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O Governo de Pernambuco apresenta # 132
Um espetáculo do artista Valério Festi.
#132 ano XI • dez/11 • R$ 10,50
CONTINENTE
Magia e beleza no Natal de Gravatá.
Gravatá vai ser palco de um espetáculo de Natal único. Criado e produzido pelo Studio Festi - uma referência no mercado internacional de arte e entretenimento - especialmente para o nosso Natal, sua montagem conta a história do pastoril, unindo tradição, música, dança, luzes e efeitos especiais.
Dias
SOB A LUZ DO
16, 17, 18, 22, 23, 24 e 25/DEZ 19 horas • Pátio de Eventos Chucre Mussa Zarzar.
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VITRAL
E MAIS VIVIAN MAIER, A BABÁ FOTÓGRAFA | JARDS MACALÉ | VIAGEM A KIEV | FIGURINO DE PALCO | NINO ROTA E A MÚSICA NO CINEMA | KARINA BUHR 01/12/2011 08:43:28
LEO CALDAS
DEZEMBRO 2011
aos leitores Esta edição da Continente encerra o ano de comemoração dos 10 anos da revista. Um feito celebrado ao longo dos meses e iniciado com a edição especial publicada em janeiro. Trabalhamos com afinco, neste 2011, para atingir as expectativas dos nossos leitores e inaugurar uma nova década bem-sucedida da publicação. Neste ano, tivemos a chance de realizar uma pesquisa qualitativa com ex-assinantes, assinantes, leitores e pessoas que não conheciam a revista. O resultado foi bastante positivo, pois pudemos ter clareza sobre de que forma temos acertado e, também, nos conscientizamos da recepção de nossas escolhas. O que a pesquisa apontou é que, a despeito de problemas pontuais, nosso público nos tem em alta conta. Não poderíamos ter recebido melhor presente. Neste dezembro, mês associado desde sempre à Luz, lançamos uma proposta à repórter Danielle Romani: produzir um especial sobre a arte dos vitrais, técnica que usualmente nos remete ao ambiente sacro das igrejas e catedrais. Além de traçar um breve histórico, a reportagem traz informações sobre a escola que se instaurou
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no Recife, no início do século 20, a partir da chegada do alemão Heinrich Moser. A cada página, nas belas imagens produzidas por Leo Caldas, o leitor constatará que a capital pernambucana é umas das cidades brasileiras onde há grande acervo de vitrais, tanto em órgãos públicos, quanto em locais privados. A atração pela beleza desses ornamentos é tamanha, que, antes das sessões do Cinema São Luiz, no Recife, o público costuma fotografar os vitrais que adornam a sala, feitos por Aurora de Lima, única discípula viva de Moser. Nessa reportagem, há ainda um perfil de Marianne Peretti, artista que deu feição moderna à arte vitral, cuja obra mais emblemática está na Catedral de Brasília, projeto de Niemeyer. Porém, merece destaque um fato: excetuando-se a obra de Peretti, hoje, a produção de vitrais é praticamente inexistente no Brasil. Há poucos interessados em aprender a técnica e um número reduzido de artistas aptos a ensiná-la. Esperamos que o material publicado chame a atenção para a situação. No mais, uma boa leitura e um ótimo 2012 para todos!
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sumário Portfólio
Vivian Maier 06
cartas
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expediente + colaboradores
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entrevista
12
20
José Luiz Passos Diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade da Califórnia defende iniciativas para promover internacionalmente autores nacionais
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Balaio
Bob Dylan e Andy Warhol O cantor trocou uma serigrafia que lhe foi dada pelo artista por um sofá
36
Peleja
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Perfil
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Leitura
Preservação O restauro compromete a originalidade de uma obra artística?
Photo poche Coleção de livros de bolso reúne seleções de imagens de nomes clássicos da fotografia
74
Matéria corrida
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Sonoras
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Palco
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Artigo
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Saída
conexão
Avalovara O site Uma rede no ar sugere roteiros de leitura da obra-prima de Osman Lins
Visuais
Cem mil negativos, encontrados num armário velho, descortinam o talento de uma exímia fotógrafa de rua, cuja obra agora está disponível em site, livro e filme
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José cláudio Meio mote
XIV Virtuosi Festival apresenta obras nunca antes executadas no Recife Dança Novos verbetes surgem neste campo, para definir atividades inéditas
eduardo cesar Maia Um cinema sem respostas Leonardo Salazar Venda a sua música, não a sua alma
Jards Macalé Compositor carioca é tema de dois documentários Pequenas narrativas Joca Souza Leão apresenta histórias engraçadas com personalidades do século passado
História Vestuário
O figurino assumiu, a partir do século 20, função de destaque na música popular, sendo o primeiro aspecto de identidade do público com seus futuros ídolos
48 Capa foto Leo Caldas
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especial
Viagem
O elemento arquitetônico, associado às catedrais, tem, em algumas cidades brasileiras, importantes acervos, tanto de estilo tradicional quanto moderno
A história e suas contradições, assim como os ícones do regime socialista que ruiu e o avanço do capitalismo, são alguns dos atrativos da capital da Ucrânia
cardápio
claquete
“Comida de boêmio” poderia ser uma boa definição para os pequenos acepipes que integram os menus de bares brasileiros e que são inspirados na culinária espanhola
Centenário do compositor italiano Nino Rota, parceiro de Fellini, lembra a importância que a música assume na narrativa cinematográfica
Vitral
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Tapas
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Kiev
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Dez’ 11
Trilha sonora
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cartas TAP
Romancistas
O título dado, por vocês, à matéria que escrevi para a seção História, da edição de novembro deste ano, “TAP – Um conservador revolucionário”, além de impreciso (“Um” o quê, exatamente?), parece reforçar, em conflito com o raciocínio exposto no texto, o entendimento de que o grupo teatral criado por Valdemar de Oliveira é, antes de tudo, “conservador” ainda que paradoxalmente “revolucionário”. Tal visão, forjada pelo senso comum, recorrente em conversas informais de pessoas leigas ou quase leigas no assunto, não pode ser ratificada por uma revista como a Continente, espaço privilegiado para o pensamento e para a cultura de nosso estado.
Como jornalista (e não apenas como escritor), parabenizo vocês todos que editaram a matéria inspirada em meu livro O Recife dos romancistas. O texto e as fotos superaram muito minha expectativa.
LUÍS AUGUSTO REIS RECIFE – PE
Resposta da Redação Discordamos de que o título ratifique o senso comum e achamos que está em consonância com a matéria.
AbdIAS MOURA RECIFE – PE
Circo Parabenizamos a Continente pela bela matéria sobre os mestres circenses Alakazam (foto) e Índia Morena. De parabéns, também, Leidson Ferraz, que soube tão bem sintetizar a vida desses dois patrimônios vivos. É gratificante para o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated-PE) ver o mérito dos artistas circenses serem valorizados por uma revista desse nível, servindo de incentivo para os profissionais da arte circense. Desde já, agradecemos. IVONETE MELO RECIFE – PE
Facebook Paulo Carvalho, Recife-PE O documentário Geração 65, distribuído gratuitamente com a revista, é simplesmente fantástico. Escrito e produzido por Luci Alcântara, revive “aquela coisa toda” de forma emocionante e verdadeira. Quem ainda não tem, faça o favor de adquirir. É imperdível! Synara Veras Araújo, Recife–PE Eba! A minha revista Continente chegou mais “gordinha” e, ainda por cima, com presente: Geração 65, aquela coisa toda. Com Carrero!! :D
VOCê FAz A continente COM A GENTE o nosso objetivo é realizar uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone
(81) 3183 2780
Fax
(81) 3183 2783
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Cristhiano Aguiar, São Paulo–SP Acabo de receber a bonita edição de novembro da Continente.
SERRE
Site
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FestiVaL de HUMoR inteRatiVo
Em concurso, a continente premia a criatividade O Festival de Humor Interativo da Continente tem sua última edição neste mês de dezembro. Nas últimas edições, a revista tem publicado, na seção Cartas, um cartum para ser completado com uma frase, fala ou diálogo que o torne engraçado. O autor do texto para o desenho ao lado, eleito o melhor por meio do voto dos internautas e por uma comissão da redação da Continente, recebe R$ 350 e uma assinatura da revista. Você pode participar do concurso e conferir a legenda vencedora da edição anterior, no EStE é o cartum Do mêS. fAçA umA LEgEnDA BEm-humoRADA E ConCoRRA!
endereço www.revistacontinente.com.br.
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colaboradores
andré carrilho
daniel buarque
eduardo cesar Maia
thiago soares
Designer, ilustrador, cartunista e caricaturista, com trabalhos em publicações internacionais.
Jornalista e autor do livro Por um fio – o mundo explicado pelo telefone.
Jornalista, mestre em Filosofia e doutorando em Letras pela UFPE.
Jornalista, professor universitário e doutor em Comunicação pela UFBA.
e Mais carlos eduardo amaral, mestre em Comunicação e crítico de música erudita.
chico Ludermir, fotógrafo. christianne Galdino,
jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural. eduardo sena, jornalista. Fernando Monteiro, escritor, poeta e cineasta. José teles, jornalista, crítico de música e escritor. Leonardo salazar, jornalista, produtor e autor do livro Música Ltda: o negócio da música para empreendedores. otávio Maia, jornalista e especialista em restauração. Roberto carneiro da silva, técnico em preservação e restauro.
GoVeRno do estado de peRnaMbUco
SUPERINTENdENTE dE EdIÇÃO
CONTINENTE ONLINE
ATENdIMENTO AO ASSINANTE
GOVERNAdOR
Adriana Dória Matos
Diogo Guedes (jornalista)
0800 081 1201
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Gabriela Alcântara, Gianni Paula de Melo,
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Eliseu Souza
Bráulio Mendonça Menezes
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CONSELHO EdITORIAL:
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REdAÇÃO, AdMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
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HILTON LACERDA
“O público quer se sentir inteligente”
Roteirista prepara-se para sua estreia solo na direção de um longa ficcional, Tatuagem, e aponta como falha recorrente no cinema brasileiro a tentativa de explicar demais uma trama texto Gabriela Alcântara
con ti nen te
Entrevista
Autor de alguns dos roteiros mais comentados do cinema brasileiro, Hilton Lacerda começou a rodar Tatuagem no final de outubro. Nascido no Recife, Lacerda mora em São Paulo, e agora volta à cidade para filmar uma história que faz referência ao grupo teatral Vivencial Diversiones, que atuou em Pernambuco em meados de 1970. O filme se passa em 1978 e discute variados temas, a partir do encontro entre dois núcleos, sendo o primeiro a trupe de teatro Chão de Estrelas, liderada por Clécio (Irandhir Santos) e, o segundo, relacionado a um militar do interior, Soldado Araújo (Jesuíta Barbosa), também conhecido como Fininha. O longa conta, ainda, com trilha sonora de DJ Dolores, trazendo músicas que serão cantadas pelo elenco. Esse é o primeiro filme de ficção em que Hilton Lacerda assina roteiro e direção, já com a experiência de diretor em curtas e vídeos educacionais, além da codireção do documentário Cartola – Música para os olhos (2007), com Lírio Ferreira. Como roteirista, escreveu os textos
de Baile perfumado (1997), Árido movie (2005), Baixio das bestas (2006) e, mais recentemente, Capitães da areia (2011), todos com um toque melodramático que o próprio Lacerda diz ser característico de suas obras. Inquieto e crítico, é um realizador que traz em seus filmes um olhar reflexivo de mundo, seja político ou sentimental. Com influências que vão do palatável Billy Wilder ao inquieto Glauber Rocha e ao detalhista Carlos Reichenbach, o roteirista fez parte do grupo que deu novo impulso ao cinema pernambucano e brasileiro nos anos 1990, chamando a atenção tanto pela estética quanto pela ousadia ao abordar temas tabus. continente Por que, em Tatuagem, você tomou a iniciativa de dirigir? HiLton LAceRDA Esse projeto de dirigir um longa já é antigo. Então, direção, para mim, sempre esteve um pouco na cabeça, até pela forma de escrever. Sou meio ridículo, fico indicando movimentos. Às vezes me perguntam: mas se faz isso? Sei lá! Eu sei que faço e dá certo! (Risos.)
continente Como foi o processo que o levou a esse filme? HiLton LAceRDA Ele veio de três coisas bem distintas. Começou em uma conversa, que eu tive com o João Silvério Trevisan, sobre Tulio Carella, escritor argentino, que tem um livro chamado Orgias. E o início era meio isso, fazer a adaptação de Carella. Trevisan colocava algumas questões e, um dia, ele disse: “Por que você não faz um filme sobre o Vivencial?”. E veio a ideia de fazer o Chão de Estrelas, o Tatuagem. continente Essa é a primeira vez que você dirige um longa de ficção. Como está sendo essa experiência? HiLton LAceRDA Acho que a ansiedade ou a inquietude de se fazer uma coisa, independentemente de ter experiência, e estar bemamparado pela equipe ou não, terminam sendo as mesmas. O que muda mais, principalmente com relação a escrever o roteiro, é que talvez fique angustiante, porque agora sou responsável, não tem mais a possibilidade de botar a culpa
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maurício shirakawa/editora objetiva/alfaguara/divulgação
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JoSÉ LUiZ PASSoS O que o Brasil poderia fazer é o que a Espanha e Portugal fazem: colocar em instituiçõeschave mais atenção sobre o país. Bolsas, leitores, tradutores. Tanto a França quanto a Alemanha estimulam bolsas de pesquisas para estrangeiros, para o estudo da língua e da cultura. Eles têm prêmios de tradução. Por que livros fundamentais como Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, não estão traduzidos para o inglês? O governo brasileiro deveria definir que o livro é fundamental para entender o Brasil,
divulgação
continente Como pesquisador de literatura brasileira, como observa o fato de Paulo Coelho ser o escritor brasileiro mais conhecido nos EUA? JoSÉ LUiZ PASSoS Paulo Coelho é lido em ônibus e metrô, mas ele não é visto como literatura brasileira. Muitos dos seus leitores, aqui, nos Estados Unidos, nem sabem que ele é brasileiro. É preciso questionar o que é literatura brasileira e o que é literatura mundial. Paulo Coelho, naturalmente, aspira a uma inserção no mercado para a qual a denominação de origem, a representação da cultura de origem, não é uma questão. As pessoas
con ti nen te
Entrevista que leem Paulo Coelho não querem consumir o Brasil, mas consumir romance de iniciação, de autoajuda, new age, autoconhecimento, que pertence a uma cultura global, desterritorializada. Os seus romances viajam bem, são escritos com a intenção de circularem muito. É uma decisão autoral e de mercado que deve ser respeitada, mas as pessoas que o leem não querem ver o Brasil. É o oposto do que motiva alguém a ler Grande sertão: veredas. Neste, o nível de especificidade é tamanho, é preciso enfrentar o muro de uma linguagem recriada, e com a particularidade daquelas situações. Dito isso, existe, sim, uma mensagem universal, humana em Grande sertão: veredas, mas ela não viaja bem nas traduções, não é visível fora do idioma original. continente Falta o governo fazer uma divulgação maior da literatura brasileira no exterior?
e oferecer uma bolsa de tradução. Deveriam ser promovidas a tradução e a publicação dos livros brasileiros em outros países. O Brasil ainda depende de interesse externo, de entidades como a UCLA estudarem e promoverem o Brasil. Isso tem melhorado, mas ainda é pouco. continente Mas isso é secundário, se pensarmos que o Brasil tem tido dificuldades para resolver os problemas da educação dentro do próprio país, não? JoSÉ LUiZ PASSoS No começo, eu pensava que isso era, em parte, por questão de o Brasil ter problemas internos de educação. Ao longo dos anos, entretanto, me dei conta de que o que o Brasil investe em outras áreas deixa claro que não seria impossível. Editar um livro é barato, pagar uma bolsa de tradução é mínimo. Pagar para ter um leitor de português nas universidades daqui é gasto pequeno. O problema é a falta de prioridade política.
continente Como a UCLA pode avançar na pesquisa de literatura brasileira? Que diferencial pode ter sobre universidades brasileiras? JoSÉ LUiZ PASSoS A missão do Centro de Estudos Brasileiros da UCLA é tornar visível a presença do Brasil e da pesquisa que a instituição realiza relacionada ao país. Aqui, na biblioteca, temos livros raros, primeiras edições, séries completas de revistas e periódicos do século 19 que nem a Biblioteca Nacional no Brasil possui. Isso porque, há 60 ou
“Paulo coelho é lido em ônibus e metrô, mas ele não é visto como literatura brasileira. As pessoas que leem Paulo coelho não querem consumir o Brasil, mas consumir romance de autoajuda, que pertence a uma cultura desterritorializada” 80 anos, a universidade dedica parte do orçamento da sua biblioteca para comprar material brasileiro. Temos manuscritos originais, aquarelas de viajantes estrangeiros, fotografias, um capital cultural adquirido no longo prazo que faz diferença na hora em que se vai estudar o Brasil. continente A criação do Centro de Estudos Brasileiros na UCLA pode ser vista como exemplo de aumento do interesse dos americanos no Brasil? JoSÉ LUiZ PASSoS Historicamente, a presença do Brasil dentro da academia americana se fortalece a partir da década de 1960, por conta da Guerra Fria, do interesse estratégico de cultivar a aliança, de fazer política de boa vizinhança. É curioso, pois se, na primeira metade do século 20, a presença das literaturas e da cultura europeia e ibérica era mais forte no contexto de
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estrangeiras do que o brasileiro médio. O americano médio viaja mais que o brasileiro médio. As universidades americanas incentivam projetos de intercâmbio que levam estudantes a outros países. Nos meus cursos, tenho alunos que são falantes nativos de espanhol, filhos de imigrantes, que gostariam de acrescentar o português como terceira língua. Fora isso, há os filhos de imigrantes brasileiros que conseguem entrar na universidade. Em terceiro lugar, há o americano sem nenhum contato familiar ou linguístico
vawis
departamentos de espanhol e português, na segunda metade do século 20, a coisa muda e a América Latina passa a ter preponderância em comparação com a Espanha; e o Brasil recebe mais atenção que Portugal. Há uma trajetória ascendente. E, mais recentemente, nos anos Lula, a presença do Brasil e da cultura nacional na mídia mundial cresceu. Hoje, vemos o consumo da cultura brasileira em escala global. Músicos, como Gilberto Gil, tocam nas rádios, fazem shows e ganham prêmios nos Estados Unidos e na Europa. Cidades
quererem se encontrar e se verem representadas. Numa cultura global, a curiosidade pelo alcance que seu ponto de origem tem é mais do que compreensível. Quando se lê uma notícia num jornal estrangeiro sobre sua cidade natal, há uma euforia de estar em outro lugar, sendo visto, reconhecido, isso amplia o sentimento de comunidade. continente Uma pesquisa sobre a imagem do Brasil nos Estados Unidos mostrou que os americanos o veem como
“Historicamente, a presença do Brasil dentro da academia americana se fortalece a partir da década de 1960, por conta da Guerra Fria, do interesse estratégico de cultivar a aliança, de fazer política de boa vizinhança” americanas passam a ter academias de capoeira. Com isso, há naturalmente uma demanda maior por parte dos estudantes por cursos e diplomas relacionados a estudos brasileiros e latino-americanos, de modo geral. Isso faz com que os departamentos fortaleçam essas áreas, e coisas como o Centro Brasileiro possam ser criadas. continente Quem é o aluno que estuda o Brasil na academia americana? Quando começa o curso, ele sabe algo sobre o país? JoSÉ LUiZ PASSoS Varia muito. Em geral, nosso aluno médio, que busca o Brasil na UCLA, tem experiência bicultural, sendo descendente de imigrantes ou tendo viajado. Tem curiosidade sobre o Brasil. Pensa-se que o americano médio é inculto, não fala mais de uma língua. Isso não é verdade. O universitário americano médio tem mais acesso a uma cultura global e à educação de línguas
com o Brasil, mas justamente porque o país figura na mídia internacional e pela cultura brasileira ter sido mais vendida do que antes, nesse panorama de consumo, desenvolve interesse ativo e procura cursos nessa área. continente O brasileiro costuma se interessar muito pelo que se fala sobre ele e o país, no exterior. Como vê isso no seu trabalho? JoSÉ LUiZ PASSoS É curioso como o interesse do Brasil pelo que os outros pensam dele é antigo, vem de longe. Se fôssemos usar um chavão acadêmico, bastaria dizer que é parte da síndrome do colonizado, de que quando o brasileiro se vê representado, isso valida e reproduz a sua posição. Quando o brasileiro quer consumir o que o New York Times diz sobre ele, coloca-se na posição de objeto do outro e reverencia esses gestos. Isso tem a ver também com o fato de que é uma curiosidade natural de comunidades
um país decorativo, mas não sério. Acha que isso faz sentido? JoSÉ LUiZ PASSoS Economicamente, o Brasil vem recebendo atenção por ter sido um dos últimos a entrar e dos primeiros a sair da crise. Tenho a impressão de que há comunidades, grupos e setores em que essa maior consciência do Brasil tem formas múltiplas. Se, para o americano médio, o Brasil é esse país decorativo e não útil, quem é esse americano? Entre músicos, por exemplo, o país tem um cacife mais alto. Hoje em dia, para a cultura brasileira e para instituições e agentes nacionais, existe a possibilidade de uma carreira global em que seu produto é o Brasil. Mal ou bem, a alta cultura letrada americana presta atenção nos temas brasileiros. Autores locais continuam sendo minimamente traduzidos e consumidos por essa elite. O Brasil, como carreira transnacional na elite letrada, existe e está cada vez maior.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
con ti nEn tE
A beLezA doS vitRAiS
JARdS MAcALé
Com origem no Oriente, há mais de mil anos, os vitrais se tornaram parte da cultura ocidental durante a Idade Média. Indo atrás da tradição desse que é um dos mais luminosos elementos decorativos da arquitetura, a repórter Danielle Romani realizou pesquisas e entrevistas para encontrar os principais vitrais do Recife e observar como têm sido conservados. No site, a Continente destaca as fotografias de Leo Caldas de importantes locais da cidade, como o Instituto Ricardo Brennand, o prédio da Chesf, o Museu do Estado e o Cinema São Luiz.
Ouça no nosso site o músico carioca contar, de forma descontraída, algumas das histórias presentes no perfil deste mês.
Conexão
FigURino Assista a alguns vídeos de artistas e bandas famosos por suas roupas originais, como David Bowie (foto), Madonna e Elvis Presley.
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
AndAnçAS viRtUAiS
inStRUMentAL
LiteRAtURA
CROWDFUNDING
MÚSicA
Com vídeos, site apresenta ao público a estética visual do postrock
O Small demons mostra as conexões dos livros com a cultura e a história
Buscando o financiamento coletivo, site dá visibilidade a projetos de design
drinkfy transforma o som de um artista numa bebida alcoólica
http://wearepostrock.com/
smalldemons.com
ideacious.com
drinkify.org
Sabendo que a frase We are postrock significa “Nós somos postrock”, já é possível se ter uma ideia do conteúdo do site. Criada por Joseph Ghaleb e Daniel Faria, a página se propõe a apresentar a “natureza musical cinemática” do gênero, ou seja, pretende mostrar, através de vídeos de shows, como os instrumentos dialogam no rock instrumental e como essas imagens podem ser provocativas. Com um visual cuidadoso, o site auxilia os não iniciados com sugestões de bandas menos conhecidas e também traz alguns gigantes do postrock, como Explosions in the Sky e Godspeed You! Black Emperor.
Quem nunca quis se lembrar de todas as cidades, filmes ou artistas citados em seu livro preferido? Mistura de site de serviço e rede social, o Small Demons ajuda os usuários a saber como cada obra de literatura se conecta com elementos da realidade, listando as personalidades históricas citadas em um romance ou mesmo a bebida preferida de um personagem. A ideia é brincar com o apego do leitor aos detalhes, que muitas vezes podem passar despercebidos em leituras rápidas. A página ainda está em fase de testes, mas os interessados já podem solicitar convites.
Em geral, ao ir às compras, o consumidor busca produtos já prontos para o uso. Essa lógica, no entanto, vem sendo invertida com a popularização do crowdfunding (financiamento coletivo), que transforma o comprador também num mini-investidor. O Ideacious dedica-se a dar visibilidade a bons projetos e produtos de designers, permitindo que qualquer um os financie. Pretende-se, com isso, beneficiar tanto produtores como consumidores: os primeiros não precisam se arriscar em algo que pode não vender bem; e os últimos podem incentivar a criação de objetos mais próximos do seu gosto pessoal.
Você pode nunca ter pensado nisso, mas, para o Drinkfy, existe uma bebida perfeita para se ouvir cada um dos artistas existentes. Segundo o site, Ramones pede tequila com sal, Madonna cai bem com vodka e João Gilberto é fruído completamente, quando acompanhado de uma cerveja gelada da marca Corona. A página é bastante simples, mas não é difícil se pegar viciado em descobrir – e, muitas vezes, discordar dessa escolha – o que se deve tomar para acompanhar a audição de determinado músico. O acervo de nomes brasileiros é bom, incluindo alguns artistas mais novos, como Emicida, Karina Buhr e Siba.
