Continente #131 - Necrópole

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chico ludermir

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aos leitores Você recebe a notícia de que o Cemitério de Santo Amaro será destruído para dar lugar a um conjunto habitacional. Em poucos meses, aquele lugar, que faz parte da paisagem urbana do Recife desde 1851, deixará de existir. Tudo bem, você não é o que se poderia chamar de habitué da necrópole, como o aposentado que o jornalista Roberto Beltrão encontrou quando estava em campo para realizar a reportagem que leremos nas próximas páginas, mas não gostaria de ver desaparecer uma parte importante da história da cidade. A demolição de um cemitério centenário para dar lugar a torres residenciais é o que está acontecendo agora, em Cingapura, com o Bukit Brown, uma construção também do século 19. Em depoimento à imprensa internacional, o professor Irving Johnson, da Universidade Nacional, disse, em defesa do patrimônio: “Um cemitério não é, apenas, um lugar para enterrar as pessoas. Fala, também, da história e do passado. Bukit Brown contém, sem dúvida, as mais antigas sepulturas chinesas de Cingapura”. Embora não tenham sido as palavras do professor a nos orientar, elas expressam

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o que pensamos ser a contribuição que o campo-santo traz à memória citadina. Aspecto que nos motivou a buscar esse enfoque para a reportagem especial do mês dedicado ao tema da morte. Por outro lado, sabemos o quanto a riqueza histórica, artística e arquitetônica do Cemitério de Santo Amaro tem sido negligenciada, no que diz respeito à conservação, seja porque a sociedade contemporânea evita ao máximo o seu contato com os rituais fúnebres – o que a afasta desse tipo de lugar e de sua possível beleza –, seja porque o aumento populacional e a necessidade de rodízio das catacumbas enfeiam o cemitério, dando-lhe um aspecto de eterno canteiro de obras. Pode soar irônico, mas a verticalização e o inchaço da cidade também resvalam para a necrópole. O Recife, ainda, é tema que nos mobiliza nesta edição. Dedicamos 32 páginas a “cantálo”, num entrelaçamento de fotografias e trechos de romances que à cidade se referem. Nossa fonte foi o livro O Recife dos romancistas, uma vivaz compilação feita pelo sociólogo e jornalista Abdias Moura, sobre a qual você lerá nas páginas finais da revista.

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R EM PERNAMBUCO, ALCANÇA UITAS M DE A R EI IM R P A É EB O ID NOS LU A S O A R PA S TA IS U Q N CO DA REDE ESTADUAL.

Desde 2007, o Governo de Pernambuco investiu mais de R$ 350 milhões na ampliação e modernização da rede estadual de ensino. Hoje, o Estado possui 174 escolas de referência EM Ensino Médio. É a maior rede de escolas em tempo integral ou semi-integral do Brasil. Estas unidades alcançaram, com 10 anos de antecedência, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) projetado pelo MEC para 2021. A meta é chegar a 300 escolas de referência, no Estado, nos próximos três anos. Os investimentos em qualidade da educação continuam. E os alunos pernambucanos, certamente, têm um futuro de muitas conquistas pela frente.

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sumário Portfólio

Kiko Farkas

6 Cartas

7 Expediente

8 Entrevista

+ colaboradores Hilton Lacerda Roteirista discorre sobre a experiência de dirigir seu primeiro longa de ficção, Tatuagem, e critica parte da produção nacional

12 Conexão

Piseagrama A partir de ensaios, críticas, reportagens literárias e experimentações artísticas, revista online discute o espaço público

50 Claquete

I Brasil Stop Motion A técnica artesanal será exclusiva em evento que reúne realizadores internacionais

26 Perfil

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58 Leitura

Alvo noturno Escritor argentino Ricardo Piglia embaralha gêneros na sua mais recente novela

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Matéria corrida José Cláudio Sobre pintura

76 Palco

Romeu e Julieta Grupo Garajal do Ceará remonta o clássico da literatura universal, numa adaptação que inclui folguedos populares

20 Balaio

George Harrison Documentário de Scorsese aborda episódios da vida do ex-beatle, como o curioso fim do casamento com Pattie Boyd

Ao perceber que sua verdadeira função era captar e traduzir o espírito do cliente em elementos visuais, o designer conseguiu criar um estilo próprio

112 Saída

Raphael Douglas A morte é o vigor da vida

José Teles O jornalista e crítico musical já lançou mais de 40 livros, entre ensaios e títulos infantojuvenis

46 Cardápio

Para os mortos Diversas culturas mantêm a tradição de servir alimentos aos seus antepassados, como oferendas

Sonoras

Ringo Starr Pela primeira vez, um dos dois remanescentes dos Beatles faz show no Recife, onde se apresenta à frente de uma banda de músicos experientes

64 Capa foto Chico Ludermir

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História

Especial

A partir de suas pesquisas de mestrado e doutorado, Antonio Cadengue lança livro em que analisa a produção do grupo teatral, em seus primeiros 50 anos de atividade

Embora não possa ser comparado aos bemconservados cemitérios europeus, o de Santo Amaro retrata a história da urbanização e dos estilos arquitetônicos do Recife

Visuais

Ensaio

Em Para nunca mais me esquecer, artista plástico constrói objetos para estimular no público a crítica sobre as más ações da humanidade

Fotógrafos que atuam no Recife interpretam livremente trechos de 14 romances, de diversos autores, que “cantam” a cidade

TAP

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José Paulo

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Campo-santo

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Nov’ 11

O Recife dos romancistas

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cartas Planalto

mais do mesmo”. Muito legal ver César Santos sendo reconhecido como o pioneiro em Pernambuco, e ter um profissional consciente como Hugo Prouvot. É disso que a cozinha do estado precisa, de gente que faz o correto.

Sou leitor da revista, há muitos anos, aqui, em Brasília, e ela está cada vez melhor. Bravo pela entrevista com José Jorge de Carvalho! BENÉ FONTELES BRASÍLIA - DF

HELENNA MENDONÇA RODRIGUES

Goiana e Sirinhaém Comprei a Continente nº 128 e me deslumbrei com a matéria sobre Goiana. Faço pós-graduação em Turismo e Gastronomia, estou desenvolvendo minha pesquisa sobre a cultura de coco às margens da sociedade canavieira e a cidade em foco é Sirinhaém. Há algum tempo, não acompanhava a Continente e, lendo a matéria de Beatriz Coelho Silva, senti um desejo enorme de contribuir com o que pudesse sobre essa cidade tão cheia de histórias. NATÁLIA SANTORO RECIFE-PE

Contemporânea Quero elogiar a edição de setembro da revista, que trouxe uma matéria bastante pertinente sobre o cenário da cozinha contemporânea em

Pernambuco. Parabéns pelo texto, cuja abordagem enxerga a comida além de suas funções fisiológicas, colocando-a em um patamar de fenômeno de marketing cultural. Fico feliz por existirem vozes, como a do chef Hugo Prouvot, que ainda clamam por uma cozinha correta e não voltada para impressionar. BERNARDO RIBEIRO BESSELER SÃO PAULO - SP

Naïf Fiquei extremamente encantada com a edição de setembro da Continente. A escolha da matéria de capa sobre a arte naïf não poderia ser melhor, belos texto e imagens. Mas me surpreendeu positivamente a matéria sobre o rótulo da cozinha contemporânea. Algo que sempre questionei foi o porquê desse rótulo, se os chefs sempre oferecem “o

Ilustração Recebi, hoje, a Continente e quero dar os parabéns pelo excelente conteúdo da reportagem sobre ilustração. De certa maneira, fiquei satisfeito em ver que apenas os aspectos mais positivos do meu depoimento ficaram incluídos na revista (a entrevista completa eu li online). Os comentários mais críticos turvariam a leveza do texto. Mas são verdadeiros! Felizmente, vemos uma nova geração de ilustradores surgir. Temos, ainda, um bom caminho a percorrer e trabalhar junto a entidades e universidades, para que novos editores também possam ser formados e bem-versados nos assuntos da imagem narrativa.

dacosta

RENATO ALARCÃO RIO DE JANEIRO - RJ

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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FESTIVAL DE HUMOR INTERATIVO

Em concurso, a Continente premia a criatividade O Festival de Humor Interativo da Continente continua neste mês de novembro. A cada edição, a revista publica, na seção Cartas, um cartum que precisa ser completado com uma frase, fala ou diálogo que o torne engraçado. O autor do texto para o desenho ao lado, eleito o melhor por meio do voto dos internautas e por uma comissão da redação da Continente, recebe R$ 350 e uma assinatura da revista. Você pode participar do concurso e conferir a legenda vencedora da última edição, no Este é o cartum do Mês. faça uma legenda bem-humorada e concorra!

endereço www.revistacontinente.com.br.

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colaboradores

Ana Farache

Luís Augusto Reis

Roberto Beltrão

Fabíola Santana

Mestre e doutoranda em Comunicação pela UFPE, jornalista e fotógrafa.

Mestre em Comunicação, doutor em Teoria da Literatura e professor de Teatro da UFPE.

Editor do NE TV, 1ª edição, da Rede Globo, e criador do site O Recife assombrado.

Doutora em Literatura pela UFPE e professora da Universidade Estadual do Maranhão.

e MAiS Alexandre Figueirôa, doutor em Cinema e professor universitário. Alexandre Severo, fotógrafo. Álvaro Filho, jornalista, escritor e professor universitário. Ana Lira, fotógrafa. Astier Basílio, jornalista, poeta e crítico de teatro. Breno Laprovitera, fotógrafo. cristhiano Aguiar, jornalista, professor, mestre em Teoria da Literatura e doutorando em Letras. camilo Soares, fotógrafo, professor da UFPE e doutorando em Cinema. eduardo Queiroga, fotógrafo. Flora Pimentel, fotógrafa. Leo caldas, fotógrafo. otávio de Souza , fotógrafo. Priscila Bhur, fotógrafa. Raphael Douglas, mestre em Filosofia. Renata do Amaral, jornalista, webdesigner, doutoranda em Comunicação. Roberta Guimarães, fotógrafa. Schneider carpeggiani, jornalista do Jornal do Commercio, editor do suplemento Pernambuco e doutorando em Literatura. Sérgio Bernardo, fotógrafo. Weydson Barros Leal, jornalista, crítico de arte e escritor. Yêda Bezerra de Melo, fotógrafa.

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADmINISTRAÇÃO E PARQUE gRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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HILTON LACERDA

“O público quer se sentir inteligente”

Roteirista prepara-se para sua estreia solo na direção de um longa ficcional, Tatuagem, e aponta como falha recorrente no cinema brasileiro a tentativa de explicar demais uma trama texto Gabriela Alcântara

con ti nen te

Entrevista

Autor de alguns dos roteiros mais comentados do cinema brasileiro, Hilton Lacerda começou a rodar Tatuagem no final de outubro. Nascido no Recife, Lacerda mora em São Paulo, e agora volta à cidade para filmar uma história que faz referência ao grupo teatral Vivencial Diversiones, que atuou em Pernambuco em meados de 1970. O filme se passa em 1978 e discute variados temas, a partir do encontro entre dois núcleos, sendo o primeiro a trupe de teatro Chão de Estrelas, liderada por Clécio (Irandhir Santos) e, o segundo, relacionado a um militar do interior, Soldado Araújo (Jesuíta Barbosa), também conhecido como Fininha. O longa conta, ainda, com trilha sonora de DJ Dolores, trazendo músicas que serão cantadas pelo elenco. Esse é o primeiro filme de ficção em que Hilton Lacerda assina roteiro e direção, já com a experiência de diretor em curtas e vídeos educacionais, além da codireção do documentário Cartola – Música para os olhos (2007), com Lírio Ferreira. Como roteirista, escreveu os textos

de Baile perfumado (1997), Árido movie (2005), Baixio das bestas (2006) e, mais recentemente, Capitães da areia (2011), todos com um toque melodramático que o próprio Lacerda diz ser característico de suas obras. Inquieto e crítico, é um realizador que traz em seus filmes um olhar reflexivo de mundo, seja político ou sentimental. Com influências que vão do palatável Billy Wilder ao inquieto Glauber Rocha e ao detalhista Carlos Reichenbach, o roteirista fez parte do grupo que deu novo impulso ao cinema pernambucano e brasileiro nos anos 1990, chamando a atenção tanto pela estética quanto pela ousadia ao abordar temas tabus. CONTINENTE Por que, em Tatuagem, você tomou a iniciativa de dirigir? HILTON LACERDA Esse projeto de dirigir um longa já é antigo. Então, direção, para mim, sempre esteve um pouco na cabeça, até pela forma de escrever. Sou meio ridículo, fico indicando movimentos. Às vezes me perguntam: mas se faz isso? Sei lá! Eu sei que faço e dá certo! (Risos.)

CONTINENTE Como foi o processo que o levou a esse filme? HILTON LACERDA Ele veio de três coisas bem distintas. Começou em uma conversa, que eu tive com o João Silvério Trevisan, sobre Tulio Carella, escritor argentino, que tem um livro chamado Orgias. E o início era meio isso, fazer a adaptação de Carella. Trevisan colocava algumas questões e, um dia, ele disse: “Por que você não faz um filme sobre o Vivencial?”. E veio a ideia de fazer o Chão de Estrelas, o Tatuagem. CONTINENTE Essa é a primeira vez que você dirige um longa de ficção. Como está sendo essa experiência? HILTON LACERDA Acho que a ansiedade ou a inquietude de se fazer uma coisa, independentemente de ter experiência, e estar bemamparado pela equipe ou não, terminam sendo as mesmas. O que muda mais, principalmente com relação a escrever o roteiro, é que talvez fique angustiante, porque agora sou responsável, não tem mais a possibilidade de botar a culpa

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nos outros, tipo: não é o roteiro, é a direção! (Risos.) Mas também tem o lado bom da coisa, você assina por aquilo que pensa. CONTINENTE Costuma aceitar contribuições da equipe, no roteiro? HILTON LACERDA No roteiro, mais claramente, não. Mas eles leem e opinam. E tem uma coisa: acho que, no processo cinematográfico, você pode ser gênio, fazer tudo sozinho e ter convicção do que quer. Mas gênios são raros e, geralmente, são

CONTINENTE Você tem o costume de ler roteiros? HILTON LACERDA Nunca tive uma formação técnica ou acadêmica em relação a roteiro. E, para mim, o que importa é que ele tem que estar tecnicamente viável para a equipe trabalhar. É muito mais um

Entrevista

imagens: divulgação

con ti nen te

dados. Isso dá uma empobrecida tão grande no filme! É ridículo, é uma falta de compreensão, porque, na verdade, o público quer se sentir inteligente. Cabe a você usar esse mecanismo.

muito chatos. A discussão fortalece seu ponto de vista, porque as pessoas, às vezes, não estão entendendo o que você quer fazer e, quando elas botam isso em questão, você tem que explicar, deixar claro como é que aquilo vai funcionar. CONTINENTE Quando está trabalhando com outros diretores, eles interferem no que foi escrito? HILTON LACERDA Sim, eles sabem de cara que, às vezes, tem umas ciladas no meio! (Risos.) Quando começo a trabalhar, eu já sei mais ou menos qual é o universo, mas vamos conversar, claro. Uma coisa muito normal, principalmente quando estou como roteirista, é convencer o diretor de que o público pode ser mais inteligente do que ele pensa. Uma coisa que eu acho um grande erro, no filme brasileiro, é a tentativa de explicar todos os passos que são

dado de sedução do que um dado prático e frio, sabe? Ler roteiro é interessante mais pelo que instiga de conhecimento. No meu caso, acho mais interessante ver filmes. O que eu mais aconselharia a alguém a ler seriam as coisas de Jean-Claude Carrière, porque ele trata a questão do roteiro de uma maneira que vai além, e é muito mais interessante. CONTINENTE Acredita que a leitura de roteiros muito clássicos tolhe a criatividade, trazendo o risco de um mero simulacro do estilo do outro? HILTON LACERDA Isso é uma coisa inerente, você tentar se aproximar daquilo que gosta. O que acho engraçado, por exemplo, e vejo muitas vezes nos autores contemporâneos brasileiros, é uma capacidade absurda de assimilar perfeitamente o cinema que eles admiram. É ótimo, é surpreendente,

desde que você não conheça uma cinematografia na qual essas obras se respaldam. Parece que esses realizadores estão dizendo para o mundo: olha, nós também fazemos filmes parecidos com Apichatpong, com os Irmãos Dardene. CONTINENTE Alguns dos seus roteiros, principalmente os que você trabalha com Cláudio Assis, chocam parte do público. Como enxerga essa receptividade? HILTON LACERDA Acho que não é com a violência que essas pessoas

“Estamos saindo um pouco do formato que havia, em que todo festival no Brasil era a mesma coisa. Você pega o Janela de Cinema, e é incrível como ele conseguiu, em quatro anos, chacoalhar o Brasil, não só Pernambuco” estão preocupadas. Elas são as mesmas que lotam o cinema, por exemplo, para ver Cidade de Deus, que é um filme bastante violento no sentido prático, o menino leva um tiro na mão. O que eu acho que eles reclamam mais é da nossa falta de pudor. De falar sobre alguns motivos. Baixio das bestas é o mais violento dessa trilogia que fiz com o Cláudio, mas é dentro de uma perspectiva já bastante violenta. Quem olhar a Zona da Mata, e achar que aquilo não é violento, que não é uma falta de vergonha absurda, de certa forma, estará morto. Fazer violência para chocar é muito gratuito, até um tanto besta. Mas, nesses filmes, o que acontece é que você bota em jogo o pudor das pessoas. E elas criminalizam tudo que é relacionado a sexo. E, também, como o homem nu choca? É como se a mulher

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representasse uma sensualidade, é a mesma coisa que transformar a mulher num objeto de prazer. Então, vamos tratar o homem como objeto de prazer também, por que não? CONTINENTE Um elemento marcante na sua cinematografia é a trilha sonora. A música é uma fonte no processo construtivo da narrativa? HILTON LACERDA Sim. Acho que a mesma coisa que tiro da literatura posso tirar da música. O que mais me ajuda é descobrir a narrativa, de

dizia assim: “Entre a janela e a casa, eu preferia a janela”. Já tive a experiência de trabalhar isolado duas vezes. Uma, com roteiro de Estamos juntos, quando fiquei numa praia durante um mês, em São Paulo. Outra, foi escrevendo Árido movie, eu e Lírio ficamos isolados dentro de um motel, na Serra, no Rio de Janeiro. Mas o ruim de quando se está sozinho é que, às vezes, as coisas travam. Então, gosto de isolamento, mas assim: logo ali, na esquina, tem um boteco.

pelo menos não tenho que ir à feira comprar nada, está tudo aí. CONTINENTE Alguns festivais, como o Cine PE, vêm gerando discussões sobre a troca entre o realizador, a produção do festival e o público. Como você vê a situação geral dos festivais brasileiros, hoje? HILTON LACERDA Tem uma coisa acontecendo... duas coisas acontecendo, na verdade. Uma, que é quase um esgotamento do modelo de festivais que foi posto no Brasil,

“Acho que não é com a violência que essas pessoas estão preocupadas. O que choca mais é a nossa falta de pudor. De falar sobre alguns motivos. Baixio das bestas é o mais violento dessa trilogia que fiz com Cláudio Assis” que forma um cara, num concerto, por exemplo, está construindo a expectativa, como ela é sonorizada. Agora, ouvir música para trabalhar, eu não gosto, atrapalha bastante. Gosto, por exemplo, de estar numa festa, completamente alucinado e pensar: essa música daria uma passagem perfeita. O tipo de barulho, o tipo de levada. Para mim, o desenho de som é a coisa mais importante que existe no cinema, narrativamente. CONTINENTE Prefere, então, uma certa reclusão para poder criar? HILTON LACERDA Gosto de reclusão, com proximidade. Acordar cedo para trabalhar, pela falta de interferência que se tem. Mas isso não é porque o mundo me atrapalha, não (risos). Eu, que sou completamente distraído com o mundo, acho o mundo muito divertido. Manuel Bandeira

CONTINENTE Enxerga alguma diferença entre escrever para longas ficcionais e para projetos educacionais? HILTON LACERDA Fiz muita coisa educacional, mas são programas que estão completamente fora do contexto educativo, tradicional, não são nada caretas, porque essa produtora com que trabalho se prende a umas propostas muito interessantes. Então, quando me chamam para formatar ou para dirigir, roteirizar esses programas, eles sabem que estão oferecendo um resultado menos “oficialesco”. Agora, quando vou fazer esse tipo de trabalho, tenho uma estrutura me prendendo, de formato, de conteúdo, mas, dentro dessa prisão, tento ser bastante criativo. Sair do lugar-comum. É um exercício de que gosto muito. É bom quando alguém não lhe dá muita possibilidade, tipo: “Você pode fazer o que quiser, mas aqui dentro”. Ótimo,

durante muito tempo. A outra é o aparecimento de novas possibilidades. Acho que, no Recife, temos uma mostra disso, com o Janela de Cinema. Estamos saindo um pouco do formato que havia, em que todo festival no Brasil era a mesma coisa. Até a lógica me deixa chapado, às vezes, como o raciocínio de distribuição de festival acontece. Acho que chegou a hora, e espero que revejam essas políticas. Esses pequenos exemplos de novos festivais trazem isso. Você pega o Janela, e é incrível como um festival conseguiu, em quatro anos, chacoalhar o Brasil, não só Pernambuco. Fora do país, ele é extremamente referenciado. Você tem a figura de um curador, na pessoa de Kleber Mendonça Filho, que consegue trazer um cinema extremamente faminto por coisas novas, que consegue discutir outras cinematografias, e não estabelecer algumas estrelas.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

OS CEMITÉRIOS E A MORTE

animação

A Continente deste mês destaca a relação dos homens com a morte, a partir de um olhar sobre os cemitérios. Além da apresentação do material produzido para a revista por Roberto Beltrão (sobre o Cemitério de Santo Amaro e o dos Ingleses, no Recife), Fabíola Santana (sobre a função dos epitáfios) e Weydson Barros Leal (sobre sua visita ao túmulo de Rimbaud, na França), o nosso site dará continuidade ao tema, resgatando o especial sobre o assunto publicado pela Continente em julho de 2006, com textos de Fábio Lucas, Eduardo César Maia, Fernando Monteiro e Alberto Oliva.

Informe-se mais sobre o I Brasil Stop Motion 2011 e confira a programação completa do festival no nosso site.

Conexão

PORTFÓLIO Veja outros trabalhos do designer Kiko Farkas, dentre ilustrações, cartazes, capas de livros e diversos materiais visuais.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

LITERATURA

GAMES

VENDAS

DESIGN

Fã coleta entrevistas, declarações e leituras de David Foster Wallace

O Lektronik investe no humor para resenhar e comentar jogos eletrônicos

Página oferece espaço para quem quiser anunciar ingressos para shows

O jogo Kerntype simula parte do trabalho de diagramação de designers

dfwaudioproject.org

lektronik.com.br

compreienaovou.com.br

type.method.ac

Pouco conhecido fora do meio literário, o escritor norteamericano David Foster Wallace é bastante celebrado por sua prosa irônica, enciclopédica e pós-moderna. Um de seus fãs e pesquisadores, Ryan Walsh, coletou todos os arquivos de áudio que pôde, com entrevistas, leituras e declarações do autor, e os reuniu no The David Foster Wallace Audio Project. Ele disponibiliza essas gravações gratuitamente, com o cuidado de deixar de fora falas que são protegidas por direitos autorais.

O Lektronik não seria muito diferente dos demais sites sobre video games da internet, se não levasse bem a sério a proposta de ser despretensioso e engraçado. Feita por dois veteranos do jornalismo de jogos eletrônicos, Gus Lanzetta e Heitor de Paola, e pelo editor de vídeos Erik Gustavo, a página investe não só em resenhas – algumas vezes, bem longas – de lançamentos, mas também em vídeos comentados e podcasts (conversas em áudio gravadas). Recomendada especialmente para quem acompanha as novidades no assunto.

Com a profissionalização, nos últimos anos, dos calendários de shows e festivais, é comum que amantes da música comprem as entradas para eventos meses antes de eles acontecerem e, por algum motivo, desistam deles perto da data. O Comprei e não vou é um site comum de vendas na internet, só que voltado para ofertas desse tipo. Lá, quem só decidiu, agora, ir a festivais disputados como o Planeta Terra, o SWU e shows como o de Ringo Starr, pode achar ofertas – às vezes, inflacionadas – de entradas.

Você sabe o que significa o verbo to kern em português? O termo descreve uma atividade específica de designers, o ato de deixar as letras de uma palavra ou linha com a mesma distância uma das outras, buscando a harmonia do texto. O site Kerntype é, na verdade, um jogo que desafia o visitante a equilibrar o espaço entre os caracteres de forma simples e divertida, dando pontuações maiores para os jogadores que se aproximarem do posicionamento ideal. Para testar a sua precisão visual, os usuários podem usar tanto o mouse como o teclado.

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imagens: reprodução

blogs ARTÍSTICO naddeoundirected.blogspot.com

No blog Undirected art, o diretor de arte Alvaro Naddeo apresenta desenhos e sketches feitos em suas andanças cotidianas, além de também mostrar alguns trabalhos em fotografia e instalações artísticas.

HQS momentofmoore.com

REFLEXÃO SOBRE O ESPAÇO PÚBLICO Disponível online, a revista Piseagrama traz abordagem multidisciplinar sobre o tema, em textos, linguagens e intensidades variadas piseagrama.org

A noção de espaço público costuma ser problematizada com frequência. Quais

são os seus limites e suas condições, hoje? Quais devem ser seus objetivos? Buscando trabalhar de forma livre com questões como essas, a revista Piseagrama, em sua versão online, traz textos, na íntegra, de sociólogos, artistas plásticos, arquitetos, cineastas e jornalistas. A ideia, segundo os idealizadores da empreitada, Fernanda Regaldo, Renata Marquez, Roberto Andrés e Wellington Cançado, é abordar os espaços públicos “existentes, imaginários e os que necessitam ser construídos”. O periódico foi um dos quatro selecionados pelo Edital Cultura e Pensamento, do Ministério da Cultura, em 2010, contanto também com uma versão impressa. A Piseagrama conta com ensaios – visuais, textuais e em vídeo –, críticas, reportagens literárias e até experimentações artísticas. Cada uma de suas edições tem um subtema específico, a ser abordado de forma relativamente solta: os três primeiros, por exemplo, foram “acesso”, “progresso” e “recreio”. No site, é possível ler as colaborações de nomes como o da jornalista Vanessa Bárbara e do escritor Emilio Fraia. O site traduz alguns de seus textos para outros idiomas e ainda lista os locais em que o leitor pode adquirir gratuitamente a edição física da revista. DIOGO GUEDES

Um dos mais reverenciados autores de histórias em quadrinhos, o britânico Alan Moore, é o homenageado deste blog, que recupera trechos de histórias, fotos e declarações do autor de Watchmen.

IMAGENS butdoesitfloat.com

Arquitetura, colagem, desenho, tipografia, escultura e fotografia: esses são os campos e técnicas que o blog But does it float contempla em suas postagens, sempre unindo imagens a uma frase de nomes como Paul Valéry e David Lynch.

POESIA welcomehomeroxy.interbarney.com

Autora do livro Relógio de pulso, Ana Guadalupe publica no blog alguns de seus poemas sobre as ironias do cotidiano, sempre com tom melancólico e referências contemporâneas.

sites sobre

livros OS PIORES

LIVRARIAS

CAPAS

morrienaoli.tumblr.com

manualpraticodebonsmodosemlivrarias. blogspot.com

bookcoverdesign.tumblr.com

O 1001 Livros Para Morrer Antes de Ler indica as obras que ninguém deve ler, a exemplo de Zombie Cupcakes e O crocodilo vai ao Carnaval.

O blog relata situações engraçadas e inesperadas que se passam em livrarias, causadas principalmente pelas perguntas dos clientes.

O Book Cover Design reúne algumas das mais belas capas de livros feitas em todo o mundo, citando o autor de cada uma delas.

