LÍVIA FALCÃO NOS BASTIDORES DA PEÇA CAETANA. FOTO: daniela nader/divulgação
fevereiro 2012
aos leitores Apesar do glamour estampado nas páginas das “revistas de celebridades”, a vida de ator não é fácil. Por trás da cortina, ao tirar a máscara dos personagens, a profissão requer muita dedicação. Este mês, a nossa matéria de capa vai contar a trajetória de diversos intérpretes pernambucanos que atuam nos palcos, na TV e no cinema. A inspiração para esse especial surgiu a partir da observação do bom momento vivido por alguns profissionais no concorrido mercado audiovisual do Sudeste. Dentre esses nomes está o da atriz Hermila Guedes. Retratada na capa desta edição, a jovem estrela vive um momento ímpar. Depois de ser revelada no premiado longa O céu de Suely (2006), iniciou uma carreira de sucesso na TV e no cinema e agora se prepara para seu primeiro grande papel numa novela, com estreia prevista para março, na TV Globo. Antes de Hermila, outros pernambucanos foram em busca do reconhecimento nacional. A veterana Arlete Salles, por exemplo, iniciou sua carreira nos anos 1960, quando a dramaturgia ainda tinha espaço no rádio e na TV locais. Com a chegada do videoteipe e a centralização das produções no eixo Rio-São Paulo, a atriz foi
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obrigada a transferir-se para lá. Desde então, vários artistas da cena local se arriscaram nessa empreitada, enfrentando o preconceito do sotaque nordestino e demais estereótipos. Contudo não são todos os atores pernambucanos que decidem migrar. O mercado local abriga um grupo amplo e competente que, por vários motivos, optou por seguir vivendo e trabalhando por aqui. Com um ambiente profissional ainda frágil, boa parte desses atores é obrigada a dividir o seu tempo entre a representação e alguma outra atividade, como Sóstenes Vidal, que é também corretor de seguros, ou Germano Haiut, que trabalha no ramo do comércio. As diferentes histórias apresentadas no especial nos deixam uma certeza: para viver da atuação, não há caminho sem dificuldades. Neste mês, a Continente lança o seu novo site, com um projeto gráfico reformulado e uma proposta mais dinâmica. A redação, agora, contará com um blog para pequenas notas, possibilitando maior contato entre os jornalistas e os leitores. Além disso, o acervo da revista estará disponível, na íntegra, para o público consultá-lo livremente.
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cartas pessoal da Secretaria de Imprensa do Palácio gostou muito. Recebi inúmeros telefonemas falando sobre a matéria. Adquiri uma dezena de revistas para enviar a algumas entidades daqui do Brasil e do exterior, a exemplo da Universidade do Porto, Universidade Nova de Lisboa e Escola Superior de Arquitetura de Madri. Meus sinceros parabéns à revista Continente! Suely cisneiros Recife – PE
Vitrais A matéria Vitral – uma teia de vidro atravessada de luz (edição nº132, dezembro/2011), escrita por Danielle Romani, foi de uma veracidade artística extraordinária. Muito bem-redigida – o que lhe confere excelência profissional – e com uma sequência cronológica perfeita. As fotos são, também, de ótima qualidade. Fernando Guerra (arquiteto, historiador e coordenador de visitação do Palácio do Campo das Princesas) me trouxe a notícia de que o
Projeto gráfico Recentemente, fui apresentada à revista Continente e estou apaixonada por ela. Sou designer e achei as letras, espaçamentos e respiro dos textos muito bons e bem-executados. Isadora Tupinambá Brasília–DF
Rio de Janeiro Sempre os meus cumprimentos pela alta qualidade da revista. Comentaram a entrevista
publicada na edição nº 130, outubro/2011, que concedi à repórter Beatriz Coelho Silva. Eu lhes pediria a delicadeza de me conseguir um exemplar. Ocorre que, aqui, no Rio de Janeiro, não tenho como adquirir a revista Continente . MARCO LUCCHESI RIO DE JANEIRO –RJ
Resposta da redação Caro Marco, enviamos o exemplar com sua entrevista publicada. Aproveitamos a oportunidade para destacar que agora é possível encontrar a Continente na recém-inaugurada Livraria Cultura, no Bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro. Errata Na matéria sobre o novo disco de Siba, publicada na edição nº 133, janeiro/2012, o nome correto do documentário sobre o músico é Siba – nos balés da tormenta, e os nomes de seus diretores são Pablo Francischelli e Caio Jobim.
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
cleodon coelho
Luiz Joaquim
Márcia camargos
Williams sant’anna
Jornalista, roteirista de TV, autor de biografias da novelista Janete Clair e da atriz Lílian Lemmertz.
Crítico de cinema, mestre em Comunicação Social e curador do Cinema da Fundação.
Doutora em História pela USP, é autora do livro Semana de 22: entre vaias e aplausos.
Ator, palhaço, produtor cultural, encenador, historiador e arteeducador.
e Mais diogo Guedes, jornalista e mestrando em Comunicação Social. eduardo cesar Maia, jornalista, mestre em Filosofia e doutorando em Letras. Fabiana Bruce, historiadora, antropóloga e professora de História, da UFRPE. Fábio Lucas, jornalista e mestre em Filosofia. Júlio cavani, jornalista. Luciana cavalcanti, bailarina, jornalista e professora do Diverso Espaço Cultural. Marcelo abreu, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Katmandu. pollyanna diniz, jornalista, colaboradora do blog sobre teatro Satisfeita, Yolanda? e do Diario de Pernambuco. Renata do amaral, jornalista, professora e doutoranda em Comunicação Social. Renato Filho, fotógrafo. schneider carpeggiani, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutorando em Literatura.
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sumário Entrevista Allan Sieber 06 Cartas 07 Expediente
+ colaboradores
12 Conexão
Design in Tell Site disponibiliza fotos realizadas entre 1945 e 1950 pelo então jovem jornalista Stanley Kubrick
68 Visuais
Desenho O arquiteto espanhol José Maria Plaza Escrivá registra monumentos barrocos do Recife
74 Palco
76 Sonoras
36 Literatura
80 Leitura
Crônica Os 90 anos de nascimento de Paulo Mendes Campos reavivam a importância desse gênero literário
50 Perfil
Distribuidores Antonio Silva e Arlindo Gusmão levavam a magia do cinema a cidades do Norte e Nordeste do país
66
Matéria Corrida José Cláudio Da natureza do ser
08
Hermilo Borba Filho Documentário resgata a história e o legado do dramaturgo
20 Balaio
Tom Cruise O bom rendimento do ator nas bilheterias vem coincidindo com o fato de estar com cabelos longos em seus filmes
Um dos nomes de destaque da nova geração de humoristas, cartunista gaúcho fala sobre suas influências e as polêmicas que costumam envolver essa área
Astrud Gilberto Livro que pretende desvendar o mito João Gilberto não valoriza o “sumiço” da cantora, símbolo bossanovista Ângelo Monteiro Seu novo livro de ensaios analisa as experiências artísticas contemporâneas
86 Artigo
Márcia Camargos Noventa anos depois daquelas vaias...
88 Saída
Luciana Cavalcanti Um “banquete” regado à dança
Tecnologia
Digitalização Diversas instituições começam a disponibilizar seus acervos virtualmente, numa mudança de suporte que permite maior democratização do acesso
40 Capa foto Renato Filho atriz Hermila Guedes beleza Henrique Melo estilo Nestor Mádenes manipulação de imagem Felipe Ribeiro figurino Pietro Tales/Xuruca Pacheco
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Portfólio
Especial
Conhecido como o fotógrafo da clássica imagem Sombras do frevo, artista captou a diversidade do carnaval recifense durante meio século
Atores pernambucanos, a exemplo de Hermila Guedes, contam histórias de como conseguiram ingressar no concorrido mercado do cinema e da TV no Sudeste
Claquete
Cardápio
Cineasta e membro-fundador da Nouvelle Vague, cujo 80º aniversário de nascimento é lembrado neste mês, é hoje um dos nomes mais influentes do cinema
Seja em receitas contemporâneas ou clássicas, os drinques têm ganhado cada vez mais espaço, desconstruindo a ideia de bebida com sabor enjoativo
Alexandre Berzin
14
François Truffaut
54
Cena
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Coquetel
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ALLAN SIEBER
“O humor tem que destruir”
Cartunista fala sobre suas influências, sua obra que envolve temas controversos, como o racismo e a religião, e discute as recentes polêmicas que circundam o trabalho dos humoristas texto Diogo Guedes
con ti nen te
Entrevista
Um homem com uma Bíblia na mão diz, no meio da rua, a um trabalhador: “Jesus te ama, irmão!”. O passante, com cara de poucos amigos, responde prontamente: “Fala pra ele que eu já sou casado”. Algumas das marcas do trabalho do cartunista gaúcho Allan Sieber são tiradas ranzinzas, malhumoradas como essa, presentes em seus quadrinhos, entrevistas, animações e programas de TV. Mais famoso por seu trabalho em HQs, ele é um dos mais respeitados nomes das tiras de humor no Brasil, um mestre do sarcasmo, da crítica do comportamento contemporâneo e dos quadrinhos autobiográficos e autodegradantes. Tratando de temas polêmicos, como religião e racismo, Sieber atualmente publica na Folha de S.Paulo duas séries diárias, Bifaland e Preto no Branco, e comanda o Toscographics, estúdio de animação e cinema. Nesta entrevista, feita por telefone em um de seus intervalos da pesada rotina de trabalho, o quadrinista comenta suas influências e trajetórias nos quadrinhos e as polêmicas no campo do humor, fruto de piadas de comediantes como
Danilo Gentili e Rafinha Bastos. Para ele, “qualquer cartunista que se preze tem que ter uma visão crítica”. CONTINENTE Gostaria que você falasse sobre sua iniciação nos quadrinhos. Seu pai, Jouralbo Sieber, é desenhista, como você contou no livro que fez com ele, Ninguém me convidou. Que artistas o despertaram para as HQs? ALLAN SIEBER Na verdade, quando eu era bem moleque, com uns sete ou oito anos, era obcecado por tiras de jornais. Eu gostava daquele formato, dos bonecos narigudos tipo Hagar, Crock (de Crock e os Legendários) e Snoopy (do Peanuts). Lembro que eu recortava essas tiras e colava no meu caderno, para fazer um gibi de brincadeira. Meu pai tinha alguns exemplares do Gibi, aquele jornalzão standard, que deu origem ao nome do formato no começo dos anos 1970. Era meio um balaio de gatos, e uma das coisas que me marcaram muito foram as histórias do Spirit, de Will Eisner, que eram soturnas e humanistas. Posteriormente, apareceu lá em casa um livro do Millôr, chamado Que país é esse?. Obviamente, eu não entendia nada, não conseguia apreender toda a
riqueza do texto, mas gostava muito do desenho dele, de como ele fazia o rosto como uma carranca, as mãos como umas garras. Foi um dos primeiros caras que eu tentei copiar. Depois, comprei uma Chiclete com Banana e tomei um choque: “Isso tem para vender na banca! Dá para fazer quadrinhos assim, agressivos, sem amarras”. O trabalho do Angeli foi um baque para mim. Por fim, eu comecei a conhecer as coisas do Robert Crumb, nome que também foi uma influência para fazer essas histórias autobiográficas, quase suicidas, em que o cara se expõe muito. E ainda tem a revista Animal, com o Caubói Rick, Edmundo, o Corvo, o jornalista escroto Marques Editor. Ela foi uma escola para a minha geração, junto com a turma da Circo e da Chiclete com Banana. CONTINENTE Quando você percebeu que era engraçado, que queria trabalhar com o humor? ALLAN SIEBER Desde moleque sempre quis fazer tiras. Achava o máximo o formato e até mesmo o fato de ser impresso em preto e branco no papel jornal, de ser uma coisa meio vagabunda. Meu pai tentava empurrar
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ALLAN SIEBER/REPRODUÇÃO
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uns gibis de super-heróis para que eu aprendesse a desenhar, mas essa fase só durou alguns meses, porque não tive muito saco e ele desistiu de mim (risos).
Schiavon são os dois melhores do Brasil, disparados. Infelizmente, não existe muita coisa publicada deles, porque os editores são tapados.
CONTINENTE Você, que nunca parou para aprender a desenhar mesmo, valoriza, de certa forma, esse traço simples, “tosco”? ALLAN SIEBER Um momento em que aprendi muito foi quando comecei a trabalhar no estúdio do Otto Guerra, o Otto Desenho. Entrei lá em 1992, e o Adão (Turrusgarai) era uma das presenças constantes – na época, ele
CONTINENTE Como é trabalhar em ritmo mais veloz, diário, na Folha de S.Paulo? ALLAN SIEBER Atualmente, estou publicando lá duas tiras. De segunda a quinta, publico Bifaland, a cidade maldita, uma tira que fazia em 1996/1997 para um suplemento do Estadão. Eu já publicava semanalmente na Folha, desde 2005, e fui chamado para fazer
CONTINENTE E essas polêmicas recentes com comediantes de humor “politicamente incorreto”? Você se vê envolvido no meio delas, acompanha o que Rafinha Bastos e Danilo Gentili fazem? ALLAN SIEBER Eu meio que desconheço esses caras, porque não tenho muito saco para stand-up comedy, não vejo TV... Sério, nunca vi CQC na vida. Vi nesses
“Comprei uma Chiclete com Banana muito por acaso e tomei um choque: ‘Isso tem para vender na banca! Dá para fazer quadrinhos assim, agressivos, sem amarras’. O trabalho do Angeli foi um baque para mim”
angeli/reprodução
con ti nen te
um cara que eu adoro, pelo Schiavon, pelo Fábio Zimbres, pelo Arnaldo Branco, com o Capitão Presença, e por mim, com meus personagens também, tipo o Deus é pai, Ice Crime.
Entrevista editava a Dundum. Tinha também o trabalho de um dos caras de que eu mais gosto, o Schiavon. Eu pirei com ele, principalmente com o jeito de fazer histórias sobre os amigos escrotos. Era algo bem agressivo, quase de violência gratuita, tinha um humor muito particular... É muito difícil definir um humor, mas eu morro de rir vendo as coisas dele, as associações que faz. É um cara que, até hoje, eu paro o que estiver fazendo se chegar um trabalho novo dele. E tinha o Fábio Zimbres, que também admiro muito e que tem um traço quase esquizofrênico, sem se repetir, sempre experimentando e negando o caminho mais fácil. Sem falar no seu humor sofisticado – eu o acho um gênio. Para mim, ele e o
tira diária em 2011, depois da morte de Glauco – aliás, um péssimo jeito de entrar. Passar de uma tira por semana para sete é complicado, demanda um tempo a mais. Propus, então, ressuscitar Bifaland e fazer, de sexta a domingo, a Preto no Branco, uma coisa mais de comportamento, envolvendo elementos autobiográficos. Gosto de trabalhar com personagens, tinha tempo que não fazia isso.
CONTINENTE E como está sendo conciliar esse trabalho e outros, além da demanda da Toscographics? ALLAN SIEBER Estou tocando a Tosco desde 1999. É uma empresa deficitária (risos)... Agora fizemos o Trash Hour (em exibição no Canal Brasil), meu e do Fabiano (Araújo), e estamos com o projeto de uma série de animação para TV, mas isso ainda está meio sigiloso. São vários episódios, feitos pelo MZK,
dias o talkshow do Danilo Gentili porque o (Paulo César) Pereio, sobre quem estou fazendo um filme, há alguns anos, foi o convidado. Mas estou realmente por fora. O próprio nome do que eles fazem, stand-up comedy, é meio escroto. Isso é uma coisa mais antiga que a roda! É o que Chico Anysio fazia, o que Jô Soares fazia. É um show de piadas! Costinha, Ary Toledo faziam isso. Tentaram importar o nome, reembalar. Enfim, sei das polêmicas, da piada do judeu do Gentili e da piada sobre o filho da Wanessa (Camargo) feita pelo Rafinha. Acho que o pessoal confunde truculência e um certo fascismo com politicamente incorreto. É tipo: “Estou sendo escroto e isso é ser politicamente incorreto”. Defendo o humor sem fronteiras, o humor vale-tudo, mas tem que ter graça, tem que ter pertinência. Não vale a piada grosseira pela grosseria. Acho que tenho senso crítico para saber se uma piada é pertinente e se tem uma
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coisa fundamental: graça. Não dá para agradar a todos, gregos e troianos, mas faço humor para as pessoas rirem.
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CONTINENTE E você toca em temas delicados, como a religião... ALLAN SIEBER Religião e racismo são duas minas, são campos minados. É muita encrenca. Religião é problema na certa. Em Bifaland, trato bastante do assunto – tem o Reverendo Bronson e Deus está na tira como um cara meio escroto –, mas não me mandaram nenhuma carta reclamando. Por incrível
CONTINENTE Sempre me deparo com você citando a frase de Jaguar, “Não existe humor a favor”. Para você, o humor é inevitavelmente algo crítico, pesado mesmo? ALLAN SIEBER Acho que o humor tem que destruir. Ele não constrói nada, quer dizer, pode até construir, mas, no meu modo de ver, ele precisa bater em alguém. Não existe “humor a favor” – bem, até existe, mas é horroroso, como Miguel Paiva. Quem também é assim é o Ziraldo pósPasquim... Ele é um puta desenhista, referência gráfica internacional,
que pareça, as pessoas que mais me incomodaram foram os fãs do vôlei. Uma vez, fiz um cartum dizendo que não entendia o esporte, dizendo que em todo ponto eles ficam se agarrando, abraçando a bunda do outro... Botei no meu blog e as pessoas ficavam dizendo: “Você é um insensível, um idiota”. Outra reação assim foi quando mexi com o teatro infantil (risos). A primeira tira diária na Folha trazia um pai e um moleque. O pai dizia: “Você vai comer brócolis!”, e o moleque nem reagia. “Você vai para o colégio interno!”, e moleque não dizia nada. No último quadrinho, ele ameaçava levar o filho para o teatro, e o moleque gritava: “Não! Teatro infantil, não!”. Nossa, cara, recebi um bilhão de e-mails de diretores de teatro infantil, de atores. Mas, putz, eu jamais imaginaria uma mobilização dessa (risos). Então, é uma coisa meio no escuro, você não sabe o que afeta as pessoas, quando está fazendo.
mas o humor dele não me diz muita coisa, é muito ameno. Enquanto isso, o Jaguar, quanto mais velho fica, também fica mais escroto. CONTINENTE Do jeito que você se coloca, passa a impressão de que é ranzinza como seus comentários. Você é assim mesmo? ALLAN SIEBER Sou. O que muda nas tiras é que eu sou mais engraçado, porque a realidade ninguém suportaria. Gosto disso, de “humor mal-humorado”, adoro a série do (roteirista de Seinfeld) Larry David, a Curb your enthusiasm. Putz, passo mal vendo aquilo! As pessoas mais engraçadas que conheço, engraçadas de verdade, sem ser humoristas, são as mal-humoradas. Elas têm as melhores tiradas, você realmente ri com elas. Odeio gente “engraçadinha”. Sabe a pessoa “engraçadinha”, metida a esperta? Eu gosto de quem é engraçado mesmo.
CONTINENTE Uma das coisas que você critica muito é o comportamento dos jovens. ALLAN SIEBER Ah, detesto adolescente, cara. Realmente, não tenho muito saco, ainda mais para essa molecada de hoje com essa coisa de multitasking. Eles estão ao mesmo tempo no Twitter, conferindo o “Facefuck”, ouvindo música... Ninguém faz porra nenhuma, ninguém consegue se concentrar. Ficam com um déficit de atenção gigante. Beira à doença mesmo, é patológico. CONTINENTE A sua relação com a internet é bem dúbia, não é? Afinal, apesar de tudo, você usa porque é preciso... ALLAN SIEBER Eu diria que a internet, na verdade, salvou minha vida por dois motivos. Um, é o blog, um negócio que é de graça e permite a qualquer um ter seu site. Conheci o trabalho do Arnaldo (Branco), do (André) Dahmer, do (Raphael) Salimena, do Rafael Sica pela internet. Outro, é o e-mail. Para mim, ele é tudo nessa vida. Mas, das redes sociais, estou fora, porque você fica com uma vida paralela online. Já tenho uma vida de verdade para administrar, aí você fica com outra persona que precisa ser alimentada online. Não tenho saco. Comercialmente, você não tem como escapar, tem que estar lá no Facebook, mas não estou participando. Sério, isso virou um filme de zumbi, as pessoas não se dão conta. Todo mundo está o dia inteiro ali. Minha mulher quase que dorme com um tablet. Inventaram esse jogo e obrigaram as pessoas a jogar, fica todo mundo jogando compulsivamente, e ninguém se dá conta. Acho assustador. CONTINENTE Você tem algum livro ou filme de animação planejado para sair em breve? ALLAN SIEBER Agora, estou fazendo um piloto do Bola 8 show para a MTV. Reestruturei o estúdio – tínhamos três projetos de longas engavetados, que estamos tocando agora, botando em leis de incentivo. Tenho também que entregar o livro do João do Rio, que é uma adaptação de contos dele – fui contratado em 2007 e não terminei ainda. Por fim, também tem o manual de desenho tosco, da Conrad, que começou em 2006. Esse se chama Desenhando com o lado externo do cérebro, e nele vou ser um Mister M dos quadrinistas, vou revelar todos os truques da minha classe (risos).
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
con ti nen te
ATORES PERNAMBUCANOS
PINÓQUIO
A Continente traz uma reportagem especial sobre a trajetória de atores do nosso estado que iniciaram suas carreiras em diferentes épocas, mostrando as dificuldades que encontraram para ter seus trabalhos reconhecidos nacionalmente. Assinada por Cleodon Coelho, a matéria conta o percurso de artistas como Arlete Salles, Fabiana Karla e Aramis Trindade, além de incluir uma entrevista com Hermila Guedes. No nosso site, é possível relembrar matérias de edições passadas sobre o sucesso do ator Irandhir Santos e da própria Hermila; os textos estão disponibilizados na íntegra.
Assista ao vídeo com o artista Alex Cerveny falando sobre o processo de ilustração da nova edição desse clássico da literatura infantil pela Cosac Naify.
Conexão
PORTFÓLIO Veja mais trabalhos do fotógrafo Alexandre Berzin, cuja obra foi reunida em nova publicação lançada pela Cepe Editora.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
MÚSICA
DESIGN
CARTAZES
TECNOLOGIA
MusicRadar.com oferece vasto material para fãs e pesquisadores
Referências visuais, tutoriais, entrevistas e portfólios
Site reúne 130 mil pôsteres de diversas bandas e artistas gráficos
Pesquisador analisa a influência da internet nas revoluções
musicradar.com
abduzeedo.com
gigposters.com
neteffect.foreignpolicy.com
Criado “por e para músicos”, o MusicRadar.com é o site mais visitado entre os dirigidos a profissionais do ramo, produtores e simpatizantes em geral. O objetivo é ser mais amplo do que os concorrentes. O espaço é sempre atualizado com muito material tradicional, como tablaturas e cifras. Mas o MusicRadar.com é mais noticioso, com seções de entrevistas, testes de equipamentos e sugestões de técnicas para tocar. Ainda disseca equipamentos como pickups e outras ferramentas para Djs.
Há cinco anos, Fábio Sasso teve o escritório roubado. Como não tinha feito backup, perdeu o trabalho de longa data. O designer, então, resolveu lançar seu material num espaço em que nunca se perderia: a rede. Foi assim que nasceu o Abduzeedo, um site no qual ele despretensiosamente compartilhava experiências. Hoje, é uma referência para designers em busca de inspiração, e agrega, além de informações visuais bem organizadas, tutoriais para programas relacionados. Colaboradores brasileiros e estrangeiros se juntaram a Sasso, permitindo que o blog alcançasse 2 milhões de visitas por mês.
Mais de 130 mil pôsteres, de 120 mil bandas, feitos por 10 mil designers. O Gigposters.com reúne a nata dos cartazes de shows, majoritariamente de rock. O material relacionado ao site até já foi lançado em formato físico, em dois volumes pomposos, editados pela Random House. Nele, é possível comprar pôsteres, enviar material para análise e participar do fórum. A navegação pode ser feita por escolha do artista gráfico ou da banda, em ordem alfabética. Há, ainda, a opção de conferir os cartazes cronologicamente. Reserve algumas horas: a visita é tentadora.
O acadêmico Evgeny Morozov vem alcançando projeção com seu livro, The net delusion (ainda sem tradução no Brasil), no qual argumenta que a web, ao contrário do esperado, não deve fortalecer as democracias. Para Morozov, a proeminência das redes sociais na Primavera Árabe se deu justamente pelos regimes não se adaptarem à globalização, ignorando assim o poder da internet. No Net.Effect o pesquisador analisa o papel da web (que julga superestimado), em meio às mudanças políticas correntes, mesclando a experiência acadêmica com a de rua.
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imagens: reprodução
blogs TECNOLOGIA bits.blogs.nytimes.com
O blog de tecnologia do New York Times está bem avançado para ser vinculado a uma publicação quase secular. O Bits não se resume a gadgets e lançamentos, pecado mortal de muitos concorrentes.
CONVERGÊNCIA www.cluetrain.com
Retratos de um artista quando jovem Revista de arte divulga imagens feitas por um iniciante chamado Stanley Kubrick, que então vendia seus trabalhos a preços módicos designintell.vandm.com/2011/11/stanley-kubricks-new-york/
Se você acha que já viu tudo do provocador Stanley Kubrick, é bom dar
uma olhada na ação promovida pela revista de arte Design in Tell. A publicação disponibilizou um site com fotos exclusivas feitas pelo então jovem jornalista. São imagens capturadas entre 1945 e 1950, tão bem-compostas quanto os quadros de seus filmes mais inspirados. Em suas fotos antigas, o diretor de O iluminado, Laranja mecânica e De olhos bem fechados já esboçava seu gosto pelo exótico, e o deixa claro em séries como Shoe shine boys (engraxates) e Showgirls (dançarinas, num eufemismo traduzido). Na primeira, o fotógrafo em formação documentava uma espécie de infanticídio, fotografando crianças com expressão de homens. Aliás, de homens sofridos, num tempo assombrado pela Segunda Guerra Mundial. São imagens tão fortes, que chegam a parecer produzidas, e não espontâneas como foram. As mesmas integraram o conteúdo visual da revista de fotografia Look, em 1945. Na ocasião, aquele tal de Kubrick, um jovem comum e freelancer querendo ganhar seu pão, garantiu uns trocados: 25 dólares por foto. Vale a pena, ainda, dar uma conferida no abrangente site da revista, cujos assuntos vão de design de joias até paisagismo. THIAGO LINS
É consenso que a internet age como um câncer sobre as gravadoras. Mas parece ocorrer o contrário com as editoras: blogs viram best sellers. Foi o caso do pesquisador David Wienberger e seu Cluetrain , sobre convergência.
REVISTA www.wired.com
Publicação obrigatória para os estudiosos da comunicação de hoje, a Wired mantém um site independente da revista física. O Wired.com ainda divulga algumas matérias da publicação, mas tem um rico conteúdo avulso, com entrevistas, pesquisas etc.
HUMOR jesusmanero.com
Autointitulado “o mais abençoado da internet”, o Jesusmanero é repleto de “mensagens subliminares”, como “666 pessoas curtiram isso no Facebook”. O humor, no entanto, vai além do profano: o Jesus da rede não poupa ninguém.
sites sobre
cult u ra pop curiosidades
INDIE
PROPAGANDA
oesquema.com.br/bateestaca/
oesquema.com.br/boombop
oesquema.com.br/conector
Entrevistas, achados da música e literatura e curiosidades pinçadas por Camilo Rocha, autointitulado “DJ e jornalista, só que ao contrário”.
A começar pelo título, trata-se de um site bonitinho com músicas e vídeos selecionados pela pesquisadora Bárbara Scarambone Leal.
Em outro blog hospedado no portal O esquema, o publicitário Gustavo Mini publica análises de um mercado cada vez mais integrado à cultura contemporânea.