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IMAGENS: REPRODuçãO
blogs FotogRAFiA belsantana.zip.net
No seu blog Postais de Liliput, a fotógrafa Isabel Santana posta periodicamente alguns de seus trabalhos, que registram de forma cuidadosa seus passeios, seu cotidiano e mesmo elementos de cenas comuns com um novo olhar.
deSenHo joaolin.com.br
oS cAMinHoS de AVALOVARA Site possibilita ler os diversos fios narrativos da obra clássica do escritor Osm an L ins, c onstruída c om r eferências a p alíndromo l atino um.pro.br/avalovara/
“Avalovara representa na literatura brasileira atual um momento de decisiva
modernidade”, disse Antonio Candido, a respeito do livro de Osman Lins, lançado originalmente em 1973. Estruturada em oito narrativas que se passam em tempos e espaços diversos, a obra permite ao leitor percorrer diversos caminhos dentro dela, com referências ao palíndromo em latim Sator arepo tenet opera rotas (“O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”), à ideia de uma leitura em sentido espiral e a diversos outros elementos. Os professores de Letras e de Design Leny da Silva Gomes e André Luis M. da Silveira reuniram no site Uma rede no ar as muitas maneiras possíveis de se ler Avalovara. Utilizando a possibilidade dos hiperlinks, o projeto permite que se percorra a obra por seus temas, rotas, estratégias, alegorias, sentidos e como um romance de formação. O principal objetivo, segundo eles, é mostrar como esses fios de narrativa são uma crítica à opressão da ditadura da época. Com a possibilidade de ler os livros dentro do livro de Osman Lins, fica mais fácil notar, para além de sua estrutura formal, tanto a tensão que o autor promove na linguagem como a própria história – complexa, é claro – de amor que ele busca contar. DioGo GUEDES
O blog do ilustrador pernambucano João Lin mudou de aparência e, além de trazer as costumeiras informações sobre o autor, conta com um portfólio maior e melhor organizado.
bRegA kitschyliving.tumblr.com
Uma confessa fã da estética kitsch, a autora do blog Kistchy Living reúne imagens de objetos, roupas, ambientes, recortes de jornal e fotografias que lhe chamem a atenção sobre o estilo.
iMAgenS rarebeatles.tumblr.com
O Rare Beatles é uma prova do quanto o quarteto londrino é um dos maiores fenômenos midiáticos da história. O blog reúne imagens raras do grupo, ou relacionadas a ele, que circulam pela internet ainda hoje.
sites sobre
sketches DICAS
PESSOAL
FRANCESA
doodlersanonymous.com
tommykane.blogspot.com
les-calepins-de-lapin.blogspot.com
Além de trazer recomendações de bons artistas, o Doodlers Anonymous organiza coletâneas e calendários com belos rascunhos.
O diretor de arte Tommy Kane mostra em seu blog alguns esboços feitos em cadernos moleskine ou papéis avulsos.
A desenhista francesa Lapin faz sketches trabalhados, retratando amigos, passantes, paisagens urbanas e objetos.
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Vivian Maier
ENCONTRADA ENTRE DESPOJOS TEXTO Chico Ludermir A obra de Vivian Maier se resumia a 100 mil negativos encaixotados num armário de aluguel. A babá feminista não revelava seu talento, mas, com jaqueta e sapatos de homem, gastava seus dias de folga andando pelas ruas de Chicago. Estava sempre tirando fotos, que não mostrava a ninguém, com uma câmera Rolleiflex. Em outro tempo e em outra parte da cidade, o jovem historiador John Maloof trabalhava no livro sobre o Parque Portage e comprou num leilão, em 2007, alguns artigos que poderiam lhe servir. O acervo vinha de um armário confiscado pelo atraso do aluguel e continha boa parte da obra que Maier secretamente escondeu durante toda sua vida. Ao se deparar com fotos de altíssima qualidade técnica e rara sensibilidade, Maloof buscou mais negativos de outro comprador do mesmo leilão e foi atrás da artista anônima. Logo descobriu o nome da fotógrafa, mas foi incapaz de saber mais sobre ela até pouco depois de sua morte, quando encontrou um obituário no jornal Chicago Tribune. A partir daí, as fotos ganharam o mundo, tanto pela sua origem excêntrica quanto por sua estética. E, se não mudaram a vida de sua autora, alavancaram a carreira do seu descobridor. A exposição com curadoria de John Maloof já passou pela Dinamarca, Noruega, Alemanha e Inglaterra e virou o livro Vivian Maier: street photographer (Vivian Maier: fotógrafa de rua), lançado mundialmente em novembro pela editora Random House e já disponível no Brasil. Paralelamente, Maloof encabeça um documentário de longa-metragem intitulado Finding Vivian Maier (Procurando Vivian Maier), que está em produção e deve ser lançado em 2012.
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4 Página anterior 1 olhar
Comâ ngulos inusitados, Maier registrava o cotidiano de Chicago
Nestas páginas 2 e 5 PerSonaGenS
Aba bá-fotógrafa tinha nas crianças um dos seus principais temas
3 ciDaDe Além dos retratos, elementos urbanos também a interessavam 4 SilhUeta Nos seus vários negativos, destaca-se sua habilidade para o flagrante
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Há, ainda, pouca informação sobre a vida da artista. O que se sabe é que ela nasceu em Nova York, em 1926, e foi criada na França. Em 1951, aos 25 anos, Maier voltou para Nova York, onde trabalhou por algum tempo em uma fábrica e, depois, tornou-se babá, ofício que a sustentou durante 40 anos. Entre 1959 e 1960, ela viajou para Los Angeles, Manila, Bangkok, Pequim, Egito, Itália, e pelo sudoeste americano, tirando fotos em cada local. A viagem foi, provavelmente, financiada pela venda de uma fazenda da família na Alsácia.
Além de uma história peculiar, Vivian possuía um talento nato. Longe do convívio com outros fotógrafos da época, desenvolveu sua arte de forma solitária e autodidata. Como fotógrafa de rua, Maier impressiona pela amplitude do trabalho, ao mostrar todas as facetas da vida da cidade numa América do pósguerra. Traz à tona a vida invisível dos indigentes, bem como alguns dos locais mais queridos de Chicago. As crianças, as empregadas domésticas negras e os moradores de rua foram catalogados de forma meticulosa.
Maier parece ter encontrado a missão de sua vida na fotografia, documentando o próprio senso de beleza nas imagens de pessoas, lugares e coisas ao seu redor. Rondava incessantemente os subúrbios com sua câmera, porém, não o fazia para os outros, fazia para si. É dessa maneira, extremamente despretensiosa, que Maier nos proporciona uma experiência contemplativa. Sua determinação resultou numa coleção de retratos de uma época, carregados, ao mesmo tempo, de sensibilidade e precisão.
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6 PlanoS A fotógrafa se apropriava bem dos recursos do preto e branco, brincando com luz, sombra e silhuetas 7 enQUaDraMento Autodidata, Vivian Maier desenvolveu técnica composicional sofisticada 8 aUtorretrato Uma das muitas versões que ela fez de si mesma
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turba indiSciplinada
uma troca milionária Em meados dos anos 1960, Bob Dylan era o músico mais badalado e paparicado dos Estados Unidos. Sua presença em eventos era tratada com bajulação e estardalhaço. Uma das cenas clichês que se repetiam nessas ocasiões, por exemplo, era o músico sacar um cigarro do bolso e ver, logo em seguida, surgirem diversos isqueiros acesos à sua volta. Entre as pessoas que tentaram adular o gênio estava Andy Warhol. Em 1966, em visita ao Factory, o ateliê do artista plástico, Dylan foi presenteado com uma das impressões da série de serigrafias Double Elvis, na qual o Rei do Rock aparece apontando um revólver como um cowboy – em imagem extraída de um de seus filmes. O compositor que, nos anos seguintes, se tornaria um pintor figurativo, fez pouco caso da tela, repassando-a para o seu empresário Albert Grossman e sua esposa Sally, em troca de um sofá. Warhol, quando soube, ficou ultrajado. Pouco tempo depois, Grossman viraria arqui-inimigo de Dylan. Eles protagonizariam a mais longa e ferrenha disputa nos tribunais, por distribuição de renda de direitos autorais: de acordo com o contrato, não lido pelo cantor, o agente teria direito a 50% do retorno financeiro de cada música lançada pelo artista. A pendenga se estendeu até 1987, um ano após a morte de Grossman, quando foi fechado um acordo com a viúva, que embolsou U$ 2 milhões de dólares. No ano seguinte, em um leilão de artes, ela vendeu o tal quadro da prosaica permuta por 720 mil dólares. Em tempo: Sally é a moça fina que está com Dylan na capa do disco Bringing it all back home, de 1965. dÉBORA nAScimentO
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A FRASE
“Só desejarás a justa medida das riquezas: primeiro, o necessário; segundo, o suficiente.” Sêneca
Um dia desses, depois de ter revolucionado os quadrinhos, Frank Miller mostrou seu outro lado. Em seu blog, postou a seguinte crítica ao movimento Occupy Wall Street: “O ‘Occupy’ não passa de um bando de turrões, bandidos e estupradores, uma turba indisciplinada, vivendo da nostalgia de Woodstock e de fétida e falsa honradez. A única coisa que esses palhaços conseguem é fazer mal à América”. Desde então, o autor de O cavaleiro das trevas tem sido bombardeado no blog, que já soma mais de 7 mil comentários, sobretudo daqueles que, diante da postura reacionária do quadrinista, se declaram ex-fãs. (Thiago Lins)
Balaio para a plateia A cantora Lana Del Rey é a mais nova sensação da internet, no melhor estilo “você não gosta, mas sua filha gosta”. Criticada por bombar na rede com apenas dois singles (como se muita gente não fizesse sucesso com uma música só), La Lana tem se esforçado para provar que é mais do que outra cantora com pinta de modelo, tocando material inédito nos shows. isso sem falar no seu “aparato de marketing”. Recentemente, num programa de auditório francês, não hesitou, quando lhe perguntaram o que poderia fazer para levantar a audiência. virou-se de costas e subiu o vestido. E assim se fez mais um viral na web. Como acontece com todo mundo no showbiz, Lana está no centro de diversas “teorias conspiratórias”. É fato que trocou o nome de batismo (Elizabeth grant) por um pseudônimo melífluo. Mas, dizem as más línguas, a moça ainda teria tido caso com um dono de gravadora e feito cirurgia plástica labial. teorias à parte, o público adora o que vê (e até o que ouve). (tL)
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a cigana previu Ressuscitado um dos maiores mistérios de Hollywood: a morte de Natalie Wood, encontrada afogada, em 29 de novembro de 1981, aos 43 anos. A polícia americana reabriu o caso, no mês passado, após uma testemunha-chave, Dennis Darven, afirmar que mentira no seu depoimento à época. Ele era o capitão do iate da atriz e do seu marido, o ator Robert Wagner (o Jonathan, do Casal 20). Há 30 anos, os investigadores concluíram que a atriz fora vítima de um acidente, indicando que ela caíra no mar ao ter pulado, à noite, num bote amarrado à embarcação. Segundo novo depoimento do capitão, o casal havia brigado e ela desaparecera em seguida. Na versão oficial, a atriz afogou-se porque não teve forças para nadar, já que estava sob efeito de bebidas e tranquilizantes. Quando Natalie Wood ainda era criança, sua mãe recebeu o alerta de uma cigana, avisando que sua filha deveria ter precaução com as águas. A vidente acertou, ao prever que a menina se tornaria uma mulher linda, rica e famosa. Só não pressentiu que ela deveria tomar cuidado com um ator de certa série de tv. (DN)
eStrangeiriSmoS tomando a frase “Deus está nos detalhes”, dita pelo arquiteto Mies van Der Rohe, como bússola, vale a pena prestar atenção à linguagem usada por decoradores na mostra Casa Cor, que, em sua versão pernambucana deste ano, acontece em casario tombado como patrimônio histórico à beira-mar da popular praia dos Milagres, em Olinda. É verdade que há um ou outro uso da língua portuguesa, mas os ambientes são identificados como lounge, cozinha gourmet, home theater, living, loft, solarium, closet, home office, entre outros estrangeirismos. Do que se deduz, além da afetação, uma distância da linguagem local, como se esta não conferisse importância ao exposto. Não seria o caso de fazer uma terapia para melhorar a autoestima linguística? (Adriana Dória Matos)
o “ed” eye Luana Piovani foi entrevistada durante o festival Terra. Ao comentar as atrações, ela, que se diz fã dos Strokes – participação principal do evento, ao lado do sub-Oasis Beady Eye –, mandou mal: “Amei esse menino, o Ed Eye”. A repórter não ajudou muito: “(É) Billy Eye”, até que Kid vinil, mais “por dentro”, explicou que aquela era a banda nova do ex-Oasis Liam gallagher. (tL)
Henry miller, 100 anos Por André carrilho
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VITRAL Uma tela de vidro atravessada de lUz
O Recife, assim como o Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, é uma das cidades brasileiras que reúnem um dos mais preciosos acervos desse elemento arquitetônico, com obras em estilos tradicionais e modernos TexTO Danielle Romani FOTOS Leo Caldas
o vitral é uma modalidade artística que exige trabalho coletivo, e cujos princípios de feitura pouco se modificaram através dos séculos. Consolidada nas catedrais góticas europeias, a partir dos anos 1100, é uma técnica extremamente complexa, que exige reflexão, conhecimento apurado sobre as variações de luminosidade, composição de vidro e de cores, além de interpretações em torno da história e da teologia. “Os vitrais carregam uma linguagem narrativa do homem medieval para o homem moderno. Banhados pela luz e pela cor, imprimem ao espaço arquitetural uma atmosfera mística, propositalmente reflexiva, condutora entre o real e o divino”, explica Suely Cisneiros, professora do departamento de Teoria da Arte da Universidade Federal de Pernambuco. Para montar um vitral, torna-se necessária uma equipe de, no mínimo, três pessoas: o vitralista,
o artesão de estruturas metálicas e o artesão dos perfis de chumbo e da montagem das grades. As etapas de confecção, ontem como hoje, são praticamente as mesmas. Em primeiro lugar, estuda-se o tema. Em seguida, faz-se um projeto de adaptação do desenho para o metal. O passo seguinte é a composição das estruturas metálicas e imediato tratamento delas, para evitar corrosão. O corte dos vidros, que normalmente são importados da França, Bélgica ou Alemanha (apesar de existirem exemplares nacionais), é a próxima etapa. As pinturas sobre essas lâminas, que exigem várias queimas para se atingir a cor que se quer realçar, são a parte mais delicada, e exigem conhecimento técnico apurado. “Depois de tudo isso, iniciamos a amarração dos perfis de chumbo para cada quadro do vitral, fazemos a calafetagem, para impermeabilizar, e efetuamos a moldagem do chumbo sobre cada pedaço de vidro. Aí, damos
o acabamento final e um polimento”, que, como suportes para a grade metálica, podem ser usados o ferro, o latão ou o inox, detalha Suely. Especialista em Design e Artes Plásticas, com mestrado em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Suely é também vitralista e restauradora, ofício que aprendeu com a única discípula viva do mestre alemão Heinrich Moser: Aurora de Lima, hoje uma senhora de 96 anos que, até a década de 1970, ensinava a técnica de vitral na Escola de Belas Artes. Estudiosa do tema, há décadas, Suely explica que o Recife, como o Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, é uma das cidades que reúnem um dos mais preciosos acervos em vitrais do país. Diz, também, que nessas capitais eles se multiplicaram “devido às mudanças sociais e, sobretudo, econômicas, que representaram a ascensão de grupos ou classes, e a fixação de artistas nesses estados”, a exemplo do que aconteceu
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com a vinda e permanência de Heinrich Moser no Recife, a partir de 1910. “A importância e proliferação dos vitrais refletem diferentes linhas estilísticas – do Barroco para o Neoclassicismo, em seguida, para o ecletismo e estilos franceses de pujança cultural, como a art nouveau – aliadas a uma projeção econômica das famílias mais abastadas do Recife, naquele final do século 19 e começo do século 20”, observa o arquiteto, historiador e filósofo Fernando Guerra, que também é mestre em História e doutor em Arqueologia e Conservação do Patrimônio Histórico. Até hoje, em várias localidades recifenses, em espaços públicos ou privados, é possível encontrar obras de Conrado Sorgenicht, Heinrich Moser, Aurora de Lima, da Oficina de Gastão Formenti, Marianne Peretti, Suely Cisneiros, e mesmo de Francisco Brennand, que emprestou seus traços para a confecção de um vitral que adorna a escadaria principal da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), no Bongi, zona oeste do Recife.
o alemão conrado Sorgenicht, que se instalou na capital paulista em 1888, foi o precursor da técnica dos vitrais no Brasil Pioneiro no PAíS
Os vitralistas europeus chegaram ao Brasil na segunda metade do século 19, juntamente com o ecletismo. O alemão Conrado Sorgenicht foi o precursor da técnica no país, onde desembarcou em 1874, mas só se instalou na capital paulista em 1888, aos 52 anos. Na sua chegada, vivia-se o impacto da Lei Áurea, que aboliu a escravidão. “Ele iniciou seu trabalho, portanto, numa época de grandes mudanças de uma sociedade que procurava se renovar e se desenvolver”, conta Suely Cisneiros, que indica duas belas obras desenvolvidas pela Casa Conrado, administrada no Recife pelo artista da Renânia (região da Alemanha) e, posteriormente por seus filhos Conrado II e Conrado III.
A mais grandiosa é a encontrada na Igreja Matriz do Espinheiro, na qual a Casa Conrado, que tinha vários mestres na confecção de vitrais, seguiu a narrativa hagiográfica, assinalando a vida de Jesus. Outra peça com a assinatura da Casa pode ser vista no prédio principal do Museu do Estado. Lá, um vitral raro, em formato horizontal, servindo principalmente como claraboia, retrata dois anjos adornados por flores. “Existem obras da Casa Conrado em várias cidades brasileiras. No Recife, que sempre aderiu aos modismos importados da Europa, em especial os da França, não poderia ser diferente. Conrado era um hábil desenhista de paisagens, de motivos florais, angelicais e da fauna. Utilizava, em suas primeiras composições, gravações a ácido em vidros lisos. Era adepto da art nouveau, com vidros coloridos, desenhos barrocos e formas complexas, acompanhando a entrada do Brasil no Modernismo”, detalha Fernando Guerra. Ele lembra que a Casa Conrado continua produzindo vitrais em São Paulo. Outra oficina especializada em
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vitrais, só que de origem italiana, fez história em Pernambuco. A Formenti & Cia chegou ao Rio de Janeiro no século 19, e foi a ela, no governo de José Rufino Bezerra Cavalcanti (1919-1922), que foram encomendados os dois vitrais instalados na escadaria principal do Palácio do Campo das Princesas. O primeiro deles, localizado no topo do primeiro lance de escadas da sala de recepção, é conhecido como A alegoria à Revolução Republicana de 1817. Uma composição sobre a derrota dos revoltosos e sobre os ideais libertários estaduais. Um marco histórico retratado pela empresa italiana. “Nele, um homem, de pé, avança carregando a bandeira de Pernambuco. Em primeiro plano, deitado, um leão faz repousar sua pata sobre uma coroa. Uma data encima o vitral: 1817, que revela o sentido da alegoria, símbolo da nossa marcante Revolução Republicana de emancipação política do Brasil”, explica Fernando Guerra, que coordena o programa de visitação do Palácio. O outro vitral pertencente à sede do governo pernambucano fica longe do olhar dos visitantes – está localizado
sobre a escadaria do segundo andar. Igualmente suntuoso, é uma alegoria à República, também grandiloquente, mas sem a expressividade do consagrado à Revolução Pernambucana. A casa Formenti ainda foi responsável pela peça que adorna a sede da Associação Comercial de Pernambuco, e que deverá ser submetida a uma restauração em 2012. Na obra, que reúne cerca de 20 vitrais, em exposição no hall do Salão Nobre e no do 2º andar, podem ser admirados símbolos da indústria e do comércio, motivos florais e adornos no estilo art nouveau.
VirtUoSiSMo De MoSer
É possível que, depois de observar os variados estilos e autores vitralistas encontrados no Recife, o apreciador chegue à conclusão de que dificilmente terá visto peças de maior perfeição e delicadeza que aquelas executadas pelo alemão Heinrich Moser. Entre os vitralistas clássicos, herdeiros da tradição medieval, ele foi o mais perfeccionista, e suas obras são descritas pelos estudiosos como incomparáveis.
Página anterior 1 HeinricH MoSer Artista alemão foi o responsável pelos vitrais da Matriz de N. S. das Graças Nestas páginas 2 os anfitriões O vitral, também assinado por Moser, está no hall do Clube Internacional do Recife
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eMBLeMáticA A alegoria da Revolução Pernambucana foi produzida pela oficina italiana Formenti
“Heinrich Moser participou da fundação da Escola de Belas Artes, em 1932. Começou a fabricar vitrais para residências, geralmente para caixas de escadas. Realizou sua maior obra com o arquiteto Giacomo Palumbo, também para uma caixa de escadas, esta monumental, do Palácio da Justiça de Pernambuco. Usou vidros coloridos de fabricação industrial, nos quais pintava com a tecnologia que pôde empregar em Pernambuco”, explica o arquiteto José Luiz Mota Menezes, no prefácio ao livro Restauração dos vitrais da Chesf, de Jobson Figueiredo. A pesquisadora Angela Távora Weber, no livro Moser, um artista alemão no Nordeste, descreve o trabalho realizado
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no Palácio da Justiça como integrante da série de vitrais profanos do artista alemão. Ele representa a cena de abertura do primeiro Parlamento Democrático da América, comandada pelo conde Maurício de Nassau. “Este mural é reconhecido nacional e internacionalmente como um raro exemplo de harmonia de conjunto, cor, luz, sombra, traço e fidelidade histórica. Trabalhava principalmente com vidros coloridos, cujos matizes chegavam aproximadamente a 200 tonalidades”, escreve. Muitos autores
o consideram o mais importante do acervo pernambucano. No Clube Internacional do Recife, outro trabalho excepcional de sua autoria pode ser apreciado. Na escadaria principal, no hall, o vitral Os anfitriões (1939) é prova da perícia e supremacia do artista. Entre as obras religiosas, são de Moser os painéis que adornam as paredes da Matriz de N.S. das Graças, que narram a vida de Nossa Senhora. Admirador do alemão, Fernando Guerra o classifica como “o grande mestre”. “Nele, nota-se a utilização
das cores fortes e quentes do Nordeste, além de um desenho aprimorado em relação ao estilo clássico – na representação das suas figuras humanas, as rendas de tecido e o panejamento das vestes. O carmim do artista alemão é inigualável”, diz. A supremacia do alemão também é defendida por Suely Cisneiros, que ressalta algumas particularidades de sua obra. “O efeito dos veludos e das rendas e a perfeição das mãos. Essas são suas marcas registradas”, diz a professora. Além de excelente
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criStão O vitral europeu, de autoria desconhecida, foi remontado no castelo do Instituto Ricardo Brennand
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noBre Símbolos de casas reais também podem ser vistos nas peças pertencentes ao Instituto
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artista, Moser também ajudou a difundir os vitrais na cidade. Antes da sua chegada, esses elementos eram privilégio da elite, que podia importar as peças de outros países ou capitais. “A vinda dele permitiu que mais pessoas pudessem encomendar um vitral”, aponta Suely.
AUrorA e BrennAnD
Aluna de Moser, Aurora de Lima conheceu o mestre durante aulas de Composição Decorativa, na Escola de Belas Artes, e difundiu a arte
dos vitrais até meados da década de 1970, quando ministrava uma disciplina sobre o tema na mesma instituição em que estudou. “Fiquei trabalhando com Moser nos vitrais, nos tempos de seu pleno vigor artístico, nos tempos da doença, após sua morte, e, quando o ateliê foi desfeito, eu o refiz, continuando o trabalho que ele executou e que deixou no Brasil, em Pernambuco, especialmente no Recife. Nos seus vitrais, estão transportadas as cores quentes e vibrantes do nosso colorido nordestino, que ele, como europeu, soube interpretar com tanta arte e vigor”, declarou Aurora de Lima, em entrevista publicada no livro Moser, um artista alemão no Nordeste. Hoje aposentada, Aurora também tornou-se referência de maestria. “Discípula única de Moser, trazia em suas obras aquela mensagem clássica do seu professor. Empregava as cores naturais em seus lindos florais, a exemplo dos vitrais do Cinema São Luiz, no Recife, e da Biblioteca Central da UFPE, na qual realizou um grandioso trabalho de composição
mista, entre figuras geométricas e florais”, situa Fernando Guerra. “No Arquipélago de Fernando de Noronha, produziu um vitral para o Palácio de São Miguel, sede da administração da ilha, sob o título A imagem do arcanjo São Miguel, em 1947.” Assim como Moser, Aurora tem dezenas de obras espalhadas por igrejas e residências particulares recifenses. Na sede da Companhia Hidroelétrica do São Francisco, no Bongi, o visitante é surpreendido pela existência de dois vitrais. O maior deles, que ocupa todo o vão da escada principal da entidade, tem 10 metros de altura por sete metros de largura, é assinado por Francisco Brennand. Com motivos florais e frutais, esse vitral possui um colorido quente. Restaurado em 2009, por Jobson Figueiredo, teve toda sua estrutura de ferro substituída por aço inox. Apenas seu desenho é de autoria de Brennand, sua concepção foi encomendada à Arte Sul, na década de 1970. Na sala contígua ao hall, encontra-se um painel com uma cena de feira, desenhado por José
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S達o LUiz Aurora de Lima ornou com florais as paredes do tradicional cinema cLArABoiA Conrado Sorgenicht fez um detalhado painel para o Museu do Estado
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É de Suely e equipe o vitral que emoldura a porta da Biblioteca do Instituto, uma réplica em miniatura do castelo, com as iniciais da instituição. No castelo do IRB, a variedade de vitrais dos séculos 17 e 18 demonstra bem a expansão que o gênero teve na Europa. No Renascimento, os vitrais foram utilizados em diversos tipos de construção: em capelas privadas e espaços públicos, em residências da nobreza e em palácios. A professora e pesquisadora da Universidade de Caxias do Sul, Vera Zattera, explica a motivação para essa propagação do elemento decorativo: “Os vitrais eram financiados por doadores, associações ou grupos de cidadãos. O misticismo inicial estimulado pelo uso de personagens da Bíblia, santos e anjos, foi assimilado por reis, duques e cavalheiros, que passaram a exigir a realização de vitrais contando a vida dos santos, mas com seus rostos”. Os nobres, ressalta Vera, acreditavam que, identificando-se com os santos, poderiam ter um lugar reservado no céu. “Era uma espécie de troca: eles pagavam os vitrais e – supunham – tinham
no castelo do irB, a variedade de vitrais dos séculos 17 e 18 demonstra a expansão que o gênero teve na europa
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Ferreira na mesma década. Ele também foi restaurado por Jobson e entregue ao público em 2010.
eScoceSeS, inGLeSeS
Além das peças confeccionadas no século 20, o Recife guarda um acervo centenário, produzido por velhos mestres ingleses e escoceses, que foi trazido à cidade pelo Instituto Ricardo Brennand (IRB). Nos prédios em estilo medieval do instituto que leva o nome do empresário, erguidos no bairro da Várzea, é possível observar exemplares de vários períodos e épocas, construídos pelos artesãos que serviam aos nobres da Escócia e da Inglaterra, e que aparecem em forma de brasões e heráldicas.
