.globo.com/menteaberta/

O blog Mente Aberta, parte do site da revista Época, traz notas, comentários, listas e vídeos sobre a cultura pop mundial e nacional, também de olho nos comentários que circulam nas redes sociais.

sites sobre

ace rvo s fotog rá ficos SOCIAL

MESTRE

COLORIDAS

amazonasimages.com

alafoto.com/listing/thumbnails. php?album=41

revistafotografia.com.br

A Amazonas Images mantém no seu site o acervo de fotos de Sebastião Salgado, famoso por seus retratos e fotorreportagens sociais.

A página da Alafoto traz cerca de 300 obras do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, que cunhou o conceito do “instante decisivo”.

O fotógrafo Prokudin-Gorskii, de 1909 a 1915, tirava fotos coloridas antes da invenção do filme com cores.

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con ti nen te

Portfólio

André Teixeira

Os esportes e a cidade TEXTO Ricardo Mello

A fotografia de esporte exige disparos rápidos, movimentos ágeis de câmera e,

normalmente, após os disparos, avalia-se o resultado fotográfico obtido com teleobjetivas longas a mais de 10 frames por segundo. Este ensaio de André Teixeira subverte as regras do jogo e tem em sua essência a desaceleração. A consequência desse modo de fotografar nos leva à reflexão e à percepção de um modo de praticar esportes que vai além do esforço físico. Acostumamo-nos a ligar os esportes a marcas de sucesso. Essas marcas, normalmente, aparecem recheadas de glamour e são consumidas em alta definição nas TVs, em qualidade extraordinária na impressão em revistas. Mas a fotografia apurada revela o taco de golfe e a leve envergadura que o momento exige. Movimento sutil diante da realidade rasgada. Saltar mais alto do que o Pão de Açúcar passa a ser um objetivo de vida, fruto de um enquadramento em contra-plongée, que faz dialogarem gente e natureza sublime. Uma relação de proporções irreais, que se torna possível na interação do fotógrafo com seu tema. Correndo o olhar pelo ensaio, chegamos aos detalhes arquitetônicos que recortam a realidade de uma favela carioca. Ao fundo, a estrutura sólida da montanha, que parece testemunhar a luta

Página anterior 1 GOLFE

Imagem contrasta com a teoria de que esse é um esporte para ricos Nestas páginas 2 skate

Fotógrafo cria ilusão de ótica com movimento de esportista

3 boxe

Treino em um ringue improvisado sobre laje de uma favela carioca

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Portfólio

diária pela sobrevivência do pai que ensina ao filho como crescer e defender seus ideais. Mas essa é uma reflexão pessoal. Certamente, o leitor fará a própria leitura da imagem do homem treinando boxe com o garoto numa laje de uma favela. As fotografias não revelam identidade, deixam que o espectador construa o próprio personagem. Essa é a principal experiência que o ensaio promove. Provocanos e insiste que façamos a leitura do que vem depois da curva da ladeira serrilhada, percorrida pelo skatista sem luvas, capacete ou qualquer tipo de proteção. Uma forma de “desproteção”, aventura ou apenas diversão. E, então, sentimo-nos imóveis, com

os dois garotos que observam o não movimento do que deveria ser tremulante e parecem imaginar como fazer para soltar pipas gigantes. A doce arte do imaginar. Por fim, a bola dominada por duas sombras, uma gerada pela contraluz do homem, e, outra, por sua imagem distorcida no chão de pedras. Parece que uma disputa com a outra a melhor forma de fazer embaixadinhas de chinelos. Olham-se e competem, movimento a movimento, cada uma na sua vez e ao mesmo tempo. Movimentamonos pelo ensaio de André Teixeira como se fôssemos personagens de uma peça de seis atos.

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4 parapente Crianças observam os elementos da beira-mar Na favela 5 Esporte radical, sem proteção, em plena ladeira

6 composição Imagem brinca com a contraluz e a sombra de peladeiro

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Fotos: divulgação

UMA EXPLICADORA E TANTO

Comunidade utópica Se Woodstock foi um marco da contracultura dos anos 1960/70, não resta dúvida de que seu congênere mais duradouro é o Burning Man, que já conta 25 anos de história. Embora não se trate exatamente de um festival de música como aquele primeiro, possui a essência jovial e libertária que animou os hippies, ainda que trazendo para hoje as suas demandas. Durante uma semana, sempre do final de agosto para o começo de setembro, monta-se no deserto de Nevada (EUA) uma cidade temporária chamada Black Rock City. Basta dar uma olhada numa imagem aérea do lugar para dimensionar a sua organização espacial: um semicírculo de oito anéis de “quadras” de trailers e tendas é formado em torno da arena central, na qual é erguido um boneco gigante – o tal Burning Man –, que se tornará uma imensa brasa, na noite de apoteose do encontro. Enquanto esse totem se mantém intacto, milhares de atividades artísticas e de autoexpressão se desenrolam na planura árida do lugar. À primeira vista, aquilo pode parecer um carnaval de malucos da Nova Era, mas essa é apenas uma impressão exógena. Embora o Burning Man – que este ano teve sua lotação limitada a 50 mil participantes – seja também um aloprado encontro de alternativos de várias tendências, ele se estrutura em 10 princípios, que trazem a marca do ativismo político. Entre eles, estão a inclusão radical (qualquer um pode se expressar durante o evento), a desmercantilização (o veto a qualquer manifestação de consumo e publicidade), a responsabilidade cívica, o espírito colaborativo e o respeito à natureza. Depois que a festa acaba, não sobra um rastro qualquer de sua presença. ADRIANA DÓRIA MATOS

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A FRASE

“Só amanhece o dia para o qual estamos despertos.” Henry David Thoureau

Este ano, o escritor gaúcho Fabrício Carpinejar está fazendo a série de reportagens especiais – Beleza Interior – para o jornal Zero Hora. A ideia é revelar coisas inusitadas das cidades periféricas do Rio Grande do Sul. Em uma de suas andanças, ele descobriu que, em Rio Grande, município de 195 mil habitantes, localizado no extremo sul do estado, a 311 quilômetros de Porto Alegre, ainda existe a explicadora, ofício de outros tempos do cinema. Ao invés dos atuais trailers de lançamentos, Carine Duarte de Cantes, 32 anos, uniformizada de vermelho, realiza sinopse falada do filme a ser exibido: “Boa tarde, bem-vindo ao Cine Dunas e a Kung Fu Panda 2. Neste filme, Po terá que lutar junto aos seus amigos contra um vilão que deseja destruir a China”. Carine é a porta-voz da única rede de cinema na cidade, com uma filial no Centro (desde 2008) e sede na praia de Cassino (desde 2005). Ela ainda atende na bomboneira, apronta café, prepara a pipoca, retira o lixo das poltronas e recolhe os ingressos na entrada. Para os saudosos das figuras do lanterninha e do pianista, a voz sensual de Carine personaliza o contato dos espectadores com o cinema. O segredo da moça talvez seja o de ter trabalhado, anteriormente, como telefonista de motel. (Pedro Paz)

Balaio um colaborador e tanto

Pouco se sabe sobre a valiosa contribuição que o aclamado diretor Martin Scorsese recebeu de Robert De Niro em dois dos seis filmes que contou com o ator no elenco, Touro indomável (1980) e Taxi driver (1976). Numa das cenas mais marcantes deste, De Niro partiu da simplória descrição “personagem fala com o espelho” e construiu a emblemática cena na qual, diante de seu reflexo, “ensaia” a fala de uma possível briga na rua. O artista, que convenceu Scorsese a filmar Touro indomável, chegou mesmo a redimensionar algumas tomadas, como a da prisão. O cineasta queria que o personagem se masturbasse . De Niro o convenceu de que o mais apropriado seria que ele esmurrasse as paredes. O talento e a sensibilidade do ator, no entanto, não o impedem de se colocar em produções questionáveis, como as sequências de Entrando numa fria. (Débora Nascimento)

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X-GIRLS FOGOSAS Amantes do X-Men estão “de cara”, diante da parceria entre Milo Manara e a Marvel. O italiano, com auxílio do roteirista Chris Claremont, é o responsável pela erotização das heroínas do grupo mutante, através da história Garotas em fuga, na qual Manara subverteu a ordem do universo comandado pelo professor Xavier. Para agradar ao italiano, Claremont providenciou um roteiro sem a participação de nenhum dos homens da história, deixando apenas as garotas como protagonistas. O que deu brecha para que as “duronas” Tempestade, Vampira e Lince Negra – entre outras – virassem femmes fatales, e fossem desenhadas em posições para lá de insinuantes. Sensual? Sim, mas absolutamente destoante do caráter do grupo. Nem nos piores confrontos com o vilão Magneto, ou com a vilã Mística, as heroínas passaram por tamanho aperto e vexame. Manara e as x-girls podiam dispensar esse episódios dos seus currículos. (Danielle Romani)

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EXÉRCITO PUNK Acaba de sair no Brasil Hey ho let´s go, uma riquíssima biografia dos Ramones. Escrita por Everett True, jornalista que revelou o grunge na Inglaterra, o livro tem uma pesquisa tão rigorosa, que o detalhismo chega a comprometer a fluidez da leitura. Por outro lado, True lista curiosidades que ficaram de fora do catálogo biográfico dos punks de NovaYork (que já somava um documentário e três outras bios). No meio do entretenimento, os Ramones eram queridos pelos produtores por sua conhecida ultradisciplina – o líder, o guitarrista Johnny Ramone, tinha um apelido pertinente: sargento. De fato, Johnny foi militar antes de entrar na banda. Nos anos 1990, quando o baixista Dee Dee deixou o grupo, Johnny fez testes com dezenas de candidatos. O substituto, CJ Ramone, tinha uma prerrogativa sobre os rivais: era outro ex-militar disciplinado. Mas o mesmo não se podia dizer do vocalista Joey(foto), que bebia escondido nas turnês: o “sargento” aplicaria multas, caso algum integrante fosse visto bebendo. (Thiago Lins)

Nelson Cavaquinho (1911-1986) Por Leo Martins

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Na viagem da imagem lúdica

A preocupação com a qualidade estética dos livros infantis está se tornando regra, transformando-os em itens sofisticados em uma estante de qualquer leitor, independentemente da faixa etária texto Gianni Paula de Melo

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“Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, ‘e de que serve um livro’, pensou Alice, ‘sem figuras nem diálogos?’”. A literatura é muito feliz nas reflexões que faz para dentro, metalinguisticamente. Não é curioso que as aventuras dessa personagem tenham sido impulsionadas justamente por um livro sem imagens? Que exatamente ela se queixe pela falta de figuras nas publicações? Logo Alice, cuja história se tornou um clássico da literatura infantil, não apenas pelo fantástico de seu texto, mas também pelas diversas interpretações imagéticas nas suas várias edições.

Ilustradores e artistas como John Tenniel, Arthur Rackham, Salvador Dalí, Peter Newell e até o próprio autor Lewis Carroll traçaram e coloriram versões da personagem, e, no entanto, nenhuma delas impediu o leitor de criar o próprio repertório visual para essa história. Ainda assim, muitas pessoas acreditam que a ilustração limita a narração literária e a capacidade do texto em sugerir imagens. Com o maior interesse das editoras por obras do gênero infantojuvenil, preconceitos como o citado vêm diminuindo, mas essa é uma transformação gradual que tem demandado reflexão. Durante muito tempo – e ainda hoje –, o livro ilustrado esteve associado aos leitores menos experientes ou hábeis para a fruição

estética do verbal; uma perspectiva das imagens pelo viés puramente explicativo, de quem entende que elas exigem menos competência cognitiva. Em parte, o grande número de publicações com finalidade apenas moralizante e conteúdo “infantilizado”, no sentido pejorativo do termo, colaboraram para essa rejeição ao gênero. Isso porque muitas editoras enxergavam nessa categoria apenas um nicho mercadológico e não havia, propriamente, cuidado visual ou literário. Aos poucos, porém, os grupos preocupados com a qualidade estética dos livros para crianças estão deixando de ser exceção e tornando-se regra. Inicialmente concebidos para estimular os pouco letrados e recémalfabetizados, os livros infantis

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ilustrados se sofisticaram e, hoje, compõem estantes independentemente da faixa etária dos seus donos. Curiosamente, em outras esferas, os produtos infantis também encontram uma nova tônica. É o caso dos filmes de animação, que nos parecem mais inteligentes. Aos poucos, descobrimos como trabalhar a linguagem – nos diversos campos da arte – da forma mais eficiente para as crianças do nosso tempo. Aqui, é importante lembrar que os pequenos do século 21 vivem numa sociedade repleta de

referências visuais e, nesse sentido, os ilustradores experimentam um verdadeiro desafio: como fazer com que os desenhos do livro infantil, em conjunção com sua narrativa literária, provoquem encantamento do olhar e a inteligência dessas crianças que já crescem rodeadas por imagens? Ao nos depararmos com produtos complexos e artísticos, começamos a perceber que a ilustração não exige menos do ato de leitura, ao contrário, demanda outro grau de envolvimento do leitor. Afinar a poesia do texto

com a da imagem requer atenção, disposição, esforço crítico e sensível. No entanto, grande parte do público está tão afetada pelo entendimento da literatura infantojuvenil como algo menor, que não consegue acreditar que Bili com limão verde na mão, escrito por Décio Pignatari e ilustrado por Daniel Bueno, ou o Livro das perguntas, escrito por Pablo Neruda e ilustrado por Isidro Ferrer, estejam mesmo incluídos nesse catálogo. Quer dizer que o belo é departamento dos adultos e às crianças cabe apenas o simplório?

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Um fator que agrega beleza e variedade ao livro ilustrado contemporâneo é a multiplicidade de estilos e técnicas

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1 ALICE Uma das mais recentes interpretações visuais para o clássico de Lewis Carroll foi realizada pelo artista plástico Luiz Zerbini 2 VARIEDADE Muitas publicações contemporâneas, como O teatro de sombras de Ofélia, exploram cores mais sóbrias 3 livro das perguntas

A sofisticação das ilustrações de Isidro Ferrer chama a atenção dos leitores adultos

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AVANÇOS TÉCNICOS

Um fator que agrega beleza e variedade ao livro ilustrado contemporâneo é a multiplicidade de estilos e técnicas espalhados pelas páginas. Embora as diversas estéticas sejam fruto, sobretudo, do exercício criativo dos profissionais, a evolução material e tecnológica também colaborou para a melhoria das publicações. No século 15, quando a impressão de livros em escala tornou-se possível com a invenção de Gutenberg, os ilustradores se viram obrigados a

limitar seus recursos. Antes disso, no Ocidente, eles já atuavam na criação das chamadas iluminuras – imagens presentes nos manuscritos medievais. Por mais de quatro séculos, as impressões foram realizadas a partir de matrizes de madeira entalhada – xilogravura – e, posteriormente, em chapas de cobre; técnicas que impunham bastantes restrições à criação de imagens. Apenas no século 19, em plena era vitoriana, é que os livros passam a ser concebidos em cores com uma qualidade razoável,

favorecidos pelo surgimento da litografia e da fotografia. Nesse período, a literatura infantil avança em outros aspectos. Sob efeito da Revolução Industrial e com o fortalecimento da burguesia, a sociedade se reconfigura e a atitude em relação às crianças, tratadas até então como meros “adultos pequenos”, também se modifica. O livro destinado a esse público, tal qual compreendemos hoje, com premissas artísticas, formativas e lúdicas, surge nessa época. Naquele momento, no entanto, as publicações refletem o conservadorismo e o convencionalismo das elites; os costumes vão influenciar os seus conteúdos verbais e visuais. Atualmente, ainda que existam os puristas, é inegável a importância do computador e dos avanços digitais para a ampliação das possibilidades imagéticas nos livros. Não se trata de uma ode desmedida à tecnologia, pois a realização criativa, como frisado anteriormente, é, sobretudo, humana, e o lápis não deverá ser abandonado. Porém, é bastante óbvio que a indústria gráfica superou várias limitações a partir do desenvolvimento técnico. Paralelamente, outros aspectos foram essenciais ao enriquecimento das obras infantis ilustradas. Hoje, passeamos não só por desenhos em tinta acrílica, aquarela, guache, pastéis, lápis de cor e, mais raramente, óleo, mas também por colagens referenciadas pelo Cubismo, por exemplo. Isso porque, ao poucos, o campo foi abraçando experimentalismos, inclusive tornando mais frequente a prática de ilustrações por artistas plásticos. Um bom exemplo desse diálogo pode ser observado em O fazedor de velhos, de Rodrigo Lacerda, cujas imagens são assinadas pela mineira Adrianne Gallinari. Em seus trabalhos, a artista costuma utilizar tecidos como suporte para desenhos feitos com nanquim, giz de cera e grafite e, no livro, seu

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con especial ti nen te traço simples dialoga com a delicada história sobre o amadurecimento do personagem Pedro, que encontra na literatura o caminho para buscar as respostas dos seus dilemas existenciais. Outro projeto inusitado foi o desenvolvido pelo artista paulistano Luiz Zerbini, integrante do coletivo Chelpa Ferro, para mais uma edição de Alice no país das maravilhas. Zerbini possibilitou imagens completamente novas, a partir de maquetes com cartas de baralho. Depois de tudo montado, a partir de recortes, elas foram fotografadas por Julio Calado e todos os efeitos que percebemos resultaram apenas do trabalho de iluminação. Na contramão dos avanços, parte do público percebe nessas inovações de linguagem um efeito hermético, impossível de ser apreendido pelas crianças. Uma leitura típica de quem subestima a astúcia dos pequenos para sentir e interpretar o visual. Além disso, é uma perspectiva que pressupõe a experiência de leitura como algo uniforme, quando, na verdade, estão em jogo fatores como memória, experiência, expectativa e atenção do leitor, que sempre vão gerar compreensões diversas. Em outras palavras, a criança está apta a preencher os vazios verbais e visuais deixados no texto, à sua maneira, dentro dos seus limites de vivência e olhar criativo. Contrária à percepção de que alguns livros ilustrados complexos são impenetráveis para os menores, a escritora pernambucana Luzilá Gonçalves afirma: “As crianças são muito sensíveis e inteligentes, até mais que os adultos. A imaginação delas é muito fértil e deve ser estimulada, o que nem sempre acontece. Às vezes, os pais e a escola podam essa imaginação”.

O LUGAR DA IMAGEM

Ao contrário do que pode parecer, nem todas as obras infantojuvenis com imagens são consideradas, stricto sensu, livros ilustrados. A mencionada edição de Alice, com fotos das maquetes de Luiz Zerbini, por exemplo, dentro de uma classificação mais específica, deve ser considerada um livro com ilustração, pois, nesse caso, o texto é predominante e a ocorrência de imagens é pontual. Existem outras variantes, dentro do gênero, que

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Nem todos os títulos infantis que possuem imagens são considerados, rigorosamente, livros ilustrados

também se aproximam dos chamados livros ilustrados, mas não os são, propriamente. Entre eles, estão os livros pop-up, aqueles que abrigam, entre as páginas duplas, abas e encaixes, permitindo a mobilidade dos elementos e até mesmo um desdobramento tridimensional, e os livros-brinquedos, objetos híbridos, geralmente feitos por materiais variados como pelúcia e plástico. Ambos possuem um papel lúdico importante na educação das crianças, porém integram categorias específicas.

Mas, então, o que seria determinante para definir uma publicação como livro ilustrado? O que obras como O pote vazio (Demi), Onde vivem os monstros (Maurice Sendak) e O teatro de sombras de Ofélia (Michael Ende e Friedrich Hechelmann) apresentam em comum? A especificidade dessa classificação é, justamente, a preponderância dos elementos visuais. Eles são indispensáveis para a compreensão do livro, sobrepõem sentidos e afetam a sua fruição. Não são meramente ornamentais e, em alguns casos, chegam ao extremo de dispensar o verbal – são os chamados livrosimagem. Um nome de destaque nesse segmento é o do húngaro Istvan Banyai, autor das publicações Zoom e O outro lado, nos quais constrói narrativas a partir da variação de pontos de vistas e do exercício de distanciamento e aproximação do olhar.

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4 EQUILÍBRIO Em obras como O pote vazio, os elementos visuais e verbais possuem a mesma importância para a narrativa LIVRO-IMAGEM 5 A trilogia da sul-coreana Suzy Lee estimula as crianças a construir as próprias histórias, a partir, unicamente, dos desenhos

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Também é impossível não mencionar a trilogia da sul-coreana Suzy Lee, formada pelos livros Onda, Espelho e Sombra. Os três partem de temáticas que, por si só, já sugerem uma poética e suas imagens em lápis de cor e carvão estão distribuídas de maneira que sua justaposição nas páginas estabelece interação. A costura da obra se torna quase invisível, tamanha a organicidade da criação com o formato do suporte. Enquanto, em Onda, temos a areia e o mar separados pela divisória do livro, e uma menina diante daquela imensidão desconhecida – espécie de metáfora do encontro com o outro –, em Espelho, o enfrentamento da personagem é com o eu e, visualmente, a artista recorre ao efeito da simetria. Sombra, por fim, brinca com o real e o imaginário, apresentando reflexos fantásticos. Todos eles criam um universo mágico, sem utilizar nenhuma palavra, estimulando a imaginação

Quando se estabelece uma relação prioritária com a palavra, passamos a nos relacionar pouco com as ilustrações dos que ainda não sabem ler, mas também convidando os já alfabetizados a produzir suas próprias histórias. O presente, primeiro livro-imagem de Odilon Moraes, é um belo representante dessa produção no Brasil. Abordando aquela que é, talvez, a maior paixão nacional, o ilustrador promove um sensível retrato da nossa relação com o futebol; da forma como nos envolvemos e nos decepcionamos com ele e por ele. Para isso, são utilizadas as cores da bandeira e padrões nacionais. O livro, que também

trata de lembranças e expectativas, é predominantemente azul e branco, acolhendo ainda as camisas verdes e amarelas dos tempos de Copa do Mundo. É fácil perceber que muitos adultos passam os olhos desatentos pelos livrosimagem, interpretam suas narrativas e os fruem rapidamente. Quando estabelecemos uma relação prioritária com a palavra, em geral, passamos a nos relacionar pouco com as ilustrações: atropelamos as expressões dos personagens e as peculiaridades do cenário, ignoramos as formas, cores e detalhes. Para as crianças, entretanto, esses componentes são caros; elas constroem sentidos mobilizando todas as informações apresentadas, como se juntassem peças de um quebra-cabeça. Mas, ao final, a decodificação – não só do visual, mas também do verbal – nunca lhes parece suficiente ou completa, e elas precisam ler de novo, e de novo, e de novo, as mesmas histórias.