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
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Alexandre Berzin
o HOMEM que seguia o carnaval TEXTO Fabiana Bruce
Hoje em dia, muitos são os fotógrafos que perseguem os passistas que
perseguem os clarins no Carnaval. Cada invenção espontânea, cada cor de fantasia, cada brilho, cada alegre presença podem vir a ser guardados para além do clique, que já é muito mais um “zigbóin” digital. Não é à toa que, cada vez mais, o espetáculo carnavalesco de qualquer um é a imagem gravada. A lembrança da folia intensamente vivida é multiplamente fotografável. Mas não é de hoje que a folia é eternizada em imagem fotográfica. Alexandre Berzin (1903 – 1979) é um desses fotógrafos que vão ao encalço dos clarins. Morando durante anos na Rua da Imperatriz, foco de festas carnavalescas na época, acabou captando imagens com incrível sensibilidade e estudada percepção, pois dizia encontrar a beleza em toda a parte. Fotografou ruas, cenários, personagens e o movimento do frevo que hoje tanto caracteriza o carnaval de Pernambuco. Ficou conhecido na cidade como o fotógrafo de Sombras do frevo, fotografia apresentada pelo menos em duas ocasiões. Premiada entre fotógrafos amadores,ele próprio a exibiu no Salão de Arte Fotográfica do Recife, em 1954. Depois, foi mostrada em 1982, quando o “velho fotógrafo”, já falecido, foi homenageado por alguns de seus antigos alunos da escola de fotografia do Foto Cine Clube do Recife. Na primeira exibição, o fotógrafo, assumindo a manipulação, corta as sombras da fervura do frevo, dos passistas. Seus passos ficam abertos no ar e as sombras
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erzin ia ao B encontro dos clarins para registrar a festa nas ruas do Recife
Nestas páginas 2-3 registro
O fotógrafo, nascido na Letônia, documentou o carnaval pernambucano por mais de 50 anos
4 Sombras do frevo Na premiada imagem, Berzin explora os passos da dança e os efeitos sombreados 5-6 variedade As imagens de caboclinhos e caboclos de lança comprovam a diversidade de manifestações populares da festa
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do movimento voam suspensas, como os corpos. Gestos congelados, as sombras atingem o chão que brilha. Na segunda exposição, a fotografia é mostrada por inteiro, como um contexto que explica e caracteriza o mesmo movimento. Mas essa não teria sido nem a primeira nem a última fotografia da dança. Incansavelmente, Berzin fotografou o carnaval e as ruas do Recife por mais de 50 anos. Nascido em Riga, na Letônia, teve formação em fotografia em Dresden, na
7 dona santa Personagens míticos do Carnaval também mereceram especial atenção do fotógrafo
Alemanha, após o final da Primeira Guerra, e conviveu com a estética moderna que se fazia, então, por fotógrafos de outras nacionalidades e do Brasil. Chegou ao Recife em 1928, através de um convite da Casa Fotográfica Fidanza, que possuía uma filial na capital pernambucana. Sua imagem mais conhecida parece abrir caminho, como um clarim de cortejo, para sua rica produção fotográfica, para seus álbuns. Persistentemente, ele registra o homem, seus trabalhos e essa terra
8 ÁLbuns Além das imagens carnavalescas, eles reúnem outras referências, como o circo
nas décadas de 1940 e 1950. De valor inestimável, as imagens chamam a atenção para a generosa produção visual de Pernambuco e suas relações com outros mundos fotografados. Atualmente, as fotografias de Alexandre Berzin se encontram em vários acervos fotográficos do Recife, como o da Fundaj e o do Museu da Cidade do Recife que, junto com o Laboratório de Imagem e História da UFRPE, por mim coordenado, e a Cepe Editora, começam a divulgar sua obra, em publicação ainda este ano.
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megalomaniA Apesar dessa paixão pernambucana pelo título de ser o “maior” em alguma coisa, não será nosso, pelo menos por enquanto, o título de “maior escultura da terra”. O artista norteamericano de origem búlgara Christo Javacheff está trabalhando na sua mais nova obra, The Mastaba, uma pilha de barris de petróleo com 150 metros de altura. “Vem aí não só a maior escultura do planeta, como aquela que provavelmente será a mais cara”, afirma o artista que escolheu como cenário Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Na execução do projeto serão usados 410 mil barris que, empilhados, ficarão mais altos que a pirâmide de Quéops, no Egito. Por hora, teremos que nos contentar com o maior bloco de carnaval do planeta ou com o maior teatro ao ar livre da Terra... (Mariana Oliveira)
Cruise, o Sansão do cinema A lenda de Sansão, cuja força estava nos cabelos, parece que se aplica a Tom Cruise. O ator mais bem-pago de Hollywood arrecadou até o começo de janeiro, com seu novo filme, Missão: Impossível - Protocolo fantasma, um total de US$ 245 milhões em 43 países. O período de maré cheia com a bilheteria deve continuar este ano com a chegada de Rock of ages, no qual interpreta um roqueiro cabeludo (foto). Essa previsão otimista advém da teoria segundo a qual se consegue antever o sucesso ou o fracasso de um filme do ator pelo tamanho do seu cabelo. Se estiver comprido, significa que a produção vai se dar bem na arrecadação. De nove filmes em que apareceu com longas madeixas, oito estrearam em primeiro lugar nas bilheterias. Dos 22 títulos em que surgiu com corte curto, apenas 11 tiveram uma boa repercussão. Isso também se reflete na crítica. Quando ele se apresenta com fios esvoaçantes, como em O último samurai, as obras tiveram uma taxa média de aprovação de 63%. Quando está com o corte aparado, como em A firma, as opiniões favoráveis caem para uma média de 58%. Os membros da Academia também parecem ser afetados pelo “efeito hair”. Nas duas das três indicações que Cruise teve ao Oscar estavam lá extensas mechas no seu cocuruto. A julgar pela abundante cabeleira do galã quase cinquentão, registrada nos dois novos filmes da safra 2012, ele ainda está longe de ter problemas com a bilheteria e, melhor, com a calvície. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“Quando tomava LSD, eu pegava o telefone e ligava para Deus – a cobrar.”
Balaio nomes no carnaval
Falando em grandiosidade, o Rio e o Recife se revezam em alardear aos quatro cantos do globo (da Globo) que fazem o “maior Carnaval do Mundo”. Com uma folia chocha, restrita aos desfiles da Sapucaí, o carioca procura divertirse com a saída de algumas agremiações que ostentam nomes pouco comuns: “Asso o pão, mas não queimo a rosca” ou “Só o cume me interessa”. Além do tradicional desfile da Banda de Ipanema, é claro. Por aqui, fora a criatividade que rola em Olinda, com os “Segura a coisa”, “Segurucu” e outros congêneres, no Recife, sai às segundas o mais novo rebento do Carnaval, o “Culto a Baco”. Criado em 2007, o bloco tem como slogan de fé: “Eu não vou ao culto orar, eu vou ao culto a Baco”. (Luiz Arrais)
Abbie Hoffman
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criaturas das trevas ao divã Ozzy Osbourne, baseado em sua vasta experiência química e psicológica, virou doutor. O Príncipe das Trevas do rock tinha sido convidado pelo jornal londrino Sunday Times para atender aos leitores numa coluna, respondendo a dúvidas que iam de casamento a câncer. Agora, a coluna se materializou num livro para a posteridade, tendo chegado ao Brasil sob o título Confie em mim, eu sou o Dr. Ozzy (uma brincadeira com o Dr. Oz, o “médico queridinho da América”, que tem até programa de TV). (Thiago Lins)
crepúsculo de uma deusa
A frase “A vida imita a arte” já é surrada, mas nunca deixa de se atualizar e de ser, às vezes, cruelmente verdadeira. A mais recente prova disso está na história de Anita Ekberg – para quem não lembra, a belíssima atriz sueca que ficou eternizada numa cena emblemática de A doce vida (1960), de Fellini, na qual entra numa fonte junto ao ator Marcello Mastroianni. Hoje, numa cadeira de rodas e sem teto, pois sua casa foi incendiada por ladrões, a ex-beldade que atuou em 65 produções, agora uma senhora de 80 anos, vive num asilo e pede ajuda financeira para poder sobreviver. Alguém lembrou de Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder? (DN)
cuidado com a louis Enquanto algumas marcas agradecem por conseguir marketing espontâneo em produções cinematográficas - algo raríssimo -, a Louis Vuitton vai processar a Warner Bros pela publicidade free que teve em Se beber, não case 2. A acusação é de que o filme mostra malas do grupo Diophy, apresentadas como se fossem da Vuitton. Na cena, o personagem desajeitado e deselegante interpretado por Zach Galifianakis pede a seu amigo para que cuide de sua maleta: “Cuidado, é uma Louis... uma Louis Vuitton”. Uma ironia, claro. (DN)
Charles Dickens, 200 anos Por Diogo d’Auriol
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eSPeciAL
ATORES Talento, cara e coragem
Intérpretes pernambucanos contam as histórias de como conseguiram ingressar no concorrido mercado do cinema e da TV no Sudeste, tornando-se nomes de reconhecimento nacional TEXTO Cleodon Coelho
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o marcante papel de Diogo Fraga, N personagem de Tropa de elite 2
Nestas páginas 2 ARLETE SALLES
triz, que atuava na rádio e na A TV pernambucana, foi uma das pioneiras nessa migração
dil maquinista 3 Paródia da presidente, intepretada por Fabiana Karla, no Zorra total
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Na novela Fina estampa, cuja audiência
tem girado em torno dos 47 pontos, a atriz Arlete Salles interpreta a valente Vilma, uma viúva que se sustenta dirigindo um táxi pelas ruas do Rio de Janeiro. Já nas noites de sábado, Fabiana Karla faz uma elogiada paródia da presidente Dilma Rousseff como Dil Maquinista, a comandante do Metrô Zorra Brasil, quadro que provocou uma renovação de público no humorístico Zorra total. De gerações diferentes, Arlete e Fabiana são dois exemplos de atores pernambucanos que, para colocarem uma lente de aumento como a da TV Globo sobre seus trabalhos, tiveram que abrir mão do prestígio na terra natal e, de certa forma, zerar suas carreiras.
Não é fácil. Essa espécie de êxodo cultural é, muitas vezes, acompanhada de privações de ordem afetiva ou financeira (ou de ambas, em muitos casos), longe do glamour que as revistas de celebridade costumam estampar em suas páginas. No entanto, cada vez mais o concorrido mercado do cinema e da TV investe em sotaques diferentes, absorvendo e projetando talentos regionais para o resto do país. Afinal, com suas dimensões continentais, o Brasil não é só verde, anil e amarelo... Arlete começou a carreira numa época em que a dramaturgia ainda tinha espaço no rádio e na TV locais. Eram os anos 1960, e ela, depois de trabalhar como locutora, deu os primeiros passos como atriz em veículos
como a Rádio Tamandaré e a TV Rádio Clube, na qual atuou na novela Rebeca, a mulher inesquecível. Quando Fabiana Karla iniciou sua trajetória, na virada dos anos 1980 para os 1990, a teledramaturgia já tinha perdido espaço em Pernambuco. Ela ainda participou de especiais protagonizados por Cinderela (a impagável criação do ator Jeison Wallace) na TV Jornal, mas, para quem sonhava em chegar ao estrelato nacional, as oportunidades eram mínimas. É bem verdade que o teatro pernambucano sempre teve sua importância reconhecida em todo o Brasil, seja numa linha mais tradicional como a do Teatro de Amadores de Pernambuco, cuja trajetória foi reconstituída pelo diretor Antônio Cadengue nos dois volumes de TAP – sua cena e sua sombra, ou na pesquisa de linguagem do elogiado Coletivo Angu de Teatro, capitaneado por André Brasileiro e Marcondes Lima. Sem esquecer o teatro de resistência do Vivencial Diversiones, berço de um humor/ escracho tipicamente pernambucano que até hoje rende frutos, ainda que sem o viés político de outrora. Nada disso, no entanto, era garantia para um ator largar trabalhos bemsucedidos em troca de um lugar de destaque nos créditos de uma novela ou seriado. “Eu sempre sonhei em trabalhar na TV. Via meus ídolos, como Nair Bello, e Dercy Gonçalves, e sabia que um dia poderia chegar lá. Mas a oportunidade não cairia do céu. Eu tinha que me mexer”, conta Fabiana Karla. Destaque em espetáculos de sucesso como Bar das ilusões e Hipopocaré, o rei da galhofa, a pernambucana seguiu sua intuição. Em 2002, pegou as economias e comprou uma passagem para o Rio de Janeiro, para acompanhar o pequeno Pedro Malta, colega de espetáculos infantis que faria um teste para a novela Coração de estudante, da TV Globo. Só quando chegou ao Projac, ao lado do
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ator mirim e de Salete, a mãe dele, é que descobriu não ser nada fácil entrar no complexo de estúdios que faz as vezes de castelo encantado nos sonhos de muitos atores do país. Sem autorização, o jeito foi ficar na portaria, esperando o teste acabar. “Fui percebendo o entra e sai e comecei a conversar com as recepcionistas, para saber quem era quem. Falei que sonhava em trabalhar com humor e uma delas, quando viu Maurício Shermann passar pela catraca, me avisou que ele era o diretor do Zorra”, recorda. Fabiana respirou fundo, abordou a mítica figura e mandou: “Sou uma atriz que acaba de chegar do Recife, cheia de sonhos na bagagem, mas que não sabe nem por onde começar. Queria só um minuto de sua atenção para mostrar meu trabalho”. Shermann parou, ficou em silêncio por longos segundos e disse: “Volte daqui a dois dias e diga que é a ‘menina do Nordeste que está me procurando’ ”. Fabiana retornou, mostrou sua personagem Lucicreide, uma empregada já conhecida nos palcos locais, e conseguiu fazer um cadastro. Mas o Zorra
“Deixei meus três filhos no Recife, dividia um apê com um monte de gente, ia ao Projac de ônibus” Fabiana Karla total não foi seu primeiro emprego na TV Globo. Antes, ela passou pelo extinto Linha direta – programa que reconstituía casos de polícia –, bem longe do humor que almejava. Fez pontas em outras produções até descolar um papel na novela Mulheres apaixonadas, de Manoel Carlos: a empregada Célia. “Foi um começo bem difícil. Deixei meus três filhos no Recife, dividia apartamento com um monte de gente, ia para o Projac de ônibus; cheguei a jantar uma casquinha de baunilha do Bob´s. Era preciso muita paciência para suportar tudo aquilo”, rebobina a atriz. “Percebi no olhar da Fabiana que ela não estava para brincadeira, quando me abordou”, garante Maurício Shermann, descobridor de fenômenos de massa
como as apresentadoras Xuxa e Angélica. “Não era uma garota querendo virar uma celebridade, mas uma atriz em busca de um espaço maior”, diz o diretor que deu à pernambucana a chance de viver personagens de enorme sucesso, como a própria Lucicreide, a ‘consultora para novos pobres’ Gislaine, a nutricionista Dra. Lorca e, atualmente, a condutora Dil Maquinista. “No Natal, a presidente Dilma me mandou um cartão agradecendo a homenagem. Chorei muito. Nem nos melhores sonhos imaginava chegar tão longe”, garante Fabiana – hoje, uma atriz de primeiro time na emissora, daquelas que não podem faltar nas vinhetas de final de ano. E que ainda encontra fôlego para atuar como uma espécie de repórter do Domingão do Faustão, viajando pelo Brasil em busca de figuras impagáveis, como o baiano que já comprou seu próprio caixão.
VIDEOTEIPE
Para a pioneira Arlete Salles, que nasceu em Paudalho e chegou ao Recife ainda pequena, a mudança para o Rio aconteceu num momento
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curioso. Apesar da intensa produção das emissoras locais naqueles longínquos anos 1960, um inesperado inimigo apareceu em cena: o videoteipe. Chegou roubando espaço dos profissionais da terra, trazendo do Sudeste uma programação praticamente pronta. A solução foi pedir transferência, já que Maomé não ia mais à montanha... E, assim, Arlete e o então marido Lucio Mauro, ator paraense que também brilhava na TV pernambucana, seguiram para a TV Tupi do Rio de Janeiro. “Como todo começo, a chegada é sempre muito difícil. Mesmo com emprego garantido, a barreira do sotaque foi um choque”, diz Arlete. “Os programas de humor estavam em alta e sempre havia quadros que debochavam da maneira de falar dos nordestinos. Isso me deixava muito mal.” Por conta própria, a atriz começou a fazer exercícios para tentar neutralizar o sotaque. Deu certo. No início dos anos 1970, já mostrava seu talento em novelas da Globo, como a histórica Selva de pedra, de Janete Clair, com uma personagem bem carioca. Anos depois, ela pôde finalmente deixar seu sotaque original voltar à tona, em tramas como Tieta, Pedra sobre pedra e Porto dos Milagres, sem medo de ficar marcada. Apesar de ter nascido no Ceará, José Wilker é outro nome consagrado que deu os primeiros passos na TV pernambucana. Porém, antes de virar ator, sua pretensão era a de ser locutor. Mas logo foi desencorajado pelos colegas (hoje, ironicamente, é um dos mais requisitados para narração de documentários e institucionais), e começou a bater ponto na TV Rádio Clube, no comecinho dos anos 1960, fazendo pequenas participações em teleteatros. “Mesmo sem vocação, achei aquele universo fascinante, e continuei”, garante. Da telinha, passou para o teatro, sob as bênçãos de Luiz Mendonça. Integrou o Movimento de Cultura Popular, apresentando-se pelo interior de Pernambuco em cima de um caminhão, até ser surpreendido pelo golpe militar de 1964, que tornou tudo difícil. Principalmente para jovens como ele, que tinham um posicionamento político. Nesse meio tempo, Wilker já havia passado uma temporada no Rio de Janeiro, onde fez um curso de cinema. Com o golpe, voltou para a Cidade
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“A chegada é sempre difícil. Mesmo com emprego garantido, a barreira do sotaque foi um choque” Arlete Salles
Maravilhosa, morou até na praia, mas – como era época de descobertas – não estava nem aí para os perrengues. Quando leu nos jornais que o diretor Kleber Santos estava produzindo uma peça sobre Padre Cícero, resolveu procurá-lo, pois era de Juazeiro do Norte – terra do padim – e conhecia bem o assunto. Pouco depois, reencontrou
Luiz Mendonça, que montou no Rio o histórico grupo Chegança. E assim foi chegando e ficando... O sotaque não era problema para o ator, uma vez que as peças da companhia tinham, geralmente, temática nordestina. Mas quando foi para a TV Tupi, os colegas cariocas não o deixaram abrir a boca. Só aparecia morto, coberto por um lençol. As passagens pela TV Rio e a TV Continental também não deixaram nenhuma lembrança marcante. Só no início da década de 1970, quando Wilker se juntou a Rubens Corrêa no premiado espetáculo O arquiteto e o imperador da Assíria, é que Dias Gomes o procurou com a missão de levá-lo para o elenco da TV Globo. Mais especificamente, Bandeira
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4 formação Apesar de ter nascido no Ceará, José Wilker começou sua carreira na TV e nos palcos pernambucanos 5 bruno garcia Revelado em propagandas locais de TV, ator deixou o Recife há duas décadas 6 Cordel encantado Tuca Andrada viveu um cangaceiro na elogiada novela global de 2011
Luiz Mendonça, Ilva Niño fez teatro político nos tempos da ditadura e estourou na TV como Mina, a empregada que tinha seu nome gritado todas as noites pela tresloucada Viúva Porcina, em Roque Santeiro. Tempos depois, mais atores seriam projetados nacionalmente.Revelado em peças de João Falcão e em propagandas para TV, o ator Bruno Garcia deixou o Recife há duas décadas para se aventurar na TV, protagonizando o caso especial Marina, ao lado da atriz Adriana Esteves. Não voltou mais. Assim como Patrícia França, sua colega de palco e de publicidade, que há exatos 20 anos foi catapultada do mercado local para o papel-título da minissérie Teresa Batista.
SÉTIMA ARTE
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2, trama escrita por ele e estrelada por Paulo Gracindo. “Na minha cabeça, a televisão brasileira havia crescido para dar suporte à ditadura, instalando uma espécie de pensamento único no país. Como tinha um pé atrás, respondi que não me interessava. Mas Dias insistiu, dizendo que seria bom para minha carreira. Passei um bom tempo até aceitar”, recorda o intérprete de Zelito, filho do bicheiro Tucão (Gracindo), um papel genuinamente carioca, longe de qualquer estereótipo de nordestino. Na cabeça do ator, entretanto, ele faria apenas Bandeira 2 e voltaria a se dedicar exclusivamente ao teatro. “Para minha surpresa, aquela engrenagem toda me encantou. Além do texto incrível do Dias Gomes, o fato de conviver com
pessoas geniais como Paulo Gracindo, Marília Pêra, Ary Fontoura, isso de segunda a sábado, durante um ano, foi uma experiência incrível”, avalia Wilker, que logo foi convidado para outra novela e, desde então, nunca deixou de mostrar a cara na telinha. Seja em personagens históricos, como o presidente (mineiro) Juscelino Kubitschek, ou nos tipos em que pode deixar seu sotaque original falar mais alto, a exemplo do impagável Giovanni Improta, de Senhora do destino, cuja história acaba de ser transposta para o cinema, marcando a primeira experiência do ator como diretor. Desde que Arlete e Wilker migraram para o chamado Sul Maravilha, muitos artistas pernambucanos seguiram o mesmo caminho. Viúva do encenador
Há, no entanto, uma outra geração beneficiada pelo renascimento do cinema pernambucano, a partir do sucesso do Baile perfumado (1997). Reverenciado por seu trabalho nas peças É uma brasa, mora?, em que vivia Roberto Carlos, e Mamãe não pode saber, na pele da top model Priscila, Aramis Trindade ganhou o troféu Candango de melhor ator coadjuvante por sua interpretação como o tenente Lindalvo Rosas no Baile, derrotando atores renomados, como Tony Ramos. “O filme provocou uma curiosidade grande sobre o meu trabalho e eu passei a receber convites para a TV. Mas ainda não tinha uma estrutura que me desse segurança para trocar o certo pelo duvidoso”, conta. Depois do longa de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, surgiu a oportunidade de fazer a microssérie O auto da compadecida, com direção de Guel Arraes. Seu personagem, o Cabo 70, caiu no gosto do público e, mais uma vez, despertou o interesse da Globo para tê-lo em outros trabalhos. O ator começou a fazer a ponte-aérea Recife-Rio, participando de séries como Mulher e Brava gente. “Tinha acabado de me separar, os convites não paravam de chegar, achei que era a hora de arriscar”, conta. Ao contrário de
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con especial ti nen te 7 ARAMIS TRINDADE
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Na novela Cordel encantado, o ator trabalhou com os conterrâneos Tuca Andrada, Edmilson Barros, Lucy Ramos, Renato Góes e Ilva Niño
8 prazeres barbosa Atriz em cena da novela Insensato Coração, com Tarcísio Meira
outros colegas, Aramis só se mudou por ter certeza de que não passaria apertos. “Não queria abrir mão do bem-estar que desfrutava na minha casa, na minha cidade”, recorda. Há 12 anos no Rio, o pernambucano tem uma extensa lista de trabalhos, que inclui seriados (foi o eletricista Marreta, em A grande família, e o Visconde de Sabugosa, no Sítio do Picapau Amarelo), filmes (Reflexões de um liquidificador e Meu nome não é Johnny), peças (Homem-objeto e Um boêmio no céu) e, claro, novelas. Na última, a elogiadíssima Cordel encantado (2011), dividiu os créditos com os conterrâneos Tuca Andrada, Edmilson Barros, Lucy Ramos, Renato Góes e Ilva Niño. “Muitas vezes, eu conversava com Renato, que é um cara novo, bastante talentoso, sobre a dificuldade que é chegar num mercado como o da TV, com gente de todo o Brasil disputando espaço”, reflete Aramis, que estará na próxima novela das sete, cujo título provisório é Marias do lar. “Ele é um ator muito bem-preparado, tem um tipo físico que o ajuda a interpretar os mais diversos personagens. Sem falar que é uma pessoa agradável, que todo mundo adora”, diz o ator José Mayer, companheiro de teatro e TV. Além de Aramis, o cinema pernambucano também revelou para o Brasil dois atores que, volta e meia, se cruzam em novas produções: Hermila Guedes e Irandhir Santos. Os dois, que estrelam o filme A luneta do tempo, de Alceu Valença, previsto para chegar às telas este ano, são sempre cortejados pela TV, como conta Hermila em entrevista à Continente (ver páginas 30 e 31 ). Irandhir foi protagonista da microssérie A Pedra do Reino, romance de Ariano Suassuna que ganhou versão eletrônica de Luiz Fernando Carvalho, rigoroso diretor que bancou um elenco de rostos desconhecidos do grande público, abrindo mercado para atores pernambucanos e paraibanos. A adaptação foi polêmica, mas é inegável o esforço empreendido por Carvalho para mostrar uma outra cara do Brasil.
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O cinema pernambucano ajudou a projetar Aramis Trindade, Hermila Guedes e Irandhir Santos Como muitos colegas que se destacam nos palcos e nas telas de cinema, Irandhir é sempre cortejado pela TV com novos projetos. Nos corredores do Projac, sua participação na terceira temporada do seriado Força-tarefa (que teve Hermila no elenco das duas primeiras) era dada como certa. Mas não aconteceu. Cuidadoso, ele espera o momento
certo para aceitar a volta à telinha. A experiência na microssérie, segundo ele, foi única. Um modo de fazer televisão completamente diferente do usual. “É difícil, pra mim, enquadrar A Pedra do Reino como uma experiência de TV. Tudo que a envolve, desde a densidade da obra literária até o processo de preparação de atores e filmagem, destoa – em tempo, temática e modus operandi – da maioria da produção televisiva. Do modo como foi trabalhada por Luiz Fernando Carvalho, gestava um tempo mais abrangente na exploração de espaços não tradicionais, na polivalência dos artistas envolvidos e na busca de novas formas de construção criativa. Tudo cercado de cuidados, como exige um processo como esse”, recorda.
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Mas Irandhir acredita não ser impossível reviver esse tipo de criação, tão próximo de suas experiências no tablado. Enquanto o momento não chega, ele segue colecionando elogios e pavimentando sua estrada com atuações memoráveis, como a do defensor dos direitos humanos Diogo Fraga, no filme brasileiro mais visto de todos os tempos, Tropa de elite 2.
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Meira e Glória Pires. “Isso não tem preço. Eles não fazem distinção se o ator é ou não é conhecido. Receberam-me de braços abertos, trataram-me como igual. E estou falando de dois monstros sagrados”, conta ela, que interpretava a copeira Amélia. “Os papéis de doméstica podem não dar maiores chances, mas não me sinto diminuída. Faço como se fosse a protagonista. Adoro quando o meu celular toca e eu vejo que é um número confidencial. Sei que é da Globo e que um novo trabalho está à minha espera. Ainda acredito que alguém vai perceber que posso fazer outra coisa.” Pelo menos uma pessoa, além de Luiz Fernando Carvalho, já conhece bem o talento de Prazeres: o diretor João Falcão. Quando adaptou a peça A máquina, escrita por Adriana Falcão, João criou para ela uma personagem chamada... Prazeres. E ainda lhe deu a chance de cantar. Não só em cena, mas também no CD que contém a trilha. A música se chama A natureza das coisas, cuja letra a atriz toma como uma oração: “Se avexe não, observe quem vai subindo a ladeira, seja princesa ou seja lavadeira, pra ir mais alto vai ter que suar”.
DIVULGAÇÃO
Foi A Pedra do Reino que despertou na veterana Prazeres Barbosa o desejo de mudança. Grande nome do teatro de Caruaru, no agreste pernambucano, ela sempre sonhou em atuar na TV, mas o comando de seu grupo de teatro e a participação em filmes como Árido movie e Espelho d´água acabavam tomando todo o seu tempo. Quando a produção da Pedra aterrissou em Taperoá, na Paraíba, a atriz largou tudo e se mandou para lá. “Eu não tenho papel para você, mas se arrisca a ficar?”, indagou o diretor. Prazeres entrou no esquema de cooperativa e, durante dois meses, fez de tudo, menos atuar. “As pessoas não acreditavam como eu me sujeitava a tudo aquilo”, conta.