As peças mais importantes e raras estão na entrada do 3º andar, são anônimas e trazem datas como 1621 e 1644. As vestes desenhadas numa delas denotam procedência escocesa. Outra, a de uma casa real inglesa. No salão do mesmo andar, preciosidades: vitrais decorativos ingleses, com símbolos que evidenciam pertencer aos brasões da nobreza, representando uma coroa e o sagrado coração. Nessa mesma sala, sete vitrais de grande porte retratam a ressurreição e ascensão de Jesus. Eles foram confeccionados na Inglaterra, no início do século 20, segundo informa a especialista em História da Arte Ruth Gouveia Gabino, que trabalha na Coordenação de Educação do Instituto.
direito a um lugar melhor no paraíso.” Ser vitralista da nobreza significava, nesse contexto, ter privilégios. “O francês Carlos VI (1368-1380) escolhia pessoalmente seus artistas, que eram agraciados com benefícios e total isenção de impostos”, completa Suely. No Instituto Ricardo Brennand, também há vitrais com os brasões da família do empresário, desenhados e produzidos por Suely Cisneiros, Fernando Ferreira e equipe. Foram eles, inclusive, que executaram a recuperação dos vitrais produzidos por Marianne Peretti para a Catedral de Brasília. “No próximo ano, vamos restaurar os vitrais de Moser que se encontram no Palácio da Justiça”, antecipa Suely.
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con ESPEciAL ti nEn tE REPRODUÇÃO
TÉCNICA Um belo ornamento em vias de extinção
Desde a década de 1980, sem locais de ensino regular e com poucos interessados em produzi-lo, o elemento vitral pode cair em novo ostracismo
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na atualidade, excetuando-se
a produção de Marianne Peretti, a confecção de vitrais é praticamente inexistente no Brasil. “É uma arte em extinção, com poucos artistas interessados em apreendê-la e com poucos em condição de repassá-la. Desde a década de 1980, não temos uma escola oficial, no Recife, que ensine essa técnica. Fui a última professora a ministrá-la na Escola de Belas Artes, onde substituí Aurora de Lima”, critica Suely Cisneiros, professora do departamento de
Teoria da Arte da Universidade Federal de Pernambuco. Existem explicações para o gradual desinteresse dos artistas em relação aos vitrais. Uma delas é próprio surgimento do Modernismo, na primeira metade do século 20, que se contrapôs fortemente ao figurativismo, à inspiração neogótica, à art nouveau, e, principalmente, ao ecletismo – defendido pela Escola Nacional de Belas Artes. Estilos aos quais estavam associados os principais vitralistas do período. Para os modernistas, artistas plásticos e arquitetos, pelo menos os da primeira fase do movimento, o vitral era associado a gêneros ultrapassados, a uma estética que não tinha espaço nos seus projetos. Antes dos movimentos de vanguarda, porém, no século 18, esse elemento arquitetônico, diretamente associado ao misticismo cristão, havia sido “resgatado” pelos neogóticos ingleses, que procuravam reavivar as formas da arquitetura medieval. Foi com esse impulso que o vitral ressurgiu nas construções na Europa e nos Estados Unidos, com seu uso estendido ao longo do século 19, dentro do movimento romântico. O crescente interesse pelo medievo – que também teve repercussões na literatura, como se observa em Notre Dame de Paris, de Victor Hugo – estimulou a construção de catedrais com características arquitetônicas do período, o que fez com que artistas e artesãos começassem também a produzir mobiliário, elementos decorativos e construtivos referentes à Idade Média, entre os quais os vitrais. Arquitetos como Eugène Violletle-Duc (que desenhou plantas de aspecto medieval com recursos, à época, modernos, como o ferro) são referências do período. Outro artista que sofreu influências do estilo foi Antoni Gaudí. O neogótico pode ser visto tanto nas formas quanto nos vitrais presentes em sua obra mais emblemática, a igreja Sagrada Família, em Barcelona, ainda hoje em construção. Todo o interesse pelo estilo fez com que surgissem, na Europa, oficinas e artistas dedicados exclusivamente ao vitralismo. E foram alguns desses, justamente,
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notre-DAMe Na catedral parisiense, um detalhe mostra a complexidade da arte vitral
que migraram para o Brasil e aqui desenvolveram criações coloridas e luminosas em igrejas e residências. Os vitralistas brasileiros seguiram, basicamente, a fórmula do medievo: narrativas religiosas ou históricas deram a tônica de seus trabalhos. Apenas Marianne Peretti, no segundo período do Modernismo, ousou, ao utilizar o abstracionismo e as formas orgânicas para adornar catedrais, espaços públicos e casas particulares. Ela, como costumam dizer especialistas, reinventou a arte de fazer vitrais. Não se pode precisar a data de surgimento do vitral. Mas ele está intrinsecamente ligado às igrejas e catedrais góticas, tanto no que diz respeito à iluminação desses templos – pois era uma solução para as estruturas altas e estreitas –, como se prestava à catequese dos fiéis, uma vez que os painéis, normalmente, reportavam episódios bíblicos. Um dos marcos da arquitetura gótica é a Basílica de Saint-Denis, erguida em Paris em 1140, sendo um dos últimos exemplares do estilo a Capela de Henrique VII, da Abadia de Westminster, construção do início do século 16. O ápice do estilo se deu entre os séculos 12 e 15, com o apuro e a delicadeza de catedrais como as de Augsburgo, na Alemanha; Saint-Denis e Angers, na França. A exemplaridade máxima, no que diz respeito à arte vitral, está na catedral francesa de Chartres, considerada o “museu dos vitrais”, com seus 2.600 metros quadrados de superfície, ricos em originalidade e perfeição. Notre-Dame de La Belle Verrière é outra obra-prima, assim como Saint-Chapelle e Notre-Dame, ambas em Paris. DAniELLE RoMAni
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MARIANNE PERETTI Linguagem moderna para a arte vitral
A artista francesa, radicada em Olinda, uma das maiores vitralistas do país, teve sua carreira alavancada pela colaboração com Oscar Niemeyer TexTO Danielle Romani
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A casa de linhas clássicas –
construída no meio de um terreno de farta vegetação, no sítio histórico de Olinda – em nada remete ao estilo moderno da artista plástica francesa, radicada no Brasil, Marianne Peretti, celebrizada pela criação de grandiosos vitrais, elementos de composição dos também grandiosos projetos do arquiteto Oscar Niemeyer para a capital federal, Brasília. Mas é somente a fachada da casa de Peretti que engana. Por dentro, a residência como que
“salta no tempo”, levando o visitante do clima de antiga viela olindense a um arrojado, amplo e claro projeto de Niemeyer. Os originais cômodos estreitos deram espaço a salas amplas, com várias peças de mobiliário assinadas pela própria Marianne, esculturas de ferro, arranjos florais de plantas nativas, colhidas no quintal, e muita luminosidade, obtida com claraboias e recortes nas paredes. “Quando cheguei a Olinda, há mais de 20 anos, era tudo escuro e triste neste casarão. Tive que investir numa reforma, mudar tudo, pois espaços apertados me deixam com claustrofobia. Não conseguiria viver e trabalhar numa casa onde me sentisse fechada”, diz Marianne, que, aos 84 anos, mantém uma atividade invejável e uma elegância impecável, sua marca registrada. Atualmente, trabalha na confecção de um painel de três metros, na forma de um DNA, para um museu de ciência. Tem viagens de trabalho agendadas para quase todos os meses. Ela conta que se tornou tão ágil, diante do grande número de encomendas, que chegou a desenhar um projeto de 100m² em poucas horas. Também já perdeu as contas de quantos vitrais (sem falar nas esculturas e nos murais) executou pelo Brasil e mundo afora, muitos deles no Recife, em residências e espaços públicos, a exemplo da Igreja Messiânica do Rosarinho, da Paróquia de N.S. de Fátima de Boa Viagem e do Palácio da Justiça, só para citar algumas das dezenas de obras que tem espalhadas em Pernambuco. “Não consigo parar, gosto muito de trabalhar. Via minha mãe receber as amigas para o chá das cinco, todos os dias. E percebia que a conversa versava sempre sobre os mesmos temas. Elas não faziam nada, a não ser remoer o passado. Devia ter uns 10 anos, quando prometi que minha vida seria diferente”, diz a artista plástica – filha de mãe francesa e pai pernambucano (João de Medeiros Peretti) – que nasceu em Paris, chegou ao Brasil em 1953 e adotou Olinda como casa, na década de 1960. Para Marianne, acostumada com os vitrais das igrejas góticas
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cAteDrAL De BrASíLiA O vitral de Marianne Peretti está totalmente integrado à obra de Oscar Niemeyer
francesas, trabalhar com o gênero, no início da carreira, nunca chegou a ser cogitado. “As escolas que ensinavam as técnicas remetiam ao estilo clássico, o que não me interessava. Então, nunca me dispus a frequentar os cursos. Inclusive, inicialmente, achava o vitral um gênero menor, não gostava. Portanto, nunca aprendi a fazê-lo, apenas a desenhá-lo e projetá-lo”, explica Marianne, que, apesar disso, criou vitrais para projetos da arquiteta Janete Costa, na década de 1960.
nieMeYer
Sua carreira como vitralista de fama internacional se deu por um golpe de sorte (ou senso de oportunidade). Na Itália, nos anos 1960, viu o prédio assinado por Oscar Niemeyer para a Editora Mondadori, ficou deslumbrada e decidiu procurá-lo. Colocou o portfólio debaixo do braço e foi bater à porta do arquiteto, em seu escritório no Rio de Janeiro. Tornaram-se amigos, o que lhe proporcionou os futuros trabalhos que a notabilizaram. Quando Niemeyer a convidou, na década de 1980, para projetar os vitrais da Catedral de Brasília, ela se assustou com a tarefa homérica. “Quando me lembro do que fiz, até eu fico sem acreditar”, brinca a artista plástica, que relata a verdadeira “odisseia” que foi preparar os murais da nave, que têm 2.240m². “Cada desenho tinha 30 metros de comprimento por 10 metros de largura. Para poder montar o vitral, vê-lo inteiro, tive que me instalar no Ginásio Nilson Nelson. Lá, subia nas arquibancadas e, usando um binóculo, podia ver a composição. Em alguns momentos, havia 800m² de papel pelo chão”, recorda Marianne Peretti, que considera suas obras maiores – em
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LEO CALDAS
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consonância com a crítica – os vitrais que preparou para a Catedral, para a câmara mortuária do Memorial JK e para o Supremo Tribunal de Justiça, todos em Brasília. “Tive medo de fazer o trabalho da Catedral. Niemeyer havia me levado lá, na década de 1970. Na época, disse a ele: não é preciso colocar vitrais, basta limpar os vidros transparentes; o céu de Brasília é iluminado, belo e muda constantemente. Não existe algo mais perfeito do que isso.” Com a insistência do arquiteto, ela aceitou a empreitada. Hoje, reconhece que as tonalidades azuis, verdes, marrons e brancas dos seus vitrais, e a posterior pintura da igreja, também na cor branca, tornaram a
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obra incomparável. “Pintei a catedral internamente de branco, o que se mostrou acertado. Depois disso, Niemeyer mudou a cor exterior.”
reVALorizAÇão
Para a arquiteta Guilah Naslavsky, a parceria entre Marianne Peretti e Oscar Niemeyer é a comunhão perfeita entre a arquitetura e o uso de vitrais. No trabalho O vitral na síntese da arquitetura moderna, realizado em parceria com Sônia Marques, ela defende que o projeto realizado pela artista se incorpora tão perfeitamente à obra do arquiteto, que parecem ter sido feitos simultaneamente, e não anos depois, como aconteceu com a Catedral, inaugurada na
década de 1970, com os vitrais montados apenas no final dos anos 1980, e inaugurados em 1990. “Seja nos casos clássicos, seja em experiências isoladas da arquitetura moderna, o vitral sempre foi utilizado como peça secundária, como uma janela, um adereço, nunca como destaque, apenas como inserção. Marianne, nesse sentido, deu uma contribuição muito importante, porque na Catedral, o próprio vitral é a parede. O que acontece, de certa forma, nas outras parcerias realizadas entre ela e Niemeyer, em Brasília”, explica Guilah, ressaltando que essa sintonia não pode ser observada nas obras recifenses, às vezes, de estilos totalmente diversos do de Marianne.
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Um exemplo disso são os vitrais do Tribunal de Justiça, no Recife, em que as formas neoclássicas do prédio contrastam com o arrojado abstracionismo da artista. Guilah ressalta, também, que Marianne teve um importante papel no resgate dos vitrais, que foram relegados a um segundo plano pela primeira leva de modernistas. “Devido à associação do gênero com o ecletismo, a partir dos trabalhos figurativos dos mestres clássicos do início do século 20, não se vê, nos primeiros anos do modernismo brasileiro, a valorização dos vitrais. As construções traziam a releitura de painéis, de azulejos, mas os vitrais só voltaram a ser
“a parceria entre Marianne e niemeyer é a comunhão perfeita entre arquitetura e o uso de vitrais”, diz Guilah naslavsky preparados no pós-guerra, na segunda leva modernista. Os projetos assinados pelo escritório de Janete Costa tiveram uma importância fundamental nessa revalorização. Marianne começou a trabalhar com vitrais nesse momento, como foi dito. Mas sua consagração no gênero deu-se com a intervenção
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artista Marianne Peretti, em sua casa, em Olinda, que também lhe serve de ateliê
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altar Obra da artista orna a Paróquia de N.S. de Fátima, em Boa Viagem
na catedral brasiliense e demais monumentos da cidade, também citados. “Só aí os vitrais, com formas abstratas, voltariam a ser valorizados”, pontua Guilah. Ao ser entrevistada, Marianne Peretti disse desconhecer o estudo da arquiteta em parceria com Sônia Marques. Mas concorda que os vitrais da Catedral são uma obra ímpar, assim como Brasília, que considera a obra máxima da arquitetura mundial. “Aos 50 anos, a cidade continua surpreendente, continua uma novidade. A parceria entre Lucio Costa e Niemeyer é única. E quando lembro que a cidade foi construída em pouco mais de quatro anos, penso que é um milagre.” DANIELLE RoMANI
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JANIO SANTOS
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Peleja
O restauro compromete a originalidade de uma obra artística? O jornalista e especialista em restauração de obras de arte, Otávio Maia, diz que o trabalho da recriação tem sido, equivocadamente, comparado ao do restauro. Já o técnico em preservação e restauro da Fundarpe, Roberto Carneiro da Silva, afirma que uma intervenção, por mais delicada que seja, compromete a originalidade da peça.
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Otávio Maia
Roberto Carneiro da Silva
É verdade que existem questiona-
mentos quanto à real preservação dos aspectos originais de uma obra de arte, após esta ser restaurada. Tais questionamentos, não raro, dão origem a críticas equivocadas, embasadas em suposições sobre a “originalidade” da obra; por vezes, condenando as restaurações ou comparando-as com Jornalista e recriações que alteram a apreciação e especialista em restauração a fruição da obra de arte. Um tratamento de restauração limita-se ao material com o qual a obra é construída, considerando-se que a sua significação enquanto arte é algo subjetivo, sendo impossível para o restaurador atuar sobre esse campo. De fato, o que se recupera são os elementos físico-químicos que compõem a obra, não o seu conceito, sendo os materiais que lhe dão forma utilizados como veículo e suporte para a materialidade de uma abstração. Logo, o que se restaura não é a obra de arte enquanto tal, mas a sua matéria. A restauração, há muito tempo, deixou de ser uma atividade empírica, “artesanal”. Atualmente, essas ações estão amparadas em sólidas teorias fundamentadas em profundos processos do conhecimento científico e tecnológico. Vários ramos da ciência dão suporte à prática do restauro, oferecendo bases para um grande alcance no conhecimento da matéria da obra de arte, assim como acontece em todo o processo prático de um tratamento de reparação, através de equipamentos e materiais de alta tecnologia. O domínio desses conhecimentos se faz essencial para o trabalho de reconstituição, tornando-a bastante criteriosa e, suas possíveis intervenções, mais precisas. Existem diferentes níveis de intervenção num tratamento de restauro sobre uma obra de arte, sempre direcionados a estabilizar e recuperar a resistência do material que constitui a obra, não implicando necessariamente em maiores interferências. Outros tratamentos, entretanto, podem exigir uma intervenção mais elevada, inclusive na imagem, porém, sempre partindo de sua unidade potencial, que é a referência de capacidade contida na obra ou em seus fragmentos, para oferecer informações para sua recuperação. O nível de interferência de um restauro será condicionado ao nível de degradação em que a obra se encontra, e o que a restauração faz é devolver à obra resistência e durabilidade do ponto de vista físico e uma melhor apresentação estética.
“existem diferentes níveis de intervenção num tratamento de restauro sobre uma obra de arte”
A restauração deve se limitar ao
restabelecimento da unidade potencial da obra de arte. Uma intervenção, por mais criteriosa que seja, compromete a originalidade das peças, visto que voltar a uma situação anterior conhecida é enganar-se ou enganar quem contempla a obra. Há níveis de comprometimento, conforme Técnico em o tipo, a metodologia, os materiais preservação e restauro aplicados, além do técnico que irá desenvolver o trabalho. Mesmo com o aparato técnico e científico que se tem, atualmente, visando intervir o menos possível na obra de arte, o objeto fica vulnerável. A restauração se move, nos dias atuais, pelo que pensamos e como conhecemos, e até mesmo pelo gosto estético de hoje. Partindo do princípio de que é melhor e mais prudente conservar do que restaurar, este se aplica direta ou indiretamente sobre um objeto, em relação ao qual há o intuito de estancar ou minimizar seu processo de deterioração. O restauro, como última instância, pode e deve devolver a integridade física, bem como a leitura formal, estética e simbólica de uma obra. Isso, possivelmente, irá valorizar e restituir o seu significado, mas a sua aparência original ficará comprometida, pois os materiais aplicados não são mais os mesmos. Restaurar significa, especificamente, remediar danos. Quanto menos se estender, menor será a perda da originalidade da obra e isso se aplica a qualquer obra: arquitetônica, revestimento azulejar, papel, pinturas com diversas técnicas e em diversos suportes, entre outras. Mesmo com os cuidados que deverão ser levados em conta, aplicando os princípios da restauração como: reversibilidade, compatibilidade, durabilidade e distinguibilidade, utilizando materiais e equipamentos próprios para esse tipo de interferência, a intervenção realizada certamente compromete a originalidade da obra. Sua autenticidade se vai com a adoção das novas técnicas e dos novos materiais aplicados. Em 1958, o poeta pernambucano Manuel Bandeira escreveu: “Quando não for possível restaurar dignamente um velho monumento, melhor será deixá-lo arruinar-se inteiramente. As ruínas apenas entristecem. Uma restauração inepta revolta, amargura, ofende”.
“Restaurar significa remediar danos. Quanto menos se estender, menor será a perda da originalidade”
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JARDS MACALÉ Um artista e a praga dos rótulos De erudito a maldito, o compositor pode ser catalogado em vários gêneros, embora seu esforço seja o de escapar de definições que limitem seu trabalho te xto Gianni Paula de Melo
“Macalé? Quem é Macalé? É um
bicho?”, dispara, autoirônico, um dos mais espirituosos compositores nacionais. Aos 68 anos, Jards Anet da Silva não resmunga quanto à falta de popularidade de seu trabalho, mas também não dispensa certo humor ácido ao falar desse assunto. Documentado no filme Um morcego na porta principal (2008), do diretor Marco Abujamra, ele estará no centro de outro produto audiovisual, desta vez dirigido por Eryk Rocha, filho do cinemanovista Glauber Rocha. Esse projeto será formado por cenas de uma apresentação inédita, entrevistas e alguns registros cotidianos. Desde a estreia do filme de 2008, o músico ressalta o valor dessas iniciativas, por lançarem luz sobre sua obra, ainda pouco conhecida. Mas, verdade seja dita, a falta de popularidade de Macalé deve ser colocada entre aspas. No meio artístico, sempre esteve bem-cotado e em boa companhia: Hélio Oiticica, Grande Otelo, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Moreira da Silva, Luiz Melodia, Dori Caymmi, Maria Bethânia. Para citar apenas alguns dos companheiros de criação e de vida. Se estiver certo o ditado “Dizme com quem andas e te direi quem
és”, dessa amostra de parceiros, já se pode tirar algumas conclusões. Os depoimentos dos colegas, no documentário de Abujamra, reforçam o quanto o cantor é querido e admirado. Zé Celso Martinez, por exemplo, declara que “Macalé é uma Maria Callas, um Oscar Niemeyer” e o cantor se deleita com esse carinho no ego, mas confessa ter desconfiado um pouco de ver todos os amigos falando bem dele. Sobre isso, o diretor do filme explica que até procurou alguém para criticá-lo, mas não encontrou ninguém. O músico não se convence e demonstra sua incredulidade quanto à tanta adoração: “Como é possível? Eu trabalhei justamente para ser esculhambado, eu mesmo fiz isso comigo o tempo inteiro e, agora, ninguém me esculhamba mais?”. Uma reação mais que esperada, já que sua trajetória está marcada por pequenos desentendimentos, consequentes de suas declarações. Macalé não poupa ninguém.
BRiGUento
O episódio mais famoso é, provavelmente, a discussão que teve com Caetano Veloso à época do lançamento do CD Transa, em 1972, no qual não constava o crédito dos arranjos de sua autoria nem o da participação dos músicos e técnicos
de som. O deslize não passou despercebido por ele, para quem crédito é sagrado, já que é através dele que o trabalho do artista circula. Resultado: ficaram de mal por um longo tempo. Como não podia deixar de ser, o compositor se diverte ao recordar o acontecido: “Eu briguei com o Caetano porque ele é legal, adora uma provocação e briga de volta. Não vou discutir com quem não vai me responder, né? Fui brigar com um irmão que eu conhecia desde 1959 e sabia que ia me peitar, mesmo que não tivesse razão. Aí, comecei a falar um pouco mal dele, mas com amor, sem perder a ternura jamais. Até que ele foi ao jornal O Globo e declarou: ‘Macalé é um canalha’. Eu achei foi bom, porque já era maldito, era tudo e não era canalha ainda”. Para completar, na edição deste ano do Cine PE, foram exibidos registros em super-8 feitos pelo carioca, na época da gravação de Transa, em Londres, cujos créditos são dados ao baiano – isso, quase 40 anos depois. “Pô, já transferiram meu arquivo pessoal para o Caetano? Agora que fiz as pazes com ele? Vou ter que brigar de novo!” De perto, o seu falso mau humor não convence ninguém. Entre um cigarro e outro, totalmente à vontade em solo recifense – afinal,
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é filho de pernambucano, como gosta de lembrar –, o músico se afirma como um personagem cada vez mais leve e irreverente da música brasileira. É provável que a combinação entre tranquilidade e desajuste deva-se às quatro décadas de psicanálise com o doutor Ricardo Vaz, já informado sobre o processo jurídico que terá de enfrentar, caso cogite dar alta ao artista. Talvez o divã, combinado à maturação pessoal promovida pelo tempo, tenha colaborado para que o erro do crédito de Transa ficasse no passado e os dois músicos passassem a trocar e-mails sobre o novo CD de Gal Costa, com um repertório de músicas inéditas, produzido por Caetano.
con ti nen te
Perfil A propósito, Macalé também teve um desentendimento histórico com a cantora. Tudo porque um jornalista pediu sua opinião sobre uma foto dela com o político Antônio Carlos Magalhães. Abordado no susto, e crítico à imagem, Macalé disparou: “Canta bem, mas é burrinha, né?”. A declaração virou a “frase da semana”, estendendo-se para os dias seguintes, porque polêmica é o prato preferido dos sensacionalistas. É pertinente notar, no entanto, que as posturas e posicionamentos do cantor nunca seguiram a trilha das escolhas e bandeiras óbvias. Poucos sabem, por exemplo, que o artista manteve um longo relacionamento com a ministra da Cultura, Ana de Hollanda. A curiosa combinação entre uma controversa representante do ministério e o artista libertário parece paradoxal, mas, no campo do afeto, a militância raramente dita regras. Por opção, ele não se estende sobre esse assunto, o relacionamento do passado é um dos poucos temas que o deixa desconfortável. Ao mesmo tempo, dá pistas sobre a discordância com algumas posturas da ex-mulher. Principalmente, quando adianta que vai fazer o Macalé Commons e juntar todo o material artístico de sua carreira
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"Mesmo essa porcaria de trânsito horroroso, com suas buzinas, tem uma hora que tudo é música”, avalia o compositor
para disponibilizar na internet. “Ah, vamos acabar com essa veadagem de pagar conteúdo. Eu vou cobrar? Eu não tenho nada para cobrar.” As fronteiras impostas pelo discurso político já eram subvertidas pelo músico, com humor e amor, desde o governo militar. Em plena ditadura, Macalé, que era anarquista convicto, apaixonou-se e casou com a filha do governador de Minas Gerais, e também presidente da Arena, Francelino Pereira. Os assessores de Francelino, que
reclamavam “Governador, sua filha namorando com um comunista...”, equivocavam-se no alinhamento político. Os amigos de Jards, que xingavam “Pô, Macalé, casado com a filha da direita!”, equivocavam-se na revolta. Com o tom de praxe, o músico explica como aquilo era óbvio para ele: “A direita já tinha estragado tudo, eu tinha mais era que comer as filhas da direita mesmo!”. Ele brinca, mas depois recobra a ternura, ao falar de Maria Eugênia Pereira. E, embora trocasse poucas palavras com seu ex-sogro, reconhece que, dos 11 casamentos que teve, foi o único do qual não deveria ter saído.