DIÁLOGO COM O TEXTO

Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino relembra a importância das ilustrações para o seu empenho criativo: “A leitura das figurinhas sem palavras foi, sem dúvida, uma escola de fabulação, de estilização, de composição da imagem”. Na nossa tentativa de facilitar o entendimento do mundo, separamos conceitos. Esquecemos, dentre outras coisas, que a palavra começou na imagem – desde as pinturas das cavernas, buscávamos comunicação e passamos por várias estruturas icônicas, até criarmos um sistema alfabético eficiente. Essas linguagens não devem ser pensadas em um movimento de disputa, pois ocupam lugares específicos e somam sensibilidades. No livro ilustrado, isso é evidente. Podemos notar que, independentemente do que optamos

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Entrevista

Daniel bueno “vejo sempre o ilustrador como autor” Com uma intensa rotina de colaboração para mais de 50 revistas e jornais, o artista gráfico Daniel Bueno ainda encontra tempo para desenvolver uma linguagem bastante pessoal no campo da ilustração para livros infantis. O paulista, formado em Arquitetura, também é um dos fundadores da revista coletiva de serigrafia Charivari e integra o conselho da Sociedade dos Ilustradores do Brasil (SIB). Em entrevista para a revista Continente, ele fala de sua preferência por contornos geométricos, texturas e ambiguidades gráficas. CONTINENTE Como funciona o seu processo de criação de ilustrações para os livros infantis? DANIEL BUENO Normalmente, recebo o texto com mais algumas informações básicas e faço uma primeira reunião com os editores e designers para discutir as especifidades e intenções do trabalho. Não é comum, mas uma vez ou outra já fiz um primeiro encontro com o autor, também. É importante entender qual é a expectativa, se querem algo próximo do meu estilo habitual ou se estão abertos a experimentações, porque é na área dos livros infantis que apresento maior variedade de soluções. Também considero o campo com maior abertura a trabalhos experimentais. CONTINENTE Quais as técnicas que você mais utiliza? DANIEL BUENO No início de carreira, quando trabalhava para revistas e jornais, concentrei-me em desenvolver um estilo com contornos geométricos, texturas e colagem. Meu primeiro livro infantil foi O pequeno fascista (de 2005, com texto de Fernando Bonassi), e nele empreguei o meu estilo habitual. Posteriormente, fiz vários livros nessa linguagem, que é interessante para a exploração da fantasia e da distorção: Histórias de bicho feio (de 2006, com texto de Heloisa Seixas), O grande circo do mundo (de 2010, com texto de Marta de Senna),

Apolinário, o homem-dicionário (de 2011, com texto de Fabio Yabu) etc. Quando tenho que desenvolver ilustrações nesse estilo, preciso de um bom prazo, pois o processo é longo e trabalhoso. Em geral, ele não varia muito: uma vez feitos os rascunhos, envio os mesmos para o editor de arte. Depois de tudo aprovado, parto para a finalização: desenho os contornos de todas as figuras a lápis, em papel sulfite, e transponho-os para papel duro. Aplico sobre essas figuras as técnicas de colagem, gerando elementos soltos, como “bonequinhos de papel”. Escaneio as peças separadamente e resolvo no Photoshop a composição, contrastes, claro/escuro, cores. CONTINENTE E quando você precisa fugir da sua técnica habitual, como é o processo? DANIEL BUENO O processo de trabalho de um livro experimental pode ser bastante diferente, os caminhos são mais tortuosos. O primeiro livro que ilustrei

e que saiu do meu estilo habitual foi Um garoto chamado Rorbeto (Cosac Naify, 2005, Gabriel o Pensador). No começo foi difícil, fiz desenhos com traço a lápis, fiquei um tempo perdido. Mesmo após ter definido um estilo com a editora, com colagens soltas de elementos gráficos (sem precisar pintar peças com tinta acrílica), demoramos a concluir que os personagens ficariam em segundo plano, aparecendo na maior parte das vezes em detalhes ou fragmentados. O interessante é que, mesmo com as experimentações, procuro não fugir totalmente das minhas características, mantendo os contornos geométricos ou a colagem, por exemplo. CONTINENTE Que aspectos do texto são determinantes para você pensar a estética visual do livro? DANIEL BUENO Há mais de um aspecto importante: a linguagem, o modo de escrever, os aspectos estéticos – varia de texto para texto. Isso foi fundamental

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reprodução do livro o pequeno planeta perdido de ziraldo

na hora de fazer Bili, do poeta Décio Pignatari, por exemplo. Cada palavra, ali, tinha uma importância, nada era gratuito, e o mesmo teve que ser feito com os elementos das ilustrações, que buscaram a síntese e as formas geométricas básicas do Concretismo. Outro livro, A janela de esquina do meu primo (Cosac Naify, 2010), escrito em 1822 pelo alemão E.T.A. Hoffmann, marca um caminho do escritor em direção ao Realismo; é bastante descritivo e atento aos costumes e trejeitos das pessoas, e isso influenciou bastante a ilustração. Há, também, a importância do tema e do tom do livro: no Pequeno fascista, há a mistura de crítica social e tom pesado. Já em Histórias de bicho feio, os “bichos feios” são apresentados de modo irreverente e engraçado, e as imagens buscam se harmonizar a isso. Dois de meus livros preferidos, os já citados Bili e A janela, apresentam textos totalmente diferentes, de épocas diferentes. O que há em comum é uma ótima qualidade literária, que já é por si só motivadora. Gosto de textos que trazem subtextos. CONTINENTE A autoria em um livro ilustrado é entendida como partilhada entre escritor e ilustrador? DANIEL BUENO Bem, entendo que em um livro ilustrado ambos são autores. Claro que, formalmente, isso varia, mas aí entra a negociação de um trabalho encomendado, cada caso é um caso – de qualquer forma, vejo sempre o ilustrador como autor ou coautor em um livro ilustrado. CONTINENTE Quais ilustradores de livros infantis são referências para o seu trabalho? DANIEL BUENO As referências não estão apenas nos livros, como também nas artes, design, quadrinhos etc. É sempre difícil citar nomes e fazer uma lista enxuta, mas os artistas que mais me inspiram, atualmente, são aqueles que desenvolvem (ou desenvolveram) trabalhos experimentais: Bruno Munari, Paul Rand, Wolf Erlbruch, Kvêta Pacovská, Katsumi Komagata, Paul Cox. Do Brasil: Ângela Lago, Andrés Sandoval, Fernando Vilela, Roger Mello, entre outros. gianni paula de melo

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ler primeiro – imagem ou palavra –, um gera expectativa sobre o outro. Além disso, o mesmo princípio de que o verbal deixa brechas para serem preenchidas pelo leitor também vale para a dimensão visual. Como, em geral, as histórias são escritas e, posteriormente, recebem as imagens, a qualidade necessária a um bom ilustrador está diretamente associada a duas competências: a primeira é a de ser um bom leitor, para poder inserir nessas lacunas textuais novas camadas de sentido; a segunda é a de fazer com que essas novas camadas não signifiquem uma redundância, ou seja, captar estilo e tom da história para criar contrapontos interessantes, sem chegar ao incoerente. Os textos poéticos e fantásticos são, costumeiramente, apontados como os preferidos pelos profissionais da imagem. Para o ilustrador André Neves, a melhor experiência de criação são aquelas realizadas a partir “dos textos com narrativa aberta, que deixam o imaginário livre, com situações fantásticas e que proporcionem a sensação de sonho”. Essa mesma qualidade da narrativa é apreciada por Renato Alarcão, que aponta preferência pelos textos que “abrem portas para sair um pouco da realidade objetiva, desse mundo regido por regras de perspectiva e lei da gravidade”.

6 INFLUÊNCIA O trabalho de Ziraldo é uma referência para grande parte dos ilustradores brasileiros

Se estamos defendendo o valor equivalente do verbal e do visual nos livros ilustrados, partindo da compreensão de que essas obras só podem ser apreendidas pelo diálogo sem limites entre esses dois eixos de criação, chegamos a um ponto delicado desse universo, que é a questão da autoria. Embora estudiosos defendam que, nesse caso, ambos são autores – escritor e ilustrador –, esse entendimento ainda não está fortemente disseminado. Alarcão acredita que a dificuldade para modificar esse pensamento começa nas próprias editoras: “As editoras não me parecem ter pelos ilustradores o mesmo respeito e consideração que têm pela figura do escritor. Às vezes, parece mesmo que elas nos vêm como fornecedores, alguém cujo trabalho entra na mesma planilha onde estão os custos de papel e impressão”.

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7 tiragem Muitos livros ilustrados, de alta qualidade, não estão mais disponíveis no mercado nacional, como Princesas esquecidas ou desconhecidas... EXPERIMENTAL 8 A artista tcheca Kveta Pacovská vem desenvolvendo um dos trabalhos mais autorais no campo da ilustração infantil

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Por outro lado, esse reconhecimento da coautoria também deve vir dos consumidores desses produtos. “Mas ainda falta muito para atingirmos um público leitor de imagens que reconheça a importância das ilustrações na construção de um imaginário que vai além das palavras”, opina André Neves.

REFERÊNCIAS

Quando questionamos os ilustradores contemporâneos sobre um livro que mereça atenção especial por sua qualidade artística, eles divagam entre inúmeros exemplos, mas existe uma publicação nacional que dificilmente fica de fora: Flicts. O livro de Ziraldo, com sua simplicidade imagética, apresenta uma poesia muito sutil e particular, ao contar a história de uma cor rejeitada. O autor, aliás, nos legou uma série de personagens memoráveis, como o Menino Maluquinho e o Pererê,

“Não devemos explicar nada a uma criança, é preciso maravilhá-la”, aconselha a poetisa Marina Tsvetaeva além de ser o responsável pela parte visual de livros escritos por figuras célebres, como História de dois amores (Carlos Drummond de Andrade), Noções de coisas (Darcy Ribeiro), Chapeuzinho amarelo (Chico Buarque) e O fazedor de amanhecer (Manoel de Barros). Atualmente, um dos nomes mais celebrados no campo da ilustração é o de Odilon Moraes. Em um artigo intitulado O projeto gráfico do livro infantil e juvenil, ele compara: “Da mesma maneira que um projeto de uma casa não se limita a uma ideia de

casa, mas, sim, à ideia de um morar dentro de uma forma particular de disposição de espaços e ambientes, assim também o projeto gráfico de um livro propõe seus espaços, compostos por textos e imagens, e constrói um ambiente a ser percorrido”. Em seus trabalhos, essa preocupação é patente, como vemos nos livros premiados Pedro e Lua e Ismália. Esse último, esgotado na editora, é resultado de um ousado projeto de adaptação da poesia do simbolista Alphonsus Guimaraens para o formato do livro ilustrado. Fisicamente, o produto se aproxima do artesanal, com uma capa revestida de tecido e as páginas unidas em formato de sanfona. O texto do poeta mineiro é combinado com aquarelas em tons de marrom e a dinâmica de leitura brinca com a oposição céu e mar, proposta nos versos que são distribuídos explorando o eixo vertical da folha de papel.

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De forma geral, os ilustradores mais autorais e marcantes são aqueles que internalizam a seguinte recomendação da poetisa russa Marina Tsvetaeva: “Não devemos explicar nada a uma criança, é preciso maravilhá-la”. A artista tcheca Kveta Pakovscá compreende bem essa premissa. Em seus trabalhos, como na recente edição de João e Maria, da Cosac Naify, ela abusa da saturação de cores e aposta em uma espécie de surrealismo geométrico, que é próprio do seu estilo, fortemente influenciado por artistas como Kandinsky e Miró. No Brasil, O reizinho das flores é uma de suas publicações mais famosas. As obras do alemão Wolf Erlbruch também são extremamente pessoais

e devem ser lidas minuciosamente. Em geral, suas narrativas exploram temáticas existenciais, como é possível observar em A grande questão e em O pato, a morte a tulipa: o primeiro tenta nos responder a pergunta “por que viemos ao mundo?”, enquanto o segundo parece afinado com o drama do “para onde vamos, afinal?”. Seus desenhos, contudo, imprimem certo humor e leveza a esses assuntos essencialmente densos. Menos conhecida, porém igualmente criativa, é a produção da francesa Rebecca Dautremer. Um dos seus livros mais populares, Princesas esquecidas ou desconhecidas..., com texto de Philippe Lechermeier, foi lançado, originalmente, pela editora espanhola

Edelvides e ganhou versão em português pela editora Salamandra, mas essa última já está fora de circulação. As imagens delicadas de Dautremer são exemplares do bem-sucedido uso de texturas, luz e sombra, como também podemos ver nas obras Enamorados e Cyrano. Em um apanhado dos grandes expoentes da ilustração infantojuvenil, não se pode deixar de mencionar o americano Shel Silverstein, cuja vivência do período da contracultura, quando militou a favor do desarmamento e em atenção às questões ecológicas, está fortemente presente em seus livros. Entre suas publicações mais famosas está A árvore generosa, com tradução de Fernando Sabino, que explora não só as questões ambientais, mas uma problemática maior de responsabilidade social e postura cidadã. A quantidade de ilustradores criativos, e que desenvolveram uma estética pessoal, estimulando uma postura experimental das novas gerações, é enorme. Vale lembrar, entretanto, que a formação desse profissional também parte de outras referências, como indica André Neves: “Ainda mantenho um olhar forte nos artistas que fizeram parte do meu universo e formação. Principalmente, os pintores pernambucanos que terão meu encantamento eterno: Samico, Reynaldo Fonsêca, Cícero Dias, Romero de Andrade Lima, Badida, Abelardo da Hora, entre outros”.

PESQUISAS SOBRE O LIVRO ILUSTRADO Para ler o livro ilustrado Sophie Van der Linden (Cosac Naify)

O que é qualidade em ilustração infantil e juvenil – Com a palavra o ilustrador Organizado por Ieda de Oliveira (Difusão Cultural do Livro – DCL) A imagem nos livros infantis – Caminhos para ler o texto visual Graça Ramos (Autêntica) Livros ilustrados: palavras e imagens Carole Scott e Maria Nikolajeva (Cosac Naify) 8

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con especial ti nen te reprodução/elizabeth teixeira

Artigo

cristina almeida chega de literatura para crianças Ex-libris é uma parte importante

do livro que é posterior à publicação, a contribuição do leitor ao projeto gráfico de um objeto recém- adquirido e selado como propriedade particular. Em adesivo ou carimbo, demarcar um território no livro é sinal de uma paixão que pode passar de pais para filhos: compor uma biblioteca pessoal. Para essa composição, é fundamental eleger. Ler é escolher, já disse Paul Valéry, e escolher é julgar, um dos princípios da crítica literária. Recentemente, o clipe Linhas e letrinhas, do DVD Vem dançar com a gente (2011), do grupo Palavra Cantada, toca nesse ponto: “Como pode um homem vivo/ Viver fora de um bom livro/ Se no livro, tem as linhas/ E nas linhas, as letrinhas/ Pra ler/ E reler/ Ler e reler/ Tem livro que é bem grosso/ Tem livro que é de bolso/ Tem livro que é curioso/ Faz bem pra mim/ Tem livro de relato/ Tem livro que é um barato/ Monteiro Lobato/ É bem assim/ Até pra tirar soneca é gostoso de ler/ Basta entrar na biblioteca e escolher...” Escolher um bom livro envolve muitas questões, tanto mais quando o leitor é criança e ainda não foi alfabetizado. Temas construtivos, imagens que exploram traços, cores e texturas agradam bastante e são essenciais nos livros direcionados a esse público. Mas quando a intenção é a educação literária, tudo isso não é suficiente, se a palavra trabalhada no poema ou na narrativa não preza por valores estéticos. Já existem no Brasil clássicos sobre a história e teoria da literatura infantojuvenil, como os livros de Nelly Novaes Coelho, Lígia Cademartori, Ana Maria Machado, dentre outros importantes para a biblioteca dos professores aos quais os pais muitas vezes confiam a seleção de livros para seus filhos. No entanto, a crítica literária especializada sobre esse assunto em livros ou suplementos

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culturais é rara. No ano passado, a tradução tardia do livro Crítica, teoria e literatura infantil, de Peter Hunt, denuncia a carência da crítica literária sobre livros para crianças. Hunt lamenta que a apreciação estética seja vista como inacessível a esse público. E questiona a existência de resenhas descritivas e motivadoras, que muitas vezes não correspondem à especificidade da crítica, o julgamento da obra pela estética e não pela ética. Na estante de livros de uma criança, são usuais Adélia Prado, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro, Manuel de Barros, Fernando Pessoa, José Saramago, Mia Couto, se ficarmos apenas em alguns dos autores em língua portuguesa consagrados pela

crítica literária para “adultos” e que escreveram livros da literatura infantil. No texto Livros para crianças, o crítico literário Anatole France, já no começo do século 20, faz uma consideração pouco vigente nas resenhas de livros infantis, antecipando Hunt. Para o francês, “as obras que mais agradam aos garotos e às meninas são as grandiosas, cheias de grandes criatividades, nas quais a boa disposição das partes forma um conjunto luminoso, e que são escritas num estilo forte e carregado de sentido”. Referências às “obras grandiosas”, a “boa disposição das partes” (imagem e letra), “estilo forte e carregado em sentido” nos remetem às qualidades estéticas de uma literatura atemporal e sem limite de faixa etária. Harold

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9 gêneroS Autores “para adultos” assinam livros de excelência literária para o público infantil, como Adélia Prado, que escreveu Quando eu era pequena, ilustrado por Elizabeth Teixeira

Bloom afirma não gostar da expressão “literatura para crianças” ou “literatura infantil” porque, para ele, tal categoria “é, muitas vezes, a máscara de um emburrecimento que está destruindo nossa cultura literária. A maior parte do que se oferece nas livrarias como literatura para criança seria um cardápio inadequado para qualquer leitor de qualquer idade em qualquer época”. Essa indignação do crítico, devida à ausência de valores estéticos em alguns livros para crianças, mostra que o mercado editorial, muitas vezes, não considera a tradição literária. Por isso, a necessidade de elaborar a antologia Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades, organizada por ele em quatro volumes,

com textos de autores como John Keats, Lewis Carroll, Walt Whitman e outros gênios do cânone ocidental. A concepção de literatura que vamos escolher para as crianças está em questão e a crítica literária especializada poderia escrever mais sobre o assunto. Do que a literatura significa para os pais e professores, suas concepções literárias, dependerá a composição da biblioteca dos pequenos. Quanto mais cedo a criança tiver acesso a livros literários, mais ela poderá ser um leitor seletivo e considerar também os critérios estéticos. Pensar a formação crítica dos pais e do futuro professor de literatura dessa criança é fundamental; eles precisam refletir de forma permanente as concepções de literatura, pois do julgamento de obras depende a seleção desses mediadores imediatos e futuros das escolhas que as crianças farão mais tarde. Cada obra literária promove uma reflexão singular sobre a literatura daquele escritor e época, mas, para João Alexandre Barbosa (2006), uma concepção de obra literária construída na modernidade, e ainda muito importante nos dias atuais, vale para livros de todas as idades. Trata-se de uma literatura regida por “novas configurações”, mesmo com temas recorrentes, os poemas escolhidos considerariam o trabalho “essencialmente de linguagem”, e a narrativa, “a perspectiva ou a criação de personagens”, critérios inovadores e ao mesmo tempo relacionados à tradição literária. Em Quando eu era pequena (2007), de Adélia Prado, a narradora Carmela conta para os leitores as memórias de infância, desde seu nascimento em 1932. O que poderia ser um lugarcomum é reconfigurado pelo modo de contar: o que eu conto é como conto. Além da temática ética da valorização da memória familiar, a forma utilizada, o que enreda a memória são os recursos estéticos: recuperação do narrador - contador de história dos princípios. “A coisa mais boa é ver pai e mãe com cara alegre”, o que para alguns significa simples transgressão à norma -padrão, algo incorreto, mostra a força poética da oralidade, a criança começa a compor sua fala com uma gramática internalizada, sem exceções.

O texto é intertexto e nos leva a outros enredos, ligados ou não ao universo infantil; a importância da imagem do Sítio do Pica Pau Amarelo aparece à Carmela como referência à fuga da cidade sem o deslocamento, a fazenda da avó é o reino da fantasia. Apresentação de prazeres antigos, como a mãe ler para o filho, livros decorados, e a leitura em voz alta do pai recupera mais uma vez o narrador original. Chama a atenção a beleza das metáforas sobre o desejo: “Quando eu era pequena, eu queria que o céu fosse parecido com o nosso quintal...” e a reflexão sobre a recriação da língua pela poesia: “Quando fiquei adulta, descobri uma coisa: aquela língua esquisita que eu inventei se chama poesia”. Há um contato direto com o mundo da criança, especialista em querer e inventar línguas. A seleção de livros para crianças, com base em critérios estéticos, associada à noção de maternagem, como propõem

Quanto mais cedo a criança tiver acesso a livros literários, maior a chance de ser um leitor seletivo e com critérios estéticos Rubem Alves e Roland Barthes, deitar a criança no colo e amamentar a alma, transformaria um ritual fisiológico em simbólico. Numa ressignificação de Sherazade, que lia para não morrer. A última história da noite é suspensa pela frase clássica “continuo amanhã”, a história não finda com o silêncio, mas acolhe o sonho, espaço aberto para as histórias do inconsciente. Quando os pais não procuram informações da crítica para escolher livros com valores estéticos ou o jornalismo cultural não investe nessa faceta, a escola fica com a responsabilidade de oferecer estrutura por meio da formação especializada de mediadores de leitura nas bibliotecas e salas de aula. É importante pensar os conteúdos, as imagens, mas sempre atrelados ao valor estético presente em narrativas originais, nos poemas inventivos, nos clássicos universais e até mesmo nas adaptações repaginadas.

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con especial ti nen te

FOMENTO Formação de leitores e pequenos cidadãos

Companhia Editora de Pernambuco inicia, a partir deste mês, série de lançamentos de livros infantojuvenis, resultado de concurso literário

chico ludermir

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No mês em que se comemora o Dia das Crianças, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) aproveita para lançar livros selecionados no primeiro Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, realizado em 2010. A iniciativa bem-sucedida, do ano passado, gerou atribuições maiores para a editora que, além de realizar

a segunda edição do concurso em 2011, inaugurou um departamento para desenvolver projetos e viabilizar outras publicações nesse segmento. A presidente da instituição, Leda Alves, entende essa novidade como um desdobramento da preocupação cultural que já é característica dos projetos anteriores: “A Cepe tem

uma missão social e isso significa um compromisso com os interesses da população de Pernambuco. Quando surgiu a ideia de um concurso infantojuvenil, nós refletimos sobre como as crianças estão aprendendo, desde cedo, a mexer na internet, e pensamos que também era preciso dar para elas o antigo instrumento

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imagens: divulgação

garoto especial

o conto do que não é

Lucas Mariz tem 20 anos e gosta de se comunicar com o mundo. Assim, se tornou estudante de cinema. Considera a infância um período mágico. Para ele os livros infantis são os mais importantes. E quando deu por si, acabou escrevendo um.