O esforço valeu. Próximo ao fim da empreitada, um ator desistiu e nada menos que dois personagens masculinos, os gêmeos Comendador Basílio e Eusébio Monturo, ficaram sem intérprete. E Carvalho apostou nela. “Eu tinha um cabelão, cortaram todo, quase morri. Mas, dentro de mim, dizia: “Amém, Meu Deus”. Quando apareci caracterizada, ele gostou tanto, que ainda me deu outro presente: criou uma prostituta chamada Prazeres para eu fazer. Quer nome mais sugestivo que o meu?”, brinca a atriz. Hoje, aos 62 anos, há cinco vivendo no Rio de Janeiro, Prazeres não se arrepende da aventura. Não tem contrato fixo com a Globo, vive do salário de professora aposentada e divide as despesas com o marido e o filho. “A vida artística não é só o pódio. Estou dando os primeiros passos numa nova carreira.” Por conta do tipo físico – baixinha, com traços fortes de sertaneja –, a atriz tem colecionado papéis de doméstica, fato que não diminui sua perseverança. No último trabalho de longa duração, a novela Insensato coração, contracenou com dois de seus maiores ídolos: Tarcísio
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Entrevista
hermila guedes “É um privilégio continuar vivendo na própria cidade” O ano de 2011 não foi igual àquele
que passou. Pelo menos, para Hermila Guedes. Depois de mais de 20 filmes, entre curtas e longas, ela finalmente experimentou o gostinho do cinemapipoca. Assalto ao Banco Central, lançado no final de julho, foi seu primeiro blockbuster. E a experiência não foi nada indigesta. Ela gostou de se ver na tela grande como a sedutora Carla, uma bandida solta na vida, digna dos melhores versos de Chico Buarque. A atriz nunca escondeu o desejo de ver seu trabalho atingir o chamado grande público. Em apenas uma semana, o Assalto teve mais de um milhão de ingressos vendidos. Seu rosto no cartaz do filme ganhou os outdoors e as paradas de ônibus, suas fotos nas préestreias estamparam páginas de Caras e Contigo. Alguns colegas torceram o nariz, como se Hermila estivesse rejeitando o rótulo de musa cult, conquistado ao longo desses 15 anos de carreira. Muito pelo contrário. O emblemático O céu de Suely, de 2006, continua sendo o melhor cartão de visitas da menina nascida em Cabrobó. Foi com esse filme que ela ganhou projeção nacional, prestígio em alguns dos festivais mais respeitados, vários prêmios e o aplauso de mulheres importantes do cinema, como a inglesa Charlotte Rampling, a francesa Irene Jacob e Sônia Braga. Na TV Globo, em que começou vivendo a cantora Elis Regina no primeiro Por toda a minha vida, ela se prepara para o primeiro grande papel em novelas, na próxima trama do horário das seis (Amor eterno amor). Tudo junto e misturado com o teatro (atualmente, ela e mais cinco atrizes hipnotizam o público com Essa febre que não passa, do Coletivo Angu de Teatro) e, claro, muito cinema (filmes como Era uma vez Verônica e A luneta do tempo estreiam este ano). Nesta entrevista à Continente, a atriz reflete sobre esse novo momento de sua
carreira, analisa o mundo da fama que a corteja, fala do desejo de ser cantora e conta como a maternidade a ajudou a manter “os pés no chão”. Enquanto isso, em Cabrobó, a entrevista da filha mais ilustre da cidade no Programa do Jô – que teve até canja dela cantando Madalena, o clássico de Ivan Lins imortalizado na voz de Elis – é vendida
por R$ 10,00 nas banquinhas de DVDs piratas. O pop não poupou Hermila. CONTINENTE A experiência em uma superprodução como Assalto ao Banco Central foi muito diferente de seus outros trabalhos no cinema? HERMILA GUEDES Eu já tinha intenção de fazer um filme mais comercial, que
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pudesse dar uma visibilidade maior ao meu trabalho, e vi essa oportunidade chegar com o convite do Marcos Paulo, um diretor que sempre respeitei. Cada diretor tem um olhar, claro, e ele enxergou em mim essa mulher poderosa que é a Carla. Eu tinha saído de Força-tarefa (série da TV Globo) com resquícios da falta de vaidade da sargento Selma. E tive que encontrar esse mulherão que estava um pouco escondido. O filme foi quase todo rodado em estúdio, o que é um pouco estranho, pois estou acostumada a locações reais. E elas acabam permitindo o improviso, ao contrário de Assalto, em que tudo era pensado para acontecer daquele jeito. Mas o resultado foi muito feliz. O elenco me recebeu de uma maneira bacana. Fui muito bemacolhida por esse cinema também. CONTINENTE Qual a diferença que sente entre seu primeiro curta, O pedido, de 1999, e o trabalho que realiza em Assalto? HERMILA GUEDES Com certeza sou uma atriz mais madura, isso é fato. Antes, eu tinha muitas dúvidas em relação à carreira, embora muita gente não acredite. Fazendo um filme como o Assalto, não me bateu mais nenhuma dúvida. É muito bacana, quando você percebe que acertou. CONTINENTE Muito se discute sobre a influência que filmes nacionais recebem das novelas. O que você pensa sobre o impacto da TV na linguagem cinematográfica? HERMILA GUEDES Eu gosto das duas linguagens, mas cada uma na sua. Cinema é cinema, TV é TV. É interessante quando uma linguagem não influencia a outra. Não gosto quando alguns filmes realizados para o cinema parecem feitos para a TV. Quando vi Ó Paí, ó no cinema, não gostei. Quando revi na TV, adorei. A história cabia ali, naquele formato. CONTINENTE Você acompanha o que está sendo produzido no cinema brasileiro? Qual a sua opinião sobre o momento que ele atravessa, com tantos sucessos de bilheteria? HERMILA GUEDES Eu não consigo ver tudo. Mas prezo o cinema nacional e me interesso por ele. Acho que o nosso cinema vive um momento muito especial, com produções que se preocupam com o público, que conseguem se comunicar com ele.
Aquela coisa “cinema nacional não presta” já era. Claro que ele ainda precisa criar uma cara, uma identidade, como o cinema argentino. Mas estamos no caminho certo. O cinema brasileiro é uma grande referência lá fora. CONTINENTE No teatro, os espetáculos de stand up comedy, em que o artista se apresenta em um palco sem cenário ou outros recursos, tem tomado conta dos teatros brasileiros. Para uma atriz como você, sempre envolvida com projetos de extremo cuidado cênico, como Angu de sangue e Essa febre que não passa, essa questão preocupa? HERMILA GUEDES Acho que tem espaço para todo mundo e a stand up é uma forma de arte também importante. Esses espetáculos podem, inclusive, ajudar o teatro mais tradicional, provocando o público que ele atinge a descobrir outras linguagens. O teatro precisa estar em movimento. CONTINENTE Apesar do flerte com a TV e o cinema nacionais, você ainda vive em Pernambuco. O que pensa sobre o processo migratório que muitos artistas locais precisam enfrentar para ampliar o campo profissional? HERMILA GUEDES Se você pode morar num lugar onde haja mais possibilidade de trabalho, é ótimo. Mas também é um privilégio poder continuar vivendo na sua cidade, mesmo que trabalhando em outras. Atores como eu, o Luís Miranda, que é baiano, o Luiz Carlos Vasconcelos, que é paraibano, conseguem fazer isso. É uma escolha nossa. Para me instalar no Rio ou em São Paulo, é preciso uma estrutura, pois tenho marido e filha pequena, não posso ser egoísta e pensar só em mim. Mas também não descarto essa possibilidade. Não me sentiria infeliz por ter de trocar de cidade. Na hora que tiver de ser, vai acontecer. CONTINENTE Até agora, você participou de uma única novela, Ciranda de pedra, uma produção caprichada, baseada em Lygia Fagundes Telles. Para quem acompanhou de perto uma produção desse porte, é possível manter a qualidade ao longo dos meses em que a trama fica no ar? HERMILA GUEDES Quando a produção pode administrar bem todas as partes envolvidas, esse capricho vai até o fim. E num trabalho de época, como foi o caso de Ciranda, o cuidado é mais perceptível.
CONTINENTE Quando fala sobre fama, Fernanda Montenegro costuma ilustrar: “A fama e todo o seu cortejo de horrores”. Você se sente preparada para ter de lidar com paparazzi, fãs de ocasião e bajuladores em geral? HERMILA GUEDES Acho que nunca estaria preparada. Posso até, com o tempo, querer e gostar disso, mas ainda é muito estranho. Tem pessoas que ficam nervosas quando vêm falar comigo. Acabo ficando nervosa também, pois não sei montar um personagem e achar isso banal. CONTINENTE Mas em algum momento você se sente uma estrela de cinema? HERMILA GUEDES Apenas quando eu entro na sala de cinema e dou de cara com o espaço cheio para ver o filme que fiz. Essas pessoas estão lá prestigiando o meu trabalho. Na fila das Lojas Americanas, eu sou Hermila Roberta, filha de Célia e mãe de Celina, uma dona de casa como outra qualquer. CONTINENTE Qual foi o impacto que a maternidade teve na sua vida de atriz? HERMILA GUEDES Eu já desejava um filho há muito tempo, mas não esperava que viesse num momento tão louco. É transformador. Hoje, eu conheço o que significa amor. Sei o amor que minha mãe sente por mim. Celina veio num momento em que meu egocentrismo estava muito em evidência. E ela deu uma baixada de bola, mesmo. Não que eu me sentisse nas nuvens, deslumbrada, mas era um momento de pensar muito mais em mim do que em qualquer outra coisa. O céu de Suely me dava um prêmio atrás do outro, a TV Globo me cortejava com propostas incríveis. Um filho acaba pondo você num mundo com o qual não está muito acostumado, amplia seus olhares. Talvez, inconsciente ou não, ela veio para me fazer ser mais pé no chão. CONTINENTE Você já disse em entrevistas que sempre sonhou em ser cantora. Esse desejo ocupa quanto espaço na sua vida? HERMILA GUEDES Muito menos do que eu gostaria. Queria muito poder dividir a carreira de atriz com a música. Comecei a fazer teatro porque queria ser cantora. Só agora tenho revelado isso. Talvez nunca tenha ido atrás com vontade, como eu gostaria de fazer. Mas a cantora está vivíssima dentro de mim. Cleodon Coelho
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MERCADO Engrenagem ainda muito frágil
Renata pires/divulgação
Muitos atores pernambucanos recorrem a outras atividades profissionais, mesmo que relacionadas às artes cênicas, para sobreviver texto Pollyanna Diniz
1943, Rio de Janeiro. Foi o polonês Ziembinski o diretor do primeiro sucesso de Nelson Rodrigues no teatro – Vestido de noiva. Exigia uma dedicação espartana dos atores de Os Comediantes. Segundo Ruy Castro, biógrafo de Nelson, o elenco era formado por funcionários públicos, advogados, jornalistas, bancários, contadores. No Recife, os atores do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) também conciliavam carreiras profissionais que não necessariamente tinham relação com a arte. Reinaldo de Oliveira, por exemplo, protagonista e diretor de diversas peças da companhia, é médico. Nos dois casos, os grupos eram amadores. No teatro profissional, no entanto, nem sempre a realidade – mesmo tantos anos depois – é diferente. O ator pernambucano Sóstenes Vidal participou, em 2011, das gravações de Preamar, que deve estrear no segundo semestre na HBO. Na série, primeiro projeto longo de ficção da produtora Pindorama, com direção de Estevão Ciavatta, Vidal interpreta o porteiro de um prédio em Ipanema. Mas não é só como ator que Sóstenes Vidal, participante de programas e séries como Amazônia e Malhação – e ainda do filme Lula, o filho do Brasil – sobrevive. Ele é corretor de seguros. “Na realidade, sempre trabalhei com vendas. No teatro, eu não só atuava, mas produzia e vendia os espetáculos para escolas, montava espetáculos de fim de ano. Mas mesmo trabalhando como corretor, nunca deixei de fazer teatro.
O espetáculo Auto da compadecida, por exemplo, é apresentado há 20 anos”, conta o ator que interpreta João Grilo na montagem pernambucana do texto de Ariano Suassuna, que tem produção de Socorro Rapôso, e é ainda um dos Mateus em O baile do menino Deus, auto de natal escrito por Ronaldo Correia de Brito e Francisco Assis Lima. Sóstenes conta que não é difícil conciliar as carreiras: “Como corretor, sou um profissional autônomo. Não tenho que dar satisfação a patrão, respeitar um horário fixo, apesar de ter que cumprir uma meta. Mas quando eu não ganho dinheiro com teatro, ganho com seguros”. Ainda assim, ele admite: “Você não tem aquele tempo todo de construir o personagem, de se dedicar ao texto como queria”. Profissionalmente, Germano Haiut, 74 anos, precisou optar entre o teatro e o comércio. “Eu brincava que era artista durante o dia e ator à noite. Quando a gente montou Jogos na hora da sesta, no Teatro de Amadores de Pernambuco, a temporada foi até um período de dezembro. E eu dizia: ‘Geninha (Geninha da Rosa Borges, que era a diretora), não posso chegar a essa hora, às oito horas, porque a loja ainda fica aberta. E a loja era atrás do Cinema São Luiz, no Centro do Recife. Aí, havia um táxi me esperando, e, quando dava determinada hora, eu dizia que ia ao banheiro. Pegava o táxi, Geninha ficava me esperando na porta do teatro, eu trocava de roupa na
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9 duas companhias A atriz Lívia Falcão, em parceria com Fabiana Pirro, movimenta a cena local, produzindo espetáculos como Divinas 10 sobrevivência Além de ser ator, Sóstenes Vidal trabalha como corretor de seguros 11 germano haiut Atualmente, o ator tem se dedicado mais a papéis no cinema, como no longa O ano em que meus pais saíram de férias
Fotos: divulgação
coxia, o espetáculo já tinha começado, e entrava em cena! Mas não deixei de ir em nenhuma noite”, relembra. Com mais de 20 peças até a década de 1980, Germano diz que o seu primeiro cachê foi quando interpretou o papel de Herodes, na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em 2003. “Lembro como se fosse hoje: R$ 1.500. Fiquei feliz!” Hoje, o ator que participou de filmes como O ano em que meus pais saíram de férias dedicase mais ao cinema. “A negociação geralmente depende de quanto tempo vou ficar fora do Recife. No teatro, isso é mais difícil, não dá para marcar ensaio, comprometer um grupo se, de repente, por conta da vida comercial, preciso viajar”, explica. 11
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12 Paula de Renor A produtora acredita ser bem difícil viver apenas do teatro 13 Magiluth
Ao participar do Rumos Itaú Cultural Teatro, o grupo teve a chance de se dedicar exclusivamente à encenação
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CADEIA DE PRODUÇÃO
Paula de Renor, atriz e uma das produtoras do festival pernambucano Janeiro de Grandes Espetáculos, atesta que é mesmo difícil sobreviver só de teatro: “Não se vive só de atuação”. Ainda assim, enxerga avanços: “Antigamente, as pessoas se dedicavam a outras profissões. Hoje, estão buscando possibilidade dentro da própria cadeia das artes cênicas. Fazem produção, dão aula”. Para ela, uma das saídas é a organização do teatro de grupo. “Procurando subsídios, incentivos, parcerias. E algumas leis já possibilitam a manutenção de grupos. Mas, ainda assim, é complicado, porque, às vezes, quando o grupo não consegue o edital, dispersa-se”, avalia.
Não foi o que aconteceu com o coletivo teatral pernambucano Magiluth, que tem oito anos de estrada e nunca foi aprovado no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) ou no Fomento às Artes Cênicas da Prefeitura do Recife. No ano passado, eles participaram do Rumos Itaú Cultural Teatro e, durante seis meses, fizeram intercâmbios e um processo de trabalho continuado com o grupo Teatro do Concreto, de Brasília. “Com esse projeto, tivemos a possibilidade de sobreviver só de teatro, mesmo com um orçamento mínimo. Mas a lógica é que o ator precisa passar o dia na repartição, na sala de aula e, à noite, vá trabalhar ensaiando”, diz o ator e diretor Pedro Vilela.
“Sei que fazemos parte de um recorte muito específico, por conta da idade, já que temos entre 25 e 29 anos, e não temos muitos compromissos financeiros, mas não sei por quanto tempo. E olhe que já houve um momento em que até pensamos em parar as atividades. Estamos agora aprendendo com um processo da autogestão, fazendo articulações com outros grupos. Mas é uma mudança de mentalidade. A nossa atividade não consegue sobreviver por ela mesma, e é papel do estado desenvolver esse sistema”, alega. A atriz Lívia Falcão diz que optou por permanecer no Recife, mesmo que, no Rio de Janeiro, com a proximidade das emissoras de televisão, a realidade para os artistas pareça mais fácil. “Não é um problema do mercado pernambucano. É a centralização das grandes empresas que cria isso em todo o país. Eles não contam com a mão de obra das outras regiões. Para ter trabalho na televisão, precisa estar lá. O Brasil inteiro sofre com isso, porque cada região tem o seu potencial, os seus artistas, diretores, produtores”, diz. A pernambucana que fez sucesso, por exemplo, como Francisquinha, namorada do cabo Citonho (Tadeu Mello), no filme Lisbela e o prisioneiro, e como Regina da Glória, na novela global Belíssima, atesta que são vários os fatores que contribuem para que continue morando em Pernambuco. “É aqui que eu me abasteço artisticamente. Os mestres da cultura popular estão aqui pertinho. Fico muito feliz de ir a Glória do Goitá e ver o mestre Zé de Vina.” A atriz conta que a Duas Companhias, que mantém em parceria com a atriz Fabiana Pirro, é uma possibilidade de experimentar. “É uma tarefa árdua convencer o patrocinador de que a arte é importante. Por outro lado, cada vez mais tenho vontade de correr atrás dos nossos sonhos. Sempre tive a certeza de que não queria estar encostada no emprego. E isso depende da forma
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como cada um encara a sua profissão.” Apesar de a publicidade fazer parte do cotidiano de muitos artistas no Recife, Lívia conta que, no ano passado, fez alguns poucos comerciais. “Vivo mesmo do trabalho da companhia.”
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Além da publicidade, outra possibilidade clara – embora esporádica – para os artistas pernambucanos é o cinema. “De alguma forma, a ponte entre o cinema e o teatro sempre existiu, mas agora está muito mais clara. Só temos três, quatro produções de longas-metragens por ano. Não dá para viver só de cinema”, explica o produtor de elenco Rutílio Oliveira, que trabalhou ainda mais de perto com atores de teatro nas gravações do longa Tatuagem, primeiro de Hilton Lacerda. “O universo do filme era o teatro, então o elenco tinha mesmo muitas pessoas dessa área. Mas as produções normalmente agregam esses profissionais. É uma realidade que serve, inclusive, como aprendizado”, avalia. Para o produtor, uma das opções para preparar melhor os profissionais que vão trabalhar com cinema – e aí essa realidade nem é específica para atores –
Hoje, os atores buscam outras opções dentro da cadeia das artes cênicas, atuando como produtores e professores é levar estudantes ao set de filmagem. “As pessoas fazem um curso de cinema e não sabem bem o que é um set”, diz. Emprego, no entanto, não é o único problema para aqueles que se dedicam às artes cênicas. Para Paula de Renor, é preciso haver primeiro formação de plateia, já que durante os festivais o público é incentivado pela divulgação, pela quantidade de atrações, e comparece aos teatros. Mas essa nem sempre é a realidade, quando as produções locais entram em temporada. “Precisamos de boas casas de espetáculos, com equipamentos adequados. Para que a qualidade técnica das montagens melhore, precisamos de um curso superior de artes cênicas. Como não temos, as pessoas acham que
podem aprender no palco, com o tempo – e, pelo contrário, o tempo só solidifica vícios, erros”, afirma. Paula explica que a existência de um curso superior, pleito antigo dos artistas da cidade (já que o curso disponível na Universidade Federal de Pernambuco forma arte-educadores), está no centro da questão sobre a engrenagem das artes cênicas em Pernambuco. “Quando existe uma escola superior, existe efervescência, público e vamos construindo um mercado e a independência do dinheiro público. Vira negócio, e aí começam a surgir empregos para toda a cadeia”, avalia. Pedro Vilela, por outro lado, acredita que os artistas precisam se organizar para conseguir melhorias para a classe e, consequentemente, para o público, que poderá acompanhar nos palcos as mudanças. “A grande luta de todos os coletivos, em todo o Brasil, é tentar emplacar leis de fomento que deem conta de suas produções locais e que abarquem a manutenção dos coletivos teatrais. No Brasil, podemos dizer que São Paulo é o local mais avançado nessa questão”.
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crônicA A “filosofia” do nosso cotidiano
Os 90 anos de nascimento do escritor mineiro Paulo Mendes Campos impulsionam lançamentos e reedições de livros do cronista, reavivando a importância do gênero na literatura nacional texto Schneider Carpeggiani
O escritor mineiro Paulo
Mendes Campos (1922-1991) foi um existencialista infiltrado na imprensa brasileira. Por trás do tom ao pé do ouvido, coloquial e intimista das suas crônicas, havia uma percepção aguda da realidade, um olhar que atravessava o emocional dos seus leitores. Textos como Ser brotinho, Para Maria da Graça e O amor acaba permanecem no imaginário nacional, mesmo num cenário (como o nosso) que menospreza os escritores que não foram/são cultuadores da tradição e da busca pelo “Grande Romance”. Mendes Campos nunca quis ser Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa. O legado do mineiro passou décadas nas mãos da Editora Civilização Brasileira, atualmente selo da Record, que pouco ou nada fez nos últimos anos para divulgar sua obra. Segundo sua agente literária, Lucia Riff, o seu espólio agora está dividido entre a Companhia das Letras e o Instituto Moreira Salles (IMS). A reedição só terá início no segundo semestre. Para setembro, a editora programou o lançamento de O amor acaba e de outro
título, ainda a ser escolhido, como parte das comemorações pelos seus 90 anos (no dia 28 de fevereiro). O IMS deve lançar um livro reunindo sua correspondência com outros escritores. Não poderia haver momento melhor para voltarmos a falar do escritor. A proliferação das crônicas e a revalorização do papel do cronista, como vemos hoje acontecer, pode ser compreendida a partir de de uma hipótese: o tom pessoal e opinativo da crônica tem sido um diferencial para veículos durante esse período de impasse do jornalismo impresso frente ao avanço do jornalismo online – foi justamente o que apostou o jornalista e escritor Ivan Ângelo, numa entrevista para o suplemento Pernambuco, do mês de janeiro. Além disso, enquanto os teóricos da literatura discutem a falência dos gêneros, a crônica é o “lugar da ausência de gêneros” por excelência. Cronista veterano, o escritor e jornalista mineiro Humberto Werneck comemora o bom momento dessa prosa, com algumas restrições: “A crônica talvez nunca volte a ter um
momento de ouro como o que teve nos anos 1940-1950 e um pedacinho dos 1960, quando tínhamos em atividade Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antônio Maria, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz e outros craques do gênero. Nos jornais e revistas, a subjetividade foi sendo enxotada em favor da objetividade jornalística. Hoje se apresenta como crônica muita coisa que na verdade é artigo, pequeno ensaio, editorial. Mas deve haver muitos leitores para quem a objetividade não basta, e que sentem necessidade de ver uma pessoa, não um escriba impessoal, por detrás do que leem na revista e no jornal. Um sinal disso está na demanda crescente pelo jornalismo literário. Outro é a curiosidade e, mesmo, a avidez com que tanta gente procura uma leitura gostosa nos blogs e sites”. “O fato é que aqui e ali, na imprensa em papel, há ótimos cronistas – para citar alguns: o grande Ivan Angelo, infelizmente restrito aos leitores do suplemento paulistano da revista Veja; Luís Fernando Veríssimo, em suas
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con literatura ti nen te raul souza leão/divulgação
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diversas publicações; Joaquim Ferreira dos Santos, nO Globo; Antonio Prata, na Folha de S.Paulo; Luís Henrique Pellanda, na Gazeta do Paraná; Joca Souza Leão, no Jornal do Commercio, do Recife; Eduardo Almeida Reis, no jornal O Tempo, de Belo Horizonte”, continua Werneck.
PUBLICAÇÕES
A crônica tem pautado, sobremaneira, a agenda de Werneck nos últimos meses. Primeiro, foi seu livro de crônicas, Esse inferno vai passar, publicado pela Arquipélago Editorial. Em seguida, assinou a reedição dos textos de Otto Lara Resende, publicados na Folha de S.Paulo, para a Companhia das Letras. Sua assinatura foi responsável pela elogiada coletânea Boa companhia, também da Companhia das Letras, que reuniu gerações tão diversas de cronistas como Danuza Leão, Antonio Prata e, claro, Rubem Braga. Nessa coletânea, Werneck destaca que o grande sucesso foi o texto de Paulo Mendes Campos, O amor acaba, escolhido justamente para fechar o volume. “Esse texto caiu na internet, virou uma espécie de manifesto. Como tantas outras crônicas de Paulo Mendes Campos, continuará a ser lido e admirado pelo tempo afora. O cronista é a face mais visível do ótimo poeta que ele foi. Digamos que o cronista obscureceu o poeta. Mas é pela crônica que está se dando a (re)descoberta desse escritor tão dotado e tão preparado para o seu ofício. Raros cronistas foram mais versáteis que Paulo Mendes Campos. Várias de suas crônicas são peças de ficção. Algumas, poemas em prosa. Outras, pequenos ensaios. Tudo isso banhado num lirismo e num senso de humor de primeira ordem. Tenho a impressão, que é também esperança, de que o leitor que mergulhar nas crônicas de Paulo Mendes Campos acabará chegando à sua obra poética em versos”, destacou Werneck. Foi a leitura de nomes como Paulo Mendes Campos que inspirou o editor Tito Montenegro, da Arquipélago Editorial, a criar um selo voltado ao trabalho dos cronistas, o A arte da crônica. “A ideia de publicar esse gênero é antiga e remonta ao meu passado como leitor. Muito da minha formação se deu com os livros da coleção Para Gostar de Ler, especialmente os volumes desses
O cronista pretende tirar do cotidiano lições que nos levem a refletir sobre a nossa existência e sobre o mundo que nos cerca
textos, que eram os que eu mais gostava. Ali eram publicados grandes nomes, como Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Rubem Braga. Também, nessa fase, li muitos livros de crônicas do Luís Fernando Veríssimo. No ano passado, a ideia de publicar esse gênero literário foi retomada e se desenvolveu a partir de conversas minhas com dois dos nossos autores, a Eliane Brum e o Humberto Werneck. Fizemos a escolha da publicação de uma coleção para valorizar o gênero como matéria literária A coleção procura dar conta do que está sendo feito de melhor na crônica contemporânea, sem restrições geracionais, geográficas, estilísticas e temáticas”, observa Tito.
O editor acredita que o bom momento do gênero literário no mercado editorial só tende a crescer: “Temos um bom número de cronistas que chegam à categoria de best-sellers, como o próprio Veríssimo, por exemplo. Nos jornais, os cronistas são muito lidos. Os livros da nossa coleção vendem bem, têm espaço nas livrarias. Acho que é um gênero muito importante para o circuito literário brasileiro. E quero acreditar que também seja importante para a formação de novos leitores e para o deleite dos leitores experientes.” O selo comandado por Tito procura trazer cronistas dos mais diversos estilos, tentando balancear inovação e tradição. “Sim, procuramos fazer um balanço, mas não só entre novos e antigos. Há muitas diferenças, por exemplo, entre as crônicas do Humberto Werneck, do Luis Henrique Pellanda e do Ivan Angelo, os três autores já lançados na coleção Arte da crônica, mas prefiro ressaltar as semelhanças: todos eles têm um olhar agudo sobre as coisas do cotidiano e são capazes de transformar ‘a vida ao rés do chão’, como dizia o Antonio Candido, em literatura de alta qualidade. Também
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Página anterior 1 MEMÓRIA
Os 90 anos de Paulo Mendes Campos serão marcados pelo relançamento de seus principais títulos Nestas páginas 2 A VOZ DO RECIFENSE
Renato Carneiro Campos foi um dos principais cronistas da cidade
3 Projetos
Humberto Werneck está envolvido em vários trabalhos em torno da valorização da crônica
4 Reedição
A Companhia das Letras lança obra de Otto Lara Resende
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acho que os três são excepcionais em construir seus personagens. Talvez, tirando isso, seja tudo o mais diferente entre eles. Pode ser que aí esteja a graça da coleção”, comentou o editor.
