Continente #135 - Bendita preguiça!

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# 135

É só chegar

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BENDITA PREGUIÇA!

9 77180 8 755003

www.revistacontinente.com.br

O PECADO QUE COMEÇA A GANHAR STATUS DE VIRTUDE

#135 ano XII • mar/12 • R$ 11,00

CONTINENTE

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Foto: Rafael Medeiros

Foto: Miguel Igreja

MAR 12

Foto: Banco de Imagens MTur

Foto: Chico Barros

Pernambuco é um centro de possibilidades turísticas para todas as famílias. De Fernando de Noronha a Porto de Galinhas, as praias do nosso Estado oferecem uma combinação de sofisticação e tranquilidade como em nenhum outro lugar. Venha conhecer grandes resorts sem perder a experiência deliciosa que é sentir os pés na areia. Venha conhecer Pernambuco. É só chegar.

ESPECIAL O FEMINISMO ACIDENTAL DAS CANGACEIRAS

E MAIS JOCY DE OLIVEIRA | IMPRENSA NANICA | EDU LOBO | LIMA BARRETO | A MODA DE PIETRO TALES | JUAZEIRO DO NORTE | WOODCUT NOVELS 01/03/2012 14:57:41


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reprodução/maria bonita (1972), de carybé

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aos leitores “Acorda, Maria Bonita/ Levanta, vai fazer café/ Que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé”. Ao contrário do que faz supor o começo da marchinha de 1932, a companheira de Lampião não teria o perfil clássico da dona de casa, muito menos seria subserviente no relacionamento amoroso. Estudos indicam uma posição igualitária da sertaneja Maria Gomes de Oliveira na relação com Virgolino Ferreira. O comportamento da jovem que, aos 19 anos, largou marido, família, casa e a submissa vida doméstica para viver entre os cangaceiros, em plena década de 1930, antecipou em alguns anos o que viriam a ser as práticas feministas no nordeste do Brasil. É o que defendem os pesquisadores consultados na matéria sobre o assunto, publicada na Continente deste mês e assinada pela repórter Danielle Romani, que fez o levantamento de informações em antigas e novas publicações sobre o cangaço, com ênfase na presença de mulheres nos bandos e destaque para Maria Bonita, Dadá e Sila. Além de rever a presença das mulheres no cangaço, a revista também dá relevo a um comportamento vivenciado por todos, ainda que nem sempre com orgulho: a preguiça.

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O sétimo pecado capital é tema abordado pelo jornalista Gilson Oliveira, que foi em busca dos porquês históricos de nos envergonharmos de sentir aquela moleza, uma vontade de não fazer nada... Observando como o ócio tem sido encarado pela sociedade ao longo do tempo, ele aponta que, hoje, a “danada” da preguiça pode ser muito “bem-vinda”, desde que filósofos, economistas, sociólogos e a prática profissional vêm demonstrando o quanto “dar um tempo” e “praticar o nada” podem ser saudáveis, vantajosos e necessários. Dando suporte à argumentação do jornalista, reunimos à discussão do tema uma entrevista bastante elucidativa com a filósofa Olgária Matos, um artigo do professor Manoel Ricardo de Lima sobre o caráter nacional, associado ao preguiçoso Macunaíma, uma crônica bem indolente do escritor Pedro Salgueiro e uma reportagem sobre como algumas empresas têm levado o ócio a sério, a ponto de criar salas de cochilo em suas dependências. Como afirmou o filósofo Gerd Bornheim: “A revolução que se avizinha, a grande revolução ocidental, depois da Revolução Industrial, é a Revolução do Ócio”.

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sumário Portfólio

Pietro Tales 06 Cartas 07 Expediente

+ colaboradores

08 Entrevista

Jocy de Oliveira Pianista, que lança novo DVD de música erudita, comenta sua convivência com Stravinsky

12 Conexão

Museu da Pessoa Site estimula usuários a compartilharem, virtualmente, suas experiências

64

Matéria Corrida José Cláudio Sobre versos

74 Sonoras

Edu Lobo Músico dá início à turnê de novo álbum Tantas marés, com apresentação no Recife

Clara dos Anjos Livro de Lima Barreto ganha reedição da Penguim, com textos de críticos como Sérgio Buarque de Holanda

20 Balaio

36 Mídia

86 Artigo

Alternativos Novos estudos abordam a “imprensa nanica”, que marcou as décadas de 1960 e 1970 no país

56 Perfil

Pedro Nunes Advogado e auditor aposentado escreve romances a partir de histórias do Pajeú e do Cariri

14

78 Leitura

84 Palco

A Paris de Sempé Cidade sedia exposição com mais de 300 originais desse cronista visual

Primeira coleção do estilista usa tecidos nobres e pedrarias para explorar volumes e texturas, com referências mais urbanas e fuga a regionalismos

Estudo Professor francês observa a macroestrutura da cena teatral europeia entre 1860 e 1914 Cezar Migliorin Um dia entre Khan el Khalili e Tahrir

88 Saída

Guilherme Carvalho Praticando a não violência

60 Cardápio

Menus Chefs consultores esmiúçam o processo de montagem da carta dos restaurantes