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Kiko Farkas

DESIGN DE TRADUÇÃO TEXTO Pedro Paz

“Não é isso que eu quero. Quero que você enlouqueça.” Foi com essa cobrança que o diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), John Neschling, dirigiu-se ao designer gráfico paulista Kiko Farkas, em uma reunião com o alto escalão da instituição. Era março de 2003 e, segurando o projeto gráfico do primeiro programa de concerto daquele ano nas mãos, proposto por Kiko, o dirigente alegou que os cartazes não traduziam a postura moderna da orquestra. Contudo, admitiu que os três meses concedidos para a construção imagética da Osesp, depois do convite feito por telefone, haviam sido um tempo breve demais. A partir desse fato inesperado, o designer entendeu que sua verdadeira função estética é captar e traduzir o espírito do cliente em elementos visuais, ao invés de satisfazer-se somente com a ordenação de informações claras e objetivas nos seus trabalhos. Entre 2003 e 2007, criou cerca de 300 pôsteres, além de todo material gráfico da orquestra. Por meio dessa parceria, consolidou seu estilo na área e solidificou sua empresa, a Máquina Estúdio, fundada em 1987. Hoje, aos 54 anos, Farkas é um dos principais nomes da comunicação visual no Brasil. Ao subverter cânones formais do design, conseguiu desenvolver uma marca própria. Resistente ao uso de signos associados diretamente à música, como imagens de

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ntre 2003 e 2007, E o designer criou 300 pôsteres, além de todo o material gráfico da Osesp

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Kiko Farkas entende que seu dever é traduzir o estilo do cliente em elementos visuais

Moda 3 O artista destaca, em seu recente portfólio, o projeto gráfico de 30 anos de moda no Brasil

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4 caPaS Atualmente, a produção literária tem sido o foco de atenção de Kiko Farkas 5 caRtaZeS Nesse tipo de trabalho, ele valoriza a composição das cores, formas, escalas e texturas

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instrumentos ou de compositores, o autor prefere trabalhar com a proposta de elementos da linguagem musical, como ritmo, melodia e dinâmica na composição das cores, formas, escalas e texturas dos seus cartazes. Muito disso se deve à formação artística que teve. Neto de Desidério Farkas, fundador da famosa rede de lojas Fototica, e filho de Thomaz Farkas, notável fotógrafo de origem húngara, o designer nasceu numa família, indiscutivelmente, ligada à imagem.

Na biblioteca do pai, deparou-se com livros do cartunista Saul Steinberg, HQs do francês Jean-Claude Forest e cartazes do movimento artístico art déco. Assim, foi dando corpo ao seu repertório imagético e olhar culto, até se formar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 1982. Atualmente, Farkas tem flertado, em maior grau, com a produção de obras literárias. Pensar o objeto livro, além do conteúdo, é o que tem lhe instigado nesse momento, na medida em que estuda costura, tato, acabamento e dimensão adequadas para cada publicação. Ele mesmo é autor de literatura infantojuvenil. Escreveu e ilustrou os livros Uma letra

puxa a outra (Prêmio Jabuti 93), que já vendeu mais de 100 mil exemplares, e Um número depois do outro, em parceria com o poeta José Paulo Paes. As obras têm o selo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Kiko Farkas também venceu concurso para fazer toda a ilustração da produção intelectual do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001), agora reeditada pela editora Companhia das Letras e prevista para ser concluída no ano que vem. O livro A bola e o goleiro é um dos que já estão nas lojas. Entre seus mais recentes trabalhos, ele ainda destaca o projeto gráfico do livro 30 anos de moda no Brasil, de Marília Scalzo, lançado no segundo semestre do ano passado, pela editora Livre.

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Fotos: divulgação

POR TRÁS DOS PIXELS A adaptação do clássico As aventuras de Tintim para o cinema, dirigida por Steven Spilberg, será lançada em janeiro de 2012. Os espectadores perceberão que existe algo em comum entre o Capitão Haddock, companheiro de Tintim, e personagens de blockbusters anteriores, como o macaco Cesar, de Planeta dos macacos: a origem, e o esquizofrênico Gollum, de O senhor dos anéis. Por trás deles, está Andy Serkis, o ator mais bemsucedido entre os que trabalham com a técnica do motion capture, que utiliza sensores de movimento no corpo, para transformar a atuação em pixels. Serkis defende que seu trabalho seja encarado como o de um ator qualquer - não se sabe se eventuais estatuetas do Oscar ficariam com ele ou com os estúdios de animação. (Ricardo Moura)

Amigos para sempre Além de mostrar que George Harrison era uma pessoa espiritualizada, com senso de humor cáustico e sentimento fraternal, o documentário Living in the material world, dirigido por Martin Scorsese, que marca o aniversário de 10 anos de morte do artista, também aborda o lado sedutor daquele que era chamado the quiet beatle. A viúva de George, Olivia Harrison, que produziu o filme, revelou os desafios de seu longo casamento (1978-2001). “Ele gostava de mulheres e as mulheres gostavam dele. Se ele dissesse a você apenas algumas palavras, isso teria um efeito enorme. Portanto, era difícil lidar com alguém que era tão amado.” Olivia, que conheceu George quando era secretária da A&M Records, foi sua segunda esposa. A primeira, Pattie Boyd, no entanto, foi bem mais badalada pela imprensa. Não era para menos. Após oito anos de união com Harrison (de 1966 a 1973), a ex-modelo casou-se com um dos melhores amigos dele, o também guitarrista inglês Eric Clapton. Mas isso não abalou a amizade dos músicos, que se chamavam de husbands in law. No documentário, Pattie e Clapton, hoje divorciados, lembraram de como o ex-beatle soube da paixão dos dois. Segundo o guitar hero, ele e seu amigo tiveram uma conversa, na qual Harrison, ao saber que Clapton era apaixonado há um bom tempo por sua esposa, a “liberou”. O saldo desse enredo novelesco é que a belíssima Pattie acabou entrando para a história como a musa de duas das músicas mais aclamadas dos compositores: Something e Layla. DÉBORA NASCIMENTO

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Balaio SAPATINHOS COBIÇADOS

A FRASE

Os sapatinhos que Dorothy calça em O mágico de Oz serão leiloados, em dezembro. A casa de leilões Profiles in History estima que sejam vendidos por um valor entre US$ 2 a 3 milhões. Há quatro pares conhecidos desses calçados, usados no figurino do filme de 1939. Um deles está exposto no museu Smithsonian, em Washington; outro foi roubado do museu de Judy Garland, em Minnesota; um terceiro pertence a um colecionador. Detalhe: o transporte desse mimo da cultura pop só pode ser feito, em primeira classe, de avião, dentro de uma caixa transparente vedada, com uma cadeira só para ela, disposta ao lado do mensageiro. Com toda essa pompa, será que os sapatinhos vão reaparecer no filme Oz, de Sam Raimi, previsto para 2013? (DN)

“Descanse; um campo que descansou proporciona uma colheita abundante.” Ovídio

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teSoURoS Do cineMA Nos primórdios do cinema, um número limitado de cópias era enviado ao exterior e, nesse trajeto, a Nova Zelândia ficava no final da fila. Por conta disso, um tesouro cinematográfico ficou guardado lá. Este ano, os três primeiros rolos do filme de estreia de Alfred Hitchcock, The white shadow (A sombra branca, em tradução livre), filmado em 1923, foram encontrados no refúgio de um jardim de Hastings, no norte do país, e reunidos pelo projetista Jack Murtagh. Ele trabalhava no cinema da cidade, na primeira metade do século 20, e contrariou o costume da época, de jogar as cópias fora. O melodrama, de atmosfera selvagem, conta a história de duas irmãs – uma, angelical, outra, rebelde e desavergonhada. O longa foi exibido na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EuA, no final do setembro. Além da raridade de Hitchcock, no ano passado, localizaram na Nova Zelândia um filme de John Ford, considerado desaparecido, até então, e centenas de filmes mudos. (Pedro Paz)

CRIATURAS

QUe SARneY É eSSe? A que ponto chegamos! dinho Ouro Preto, o vocalista do Capital inicial, resolveu virar porta-voz geracional. durante o show de sua banda no Rock In Rio, dedicou a execução de Que país é esse? a José Sarney. Escrita no fim dos anos 1970, a música de Renato Russo é do tempo em que este e o guitarrista Fê lemos desmembraram o seminal Aborto Elétrico. lemos achava as letras de Russo infantis, mas hoje faz pouco caso dos apelativos “la la las”, “tchu ru ru rus” e “na na nas”, usados à exaustão por sua banda atual, Capital inicial. Já Sarney divulgou carta criticando a “atitude” do cantor. E foi bem claro ao lembrar que o diplomata Afonso Ouro Preto, pai de dinho, foi promovido a embaixador pelo próprio senador. Já Renato Russo, que não tinha conexões com Brasília, podia cantá-la sem receio. (Thiago lins)

AMoR LetAL A loira-problema ataca novamente. Em recente entrevista à Vanity Fair, Courtney love foi seca ao responder o que faria, caso o maridão reaparecesse. “Eu o mataria”, revelou a eterna Mrs. Cobain. Ela jura ter testemunhado, pelo menos, outras três tentativas de suicídio do marido. Como se fosse uma espécie de enfermeira pessoal de Cobain, love conta, ainda, que carregava consigo uma lata de Narcan – droga “ressuscitante”, o eletrochoque junkie. (Tl)

Mário Lago (1911-2002) Por Sávio Araújo

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reprodução do livro TAP – SUA CENA & SUA SOMBRA

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tap Um conservador revolucionário 1

O professor Antonio Cadengue publica minuciosa pesquisa sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco, em seus primeiros 50 anos de existência TEXto Luís Augusto Reis

“O Teatro de Amadores de

Pernambuco tem a obrigação de se autocriticar e de partir, com todos os recursos de que dispõe, para um teatro novo.” Com essa afirmação, Hermilo Borba Filho conclui um artigo publicado no Diario de Pernambuco, em abril de 1972. Na ocasião, seu objetivo era criticar certa acomodação do grupo liderado por Valdemar de Oliveira a um repertório, em sua opinião, de pouca ousadia estética. Porém, nas entrelinhas desse texto, também pode ser lido o franco reconhecimento de Hermilo ao conjunto que, a despeito da fama de conservador, revolucionou os palcos da região, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950, encenando importantes renovadores da dramaturgia

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Em suas pesquisas de mestrado e de doutorado, ambas desenvolvidas na Universidade de São Paulo (USP), entre 1983 e 1991, sob a orientação do professor Sábato Magaldi, Cadengue registra, contextualiza, analisa e discute, com brilhantismo, a vasta produção do grupo, em seus primeiros 50 anos de existência. É esse material que, agora, ampliado e atualizado, chega às livrarias, com o título de TAP – Sua cena & sua sombra: o Teatro de Amadores de Pernambuco (1941-1991), publicado pelo SESC Pernambuco (Unidade Executiva de Piedade), em parceria com a Companhia Editora de Pernambuco. Tendo esperado duas décadas para ser lançado como livro, por motivos diversos que, em última instância, podem atestar as limitações ainda existentes no setor editorial voltado para as artes cênicas no país, o trabalho de Cadengue, mesmo circulando precariamente em quatro volumosos cadernos de cópias xerográficas, foi se tornando, nesse período, uma referência incontornável para os pesquisadores do teatro nacional, como também para os estudiosos da história recente da cultura

A pesquisa realizada por Cadengue comprova a importância do TAP no panorama teatral do país ocidental, como Oscar Wilde, Maurice Maeterlinck, Georg Kaiser, Luigi Pirandello, García Lorca, Thornton Wilder e Eugene O’Neill; contratando alguns dos mais reconhecidos diretores em atuação no Brasil, como Zygmunt Turkow, Zbigniew Ziembinski, Graça Melo, Flaminio Bollini e Bibi Ferreira; implantando, assim, o teatro moderno em Pernambuco – isto é, o teatro que se afirma como arte, não apenas como entretenimento, e no qual a encenação é valorizada como um trabalho autoral. Sentimento semelhante ao de Hermilo, de admiração e de cobrança, parece permear o abrangente estudo que o encenador e professor Antonio Cadengue realizou sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco – TAP.

pernambucana de modo geral. Afinal, o TAP, em seus 70 anos de existência, tem sido agente e testemunha de grandes mudanças sofridas pela sociedade local.

incontornáveis

Para o campo dos estudos teatrais, TAP – Sua cena & sua sombra se apresenta como uma obra capaz de interpelar as tradicionais historiografias da arte dramática neste país-continente, ratificando que o processo de modernização da nossa cena teve uma complexidade e uma dimensão que não cabem em simplificações estéticoideológicas generalizadas a partir do eixo Rio-São Paulo. Depois da pesquisa empreendida por Cadengue, qualquer compêndio do teatro brasileiro que

omita, ou diminua a relevância do TAP no panorama da modernidade teatral do país não poderá ser considerado como uma fonte confiável de informações. E, supostamente, nesse caso, seria improdutivo tentar justificar tal lapso pelo caráter amadorístico do grupo. Pelo contrário, sabendo que a tensão entre o teatro amador e o teatro profissional encontra-se na base do processo de renovação ocorrido nos palcos nacionais ao longo do século passado, o interesse pelo longevo conjunto pernambucano torna-se ainda mais evidente. Nesse raciocínio, o mesmo pode ser dito a respeito do estudo que o ator e pesquisador Luiz Maurício Carvalheira realizou sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco, grupo para o qual, em 1945, Hermilo Borba Filho se transferiu, interessado em um teatro mais próximo do povo, ideal incompatível com os posicionamentos do TAP, conjunto em que atuava, havia alguns anos, como ator e tradutor de peças. Também desenvolvida na USP, durante curso de mestrado, a pesquisa de Luiz Maurício, no entanto, foi publicada em 1986, pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), dois anos depois de concluída. Desdobrando e aprofundando o mapeamento apresentado pelo crítico Joel Pontes, em seu livro O teatro moderno em Pernambuco, de 1966, essas duas obras, a de Cadengue e a de Luiz Maurício, tornam-se imprescindíveis e complementares por reafirmarem o Recife como um polo decisivo para o desenvolvimento da estética teatral moderna no Brasil. No livro de Cadengue, o TAP é examinado por dentro e por fora. Além de reportagens, críticas, entrevistas, correspondências, programas e fichas técnicas de espetáculos, a publicação, em seus dois volumes, reúne uma preciosa coleção de fotografias. Revelam-se as estruturas fundantes do grupo, com seus valores, mais ou menos arraigados, com seus mecanismos de produção, e com suas estratégias para a superação das crises. As contradições não são amenizadas – tampouco magnificadas por lentes ideologicamente enviesadas. O autor não pretende anular a subjetividade do seu olhar sobre o objeto estudado,

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FOTOS: reproduçÕES do livro TAP – SUA CENA & SUA SOMBRA

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mas parte em busca de fontes verificáveis para embasar suas hipóteses, sem receio de que os fatos apurados desafiem suas convicções ou reformem seus pontos de vista iniciais. No prefácio do livro, Sábato Magaldi sublinha a seriedade e o rigor do trabalho: “Se é lícito aproximar a tarefa do historiador da do cientista, pode-se dizer que Antonio Edson Cadengue tem a paixão da pesquisa e não se cansa de levá-la às últimas consequências. Poucos levantamentos do nosso teatro serão tão abrangentes e exaustivos, e nenhum abarca período tão vasto. As lacunas que porventura surgirem se devem à falta de documentos ou de testemunhos válidos. O que o autor pôde esmiuçar em jornais, livros e depoimentos acabou por ser compilado neste ensaio”.

Contrapontos

Na metodologia empregada, abremse espaços para conjuntos teatrais recifenses que, em maior ou menor medida, opuseram-se às orientações artísticas e políticas defendidas

No livro, há um espaço dedicado aos grupos teatrais recifenses que se opuseram às orientações artísticas do TAP pelo TAP. Nos capítulos dedicados a esses “contrapontos”, como são denominados no livro, o leitor é contemplado com informações valiosas e observações ponderadas sobre grupos que também marcaram a história da cena pernambucana, como o já mencionado Teatro do Estudante de Pernambuco, o Teatro Universitário de Pernambuco, o Teatro Adolescente do Recife, o Teatro Popular do Nordeste e o Grupo de Teatro Vivencial – neste último, decerto o mais avesso aos princípios do TAP, Cadengue teve, curiosamente, destacada atuação. Esses e outros contrapontos não apenas possibilitam, pelo contraste, uma definição mais

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Página anterior 1 a comédia do coração

Esse espetáculo, de 1944, marca a atualização estética do grupo

Nestas páginas 2 Oscar wilde

Em 1943, o TAP montou o espetáculo O Leque de Lady Windermere

fundador 3 Cadengue traça um perfil de Valdemar de Oliveira, apresentando as variadas nuances de sua personalidade

4 sucesso Um sábado em 30 é uma das montagens de maior destaque do grupo

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completa e dialética do grupo estudado, como também favorecem o espraiamento da pesquisa para além do âmbito estritamente teatral. Em narrativa fluida, o leitor rememora momentos cruciais da política, da arte e da cultura de Pernambuco, reencontrando personagens que moldaram o rumo de nossa história contemporânea. Entre muitas outras figuras ilustres, uma inevitavelmente ganha o proscênio: a do próprio Valdemar de Oliveira, o multitalentoso criador do TAP. Dele, é traçado um perfil largo e vibrante, em que o pesquisador, sem esconder o seu encantamento, recusa idealizações ou reducionismos, procurando apresentar as variadas nuances que caracterizam a personalidade forte e sensível desse homem que foi, durante décadas, um dos mais instigantes protagonistas da vida cultural do estado. Um anticomunista aguerrido, que encenou diversos dramaturgos esquerdistas; um senhor da “melhor sociedade recifense”, que levou ao palco, com

sua família, autores “depravados”, como Nelson Rodrigues; um crítico de artes dos mais severos, capaz de elogiar trabalhos feitos por seus oponentes ideológicos; um diretor teatral “elitista”, apto a reconhecer prontamente o valor de uma dramaturgia como a de Luiz Marinho, de insuspeita vocação popular. Um ser humano extraordinário, coerente com sua inteligência e com seu amor pela arte; chave indispensável para um entendimento amplo do TAP e da sociedade pernambucana. Por todos os seus méritos, a publicação de TAP – Sua cena & sua sombra será certamente recebida com entusiasmo, dentro e fora do estado. E que seu lançamento realimente os continuadores do legado de Valdemar de Oliveira, a fim de que esse grupo, inspirando-se nos momentos mais criativos de sua trajetória, prossiga, audacioso, em direção de um teatro sempre novo. Exatamente como desejou Hermilo Borba Filho, como deseja Antonio Cadengue, e como desejam todos os que amam a arte teatral em Pernambuco.

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JOSÉ TELES A máquina de escrever

Com cerca de 40 livros publicados, o jornalista redige sobre quase tudo: obras sobre a cena musical pernambucana, futebol, livros paradidáticos e coletânea de aforismos texto Álvaro Filho

Para o jornalista José Teles, o

pânico que muitos sentem diante da tela em branco de um computador, na hora de escrever, é história da carochinha. Autor de dezenas e dezenas de livros, tantos que nem ele sabe precisar quantos, o também crítico musical do Jornal do Commercio é uma verdadeira máquina de escrever. “Sou meio repentista. Deu o mote e eu vou embora”, resume o paraibano de Campina Grande, radicado no Recife desde 1964, que, aos 53 anos, é, provavelmente, o escritor mais prolífico de Pernambuco. Há quase três décadas, José Teles vem escrevendo sob encomenda. Sem o pudor que ronda a maioria dos colegas, situou-se estrategicamente num nicho editorial dono de uma vitalidade perene: o ramo dos paradidáticos. Destinados, na maioria das vezes, a adolescentes que cursam o Ensino Médio, os livros são adotados pelas escolas e servem como material complementar no processo pedagógico. Em outras palavras, tem leitura obrigatória. Ao se comparar com um repentista, José Teles se refere ao fato de que parte da editora a “inspiração” para que ele escreva. Só para se ter uma ideia: está para ser impresso, nos próximos dias, um título demandado pela Secretaria

de Educação de Pernambuco, com uma tiragem de matar de inveja a maioria dos escritores brasileiros: 50 mil exemplares. Bem-vindo ao meu pesadelo é um romance infantojuvenil que tem como tema, ou “mote”, como prefere Teles, o bullying, uma prática que vem tirando o sono de pais, estudantes e educadores, e será distribuído nas escolas da rede pública de ensino de Pernambuco. Bom de digitação e fraco de memória, Teles vai se lembrando dos livros que escreveu, enquanto fala. A saída sugerida pelo próprio autor é fazer uma pesquisa na editora que mais o requisita, a Bagaço, que retorna o contato com uma lista composta por 25 títulos. “Tem muito mais”, garante o jornalista, beirando a indignação. Rapidamente, bota a cabeça para funcionar e enumera outra dezena.

CURTO E GROSSO

Entre eles, está Frases lapidares, trabalho de estreia, em 1984, uma coletânea de aforismos concebidos durante sessões de tédio, sofridas no período em que o futuro jornalista se extraviou numa graduação em Ciências Contábeis. Um raro exemplo de sua produção não paradidática, assim como Amores nublados e um Noturno de Chopin, de 1998, inspirado numa

brasileira que morava em Londres, fã da coluna dominical de crônicas Curto e Grosso, que ainda escreve no Jornal do Commercio. “A mãe dela enviava os textos por fax”, lembra. A coluna no JC rendeu uma trilogia homônima, contendo compilações. Há, ainda, livros dedicados ao futebol (Montinho artilheiro) e vários relativos à área de sua atividade jornalística, como crítico musical. José Teles escreveu sobre a vida de personalidades pernambucanas (Luiz Gonzaga, Capiba e Chico Science, por exemplo) e de movimentos artísticos, como o frevo e o manguebeat, além do baião e de um resgate do anárquico e politizado bloco carnavalesco Siri na Lata. Sobrou até para o pop inglês: Odeio os Beatles é um romance com cara de ensaio sobre a solidão humana, pautado no tal lonely hearts club do álbum Sgt. Pepper’s. Assim como todo escritor, José Teles também sonhou em escrever o “romance da sua geração”. E até o fez, datilografando, numa máquina de escrever, 600 páginas de uma história de amor nos tempos da ditadura militar, que começava no ano do golpe, em 1964, e findava em 1979, no comício de retorno do exílio do ex-governador deposto pelos militares, Miguel Arraes. A

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O pequenino volume de aforismos foi o livro de estreia do autor, em 1984

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odisseia sentimental não resistiu, porém, a um infortúnio matrimonial do autor – e o livro, como acontece com as demais outras partes envolvidas num divórcio, ocorrido em 2000, acabou desaparecendo. O enredo, porém, foi reciclado e adaptado ao universo adolescente, no paradidático Rumo ao infinito, no melhor estilo “nada se perde, tudo se transforma”. Filosofia que também transportou o amor shakespeariano entre Romeu e Julieta para o sertão pernambucano, em Amando o inimigo. “Um dos livros que me causaram algum problema”, conta José Teles, a respeito de escolas religiosas se decidirem em não adotar o título pelo fato de, assim como acontece

Sem o pudor que ronda a maioria dos escritores, José Teles situou-se no nicho editorial dos paradidáticos no original, um padre “alcovitar” o romance entre membros de famílias inimigas. “Em Os sons dos bichos, houve quem achasse politicamente incorreta a referência aos peixes serem surdosmudos, pois não faziam barulho.” Buscar inspiração nos clássicos, e também no universo pop, é um dos segredos de José Teles, para não sofrer

do “branco criativo”. Bem-vindo ao meu pesadelo, por exemplo, remete ao título de um álbum de Alice Cooper. “Para falar de bullying, me inspirei em outros trabalhos que tocam o assunto, como o filme baseado no livro de Stephen King, Carrie, a estranha, e também em Juventude transviada, com James Dean”, explica. A pesquisa, igualmente, é parte do processo, técnica destilada no ofício de jornalista, como a apuração para escrever sobre o drama do consumo de crack entre os jovens, exposto em O perigoso caminho das pedras. A história vai se formando na cabeça do jornalista durante o dia, principalmente no trajeto de ida e volta para a redação do jornal. “Pego o ônibus e vou encaixando as peças do quebra-cabeça”, explica o escritor, para finalizar o processo de produção com um detalhe que ilustra muito bem sua habilidade: “A partir daí, escrevo em, no máximo, 15 dias”. Um dom que garante um rendimento satisfatório ao escritor, mas que poderia ser muito maior, segundo ele. “Se fizesse o mesmo no Sudeste, além de vender mais, correria o risco de ter uma das minhas obras adaptadas para a TV ou para o cinema”, especula Teles, que, mesmo antes de a série literária Crepúsculo conquistar os leitores do mundo todo, escreveu uma história sobre adolescentes e chupadores de sangue em Edgar, o vampiro de Boa Viagem. Se Teles não consegue se lembrar, precisamente, do seu passado literário – estima em 40 o número de livros que escreveu –, o futuro, então, preocupa-o menos ainda. “Talvez vire apenas um autor póstumo de obras póstumas”, reflete, mais complicando do que explicando. Natural para quem, no trabalho de estreia, dedicou uma das frases lapidares à posteridade: “O que me dá medo da morte é que, depois, pode haver uma outra vida. E pior, eterna”.

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NEcrÓpOlE

A HiStÓRiA de umA cidAde SilencioSA construído no século 19, sob orientações sanitaristas e com modelo arquitetônico europeu, o cemitério de Santo Amaro é um capítulo polêmico no urbanismo pernambucano teXto Roberto Beltrão Fotos Chico Ludermir

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Passos lentos, mãos postas para trás, olhar distraído, um senhor negro usando tênis, bermudas e camiseta tipo regata caminha entre esculturas de anjos, heróis e mulheres chorosas. Nesse espaço cheio de ícones antigos, imperam árvores altas, folhas balançam suavemente ao comando da brisa morna que sopra próximo ao meio-dia. E o leve assobio do vento é o único ruído a desafiar o silêncio desse cenário, espaço semelhante a um parque público ou a um jardim antigo. O aposentado Alexandre Antônio Aureliano de Araújo, 58 anos, gosta da tranquilidade que encontra, refúgio perfeito para horas de meditação solitária. Morador das redondezas, visita o local pelo menos duas manhãs

O traçado estrelar do Santo Amaro tem como eixo central a capela, a partir da qual vários raios formam as alamedas por semana. Mas não conta à esposa sobre esses passeios. “Ela não gosta daqui, diz que é triste e faz medo.” Um pouco de atenção basta para compreender a repulsa da mulher de seu Alexandre ao lazer adotado pelo marido. Árvores e esculturas delimitam ou decoram túmulos, jazigos e mausoléus criados com

o esmero de quem não quer que a lembrança do parente falecido desapareça. Cuidado confeccionado em mármore e escrito em letras de cobre. Uma beleza serena permanece num abraço eterno com a morte, entre os muros do Cemitério de Santo Amaro, o mais tradicional camposanto do Recife. Seu Alexandre não tem medo, nem sente tristeza quando vai até lá. Entende o cemitério como um oásis de paz, barreira sólida para isolar a agitação que fustiga a metrópole. Não se dá conta de que o Santo Amaro é quase um museu ao ar livre, lúgubre guardião da arte e da história pernambucana. A própria criação da necrópole, no século 19, foi capítulo importante

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s esculturas de A crânios humanos remetem ao caráter transitório da matéria

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ocupação das A ruas do camposanto obedece a hieraquias, em que os ricos ocupam as vias centrais

Mas esse hábito foi repudiado pelo racionalismo advindo com um mundo em processo de industrialização, que passava a ser regido pelas determinações da ciência. Percebeu-se que era um perigo para a saúde pública manter cadáveres próximos dos vivos. “O cemitério é uma criação iluminista, uma visão nova que veio quebrar muitos dos conceitos da religião”, esclarece o professor de História e Teoria da Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, Maurício Rocha de Carvalho. “O conceito de que estar em uma igreja era garantia após a morte vai ceder lugar ao higienismo, pois se percebeu o risco da contaminação por gases e miasmas que vêm da matéria em putrefação.”

CONTRA A NECRÓPOLE

na urbanização da capital. No livro Assombrações e coisas do além, a socióloga Fátima Quintas lembra que a tradição patriarcal da aristocracia canavieira impunha o costume de enterrar os mortos nas capelas dos engenhos – apenas por serem defuntos, não deveriam ser excluídos da convivência com as pessoas mais chegadas. Entendia-se que a morte não era suficiente para romper os laços de afetividade e poder dentro das famílias. E, se não fosse em suas propriedades, os finados pelo menos teriam direito a um cantinho dentro de uma igreja, ou no terreno ao lado dela. Guardando-se bem o corpo, a alma estaria protegida dos castigos do purgatório ou mesmo do inferno.