Igor Colares é um pernambucano que desenha desde criança. Por conta disso, foi estudar design na universidade. Montou um estúdio com o irmão onde faz ilustrações, diagramação, animação e tudo o que a criatividade permitir.

texto

Lucas Mariz ilustrações

Igor Colares

cartola

A obra, escrita por Ana Cristina Silva Abreu e ilustrada por Rivaldo Barboza, está em fase de finalização

11 catálogo

Entre as obras publicadas, está Anjo de rua, com texto de Manuel Constantino e ilustrações de Roberto Ploeg

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conto do garoto O que não é especial, de Lucas Mariz, foi o vencedor do 1º lugar

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A TUR RA

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formativo, que é o livro, a leitura no sentido mais amplo da palavra”. Visando suprir a lacuna do mercado editorial local, referente à produção para crianças e adolescentes, a Cepe passa a atuar efetivamente na formação de leitores e pequenos cidadãos. Leda Alves acredita que o mais importante nessas publicações é uma conciliação entre valores estéticos e humanos: “Acho que o principal é usar elementos e personagens da nossa vida, do cotidiano e do mundo mágico próprio das crianças, reforçando elementos de solidariedade e combate à discriminação, temas com os quais elas estão convivendo muito depressa. Além de tudo, temos a preocupação com o aspecto literário propriamente, a forma de escrever”, comenta. Para coordenar o departamento e intermediar ações entre a Cepe e os espaços de educação, a diretoria convidou a escritora e professora universitária Luzilá Gonçalves Ferreira, que atuará como supervisora desse setor. A própria escritora lançará, pelo selo infantil, o livro A cabra sonhadora, com ilustrações de Luciano Pinheiro, junto aos contemplados pelo concurso. Sua narrativa, inspirada numa experiência cotidiana, abriga elementos característicos da cultura pernambucana, sendo esse, também, um critério importante para a editora. “A nossa coleção vai ter um sentido de pernambucanidade, porque esse é um compromisso editorial. No

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“Fazer literatura infantil não é você escrever qualquer brincadeira, envolve sensibilidade” Luzilá Gonçalves Ferreira

entanto, conciliaremos isso com as temáticas universais”, explica Luzilá. A escritora chama a atenção à responsabilidade atrelada à criação de textos para serem fruídos na infância, pois entende que, nessa fase, existe mais abertura às diversas linguagens. “Fazer literatura infantil e juvenil não é você escrever qualquer brincadeirinha, envolve uma sensibilidade importante, porque, quando a gente desperta uma pessoa para a beleza, a gente não a segura mais”. Luzilá acrescenta, ainda, que o autor precisa se divertir no processo de criação – sem ser leviano; ele não deve ser autoritário na forma de interagir com as crianças.

PUBLICAÇÕES

Ao todo, nove publicações da Cepe para esse segmento de público serão apresentadas neste mês das crianças: oito participantes do concurso e a já citada A cabra sonhadora, de Luzilá Gonçalves Ferreira. Dentre as obras juvenis, teremos não só Anjo de rua, escrita por Manoel Constantino e ilustrada pelo artista plástico Roberto Ploeg, e A cor da

palavra, de Urian Agria de Souza – primeiro e segundo colocados da categoria, respectivamente –, mas também a narrativa que recebeu menção honrosa, intitulada Roda moinho, com texto de Eloí Bocheco e ilustrações de Pedro Zenival. A coleção infantil é formada pelos livros: O conto do garoto que não é especial, com texto de Lucas Mariz e imagens de Igor Colares; O coelho sem cartola, escrito por Ana Cristina Silva Abreu e ilustrado por Rivaldo Barboza; A dona Barata (diz que foi) à guerra, escrito por Francisco Hélio de Sousa e com imagens de Ana Karina Freitas; Bia Baobá – A incrível história da menina que mudou de nome, de Itamar Morgado, e O mundo de uma menina de sonho, de Renata Wirthmann, sendo os dois últimos ilustrados por Márcio Moreira. Em novembro, o catálogo deverá ser ampliado com a finalização dos livros Em memória, de Júnior Camilo Gomes, Nasci pra ser Madonna, de Gisele Werneck, e Histórias de Encantarerê, de Rejane Paschoal. Em dezembro, ficará pronto o livro Chuvisco, de Felipe Arruda. Os trabalhos submetidos à disputa, neste 2011, estão em processo de avaliação e o resultado ainda não tem data definida para ser divulgado. Apesar da redução no número de inscritos – a primeira edição contou com 435 obras e, este ano, foram 333 –, Luzilá afirma que houve um ganho de qualidade e que o julgamento dos originais está sendo ainda mais difícil. Gianni paula de Melo

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con especial ti nen te

Artigo

lourival holaNDa livro iNFaNtil É respoNsabiliDaDe social Hoje, nas grandes livrarias, há sempre um espaço reservado às crianças. Resta saber se ele foi conquistado por nossa responsabilidade social, ante a importância dessas figurinhas, ou mais uma conquista de um mercado – que ali melhor se alarga: são cifras consideráveis. Qualquer produto, caindo no campo do negócio, perde essas ambiguidades. No mundo editorial, não é muito diferente, no caso. O mercado administra todos os gêneros que circulam sob a rubrica infantojuvenil. Se um texto tem maior ou menor qualidade? Venda-se primeiro: o sucesso de venda serve de consenso; portanto, faz as vezes da qualidade; mesmo se, quase sempre, ali ausente. Depois do mercado, vem a legitimação: os prêmios, os simpósios, o espaço nas diretrizes curriculares, os congressos. A rapidez de tal manobra deu um curto-circuito em nossa capacidade de pensar o fenômeno? A infância era vista como uma nebulosa, coisa distante desprendendo fulgor sobre a vida adulta exangue; lugar de peregrinação onde cada qual voltava para se refazer. (Tanto no sentido da reorganização de si, do divã psicanalítico, quanto na acepção poética de reencantamento potencial). E, no entanto, a literatura infantil é um trunfo e uma aposta formidáveis: ali se repassam os sistemas de valores, costumes, crenças, enfim, uma visão de mundo legada por dada organização social, política. Pensar em literatura infantojuvenil é estar atento ao ideológico que subjaz no direcionamento mercadológico. Afinal, são valores transformados em narrativas. (… a menos que valores fique apenas em seu sentido imediato, de cifras). O grande público traz incrustadas em si formas de sentimento que circulam na

primeira infância. Os textos dessa idade, enquanto informam sobre o mundo, formam nossa sensibilidade. Literatura infantojuvenil, formação, pedagogia: tudo variação de nossas primeiras viagens. A Odisseia deu ao jovem grego o desejo de sair de si, de ver o mundo; isso fez Ulisses mais esperto. O mundo árabe do século 9 traz a Adab, um código social aprendido já desde a escola, veiculando valores, crenças, costumes que fundam aquele grupo social. Julio Verne ou Monteiro Lobato formaram gerações, e serviram de plataforma de voo para muitas criações posteriores. E nem os entusiasmos delirantes de um nem as ocasionais limitações do outro, nada disso os diminuiu. Porque tinham uma concepção muito clara da importância da literatura infantojuvenil na formação de leitores permanentes de literatura. É claro que a noção de literatura infantojuvenil é moderna, só aparece no século 19, editoras e capitalismo crescentes. Os textos anteriores não eram pensados exclusivamente para crianças. Havia as fábulas de Esopo, as historietas bíblicas e o fértil imaginário da oralidade. A literatura tem aqui seu chão. Tudo o mais é expansão; do conto com marcada pretensão moralizante até os games, na larga videosfera atual. Em 1695, Charles Perrault (A bela adormecida) defendia já esse tipo de registro dedicado aos menores. Via ali uma aposta preciosa. Talvez um dos primeiros textos com dimensão global tenha sido Alice no país das maravilhas, em 1865. O encantamento já preparava um questionamento sobre a realidade dada. Depois, A ilha do tesouro – seguindo a matriz da viagem e descoberta; de si e do mundo. A navegação na internet não está distante: o gosto da descoberta, do maravilhamento, da curiosidade. O menino que usa o Google, como um aliado, tem menos chance de ser um alienado. Trata-se aqui de um outro letramento; aprender a ler o mundo tal como ele se apresenta. Como aqueles infantes que fomos, ouvindo histórias (no início, a leitura nem era tão disseminada ainda), os de hoje formam também o imaginário pelo visual. A cultura contemporânea é mais visual que apenas verbal. Mas, por definição, essa literatura tem um público específico. O caráter

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de edificação, de manipulação – moral e política – não deve escamotear a responsabilidade com a formação. Os quadrinhos, os mangás, os games – são, de certo modo, um encontro com a realidade: dos problemas de adequação ao mundo adulto às gangues de rua ou interestelares. O sucesso dos mangás pode se dever à agilidade da narrativa;

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obra de monteiro Lobato é responsável pela formação de várias gerações de leitores brasileiros

agrada aos mais jovens esse desfechar de energias rápidas – ainda que os cenários sejam simplistas e a ação se sobreponha ao questionamento sobre o que origina os embates; ainda que banalizem a agressão, quase como único modo de afirmação de si. Os novos suportes, os lugares onde atualmente eles jogam, leem e criam

histórias, revolucionam os modos de leitura. Criam-se novas habilidades de contar histórias; e, no entanto, toda essa maneabilidade guarda um link com a permanente necessidade de desenvolver o imaginário, esse trunfo supremo da liberdade humana. A narrativa aqui é mais fluida, de acordo com a habilidade que eles

desenvolvem (e nos espantam): usando o Google Maps, MSN, chatbots, alargando o contexto narrativo. Mas o lúdico alarga a compreensão do mundo na atual hibridização das mídias. O tempo é deles. Cabe à responsabilidade dos pais e da escola pensar como instrumentalizar, que referenciais oferecer para essa entrada no mundo. A literatura infantojuvenil é ainda essa sementeira de sonhos. Do texto à tela – do cinema ou do computador –, o desafio é o mesmo: como educar na consciência do mal no mundo, sem, no entanto, levá-los nem ao desespero nem ao cinismo. Enfim, apostar numa geração melhor que a nossa. Daí o cuidado da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco – com a edição e a mediação junto a esse público mirim encantador. A linha editorial infantojuvenil, que agora se inicia, marca a preocupação, o cuidado e a urgência em estar presente à formação desses atores sociais quase emergentes. Entregar à criança tudo o que o mercado produz, sem mediação, é entregar a criança ao mercado. Quem vai ajudá-la a fazer a triagem, na massa de produções que se avoluma a cada semana? Quem se perguntará o que o texto, de fato, propõe? Qual a aposta no futuro? A responsabilidade do Estado, da Escola, dos pais, é enorme. Há ali um trabalho subliminar esculpindo, em silêncio, gostos e valores. Quem seleciona, publica ou compra – uma procuração passada pela cultura –, não deve esquecer que a literatura dita infantojuvenil carrega os desejos, as ambições, as aspirações, os medos do adulto que escreve o texto. Há um homem projetado ali; ainda que projetado apenas em linhas de força (espera-se que nunca em decalque: repetir, aqui, é negar a educação no seu sentido mais largo). E, no entanto, a criança é essa fragilidade totipotente: no pior e no melhor, tudo pode estar ali. Ainda é possível pensar a educação na contracorrente dessa realidade. A violência até pode ser natural, mas a convivência e a paz, no entanto, são conquistas conjuntas. A literatura infantil, ou a literatura, simplesmente, pode contrapor à rudeza do real, uma oportunidade de despertar, desde a infância, um desejo de dias melhores.

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Vêm aí os livros da coleção infantil e juvenil da Cepe Editora. ANUNCIO5_TAMANHO CORRETO_28 X 42 cm.indd 1 ilustração infantil - Capa.indd 38

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PEDRO MELO

CON TI NEN TE

MÚSICA

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LIRAS Os “conservatórios” do interior do país Conjuntos de sopros e percussão, conhecidos sob várias denominações, transmitem os rudimentos do ensino musical e congregam comunidades espalhadas em diversas cidades interioranas de Pernambuco texto Carlos Eduardo Amaral

Villa-Lobos (1887-1959), em uma de suas folclóricas boutades, disse certa vez: “O Conservatório Brasileiro de Música são as bandas do interior”. Talvez, o célebre compositor se referisse ao Rio de Janeiro, em cuja capital nasceu, cresceu e morreu. Todavia não é difícil constatar a disseminação da atividade dessas bandas por todas as regiões do país, desde o século 19, com mais regularidade. Sob o nome de liras, sociedades musicais, grêmios musicais, bandas sinfônicas, sociedades filarmônicas e outros, os conjuntos de sopros e percussão que encarnam essas denominações cumprem, até hoje, uma série de funções sociais nas comunidades onde se situam: estudantil, marcial, civil, religiosa, carnavalesca... Isso sem falar das situações comuns, para não dizer predominantes, em que uma banda marcial tem de cuidar do repertório de procissões, ou de alguma fanfarra escolar chamada a tocar em solenidades políticas. E quando duas bandas coabitam na mesma cidade, a rivalidade entre

elas pode chegar às vias de fato, como no caso das duas mais antigas de Pernambuco a se preservarem na ativa. Fundadas respectivamente em 1848 e 1849 na cidade de Goiana, a Curica (ligada ao Partido Conservador da época) e a Saboeira (arauto do Partido Liberal) protagonizaram histórias de brigas e tiroteios, inclusive após a era republicana e o consequente arrefecimento das brigas partidárias de tempos monárquicos. Porém, na maioria das vezes, a política mais atrapalha do que ajuda a consolidação das sociedades musicais. Fácil imaginar por quê: basta que uma delas se alie a um prefeito, para adquirir um estigma e pagar por ele quando a oposição chegar ao poder. Fora essa saída, resta a escassez de eventos cívicos e religiosos, o que pouco gratifica as bandas e obriga a música a ser um hobby um tanto penoso, a ponto de ceder ante as obrigações da lavoura e do comércio ou o êxodo de estudantes para cidades maiores. Nesse contexto de incerteza, as figuras cruciais para o crescimento e o sucesso das bandas de interior,

ou ao menos de equilíbrio, acabam sendo os mestres de bandas – antes, em sua maioria, militares aposentados com domínio de vários instrumentos, mas também músicos formados nas capitais e regressos às suas cidades de origem. Exemplo notório desse segundo caso é o do maestro Mozart Vieira, da Banda Sinfônica dos Meninos de São Caetano (ele mesmo vítima de mazelas políticas).

PROJETO DE APOIO

Tendo observado a situação de abandono ou de falta de qualificação em diversas bandas fora do Recife, algumas delas centenárias, o Conservatório Pernambucano de Música (CPM) criou, em 2007, o projeto Bandas de PE, que ministra anualmente uma série de oficinas de aprimoramento pelas regiões do estado. Nas aulas, os professores enviados pela instituição oferecem material didático e trabalham pontos técnicos dos instrumentos e de regência, bem como prática de conjunto e, em alguns casos, editoração de partituras.

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con música ti nen te rodrigo lobo/ag estado

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Segundo o trompetista Diógenes “Colorau” Pires, coordenador pedagógico do projeto, o Bandas de PE certificou 1.256 músicos de 195 bandas, entre 2007 e 2010, e, nos últimos dois meses, percorreu as cidades do Cabo, Timbaúba, Floresta e Belo Jardim. Ele acrescenta que o CPM adota um sistema informal de parcerias com as prefeituras para viabilizar as visitas: o conservatório paga aos professores e o deslocamento até o interior, ao passo que elas providenciam refeições, transporte local e lugar adequado para as aulas. Colorau Pires resume o quadro geral das bandas ao longo das viagens que vem fazendo: “Observo o óbvio: quanto mais distante o município, mais problemas. A falta de informação, mesmo com a internet presente, faz com que os músicos necessitem de orientações e do apoio da sociedade, salvo quando o prefeito é músico e sensível à arte”. O trompetista lembra que o incentivo da sociedade é indispensável, pois as bandas interioranas revelaram diversos nomes para a música

As bandas interioranas revelaram diversos nomes para a música pernambucana, como o maestro Duda pernambucana, como Clóvis Pereira, José Menezes, Moacir Santos e os goianenses Guedes Peixoto e maestro Duda, ex-integrantes da Saboeira. Nesse ínterim, a sustentabilidade e a educação musical obrigatória desempenhariam um papel vital para a reciclagem das sociedades musicais, segundo Colorau Pires, que também dá aulas de editoração de partituras no projeto Bandas de PE. A título de solução para a situação crônica de algumas bandas, ele reforça que as escolas públicas ajudarão ao instituir o ensino musical no currículo e que a organização de cursos de gestão cultural para as bandas precisa acontecer. A origem da popularidade das bandas marciais encontra-se ligada

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a um marco da História Ocidental bastante conhecido. A Revolução Francesa, fora as reformas sociais e políticas que desencadeou, possibilitou o contexto favorável para que as bandas saíssem às ruas e puxassem os cantos revolucionários. Conforme José Ramos Tinhorão resgata em seu último livro A música popular que surge na era da Revolução (2010), esses cantos nasceram por influência direta das trupes teatrais de rua que vinham evoluindo antes mesmo de 1789. Outra evolução a se ter em conta, de ordem técnica e ocorrida na primeira metade do século 19, está na invenção dos pistões dos instrumentos de metais, fator que determinou um alcance pleno da tessitura (extensão de notas) de trompetes, trompas, tubas e afins e beneficiou tanto a sonoridade das bandas quanto a das orquestras sinfônicas. As bandas militares e civis, de qualquer forma, serviam melhor a propósitos públicos por causa de um aspecto acústico: a boa projeção sonora de sopros e percussão ao ar livre, algo para o qual instrumentos de cordas perdem.

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chico ludermir

1 curica A sociedade musical tem uma rivalidade histórica com a Banda Saboeira, ambas da cidade de Goiana, na Zona da Mata Norte 2 colorau O trompetista é o coordenador do projeto Bandas de PE, do Conservatótio Pernambucano de Música

No século 20, o impulso das bandas sinfônicas nos Estados Unidos veio a dar novo fôlego ao repertório de salas de concerto e ao mercado de trabalho musical. Elas consistem em uma adaptação das bandas cívicomilitares para as referidas salas, onde o instrumental de percussão e madeira, bem mais variado, espelhase no das orquestras sinfônicas e são dispensados metais não usuais nas mesmas orquestras, tais como bombardinos e sousafones. Em Pernambuco, a Banda Sinfônica da Cidade do Recife, fundada em 1958 e uma das poucas do gênero no país, mantém constante programação e comemora aniversário junto ao público, no dia 7 de outubro. O maestro Nenéu Liberalquino, que em julho de 2012 completa 10 anos no comando da BSCR, detalha que as prioridades da banda, no momento, englobam a aquisição de instrumental e a renegociação salarial dos funcionários, cuja isonomia com a Orquestra Sinfônica do Recife foi quebrada: “Precisamos de

Sob o nome de liras, sociedades ou grêmios musicais, os conjuntos cumprem funções sociais nas suas comunidades alguns instrumentos como tímpanos e instrumentos de percussão de som determinado como xilofone, marimba, pois sempre que precisamos é necessário alugar. Ademais, é importante que os músicos sejam melhor remunerados”. Entre os compositores célebres de música orquestral, alguns recorrentes na BSCR, que escreveram obras para bandas (sinfônicas ou não), estão: Stravinsky (Sinfonia para instrumentos de sopro), Holst (Hammersmith), Richard Strauss (Sonatinas n° 1 e 2) e Milhaud (Suíte francesa), além dos brasileiros Osvaldo Lacerda (Suíte Guanabara), Edmundo Villani-Côrtes (Djopoi) e Amaral Vieira (Fantasiacoral ‘in nativitate domini’, para duas

bandas sinfônicas, coro e meiosoprano), os dois últimos na ativa. Desde a Renascença, os conjuntos de sopro e percussão executam peças originais para sua própria formação. Por outro lado, o século 20 presenciou a ascensão de compositores versados na escrita para metais, como o norteamericano Alfred Reed (1921-2005) – outro conhecido dos programas da BSCR – e, um pouco antes, Anacleto de Medeiros (1866-1907), responsável por elevar o patamar artístico da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro e a torná-la a primeira do país a gravar discos, sendo reverenciado post mortem por VillaLobos e Rogério Duprat (1932-2006). As bandas de música, de qualquer espécie e tamanho, com o tempo, aliaram a vocação original a uma série de funções sociais contíguas aqui referidas, conforme as comunidades em que estão inseridas. Caso da Sociedade Musical Agreste Setentrional Pernambucano que acompanhamos em recente viagem ao Recife, documentada na reportagem que se segue.

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AGRESTE Sociedades musicais celebram a MPB

Moradores de duas localidades de Taquaritinga do Norte unem-se em torno de um projeto, para o qual convergem instrumentos e plantas medicinais texto Carlos Eduardo Amaral Fotos Chico Ludermir

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Não tão evocado quanto outros ícones

da religiosidade nordestina, como Padre Cícero e Frei Damião, Padre Ibiapina (1806-1883) mereceria ser lembrado, no mínimo, por praticar assistencialismo social em um século no qual sequer existia esse conceito. Cearense de Sobral e morto em Solânea (PB), José Antônio de Maria Ibiapina perdeu o pai fuzilado, por este ter combatido ao lado dos separatistas da Confederação do Equador (1824), e veio a se formar na Faculdade de Direito do Recife, após desistir do Seminário de Olinda. Segundo os panegíricos mais difundidos sobre o clérigo, ele trilhou carreira de juiz, delegado e deputado federal, quando, viúvo, voltou a se enclausurar em Olinda e pôde enfim

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se ordenar sacerdote, aos 46 anos. Daí, iniciou-se sua obra pelo interior do Nordeste, do Piauí a Pernambuco: Padre Ibiapina construía cacimbas, açudes, casas de caridade, igrejas, cemitérios, tudo o que fosse necessário para firmar e dar suporte a vilarejo isolados e castigados pelos problemas climáticos. Entre os mais de 20 vilarejos que ajudou a estabelecer, estava Gravatá de Jaburu, em que mandou erguer todas as citadas benfeitorias e onde também sepultou uma de suas irmãs. No povoado, em 1919, surgiu a Sociedade Musical 24 de junho, cujo tocador de tuba foi, durante 56 anos, o senhor Braziliano Pereira de Melo. Seu Braziliano, em 1960, testemunhou as comemorações do centenário de sua

terra e a mudança do nome dela para Gravatá do Ibiapina. Naquela data, ele posou para uma foto que encontramos com seus descendentes. Taquaritinga do Norte, município que incorpora o distrito de Gravatá do Ibiapina, vivenciou também uma história de missionarismo religioso na região, em torno de 1790, com a chegada da congregação de São Filipe Néri e a conseguinte construção da Igreja de Santo Amaro. A igreja deu mais dinamismo às terras que um dia abrigaram uma aldeia indígena – por isso o nome da cidade vem do tupiguarani (“grande buraco de pedra branca”) – e depois seriam distribuídas pela fidalga D. Maria Ferraz de Brito, que as havia recebido da Coroa

Portuguesa. Com os anos, a fama do município foi associada às abundantes dálias da Serra da Taquaritinga. Voltando a Seu Braziliano, falecido há uns tantos anos, descobrimos que ele tinha mais ciúme de sua tuba do que das filhas, como relata uma delas. D. Berenice nos recebeu em sua casa, na avenida principal de Gravatá do Ibiapina, por havermos encontrado seu neto, por acaso, na sede da sociedade musical. João Higino de Sousa Neto, 16 anos, estava observando com outros jovens nossa conversa com Ilza Maria, até ter sido por esta dedurado em nosso bate-papo prévio. Primeira secretária e esposa do presidente da Sociedade Musical Padre Ibiapina, Adailton Costa, Ilza integrou-se à banda este ano tocando sax alto. “Sempre tive amor pela banda. Não foi uma coisa que eu cheguei aqui de repente, não”, conta ela, que passou 20 anos fora de Gravatá do Ibiapina, mas que já flertava com a movimentação musical da SMPI antes disso. Ilza, assim como boa parte da população de Taquaritinga do Norte, continua a trabalhar com confecção e atende encomendas da cidade vizinha de Santa Cruz do Capibaribe. À medida que o diálogo com a saxofonista, sem querer, começou a ficar incômodo, pela extrema timidez dela ante nossas sucessivas perguntas, procuramos outro personagem. Saí da sede da SMPI e expliquei a Ilza nossa demanda de informações, daí ela ter apontado para Higino, clarinetista da sociedade há três anos e – para minha sorte e do fotógrafo Chico Ludermir – um rapaz bem loquaz quando instigado. Ao dar suas credenciais logo de cara, “Tenho herança de músico no sangue”, descobri que havíamos achado a pessoa certa... Certa, para tentarmos resgatar de forma mais viva um pouco que fosse da memória afetiva da SMPI e de sua ligação com a comunidade, tal qual atestou o espontâneo Higino, aluno da oitava série: “Na banda é onde estou até hoje e onde quero morrer”. Ele explica que, inicialmente, tocava flauta, mas depois veio a chance de aprender clarineta. Com nosso convite para que posasse dedilhando o instrumento, fomos à casa de sua avó, D. Berenice – por sua vez, filha de Seu Braziliano – e nos contentamos com a recepção.