A CIDADE
No ano passado, quando foram comemorados os 100 anos de nascimento de Mauro Mota, uma das facetas mais comentadas do escritor foi justamente seu trabalho como cronista no Diario de Pernambuco. A Cepe Editora organizou um volume
resgatando os textos do autor, publicados entre os anos 1960 e 1980, numa coluna chamada Agenda. Mauro Mota foi um representante célebre do mote “o cronista da cidade”, alguém que assumia a voz do leitor no compromisso de investigar as questões urbanas. “Todo cronista é, de alguma maneira, um cronista da cidade que habita, da cidade do jornal que ele escreve. Se a matéria da crônica é o cotidiano — de que o cronista pretende tirar lições que nos levem a refletir sobre a nossa existência
e o mundo que nos circunda —, em geral, este cotidiano é o da urbe do cronista. Mesmo os grandes cronistas nacionais — aqueles que alimentam o seu gênero com os grandes temas nacionais —, a exemplo de Machado de Assis, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony e Paulo Mendes Campos, não deixam de fazer uma ponte entre o nacional e o local ou vice-versa”, destaca Anco Marcio Tenório Vieira, professor do Departamento de Letras da UFPE. “O Recife possuiu grandes cronistas, que tinham como objeto o seu cotidiano: Renato Carneiro Campos, Mauro Mota, Nilo Pereira, Ronildo Maia Leite e Paulo do Couto Malta, para ficarmos nos grandes nomes da segunda metade do século 20. Por meio de suas crônicas (gênero eminentemente jornalístico, pois nasceu, desenvolveu-se, encontrou a sua forma, e só cumpre sua missão plena dentro de um órgão de imprensa), o Recife pôde encontrar os seus ‘filósofos’ do cotidiano, homens que o psicanalizaram e, por esse meio, tentaram se entender, como também o seu próximo e todos os sonhos que a sua cidade encerrava em mais de quatro séculos de história. Poucos retratos do Recife foram tão cirúrgicos como aquele que encontramos na crônica Recife, escrita por Renato Carneiro Campos, nos anos 1970. Renato, nessa crônica, não apenas revela o seu amor e o seu ódio pela cidade onde viveu, mas tenta ser o intérprete dessa relação de amor e ódio que nós, seus leitores e moradores do Recife, temos com o cotidiano que nos cerca. E a cidade em que vivemos não poderia ficar incólume a esta relação (amor/ódio) que só Freud explica e, por extensão, os psicanalistas das massas: o cronista”, conclui o professor.
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Ricardo Moura
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REGISTRO O futuro do nosso passado
1 arquivo público
de pernambuco Os 12 mil títulos de jornais e revistas da hemeroteca já começaram a ser digitalizados
A digitalização de acervos é a nova ordem em diversas instituições, elevando a oferta da cultura e estimulando seu acesso por qualquer cidadão conectado à internet TEXto Fábio Lucas
Um fragmento de texto manuscrito
de Leonardo Da Vinci e uma partitura desconhecida de Mozart ficaram escondidos por quase um século e meio no depósito da biblioteca pública de Nantes, na França. Ambos faziam parte de um calhamaço de cinco mil documentos, doado por um colecionador em 1872, e só foram achados por acaso em 2010 e em 2008, respectivamente. Estima-se que menos da metade das anotações e desenhos de Da Vinci, o gênio renascentista nascido há mais de cinco séculos, tenha sobrevivido ao tempo e chegado ao domínio público em nossos dias. Ou seja: o que se conta do criador da Mona Lisa é apenas a parte conhecida de sua aclamada criatividade, cuja plenitude ficou fora dos registros históricos. E se obras de renomados mestres tiveram como destino o esquecimento, imagine-se o legado silencioso da cultura anônima, mesmo nos períodos festejados de inventividade, como o Renascimento europeu. Durante a maior parte de nossa história, a humanidade penou para arquivar
tanto os preciosos produtos da arte quanto os corriqueiros rastros da vida privada. Documentos oficiais tiveram melhor sorte, quando não foram destroçados por invasões, pilhagens e guerras. Na Idade Média, os incêndios criminosos eram comuns, e destruíram milhares de bibliotecas lotadas de livros e objetos artísticos. Em pleno século 21, o mundo assistiu perplexo ao barbarismo cultural no Iraque. Em 2003, o Museu Arqueológico de Bagdá foi saqueado, e milhões de publicações, algumas recentes e outras muito antigas, foram queimadas na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional, na Universidade de Bagdá e em outras universidades do país. Para o venezuelano Fernando Báez, autor da História universal da destruição dos livros, é o vínculo de memória materializado pelo livro que é alvo da ira dos biblioclastas há cinco mil anos, como se das cinzas do passado fosse possível renovar o presente. Antes de atravessar o terceiro milênio, a prática chegou a ser considerada cult e incentivada por intelectuais. No
início do século 20, o manifesto do movimento futurista pregava o fim das bibliotecas. O filósofo Martin Heidegger, nos anos 1930, estimulou seus alunos a acender uma fogueira com as obras de Edmund Husserl, outro filósofo de quem discordava. Hoje, o mau exemplo de Heidegger seria ridicularizado, assim como a previsão dos velhos futuristas. O avanço tecnológico das últimas décadas permitiu que os bancos de dados fossem espremidos em pequenos espaços, como os discos rígidos externos e os pen drives. Os registros culturais de nossa e de outras épocas estão acessíveis a qualquer um na internet. No entanto, esse avanço é muito recente, se prestarmos atenção: em 1987, a inovação alardeada pela IBM e destacada na mídia era a “supermemória” de um novo disco magnético, com a capacidade para guardar 350 dicionários Aurélio. Era o tempo dos disquetes quadrados, e a ideia de uma rede mundial de computadores interligados ainda estava longe de ser banal.
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Agora, o desafio de uma realidade favorável ao acúmulo inédito de conhecimento é sua distribuição democrática, desde que provida pelo instrumental tecnológico. A velocidade da mudança foi de tal proporção, que um enorme passivo de produção intelectual, em muitos países, precisa ser devidamente transformado, armazenado, catalogado e tornado acessível para utilização plena de pesquisadores, estudantes e do público em geral. A digitalização dos acervos integra aquilo que o filósofo Peter Sloterdijk – aliás, desafeto de Heidegger – chamou de estrutura para uma civilização completamente diferente. Sem cair no otimismo fácil, Sloterdijk aceita ser tido como um “pós-pessimista”, e no seu pós-pessimismo a digitalização da cultura cumpre papel oposto ao pessimismo intolerante que preferia literalmente queimar as discordâncias. Um caso famoso de pessimismo rendido às possibilidades da rede foi o do turrão José Saramago. Para inaugurar o seu blog, em setembro de 2008, o Prêmio Nobel de Literatura,
A digitalização, para o filósofo Peter Sloterdijk, faz parte da estrutura para uma civilização bastante diferente falecido menos de dois anos depois, escolheu postar artigo de sua autoria, de muitos anos passados, que considerava uma carta de amor a Lisboa. “Tornando-a outra vez pública, agora na página infinita da internet”, como definiu. O resultado dessas postagens foi transformado no livro O caderno (2009), repleto de anotações do autor português a respeito dos mais diversos assuntos. O caso de Saramago é uma pequena nota que ilustra os benefícios da virtualização da cultura. Para o professor da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Puntoni, diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, instituição que é referência no processo de digitalização
de acervos no país, trata-se de uma “verdadeira transformação democrática e de alcance ainda não mensurável, que tem permitido uma enorme ampliação do acesso a documentos, livros, textos e imagens antes guardados e protegidos”. Ou de limitada circulação, como o artigo do premiado autor português sobre Lisboa.
COMPARTILHAMENTO
A Brasiliana USP não está somente digitalizando e oferecendo o acesso aos livros e documentos da universidade, ou aos 40 mil volumes do acervo doado pelo bibliófilo José Mindlin. De acordo com seu diretor, “ao mesmo tempo, procuramos refletir sobre os padrões e normas para contribuir com a definição de uma política pública de alcance nacional. Temos o compromisso de compartilhar nossa experiência, no sentido de oferecer o acesso também às soluções de tecnologia e de padronização que alcançamos. Achamos que, com isso, poderemos auxiliar na formação de uma
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2 biblioclastas Há séculos, eles se voltam contra a memória materializada nos livros, como ocorreu na ditadura militar chilena, na década de 1970 3 desenhos E anotações Estima-se que menos da metade da produção de Leonardo Da Vinci tenha sobrevivido ao tempo e chegado às novas gerações
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rede nacional das instituições envolvidas com a digitalização dos seus acervos”, afirmou o professor Puntoni, por e-mail. A jornalista e historiadora Ana Paula Bernardes demonstra preocupação com a execução completa da trilha da virtualização. “Os riscos, na minha opinião, são grandes. A parceria com entidades privadas pode levantar a situação suspeita de documentos ‘esquecidos’, títulos burlados ou simplesmente a atitude de julgar que este ou aquele arquivo podem não ter importância para as pesquisas ou consultas futuras, ocasionando a exploração comercial de conteúdos públicos por parte da iniciativa privada”, argumenta. Para Ana Paula, falta ainda uniformização dos processos de digitalização, bem como a garantia de que as empresas privadas executoras dos projetos coloquem tudo, depois, ao dispor da população. Para prevenir esse tipo de desastre, os passos da Brasiliana USP são seguidos em diversos estados. Em Pernambuco, a
Cepe Editora, que publica esta Continente, tem desenvolvido um trabalho de levantamento, seleção e digitalização dos acervos, com apoio do Laboratório de Tecnologia da Informação (Liber) da UFPE. De acordo com Ricardo Melo, diretor de produção e edição dessa editora, são três os focos iniciais de trabalho no estado: o Arquivo Público, cuja hemeroteca de cerca de 12 mil títulos de jornais e revistas já começou a ser digitalizada; a Biblioteca Pública, que possui coleções raras, algumas bastante antigas, em situação precária de conservação, que precisam não apenas ser preservadas, como estar disponíveis para consulta; e o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), fundado em 1862, no qual se encontra um dos arquivos mais importantes do país. A própria Cepe pretende publicar em formato eletrônico títulos de seu acervo, relevantes para pesquisa, notadamente aqueles relacionados à história estadual. Para acelerar o processo, um scanner importado foi adquirido
e será montado nos próximos meses, permitindo a digitalização de documentos que ficaram vulneráveis com o tempo e exigem maiores cuidados de manuseio. O trabalho da Cepe Editora e de outras instituições integra o esforço coletivo nacional da Rede Memorial, criada para dar suporte a uma política nacional de digitalização no Brasil, prevista no Plano Nacional de Cultura. Em setembro do ano passado, foi realizado fórum na capital pernambucana, resultando na Carta do Recife, que definiu seis princípios básicos para a aplicação da digitalização. São eles: o acesso aberto, público e gratuito do material digitalizado; o compartilhamento das informações e da tecnologia utilizada; o alcance universal da acessibilidade; o uso de padrões de captura e tratamento de imagens que não danifiquem o acervo exposto; a aplicação de padrões de metadados e de arquitetura da informação dos repositórios digitais, favorecendo a recuperação e o gerenciamento dos dados; e, finalmente, a adoção de padrões e normas de preservação digital. A próxima reunião da Rede Memorial está marcada para o mês de maio, em São Paulo.
NOVAS BIBLIOTECAS
O assunto tem despertado grande interesse. Em outro evento, este promovido pela Biblioteca Nacional, em outubro do ano passado, no Rio de Janeiro, para debater o futuro das bibliotecas, o curador da coleção digital da British Library, Aquiles Brayer, defendeu a perspectiva de que o atrativo dos acervos será substituído pela prestação de serviços. “A biblioteca física vai virar um espaço simbólico e o simbólico vai virar quase o real, que é o virtual. A biblioteca vai ter que oferecer serviços para acesso a conteúdos digitais. E os objetos que ela retém em seu acervo vão ficar quase como um instrumento de museu, não exatamente nesse sentido, porque ele ainda vai ser manipulado. Mas com a cópia digital, a biblioteca vai ter que trabalhar cada vez mais na prestação de serviços do que propriamente na formação de acervos”, preconizou Brayer.
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As bibliotecas não serão os únicos equipamentos culturais a sentir a mudança. Para o escritor Wellington de Melo, estamos diante de uma migração de suportes, talvez muito mais radical do que a passagem do pergaminho para o livro. “Ali, de uma forma ou de outra, a materialidade do suporte passava a mesma sensação de posse do objeto, o que não acontece com a digitalização.” A infinitude da página e a distribuição ou fragmentação do suporte desafiam a noção de materialidade, mexendo com outras noções estabelecidas. “O conceito de ‘nuvem’, de que tudo está digitalizado ‘virtualmente’, tem algumas implicações na maneira de concebermos os acervos. Quem já perdeu um servidor de um site, como um banco de dados de 200 textos, como eu, sabe o que quero dizer”, lamenta Wellington. É preciso que sejam tomadas precauções para que o que se guarda na “nuvem” não evapore, eventualmente, junto com ela. “Os servidores são a Biblioteca de Alexandria, que pode, sim, ser incendiada. A diferença é que as pessoas podem fazer inúmeras cópias
A migração atual de suportes é muito mais radical do que a passagem do pergaminho para o livro do conteúdo, o que dificulta a perda total”, recomenda o escritor. A sugestão é pertinente não apenas para quem teve um disco rígido de computador danificado. Trata-se de necessidade antiga. Uma das obras científicas mais cultuadas como fundadoras de uma nova concepção de mundo, o livro As revoluções dos orbes celestes, de Nicolau Copérnico, quase não era publicado, e só saiu do prelo no ano da morte do médico e cônego reverenciado como o pai da astronomia, em 1543. Copérnico, meio século antes da invenção do telescópio, hesitou durante décadas em apresentar o heliocentrismo, que jogava na lata de lixo a crença milenar de que a Terra seria o centro
do universo. Temendo a represália da Igreja e a crítica dos intelectuais de sua época, o revolucionário astrônomo amador preparou cedo um manuscrito com os princípios de sua teoria, cujas cópias circularam na Europa a partir de 1514. Somente 30 anos depois, ele foi convencido a publicar o calhamaço com os detalhes da teoria, graças, em larga medida, à precária rede formada em torno da novidade contida nos Commentariolus, como ficou conhecido o manuscrito. Se as cópias não tivessem sido distribuídas, é provável que o geocentrismo ganhasse mais alguns séculos de hegemonia. Cinco séculos mais tarde, o compartilhamento, que implica igualmente numa troca cultural, volta a ser crucial para o progresso científico e a aspiração de uma civilização global. Para tanto, o escritor argentino Germán Gullón aponta uma grande vantagem da digitalização compartilhada em rede que caracteriza a “nuvem” atual: as possibilidades trazidas pela busca e pelo cruzamento de dados. “A enorme massa de informação digitalizada é enriquecida graças aos cruzamentos
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4 brasiliana A biblioteca é referência no campo da digitalização no Brasil 5 wellington de melo O escritor alerta para que os acervos não se percam no ciberespaço como curiosidades compartilhadas no Facebook
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que geram nova informação”, comemora o autor de A leitura na era digital. Enquanto isso, a história não correria perigo, porque os dados originais permanecem intactos. “A memória histórica correria um risco, se perdêssemos a capacidade de analisar o que está conservado”, observa Gullón. A segurança histórica na transição de suportes que desintegram a materialidade em prol da acessibilidade parece ser um consenso para aqueles que usam intensamente as fontes disponíveis de conhecimento. “Não tenho o fetichismo do papel. Tudo será mais fácil para o pesquisador. Entrar com busca é uma arma capaz de tirar pérolas do esquecimento”, avalia o professor e escritor gaúcho Juremir Machado da Silva. Além do mais, segundo ele, a virtualização dos dados não é novidade para quem trabalha com pesquisa. “O passado é virtual. Documentos físicos não o tornam mais concreto. Espero que a História seja totalmente digitalizada. Quero ter acesso a documentos sem precisar passar meses em arquivos”, torce Juremir Machado.
A filósofa Márcia Tiburi concorda com o escritor: “O passado é algo cuja materialidade é marcada por muita imprecisão. Há muito de invenção na memória”. Para Tiburi, com a digitalização, além de os documentos ficarem acessíveis a mais pessoas, a deterioração não será mais um fantasma. “O que eu acho que continua sendo problema é a educação e a formação. Não é apenas a internet, mas a compreensão que as pessoas tem dela e de sua relação com suas vidas. O mesmo vale para a memória e a história. Não temos acesso a elas em escala social porque não temos a educação que deveria existir em um país que quisesse ter futuro”, critica. A irreversibilidade do avanço tecnológico também é levantada com o advento da digitalização. “Não podemos tratar o papel como uma espécie em extinção a ser protegida. O digital é tecnologicamente superior. A questão agora é de interpretação de dados, não mais de descoberta física de informações. Entramos numa etapa em que a inteligência será mais demandada do que a disciplina de detetive”, prevê
Juremir Machado. Então o purismo que faz do papel um fetiche – e não admite a superioridade da tecnologia – estaria com os dias contados? Para Wellington de Melo, a virtualização de acervos é “um passo natural que a tecnologia permite, e independe da vontade dos puristas analógicos”. De todo modo, não é algo que ocorra sem susto. O jornalista Cristiano Ramos postou, na rede social Facebook, quando fazia mudança de casa, que levava 700 livros impressos para ocupar um quarto inteiro, e 3.200 livros escaneados ou digitais, em um pen drive de 1cm x 3cm. “Negócio assustador”, exprimiu Cristiano. “Mas é fascinante ter milhares de livros em suportes minúsculos.” Diante do protagonismo inexorável da tecnologia e da deficiência educacional no Brasil e noutras nações, o desafio posto envolve o acesso e as destrezas dos indivíduos aos recursos tecnológicos, como sustentou Beatriz Sarlo, escritora e crítica literária argentina, no seminário Fronteiras do pensamento, em Porto Alegre (cujo texto integra o livro de mesmo nome, publicado em 2010). A digitalização dos acervos pode ser um instrumento precioso nesse contexto, aproximando as pessoas do ambiente tecnológico, na medida em que alarga os horizontes do conhecimento.
HISTÓRIA VIRTUAL?
Na travessia que implica uma transição maior, de âmbito cultural, a digitalização total da história, como menciona Juremir Machado, e o apagamento de vestígios físicos em detrimento de um passado puramente virtual não assombram os que experimentam as vantagens do acesso à “página infinita”. Pedro Puntoni garante que essa questão é sem fundamento. “A digitalização dos acervos históricos e memoriais tem sido feita no sentido de auxiliar na preservação e na ampliação do acesso. Não há perspectiva de transformação dos acervos físicos em virtuais, mas na digitalização para a preservação dos acervos físicos. Não podemos perder a referência à materialidade dos registros do passado, que são a garantia da sua veracidade e da nossa relação com os homens que nos antecederam”, diz Puntoni.
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O diretor da Biblioteca Brasiliana/ USP admite, no entanto, o impacto da cultura digital, que vai aos poucos dominando a nossa relação com o mundo. “Hoje, por exemplo, a fotografia, o cinema e a música não podem ser imaginados fora destas tecnologias. O mesmo já vale para o livro. A relação que temos com o objeto livro, em papel, já não prescinde do universo digital, decisivo na sua preparação (tanto na escrita, como na diagramação) e produção”, lembra Pedro Puntoni. “Os acervos físicos são, contudo, indispensáveis para a construção de memória coletiva e para o trabalho dos historiadores. Tenho esperança de que as novas tecnologias e a ampliação do acesso, com a sua democratização, ajudem a fortalecer uma visão de necessária preservação dos bens culturais e memoriais brasileiros.” Sobre esse ponto não restam dúvidas, inclusive da parte daqueles que lidam com a internet como negócio diariamente. “Preservar a história, seja qual for o meio utilizado, é imprescindível. Até porque só
No futuro, o público será atraído não pelos acervos das bibliotecas, mas, sim, pela prestação de serviços existe o futuro porque houve o passado, e compreende-se melhor o futuro analisando-se o passado”, ratifica Bruno Queiroz, diretorexecutivo da empresa Cartello. Bruno indica, nesse aspecto, a experiência interessante do site www.archive.org, que guarda “flashes” de tudo que é publicado na internet, criando um arquivamento automático do que os usuários já viram na tela do computador (e, agora, dos celulares e dos tablets). Vale recordar que a fotografia, ao passar da película para o meio digital, ampliou enormemente sua presença na vida cotidiana, cumpriu o trajeto tecnológico sem que muitos profissionais da área sentissem a
vertigem própria dos caminhos sem volta. “Imagine que algum fotógrafo do Recife desejasse ter acesso às imagens da Primeira Guerra Mundial em um determinado acervo na França. Ele poderia voar até Paris para ‘ver e pegar’ nas fotos. Depois, sairia contando vantagem sobre o fato. Hoje, com os acervos disponíveis na internet, ele pode ter acesso ao mesmo material”, compara o fotógrafo Eudes Santana. “É muito importante que os processos históricos da fotografia sejam preservados, mas não quer dizer que eles precisem ficar intocáveis nas gavetas de institutos e museus”, defende Eudes. Pergunto a ele como vê a fantástica quantidade de imagens disponíveis hoje, grande parte guardada em HDs, e que jamais será impressa. Eudes devolve: “E a fantástica quantidade de imagens já registradas em películas, grande parte guardada em arquivos de aço e gavetas, e que jamais será impressa? Não sejamos puritanos. Não é o processo de captação de imagem que vai tornar a vida menos ‘romântica’. Vim de uma escola de fotografia onde passei pelo processo
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6 pedro Puntoni Professor acredita que as novas tecnologias e a ampliação do acesso fortalecerão a ideia de preservação dos bens culturais e memoriais brasileiros 7 projeto O escritório do Google em Israel pretende jogar na internet 900 pergaminhos com 15 mil fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto, datados dos anos 150 a.C. e 70 d.C.
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de laboratório fotográfico e filmes em preto e branco. Entretanto, não podemos deixar de entender que o mundo está em constante evolução”.
PRESENTE
Nesse estado de mudança rápida, a sensação é de que o presente foi alongado. “Vivemos uma era de ‘presentização’. A história parece um caldo que mistura presente, passado e ficcionalização da realidade”, arrisca o escritor Wellington de Melo, lançando o alerta para que os acervos não se percam no ciberespaço como relíquias ou curiosidades a serem compartilhadas no Facebook. O empresário Bruno Queiroz traz um exemplo dessa ‘presentização’: um dia, flagrou a sobrinha, de 11 anos, conversando com a sua filha, dizendo que a música de abertura da novela das seis era de Maria Gadú. “Tive que interromper a conversa e explicar que a música Oração ao tempo era de Caetano Veloso, composta entre o final da década de 1970 e início da década de 1980. Nesse sentido, se as fontes de cultura digitalizadas não estiverem ao alcance da população,
Apesar do impacto da cultura digital, os acervos físicos são fundamentais para a preservação da memória coletiva elas se perderão no meio de um mar de dados sem conexão”, diz Queiroz. No caldo virtual, também se pode encontrar a marca de um processo em andamento, que não começou com a internet, afirma a escritora Carola Saavedra. “A virtualização da própria história e, de certa forma, da existência ‘real’ das coisas passa muito pelas mudanças ocorridas no século 20, um processo que continua. A base disso é o questionamento da ‘verdade’ ou de uma visão ampla e completa do mundo. A ‘realidade’ tornou-se mais complexa, multifacetada. Não que não fosse assim, mas havia a ideia de que através da ciência, ou do progresso, ou do estudo, seria possível chegar ao cerne das coisas, à sua origem. Hoje, o que
temos são apenas versões, fragmentos, e a certeza de que se a origem existe, ela é inacessível, talvez até mesmo inexistente”, postula Saavedra, autora de Paisagem com dromedário. Para ela, a partir daí, a digitalização de acervos e a cultura digital se integram num cenário maior, em que “o tornar virtual serve como imagem (e por que não, metáfora) do nosso estar no mundo”. E a metáfora se robustece no ser virtual. O escritório do Google em Israel coordena um projeto ambicioso: jogar na internet 900 pergaminhos com 15 mil fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto, datados dos anos 150 a.C. e 70 d.C. Enquanto um milhão de pessoas foi ao Museu de Israel para ver de perto os documentos em 2010, a mesma quantidade de visitas foi recebida na web, para conferir os cinco únicos pergaminhos digitalizados – em quatro dias. Brevemente, pelo menos em sua face coletiva, a “paisagem contemplada de um comboio em movimento”, como José Eduardo Agualusa define a memória, terá que se deparar com um passado conservado à velocidade da luz.
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Entrevista
MARIANA TRAJANO retorno do vinil expõe apego à materialidade Símbolo da era pré-digital, o disco de vinil resiste e ganha conotação cult, impondo aparente limite à gigantesca onda da virtualização que “desmaterializou” a música do LP. A produção e o consumo tardios do disco de vinil são o tema de pesquisa de doutorado em Sociologia de Mariana Trajano, cuja tese será defendida este mês na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A pesquisadora pretende estabelecer uma ordem à prática social verificada a partir do exame do LP como objeto. Foram entrevistadas 20 pessoas e, além da diferença para o ato de ouvir música em formato digital, ela procurou investigar a forma e os cuidados no manuseio do vinil. Dezenas de fotos de LPs no espaço doméstico e de novos aparelhos que leem discos, cartazes de festas, vitrines decoradas, vitrolas e capas foram anexadas ao estudo. Segundo Trajano, a experiência do tempo de quem curte o vinil revela um “tempo denso”, que serve de âncora diante da corrente frenética do consumo de música atual. CONTINENTE Como surgiu o tema da pesquisa? MARIANA TRAJANO Nasceu de um mal-estar em relação às perspectivas sociológicas clássicas acerca do papel dos objetos na sociabilidade humana e nas teorias do consumo. Tradicionalmente, os objetos figuram nas teorias sociais como elementos “simbólicos” ou instrumentais. Ou seja, os artefatos que nos circundam aparecem sempre ora como entidades que representam algum valor social, ora como instrumentos através dos quais podemos realizar nossos desejos e metas. Raras vezes os artefatos cotidianos são apreciados similarmente aos atores humanos, como entidades capazes de estabelecer a ordem dentro de uma prática social.