Houve, claro, bastante reação ao novo conceito. A ideia de criar uma necrópole pública no Recife já era discutida pelos governantes e pelo clero pernambucano em 1801. Mas, de acordo com o compêndio Anais pernambucanos, volumosa obra do historiador F. A. Pereira da Costa, só em 1817 o governador Luís do Rêgo Barreto solicitou ao bispado que ordenasse aos párocos e autoridades eclesiásticas um levantamento sobre um “sítio separado da cidade, seco e ventilado, para se levantar um cemitério separado da cidade, para se levantar um ou mais cemitérios, onde fossem sepultados, sem exceção, os cadáveres de todas as pessoas, ficando proibido o enterramento nas igrejas, logo que fossem concluídos os cemitérios”. Uma primeira lei, prevendo a realização da obra, ficou pronta em 1828 e, ao longo dos anos seguintes, provocou muitos debates no Conselho do Governo da Província para tratar da aquisição do lote necessário. Em 1841, uma comissão composta por médicos e pelo engenheiro Louis Léger Vauthier – o responsável pelo projeto do Teatro de Santa Isabel – foi nomeada para determinar a área mais adequada ao empreendimento. O relatório, com o devido orçamento, foi entregue à presidência da província dois anos depois e indicava a escolha de uma “grande propriedade

territorial situada em Santo Amaro das Salinas, entre as estradas de Olinda e de João de Barros”, localidade que, na época, estava “fora do perímetro” do município. Ainda assim, nada foi feito de imediato e só uma epidemia de febre amarela, em 1849, obrigou o governo a enfrentar os “preconceitos populares” e dar andamento à iniciativa. O engenheiro José Mamede Alves Ferreira substituiu Vauthier e um muro foi erguido para demarcar o terreno. A casa que lá existia foi convertida em capela provisória e recebeu as bênçãos do bispo diocesano D. João da Purificação Marques Perdigão, em março de 1850. O cemitério foi aberto oficialmente em 1º de março do ano seguinte, “desvanecendo por completo os clamores que levantavam os espíritos supersticiosos contra tão providente instituição”, como registrou Pereira da Costa. No dia de abertura, apenas um menino negro, de nome Francisco e morto com dois dias de nascido, foi sepultado no local. Ao final de 1852, 2.181 finados já faziam do Santo Amaro a derradeira morada.

SENHOR BOM JESUS

O nome “Cemitério de Santo Amaro” consagrou-se no imaginário recifense devido à localidade onde foi construído – que depois viria a ser um dos bairros mais populares da cidade. Na verdade, chama-se Cemitério Senhor Bom Jesus da Redenção. O nome cheio de pompa é mais adequado a um assentamento que, desde o início, teve a marca da imponência. A começar pelo gradil que protege a entrada principal: um trabalho minucioso em ferro fundido, no qual se destacam figuras de anjos ajoelhados em sinal de adoração, produzido pela famosa Fundição d’Aurora, ou A C. Starr & Cia. Pernambuco, empreendimento do inglês Christopher Starr. Conta o escritor e pesquisador Leonardo Dantas Silva que o gradil recebeu elogios do imperador D. Pedro II, quando esteve em visita à capital pernambucana em 1859. Naquela época, dois medalhões decoravam as colunas laterais dos portões: de lado, uma coroa; do outro, uma com

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FÉ NA MENINA SEM NOME No meio de tantas construções belas, imponentes e cheias de significados, pode parecer estranho que um túmulo simples – no qual não se encontra qualquer menção à identidade do defunto – seja o mais visitado no Cemitério de Santo Amaro. Não é nada além de uma espécie de mesa de mármore, em que são constantemente depositadas oferendas de todo tipo, desde imagens de Nossa Senhora, estátuas de duendes, bonecas de plástico, flores, casas em miniatura, pedaços de papel em que estão escritos pedidos ou agradecimentos. Nem os lugares de sepultamento de finados que, em vida, conquistaram multidões (como o governador Miguel Arraes ou o ídolo mangue Chico Science) chamam mais a atenção que o jazigo da Menina Sem Nome. A fama dessa tristonha personagem tem início em 1970, quando o corpo de uma menina, de aproximadamente 10 anos, foi encontrado na maré do bairro do Pina, Zona Sul do Recife. Havia indícios de violência sexual no pequeno cadáver, jamais identificado, pois ninguém se apresentou como parente da vítima. A brutalidade do crime provocou muita comoção

e mobilizou a opinião pública por meio de seguidas reportagens publicadas nos jornais. Um suspeito chegou a ser apontado, mas a autoria do assassinato nunca se comprovou. O drama da criança violentada e morta, que perdeu o direito à própria identidade, compadeceu um recifense de posses, que mandou fazer para ela um sepulcro digno, algo melhor que uma simples cova rasa. Ao poucos, a comoção em torno da Menina Sem Nome se transformou em fé e adoração. Milagres passaram a ser atribuídos a ela, e devotos começaram a frequentar o local para fazer promessas em troca de graças. Muitas são pagas em forma de ex-votos. Às vezes, miniaturas de parte do corpo (pés, mãos), numa referência ao lugar em que havia uma doença curada; outras, uma casinha doada por quem conquistou residência própria; muitos brinquedos coloridos, pois a milagreira não deixou de ser criança. A historiadora e diretora do Museu de Arte Popular do Recife, Marcela Wanderley, explica que esse é um fenômeno comum na religiosidade brasileira: “É a legitimação popular de um chamado santo não canônico”. Ou seja, é a fé nos poderes de um morto que não foi canonizado pela Igreja Católica. A Menina Sem Nome não foi a primeira morta a ser cultuada como santa no maior

cemitério do Recife. Antes dela, fiéis pediram graças ao espírito de um menino conhecido como Alfredinho, falecido aos 12 anos, em 1959. Ele foi vítima de leucemia, no tempo em que a cura para esse tipo de câncer era difícil. O seu padecimento, quase martírio, foi associado à santidade, no imaginário popular. Mas, com o distanciamento do fato que gerou a crença, Alfredinho vai sendo esquecido: hoje, já não são tantos os que acendem velas ou fazem promessas diante do túmulo dele. Ana Maria Malaquias da Silva, 37 anos, é moradora do bairro de Santo Amaro e costuma frequentar a necrópole. Ela sabe indicar onde fica o jazigo de Alfredinho, mas confessa ser devota mesmo é da Menina Sem Nome. Diz que a criança milagreira já lhe concedeu uma graça, mas não revela qual foi. “Só sei que, quando pedi ajuda, ela me atendeu na hora. Incrível, fico até arrepiada, quando lembro”, sussurra Ana, mostrando os pelos dos braços eriçados. A dona de casa afirma que algumas pessoas vêm acender vela e pedir graça na Casa das Almas, uma construção simples, de apenas um vão, a poucos metros da capela do Santo Amaro. Lá, as rezas e velas acesas são para todos os espíritos, sejam “de luz” ou não. Tocos de velas pretas e vermelhas indicam as diferentes intenções de um ou outro visitante. ROBERTO BELTRÃO

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3 Simplicidade

A Casa das Almas é um local a que ocorrem aqueles que buscam auxílio dos “espíritos”

4 Anjos da guarda

Os seres alados que adornam as lápides indicam o caminho que o finado deve seguir como cristão livre de pecados

a mitra episcopal – um cemitério sob os auspícios do regime imperial e da religião predominante. A distribuição dos túmulos, jazigos e mausoléus segue um traçado semelhante ao adotado em cemitérios urbanos da Europa. Há uma capela central de onde partem para todos os lados “ruas” estreitas ou largas, distribuídas de forma simétrica, à semelhança de uma estrela emitindo seus raios. E a disposição dos túmulos nessa cidade em miniatura revela que a estratificação de classes sociais também prevalece no pós-vida. Os jazigos mais bem-ornamentados estão nos eixos principais, em particular, aquele ladeado por altas palmeiras, que vai do portão do cemitério à capela. Os ricos e poderosos eram enterrados nos pontos considerados mais nobres da necrópole, assim como as famílias de maior poder aquisitivo preferem hoje viver à beira-mar ou em avenidas de bairros de classe alta. Nas ruas periféricas ou atrás da capela é raro encontrar um túmulo com decoração mais caprichada ou que pertença a um personagem de destaque.

ARTE FÚNEBRE

O professor Maurício Rocha de Carvalho afirma que é possível traçar uma linha de sucessão das escolas arquitetônicas que estiveram em voga no país, quando se observa os túmulos no Santo Amaro. “Neoclássico foi primeiro: na época em que o cemitério foi construído, a estética predominante aqui, no Brasil, quase a estética de Estado, era o Neoclassicismo”. Por isso, em muitas estruturas estão as características colunas clássicas sustentando um pórtico triangular. É grande também a influência do

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neogótico na composição do cenário solene que se vê no local – a começar pela capela central, marcada pelo verticalismo das formas. “E, além desses, você vai encontrar diversos estilos: o eclético, o moderno e, ultimamente, tem aparecido o pósmoderno”, enumera Carvalho. O visitante comum, não afeito aos detalhes arquitetônicos, certamente fica mais impressionado com as esculturas que decoram alguns jazigos. Anjos e mulheres de expressão chorosa são as mais observadas. Mas também existem bustos dos próprios moradores dos túmulos, reproduções de animais e até macabras caveiras. As estátuas são feitas de mármore ou de massa: cimento branco com

No passado, a morte era vivida com muito mais pesar e as famílias precisavam explicitar esse sentimento cal e areia – mesmo material com que se fez os ornamentos da capela. Todos esses ícones são carregados de simbolismos, mensagens, às vezes, de difícil de interpretação, quando se desconhece o contexto em que foram criadas as peças. As esculturas de crânios humanos colocadas em alguns túmulos,

por exemplo, podem parecer um adereço de mau gosto aos olhos contemporâneos, mas, para os antigos, eram lembretes sobre o caráter transitório da matéria em contraposição à imortalidade da alma. Já as estátuas das mulheres tristonhas são o registro do eterno luto, da dor irreparável vinda com a perda daquele parente tão querido. “No passado, a morte era encarada com muito mais comoção e as famílias precisavam explicitar esse sofrimento para a sociedade”, lembra o professor Maurício. Ele também destaca a relevância dos anjos postos sobre as construções tumulares. Geralmente, representam o anjo da guarda e, na maioria das

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passeio

ma visita ao U campo-santo pode oferecer momentos de contemplação e respeito à vida

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vezes, olham ou apontam para o céu. Com esse gesto, segundo Carvalho, os seres angelicais indicam “o caminho que o finado deve seguir” – como cristãos probos, agora livres dos pecados da existência terrena, iriam encontrar a redenção no paraíso celeste. Curioso é quando uma estátua de um cachorro está sobre o túmulo: é uma alusão à fidelidade e honradez que teriam orientado o caráter do morto homenageado, revela o professor. Há ainda o estatuário que almeja recriar os mínimos detalhes da fisionomia e da vestimenta dos finados. O melhor exemplo disso, no Santo Amaro, é o mausoléu reservado à família do cearense Antônio Cândido

Antunes de Oliveira, Barão e Visconde de Mecejana. No relevo, esculpido em mármore, notam-se os pormenores da elegância de aristocratas brasileiros do século 19. Leonardo Dantas Silva relembra que esse túmulo recebeu, primeiro, os corpos da filha e do genro do barão. O casal morreu durante uma epidemia, depois de longa convalescença. Pai e sogro extremado, o fidalgo mandou fazer o mausoléu na Itália. Na obra suntuosa, as figuras dele e da esposa, Dona Colomba, são retratados de joelhos, em posição de prece. “Pois foi assim que os dois ficaram ao lado dos leitos da filha e do genro, durante a doença, uma alusão à dedicação e à união familiar”, interpreta Silva. Anos mais tarde,

os corpos do Barão e da Baronesa de Mecejana também foram postos no jazigo, conservado por décadas, graças aos recursos financeiros que o aristocrata precavidamente reservou para esse fim.

POLÍTICOS MORTOS

O costume que vem do mundo antigo (Egito, Grécia, Roma), de salvaguardar a imagem de líderes políticos com esculturas grandiosas, pode ser observado no Santo Amaro. Entre as mais significativas, está o monumento construído para conter os restos mortais do abolicionista Joaquim Nabuco. O falecimento foi em 17 de janeiro de 1910, na cidade de Washington, capital dos EUA,

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con especial ti nen te CHICO LUDERMIR

último abrigo aos ingleses O Cemitério de Santo Amaro não foi o primeiro a ser aberto no Recife. Antes dele, uma necrópole foi criada para atender a uma reivindicação de estrangeiros que tinham muita influência no Brasil daquela época. Desde 1808, quando o rei Dom João VI abriu os portos do Brasil às “nações amigas”, muitos ingleses vieram com a intenção de fazer negócios. Em Anais pernambucanos, o historiador Pereira da Costa conta que, em 1813, o embaixador inglês, junto à Corte do Rio de Janeiro, fez uma reclamação formal contra “a prática indecente que existia em Pernambuco de serem enterrados nas praias os súditos britânicos da religião protestante que faleciam na capitania, nos mesmos lugares em que eram sepultados os negros africanos não batizados”. Isso porque, não sendo católicos, os ingleses não podiam ser sepultados nas igrejas ou no terreno em torno delas. O médico e escritor Rostand Paraíso, estudioso da história dos ingleses no estado, lembra que, na primeira década do século 19, já havia cemitérios exclusivos para os britânicos em Salvador e no Rio. Por isso, não demorou para que o governo central atendesse à embaixada. Foi determinado às autoridades pernambucanas que escolhessem um local para dar uma última morada aos finados britânicos. Em 1814, foi desapropriado um terreno na localidade de Santo Amaro das Salinas – próximo de onde seria fundado o cemitério dos católicos – e a área foi entregue ao cônsul inglês. O citado surto de febre amarela

levou à morte muitos estrangeiros residentes na capital, em 1850, e surgiu a necessidade de ampliar o cemitério britânico. Isso foi feito com a doação de terrenos vizinhos, pertencentes ao Barão Francisco do Rego Barros – que viria a ser o Conde da Boa Vista. Ainda no século 19, o Cemitério dos Ingleses se tornou o derradeiro destino de um pernambucano ilustre: o general José Inácio Abreu e Lima. O militar, que se envolvera numa polêmica teológica, quando faleceu, em 8 de março de 1869, teve negado o sepultamento no Cemitério de Santo Amaro por ordem do bispo diocesano Dom Francisco Cardoso Aires. Em desagravo, o general foi enterrado no cemitério britânico. Rostand Paraíso ressalta que o Cemitério dos Ingleses é uma legítima possessão da Coroa Britânica. “Tanto que, no final da década de 1960, o então prefeito da capital, Augusto Lucena, teve que pedir a permissão à rainha da Inglaterra, para usar parte do terreno do cemitério na obra de ampliação da Avenida Cruz Cabugá”, conta Paraíso. A princípio, o entendimento foi complicado e a rainha Elizabeth II determinou que os túmulos não fossem violados. Para compensar a desapropriação, a prefeitura ofereceu um terreno vizinho, para a expansão do cemitério. A soberana mandou um representante para acompanhar o serviço e o asfalto finalmente avançou sobre onde antes ficava a área frontal da necrópole. Por isso, hoje, a capela está localizada bem próxima ao portão principal. Atualmente, esse cemitério é administrado por descendentes dos britânicos e fica fechado a maior parte do tempo. ROBERTO BELTRÃO

onde o pernambucano atuava como embaixador. O corpo embalsamado foi trasladado primeiro à capital brasileira da época, o Rio de Janeiro, onde o Herói da Abolição recebeu prolongadas homenagens póstumas, para depois ser conduzido ao Recife, lugar escolhido para o descanso final, conforme a sua própria vontade. E a moradia definitiva de figura tão ilustre deveria estar à altura. Além do busto de Nabuco, o jazigo comporta a imagem de um casal de negros, beijando-se e abraçandose como que comemorando a liberdade junto com o filho – o alívio pelo fim da escravatura resumido em apenas uma cena. Destaca-se também a arte em granito no túmulo de outro personagem da política pernambucana. O jazigo escuro do governador Manoel Borba é encimado por um altivo leão que protege a deusa grega Têmis, vista ali sem venda nos olhos e sem balança numa das mãos, diferentemente de como costuma ser representada nos tribunais. Têmis está acuada e o leão de Pernambuco, o Leão do Norte, a defende. Isso porque Manoel Borba foi incansável defensor dos interesses pernambucanos frente às tentativas de interferência do governo federal. Para quem visita o Santo Amaro, é fácil notar o imenso jazigo que resguarda o corpo do governador Agamenon Magalhães, vítima de morte súbita, quando ainda estava no poder, em agosto de 1952. Uma estátua em bronze ornamenta a parte da frente do túmulo, feito de modernas linhas retas.

GAVETAS

Entristece perceber que a maior parte dos velhos túmulos do Santo Amaro não recebe a manutenção adequada. Algumas famílias que seriam responsáveis por eles já não existem e, outras, simplesmente, não têm interesse em fazer a conservação. Isso sem falar no vandalismo. O resultado são mármores rachados, epitáfios com letras faltando, estátuas quebradas e enegrecidas. A prefeitura local faz regularmente a limpeza e organização do cemitério, mas não pode interferir nessa

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7 cruz

O maior símbolo do cristianismo está presente em várias das lápides e em mausoléus

questão, porque os jazigos perpétuos são propriedade dos herdeiros. A praticidade do tratamento dado aos defuntos dos tempos atuais também oprime a estética grandiloquente dos tributos aos finados de outrora. O professor Maurício Rocha de Carvalho lembra que, no século 20, com o êxodo rural, a população começou a aumentar de forma assustadora nas grandes cidades. Em alguma delas, o número de habitantes passou de um milhão de pessoas, caso do Recife. “E o excesso de pessoas significa um excesso de mortos”, equaciona Carvalho. “A superlotação levou os administradores a adotar novas estratégias para acomodar de forma decente os falecidos e, como não havia mais espaço para covas rasas, foram criadas as gavetas. Santo Amaro está cercado de gavetas.” Elas são construções simples de alvenaria, blocos de poucos andares que agrupam vários cubículos. Em cada unidade, há apenas o espaço necessário para o caixão funerário. Na maioria deles, os corpos só ficam guardados por um prazo de dois anos. Depois, os ossos são retirados e devolvidos aos familiares, que os levam a um ossuário. A gaveta é, então, ocupada por outro corpo. Não é esse cenário – uma espécie de conjunto habitacional mortuário, predominante nos 140 mil metros quadrados do cemitério – que o aposentado Alexandre Antônio aprecia nos seus passeios matinais quase secretos. “O antigo é o que tem de bonito aqui... Eu, pelo menos, acho.”

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Artigo

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fabíola santana o que encerra o epitáfio? Etimologicamente , o termo epitáfio, originado do grego antigo, é uma palavra composta por dois radicais: epi (sobre, em cima de) e taphos (tumba, túmulo), significa, portanto, inscrição tumular. Em sua significação imediata, evoca primariamente “localização” (epi) e, somente secundariamente, “inscrição”, como explica Scott L. Newstok. Sua localização (no túmulo) indica tanto um tópico como um componente espacial. Em outras palavras, a morte como tópico, e o túmulo como materialidade. Essa qualidade locativa do epitáfio identifica, aponta o lugar em que o morto está enterrado. Assim, nessa formulação semântica, há uma ênfase na nomeação e identificação do morto. Quanto ao suporte material do epitáfio, a pedra, como material menos sujeito aos reveses do tempo por sua considerável resistência, representava, para os antigos, uma garantia permanente e perpétua de pós-vida na memória da posteridade. As inscrições lapidares, nesse sentido, seriam documentos da morte que deveriam sobreviver à morte. Como símbolo dessa perenidade, a exemplo, apresenta-se uma prática muito comum entre os romanos, que enterravam placas de bronze aos deuses, para a lembrança imortal do falecido. Podemos dizer que as lápides, na representação da morte, validam e garantem a presentificação do morto na memória social. É uma metáfora no discurso dos epitáfios, lembrança eterna que permanece viva para as futuras gerações. Daí o uso de expressões muito comuns aos epitáfios latinos como aeternus ou ainda memoriae aeterna, em que se pode associar à força da materialidade da pedra, à qual, nesse contexto, se atribui uma significação relacionada à perenidade, eternidade. Esse aspecto atravessou os séculos e perdura até os dias de hoje.

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Como confidência de vida, um epitáfio, na maioria das vezes, encapsula sentenças que trazem o resumo da experiência e da sabedoria de uma vida. Quando de autoria do falecido, contém suas últimas palavras, que se projetam como uma tentativa de diálogo entre gerações passadas e futuras. Quando de autoria dos familiares sobreviventes, traz uma retrospectiva, quase sempre de caráter elegíaco, das ações de nossos antepassados ou, ainda, uma expressão dos sentimentos provocados pela morte de um ente querido. Nas palavras de Karl S. Guthke, “as inscrições sepulcrais estão ideologicamente condicionadas pelas palavras que reconhecem a permanência da memória e, portanto, tentam estabelecer o lugar do falecido nessa memória”. De um modo geral, os epitáfios são testemunho da virtude, da sabedoria e dos méritos do

falecido, em que se projetam atitudes e comportamentos que seriam modelos. A projeção perpétua na memória dos sobreviventes, a possibilidade de tornar-se imortal são prometidas pela redenção de quem frequentemente é invocado nos epitáfios.

IDENTIDADE “IDEAL”

Na composição de um epitáfio, tanto aqueles produzidos pelo falecido como os produzidos pelos sobreviventes, incorporam-se valores e virtudes relacionados a um tempo e a um lugar particulares, a uma realidade sócio-histórica específica, em que se constrói uma identidade “ideal” associada aos anseios do falecido e/ou da própria comunidade a que pertenceu. Os epitáfios representam um gesto que expressa o sentimento do enlutado e obedecem a modelos socialmente aspirados pelos grupos.

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Em um resgate do aparecimento desse gênero textual, os registros históricos indicam que os primeiros epitáfios conhecidos foram os egípcios, gravados nos sarcófagos. Aqueles que foram decifrados obedecem a um modelo uniforme que começa por uma prece a uma divindade, em geral, Osíris ou Anúbis, seguida do nome, da ascendência e dos títulos do defunto. Os epitáfios da Grécia antiga, considerando-se a tradição literária grega, eram quase sempre compostos em versos elegíacos, embora, mais tarde, começassem a aparecer em prosa. Alguns poetas gregos de epigramas são: Leonidas de Tarento, Luciano de Samósata e Antípatros de Sídon. Em contraste com os gregos, os epitáfios romanos continham apenas nomes e fatos, sendo desprovidos de valor literário. Começavam usualmente pelas fórmulas Siste,

viator ou Aspice, viator, que significam: “Detém-te, viajante” ou “Olha, viajante”. O historiador francês Philippe Ariés relata-nos que “(...) na Roma Antiga, cada indivíduo, às vezes mesmo um escravo, tinha um local de sepultura (loculus) e que este local era frequentemente marcado por uma inscrição”. Na Idade Média, a cultura dos epitáfios prossegue nas lápides funerárias dos túmulos das classes de prestígio. Estes, apresentavam uma estatuária que reproduzia, a partir do molde de uma mascára mortuária, os traços do vivo, em uma tentativa de substituir a cruel realidade da morte pela arte, como registra Ariés. Aliados a essa representação estética da morte, estão os epitáfios, alguns verdadeiros épicos dos feitos do morto. No século 18, como aponta o medievalista, os túmulos eram uma combinação de dois elementos utilizados separadamente: a pedra sepulcral no chão, horizontal, e a inscrição “aqui jaz”, ou pedra fundamental, destinada a ser fixada verticalmente numa parede ou num pilar. Agrega-se ao texto um sentido de pertença, de propriedade, de individualização dos túmulos. No início do século 19, o que se tornou distinto na cultura do epitáfio foi o apelo ao sentimentalismo, para regular, ponderar vida e morte. Além disso, a individualização das sepulturas possibilitou certa dignidade ao lugar de “descanso” do morto. Expressões latinas, como Resquiecat in pace (Descanse em paz), eram muito usuais nas lápides. Os temas predominantes nos epitáfios incluíam desde lembranças da brevidade da vida, à certeza da ressurreição e do juízo final, à esperança do recebimento da misericórdia de Deus e do encontro com os entes queridos, até pedidos de arrependimento dos pecados e de preparação para a morte. No Ocidente, esses temas representam o caráter exemplar da morte, fundamentado no discurso religioso, e exortam o leitor a refletir sobre as verdades doutrinais cristãs, ou, ainda, sobre a certeza do homem diante de sua finitude. No século 20, até a primeira década do 21, a prática cultural dos

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As lápides da atualidade dedicam espaço resumido às inscrições tumulares

epitáfios permanece. Nos modelos cemiteriais da contemporaneidade, o local para a inscrição, na maioria das vezes, resume-se a uma placa de alumínio, mármore, azulejo e outros tipos de materiais, de tamanho bem-reduzido, se comparada aos monumentos funerários e às lápides dos primeiros cemitérios. Quanto aos símbolos utilizados na composição desse gênero, o cristianismo, sob herança helenoromana, legou à tradição dos epitáfios um dos signos mais recorrentes em lápides: a cruz. Esse símbolo cristão, em inscrições tumulares, reflete a imortalidade prometida pelo conceito de ressurreição. Douglas J.Davies, estudioso da morte, explica-nos que “a teologia cristã, a iconografia, os modelos de culto, a existência da Páscoa e sua celebração, os ritos funerários, falavam da vida humana como uma viagem da vida terrena para a vida eterna”. Nessa perspectiva, a tradição cristã glorifica a morte. Esse momento, para os cristãos, representa a superação do pecado, a promessa de vida eterna. Nas sepulturas, a cruz remete ao sofrimento de Cristo e sua vitória sobre a morte. Nesse caso, o epitáfio cristão refere-se às verdades da doutrina cristã, como a ressurreição, enfatizando, na maioria das vezes, o futuro da alma mais do que simplesmente o mérito do morto.

PAPEL SOCIAL

Por ser exatamente um instrumento de representação dos discursos sociais, encontramos na escrita dos epitáfios um caráter de heterogeneidade em que elementos gráficos, imagéticos e textuais, diferentes modos de representação, unem-se na construção de um evento comunicativo e da expressão do sentimento de luto em relação a atores que desempenham papéis de destaque

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O túmulo e o epitáfio de Agamenon Magalhães apontam o papel social que o político teve em vida

ligados às diversas esferas da sociedade: política, econômica, cultural, eclesiástica, artística etc. Essa escrita heterogênea, presente nos epitáfios, além de representar a visão de mundo de um dado grupo social em uma situação particular, fixa, no tempo e no espaço, desempenhos sociais, servindo ainda de memória documental. Nesse gênero ligado às práticas mortuárias, os sistemas semióticos que o compõe se associam para mobilizar os sentidos do texto. Nos epitáfios oitocentistas de muitos cemitérios brasileiros, por exemplo, podemos identificar três tipos de imagens que se associam às seguintes representações: morte (anjos, caveiras, cruzes, cálice eucarístico); emoção ou sentimento de quem fez o epitáfio (mãos dadas) e identidade social (borlas, brasões e insígnias). As imagens, nos epitáfios, visualmente definem, analisam ou classificam pessoas. Todos os

elementos utilizados na composição de um epitáfio associam-se para representar a experiência diante da morte e reforçar, em alguns casos, representações sociais. Além da religiosidade sempre latente no discurso dos epitáfios, o período oitocentista, com a laicização, caracteriza-se exatamente por essa valorização do papel social na vida secular, exercido pelo indivíduo representado na lápide. Essa valorização do papel social realiza-se pela predicação. A avaliação, a caracterização, os traços, as qualidades e os atributos enfatizados em relação a quem produz o texto e ao objeto do discurso (a morte e os mortos) é quase sempre positiva. As predicações são feitas de forma direta: “Foi solícito pastor”; “Distinto e consumado teólogo; príncipe santo e justo”; “Grande sacerdote”; “Foi filha virtuosa”. O que motiva a família ou outra instituição a produzir um epitáfio com uma intensificação, amplificação maior de determinados atores que assumem certos papéis sociais de destaque nas esferas religiosa, política,

artística, jurídica, por exemplo, relaciona-se a uma necessidade social de fixação na memória do grupo a que pertence, de reconhecimento perpétuo da importância social desse integrante da sociedade, muito mais do que uma forma de superação do luto. Se o epitáfio é uma prática social recorrente, cujo propósito e ênfase iniciais são de identificação e integração do corpo a um novo lugar (da memória, do metafísico), como resposta a uma exigência social e cultural oriunda de uma ocasião da vida cotidiana, compartilhada por atores sociais específicos, ele atende, sobretudo, ao desejo dos sobreviventes de localizar o corpo de um ente querido. Localizar, não necessariamente e sempre no túmulo, como remete a etimologia da própria palavra epitáfio, mas fixar na memória social, afetiva dos que sobrevivem e daqueles que estão por vir, uma representação positiva póstuma de um ator social: “Deram-te o nome de Justo/ Na terra a tua bondade o mereceu/ No céu tuas virtudes a alcançaram”.