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Enquanto Higino dava uma palhinha, D. Berenice mostrava fotos do pai e da banda, incluindo uma da época do centenário do distrito, com a data e o nome de todos os integrantes da SMPI anotados no verso. A conversa inteira ocorreu sob os olhares do cãozinho Lupe, (segundo Higino, escreve-se Lupphyi) antes de pararmos para comer doce de mamão e uma boa porção de bolinhos de goma oferecidos pela dona da casa.

MÚSICA E PLANTAS

Estava prevista uma visita nossa ao Sítio Cumbe, próximo à sede do município de Taquaritinga do Norte, contudo fomos avisados de que havia chovido na noite anterior e, assim, a estrada não favorecia a passagem de nosso veículo da reportagem. Nessa localidade, um grupo de tradicionais plantas medicinais acabou inspirando um interessante pot-pourri de canções da MPB em que

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Plantas medicinais, como a hortelã, acabaram inspirando um interessante potpourri de canções da MPB hortelã, muçambê, mastruz, acônito – e a dália – ganham destaque. Dona de uma propriedade no Sítio Cumbe, a artista plástica Sônia Lessa imaginou uma forma de promover a interação entre os habitantes da região e os de Gravatá do Ibiapina. O projeto, intitulado A arte na farmácia: alguns cultivos entre a música e botânica, foi agraciado em um edital de interações estéticas da Funarte e resultou em quatro apresentações nos meses de fevereiro e março, alternadas entre Gravatá do Ibiapina e Sítio Cumbe.

Sônia Lessa confiou à SMPI a criação e execução de arranjos (para banda e cantor popular solista) de canções que mencionassem as plantas cultivadas, a exemplo de Penas do tiê, de Hekel Tavares, que cita o muçambê; Drops de hortelã, de Oswaldo Montenegro; e Mastruço e catuaba, de Aldir Blanc. O acônito ficou por conta de Severino Xavier, músico da banda, que compôs Chá de ervas medicinais, mas descobrimos que Higino não ficou para trás e escreveu um jingle em ritmo de baião em que fala do muçambê e da erva cidreira, chamado As plantas. A arte na farmácia, que rendeu um livro, não se limitou a estruturar uma apresentação musical intercalada por explanações sobre as plantas. Nos quatro encontros, houve leitura de poemas, exposição de fotografias, aulas de culinária, distribuição de mudas e preparo de exsicatas (amostras de folhas secas prensadas em papel

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7 Página anterior 3 clarinetista

O jovem Higino diz ter música no sangue

4 viagem

Para alguns dos integrantes esta foi a primeira Ida à capital Nestas páginas 5 felicidade

Com 75 anos, D. Dora viu o mar pela primeira vez

6-7 show

A apresentação foi na Faculdade Pernambucana de Saúde

cartolina) para posterior identificação no Instituto Agronômico de Pernambuco – IPA. Meses depois, a Faculdade Pernambucana de Saúde tomou conhecimento da iniciativa e convidou os integrantes do projeto a irem ao Recife, viagem essa que acompanhamos até a chegada à capital.

TRAJETO

Às cinco e meia da manhã do último dia 25 de agosto, sob um frio de 15°C, todos estávamos em frente à Igreja de Santo Amaro, prontos para a ida – não sem uma descontraída foto oficial, feita por Chico. Uma Toyota havia trazido o pessoal do Sítio Cumbe, enquanto o ônibus passara primeiro por Gravatá do Ibiapina e, detalhe, pudera cumprir sem preocupação o horário de chegada graças à pavimentação recente da estrada que liga o distrito à BR 104, único acesso à sede do município.

Paramos às sete e dez para um café da manhã regional em Gravatá (na Serra das Russas) e nos sentamos à mesma mesa que Higino, consternado por Chico recusar a carne de sol (nosso pequeno amigo nunca vira um vegetariano em pessoa), e três moradores do Sítio Cumbe. Seguimos viagem às oito, tendo em mente que a primeira parada seria na orla de Boa Viagem, já que a maior parte dos membros da delegação não costuma ir à capital e esta seria uma excelente oportunidade. Mesmo com uma chuva inesperada e indesejada sobre o Recife, mantevese o percurso pela praia. Descemos a 100 metros do Edifício Acaiaca, encrencamos com o céu fechado e decidimos passear pela areia de todo jeito, para ver o mar revolto. D. Dora e D. Maria Porto, organizadoras da horta do Sítio Cumbe, não se importavam com o tempo ruim. D. Dora, em particular, perita no manuseio das flores de

muçambê, estava vendo o mar pela primeira vez, no alto de seus 75 anos, e não cabia em si: “Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Se eu morresse hoje, morria feliz” – era também a primeira vez que saía de Taquaritinga do Norte, e um de seus netos tratou de levá-la mais para perto das águas, que ela nem sabia que eram tão salgadas. Cumprida a etapa inicial, a SMPI, o pessoal do Sítio Cumbe e os cantores Saulo e Sara apresentaram-se na FPS, sob as saudações do presidente Adailton Costa e a participação especial de Colorau Pires (o trompetista ministrara oficinas para a banda no início do ano através do projeto Bandas de PE, vide matéria anterior). De lá, o grupo almoçou e seguiu para uma escola pública em Boa Viagem, terminando o giro pelo Sítio Histórico de Olinda – só que era preciso voltar a Taquaritinga do Norte no mesmo dia, pois a SMPI e o plantio não podiam parar. Em Gravatá do Ibiapina, a responsabilidade pesa mais no momento: a sociedade musical transformou-se em ponto de cultura e então passou a ministrar aulas de dança, teatro, música e canto, além de manter os ensaios gerais da banda nas segundas, sextas e domingos à noite, a cargo do maestro Aldemar Carneiro Filho. Ficamos na torcida para que outras histórias como a de Braziliano, D. Berenice e Higino se construam e seus conterrâneos permaneçam na vila fundada pelo Padre Ibiapina (mas que possam ver o mar ao menos uma vez, como D. Dora).

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AYAHUASCA Um alimento espiritual

Governo reconhece o uso religioso do chá e estuda o seu universo cultural e ritualístico como patrimônio imaterial da cultura brasileira texto e Fotos Augusto Pessoa

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Página anterior 1 MARIRI

ipó, aliado à folha C de chacrona, dá origem ao chá de ayahuasca

Nestas páginas 2 MESTRE SEBASTIÃO

ateiro (com o M mariri nos ombros) é integrante de uma das religiões que utilizam o chá

chacrona 3 Colheita da planta faz parte dos rituais das religiões ayahuasqueiras

4 NOVO ENCANTO O seringal possui rios e igarapés preservados por iniciativa da União do Vegetal

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A barra do dia nem bem surgiu no horizonte amazônico e o mestre Sebastião já está na trilha que desaparece mata adentro. Mateiro experiente, o homem caminha com uma postura que revela, ao mesmo tempo, firmeza no caminhar e respeito ao trabalho sagrado que está prestes a fazer. A exemplo de muitos outros caboclos – boa parte deles nordestinos –, Sebastião é integrante de uma das religiões brasileiras que fazem uso do chá ayahuasca em seus rituais e que, de alguns anos para cá, vem sendo estudado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), na intenção de incluir o seu uso ritualístico na seleta lista de bens imateriais reconhecidos por lei. Utilizada desde tempos imemoriais pelos índios sul-americanos, a ayahuasca é uma bebida produzida a partir da união de duas plantas

nativas da Floresta Amazônica, um cipó conhecido por mariri (Banisteriopsis caapi) e a folha conhecida na linguagem cabocla por chacrona (Psychotria viridis). Juntas, elas formam a base de um rico fenômeno cultural e religioso que transcendeu os limites da floresta, atravessou as fronteiras do país e hoje é reconhecido pelas autoridades brasileiras pelo seu caráter beneficente. Com uma forte ligação com a natureza – de onde é extraída a matéria-prima do seu sacramento –, o uso religioso da ayahuasca envolve uma série de tradições e saberes que remontam ao império inca e que se espalharam pela Floresta Amazônica depois da invasão do colonizador europeu. Diversas tribos indígenas utilizam, há séculos, o líquido sagrado em seus rituais xamânicos, sendo mencionado o seu uso nas narrativas míticas dos povos pano, aruaque e tucano, entre outros. Com poderosas propriedades enteógenas ativadas pela DMT (dimetiltriptamina), a ayahuasca possibilita ao xamã um

estado de consciência que o habilita, por exemplo, a descobrir onde existe caça, estabelecer conversas telepáticas e realizar trabalhos de cura. Desde o início do século passado, no entanto, essa tradição foi aos poucos sendo incorporada a rituais de sincretismo religioso e deu origem a uma das mais interessantes manifestações da cultura brasileira, religiões de sotaque caboclo, nascidas no coração verde do Brasil. Três religiões, consideradas originárias pelo pioneirismo e preservação de suas raízes, encabeçam a solicitação de registro na lista dos patrimônios imateriais. Alto Santo, criada no início do século passado pelo maranhense Raimundo Irineu Serra; Barquinha, idealizada pelo também maranhense Daniel Pereira de Matos; e União do Vegetal (UVD), fundada pelo baiano José Gabriel da Costa. A justificativa conjunta é a de que a utilização religiosa da ayahuasca se enquadra nas práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades envolvidas reconhecem

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como partes integrantes do seu patrimônio cultural. A inclusão do uso religioso do chá na lista de bens imateriais tem por objetivo garantir a legitimidade dos rituais frente à sociedade brasileira, ainda extremamente carente de informação sobre a tradição. As discriminações sofridas pelos adeptos das religiões ayahuasqueiras só têm comparativo histórico com as proibições e restrições aos cultos afro-brasileiros em décadas passadas. No entanto, pesquisas nacionais e internacionais desenvolvidas por instituições acadêmicas vêm aos poucos dissipando o preconceito e a ignorância sobre o assunto. Em função do pedido de participação na lista do patrimônio imaterial, um extenso

inventário da ayahuasca está sendo organizado para subsidiar o estudo.

DOCUMENTAÇÃO

O mais interessante é que são as próprias religiões que estão contribuindo diretamente com o processo. Apesar de nascidas na simplicidade da floresta, as seitas sempre se preocuparam com a documentação dos seus rituais. A União do Vegetal, por exemplo, possui um Departamento de Memória e Documentação com milhares de fotografias, gravações e entrevistas realizadas desde a década de 1960. A instituição conta ainda com um Departamento Médico e Científico, realiza congressos internacionais e foi a idealizadora do Projeto Hoasca, um esforço conjunto entre nove centros

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universitários do Brasil, dos Estados Unidos e da Finlândia, que, durante três anos, realizou o maior estudo científico das interações da ayahuasca com o organismo humano. Outro trabalho que merece destaque é o Projeto Luz do Saber, desenvolvido desde 2002 e que já alfabetizou mais de 4 mil jovens e adultos. A iniciativa teve seu desenvolvimento inicial subsidiado pela Casa Brasil, um programa de inserção tecnológica do Governo Federal. A continuidade é conduzida

pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará, com o apoio da Secad – Secretaria de Educação Continuada e Alfabetização e Diversidade do MEC. Com 28 entidades beneficentes espalhadas pelo país e o título de Utilidade Pública Federal, a UDV comemora ainda a vitória de ver o chá autorizado para uso religioso no Brasil, desde o ano passado. Segundo a resolução – publicada no Diário Oficial –, a utilização é apenas para fins religiosos, sendo vetada sua comercialização e propaganda. Outro fruto recente do trabalho foi o reconhecimento ocorrido em julho deste ano, quando a Câmara dos Deputados, em Brasília, realizou uma

sessão solene em homenagem aos 50 anos de criação da União do Vegetal. Criada em 22 de julho de 1961, pelo seringueiro José Gabriel da Costa, a maior e mais organizada das religiões ayahuasqueiras possui, hoje, quase 20 mil sócios, está presente em todas as capitais brasileiras, nos Estados Unidos, na Espanha, e já inicia o trabalho em outros países da Europa. Para o mestre Sebastião, sujeito acostumado ao sossego da mata, essa expansão já era esperada. “Esse chá faz a gente acordar, despertar pra vida”, ensina. Parte integrante do imaginário amazônico, o “cinema de índio” – como ficou conhecida a experiência psicodélica entre os seringueiros – revela um lúdico universo que

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5 preparo O ritual começa com a colheita e pode levar dias até ser concluído 6 Matriz Na busca de autossuficiência, as religiões investem no plantio da matériaprima da ayahuasca 7 sumaúma Árvore mais alta da Amazônia, região sagrada para os ayahuasqueiros chá 8 Diversas tribos indígenas utilizam, há séculos, o líquido em seus rituais xamânicos

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reflete a riqueza cultural dos povos da floresta. Os cânticos, as histórias e até o preparo da bebida entram nesse contexto. Preparar ayahuasca não é simplesmente juntar duas plantas e produzir uma infusão. O ritual sagrado começa bem cedo, com a colheita das plantas, e, muitas vezes, levam-se dias até que o processo inteiro seja concluído. Apesar de algumas religiões possuírem um departamento de plantio e serem autossuficientes em relação às plantas, parte do aprendizado está em reconhecer e colhê-las em seu habitat nativo. Desde 2010, a propósito, existe no Acre uma norma dos Conselhos do Meio Ambiente, Ciência, Tecnologia

e Florestas, que regulariza a extração, coleta e transporte das plantas sagradas. Para os integrantes das religiões ayahuasqueiras, essa é mais uma vitória a ser comemorada, já que esse controle é parte fundamental na preservação dos seus rituais em longo prazo. Aqui, mais uma vez, entra em ação a atitude firme dos dirigentes religiosos no que diz respeito à sustentabilidade dos recursos naturais. No estado do Acre, por iniciativa das instituições, grandes áreas de mata nativa estão sendo preservadas para as futuras gerações. Um desses recantos verdes, localizado justamente nas divisas desse estado com o Amazonas, é o Novo Encanto, um antigo seringal

com mais de 8 mil hectares de florestas, hoje transformado em área de preservação. Uma organização não governamental, fundada por membros da União do Vegetal, administra o território que está situado em uma região de grande importância ecológica, devido à sua biodiversidade, com 381 espécies de plantas identificadas e uma grande variedade de sistemas hídricos, com um rio, 12 igarapés e seis lagoas. A Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico realiza, desde 1990, diversas ações para preservar essa porção de terra contra invasões, extração de madeira e devastação da mata nativa. Mestre Sebastião conhece bem de perto esse trabalho. Ao lado da sua companheira, Antonilda, Sebastião é o zelador desse imenso território repleto de sumaúmas e apuís (duas das mais altas árvores da Amazônia) e garante que mora na melhor região do planeta. “Não troco esse lugar por cidade nenhuma. Aqui, tenho paz, saúde e a natureza que me alimenta.” Além da fartura de peixes, pescados no Rio Iquiri, bem à porta de casa, Sebastião encontra na floresta o seu alimento espiritual. Depois de um dia inteiro mata adentro, em busca das plantas sagradas, a noite de lua nova convida ao trabalho. É hora de macerar o cipó, uni-lo às verdes folhas. No silêncio quente e abafado da Floresta Amazônica, o mistério está prestes a se revelar.

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PULITZER O homem que deu prestígio à imprensa O magnata norte-americano, que criou o mais renomado prêmio na área e travou uma histórica disputa pelas maiores tiragens de jornais com William Randolph Hearst, é reconhecido como o fundador do jornalismo moderno TEXto Marcelo Abreu

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História

Durante a última década do século 19, a primeira visão que se tinha ao chegar de navio ao porto de Nova York não era a de um prédio do governo, do comércio ou do setor financeiro. Era um edifício imponente de 13 andares, na Rua Park Row, com uma cúpula reluzente onde estava sediado um jornal, o New York World, do magnata Joseph Pulitzer. A mais alta construção de escritórios do mundo era “um templo da nova mídia de massas da América” que abrigava o periódico de maior circulação no país. A descrição, presente na biografia Pulitzer: a life in politics, print and power (Uma vida na política, na imprensa e no poder) lançada em 2010 pelo jornalista norte-americano James McGraph Morris, inédita no Brasil, ilustra bem o poder desse empresário que revolucionou o jornalismo norteamericano e deu à imprensa diária a importância que ela ainda tem hoje. Contestado em sua época e acusado de sensacionalismo, Pulitzer deixou

Pulitzer foi o primeiro a colocar repórteres na rua, em busca das notícias do mundo real, dos pobres e imigrantes dois legados importantes: o prêmio que leva seu nome, entregue anualmente a profissionais da imprensa e das artes, e o prestigiado curso de Jornalismo da Universidade de Columbia, fundado com parte de sua fortuna. Pulitzer morreu há exatos 100 anos, depois de viver uma vida que daria um filme de aventuras beirando o inverossímil, daqueles de tirar o fôlego. Por ironia do destino, a história de vida que deu um longa-metragem memorável foi a do seu maior rival, o também barão da imprensa William

Randolph Hearst, que inspirou Orson Welles a fazer Cidadão Kane (1941). Mas Pulitzer foi o verdadeiro protótipo do aventureiro self-made man, jornalista astuto e ambicioso que se tornou um grande empresário de imprensa. Politzer József (esse era seu nome de batismo, em húngaro) nasceu na pequena cidade de Makó, na Hungria, em 1847, filho de um comerciante judeu e mãe católica. Além do húngaro, que falava em casa, aprendeu alemão e francês na escola. Aos 17 anos, decidiu tentar a vida no exterior e saiu em busca de um emprego em algum exército que aceitasse os seus serviços. Acabou sendo recrutado como mercenário para lutar na guerra civil norte-americana. Chegou aos EUA sem dinheiro e sem falar inglês. Após alguns meses lutando na cavalaria da União, a guerra acabou e ele foi procurar abrigo entre os imigrantes alemães que moravam em Saint Louis, no Missouri, no Meio-Oeste.

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reprodução

Fez vários trabalhos para sobreviver, enquanto tentava estudar. Segundo Seymour Topping, que escreveu uma de suas biografias, Pulitzer, que então já tinha adaptado seu nome ao inglês, estava numa biblioteca lendo e observando dois homens jogando xadrez, quando resolveu dar um pitaco sobre uma jogada. Chamou a atenção dos jogadores, que eram editores de um jornal e acabaram lhe oferecendo um emprego de repórter no Westliche Post, publicação destinada à comunidade de língua alemã do Missouri. Aos 21 anos, portanto, Pulitzer tornou-se jornalista. Quatro anos depois, aos 25, aproveitou uma oportunidade e assumiu o controle do jornal. A partir daí, sua vida deu saltos consecutivos. Aos 31, comprou os jornais St. Louis Dispatch e o Post e uniu as publicações para fundar o St. Louis Post-Dispatch, que existe ainda hoje e esteve sob o controle de seus descendentes até 2005. Aos 36 anos, tornou-se dono de um jornal, em Nova York, que projetaria seu nome nacionalmente. Aos 43 anos, abandonou a redação por problemas de saúde. Já em Saint Louis, Pulitzer havia demonstrado um talento especial para fazer um jornalismo agressivo, defendendo causas consideradas progressistas. Chegou a publicar declarações de imposto de renda de famílias ricas, para mostrar como quem mais ganhava dinheiro muitas vezes sonegava impostos. Era o chamado sensacionalismo com consciência social.

UM REI EM NOVA YORK

Mas Saint Louis acabaria sendo apenas um ensaio. Foi em Nova York que ele tornou-se o grande nome do jornalismo americano, quando decidiu comprar um jornal em crise, o New York World. A circulação do jornal era de 15 mil exemplares. Dentro de pouco tempo, pulou para 600 mil exemplares, a maior tiragem do país. É difícil alguém avaliar, hoje, toda a dimensão do impacto, até mesmo sensorial, do World no leitor médio do fim do século 19. Foi lá que a repórter Nellie Bly, pioneira entre as mulheres que escreviam sobre assuntos sérios, fez suas reportagens investigativas que a tornaram uma estrela do jornalismo. Até então, as jornalistas se

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limitavam a temas como jardinagem e a outros assuntos domésticos. Pulitzer foi o primeiro a colocar seus repórteres na rua, em busca das notícias do mundo real, dos pobres e imigrantes, abordando problemas como corrupção no governo, violência policial, habitações precárias, assuntos que afetavam as massas de estrangeiros que chegavam a Nova York na época. Introduziu a cobertura de esportes e de negócios. Encarava o jornal como um produto que fosse útil para a vida prática, não somente para o debate de ideias. Nesse sentido, ele é tido como o criador do jornalismo moderno.

O FATOR HEARST

Um acontecimento que marcou profundamente a trajetória de Joseph Pulitzer foi a chegada de William Randolph Hearst a Nova York, em 1895. Hearst comprou o New York Journal, copiou a fórmula editorial do World e entrou numa briga ferrenha pela maior tiragem. Dezesseis anos mais jovem e filho de um senador rico da Califórnia, Hearst

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História viria a ser um magnata com mais sorte e mais glamour, uma versão playboy do compenetrado Pulitzer. Os dois apelaram para o sensacionalismo, baixaram o preço de suas publicações para um centavo de dólar, criando o conceito da chamada penny press. E elevaram as tiragens a níveis inéditos. Nos tempos em que disputava a preferência de leitores com os jornais de Hearst, o World de Pulitzer ficou conhecido por mais uma novidade à época, a publicação do Yellow Kid (o “garoto amarelo”, criado por Richard Outcault), personagem principal da revista de quadrinhos Hogan’s Alley. A cor do pijama usado pelo garoto acabou dando nome ao estilo sensacionalista, gerando a expressão yellow press – imprensa amarela, ou marrom, como se diz no Brasil. Dois anos depois, Hearst levaria o Yellow Kid para o seu jornal.A disputa entre os dois chegou ao auge durante a crise que resultou na Guerra Hispano-Americana em Cuba. Os dois jornais rivais praticamente obrigaram os

Estados Unidos a entrarem em guerra contra a Espanha, numa campanha baseada em notícias exageradas e até mesmo falsas. Esse é o capítulo mais polêmico na trajetória de Pulitzer. No final do século 19, Nova York tinha cerca de 15 diários (hoje tem apenas três). Com cerca de um milhão de exemplares nas duas edições diárias, nos anos de apogeu, a influência do World era proporcionalmente maior do que qualquer periódico norte-americano hoje. O jornal tinha uma primeira página escandalosa, com manchetes chamativas, ilustrações e fotos. Sua preocupação era o cidadão comum. Paradoxalmente, sua página de editoriais era sofisticada. Especula-se que, se não fosse pela concorrência com Hearst, Pulitzer poderia ter seguido uma linha mais ao estilo do The New York Times, na época já um jornal de qualidade que tirava apenas 25 mil exemplares.