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CONTINENTE O significado do vinil para as pessoas foi importante para o trabalho? MARIANA TRAJANO A intenção foi justamente “virar o lado” da abordagem sociológica clássica. Claro que os significados estão presentes e são importantes, mas, na minha pesquisa, eles figuram principalmente como pistas da ação dos objetos.Interessa-me o modo como esse objeto estabelece formas específicas de se escutar e perceber o fenômeno musical através de sua forma física e de seu funcionamento. Queria perceber, entre os significados e valores que essas pessoas atribuem ao disco de vinil, os cursos de ação e de possibilidades perceptivas estabelecidas pela performance física dos LPs e da vitrola. Em outras palavras, como o fato de se poder ver a agulha no sulco, o tamanho do suporte, a “virada de lado” ou a impossibilidade do shuffle contribuem no modo como essas pessoas valorizam a música e o próprio vinil (o som do vinil é “gordo”; o vinil é “quente” em relação à frieza dos bits do CD; o vinil “encara você”; se você gosta mesmo de uma banda, você compra o vinil etc.). CONTINENTE As diferenças são objetivas ou meramente subjetivas entre o som do LP e do digital? MARIANA TRAJANO Além das entrevistas que fiz, li muitas reportagens sobre o vinil. Não apenas sobre a sua volta, mas muitas colunas de jornalistas e músicos em sites falando sobre essa querela entre o vinil e a música digitalizada. A maioria deles defende o som do LP como sendo superior ao do CD e, principalmente, ao do MP3. Esse é um tema muito controverso, pois toca em questões limítrofes, localizadas entre temas como as tecnologias de armazenagem e reprodução sonora, a psicoacústica e a memória social. O que podemos afirmar é que existe, sim, uma diferença entre o som do vinil e o da música digitalizada. Mas, essa diferença (esse som “aveludado” ou “redondo” do qual muitos falam) trata-se de uma referência sonora estabelecida pela própria mídia, que é fruto
da compressão necessariamente exigida para se imprimir o som na fita magnética e no vinil, e também dos “barulhinhos” inevitáveis ou inerentes ao próprio sistema de captação e reprodução. Trata-se de algo subjetivo, mas que também mostra como aqueles materiais estabeleceram um referencial sonoro para algumas gerações. CONTINENTE O reaparecimento ou a resistência do vinil deve-se a quê? MARIANA TRAJANO Claro que você tem aí uma questão saudosista. Como muitas reflexões sociológicas tendem a perceber, também podemos atribuir essa resistência ou esse retorno do vinil à tecnofobia – um sentimento recorrente no processo de modernização do mundo – ou a uma tentativa de distinção social: em época do MP3, escutar disco de vinil se torna algo cult. Mas o que
“Interessa-me o modo como o vinil estabelece formas específicas de se escutar e perceber o fenômeno musical” mais me chamou a atenção durante a pesquisa foi que o ritmo imposto pelo LP (não pela música) e pela vitrola às pessoas é algo que se destaca diante da enxurrada de MP3 que você escuta praticamente sem querer. Para ouvir um disco de vinil, eu tenho que parar, me concentrar para colocar a agulha sobre o disco, virar o lado. É um “tempo denso”, como denominei; um tempo que nos impede de realizar muitas tarefas paralelas, que nos exige mais do aparato sensorial. Um tempo que nos ancora diante da corrente frenética do consumo de música atual. CONTINENTE Quais os traços que diferenciam o hábito de quem usa o vinil? MARIANA TRAJANO São fatores como o manuseio da agulha, a visibilidade da agulha, do sulco e da própria faixa, o tamanho do vinil, que exigem um planejamento do
espaço para seu armazenamento, o design das capas... Podem até ser encontrados sentimentos fetichistas nesse consumo, mas todas essas características físicas e performáticas do disco e da vitrola parecem favorecer uma maior introspecção no momento da fruição musical, quando você, de fato, para e dedica seu tempo e energia para aquele artista. E é isso que também faz com que o vinil permaneça vivo até hoje. CONTINENTE A percepção da música através do aspecto físico pode ser tomada como um sintoma de que a virtualização da cultura tem seus limites? MARIANA TRAJANO Sim. Veja bem: quando falamos que certos aparelhos e técnicas são “modernos”, geralmente queremos dizer que eles nos poupam tempo e energia. Ou seja, em alguma medida substituem algumas atividades corporais ou poupam nossos corpos e mentes. O desenvolvimento moderno das técnicas de inscrição e reprodução sonora também teve como ideal essa “economia corporal”, traduzida no aumento do acesso e da portabilidade (por exemplo: não preciso me deslocar até uma loja para comprar música; não tenho que carregar quilos nas mãos para ouvir músicas que cabem em alguns “gramas” de um iPod; não preciso me levantar para pular uma faixa ou para virar o lado de um disco). Mas essa negação do corpo, que também é resultado da negação do “corpo da música” (de um suporte, de uma embalagem, de uma aparência, de algo que eu possa consumir não apenas auditivamente), parece suspender a consciência que tenho da finitude das coisas e da minha própria finitude. Não sou uma estudiosa do “mundo virtual”, mas me parece que a virtualização se opõe ao fenômeno da escassez. E é justamente esse acesso escancarado, essa falta de “sofrimento corporal” ou de “desgaste emocional” que parece colocar limites à virtualização da cultura: o eterno deleite se transforma num tedioso regozijo, e fatalmente eu passarei a buscar coisas que terminam, que se acabam, que se perdem e que se quebram. Essa é a graça. FÁBIO LUCAS
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exibiçãO Homens da era do celuloide
Egressos da época de ampla distribuição de filmes em película e dos cinemas de bairro, Arlindo Gusmão e Antonio Silva são lendas vivas da Sétima Arte no Recife texto Marcelo Abreu
Neste tempo de mudanças aceleradas
na forma de distribuição de imagens em movimento, o Recife abriga dois personagens que viveram a época áurea do cinema, atuando no setor de distribuição de filmes. Trabalharam como uma espécie de caixeirosviajantes da Sétima Arte, cada um à sua maneira. Percorreram o interior das regiões Norte e Nordeste para levar a centenas de salas de exibição as novidades dos estúdios de Hollywood e de outros centros de produção do mundo inteiro, inclusive da incipiente indústria cinematográfica brasileira. Aos 88 anos, Antonio Silva é provavelmente o mais antigo homem de distribuição do país. Conhecido no meio como “Silva da Columbia”, ele entrou no ramo em 1945, após voltar da campanha com os pracinhas que lutaram na Itália, no final da Segunda Guerra Mundial. Silva começou na distribuidora da United Artists, no Recife. Depois trabalhou em São Paulo e Porto Alegre. Voltou à capital pernambucana em 1953 e, desde então, de uma forma ou outra, tem estado ligado à Columbia Pictures. Quando, na década passada, as distribuidoras desativaram suas filiais no Recife, Silva continuou no batente com a Sétima Arte, sua empresa que faz a intermediação de filmes entre os representantes do estúdio norte-americano em São Paulo e cinemas de algumas cidades de pequeno e médio porte no interior. Outro apaixonado pela distribuição é Arlindo Gusmão, que está completando
81 anos, e ainda dá expediente numa pequena sala no Bairro da Boa Vista, onde tem sempre tempo para um papo com velhos amigos do ramo cinematográfico: programadores e técnicos em equipamento de exibição. Gusmão começou em 1952, trabalhando inicialmente na Metro-GoldwynMayer. Depois passou pela Art Filmes, Warner Bros., pelas brasileiras Ipanema Filmes, Herbert Richers e Embrafilme. Depois, aproveitando sua longa experiência, fundou a empresa Aquário para distribuir filmes por todo o Norte e Nordeste.
EM TODO LUGAR
Silva e Gusmão personificam a figura do homem de distribuição, aquele que fazia a ligação entre os grandes produtores de cinema e o pequeno exibidor, o cineminha lá na ponta da linha, que não pertencia às cadeias de exibição. A força de Hollywood dependia, para seu sucesso, dessa rede de distribuição que irradiava os filmes até os mais longínquos pontos do planeta, cidades remotas, distantes das capitais e do litoral. Os filmes eram vistos por plateias deslumbradas, inicialmente pelas imagens em movimento em preto e branco, e, posteriormente, pelas grandes produções em tecnicolor e cinemascope. Tudo isso antes da massificação da televisão, vídeo, DVD, multiplex, internet e pirataria. Podia demorar uns três anos, mas a cópia, já sambada por milhares de exibições, chegava num
pequeno cinema de Araripina, no sertão de Pernambuco, ou de Santarém, no interior do Pará. Para chegar lá, o filme passava necessariamente pelas mãos de pessoas como Silva ou Gusmão. A logística da distribuição de películas era justamente o centro da atividade de Antonio Silva. Os escritórios das distribuidoras no Recife controlavam toda a remessa no Nordeste (menos Bahia e Sergipe), e no Norte do país. Situadas no Bairro do Recife, as companhias norte-americanas empregavam dezenas de profissionais, entre programadores, locadores e revisores de obras cinematográficas. Quando Silva começou, o transporte das fitas ainda era feito pelas linhas de trem. No Norte, usavam-se barcos para cruzar os rios. Isso implicava a programação de um filme com dois meses de antecedência, para dar tempo de a fita chegar ao destino. Silva lembra o chamado “livro de programação”, um grande mapa em que eram anotados, à caneta, o nome de cada obra, as cidades por onde passava e o tempo previsto em cada cinema. “Era um jogo de xadrez”. Cada cópia tinha uma vida útil de três a cinco anos, até ser descartada por falta de condições de exibição. Era uma logística muito complicada lidar com centenas de películas circulando simultaneamente por milhares de cidades e tendo de ser transportadas de cinema em cinema, dia após dia. Multiplique-se isso pelos oito grandes estúdios de Hollywood (Paramount, Metro, 20th Century Fox,
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Warner Bros., RKO, Columbia, Universal e United Artists) e se tem uma ideia do que isso representava no Brasil dos anos 1940 a 1960, quando as comunicações eram precárias, mas não faltava uma sala de cinema em quase nenhuma cidade de mais de 20 mil habitantes. “Estamos falando de uma época que parece que nem existiu, mas era exatamente assim”, diz Silva, com um sorriso. Já nos anos 1960, com a melhoria do transporte rodoviário, a coisa ficou mais fácil. Ônibus e caminhões passaram a ser usados. Os aviões facilitaram o transporte entre São Paulo e Rio – onde estavam os laboratórios que produziam as cópias dos filmes vindos do exterior – e as demais capitais brasileiras. Silva era, então, o que se chamava de programador. Visitava duas vezes por ano as capitais do seu “território”, que iam de Maceió a Manaus. Além dos chamados “filmes de linha”, os importantes, ele organizava também a distribuição dos seriados juvenis que marcaram gerações, geralmente com aventuras no Oeste que passavam antes do filme principal, em episódios de cerca de 20 minutos cada. “Nomes como Tom
Silva e Gusmão eram homens de distribuição, que faziam a ligação entre os grandes produtores e o pequeno exibidor Mix e William Boyd eram o sucesso da criançada”, relembra. Hoje, num modelo de exibição bastante diferente, há grandes produções que estreiam, simultaneamente, com até mil cópias, como foi o caso do desenho Rio. Segundo Silva, até os anos 1970 raramente eram feitas mais de seis cópias de um mesmo filme. Isso significava que, depois de começar a passar no Rio de Janeiro, uma obra poderia levar até dois meses para chegar a uma cidade do porte do Recife. O distribuidor da Columbia viu de perto os primeiros sinais de decadência do cinema no Brasil, com o fechamento das salas. Perguntado sobre os motivos, ele concorda com os mais citados: a interferência da televisão – “que roubou
o horário principal, a sessão das 8 da noite” –, a chegada do videocassete, o DVD, a pirataria e a internet. Mas cita também motivos pouco lembrados. “Quando a coisa começou a balançar, um diretor da Fox, nos Estados Unidos, já dizia que o automóvel era o responsável porque as pessoas começaram a ir à praia, passar a noite fora e tinham menos tempo para ir ao cinema. No caso do Brasil, com a modernização das salas do centro das grandes cidades (com arcondicionado e poltronas estofadas), as do interior e dos bairros não conseguiram se modernizar. Quando chegaram as salas de shopping, ninguém ia mais às de segunda linha.” Silva acha também que a exibição de filmes pornô, no início dos anos 1980, representou o fim do chamado cinema de rua. “Quando passou o seu período de glória, tinha gente que não gostava daquilo e que não entraria jamais em um cinema de rua, mesmo que o filme fosse outro.” Para quem sempre esteve ligado ao meio pela ótica comercial, Silva tem um notável carinho pelo cinema como arte. Só não gosta de efeitos
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RICARDO MOURA
1 encontro
Lula Cardoso Ayres Filho, Arlindo Gusmão, Arnilo Oliveira, Antonio Silva e Fernando Spencer, em inauguração de nova sala de cinema no Recife
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especiais. “Não tenho mente para dissolver esse tipo de filme.” Mas vai ao cinema duas vezes por semana, com regularidade. Gosta de comédias, dramas, história. Em 2011, viu duas vezes Meia-noite em Paris, de Woody Allen.
VIROU VINAGRE
Já Arlindo Gusmão era um caixeiroviajante do cinema ainda mais péna-estrada. Trabalhou muito tempo como locador, o representante da distribuidora que vai de cinema em cinema oferecendo as novidades, estabelecendo contratos de exibição, definindo percentuais da arrecadação. Como um bandeirante da Sétima Arte, viajava sempre por todo o interior do Norte e do Nordeste. Quando já não trabalhava mais para as grandes distribuidoras, Gusmão usou sua experiência na área para atuar de forma independente. Em viagens a São Paulo, comprava os chamados royalties (direitos temporários) de filmes de companhias independentes, mandava fazer cópias e as distribuía pelos cinemas do Nordeste. Quando cessava o prazo
para as locações, ficava com as cópias. Mas por falta de condições de manutenção, perdeu tudo. “Cheguei a perder umas 400 cópias, que viraram vinagre. Entre elas, três de Chaplin”, diz com tristeza. “A última cópia que dei de presente foi El Cid”, relembra Gusmão. A película cinematográfica perde a qualidade com o tempo, e se deteriora completamente, se não for guardada em condições ideais de temperatura e umidade, coisas que poucas instituições têm como fazer adequadamente. Nascido em Vitória de Santo Antão, Arlindo Gusmão trabalhou em lojas de tecidos e passou dois anos na Aeronáutica. Entrou no setor de distribuição aos 22 anos e nunca mais saiu. Ele fala com saudade dos cinemas que visitou nos subúrbios do Recife e em todo o interior. Excetuando as redes exibidoras, como a Luiz Severiano Ribeiro, que atuam nas capitais, todos os outros cinemas pertenciam a pessoas que moravam nas próprias cidades em que tinham suas salas. Gusmão fez muitos amigos entre os exibidores.
2 registro
Arlindo Gusmão mantém uma lista dos cinemas de bairro da cidade que foram fechados
Pelos seus cálculos, somente o Recife chegou a ter cerca de 50 cinemas ao mesmo tempo, no final dos anos 1960. Como quase não havia filmes passando em mais de uma sala, simultaneamente, e a programação era tocada duas vezes por semana, era possível assistir a um número de títulos muito maior do que hoje. E entre os espectadores estava também Arlindo Gusmão, que, quando menino, foi fã de seriados como Flash Gordon e Zorro, o justiceiro mascarado, a que assistiu no antigo Polyteama. Já bem depois, não perdia produções épicas como Os dez mandamentos, Ivanhoé, o vingador do rei e Quo vadis . Entre os filmes considerados "de arte", lembra A classe operária vai ao paraíso, de Elio Petri, que ajudou a levar para o circuito de cineclubes e universidades. Sem preconceitos, chegou a distribuir filmes pornôs no começo dos anos 1980. Assim como Silva, Gusmão é um homem da época do celuloide e do nitrato de prata, materiais usados nas antigas películas em preto e branco, até os anos 1950. O nitrato era tão inflamável, que os bombeiros eram chamados para incinerar as fitas que haviam cumprido seus anos rodando pelo Brasil. Tendo visto as muitas mudanças no mercado de exibição, ele agora acha “complicada” a adoção dos formatos digitais – entre outros motivos, pela série de problemas técnicos relativos à compatibilidade dos diferentes sistemas em uso. Para Gusmão, mesmo a forma atual de exibição em película já não é tão boa como foi no passado, quando os projetores eram iluminados por um filete de carvão, material importado dos EUA e da Europa, em caixas. “O carvão dava mais luminosidade. É o mesmo carvão que no tempo da guerra usavam naqueles holofotes (para detectar a presença de aviões inimigos). A lâmpada de 4 mil watts tem uma boa luminosidade, mas o carvão cobreado de 90 ampères era espetacular”. Palavra de quem vê cinema há mais de 70 anos.
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TRUFFAUT Os ecos de um francês nas telas
Cineasta, que completaria 80 anos neste mês, é uma das influências mais constantes no cinema contemporâneo texto Luiz Joaquim
Claquete ainda está em cartaz, em alguns cinemas do país, o filme francês A guerra está declarada (2011). Sob direção de Valérie Donzelli, a partir do roteiro do ex-marido Jérémie Elkain, o enredo traduz uma experiência pessoal do casal, que gerou um bebê diagnosticado com câncer. Quem assiste à obra fica impactado não pelo tema já bastante abordado no cinema, mas pela maneira bem-humorada, às vezes irônica, com que esse jovem casal de classe média trava a batalha para vencer a doença do filho. O mais importante é que, para emoldurar a temática, Donzelli apropriou-se de uma narrativa ágil, sempre protagonizada por personagens falantes e com muita pressa. Algumas estratégias técnicas – como aplicar um zoom num objeto inanimado (um telefone, por exemplo) que terá uma função determinante na dramaturgia, ou a utilização de um círculo que vai
se fechando para destacar um detalhe dentro do enquadramento (comum também no cinema mudo) – são facilmente identificadas como próprias do cinema francês. Poucos atentam, entretanto, que essa associação não se refere ao cinema francês clássico, mas, sim, ao que surgiu só no final dos anos 1950, movido pelos preceitos da liberdade criativa da chamada Nouvelle Vague (nova onda) – movimento criado pelos então jovens críticos de cinema Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Jacques Rivette e François Truffaut, todos da revista Cahiers du Cinéma. Passadas mais de cinco décadas, não restam dúvidas de que os filmes de Truffaut – que completaria 80 anos no dia 6 de fevereiro deste ano – tornaram-se os mais populares daquele grupo. A partir dali, suas produções viraram referências, não apenas para a própria cinematografia
francesa – até os dias de hoje –, mas para todo o mundo. Fosse em como tratar o comportamento das crianças (Os pivetes, 1957; Os incompreendidos, 1959; O garoto selvagem, 1970; A idade da inocência, 1976), ressaltar a arte da literatura (Fahrenheit 451, 1966; A história de Adele H, 1975), refletir sobre o próprio ofício do cinema (A noite americana, 1973; O último metrô, 1980) ou, sobretudo, em como traduzir num filme o inexorável e infinito encantamento que o mistério das mulheres proporciona aos homens (As duas inglesas e o amor, 1971; O homem que amava as mulheres, 1977; A mulher do lado, 1981; e as quatro últimas aventuras do personagem Antoine Doinel), seria em Truffaut que se pensaria dali em diante. Um exemplo: quando esbarramos num triângulo amoroso numa obra cinematográfica contemporânea, com dois homens e uma mulher – como Os
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1 obra-prima Jean-Pierre Léaud (D) interpretou Antoine Doinel, personagem alterego de Truffaut (E), que surge em Os incompreendidos, filme que deu início à Nouvelle Vague
3 (2011), de Nando Olival, ou Antes que o mundo acabe (2009), de Anna Luíza Azevedo (só para citar dois recentes brasileiros) –, fica difícil não vincular a situação a Jules e Jim: uma mulher para dois e à liberdade nas relações amorosas (com suas complicações), razão pela qual este filme já chamava a atenção em 1962. Cria de Jean Renoir, Roberto Rossellini e Alfred Hitchcock, a educação sentimental sempre foi um tema caro a Truffaut, que transcreveu para o curta-metragem Antoine e Colette (1962), uma experiência bem pessoal, quando mudou de endereço na adolescência para ficar próximo da garota que amava, mesmo sem ser correspondido. Para ele, não havia homens maduros. Diante da mulher e do amor, todos se comportavam um pouco como crianças.
UMA CERTA TENDÊNCIA
Importante destacar que, mesmo antes de tornar-se um cineasta respeitado, o crítico Truffaut, com apenas 21 anos, chacoalhou a maneira de se perceber um filme com seu primeiro e famigerado artigo, publicado na edição de janeiro de 1954 da Cahiers du Cinéma. O texto Uma certa tendência do cinema francês criticava a chamada “tradição de qualidade” do cinema que se fazia na França até então. A ideia por ele proposta era redefinir radicalmente os padrões e a maneira de filmar, fosse pela fotografia, enquadramentos, montagem ou interpretação, quebrando as tradições sedimentadas no período do cinema clássico – a de um cinema linear, com narrativa contínua e rigor técnico e performático. Três anos depois, Truffaut, junto ao seu mentor Andre Bazin (editor da Cahiers), criaria a Política dos Autores. Por ela, o conceito por trás de um filme seria de responsabilidade de uma única pessoa, geralmente o diretor, que centralizaria todas as respostas do ponto de vista de criação dessa obra. Assim sendo, um filme deveria ser feito e visto quase como uma assinatura desse autor, e ela deveria ser estudada com igual importância, independentemente do seu valor orçamentário.
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Truffaut defendia, na Cahiers du Cinéma, que um filme deveria ser feito e visto como a assinatura de um diretor As palavras do jovem crítico ecoaram pelo mundo, influenciando realizadores dos mais diversos países, como a Polônia (Roman Polanski), Itália (Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasollini), Alemanha (Rainer Fassbinder, Werner Herzog e Wim Wenders), entre outros. No Brasil, em particular, essas duas vertentes do legado de Truffaut – uma, como o pensador que buscava a reflexão crítica sobre a autoria e o alcance político de um filme, e a outra, como o cineasta que destrinchou a alma de seus personagens guiados pelo amor – encontrariam dois discípulos bem distintos e celebrados em sua competência: Glauber Rocha e Domingos Oliveira.
Se Glauber soube como ajustar a linha de pensamento da Política dos Autores para criar um cinema inovador em sua perspectiva estética e ainda fazê-lo politicamente corrosivo, como em Deus e diabo na terra do sol (1964), Oliveira, como nenhum outro, soube transcrever com elegância para o universo carioca o interesse e a fascinação masculina de Truffaut sobre as mulheres, como aparece em Todas as mulheres do mundo (1965), ou Edu, coração de ouro (1968). Pensando além da indústria cinematográfica, Truffaut, falecido em 1984, aos 52 anos, vítima de câncer, dizia que a vida era muito valiosa para desperdiçá-la dentro de uma sala de cinema. Sendo assim, a única maneira que ele encontrava para respeitar seu espectador com seus filmes era oferecendo ao público toda a beleza com a qual a Sétima Arte pudesse traduzir o amor. Dessa forma, mostrava-se fiel ao espectador, mas também ao próprio cinema, sendo este, talvez, o mais rico ensinamento deixado pelo eterno cineasta que amava as mulheres.
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Claquete ESTILO A receita de ternura e ousadia de Truffaut
Impacto do modo de filmar do diretor é percebido em diversas produções cinematográficas atuais, inclusive na obra de realizadores pernambucanos texto Ingrid Melo
Na biografia de François Truffaut,
escrita por Antoine de Baecque e Serge Toubiana, consta que, em sua primeira carta aos pais, após ser internado em um reformatório, o garoto fez um único pedido: queria que lhe enviassem “um pote de geleia e suas anotações sobre Charles Chaplin e Orson Welles”. Nesse desejo infantil, muito se revela sobre o que, 80 anos após o nascimento do cineasta expoente da Nouvelle Vague, é apontado como um de seus maiores legados. Nenhum outro diretor conseguiu filmar a ternura tão
livremente e de maneira tão “doce” – uma mistura perfeita de Chaplin, Welles e geleia. Contudo, se não é possível copiar com rigor a fórmula, é comum observarmos no trabalho de outros cineastas algumas pitadas dela. E, não raro, encontramos traços de Truffaut no cinema de Pernambuco. Em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2011), de Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus, de 2005) e Karim Aïnouz (Madame Satã, de 2002, e O céu de Suely, de 2006), a receita ganha um tempero sertanejo. No filme, um geólogo
viaja para fazer uma pesquisa em que percorre todo o sertão nordestino. Durante a jornada, relata para sua “Galega” as pessoas que conheceu, os lugares pelos quais passou e a sensação de vazio que, aos poucos, o domina. É impossível não nos envolvermos com o personagem que nem sequer tem um rosto, pois apenas sua voz, em off, conta a história. Também não há como permanecermos apáticos diante de imagens repletas de poesia, em que quadros do cotidiano culminam por revelar uma paixão dilacerada. Aliados a isso, estão o misto de documentário e ficção, a linguagem ousada e o experimentalismo. Afeto e vanguarda: totalmente Truffaut. “Ele é uma grande inspiração para o meu trabalho, com sua noção de cinema de autor, olhar particular, assinatura. Além disso, tem o fato de bagunçar a gramática cinematográfica, fundir estilos e, principalmente, focar o personagem. Tudo o que me intriga e impressiona – e que eu não entendo – coloco nos personagens que crio. Meu desejo é construir uma narrativa emocional para eles”, conta Gomes.
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A preocupação com os personagens também faz com que Luiz Otávio Pereira (Boa sorte, meu amor, de 2012) se identifique com o cineasta francês. Ele conta que, quando pensa em um filme, antes de escrever a história, precisa ter os sujeitos bem-delineados. No curta Sobre a minha melhor amiga (2012), com seu roteiro e direção, a influência de Truffaut fica clara no tom pessoal do enredo (o cineasta francês afirmava que, no futuro, o cinema seria feito por jovens – eles contariam em primeira pessoa suas descobertas sobre a vida) e na temática abordada: a morte, uma das mais recorrentes na obra truffautiana, presente em produções como Atirem no pianista, Jules e Jim, e A noiva estava de preto. “O filme conta a história de uma menina de 10 anos que sofre de insônia, é órfã de mãe e, logo no começo do curta, perde também outro parente. A intenção é abordar como ela lida com essa ideia do fim, e vem de uma inquietação minha, inspirada nas noites em claro que eu passei quando menino”, afirma Pereira. A infância, outro tema caro a Truffaut (O garoto selvagem e sua obra-prima autobiográfica Os incompreendidos), pode
1 r eberveração Marcelo Lordello, Luiz Otávio Pereira, Kleber Mendonça Filho e Leonardo Lacca são alguns dos cineastas que se identificam com o olhar truffautiano
“Sua delicadeza e seu senso crítico (de Truffaut) não vejo ninguém repetir de maneira tão intensa” Kleber Mendonça Filho ser observada, ainda, nos filmes do cineasta Marcelo Lordello. O longa Eles voltam (2012) conta a história de uma menina de 12 anos que está desaparecida. O espectador acompanha toda a trajetória desse desaparecimento, pela ótica da garota. “Eu gosto dessa ideia de tentar compreender a mente infantil e usá-la como metáfora para o desbravamento. Acho muito interessante como Truffaut faz isso com Antoine Doinel e me fascina poder acompanhar a vida desse personagem ao longo de cinco filmes”, diz Lordello. Eles voltam lembra Nº27 (2009), aclamado curta do pernambucano no qual observamos um dia na vida de um estudante. Por meio do personagem Luís, de quem quase invadimos a mente – assim como ocorre
com a menina de Eles voltam –, Lordello aborda os medos adolescentes, tal como Truffaut fez com Doinel. Medo é também um dos assuntos tratados em Ela morava na frente do cinema (2011), curta mais recente de Leonardo Lacca. O filme fala sobre a mudança das pessoas, da cidade – menos da protagonista, que a teme. Presa ao passado, a um relacionamento que não parece dar certo e a um emprego sem muitas perspectivas, ela vivencia, em uma quase inércia, o passar do tempo. A cena final, em que a protagonista caminha em direção à tela do cinema, poderia ser uma alegoria ao filme dentro do filme, retratada em A noite americana, de Truffaut. Contudo, Lacca ressalta outras afinidades: “A relação forte com o cinema como espaço, a referência à infância e recorrentes personagens femininos filmados com contemplação são elementos convergentes. Além disso, há uma pequena homenagem em um momento do filme: na frente da sala do cinema, aparece o pôster de O homem que amava as mulheres”, revela. Em O homem que amava as mulheres, o protagonista Bertrand afirma que “com algumas mulheres, você se pergunta se elas se interessam por amor; outras o têm estampado no rosto”. O mesmo ocorre com os cineastas e Truffaut claramente está no grupo que tem o sentimento impresso em cada filme, seja para afiançá-lo, seja para destruí-lo. No curta Noite de sexta, manhã de sábado (2007), Kleber Mendonça Filho faz ambos: insinua o amor só para desmanchálo em uma frase e reacendê-lo na seguinte. Não que os personagens não se queiram. Ocorre que eles já não podem se ter, como Bernard e Mathilde em A mulher do lado. “Noite de sexta... é um filme Nouvelle Vague e, provavelmente, é a minha obra que mais tem influência de Truffaut; entretanto, não é a única. Acho que o diretor francês é um dos faróis do cinema. A liberdade que ele tem de falar de amor sem parecer piegas, sua delicadeza e seu senso crítico não vejo ninguém repetir de maneira tão intensa”, conta Kleber. Nada como a dose exata de Chaplin, Welles e geleia.