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viagem Em Charleville-Mezières, em busca do morto inquieto Há 120 anos, no dia 10 de novembro de 1891, morria o poeta, comerciante e aventureiro Arthur Rimbaud, cuja lápide atrai milhares de aficionados por sua obra

DIVULGAÇÃO

texto Weydson Barros Leal

“Já é o outono! - Mas por que ter saudades de um eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da claridade divina, - longe das criaturas que morrem sobre as estações?” (Arthur Rimbaud, Uma estação no inferno)

Na manhã de 10 de novembro de 1991, o primeiro trem com destino a Charleville, nas Ardennes, partiu com algum atraso da Gare du Nord, em Paris. Na província, assim como na capital francesa, realizavam-se as comemorações do centenário de morte do poeta Arthur Rimbaud. Até aquele momento, tanto os franceses como todos os amantes da poesia ao redor do mundo já festejavam a data havia algum tempo, mas, para os seus leitores – fossem estudiosos ou simplesmente apaixonados –, lembrar o dia da morte do poeta em sua cidade natal, onde ele está enterrado, seria mais que um alento. Para quem ia naquele trem, a viagem era uma forma de reencontro. No caminho entre as pequenas estações que pontuam a região da Champagne, eu recriava as paisagens através das quais, provavelmente, Arthur Rimbaud também passara. Era uma experiência só comparável às primeiras leituras de sua poesia, sem, no entanto, a iluminação intraduzível. Todas as obras de Rimbaud, incluindo a sua correspondência, além de diversos estudos e biografias, haviam sido cuidadosamente anotadas por mim e, assim, a cada parada, em cada lugar onde comprovadamente ou não o poeta estivera, era como o reconhecer. Em Charleville-Mezières – que no século 20 aumentara o seu nome devido à fusão com a cidade vizinha, do outro lado do rio –, todos os

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con especial ti nen te FOTOS: DIVULGAÇÃO

mapas do chamado circuito rimbaudiano terminam no cemitério. Assim, visitar os endereços em que a família Rimbaud morou, estar à beira do rio onde o poeta adolescente imaginou índios e oceanos a bordo de seu Bateau Ivre, ouvir o silêncio da biblioteca que ele frequentava ou entrar no velho moinho da cidade que, agora, havia sido transformado no Museu Rimbaud, tudo é uma preparação para o grande momento: encontrar a pedra com seu nome e duas datas. Saber-se perto de um morto é como ver além da vida, numa irmandade comum e inadiável. Para os que ficam, toda ausência é um permanente dia de finados. Mas a morte, assim como o amor e a amizade, é a construção de uma intimidade – ou uma paradoxal diminuição de distâncias. Tanto nos órgãos oficiais do governo municipal como nas instituições culturais ligadas a

Todos os mapas do chamado circuito rimbaudiano, em Charleville-Mezières, terminam no cemitério Rimbaud, em Charleville-Mezières, tentei (junto com outros visitantes e pesquisadores) encontrar registros da família do poeta. Em Paris, eu já havia procurado o sobrenome nas listas telefônicas, mas nem ali nem em qualquer outro lugar da França havia qualquer vestígio. O nome Rimbaud parece que se dissolveu ao longo do tempo, transmudouse em outros, na mesma proporção em que a sua associação à poesia ganhou o mundo. No único número de telefone que constava ao lado de uma certa família Ribaud, de Paris, ninguém sabia de nada ou não queria responder a perguntas sobre as relações com o outro nome. Já em Charleville-Mezières, a marca Rimbaud batiza desde uma bela livraria até qualquer mínimo souvenir, e dá nome a tudo que resuma, sob a sua bandeira, o reconhecimento local: rua, praça, cais, museu, café.

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CASA DOS MORTOS

No cemitério da cidade, desde o portão de entrada, já se avista o jazigo da família, em que duas tumbas com lápides verticais são cercadas por uma pequena grade. Ali estão, além do poeta (sozinho, à direita), a mãe e uma irmã (à esquerda). Esse parece ser o único jazigo a receber visitantes que nunca são da família. Todos são estranhos e estrangeiros, cuja silenciosa intimidade com um dos mortos é a da poesia. Não há, não obstante a sua importância, qualquer aspecto arquitetônico que diferencie o lugar da família Rimbaud dos outros ao redor, apenas uma pequena placa e a constante visitação – o que mantém algumas flores sobre o túmulo da direita. Por sua simplicidade, o jazigo do poeta guarda algo aquém ou além da sua poesia. Lembro que, em outras cidades do mundo, tumbas de escritores se

alternam em grandeza e discrição para homenagear seus inquilinos. Há até aquelas cujo excesso de sobriedade dá ao lugar uma aparência quase de abandono, contrastando com a importância de quem guardam. É o caso dos túmulos de Gottfried Benn e de Kleist, em Berlim; de Thomas Mann, em Zurique; de Kafka, em Praga; de Thomas Bernhard, em Viena; de Wittgenstein, em Cambridge; e o de Hölderlin, em Turbingen, na Alemanha. Em alguns, o acúmulo de folhas, hera ou grama daninha inspira mesmo a tristeza. Por outro lado, há jazigos belos e imponentes, quase hieráticos, como é o caso dos de Appolinaire e Oscar Wilde, no cemitério de PèreLachaise, em Paris; de Jorge Luis Borges, no Plainpalais, em Genebra; de Leopardi, em Nápoles; ou, ainda, de Sainte-Beuve, no cemitério parisiense de Montparnasse. Por fim,

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Página anterior 10 rimbaud Os túmulos

de sua mãe e irmã ladeiam o do poeta

Nestas páginas 11 em genebra Jazigo de Jorge

Luis Borges está em Plainpalais

01- 12 na alemanha

Esculturas tumulares de Goethe e Schiller, dispostas lado a lado, em Weimar

VIDA E MORTE

Ao lembrar escritores contemporâneos que tinham o espírito da inquietação rimbaudiana, sempre lamento o fato da inexistência de alguns encontros, como no caso de Rimbaud e Nietzsche (1844-1900), que teria rendido belos diálogos sobre a vida e a morte. O filósofo (e poeta) alemão nasceu exatos 10 anos e cinco dias antes de Rimbaud e, como o poeta francês, teve uma forte educação religiosa. No caso de Rimbaud, a mãe era uma católica rigorosa, enquanto Nietzsche era filho e neto de pastores protestantes. Conclui-se daí que a imagem da morte e uma reflexão mais profunda sobre a transcendência do espírito acompanharam o poeta e o filósofo desde cedo. No campo prático,

O local de sepultamento de autores nem sempre coincide com o de nascimento, a exemplo do de Borges

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há aqueles que, por sua elegância, seriam dignos de qualquer grande escritor. Na lista desses últimos estão as inscrições de Ezra Pound, no cemitério de Veneza; de Proust e Balzac, no Père-Lachaise; de Samuel Beckett, no Montparnasse; de Walter Benjamin, no Port-Bou, na Espanha; de Brecht, em Berlim; de Goethe e Schiller, lado a lado em belíssimas tumbas negras, em Weimar; de James Joyce, em Zurique; e, finalmente, a do poeta John Keats, em Roma. Não relaciono aqui os nomes de Camões e de Dante porque, para mim, os seus mausoléus, como monumentos à própria poesia, excedem o conceito da morada de um morto. Mas como se pode notar na lista acima, o endereço de alguns escritores e poetas mortos nem sempre está na cidade ou mesmo no país em que nasceram. Thomas Mann, Oscar Wilde, Borges, Pound

temporada no inferno, trad. Lêdo Ivo). A poesia e a África, enfim, foram os meios para sua evasão.

e Joyce são apenas alguns exemplos. Quanto a Rimbaud, não se pode afirmar que a sua última vontade teria sido um enterro em Charleville, cidade de onde sempre quis fugir para o desconhecido. Além disso, uma vizinhança tão próxima com a mãe tampouco seria a minha aposta entre os seus pedidos de moribundo. Os meus palpites oscilam entre o nada de um deserto africano – onde o seu corpo doente poderia ter sido abandonado e esquecido pelos que o transportaram – e o sal de qualquer mar. Nos 37 anos que viveu, dos quais mais da metade foi dedicada a aventuras literárias e viagens de negócios, o espírito de Rimbaud ansiava por evadir-se numa inquietação permanente: “Junto ao seu querido corpo adormecido, quantas noites passei acordada, querendo saber por que ele queria tanto evadir-se da realidade” (Uma

ambos estiveram muito próximos da experiência da morte, ao participarem, em diferentes situações, de episódios da guerra franco-prussiana, deflagrada em 1870: Nietzsche, como enfermeiro; e Rimbaud, como aventureiro que se julgava, aos 16 anos, voluntário para matar ou morrer. A vida e a morte são exercícios do tempo: o tempo da lembrança e do esquecimento. No caso de grandes poetas como Rimbaud, a sua memória transcende a vida de um homem, de uma época e de um país, e assim será permanente. A eternidade de nossos familiares e amigos, ao contrário, tem a duração da nossa existência, e aos poucos se apaga na finitude daqueles que lembram. A história do esquecimento é um mosaico mais vasto do que a narrativa oficial dos feitos humanos. De qualquer maneira – e inevitavelmente –, cabe ao tempo a pena desse julgamento.

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ritual Alimento para a memória da alma

01-1 catrina

Ícone da festa mexicana, a figura representa uma dama da alta sociedade, para mostrar que todos são iguais diante da morte

Ao longo da história da humanidade, diversas culturas mantêm a tradição religiosa de servir comidas como oferendas a seus antepassados texto Renata do Amaral

A morte, tentemos ou não esquecer isso no cotidiano, faz parte da alimentação. Foi o que descobriu uma consternada Alice B. Toklas, quando precisou, pela primeira vez, dar cabo de um animal vivo, que terminaria na panela. Companheira da escritora Gertrude Stein e participante ativa da vanguarda parisiense no início do século passado, Alice conta em seu O livro de cozinha, datado de 1954, como conseguiu cometer seu primeiro assassinato contra uma inocente carpa. “Logo que começamos a ler Dashiell Hammett, Gertrude Stein notou que seu estilo moderno se devia ao fato de ele liquidar suas vítimas antes de a história começar. Deus sabe quantas mais seriam necessárias, em seguida, como resultado do primeiro crime. Na cozinha é a mesma coisa. Assassinato e morte súbita parecem tão pouco naturais aí quanto deveriam parecer em qualquer outro lugar. Não podem, não podem nunca, se tornar fatos aceitáveis. Comida é uma coisa demasiadamente prazerosa para se combinar com horror”, compara. Em seguida, resignada, aceita a morte como parte da vida – e, claro, também da cozinha. “Mesmo assim, fatos, mesmo desagradáveis, devem ser aceitos e veremos agora como, antes de qualquer história de culinária começar,

o crime é inevitável. Essa é a razão pela qual cozinhar não é um passatempo de todo agradável. Muita coisa tem que acontecer antes de se chegar, de fato, ao ato de cozinhar”, conta, antes de narrar como o peixe foi morto com uma facada certeira na coluna vertebral. “Horror dos horrores. A carpa estava morta, matada, assassinada em primeiro, segundo e terceiro graus. Mole, caí numa cadeira; com as mãos ainda por lavar, peguei um cigarro, acendi-o e esperei a polícia chegar e me levar presa.” A graça da escrita de Alice, cujo livro de receitas é um belo retrato de uma época, mostra as agruras que podem afligir aqueles que cozinham, mesmo sabendo que a morte é necessária. O que acontece, porém, quando os finados não são os que são comidos, mas, sim, os que “comem”? No México, o Dia dos Mortos é uma das festas mais animadas, tanto que foi promovido a patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Na celebração, de origem indígena, são montados banquetes para os mortos da família, com direito a caveirinhas de açúcar com o nome do falecido e pão em forma de crânio ou osso. A ação da Unesco busca proteger essa afirmação da identidade

indígena mexicana, para que a festa não vire um grande Halloween. No Dia de Todos os Santos (1º de novembro), a homenagem é para os anjinhos, ou seja, as crianças falecidas precocemente. No dia seguinte (2 de novembro), de Finados, é a vez dos adultos. Se não é possível visitar o cemitério para levar as oferendas, monta-se um altar em casa, com pratinhos de comida, copos de água, garrafas de bebidas, cigarros e até brinquedos para os pequeninos. O prato favorito do finado não pode faltar, assim como seu retrato, para comemorar esse breve reencontro com os mortos. Segundo a Unesco, a festa mescla ritos religiosos pré-hispânicos a festividades católicas levadas pelos europeus no século 16. Os espíritos podem trazer boa ou má sorte, daí a importância do cuidado com todas as preparações. A cara da festa é a caveira Catrina, batizada pelo muralista Diego Rivera. Elegantemente vestida e usando um chapéu, ela representa uma dama da alta sociedade, para mostrar que todos são iguais perante a “indesejada das gentes”, como tão bem cunhou o poeta pernambucano Manuel Bandeira.

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APETITE DE FARAÓ

No Egito Antigo, carregar consigo provisões alimentícias, para ingerir no além, era uma preocupação levada a sério. É o que atesta o historiador e egiptólogo Pierre Tallet, em seu livro História da cozinha faraônica: a alimentação no Egito Antigo. “A afeição que o egípcio sentia pela cozinha e pelos prazeres da mesa está presente em variados documentos”, escreve. Nas pinturas, os alimentos aparecem dispostos em um tabuleiro e o morto estende a mão para elas, indicando seu consumo. “No contexto, até de enterros relativamente simples, essa mesa de oferendas tem, evidentemente, uma função essencial. Trata-se de assegurar, mediante essa representação, que se sirva ao morto uma comida diária que permita sua alimentação no além”, conta. Nas últimas dinastias, eram feitos verdadeiros painéis de oferendas. Alguns contavam até mesmo com uma espécie de menu, com uma descrição detalhada do nome e da quantidade de alimentos para cada dia. O rito final consistia em o sacerdote tocar a boca da múmia com uma

No Brasil, algumas culturas indígenas ofereciam comida aos ancestrais dentro de um depósito chamado de sambaqui plaina, na cerimônia conhecida como “abertura da boca”, para que o morto pudesse voltar a falar, comer e beber no além. Para isso, eles contavam com mesas de oferendas, pequenos altares com alimentos destinados ao finado. Por conta da aridez ambiental, arqueólogos chegaram a encontrar restos de alimentos nos sarcófagos. “Assim foi feito em um túmulo da época prédinástica, descoberto em Sakkarah, que guardava inúmeros víveres, entre os quais cerveja, vinho, cereais e carne.” A descrição do túmulo do arquiteto Ka, descoberto no início do século 20, datado de mais ou menos 800 a.C., surpreende pela variedade: “Esse túmulo continha numerosos alimentos, dispostos nos mesmos pratos que

serviram para apresentá-los, localizados perto dos despojos do morto. Neles, veem-se diferentes tipos de pão, alguns ainda com uma redezinha de folha de palmeira, doces modelados segundo a representação iconográfica da flor do papiro, com forma de diferentes animais ou de lavatórios, recipientes de alabastro contendo azeite, peixes secos, farinha, legumes, cabeças de alho, tâmaras e uvas secas ainda elegantemente dispostas nos amplos pratos e cestas em que foram apresentados na celebração da última cerimônia. Tais descobertas são frequentes, no entanto, poucas são tão espetaculares”. Tanta abundância chamava a atenção de pessoas de má-fé. Foram registrados roubos por saqueadores de túmulos, pouco depois dos funerais, quando os alimentos ainda estavam em boas condições para consumo. “Os arqueólogos constataram, num túmulo da Necrópole de Mênfis, que o conteúdo dos jarros de azeite havia sido extraído por apreciadores e que o vinho contido nos jarros havia sido consumido antes de esses objetos, subtraídos da sepultura, serem quebrados”, constata o egiptólogo.

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reprodução

2 méxico O prato favorito do finado não pode faltar durante a comemoração do Dia dos Mortos egito 3 Oferendas de alimentos de todo tipo acompanham o morto em sua viagem para o além

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Segundo o autor, garantir alimento para os mortos era um desafio da religião no Egito Antigo: “O outro mundo era visto como um meio particularmente hostil, no qual era preciso recorrer a vários feitiços para evitar inúmeros perigos. (…) Inúmeros textos repetem incansavelmente que o morto deve, em função de sua dignidade, receber esse ou aquele produto alimentício como oferenda”.

SAMBAQUI RECHEADO

No Brasil, algumas culturas indígenas, localizadas no litoral, ofereciam comida aos ancestrais dentro de um tipo de depósito constituído por materiais orgânicos, chamado de sambaqui. Doutora em Antropologia pela Universidade do Arizona, a pesquisadora Daniela Klokler realizou sua tese de doutorado sobre o assunto. Comida para o corpo e alma: ritual funerário em sambaquis centrou sua análise no sítio Jabuticabeira II, localizado no litoral sul do estado de Santa Catarina. De acordo com ela, o sítio foi usado, somente como cemitério, durante cerca de mil anos, entre 2.500 e 1.400 anos “antes do presente”, segundo a notação

de tempo usada pela Arqueologia. Foram verificados depósitos que demonstram a existência de restos de alimentos ofertados para os falecidos. A autora considera que existia um intricado ritual funerário. “Esses depósitos são resultado de grandes banquetes em homenagem aos mortos, realizados durante o processo de sepultamento, após o fechamento da área funerária”, explica. A pesquisadora encontrou vestígios com uma média de 250 quilos de carne de peixe por metro cúbico. “Apesar do domínio dos peixes, mamíferos e aves também são parte do ritual e encontram-se especialmente associados a sepultamentos. Há grande variabilidade na quantidade e nas espécies depositadas nas covas em diferentes áreas funerárias analisadas. Alguns indivíduos receberam tratamento diferenciado, no que concerne aos acompanhamentos funerários, entretanto, não foi possível relacionar a variação encontrada com idade ou sexo.” Alguns povos, porém, preferem não entregar a comida aos antepassados de forma tão literal. É o caso dos

Tsembaga, na Nova Guiné, cujos costumes foram relatados na obra Porcos para os ancestrais, de Roy Rappaport. Eles criam porcos que serão oferecidos para pagar aos mortos pelo apoio dado nas lutas com os inimigos. Quando acreditam que juntaram animais suficientes para ofertar aos espíritos, promovem uma matança ritualística, mas não se furtam de participar do banquete como comensais. “Centenas de animais são mortos e consumidos em honra dos antepassados. Paga a dívida, os Tsembaga estão agora prontos para guerrear de novo, confiantes em que o poder divino está outra vez do seu lado. Assim segue a sua vida, ano após ano, década após década, num ciclo ritualístico de criação e matança de porcos, danças, festas e guerras”, explica o professor de História, Donald Worster, da Universidade de Kansas, nos Estados Unidos. Ao contrário do que acontece em outras manifestações religiosas, aqui, os mortos são homenageados, mas quem alimenta o corpo e a alma são os vivos.

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documentário A Geração 65 por ela mesma

Filme, encartado nesta edição, redimensiona a importância do grupo de poetas que marcam a cena cultural pernambucana texto Alexandre Figueirôa

Quando a cineasta Luci Alcântara resolveu inscrever, em 2007, no edital do Funcultura, um projeto de documentário sobre o grupo de poetas pernambucanos, conhecido como Geração 65, não imaginava que tinha início, ali, não apenas um flerte com a literatura, mas um namoro duradouro, cujos desdobramentos vêm marcando

sua carreira. Após Geração 65: aquela coisa toda, Luci realizou o documentário JMB, o famigerado, com o poeta e agitador cultural Jomard Muniz de Britto; os curtas de ficção Minha alma é irmã de Deus (em parceria com o escritor Raimundo Carrero) e Úrsula; e prepara, agora, um novo projeto, juntamente com Carrero, com o título de Quarteto áspero. O roteiro

já está no primeiro tratamento e será um longa-metragem adaptado da tetralogia homônima, composta pelos romances: Maçã agreste, Somos pedras que se consomem, O amor não tem bons sentimentos e Minha alma é irmã de Deus. A trajetória de Luci Alcântara na produção audiovisual começou nos anos 1980 e um de seus primeiros trabalhos a chamar a atenção foi o documentário Quarto de empregada. Ela trabalhou como produtora na TV Viva, ao lado de cineastas como Marcelo Gomes e Cláudio Barroso. Realizou vídeos educativos e institucionais, atuando como diretora e roteirista, além de ter sido produtora associada de canais de televisão americanos e canadenses. Por motivos pessoais, Luci ficou impossibilitada de viajar. Resolveu, então, inscreverse como produtora cultural e encarar o desafio de realizar seus filmes no Recife, de modo independente, montando, de imediato, dois projetos.

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1 cenário Foram escolhidos os ambientes onde os poetas circulam habitualmente

Um deles foi O melhor documentário do mundo, aprovado pelo SIC municipal, que está em fase de finalização, aguardando captação de novos recursos. E o outro foi Geração 65: aquela coisa toda, aprovado pelo Funcultura, já exibido em diversos festivais e, agora, encartado nesta edição da Continente. Curiosamente, Geração 65 teve sua gênese graças a uma edição de Documento, da revista, quando esta ainda se chamava Continente Multicultural. Luci lembra que, ao ler o texto sobre os poetas que, nos anos 1960, agitaram a cena cultural do Estado, escrito pelo jornalista André Rosemberg, foi totalmente movida pela emoção. “Conhecia os poetas da Geração 65 da livraria Livro 7. Eu estudava Artes Cênicas e era cinéfila, por isso ia muito à livraria para comprar livros de teatro e cinema. Meu irmão mais velho conhecia os poetas e, em 1977, por conta disso, ganhei o

livro O inquisidor, de Ângelo Monteiro, autografado por ele”, pontua. Aos poucos, Luci foi entrando em contato com a obra de outros poetas: Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Marco Polo Guimarães, Domingos Alexandre. Acompanhava os lançamentos das Edições Pirata, o movimento dos poetas independentes. Ao ler a reportagem de Rosemberg, Luci conta que todas essas lembranças afetivas afloraram. “Eu morava em Jaboatão e fiquei surpresa ao ler que alguns dos escritores que admirava também eram de lá, então fiquei pensando nos poetas se deslocando para o Recife, para mostrar suas poesias. Com esse sentimento, comecei a pesquisa. Comprei livros, levantei dados e elaborei a proposta.” Ao ter o projeto aprovado, Luci sofreu o primeiro choque, quando descobriu que dois dos seus principais personagens – Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra – não se falavam mais. Em seguida, veio outra notícia que a abalou e pôs em risco a continuidade do projeto: a doença e o falecimento de Alberto da Cunha Melo, considerado um dos artistas mais criativos do movimento e um dos seus principais esteios. “Com a morte de Alberto, eu pensei em desistir, mas felizmente meus amigos me convenceram a continuar trabalhando”, relembra. Inicialmente, ela imaginou realizar o filme num formato de documentário educativo para a televisão, mas mudou completamente sua concepção, à medida que conhecia os poetas e estreitava laços com Marco Polo Guimarães, que passou a ser uma espécie de consultor do filme. O passo seguinte foi definir um recorte capaz de dar conta da ausência física de Alberto da Cunha Melo, costurando a narrativa a partir das figuras dele e de Jaci Bezerra, e incluindo os artistas do que Luci chama de “núcleo principal da Geração 65”. Além de Alberto e Jaci, estão no documentário os escritores Domingos Alexandre, Marco Polo, Ângelo Monteiro, José Mario Rodrigues, Marcus Accioly, Esman Dias, José Carlos Targino, José Rodrigues de Paiva e mais os prosadores Raimundo Carrero, Maximiniano Campos (in memoriam), e a poetisa Lucila Nogueira (que fala dos estilos dos poetas). “Tive que ser dura com a escolha dos entrevistados, para

buscar os nomes mais expressivos do movimento. E os entrevistados de apoio foram os que melhor descreveram o ambiente socioculturaletílico da época”, esclarece a cineasta. A realização do filme, contudo, não foi simples, uma vez que a cineasta precisava convencer os poetas – ao mesmo tempo, tímidos e vaidosos – a encarar a câmera. Ainda: saltar um obstáculo mais difícil – como filmar poesia? A realizadora diz que teve de exercitar a imaginação e a criatividade, trabalhando de uma forma especial a oralidade, algo, segundo ela, pouco usual no cinema brasileiro. Contudo, revela ter sido a constatação da qualidade artística da poesia o principal elemento da transformação de um mero registro histórico num filme de modelo mais autoral. “Optei pelo modo participativo, conforme preconiza Bill Nichols. A minha presença é sentida por meio dos depoimentos. Sou uma filmadora voraz, uso o quantitativo para coletar o qualitativo. Faço os entrevistados repetirem os depoimentos, para tentar captar formas distintas de enunciação”, observa. Luci filmou os poetas nos ambientes por onde eles circulam habitualmente – trabalho, casa, bares – e no estúdio, em que aparecem como artistas performáticos, recitando seus versos, embora respeitando os limites de cada um e o jeito próprio de declamarem. Eles escolheram os poemas que recitam e o único direcionamento sugerido foi que lessem um poema de que mais gostassem – outro, sobre o Recife e, mais um, de Alberto Cunha Melo. Para registrar a recitação dos poemas, ela usou duas câmeras e selecionou os trechos com melhor ritmo. No filme, introduz cada poeta a partir da própria poesia, que permeia toda a narrativa. Luci observa que, entre o projeto inicial e o filme pronto, ocorreram mudanças drásticas, consequência da opção por estabelecer um forte diálogo entre sujeito e objeto. O esforço empreendido por Luci Alcântara resultou numa obra que, certamente, redimensiona e atualiza a importância dos poetas da Geração 65, cuja poesia, pela temática e sua extensiva produção de versos líricos e políticos, causou um grande impacto na vida intelectual de Pernambuco, mudando a face de nossa literatura nas décadas seguintes.

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STOP MOTION A fascinante ilusão de movimento

Em época de animações em 3D, a técnica artesanal, surgida oficialmente no início do século passado, atrai o interesse de realizadores de várias idades texto Ana Farache

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A representação imagética do movimento é uma aspiração que nos acompanha há milhares de anos. Sequer construíamos nosso próprio abrigo, mas usávamos as paredes das cavernas para desenhar pessoas e animais em movimento. Já devidamente abrigados e sedentários, os egípcios adornavam seus utensílios domésticos com pinturas que simulavam pássaros em pleno voo. Os gregos começaram a dar mobilidade à figuração do corpo humano com a técnica do contraposto nas suas esculturas de mármore... Foram estudos e experimentos que atravessaram idades históricas, escolas artísticas e momentos de rupturas que marcaram as vanguardas modernas. Tentativas

destinadas a captar e representar a animação do mundo à nossa volta. O significado da palavra animação, do latim animatio, oferece algumas pistas para a definição do seu método: ato ou efeito de animar, dar vida. A animação em stop motion é uma dessas habilidades que têm uma longa história de pesquisa e desafios, que surgiu e foi aperfeiçoada a partir de experiências de artistas e cientistas de diversas áreas do conhecimento. Pode ser definida como uma técnica que produz uma ilusão de movimento, a partir da captura de imagens paradas, de figuras vivas ou inanimadas, que vão sendo mudadas de posição quadro a quadro e, posteriormente, montadas em sequência.