Pulitzer teve papel importante na fundação da faculdade de Jornalismo da Universidade de Columbia O jornalista John William Tebbel, um dos críticos de Pulitzer, escreveu, em 1974, no seu livro Os meios de comunicação nos Estados Unidos: “A mistura de sexo, escândalo e corrupção figura na primeira página do World. Na página editorial, estavam expressões bemescritas do idealismo intelectual de Pulitzer. Em suma, uma página de frente para trabalhadores e uma página editorial para intelectuais. O resultado não satisfazia nem a uns nem a outros. Os trabalhadores não compreendiam os assuntos da página editorial e os intelectuais deploravam o sensacionalismo do World”. Críticas à parte, as tiragens eram enormes e os anunciantes davam ao jornal um faturamento recorde. O World metia-se em tudo. Fez até campanha para arrecadar fundos para a construção do pedestal da Estátua da Liberdade. Disputava os maiores talentos da época como Mark Twain e Stephen Crane.

O jornal foi gerido pela família Pulitzer até 1931, quando, descumprindo a ordem expressa do pai, dois de seus filhos venderam a publicação à cadeia Scripps-Howard, que o fechou em seguida. Na época, tinha cerca de três mil funcionários. O prédio da Park Row foi demolido nos anos 1950. Os problemas de saúde enfrentados por Pulitzer deram à sua trajetória uma dramaticidade inusitada para um homem do seu poder e influência. Em 1890, no auge da carreira, ficou praticamente cego e sua vida deu outra reviravolta. Teve de afastar-se do comando da redação e, ainda por cima, desenvolveu uma aversão a todo tipo de ruídos, o que o obrigava a usar suas mansões e seu iate para isolar-se. Há relatos de que sofria de surtos depressivos. Viajou inúmeras vezes à Europa em busca de tratamento, mas nem sua fortuna nem seu prestígio puderam lhe devolver a saúde. Durante os últimos 21 anos de vida, controlou seus jornais à distância, mantendo um relacionamento difícil com os diretores de redação que contratava.

WORLD DE VOLTA

Pulitzer foi um dos primeiros a defender uma formação universitária para os jornalistas e ofereceu dinheiro para criar a Faculdade de Jornalismo na Universidade de Columbia, em Nova York. O curso surgiu depois de sua morte, mas mesmo assim ele é considerado o fundador. Ele deixou US$ 2 milhões em seu testamento para instituir um prêmio que estimulasse o jornalismo investigativo de qualidade e as artes, como a música e a literatura. O Prêmio Pulitzer tornouse a mais importante premiação da área no mundo, uma espécie de Nobel do jornalismo. É escolhido por uma comissão criteriosa, composta dos melhores jornalistas do país. Especulase que Pulitzer, aos instituir o prêmio, queria se redimir dos excessos do World na época da penny press. A mística em torno de seu nome e do seu World é tanta, que, em 2011, a Faculdade de Jornalismo da Universidade de Columbia anunciou o relançamento do jornal, desta vez como um site que vai explorar o tipo de reportagem investigativa estabelecido por Pulitzer nos tempos em que o jornalismo impresso era dominante.

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CIRCenses Sinônimos de pura vocação

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Alakazam e Índia Morena são dois dos raros remanescentes da tradição do circo, em meio aos novos padrões high tech de espetáculos texto Leidson Ferraz fotos Chico Ludermir

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Dizem que ser artista é não ter medo

de assumir a própria vaidade. Afinal, para se enfrentar uma plateia, além de talento, é preciso coragem e fé no próprio potencial. Em Pernambuco, dois símbolos do universo circense tradicional sabem bem como é lidar com elogios dos outros e de si mesmos. Ainda que pobres, financeiramente, são referências de sucesso na carreira que abraçaram: Índia Morena e Mágico Alakazam, vaidosamente do circo. Margarida Pereira de Alcântara, recifense de 68 anos, adotou o nome artístico indígena. Aos nove, perdeu o pai, pescador, e teve que catar crustáceos para sustentar os quatro irmãos mais novos, já que a mãe era inexperiente no ramo do marido. Não concluiu nem mesmo o primário, mas gostava de cantar o repertório de Vicente Celestino. Quando soube de um concurso de voz em um circo instalado no bairro de Afogados, perto de onde morava, a vila de São Miguel, teimou em participar. Sem dinheiro para pagar a entrada do Circo Democratas, teve que passar por baixo da lona. De roupa simples e com tamancos nos pés, foi discriminada

Aos 10 anos de idade, a menina Margarida Pereira de Alcântara, a Índia Morena, saiu de casa para seguir em turnê com um circo pelo público que a conhecia por ser pescadora, antes mesmo de entoar Coração materno. “Aquela foi a primeira e única vaia que levei na vida”, recorda. Brigona desde pequena, ela deu uma resposta à altura: “Sou pescadora de crustáceos para que meus irmãos não precisem pedir uma colher de açúcar a vocês”. Aplausos foram a resposta. Não venceu o concurso, mas ganhou ingressos para a família. “Mesmo assim, ainda não tinha encontrado meu mundo ali”, diz. Em maio do outro ano, o Circo Itaquatiara Real instalou-se na sua rua. Graças a um macaco fujão, aproximou-se da dona do circo, Maria Borges Tenório, que acabou sendo sua madrinha de crisma e a iniciou no contorcionismo. Decidiu, então, seguir

com ela, mas ouviu da mãe: “Se for feliz ou infeliz, agradeça a você”. E foi assim, aos 10 anos, que ela abraçou o circo. Inspirada pela contorcionista e atriz de dramas circenses, Linda Moreno, batizou-se Índia Morena e virou também rumbeira pela boa voz e rebolado. “Em tudo, eu era a melhor”, afirma, sem falsa modéstia. Além de circular pelo Brasil, foi à Colômbia, Argentina e ao Paraguai. “Minha madrinha sempre mandava dinheiro para minha mãe. Depois de um ano e nove meses, não aguentei de saudade e voltei para casa.” A família já morava na Mustardinha, bairro da zona norte do Recife. Seu retorno não foi nada fácil, ela bem lembra. A garota de cabelos longos e de franja, com descendência das tribos fulniô e caiçara, queria sobreviver do circo, mas tinha dificuldades até para conseguir alguém que a levasse ao trabalho. “Mesmo assim, nunca pensei em desistir. Corro atrás e faço.” Sua sorte mudou, quando conheceu o palhaço Gameloso, “o pai que eu não tinha, porque me tratava melhor do que aos próprios filhos”. No circo dele, Índia Morena foi ficando

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cada vez mais afamada, ao ponto de vender fotografias para os fãs. “Desde pequena, fui chamada de índia pela coragem, mas sempre usei roupas de moral”, ressalva a ex-rumbeira. Aos 17 anos, casou-se com aquele que, segundo ela, “era conhecido como o melhor trapezista do Norte”, Francisco Paulino da Silva, vulgo Neném. Contracenando com ele durante a década em que viveram juntos, o casal tornou-se popular, mas as brigas eram constantes. “Ele entregou-se à bebida, depois que perdi um filho de oito meses. Até me acusava de traição, para poder me bater. Era um sofrimento”, recorda. Finalmente separada, a tuberculose a levou para o hospital em 1972. Lá, conheceu Maviael Ribeiro de Barros, mais jovem que ela quatro anos. Também doente, a situação dele era pior, mas a fé que Índia diz ter em Jesus e em Nossa Senhora curou os dois. “Ele era cobrador de ônibus e o levei para minha casa. Pai de dois filhos meus, desde então estamos juntos.” A doença não destruiu o belo corpo que ela ainda mantém. “Sempre gastei muito com maquiagem, colares e brincos. Toda

semana eu comprava um tecido para minha mãe costurar para mim.” Maviael, de cavador de buraco de circo, passou a ser porteiro e secretário. Morando no bairro da Muribeca dos Guararapes, os dois trabalhavam juntos, em 1976, quando o Gran Londres Circo foi parar nas mãos de Índia Morena. “O antigo dono, insatisfeito com a vida circense, e por conta de dívidas, deu ele para mim”. Desde 1993, o casal luta à frente da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco (Apacep), entidade que dá suporte à produção de projetos de incentivo. “A grande maioria não merece, mas minha missão é cuidar desse povo, mesmo que muitos nem queiram colaborar com a associação.” Com parte da classe artística, Índia mantém uma relação de sair faísca. Sem medo dos desafetos, ela acusa circos de não existirem, reclama da falta de espaços nas cidades para a armação de lonas, e destila críticas até mesmo às escolas de formação, “criando artistas que não têm onde trabalhar”. Em meio aos rompantes de raiva, lembra que ainda é uma

1 alakazam

Com seu modesto circo, de poucos funcionários, o mágico circula pelo Brasil

2-3 vaidade

Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2006, Índia Morena sempre se preocupou com a aparência

sentimental. “Não tem um dia que eu não chore e não reze, porque tenho certeza que não sou má, no entanto, continuo sendo criticada.” Mesmo não sendo um consenso, possui o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, desde 2006. Sobre sonhos, ela afirma: “Como escrevo bastante e tenho muitos títulos e troféus, penso em construir um museu sobre a minha trajetória”. No palco, ainda é cantora e apresentadora. “Mesmo com essa idade, continuo entrando em cena bem-vestida, maquiada, me expressando bem. Com o público, sou feliz. Agora, na minha vida sentimental, física e moral, não sou. Nunca tive amor de fato, só discórdia e sofrimento”, afirma.

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Perfil ALAKAZAM

Com temperamento bem diferente da Índia Morena, o Mágico Alakazam não tem fama de brigão, muito menos de vaidoso, mas não esconde que vibra quando dizem, ainda hoje, que o circo dele é o melhor que já passou pelos mais recônditos lugares do Brasil. Wilson Ribeiro da Silva, 67 anos, nasceu em Surubim, mas só foi registrado no município baiano de Entre Rios, aos 17. Nessa época, já tinha fama entre os circos tradicionais do Brasil, arte que descobriu aos 10 anos de idade. Filho de moça humilde, ele prefere não lembrar o pai, um ricaço dono de terras, que, segundo ele, “fez da sua mãe uma vítima”. Preocupada com a educação do filho, ela o mandava para

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a casa de uma madrinha, para estudar em Bom Jardim. Foi lá que Wilson conheceu o picadeiro. “Era um circo fraquinho, mas quando entrei, fui logo pensando: vou ser dono de um desses.” Ainda naquele Circo Spano Mágico, foi convidado a integrar um número de palhaçadas. “Como eu era magrinho, fui apelidado de Vara de Virar Tripa.” Assim como Índia, Wilson não concluiu o primário, e ficava o tempo que podia no circo, até que os artistas partiram. Num dos finais de semana, em Surubim, foi ajudar um vizinho na feira de Frei Miguelinho e reencontrou o palhaço e a contorcionista do Spano Mágico, que pretendiam seguir para o Recife. “Menino esperto, tu quer ir mais eu?”, foi a pergunta feita. O garoto não

teve dúvidas, passou em casa, pegou algumas “mudas de roupa” e fugiu, sem avisar a ninguém. “Era um povo irresponsável aquele, mas graças aos dois estou no circo até hoje.” A convivência com o casal durou poucos dias. “No bairro do Alto de Santa Isabel, ele quis me ensinar a enganar comerciantes na feira e vi que não poderia continuar naquelas companhias. Daí, como sempre fui independente, quando eles foram fazer cachê em um circo que havia no Morro da Conceição, pedi ao dono para trabalhar ali e aprender contorcionismo”. O responsável pelo Circo Duas Américas era Roberto Hugo Monteiro, o conhecido Palhaço Cotolino. “Comecei carregando água,

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reprodução/arquivo pessoal

4 truque

O mágico maneja com habilidade o ilusionismo com bola

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mas, com um ano dos ensinamentos de Cotolino, já entrei em cena dando nó em pingo d’água”, comenta. Naquele circo, passou oito anos, mas, ainda em 1960, no primeiro ano de inauguração da televisão no Recife, foi convidado a integrar o elenco dos programas Cirquinho Fratelli Vita, na TV Rádio Clube de Pernambuco, e Vamos ao Circo, na TV Jornal do Commercio. Era conhecido como o Menino Elástico. “Nos estúdios, aprendi com as estrelas da época – como o Palhaço Carequinha, a dupla Treme Treme e Currupita, o Príncipe Nabor – que o artista precisa ter mise-en-scène, vestir-se bem, aparecer bonito”. Com pinta de galã, Wilson caprichava nos figurinos, usava perucas diversas e se maquiava. “Fui um verdadeiro Chico Anysio na vida de circo, sempre me transformando.” Do contorcionismo para o trapézio, foi um pulo. “Executava números no cilindro japonês, giro gigante, escada giratória. Nunca fui bom em nada, mas tive a sorte do povo aceitar o que eu fazia”. Em 1964, em plena apresentação na cidade de Paulo Afonso, na Bahia, o público o viu despencar. “Parti o fígado, quebrei costela, clavícula, perna. Nos três meses de hospital, o médico me disse que, se eu quisesse continuar em

Durante a leitura de uma revista, em 1967, Wilson Ribeiro da Silva descobriu o nome Alakazam e correu para registrar-se circo, tinha que ser apresentador ou fazer mágica.” Depois de passar por cursos por correspondência e aulas com o elogiado Mágico das Chaves, sua estreia aconteceu na cidade baiana de Xorroxó. “Nunca me senti um grande profissional, mas tenho carisma para a coisa, além de habilidade nas mãos.” Em 1967, descobriu o nome Alakazam, lendo uma revista em quadrinhos. “Fui, então, me registrar na Polícia Federal, em Sergipe, e, a partir daí, o mundo se abriu para mim.” De fato, todos quiseram ver aquele mágico com cara de árabe, olhos penetrantes e turbante na cabeça. “Ganhei destaque, mesmo porque adaptava os números à minha maneira, e sempre apostei em cenas mais macabras, sinistras. A ideia de enterrar-me vivo dentro de um caixão deu tão certo, que quando passaram a me copiar, comecei a levar 18 cobras comigo. Isso ninguém fez”, sorri, envaidecido.

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Alakazam encantava o público com sua cara de árabe, turbante e olhar penetrante

Em meio ao sucesso, inclusive com livros e discos lançados, problemas não faltaram. Já foi baleado nove vezes, fruto de rixas com policiais e invasores de propriedades, além de ter sido acusado de aliciamento de menores, e preso por 27 dias, quando aceitou uma adolescente em um número de strip-tease no seu circo, em 1996. Mas o Circo Mágico Alakazam também lhe deu momentos grandiosos. “Tive leões, pumas, elefante, chimpanzé e 74 funcionários, mas os acidentes com os animais e as indenizações trabalhistas quase me acabaram.” Hoje, são poucos os artistas que o acompanham como aprendizes, além de alguns convidados. Mesmo assim, não para de circular pelo país e, até hoje, não possui residência fixa. “Vivo de cidade em cidade e, enquanto a praça é boa, a gente vai ficando.” Para ele, circo é sinônimo de vocação. “Tanto que costumo dizer que, no meu enterro, quero que o caixão saia do circo, já que abracei essa arte com a alma e o coração.” De fato, tanto o Mágico Alakazam quanto Índia Morena são dois artistas que não precisam ter modéstia quando falam de suas carreiras, afinal, Pernambuco pode orgulhar-se de ter esses dois personagens marcantes na história do tradicional circo brasileiro.

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divulgação

ESPETÁCULO Chegou a hora de (re)montar o picadeiro

Em sua sétima edição, o Festival de Circo do Brasil traz atrações nacionais e internacionais e investe no diálogo com outras linguagens artísticas TEXTO Pedro Paz

Palco Festival de Circo do Brasil

Recife – Olinda

12-23 Out

(81) 3441.1241

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Na modernidade, a indústria do

entretenimento relacionou a arte circense ao universo da lona, com a apresentação de palhaços e mágicos, exibição de animais selvagens e números acrobáticos. Com o intuito de desconstruir esse imaginário, o Festival de Circo do Brasil chega à sua sétima edição com o conceito Muito mais do que você imagina. Sua programação aposta no sincretismo de espetáculos contemporâneos. Eles apresentam outras linguagens artísticas, como as artes dramáticas e fonográficas, além dos elementos tradicionais da técnica circense. Essa diversidade poderá ser atestada na exibição de grupos com origens distintas, em espaços diferentes, como teatros, praças, parques e ruas do Recife e Olinda – cidade que entra no roteiro de atividades do evento pela primeira vez. Entre as atrações da programação, destaca-se o trabalho da atriz francesa Aurélia Thierrée (neta do comediante londrino Charlie Chaplin), do ator de rua espanhol Adrian Schvarzstein e do trio italiano de clowns do Teatro Necessario. O Festival de Circo do Brasil é realizado no Recife desde 2004, por meio da produtora pernambucana Luni Produções. Até a edição do ano passado, já reuniu cerca de 200 mil espectadores, segundo a organização do evento. Sua concepção foi desencadeada no início dos anos 2000, quando a jornalista pernambucana Priscilla Dantas assistiu ao espetáculo Andarilhos do repente, do grupo mambembe Armatrux (MG). O encantamento dessa experiência fez com que ela iniciasse uma pesquisa sobre festivais que trabalhassem com artistas do mesmo naipe. A partir disso, espreitou o tradicional Festival Mondial du Cirque de Demain, em Paris, e outros de porte menor, ainda na França. Concomitante à sua viagem – para surpresa dela – surgia um concorrente nacional. Estava sendo realizada a primeira edição do Festival Mundial de Circo no Brasil, em setembro de 2001, na cidade de Belo Horizonte. “Diferente do que nós pensávamos, o Festival Mundial tinha aspecto de mostra competitiva. Demos continuidade às pesquisas

por mais três anos, até encontrarmos uma feição própria, que é esse novo olhar sobre a arte circense, além de um espaço de intercâmbio cultural com outras linguagens artísticas”, explica a produtora. Este ano, o Festival de Circo do Brasil começa em pleno Dia das Crianças (12 de outubro), no Parque Dona Lindu, no Recife. O coletivo paulista Banda Mirim é o destaque da festa de abertura. Desde 2003, seus musicais infanto-juvenis acumulam prêmios, como o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Pela primeira vez no Recife, o grupo traz o espetáculo Felizardo, que fala sobre a infância e o processo de amadurecimento da criança.

Realizado no Recife desde 2004, o Festival de Circo do Brasil reuniu, até a edição do ano passado, cerca de 200 mil pessoas No mesmo local, apresentamse, também, os clowns do Teatro Necessario, da Itália, apontados como “os novos Três Patetas”, em referência ao grupo cômico norte-americano. Eles conduzem a encenação interativa Nuova Barberia Carloni, ambientada numa típica barbearia italiana, em que os espectadores são convidados a atuar com o grupo. De volta ao Recife, após o sucesso do espetáculo L’oratorio d’Aurélia, em 2007, a atriz francesa Aurélia Thierrée apresenta sua mais nova encenação, intitulada Murmures des murs, no Teatro de Santa Isabel. Criado e dirigido por sua mãe, Victoria Thierrée-Chaplin, o número foi lançado em março deste ano. A exibição, no Recife, será a estreia da turnê mundial fora do continente europeu. O festival também toma as ruas e ocupa, novamente, a Praça do Arsenal e a Torre Malakoff, no bairro do Recife Antigo, além da Praça do Carmo, coração do sítio histórico da cidade de Olinda. Entre as atrações rueiras, está o humorista espanhol Adrian Schvarzstein. Com

1 murmures de MURS Atriz francesa Aurélia Thierrée no espetáculo que mistura dança, mímica e acrobacias

sua cama móvel, ele executa um ritual ilusório a fim de construir uma casa imaginária, a partir da ajuda da audiência. Enquanto isso, a companhia belga Circoncentrique traz o espetáculo Respire, calcado nos preceitos do malabarismo, equilibrismo e acrobacia. Com a ideia de formar plateia na cidade, a partir da identificação com o que está sendo apresentado, grupos pernambucanos não ficaram de fora do festival. Fazem parte da programação as encenações Divinas, da Duas Companhias; As levianas em Cabaret Vaudeville, da Cia. Animé; e Quatro, da Cia. Brincante de Circo. Também foi fechada uma parceria com a Semana de Artes Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco (UPFE). O evento tem como foco, neste ano, a arte circense. A coordenação do curso cogita, até, incluir uma disciplina sobre o tema na sua grade curricular. Por isso, será realizada uma exibição da Companhia Italiana Giullari del Diavolo na instituição, seguida de um debate entre os artistas que compõem a trupe e alunos. O plano é iniciar um diálogo entre mercado e academia no Estado. O Festival de Circo do Brasil também fomenta a arte cinematográfica e realiza, conjuntamente, a préestreia do filme O palhaço, dirigido e protagonizado por Selton Mello. Após a exibição do longa, a equipe da produção abre espaço para uma conversa com o público. No mesmo dia, o Mercado Eufrásio Barbosa, em Olinda, recebe a festa Circo Sem Loção, parceria entre o festival e a balada Sem Loção, considerada a melhor de 2010 pelo jornal Folha de S.Paulo. Estão previstos, ainda, para a Torre Malakoff, no Recife Antigo, palestras, lançamento de livro e exposição fotográfica.

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renata pires/divulgação

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DIVINAS Três mulheres simples em busca de um sonho

Espetáculo encenado pelas atrizes Odília Nunes, Lívia Falcão e Fabiana Pirro leva à cena a arte dos clowns, em encontro lírico e risonho texto Adriana Dória Matos

Três mulheres simples, e diferentes entre si, viajam em busca de sonhos, realização. Elas seguem a pé, carregando quase nada, uns caquinhos, uns taquinhos. E dessa escassez se faz graça e riso, provoca-se emoção. Porque enquanto caminham – às vezes param, hesitam, brigam – vão contando histórias, por elas mesmas vividas, vistas e inventadas. Elas são as Divinas, personagens-palhaças que trazem para a plateia de hoje a força da arte dos clowns, não importa se encenada debaixo da lona do circo, no palco do teatro ou no meio da rua. “Essa montagem nasceu do processo mais livre e ousado de que já participei na vida. Aulas de desapego diárias nos mostraram que era pra ser assim

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divinas

Teatro Barreto Jr. Finais de semana de Out / 20h R$10 e R$20

mesmo. Divinas não tem um diretor nem um autor... a brincadeira foi sendo criada pelas próprias ‘figuras’, com a ajuda de alguns olhos e ouvidos atentos e generosos”, define a atriz Lívia Falcão, que compartilha a cena com Fabiana Pirro, sua companheira de larga estrada desde o espetáculo Caetana, e Odília Nunes. Tão cigana quanto as suas personagens Zanoia (Lívia), Bandeira (Odília) e Uruba (Fabiana), a peça vem passando por diferentes experiências e colaborações. Seu primeiro momento se deu em 2010, quando Lívia, Fabiana e o ator Luciano Pontes realizaram uma pesquisa de encenação sob orientação de Moncho Rodrigues, que resultou em alguns ensaios abertos.