BenDito SeJA
Mas não foram os posicionamentos políticos que fizeram de Jards Macalé um maldito. Aliás, essa expressão, usada para designar artistas como Sérgio Sampaio, Jorge Mautner, Luiz
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Melodia e Itamar Assumpção, não passa de um rótulo controverso, criado pelos críticos musicais e pela indústria fonográfica, que, naquele momento, não compreendiam muito bem o som produzido por esses músicos. Era difícil assimilar a liberdade pela qual Jards e os outros enveredavam, algo que ele classifica como uma “liberdade interna, mais potente e perigosa que qualquer liberdade externa”. É óbvio que, olhando de fora, há certa mágica em ser maldito, afinal, Rimbaud e Baudelaire também o foram, como relembra o cantor, e esse é um grau de patente interessante. Na prática, a classificação segregava aqueles músicos cuja genialidade não era negada, mas na qual nenhuma gravadora estava disposta a investir. As sonoridades eram difíceis, as letras malucas; então, era melhor ignorar. Mesmo quando foi criado
o selo Pirata, da extinta PolyGram, justamente para dar conta destes compositores, Macalé ficou de fora. “Eu já estava pronto pra entrar de pirata, o olho já estava tampado, e ninguém me chamou”, lembra. Com o respaldo do tempo, os malditos tornaram-se ícones da música nacional, ainda que seus trabalhos circulem num público restrito. “Agora, maldito passou a ser escrito entre aspas e também já criaram ex-maldito”, brinca Macalé. O rótulo está sendo abandonado, mas o ideal de liberdade criativa persiste. Recebendo influências variadas desde o berço, pois o seu pai era fã de ópera e a sua mãe da Rádio Nacional, até hoje Macalé não faz distinção entre a música erudita e a popular: para ele só existe a música. “Não existem esses catálogos, as pessoas criam isso pra comercializar. Aqui é música popular – aí vende pra caramba. Aqui é música erudita – aí não vende nada. Hoje, tem catálogo de músicas que nunca vi igual: tecnopop, tecnobrega, sertanejo universitário... O que será isso? Eu tenho até medo de ouvir, porque vai que é uma bomba retardada terrorista.” Considerando a formação rigorosa que teve – foi aluno de ninguém menos que Guerra-Peixe –, essa crítica à cultura musical massiva é inevitável. Apesar disso, ele acha importante conhecer ao máximo o que está sendo difundido como parte do seu ofício, e também entende que qualquer som pode ser usado a favor da estética: “Mesmo essa porcaria de trânsito horroroso, com suas buzinas, tem uma hora em que tudo é música”. Só alguém com essa percepção poderia ser o responsável pela trilha sonora de O amuleto de Ogum, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, no qual o barulho de um trem é o principal som da composição. À parte os enveredamentos pelo território do audiovisual, os próximos projetos de Macalé são mesmo musicais. Ele conta que pretende compor pequenas peças inspiradas nas Gymnopédies, composições do francês Erik Satie. “Eu sou vidrado nas Gymnopédies, elas têm harmonias lindas, então resolvi fazer as Macalépédies, que são mais chegadas
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atitude
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PoLÊMica
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O amuletO de Ogum
A carreira musical do artista tem sido marcada por uma postura libertária
Transa foi responsável por uma discussão histórica entre Jards Macalé e Caetano Veloso Jards assinou a trilha sonora do filme de Nelson Pereira dos Santos
a esse negócio que vocês chamam de música popular.” Além disso, acaba de ser lançado, pela Biscoito Fino, o seu mais novo CD, Jards, e o DVD dirigido pelo Eryk Rocha deve ficar pronto no primeiro semestre de 2012. Quando questionado, se esses lançamentos representam um retorno aos seus grandes sucessos, Macalé é categórico: “Eu nunca fiz ‘grandes sucessos’. Quer dizer, eu fiz um big hit junto com o Waly Salomão, uma coisa maluca chamada Vapor barato, que nasceu e morreu várias vezes, e agora está nascida de novo, desde que O Rappa o gravou”. A canção, que Waly considerava um “hino hippie pobretão”, tem, na voz de Gal Costa, uma das gravações mais conhecidas. Na versão da cantora, depois da famosa frase “eu não preciso de muito de dinheiro”, ela solta um “graças a Deus!”, que o público já incorporou como letra da música, mas que, na época, deixou Waly contrariado: “Mas, Gal, Deus não rima com dinheiro, Gal”. E não rima mesmo. Vapor barato, no entanto, nunca mais voltou a ser a mesma, como comenta Macalé: “Eu mesmo vou abaixando o volume, quando chega essa parte da música, e nunca falo esse trecho, mas aí o público sempre grita ‘Graças a Deus’. Deus e dinheiro são pessoas completamente diferentes, mas tudo bem”.
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KIEV Em busca do tempo perdido Entre monumentos e igrejas, e também lanchonetes norte-americanas, capital da Ucrânia guarda símbolos de um passado de utopias e lutas texto Thiago Soares
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divulgação
Viagem 2
Parece uma cena do filme Encontros e
desencontros, dirigido por Sofia Coppola, cujo título original é Lost in translation (em tradução, no português do povo, “sem entender nada”): as portas automáticas de saída da sala de desembarque do Aeroporto Borispol, perto de Kiev, abrem e não entendo absolutamente nada daquilo que leio. Criança que ainda não sabe ler. Rapaz de 34 anos, analfabeto. Homens com papéis de receptivos escritos em alfabeto cirílico. Placas de publicidade em que a única coisa familiar, para mim, era aquele sorriso padronizado da modelo que vende um novo tipo de chocolate. Na nossa escolha cotidiana por destinos turísticos, somos acostumados a buscar comprovações. Lugares que conhecemos por foto, vídeo, filme. E vamos lá, quase numa busca por estar frente a frente com um simulacro, como a Torre Eiffel ou a estátua do Cristo Redentor. Na Ucrânia, não foi assim.
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Fotos em baixa definição nos sites, poucas informações prévias, muitas recomendações nas redes sociais. Não coma cogumelos, o solo da Ucrânia ainda “guarda” radiação. Cuidado com os “batedores de carteira”, nos metrôs. Há muitas garrafas de vidro de cerveja e vodca nas praças, à noite, tropeçar numa delas é quase um “cartão” de boas-vindas. Cheguei à Ucrânia, país de nome “duro”, terra natal de Clarice Lispector, do desastre radioativo de Chernobyl e do alfabeto cirílico – esse conjunto de letras com formas mais geométricas que as nossas –, sem saber muito bem o que encontrar. Talvez, quisesse mais me perder do que achar algo. Sensação de ir ao cinema ver um filme sem ter lido a sinopse. Comprar o livro só pela capa. Cheguei. Até saber como sair do aeroporto de ônibus, que fica em Borispol, cidade vizinha a Kiev, levei algo em torno de uma hora. Placas
em cirílico. Inglês? Não falam. Serve russo? No centro de informações turísticas, uma senhora mais “entendia” que falava inglês. Resolveu. Ela me encaminhou para um local em que poderia pegar um ônibus até o centro de Kiev. Um jovem de uns 17 anos, notando a incapacidade de comunicação entre nós, apareceu para mediar. Explicou que o ônibus me deixaria perto da Ploshcha Peremohy (uma praça) e que, lá, eu acharia uma estação de metrô. Seria a forma mais fácil de chegar ao endereço do meu albergue. Num aeroporto em que funcionários só falam ucraniano e russo, surpreendia um jovem de 17 anos articular tão bem a língua inglesa. “Onde você aprendeu a falar assim?”, perguntei. “Na internet.” Da janela do ônibus, imensos conjuntos habitacionais. Entre Borispol e Kiev, uma rodovia. É julho, verão, temperatura quente, clima seco. Os
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Fotos: tHiago soares
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Cúpulas de igrejas são belos destaques na paisagem local
Nestas páginas 2 São vLADiMir
Cores da catedral são as mesmas da bandeira do país
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Metrô
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recePção
Na capital da ucrânia, estão as estações mais profundas do mundo Com placas em alfabeto cirílico, cidade dificulta o turismo
5 borsch
a sopa de beterraba com carne de porco é um típico prato local
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subúrbios da capital da Ucrânia são de prédios altos, tintura desgastada, varais a ermo. Quando nos aproximamos de um núcleo urbano mais adensado, surge aquela que seria, para mim, a imagem mais marcante de Kiev: sob o sol brilhante, ao longe, avista-se o dourado cintilante das cúpulas das igrejas ortodoxas da cidade. Uma, duas, muitas. A distância, essas cúpulas disputam espaço com edificações mais modernas. Poucos segundos depois, e elas ficam para trás na velocidade do ônibus. Chego à estação de metrô e, aqui, meu primeiro alumbramento com a grandiosidade que irrompe do cotidiano. Descemos um lance de escada rolante. Depois outro; outro e mais outro, e mal vemos o fim. Sim, lembro de ter lido: é em Kiev que estão as estações de metrô mais profundas do mundo, como a mais “funda” de todas, Arsenal’na, com 107 metros. A estação Universytet tem a maior escada rolante
em estações de metrô no mundo, com 87 metros. Observo lustres, paredes em mármore, bustos. As formas do comunismo soam de um glamour vintage. Na estação Ploshcha Kontraktova, uso o recurso de contar: são seis estações a partir desta em que estou. Ao descer do metrô, a subida. Mais lances de escada rolante e, já na superfície, caminho pelas ruas de Kiev até chegar a meu albergue, que fica na rua Yaroslavska, no bairro Podol. O meu olhar “primitivo”, de quem não sabe sequer ler, identifica: vejo muitas placas indicativas, letreiros de farmácias, plaquetas com nomes de praças e ruas; todos pichados. Sim, palavras pichadas. Acima dessas, outras palavras. Fico curioso. No albergue, alguém me explica: como ex-república soviética, a Ucrânia tinha que “obedecer” a diretrizes da Rússia e todas as placas oficiais da cidade eram escritas em russo. Só que, lá,
se fala ucraniano – que é parecido com o russo, mas bem distante dele política e ideologicamente. Grupos separatistas, rebeldes, reescreviam as placas “russas” com pichações em ucraniano. Muitas placas, nas cidades locais, foram substituídas por novas, na língua pátria, depois da “quebra” da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Mas, o Podol, bairro que eu estava hospedado, em Kiev, era longe do centro, fora das áreas turísticas e ali ainda existiam muitas placas pichadas. Pensei nas pichações como cicatrizes à mostra de um passado rebelde.
oBeLiSco Ao conSUMo
Peguei o metrô para a estação Maydan Nezalezhnosti, que me daria acesso à avenida Khreschatyk, uma espécie de “avenida Paulista” de Kiev. Centro financeiro, de lazer e entretenimento, é onde as pessoas caminham, sentam nas praças, bebem e, sim, deixam garrafas
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de cerveja a ermo. Ali está a Praça da Independência, com toda aquela imponência das edificações públicas e um enorme vão, berço dos apoiadores de Yuschenko na Revolução Laranja, em outubro de 2004 – que levou a Ucrânia à independência. Imerso no passado, li num guia de viagens que a Khreschatyk tinha sido bombardeada, na Segunda Guerra Mundial, e depois reerguida, imponente e sóbria. Em seguida, deparo-me com o enorme “M” amarelo da McDonald’s. Assim como ergueu uma enorme loja na Praça Vermelha, em Moscou (Rússia), a cadeia de fast food, símbolo do capitalismo, ocupa um prédio de quatro andares na Praça da Independência de Kiev. Olhando de alguns ângulos, é possível que o “M” do McDonald’s se “encaixe” ao topo do obelisco, símbolo da independência do país, logo na frente. Nada parece mais simbólico.
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Local de encontro de apoiadores da Revolução Laranja, que levou a Ucrânia à independência Estátua da Grande Mãe Rússia no Memorial da Segunda Guerra A cadeia de fast food ocupa um prédio de quatro andares na Praça da Independência de Kiev
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em Kiev, os heróis revolucionários do passado têm, hoje, seus nomes emprestados a locais ocupados por ícones do consumo Caminhando, vejo mais contradições: a poucos passos da Praça Lva Tolstogo, outro dos ambientes destruídos durante os bombardeios da Segunda Guerra, está o shopping Metrograd, cheio de lojas de grifes e o Taras Shevchenko Boulevard, igualmente imponente e chique. Kiev vai se revelando esse lugar em que heróis revolucionários emprestam nomes para locais hoje ocupados por ícones do consumo. Talvez, mostrando que o mundo é muito mais complexo do que o ideário marxista
nos fez supor. Difícil entender que ele não é a utopia imaginada. No bairro Podol, em que estou hospedado, caminho pela Andrivskyj Uzviz, na qual há mercados públicos repletos de produtos naturais, flores, frutas; em que camelôs vendem bonecas babushka. Apesar da moeda local, a hryvnia (lê-se “grivnia”), ser relativamente desvalorizada em relação ao euro, as coisas não são assim tão baratas... Pelo contrário. Foi em busca de objetos mais em conta – e tentando provar comidas típicas da Ucrânia – que achei, por indicação de um colega de albergue, o restaurante Puzata Khata (nas imediações da Ploshcha Kontraktova). Nesse espécie de self service, provei borsch, a sopa de beterraba com porco, e também as inúmeras variações de recheios do varéneke, um tipo de pastel cozido que, em geral, se come com algum molho de cogumelos. Aliás, aqui a iguaria é um item culinário constante. Lembro ter achado estranho comer cogumelo defumado como se fosse presunto, no pão, do café-da-manhã.
ARQUitetURA DA PRece
À noite, de volta ao albergue, depois de mais um dia caminhando pela cidade, uma vontade estranha: a de rezar. A beleza das igrejas de Kiev é tamanha, que somos impelidos a agradecer. São muitas. Numa primeira, a Catedral de São Vladimir, na Vladimirskaya Gorka, cúpulas douradas contrastam com o azul e branco da pintura externa. E visualizo as cores da bandeira da Ucrânia – azul e amarelo – em inúmeras edificações. Na Catedral de Santa Sofia, a poucos metros, a pé, da de São Vladmir, ao invés do azul em
combinação com a cúpula dourada, tem-se o verde. Kiev está à beira do rio Dnipro, tem vários montes, elevações. É dessa geografia que emerge uma premissa que imperadores do passado levaram à risca: estamos numa cidade em que serão criados ambientes bonitos para se rezar. Talvez o mais belo desses ambientes seja o Monastério Lavras (KievoPecheskaya), que conta com uma área em que se pode observar múmias de antigos imperadores ou chefes religiosos. Seria, ali, um belo local para se morrer. De alguma forma, o assunto “morte” começa a aparecer com mais frequência nas andanças por Kiev. Chego ao local de visita da Estátua Mãe, uma espécie de “Cristo Redentor” local, no topo de uma montanha e “guardando” a capital da Ucrânia, do alto. Fico sabendo, em seguida, que essa Estátua Mãe, na verdade, é a Rússia, metáfora de dominação sobre a então “república rebelde” ucraniana. Bem ao lado da estátua, está o Museu da Grande Guerra Patriótica, com mausoléus de heróis e homens que morreram pela pátria. Sinto uma beleza enorme em ver que a rebeldia ainda é capaz de legar emancipações, vitórias. Mas não consigo parar de imaginar as inúmeras vidas perdidas. Mão e contramão. Vias de mãos duplas. Kiev me fez ver como é bela a utopia e como são duras as formas de tentar chegar a ela. Bustos de líderes comunistas ao lado da McDonald’s. Estátua simbolizando a Rússia sobre catacumbas de ex-soldados ucranianos. O reluzir da cúpula da igreja e o brilho do novíssimo modelo de carro BMW. Deixei Kiev, acreditando que ali é mesmo um belo lugar para se rezar.
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FIGURINO Com que roupa eu vou cantar?
A moda assumiu, a partir do século 20, função de destaque na música popular, sendo o primeiro aspecto de identidade do público com seus futuros ídolos TEXTo Débora Nascimento
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no mês de outubro, a banda Restart fez o anúncio de uma mudança em seu visual. O quarteto de pop rock, autodenominado de happy rock, avisou que, com a chegada do novo CD, Geração Z, deixará um pouco de lado as roupas e acessórios coloridos, típicos dos anos 1980, tão marcantes na imagem do grupo. Os quatro integrantes vão, agora, apostar num look mais rock’n’roll, inspirado nas vestimentas do início da carreira dos Beatles. Essa notícia, aparentemente sem relevância, é, no entanto, mais uma amostra do papel que a moda conquistou, a partir do século 20, na música popular, tornando o figurino o primeiro aspecto através do qual o público se identifica
com um artista, antes mesmo de ouvir qualquer nota musical. Essa preocupação dos músicos com a aparência, claro, não começou com os membros do Restart, e muito menos com Lady Gaga, hoje um dos maiores símbolos do uso de figurino para vender música. Isso vem se firmando, cada vez mais, no mercado fonográfico. “A moda e a música são duas formas intimamente conectadas de mundanidade, duas práticas sociais que andam de mãos dadas, sustentando uma a outra nos meios de comunicação de massa e se alimentando de sensibilidade comum, que se traduz em gosto”, afirma a escritora Patrizia Calefato, em The clothed body. No Brasil, um dos exemplos mais famosos de uso de indumentária para incrementar uma performance está em Carmen Miranda. A cantora portuguesa, radicada no Rio de Janeiro, ganhou fama contando não apenas com seu talento e carisma, mas também trajando roupas, acessórios e balangandãs extravagantes. A saia repleta de babados, o turbante colorido com enfeites de frutas, a maquiagem marcante, as diversas pulseiras e as sandálias de salto plataforma fizeram da intérprete uma das imagens mais reconhecíveis mundo afora, assim como Che e sua boina. Nos EUA, onde passou a trabalhar, a partir de 1939, seu visual exótico foi bem-recebido. No entanto, a composição alegre, continuamente explorada nas dezenas de filmes em que atuava, carregava ideias preconcebidas sobre o south american way, tornandose um fardo para a própria artista, a ponto de ela querer mostrar-se sem os adornos folclóricos. A resposta dos executivos da Fox foi ultrajante: não somente a obrigaram a usar todo o aparato, como ainda foi feita uma montagem em cena, a contragosto, na qual ela aparece carregando o imenso turbante de bananas na coreografia de The lady in the tutti-frutti hat, trecho do musical The gangÁ s all here (1943). Depois desse episódio, a estrela ainda permaneceu no estúdio até 1947, mas, logo, assinou contrato com a MGM, na qual ficou até sua morte, em 1955. Assim como a Pequena Notável, Luiz Gonzaga também é outro exemplo de artista brasileiro que ficou marcado pelos trajes, com a diferença de que os
vestia de bom grado. Mas nem sempre se apresentou da maneira que ficou registrada no imaginário popular. No início de sua carreira, o músico fazia shows vestido como um crooner, envergando um elegante paletó e um distinto chapéu, que lhe rendiam ares de galã, de acordo com os apelos da época. A partir do momento em que começou a compor e a cantar músicas baseadas nos ritmos nordestinos, o sanfoneiro passou a modificar seu guarda-roupa, primeiro usando um chapéu de couro, para, em seguida, radicalizar. “O Rei do Baião queria representar plenamente sua terra. Nesse ano de 1953, ele trocou, então, o terno de casimira por um gibão de couro, a gravata por uma cartucheira, o sapato de verniz por sandálias, e adquiriu um modelo de chapéu maior, mais vistoso e parecido com o de Lampião”, conta Dominique Dreyfus, no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. Esse visual, inspirado nas vestimentas dos cangaceiros, tornou-se um emblema tão forte para o forró quanto a jaqueta preta de couro para o rock. A tal peça de roupa, típica dos Estados Unidos, teve sua primeira grande difusão com o filme O selvagem, coincidentemente lançado em 1953, ano em que Gonzagão copiou o look de seu ídolo, Lampião. Na película, o ator Marlon Brando vestia jaqueta preta de couro, complementando com calça jeans, camiseta de algodão, botas e boina. Foi a faísca que disseminou toda uma cultura de como o jovem deveria se vestir (e até se comportar). Esse visual, ainda reforçado pelo filme Rebelde sem causa (1955), com James Dean, influenciou milhares de adolescentes, como o jovem de Memphis, Elvis Presley. Nesse período, a palavra roupa deixava de designar apenas um artefato que atendia às demandas climáticas, para virar objeto com outros significados. “O vínculo, portanto, entre o produto e um conteúdo que se lhe imputa passa a ser como que necessário, de tal modo que, ao ser adquirido, não é apenas uma roupa que está sendo comprada, mas tudo aquilo que ela representa”, afirma Umberto Eco, em Viagem na irrealidade cotidiana.
UniFoRMe De JoVeM
Não demorou, então, até essa configuração rocker tornar-se uma espécie de fardamento para muitos
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jovens, inclusive os integrantes dos Beatles, em seus primeiros shows. A partir de 1963, e durante a fase iê-iê-iê, o grupo passou a usar terninhos. Dentre eles, o célebre modelo, eternizado na capa do single I want to hold your hand, que foi confeccionado pelo alfaiate Douglas Millings, sob influência da collarless jacket (jaqueta sem colarinho), inovadora criação do estilista francês Pierre Cardin, um dos responsáveis pela revolução na moda, na década de 1960, e pelo advento do prêt-à-porter. Essa ideia de uniformizar conjuntos musicais ganhou bastante projeção nos sixties e pode ser vista tanto em grupos masculinos quanto femininos, tornando-se uma espécie de “febre” ou “praga” fashion da época. Até os Rolling Stones, que eram mais “contra a corrente”, chegaram a utilizar o artefato para fazer suas primeiras fotos de divulgação. “Nunca vi ninguém perder um terno tão rapidamente”, afirmou Keith Richards, sobre o fato de não ter gostado da vestimenta “careta”. Os famigerados terninhos também fizeram parte do visual teddy boy, típico dos anos 1950, e também do mod,
A ideia de uniformizar conjuntos musicais ganhou projeção nos anos 1960, sugerindo uma ideia de laços fraternais disseminado na Londres dos anos 1960, por grupos de rock como o The Who, no início da carreira. O look transmitia um ar de sofisticação, mas sem deixar de ser cool. O estilo, que arrebatou a Swinging London, é considerado por especialistas em moda como um dos mais influentes de todos os tempos. Trinta anos depois, ele voltou a ser fonte de inspiração para o guarda-roupa de bandas da “nova cena do rock”, como Strokes e Franz Ferdinand, e do badalado produtor musical inglês Mark Ronson. Ao contrário do The Who, que passou a modificar seus trajes e se mostrar de forma mais espontânea, o Ramones, o estimado grupo de punk rock americano, usou e abusou do primeiro (e único) visual que lhe marcou. O guitarrista
Johnny Ramone, que costumava assumir a liderança do quarteto do Queens, obrigava os integrantes a vestirem-se sempre da mesma forma: jaqueta preta de couro, camiseta de algodão, calça jeans, tênis e, finalizando, o famoso corte de cabelo de franjão. Mas o maior exemplo de que o punk rock foi célebre em lançar moda não está nos Ramones. E, sim, nos Sex Pistols. Apesar de não ter criado esse visual, a banda inglesa acabou sendo seu principal canal de divulgação. “Cria de laboratório” do produtor Malcolm McLaren, o grupo foi produzido por ele com a função paralela, além da música, claro, de promover a marca Sex, da loja de roupas Let It Rock, de McLaren e sua esposa, a estilista Vivienne Westwood. Mas, na realidade, o estilo, que incluía o cabelo espetado, foi absorvido do músico americano Richard Hell (da banda pré-punk Televison), que o produtor conheceu na casa de shows CBGB’s, quando estava em Nova York. A carreira de Vivienne resistiu ao fim do grupo, em 1978, e ela vem seguindo, até hoje, como um importante nome da moda mundial. No Brasil,
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GoLA cARecA ternos usados pelos Beatles, em 1963, foram inspirados em criação de pierre Cardin
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O Selvagem, de 1953, com o ator marlon Brando, lançou o visual rocker
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sua assinatura consta em modelos da Melissa, servindo como chancela para a venda da marca de calçados de plástico no mercado internacional. O movimento punk não somente deu às pessoas o direito de usar camisetas de algodão com dizeres rebeldes, a partir daquelas que o vocalista do Sex Pistols, Johnny Rotten, e o guirrista do Television, Richard Lloyd, usavam (com as frases “Eu odeio Pink Floyd” e “Mate-me, por favor”, respectivamente), como também o de circular por aí com acessórios de metal e cabelos desgrenhados, espetados e... sujos. A repercussão e popularização desse visual foi tamanha, que ele acabou sendo consumido por conceituadas marcas e grandes redes de lojas – o que pode ser conferido em qualquer magazine. Desde então, ninguém mais se espanta ao ver alguém circulando por aí com uma calça jeans rasgada e um corte moicano nos cabelos (hoje, um dos mais caros dos salões de beleza), que, da cabeça de Joe Strummer, vocalista do The Clash, chegou à do jogador Neymar, do Santos, virando sua “logomarca”, copiada por fãs e outros jogadores.
eLoGio PeLA cÓPiA
A cópia, em alguns casos, é uma espécie de elogio e comprovante de sucesso. Nos anos 1950, o imenso topete repleto de brilhantina do Rei do Rock foi emulado à exaustão por diversos músicos, a exemplo dos adolescentes George Harrison e John Lennon – que ainda usava óculos iguais aos de outro ídolo seu, Buddy Holly. Num dos trechos engraçados do documentário sobre Harrison, Living in the material world (2011), de Martin Scorsese, Paul McCartney dá um depoimento no qual imita a voz de um colega de turma do colegial que costumava zombar da cabeleira à Elvis do ex-guitarrista dos Beatles: It’s a fucking turban! (em tradução livre, “É um baita turbante!”). No quesito “estilo de se vestir”, a carreira do Rei do Rock teve dois grandes momentos – o primeiro, dos anos 1954 até 1968, e outro, imediatamente posterior, quando, inspirado na vestimenta dos lutadores de karatê, esporte que praticava, teve a ideia de criar um macacão branco adornado com enfeites e detalhes brilhosos. (Há também rumores de
que a roupa foi reproduzida de um dos figurinos do cantor Liberace, de quem era amigo.) Essa indumentária acabou se transformando na imagem máxima de Elvis, mesmo numa fase em que sua carreira já estava estagnada e ele se encontrava em luta com a balança e as drogas. Esse visual foi, e é, até hoje, copiado mundo afora, inclusive no Recife, pelo cantor Reginaldo Rossi, o Rei do Brega. Um dos célebres macacões de Elvis, que tinha um pavão bordado em azul e dourado, foi vendido a um fã, em agosto de 2008, por US$ 300 mil (R$ 477 mil), batendo recorde de valor dentre peças, já leiloadas, do seu guarda-roupa. Apontado como “um branco que cantava música de negro”, Presley, sem pretender, tornou-se uma figura essencial na aproximação entre as raças segregadas nos Estados Unidos, processo que ganharia força nos anos 1960, com a propagação de personalidades emblemáticas como o ativista Martin Luther King, o comediante Bill Cosby e o ator Sidney Poitier. Nesse contexto, surgia, em Detroit, em 1959, a Motown, gravadora voltada apenas para músicos negros. Para aprimorar seu cast, em 1964, a empresa contratou Maxine Powell, que fundou o Departamento de Desenvolvimento de Artistas da Motown, responsável por transmitir regras de etiqueta e de comportamento aos contratados, além de consultoria para assuntos de moda. A instrutora os preparava com extremo rigor, cuidando da aparência dos artistas, que se apresentavam impecáveis dos sapatos aos penteados. O resultado disso podia ser conferido na elegância dos Temptations, Stevie Wonder, Lionel Ritchie, Smokey Robinson & The Miracles, Jackson Five e Marvin Gaye, entre outros. Num tributo a Powell, na Broadway, em 1975, Diana Ross, ex-membro do trio Supremes – no qual envergava deslumbrantes vestidos – apresentou a homenageada como “a senhora que me ensinou tudo o que sei”. Para a musicóloga Jaqueline Warwick, a uniformidade dos grupos femininos da Motown domesticou a performance musical feminina numa esfera privada, com uma imagem que indicava relacionamentos familiares (em vários casos, membros desses grupos eram, de fato, parentes). “Vestir-se da
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mesma forma pode, de um lado, parecer reminiscência de gangues e agressão. No caso da música pop, pode sugerir algo diferente: a segurança do seio da família, da casa e do lar”, afirma Janice Miller, no livro Fashion and music, lançado em setembro, nos Estados Unidos.