1 dia estrelado

Filme de Nara Normande, com 17 minutos, levou quatro anos para ser feito

É imerso nessa técnica minuciosa e artesanal, e que demanda tempo aliado à paciência, que o realizador uruguaio Walter Tournier, 68 anos (veja entrevista no box), desenvolve há quase quatro décadas seus filmes de animação em stop motion. Maestria e dedicação que já lhe renderam reconhecimento internacional e prêmios em países como Alemanha, França, Argentina, Bolívia, Cuba, Espanha, Peru e Brasil. Seu curtametragem Nuestro pequeño paraíso foi selecionado como um dos melhores filmes de animação do século 20, no consagrado Festival de Annecy, na França, em 2000. Desde 1998, o diretor mantém o estúdio Tounier Animación, instalado em Montevidéu. O espaço reúne profissionais que desenvolvem desde roteiro até pós-produção digital. Tournier deixa claro que não tem nada contra a animação computadorizada em 3D. Tanto é que, quando necessário, recorre a profissionais da área. Foi o que aconteceu no seu primeiro longa Selkirk, el verdadero Robinson Crusoe, uma coprodução do Uruguai, Argentina e Chile, de 90 minutos, previsto para ser lançado em fevereiro do próximo ano. No filme, os personagens são animados em stop motion e os cenários desenvolvidos em 3D. “Há muita gente boa trabalhando com essa técnica, mas eu fico com a minha”, diz, com a convicção de um mestre que domina e tem orgulho de sua arte. Entre suas produções mais relevantes, destacam-se a série Los tatitos, veiculada nas televisões do Uruguai e Argentina, El jefe y el carpintero e Navidad caribeña, produzidos para a TV de Gales e o Discovery Kids, além do curta A pesar de todo e da série Los derechos del niño, transmitidos em mais de 200 emissoras da América Latina. Grande parte desses filmes poderá ser vista na abertura do Brasil Stop

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Fotos: DIVULGAÇÃO

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Motion 2011 – I Festival Internacional de Stop Motion do Brasil, que vai acontecer no Recife e em Olinda, neste novembro, entre os dias 22 e 26, com projeções no Cinema São Luiz. Walter Tournier será o convidado de honra do festival, que tem o patrocínio do Governo de Pernambuco, por meio do Edital Audiovisual do Funcultura.

MASSA DE MODELAR

Como estrela maior de Pernambuco, o I Brasil Stop Motion terá a jovem realizadora Nara Normande, 25 anos, diretora do filme Dia estrelado, uma produção de 17 minutos, finalizado recentemente, após quase quatro anos de trabalho contínuo. Nara desenvolveu seu projeto usando, principalmente, papel e massa de modelar para dar vida a um cenário inóspito, no qual se desenrola a luta pela sobrevivência de um menino e sua família. “Eu e minha equipe trabalhamos duro para fazer desse filme uma pequena obra de arte – tudo foi feito manualmente, do papel machê, arame e espuma, para construir os cenários, aos 200 kg de massa de modelar para fazer o

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Atualmente, o stop motion é feito através da captura digital, com programas de computador específicos céu. Eu adoro o fato de poder ver as impressões digitais nos bonecos”. Assim como Tournier, a realizadora não se interessa pela animação computadorizada em 3D. E explica: “Gosto do trabalho artesanal e, com o stop motion, é possível se fazer um filme mais rústico, em que as mãos dos criadores possam ser reconhecidas e atestadas como atuantes em toda a encenação”. Atualmente, a animação em stop motion é obtida a partir da captura digital das imagens que são, posteriormente, editadas sequencialmente no computador, com o uso de programas específicos para a técnica. Dentre suas modalidades, destacam-se as produções com

bonecos, objetos e pessoas. O stop motion está presente no cinema, nos filmes experimentais, na publicidade. Mas, até chegar a ser uma técnica reconhecida e aplaudida pelo grande público, por filmes premiados como O estranho mundo de Jack (1993), do americano Tim Burton, e A fuga das galinhas (2000), produzido pelo Aardman, um dos grandes estúdios ingleses de animação com modelos, o stop motion percorreu um longo caminho.

PRECURSORES

Foi no contexto da expansão científica na Europa, na metade do século 17, que o padre jesuíta Athanasius Kirther lançou seu livro A grande arte da luz e sombra (Ars magna lucis et umbrae), em 1665, que dedicava seu último capítulo à invenção da lanterna mágica: uma caixa com orifício e lente curva, iluminada internamente por vela ou lâmpada a óleo, que projetava, em tamanho ampliado, desenhos feitos sobre placas de vidro. Constitui-se assim, o equipamento antecessor dos modernos sistemas de projeção de diapositivos e do

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Entrevista

WALTER TOURNIER “o stop motion nos aproxima mais do real” 2 lara severi

Diretora de arte do estúdio Tournier fará palestra durante o Brasil Stop Motion 2011

3 série

os derechos del niño, de Walter L Tournier, é exibida em mais de 200 emissoras da América Latina

cinema. Apesar do ceticismo inicial, o fascínio pela lanterna mágica espalhou-se, tornando-se um objeto de interesse geral do público. Quase 100 anos depois, outro alemão, Pieter van Musschenbrock, apresenta um disco removível com sequência de imagens que produziam a ilusão do movimento. O invento provocou um verdadeiro rebuliço no mundo do espetáculo e, segundo Charles Solomon, no seu livro A história da animação, a partir de então, “como uma tempestade no mar, surge o primeiro entretenimento animado”. Os inventos não pararam de surgir, mas, apesar da multiplicidade deles, os artefatos que simulavam o movimento utilizavam apenas desenhos, pinturas e

CONTINENTE O que o levou a utilizar a técnica de animação em stop motion? WALTER TOURNIER Meu primeiro filme nessa técnica foi En la selva hay mucho por hacer, de 1973. Foi produzido a partir de recorte de papel e os personagens eram movimentados com agulhas sobre a mesa de animação. Queria usar materiais disponíveis no nosso país, sem ter que depender de insumos de fora, já que acetatos e tintas tinham que ser importados, o que era complicado e caro. Assim, comecei com o recorte de papel, em seguida com a argila e, agora, com estruturas e revestimentos mais complexos. Outra razão de usar essa técnica é que me interessa trabalhar o volume como forma expressiva, tanto pela espacialidade como pela proximidade com o real que proporciona. CONTINENTE Como vê a produção da animação em stop motion na América Latina? WALTER TOURNIER Essa produção

é ainda muito pequena e de difícil acesso, já que, em muitos casos, são filmes em curta-metragem, com pouca chance de difusão. Vivienne Barry, René Castillo, Juan Pablo Zaramella, Rodolfo Pastor são referências do stop motion no nosso continente. No caso do Brasil, estou curioso com o longa Minhocas (produção do Animaking), que está sendo realizado e que espero ver pronto. CONTINENTE Neste tempo da animação em 3D, o que acha que mais motiva a realização de filmes em stop motion? WALTER TOURNIER Acho que a animação em stop motion nos aproxima mais da realidade. A pureza e a perfeição do virtual provocam uma distância do espectador, enquanto que o stop motion estabelece uma relação mais direta com os objetos, mostra-nos um mundo que, embora inexistente, nos avizinha do verdadeiro, pelo espaço e também por certa imperfeição dos seus cenários e personagens. Com essa técnica tradicional, o animador manipula objetos reais e não virtuais ou planos. Ele penetra nesse pequeno mundo, existente apenas em escala menor, mas que a câmera irá dissimular. Esse é um desafio que motiva muitos realizadores.

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fotos: divulgação

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oqo FIlmes

La increíble historia de la niñapajaro, da produtora espanhola, estará na mostra especial do festival

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El color del agua é um dos filmes de Walter Tournier que estão na mostra

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INDICAÇÕES

recortes. Com o surgimento da fotografia, entra em cena o lendário fotógrafo inglês Eadweard J. Muybridge, nascido em 1830. Os estudos pioneiros de Muybridge sobre a mobilidade animal e humana foram revolucionários no captar, decompor e representar o movimento. O fotógrafo também marcou espaço na projeção de imagens com a invenção do zoopraxiscópio – equipamento usado para dar animação às suas fotografias. Muybridge morreu em 1904, logo após ter sido realizado, em 1898, The Humpty Dumpty Circus, dos ingleses Albert E. Smith e James Stuart Blacklton, apontado por pesquisadores como o

primeiro filme animado com a técnica de stop motion. Sobre a animação, Smith relatou que fez uso de um brinquedo de madeira da sua filha, composto por figuras de artistas e animais de circo, cujas articulações móveis permitiam colocá-los em posições equilibradas. “Foi um processo tedioso, na medida em que o movimento só poderia ser alcançado apenas por fotografias feitas separadamente a cada mudança de posição. Sugeri que deveríamos obter uma patente sobre o processo; Blackton, no entanto, achou que não era importante o suficiente para patenteá-lo.” Apesar do depoimento ter sido registrado, não restou nenhuma cópia do filme. Foi também no início do século 20 que o mágico e ilusionista francês George Méliès vislumbrou no stop motion uma ótima possibilidade para dar sequência aos seus truques que encantavam a todos, tendo alcançado o ápice de sua carreira cinematográfica com o filme Viagem à Lua, de 1902. Ao longo desse século, a técnica foi aprimorada por diversos diretores e usada para criar os efeitos especiais na indústria cinematográfica, que ainda não dispunha de uma tecnologia capaz de resultar em cenas digitais. Com a expansão da indústria cinematográfica em 3D, a técnica do stop motion está fadada ao desaparecimento? Para o mestre Tournier, essa é uma questão sem fundamento: “Basta olhar para a nova produção cinematográfica. Na verdade, estão sendo feitos cada vez mais filmes com esse sistema tradicional de animação”.

EXPERIMENTAL

FILMEFOBIA

Direção de Kiko Goifman Com Jean-Claude Bernadet, José Mojica Marins, Marcela Bannitz Lume Filmes

Vencedor dos prêmios de Melhor Filme (Júri e Crítica), Melhor Ator (Bernadet), Melhor Direção de Arte e Melhor Montagem, no Festival de Brasília de 2008, o primeiro longa de ficção de Kiko Goifman acredita que “a única imagem real é a de um fóbico diante da sua fobia”. Nele, os fóbicos não podem se desviar daquilo que lhes desperta medo. O filme alterna momentos situados entre ficção e documentário.

DOCUMENTÁRIO

DRAMA

FELIZ QUE MINHA MÃE ESTEJA VIVA

Direção de Claude Miller e Nathan Miller Com Vincent Rottiers, Sophie Cattani e Yves Verhoeven Imovision

Com o roteiro inspirado num recorte de jornal, Feliz... começou a ser gerado em 1996, ganhou ares de filme maldito, mas só foi lançado no início deste ano. Conta a história de Thomas, filho adotivo que resolve ir em busca da mãe biológica. As relações mostradas entre os familiares – adotivos e biológicos – são bem cruas. Destaque para a bela atuação de Cattani.

drama

UM LUGAR AO SOL

CÓPIA FIEL

“Você sabe qual é a definição que aprendeu, no colégio, de ‘ilha’? A cobertura é a mesma coisa, mas você tem outra dimensão. É o ‘por cima’ .” A opinião sobre a sensação de se morar numa cobertura, oferecida por um dos personagens do documentário dirigido por Gabriel Mascaro, dá uma ideia do que será encontrado no filme. Contando com depoimentos controversos, muitos espectadores veem no longa uma crítica ao estilo de vida daqueles que, literalmente, estão no topo da sociedade.

Partindo do encontro entre dois personagens – que se conhecem numa palestra do escritor inglês James Miller (Shimell), assistida por Elle (Binoche), galerista que vive há anos na Itália –, o longa começa discutindo a tese do livro de Miller de que uma cópia vale tanto ou mais que a obra original. A partir daí, levantamentos são feitos, transitando pela relação do homem com aquilo que pode ser gigantesco aos olhos de um, e risível, aos do outro.

Direção de Gabriel Mascaro Vitrine Filmes

Direção de Abbas Kiarostami Com Juliette Binoche, William Shimell e Jean-Claude Carrière Imovision

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ricardo piglia O encontro com a voz que guiará o leitor

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Escritor argentino explica como funciona seu método de construção de histórias, tomando como ponto de partida o seu mais recente romance Alvo noturno TEXto Schneider Carpeggiani

Leitura Tony Durán era um aventureiro

e jogador profissional e viu a oportunidade de estourar a banca, quando topou com as irmãs Belladona. Foi um ménage à trois que escandalizou o povoado e ocupou a atenção geral durante meses. Essas linhas não são minhas, mas roubadas de Ricardo Piglia, do primeiro parágrafo de sua mais recente novela, Alvo noturno. A ladroagem é justificável (e perdoável), se lembrarmos (outra vez) as palavras do escritor argentino: “São nas primeiras linhas que a gente ganha a confiança do leitor. É quando a voz da narrativa se estabelece”. Piglia é um campeão em confiscar nossa confiança em parágrafos iniciais (ainda que a trama posterior nos ensine a jamais confiar assim tão fácil em primeiras impressões), desejo maior de qualquer jornalista ou escriba. Em Respiração artificial, ele perfilou/resumiu o drama da família do narrador com a curta exclamação de espanto contida na frase “Dá uma história? Ah, se dá”. Assim, simples, e sem perder o fôlego. Com Alvo noturno, seu retorno à ficção após quase uma

década, recebe-nos com ménage à trois, insinuação de incesto e o assassinato do suposto protagonista. Quem se atreveria a largar uma leitura com tantas e tamanhas reviravoltas num espaço de tempo tão curto? “Quando a gente encontra a voz que vai guiar o leitor, ou mesmo a voz que fará ele se perder pela história, o livro flui rápido para o escritor”, continuou, numa entrevista por telefone com a Continente. Não foi minha primeira conversa com Piglia. Há um ano, quando da sua participação na Fliporto, conversamos no hall de um hotel à beira-mar, no bairro de Boa Viagem, zona sul do Recife. Foi esquisito encontrar com aquele homem que entendeu Kafka, descascou o peronismo, reelaborou a ideia de ficção-histórica e viu Borges, tendo como pano de fundo a alegria solar de turistas bronzeados. Lembro que Piglia discorria sobre o teor de Alvos noturnos (na época, ainda sem edição nacional), com sua voz sendo enterrada por um casal de namorados que não se entendia sobre os rumos da programação do

final de semana, na mesa ao lado. A cena, vista hoje em perspectiva, era tão, mas tão surreal, que mais parecia extraída de um livro do realismo mágico, típico do (hoje pejorativo) “boom literário latino-americano”, do qual o argentino conseguiu se “safar”. A salvo dos clichês da geração do boom, Piglia construiu um mundo literário particular, que se repete, livro após livro, formado pela desconstrução do peronismo, homens cascas-grossas e mulheres fatais envoltos num universo de dúvidas. “Acho que as mulheres fatais aparecem tanto nos meus romances porque aprendi algo com elas bem cedo na minha vida (risos). E quando você aprende algo

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01-1 Autor

Piglia afirma que os gêneros literários são ocos e busca revirar expectativas

com uma delas, jamais esquece”, ironizou. Se é possível listarmos com facilidade as derrapadas literárias de autores que começaram em meados dos anos 1960, junto com Piglia (leiam-se pesos-pesados da estirpe de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa), com esse argentino, a coisa complica: ele soube ser mais regular que seus contemporâneos e parece hoje mais próximo da geração formada por nomes como Roberto Bolaño e Alan Pauls.

ARMADILHA PARA GÊNEROS

Alvo noturno é uma armadilha das mais traiçoeiras com os formatos tradicionais da ficção. Aqui, o romance policial é revirado pelo

avesso. “Os gêneros literários são ocos. Não havia sentido em fazer um livro policial. A minha perspectiva é sempre revirar todas as expectativas”, disse Piglia. Na sua trama, estão presentes todos os elementos clássicos do filão noir: o vilarejo isolado do resto do mundo, o investigador durão e honesto, as mulheres fatais, e fatais consigo mesmas (no caso aqui, gêmeas idênticas), o forasteiro assassinado, o milionário excêntrico, o suspeito inocente, o repórter cínico, mas de bom caráter, o hotel decadente e acima de qualquer suspeita e, claro, o fiel ajudante japonês. Todos eles tratados como marionetes pela voz confiante de Piglia, que parece saber de tudo, estar acima de todos os fatos.

A história é narrada a partir de inúmeros voos por referências literárias e filosóficas, porém tratadas de maneira condensada, para que o leitor não perceba que o substrato da própria literatura é sempre o tema favorito de Piglia. É nesse contexto, que percebemos a habilidade do escritor: ele é continuador da tradição de Flaubert e Cervantes de escrever livros sobre outros livros, mais um obcecado pela “biblioteca universal”, mas acha que não precisamos perceber isso tão fácil. Qualquer um, com o mínimo interesse em jornalismo cultural, sabe que os repórteres adoram questionar se determinado livro, de alguma forma, mimetiza a vida real do seu criador (como se fosse assim tão simples separar a memória da ficção). Críticos literários parecem sempre “caçadores” de diários. Isso não costuma ocorrer em relação a Piglia. Porque ele aparenta estar sempre falando de uma coisa distante da própria experiência pessoal, ainda que com um inquestionável conhecimento de causa. Habilidoso, aprendeu a se misturar de tal forma com suas criações, que fica difícil encontrá-lo pelos seus textos. Em Alvo noturno, ao menos, sabemos que a obra foi erguida a partir de memórias familiares. “Sim, o romance relata a história de um filho de um irmão de meu pai. Mas não se começa a contar uma história interessante desse jeito, é preciso mascarar, criar outros fatos, é assim que se faz ficção. Então, inventei um crime, um detetive, uma mala de dinheiro, um forasteiro, uma intriga sexual – do contrário, não haveria romance, não haveria Alvo noturno.” Talvez a melhor forma de entendermos Piglia nem seja pelas entrevistas ou buscas por algum vislumbre de sua discreta biografia. É possível que o “sumo” da sua literatura esteja na nossa disposição em entender que ninguém repete tanto, e tão bem, os mesmos personagens por tanto tempo, sem querer revelar alguma coisa com isso.

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mauro mota Poeta dos inventários e do tempo que passou

1 jornalismo O escritor publicou boa parte de sua prosa em coluna de jornal diário

Reedição de poesias e crônicas do autor, que foi identificado pela crítica como pertencente à Geração 45, evidencia seu apreço pelo detalhe TEXto Cristhiano Aguiar

Em uma de suas crônicas, publicadas na sua coluna Agenda no Diario de Pernambuco, e agora republicadas pela Cepe, Mauro Mota se propôs a dar alguns conselhos a seus colegas jornalistas sobre a maneira mais adequada de escrever uma reportagem. “Apresentem os fatos em movimento pleno, sem voz de falsete, sem cortinas de palavrório”, ele recomenda. Em seguida, recorda-se de um repórter iniciante que, ao cobrir uma confraternização natalina entre a Aeronáutica e a Marinha, teria escrito: “Confraternização dos filhos de Ícaro com os discípulos de Netuno”. Ora, conclui nosso poeta e cronista, “chamem as coisas pelos próprios nomes (...) chuva não é precipitação pluviométrica, nem cachorro é mastim”. Mauro Mota foi um poeta dos inventários. Em seus melhores poemas, não teve medo das coisas miúdas que seu olhar poético observava; cantou os objetos da casa, as ervas daninhas, as ruínas, as ruas, os ventos, as paixões de subúrbio, as mães, os cajus, os meninos. E os fantasmas. Embora os conselhos reproduzidos acima tivessem como objetivo a prática jornalística – cujas regras, sabemos, são diferentes da criação de versos –, não é difícil pensar que elas se referem, em algum grau, à própria poesia e prosa desse poeta, nascido em agosto de 1911, no Recife, e falecido na mesma cidade, no ano de 1984. Se a busca de uma linguagem sem aquelas “cortinas de palavrório” é, por um lado, o resultado da constante procura que a literatura

brasileira – do final do século 19 até o modernismo de 22 e o romance de 30 – empreendeu a fim de modernizar a própria linguagem, por outro, essa busca também é uma síntese do percurso individual da sua carreira literária. Professor de História e Geografia, Mauro Mota também foi secretário, redator-chefe e diretor do Diario de Pernambuco, diretor-executivo do Instituto Joaquim Nabuco, diretor do Arquivo Público de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras. O reconhecimento foi obtido ainda em vida, como atestam os prêmios que recebeu, tais como o Olavo Bilac, o Jabuti e o Pen Club. Homem integrado ao seu tempo, a trajetória de Mauro Mota nos revela que procurou conjugar a vocação do homem das letras com a de um intelectual público. Sua atuação também foi importante para a divulgação dos novos nomes da poesia da época: editando o Suplemento Literário, entre os anos de 1947-1959, lançou poetas como Carlos Pena Filho e César Leal. Além de ter publicado estudos sobre a realidade socioeconômica brasileira, como o livro Cajueiro nordestino (que também será relançado pela Cepe, em parceira com a Fundaj), as janelas e caminhos abertos por suas poesias e crônicas muitas vezes descortinam um Recife e um Nordeste que o poeta não quer que esqueçamos. Trata-se de retratos de tempos passados, mas também instantâneos de pequenos dramas e modos de viver, como é caso do famoso poema Boletim sentimental da guerra

no Recife. Redescoberta lírica do cotidiano, conhecimento da terra, ressurreição pela memória: é principalmente na sua poesia que essas expressões, que proponho como eixos temáticos gerais, poderão fazer sentido; nos seus versos concisos e musicais encontramos o convite à descoberta do Recife, de Pernambuco, do Nordeste, bem como um apelo para que não esqueçamos o nosso próprio ethos, aquilo que nos faz tão próprios.

GERAÇÃO 45

Alfredo Bosi, no seu História concisa da literatura brasileira, aproxima o nome de Mauro Mota à Geração 45, etapa da nossa literatura moderna que procurou repensar algumas das bandeiras do primeiro modernismo, aquele que, chocando os burgueses em 1922, e liderado por Oswald e Mario de Andrade, ajudou a modernizar a nossa poesia e prosa. Passada a necessária ânsia demolidora daquele espírito de vanguarda – e com burgueses bem menos ariscos –, os poetas de 45 praticaram uma criação literária que privilegiasse inquietações formais, resgatando, inclusive, elementos estéticos do Simbolismo e do Parnasianismo. De fato, no Panorama da nova poesia brasileira, publicação organizada por Fernando Ferreira Loanda e que se propunha a ser um primeiro balanço da Geração 45, havia, segundo Bosi, a proposta de que a poesia ali encontrada deveria ser um novo caminho, “fora dos limites do Modernismo”. Entre os

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REPRODUÇÃO

2 imortais Mauro Mota e Barbosa Lima Sobrinho na ABL

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poetas publicados nessa antologia, encontraremos Mauro Mota. Nesse ponto, é preciso cuidado com as generalizações que muitas vezes a crítica e a história literárias fazem com a obra de um escritor. Se é correto dizer que a poesia de Mauro Mota surge no contexto da Geração 45, e em fecundo diálogo tanto com as trilhas abertas pelo movimento modernista quanto com seus colegas de geração, também é correto dizer que, já no seu primeiro livro, é apresentada uma dicção bem própria. A procura por um verso cujo ritmo seja agradavelmente musical e a retomada de formas fixas, como a elegia ou o soneto, podem ser associadas a um debate geral proposto por sua geração, porém, certamente

Suas crônicas e seus poemas são marcados por uma linguagem concisa, e por temas ligados à memória e ao cotidiano indicam um projeto estético próprio de Mauro Mota. Logo, já no seu primeiro livro, Elegias (1952), a clareza e a concisão do seu verso contrastam com o formalismo que esperaríamos de um “típico” poeta daquele momento; do mesmo modo, suas imagens são muito menos apegadas, quando o são, a um simbolismo tardio.

Vejamos alguns exemplos de Elegias. Sim, é possível encontrar certo simbolismo diluído, aliado a um romantismo de covas e melancolias lunares, em alguns dos poemas. No bom poema Canto de inverno de navegante fluvial, encontramos versos ao gosto simbolista como “Vem o vento veloz varando as velas”. No poema Rua Real da Torre, temos os seguintes versos de abertura: “Ó Rua Real da Torre,/ que mistérios ocultais/ nos chalés mal-assombrados/ que aos fantasmas alugais?”. Construído todo em redondilhas e com o som predominante, em boa parte do poema, da consoante “s”, os versos fazem uma crônica fantasmagórica da referida rua. Ainda a respeito dessa poesia soturna, a série de poemas intitulados Elegia constitui ótimo exemplo: “Passos incertos sobre as lajes frias,/ sigo em busca de ti, à procura/ do tumulto da vida de outros dias,/ que foi contigo para a sepultura”. Estamos diante de um perfeito poeta decadentista? Longe disso, pois no mesmo livro há dois dos seus melhores poemas, cuja vitalidade segue caminhos diversos dos que apontei antes. É caso do já citado Boletim sentimental da guerra do Recife, que nos conta a história dolorosa das meninas nordestinas iludidas pelo amor dos soldados americanos (“Ingênuas meninas grávidas/ o que é que fostes fazer?/ Apertai bem os vossos vestidos/ pra família não saber”), ou da triste personagem do poema em versos livres Rondó suburbano, no qual uma senhora de meia idade “abre o piano numa tarde de domingo/ como uma caixa de lembranças e melodias”, recordando, solitária, do tempo perdido da juventude. Nesses dois poemas, não são apenas desencontros amorosos que são tematizados; eles nos dão indícios da própria condição da mulher em uma sociedade ainda conservadora, que emparedava o feminino em ritos sociais e lugares excessivamente marcados (a jovem e “perdida” mãe solteira; a solteirona que passará a vida na solidão). Tanto nos poemas solares quanto nos noturnos do livro Elegias, há um projeto de memória que os unifica. O luto vivido nos sonetos das Elegias, os fantasmas na Rua Real da Torre, os personagens em

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INDICAÇÕES sua velhice ou desgraça social – os poemas querem dar conta de vidas e tempos que não podem ser esquecidos. Essa será uma constante da sua poesia posterior: embora o tom soturno seja amenizado em prol de cores e perfumes mais exuberantes, a morte continuará presente, mesmo que ao lado dos cajus.

PASSADO NO PRESENTE

Everardo Norões nos recorda que Álvaro Lins considerava a poesia do amigo marcada por um realismo mágico; isso pode ser explicado justamente pela retomada do passado no presente: os fantasmas continuarão voltando nesses versos, porque são os personagens por excelência das fraturas da memória; as vozes de um Pernambuco ainda colonial invadirão o olhar que o poeta lança sobre os monumentos e ruas do Recife; os objetos inventariados em poemas como A dádiva (do livro O galo e o cata-vento) e A gaveta (do livro Os epitáfios) se transformam em vestígios das almas que os manusearam; é o inventário – dos destroços e dos sulcos, do que foi roído pela roda do tempo e da morte – o alvo predileto da poesia de Mauro Mota. Assim, é nessa clave da memória e das ruínas que a essa poesia interessará a degradação social do trabalho – bem-denunciada em A tecelã – e do patrimônio histórico do Recife, como no poema Igreja dos Martírios ou Jesus na Avenida (do livro Pernambucânia). As crônicas de Mauro Mota estão integradas ao seu projeto intelectual e poético. Não apenas há temas em comum com seus poemas, principalmente no tocante à memória e ao cotidiano, como elas são marcadas por uma

linguagem também concisa, dessa vez, tomada pelo bom humor. Considerações sobre a cultura nordestina conectam o cronista ao ensaísta e pesquisador das Ciências Sociais; o resgate da história da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é tema de várias crônicas, assim como a sua indignação diante de problemas ecológicos (é tocante sua crônica contra o assassinato de gatos no Recife) e da ameaça ao patrimônio histórico recifense. Nas 100 crônicas que a Cepe e a Fundaj republicam, encontramos também uma pequena e rica galeria de tipos da classe média boêmia, burocrática e bacharelesca do Recife das últimas décadas, muitas vezes ridicularizada pelo personagem Mateus Camorim, alter ego do poeta. Somos apresentados, por exemplo, ao acadêmico Maciel Monteiro, médico, bacharel, poeta e mulherengo, que dizia ter calos nos dedos, do tanto que levantava as saias das mulheres; ou descobrimos que Tobias Barreto, líder da Escola do Recife e patrono da Faculdade de Direito do Recife, no fim da sua vida, exigiu que seu cérebro fosse conservado no formol, “como se faz com os cérebros dos gênios”. Dessa forma, seja nas crônicas ou nos poemas, Mauro Mota nos apresenta suas experiências com a cidade, o luto e o passado como o lírico por excelência que foi: construindo conosco um espaço de intimidade. Assim, a reedição de suas obras não é oportuna apenas pelas imagens vívidas que nos revela de um tempo que já passou; elas nos recorda a importância de uma poesia que tenta chamar as coisas pelo próprio nome.