No primeiro semestre deste ano, o espetáculo ganhou corpo a partir de dois convites: à atriz Odília Nunes, integrada ao elenco, e à palhaça paraense Adelvane Neia, que preparou as atrizes e conduziu os improvisos. Com esse trabalho realizado, vieram em auxílio da dramaturgia o filósofo Marcelo Pelizzoli, o escritor Samarone Lima e a jornalista e dançarina Silvia Góes, que, com sensibilidade poética, escreveram o texto da peça. “Tivemos vários encontros em que Livinha, Bia e Odília improvisavam a partir de situações externas sugeridas por Samarone, Marcelo, Adelvane, por mim ou por elas mesmas”, rememora Silvia Góes. “Foram muitas brincadeiras, besteiras e risadas. A cada encontro, guardávamos o que resultava de mais belo e potente. A partir desses momentos e em nossas solidões, eu pegava um pedaço do texto e tecia novas poesias, respeitando o jogo e o jeitinho e, principalmente, a lógica de cada uma das palhaças; Samarone e Marcelo faziam o mesmo. Depois, devolvíamos para elas, para que pudessem levar para a brincadeira e testar aquela poesia proposta na vida das palhaças, no encontro das três.” A plateia perceberá, claramente, o jogo de peças de encaixe que estrutura Divinas, em que cada uma das atrizes tem seu momento solo, quando contam histórias, como se em solilóquio, para as companheiras ou para o público. Monólogos que são costurados por cenas dialogadas e compartilhadas, lirismo e humor aí bem dosados, mantendo um ritmo emocional equilibrado, também cadenciado pelas intervenções rítmicas do percussionista Luca Teixeira, presente em cena. Como temos visto em alguns espetáculos contemporâneos de clowns, não se trata de uma peça de humor óbvio ou escatológico. Pelo contrário, percebe-se que o trabalho aqui realizado solicitou das atrizes um movimento para dentro, no qual, num processo de autoconhecimento, elas fossem capazes de encontrar em si mesmas as palhaças que elas vivenciam em cena, uma “verdade” palhaça, por assim dizer. A esse respeito, há significativos depoimentos das próprias atrizes. Lívia Falcão assim descreve sua Zanoia,

certamente a figura catalisadora em Divinas: “Zanoia acordou de mansinho dentro de mim pra me mostrar que nada sei e, principalmente, que posso ser simplesmente eu mesma. Como uma borboleta, que na hora certa sai do casulo, consciente da sua fragilidade e beleza, livre e disposta a bater asas mundo afora. Zanoia é a minha melhor parte, que entrego pro mundo em um ato de amor”. Fabiana Pirro, cuja Uruba faz o contraponto à inocência e humildade de Zanoia, define desse modo sua personagem: “A personalidade de Uruba é muito estranha pra mim, ela, na verdade, é meu ‘outro lado’, mas sou eu. O palhaço é uma busca tão bonita pelos corredores da infância, pela verdade de sentir sem ter que esclarecer, apenas ser. Uruba vem dos índios, braba, domadora de cavalos, desconfiada, solitária, um tanto egoísta, medrosa e quase sem sonhos... Pra mim, ela é a certeza de que ninguém é feito só de amor e que, às vezes, o que parece ser mais puro não é, o mais sabido não é, o mais belo não é”. “Eu num sei pra onde eu vou! Eu num sei de onde eu vim... Mas, se Deus me convidou, eu vou ficar até o fim! E se nesta estrada que eu for alguém carecer de amor, eu tenho receita! Assim começo Divinas. E esse trecho de poesia define totalmente Bandeira”, afirma Odília Nunes, que conta ter descoberto essa “amiga” palhaça há seis anos. “Bandeira é a menina sertaneja que carrego para sempre! Uma menina cigana, curandeira e feliz. Confiante de que podemos ser melhores, de que podemos confiar nos outros, e de que podemos ser livres.” A atriz diz, também, que o convite para brincar em Divinas a deixou muito feliz, “porque há tempos que Bandeira já me cobrava falar do sagrado feminino, da ancestralidade”. Sendo dessas personagens e sensibilidades constituído, o espetáculo fará o espectador perceber outra de suas qualidades: ele não se dirige a faixas etárias, não divide o mundo em adultos e crianças, grandes e pequenos. O convite é para que todos se divirtam e se emocionem, vivendo ali, com as atrizes, a experiência de não criar barreiras e fruir a poesia livremente.

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montagem a partir de fotos de divulgação

Visuais ENSINO O beabá dos processos criativos

Livro organizado pelo pesquisador Sebastião Pedrosa apresenta para professores a poética e o modo de produção de 33 artistas TEXto Mariana Oliveira

Há algum tempo, a disciplina Artes faz parte do currículo obrigatório dos ensinos fundamental e médio das escolas brasileiras, devendo ser tratada com a mesma relevância que matérias como Matemática, Ciências e Língua Portuguesa. Porém, na prática, não é isso que se constata ao observar a carga horária destinada a

essa disciplina e o tratamento que ela recebe na grade curricular. A aula de Artes funciona, quase sempre, como um espaço em que as crianças e adolescentes recebem material e vão, durante aquelas horas, produzir algo, pintar, modelar... Contudo, também não é de hoje que se sabe que essa não seria a

maneira ideal de trabalhar a arte. O Método Triangular, proposto pela pesquisadora em arte-educação Ana Mae Barbosa, e referendado em todo mundo, constata que, para se aprender arte, é preciso ver, fazer e contextualizar. Sem esses três pontos, a formação não ocorre de forma plena. A aplicação do método torna-se bastante difícil num cenário em que os professores de Artes são designados, muitas vezes, sem ter qualquer conhecimento no campo. Sem a formação adequada do professor, levar conhecimentos da arte para a sala de aula – de maneira reflexiva – é algo quase impossível. Foi pensando em ajudar na formação desses professores que o também professor da graduação em Artes Plásticas da Universidade Federal de Pernambuco, Sebastião Pedrosa, concebeu o livro O artista contemporâneo pernambucano e o ensino da arte, patrocinado pelo edital da Petrobras Cultural. A ideia nasceu de uma espécie de projeto de extensão realizado pelo departamento de Teoria da Arte da UFPE, em parceria

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modo, serviu como um critério na seleção dos 33 artistas que compõem o volume. O primeiro requisito era ter participado das conversas na UFPE, entre esses, os primeiros que foram encontrados por Pedrosa compuseram a lista. “Por conta dessa pressão do patrocinador, alguns artistas que haviam participado não entraram no livro. Paulo Bruscky é um exemplo. Ficaram muitos de fora, daí o nosso desejo de que venha outro título”, conta Pedrosa. Com os artistas definidos, foi formada uma equipe de trabalho com professores do curso de Artes Plásticas. Inicialmente, foi preciso amadurecer as ideias e definir o formato da edição. “Havia a clareza de que resultaria num produto para ajudar o professor, mas não tínhamos definido o formato”, detalha Pedrosa, que optou por estruturar o livro com artigos que tratassem do processo criativo de cada um dos artistas. A obra reflete a pluralidade da produção pernambucana contemporânea, trazendoobras mais formais junto a outras mais experimentais, sem com o diretório acadêmico do curso de Artes Plásticas, que convidava artistas pernambucanos para ir à universidade e conversar com os alunos da graduação sobre seu processo criativo. “Tivemos uma quantidade enorme de artistas, e eu pensava: a gente traz essas pessoas aqui, mas não faz nenhum registro, esse material poderia ter uma utilidade ainda maior. Em 2007, a aluna Clarissa Diniz era a presidente do diretório acadêmico e intensificamos ainda mais essa atividade. Ela passou a registrar, via MP3, as conversas. Foi quando formatei o projeto e ele foi aprovado pela Petrobras em 2008”, explica o organizador Sebastião Pedrosa. Após a aprovação, ele percebeu que boa parte dos registros havia sido perdida e que seria preciso retomar o contato com os participantes e coletar informações do zero. Como a Petrobras exigia de imediato o nome de todos os artistas que fariam parte do livro junto com uma carta de anuência, Sebastião Pedrosa começou sua busca. Essa exigência, de algum

Os artistas selecionados estão organizados em ordem alfabética, sem qualquer tipo de hierarquização qualquer hierarquia entre elas. Esse desejo de não valorar, de não dar mais importância a um que a outro artista, fica claro na opção de organizá-los em ordem alfabética, com a mesma quantidade de imagens, e com espaços similares. Assim, o consagrado Gil Vicente é tratado da mesma forma que o jovem Aslan Cabral. A análise da obra dos 33 artistas foi dividida entre os participantes, de forma igualitária, seguindo critérios de afinidade. Ao final, por demandas individuais, a divisão inicial foi refeita. Alguns assinam apenas um texto, outros participaram mais ativamente, como a professora Madalena Zaccara, que escreveu

sobre 10 artistas. “Recebemos críticas que diziam que o livro não tinha um equilíbrio neste sentido, mas isso não importa, essa foi a dinâmica possível”, justifica Pedrosa. A primeira parte da publicação traz os artigos críticos que se debruçam sobre o processo criativo dos artistas, sem esquecer de apresentar um pouco da sua biografia. A produção contemporânea pernambucana é contextualizada e, muitas vezes, relacionada com movimentos e personagens de outras épocas, lugares e países. Essas referências abrem espaço para uma reflexão mais profunda sobre a própria arte, sua história e o momento que se vive hoje. Todas as referências bibliográficas utilizadas estão à disposição dos leitores, para um maior aprofundamento nos temas trabalhados. “Não gostaríamos de fazer um livro prescritivo, como um livro didático, com um ‘faça assim’, ‘leia assim’. A gente não acredita nessa forma”, explica o organizador, pontuando que a publicação não pretende dar todas as respostas, mas apenas trazer um recorte da obra dos artistas. Pensando nisso, o design do livro oferece muitos espaços em branco que, segundo Pedrosa, estão ali para que o professor possa fazer anotações, rabiscar. A segunda parte, intitulada Pensando na sala de aula, traz três artigos voltados para tópicos importantes da arte-educação, todos assinados por Sebastião Pedrosa. Há também um glossário, em que estão reunidos os principais verbetes do universo artístico que aparecem na obra e um DVD com cinco imagens de cada artista para serem utilizadas na sala de aula. O livro está sendo distribuído gratuitamente, além de ser disponibilizado nas bibliotecas públicas estaduais e em centros culturais. Apesar de ser voltada para professores de ensino fundamental e médio, a obra pode também atrair o público leigo e estudantes de graduação que desejem conhecer um pouco mais sobre o processo criativo de artistas díspares, mas que seguem produzindo intensamente em Pernambuco.

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Tanajura

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

A comida às vezes nos leva à

felicidade da, embora ninguém queira voltar a ela, infância, animais em estado puro sem sentimento de culpa como quando a gente caçava tanajuras, embora mesmo aí me houvessem incutido a noção do erro, acho que minha mãe; primeiro por isso de sair pelo meio da rua com um galho de mato para pegar tanajuras, se misturar com os meninos e meninas da classe baixa que não tinham o que comer e iam pescar muçu nas barreiras do rio, piaba nos brejos, com a mãe pegar camarão com o puçá quando as águas baixavam depois das cheias, e até hoje camarão para mim tem que ser de rio, sem falar de pitu que é outro bicho melhor ainda mas só quando novo e não esses duros que só um pau, sem gosto de nada, depois de passar um ano na geladeira, menos no Alfredão, esse podia se chamar

de pitu, em Boa Viagem e no Ipsep, a pituzada do Alfredão, que saudade, não apenas a tanajura em si mas tudo que nos representa: conheci até uma mulher que de tão louca por tanajura até lhe influía no desempenho sexual diante de um punhado de tanajuras torradas, e comia até cruas, como se restituída à época em que tudo é permitido, à satisfação dos instintos que vamos perdendo ao longo da vida com as regras de sustentação econômica, de convivência social, de moral, de higiene, da conservação física; segundo porque poderíamos comer tanajuras envenenadas por arsênico ou verde de formiga mesmo que não tenha sabido de nenhum caso até hoje. Verde de matar formiga. Mais uma vez o Aurélio: como Aurélio Buarque de Holanda era de Alagoas, achava que tudo que seus assessores não conheciam e só ele, botava

logo “AL”, como palavra originária ou apenas conhecida na Terra dos Marechais: “verde de formiga” uma delas. Criança, eu já fazia pacotinhos de 100 ou 50 gramas para vender aos matutos na loja de meu pai, em Ipojuca, entre esses meu avô Pedro Taveira, que às vezes trazia o fole para folear as formigas no quintal que acabavam com as flores da minha mãe e nós meninos guardávamos distância para não respirar a fumaça. O verde de formiga é o mesmo verde veronese. O portão do quintal dava para o da casa de Seu Severo, no beco de Seu Severo, beco onde uma cachorra dele, de nome Cecy, deixaram o portão aberto, ela soltou-se e mordeu minha perna, eu imobilizado carregando na cabeça cadeiras para um espetáculo no mercado velho, e onde vi uma vez, nesse beco, ela ia passando, sozinha, coitada, a pé, a deputada

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Adalgisa Cavalcanti. Dali ouvia-se a zoada da meninada na suave encosta em frente à casa de Seu Severo: “cai cai tanajura/tua bunda tem gordura/ teu pai não sei o que não sei o que/e tua mãe segura”, entre a casa de Seu Severo e a garagem de Seu Barreto. Uma vez eu ia num táxi, no fim da Avenida Kennedy, vindo da ponte sobre o Rio Beberibe, perto do Portão do Gelo, táxi meio velho dirigido por uma mulher ainda nova de um jeito bem popular, açararazada, o tabeliê cheio de farinha, sol quente, janelas abertas, de vez em quando ela tirava um punhado daquela farinha de um pacote, jogava na boca, me ofereceu, perguntei o que era, tanajura. Aceitei, ela disse que era a comida de que mais gostava no mundo. E gordura de caranguejo. A primeira vez que andei com táxi aqui dirigido por mulher. E também que comi tanajura depois de grande. Ela tinha o cabelo ruim cortado curto, arrepiado

Ouvia-se a zoada da meninada na suave encosta em frente à casa de Seu Severo: “cai cai tanajura/tua bunda tem gordura” para cima deixando o cangote roliço descoberto, bonita além de muito dada. Outra vez, eu trabalhava na Sudene, isso já faz muito tempo no banguê do meu avô, mais de 40 anos, o chefe da missão francesa, Monsieur Jourdane, me viu comendo tanajura. Simpático e ainda jovem. Um tanto reservado, acredito por conta da posição, corria que era aristocrata. Quebrou o protocolo e se aproximou. Pediu para provar. Gostou. Dei mais, embora pensando tivesse dito ter gostado por delicadeza. Ele era um

cara educadíssimo. No outro dia disse que a mulher tinha adorado. Iam dar uma recepção e perguntou se eu poderia ajudá-lo: pretendia servir tanajura aos convidados, na maioria franceses. Eu disse que era imprevisível, que dependia das trovoadas. Essas eu tinha comprado em Caruaru na feira, fila de sacos desses de vender farinha de mandioca de uns 80cm ou mais de altura, vendidos a litro, daqueles litros de pau: litro, meio litro e cuia (a cuia equivalia a cinco litros). Essa imprevisibilidade continua até hoje, 13/8/11, sábado, dia da coluna de Lectícia Cavalcanti, Gastronomia, de que sou leitor, na Folha de Pernambuco; caiu-me do céu, não do céu de Ipojuca na frente da casa de Seu Severo mas do de Gravatá, mandado por Lectícia e marido José Paulo Cavalcanti Filho, um bando de tanajuras já torradas no ponto e com farinha. Pense!

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Fotos: divulgação

Sonoras COQUETEL MOLOTOV Descortinando a vitrine do cenário alternativo

Festival de música chega à oitava edição, com programação variada, que vai do rap dos Racionais MC’s ao pós-punk inglês do The Fall texto Thiago Lins

Vem aí o carnaval hipster recifense, com direito à prévia e tudo. Seguindo a receita bem-sucedida dos anos anteriores, o festival No Ar Coquetel Molotov mantém uma extensa programação, que envolve seminários, oficinas e exibição de filmes, além, claro, dos disputados shows. O evento, que chega com força à sua oitava edição, já se consolidou como vitrine do que aconteceu, acontece ou acontecerá no cenário alternativo. É só conferir a grade da edição corrente: The Fall (subdinossauros do pós-punk inglês, admirados a partir do

final dos anos 1970), Racionais MC´s (ainda admirados, impulsionados pela reverência da nova cena rap de São Paulo) e Copacabana Club (já foram indicados ao Video Music Brasil, da MTV, e colaram singles em trilhas sonoras de canais por assinatura, podendo vir a se tornar trending topic). Medalhões e promessas à parte, o Molotov vem somando pontos altos; só no ano passado foram dois shows memoráveis, o do Dinosaur Jr. (veterano do indie americano, cuja muralha guitarreira tem muito o que passar às

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insossas bandas contemporâneas) e o rapper Emicida, sempre com muito a dizer – e dizendo rápido. Já ao longo das sete edições, passaram nomes de peso do indie, como Teenage Fanclub e Tortoise. O Teenage Fanclub, aliás, veio logo na primeira edição, façanha que a produtora-fã Tathianna Nunes (que produz o evento junto com Ana Garcia e Jarmeson de Lima) afirma ter sido um “sonho realizado”. E houve outros nomes como Beirut – a orquestra de Zach Condom protagonizou aquele que provavelmente foi o show mais incensado do festival até hoje – e Marcelo Camelo. Na ocasião, o ex-Los Hermanos travou um dueto com a cândida Mallu Magalhães. O dueto virou namoro, que virou piada indie, e o resto é história.

ATRAÇÕES

Formado em 1977, em Manchester, o Fall, apesar da constante troca de membros (só o vocalista Mark Smith tem se mantido na banda desde o começo), tem uma carreira prolífica: 28 discos de estúdio. O Fall é um caso típico de banda que alcançou mais respeito do que sucesso, tendo influenciado

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1 the fall Expoente do pós-punk, grupo vai tocar músicas do novo CD e clássicos do começo da carreira 2 RaP Maior banda do gênero no país, Racionais MC’s promete cantar inéditas

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uma leva de bandas alternativas e a segunda safra do pós-punk inglês, uma geração que tocava como o Fall, só que cinco ou 10 anos depois. Engrossam a lista de atrações os americanos do The Sea and Cake e o paulista Rômulo Fróes. O primeiro vem divulgar seu quarto álbum, Um labirinto em cada pé. Espécie de sambista moderno, Fróes vem crescendo desde seu penúltimo álbum, o elogiado No chão sem chão, em que se aproximou mais de outros ritmos, chegando a flertar com o rock. O cantor é apontado como um dos pensadores da cena atual. Já o The Sea and Cake traz seu post-rock, e deve se sentir em casa, uma vez que o festival é conhecido por trazer bandas do gênero, como o Tortoise (em 2006). Os americanos também têm material novo, The moonlight butterfly, disco com ecos de jazz. Passando à principal atração nacional (Racionais), o festival, que já tinha ousado trazendo um rapper promissor, no ano passado, foi mais longe agora. Já virou brincadeira entre jornalistas, músicos, produtores e o

público em geral adivinhar a grade do evento. Dessa vez, ninguém acertou. Talvez por se tratar de um grupo avesso ao hype. Só com Sobrevivendo no inferno, arrasa-quarteirão de 1997, venderam 1,5 milhão de cópias, recusando maciçamente convites para televisão, numa época, vale lembrar, em que a TV ditava o que era tendência. Talvez o tenham feito em retaliação às muitas críticas que receberam da mídia, na qual foram rotulados de sexistas, violentos e até de “irracionais”. O desprezo de parte da crítica foi inversamente proporcional à resposta do público, como provaram as vendagens milionárias de Sobrevivendo no inferno. A banda, que se manteve em uma gravadora própria e independente, a Cosa Nostra, deu origem a um culto tão fiel e radical entre seus fãs quanto a própria postura dos MCs. Apesar das idiossincrasias da banda, a produtora do Molotov Ana Garcia garante que a negociação com os paulistas foi tranquila. E adianta: devem tocar músicas inéditas, do álbum previsto para 2012.

Ainda sem título, o suposto disco de inéditas sucede o duplo Nada como um dia após o outro dia (2002). O CD tem momentos de brilhantismo, apesar de não ter repetido o fenômeno de Sobrevivendo. Desde então, o grupo só tem lançado coletâneas, mas continua em atividade, lotando ginásios Brasil afora. Recentemente, aqueles dois álbuns de estúdio foram contemplados numa lista de melhores da história, entre os brasileiros. Pode ser um acerto de contas com o tempo. Mas os Racionais sempre fizeram pouco caso de premiações. Quando não, fizeram polêmica mesmo. Como na premiação da MTV, o Video Music Brasil, de 1998. No palco, os Racionais mandaram ver com Diário de um detento, cujo clipe, um épico de oito minutos, bombava naquele canal, à época. Depois de uma performance impecável, Mano Brown soltou a pérola: “Minha mãe já lavou roupa de muito desses boys que tão aqui (na cerimônia)”. Críticos? Como atesta Brown em Vida loka, Deus, Ele, sim, é o juiz.

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divulgação

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bienal Um novo formato já sujeito a mudanças

Evento idealizado na década de 1970 passa a premiar compositores selecionados e reacende o debate sobre o espaço da música erudita nos dias atuais texto Carlos Eduardo Amaral

No lado oposto ao das badaladas bienais de literatura que acontecem por todo o país – em que editoras, autores consagrados e emergentes garantem constante cobertura da imprensa e ampla visitação do público – a Bienal de Música Brasileira Contemporânea (BMBC), realizada desde 1975 no Rio de Janeiro, não nasceu com o intuito de dar

visibilidade a intérpretes e compositores aclamados ou a editoras de partituras e livros do ramo (por sinal, um nicho a ser explorado, nem que seja nas próprias bienais literárias). O propósito era retomar o sucesso dos Festivais de Música da Guanabara de 1969 e 1970, que, por sua vez, procuraram se inspirar nos festivais de música

popular dos anos anteriores e, de fato, acabaram revelando verdadeiros talentos da composição erudita nacional, como Almeida Prado (19432010) e Ernst Widmer (1927-1990), vencedores das respectivas edições. À frente daqueles dois festivais, estava o compositor Edino Krieger, que levou adiante a ideia da BMBC em parceria com a produtora Myrian Dauelsberg. A Bienal, desde então, consolidouse como uma mostra de oito a 12 concertos, sempre agendada para o último trimestre dos anos ímpares, e pensada como uma vitrine para obras de várias formações instrumentais (além das peças acusmáticas, também conhecidas como eletroacústicas). Em 2011, serão executadas 78 obras em 11 apresentações e, pela primeira vez, a Bienal não acontecerá na Sala Cecília Meireles, atualmente em reformas. Receberão os concertos o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes (Centro),

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1 programa Nesta edição, serão executadas 78 obras em 11 concertos

quando apenas os intérpretes eram remunerados – sem considerar prêmios especiais para composições. O compositor Paulo Rios Filho, da equipe de coordenadores do Projeto Bafrik, ganhou distinção justamente em 2009, quando sua peça O enigmático gato de rimas obteve um dos quatro prêmios de 6 mil reais destinados a participantes de até duas edições da BMBC. Mesmo não tendo sido classificado para a Bienal deste ano, Paulo elogiou a iniciativa: “Acho isso muito bom, pois sinaliza o direcionamento de recursos públicos para a produção artística de uma forma mais direta, que não permite o emperramento nas contrapartidas comerciais – fruto dos patrocínios via leis de incentivo – nem a paranoia antielitismo, que, de alguma forma, subjuga demasiado a criação artística em favor das manifestações culturais típicas/tradicionais”.