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Claquete TINTIM Aventuras de um herói diferente
Spielberg acelera a narrativa do clássico das HQs europeias, mas subtrai estilo de Hergé na animação TEXTO Pedro Paz
As histórias em quadrinhos influenciam o cinema desde os primórdios deste, no final do século 19. Elas possibilitam a uma obra cinematográfica expandir sua narrativa, à medida que empresta personagens, fornece temas e recursos de linguagem excepcionais. O poderoso cinema estadunidense somente se deu conta das múltiplas possibilidades financeiras da união entre cinematografia e HQ com o lançamento e sucesso mercadológico do filme Guerra nas
estrelas, do diretor norte-americano George Lucas, em 1977. Além do faturamento da bilheteria, a venda de produtos relacionados ao filme chamou a atenção dos estúdios uma nova lógica de mercado surgia na indústria do entretenimento. Dessa forma, Hollywood, distrito da cidade de Los Angeles, mundialmente conhecido pela adaptação de comics americanos, como Superman, Batman e Homemaranha, busca novas fontes criativas no contemporâneo, devido a um
possível esgotamento dos seus superheróis. Em 2011, uma brisa europeia soprou na indústria cinematográfica dominada pelas editoras Marvel e DC Comics. Primeiro, os personagens do gibi belga Os Smurfs, criados pelo ilustrador Pierre Culliford (19281992), ganharam as telas dos cinemas. Depois, no final do ano, chegou às telas a animação As aventuras de Tintim – O segredo do Licorne nos EUA, adaptação de três histórias (O caranguejo das pinças de ouro, O segredo do Licorne e O tesouro de Rackham, o terrível) do quadrinho mais famoso do cartunista belga Georgi Remi (1907-1983), mais conhecido como Hergé. O longa-metragem, lançado no Brasil somente no final de janeiro de 2011, já tem no currículo o título de melhor animação do ano, segundo a 69° edição do maior prêmio da crítica americana, o Golden Globe Awards (Globo de Ouro). Curiosamente, o filme não entrou na lista de indicados ao Oscar de Melhor Animação em 2012 - talvez os 380 membros do comitê de escolha desses filmes não simpatizem muito com Spielberg ou com a técnica do
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INDICAÇÕES motion capture (captura digital de movimentos), que supostamente tiraria a pureza de uma animação, pois é feita sobre a atuação de atores. Com essa adaptação, perde-se a contribuição do cartunista para a arte gráfica: o estilo esquemático, também conhecido como estilo belga de linha clara ou, simplesmente, ligne claire. O seu principal aspecto consiste na restrição da realidade para linhas leves. Spielberg também não mantém a ausência de sombras, outra característica típica do Hergé. Por outro lado, traços geométricos e proporções realistas são levados em consideração, ainda que pendendo para formas arredondadas. Além disso, nos desenhos do artista belga, aparecem poucas linhas cinéticas, como aquelas que servem para indicar o movimento, ou seja, que marcam a velocidade. Isso não faria sentido ser adotado no filme. O interessante dessas divergências na adaptação da história em quadrinhos para o cinema está na ideia de que uma mídia não pode ser reproduzida, exatamente, por outra de natureza diferente. Enquanto, na Europa, Tintim atravessa décadas como uma referência da cultura infantojuvenil, nos Estados Unidos é praticamente um desconhecido. Diferentemente de Os Smurfs e Lucky Luke, inspirados no estilo de Hergé, que foram escolhidos pelos estúdios Hanna-Barbera, na Califórnia, e se tornaram um grande sucesso na televisão. Contudo, a produção vem
tendo boa receptividade nos cinemas. Depois de quase 30 anos, o diretor americano Steven Spielberg conseguiu adaptar para a tela grande um dos quadrinhos mais famosos na Europa. Essa predestinação teve início em 1981, quando ele estava lançando Indiana Jones e os caçadores da arca perdida e leu uma crítica francesa que comparava o filme às aventuras do jovem repórter Tintim. Com o aval da família do artista, o realizador apenas esperava a chegada da tecnologia adequada para aliar a verossimilhança de atores reais com a fantasia da animação. Apesar das perdas estéticas que a obra de Hergé teve na adaptação, um dos grandes méritos do Spielberg no filme é minimizar o comportamento infantil da personagem, em comparação à HQ, atualizando a linguagem verbal, sem deixar de usar expressões marcantes como “Papagaio Louro!”. Spielberg também impôs um ritmo mais interessante na transição das cenas, utilizou trilha sonora eficiente para um longa de aventura com suspense, do compositor John Williams, e fez manobras com as imagens dificilmente realizáveis numa filmagem real. As aventuras de Tintim é o primeiro de uma trilogia - nos outros dois, Jackson e Spielberg inverterão os papéis. Os próximos passos do realizador é trabalhar no roteiro de Jurassic Park 4. Os 24 álbuns com as aventuras de Tintim foram publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Recentemente, também foi lançada uma coletânea com os três livros usados como referência no filme.
COMÉDIA
AMOR A TODA PROVA
Direção de Glenn Ficarra e John Requa Com Steve Carrel, Julianne Moore e Ryan Gosling Warner Bros
Se o mestre Myagi, de Karatê kid, decidisse dar aulas de como conquistar uma mulher, no lugar de como lutar karatê, qual seria o resultado? É mais ou menos esse o mote do filme, em que o quarentão Cal Weaver (Carrel), sofrendo com o divórcio de sua esposa (Moore), conta com a ajuda do charmoso guru Jacob (Gosling) para lidar com a repentina vida de solteiro. Mas não se deixe enganar pelo enredoclichê. O longa foi uma das maiores surpresas de 2011.
ação
OS CINCO DE CHICAGO
Direção de Roger Corman Com Shelley Winters, Pat Hingle e Robert De Niro Lume Filmes
Quem gosta de cinema B não pode deixar de conferir essa obra. O longa conta a história de uma quadrilha formada pela matriarca Kate Barker (Shelley) e seus quatro filhos, que aterrorizam a Chicago dos anos 1930 com roubos, assassinatos e sequestros. Polêmico ao abordar temas como incesto, drogas e violência, regados a humor negro, o filme é famoso por conter a atuação do jovem De Niro, que interpreta um dos filhos da Mama Barker.
DOCUMENTÁRIO
GAINSBOURG: O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES Direção de Joann Sfar Com Eric Elmosnino, Lucy Gordon e Laetitia Casta Imovision
O quadrinista Joan Sfar ama demais Serge Gainsbourg para trazê-lo à realidade. O que lhe interessa nesta cinebiografia é uma reinvenção poética da história do músico francês, desde sua infância de menino judeu até seus romances e vícios. Destaque para a atuação de Elmosnino e para o duplo com traços de desenho animado e ares de Grilo Falante do mal, imaginado por Sfar para tentar o compositor.
DRAMA
50%
Direção de Jonathan Levine Com Joseph Gordon-Levitt, Seth Rogen, Anna Kendrick Imagem Filmes
Um filme sobre câncer pode ser leve? Sim, e para Jonathan Levine pode ser até divertido. Nesta comédia dramática, Adam, um jovem de 27 anos que não fuma e não bebe, é vitimado por um raro tipo de câncer, que lhe confere uma chance de sobrevivência de 50%. O longa é honesto e sem muitas pretensões, a não ser fazer coro a Drummond e questionar, quando tudo parece perdido: “Mas, e o humor?”. Joseph Gordon-Levitt foi indicado ao Globo de Ouro 2012 por sua atuação.
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COQUETEL Do rabo de galo ao martini de maracujá
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coquetel é feito O com martini de maçã verde e manjericão
Antes sinônimos de aperitivos enjoativos, estimulantes do apetite e auxiliares da digestão, os drinques, hoje, primam pela inovação e equilíbrio dos ingredientes texto Renata do Amaral Fotos Ricardo Moura
Era atrás de um dry martini que o agente secreto 007, James Bond (Roger Moore), se escondia para não ser reconhecido. Em Casablanca, Rick Blaine (Humphrey Bogart) juntou champanhe seco e brandy para preparar um champagne cocktail para Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Já a jornalista Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker), da série Sex and the city, sempre era vista nos bares de Nova York com um cosmopolitan na mão. De nada adiantou Brian Flanagan (Tom Cruise) se esmerar nas acrobacias detrás do balcão: seu filme Cocktail foi agraciado com o nada lisonjeiro prêmio Framboesa de Ouro, uma espécie de Oscar às avessas, em 1988. Na vida real, até mesmo a atriz mirim Shirley Temple, sucesso na década de 1930, ganhou um coquetel sem álcool em sua homenagem, com soda limonada, refrigerante de gengibre, grenadine (xarope de romã) e cereja ao marrasquino. A origem do coquetel é controversa. “A fórmula mais antiga de que se encontrou registro é francesa e do início do século 18. É uma mistura de champagne seco com um torrão de açúcar embebido em brandy. É possível que se tenha originado em Bordeaux, pois diversos filólogos creem que a palavra francesa coquetel originou-se nessa região”,
afirma Maria Lucia Gomensoro, no Pequeno dicionário de gastronomia. Foi nos Estados Unidos, no entanto, que o fenômeno tomou corpo. Lá, nasceu o dry martini, em 1910. Com gim e vermute, enfeitado com casca de limão e azeitona, a bebida foi preparada para o bilionário John D. Rockefeller no hotel Knickerbocker, em Nova York. Há quase tantas lendas sobre a origem do termo cocktail quanto receitas de drinques. A tradução literal, rabo de galo, dá nome a uma bebida popular no Brasil, com cachaça e vermute.
PURA QUÍMICA
“Coquetel, do inglês cocktail, literalmente rabo de galo, é uma bebida alcoólica que se toma antes de ir à mesa, como estimulante do apetite e um bom auxiliar da digestão. Excepcionalmente, pode ser tomado depois da refeição, também para ajudar a digestão”, explica o jornalista Luiz Lobo, no livro Coquetéis. Todo coquetel possui base e agente modificador – e pode conter, também, ingrediente especial para aromatizar ou colorir. Responsável por cerca de metade do volume do copo, a base é geralmente uma bebida destilada – como gim, uísque, rum, conhaque ou aguardente –, mas pode, em alguns casos, ser fermentada, como vinho. Existem
também bases mistas, mas é raro. “Em geral, os melhores coquetéis são os mais simples, em que a base constitui 75% do total e os ingredientes não passam de três”, resume Luiz Lobo. Na hora de misturar, a vodca, por ser mais neutra, leva vantagem e é utilizada em diversas receitas clássicas. “O triunfo da vodca foi completo. O fato é que não ter nenhum aroma, sabor ou coloração criou um apelo mercadológico imbatível – o ‘não ter’ passou a ser o plus. Surgira um destilado alcoólico que poderia ser misturado a qualquer outro ingrediente”, explica Edmundo Furtado, no livro Copos de bar e mesa. Em seguida, entra o agente modificador para suavizar. “O coquetel de gim será sempre reconhecido como um coquetel de gim, mas o agente modificador deve acrescentar aquele algo mais, sem prevalecer, mas deixando um nítido sinal da sua presença”, diz Lobo. Ele pode ser um elemento aromático (vermute, extrato de laranja, Campari), suavizante (açúcar, creme, ovos) ou suco de frutas. Fecha a equação o agente especial (licores, xaropes não alcoólicos e temperos), para dar cor, sabor e aroma, mas sem exagero. “As gotas, os respingos e outras sutilezas não podem ser medidos em termos de bula medicinal. Há, não nego, os mistificadores, que
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fingem levar em consideração a direção do vento, o cheiro de maresia, a luz ambiente, para usar 10, 15 ou 20 gotas de molho Worcestershire”, exagera o autor.
CLÁSSICO NACIONAL
Para a International Bartenders Association (IBA), no entanto, coquetel é coisa séria – e exata. O site da associação traz as receitas oficiais dos coquetéis mais famosos do mundo, divididos entre inesquecíveis (como o manhattan), clássicos contemporâneos (como a caipirinha) e drinques da nova era (como o pisco sour). O receituário ajuda na reprodução das opções consagradas. O bartender baiano Derivan Ferreira de Souza, radicado em São Paulo, foi o responsável pela inserção do mais
A caipirinha teve sua receita oficial – composta por cachaça, limão, açúcar e gelo – registrada em 1994 brasileiro dos coquetéis nas receitas oficiais da IBA, em 1994. “Resgatei a história da caipirinha com o apoio de uma empresa francesa, pois no Brasil não conseguimos patrocínio, e com muito esforço venceu a consagrada mistura da cachaça, limão, açúcar e gelo”, conta no seu novo livro A coquetelaria ao alcance de todos.
Segundo Maria Lucia Gomensoro, o termo remete à origem interiorana da bebida, nascida no interior de São Paulo “como uma derivação dos remédios populares, caseiros, à base de cachaça combinada com limão, alho, mel e ervas. Seus ingredientes, cachaça, açúcar e limão-taiti ou galego fazem com que funcione como um adstringente, quando associada a pratos mais pesados como feijoada e churrasco”. Por mais tradicional que seja, a caipirinha nem sempre é encontrada nos restaurantes, em que perde espaço para versões com outros destilados, como a caipirosca (com vodca) e a caipiríssima (com rum). Casas japonesas oferecem até caipisaquê, com saquê feito de arroz fermentado. O baixo teor alcoólico desse
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ingrediente, em torno de 15 a 17° GL, porém, termina descaracterizando a potência da bebida.
COQUETEL BAR
O chileno Rodrigo Sepúlveda, gerente operacional do restaurante Nez, em Boa Viagem, é o responsável pela carta com quase 30 drinques da casa recém-inaugurada. Com experiência no grupo Fasano e no L’Entrecôte D’Olivier Anquier, ele trocou São Paulo pelo Recife e assumiu um desafio ainda incomum na cidade. “Estamos fazendo um investimento para introduzir a cultura do coquetel no Recife”, diz o sócio Marcelo Valença. O mixologista – termo considerado por ele mais apropriado do que bartender, por
reunir as tendências da coquetelaria – mescla opções clássicas e autorais na carta. O tradicional dry martini aparece em novas versões, com purê ou xarope de frutas, especiarias e ervas. Ele prefere usar xarope de açúcar em vez de açúcar porque deixa a bebida mais homogênea. O menu busca ser informativo, dizendo se o drinque é doce ou seco, aperitivo ou digestivo. Entre as novidades estão o passione caliente martini, com polpa de maracujá, rum branco cubano, Cointreau, suco de limão siciliano e geleia de pimenta, com retrogosto picante, e o aperol spritz, com aperol (vermute mais doce), rodelas de laranja, Cointreau seco e água com gás. Dentre os clássicos, o rusty nail leva scotch e Drambuie com casca de laranja flambada. É um coquetel escocês digestivo, ideal para depois do cafezinho. Quem associa coquetel a bebidas excessivamente doces pode repensar o assunto. “É tendência mundial: os jurados dos concursos escolhem os drinques mais discretos e clean”, explica Sepúlveda, que se inspira em pessoas, paisagens e pinturas para criar suas receitas. “A coquetelaria é uma arte que bebe das outras”, defende. A atualização não pode ser deixada de lado e precisa ser constante, em sua opinião. Segundo ele, o terraço do Nez vem sendo ocupado por clientes
2 NEz Mesclando opções clássicas e autorais, o restaurante propõe introduzir a cultura dos drinques na cidade 3 Rodrigo Sepúlveda O chileno é o responsável por uma carta de mais de 30 coquetéis
interessados em tomar drinques com entradas durante happy hour. “Ainda há pouca gente fazendo um trabalho forte por aqui, mas a aceitação tem sido muito boa”, conta. O próximo estágio é apostar na mixogastronomia, ou seja, na harmonização de coquetel e petisco. Pode ser, por exemplo, um sashimi com martini de wasabi.
CURSO APRIMORADO
Vice-presidente da Associação Pernambucana de Bartenders, Fernando Bezerra está à frente do novo curso de bartender do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), no qual dá aulas há 20 anos. Com a primeira turma prevista para começar este mês, a formação terá 160 horas. Para se ter uma ideia, a escola contava apenas com o curso básico de drinques e coquetéis, com 30 horas. Segundo o instrutor, o conteúdo inclui histórico dos tipos de bares e coquetéis, receituário oficial da International Bartenders Association (IBA), coquetéis criativos e processo de fabricação das
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4 ingredientes Todo coquetel possui bebida básica e agente modificador , e pode conter também um componente especial para aromatizar ou colorir
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bebidas (sacarificação, fermentação, destilação e infusão). A proposta é formar um banco de empregos para atender à crescente exigência desses profissionais em Pernambuco. “Também vamos requalificar os que já estão no mercado”, afirma. Serão dois meses de aulas, de segunda a sexta, das 8h às 15h. A taxa de inscrição é de R$ 200 e dá direito a almoço, fardamento e material didático. “O curso atende a uma demanda dos empresários pernambucanos”, explica a coordenadora do Centro de Hotelaria e Turismo (CHT) do Senac, Renata Machado. Ela destaca que, no mercado de trabalho, o salário do bartender pode chegar a ser maior que o do garçom. Bartender há 28 anos, Bezerra conquistou o primeiro lugar no Torneio Campeão dos Campeões 2011, realizado pela Associação Brasileira de Bartenders. Sua criação, o coquetel Rosas de Saron, leva vodca, aperol e Frangélico. Servido
em taça de martini, é decorado com physalis (fruta também conhecida como camapu) e casca de laranja. Este ano, ele vai representar o Brasil no campeonato mundial, na China.
VINTAGE
O restaurante Raval fechou as portas em julho de 2011, mas continua sendo lembrado, quando o assunto é drinque. O cardápio incluía coquetéis clássicos, como o whiskey sour, e contemporâneos, como o watermelon martini ou o raval mint (adaptação do mojito com vodca e mistura de limão siciliano e taiti). “Os contemporâneos são adaptações de clássicos, são versões com algumas mudanças”, explica o ex-sócio e bartender da casa, Guga Eckhardt. A inspiração para pensar novas receitas pode vir dos próprios ingredientes: durante um curso de mixologia na Inglaterra, Eckhardt se baseou nos elementos já presentes no
gim para elaborar um coquetel com esse destilado, coentro e gengibre. A ideia era exacerbar ainda mais esses sabores. Hoje, ele vê uma tendência retrô na área, que vem reproduzindo coquetéis como os do livro do bar londrino Savoy, publicado na década de 1930, com 750 receitas. “No Recife, não temos ainda a cultura do coquetel por falta de investimento e oferta na área”, opina. Para ele, o pernambucano gosta de conhecer coisas novas e isso explica a boa receptividade que o menu do Raval obteve. O whiskey sour, por exemplo, era uma boa surpresa para um público conhecido por adorar a bebida. Hoje, ele presta consultoria e estuda o mercado para abrir uma nova casa. O dia seguinte costuma ser uma preocupação para quem opta por beber coquetéis, por causa da mistura de várias bebidas no copo. Os profissionais explicam: não, ela não causa ressaca. “Tudo depende da qualidade dos destilados”, diz Eckhardt. Os modificadores usados também podem interferir: eles podem ser de primeiro nível (como suco de fruta fresca, por exemplo), segundo nível (polpa congelada) ou terceiro nível (suco de caixinha). “Se fosse assim, americanos e ingleses viveriam de ressaca”, brinca Sepúlveda, referindo-se ao gosto dos anglo-saxões pelos coquetéis. Para ele, tudo depende do metabolismo de cada um. Tecnicamente falando, no entanto, ele não recomenda misturar bebidas destiladas e fermentadas, especialmente vinho. “O problema é que nos drinques a pessoa não sente o álcool”, ressalta Eckhardt.
onde encontrar Bons coquetéis –ou aprender a fazê-los
Nez Rua Amazonas, 40, Boa Viagem Telefone: 3032.0848
Senac
Av. Visconde de Suassuna, 500, Santo Amaro Telefone: 3413.6728
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da natureza do ser
matéria corrida José Cláudio
artista plástico
Sou, sabe o que, camarada? Eu sou o
ser e não ser, eu sou o ser e o nada, sou caldo espremido da massa, manipueira que escorre do pau da prensa, do pacote de massa de mandioca apertado na folha de macaibeira esmagado pela masseira empurrada pelo brinquete comprimido pela vara arriada pelo fuso ou leite que espirra da torcida do coco raspado no raspa-coco ou caldo de cana que esguicha do capa-bode ou massa do milho ralado no ralador de flandre feito de lata-que-foi-dealguma-coisa. Só não sou o sumo do bagaço da uva pisada de pés de moças no lagar, que na Zona da Mata daqui não tem vinho, só se for de jurubeba ou caju ou vinho como chamam no Norte, isto é, refresco, como o do cupuaçu, os pedaços boiando qual laminha de coco verde, sou lama da lama do mangue ou algum caranguejo uçá que errou de genética ou guaiamum ou aratu agarrado à raiz do
gaiteiro ou resíduo de tripas gaiteiras limpadas pelas fateiras nos matadouros ou fuçuras na beira do rio que ao pó voltaremos ou restos de carne arrancados pelos cachorros do lado de dentro nos couros de boi na beira d’água deixados pelos magarefes na rampa do porto de Barra do Rio Grande na foz no encontro das águas com a do São Francisco como no Amazonas, Barra que já foi Pernambuco e ainda há quem defenda voltar a sê-lo, vi nas pichações dos muros na campanha para prefeito “Barra para Pernambuco” (jan./1988), por onde chegou, por via fluvial, a cama de casal do Dr. Hélio Paranaguá seguindo em carro de bois, e ao destino um mês depois, varando a caatinga para Corrente no Vale do Gurguéia no Piauí. A feira de Barra lembrava a de Vila Bela do poema de Carlos Pena Filho: “A feira de Vila Bela/tem chocalhos para vacas./Na feira de Vila Bela,/
feijão e pó nas barracas./Na feira de Vila Bela,/arreios, cordas e facas./Na feira de Vila Bela,/chapéus de couro, alparcatas.” Sendo que não tinha nem barracas: o sol tinindo, tudo espalhado pelo chão. “Na feira de Vila Bela/um ceguinho pede esmola./Na feira de Vila Bela,/o cego e sua viola”, sendo que na de Barra não tinha cego nem viola e sim uma doida que morava na beira do rio e dava conta de tudo o que acontecia na cidade. Na Barra do Rio Grande, no Rio Grande da Barra, na “Barra de Guabiraba/onde a maré junta o cisco/ Sant’Antõi bate punheta/no carai de São Francisco/de longe ouve-se a zoada/de perto vê-se o serviço”, na Barra do Rio Vermelho, no Rio Vermelho da Barra, Barra Limpa, apelido do cozinheiro do Garbe no Rio Madeira, também conhecido por Faca Cega, o taifeiro Alonso, o mestre Filomeno, quase que era o
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ricardo moura/reprodução
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Cachorros comendo couro de boi, óleo sobre eucatex, jan./88, 68 x 80 cm.
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meu tio Philogônio, o maquinista João, matrinchã, carapanã, pium, tamaquaré, tambaqui, miuá, jamaxi, Milton Hatoum, Dalcídio Jurandir, Manaus, o Ródo, cauixí, carne de paca, tracajá, carumbé, Aripuanã, Manacapuru, Oriximiná, bacuri, por aí, piripipitomba. Mas como eu ia dizendo, sou o caldo da P. O. J. de Sirinhaém, Rio Formoso, Ipojuca, Camela, Cabo, os engenhos que desaguam nestes lugares, Canto Escuro, Propriedade, Aratanji etc., logo a cinza da palha desses canaviais, ou se quiser o açúcar, ou se quiser a garapa, ou se quiser mel de engenho, açúcar bruto, mascavo, melaço, demerara, caromba, rapadura, mas isso tudo misturado n’água, evaporado, aspirando ao eterno noves fora nada. Essa substância, essa matéria fecal, foi aclimatada à sombra de Abelardo da Hora através do agente Ivan Carneiro: o menino do
Sou lama da lama do mangue ou algum caranguejo uçá que errou de genética ou guaiamum ou aratu agarrado à raiz interior, navegando a esmo na cidade grande, nunca mais foi o mesmo, se perdeu para achar-se, digamos noutro termo, assim é que vejo, na beira do Tejo, na beira do Tévere, na beira do Tibre, ou Capibaribe, Sena, Reno, Danúbio, que todos já vi, hoje estou aqui, piripipi piripipi. Quando eu era pequenino e nem sabia falar, quer dizer, falar, sim, escrever, primeiras letras, não longe disso até hoje, na Escola Particular Mixta de Dna. Dulce Barreto, 1937-38, cinco ou seis anos no máximo, vou
perguntar a Deda, fui escalado para recitar uma poesia, cada um dizia uma estrofe, eu e outros meninos, comemorando a volta do vigário Frei Venâncio (Willeck) das férias na Alemanha. Foi no quarto de Santo Antônio, no Convento de Ipojuca. A poesia, da qual só me ficaram dois versos, é Glórias Futuras, Os Cinco Irmãos e deve ter sido tirada do livro de leitura Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro (Porto Alegre, RS, 1847-Rio de Janeiro, RJ, 1886), descoberta na internet pelo meu só-Deus-sabese-e-quando futuro genro-neto Ricardo. Cada irmão dizia o ofício que pretendia seguir quando crescesse. Coube-me recitar os seguintes quatro versos, sendo que os dois últimos ficaram gravados bem mais do que poderia esperar Frei Venâncio: “Dizia o mais velhinho,/Que se chamava Heitor,/Serei Victor Meirelles,/ Eu quero ser pintor.” Lasquei-me.
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PATRIMÔNIO Barroco recifense pelo traço estrangeiro Livro do arquiteto espanhol José Maria Plaza Escrivá registra em desenho 15 monumentos da capital pernambucana
1 beleza A Catedral de São Pedro dos Clérigos foi registrada em desenho e num mosaico de 1 x1,60m 2 conjunto Os monumentos recifenses, como o Palácio da Soledade, apresentam unidade arquitetônica
TEXto Danielle Romani
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O arquiteto espanhol José Maria Plaza Escrivá se denomina um viajante desenhador, a exemplo dos artistas que integravam as comitivas que desbravaram o Novo Mundo, na Era das Navegações, ou como fizeram os historiadores da Antiguidade. Há décadas, costuma percorrer roteiros históricos, na Espanha e na América do Sul, para registrar, in situ, a beleza de lugares e cidades ibero-americanos que foram eleitos monumentos patrimônios da humanidade . Foi assim com os Caminhos de Santiago de Compostela – subdivididos em diversas rotas, como o Caminho Francês, a Ruta de la Plata, o Caminho Português, o Caminho Primitivo e do Norte e o Caminho do Mar. O
mesmo aconteceu com o Itinerário da Constituição Espanhola (que se divide entre Cadiz e São Fernando), além de roteiros históricos de Portugal e da cidade de Córdoba. Ao visitar a América do Sul, que tem óbvias raízes hispânicas, o misto de arquiteto e desenhista registrou as estâncias e as missões jesuíticas da Argentina e do Paraguai. No Brasil, percorreu e desenhou a arquitetura histórica do município de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. Também já flagrou prédios e fachadas de Olinda e de São Luís. E se prepara para percorrer a Estrada Real, no trecho situado em Minas Gerais. Em todos os casos, os trabalhos confeccionados originalmente em papel A-3, com caneta nanquim,
são transformados em livros, cadernos de desenho, exposições, painéis em mosaico, entre outras formas de expressão artística. A nova empreitada de José Maria Plaza Escrivá, em parceria com a arquiteta descendente de espanhóis Sandra Paro, poderá ser conferida entre os dias 2 de fevereiro e 16 de março, na sede do Iphan/PE, no Palácio da Soledade, zona central do Recife. Na abertura da mostra, será lançado o caderno de desenhos Arte em Recife: um itinerário barroco, que disponibilizará informações sobre o acervo recifense. No livro, estão registrados 15 desenhos (14 passíveis de emoldurar) produzidos nas ruas da capital pernambucana. A exposição tem
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3 características
O barroco recifense apresenta belas fachadas e frontispícios, como os da Basílica e do Convento de Nossa Senhora do Carmo
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o apoio do Instituto Cervantes, da Embaixada da Espanha, da Fundação Artístico Cultural Iberoamericana e da Cepe Editora. “A proposta, enquanto livro, é inusitada. Como se trata de lâminas, você pode ler coletivamente, cada um pode se entreter com uma página, ou optar por fazer quadros”, explica Sandra Paro, curadora da exposição recifense e parceira de José Maria nessa e em outras empreitadas, através da realização de mosaicos que reproduzem os desenhos dos cadernos. Para José Maria, o trabalho no Recife foi cheio de situações inusitadas. Durante a confecção dos desenhos, a maioria deles produzida nas ruas dos bairros centrais, o artista foi assediado por populares que demonstraram toda a cordialidade e curiosidade do povo pernambucano. “As pessoas se amontoavam perto dele, curiosas com a produção das obras. Os trabalhos
Os trabalhos feitos em papel A-3, com caneta nanquim, são transformados em cadernos de desenho e painéis de moisaco foram pautados, sempre, por esse clima de ‘festa’. Essa simpatia do povo ficou muito clara durante a realização do projeto”, conta Sandra.