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Na década de 1970, além do punk, mais outros quatro gêneros musicais também se lançaram e utilizaram componentes visuais específicos para se promover. Um deles, o heavy metal, começou a se destacar por um rock pesado, tocado em alto volume, e com os integrantes das bandas exibindo longas cabeleiras e vestindo roupas pretas. Até hoje, os headbangers, os “batedores de cabeça”, fãs do estilo musical e seus subgêneros, podem ser facilmente reconhecidos nas ruas. Naqueles anos, o hip-hop e o reggae viriam exaltar, cada um à sua maneira, a cultura negra e o orgulho da
raça, e isso se percebia também no modo de seus ouvintes se vestirem. Da Jamaica, Bob Marley, Peter Tosh, entre outros, propagavam os dreadlocks, espessas mechas de cabelos unidas, além de roupas com as cores do país. Já a cultura hip-hop abusava do street wear, com calças jeans folgadas, camisetas grandes, bonés, tênis (geralmente, de marcas famosas e caras) e, em alguns casos, acessórios de prata, ouro e até pedras preciosas. Mas, por outro lado, há músicos que criticam essa faceta consumista do movimento. O Public Enemy, por exemplo, optou por não usar joias caras, numa atitude contra o materialismo. Ainda naquela década, o glam rock, ao contrário do punk, reggae, heavy metal e hip-hop, trouxe uma postura mais libertária com relação aos limites entre os sexos, explorando bastante a androginia. A figura top desse estilo chamava-se David Bowie, que se tornou o maior ícone da moda dentre os músicos, mesmo tendo fortes concorrentes como Little Richard, James Brown, Prince, Brian Ferry, Brian Eno,
Mick Jagger, Michael Jackson e o man in black Johnny Cash. Ao abandonar o visual mezzo comportado do início da carreira (afinal, chegou a manter cabelos longos no começo dos 1960 e, de vez em quando, vestia-se de mulher, segundo a biografia Bowie, de Marc Spitz), o músico inglês passou a usar roupas extravagantes, cabelos bem coloridos, salto alto, maiôs e toda sorte de maquiagem, e deu a si um novo nome: Ziggy Stardust. A criatura, surgida em 1972, esteve presente em música, disco, show e fez tanto sucesso, que estava ficando maior que seu criador. Por isso, ganhou morte premeditada, em 1973. Mas Bowie, desde então, nunca deixou de surpreender a plateia com sua contínua renovação de aparência. Vale lembrar que o eco do glam – ou glitter rock – chegou até ao Brasil, na indumentária do Secos & Molhados, que, segundo relatos, teve sua maquiagem copiada pelo Kiss, grupo de hard rock e heavy metal americano. Assim como Bowie, conhecido como o Camaleão do Rock, tanto por
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DAViD BoWie o personagem andrógino Ziggy stardust, figura máxima do glam rock, alçou o cantor inglês à condição de ícone fashion
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MADonnA a cantora pop, com sua moda boy toy, transformou-se em símbolo de libertação feminina nos anos 1980
do icônico figurino de Jean Paul Gautier para a turnê Blond ambition (1990). O poder da Rainha do Pop é tão grande, que qualquer peça que utilizar tem um imediato potencial mercadológico. Não contente com isso, ela, em 2012, vai lançar a própria marca de roupas.
inSPiRAÇÃo PoPULAR
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seu ecletismo musical quanto pela diversidade de estilos com que se apresenta, outra figura também pode ser enquadrada nesse perfil. A cantora Madonna, além de fazer variações de gênero musical em cada um de seus discos, também surge com um visual diferente, sempre que um deles é lançado. Mesmo com o look andrógino de Chrissie Hynde (ex-Pretenders), Annie Lennox e Sinèad O’Connor (que raspou a cabeça para contrariar a gravadora) e o despojamento de Cyndi Lauper e Cher, a Material Girl, quem diria, passou a ser apontada como símbolo da libertação da figura feminina nos anos 1980, inspirando uma infinidade de cantoras pop. Sua influência pode ser percebida em Beyoncé, Rihanna, Kylie Minogue, Lady Gaga, Britney Spears, Cristina Aguilera, Shakira e até em Joelma (da banda paraense Calypso), e em grupos como Spice Girls. A autora Sheila Whiteley, em Too much, too young – Popular music, age and gender (2000), fez uma leitura feminista das Spice Girls como provedoras de possibilidades para a identidade
Para Sheila Whiteley, tanto Madonna, quanto as Spice Girls postularam um modelo de liberação para as adolescentes feminina, ao apresentarem cinco imagens diferentes. Para ela, as cinco garotas inglesas, assim como Madonna, postularam o modelo de potencial liberação para jovens mulheres das limitações da feminilidade. Em Madonna, isso teria sido simbolizado através da moda boy toy (brinquedo de garoto) – luvas de renda, cinto com o brasão Boy Toy, legging, couro e minissaia. Para o historiador John Fiske, em Reading the popular (1989), “o apelo de Madonna para suas fãs meninas (wanna-bes) reside largamente no controle que ela tem de sua própria imagem e em sua asserção de direito à uma sexualidade feminina independente”. Hoje, a conexão da cantora com o mundo fashion vai além
Além do figurino destinado a shows, alguns artistas também lançaram moda, ao utilizar elementos peculiares. Isso ocorreu nos anos 1990, em dois movimentos musicais. Tendo à frente bandas como o Nirvana, Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chains, o grunge, surgido em Seattle (EUA), mostrava sua face, com os músicos usando bermudões folgados, botas e camisas de flanela – a indumentária dos lenhadores da região. Foi o bastante para que os fãs ao redor do mundo se vestissem da mesma forma – até as lojas populares passaram a vender produtos, apropriando-se do visual desses novos rock stars. Paralelamente, o Recife, que passou a ser chamada na mídia de “a Seattle brasileira”, começava a lançar diversas bandas, dando origem ao manguebeat. Conceberam um manifesto e elegeram como acessório-chave o chapéu de palha, artefato usado por pescadores e agricultores no nordeste do Brasil. A peça seguiu firme até poucos meses após a morte de Chico Science, compositor e vocalista da Nação Zumbi, em março de 1997; depois, caiu em desuso, mas até hoje é lembrada como um símbolo desse levante artístico, que colocou Pernambuco de volta ao cenário da música popular brasileira contemporânea. Segundo afirmou o músico Noel McLaughlin, em Rock, fashion and performativity, “o sentido de se vestir será mudado, alterado, amplificado e contestado pelas convenções musicais e performáticas e associações nas quais estas estão inseridas”. O sentido de se vestir pode até ser afetado, desde que não seja pelo vestido de carne de Lady Gaga.
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TAPAS Quando basta o cair da noite
Tradição espanhola, o hábito de petiscar bocadinhos acompanhados de bebidas é vivido com prazer pelo boêmio brasileiro texto Eduardo Sena Fotos Ricardo Moura
“Vinham para o aperitivo, o pôquer de dados, os acarajés apimentados, os bolinhos salgados de bacalhau a abrir o apetite. O número crescendo, uns trazendo outros, devido às notícias sobre a alta qualidade do tempero de Gabriela. Mas muitos deles demoravamse agora um pouco mais além da hora habitual, atrasando o almoço, desde que Gabriela passara a vir ao bar do árabe Nacib.” O trecho do livro Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado, traduz a efervescência mundana nos bares de Ilhéus, no sul da Bahia, ainda na primeira metade do século 20. Regados à comida, bebida e conversa sobre os acontecimentos locais, os dias e as noites no bar de Nacib ganharam vida com o talento culinário de Gabriela.
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A cena se repete diariamente em Barcelona e outras cidades espanholas: cai a noite e, de bar em bar, grupos de amigos se divertem à cata de boas bebidas e saborosos petiscos da região, as famosas tapas. Sangrias e taças de vinho ou cava, o espumante local, fazem par perfeito com a variedade de comidinhas, que podem ser desde simples fatias de presunto cru arrumadas em um prato, até queijos, sopas frias, lulas crocantes e uma infinidade de bolinhos. O costume, praticamente uma instituição espanhola, é conhecido como “ir a tapas” ou, simplesmente, tapear. Mas, muito além de pequenos acepipes com base em ingredientes tipicamente espanhóis, as tapas, ou melhor, o tapear corporifica uma espécie
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de modus vivendi que corresponde ao atávico hábito de conversar, trocar ideias, embalado por uma bebida de efeitos póstumos irreparáveis, comendo algo que transita entre o divertido, o interativo e o simples. “Na prática, tudo pode virar tapas. Não existe uma regra que diga que para ser tapa tenha que ser da Espanha, e com ingredientes típicos espanhóis. O que eles chamam de tapas, nós chamamos de petiscos, entradinhas. É simplesmente uma questão de nomenclatura e tradução”, atesta a chef de cozinha Raline Aragão, que é embaixadora gastronômica da cozinha espanhola no Brasil, título concedido após experiência no programa de intercâmbio e formação de profissionais em alta gastronomia.
Esse ethos boêmio motivou a sóciaproprietária do Anjo Solto, Ângela dos Anjos, a pensar em entradinhas que representassem esse agradável expediente espanhol. A creperia, mesmo tendo mais de 100 tipos de crepes à disposição no cardápio, transgride o escopo da iguaria de origem francesa, agregando ao seu menu alguns belisquetes, capazes de fazer o público desistir da especialidade da casa e ficar experimentando os petiscos. “Há pouco mais de quatro anos, notei que os clientes nem sempre vinham ao Anjo comer o crepe. Como sempre tivemos um apelo mais boêmio, com uma forte carta de drinques, contratamos uma consultora para conceber o menu Tao, que traz essas pequenas entradas ideais
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para acompanhar a bebida e rechear uma conversa”, conta Ângela. Com base na culinária nikkei, entre os destaques que o menu Tao oferece está o canapé Terra e Mar, tapa que consiste em torradas com cobertura de um refogado de camarão e cogumelos gratinados no forno, e um antepasto de queijos e ervas finas acompanhado de chips da massa de crepe. “Normalmente, não são pratos individuais, mas porções que podem ser dividas pela mesa”, pontua.
sUpeRlAtiVA
E, se o lema é compartilhar comida e conversa, o empresário do setor gastronômico Arnaldo Motta proporciona, de Salvador a Belém do Pará, uma iguaria superlativa, batizada de Cebola Colossal. Do tipo Vidália, é importada de terras vulcânicas da Austrália, pesa entre 500 e 700g, e, por conter um teor elevado de água e açúcar, é mais doce e não tem a ardência presente em todas as outras espécies irmãs. Disponível na capital pernambucana, nas casas El Chicano e Nakumbuca (ambientes de deleite para quem procura tapear no melhor
na culinária contemporânea, as despojadas tapas têm sido adaptadas ao estilo de variadas cozinhas do mundo estilo), o alimento serve bem quatro pessoas e é um acompanhamento que rima com chope e cerveja. No preparo, é empanada e frita (em imersão), resultando em um aperitivo sequinho e de apresentação interessante. “É o campeão de vendas da nossa casa, desde que o trouxemos”, ressalta Arnaldo. Na zona norte do Recife, o restaurante Manuel Bandeira (que funciona no casarão onde viveu o poeta homônimo, no bairro das Graças) também reverencia à tradição espanhola, com um flerte na cozinha internacional. Com cardápio concebido pela chef Karyna Maranhão, a casa oferece como opção de entrada um mix de bruschettas com sabores multiculturais: funghi
com parmesão, queijo brie com salsa de damascos e camarão com queijos e tomate confit. “A ideia foi a de oferecer uma entrada eclética, que carregasse, além do hábito das tapas, um apelo da cozinha fusion, mantendo a tradição dos famosos happy hours do restaurante Mafuá do Malungo, que já funcionou nesse espaço”, explica Karyna.
TAPA nA RUA
Mas tapa que é tapa não precisa de local específico para existir. Por isso mesmo, não é apenas encontrada dentro da formalidade dos restaurantes. No calçadão da avenida Boa Viagem, despretensiosamente elegante, ganha códigos de alta gastronomia, fazendo uma ode ao profano hábito espanhol. No lugar dos habituais açaí, coco verde e salgados, espumantes e petiscos gourmets dignos de “acabar” com as corridas saudáveis praticadas no local. Ponto de encontro de chefs de cozinha da cidade e de gastrônomos de plantão, a Barracuda é ótima parada para quem quer bater um bom papo e beber um vinho com deliciosos acepipes.
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Refogadode cogumelo com camarão sobre torradas forma o canapé Terra e Mar
2 ceBolÃo Da Austrália para o Recife, a Cebola Colossal é tapa superlativa que requer partilha Nestas páginas 3 BARRAcUdA
Mexilhões com roquefort são servidos em restaurante à beiramar de Boa Viagem
4 simples Chips de creme com antepasto de queijos estão entre as tapas mais pedidas do Anjo Solto
4
Partindo da premissa de que a comida ideal de um lugar nada mais é do que a sua paisagem em versão comestível, o empreendimento faz jus à sua localização e disponibiliza alguns pequenos luxos à beira-mar: mexilhões com roquefort, barquete de salmão e coquille de camarão. À parte os ingredientes do mar, há o queijo brie com geleia adocicada de pimenta, guarnecido com torradinhas. O menu é do chef Jeff Collas, também responsável pela cozinha do Maison do Bonfim, que traz tudo pronto de sua cozinha em Olinda. “Por conta da lei de manipulação de alimentos na praia, não produzimos nada na Barracuda. Toda a comida vem porcionada, embalada em formas descartáveis e etiquetada”, explica o chef. A ideia dos idealizadores do espaço, Carla Leite, Jeff Colas, Ana Lins, Lou Melo e Guga Pedrosa, foi incrementar a antiga barraca de coco da mãe de Carla e transformá-la num charmoso ponto de encontro para quem quer apreciar momentos de relaxamento, curtindo a brisa do mar. No quiosque,
o cardápio ainda conta com agradáveis surpresas. Toda quarta-feira, o espaço recebe um chef convidado, que prepara um minimenu de tapas. E, cada chef agregado, ou “barracudo”, como brinca o grupo, precisa se adequar à estrutura existente: freezer, geladeira, microondas e forno elétrico. Entre os nomes que já estiveram no espaço, Biba Fernandes (Chiwake), Cláudio Manoel (La Comedie), César Santos (Oficina do Sabor), Yoshi (Sushi Yoshi), Hugo Prouvot (Club du Vin), Joca Pontes (Ponte Nova), André Falcão (La Pasta Galleria), Paula Labaki (LenaLabaki Catering), Paulo Pinho (Alvorada – Araras).
pAssAdo moURo
Em espanhol, a palavra tapa significa tampa. O termo remonta aos tempos em que as canecas de bebida recebiam uma fatia de pão ou um pires com alguma gostosura em cima, para petiscar – e evitar que insetos caíssem na bebida. Essa é a hipótese mais aceita de seu surgimento. Contase que, no sul do país, na região de Sevilha e arredores, os confrades se
reuniam para tomar um copo de jerez (tradicional bebida destilada de sabor requintado) ao final da tarde. Para proteger o jerez de insetos atraídos pelo doce da bebida, cada copo costumava ser coberto com uma tampa – ou, literalmente, tapa. Sobre essa tampita, invariavelmente, era depositado um tira-gosto muito simples: azeitonas ou um pedaço de peixe seco. “Costumo dizer que tudo o que cabe em um pires que tampa um copo, é tapa”, aponta Raline Aragão. Aliás, elas mudam de nome e formatos em cada região da Espanha. No País Basco, por exemplo, chama-se pincho. No Brasil, a lista de sinônimos é extensa: petisco, tira-gosto, quitute, acepipe, entradinha... Em linhas gerais, divertimentos de boca que costumam ser apreciados naquele ocioso tempo entre as refeições. Ainda sobre sua origem, alguns estudiosos lembram que não se pode esquecer da presença moura por quase 700 anos na Península Ibérica, em Sevilha, região considerada a capital nacional das tapas, de onde o hábito se irradiou para os outros bares da Espanha. A ascendência cultural muçulmana teria servido de pavimento mais remoto para o desenvolvimento da cultura das tapas. No Norte da África, ainda hoje, o povo beduíno tem no hábito de servir pequenos, sequenciados e elaborados pratos como sinal maior de hospitalidade. Tanto melhor. A humanidade inteira merece boas tapas.
onde encontRAR Lugares para tapear no Recife
Anjo solto Avenida Herculano Bandeira, 513, Galeria Joana D´Arc, Pina
BARRAcUdA Avenida Boa Viagem, Posto2, Quiosque 3, Pina
El ChiCano Rua Sebastião Alves, 45, Parnamirim
Manuel Bandeira Rua Fernando Lopes, 778, Graças
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PANO RÁPIDO Histórias contadas em confrarias
JOÃO SOUZA LEÃO
Joca Souza Leão narra em livro fatos engraçados, ocorridos com personalidades ao longo do século 20 TEXTo Adriana Dória Matos
Leitura
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crônica é aquele tipo de texto lesinho,
que nos dá a impressão de que foi escrito com tanta facilidade quanto se mostra a sua leitura. A gente vai sendo levada pela conversa escrita e, quando percebe, está com uma meia-lua nos lábios ou deixando escorrer uma lágrima. E tudo que a envolve (atenção, leitor, que fique claro: estamos falando aqui da boa crônica) é leveza, graça, despretensão. Há um “não lugar” no gênero – nem conto, poesia, artigo, nem reportagem; podendo ela ser tudo isso, afinal – o que garante ao seu autor uma liberdade rara de criação. Quando a crônica agrada ao autor e ao leitor, é assim como um casamento perfeito. E foi essa relação harmoniosa e duradoura que se estabeleceu entre autores como Rubem Braga (“o cronista”), Carlos Drummond de Andrade, Antônio Maria, João do Rio (grande entre os grandes), Paulo Mendes Campos, entre tantos outros maravilhosos do gênero, e seus leitores.
É provável que o bem-querer e a fidelidade já se tenham estabelecido entre Joca Souza Leão, que vem batendo ponto como cronista há algum tempo nas páginas de jornal, e seus leitores. Ele contou, na crônica Pra homem nenhum, que foi quando se aposentava da publicidade, que acabou se decidindo pela função: “Acho que posso fazer o que sempre fiz: ‘escrever’, pensei. ‘Mas escrever o quê?’ Ora, se a vida toda escrevi parábolas sobre produtos, que tal tentar parábolas sobre o cotidiano? Crônicas. E comecei. Com mil dúvidas. Entre elas, se o gênero ainda tinha leitores. Dúvida dissipada logo. Já na terceira crônica, recebi dezenas de mensagens, centenas de manifestações de apoio… e quatro intimações judiciais”. Quanto à última frase da citação acima, é que, nas suas crônicas, Joca gosta de cutucar o Diabo com vara curta, sobretudo ao polemizar temas urbanos, obtendo resultados que, muitas vezes,
nem mesmo os textos sérios das páginas informativas conseguem: incomodar, a ponto de captar a adesão imediata dos leitores e a fúria dos criticados. No caso comentado por ele em Pra homem nenhum, foi uma briga que arrumou com um dono de faculdade. Mas ele já se meteu em assuntos como a negociação para compra do terreno do Hospital da Tamarineira (que queriam transformar em shopping), na ideia de mudar a fachada do edifício JK (pretendiam envidraçar o sóbrio projeto moderno), na recente colocação de gelo baiano na Praça dos Manguinhos (ele tem até um projeto de transformar esses feios ordenadores de tráfego em canteiros de plantas). Já tratou de temas mais amenos, como a chegada dos crematórios ao Recife, a poluição sonora nos restaurantes, a derrubada de árvores dentro de um clube privado, chegando ao que poderíamos chamar de cerne da
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REPRODUÇÃO
1-2 autor e obra
Joca Souza Leão selecionou de seus textos publicados em revista aqueles mais perenes e foi em busca de novas histórias. O projeto gráfico e as caricaturas do livro são de Ricardo Melo
crônica brasileira: as pequenas cenas e sensibilidades do cotidiano. Com seus textos semanais, ele vem curtindo a resposta do público e comprovando o que se apontava desde o início: que as pessoas gostam de ler textos dessa fatura, ainda que a crônica tenha escasseado nos veículos de grande circulação, indo se alojar (confortavelmente) na internet. Além do cronista que vem se firmando, Joca (apelido que virou o nome de João Augusto, ainda há tempo de informar) também verga o contador de histórias. E é nessa persona que vamos nos centrar agora. Assim como se alojou nas páginas de opinião do Jornal do Commercio, ele também encontrou guarida nas páginas de revista, em que manteve uma coluna de pequenas narrativas. Pano rápido foi publicada por mais de dois anos na Algo Mais, e era composta de histórias que o autor vinha colecionando desde criança, principalmente por ser filho de
um contador de venturas e desventuras, Caio de Souza Leão. “Meu pai sempre manteve em casa o que a gente pode chamar de saraus. Então, quando eu e meus irmãos éramos meninos, muitas vezes, acordávamos de madrugada, não com outra coisa, mas com as risadas do pessoal lá embaixo. Isso me marcou muito”, afirma o cronista. Do que publicou na coluna, Joca empreendeu uma seleção dos textos mais perenes e editou o livro Pano rápido (Cepe). Nesse trabalho, contou com a colaboração de Ricardo Melo, que, sendo hoje diretor de produção e edição da editora, vem de longa experiência como designer gráfico e caricaturista. “Quando começamos a conversar sobre o projeto do livro”, afirma Joca, “colocamos sob temas as histórias que haviam sido publicadas na Algo Mais. Reescrevi algumas, dando-lhes tratamento mais literário, e fui buscar novas histórias, que acredito serem de 20 a 30% do total”. Diferentemente dos assuntos das citadas crônicas de jornal, que – embora possam também trazer um tom memorialista – estão centradas na atualidade, as pequenas narrativas (se você chamar de “notas”, caro leitor, tenha certeza de que vai puxar uma briga com um enfezado Joca) de Pano rápido têm um tom francamente vintage. Porque elas se referem a pessoas de tempos antigos, gente que viveu na primeira metade do século passado, ou são personagens da convivência do próprio autor, de sua geração ou pouco mais velhas ou mais novas.
o livro tem uma inflexão vintage, já que boa parte das histórias contadas traz personagens de tempos antigos
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Assim, o livro mantém diálogo sobretudo com uma patota, como se a publicação fosse uma materialização das conversas entre pares, em mesas de bar, varandas e salas de estar. Um memorial de convivência e falação, testemunho de um estilo de vida herdado do pai e reproduzido entre amigos. Dessa confraria que é Pano rápido extrai-se o modus vivendi de homens com afinidades, entre outras, no campo político, literário e etílico. Boêmios que contam histórias uns para os outros, de fatos engraçados (e superdimensionados, muitas vezes) ocorridos com gente conhecida. Para ajudar aqueles que desconhecem os personagens citados no livro – cuja graça recai também na sua aparência de almanaque e nas caricaturas de Ricardo Melo – o autor oferece aos leitores um “quem é quem”, em que traz informações de caráter histórico e afetivo sobre eles. Agora que tomou gosto pelo negócio, Joca Souza Leão – como todo publicitário que se preze – anuncia para o ano que vem um livro de crônicas, seleção que não vai ser difícil, pelo monte de textos que ele já tem.