CRÍTICAS

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a Sala Baden Powell, em Copacabana, e o Salão Leopoldo Miguez, na Escola de Música da UFRJ (Lapa). Pela primeira vez, também, todos os 76 compositores participantes terão recebido premiações. Desses, 59 – de 384 inscritos – foram selecionados por edital público com banca externa convocada pela Funarte (organizadora da BMBC desde a terceira edição, em 1979). Outras 16 partituras foram comissionadas diretamente a compositores hors concours, com presença em pelo menos 14 edições da Bienal . Edino Krieger, na condição de fundador do evento, recebeu encomenda especial. Outras duas obras, em memória dos compositores Almeida Prado (um dos hors concours) e Osvaldo Lacerda (19272011), estão confirmadas. Tal premiação integral, possibilitada por um maior aporte de verbas para a Bienal, veio a corrigir uma falha reclamada até a edição anterior,

O músico baiano, no entanto, ressalva que a Bienal, por sua duração e restrição geográfica limitada à cidade do Rio de Janeiro, não traduz a existência de uma política cultural voltada para a área da criação musical erudita. Ele sugere que o repertório contemporâneo seja trabalhado continuamente: “Esse dinheiro poderia ser aplicado, por exemplo, no financiamento de ensembles (grupos de câmara) dedicados a esse tipo de repertório ao redor do país e à consequente encomenda periódica de obras”. Com efeito, conjuntos de câmara que trabalham junto a compositores, executando obras especialmente criadas por eles, têm-se mostrado eficientes na difusão da música contemporânea – ainda que presentes em poucas capitais do país, como Salvador e João Pessoa. No Rio de Janeiro, um caso se destaca pela mobilização dos próprios autores, que resgataram uma prática hoje comum em outras artes, mas rara na música de concerto: a formação de um coletivo, tal qual o Les Six, na Paris dos anos 1920. O Prelúdio 21, por exemplo, originouse em 1998, com Alexandre Schubert, Caio Senna, Heber Schünemann, J. Orlando Alves, Marcos Lucas, Neder Nassaro e Sergio Roberto de Oliveira. Sergio, cuja Suíte para cordas havia sido apresentada na BMBC de 1997, explica

como nasceu a ideia do coletivo: “Aquela Bienal foi importantíssima para mim e minha geração. Se, por um lado, foi a afirmação dessa geração como ‘compositores de verdade’, foi também o reconhecimento de que aquele tipo de mostra era pontual e limitado. Falei para os meus colegas: ‘Não quero esperar mais um ano para ter uma obra tocada. Temos que tomar as rédeas de nossas carreiras’. A partir daí, J. Orlando Alves nos organizou”. Sergio Roberto discorda do formato da mostra, para a qual não foi selecionado este ano, e acredita que a programação precisaria ser menos focada nas obras: “A Bienal deveria ser ‘vendida’ como o grande evento nacional da música contemporânea brasileira. Eles até tentam dizer isso, mas acaba sendo um evento artificial. Ao invés de você focar os artistas, foca as obras. A obra é efêmera e não atrai público; o artista atrai. Não aceito mais

Em 2011, pela primeira vez, além dos intérpretes, os compositores também terão a chance de premiação o argumento de que é música de difícil consumo. O Prelúdio 21 tem uma média de público crescente, apoiada principalmente em não músicos”. Sobre a realização de concertos em outras capitais, Flavio Silva, coordenador da BMBC desde 2001, comenta que um eventual deslocamento de intérpretes para fora do Rio de Janeiro demandaria recursos não disponíveis e implicaria articulações prévias – e de retorno incerto – com estados e municípios para dirimir gastos. O musicólogo, que também exerce a coordenação de música erudita da Funarte, justifica que o evento dispõe de baixo orçamento para publicidade, cobra valores mínimos para ingresso (dois reais) e não tem frequência plena, porque dedicado à música erudita de compositores nacionais, com pouco ou nenhum renome perante o grande público. Na condição de intérprete, o violonista Jorge Santos, que produz

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2 opinião

Para o músico Sergio Roberto de Oliveira, o evento deveria focar mais os artistas e não as obras

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concertos de música contemporânea no Rio de Janeiro, defende o equilíbrio entre o cânone e o repertório hodierno na atividade do intérprete. Acerca dos canônicos, ele reforça: “A música de concerto é vista como um grande museu vivo e as orquestras são o símbolo maior desta imagem. A resistência a obras atuais passa por diversos fatores, como a formação básica do músico, que não inclui elementos sonoros que fazem parte do universo musical do século 20 e 21; a continuidade do discurso romântico, que predomina e prevalece no universo artístico; e, principalmente, a questão comercial”. Para Jorge, esse terceiro fator pesa contra a inserção da música atual, porque parte significativa dos produtores

evita assumir o risco de incluir nomes “desconhecidos” em um concerto. O músico recifense, porém, argumenta: “Ao contrário do público tradicional, que se apega ao cânone de maneira, até mesmo, fetichista, essa plateia imensa que está surgindo não tem preconceitos, pois, para ela, Brahms e Berio não estão tão distantes como querem fazer crer os tradicionalistas. Falta aos criadores e produtores da música contemporânea saber dialogar com o público atual”. Tal distanciamento dos ouvintes é igualmente rechaçado por Flavio Silva, que rejeita análises reducionistas e soluções prontas, quando se fala no quadro vigente da música erudita no país: “Há uma propaganda insidiosa que pretende associar música erudita a

elitismos. Não serão ações voluntaristas que mudarão um quadro pouco favorável à música erudita brasileira, mas uma modificação gradual na formação cultural da população”. No que tange à Bienal, o musicólogo observa que os critérios aplicados no evento procuraram ser os menos problemáticos possíveis: “Como servidor de órgão público, não tenho o direito de escolher qual compositor participará; não vejo outra saída a não ser o concurso. Não escolho quem receberá encomenda, pois para isso preciso de algum critério com objetividade. E não opto por essa ou aquela concepção de contemporaneidade, nem aceito que qualquer servidor público assim o faça. Num órgão privado, todas essas situações são diferentes”. A BMBC 2011 acontecerá de 10 a 19 de outubro e, novamente, não terá representantes de Pernambuco. Paralela às 10 noites de concertos, a coordenação do evento programará três encontros na sede da Academia Brasileira de Música, com os compositores selecionados para discutir o formato das próximas edições. O ouvinte poderá conferir todo o acervo das edições da bienal na internet: mais de mil obras, cuja divulgação era reivindicada por compositores e intérpretes, estão sendo liberadas pela Funarte, após orientações legais e acordos com músicos. Para os que desconhecem a música erudita contemporânea que circula por eventos como esse, um bom motivo para ouvi-la é dado por Sergio Roberto de Oliveira: “A música contemporânea é exclusiva e nova, mas devemos mostrar que ela não é um bicho de sete cabeças. Que é um pouco diferente, sim, mas ninguém gosta de cerveja no primeiro gole, ou de sushi na primeira mordida. É necessário se habituar e deixar que os novos sabores e sons façam parte de sua vida”.

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INDICAÇÕES MPB

COCO

RAP

INSTRUMENTAL

Quitanda

Independente

Independente

Independente

Reza a lenda que a cozinheira Gloria Bomfim costumava fazer seu trabalho cantando alto, sem saber que o seu patrão, Paulo César Pinheiro, tinha centenas de músicas gravadas. Foi por acaso, cantando uma música que não sabia ser de Pinheiro, que Gloria chamou a sua atenção. Com uma mãozinha do patrão (autor de todas as músicas do CD), a intérprete mostra força em Anel de aço, que sai pelo selo Quitanda, criado por outra intérprete: Maria Bethânia.

CRIOLO Nó na Orelha

FERRUGEM Ferrugem O mestre popular comemora seus 40 anos de carreira lançando o segundo CD. Por motivos de saúde, passou muito tempo afastado. Alternando canções próprias com as de autores como Geraldo Maia e variando ainda mais nos ritmos (que vão do samba ao coco, da umbanda ao xote), o ex-marceneiro, aos poucos, volta ao cenário, reafirmando a importância do Amaro Branco, bairro olindense conhecido por abrigar artistas populares.

Nó na Orelha não é o primeiro disco de Criolo, que, em 2006, gravou Ainda há tempo. Mas foi com o segundo álbum que chamou a atenção, depois de muitos anos de carreira. Suas letras, críticas e longas o levaram ao rótulo rap, mas constituiria certa injustiça deixar de fazer ressalvas: seu alcance vocal e as bases rítmicas do disco estão muito além do gênero. Merecidamente, Criolo é um dos artistas com mais indicações no VMB, cerimônia da MTV, em 2011.

Solo

LIRINHA FAZ DÉBUT NO POP Há uma imensa e – muitas vezes – cruel expectativa em torno dos músicos que saem de grupos bem-sucedidos e ingressam em carreira solo. Existem vários casos clássicos na história da música popular. No cenário pernambucano, não é diferente. Passaram por esse decisivo momento de transição Otto, Karina Buhr, China, Isaar, Alessandra Leão, Silvério Pessoa – que tiveram seus primeiros discos individuais bem-recebidos pela crítica e pelo público. Agora, chega a vez de Lirinha passar por sua “prova de fogo”. Um ano após ter anunciado a saída do Cordel do Fogo Encantado, grupo com o qual passou 14 anos, o compositor lança de forma independente Lira, seu début, disponível para download desde 11 de setembro no site www. josepaesdelira.com.br. Logo na primeira audição, fica evidente a mudança significativa que o compositor imprimiu em seu estilo. Se, antes, no Cordel, cantava como declamador sertanejo, com

performance bem próxima aos modos cênicos, e letras passeando pela rigorosa rima dos trovadores nordestinos, agora ele está, digamos, pop. Para quem curtia o formato do Cordel, e não bota muita fé nessa transformação, um aviso: o resultado surpreende. O disco exibe influências do mangue (Sistema lacrimal), Jovem Guarda e anos 1980 (Memória) e da musicalidade nordestina (em Sidarta e em Noite Fria), sem soar óbvio. Para criar esse álbum, Lirinha contou com um time de peso: Pupillo, o superbaterista da Nação Zumbi, que assina a produção musical; Neilton, guitarrista da Devotos, e Bactéria (ex-Mundo Livre S/A), que toca os importantes teclados Hammond e Juno do CD. Ainda há várias participações, como as de Lula Cortês (em sua última gravação), Angela Rô Rô, Otto, Fernando Catatau e o Maestro Forró. Neste mês, o cantor sai em turnê nacional. Será que sem o CFE Lirinha ainda faz chover? (Débora Nascimento)

SWAMI JR. Mundos e fundos Em 2003, o violonista Swami Jr. recebeu convite para participar de uma gravação com a cantora cubana Omara Portuondo. Depois dessa experiência, foi convidado para ser o diretor musical dos shows da diva pelos sete anos seguintes, quando viajou para diversos países. Nesse período, nos quartos de hotéis, o músico deu vida a Mundos e fundos, que traz músicas suas e interpretações de clássicos como Vibrações (Jacob do Bandolim) e Saudade da Bahia (Dorival Caymmi) com seu violão de sete cordas.

andré vieira/divulgação

GLORIA BOMFIM Anel de aço

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ESCOnderijo Procura-se um lugar chamado Mocó

Era uma casa muito engraçada: sem placa na entrada, mas com senha de acesso, menu tradicional e um dono cheio de prosa texto Renata do Amaral Fotos Ricardo Moura

1 são jorge

Sem calçamento e cheia de

buracos, a rua nem dá sinais de estar a poucos metros de duas das principais avenidas da Zona Norte do Recife. Para entrar no prédio de dois andares, é preciso tocar um interfone e dizer a senha – uma frase que tem a ver com o padroeiro da casa, São Jorge, mas que você não vai ficar sabendo nesta reportagem. Mesmo sem iluminação no térreo, é possível ver uma escada no fim do corredor. Depois de subi-la, chega-se ao bar e restaurante Mocó, o segredo mais comentado – e apenas relativamente bem-guardado – da gastronomia pernambucana nos últimos tempos. Depois de trabalhar no ramo por 28 anos, o proprietário Marcílio de Pádua já tinha desistido de ser dono de restaurante (e prometido isso à mulher Cláudia e aos filhos João e Antônio). Dos anos 1980 até aqui, foi sócio ou funcionário de locais como o Depois do Escuro, Água de Beber, Bela Bar Tok, Recife Marco Zero, Assembleia do Chopp, Califórnia e Encanta Moça. Entre um e outro, foi publicitário e morou no Rio de Janeiro, trabalhando na área de medicamentos. Não conseguiu, porém, ficar muito tempo longe do fogão. Há três anos, abriu a Casa Guanabara, que ele chama de premium delivery, com pratos cozidos em fogo lento e que precisam

Marcílo de Pádua criou uma senha ligada ao padroeiro do restaurante para liberar a entrada dos clientes

2 discrição

A casa, localizada numa rua sem calçamento, não tem placa que indique o funcionamento de um restaurante

2

ser solicitados com três horas de antecedência, pelo menos. O cardápio do serviço de entrega mistura clássicos da cozinha brasileira e internacional. Picadinho de patinho com quiabo, paleta suína inteira em crosta de alho com arroz de alho e linguiça e salada de feijão verde, ciobinha inteira com hondashi e ervas no papillote e salmão inteiro ao forno com bacon e batatas coradas são algumas das opções. O cozido à Casa Guanabara, com ossobuco, charque, bacon, paio, linguiça portuguesa, banana comprida, milho verde, batata-doce, couve manteiga e cebola espetada com cravo-daíndia, além de pirão e arroz branco, serve oito pessoas. É uma cozinha pensada para ser compartilhada.

Três anos depois da abertura da Casa Guanabara, o Mocó surgiu de uma conspiração de amigos. O dono do restaurante Nez e da distribuidora de vinhos Zahil, Marcelo Valença, usava o térreo do pequeno prédio como depósito auxiliar para suas garrafas. Foi ele quem insistiu para que Marcílio fosse ver o local. “Quando eu vi, pensei: ‘Isso aqui dá um mocó danado!’ ”, lembra. Reformou a cozinha, mas deixou a entrada do jeito que estava. Para o mobiliário, comprou antigas cadeiras escolares na Rua da Conceição. Abriu na quinta-feira da Semana Santa, em abril, de propósito, para sentir o movimento. O nome, que remete a um roedor que lembra o preá e vive escondido, não poderia ser mais apropriado.

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Cardápio 3

DEPOIMENTO-VERDADE

Marcílio queria que o local fosse frequentado apenas por amigos (e amigos de amigos) e resolveu não fazer divulgação alguma da casa. Em um mercado concorrido, no qual se faz tudo para aparecer nas páginas de gastronomia dos jornais e revistas, o restaurante secreto ficou conhecido apenas pelo boca a boca. “O depoimento-verdade das pessoas vale mais do que qualquer propaganda”, defende. O interfone com câmera foi instalado por questões de segurança e surgiu, então, a brincadeira da senha. “Virou um charme, mas não foi intencional”, conta. As redes sociais da internet também deram uma mãozinha. Com algum esforço, dá para achar o Mocó sem necessitar de indicação. Todo esse clima de mistério não seria suficiente para sustentar a casa, se esta não estivesse escoltada pela cozinha. A comida é baseada nas experiências com sua mãe Maria da Guia, que, segundo ele, cozinhava como ninguém. Mania na cidade desde os anos 1990, o prato feito – ou individual, como se fala em locais refinados para diferenciar da refeição

O nome do restaurante, que remete a um roedor que vive escondido, não poderia ser mais adequado de todo dia dos trabalhadores – não tem vez aqui. Ao ouvir a expressão, Marcílio só se recorda da época em que chegava tarde da escola e sua porção repousava separada em cima do fogão, pronta para ser requentada. “Gosto de prato para duas pessoas, servido com qualidade e generosidade”, explica. “Hoje todo mundo quer ser chef, mas ninguém quer ser cozinheiro. Eu luto para ser chamado de cozinheiro, um dia”, afirma ele, que conta com o apoio de quatro funcionários na cozinha. Para Marcílio, os cursos de graduação em Gastronomia são importantes, principalmente no que diz respeito à segurança alimentar, mas o que separa os meninos dos homens é a prática. Por outro lado, considera positiva a mudança

no perfil dos donos de restaurantes, que passaram a chefiar suas casas e estar presentes em todas as etapas. A cozinha do Mocó abriga também a produção da Casa Guanabara. A única diferença é que ela deixou de funcionar para entrega em domicílio, mas o cliente pode fazer a encomenda e ir buscar lá. “A cozinha do Mocó tem um pé no tradicional, mas com diferencial. É uma comida com personalidade”, conta. Aqui, o sarapatel suíno, por exemplo, leva o acréscimo de azeite, pimentão e alho-poró. Há duas opções de almoço a cada dia, com pratos clássicos como o steak au poivre, mas muitos clientes preferem se ater ao menu de petiscos. Ele apresenta itens como charque acebolada com farofa amanteigada de jerimum, costelinhas salteadas com abacaxi, fatias de pernil com molho ferrugem, língua em molho madeira, cordeiro em molho de vinho, siri mole amanteigado e lagarto siciliano com pão italiano, cheirando a azeite e preparado no local. O charcuteiro Werner Johann faz alguns produtos exclusivos para a casa, como o salsichão branco bockwurst e a costelinha defumada.

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3 prato O bacalhau com batatas e pimentões é uma das opções do cardápio 4 entre amigos Apostando na divulgação boca a boca, o restaurante tem uma freguesia fiel

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CARDÁPIO COLABORATIVO

Para acompanhar, a bebida que mais sai é a cerveja, com opções como Eisenbahn e Baden Baden. A lista de cachaças, com rótulos como Tabaroa e Januária, cresce estimulada por sugestões dos clientes. À noite, vinhos são mais pedidos. As sobremesas, da doçaria Pavlova, incluem tortas para duas pessoas, nos sabores nozes com chocolate, damasco e coco com chocolate branco ou preto. A quituteira Maritza Potter também contribui com o capítulo de sobremesas, oferecendo ambrosia, cassata de morango, musse de chocolate e torta alemã. Marcílio até tentou fazer as próprias tortas, mas não tinha espaço adequado para isso. Frequentado principalmente por advogados e publicitários, o Mocó tem, no almoço de sexta-feira, seu momento mais concorrido, em que, às vezes, alguns clientes ficam de fora porque os 52 lugares já estão ocupados. Aliás, clientes não: fregueses. “Quem vive de cliente é banco. Restaurante se sustenta de freguesia”, diz o cardápio da Casa Guanabara. Há quem vá almoçar e emende até a noite,

Segundo o proprietário, a cozinha do Mocó tem origem no tradicional, mas com diferencial. Ele busca personalidade pois é o único dia em que há happy hour. Toca-se jazz ou música popular brasileira, mas pode até acontecer de haver uma roda de samba eventual, nada planejada, feita pelos próprios visitantes. Na hora do pagamento, nada de cartão de crédito – apenas dinheiro ou cheque, como era de se esperar em um local tão escondido. “Pessoa muito acanhada, tímida, arredia” é outra definição que o Dicionário Houaiss traz para a palavra mocó. Se o restaurante hesita em se mostrar, o mesmo não se pode dizer do seu dono. Às 21h30, ao ver que o movimento ainda é grande no salão, Marcílio não se faz de rogado: bate palmas e avisa em voz alta que o local vai fechar em meia hora, mas que

abre novamente no dia seguinte às 11h e que espera todos por lá. Às vezes, basta olhar para a cara do freguês, soltar um “eu sei do que você precisa hoje” e voltar da cozinha com pratos escolhidos por ele próprio. Tudo com uma simpatia que vem lhe rendendo bons “novos amigos de infância”. Marcílio já foi procurado para se mudar para a casa de um restaurante badalado que fechou as portas recentemente, mas não aceitou. Ele sabe que uma parte do charme do Mocó está nesse ar meio clandestino. Ainda assim, vai abrir por estes dias, com dois sócios, mais um estabelecimento nos mesmos moldes, inclusive com o mesmo cardápio, em outro bairro nobre da Zona Norte. A ideia é facilitar a vida dos amigos-fregueses, para que eles não tenham que encarar o trânsito quase intransponível da cidade. Este vai ficar em uma pequena casa, mas sem placa na porta, claro. O nome? Ele está em dúvida entre “Procurando o Mocó” ou “Le Mocó”. De novo: quem quiser conhecê-lo, precisa se virar para descobrir o endereço. Faz parte da brincadeira.

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fotos: divulgação

Claquete Sudoeste Outro caminho para o cinema brasileiro

Assim como Luiz Fernando Carvalho, o cineasta carioca Eduardo Nunes embebe seu trabalho de atmosfera existencial e contemplativa texto Zeca Miranda

Santo Agostinho (354-430) dizia

que o tempo era uma característica do mundo criada por Deus e que não existia antes da criação. A assertiva do filósofo cristão parece servir aos propósitos idealizados por Eduardo Nunes em seu primeiro longa-metragem, Sudoeste. O filme se passa em uma vilota onde os eventos ocorrem em dois cursos distintos: o dos habitantes e um outro, iniciado após o nascimento de Clarice, personagem central da trama. O resultado que isso provoca é uma solidão que parece abater a película

em todos os sentidos, desde a falta de comunicação entre as personagens até a forma encontrada por Nunes para ditar o enredo, com muitas pausas, silêncios e longos travellings para apreciação das imagens. É o cinema sendo usado em uma de suas formas mais clássicas, de captura de tempo e espaço para narrar uma história. Filmado em 2009, numa antiga salina próxima a Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, o longa não tem época ou local definidos. Figurinos, cenários e sons servem de

ornamento para as imagens idealizadas por Nunes e pelo diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr. (Cinemas, aspirinas e urubus). Todo em preto e branco, rodado em 35mm e com formato da janela 1:3.66, Sudoeste tem uma natureza onírica bastante incomum para os padrões costumeiros. Em seu apartamento, em Niterói, Nunes conta que o projeto do filme possui mais de 10 anos e só pôde ser realizado com a aprovação do B.O. (concurso de edital para filmes de baixo orçamento do Ministério da Cultura), em 2008. Embora não tenha efeitos mirabolantes e recursos ostensivos, a produção é tão bem-acabada, que não parece haver custado o prêmio do edital no valor de R$ 1 milhão. Ainda mais quando se leva em conta um elenco que tem Simone Spoladore, Dira Paes, Mariana Lima, Julio Adrião, Everaldo Pontes. “Foram pessoas que acreditaram desde o princípio no projeto”, afirma. Existe também outro segredo simples para não estourar o orçamento, segundo Nunes: “Respeitar o planejamento”. Um rápido giro dentro de seu apartamento

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INDICAÇÕES e percebe-se a milimétrica organização do lugar. Para ele, tudo funciona quando se define claramente o papel de cada coisa. É assim no trabalho, é assim na vida. Como exemplo, ele mostra um mapa de luz em um papel quadriculado, feito para um de seus curtas, Terral (1995). O estudo aponta a luz em cada sequência. “O Kubrick fazia isso também”, diz ele, contando de onde vem a inspiração. Nunes possui uma antiga trajetória em curtasmetragens. São cinco, no total. Terral recebeu o Kikito no Festival de Gramado. Este ano, Sudoeste teve a sua primeira exibição pública, fora de competição, no encerramento do festival. “Foi um alívio saber que, depois de tanto trabalho, o projeto causou uma boa impressão entre os que estavam presentes”. No seu escritório caseiro, apontando para a tela do computador, ele mostra os próximos desafios do longa: Festival de Chicago e do Rio, em outubro; e Festival de Roterdã em janeiro. No circuito comercial, o filme ainda não tem estreia definida. “A intenção é aproveitar os festivais e mostras e já entrar em cartaz, aproveitando a repercussão”, afirma. O diretor já pensa em deixar Sudoeste caminhar sozinho. Na manga, alguns projetos para os próximos verões. “Atualmente, estou trabalhando numa adaptação de Camus. Conseguimos os direitos de A morte feliz e queremos aproveitar a viagem à Europa para captar recursos”, conta o cineasta. Antes de filmar Sudoeste, Nunes fez, com recursos próprios e a ajuda de amigos, o longa Duas da manhã, que agora aguarda para ser finalizado. “Vamos esperar acabar todo o

processo com Sudoeste, para voltar a trabalhar nesse filme.” Gravado em digital e também estrelado por Spoladore, Duas da manhã deverá ser transferido para película por Nunes.