ACERVO
O arquiteto-desenhista também ficou impressionado com o acervo que registrou. Prédios como o Convento de Nossa Senhora do Carmo, Igreja da Penha, Forte das Cinco Pontas, Matriz do Santíssimo Sacramento, entre outros, revelaram um patrimônio rico e preservado.
“Nos séculos 17 e 18, o Brasil era considerado o Portugal de Ultramar e seus bens culturais eram prolongamento dos realizados na metrópole. O barroco encontrado aqui é herdeiro do estilo manuelino, influenciado por um entorno cheio de vegetação farta e exótica. Foi depois da expulsão dos holandeses que se iniciou um verdadeiro fervor religioso, e se disseminou a construção de igrejas e conventos, seja por parte do clero secular quanto das ordens religiosas”, explica o arquiteto espanhol. Ele chama a atenção, ainda, para uma característica bem peculiar do acervo local. “O barroco do Recife se destaca pela bela composição de suas fachadas e frontispícios de suas igrejas e conventos, pelo delicado entalhe de seus altares barrocos, de estilo rococó, e praticamente pela ausência de imaginária, ficando a decoração interior reservada à azulejaria, fato que só foi possível devido à localização
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portuária da cidade”, explica José Maria. O arquiteto também destaca que o barroco pernambucano é diferente daquele encontrado na Bahia ou no Caminho do Ouro. Diz ele: “Aqui, encontra-se uma surpreendente unidade nas construções, devido ao fato de elas terem sido erguidas em um espaço de tempo relativamente próximo”. Profundo conhecedor do patrimônio nacional, José Maria destaca, entretanto, dois conjuntos que o impressionaram e que considera incomparáveis. No tocante ao patrimônio material, lembra a obra produzida por Aleijadinho, em Congonhas, Minas Gerais. “Os 12 profetas e o interior das capelas da Basílica do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos, com suas belas esculturas e imaginária, são inigualáveis”, diz. No que se refere ao patrimônio imaterial, cita a música barroca do centro da Europa que, no século 18, era interpretada pelos índios guaranis, originários do atual terreno de Missões, de São Miguel dos Sete Povos, no Rio Grande do Sul. “Esse acervo foi recuperado e é interpretado pelo Coro de Música da Catedral de Pamplona, dirigido por Don Aurelio Sagaseta. Ele pode ser ouvido num CD e foi registrado num livro coeditado pela Editoria Unisinos y Delphi Edições. Chama-se São Miguel das Missões, arte e cultura dos sete povos. Todo brasileiro deveria ouvi-lo.”
DESENHO E MOSAICO
O encontro entre José Maria e Sandra Paro tem rendido uma parceria ímpar. Desde que se conheceram, durante o lançamento do caderno sobre a Constituição Espanhola,
no Instituto Cervantes, no Recife, a dupla trabalha com a união da arte do desenho à do mosaico. A principal finalidade da parceria é difundir as culturas da Espanha, Portugal e Brasil, através da Fundação Artístico Cultural Iberoamericana, que está sendo constituída no Recife. “Para cada itinerário que ele percorre, nós executamos um painel em mosaico artístico, para que esses desenhos, junto com os painéis, sejam expostos. A ideia é que eles sejam mostrados em grandes portais, como aeroportos, portos, enfim, lugares públicos, a fim de que todos tenham conhecimento das nossas belezas e memória histórica”, explica Sandra, que produziu para a exposição pernambucana uma réplica, em mosaico, do desenho da fachada da Catedral de São Pedro dos Clérigos, localizada no Pátio de São Pedro. A obra tem 1m x 1,6m. Ela lembra que, desde o final de janeiro, o trabalho realizado por José Maria na cidade gaúcha de Missões está sendo mostrado em exposição na Espanha e que dentro de alguns meses será lançada outra mostra com os desenhos produzidos em Olinda. O mosaico, ressalta Sandra, vem ajudando comunidades pobres do Recife a gerar renda e emprego. Paulista de nascimento e pernambucana de coração, desde que chegou à cidade mantém um ateliê no Bairro do Pina, onde emprega – dependendo do trabalho – uma equipe entre três e 20 pessoas da comunidade do Bode.“Tenho que estar sempre criando possibilidades de trabalho, para não perder essa mão de obra tão especializada e carente.”
José Barbosa
Exposição em Paris marca 45 anos de carreira do artista A disposição de um artista para se comover não pode ser medida pelo número de exposições que montou durante a carreira. Tampouco pela legitimação da sua subjetividade através de citações em enciclopédias de artes visuais. O sentimento de mundo de um indivíduo que tem vocação artística deve ser avaliado segundo sua memória afetiva. A lista de acontecimentos que marcaram a existência do artista plástico José Barbosa da Silva, 63 anos, é um exemplar da tese apresentada acima. “Meu primeiro quadro vendido a Francisco Brennand, que era a reprodução de uma obra de Henri Rousseau.” “Quando abri as janelas do sobrado 457, na Rua da Aurora, em 31 de março de 1964, e vi soldados brasileiros deitados no chão, com metralhadoras.” “Chorei em Colônia, na Alemanha, quando Elvis Presley morreu.” “E a perda dos meus pais.” Tendo em vista a crueldade do estar no mundo, restou a José Barbosa preocupar-se, nas suas obras, somente com o que fosse agradável à vista. No mês de março, ele inaugura a exposição Naturezas vivas – Bois du Brésil - 45 ans d´art, em Paris, uma comemoração às suas quatro décadas e meia de carreira. A mostra organizada pela produtora cultural francesa Bénédicte Auvard apresenta uma compilação encantadora dos seus trabalhos, que vão desde pinturas em tela e objetos a desenhos em papel e esculturas. A exposição ficará em cartaz na Galeria Mailletz, próxima à Universidade Paris-Sorbonne, entre 2 e 26 de março. Perguntado sobre a lição que tira de tanto tempo dedicado à arte, o multiartista não deixa de se questionar: “Pintei o meu primeiro quadro aos 12 anos, em Olinda. Estou completando 45 anos de arte, em Paris. Aliás, só sei fazer isso na vida. A arte é tudo, como dizia o mestre psicanalista Freud. Em cada ser dorme um artista. C´est vrai? (É verdade? )”. PEDRO PAZ
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OLARIA OCRE Um trio em torno do barro
Livro condensa imagens produzidas durante estadia de três artistas na oficina do Mestre Baixinha, em Tracunhaém texto Júlio Cavani
Olaria ocre, o livro, funde obras de três artistas em um único objeto gráfico encadernado, que condensa imagens e informações produzidas durante a estadia de Roberta Guimarães, Joelson Gomes e Manoel Dantas Suassuna na oficina cerâmica do Mestre Baixinha, em Tracunhaém. Cada um deles tem suas poéticas e técnicas claramente individualizadas, mas, como nas misturas do barro cozido, elas se fundem quando reunidas em textos e fotos ao longo das 312 páginas. Apesar de ser o barro um material que sugere tons terrosos, as 42 páginas iniciais são em preto e branco. Nas primeiras 27, devido a um radical uso do alto contraste, surgem apenas essas duas cores, sem cinzas intermediários. As esculturas e desenhos de Joelson e Dantas mal podem ser identificadas até aí. As fotografias de Roberta Guimarães, entretanto, pulsam
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A partir das referências encontradas, Roberta Guimarães, Dantas Suassuna e Jailson Gomes produziram uma série de trabalhos
em sugestões de relevos. Ao serem anuladas as cores da argila, olha-se para sua textura, para seu aspecto amorfo, seus movimentos e contornos irregulares, traduzidos pela luz capturada pela câmera. As peças de Dantas e Joelson são reveladas após uma longa contextualização de substâncias, materiais, pessoas, lugares e paisagens que existiram ao redor deles e de Roberta durante o processo de ocupação da olaria. As fotos integram a arte ao universo. Cada uma representa um encontro entre os três artistas e o arredor. Olaria ocre é de autoria do trio, todos se lambuzam em uma fusão temporária promovida entre as permanentes individualidades. Emoldurados pelo ambiente humano e natural, Joelson e Dantas exploram a cerâmica para o desenho, a escultura e a pintura, muitas vezes sem separação. Pesquisam novos resultados coloridos com pigmentos dissolvidos, exploram o volume, ouvem o oco, alisam as superfícies e testam o comportamento do calor do forno. Dantas cria sobretudo personagens e símbolos aparentemente perdidos
Marcelo Silveira
no tempo, extraídos de alguma narrativa épica desconhecida, mitológica ou sagrada, mas não necessariamente religiosa. Joelson elabora mistérios ancestrais fictícios, abrigados em formas arredondadas com harmonia e sensualidade.
DIDATISMO
Elaborada por uma equipe editorial, conduzida pelo designer Carlós Amorim, a apresentação do material produzido pelos artistas e pela fotógrafa, em formato de livro, segue caminhos enigmáticos que aliam um certo didatismo plásticonarrativo a um ritual de expectativas e surpresas. As divisões entre capítulos estão lá, porém guiadas por signos nem sempre explícitos – cabe ao leitor identificá-los livremente. O texto de Luzilá Gonçalves, por exemplo, serve de ilustração para o que é visto – e não o contrário. Sua literatura aparece sempre como personagem, não como narrador. As palavras da escritora são reveladas aos poucos, de maneira fluida, em páginas salteadas, em blocos de poucas frases, intercalados por tomos de imagens com quantidades e tamanhos variados. Já as análises dos críticos de arte estrangeiros Mónica Carballas e Kevin Power, mais interpretativas ou descritivas, são diagramadas em forma de texto tradicional, em páginas brancas, lançadas no livro com bastante espaçamento entre si. Trazem notas bibliográficas oportunas
foto: ricardo moura
opções de manuseio
e cruzam a produção dos artistas com referenciais estéticos históricos. Mónica Carballas identifica, na vivência do grupo, “uma ralentização do tempo”, que “não está relacionada com a lentidão do gesto, do movimento ou da produção, mas com a dilatação do tempo da escuta e da atenção”. Associada à cultura popular, a arte do barro, cujo ambiente de produção (a olaria) abrigou os três artistas, é retratada com respeito enaltecedor por Kevin Power. “Miki Lauer insiste que a arte dos subjugados sempre foi detestada e que a burguesia elaborou um sistema de arte para separar seus próprios valores, assim, justificando as linhas demarcadas para sua própria superioridade”, cita o pesquisador. E compara: “O trabalho de Joelson demonstra o contrário (assim como crê Lauer), que o rico e complexo espírito criativo é claramente manifestado nesses trabalhos – incluindo os de produção utilitária, desde que resistam à destruidora repetição do comercial e à massificação exaustiva da demanda – que podem, são e deveriam ser natural e organicamente levados ao presente, permitindo que os traços da cultura cresçam e se expandam”. Nas palavras de Luzilá, “viajante de outras eras, de um tempo em que você nem eu existíamos, a máscara guarda estrias, traços da água abrindo passagem sobre a argila. Água, barro, não foi aqui que tudo começou, não é aqui que tudo termina?”
Marcelo Silveira queria algo além de um mero livro que reunisse fotos de parte representativa de sua produção artística. Materializou essa inquietação com seu Manual dos manuais ou livro das explicações, que se parece com um jogo. Não chega a ser um quebra-cabeça, mas, para ser absorvido, exige um certo raciocínio e uma disposição para o lúdico. Chamam a atenção os formatos das folhas do livro, que têm até cinco tamanhos ou formas. Algumas são quadradas, outras retangulares. Cada tipo de página abriga uma categoria de informação de natureza diferente. E o leitor tem a liberdade de mudar a ordem delas, já que a encadernação é de fichário. Manual
dos manuais foi feito para ser visto. É uma escultura dobrável. A melhor maneira de lê-lo é tentar percorrer caminhos aleatórios, perderse nas imagens, brincar com o acaso e criar novas regras. Afinal, apenas os textos (análises teóricas, entrevistas, colaborações de outros artistas) têm páginas numeradas. Além de criativo e divertido, esse projeto gráfico-editorial transmite uma visão de mundo livre de imposições hierárquicas ou classificações estanques. Na obra de Marcelo Silveira, como se percebe nas cerca de 100 fotografias de peças em diversas linguagens (sobretudo esculturas), os gestos políticos podem estar na própria decisão de se optar pelo belo. JÚLIO CAVANI
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REPRODUÇÃO
Palco DOCUMENTÁRIO Recriando o universo de Hermilo Borba Filho
O volume três da Coleção Teatro, da Massangana Multimídia, aborda os aspectos da produção cultural do dramaturgo e sua reverberação na arte cênica atual TEXto Williams Sant’Anna
O pernambucano da cidade de
Palmares, Hermilo Borba Filho (1917– 1976) está longe de ser uma daquelas figuras que obtiveram notoriedade e importância numa determinada época e caíram paulatinamente no olvido das gerações seguintes. É inevitável, ao se aproximar das ideias e da produção cultural nordestina no século passado, com destaque para as artes cênicas, a literatura e a discussão e reflexão sobre a relação da arte com as manifestações populares e político-sociais, depararse com sua obra, seu pensamento e conceitos sobre a relação entre cultura e sociedade. Quaisquer estudantes de teatro que comecem a trilhar o caminho da busca de referenciais sobre a cena pernambucana naturalmente se sentirão atraídos por algumas das
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1 Hermilo borba filho O documentário é o primeiro produzido no país sobre o multiartista
três da Coleção Teatro, dedicado a Hermilo Borba Filho, sob o título Hermilo no grande teatro do mundo. Com direção, roteiro, argumento e pesquisa da jornalista e dramaturga Carla Denise, o documentário de 52 minutos apresenta aspectos da produção cultural de Hermilo, sua contextualização no Brasil entre as décadas de 1940 e 1970, e sua reverberação nos dias de hoje, através de imagens e depoimentos de mais de uma dezena de parceiros, colegas de trabalho e estudiosos de sua obra. Esse registro oral, ao mesmo tempo em que expõe seus protagonistas a uma expressão imediata de suas memórias, leva-nos a refletir sobre os procedimentos que cada um utilizou para selecionar o que guardou ou descartou da relação, da aprendizagem ou do estudo sobre o trabalho do mestre. Mas não é o registro histórico fonte dessa mesma matriz? Não são os depoimentos sempre simulacros de experiências passadas a partir do nosso olhar interpretativo? Essa é a intenção primordial do trabalho de Carla Denise: recriar o universo de Hermilo por meio da imaginação de cada entrevistado.
discurso fracionado
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personalidades e conjuntos teatrais que povoam e povoarão o inconsciente coletivo de antigos, atuais e futuros teatreiros em nosso estado. Felizmente, essa curiosidade, esse fascínio, esse interesse tem se transfigurado em buscas mais aprofundadas sobre o fazer teatral de núcleos dramáticos, artistas e pensadores do ofício da representação cênica. Mas os registros feitos ainda não conseguem preencher de forma quantitativa e qualitativa a falta de documentos disponíveis ao grande público. Recentemente, a Fundação Joaquim Nabuco, através da Massangana Multimídia, acrescentou um importante documento ao acervo da história cultural de Pernambuco – o volume
O documentário – primeiro produzido no Brasil sobre a obra do multiartista – não é, e nem pretende ser, um documento definitivo sobre sua vida e obra, mas um registro que transgride a íntima e solitária relação com o texto escrito, confrontando-nos, mesmo que através da tela, com os entrevistados. O fracionamento dos discursos em nenhum momento dificulta o nosso entendimento sobre algum tema ou aspecto abordado, ao contrário, referenda e chama a atenção para detalhes sob olhares diferenciados. Cada pesquisador ou artista se apresenta de forma tranquila, natural, falando, como dizia o próprio Hermilo, “com todos os erres e todos efes”, e todos eles estão ambientados em seus contextos. Não existe a elaboração de um espaço cênico para a captação das imagens. É acolhedor e agradável vê-los entre livros (alguns desordenados), esculturas, refletores, aboletados naturalmente em cadeiras de balanço ou de pé, como quem bate um papo animado. É prazeroso ver e perceber seus gestos
corriqueiros captados pela delicada e contundente direção de fotografia de Julio Ribeiro, recheados pelas imagens do passado recifense e de fotos dos espetáculos encenados por Hermilo. E para quem pensa que o registro irá “chover no molhado”, não trazendo nada de novo sobre o seu trabalho e pensamento, os depoimentos revelam de forma generosa e direta algumas novidades sobre o universo do encenador, dramaturgo, professor, jornalista, escritor de romances, contos e novelas, pesquisador e ativista cultural Hermilo Borba Filho. O DVD lançado, no final de 2011, como homenagem aos 50 anos de criação do Teatro Popular do Nordeste – TPN (1960 – 1975), traz, ainda, como bônus, a entrevista de Hermilo produzida pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1973, tendo como entrevistadores o ator e diretor teatral Carlos Reis, o jornalista e crítico de cinema Celso Marconi e o ator e diretor teatral Marcus Siqueira. Mesmo sendo a frase aparentemente clichê – como diria Hermilo –, esse registro do SNT (um dos raros dele para o vídeo) é uma pérola da história do teatro
Através de diversos depoimentos, o filme contextualiza a obra do dramaturgo no país, entre as décadas de 1940 e 1970 brasileiro. A voz do ator e diretor José Pimentel dá vida às palavras de Hermilo no início e no fim do documentário: “Este sou eu, tanto no passado, vida, morte, como no presente que se estende pelos dias e pelas noites sem nada como o futuro inexistente, apenas inventado pela imaginação, e com certeza diferente do que espero. Merda para o futuro!”
Coleção Teatro Vol. 3 Carla denise (direção) Massangana Multimídia Documentário analisa a produção de Hermilo Borba Filho e seu legado.
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BOSSA NOVA Por onde andará Astrud Gilberto?
1-2 astrud gilberto Cantora que se tornaria ativista em defesa dos animais, posa com casaco de pele. Ao lado, está com seu então marido João Gilberto
Livro de jornalista alemão, que pretende desvendar João Gilberto, não valoriza o “sumiço” de sua primeira esposa, a cantora cool que é outro ícone do gênero texto Schneider Carpeggiani Fotos: reprodução
O jornalista alemão Marc Fischer (1970-2011) fez de Ho-ba-la-lá (Companhia das Letras) uma espécie de diário da sua fixação por João Gilberto, que o levou a gastar todas as economias numa viagem ao Brasil para que o “pai da bossa nova” cantasse, só para ele, a famigerada onomatopeia que batizaria o seu livro. Durante sua temporada no país, esse “detetive selvagem” tentou se aproximar de todos que tiveram algum tipo de relação com o músico, de Miúcha a João Donato, passando até pelo cozinheiro de um restaurante carioca que fazia o único filé à altura do altíssimo padrão de exigência do freguês famoso. Muitos toparam falar, outros permaneceram num silêncio “joãogilbertiano”. O leitor fica impressionado com o empenho de Fischer em revirar o Brasil e tudo o mais que fosse preciso para encontrar seu ídolo. Mas – como nos melhores roteiros – há um furo, uma pista que o “detetive” deixa escapar. Algo tão óbvio, que temos vontade de gritar: “Elementar, meu caro Fischer, elementar!”. O que teria a dizer sobre João Gilberto a sua primeira mulher, a cantora baiana Astrud Gilberto? Ou melhor: quem é hoje e por onde andaria Astrud? Seria ela capaz de decifrar o (ao menos para Fischer) “misterioso” significado por trás de “ho-ba-la-lá” e sua ambição de ser “o amor”, como descreve a letra da canção homônima? Astrud é citada, rapidamente, num único parágrafo em todo o livro. Fischer diz apenas que ela havia “desaparecido” nos Estados Unidos, seguindo o padrão de mistério do ex-marido. E pronto. Nada mais é dito sobre essa cantora que virou sinônimo de um eterno verão carioca com brisa amena e sorridentes
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veranistas bronzeados, como se o Brasil permanecesse aquele mesmo da virada da década de 1950 para a de 1960, com rapazes de violão em punho perambulando pelas ruas, e uma garota de/girl from Ipanema que desafia o tempo e permanece linda e cheia de graça. Resolvemos contornar a falha de Fischer, que se suicidou em abril de 2011, e procurar Astrud pela internet. A ausência de informações recentes só deixa a cantora ainda mais interessante (e não é também a “ausência” que faz João Gilberto ser o mito que é?). Há um site oficial –astrudgilberto.com –, que é tão rudimentar, que parece não ter sido atualizado há, no mínimo, 10 anos. E quando começamos a “navegação”, percebemos que isso é verdade. No item de novidades, a notícia mais “recente” é que ela entrou para o International Latin Music Hall of Fame. Em 2002! As discussões do site tratam de questões como a participação da cantora no álbum Getz/Gilberto, de 1963, dois anos antes do seu único (!) show (que se sabe) no Brasil. Há, ainda, uma entrevista de 2002, que começa com uma pergunta que diz muito sobre a personalidade em questão: “É verdade que você não dá uma entrevista há mais de 20 anos?”. Outra novidade “oficial” é seu envolvimento com a proteção aos animais. No site, há inúmeros textos de
tons dramáticos de Astrud (todos sem data) pedindo que a humanidade pare de maltratar os animais. Deixamos o site com a impressão de que a “garota de Ipanema dos gringos” virou Brigitte Bardot, a ex-garota da Riviera Francesa, ativista da causa. Em outro site, encontramos um artigo sobre os seus 70 anos, comemorados no ano passado. O autor diz que a cantora não abandonou a música “totalmente”, ainda que não dê qualquer informação de novo álbum ou noticie shows recentes. Há apenas a informação de que, nos últimos anos, ela estaria se dedicando à pintura e a reprise da história de sua dedicação aos animais. E só. De resto, o velho papo sobre sua mudança para os EUA nos anos 1960 e a divulgação da bossa nova pelo mundo. Nas imagens do Google, quase não há foto de Astrud envelhecida. A maioria se refere à cantora nos anos 1960 e 1970, muitas vezes com um penteado bolo de noiva, que parece adequado a artistas que se cristalizaram como ídolos da lounge music – a tal “música de elevador”. A musa cool da bossa nova não pode mesmo envelhecer. Seu último álbum, Jungle, foi lançado há 10 anos e é um trabalho estranho, para dizermos o mínimo. A começar pela capa, com cores e tipografia de péssimo gosto, que mostra Astrud como
uma ultramaquiada hippie, que parece não saber direito em que ano está. Mas por que usar a imagem de uma selva (jungle), se pensamos nela como uma eterna visão à beira-mar? O álbum tenta “modernizar” seu som, com um resultado equivocado. A maioria das canções é inédita, quando o melhor do seu repertório consistia num delicado rosário de regravações de standards. Há algo de interdito em Jungle e que não conseguimos localizar ao certo, como se essa Astrud não fosse mais “aquela” Astrud. Talvez inalcançável para si mesma, ela tenha resolvido se tornar dessa forma para o resto do mundo. Explicação plausível, ainda que não inteiramente satisfatória. Após a pesquisa “internética”, chegamos à conclusão de que Astrud, assim como João, não existe. Ambos são personagens de um outro tempo, de um reflexo que o Brasil teve de si mesmo, e pronto. A face ficou perdida naquele espelho para sempre. Astrud e João são “fantasmas” (ou mesmo “vampiros”, como Fischer chega a chamar o seu ídolo no livro), com raras permissões para fazer contato com o “mundo dos vivos”. Tão fantasmagóricos quanto a frustração amorosa que fez o jornalista alemão acreditar que a cura para um coração em frangalhos estaria em algum lugar da letra de Ho-ba-la-lá.
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moacir torres/divulgação
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LULA QUEIROGA Um novo e pequeno apocalipse a cada dia
Investindo na poesia lírica e crítica, compositor pernambucano lança quinto disco da carreira – que traz parcerias com músicos da nova geração da MPB texto Gabriela Alcântara
Não é de hoje que somos apresentados a uma teoria que prevê o fim do mundo, seja por catástrofe natural ou grandes guerras. Teorias apocalípticas são comuns, estando presentes também nas artes. Na música, não seria diferente. Dono de algumas das melhores composições sobre o cotidiano, e nomeado pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como o melhor compositor do ano, Lula Queiroga traz em seu recente disco, Todo dia é o fim do mundo, lançado em dezembro de 2011, um novo olhar para o tema.
Longe das letras óbvias, o radar incansável de Lula prefere captar sinais que estão à nossa frente todos os dias, em relacionamentos que nascem ou morrem, nos noticiários ou subúrbios. Inquieto, o músico tem um pensamento que passeia pelos mais diversos lados de uma história, transformando o mundo que o cerca em poesia. Assim é o processo de composição de Lula, que afirma viver em eterno estado de alerta criativo. Nesse álbum, o compositor retrata o caos cotidiano com ousadia: as letras são, na sua maioria, críticas
ou tristes, mas aliadas a melodias leves ou surpreendentemente animadas alcançam um equilíbrio poético. A contradição e a poesia se mostram presentes já na primeira impressão: na capa, uma imagem colorida de uma moça segurando balões na garupa de uma bicicleta. Para Lula, esse é o retrato de como os trabalhadores vivem o sábado. Se o mundo acaba todas as segundas-feiras, que aos finais de semana alcancemos o paraíso. O disco começa com o romance nascente de Se não for amor eu cegue (Love), que surge abrindo os ouvidos sem pedir licença, e se instala na memória afetiva do ouvinte. Love traduz o início da paixão, que vem livre, lava a alma, escorrega pela veia e vai bater na pupila. A facilidade com que Lula e sua banda – formada por Yuri Queiroga (guitarra), Lucky Luciano (baixo), Tostão Queiroga (bateria) e Thiago Hoover (guitarra) – conseguem costurar temas políticos e críticas sociais a elementos mais lúdicos fica clara na canção que segue, Os culpados, uma verdadeira crônica sobre a ocupação de carros blindados nos grandes centros. Ao
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INDICAÇÕES comentar a composição, o músico afirma que “pela primeira vez, o blindado passa por cima de tudo e todos, descaradamente. E a população aplaude, chora, joga flores. Enquanto isso, ‘procura em vão os culpados’ pela violência”. O teor humano e político repete-se em outras faixas, como Voo cego, em que acompanhamos a busca desesperada do homem que perdeu tudo na enchente, o silêncio da lama tapando os ouvidos, enquanto ele tenta achar sua amada que foi levada pela força do rio. Produzido pelo próprio Lula Queiroga e seu sobrinho Yuri Queiroga, através da Luni Produções, Todo dia é o fim do mundo é um trabalho tão instigante, que procurar faixas de destaque se torna uma tarefa difícil. A cada uma das 12 músicas, que vão do samba Unha e carne, do peso das guitarras de Yuri em Padrões de contato até a ciranda de Atlantis, o ouvinte é apresentado a um novo mundo, com cenários e personagens diferentes, mesmo que convivam tão perto um do outro, tal qual a “vida real”. E se em Dias assim (dedicada ao amigo Lula Côrtes, de quem Queiroga diz ter sofrido grande influência) dançamos alegres com o personagem que forra o chão com seus sonhos e vai decorando sua casa e alma para o encontro com um grande “amor imaginário que ocupa a casa inteira”, Dos anjos traz toda a melancolia de um romance entre um homem e um anjo caído. Um ponto forte do álbum são as inúmeras parcerias, característica que sempre esteve presente na trajetória do músico, e que aqui conta com nomes como Isaar,
Marcelo Jeneci, Marcelo Lobato e Marcos Lobato (do Rappa), entre outros. Luiza Possi entrou quando Todo dia... já estava sendo gravado e emprestou sua voz à triste Um do outro, e os gritos a Padrões de contato. Já os rapazes do Rappa afirmaram em uma entrevista que, após tocarem no disco e disponibilizarem o estúdio de sua banda para as faixas em que participam, saíram da gravação com a ideia de que precisavam renovar sua música.