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DIVULGAÇÃO
Leitura FREI BETTO Ensaísta cede ao romancista
Minas de ouro é empenho criativo de mais de uma década e um investimento no romance histórico TEXTo Gianni Paula de Melo
em sua mais recente passagem pelo Recife, na ocasião da 7ª Fliporto, Frei Betto declarou estar interessado em escrever sobretudo ficção, pois acredita que sua capacidade para o ensaísmo se esgotou. O recentemente lançado Minas do ouro é a confirmação de que o romancista está se sobressaindo, empenhado numa produção textual de fôlego. A publicação é resultado de um trabalho que durou 13 anos, somados os tempos de pesquisa e criação, levando Frei Betto à leitura de cerca de 120 livros. O desejo de fazer um romance sobre a história do seu lugar de origem surgiu no início da década de 1980, mas tinha outra proposta. A princípio, o livro estaria centrado nas memórias ligadas à mina de Morro Velho, em
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INDICAÇÕES Nova Lima. No entanto, o volume de material recolhido durante seus estudos, entre manuscritos antigos, mapas, papéis de contabilidade e publicações raras, desencadeou uma ampliação do projeto sobre Minas Gerais. Minas do ouro começou a ser redigido em 1997 e narra a saga da família Arienim, portadora de um mapa de inesgotáveis fontes de riquezas que é repassado para as novas gerações durante cinco séculos. Os fatos relacionados à macrohistória do estado, como as entradas e bandeiras, a Guerra dos Emboabas e o Triunfo Eucarístico são secundários, mas servem de pano de fundo para situar a passagem do tempo e contextualizar a vida dos personagens. A dedicação à escrita de um romance histórico, na contemporaneidade, requer empenho criativo e coragem, já que esse gênero não é facilmente abraçado pelos leitores em geral. Ainda que a narrativa se desenrole de forma bastante fluida, os elementos próprios de uma escrita barroca estão presentes no livro, e o autor reconhece que buscou inspiração nos Sermões de Padre Antônio Vieira. Contudo, a influência dos textos do jesuíta não dificulta a leitura ou o envolvimento com a história, seus rebuscamentos característicos são atenuados na escrita de Frei Betto. Além disso, não podemos dizer que o livro segue os romances históricos à risca. Diferentemente do padrão de enredo desse gênero, Minas do ouro dispensa a exaltação de seus protagonistas e exibe suas fraquezas. Também está povoado por anti-heróis e figuras humanas contraditórias.
POESIA
ANA MARTINS MARQUES Da arte das armadilhas
ROMANCE
ENRIQUE VILA-MATAS Dublinesca
CONTO
Dublinesca faz parte de uma coleção de oito títulos do autor, lançados no Brasil pela editora. Embora com enredos variados, os romances de VilaMatas são desdobramentos de uma “obsessão temática”: o constante diálogo com a literatura. O livro nos coloca às voltas com um escritor de meiaidade em crise existencial.
Record
O novo livro da mineira reafirma o estilo apresentado em Vida submarina. Seus poemas condensam lirismo e leveza, mas, apesar de remeterem ao prosaico, eles podem ter um efeito cortante. A obra combina metáforas e proposições ingênuas com doses generosas de acidez e sobriedade.
CRÔNICAS
ROMANCE
Companhia das Letras
MARIA RITA KEHL O 18 crônicas e mais algumas Boitempo Editorial
Qual seria a função do psicanalista ao escrever para a imprensa? É com essa reflexão que a autora abre sua coletânea de textos publicados na mídia. A obra traz 18 crônicas de sua coluna n’O Estado de S. Paulo’, incluindo Dois Pesos..., texto que motivou o cancelamento de seu contrato com o jornal.
Cosac Naify
DALTON TREVISAN O anão e a ninfeta Se há um autor que celebrizou a micronarrativa no Brasil, este é Dalton Trevisan. E O anão e a ninfeta não foge a essa regra. Nele, o leitor encontrará 40 continhos em que o sarcasmo, a ironia e o erotismo – característicos do autor curitibano – se fazem presentes. Literatura cínica e em falsete.
POESIA E CONTO
GUIDO VIARO A revelação frutosa
GUSTAVO FONTES Efemérides
Guido Viaro é um obstinado autor curitibano. Depois de passear por outras áreas, encontrou sua “casa” na prosa, na qual já vem se expressando desde os anos 1990, tendo escrito sete romances. A revelação frutosa é, portanto, seu oitavo trabalho, que o autor oferece para ser baixado gratuitamente pelo site www.guidoviaro.com.br.
Um autor se faz de experimento e ousadia. Lançar-se é sempre um risco. Neste Efemérides, o jovem escritor testa emoções e reações, apresentando ao leitor um livro metade poesia, metade prosa, como se mostrasse suas ferramentas no que ali está posto. Entre os gêneros, seus atributos se revelam mais densos na construção poética.
Ideale
Bagaço
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NINO ROTA Beleza sonora, rica em força imagética
Centenário do compositor italiano nos lembra que as trilhas sonoras são componentes invisíveis que enriquecem essas narrativas texto Fernando Monteiro
Defendo (sempre defendi) que a música composta para o cinema, as trilhas sonoras feitas para filmes (portanto, sob encomenda), provavelmente, respondem pela “grande música” – no mínimo, da metade do século 20 para cá. Estamos no mês em que se comemoram 100 anos de nascimento de um dos maiores autores de trilhas da história da chamada “sétima arte”: Nino Rota, italiano de Milão, nascido numa família de músicos como qualquer Google da vida poderá informar. Foi aluno de Alfredo Casella, no Conservatorio di Santa Cecília (Roma), e, obtendo bolsa de estudos no Curtis Institute of Music (Filadélfia), ouviu aulas de composição de Rosario Scalero e, de orquestração, pelo professor Fritz Reiner, maestro húngaro radicado nos EUA. Rota ficou conhecido como o músico de Federico Fellini por excelência. Compôs trilhas para outros realizadores italianos – Renato Castellani, Mario Monicelli, Franco Zeffirelli e Eduardo de Filippo –, além de compor partituras para longas-metragens do francês René Clément e de King Vidor e Francis Ford Coppola, dois diretores americanos de gerações distanciadas no tempo. Foi, entretanto, o seu trabalho para
o grande Fellini que levou Nino a se tornar, inclusive, “popular”, no sentido pop da cultura de massa – muito próximo daquela solidez que “se desmancha no ar”, para lembrar o título de um livro que foi moda e todo mundo já praticamente esqueceu. Não importa. Nino Rota jamais estará entre nomes esquecidos. Houve uma “impregnação” da sua música naquelas imagens criadas pelo cineasta de La dolce vita, e vice-versa. Talvez até mais vice do que versa: alguma das suas músicas, de repente ouvida num bar, num elevador com som ambiente ou num quarto de motel de bom gosto, lembrará Fellini e, de imediato, fará o transporte para o clima onírico ou (diria Orson Welles, com algum veneno) mais ou menos “suburbano”, à la Itália, daquelas fábulas fílmicas fellinianas que o músico milanês ajudou a tornar ainda mais evocativas. O que busca um diretor de cinema, quando pede que um profissional componha a trilha de determinada obra cinematográfica? Ora, ele pede muito mais do que um mero “acompanhamento”, tipo o daqueles pianistas que, ao vivo, musicalmente comentavam a ação dos velhos filmes mudos, nos “cinemaspoeira” que desapareceram. Desde
essa época, a música foi se tornando parte intrínseca, um elemento indispensável, uma das dimensões artísticas essenciais ao que é capaz de expressar a linguagem por imagens 24 vezes por segundo. Essa música pode ser composta diretamente para a obra cinematográfica nova ou pode ser aproveitada do acervo de um compositor de outra época, como fez Stanley Kubrick – cumprimentos também para o supervisor musical H. L. Bird –, ao “escalar” um trecho de Richard Strauss (1864-1949) para a abertura de 2001: uma odisseia no espaço. A abertura em questão – Also sprach Zarathustra, de Strauss – tinha existência própria, anterior ao filme de ficção científica de 1968, porém isso se “apagou”, em parte, e ela se tornou, para muitos, a “música de 2001”. Isso porque houve a tal impregnação, aconteceu o processo de imantação de uma pelo outro (a música pelo filme, este pela música), e estamos conversados. Em tempo: esta conversa aqui escrita será bem “desconceitual”, com aspas, sobre a música do cinema como a Grande Música do século passado, sobre Nino Rota e outros fundamentais compositores e arranjadores do cinema, você começando, talvez, até a assoviar
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Página anterior DeSenho interpretação da figura de Nino Horta pelo traço de Federico Fellini
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Nestas páginas 2 La doLce vita a trilha criada por rota para o filme parece inseparável desse clássico do cinema
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chARleS chAPlin o diretor e produtor deu grande impulso à concepção da trilha essencialmente “cinematográfica”, criando as músicas dos seus filmes
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a condessa de Hong kong Chaplin dirigiu marlon Brando no filme que ficou marcado por uma de suas composições
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algum pedaço de trilha sonora que também impregnou o seu ouvido...
coMPoSitoR SinFÔnico
Curiosamente, Claude Debussy chegou a comentar que Richard Strauss era um “compositor cinematográfico”, naqueles primórdios da invenção dos irmãos Lumière, porque a obra de Strauss sugeria uma “fonte de imaginação cinemática”, ou seja, faria pensar numa cadeia de imagens articuladas pelo som de uma grande orquestra. Antes do cinema – pela via aproximada da ópera, é claro –, o alemão Richard Wagner (1813-1883) também seria já “cinematográfico” nos seus dramas musicais – Lohengrin, Tannhäuser, Tristão e Isolda, o ciclo do Anel dos Nibelungos e outros – guiando-se pelo leitmotiv, narrativamente, e sendo a “ideia-base” (ou argumento, no cinema) o motivo condutor tanto do trabalho wagneriano típico quanto das sinfonias programáticas de um Berlioz, nas quais determinados personagens possuem um subtema musical e tudo o mais.
Isso foi aproveitado e desenvolvido pelo evoluir da música “para cinema”. Ela atraiu, por sinal, aqueles músicos um tanto mais conservadores (digamos assim), cujo gosto pela sinfonia havia se tornado mais ou menos deslocado no mundo da música erudita, pela vigência do sistema harmônico baseado no atonalismo – destacandose Arnold Schoenberg (1874-1951), com propostas dodecafônicas buscando dissonâncias, juntando acordes fora da hierarquia, e, vale dizer, aproveitando os sons mais inesperados numa sala de concertos. Ora, nas trilhas das narrativas cinematográficas tudo continuava, entretanto, correspondendo a princípio, meio e fim (mesmo que “não necessariamente nessa ordem”, conforme costumava lembrar o irônico Jean-Luc Godard), e o “antigo” compositor sinfônico podia, nelas, voltar a dispor de um corpus narrativo para o seu trabalho. Foi o que Nino Rota encontrou nos filmes de um Fellini olhando para trás, para Rimini ou para Roma, poeta reminiscente daqueles “boas-vidas”
que não gostariam de se separar das suas infâncias, ou, então, jornalista errante se atirando na longa jornada noite adentro, em torno de si mesmo (e da Fontana di Trevi), acompanhando estrelas e anônimos da Roma tão velha, que, ainda agora, pode fazer acontecer qualquer coisa, na notte brava... Material bom para Nino – rota segura (esse trocadilho era incontornável) para o maestro cuja jornada pessoal terminou em abril de 1979, entre vinhos e rosas, aos 67 anos. Bem cedo, portanto. Ficaram as suas trilhas emocionadas e cheias de uma melancolia que tem, na verdade, mais de dois mil anos de história no inconsciente coletivo italiano.
JAMAiS DecoRAtiVA
Onde – e como – pode a música ajudar um filme? Foi a essa pergunta que Rota respondeu, indicando que a trilha jamais poderia ser apenas um elemento decorativo, por exemplo. Ele e outros grandes compositores do cinema viram a música ser usada como foco narrativo (nos filmes musicais, por exemplo) e com função
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climática, duplicando a força das imagens em cada sequência ou cena planejada para ser “sublinhada” por temas carregados de intenções específicas. Trataremos disso aqui – deixando os chamados “musicais”, propriamente ditos, para outra ocasião. Charles Chaplin deu um grande impulso à concepção da trilha essencialmente “cinematográfica”, até porque o seu ouvido era o de um gênio que teria o que dizer em qualquer campo: cinema, teatro, circo, literatura, pintura, quase tudo. As trilhas dos filmes de Carlitos foram compostas pelo célebre diretor e produtor de si mesmo (Smile tornouse um hit internacional, sem prazo para sair do gosto popular), sendo o Vagabundo um eterno apaixonado pelo lamento daqueles violinos “ciganos” dos anônimos músicos de rua, notas marcantes na sua infância quase de David Copperfield – o personagem de Charles Dickens, não o mágico milionário. A força da música nas produções de Chaplin é tão incisiva, que, na última delas (e a mais fraca: A
A obra de nino Rota foi fundamental para a percepção de que a música jamais poderia ser apenas elemento decorativo condessa de Hong-Kong, de 1967), só restou mesmo uma bela composição, recordando tristezas dos fugitivos ou emigrados do novecento que o substrato de comédia medíocre do roteiro da Condessa homenageia da forma mais pífia – enquanto o diretor envelhecido tentava dirigir Sophia Loren e Marlon Brando, aparentemente sem perceber que o seu tempo havia passado. Não importa quanto o tempo passe, o Max Steiner que compôs a trilha de E o vento levou (1939) sempre estará associado ao destino cinematográfico da indomável Scarlet O’Hara. A música desse clássico de Hollywood é impregnada daquele romantismo típico do Sul, mas também lembra um pouco o fio melódico da trilha
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sonora de O morro dos ventos uivantes (igualmente de 1939) – o filme dirigido pelo mestre William Wyler, e não as anêmicas versões mais recentes, coloridas e novelescas no reforçar de um romance literariamente já forte. Ninguém precisa fazer mais do que Wyler fez com as urzes dobradas pelo vento, tangendo dois fantasmas condenados a prosseguir abraçados como demônios, enfrentando o céu e preferindo recordar o inferno do seu amor “selvagem” nas charnecas. É isso o que a trilha do filme também expressa, assinada pelo inspirado Alfred Newman (1901-1970). Trilhas felizes – em termos de inspiração de maestros contratados para duplicar a força das imagens – fazem isso (e sempre o farão): ficam nos nossos ouvidos, nem que seja pela música-tema de um Casablanca que se assovia, ainda hoje, ao encontro de namorados nos subúrbios do mundo: You must remember this/ A kiss is just a kiss, a sigh is just a sigh... Foi Herman Hupfeld o autor dessa letra, assim como do tema tocado ao piano e cantado por Dooley
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iMAgENS: rEproDução
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tRiLHA Kubrick selecionou um trecho de Also sprach Zarathustra, para a abertura de 2001: uma odisseia no espaço
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era uma vez na américa As composições de Ennio Morricone para o filme ajudaram a alavancar o trabalho dos autores de trilhas
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e O ventO levOu A música criada por Max Steiner para o filme está impregnada do romantismo sulista fantaSia No clássico de Walt Disney, a música domina a ação dos personagens
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Claquete Henry Mancini, Leonard Bernstein, Dmitri Tiomkin, Jerry Fielding, Jerry Goldsmith, John Williams, Michel Legrand e outros mestres das trilhas para filmes fáceis ou difíceis, românticos ou menos românicos. Todos trabalharam com o melhor de si e criaram obras quase autônomas – inclusive o nosso Heitor Villas-Lobos –, as quais “colaram” nas respectivas imagens cinematográficas, sim, porém também se emancipando, às vezes, como criação musical, seguindo toda uma tradição sinfônica e fazendo o século passado, principalmente na sua segunda metade, possuir compositores de respiro mais largo do que os John Cage da vida (com todo respeito ao músico dos estertores da música).
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MÚSicA Do eSPLenDoR
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Wilson, contra a vontade de “Rick”, o proprietário ranzinza do clube noturno de uma Casablanca de papelão em que ninguém presta atenção – todo mundo fascinado pelo clima romântico (à antiga) que o score ajudou a criar, junto com o preto e branco e a química entre Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, no filme de 1942. Esse tema é tão hipnótico – musicalmente falando – quanto o composto por David Raksin para Laura, filme noir de 1944, dirigido por Otto Preminger, baseado na
novela policial homônima (escrita pela pequena bruxa Vera Caspary). Leitores, eu poderia me estender por várias menções de músicas de filmes clássicos preferidos de mães e tias – mas não se trata exatamente do foco deste texto, essas músicas “inolvidáveis”, premiadas com Oscar ou não: Anastácia, Suplício de uma saudade, Lara (sem “u”), a moderna Alfie... Não. Aqui, estamos tratando das partituras de grande música – num conjunto sinfônico composto por nomes como Rota, George Auric,
A tese – foi dito logo de início – é que as trilhas sonoras foram (e são) Grande Música continuada por temperamentos fundamentalmente românticos, no sentido da frase de Tzvetan Todorov: “Toda grande arte é de índole romântica”. Dois gigantes da composição erudita – Prokofiev e Shostakovich – foram convocados pelo seminal Eisenstein para criar trilhas originais para filmes (Alexander Nevsky, Outubro, Ivan, o Terrível etc.) que o cineasta russo conseguiu realizar, apesar do clima opressivo criado por “Comissários do Povo” devotados a abalroar a obra de gênios autênticos como Sergei, na União Soviética sob a mão de ferro de Stálin.
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Depois do grande cineasta russo, foi alguém bem diferente – Walt Disney, por incrível que pareça – que, em 1939 (um ano rico para a música do cinema, já se vê), teve a ideia de forrar com as melhores partituras o seu renovador Fantasia. “Forrar?” O verbo não é bem esse. Pelo contrário, nesse clássico do desenho animado é a música que domina a ação dos personagens retirados do mundo disneyano, em peripécias imaginadas a partir da Toccata e fuga em ré menor, de Bach, a Ave Maria de Schubert, A noite no Monte Calvo, de Mussorgsky, a Sinfonia pastoral, de Beethoven, O aprendiz de feiticeiro, de Paul Dukas, e de músicas para balés (a suíte Quebra-nozes, de Tchaikovsky, A sagração da primavera, de Stravinsky, e a Dança das horas, de Ponchielli), tudo inovadoramente “recoreografado” em termos de desenho cinematográfico concebido como obra de arte, sob a supervisão do maestro Leopold Stokowski. Músicos da mesma alta linhagem de Stokowski trabalharam em Hollywood – mais do que em outros lugares. O austríaco, naturalizado
Algumas composições se emanciparam, ganhando o status de criações musicais, seguindo toda uma tradição sinfônica americano, Billy Wilder convocou seu conterrâneo Franz Waxman (19061967) para compor a trilha do filme que “biografou” a Meca do cinema, o comovente e ao mesmo tempo dramático Crepúsculo dos deuses (1950). A música estava lá, para ajudar o mito da película essencial do prolífico Wilder. Aqui já citado, Dmitri Tiomkin, russo de São Peterburgo (onde nasceu em 1894), criou a música para Horizonte perdido, um dos filmes mais emblemáticos do americaníssimo Frank Capra, o cineasta do New Deal. Tiomki seguiu trabalhando – sempre com brilho pessoal – para outros diretores famosos, até falecer em 1979. Não foram poucos os westerns que se beneficiaram de belas trilhas criadas
por músicos americanos, compondo na esteira do erudito Aaron Copland, como foi o caso de Victor Young (1900-1956) e Elmer Bernstein (1922). No setor do filme policial, não se pode esquecer Bernard Herrmann (19111975), músico preferido de Alfred Hitchcock. Ambiguidade, incerteza, dúvidas e suspeitas estavam também nos temas musicais inquietantes desse colaborador fundamental do “mestre do suspense”. Filmes épicos contaram com o senso de grandiosidade – e o refinamento – de um Miklos Rozsa (1907-1995), autor da premiada trilha do Ben-Hur, de Wyler, e também com o alto talento de um Mario Nascimbene, criador do score de Barrabás (1961), de Frankin Shaffner, uma trilha que antecipou muito do que o avançado Peter Gabriel viria a fazer para A última tentação (1988), de Martin Scorcese. Maurice Jarre compôs do único modo possível para o caso de um superespetáculo de caráter curiosamente “intimista”, como foi o Lawrence da Arábia, produzido e dirigido por Sir David Lean, em 1962,
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vencedor de sete Oscar (incluindo para a música de Jarre, que chegou ao requinte de utilizar instrumentos exóticos, no seu arranjo final). Dez anos depois, Gato Barbieri deu uma espécie de tom essencial para O último tango em Paris, filme de Bernardo Bertolucci, lançado no meio de escândalo que pouco teve a ver com a seriedade do roteiro construído em torno do tema da angústia existencial, assunto perfeitamente repercutido pelo tango moderno do filme. A música do brasileiro Sérgio Ricardo para Deus e o Diabo na terra do sol (1964) foi responsável por parte do impacto da obra de Glauber Rocha, que ainda hoje se faz sentir, quando são ouvidas as músicas cantadas
As aventuras de James Bond na série 007 são anunciadas pela marcante trilha sonora que remete ao mundo da espionagem na trilha, já clássica, pela voz de taquara rachada do compositor do violão lançado contra a plateia de um festival daqueles anos memoráveis... Foi mais ou menos na época em que a primeira produção da série 007 nos apresentou uma “marca” musical praticamente indissociável do respectivo “produto” fílmico: o
deuS e O diabO na terra dO SOl
A música de Sérgio ricardo para o filme de glauber rocha foi responsável por parte do impacto da obra
som do maestro John Barry (falecido em janeiro deste ano) costurando as aventuras de James Bond, com Dame Shirley Bassey imprimindo suas fortes interpretações gritadas em pelo menos duas ou três músicas que vinham do mundo da Guerra Fria diretamente para os ouvidos de espectadores das províncias mais distantes da espionagem. Naquela época, Ennio Morricone também estourava, com hits provenientes do faroeste-spaghetti, e o setor da composição musical para a tela nunca mais seria o mesmo, depois desses dois nomes capazes de tornar o trabalho dos autores de trilhas uma parte comercialmente considerável do projeto de uma grande produção como Era uma vez na América – um dos melhores exemplos da arte de Morricone, ainda vivo e incorporado, como autor, ao repertório de muitas orquestras eruditas que querem se aproximar do público não só pela chamada “grande música”. Enfim, deveria ser reivindicado esse mesmo estatuto para as trilhas do cinema, sim – num século que viu as pautas sinfônicas entrarem quase em becos sem saída, desde o dodecafonismo difícil para as plateias mais amplas. São elas que mandam, hoje, em termos da cultura de Mercado. No escurinho dos cinemas, isso significa quase que o único refúgio para arranjadores e compositores como Nino Rota – pelo menos, enquanto dure, ainda, o prazer de usufruir a beleza sonora impregnada da força imagética de bons filmes realizados, não só segundo estritas regras de oferta e procura, em salas nas quais ruídos estrondosos nas caixas de som não prevaleçam, por exemplo, sobre músicas como a de Shane (de Victor Young) sumindo na “elegante melancolia do crepúsculo”, conforme diria Charles Chaplin.
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INDICAÇÕES AVENTURA
HARRY POTTER – ANOS 1-7
COMÉDIA
DOCUMENTÁRIO
direção de François ozon Com Catherine deneuve, Gerárd depardieu e Fabrice Luchini Imovision
direção de miguel Gonçalves mendes Com José Saramago, Pilar del río e Gael Garcia bernal Videofilmes
o box reúne todos os filmes da saga de Harry potter, e sua batalha contra Voldemort. Baseados nos livros homônimos da britânica J. K. rowling, tanto os livros quanto os longas estarão presentes na memória daqueles que cresceram acompanhando o mundo mágico e fantástico criado por rowling. os filmes contam com algumas das melhores performances de atores como Alan rickman, que interpreta o inesquecível Severo Snape.
Ambientado na França de 1977, época em que o feminismo estava no auge no país, o filme é estrelado com maestria por Catherine Deneuve – que faz o papel de Suzanne pujol, esposa recatada de um empresário francês. uma ótima comédia sobre uma socialite que precisa assumir a empresa da família quando o marido é sequestrado, e acaba revelando-se uma feminista nada ingênua.
Vários diretores Com daniel radcliffe, rupert Grint e emma Watson Warner Home Video
ESPOSA TROFÉU
JOSÉ E PILAR
Belíssimo retrato de um casal, o longa do diretor português Miguel gonçalves Mendes apresenta um olhar sincero sobre o cotidiano e a vida do escritor José Saramago e sua esposa e braço-direito, pilar del río. A simplicidade e a franqueza com que expõem suas vidas, enquanto Saramago compõe seu último romance, A viagem do elefante, emociona e fascina o espectador.
SUSPENSE
SUPER 8
direção de J. J. Abrams Com elle Fanning, Amanda michalka e Kyle Chandler Paramount
Contando a história de invasões alienígenas com um bom enredo, a partir de um grupo de crianças que passa a maior parte do tempo produzindo filmes de terror com câmera super-8, o longa do criador de Lost é uma homenagem aos filmes de Steven Spielberg. Com uma trama bem-amarrada, apesar de serem claras as referências a obras como E.T. e Contatos imediatos de terceiro grau, o filme surpreende por não cair no óbvio, com cenas impactantes.