2.100 TÍTULOS

Na área de serviço do apartamento, fica o “tesouro” do cineasta: uma coleção de DVDs com mais de 2.100 títulos – listadas em ordem alfabética pelo sobrenome dos diretores. Grandes ícones do cinema, como Tarkovski e Bergman – referências maiores para Nunes –, passando por títulos raros, até blockbusters, ajudam a fundamentar sua fama de cinéfilo. “Os vizinhos do prédio vêm pegar filme aqui. Eu anoto cada um que sai e sei quem está com o quê”, pontua. Essa “tara” por cinema é facilmente notada em sua estreia em longas. Em Sudoeste, é possível perceber referências da narrativa de Limite, de Mario Peixoto, da contemplação dos planos de Tarkovski, do debate existencial de Bergman e de Luiz Fernando Carvalho, em Lavoura arcaica. O diretor fluminense diz tirar mais inspiração dos livros que do próprio cinema para contar histórias. O que explica, em parte, um mérito do filme, que é apontar outros caminhos temáticos para a produção nacional. Não é desmerecimento querer mostrar o cotidiano e a rotina dos problemas do país, nem revelar a imagem bestializada da nossa realidade, mas fazse também necessário que temas mais universais, que exponham a alma humana, sejam retratados pelo cinema brasileiro, para que ele cresça e se comunique como uma arte maior que é. E isso Sudoeste faz bem.

drama

experimental

UM LUGAR QUALQUER

filme socialismo

Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 2010, o longa de Sofia Coppola nos apresenta ao astro de cinema Johnny Marco (Dorff), adepto fiel de festas, bebedeiras e belas mulheres. Tudo na vida de Johnny é efêmero, e sua filha Cleo (Fanning) é a única pessoa que lhe traz equilíbrio e sentido existencial. O longa é simples, ao mesmo tempo em que traz significados e reflexões em pequenos detalhes.

O ensaio de Godard é formado por três movimentos, aparentemente independentes, mas com um mesmo mote: o socialismo, aliado à crítica à burguesia. Esta é uma obra com a cara de seu diretor, e trata de temas recorrentes em outros de seus trabalhos, como política e religião. Além de uma reflexão sobre o socialismo e a sociedade no século 21, o longa é uma representação sobre o próprio cinema.

drama

drama

Direção de Sofia Coppola Com Elle Fanning, Stephen Dorff e Chris Pontius Universal Pictures

namorados para sempre Direção de Derek Cianfrance Com Ryan Gosling, Michelle Williams e John Doman Paris Filmes

O segundo longa de Derek Cianfrance apresenta ao espectador o relacionamento de Dean (Gosling) e Cindy (Williams), de maneira tão bela quanto triste. O foco aqui não são os personagens principais, e, sim, o relacionamento construído por eles. Intercalando a felicidade quase cega de início de namoro com cenas em que o amor vai se desgastando, Namorados para sempre traz para a tela um belo espelho de uma história de amor.

Direção de Jean-Luc Godard Com Catherine Tanvier, Christian Sinniger e Jean-Marc Stehlé Imovision

o discurso do rei Direção de Tom Hooper Com Colin Firth, Helena Bonham Carter e Geoffrey Rush Paris Filmes

O maior vencedor do Oscar 2010, conta a história de George VI, até então personagem pouco conhecido. Interpretado por Colin Firth, o rei chegou ao trono da Inglaterra de forma inesperada. O longa acompanha a trajetória de George VI ao trono, e seu problema em fazer discursos aos súditos, pois sempre que ia falar à multidão, ficava extremamente gago. Nesse filme bem-construído, o espectador observa a sensação de inadequação do monarca.

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chico ludermir

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PROSA Rússia, nome masculino; Recife, palavra feminina Em sua estreia como romancista, Marilda Vasconcelos de Oliveira transporta personagens de Dostoiévski para o Recife do século 21 texto Gilson Oliveira

“Não há assunto tão velho que

não possa ser dito algo de novo sobre ele.” Se, em seu início, essa frase de Dostoiévski é inaplicável aos livros do próprio escritor – cujos “assuntos” retratam profundas e eternas verdades humanas –, na sua segunda parte, ela parece se referir à obra do escritor russo, eterno alvo de novas abordagens, empreendidas por autores tão diferentes como o linguista russo Mikhail Bakhtin e o psicanalista austríaco Sigmund Freud. Partiu de uma escritora recifense, Marilda Vasconcelos de Oliveira, uma original adaptação do último livro do romancista, Os irmãos Karamazov, lançado em 1880. Publicado este ano pela Editora Bagaço, O avesso do romance não apenas transporta a história no espaço e no tempo, trazendo-a para o Recife do século 21, como troca o sexo dos principais personagens. “A minha intenção foi evidenciar o preconceito ainda existente contra a mulher, denotar o homem de 130 anos atrás, possuidor de status social superior ao da mulher de hoje. Outra determinação era a de aproximar o jovem e o leitor mediano da literatura clássica, quase que olhada por essa turma como peça de museu”, diz Marilda Vasconcelos, que faz sua primeira incursão pelo romance, depois de conquistar prêmios como poeta e ensaísta, com livros como A mão e o fuso, de 1986 (primeiro lugar no Prêmio Manuel Bandeira, da União Brasileira de Escritores), e Família

pós-moderna e redefinição de valores, de 2002 (Prêmio VI Jogos Florais, da Associação Cultural de São Domingos de Rana, Cascais, Portugal). Quinto livro lançado por Marilda, que possui três obras inéditas e está presente em várias antologias de poesia, O avesso do romance exigiu quatro anos de intenso trabalho, que

“A minha intenção foi evidenciar o preconceito ainda existente contra a mulher” Marilda Vasconcelos incluiu pesquisas e a reinterpretação de trechos de Os irmãos Karamazov. A ideia da autora, que também é socióloga e antropóloga, era suprimir aspectos distantes da mentalidade mediana de hoje, tornando a obra acessível a qualquer leitor. E não faltaram grandes desafios, alguns intrínsecos, como a própria adaptação de um livro considerado por Freud – que nele se inspirou para o artigo Dostoiévski e o parricídio – o maior romance de todos os tempos. Curiosamente, a maior dificuldade não foi a mudança de gênero dos personagens – “a grande diferença entre o masculino e o feminino pertence mais à cultura do que à natureza”, diz a escritora – , mas a

passagem do tempo. “Estamos a 130 anos da história . A transformação é radical, sobretudo, no tocante à ciência e à tecnologia”, explica.

BERÇO LITERÁRIO

Atualmente, Marilda escreve um livro de contos sem verbos. Filha do escritor, crítico literário, jornalista e membro da Academia Pernambucana de Letras João Vasconcelos, ela conta que seu pai costumava receber em casa autores como Mauro Mota, Nilo Pereira e Câmara Cascudo. E que a biblioteca da família era abastecida de muitos livros, alguns dos quais enviados pelas próprias editoras. Uma atmosfera de arte continua marcante no ambiente doméstico de Marilda. Ela é casada com o escritor Lauro Oliveira, que recentemente lançou Osman Lins – Vocação ética, criação estética. Entre seus projetos, está a produção de um livro com as cartas que, por muitos anos, trocou com o autor de Avalovara e outro sobre Dom Hélder Câmara, com quem também manteve convivência. Marido e mulher costumam ser os primeiros leitores e críticos um do outro e, há muito tempo, planejam uma obra “a quatro mãos”. Embora em campos diferentes, filhos e filhas também seguiram a carreira artística. É o caso do músico e produtor Zé da Flauta e do artista plástico Gil Vicente, que ilustrou o livro A mão e o fuso, sendo autor da capa de O avesso do romance.

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HQ Versão “quadrada” para os beatniks

Novela gráfica homenageia, de modo convencional, ícones da contracultura que revolucionaram a literatura norte-americana texto Danielle Romani imagens: reprodução

O romance gráfico Os beats – Uma graphic

history é um tributo a uma geração de escritores que virou mito, revolucionou a literatura norte-americana e foi uma das principais responsáveis pela eclosão da contracultura na década de 1960. Assinado por vários desenhistas e roteiristas, entre eles o ícone dos quadrinhos Harvey Pekar, a novela gráfica é o que se pode classificar como um trabalho que vai a fundo na vida dos protagonistas da beat generation, e que atende bem às expectativas dos que querem conhecer melhor a trajetória desses escritores e poetas. Mas guarda contradições. Se, por um lado, aplaca a curiosidade dos que amam a literatura e buscam informações detalhadas sobre o período, por outro, deixa na mão os que prezam pela narrativa criativa, rápida, original das modernas histórias em quadrinhos. Ainda mais quando o tema em questão são os beatniks. O nó que engessa a graphic history – também conhecido como romance gráfico – se deve, principalmente, aos roteiros, extremamente lineares e demasiadamente cronológicos, que podem ser descritos como “enciclopédicos” demais, bem distantes da poesia e do anticonvencionalismo esperado de uma história que tem como cerne os artistas mais inquietos e pirados das últimas décadas. A impressão que temos é de que havia material em excesso e espaço de menos para contar a trajetória de escritores como Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, apontados como os principais expoentes do movimento literário, cuja influência foi tão forte, que deflagrou uma mudança nos costumes. Ou que faltou empenho em juntar todas as informações de forma criativa,

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INDICAÇÕES dando mais leveza e menos obviedade à narrativa. Os roteiros de Harvey Pekar – celebrizado por obras como Bob e Harry, em parceria com Robert Crumb –, apesar de repletos de informações importantes para pesquisadores do gênero, carecem de emoção, de vigor, de vida. Aliás, os roteiristas secundários, que assinam biografias de autores menos emblemáticos – além do perfil das mulheres que participaram do movimento – se saem bem melhor que o mestre Pekar. Autores como Nancy J. Peters e Penelope Rosemont conseguem mais agilidade e vivacidade ao retratar seus biografados. Têm mais ritmo, mais entusiasmo. Apesar das ressalvas, a graphic Os beats tem pontos fortes, e merece figurar na estante dos aficionados pelo movimento. Os desenhos – na sua grande maioria executados por Ed Piskor – têm personalidade e flagram a atmosfera tensa, e muitas vezes deprimente, que permeava a vida desses homens que lutaram para serem reconhecidos. E que viveram conflitos contra as drogas, a miséria, a criminalidade e as paixões desmesuradas. Durante a leitura dos vários perfis e biografias que pontuam o livro, o leitor vai conhecendo mais a fundo as personalidades de seus ídolos, cujos comportamentos e atitudes, muitas vezes, estão bem distante do que idealizamos. No livro, poderá ser descoberto um Kerouac machista, racista e preconceituoso. Um Burroughs trapaceiro, amargo e pouco ético. A exceção fica por conta de Ginsberg, cujas posturas políticas e pessoais o habilitaram

a ser um dos gurus da contracultura dos anos 1960. Outro destaque é o capítulo reservado às mulheres. Escritoras como Diane di Prima, Hettie Cohen e Elise Cowann, absolutamente desconhecidas dos brasileiros, têm seus perfis retratados e suas histórias registradas. Elas, conforme poderá comprovar o leitor, eram discriminadas e consideradas artistas de segunda classe pelos próprios companheiros do movimento. A grande quantidade de informações e a divulgação do perfil de outros integrantes da beat generation, a exemplo de Lawrence Ferlinghetti, Carl Solomon, Charles Olson, Leroy Jones e Neil Cassidy, só para citar alguns, é um “extra” que torna o trabalho particularmente interessante para colecionadores e pesquisadores. O livro flagra, inclusive, episódios e locais emblemáticos do movimento, a exemplo da livraria City Lights, em San Francisco, na qual tudo começou, e que hoje se transformou em ícone e ponto turístico do movimento beatnik.

ENSAIO

RICARDO FERREIRA FREITAS (ORG.) Olhares urbanos Summus Editorial

Esta coletânea visa pensar a cidade, suas contradições, seus espaços e suas narrativas, através do olhar da comunicação social. Nos últimos anos, o estudo do urbano, firmado em outras áreas, passou a se destacar no campo comunicacional. Afinal, é nesse espaço que a maioria das manifestações midiáticas toma parte.

RELATO DE VIAGEM

JUREMIR MACHADO DA SILVA Um escritor no fim do mundo – Viagem com Michel Houellebecq à Patagônia Record

HQ OS BEATS Editora Saraiva Desenhistas e roteiristas narram a vida dos escritores.

O jornalista e professor universitário relata como foi sua viagem à glacial região andina, com o escritor francês Houellebecq, sobretudo a partir de diálogos provocados pelo entorno natural. O volume é uma afirmação de amizade entre o autor e o francês.

CRÔNICA

FÁBIO CAMPANA A árvore de Isaías Travessa dos Editores

O tom agressivo marca as narrativas contidas neste livro do jornalista e editor paranaense. Portanto, não se iluda com a apresentação visual leve e as belas ilustrações de Guilherme Zamoner, que o ritmo é de pancadão. O autor usa o tom confessional para aasuntos que vão das relações humanas ao mundo da cultura.

POESIA

TERUKO ODA (ORG.) Goga e Haicai Escrituras

Uma antologia de haicais brasileiros, escritos por autores integrantes do Grêmio Ipê e discípulos do mestre Masuda Goga. Esse é o resumo do título, que pretende homenagear o centenário de nascimento de Goga (1911-2008). Nascido no Japão e migrado para o Brasil, ele foi responsável pela sistematização de um modelo para esse gênero poético no país.

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reprodução

Artigo

MURILO JARDELINO DA COSTA O UNIVERSO PLURAL DE VILÉM FLUSSER Conhecido principalmente por sua

obra clássica sobre fotografia, Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser apreendeu como poucos a revolução que estamos experimentando e protagonizou a elaboração de uma obra muito particular sobre essa era que se inicia, por ele designada de pós-história. O ensaio A escrita: há futuro para a escrita?, produzido antes do acidente que lhe tirou a vida, em 1991, em cujas páginas ele faz uma reflexão sobre o que perderemos e o que ganharemos em um mundo sem a escrita, é obra fundamental para se conhecer o pensamento do filósofo. Para ele, os códigos digitais e as imagens técnicas produzidas por aparelhos poderão decretar a morte da escrita, isto é, do código alfabético, das letras. Nesse ensaio, o autor discorre sobre a história da escrita, desde as inscrições, quando o suporte desse gesto de escrever era a argila, a pedra, passando pelas sobrescrições, escritas cujo suporte é o papel, até o momento que ele designa de pós-história, em que os códigos digitais terão substituído a modalidade escrita de uso da língua. “Da mesma maneira como o alfabeto procedeu, originalmente, contra os pictogramas, os códigos digitais procedem atualmente contra as letras, para superá-las. Da mesma maneira como, originalmente, o pensamento fundamentado no alfabeto se engajou contra a magia e o mito (o pensamento imagético), também o pensamento baseado em códigos digitais se engaja contra ideologias processuais, para substituí-las por modos de pensar cibernéticos, sistemoanalíticos e estruturais”, escreve o autor, no capítulo sobre os códigos digitais. E por ocasião dessa reflexão sobre o declínio da escrita em nossa cultura, faz uma leitura,

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uma análise de todas as atividades humanas que se desenvolveram em torno desse gesto e avalia o que perderemos e o que será diferente se abrirmos mão do escrever. Entre outros, há capítulos dedicados aos livros, às cartas e ao ritual epistolar, aos jornais, às papelarias, às escrivaninhas etc., aspectos de nosso cotidiano apreendidos por um olhar fenomenológico. É um olhar pessimista e melancólico. Esse olhar, por exemplo, é apreendido no capítulo Cartas, em que ele discorre sobre o ritual de enviar e receber essa escrita. Para Flusser, o ritual epistolar não é mais possível em nosso contexto de pós-escrita. “Hoje, o que chega desse mistério é quase sempre publicidade (cartas falsas em forma e conteúdo) e contas a pagar, portanto, cartas que contêm ameaças não manifestadas.” Para o autor, ao abrir mão da escrita, as atividades organizadas em torno desse gesto também desaparecerão: as cartas, os livros, as papelarias e, até mesmo, a cidade. Assim, o argumento flusseriano objetiva mostrar que, um dia, o alfabeto, invenção que levou o ser humano a ingressar no período histórico, caracterizado pelo pensamento lógico, linear, conceitual; desaparecerá completamente da face da Terra. Para ele, não é fácil conviver com essa ideia, pois há pessoas que acreditam, entre as quais ele se inclui, que não poderiam viver sem escrever, já que só no gesto da escrita podem expressar sua existência. Na defesa desse gesto, ataca frontalmente os roteiristas: “Quem escreve roteiros rendeu-se de corpo e alma à cultura das imagens. E ela é, do ponto de vista da cultura escrita, o demônio. Os roteiristas servem a esse demônio literalmente, (...). Eles arrancam as letras do navio da literatura, que está afundando, para sacrificá-las ao diabo das imagens”. Embora seja cruel com os roteiristas, não parece sê-lo com os poetas digitais. Ao considerar a passagem da poesia oral para a alfabética, pergunta-se: “Será que as pessoas antigamente também não devem ter falado de uma dessacralização e tecnicização da

poesia, quando elas compararam o inspirador canto dos bardos com a manipulação de letras empreendida pelo poeta escritor? (...) O novo poeta, que se senta diante de seu terminal e espera curioso por saber quais formações morfológicas e sintáticas inesperadas surgirão na tela, é capturado por um delírio criador, que em nada se opõe ao calor da luta do poeta escritor contra a língua”. Essa identificação com os poetas devese, provavelmente, à sua concepção de poesia. Para Flusser, “fazer poesia é a produção de modelos de experiência, e sem tais modelos não poderíamos perceber quase nada. Ficaríamos anestesiados e teríamos de – submetidos aos nossos instintos

O argumento de Flusser sugere que o alfabeto, invenção que fez o homem entrar no período histórico, desaparecerá atrofiados – cambalear cegos, surdos e insensíveis. (...) os poetas são nossos órgãos dos sentidos”. Essa discussão acerca do declínio da escrita adequa-se ao gênero ensaio. O ensaísmo já diz respeito à sua prática de escrita. Rainer Guldin diz, em Pensar entre línguas: a teoria da tradução de Vilém Flusser, publicado no Brasil em 2010, que “o ensaio indica a perspectiva escolhida desde o início, (...). Ele não silencia, ao contrário do tratado científico, a dependência do ponto de vista. Escreve-se sobre uma área geral de difícil definição e submete-se, portanto, à suspeita da deslealdade científica. (...) Ensaios são, para Flusser, narrativas fenomenológicas: eles vivem do engajamento que liga aqueles que escrevem ao seu objeto, e tornam o ponto de vista de quem vê o verdadeiro tema”. É, portanto, no e por meio do ensaio que o autor desenvolve sua autoria. Trata-se de uma escrita única e autoral. Nesse aspecto, reside outra característica da escrita do autor, é uma criação linguística que se

assemelha, em certa medida, à escrita literária. Para Gustavo Bernardo, romancista e professor de Literatura na UERJ, editor do site Dubito Ergo Sum, “Vilém Flusser, como filósofo, é um excepcional poeta, do mesmo jeito que se pode afirmar que Flusser, como poeta, é um excepcional filósofo. Esse comentário aparentemente irônico, entretanto, não diminui nem o poeta nem o filósofo, mas todo o contrário: chama a atenção para a sua capacidade de estar sempre onde não esperamos, dessa forma, deslocando-nos sistematicamente da nossa perspectiva e da nossa zona de conforto. Como filósofo, não constrói nenhum sistema, mas força o seu leitor a filosofar, a pensar, a duvidar. Como poeta, não escreve poemas, mas pensa poeticamente, levando-nos a desconfiar das grandes abstrações para nos concentrarmos no detalhe – no detalhe humano”. Por isso, para Guldin, o mais importante em Flusser “é tudo aquilo que tem a ver com o conceito ‘inter’, entre, terceira margem: intertextualidade, interdisciplinaridade, como também plurilinguismo e pluralidade de pontos de vista. A isso, associase a ideia de migração entre línguas, entre continentes, entre disciplinas, entre fases da vida: a consequente superação das fronteiras. Movimentar-se de maneira pendular, traduzir, viajar, ser nômade. Não se pode distinguir uma coisa de outra de maneira tão clara. Ao contrário, elas estão emaranhadas e se confundem, as disciplinas se sobrepõem e se interpenetram. Fuzzy set. Zonas cinzentas. O outro é o método. A práxis da autotradução. O estilo de escrever, o eterno comparar, o jogo com as palavras, a tentativa de unir forma e conteúdo”. A escrita d’A Escrita refrata esse projeto constitutivamente plural: são fragmentos de várias esferas discursivas, desde relatos da literatura religiosa até excertos da literatura científica, em vários registros, desde o mais formal até o coloquial, textualizados sobre os sistemas de referência de, no mínimo, quatro línguas: alemão, português, inglês e francês.

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André Balaio

HOLLYWOOD NÃO ACREDITA EM LÁGRIMAS

André Balaio

é músico e fã de Billy Wilder e John Ford divulgação

Eu quero chorar em um multiplex. Quero histórias plausíveis de seres humanos que tenham angústias, dúvidas, frustrações e crises iguais às minhas. Ou até um pouco maiores. Mas só encontro nas telas os casais abestalhados das comédias românticas, os vampiros sarados do terror adolescente (que em nada lembram o Drácula de Christopher Lee), os super-heróis das enésimas adaptações dos quadrinhos, os garotos ansiosos por perder a virgindade nas comédias teens (embora eu ache Superbad genial), além de ETs, agentes secretos, policiais, videntes e cantores. Não existe mais drama no cinema comercial. E, por drama, entenda-se o sentido vindo do teatro, da representação da vida comum. Porque homem comum só existe para Hollywood se fizer algo espetacular que o torne um herói. Não se encontram mais jovens sofridas como a que Lillian Gish interpretou no clássico mudo Lírio partido (Broken blossoms), do pioneiro D. W. Griffith. Nem dor igual à do jovem casal vivido por Ali McGraw e Ryan O’Neal em Love story – Uma história de amor, condenado ao triste fim pelas diferenças sociais e pelo câncer. Ainda hoje, seguidas gerações vibram e choram com E o vento levou e Casablanca. O repertório hollywoodiano clássico é recheado de personagens com perfil psicológico bem-desenhado, problemas e dilemas morais. Os filmes de Howard Hawks, William Wyler, John Huston, Billy Wilder, Elia Kazan e mesmo os westerns de John Ford, as comédias humanistas de Frank Capra e os melodramas de Douglas Sirk sempre aprofundaram os seus personagens a ponto de torná-los próximos do espectador. Na Hollywood atual – como no poema de Fernando Pessoa –, todos têm sido campeões em tudo. O que se oferece e se consome é o puro escapismo, a fuga da realidade. É difícil estabelecer quando essa tendência começou. Até arrisco dizer que está relacionada à nova ordem pós-11 de setembro. Mas uma coisa é certa: ela representa uma sociedade cada vez mais apegada a sensações superficiais e descartáveis. Claro que ainda existe humanidade nas telas, só que em obras de diretores que não seguem a cartilha dos grandes estúdios. É o caso de Lars Von Trier e Terrence Malick, que recentemente nos tocaram com seus respectivos Melancolia e A árvore da vida. Porém, o público que eles alcançam é pequeno e seleto, bem distante da alegre massa que se farta com os blockbusters em salas barulhentas e festivas. Porque chorar em multiplex, hoje em dia, só se for de raiva.

con ti nen te

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