ROMANCE

BIOGRAFIA

Alfaguara

Record

ANA MARIA MACHADO Infâmia

CHRISTINA AUTRAN O meu Alentejo

Prolífica autora, com uma centena de títulos publicados, esta carioca é mais conhecida por suas obras voltadas ao público infantojuvenil. Infâmia não é seu primeiro título para adultos, mas marca sua migração de editora. Na trama, ela se detém em situações de desonra. No contexto, não poupa críticas à imprensa, pela voz do personagem central, um diplomata aposentado.

Um livro pessoal, despretensioso e gostoso de ler. Estes adjetivos contemplam esta biografia em forma de diário, escrito a partir de um genuíno apreço pela região alentejana. Há desde prosaicas anotações de receitas a dicas de hospedagem e passeios. Também, um pequeno álbum de fotografias, que incita mais o desejo de conhecer essa “Provença” portuguesa.

HISTORIOGRAFIA

REPORTAGEM

FERNANDO A. NOVAIS E ROGÉRIO F. DA SILVA (ORGS.) Nova História em perspectiva Cosac Naify

Este trabalho se detém nas transformações ocorridas no campo da historiografia, com o surgimento da Escola dos Annales, em 1929. São 19 textos, escritos por historiadores já conhecidos de leitores brasileiros, boa parte deles inéditos em português.

RICARDO CARVALHO O cardeal e o repórter Global

O “cardeal” é dom Paulo Evaristo Arns, e o “repórter”, Ricardo Carvalho, que, juntos, foram responsáveis por tornar públicas várias atrocidades do regime militar. O religioso, atuando com fonte privilegiadíssima, o jornalista, como o autor de reportagens veiculadas na grande imprensa. Aqui, os bastidores dos fatos e dessa boa relação.

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ringo Starr O baterista que sobreviveu aos Beatles

Remanescente da banda inglesa apresenta-se no Recife pela primeira vez, reacendendo a chama da beatlemania, 40 anos após o fim do quarteto

colagem: karina freitas

texto Débora Nascimento

Sonoras Qual foi a última frase que o baterista disse antes de ser expulso da banda?: “Agora vamos tocar uma minha?”. Piadinhas como essa, que circulam no meio musical, traduzem de forma irônica a realidade desses músicos, que costumam ficar à margem da visibilidade de outros instrumentistas de um grupo de rock, como o vocalista e o guitarrista. Em geral, muitos ouvintes de música sequer sabem o nome da pessoa que está por trás da bateria. Até o mais famoso baterista de todos os tempos passou pela difícil situação de ser o

Patinho Feio da banda. “Se nós quatro ficássemos em linha na frente de um milhão de fãs, e eles tivessem de dizer de qual beatle gostavam mais, eu acho que Paul seria o mais votado, John e George ficariam empatados no segundo lugar e Ringo seria o último”, afirmou o próprio Ringo, no livro The Beatles – Dito e não dito. Mesmo cantando e compondo, ainda que raramente, Ringo Starr concorria com o talento e o carisma de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison (esta ordem é proposital). Mas nem por isso deixou

de ser bastante querido pelos fãs dos Fab Four. Esse carinho deverá ser evidenciado no show que ele realizará no Chevrolet Hall, no dia 20 deste mês, quando um pouquinho da beatlemania poderá ser experimentada in loco, no Recife, 40 anos após o fim do lendário quarteto de Liverpool. Apesar de não ter sido um incensado baterista de rock, adorado como um deus, como foram (e ainda são) John Bonham (Led Zeppelin), Keith Moon (The Who) e Neil Peart (Rush), Ringo tem seu nome cravado na trajetória da

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música popular e é sempre lembrado nas listas dos melhores bateristas do gênero (mesmo sem ocupar as primeiras colocações), pela importância que adquiriu ao conduzir, com criatividade, fluidez, firmeza e balançar de cabelos, o ritmo daquela que é considerada a melhor banda da história. O músico entrou nos Beatles após a saída de Pete Best, que tocava com John Lennon desde a época em que o grupo se chamava The Quarrymen. Após a assinatura do contrato com a Parlophone (EMI), foi solicitado aos

comprovada em filmes como A hard day’s night (1964) e em diversos outros nos quais atuou, com e sem os Beatles. Assim como Paul, John e George, Ringo também vinha de uma família de origem humilde da cidade de Liverpool, onde morava com a mãe, Elsie, e o padrasto, Harry Graves. Lá, em 1957, começou sua própria banda, The Eddie Clayton Skiffle Group. No ano de 1959, juntou-se ao Raving Texans, que depois mudou de nome para Rory Storm and the Hurricanes. Foi nessa época que o baterista adotou o curioso apelido, por causa dos anéis (“rings”, em inglês) que costumava usar e, em agosto de 1962, “virou um beatle”. “Eu estava nervoso e morrendo de medo do estúdio. Quando voltamos para gravar o lado B de (do single) Love me do, descobri que George Martin tinha esse outro baterista (Andy White) sentado no meu lugar. Isso foi terrível – eu havia sido convidado para me

Ao substituir Pete Best, em agosto de 1962, Ringo tornou-se a peça que completou a sonoridade dos Beatles

rapazes que trocassem de baterista – segundo o produtor musical George Martin, Best não era competente, e, de acordo com o empresário da banda Brian Epstein, também não era simpático. Os garotos logo se lembraram do responsável pela bateria da Rory Storm and The Hurricanes, grupo que estivera com eles na afamada turnê de Hamburgo, em 1960. O tal narigudo, Richard Starkey, além de ser bom com as baquetas, ainda se mostrava extremamente bemhumorado – característica que pode ser

juntar aos Beatles, mas parecia que só serviria para tocar com eles em bailes e que não era bom o suficiente para gravar discos”. Ringo, que acabou tocando apenas pandeiro em Love me do e maracas em P.S. I love you, referiuse ao fato de o produtor musical não ter gostado de sua performance na primeira música. Mas foi uma grata surpresa para Martin, descobrir que Starr era um músico versátil. Ele tornou-se, então, a peça que completou o som da banda, dando suporte rítmico às composições. E não demorou muito até o grupo, com essa nova formação de quarteto (após a saída e posterior morte do baixista Stuart Sutcliffe, em maio de 1962), começar a conquistar o Reino Unido e, em seguida, como se sabe, o mundo. Logo, logo, Ringo se tornaria uma referência para os bateristas de rock que surgiriam a partir de então. “Eu nunca tinha ouvido nada como aquilo. O sibilar dos pratos,

a incrível propulsão de seu jeito de tocar bateria – me pegou instantaneamente”, afirmou, à Rolling Stone, Max Weinberg, baterista da E Street Band (“a” banda de Bruce Springsteen), sobre o impacto que teve ao ouvir a arrebatadora Please, please me, lançada em março de 1963.

VERSATILIDADE

Com batidas fortes e precisas, Ringo exibiu sua versatilidade em variados momentos da carreira fonográfica do grupo, tais como em Ticket to ride, no período do iê-iê-iê, e Tomorrow never knows, na fase psicodélica. “É um som completamente único e ajudou a mudar toda a percepção sobre como uma bateria devia soar”, disse Weinberg. “Já Helter skelter influenciou uma geração inteira de bateristas de metal, incluindo John Bonham.” Enquanto Jim Keltner, o baterista de estúdio número um dos Estados Unidos, que tocou durante anos com Bob Dylan, John Lennon e George Harrison, declarou certa vez que, se alguém quisesse trabalhar como baterista de estúdio, depois de Ringo, “tinha que aprender a soar como Ringo”. Infelizmente, o baterista não teve a chance de exibir ao vivo o amadurecimento de sua técnica junto aos Beatles, pois o grupo parou de se apresentar em agosto de 1966 – não aguentavam mais a rotina de tocar em estádios lotados e de não serem ouvidos pelas fãs histéricas, numa época em que os equipamentos de som não eram tão potentes como se tornariam a partir dos anos 1970. Enquanto isso, outros bateristas se destacavam por ter mais liberdade de improvisação, como o tresloucado Keith Moon, que preenchia os compassos com “viradas” contínuas, estabelecendo a sonoridade do The Who e deixando uma enorme brecha no grupo com seu falecimento precoce em setembro de 1978 – dois anos depois, o Led Zeppelin ficou baqueado, após a morte do “mestre dos mestres” John Bonham. Outro entrave que Starr encontrou tem a ver com aquela piadinha do começo deste texto. Se, para George Harrison, era difícil emplacar alguma composição nos discos dos Beatles, frente à “fábrica Lennon-McCartney”, imagine como era para Ringo. Ele só teve duas músicas suas gravadas pelo grupo: Don’t pass me by, do Álbum

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fotos: divulgação

1 all starr band

Ringo (3º à esq.) faz turnê com sua banda, formada por músicos experientes

Sonoras 1

branco, e Octopus’s garden, do Abbey Road, e mais quatro em coautoria com os outros integrantes (What goes on, do Rubber Soul, Flying, do Magical mystery tour, Dig it e Maggie Mae, do Let it be). O baterista também deixou sua marca ao interpretar músicas do repertório do quarteto, como Boys (Luther Dixon/ Wes Farrell), Honey don’t (Carl Perkins), I wanna be your man, Act naturally e Good night. Mas as que tiveram maior repercussão foram Yellow submarine, do Revolver, e With a little help from my friends, do álbum Sgt. Pepper’s. Para a alegria dos fãs, essas canções estão previstas no set list do show no Recife. Outras músicas do repertório da turnê foram retiradas de sua carreira solo, como It don’t come easy, que provavelmente abrirá a apresentação. Lançada como single em 1971, é uma de suas melhores composições. Do álbum Ringo, de 1973, ele pinçou a belíssima Photograph, feita em parceria com George. O disco, seu maior sucesso de vendas, a propósito, é o único que conta com a participação de todos os ex-beatles após o fim do grupo. Das 23 músicas esperadas para essa apresentação, ele deverá cantar pouco mais da metade delas. As outras serão revezadas entre os membros da All Starr Band, cuja formação atual traz Rick Derringer (guitarra), Wally Palmar (guitarra), Richard Page (baixo), Edgar Winter (teclados e sax), Gary Wright (teclados) e Gregg Bissonette (bateria). Apesar de Ringo atuar no show como

Ringo exibiu sua versatilidade nos Beatles, tanto em músicas do iê-iê-iê quanto naquelas da fase psicodélica vocalista, haverá o esperado momento em que pegará nas baquetas. Olhando em retrospectiva a trajetória de cada um dos Beatles, parece incrível lembrar que foi Ringo o menos elogiado e paparicado deles, o primeiro a querer abandonar a banda – a saída durou apenas duas semanas. Em telefonema para cada um dos músicos, ele fez o anúncio: “Vou sair, porque vocês três são muito próximos e eu fico de fora”. E, incrivelmente, cada um respondeu dessa maneira: “Eu que achava que vocês três eram muito próximos”. Nessa época, Lennon, ao ser questionado se Ringo seria o melhor baterista do mundo, respondeu: “Ele nem é o melhor baterista dos Beatles”, referindo-se ao fato de McCartney ter gravado a bateria de três canções do Álbum branco (1968). Não demorou muito, até todos pedirem para ele voltar. Quando retornou, o estúdio estava cheio de buquês de flores, providenciados por Harrison. Ali ficou claro: Starr, com sua leveza, era o catalizador da banda e sua possível partida só apressaria a inevitável separação.

Com o término do grupo, anunciado em abril de 1970, Ringo acabou sendo, a partir de então, o ex-beatle que teria mais contato com os outros três, sendo convidado para participar de discos, como o Plastic Ono Band, e projetos dos músicos, como o Concerto para Bangladesh, de George Harrison, e que esteve presente em momentos importantes, a exemplo do apoio a Yoko Ono, após a morte de John Lennon, em 8 dezembro de 1980, e a George Harrison, na reta final da doença que o matou em 29 de novembro de 2001. E mesmo que seu trabalho não tivesse igual ou semelhante impacto artístico e comercial que os dos ex-companheiros, Ringo lançou, entre 26 títulos gravados em estúdio e ao vivo, alguns discos que não envergonham sua legenda de ex-beatle, como o já citado Ringo (1973), Time takes time (1992) e Choose love (2005). Em paralelo às gravações, levou adiante a carreira de ator, que começou com A hard’s day night, integrando o elenco de diversas produções cinematográficas. Também colocou sua voz grave na narração da primeira temporada da animação inglesa Thomas & friends. Em outubro de 2008, após 45 anos de estrelato, divulgou um vídeo pedindo que, após o dia 20 daquele mês, não lhe enviassem mais cartas, pois não iria mais respondê-las, estando ele, então, já muito velho para isso (embora não fosse apontado como o preferido dos fãs da banda, Ringo tornou-se o ex-beatle que mais recebia correspondências, pois era o único que realmente as respondia). Essa peculiaridade teve tanta repercussão, que até virou mote para o roteiro de um episódio de Os Simpsons, exibido em 1991, no qual ele “aparece” respondendo cartas, entre elas, uma antiga de Marge Simpson. Apesar de não encabeçar listas de melhores bateristas, Ringo sempre utilizou o seu característico bom humor para se defender: “Dizem que não toco muito bem, mas sou o baterista da melhor banda do mundo... Logo, sou o maior baterista do mundo!”. Ele pode não ser o melhor, mas, certamente, do alto de seus 71 anos, ainda é o mais querido.

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INDICAÇÕES REGGAE

INDIE ROCK

JAZZ

Universal Republic

Matador

Sony Music

SUPERHEAVY SuperHeavy Esta não é a primeira vez em que Mick Jagger se arvora em cantar reggae. Já o havia feito com Peter Tosh, numa versão de You’ve gonna walk, don’t look back, de Smokey Robinson. Mas, agora, ele perdeu a noção de qualidade, ao lançar o primeiro (e esperamos único) disco do projeto SuperHeavy, que elaborou ao lado da cantora inglesa Joss Stone e de Damian Marley. Essa reunião pode até ser um chamariz para a mídia, mas o seu resultado é feio e clichê.

STEPHEN MALKMUS Mirror traffic O que poderia resultar da união de forças de dois dos melhores músicos dos anos 1990? A resposta está em Mirror traffic, o quinto álbum solo de Stephen Malkmus, que tem produção de ninguém menos que Beck, recentemente afastado dos próprios discos. Com Mirror traffic, o ex-líder do Pavement consegue fazer um disco tão considerável quanto o seu primeiro individual (com a banda de apoio The Jicks), Stephen Malkmus (2001).

POP

TONY BENNETT Duets II

CASSIO SETTE O medo da dor

Tem algo de muito anacrônico nos arranjos de big bands de Duets II. Por outro lado, é isso que o torna irresistível. O disco segue a cartilha “gigante da música encontra nova geração em versões de standards”. Nele, Tony Benett, aos 85 anos, canta ao lado de intérpretes como Lady Gaga. As dezenas de convidados vão de Norah Jones a Aretha Franklin. Mas o destaque acabou ficando com Amy Winehouse (Body and soul), em sua última gravação.

Um dos expoentes da música pernambucana dos anos 1980 volta a lançar disco. Em O medo da dor, Cássio Sette retoma a parceria com o baixista Júnior Areia, que o produz novamente. O CD segue a cartilha do anterior, Nem carne nem peixe, formado por interpretações despojadas de releituras, como as de Baile perfurmado (Fred 04), Devolvi (Adelino Moreira) e Não chore palhaço (Mário Filho/Mozart Cintra). Destaque para a faixa-título, de Areia, e Sundae, de Marco Polo e Almir de Oliveira (ex-Ave Sangria).

Independente

Wilco

novo CD comprova talento do grupo com arranjos Desde que o folk rock foi formatado pelo The Byrds e por Bob Dylan, em meados dos anos 1960, muitos artistas surgiram, fazendo música sob a alcunha do gênero. Poucos, no entanto, se deram tão bem quanto o Wilco, uma das raras bandas atuais realmente respeitadas pela crítica. O grupo, cujos discos lançados não receberam menos de quatro estrelas em publicações especializadas, chega agora ao seu oitavo título de estúdio, tentando superar o fiasco de 2008, Wilco, the album. Claro que todo bom artista tem o direito de, pelo menos uma vez, fazer um trabalho mediano. No entanto, há dúvidas no ar: com o grupo muito afiado na produção musical, será que os arranjos são tão eficientes, que conseguem influenciar o mais atento ouvinte? As músicas são realmente boas? Elas se sustentariam sozinhas, apenas com voz e violão?

Os belíssimos arranjos, típicos do Wilco, conseguem esconder um trabalho que seria apenas mais do mesmo? O certo é que o novo The whole love não chega a surpreender, como A ghost is born (2004) e Sky blue sky (2007), e está longe do brilhantismo de álbuns como Being there (1996) e Summerteeth (1999). Mas, ainda assim, é um disco bom de se ouvir, principalmente se levarmos em consideração os últimos lançamentos no gênero. Algumas das melhores faixas são as de abertura, Art of almost, Sunloathe (que parece uma música de John Lennon), Born alone, Rising red lung, e a faixa-título. Infelizmente, a melhor delas, One sunday morning, contém uma sequência de acordes que lembra bastante Anunciação, de Alceu Valença, embora não chegue a configurá-la como um plágio. (Débora Nascimento)

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sobre pintura

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

José de Ortega y Gasset (Madri,

1883-1955) faz umas observações, se me dão licença, pertinentes, nesse campo da arte sempre tão flúor. Engraçado: alguma coisa eu já pensava por osmose, depois de ter passado um ano na Itália nos meus verdes anos. E justamente calei o bico, supondo resultado de intoxicação por ter recebido de uma vez, nesses anos virgens, a carga toda desse “continente”, como diz Ortega y Gasset, que é a Itália. Mas até na minha incompreensão me lembro de ter deixado escapar, assim que cheguei de volta, em fins de 1959, em casa de Arnaldo Pedroso d’Horta na Rua Humberto I, que em São Paulo se dizia “primo” em vez de “primeiro”, se não me engano em presença dele e de Mário Cravo Júnior, que o que não era Itália não era arte. Imediatamente, isso me soou exagero. Não pedi desculpas: apesar de me ter

No Velázquez, diz Ortega y Gasset que “não existiu no Ocidente até fins do século 18 mais que uma pintura: a italiana” surpreendido tal afirmação, que saiu sem pensar, não a julguei leviana. Agora, depois de mais de 50 anos, vejo o grande Ortega y Gasset dizendo mais ou menos a mesma coisa. Depois de velho, nos vêm essas ideias, do quanto fôramos inteligente, uma vez na vida, mil anos atrás. Caduquice pura. Li de Ortega y Gasset dois livrinhos que ficaram vagando aqui pelas prateleiras anos e anos: Velázquez e Goya. Minha mulher gosta de livros e sempre tivemos livros de arte, eu mais pela presença física, abrindo-os como quem

abre um dicionário,visitando alguns verbetes, olhando as figuras: tenho o maior medo de saber o que os outros dizem de pintura, talvez temendo que venha abaixo o castelo de areia que eu mesmo construí em decênios de ignorância; e deve ser por isso, pela consciência da solidez do edifício, que me arrisco a ler alguma coisa agora com o espírito leve de quem sabe que o mal não tem cura. Em tempo: é comum a pessoa que sabe muito alegar, por modéstia ou por retórica, não saber de nada. No meu caso, não. No Velázquez diz Gasset que “não existiu no Ocidente até fins do século 18 mais que uma pintura: a italiana”. E: “A pintura espanhola é a modulação produzida na Espanha e pelos espanhóis de uma realidade muito mais ampla e autárquica que é a pintura italiana”. Inclusive a flamenga ele chama de “ilha adjacente” em relação ao continente da pintura italiana,

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imagens: reprodução

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acrescentando que mesmo aquela foi, a partir de 1500, sendo absorvida pela pintura italiana, “anexação”, a palavra que usa, da arte flamenga pela italiana. Outra observação que faz é a de que a pintura italiana, e por extensão a pintura do Ocidente, começou com as descobertas arqueológicas da escultura grega. Coisa sabida. Quando o cristianismo chegou acabou com tudo que existia em cima do chão, considerando arte do demônio, do paganismo, sobrando apenas a estátua de Marco Aurélio a cavalo porque pensavam que era Constantino, o primeiro imperador romano cristão (embora adepto de uma linha depois considerada herética pelo Vaticano, li não sei onde). Miguel Ângelo, por exemplo, nunca conseguiu se libertar do fascínio exercido pelo grupo escultórico do Laocoonte. Mas a novidade é que Gasset assinala que justamente pelo fato de a pintura ter tido como

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origem a escultura, isto é, a pintura italiana e a escultura grega, a pintura pegou da escultura a volumétrica, o esfumado, e essa passou a ser a cara da nova pintura. Na ocasião, na Itália, se criaram as leis que passaram a reger as artes no resto do mundo. A consequência de ter sido, o ponto de partida da pintura, a escultura, trouxe à pintura a terceira dimensão, que lhe era estranha, a ilusão da profundidade física advinda da escultura, em que é fato palpável e não ilusão. Gasset diz isso no Goya. “Essa totalidade de clara presença a que a arte italiana aspira se obtém esvaziando o objeto real de quase todo seu conteúdo e deixando dele só um esquema ideal. Goya tende a dar-nos da figura real o que esta é no momento de aparecernos. Goya pinta ‘aparições’ e, neste sentido, fantasmas. Agora bem, isto mesmo é ao que Velázquez chega ao cabo de sua evolução. Por isto é sua

1 édouard manet

O tocador de flauta, óleo sobre tela, 160 x 97cm, 1866. Museu d’Orsay, Paris

2 diego velázquez

Pablillos de Valladolid, óleo sobre tela, 212,4 x 125cm, 1636-37. Museu do Prado, Madri

pintura mais puramente pintura ou arte visual que as outras, as quais levam dentro um afã de escultura”. Gasset acha que a pintura italiana “morre gloriosamente em Velázquez”. E pergunta “se quando Goya faz constar a influência decisiva de Velázquez sobre ele não se refere a esta radical interpretação do pintar, ao ‘planismo’ mais do que a quaisquer outras sugestões parciais e secundárias”. Era o “momento supremo” da grande reviravolta que através de Manet desembocaria no impressionismo.

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imagens: divulgação

Visuais

objetos Palavras, barbárie e marcas da intolerância Em Para nunca mais me esquecer, José Paulo cria utensílios para incitar o público a pensar sobre as más escolhas da humanidade texto Mariana Oliveira

Em regiões de extensa atividade pecuária, havia sempre o risco de os animais de um fazendeiro se misturarem aos de uma propriedade vizinha. Para evitar qualquer tipo de disputa, o gado era marcado a ferro, com as iniciais do dono ou com símbolos que representassem a

sua fazenda de origem. Uma marca para nunca mais ser esquecida. Foi se apropriando do conceito atribuído a esses instrumentos de marcar animais, que nasceu a escultura-chave da exposição Para nunca mais me esquecer, do artista plástico José Paulo, em cartaz no Centro Cultural Correios, no Recife.

A obra, que dá título à mostra, é composta por 28 peças que reproduzem os ferros de marcar boi, em uma escala ampliada. Ao realocar esses instrumentos, o artista faz uma crítica sobre a forma como a humanidade se relaciona com a natureza e consigo mesma – já que ferros semelhantes eram usados para marcar os escravos. Apesar das mudanças ao longo da história, esse desejo de dominação e de imposição continua sendo muito forte e se reflete nas práticas diárias – talvez, agora, diante das novas tecnologias, de forma diferente, porém com a mesma violência. “A ideia central dessa mostra gira em torno do comportamento humano, dessas atitudes bárbaras que continuam acontecendo”, afirma o artista. Além desse eixo condutor, os cinco trabalhos expostos trazem outra temática bastante cara ao artista,

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1 ferros de marcar boi

A obra critica a relação da humanidade com ela própria e com a natureza

e que tem aparecido em trabalhos desenvolvidos anteriormente. A sua pesquisa no campo da tipografia, das fontes e das palavras – já apresentada em peças da exposição Repetir, repetir, repetir – aparece com mais força dessa vez. Nas obras, ficam claras a visualidade e riqueza dos tipos móveis, das letras do alfabeto e da composição das palavras. Esses dois polos, aparentemente independentes, terminam convergindo de alguma forma: em todas as obras está presente a ideia de marcação, de perpetuação de um símbolo, de um conceito, algo que não deve, não pode e não será esquecido, ainda que se queira, justamente por esses vestígios, impressos no papel ou na carne. Na obra Dor, o artista reproduziu o significado mais arcaico e simplório da palavra, numa espécie de matriz tipográfica, com as letras invertidas, todas feitas em cerâmica. A placa dialoga com o trabalho artesanal do universo do cordel. “Pesquisei os tipos, vi como eles eram feitos...Vi as placas, as gavetas dos tipos móveis. Escolhi trazer essa imagem do cordel para a obra”, explica. José Paulo também dá seguimento às investigações sobre os carimbos. Mais uma vez, ele constrói os objetos em grande escala – uma marca do seu trabalho. A obra, batizada de Carimbos siameses, é formada por duas dessas peças, unidas por uma mesma haste. De um lado, uma palavra; do outro, seu antônimo: cópia x original, ordem x caos, positivo x negativo, sempre x nunca, aprove x deneid. Apesar de trazer alguns conceitos mais abstratos, o artista volta a discutir as ações e escolhas do ser humano, a mostrar que as decisões estão nas mãos das pessoas. Muitas vezes, uma simples mudança de direção pode fazer com que o carimbo penda para um lado ou para o outro. E quem nunca teve a vida para sempre marcada por um “positivo” ou “negativo”? Para aqueles que tiveram a máquina de escrever como companheira, as 13 esculturas, de

cerca de dois metros, reproduzindo os ferros com os tipos que marcavam a fita de impressão, podem trazer certa nostalgia. A proposta é resgatar uma memória, um sentimento de época, uma arqueologia da importância que esse instrumento teve até a década de 1970. O artista conta que sua intenção é revelar à geração Y as atrocidades cometidas no Brasil durante a ditadura militar. “Quero trazer a memória da tortura que, talvez para os mais jovens, não seja tão presente. Com essa maquinaria, pretendo fazer com que as pessoas se perguntem ‘o que é aquilo?’, ‘para que serve?’”, explica.

DESENHOS

Observando a trajetória de José Paulo, não é difícil perceber que seu principal interesse tem sido a construção de objetos. Nesse processo, o desenho aparece como um espaço para projetar e planejar o que será realizado. Contudo, nos últimos anos, esses desenhos de ateliê têm aparecido também nas salas de exposições. É o caso dos 40 exibidos por ele na exposição Retratos e autorretratos, no Centro Cultural Correios, em Salvador. Em Para nunca mais me esquecer, a técnica também está presente. Voltando-se uma vez mais à questão da barbárie, o artista compôs uma série de três desenhos, nos quais reproduz os rostos de Elizabeth Taylor, Grace Kelly e Sophia Loren com os narizes decepados. A motivação para essa composição veio de uma foto, publicada na revista Time, de uma jovem afegã que teve seu nariz mutilado pelo marido, por ter fugido de casa. Apesar da repercussão, o rosto e a brutalidade do ato foram logo esquecidos. Ao cometer a mesma violência, ao mutilar simbolicamente o nariz de ícones da beleza ocidental, o artista deseja que o caso não seja esquecido, que ele se faça mais uma vez presente no debate público. Como um “criador de objetos”, José Paulo apresenta, em cada uma das obras expostas, sua preocupação com os aspectos plásticos, acabamentos e detalhes. Ainda que a questão conceitual permeie todas elas, seu apreço aos objetos e à sua finalização se destacam. Algo raro nos dias de hoje.