Ficção
O PESO DO CÉU SOBRE OS OMBROS
“Quero mais, nesse instante que é maior do que a vida. Se te pergunto, me respondes? Quem sou eu? Não sei. Quem sou eu? Sou. Quem sou eu? Amor. por sobre os ombros, o peso dos desejos. por sobre os ombros,
a leveza do céu.” Esse pequeno poema, que está presente no site oficial do filme O céu sobre os ombros, do estreante Sérgio oliveira, dá uma boa ideia do que o espectador encontrará pela frente. o longa – chegado aos
cinemas no final de novembro, com distribuição da Vitrine Filmes – conta a história de três personagens que nunca se encontram, e, ao mesmo tempo, cruzam-se na rota do peso dos seus desejos. Everlyn Barbin é uma transexual que fez mestrado sobre uma hermafrodita do século 19. Entre a prostituição e os cursos sobre sexualidade – nos quais é professora –, sente falta da família, que não faz ideia de sua atual identidade. Carente e sonhadora, tenta saciar sua sede afetiva com os clientes, enquanto alimenta um relacionamento virtual. Com fortes tendências suicidas, Lwei é um africano que escreve vários livros ao mesmo tempo, sem nunca chegar ao final de um deles. Como nunca trabalhou, é sustentado pela mãe e pela mulher, com quem atravessa uma crise, após a perda do filho gestado por sete
meses. Apesar da pose de poeta turrão, Lwei é extremamente frágil, e protagoniza uma das cenas mais belas do filme, apresentada logo no início, em que não sabemos se – com ele debaixo do chuveiro – à água estão misturadas suas lágrimas. Quase uma caricatura, Murari é devoto da religião Hare Krishna e do Atlético Mineiro. passeando na corda bamba, pende entre a busca pelo amor e por reconhecimento profissional, e a proposta de desligamento do ego e do material, presentes em sua religião. graças à extrema riqueza dos personagens, ao ritmo impresso por Sérgio, à montagem de ricardo pretti, além da belíssima trilha sonora, ficção e documentário, aqui, andam de mãos dadas e, na trama psicologicamente densa, só são decifradas pelo olhar do espectador. Vencedor do Festival de Brasília de 2010, é uma obra humanista e inteligente. gABriELA ALCÂNTArA
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PHOTO POCHE O melhor da fotografia em formato de bolso Coleção de livros editados por Robert Delpire, que do francês original foi traduzida para sete idiomas, chega ao Brasil em cinco volumes
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man ray
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helmut newton
Mulher com cabelo longo, de 1929, integra a seleção para o volume as mulheres por ele fotografadas expressam audácia, como neste Nu descendo a escada, de 1981
texto Adriana Dória Matos
Quando pedimos aos nossos mestres
“Por favor, me diga o que devo ler”, a respeito de obras fundamentais, em geral, obtemos a resposta: “Vá aos clássicos”. Então, já sabemos para onde seguir, seja buscando os originais ou suas traduções. Assim como a literatura, a fotografia conta com seus clássicos, aos quais podemos recorrer, quando queremos captar as nuances dessa arte e de seus protagonistas. Embora muito difundida e popular, a fotografia nem sempre é compreendida como linguagem artística, quase como se mantivesse posição de subalternidade em relação a expressões como a literatura, o teatro, a arquitetura, a música, ou fosse apenas um meio a serviço do jornalismo, da publicidade, do cinema. No Brasil, isso se deve, em parte, à ausência de uma bibliografia consistente e vasta, que a coloque ao lado dos demais campos artísticos. É verdade que, nas duas últimas décadas, tem havido iniciativas editoriais no sentido de oferecer a estudiosos, profissionais, apreciadores, material concernente à arte fotográfica. Não apenas aquele exclusivamente diletante e desprovido de leitura crítica, mas de boa densidade artística, ensaística e teórica. Entre essas boas intenções, estão os cinco títulos da coleção Photo poche, que acabam de chegar ao Brasil em edição da Cosac Naify e que nos remetem aos clássicos do início desse texto. Quando passou a publicar os volumes dessa coleção, em 1982, o fotógrafo
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e editor Robert Delpire pretendia oferecer, a um público mais amplo, obras que servissem de introdução ao universo fotográfico e se prestassem à formação visual dos leitores. Não por acaso, entre os primeiros títulos constavam aqueles dos precursores Nadar, Nicèphore Niepce, Etienne Jules Marey e Eugène Atget; de fotógrafos da
escola humanista e da street photography, como Robert Doisneau e Robert Frank; grandes documentaristas e ensaístas, como W. Eugene Smith; e criadores de imagens especialíssimas, como Duane Michals e Joel-Peter Witkin. Eram escolhas editoriais que traziam um painel diversificado da fotografia, apontando sua versatilidade
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e relevância. Hoje, essa bem-sucedida coleção de livros de bolso soma mais de 150 títulos, entre monográficos e temáticos, sendo editada pela Actes Sud. É na mesma linha de raciocínio de Delpire – de relevância e de diversidade estilística e temática – que podemos entender a escolha dos cinco primeiros títulos da edição nacional da Photo poche. Todos eles são de grandes fotógrafos: Henri Cartier-Bresson, Man Ray, Helmut Newton, Elliot Erwitt e Sebastião Salgado, mas cada um tem o próprio apelo, não havendo qualquer necessidade de consonância entre eles. Possivelmente, Cartier-Bresson, Man Ray e Sebastião Salgado – sobretudo o primeiro e o último – são os mais conhecidos do público brasileiro, em geral, enquanto Erwitt (que tem sua primeira edição no país) e Newton se configurem nas “novidades”. Os livros têm tratamento equânime: trazem uma média de 64 fotografias de cada autor, com textos de apresentação e biografia, ao final. Com exceção do livro de Helmut Newton, que também traz imagens coloridas, os trabalhos são todos em preto e branco.
esses fotógrafos trazem diferentes contribuições à compreensão da arte fotográfica e de sua diversidade Do Drama À comÉDia
Certamente que, do conjunto, o mais dramático e denso é o de Sebastião Salgado. E isto em relação a tudo: à temática, à inflexão, à técnica. Os temas da morte, da dor e da miséria estão nas imagens declaradamente engajadas do fotógrafo brasileiro, que teve várias exposições e livros publicados no país. Personagens, enquadramentos, luz, complexas tonalidades de branco, cinza e preto dão às suas fotografias um caráter épico, que convoca do observador uma adesão, mesmo que esta se dê apenas no nível emocional. Os volumes dedicados a Man Ray e Helmut Newton guardam aproximações, no que diz respeito à exploração do corpo e do nu
como temas. Os portraits também interessaram a ambos, como de resto, à maioria dos fotógrafos, sendo um dos grandes gêneros da fotografia. Mas as aproximações param por aí, porque não há como comparar as inquietações e experimentalismos de Man Ray, e sua vinculação com o Surrealismo, à materialidade carnal e fetichista, ligada ao mundo da moda e do consumo, das fotografias de Helmut Newton. Em Man Ray, não é apenas o corpo que, embora também erotizado, se presta aos experimentos. No conjunto de fotografias aqui selecionadas – a maioria dos anos 1920 e 1930 –, o que se observa é o vigor de um artista que trocou a pintura pela fotografia num lance de dados curioso: quando chegou à conclusão de que preferia as reproduções de suas pinturas aos originais em si. Audácia, agressividade, erotismo, sensualidade, fisiculturismo, empáfia, deboche, independência. Essas são qualidades que se podem observar nas fotos de mulheres nuas – ou vestidas como se exibissem a nudez – desse
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divulgação
Catamisto
O RECICLADO PAPEL DA ARTE
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fotógrafo alemão que afirmava adorar o artificial e que teria dito, como escreve Karl Lagerfeld, na apresentação que faz ao livro: “Tudo que é belo é falso” e “O gramado mais bonito é o de plástico”. Não há qualquer romantismo em Newton, que ganhou dinheiro e prestígio como fotógrafo de moda. Suas mulheres são incríveis. A outra dupla que podemos formar nesse quinteto é composta por Cartier-Bresson e Elliot Erwitt. O primeiro elemento em comum entre eles chama-se Magnum, agência de fotografia criada nos anos 1940, entre outros, por Bresson e Robert Capa (que também tem título na Photo poche francesa) e que reúne nomes seminais da fotografia mundial. Foi Capa quem convidou Erwitt para compor o time da agência em 1953, na qual ele está
3 elliot erwitt Cães são personagens espetaculares no seu acervo, como nessa imagem, de 1973 4 henri cartier-bresson nesse retrato de anônimo, de 1932, o talento do fotógrafo
até hoje (sim, está vivo, um senhor octogenário). Como membros da Magnum, ambos cobriram eventos marcantes (e trágicos) do século 20. Mas é no detalhe do cotidiano e das ruas que esses dois encantadores fotógrafos revelam o melhor de si; Bresson, numa expressão mais sóbria e preciosista; Erwitt, com peculiares sensos de humor e oportunidade. São, portanto, livros que contribuem bastante para nossa compreensão sobre a riqueza da arte fotográfica e suas variadas expressões. Assim, quando alguém nos perguntar sobre clássicos da fotografia, teremos nesses autores respostas justas e acertadas.
O questionamento acerca de como o ser humano vive, produz e consome fez com que surgisse um dos principais valores sociais da pós-modernidade : o conceito de sustentabilidade. Essa preocupação com a convergência entre as necessidades da humanidade e a preservação do meio ambiente está presente em diversas esferas sociais, inclusive na artística. A produção de arte por meio de materiais que não pertencem, tradicionalmente, ao seu universo aparece em vários movimentos do século 20. Segundo a professora Madalena Zaccara, do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, “a utilização de materiais precários na arte passou a anunciar a possibilidade de ela se desgarrar do mercado formal, para exercer um papel social e político mais contundente”. Foi nesse contexto, no final da década de 1970, no Recife, que o artista plástico André Soares criou o movimento artístico Catamisto. À época, a ideia ficou no papel. Somente três décadas depois, com a ajuda dos produtores Hector Costa e Nelson Pontes, é que o projeto conseguiu manter uma linha de produção constante. Formada, hoje, por mais quatro artistas (Wilson Luiz, Tiana Santos, Alexandre Almeida, Charly Du Q. e Aldredo Lima), a organização pretende “reciclar sua alma” por meio da arte. O grupo trabalha com materiais oriundos do lixo industrial que podem ser reciclados, como banners, revistas, cartões-postais, portas de armário, radiografias, tampas de máquinas de lavar e peças de automóveis. O empenho do Catamisto é no sentido de que esses materiais sejam transformados em arte, palavras em favor da consciência para a preservação do meio ambiente. Para seus componentes, “antes de mudar o mundo, é preciso mudar nós mesmos”. O grupo realiza ações de educação ambiental em escolas públicas do Recife e do interior de Pernambuco. PEDRO PAZ
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meio mote
matéria corrida José cláudio
artista plástico
Lá em casa éramos cinco, isto é,
somos, porque estamos vivos: eu primogênito e irmãs. Todas formadas. O único que não deu para nada fui eu. Aliás mamãe dizia que os homens da nossa família, quer dizer, do lado dela, nunca deram para nada. Assim, tive a quem puxar. Ela, também, sem nunca ter lido Euclides da Cunha, achava que homem confiável era do Sertão, que na Zona da Mata não dá homem que preste, embora meu pai, cabense, fosse homem de respeito como sabem todos que o conheceram. Outro dia Egídio Ferreira Lima mesmo disse: “Seu Amaro era um homem de bem”. Me veio isso ao cantarolar o aboio, que conheço há mais de quarenta anos: “Minha mãe teve três filhos/Todos três interesseiro/Um deu pra tocar sanfona/ Outro deu pra boiadeiro/E eu dei pra beijar moça/Qu’é um serviço maneiro”. Como não sei quem é o autor do aboio, imagino o quanto não lhe
deve ter doído, ou doer se ainda estiver vivo, ouvir seu aboio sem que seja citado o nome do autor, como se nascido do nada, caído, afrontosamente, no tal “domínio público”. E mesmo no domínio público não quer dizer que se negue a autoria, apenas não precisando pagar direitos autorais depois de sessenta anos do falecimento do autor. Parece que é assim. Vou perguntar a Zé Paulinho. Não raro, por mais que o autor reivindique a autoria, corre o risco de ficar falando sozinho, sendo até ridicularizado, contestado por algum espertalhão que se apresente como verdadeiro autor e disso convença Deus e o mundo. Vou contar um caso que aconteceu comigo há muitos e muitos anos num reino a beira mar quando fazia o primeiro ano de direito que aliás nunca fiz. Convivia, isto sim, com os estudantes que gostavam
de literatura, poesia, pintura. Tenho como certo, por exemplo, que foi Fernando Coelho, colega de turma, quem me mostrou pela primeira vez os Cadernos da Bahia de Carybé, artista de cujo convívio cheguei a privar e que teria tanta importância na minha vida. 1951 ou 52: nem disso me lembro. Uma noite fomos, alguns estudantes, “acadêmicos” dizia-se na época, a uma cantoria no antigo prédio da Associação de Imprensa de Pernambuco antes da modernização, ou melhor, da demolição do centro do Recife. Fiquei sentado junto de Constantino Dounes, colega de turma, que morava ali pela Boa Vista, como eu. Eu, na Rua de Santa Cruz. Ele, não sei. Mas seu irmão fazia ponto com outros, inclusive meu futuro cunhado Roberto, casado com minha irmã Nena, no poste da esquina do cruzamento das ruas de Santa Cruz, Glória, São Gonçalo e Visconde de Goiana.
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Voltando à cantoria. Pediram para a plateia dar motes. Me ocorreu: “O Capibaribe canta”. Constantino completou: “Quando o Recife adormece”. Os cantadores alinhavaram alguma coisa, nada de muita expressão. Então um senhor ainda jovem, alto, afilado, branco, cabelo bom, preto, penteado para trás, sentado ao meu lado, abriu uma pasta de couro – ele era um tipo elegante –, tirou uma folha de papel em branco, do bolso interno do paletó uma Parker 51 de tampa dourada e escreveu com tinta azul sem nenhum titubeio: “Quando a lua se levanta/ Do dorso do firmamento/Num vago e triste lamento/O Capibaribe canta;/Sua líquida garganta/Se desfaz em longa prece/O vento da noite desce/Trazendo estrelas dos ares/Cantam as ondas nos mares/Quando o Recife adormece”. Como não ficou registrado em canto nenhum, pago aqui este tributo ao grande Rogaciano Leite, como assinou
Minha mãe, também, sem nunca ter lido euclides da cunha, achava que homem confiável era do Sertão embaixo: “Rogaciano Leite”, uma letra levemente inclinada para frente mas bem legível. Aliás escreveu duas estrofes das quais só decorei esta. Guardei o papel muitos anos. Até hoje tenho a ilusão de tê-lo comigo enfiado por aí em algum pacote nestas mil mudanças que fiz nos últimos cinquenta e mais anos. Tempos depois, tendo deixado de estudar, sem saber o que fazer da vida, “sem ter dado para nada”, num bar em Ipojuca, ouvindo um programa de cantoria da PRA-8, o locutor anunciou
o mote enviado por algum ouvinte: “O Capibaribe canta/Quando o Recife adormece”. Olhei em volta. Ninguém olhou para mim. Nem ousei pensar em dizer que o mote era meu: teria passado por mentiroso até hoje. Recentemente cogitei narrar o episódio a Roberta Clarissa num programa de violeiros, aboios, poesia matuta da Rádio Folha mas até nisso dei azar: o programa saiu do ar. Vou até me queixar a Zé Paulinho. Prova de que a omissão de autoria me dói mesmo depois de tanto tempo. E do mote, de dois versos, somente sou autor do primeiro, de meio mote pois. E nem de poesia vivo. Vivo de pintura. A não ser que se leve em conta o dito de Simônides de Ceos (556-468 a. C.): “a pintura é uma poesia muda; a poesia, uma pintura que fala” (Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, G. E. Lessing, Iluminuras, obrigado Sidney Rocha).
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Sonoras XIV VIRTUOSI Mais “antenado” com a atualidade
Festival chega à sua mais extensa edição, enfatizando obras contemporâneas e discutindo problemas estéticos e sociais texto Carlos Eduardo Amaral
Só o fato de o Virtuosi ter a oportunidade de homenagear dois dos compositores standard mais arrojados do período romântico, em lugar de outros mais palatáveis ao gosto estabelecido, já poderia prenunciar algo de diferente na programação da 14ª edição do festival. Mas não, Mahler e Liszt haveriam de ser lembrados de toda forma, devido ao calendário: estamos no ano do centenário de morte do primeiro e do bicentenário de nascimento do segundo. Vejam também que o Virtuosi, nos últimos tempos, rendeu tributo a personalidades pernambucanas e, agora, parece ter-se dobrado aos apelos das efemérides. E como poderia “prenunciar algo de diferente”, se o concerto de abertura apresentará as seis suítes de Bach para
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cello, com Leonardo Altino, de uma única tacada? Fora que, somente para Brahms, serão realizados cinco recitais em três dias no salão nobre e, em uma única apresentação, Vivaldi terá cinco concertos (incluindo dois recémdescobertos e atestados por Anton Martynov) tocados pelo violinista moscovita na Série Vicente Fittipaldi, no palco principal do Santa Isabel. Então, basta prestar atenção no programa completo do festival e assinalar as obras recentes ou nunca ouvidas por aqui. Por exemplo: a primeira parte do concerto dedicado a Vivaldi, dia 13, às 20h, marcará a volta de Christian Lindberg ao Recife, depois de uma involuntária ausência em 2010. O solista e compositor
sueco, que possui uma relação de amor ao Recife desde o Virtuosi 2007, estreará nas Américas sua peça Euro Arctic, para trombone alto e cordas, além de apresentar, na noite seguinte, um repertório inusitado com o Trombone Unit Hannover (TUH) e o Ensemble São Paulo. O TUH, octeto alemão liderado por Frederic Belli (solista da première mundial do Réquiem para um trombone, de Eli-Eri Moura, no Virtuosi 2010), faz um primeiro concerto no dia 11, às 20h, na Igreja da Sé, em que uma transcrição de Händel serve de abertura para obras de contemporâneos especializados na escrita para metais, como o uruguaio Enrique Crespo, o inglês Derek Bourgeois, o holandês Saskia Apon e o suíço Daniel Schnyder. No Teatro de Santa Isabel, dia 14, às 20h, o Trombone Unit Hannover e o Ensemble São Paulo centrarão o concerto em obras escritas por Lindberg, cujos títulos nos instigam a “pagar” para ver o respectivo resultado musical (pagar entre aspas mesmo, pois todas as apresentações do Virtuosi 2011 serão gratuitas): Reino cigano, para trombone e quarteto de cordas, Debaixo do travesseiro e Dr. Decker, o dentista, que inclui dois narradores. Para completar a passagem pelo festival, na condição de compositor residente, Lindberg promoverá, no dia 15, na Série Vicente Fittipaldi, a primeira audição nas Américas de seu concerto para viola e orquestra, intitulado Steppenwolf, estreado há dois meses em Odense, na Dinamarca. Nele, o solista Rafael Altino não será livrado das extravagâncias interpretativas que Lindberg protagoniza, quando está na posição de intérprete (procure por A motorbike odyssey, no YouTube). Nessa mesma noite do Steppenwolf, talvez cause um certo frisson a execução do Concerto para violoncelo e orquestra de sopros (1980), do austríaco Friedrich Gulda (1930-2000). Dentre os maiores especialistas em Mozart no século 20, a ponto de ter desejado – e conseguido – morrer no aniversário de nascimento do gênio salzburguês, Gulda foi igualmente um dos grandes nomes da Terceira Corrente, vertente do jazz que transitava por instrumentações e técnicas de composição da música clássica.
teMAS SociAiS
Com efeito, será uma quebra de expectativa brutal ouvir um primeiro movimento em ritmo de disco funk, com o cello solista equiparandose a uma guitarra distorcida (não vamos antecipar a surpresa toda), mas brutal, propriamente falando, promete ser o espetáculo eleito para celebrar o II Virtuosi pela Paz – que, desta vez, infelizmente, não terá as mesmas 24 horas de duração que em 2007. Baseada numa das seções do livro História universal da angústia, de W. J. Solha, a Cantata bruta nasceu como uma experimentação de artes integradas em que seis compositores buscaram lograr um esforço de aproximação entre linguagens musicais e temáticas sociais da ordem do dia. Eli-Eri Moura, Marcilio Onofre, Didier Guigue, J. Orlando Alves, Valério Fiel e Wilson Guerreiro decidiram tratar da violência urbana e, ao mesmo tempo, registrar a passagem dos 70 anos de Solha; daí escolherem alguns poucos dos 126 contos da seção A gigantesca morgue como libreto e argumento da cantata, e a conceberem para cantores solistas, coral, orquestra, dois declamadores e sons eletroacústicos manipulados ao vivo. As duas primeiras audições ocorreram no final de outubro, em João Pessoa, e o escritor aprovou o resultado. Os pontos de encontro entre música e temas sociais serão explorados sob outro formato no I Virtuosi Diálogos, dias 6 e 7, ou seja, antes de os concertos oficiais começarem. Nessa série de três debates, os compositores convidados falarão para o público em estilo stand up sobre seus processos composicionais. Em seguida, terão obras apresentadas por conjuntos de câmara, tal qual o Quarteto Romançal e o Grupo Sonantis, e responderão a perguntas da plateia. Estão confirmados os citados Eli-Eri e Marcílio (PB), mais Nelson Almeida e Antonio Madureira (PE), Danilo Guanais (RN), Liduíno Pitombeira (CE). O Virtuosi Diálogos pretende problematizar a criação musical atual no Nordeste através de aspectos como: a música armorial, hoje, multiplicidade de sistemas de composição, desbravamento, regionalismo e ecologismo. Se o
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jorGe bispo/DiVulGaÇÃo
Recife ainda não consegue reunir público leigo para pensar ou debater música clássica, ao contrário do que acontece com cinema e literatura, ao menos possui capital humano no meio musical em quantidade suficiente para prestigiar o evento, isto é, se esse mesmo meio musical, profissional e estudantil não se fizer alheio a mais uma oportunidade. Neste ano, o Virtuosi procurou enfatizar tanto compositores quanto grupos instrumentais nordestinos, entre os quais a Orquestra de Violoncelos da UFRN, o grupo de percussão potiguar Percumpá, o Quinteto da Paraíba e a Orquestra dos Meninos do Coque, que inaugura o I Virtuosinho. Menção para o lançamento em CD da obra completa para violoncelo (solo e com piano) de Marlos Nobre, interpretada por Leonardo Altino e Ana Lúcia Altino Garcia.
Sonoras Das novidades estrangeiras, vale destacar Le Quartour Caliente, especializado em Piazzolla; Maïlys de Villoutreys (meio-soprano) e Renan Khalil (cravo); e o Duo Inviolata, formado por viola e sanfona. Deixando claro que não mencionamos tudo (e tudo, sinceramente, valerá a pena ser ouvido, incluindo Mahler e Liszt, postos de lado nesta matéria), os habitués de todos os anos não precisam se preocupar: Victor Asunción e Benjamin Sung virão novamente ao Recife. E novas caras começam a acompanhá-los: Alexander Hrustevich, Arild Kvartetten, Peter Laul, Jihye Chang... Fica o convite para os ouvintes dizerem se o Virtuosi mudou. Está claro que ficou bem mais “antenado”.
� nesta edição, a Continente presenteia seus leitores com um documentário comemorativo aos 10 anos do Virtuosi, composto de entrevistas e trechos do programa sinfônico de 2007, ano em que o festival completou uma década. o DVD é uma realização do Virtuosi, apresentado com exclusividade pela revista. continente DEZEMBRo 2011 | 78
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KARINA BUHR Na trilha percorrida pelos velhos baianos
Com Longe de onde, cantora e compositora é aprovada no teste do segundo CD e se destaca na nova geração de músicos do país texto José Teles
Há 44 anos, a música brasileira se
encontrava em ponto de ebulição, com o que muitos consideravam traição de Gilberto Gil e Caetano Veloso, que trocaram o violão e a MPB universitária e engajada pelas insolências do rock, adotando nefandas guitarras elétricas. Um cisma que rendeu choro e ranger de dentes levou Geraldo Vandré a fazer uma campanha Brasil afora contra o tropicalismo, provocou Caetano Veloso, em 1968, a dar um esculacho histórico na plateia do festival em que cantou É proibido proibir, e rendeu para ele e Gilberto Gil uma estadia forçada em Londres, de 1969 a 1972. A ousadia dos baianos e de artistas que vieram depois foi assimilada, e assim a também baiana Karina Buhr (com formação cultural pernambucana) cruzou a fronteira entre a música de raízes da Comadre Florzinha para o pop/rock, da alfaia para a guitarra, sem traumas, nem questionamentos. Embora tenha suscitado estranhamentos. Ela garante que o que mostrou em Eu menti pra você (2010), sua estreia solo,
trazia consigo há tempos, só não se encaixava no som da Comadre Florzinha. Muito menos se encaixava no antigo grupo sua performance em palco, uma das mais comentadas do Abril Pro Rock deste ano de 2011. Contra ou favor, ninguém fingiu indiferença às caras e bocas, pulos e saltos que Karina, incansável, esbanjou no palco do festival. Karina Buhr diz que o fato de ter ido morar na cosmopolita São Paulo, cidade de todos os sons, não influiu nas mudanças musicais: “Nada a ver com o lugar. Já quando eu vivia no Recife, queria fazer o que faço hoje. Tem a ver com uma coisa interna, minha. A ideia já existia e foi se afirmando”, garante a cantora que, no segundo disco, Longe de onde (Coqueiro Verde), reafirma sua vocação para ser uma espécie de Rita Lee do século 21. Rita Lee? Sim, por que não? Assim como Rita Lee, ela é roqueira com naturalidade. Rock não é necessariamente emoldurado por guitarras caprichando nos decibéis. Karina Buhr compõe e canta rock pesado, feito em Carapalavra, que abre
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Atitude
a cantora cruzou a fronteira da música de raiz da comadre Florzinha e enveredou pelo rock
Sonoras
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o repertório de Longe de onde. Porém, a maioria do álbum é de canções doces e ternas, a exemplo do reggae Cadáver, cuja letra não poderia ser mais cáustica. Ou no rock/calipso Não me ame tanto: “Não posso suportar um amor que é mais do eu sinto por dentro”. Ou seja, suave, mas como certos pratos apimentados. O ardor é o que acaba predominando. Em Eu menti para você, ela já ensaia a temática, inclusive na confissão explícita no título da música. Um disco no qual ela escancarou sua
face oculta, mas sem ansiedades: “Sinceramente, eu não estava preocupada com isso. Lógico que queria ver a repercussão que teria. Para mim, foram maravilhosas as críticas elogiosas, a aceitação, assim, de exclamar, ‘Puxa, eu consegui’”, comenta Karina, que passou bem pelo teste do segundo disco. Os elogios novamente foram quase unânimes na imprensa, ela foi incluída, pela MTV americana, numa disputa para as Top 5 “descobertas” mundiais do final de novembro.