MERGULHO
Outro traço marcante é o poder de imersão que Lula tem com seus projetos. Publicitário, produtor e cineasta, ele afirma que aprendeu com o estilista Ronaldo Fraga o valor do mergulho no próprio trabalho. “Tudo que eu olhava tinha o disco. O fim do mundo está rolando por aí, eu não falo de aquecimento global, e, sim, da agonia diária das rotinas, dos mendigos, da tristeza. Mergulhei de cabeça nisso.” Patrocinado pelo Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura do Recife, e gravado nos estúdios da Luni, o cuidado com a obra fica evidente desde as canções até a arte do disco, que valoriza a ideia geral do projeto. Com minimalismo e atenção ao que passaria despercebido aos olhos cansados e acostumados à violência “natural” dos grandes centros, Lula distancia-se dos vulcões e tsunamis, apresentando um trabalho que encontra identificação com vários públicos. Para ele, o fim do mundo anunciado nos telejornais diários é desnecessário e alarmista. Como diz a faixa-título: “Não tenha pressa, que o fim não é agora (...). Todo dia tem que respirar mais fundo”.
MPB
LUZIA Luzia Tratore
Na sua estreia, a intérprete independente conseguiu recrutar um time forte de colaboradores. Eles vão de Marcelo Jeneci a Ivan Lins, passando por Carlinhos Brown. O último, aliás, cedeu o seu estúdio, em Salvador, para as gravações do álbum que leva o nome da cantora. Luzia, o disco, é muito agradável e bem-feito, mas a cantora ainda vai ter muito trabalho para se destacar frente aos rostinhos bonitos da “Nova MPB”. Escrever letras talvez ajudasse.
R&B
THE ROOTS Undum Def Jam
?uestlove e cia. estão de volta, e nem faz tanto tempo assim: só nos últimos dois anos foram dois álbuns (sendo um de versões com John Legend, o irresistível Wake up!). Conceitual, Undum conta a história de Redford Stevens, um traficante cuja existência é abreviada pelo seu estilo de vida. As letras barra-pesada podem remeter aos velhos e bons tempos da banda, quando escreviam basicamente sobre a dureza da vida. Se a verve volta às origens (isso não é ruim), musicalmente, a banda continua avançando: Undum fisga na primeira audição.
FREVO
PaRAQUEDISTA REAL Quem me chamou paraquedista... Independente
Autointitulado “primeiro disco do carnaval de 2012”, Quem me chamou paraquedista é o primeiro registro fonográfico do bloco homônimo, que há mais de 10 anos sai das ruas do Poço da Panela, bairro nobre da Zona Norte recifense. Apesar da aparente despretensão, o disco tem uma premissa interessante: ao invés de exaltar o passado, celebra a alegria e o amor, entre sopros e cordas. O bloco já nem é tão novo, mas as ideias ainda estão frescas.
ERUDITO
SÉRGIO FERRAZ Dançando aos pés de Shiva Fábrica de sonhos
Primeiro CD solo do violinista e compositor que ano passado tinha gravado o elogiado álbum Segundo romançário, em parceria com Antúlio Madureira. Dançando aos pés de Shiva (referência a um deus indiano) traz 12 faixas, todas de inspirações místicas, evidenciadas por títulos como A última batalha na terra e Encontrando a flor de lótus. Espiritualidade à parte, o disco ainda mostra influências do indiano Ravi Shankar, do improviso jazzístico e do movimento armorial.
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sem título/josé spaniol/reprodução
Leitura
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artes plásticas Confronto entre a crítica e a produção contemporânea
1 Instalações O autor critica a flexibilização do conceito de “arte”, que parece ser o único tema de interesse dos artistas contemporâneos
Em Arte ou desastre, ensaísta e poeta Ângelo Monteiro discute em diversos ensaios rigorosos a relevância das experiências artísticas atuais TEXTO Eduardo Cesar Maia
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O tipo de crítica cultural e artística realizada por Ângelo Monteiro em Arte ou desastre (Ed. Realizações, 264 págs. R$ 39), livro que reúne diversos ensaios do poeta e ensaísta alagoano, não é comum no ambiente intelectual brasileiro dos últimos anos. Tratase de uma crítica eminentemente personalista e axiológica: uma indagação direta não somente voltada a aspectos teóricos, formais ou temáticos das obras, mas um rigoroso exame sobre a relevância (ou falta dela) das experiências artísticas atuais e, ainda, sobre a maneira como a arte contemporânea enfrenta (ou mais bem evade, segundo ele) os problemas do nosso tempo. Obviamente, falar em “arte contemporânea”, fenômeno demasiado abrangente, supõe uma generalização grande e perigosa. Na verdade, o autor dirige sua metralhadora verbal fundamentalmente contra a chamada “arte conceitual” e suas derivadas, principalmente as chamadas “instalações”, nas artes plásticas; as “manifestações performáticas”, na literatura; e o “ruído”, na música. O tom geral do livro é de profundo pessimismo cultural, vindo de alguém que reconhece, na tradição e na história das artes, valores que, para ele, mereceriam ser preservados, mas que teriam sido abandonados no meio do caminho. Para o autor, chegamos hoje a uma espécie de estado de anomia nas artes, a uma barbárie cultural, que tem como causa principal justamente a separação total, preconizada inclusive por muitos teóricos e artistas contemporâneos, das esferas artísticas e a dos valores estéticos e éticos. Ângelo Monteiro argumenta que a arte tem perdido, paulatinamente, seu ideal de exemplaridade, seu papel orientador na hierarquia da cultura e da vida humana em comunidade. Na contramão dessa tendência, Monteiro começa por resgatar os sentidos dos termos gregos techne e poiesis, no intuito de enfatizar a prioridade do fundamento criativo e a busca pela excelência como centro de toda atividade verdadeiramente artística, antes do mero construtivismo conceitual. O
tom do livro é invariavelmente de reproche e, novamente, percebese que seu alvo principal é a arte (antiarte) duchampiana, ainda que nem sempre fique clara nesses ensaios a especificidade das obras a que Monteiro faz referência. A crítica do autor é lançada contra um tipo de arte que se fundamenta num jogo renitente e incansável de autorreferência e de infinita redefinição do seu próprio significado: quer dizer, flexibilizar e expandir o conceito de “arte” parece ser o único tema que interessa a tais artistas e seus entusiastas teóricos. Mas a arte – e Ângelo Monteiro percebe perfeitamente – não nos pede somente definições, pedenos compreensão, porque trata basicamente da dimensão qualitativa das coisas, que supera as simples abstrações teóricas. Hoje em dia, nosso uso linguístico já aceita como arte praticamente qualquer coisa, portanto
Nos ensaios do livro, o autor defende a importância da tradição e do cânone no processo de valoração artística já não interessa – é tema carente de importância – ficar discutindo a respeito do status ontológico de uma determinada obra, se é ou não é arte: a crítica deve buscar o relevante, e separá-lo do irrelevante, do banal. Outro ponto fundamental que permeia os ensaios do livro se refere à crise das noções de sujeito e indivíduo na cultura contemporânea e, com isso, ao enfraquecimento dos valores humanistas tanto na filosofia como na arte. A ideia de arte como forma de “recriação” individual, como formação pessoal, como construção e aprimoramento do homem, parece já não ter espaço algum nos dias de hoje. No mesmo sentido, a concepção de “individualidade criadora” foi combatida por diversas correntes teóricas do século passado, baseadas na ideia de que o autor é um mero construto ideológico de uma sociedade burguesa decadente
e que qualquer manifestação da individualidade é uma ação tirânica, seja na arte ou na crítica. Ângelo Monteiro aponta, mais de uma vez, a esterilidade cultural que subjaz à aceitação dessa forma de pensar a arte e a filosofia.
VALOR ARTÍSTICO
O autor de Arte ou desastre, de forma erudita e arguta, basicamente defende a importância e a referência da tradição e do cânone no processo de valoração artística. Um ponto, no entanto, merece atenção: Monteiro, por vezes, parece emprestar a tais valores um caráter universal, um fundamento transcendental e, portanto, não histórico e não contingente. A tradição, porém, não é algo estático, transmitido de forma imutável de uma a outra geração, mas, ao contrário, tem uma dinâmica interna motivada por conflitos. Assim, só no horizonte das histórias de nossas tradições é que podemos compreender nossos compromissos e preferências estéticas e éticas. O valor artístico, pois, finca suas raízes através não da determinação autoritária de um cânone fixo e imutável, mas do diálogo e das polêmicas; da confrontação permeável e sensível desse cânone e de seus valores com os da cultura presente; é a mobilidade do cânone e a sua inesgotável adaptabilidade que garantem a sua aparente eternidade através das gerações, o que depende da mediação igualmente permeável e sensível dos críticos. Os ensaios de Ângelo Monteiro, ainda quando discordamos de alguns pontos de sua argumentação, fazem jus em todo caso a um dos ideais inalienáveis da crítica: o da confrontação, da não aceitação dos valores já estabelecidos. São sugestivos, polêmicos, arriscados: cumprem sua função intelectual porque a crítica de arte não tem que buscar certezas últimas, tem que propor valores, ainda que saibamos que nunca chegaremos a um consenso universal sobre eles. E em uma época de desorientação como a nossa, o papel do intelectual como crítico ganha relevo. Toda crítica é uma espécie de confronto entre as obras realizadas e a vida presente e suas exigências: uma petição de pertinência que a vida concreta faz à arte.
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PINÓQUIO Um molde feito da humanidade
Edição de luxo do clássico infantil italiano resgata a história do boneco impertinente e transgressor Texto Gianni Paula de Melo reprodução
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Para aqueles que seguem o
pensamento de Rousseau, a criança seria essencialmente pura, pois os homens, na perspectiva do teórico, nascem bons e a sociedade é a responsável por corrompê-los. Quando olhamos aqueles projetinhos de seres, angelicais e aparentemente inofensivos, inclinamo-nos a pensar dessa maneira, mas é preciso lembrar que a natureza remete àquilo que é instintivo. O bebê, por exemplo, apenas entende a sua fome, o seu sono e as suas dores, não enxerga o Outro.
É, então, em contato com o mundo, no processo de aquisição de cultura, que alguma moral e senso de solidariedade se estabelecem. Pinóquio, o famoso boneco de madeira criado pelo autor italiano Carlo Collodi, carrega em si justamente essa complexidade da infância. Por um lado, é afetuoso e ingênuo – ainda está se familiarizando com os códigos e as cobranças do convívio em sociedade –, por outro, apresenta os traços de egoísmo e individualismo típicos do humano. Estamos diante de um clássico que se inscreve no campo da literatura infantil mais tradicional, aquela que se compromete com o direcionamento moral do leitor, mostrando os territórios do certo e do errado. No entanto, esse percurso é feito de forma bastante singular e complexa, pois, já de saída, o personagem principal não é a materialização do bem ou do mal, ele representa a ambiguidade das crianças, o conflito entre os quereres e as obrigações, as vontades e as necessidades. Sua trajetória, aliás, é igualmente vacilante. Pinóquio é uma sequência de erros, arrependimentos, promessas de melhora, não cumprimento de promessas, e, afinal, quem de nós não é exatamente isso? Como sugeriu Benedetto Croce, “a madeira com a qual Pinóquio foi moldado é a própria humanidade”. Publicado semanalmente no Giornale per i bambini, o primeiro capítulo da obra circulou na Itália há pouco mais de 130 anos, no período em que o país difundia o discurso de unicidade da nação. Naquele momento, Collodi dá vida ao boneco impertinente, porém transgressor, que paga o preço de todos os seus atos inconsequentes. Uma criatura na contramão da conformidade, a princípio destinada a morrer enforcada no fim da narrativa, pois era nessa passagem que o escritor pretendia encerrar a história. A popularidade de Pinóquio, no entanto, obriga que ele viva e, em 1882, o editor do periódico pediu a Collodi que desse continuidade às aventuras do personagem. É curioso perceber que, mesmo depois de atravessar o século, as preocupações de Gepetto com a formação de seu filho são as mesmas de grande parte dos pais de hoje.
No livro, o maior esforço do pai é o de despertar o boneco para os estudos e o trabalho, por isso o ócio é apresentado como algo negativo e completamente condenável. No entanto, Pinóquio se interessa apenas por uma “profissão”: “a de comer, beber, dormir, me divertir e levar o dia inteiro na vagabundagem”. Sua indisposição para a escola é tanta, que, em determinado momento, ele foge para o País dos Folguedos, onde não existem nem livros, nem professoras. Nesse tópico, também são recriminadas as tentativas de ganhar dinheiro fácil, pois, segundo um papagaio que zomba da inocência e ambição de Pinóquio, “para se juntar honestamente algum dinheiro é preciso ganhálo ou com o trabalho das mãos ou com o engenho da mente”. O autor utiliza ainda a experiência da fome para transmitir diversas lições
Mais de um século depois, as angústias de Gepetto com a formação de seu filho são as mesmas de grande parte dos pais sobre o dever de valorizar o que se tem, a postura do não desperdício e a necessidade de se alimentar não só do que se gosta – questões tratadas na ordem do lúdico e carregadas da lógica controversa de que os pais sempre sabem o que é o melhor para você. Mas, certamente, na maioria das vezes, eles sabem. Outra temática atemporal no processo educativo dos filhos é a mentira, ela também está presente na narrativa de forma marcante e, até hoje, as crianças conhecem muito bem a retaliação destinada às pessoas mentirosas: o nariz cresce.
ESTÉTICA
O escritor Italo Calvino, em 1981, escreveu para o jornal La Reppublica sobre a obra de Collodi e ressaltou exatamente essa “capacidade de sobreviver indene às mutações do gosto, das modas, da linguagem, dos costumes”. Isso porque, além de trazer algumas questões
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Leitura centrais da formação das crianças, como as já citadas, o livro abriga verdadeira qualidade estética. O texto de Calvino destaca três componentes que fazem de Pinóquio um livro memorável. Para ele, a história bebe na fonte do romance picaresco, sendo um “livro de vadiagem e de fome, de hospedarias malfrequentadas e esbirros e forcas”, algo que ele considera raro na tradição literária italiana. Além disso, a narrativa apresenta traços do romantismo fantástico, pois está repleta de imagens expressivas,
seja na aparição de personagens peculiares, seja nas terras percorridas pelo rebelde protagonista. Por fim, Calvino afirma ainda que “Pinóquio é um dos poucos livros de prosa que, pela qualidade de sua escrita, convida à memorização de palavra por palavra, como se fosse um poema em versos”. Esse texto de apreciação do livro, escrito na época de seu centenário, tornou-se o posfácio da edição limitada lançada recentemente pela Cosac Naify. Nele, o autor confessa, ainda, que quando começou
a escrever, considerava Pinóquio um modelo de narrativa de aventuras. O poeta Ivo Barroso, responsável pela tradução dessa edição especial da grande obra de Collodi e que também já traduziu várias publicações de Italo Calvino, reconhece a precisão do estilo e a ironia de certas frases como algo comum entre os dois escritores. Em mais um trabalho louvável de recriação de um clássico, a Cosac Naify oferece a Pinóquio um projeto gráfico sofisticado e aposta em uma técnica do final do século 19, chamada cliché verre, para a criação das imagens. O procedimento de ilustração consiste em chamuscar uma placa de vidro com uma vela e, posteriormente, desenhar sobre essa superfície utilizando um objeto pontiagudo. Isso funcionará como o negativo do desenho, a partir do qual serão impressas as imagens. Devido à magia presente do começo ao fim da história, os 36 capítulos do livro exigem, no mínimo, uma ilustração para cada parte, e para esse ofício a editora convidou o artista Alex Cerveny. Na disposição de textos e figuras da narrativa, houve a preocupação em demarcar o espaço de tempo entre o primeiro fim estabelecido para Pinóquio e o seu recomeço, passagem que equivale aos capítulos 15 e 16. Da técnica, que é contemporânea ao lançamento original do livro, resultam imagens aparente simplicidade, porém significativamente sugestivas e oníricas. Antes mesmo das primeiras páginas, temos acesso a um mapa que nos mostra todas as terras fantásticas percorridas por Pinóquio; da Enganatrouxas à Ilha das Abelhas Operárias, é apresentada a cartografia do maravilhoso universo do personagem. Um universo que, aliás, é muito mais complexo do que sugere a apropriação da Disney ou as várias adaptações simplistas do texto.
Carlo Collodi As aventuras de pinóquio Cosac Naify Edição limitada aposta num projeto sofisticado para contar a história do famoso boneco.
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INDICAÇÕES ANTOLOGIA
IVANA ARRUDA LEITE (Org.) 60tão Edith
Quando chegou aos 60 anos, a escritora olhou ao redor e percebeu que vários amigos estavam com o mesmo tempo de estrada. Achou importante, então, reuni-los em um livro que fala da experiência de chegar a uma idade tão simbólica. Entre as figuras presentes na antologia, estão José Castello, Laerte, Chacal e Maria Rita Kehl.
CONTOS
BRUNO BARRETO GOMIDE (Org.) Nova antologia do conto russo (1792 -1998) Editora 34
A obra faz parte do momento de interesse pela literatura russa no Brasil. A coletânea traz contos escritos em períodos diversos, reunindo clássicos, como Tchekhov e Gógol, e nomes que têm grande importância para a cultura russa, mas que ainda são desconhecidos por aqui, como Karamzin e Platónov.
POEMAS
CONTOS
Dobra Literatura
Iluminuras
FABRÍCIO MARQUES A fera incompletude A eterna luta do poeta contra a grandeza do mundo e da vida que, entre perdas e ganhos, sempre resulta em literatura, com suas mais variadas ramificações e formas, está presente nesta coletânea de Marques. Na obra, o mineiro vai desde o poema minimalista até a reportagem, experimentando traços de outros gêneros. Destaque para Sem fôlego e Fôlego-fátuo.
SIDNEY ROCHA O destino das metáforas Escrever sobre a morte, com palavras doces, é o desafio abraçado por Sidney Rocha neste livro. O autor alcança seu objetivo com sucesso, surpreendendo o leitor a cada conto, com histórias que seriam facilmente musicadas ou adaptadas para o cinema. Escrito de forma direta e simples, o livro de Rocha seduz seu público com pequenas tragédias cotidianas.
Jack Kerouac
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A vida do autor de On the road vira HQ
A história em quadrinhos Os beats, lançada no final do ano passado, resgatou com detalhes a trajetória dos líderes do movimento que sacudiu a sociedade norteamericana dos anos 1950. Tendo como principal colaborador Harvey Pekar, uma lenda dos quadrinhos, o título agradou aos que desejavam
conhecer um pouco mais sobre o tema, mas deixou insatisfeitos os que gostam de narrativas gráficas ágeis, dinâmicas, criativas. Não é o caso de Kerouac, graphic, desenhada e escrita pelo brasileiro João Pinheiro, publicada com o selo da Devir Livraria. Quem se dispuser a ler a obra vai se deliciar não apenas
com o texto, mas também com a arte. Além de preciosas informações sobre Jack Kerouac, autor de On the road, a história também agrada do ponto de vista estético. São quadrinhos dos bons, com roteiro correto e desenhos de qualidade. Mesmo optando por uma narrativa linear, flagrando a vida
de Kerouac desde a infância até o final dos anos 1960, a história consegue ser original: é ágil, criativa, tem personalidade e narrativa dinâmica, num ritmo bem adequado à vida e ao pensamento de um dos mais irrequietos e produtivos líderes beatniks. O aproveitamento dos retroquadros, com planos amplos, diagramação arrojada, ajuda o desenrolar da história, dotando-a de liberdade e dando asas às frases e ideias de um dos mais loucos autores norte-americanos. O desenho em tom noir imprime personalidade ao álbum, que nos remete aos devaneios dos clubes de jazz, das rodovias onde os jovens metiam o pé na estrada, das amizades e amores de Jack. E também dos seus sonhos, incertezas, dúvidas, dores. João Pinheiro consegue, portanto, a exemplo do que pretendia o próprio Kerouac com seu trabalho, fazer com que o enredo transcorra sem dificuldades, sem amarras. DANIELLE ROMANI
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márcia camargos noventa anos depois daquelas Vaias... Inserida nas comemorações do Centenário da Independência, em pleno mês do Carnaval, a Semana de 22 vinha agitar o universo artístico e literário da Paulicéia de quase 600 mil habitantes. Com a dupla Mario e Oswald de Andrade à frente, seus idealizadores articularam um evento que significou uma mudança de paradigma nas artes plásticas, na literatura e na música, inaugurando ousadas maneiras de expressão artística, livres das amarras da estética então vigente. A imprensa, que desconfiava do festival, logo tratou de lhes dar um rótulo. Foram apelidados de “futuristas”, embora em comum com Marinetti tivessem apenas as noções de velocidade, da fragmentação dos sentidos exacerbados pelas inovações tecnológicas que transformavam a fisionomia dos centros urbanos, operando mudanças decisivas nas sociedades das metrópoles emergentes. Os modernistas não incorporavam o belicismo e a higienização pela guerra, proposta no Manifesto futurista, trazido por Oswald de Andrade em sua primeira viagem à Europa, em 1912. Subvencionados pelo comitê liderado por Paulo Prado, da alta burguesia cafeeira, projetaram três saraus de conferências, audições musicais e leitura de poemas nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro, no palco do Theatro Municipal. Cerca de 100 obras, incluindo maquetes, desenhos arquitetônicos, esculturas em bronze, mármore e madeira, além de óleos, desenhos, colagens e aquarelas ficaram expostas na entrada durante a semana inteira. Desnecessário dizer que a imponência do edifício de estilo eclético e detalhes decorativos neoclássicos, erguido por Ramos de Azevedo, em 1911, contrastava com a tônica irreverente
O modernismo da Semana de 22, que jamais superou sua ambiguidade, deixa como legado maior a antropofagia dos vanguardistas, acusados de chocar a elite endinheirada com seus versos de pé-quebrado, quadros sem perspectiva e música dissonante. Anticonvencional e criativa, a Semana de 22 propunha novos olhares sobre antigos repertórios, deixando a zona de conforto rumo a experimentações no âmbito do
desconhecido e do incerto, causando desconforto no público habituado a uma arte bem-comportada e previsível. Nesse contexto, e embora fossem financiados justamente pela classe dirigente, ansiosa por colocar São Paulo no mapa cultural do Brasil, seus organizadores não estavam interessados em receber aplausos de legitimação de uma plateia tradicional a quem preferiam escandalizar. Correu na época o boato de que Oswald de Andrade havia contratado estudantes do Largo de São Francisco para puxar o coro do contra, no final convertido em chuva de legumes atirados do alto das galerias, os assentos mais baratos, também conhecidos como torrinhas, fechados
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1 participantes Com organização improvisada, a Semana de 22 deixou alguns nomes importantes fora do grupo que ocupou o Theatro Municipal
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na última noite para evitar a repetição da façanha. Se o objetivo era chamar a atenção, a tática surtiu efeito. “Caíram como araras. Gritaram. Insultaramnos. Vaiaram-nos”, confirmaria Mario de Andrade, numa carta a Menotti Del Picchia, publicada em 23 de fevereiro, no Correio Paulistano, tribuna preciosa para a divulgação e valorização das ideias modernistas.
ESQUECIDOS
Assim, graças à brilhante jogada de marketing de Oswald, a parcela da imprensa – até então indiferente – viu-se obrigada a comentar, nem que fosse para criticar, como no caso de A vida moderna, que, em março daquele ano, apontava as injustiças cometidas
contra inúmeros artistas excluídos da Semana. De fato, muitos ficaram de fora. Alguns citam Seelinger, José Maria dos Reis Jr., Gastão Worms e Quirino da Silva, bem como Eliseu Visconti, Vicente Amoedo, o carioca Artur Timóteo, um verdadeiro fauve, além do mineiro Belmiro de Almeida, autor do precioso realismo de Arrufos. Tampouco se sabe por que Tarsila do Amaral, então na Europa, não enviou algum quadro, já que Victor Brecheret, em Paris, à época desfrutando de uma bolsa do Pensionato Artístico, compareceu com nada menos do que 12 esculturas. No campo da literatura, ausências notórias foram as de Monteiro Lobato e de Juó Bananére, responsável por
esquetes cômicos em O Pirralho. Na arquitetura, faltou Victor Dubugras, que, em 1907, havia construído a estação ferroviária de Mairinque, utilizando o arrojado concreto armado num estilo vinculado aos “modernos” austríacos e alemães originários da Sezession. Também foram esquecidos chargistas como Voltolino, J. Carlos e Belmonte. Porém, mais do que um saldo negativo, tais ausências denotam o traço de improviso e liberdade do festival conhecido como Semana de 22. Um movimento espontâneo e iconoclasta que, desde o início, pulsou em meio a forças opostas, oscilando entre o nacional e o estrangeiro, o popular e o erudito, a vanguarda e o consagrado, a revolução e a ordem. Noventa anos depois daquelas vaias, o modernismo inaugurado pela Semana de 22, que jamais superou sua ambiguidade, deixa como legado maior a instituição da antropofagia, uma das respostas mais lúcidas para a questão de como assimilar o estrangeiro sem cair na imitação nem se tornar vítima do modelo importado. Conjugando o léxico das vanguardas europeias com a pujança das nossas tradições populares, alcançou o desejável equilíbrio entre enraizamento nacional e pertencimento universal.
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Luciana Cavalcanti Um “banquete” regado à dança
Luciana Cavalcanti
é bailarina, jornalista e professora do Diverso Espaço Cultural ricardo moura
No diálogo de As leis, última obra de Platão (428-348 a. C), a principal discussão entre os personagens do livro versa sobre as melhores leis para uma cidade recém-fundada, entre as quais a dança é citada como forma essencial de educação. Bem, já faz “algum tempo” que tal questão foi levantada, porém o tema continua tão atual quanto intrigante. Educa-se através dessa arte? Não é difícil de imaginar a sua importância na vida do homem... A dança é considerada, através de registros históricos, uma das mais antigas formas de expressão artística do ser humano. O “bichohomem” executa esses movimentos desde os primórdios para celebrar o que tem significado para ele (momentos e encontros, vida e morte). Dança para se comunicar com o outro, para descobrir no outro sobre si mesmo. Então, essa técnica nasce e se desenvolve junto com o homem, evoluindo em conceitos, nos acontecimentos culturais e sociais. Frevo, maracatu, mambo, xaxado, samba, baião, tango, e muitas outras... Cada uma delas traz em si o sentir de um povo num determinado período da sua trajetória, o diálogo dessas pessoas com o seu momento. Os movimentos característicos e a técnica decorrem desse sentir. As danças foram deixando em suas raízes a possibilidade, para quem veio depois, de apreciá-las, produzi-las e contextualizá-las. Tais ações remetem aos três pilares da proposta triangular de ensino, elaborada pela arte-educadora carioca, criada em Pernambuco, Ana Mae Barbosa. Hoje, quando falamos em aula de dança, estamos falando em educação. Sim, a dança é uma área de conhecimento e tem o papel de acabar com o distanciamento entre o aprendizado intelectual e o aprendizado motor. O conhecimento se faz pelo corpo, como já disse Espinoza (1632-1677). Se o indivíduo não cultiva todas as potencialidades do seu corpo, ele não vai cultivar todas as potencialidades da sua mente. É uma arte que educa os sentidos. E é através deles que o ser humano percebe e reconhece outros organismos e as características do meio em que vive. Educar os sentidos é preparar o homem para a vida em sociedade. A técnica tradicional de ensino da dança se ocupa dos domínios dos movimentos para os seus determinados estilos. Mas dominar o exercício físico isolado não reforça a consciência do movimento. Apreciar, conhecer e dançar abrangem mais do que robotizar corpos. Educa-se pela motivação, pela descoberta. Um bailado que seja construído pelos sujeitos que o praticam. Que não seja reprodutor de um monte de “passos”, mas transformador. Que possua significado no corpo-agente. Parafraseando o educador Paulo Freire, ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam, mediados pelo mundo. Os professores de dança são facilitadores dessa mediação. Então, que eles provoquem e não imponham, que eles viabilizem e não tragam pronto, pois cada pessoa guarda em si o repertório para o seu próprio desempenho.
con ti nen te
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