Oriana Duarte

O CORPO EM RISCO Já faz alguns anos que Oriana Duarte tem se dedicado a pesquisar os limites do próprio corpo. Ele tem sido, ao mesmo tempo, seu ateliê e elemento figurativo de seu trabalho. Diferentemente de outros artistas que usam o corpo como suporte para representar experiências pessoais e de seu cotidiano, Oriana cria situações específicas e se coloca presente nelas, marcando a diferença entre experiências poéticas e vivências pessoais. Antes de Plus ultra, série em exibição no Santander Cultural até o dia 27, a artista desenvolveu outro projeto importante. Em Riscos de E.V.A. (Experimentos em voos artísticos), ela preparou-se, durante alguns meses, para a realização de alguns esportes radicais. Dessa vez, Oriana optou pelo remo, com o qual empreende uma expedição entre rios e lagos espalhados pelas cinco regiões do país, numa trajetória de muitos quilômetros. A atual mostra traz o registro desse processo, iniciado em 2006, não apenas em fotografias e vídeos, mas também em desenho, técnica que a artista, há muito, havia preterido em detrimento de outros suportes. (Mariana Oliveira)

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divulgação

LEE UFAN O combate silencioso

Obra do artista plástico e filósofo coreano associa engajamento político e sutileza em minimalismo texto Camilo Soares

Visuais Cidade de extremos, Nova York é capaz de oferecer contrastes inelutáveis. A poucas quadras do vuco-vuco high tech do Times Square, epicentro histérico do consumismo mundial, onde tempo e espaço se virtualizam num caleidoscópio de estímulos de cores e mensagens projetados incessantemente nas fachadas de arranha-céus, encontravase exposta, no Museu Guggenheim, a obra do artista coreano Lee Ufan, que combate com minimalismo e delicadeza as imposições imperialistas do capitalismo moderno. A mostra Lee Ufan: making infinity (Lee Ufan: fazendo infinito, encerrada no último 28 de setembro) percorre um caminho de quase cinco décadas de estruturação de um sistema filosófico e estético que conduz à consciência de falsas necessidades ilusórias e nos aproxima do essencial equilíbrio entre mente, corpo e mundo exterior. Um oásis de calmaria em meio a um deserto existencial. As obras espalhadas na espiral do museu (desenhado pelo arquiteto Frank Lloyd Wright) ilustram uma retrospectiva do pensamento de Lee, indissociável de sua obra plástica. Considerado, atualmente, um dos artistas mais influentes da Ásia, Lee nasceu no Sul da Coreia em 1936 e vivenciou um conturbado momento histórico, desde a ocupação japonesa,

passando pela Segunda Guerra, até a Guerra da Coreia, que deixou o país dividido. Depois de estudar na Escola de Belas Artes da Universidade Nacional de Seul, ele se mudou para o Japão, onde cursou Filosofia na Universidade Nihon, em Tóquio, e se especializou em Fenomenologia e Estruturalismo. Sempre atuante nas artes plásticas e na política, Lee participa como estudante das revoltas antiamericanas no Japão da década de 1960, o que seria posteriormente trabalhado em suas obras como a separação entre ocidentalização e modernização, entre modernidade e universalismo. “Lee viu em primeira mão a degradação dos ideais modernistas de progresso e racionalismo diante do genocídio e do imperialismo na Guerra Fria, do holocausto nuclear e da crescente industrialização e capitalismo. Como jovem intelectual, tornou-se engajado na crítica da visão de mundo modernista e racionalista”, conta Alexandra Munroe, curadora da mostra.

SISTEMA ESTÉTICO

Sua pintura e escultura foram profundamente marcadas pela construção de um sistema estético que desafia a crença objetiva e antropocêntrica da arte moderna, em prol de uma ligação mais íntima com

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aquilo que o homem não controla. Para tal, ele trabalha com a rusticidade do material e seu equilíbrio espacial para propor uma relação entre observador, objeto e espaço, quebrando as fronteiras da obra e abrindo sua percepção para o primordial e o infinito. “Isso foi uma expansão radical das possibilidades da arte em um mundo onde colonialismo e imperialismo, ‘outridade’ e ‘diferença’ tinham implicações na vida real.”, descreve Munroe. Tais conceitos encontraram sustentação no movimento de vanguarda japonês Mono-ha, liderado por Lee. Significando literalmente “Escola das Coisas”, o grupo prega a humildade do artista em relação ao mundo como uma urgência política,

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subvertendo a hierarquia entre mono (coisa ou material), corpo e espaço. Enquanto vanguardas ocidentais como a Arte Povera, Arte Processual ou as inovações de Joseph Beuys já refletiam que a autoexpressividade na representação estava em crise, aproximando arte ao cotidiano, Lee iria mais longe, neutralizando o espaço entre o eu e o outro, mente e natureza, corrompendo a dualidade existencial cartesiana entre consciência e existência, enfim, buscando uma nova estrutura de pensamento como efetiva forma de descolonização. Suas armas para isso são a retenção, o vazio e o silêncio. A primeira é representada pelo o ato de não agir, que potencializa o respeito ao “mundo como

ele é”, resgatando o senso de presença das substâncias não separadas das ideias pelo ato-criativo: “Se dissermos que uma coisa existe fora de uma ideia, isso equivale a anunciar a morte da ontologia moderna”, escreve Lee, em seu texto Mundo e estrutura – Colapso do objeto. Para romper com a romântica visão da criação artística, procura trabalhar em suas instalações com matérias-primas como pedra, cuja essência precede a obra, e relacioná-las com o aço, material moderno e funcional, para criar espaços dinâmicos ou, como ele diz, ressonantes, pela interdependência mútua de seus elementos, ao mesmo passo de suas coexistências autônomas. “As rochas tornam-se pinceladas numa relação dinâmica

1 minimalismo

Artista ingressou no movimento para driblar a censura nacional

com o espaço circundante, que está em constante fluxo”, complementa Lee. A exemplo disso, duas placas de aço são sobrepostas e intercaladas por rochas (Relatum, 1978). Arqueadas, elas passam uma sensação complexa de equilíbrio e fragilidade. Em outra instalação (Relatum, 1974), uma haste de aço é equilibrada entre uma pedra e a parede do museu, sobre a qual um semicírculo foi riscado com carvão, dilatando a percepção temporal desses objetos imóveis. Não por acaso, Lee adora citar o filósofo e matemático belga Jean Ladrière, que dizia: “Forma não é estática, mas um

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divulgação

2 correspondência

Uma de suas pinturas monocromáticas que repetem pinceladas esparsas no espaço branco

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Visuais

fenômeno do devir”. Tais espaços de mudanças são mais evidentes em instalações em que as pedras dão lugar ao algodão (como a Relatum, 1979), suscitando efemeridade para a composição, ao explorar a coexistência de estrutura e processo, permanência e mudança. Tal dinâmica lembra as pinturas chinesas tradicionais, nas quais o branco marca o vazio, espaço de transformações no qual agem os sopros vitais do yin-yang, como nas paisagens em que montanha e água se transformam mutualmente. Lee, por sinal, é bastante influenciado pelo pintor chinês (e monje do século 12) Bada Shanren. Tais espaços ressonantes (yohaku, em japonês) também são explorados em suas pinturas monocromáticas, ora criando tensões temporais pela repetição evanescente de pinceladas (na série Do Ponto, 1964-1978) ou pela dispersão de uma reta (na série Da linha, 1964-1978), ora pela confluência entre preenchimento e vazio (nas séries Dos ventos, 1980-2009, e Com ventos, 19802009). Tal sentimento de amplidão de tempo e espaço é reforçado pela escolha

de Lee por não enquadrar suas telas, expandindo as pinturas aos arredores da obra. “Essa não produção serve como uma crítica subliminar à nossa sociedade globalizada de mais-valia e sobreprodução. Lee inspira uma espécie de passividade produtiva, na qual vazio e tempo aberto ganham significado e substância”, afirma Munroe.

DINÂMICA DO VAZIO

Entretanto, Lee não se preocupa em ilustrar o pensamento oriental em sua obra, mesmo que admita que seja normal esse direcionamento cultural. Seu minimalismo surgiu, curiosamente, para driblar a censura durante a ditadura coreana e expor sutilmente ideias marxistas. Depois, foi beber em outras fontes filosóficas ocidentais: na fenomenologia de Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty, que buscaram ultrapassar a divisão entre indivíduo e objeto, colocando consciência no fluxo da experiência; ou na história crítica da modernidade de Michel Foucault, que demonstra como formações discursivas do poder e conhecimento constroem verdades canônicas e universais. E ainda não se pode esquecer o impacto da dimensão ética da obra de

Emmanuel Levinas, que defende uma relação não hierárquica entre o eu e o outro. Contudo, sua maior influência talvez seja mesmo o filósofo japonês Nishita Kitaro (da Escola de Kyoto), em sua relação entre o zen budismo e o questionamento filosófico ocidental sobre o ser, unindo consciência e existência numa só experiência. Assim, desmistificando a imponência do eu sobre o mundo, a estética de Lee delimita a autoexpressão e dá ênfase à dinâmica do vazio, transcende o materialismo e o individualismo e nos abre a porta para a compreensão mais extensa de nossa existência em relação ao universo, conduzindo à reflexão e nos fazendo ouvir o silêncio e respirar o infinito. “O artista não é um ser criador, nem um escroto, como invocava Mallarmé. Penso que artista é aquele que medita”, afirma Lee (em entrevista a Henry-François Debailleux, Libération 29/8/1995). Assim, Lee nos leva a um eterno que está sempre a interagir com nossa efemeridade, como na série Diálogo, na qual uma grossa pincelada em degradê cinza, sobre uma tela de grande dimensão, tranquiliza-nos a vista e nos faz, em plena Nova York, lembrar nossas verdadeiras necessidades.

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bruno soares/divulgação

Palco

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GARAJAL Romeu e Julieta como se fossem brincantes Grupo cearense une elementos da cultura popular, como o cordel e o reisado, ao texto clássico de William Shakespeare texto Astier Basílio

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bruno soares/divulgação

Palco 2

Mal o sol nasce, um barulho de

festa entra por baixo das portas dos quartos. Faz frio. As músicas e as falas dos atores vêm do adro da Pousada dos Capuchinhos. Quem fosse à abertura do 18º Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, interior do Ceará, não iria encontrar esse espetáculo em mostra nenhuma, Romeu e Julieta. O grupo Garajal resolveu apresentar extraoficialmente sua versão do clássico de Shakespeare. Eles são da cidade de Maracanaú, região da grande Fortaleza. Durante todos os dias de evento, apresentaram esquetes e contações de histórias para o público infantil. Aquela apresentação, que se tornou um dos destaques de todo o festival, seria a sexta do espetáculo. Por isso, o cuidado em repassar todas as cenas, antes mesmo do café da manhã. O Romeu e Julieta do Grupo Garajal conseguiu unir elementos da cultura popular ao texto clássico de William Shakespeare. Houve uma cena em que o nível de apropriação conseguiu conciliar a poética do bardo inglês aos folguedos populares, como se entre ambos não houvesse distinção alguma,

e pertencessem à mesma raiz. Para o cenário, a direção optou por usar apenas dois cavaletes. Pintados de creme, transformaram-se desde o balcão da famosa cena dos amantes, até a sepultura do jovem casal. No baile em que Romeu disfarça-se para participar da festa dos inimigos de sua família, a estética do brincante entremeou-se profundamente à peça. Foi, decisivamente, quando os elementos da cultura popular, evocados desde a abertura em cordel do espetáculo, encontraram sintonia perfeita com o texto. Hora em que Henrique Rosa e Paula Albuquerque, nos papéis de Romeu e Julieta, interpretam o momento de paixão à primeira vista. Para marcar o mascaramento do casal na festa, os diretores Mário Jorge Maninho e Diego Mesquita fizeram com que os atores contracenassem olhando para direções opostas, em cima dos cavaletes. Porém, o instante mais bonito dessa cena foi quando Romeu entregou uma rosa a Julieta – símbolo tão caro aos palhaços. De suas pontas, de fitas coloridas, suspensas

e puxadas pelo elenco, que girava em torno do casal, abriu-se como se fosse um pavilhão junino, num lance que, ao mesmo tempo, colocou os protagonistas em primeiro plano (eles estavam no último degrau dos cavaletes), sem perder de vista o movimento da festa, com os casais dançando. Uma sincronia entre indivíduos e coletivo. Para quem, à primeira vista, pressupõe que os elementos da cultura popular, postos em cena, podem dar margem àquela estética colorida e engastada de um certo teatro nordestino, é bom desarmar os espíritos. Em vez do exibicionismo virtuoso, a encenação optou pela condensação de signos, pela precisão nas referências. Exemplo disso é a cena em que se anuncia o banimento de Romeu, pronunciada por um ator que atravessa um corredor de labaredas, criado pelos atores que utilizaram a técnica circense de cuspir fogo. O minimalismo norteou a reelaboração dos signos. Como em cena na qual apitos de madeira, soprados para criar a atmosfera

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sol coelho/divulgação

Página anterior 1 julieta

Além de comandar a percussão, Lu Nunes foi uma das atrizes que interpretou a personagem Nestas páginas 2 cenas

As danças e folguedos nordestinos são inseridos com precisão em momentos específicos da peça

3 na rua

Durante todo o festival, o Garajal apresentou esquetes e contações franqueadas ao público

3

agourenta, são transformados em copos, por onde o veneno dos amantes foi ingerido. A representação da morte do casal também seguiu a linha da contenção. Os coletes coloridos, senha para que o ator, valendo-se do sistema coringa, mudasse de papel, foram pendurados lado a lado, nos cavaletes que representavam a tumba do casal. No espetáculo, não há uma justaposição dos elementos da arte popular, como se pairassem acima da encenação, como corpo estranho. Nada soa gratuito ou superficial. Ajustam-se ao andamento da poesia de Shakespeare os cocos de chegança, com os quais o espetáculo é apresentado; os versos de cordel que iniciam e encerram o espetáculo; a cena da luta dos Montecchio com os Capuleto, toda ela redimensionada pelos passos de dança do reisado; e, até quando Julieta é obrigada a casar, o autoflagelo da personagem que evoca os penitentes de Barbalha. Mais do que efeitos cênicos, o que a companhia traz para o palco é verdade. Outro aspecto que fez o público rir, e muito, foram as expressões típicas

do falar cearense, costuradas na lírica adaptação feita por Vítor Augusto: “O príncipe está fumando numa quenga” (que significa que o soberano está deveras irritado); “Romeu, é tu macho?”; “Negrada, o respirador de Julieta parou”. A direção musical de Maurício Rodrigues e Marcos Vinícius, também embebida de cultura popular, deu relevo ao talento musical do grupo, que executou as canções em cena. O figurino, de Dielan Viana, com as roupas de algodão e adereços coloridos, harmonizou bem o casamento entre o clássico e o popular. No elenco, destaca-se a figura da atriz e instrumentista Lu Nunes. Não só comandou a percussão do espetáculo, como fez, dentre outros papéis, a Julieta nos momentos finais. Assis Lima, no papel de Frei Lourenço, trouxe a efígie do padre Cícero para composição do seu personagem; Aldebaran Faustino buscou no seu clown branco o tom autoritário para compor o senhor Capuleto; Henrique Rosa revelou-se um talento cômico, sobretudo por sua embocadura de

voz, muito aproximada dos artistas de rua e dos camelôs; Rayane Medes encontrou, também, na sua palhaça o perfil para compor a velha ama de Julieta; Rafael Melo buscou no Mateus do Reisado o tom para interpretar Romeu; Sudailson Kennedy, que faz o primo Teobaldo, trouxe o seu corpo de brincante e palhaço para a cena, em especial, no momento em que nos brindou na bela cena do duelo final. Como um todo, a interpretação é pautada no trabalho de clowns, desenvolvido por todo o elenco. O Grupo Garajal, fundado em 2003, deu-se ao desafio de recriar um dos grandes clássicos da dramaturgia mundial e correu um grande risco ao fazê-lo. É que ainda perduram ecos na memória de muitos expectadores do teatro nacional da célebre montagem do Galpão, feita em 1992, com o encenador Gabriel Vilela, um dos marcos da história do teatro contemporâneo brasileiro. Comparações seriam – e serão – inevitáveis. Entretanto, a ousadia dos cearenses foi recompensada com um espetáculo emocionante e vivo.

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RALPH PHO/DIVULGAÇÃO

ANIMADOS Foi então que o bule disse à chaleira...

O Festival Internacional de Teatro de Objetos apresenta 60 espetáculos, em que os atores são utensílios do cotidiano redimensionados TEXto Danielle Romani

Palco

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Em 1917, o pintor e escultor Marcel Duchamp inscreveu a obra A fonte – tratava-se de um objet trouvé, um mero urinol industrial, desses que podem ser vistos em qualquer banheiro – em um concurso de artes plásticas nos Estados Unidos. Desde então, a relação do mundo com os objetos nunca mais foi a mesma.

Precursor da arte conceitual, o francês abriu espaço para que outros artistas experimentais, a exemplo de Andy Warhol, que imortalizaria pacotes de sopa Campbell´s nos seus quadros, pudessem se utilizar dos ready-made para expressar-se artisticamente. Duchamp deu o primeiro passo, para que o mundo

enxergasse os utensílios industriais de outra forma, percebendo que, por mais insignificantes que possam nos parecer, eles podem nos remeter a interpretações, significações e, se olhados para além de sua banalidade, podem até comover e surpreender. Quase um século depois da polêmica causada pelo objet trouvé de

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volta ao mundo 1 A companhia espanhola Fernan Cardama utiliza bonecos antigos para empreender um giro na Terra em 43 minutos e 55 segundos

ainda que já tenha sido visto por 115 mil pessoas em edições realizadas em Porto Alegre, Brasília, Florianópolis, Campo Grande, Manaus e Belo Horizonte.

PERFORMANCES

Festival Internacional de Teatro de Objetos Marco Zero

11-13 Nov Entrada gratuita

Duchamp, os utensílios pré-fabricados, ou não, estão definitivamente incorporados às manifestações artísticas. A prova disso é a realização do Festival Internacional de Teatro de Objetos (Fito), que ocorrerá no Recife entre os dias 11 e 13 de novembro, reunindo grupos de sete países, que farão mais de 60 apresentações para quem for visitar

as cinco salas montadas pelo cenógrafo Osvaldo Gabriele, no Marco Zero, no Bairro do Recife. Promovido pelo Serviço Social da Indústria (Sesi), com curadoria da publicitária Lina Rosa, mentora e idealizadora do projeto, o Festival Internacional de Teatro de Objetos é algo inédito no Nordeste, e novo no Brasil,

Durante a temporada recifense, 13 grupos de três continentes vão mostrar performances curtas, entre 15 e 50 minutos, com situações inusitadas, provocando o olhar do público para o cotidiano de modo diferente. Elas estão voltadas para faixas etárias distintas: livre, a partir de 12 anos, e adulta, conforme a carga dramática das encenações. Nas apresentações, uma xícara de louça comum se transforma em Cinderela, e o seu príncipe é um bule. Rodas de bicicleta e seus guidons, presos a uma banqueta de bar, são dançarinas elegantemente cortejadas por sóbrios senhores. Panelas, frigideiras, caçarolas e chaleiras dialogam, brigam, juntam-se, formando uma orquestra. Saca-rolhas são bailarinas graciosas, disponíveis a serem animadas pelo público; leques adquirem o traquejo de pavões. “O olhar do espectador é instigado a ver de modo impensado. Nessa perspectiva, a afirmação de que existem muitos objetos num só objeto, do dramaturgo e diretor teatral alemão Bertold Brecht, é relevante porque estimula o público a imaginar, a criar suas próprias narrativas, a ser o protagonista dos seus sonhos e das suas fantasias. O espectador é convidado a ver além do aparente, a olhar mais profundamente e perceber o movimento, a transformação, o ‘vir a ser’ contido em cada objeto e, quem sabe?, no modo de ser das pessoas”, explica o professor de teatro, catarinense, Valmor Niní Beltrame. Entre as companhias reunidas no festival, uma merece atenção especial, pois nela está a precursora do gênero no mundo, a francesa Katy Deville, responsável pelo Théâtre de Cuisine. O termo teatro de objetos foi pronunciado pela primeira vez por ela, na década de 1980. No Recife, Katy apresentará

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LA COMPAGNIE DU PETIT MONDE/DIVULGAÇÃO

2 musical

Os alegres utensílios de cozinha da Cie du Petit Monde executam originais melodias

Palco

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o espetáculo 20 minutos sob o mar, destinado exclusivamente a adultos, e descrito como dotado de uma densa carga emocional, cuja história se desenvolve dentro de um aquário, ou melhor, no fundo do oceano, num mundo de sonhos e pesadelos, passeando entre o nonsense e o bom humor, entre a delicadeza e o terror. Entusiasta desse tipo de manifestação, Lina Rosa tenta defini-lo. “O teatro de objetos nem é boneco, nem é contação de história. Ele pode estar, ou não, dentro de um guarda-chuva de formas animadas. Acho que, realmente, o que o diferencia é a utilização da interpretação dramática que pode ter, sendo capaz de uma carga muito intensa. Em Paris, vi um espetáculo todo pautado em torneiras, baseado em O avarento, de Molière, que tinha uma força fora do normal”, afirma a curadora, que é também responsável pela curadoria do Festival de Bonecos do Sesi, que já se encontra no seu oitavo ano. Diferentemente do que se encontrará na edição recifense do Fito, em que o público contará com diversas montagens para crianças e adolescentes, quando foram iniciados, há algumas décadas, os espetáculos de objetos eram essencialmente adultos. “Todos tinham invólucro de crítica, denúncia, humor

Quando surgiu, o teatro de objetos era essencialmente voltado aos adultos, por ser denso e sarcástico sarcástico. Eram profundos, pesados. Agora, com o surgimento de novas companhias, se diversificaram. Mas, certamente, o que os diferencia do teatro de bonecos é que trazem maior carga emocional, mexem com o inconsciente coletivo, exigem um fitar intenso e o ingresso na mágica dos objetos. Estimulam o simbólico, sendo miméticos”, explica Lina.

ELENCO

A montagem recifense vem cercada de ludismo, para fisgar o público ainda não familiarizado com o gênero. A curadoria afirma que o ambiente montado no Marco Zero terá cinco salas para espetáculos nacionais e internacionais, sendo três delas com capacidade para receber até 200 pessoas, e duas, com menor capacidade. Quatro minissalas serão usadas para performances curtas, realizadas por atores para pequenos

grupos, e serão batizadas de Fito Mostra Viva. Após a apresentação, o encenador trará ao público fundamentos básicos do teatro de animação e objetos, convidando os espectadores a participarem da cena. Ainda na proposta interativa, a Foto Fito se constituirá em um espaço cenográfico, com várias instalações. Numa delas, estarão cabideiros, que servirão como parceiros de dança para os participantes. Os “casais” de dançarinos – pessoas e objetos – serão fotografados. Em outra, será possível ver bailarinas em formato de saca-rolhas gigantes que rodopiam manipulados por cordas e, numa terceira, móbiles feitos com relógios e cadeiras, numa referência ao tempo. O público verá o trabalho das companhias brasileiras Cia Gente Falante, Teatro das Coisas, XPTO, Mosaico Cultural, e poderá conferir a performance do percursionista Naná Vasconcelos no espetáculo Pinipan, em que ele toca um instrumento formado por pinicos, panelas, bacias, caçarolas, caldeirões, bules e colheres. O cantor e compositor Tom Zé também se apresentará no festival, mostrando canções com arranjos e orquestrações em liquidificadores, rádios, máquinas de escrever, enceradeiras, gravadores, teclados e garrafas, unindo o pop à música experimental. No âmbito internacional, estarão presentes os espanhóis Rocamora e La Chana Teatro, o holandês Tamtam Objectetheater, o argentino Fernán Cardama, o israelense Cia Meital Raz, o belga Gare Centrale, o italiano La Voce Delle Cose, e os franceses Théâtre de Cuisine e La Cie du Petit Monde. Animada com a receptividade que o Fito recebeu em outras capitais, Lina Rosa acredita que a edição recifense causará impacto. “A experiência é muito ousada. E o que mais me alegra: gratuita. É possível que, depois de assistir a um espetáculo de objetos, o espectador atribua novos significados a uma caixa de ferramentas e aos banais utensílios de cozinha”.

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FOTO: alexandre berzin

RECIFE CIDADE ABERTA De paisagens de rio e mar a cenas de degradação e fantasmagoria, as interpretações de fotógrafos sobre o espaço urbano retratado na ficção

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con enSaio ti nen te

ABEl MENEzES

AMÍlCAR DÓRIA MATOS

CélIA lABANCA

Nascido em Caruaru, no agreste pernambucano, o médico, residente em Olinda, é autor do romance Delírica dança. Em A gargalhada final (1996), exprime sua relação intensa com o Recife.

Jornalista e escritor, publicou o primeiro livro, O sexo poupado, em 1974. Em A trama da inocência (1983), aborda a polêmica atração de um homem por uma menina.

Bacharel em Direito e diretora do MAC, a escritora e curadora publicou três romances, sendo o último A noite tem razão – Uma história real quilombola. Aminta foi lançado em 2008.

CÍCERO BElMAR

ClARICE lISPECTOR

DOUGlAS T. DE AlMEIDA

Autor de Umbilina e sua grande rival (homenagem à literatura de cordel) e Acabou-se o que era doce. Em Rosselini amou a pensão de Dona Bombom (2005), conta um pouco das tradições do Recife.

A ucraniana naturalizada brasileira estreou em 1943, com o romance Perto do coração selvagem. Durante a infância, residiu no Recife, experiência abordada em diversos textos.

Autor do romance Saudade do futuro, de 1989, com o qual teve entrada ruidosa no campo literário. Com o livro, ganhou o prêmio Leda Carvalho, concedido pela APL.

FOTO: riCardO MOUra

Em O Recife dos romancistas, Abdias Moura pretendia contestar a tese de que “Pernambuco é uma terra de poetas, historiadores e ensaístas, mas nunca produziu bons romancistas”, enquanto oferecia visibilidade a uma produção literária local. Juntamo-nos a ele no desejo de estimular nos leitores a vontade de conhecer esses textos, propondo um “diálogo” entre escritores e fotógrafos. Da seleção, já feita por Abdias, escolhemos e enviamos trechos de romances para 14 fotógrafos, pedindo que, a partir deles, fizessem seus registros livremente. As imagens feitas instigam o interesse pelos textos originais, que pedem uma leitura integral.

Entrevista

ABDIAs mouRA “não FIz sELEção poR méRITo Do EsCRIToR, ApEnAs pELA TEmáTICA” Embora rejeite o rótulo de “escritor

ABDIAS MOURA

”Foi uma busca maluca, porque eu pensava que eram poucos romances”

nordestino”, o jornalista e sociólogo Abdias Moura não nega suas raízes. Pelo contrário, ele as exalta. Do afeto pela cidade em que vive, surgiu o livro Recife dos romancistas, uma homenagem à capital pernambucana que, muitas vezes, foi personagem de textos literários. Abdias recebeu a Continente para conversar sobre a obra que inspirou esta edição especial da revista.

CONTINENTE Como surgiu a ideia do livro? ABDIAS MOURA A ideia surgiu quando, na Argentina, minha mulher me deu o livro Buenos Aires das novelas. O título prometia muito, mas é um trabalho diferente do meu. Ele reuniu autores que viviam na cidade, mas escreveram novelas sobre assuntos diversos, não só sobre o lugar. Como eu já tinha escrito 13 obras, a maioria ensaios sociológicos e alguns pequenos romances, resolvi fazer um livro de homenagem ao Recife. Recentemente, perguntaram-me se me considero um escritor nordestino, brasileiro ou universal. Eu disse que gostaria de ser considerado universal, com raízes no nordeste brasileiro. De todo modo, eu sentia, como recifense, que precisava celebrar a minha cidade e, em vez de fazê-lo com um trabalho meu, juntei os trabalhos dos outros. Procurei reunir todos os romances que foram escritos sobre o Recife,

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Gastão de Holanda

Gilvan Lemos

Fernando Monteiro

José Iremar da Silva

O escritor recifense, bacharel em Direito, estudou Literatura em Paris. De volta ao país, radicouse no Rio, onde dirigiu a editora Fontana e a revista José. Lançou, em 1975, O burro de ouro.