Assim como a Rita Lee dos bons tempos, Karina Burh está à frente de uma banda de marmanjos, e dos mais talentosos do rock brasileiro. Aliás, uma das melhores do país: a luxuosa dupla de guitarristas Edgard Scandurra e Fernando Catatau, e o aclamado trompetista Guisado. Mais André Lima, no teclado, Bruno Buarque, baterista, e Mau, baixista, esses dois coassinam a produção com Karina (repetindo a dose do CD anterior). Rita Lee foi a primeira mulher do rock nacional a ir à luta, e assumir que estava num mato sem cachorro, e que não precisava de cachorros. Foi a ovelha negra da família roqueira feminina tupiniquim. Karina Buhr vai por aí. O tempo inteiro, ela assume sua fragilidade feminina, mas também sem parar de ressaltar que está consciente de tal condição, e pronta para o que der e vier. Nisso, ela se garante na originalidade da temática amorosa: “E eu te peço que/ se aproxime de mim um pouco/ mas não tanto/ a ponto de eu sentir sua falta/ quando você for embora” (Amor brando). Algumas críticas ouvidas em relação a Karina Buhr dizem respeito à voz, sem muita extensão, sobretudo para o rock. Ora, há anos, voz é funcionalidade. A citada Rita Lee nunca teve essa voz toda, e segura a onda há mais de 40 anos. O importante não é a extensão, é saber usar. E isso Celly Campelo, no final dos anos 1950, já ensinava. A turnê de Longe de onde começou dia 18 de novembro, no Circo Voador, no Rio de Janeiro, e aporta dia 27 de janeiro, no Teatro Guararapes, no Recife.
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INDICAÇÕES ROCK
R&B
SAMBA
Def Jam
Independente
FACE TO FACE Laugh now... Laugh later
RIHANNA Talk that Talk
sétimo álbum de estúdio do Face to Face, integrante da explosiva cena californiana que marcou os anos 1990. Laugh now... Laugh later marca o retorno do grupo, depois de sete anos, tempo em que os membros se dividiram entre músicos de apoio de bandas maiores do punk-pop, como o offspring, e carreiras solo. pujante, o álbum mostra que a banda voltou com estilo, equilibrando-se entre rapidez (caso de It’s not all about you, primeira música de trabalho) e leveza (em All for nothing), como prega a cartilha do punk-pop.
Depois de dois discos com propostas bem-diferenciadas (o dark e confessional Rated R e o ensolarado Loud), rihanna compilou suas várias facetas no novíssimo (e conciso) Talk that talk. aqui está o seu lado mais gangsta (as quase pornográficas Cockiness e Birthday cake) e tiros certeiros para as FMs (a faixa-título, dueto com jay-Z, e a balada Farwell). o destaque é o single We found love, com produção de calvin Harris, que leva a princesinha do r&b para um “passeio” por uma rave suada às cinco da matina.
Antagonist
PASSO TORTO Passo Torto
COCO
a reunião dos músicos paulistas Kiko Dinucci, rômulo Fróes, rodrigo campos e Marcelo cabral resultou no belo projeto Passo torto. o disco traz um samba paulista simples e sincero, com faixas que lembram a leveza de Walter Franco e caetano Veloso. nas letras, cantam o cotidiano de quem mora em são paulo, passeando pela cidade em faixas como Da Vila Guilherme até o Imirim. outra temática é o dia a dia de quem é músico, na canção Sem título, sem amor que, disfarçada de ode à paixão, critica o atual modo de se fazer música e trabalhar com ela.
Independente
ZECA DO ROLETE Zeca do Rolete estreia do coquista, que sai com incentivo do Funcultura, mescla faixas autorais com outras de contemporâneos como siba Veloso (Meu time) e sergio cassiano, que produziu, dirigiu e arranjou o álbum (Mareado). o cD também traz músicas de domínio público. são 10 faixas de um genuíno artista pernambucano, que, apesar de sempre estar envolvido com a cultura popular, contabilizando participações em festivais e num curta-metragem sobre coco, só agora, aos 68 anos, estreia em cD.
Do absurdo
Flora piMentel/DiVulGaÇÃo
GRUPO RUA FAZ EXPERIMENTAÇÕES EM EP DE ESTREIA
um passeio pelo free jazz, samba, trip hop e minimalismo, com tanta naturalidade e leveza, que encanta. partindo da aparente simplicidade, Do absurdo, primeiro ep do rua, é uma das boas surpresas musicais do ano. Formado por caio lima (vocal), Yuri pimentel (baixo), nelson brederode (bandolim e cavaco)
e Hugo Medeiros (bateria), o grupo brinca com diversas sonoridades, atingindo um estilo tanto lúdico quanto levemente melancólico, lembrando, em alguns momentos, a extinta – e também recifense – parafusa. e se aqui há a busca por várias vertentes musicais, há também a constância minimalista,
com um cuidado evidente, que possibilita ao ouvinte apreciar cada um dos instrumentos que compõem o disco. Dentro dessa atmosfera, propor-se a classificar o som resultante é um desafio. a ideia mais aproximada está exatamente no encarte do disco: “os rapazes do rua brincam com uma simplicidade equivalente à de
um tecido cru, jogando diversas cores por cima, e chegando, enfim, a uma obra de arte”. o absurdo, surgido dos sonhos, encontra nesse disco um sentido de realidade, ao mesmo tempo em que atiça a imaginação de quem o escuta, idealizando fantasias. para o vocalista caio lima, “o processo de composição do álbum nos alimentou a reflexão sobre a poética musical”. enquanto procuram continuar com os shows do álbum, que até então foram poucos, os rapazes do rua estão no processo criativo de seu segundo ep, que se chamará Limbo – e que, para lima, surge da reflexão suscitada em Do absurdo, aliada à experiência que alguns integrantes tiveram compondo trilhas sonoras para companhias de dança e objetos audiovisuais – e, a princípio, caminha para uma relação ainda mais atenta com a música instrumental. (Gabriela alcântara)
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funções Vedetes e polêmicas
Novos verbetes surgem na dança contemporânea, enquanto a questão da autoria é posta em discussão texto Christianne Galdino
O solo do outro – título do projeto
de residência criativa em dança do Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, que, em 2011, chega à sua 10ª edição – traz duas palavras-vedetes que puxam um bailado de reflexões acerca das mais recentes novidades do vocabulário da linguagem do movimento. Em primeiro lugar, revelando uma possível contingência que virou opção: o solo, deixando claro que o foco das produções atuais de dança contemporânea são os trabalhos individuais. Levados pelas dificuldades de produção e circulação das obras ou por desejos de subjetividade, os criadores têm escolhido trabalhar sozinhos, ou, como prefiro dizer, estar em cena sozinhos. Porque, fora da cena, ou antes de chegar a ela, no processo de criação, muitos outros estão presentes. É aí que entra nossa segunda palavravedete: o outro. Durante muito tempo, foi fácil identificar esse “outro” que entrava na dança sem dançar, talvez por um sistema hierárquico que foi sendo transferido de uma técnica a outra, passando naturalmente do balé clássico à dança moderna e contemporânea. Nesse modelo, todas as atenções estavam voltadas ao coreógrafo que, segundo definição das enciclopédias e dicionários, era o único responsável
pelo “ato de compor bailados e os transcrever”. Era dele, e somente dele, a autoria da criação. Se considerarmos a tradução literal da palavra coreografia (escrita de dança), podemos afirmar que, nessa lógica hierárquica herdada também do próprio sistema educacional do Brasil, o coreógrafo escrevia sozinho, ainda que estivesse utilizando para isso os gestos e movimentos de outros. “Era como se o bailarino fosse um objeto, um mero executor que aprendia por imitação, sem direito a inserir nem um traço a mais naquela escrita”, conta o coreógrafo Ivaldo Mendonça, deixando claro que enxerga valor também nessa metodologia e que, em certos casos, ela ainda é a solução mais acertada, em se tratando de bailarinos em formação. Ivaldo prefere trabalhar de forma colaborativa, contando com a participação do que se convencionou chamar bailarinos-criadores. Mas, se os bailarinos nessa nova conjuntura também escrevem a dança, como é que fica a questão da autoria? Essa é uma polêmica discussão porque nem todos os coreógrafos conseguem realizar bem a transição para a forma partilhada de criação. Muitos transferem aos intérpretes a responsabilidade total da composição e, às vezes, até da concepção, como se entendessem que, agora, ser coreógrafo é
apenas ser o dono da ideia inicial de um espetáculo. “Eu sou contra a banalização dessa forma de democratizar a criação que, na minha opinião, tem gerado muitas distorções. Acredito que, para trabalhar assim, o coreógrafo tem que oferecer um material como ponto de partida, células, frases de movimento e, principalmente, deixar claro conceitos e princípios que sustentam sua pesquisa de vocabulário de movimento”, complementa o coreógrafo.
inteRPRetAÇÃo cRiADoRA
Com formação clássica e atuando também nas composições contemporâneas de dança, a bailarina Juliana Siqueira diz gostar mais de assumir a função de intérprete ou intérprete-criadora, pois considera que o trabalho do coreógrafo transcende o ato de criar movimentos e, para isso, ela não se acha pronta ainda, pelo menos, não no universo da dança contemporânea. “O intérprete-criador participa da pesquisa de movimento, elaborando algumas sequências, mas o trabalho do coreógrafo vai além. Cabe a ele selecionar material, estabelecer relações entre os intérpretes, a dança e os outros elementos, como a música, a cenografia, por exemplo. Dominar e saber transmitir o conceito da obra também é imprescindível”, enumera
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Página anterior 1 ela sObre O silênciO
a bailarina Helijane rocha contou com a contribuição de mônica lira como dramaturga para compor o solo
Nesta página 2 comPosiÇÃo
em Sobre mosaicos azuis, Januária Finizola estabeleceu uma relação criativa com os autores da trilha sonora
Palco
3 a face da falta Jefferson Figueiredo buscou referências na sua história para atuar pela primeira vez como coreógrafo
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a bailarina. Juliana acredita que os dois significados para a palavra coreógrafo ou as duas formas de trabalhar com criação em dança contemporânea são válidas e vão coexistir. Com 22 anos e um invejável currículo artístico, o bailarino Jefferson Figueiredo estreia como coreógrafo, montando e interpretando o espetáculo A face da falta, em O solo do outro. “O desafio foi surpreendente. Não pensava que tinha que dar conta de tantas coisas, além da criação do movimento em si”, admite. Criar composições a partir dos princípios coreográficos e do vocabulário artístico de Ivaldo Mendonça foi a proposta para os solos deste ano, contando com a direção artística do idealizador do projeto, Arnaldo Siqueira, e do próprio Ivaldo, que também atuou como orientador coreográfico – mais um verbete do novo vocabulário da dança contemporânea. Partir do outro para compor algo autoral pode ser um caminho fácil ou difícil. Para não cair na armadilha da cópia, Jefferson buscou apoio nas suas memórias e na sua já tão rica trajetória profissional. Fotos e vídeos da infância
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e adolescência nos palcos e na vida são trazidos para a cena e para o movimento do intérprete, inserindo traços sutis da sua escrita no denso e fluido vocabulário de Ivaldo. Nesse processo criativo, ele contou com a ajuda da bailarina Marina Souza que escreveu um texto para organizar as ideias e dar uma forma mais definida à concepção do amigo. Esse olhar de fora, que já ganhou vários nomes anteriormente, está aparecendo agora como dramaturgo nas fichas técnicas das obras. Diferente de um diretor, essa pessoa não tem poder de decisão sobre a criação, o seu papel é “colocar em crise”, fazer uma crítica durante o processo e ajudar o coreógrafo a tomar decisões mais adequadas e eficazes ao que ele pretende comunicar. Nesse sentido, podemos dizer que o dramaturgo faz o papel de espelho, ou de consciência auxiliar, se preferir. Para os solistas – principalmente os intérpretes-criadores –, o outro que assume essa função tem sido uma grande ajuda. Talvez essa necessidade de outros olhares fique mais gritante em uma carreira solo. Por isso, tantas funções surgiram no vocabulário da dança, nessa fase em que os trabalhos individuais estão se tornando maioria. A bailarina Helijane Rocha, que faz parte do elenco do Grupo Experimental, e agora apresenta sua primeira criação, Ela sobre o silêncio, também entendeu que, para contar suas histórias em um solo, não podia estar sozinha. E isso tornou o processo mais prazeroso e produtivo. Mônica Lira, diretora e coreógrafa do grupo, assumiu então, a função de dramaturga e a atriz Ceronha
Pontas teve uma participação significativa como colaboradora artística, outro título novo que figura nas produções em dança. Mário Nascimento, Henrique Lima, Marcelo Pereira, Mônica Lira, Ivaldo Mendonça e Heloísa Duque figuram na lista de coreógrafos com quem a bailarina Januária Finizola já trabalhou. Esse mosaico de informações corporais ajudou na escrita do seu primeiro trabalho autoral. Sozinha em cena, pela primeira vez, mas cercada por muitos outros, ela montou Sobre mosaicos azuis, baseado na obra do escritor Rodrigo de Souza Leão. “Mesmo criando em paralelo, a sinergia com Marcelo foi perfeita, parecia que ele tinha visto toda a movimentação para criar a trilha”, conta Januária, sobre sua relação criativa com Marcelo Sena que, junto com Caio Lima e Hugo Medeiros, compôs a trilha sonora original. A conversa sobre autoria e os novos significados da função de coreógrafo levam a crer que houve um deslocamento, sim. E, agora, quem está no centro das atenções não é mais aquele que escreve previamente a cena, mas o que dá vida às palavras-movimento, o que faz a leitura pública, ou seja: o intérprete. Mas o fato de o bailarino assumir o papel principal não elimina a função do coreógrafo, apenas lhe dá outros contornos. E, além disso, evidencia a participação dos coadjuvantes no processo criativo. Não é só uma inversão de papéis, é uma reconfiguração. Mudou também o modo de criar, cada vez mais coletivo e integrado, cada vez mais feito de “outros”.
Auto de Natal
baile do menino deus em liVro e palco “ai, ai, ciganinha bela, quem te deu cravo e canela?”, “Zabilin-tintin, tin-tin, tin-tin.” Quem foi criança na década de 1980 deve ter guardado, no fundo da memória, o ritmo e as letras dessas músicas. também deve ter participado de alguma montagem na qual fazia o papel da burrinha, do caboclinho, das ciganas. essa bagagem afetiva vem do auto de natal Baile do Menino Deus, dos cearenses ronaldo correia de brito e assis lima, cuja estreia aconteceu, por meio do lançamento de um lP, em 1983. o desejo dos autores era mostrar o verdadeiro sentido da festa, que não se resume aos presentes, à ceia e à decoração fora da realidade local, envolvendo neve e chaminés. a opção foi buscar inspiração nos folguedos populares nordestinos para contar a história do nascimento de Jesus. assim, de forma despretensiosa, o que era uma brincadeira de Natal, para os filhos e amigos, transformou-se no espetáculo mais encenado de todo o brasil. a peça tornou-se popular e passou a ser montada em escolas, comunidades e palanques de rua. agora, 28 anos depois da estreia, a peça ganhou nova edição em livro, com lançamento pela editora objetiva. a obra, com ilustrações de Flávio Fargas, parece ser mais um facilitador para as inúmeras encenações do material, já que apresenta os personagens, descreve os cenários, e, ao invés de ser dividida em capítulos, organiza-se com base nas cenas, descrevendo-as. os diálogos estão lá e as letras das músicas também. em sua apresentação, ruth rocha incentiva os leitores a encenarem o espetáculo: “Fácil de ser montado, o texto da peça é apresentado integralmente para você (…). você pode formar um grupo de amigos, na sua rua, no seu colégio, e juntos lerem a peça”. a obra ainda será tema da decoração natalina do recife e voltará a ser montada no marco Zero, entre os dias 23 e 25 de dezembro, como já vem acontecendo nos últimos oito anos, sob a coordenação de ronaldo correia de brito. mariaNa oliveira
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Artigo
fotos: divulgação
EDUARDO CESAR MAIA UM CINEMA SEM RESPOSTAS Quando Tropa de elite, do diretor José Padilha, recebeu o Urso de Ouro em Berlim, gerou-se imediatamente uma ampla discussão internacional. A impactante narrativa, que mostrava, de forma crua, a atuação da polícia do Rio de Janeiro no combate ao narcotráfico, converteu-se em tema de intensos e apaixonados debates em vários países (no Brasil, como se sabe, a polêmica se formou mesmo antes do lançamento oficial). A revista pop norte-americana Variety e a intelectualizada Cahiers du Cinéma, da França, consideraram a obra execrável por “apresentar um teor fascista” e classificaram a premiação alemã como uma das mais equivocadas da história. Na ocasião, o presidente da comissão que outorgou o prêmio em Berlim era o cineasta grego Costa-Gavras, famoso por seu engajamento político, por suas posições esquerdistas e pelo seu cinema político. O diretor de Missing e Z elogiou efusivamente o filme, justamente pelo seu conteúdo de denúncia a graves problemas sociais. Os críticos de cinema, brasileiros ou não, também não chegaram a um acordo sobre esse ponto específico. Mas, como são possíveis leituras tão contraditórias, e mesmo opostas, de uma mesma experiência cinematográfica? Não pretendo aqui apresentar uma crítica de cinema, mas somente sugerir que algumas características peculiares dos filmes Tropa de Elite e Tropa de Elite 2 os colocam num lugar, a meu ver, particular dentro da história do cinema social brasileiro, e abrem uma alternativa à concepção tradicional em nosso país de cinema engajado e de denúncia. Para isso, acho pertinente estabelecer algumas relações entre o filme e a série televisiva norte-americana The wire, escrita e produzida por David Simon, e que foi levada ao ar pelo canal HBO, entre os anos de 2002 e 2008.
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Os dois Tropa supõem um marco no cinema de denúncia social no Brasil, por não se utilizarem de pré-concepções ideológicas ou de esquemas generalizantes para explicar uma realidade ou fundamentar uma crítica social. Por isso, eles dividem tanto as opiniões: o conteúdo crítico está implícito simplesmente naquilo que é mostrado, na complexidade da situação tratada e não em uma apresentação dramatizada de um discurso ideológico, de uma reivindicação política ou numa encenação de uma teoria social disfarçada de narrativa. Uma declaração de José Padilha nos dá uma pista: “A esquerda acha que tudo depende da solução da desigualdade social; a direita entende que o caminho é o aumento da repressão; nenhuma das duas dá conta da questão da segurança”. O diretor, em entrevistas, mencionou várias vezes que todo seu trabalho no cinema busca
tratar de indagações muito complexas, que ele mesmo se faz porque a observação da realidade concreta põe em dúvida suas próprias convicções políticas e éticas. A influência que, segundo Padilha, Tropa de elite recebeu da série americana The wire, que trata das intricadas relações entre tráfico de drogas, violência, polícia, e o sistema educacional e político na cidade americana de Baltimore, também é reveladora. Filme e série partem do mesmo: não se trata de explicar nada, mas de simplesmente mostrar os eventos sob as mais variadas perspectivas. Tampouco se trata de apresentar soluções para os grandes conflitos narrados: o que nos ensina a complexidade dos problemas e das relações humanas retratadas – se é que ensina algo – é que as reflexões que fazemos na vida pessoal e social não podem ser nunca plena e
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1-2 confluência
tanto Tropa de elite quanto a série americana The Wire não pretendem mostrar a realidade como uma totalidade passível de ser compreendida por uma teoria
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satisfatoriamente respondidas por teorias gerais, ideologias ou abstrações. Tropa de elite e The wire são exemplos de uma forma de olhar realista particular, que se distancia da ingenuidade pretensiosa de mostrar o real como uma totalidade compreensível através de uma teoria; eles partem do entendimento de que nenhum ponto de vista, nenhuma ideia ou doutrina podem esgotar a realidade; portanto, o caminho prudente é trabalhar com rigor e humildade uma boa quantidade de perspectivas diferentes (e mesmo contraditórias) sobre um tema determinado. Nessa estética particular, a contradição já não é um problema para o realismo e para a verossimilhança porque a própria realidade é, em si, contraditória. Uma comparação inevitável entre filme e série se relaciona às semelhanças entre seus respectivos protagonistas. Capitão Nascimento
os dois Tropa marcam o cinema de denúncia no Brasil por não se utilizarem de pré-concepções ideológicas e James McNulty são personagens que refletem toda a complexidade e contradições que mencionei. Ambos são profissionais competentes e dedicados que, contudo, não conseguem encontrar um ponto de equilíbrio entre o trabalho e a vida familiar. Eles enxergam na boa realização dos seus deveres profissionais um sentido vital mais nítido e determinado que qualquer outro, porque a vida policial tem regras e objetivos estabelecidos; a vida familiar, por sua vez, aparece como um
problema demasiadamente complicado e difícil de administrar. Nascimento e McNulty se sentem seguros fora de casa porque parecem ter uma ideia clara a respeito daquilo que deve ser uma correta conduta moral e prática de um policial: eles pensam que dominam completamente esse jogo (ambos se referem ao trabalho com esse termo). Mas mesmo as regras claras do jogo se mostram insuficientes, e MacNulty se dá conta disso quando percebe que, ainda quando é capaz de resolver casos difíceis, a dura realidade das ruas de Baltimore permanece inalterável. Não aparecem caminhos de salvação nem de resoluções definitivas: a sabedoria de The wire está no entendimento de que, na vida real e cotidiana, o importante é conseguir suportar e administrar a intranscendência, lidar com a falta de um sentido superior, redentor. No caso de Nascimento, a aprendizagem não é diferente: a forte crença que ele sustenta no princípio de que uma polícia incorruptível, preparada e violenta, é a solução definitiva para os problemas do “sistema”, não suporta o confronto com sua própria experiência. Não há didatismos fáceis para explicar uma realidade tão complicada e cheia de matizes: as condições de vida nas favelas; o tráfico de drogas; a falta de presença do Estado; o ambiente de violência e medo constantes; a corrupção da polícia; o alto índice de consumo de drogas pelas classes média e alta, que acabam estimulando e financiando as facções criminosas; a ligação dos traficantes com políticos... Capitão Nascimento, seguindo de perto os passos do seu colega MacNulty, vai aprendendo a se relacionar com o contingente, com o parcial e precário, com soluções provisórias: é o único saber possível, o resto são teorias...
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Leonardo Salazar
VENDA A SUA MÚSICA, NÃO A SUA ALMA
Leonardo Salazar
é jornalista, produtor e autor do livro Música Ltda: o negócio da música para empreendedores JULIANO RIBEIRO/dIvULgAçãO
tratar a música como um negócio não implica, necessariamente, em perda de autenticidade, originalidade, inovação ou criatividade da obra musical. O músico precisa entender que não é necessário mudar o conteúdo, mas, sim, adaptar a embalagem. O desafio, hoje, é criar uma estratégia para viabilizar sua produção musical em um mercado competitivo. Pesquisa realizada em dezembro de 2010, pela Fecomércio/RJ, com 1.000 entrevistados de 70 cidades, revelou que o brasileiro acha justo pagar, em média, R$ 10 por um CD, R$ 12 por um DVD e R$ 23 por um show. Certa vez, ouvi a seguinte lamentação de um músico: “Quem dera a música não fosse um negócio”. Fiquei pensando nas consequências disso. E se a música não fosse um negócio? a) Não existiriam Ordem dos Músicos, Ecad, gravadoras, jabá, empresários, estúdios, casas de show, lojas de discos, público consumidor, enfim, não haveria toda essa cadeia produtiva que gira ao redor do compositor e do intérprete. b) Também não haveria a profissão de músico, então, ele teria que arrumar outra atividade qualquer, talvez fosse advogado, médico, servidor público, ou, quem sabe, um desempregado. Colocando na balança, analisando prós e contras, acho positivo que a música seja um negócio. Porque, sendo um negócio, a atividade musical é capaz de gerar trabalho e renda para muita gente que tem a possibilidade de transformar seu talento artístico em riqueza econômica. Além disso, para um país como o Brasil, reconhecido internacionalmente pela qualidade técnica e pela diversidade de gêneros musicais, a produção musical brasileira representa um vetor de desenvolvimento econômico, capaz de agregar valor na atração de investimentos e de turistas. Ser um negócio não desqualifica nenhuma atividade, muito pelo contrário, empresta-lhe aspecto de profissionalização. Afinal de contas, se ganhar dinheiro, fazendo o que gosta, é um sonho a ser alcançado por todo profissional, que bom que a música seja, então, um negócio lucrativo para o músico. A atriz brasileira Cacilda Becker disse, certa vez: “Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”. Músicos, escrevam essa frase na parte superior de suas partituras. Repitam em voz alta, como se fosse um mantra. Aprendam a valorizar seu talento. A música é um bom negócio. Então, um músico nunca deve sentir culpa por ganhar dinheiro fazendo o que gosta, mesmo que os outros achem que esse trabalho seja “pura diversão”. Tampouco deve trabalhar de graça, mesmo que ele próprio ache o ofício muito divertido.
con ti nEn tE
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