Nascido em São Bento do Una, chegou ao Recife em 1949, com 21 anos. Publicou o primeiro livro, Noturno sem música, em 1956. Escreveu mais de 10 obras, entre romances, novelas e contos.

Poeta, romancista, cineasta, estreou em 1973, com Memória do mar sublevado. Em 1974, foi premiado pela APL com a peça O rei póstumo. A cabeça no fundo do entulho foi lançado em 1999.

Bacharel em Teologia, tem trabalhado, desde os anos 1970, com crianças e adolescentes em situação de risco, tema abordado em O menino das ruas do Recife (2007).

José Lins do Rego

Josué de Castro

Luzilá Gonçalves

Mário Sette

O paraibano protagonizou um avanço no romance regional moderno, que ganhou mais oralidade com livros como Menino de engenho, Doidinho e O moleque Ricardo (1935).

Autor de Homens e caranguejos (1967) e Geografia da fome, foi médico, geógrafo e ativista. Com os direitos políticos suspensos após o golpe de 1946, exilou-se em Paris, onde faleceu em 1973.

Romancista, editora e professora universitária, com mestrado e doutorado em Letras. Em A garça malferida (2002), realiza uma ficcionalização do período holandês.

Fundador da Academia Pernambucana de Letras, o escritor deixou uma obra na qual o cotidiano da Zona da Mata e do Litoral estão presentes, como em A filha de Dona Sinhá (1926).

não importando se os autores eram recifenses. O que interessava era que eles apresentassem uma visão pessoal da cidade. Entusiasmei-me muito, quando comecei a escrever, porque não imaginava que ia ter que lidar com 72 romancistas. CONTINENTE Houve dificuldades na produção do livro? ABDIAS MOURA Foi uma busca maluca, porque eu pensava que eram poucos. Eu queria incluir muitas publicações antigas, algumas delas desaparecidas. Outro grande problema que eu tive nesse livro foi separar o Recife de Olinda, porque, na minha visão, elas estão unidas fisicamente e espiritualmente. Mas, na prática, percebemos que os olindenses não querem pensar em uma subordinação ao Recife, e os recifenses têm a velha soberba de ser a capital.

CONTINENTE Foi estabelecido algum critério para seleção dos escritores catalogados? ABDIAS MOURA Eu recebi uma crítica curiosa do meu editor de Buenos Aires, que adorou o livro – disse que era enciclopédico, e só possuía um defeito: excesso de generosidade na inclusão de alguns autores. A questão é que não fiz seleção por mérito do escritor, apenas pela temática. Não quis fazer um julgamento dos livros, e coloquei todos, mesmo os que não considero bons. Alguns me agradam muito, outros nem tanto, e alguns, nem um pouco. Mas não usei o critério de qualidade da obra, apenas considerei a preocupação do autor em descrever o Recife. CONTINENTE Por que trabalhar com romance, em detrimento de outros gêneros? ABDIAS MOURA Até sugiro que algum corajoso faça o Recife dos contistas. Eu não suportaria outro

projeto desses. Existe o Recife dos poetas, eu fiz o Recife dos romancistas e, agora, pode ser que alguém faça o dos contistas. Não fiz e expliquei: a quantidade de contos surgindo é muito grande e eu não poderia abarcar esse universo. Aí, perguntam-me: você conseguiu todos os romances que falam do Recife? Desde que terminei o livro, só chegou um novo (O romance da Besta Fubana). Pode ser que, na segunda edição, eu precise incluir mais alguns. Mas, na verdade, não penso nessa continuidade. CONTINENTE Quanto tempo durou a produção do livro? ABDIAS MOURA Demorei nove meses. Mas fiquei louco nesse tempo. Eu não dava atenção a mais nada. Já levei seis anos em um livro, mas escrevendo-o nas horas vagas, e não foi o caso desse. Gianni Paula de Melo

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con ENSAIO ti nen te

José Lins do Rego O moleque Ricardo Fotos Ana Lira

O trem puxava, as estações se sucediam. (…). O Recife estava próximo. A cidade se aproximava dele. Teve até medo. Falavam no engenho do Recife como de uma Babel. “Tem mais de duas léguas de rua”. “Você numa semana não corre.” E bondes elétricos, sobrados de não sei quantos andares. E gente na rua que só formiga. O dia todo é como se fosse festa.

Tudo isso agora estava perto dele (…). A cidade começava a mostrar os primeiros sinais. Arraial. Viu um bonde amarelo. Era o primeiro que se apresentava aos seus olhos. Não era tão grande como diziam. ENCRUZILHADA. Casa de gente pobre pela beira da linha, jaqueiras enormes, mulheres pelas portas das casas. E agora

o Recife. Tudo aquilo já era o Recife que estendia as suas pernas, que crescia, que era o mundo. O condutor chegou para ele com um embrulho: – Fique aí me esperando. Volto num instante. E Ricardo ficou só no meio daquela gente que carregava mala, que falava alto, que vinha e saía num rebuliço de festa (…).

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con ENSAIO ti nen te

Gilvan Lemos Cecília entre os leões Foto Roberta Guimarães

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Em plena Rua da Aurora. Sileno e o avô. A rua não era a mesma dos quadros de pintores saudosistas. Descaracterizada, diziam. Ou completada por prédios modernos, de muitos andares. Ali, olhe, na esquina com a Conde da Boa Vista. Nas esquinas: com a Riachuelo, a Mário Melo, a do Lima... Danou-se! Iam acabar com os velhos sobrados do Recife. Defronte, um em início de demolição. Que pena? Que pena. Sileno botara na cabeça que as joias de que o avô falava estavam escondidas num sobrado velho. Em qual? Difícil adivinhar. Quem sabe naquele? Na oportunidade, Sileno incentivava o avô, injetava-lhe lembranças. Sentado na beirada do passeio que desce em curva a Ponte da Boa Vista – oh! Vento carregado de maresia, almiscarado de lama podre, capibarizado de entulhos, deixa-o ouvir! – o velho não dava mostra de entender. O mesmo vento em seus cabelos, o casco da cabeça (Sileno ia dizendo: desdentada), as falripas brancas escasseando, ah!... Sentado na beirada do passeio etc. etc. O velho Nô (…). Se inventasse de fumar agora o vento não permitiria que acendesse seu cigarro clandestino, opositor da filha (minha mãe), cigarro clandestino. E para isso o velho estava ali. Verdade, o progresso não ia deixar um sobrado em pé. E se num daqueles já derrubados? Se num daqueles que não aqueles últimos daquele trecho desta rua? Se não daqueles da Augusta ou da de Hortas ou da Dias Cardoso ou da do Jardim ou ou ou, que não existem mais, suprimidos que foram para dar lugar à Dantas Barreto? Ó ventos ó tempo ó costumes! Mas mas mas, porém, mas porém: ainda existem muitos sobrados. Na Concórdia, Imperatriz, Nova, Duque de Caxias, Terço, Imperial, Livramento, Direita, Penha, Calçadas... E no Recife velho, quantos? continente NOV E M B R o 2 0 1 1 | 7

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con ENSAIO ti nen te

Luzilá GonçalveS Ferreira A garça malferida Fotos Eduardo Queiroga

Talvez um outro motivo daquela devassidão reinante no Recife fosse a falta de adaptação ao meio, que transparecia, entre outras coisas, nas vestimentas das pessoas – que se trajavam com roupas vindas da Holanda – e até na alimentação. Às vezes, Andresa e Adriaen eram convidados a almoçar em casa de amigos e se espantavam com seus modos de conversar costumes da Holanda, sem empreender um mínimo esforço de aculturação. Jeuriaen e Marieta haviam sido um exemplo

disso. Apesar do esforço evidente para se amoldarem aos usos culinários da terra onde pretendiam habitar definitivamente, continuavam a viver como na Holanda. Não comiam nunca a carne de bodes e carneiros do mercado, preferindo-lhes as carnes secas e salgadas que os navios traziam. Aos peixes frescos, cheirando a alga do mar, preferiam o bacalhau ressecado, o arenque defumado, o salmão rosado que os navios traziam no seu bojo. Preparavam tudo isso ao modo deles, cozidos em vinho da Espanha ou do

Reno. Peixe cozido no leite de coco, como os escravos haviam ensinado a fazer os da terra, tão bom ao paladar, nem em sonhos comeria um holandês. Marieta e Jeuriaen franziam o nariz ante o queijo de cabra da nova terra, lembrando que os do Reino e da Holanda eram infinitamente superiores. Ao coentro e à cebolinha nativos eles preferiam as alcaparras e azeitonas de além-mar. E as frutas frescas – com exceção da uvas de Itamaracá ou Olinda – eram substituídas por passas, figos secos, nozes e amêndoas.

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Josué de Castro Homens e caranguejos Foto Otávio de Souza

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Nas noites de lua cheia e maré alta, quando as águas se empinam ao máximo, atraídas pela força que a lua tem, Xico conduz sua jangada até a grande bacia que fica por trás do Palácio do Governo, onde se encontram as águas do Capibaribe e Beberibe. (…) Cadê o Beberibe? O Beberibe que desce de mais perto das colinas de Olinda? Aparecem mais afluentes

modestinhos: o Camaragibe, o Monteiro, o Tejipió, mas cadê o Beberibe? Já dentro da cidade o Capibaribe lança um braço para o lado, segue para o outro lado fazendo um cerco pro Beberibe não escapar. Alcança-o logo adiante, e aí os dois rios se entrelaçam, se confundem e afogam nas suas águas misturadas (…). No ímpeto do abraço bárbaro as águas se avolumam e, tontos da alegria do

encontro, os rios perdem os rumos, saem embriagados a cambalear pelos baixios, a se esfrangalhar pelos charcos, a se deitar pelos remansos, formando nessa boemia de suas águas as ilhas, os canais, os mangues, os pauis, onde assenta essa saborosa cidade do Recife, resumo das aventuras heroicas que os rios contaram e continuam contando ao se encontrarem numa praia do Atlântico.

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José Iremar da Silva O menino das ruas do Recife Fotos Chico Ludermir

O sol começava a aparecer através

dos telhados dos velhos prédios do Recife Antigo. O céu estava límpido. Ao longe, podiam-se contemplar pequenas

mechas de nuvens branquinhas como se fossem de algodão, em cima daquele azul celeste. Dos bares e lanchonetes já se ouvia o ranger das

pesadas portas de ferro, ao se abrirem, num cordial “bom-dia” para os fregueses do matinal cafezinho ou da saborosa “média”. Mais à frente está o monumento do Marco Zero; parecese com um pêndulo sem movimento, em contrastes com os enormes navios ancorados no cais do porto. (…) Do outro lado da rua, a calçada estava atrativa para um bando de pombos à procura de alimento. Eles disputavam cada grão encontrado ao longo da calçada, caído dos trens ou caminhões transportadores

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de produtos chegados de navios, até de outros países, ou que se encontravam estocados nos grandes armazéns da Alfândega. Nesse momento, Bô levantou-se de sua cama de papelão, abriu os braços, preguiçosamente, passou os dedos por entre os olhos, para limpar as remelas, procurou um lugar junto a parede para urinar e, em seguida, sentou-se num dos bancos da praça, a observar seus companheiros de rua. Todos dormiam sobre a calçada, encostadinhos junto à parede. Usavam camisas de meia,

esticadas até os joelhos, como se fossem lençóis, na tentativa de fugir do “friozinho” da madrugada recifense. Como num passe de mágica, a calçada deixou de ser dormitório e passou a ser transitada por pessoas que vinham dos subúrbios, cumprir mais um dia de trabalho. Eram executivos, marinheiros mercantes, garis, faxineiros, vendedores ambulantes, carroceiros, policiais, bancários e muitos outros populares. Bô atravessou a rua, acocorou-se em frente ao prédio da Bolsa de Valores. O ruído

dos motores dos veículos vindos das quatro pontes que ligam o bairro do Rio Branco aos demais bairros da cidade, fez os outros meninos despertarem de um sono profundo (…). Aos poucos, os meninos iam se levantando de suas camas de caixa de papelão, impressa com figuras ou nomes de marcas famosas de produtos nacionais e até estrangeiros – doces, leite em pó, sabão em barra, congelados, equipamentos eletrônicos e tantas outras mercadorias, muitas das quais até (quem saberia?) contrabandeadas.

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Cícero Belmar Rosselini amou a pensão de dona Bombom Foto Breno Laprovitera

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Danada de cidade que era o Recife, tudo nela se movia pelas forças místicas. Não fosse isso, Arcângela não estaria na casa de irmã Salete. Está certo que a velha cafetina era supersticiosa, crédula, mas quem haveria de negar que o Recife era tido e havido como uma cidade de mistérios? (…) Se bem que no Recife ocorriam muito mais coisas misteriosas do que um mero sopro de espírito nos ouvidos de alguém. (…) Já houve caso, ela mesma sabia, de vizinhos de um sobrado velho e desabitado, que se mudaram assustados com as vozes e gemidos de almas do outro mundo que vinham de dentro do prédio. Tanta gente já viveu e morreu no Recife, cidade secular, uma das mais antigas do Brasil, por onde passaram holandeses, portugueses, judeus, espanhóis, aos montes, e que agora eram almas penadas (…). Soldados mortos a se perder a conta em revoluções históricas. Sem falar dos religiosos falecidos em conventos e igrejas, reservatórios de angústia e morbidez, locais de freiras e padres que se finaram e não se conformaram, pois eram muitos os desejos e sentimentos frustrados nas celas dos conventos (…). Se dava para ouvir o bramido de religiosos que fizeram passagem para o outro mundo, (…) que diria do barulho que fazem os fantasmas das quengas, querendo mais chamego? (…) Outra coisa não, mas quenga o Recife teve muitas. “Ô terrinha para ter mulherdama! Já teve muita e ainda tem! Benza Deus!” continente NOV E M B R o 2 0 1 1 | 1 5

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Abel Menezes A gargalhada final Fotos Yêda Bezerra de Melo

Graça secreta certeza ensina o destino uno a todos (…) recife maurícia canais nassau ponte cais casas velhas memórias vau vaz traço carícia terra avanço ao mar ilha península enseada guia estrela vida forte cinco pontas porta da cidade sonhada, rua do jardim bailarina palmeiras largo do pirulito mágico domador gigante malandro palhaços descanso de blocos perfume adereços purpurina marafo meio-fio frevo sombrinhas de circo, logos inefável um falar em línguas amor divino afago afável sincrético convívio navega colombo

deságua caneca no pátio do terço tambores silêncio, sua bênção badia vidal de negreiros rua direita tortuosa ironia câmera lenta íntima pressinto grita-me acena diário fascínio paradiso a glória do cinema, privadas cidade cidadania ainda inexistente jeito trânsito o semáforo emblemático locus óbvio do desrespeito, países equívoco monstruoso racismo diáspora apartheid sub urbes alarga-se o fosso interclasses sério risco para a possível unicidade, espessa viscosa falida aristocracia capitais capitanias diversas todo

naipe renitente restos mastigam vorazes, cabreiro descarrilho ferido travessa do cirigado cominho coentro alho cola de sapateiro na rua das calçadas mudos cegos surdos sem brilho vagam meninos zumbis fora dos trilhos espoliados do mundo, férreo mercado de são josé vauthier oui français (…) panteras famintas sedentas lambe lambe damas manet renoir toulouse-lautrec enlevome cézanne seurat além da miséria beleza sonho profecia entre tantas única vejo-te poesia: onde estiveste mulher?

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Mário Sette Seu Candinho da Farmácia Fotos Alexandre Severo

Quieto e vazio o pátio de São Pedro. Meia-luz de lampiões embaciados e distantes. Um ar de recanto de uma outra época, de uma outra gente. Silêncio de abandono, de sobrenatural naquelas casinhas térreas aconchegadas como aves que vêm

dormir num só poleiro; naqueles sobrados esguios, lembrando sombras de coisas mortas; na igreja, presidindo o largo, numa silhueta que mal deixava divisar a beleza da fachada, nos dois becos laterais que se alongavam numa melancolia de trechos desertos...

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Célia Labanca Aminta Fotos Leo Caldas

Na época de Carnaval,

amedrontavam-nas os caboclinhos, que, sendo lindos manifestantes da resistência cultural do Estado, ao chegarem àquela rua, em seus típicos trajes de índios, correndo com passos firmes de ir e vir, para frente e para trás, sempre em filas indianas, frenéticos e fortes, marcadas pelos tacapes que portavam e com seus enormes cocares, quase as levavam à morte. Por aflição. (…)

(…) nenhuma delas tinha medo, no entanto, quando também aos domingos de todos os carnavais, à tardinha, por lá passava o Maracatu de Dona Santa cumprindo seu itinerário. Maracatu-rei, referência para todas as nações. Dona Santa era uma negra simpática e enorme de gorda. Segurava a boneca do maracatu que tinha uma saia longa, ricamente bordada com fitas coloridas, enfeitada de babados e bicos de organdi e bordado inglês,

que lhe encobria a mão esquerda. (…). Na saia da boneca, (…) apreciadores, com um alfinete, pregavam notas de dinheiro (…). Ainda, nos bolsos de Dona Santa, as moedas (…). Isso mostrava o prestígio e o respeito que todos tinham por aquela importante agremiação, que reproduzia a corte da qual se originaram na África todos que vieram a formar a afro-brasilidade (…). Recebiam, como os outros, dinheiro e cachaça. O grupo evoluía com sua rica coreografia (…).

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Douglas Tabosa de Almeida Saudade do futuro Fotos Priscila Bhur

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(…) O mar batia compulsivamente nos arrecifes. Meu coração não batia. A velocidade do pensamento era tal que eu não conseguia estruturar nada. Impalpáveis e espasmódicos, não me deixavam sentir o sal, a areia, o sol, os coqueiros. Sentada a poucos metros de mim, uma atraente garota. Brevíssimas comunhões de olhares passaram a nos inquietar. (…). Aos poucos, como que se metendo entre os seus olhos e o nosso silêncio, o sol fez-se leitoso,

depois, de chumbo, o chumbo depois fundiu-se e liquefez-se. Antes que a multidão tivesse a mesma ideia, fomos juntos para uma barraca de coco. Ali, já sorvendo aqueles familiares e estranhos frutos, percebemos melhor a delícia sensual do nosso silêncio agora ofegante. Da última fenda de nuvens o sol dourava os finíssimos pelos de seus braços e coxas. Desanimei pensando que para possuí-la teria de cumprir um longo ritual ignorado. Desviei o olhar para não sofrer. Com o

dedo soltei meticulosamente a carne do coco e senti que a água já ia pela metade. Misturei em seguidas as duas matérias do mesmo espírito. Deglutias, sentindo com enorme prazer o escorregar pela garganta da untuosa ambrosia. A chuva recrudesceu. A natureza conspirava a nosso favor. Num movimento quase instintivo ela agasalhou-se em mim e, olhando-me com um sorriso de proprietária, traçou delicadamente a aura do meu sexo por cima do calção. (...)

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Amílcar Dória Matos A trama da inocência Fotos Sérgio Bernardo

Naquela noite cinzenta e que se prenunciava chuvosa, meu carro estava estacionado em um dos caminhos que separam os três cantos da praça, pertinho de dois outros automóveis, em cujo interior casais se ocupavam de afagos e carícias, ostensivos ou facilmente imagináveis. A alguns metros dali, numa das ruas que margeiam a praça,

observei estacionado um carro da radiopatrulha, com dois ocupantes devidamente fardados, um dos quais encostado no veículo. O outro, que permanecia sentado no interior da viatura, certamente estava à espreita de algum chamado pelo rádio. “Curioso – pensei –, até parece que os guardas estão ali a proteger os casais que se acariciam, tanto nos

automóveis quanto nos jardins, sob o abrigo das árvores ou sentados em bancos.” E achei justo que assim fosse. Eu também tivera meu tempo. Já decorridos tantos anos (…). Ajunte-se: e já então, com irreprimido temor de que algum assaltante nos surpreendesse, arma em punho, a exigir-nos pertences e outras coisas ainda mais valiosas.

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Fernando Monteiro A cabeรงa no fundo do entulho Foto Ana Farache

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Camilo Cela já era Camilo Cela quando esteve no Recife (em maio de 1982), mas somente uma notícia, não muito destacada, apareceu num canto de página do Diario de Pernambuco, anunciando a vinda do futuro Prêmio Nobel de Literatura: ESCRITOR ESPANHOL FALA A ESTUDANTES DA UFPE TERÇA-FEIRA

“O escritor espanhol José Camilo Cela, apontado como um dos mais fortes candidatos ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982, e integrante da delegação La Coruña/Recife, falará na Faculdade de Direito da UFPE, nesta terçafeira, às 20h30, sobre o tema ‘O Escritor diante da Sociedade’.

Camilo Cela, que estava em Brasília, chega hoje ao Recife, incorporando-se aos oitenta espanhóis que cumprem vasto programa cultural e de aproximação com as entidades representativas do povo pernambucano. No Aeroporto dos Guararapes, ele será recebido pelos amigos de La Curoña e ficará hospedado certamente no Grande Hotel, onde se encontrará toda a delegação.” NB: Esse detalhe do hotel é de um sabor provinciano quase cômico, percebe-se também que o repórter nunca ouviu falar do escritor que, de fato, ficou hospedado no velho hotel do Cais de Santa Rita, hoje transformado num Fórum da Justiça, que já deixou de ser fórum. Impressionantes essas mudanças de fisionomia! – no velho Cais do Abacaxi, conforme era chamado: creio que tais mudanças, sucessivas, aceleram a estranheza, móvel, da vida sob o sol do trópico, diria Gilberto Freyre (cito por hábito pernambucano de citar Gilberto Freyre, a propósito de tudo e de nada). A notícia prossegue: “Um dos livros mais conhecidos de Camilo Cela é A família de Pascoal Duarte, seu primeiro romance traduzido em diversas línguas e que, segundo a crítica, ‘abriu uma nova etapa na narrativa espanhola contemporânea’. Camilo Cela completará 66 anos no Recife, cidade que certamente tem uma simpática referência na sua bibliografia, pois um seu avô morou aqui muito tempo como imigrante, segundo informação do professor Vamireh Chacon.” Apesar dessa notícia (que Vamireh foi levar pessoalmente), ninguém se iluda que o Recife amanhecesse consciente da chegada do escritor, vindo na trapalhada de um comitê de “viagens culturais” recreativas sobre o qual o próprio Camilo se expressaria com humor, sumido em Casa Amarela... Mas Cela ainda está para desembarcar – e a notícia dessa chegada não é lida com mais interesse do que (na página seguinte): MARCEL PROUST NO RECIFE

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Gastão de Holanda O burro de ouro Fotos Ricardo Moura

O barco surgiu no Lamarão com a mesma sutileza da madrugada. O convés estava quase deserto e um moço debruçado no corrimão da sua nau contemplava a linha dos armazéns. Deucalião regressava ao Recife, ao velho Pernambuco invadido pela maresia (…). Da sua pequena fortaleza espia a cidade que se revela através de torres silenciosas, de chaminés ainda sem fumaça. O mar está calmo, o porto ungido pela silenciosa madrugada e a cidade, vista assim ao longe, parece uma cidade

abandonada. Os guindastes desenhamse imóveis contra o céu. Deucalião correra a vista pela paisagem, caçando um ponto de referência familiar bastante para que tenha a certeza de que está de volta. Sua partida, há seis anos atrás, quando era apenas um adolescente de dezesseis, fora praticamente uma fuga. Assim que entrara no cargueiro, cujo comandante assentara de transportálo de moço de bordo em direção ao garimpo do norte, refugiara-se no pequeno e imundo alojamento dos foguistas como se temesse olhar para

trás e arrepender-se (…). A noite era daquelas noites quentes do trópico, noite profunda e martirizante, sobre a qual o brilho das estrelas é apenas uma ironia (…). Mas Deucalião agora queria era começar uma história (…). Mais tarde resolveu chegar à sua cidade natal com dinheiro que desse para ser proprietário e descansar o resto da vida. Prudência demasiada para um jovem. Perdeu tudo, azoado com a fortuna. Observando a cidade que se ilumina ao estio, Deucalião pousa o olhar sobre ela, contempla-a com certa tristeza e compara-a aos acampamentos da floresta, tendo a impressão de que vai entrar em contato com um mundo ingênuo como o da sua infância desprovida (…). Fixando um campanário de igreja, tem um sorriso para aquela imagem benta e os seus olhos miúdos apertam como se estivessem a esquadrinhar uma proposição duvidosa.

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Clarice Lispector Onde estivestes de noite Foto Flora Pimentel

Por que não tentar, neste

momento, que não é grave, olhar pela janela? Esta é a ponte. Este o rio. Eis a penitenciária. Eis o relógio. E Recife. Eis o canal. Onde está a pedra que sinto? A pedra que esmagou a cidade. Na forma palpável das coisas. Pois esta é uma cidade realizada. Seu último terremoto se perde em datas. Estendo a mão e sem tristeza contorno de longe a pedra. Alguma coisa ainda escapa da rosa dos ventos. Alguma coisa se endureceu na seta de aço que indica o rumo de – outra cidade.

Este momento não é grave. Aproveito e olho pela janela. Eis uma capa. Apalpo tuas escadas, as que subi em Recife. Depois a pilastra curta. Estou vendo tudo extraordinariamente bem. Nada me foge. A cidade traçada. Com sua engenhosidade. Pedreiros, carpinteiros, engenheiros, santeiros, artesãos – estes contaram com a morte. Estou vendo cada vez mais claro: esta é a casa, a minha, a ponte, o rio, a penitenciária, os blocos quadrados de edifícios, a escadaria deserta de mim, a pedra.

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Raphael Douglas A MORTE É O VIGOR DA VIDA

Raphael Douglas

é mestre em Filosofia pela UFPE divulgação

Joan Reventós, brilhante poeta catalão, deixou-nos dito que, desde o nascimento, o homem já tem idade de sobra para morrer. De todas as experiências essencialmente humanas, a finitude é a de mais difícil lavor. Experiência é um termo usado para descrever os alfinetes que a vida nos enfia sem nenhuma técnica de acupuntura. É por medo de sofrer que boa parte dos indivíduos afirma temer a morte. Paradoxalmente, o homem é o único ser capaz de antecipar a própria morte e, ainda assim, evita o assunto tanto quanto possível. Mas não é somente o vivente que pode sofrer? O sentir não diz respeito apenas ao que ainda demonstra traços vitais? Morrer é justamente o contrário do sentir. A indiscutível angústia da possibilidade do nada nos faz assumir um anestesiante e inautêntico senso de eternidade. Morte certa, hora incerta. A morte é realmente um enigma? Todas as razões estão ao seu lado, certeiras, exatas e inevitáveis. Quem monopoliza e constrói o sem sentido é a vida: essa é a verdadeira desconhecida. A morte não tem resposta. Já se encontra “respondida” e o homem, tal qual uma criança no escuro, continua tateando uma réplica impossível. A morte é a regra da qual a vida é a exceção. Todavia, a regra só possui existência dado que a exceção está lá, perturbando a impenetrável obscuridade. Pode-se pensar na morte e na vida como duas atrizes que apresentam monólogos. A vida começa seu espetáculo e o encerra. Quando a morte irá começar sua parte, as cortinas já estão se fechando. A morte não é uma possibilidade pouco iluminável por parte do sujeito: é justamente a região em que nenhuma luz pode ser acesa. Se nos é possível detectar na morte alguma essência, essa é a não resposta. A vida que carrega em si a fragrância da finitude. Esse aroma está impregnado nos desenhos animados, na música, nos jogos de video game, nos antigos amores, no crescimento das crianças e no ganho de alguns quilos. A ideia de infinito é tentadora, mas não consola realmente. Para alguns, enxergar a finitude dos eventos, enquanto eles ainda acontecem, desvirtua a fruição do momento. Ao contrário, pode-se viver mais intensamente um evento, quando se cultiva a difícil lucidez da transitoriedade. Desse modo, existenciar acontecimentos com plenitude consiste em não se deixar iludir por nenhuma ideia de eternidade, ainda que a inautêntica fantasia do para sempre agrade universalmente. A eternidade não é uma instância de tempo, é um sentimento. Enquanto há o sentimento de eternidade, nada termina realmente. É o fim que faz o agora ter consistência. O homem não se trata apenas de um ser biológico. Estamos falando de um animal biográfico.

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