Viagem

Juazeiro do Norte Os romeiros que acorrem todos os anos à cidade, para prestar homenagens ao Padre Cícero, cumprem uma espécie de via crúcis pela Ladeira do Horto

50 Capa imagem preguiça na cozinha, de louis léopold boilly

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Especial

História

Malvisto durante séculos, como um comportamento reprovável, o ócio tem sido revisto no âmbito filosófico e – quem diria – no setor produtivo

Estudos sobre Maria Bonita e outras mulheres que aderiram ao banditismo apontam para uma relativa igualdade entre os sexos dentro dos bandos

Visuais

Claquete

Precursoras das HQs, essas narrativas, construídas em xilogravuras e sem palavras, transitam entre as artes visuais e a literatura, sendo retratos de uma época

Clássicos da literatura infantil, como A Bela Adormecida e Branca de Neve ganham novas versões, que têm como público alvo adultos e adolescentes

Preguiça

22

Woodcut novel

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Cangaço feminino

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Mar’ 12

Adaptações

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cartas Silvério

Atores Mais uma vez a Continente cumpre o seu papel de promover e registrar nossa cultura, ampliando o conhecimento dos seus leitores. Excelente a ideia de assinalar o trabalho dos artistas cênicos que vêm se destacando no cenário nacional. A resenha sobre o documentário a respeito da vida e obra do mestre Hermilo Borba Filho me motivou a adquirir o DVD, que corresponde exatamente ao exposto na revista. Feliz e agradecido pela dica. ANTONYO LUSTOSA RECIFE – PE

Através da edição n° 42, junho/2004, da Continente, tomo conhecimento, por crônica de Michele Assumpção, do sucesso da turnê musical de Silvério Pessoa na Europa. Inda que agora, oito anos após, uma boa notícia e uma boa leitura. Aí está um sinal, de fato, da boa cultura! Brilhante texto da jornalista, colossal desempenho do músico Silvério e banda na Europa, uma boa revista. Ainda devem passar mais oito anos, ao menos, para essa matéria começar a “esfriar”. WALTER EUDES LIMOEIRO – PE

Desenhos Queremos agradecer, de coração, pela bela reportagem publicada na edição nº134 (fev/2012) da Continente, sobre nosso projeto de elaboração de cadernos de desenhos, em parceria com o arquiteto espanhol José Maria Plaza Escrivá. O espaço que recebemos foi amplo, o texto e as fotos estão ótimos; enfim , creio que

colaboramos com os propósitos artísticos da revista. Estamos, assim, contribuindo para o conhecimento do nosso riquíssimo patrimônio cultural e despertando a consciência das pessoas para que se estabeleça uma relação afetiva com a paisagem urbana. Adiantamos que fomos convidados a participar de outra exposição no museu da Capela Dourada, na Semana Nacional dos Museus, e também de um evento de arte sacra que ocorrerá em outubro deste ano. Além disso, já começamos a trabalhar no projeto gráfico do próximo caderno de desenhos São Luís: ruas, becos e sobrados de Lisboa no Brasil, além de seguir com o tema dos desnudos. SANDRA PARO RECIFE – PE

POR E-MAIL Crônica Muito boa a revista, deveras, que nos retira do mal-estar cultural dos dias atuais. Excelente o artigo sobre Paulo Mendes Campos, e outros! CARLOS GUILHERME MOTA

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

Ana Paula Portella

cezar Migliorin

Manoel Ricardo de Lima,

Pedro Salgueiro

Doutoranda em Sociologia na UFPE e pesquisadora na área de criminalidade e segurança.

Doutor em Comunicação e Cinema. É pesquisador, professor e ensaísta.

Poeta e professor de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Escritor, vencedor de prêmios literários, como o da Radio France Internationale – RFI.

e MAiS Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. carlos eduardo Amaral, jornalista, mestre em Comunicação pela UFPE e crítico de música. eduardo Sena, jornalista. Germano Rabello, jornalista. Guilherme carvalho, biólogo e gerente de campanhas da Humane Society International (HSI) no Brasil. Marcelo Abreu, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Katmandu. Marcelo Robalinho, jornalista e doutorando em Comunicação em Saúde, na Fiocruz. Schneider carpeggiani, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutorando em Teoria da Literatura.

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JOCY DE OLIVEIRA

“Ainda penso que compor é inventar” Pianista que trabalhou ao lado de nomes fundamentais da música erudita do século 20 lança DVD do espetáculo concebido a partir de sua convivência com Stravinsky texto Carlos Eduardo Amaral

con ti nen te

Entrevista

Nos últimos 25 anos, Jocy

de Oliveira construiu um anticonvencional catálogo de obras de câmara e espetáculos multimídia, no qual nada se observa em termos de contraponto, harmonia, ritmos regulares e estruturas tradicionais. Fragmentos sonoros, dissonâncias, texturas “roucas” e indeterminismo formal caracterizam o estilo de composição da curitibana radicada no Rio de Janeiro e moldam as peças que concebeu como interlúdio para o espetáculo Revisitando Stravinsky, lançado recentemente em DVD. Na apresentação de duas horas, entremeada também por diversas partituras do compositor russo, Jocy assina o roteiro, toca piano, rege o ensemble que leva seu nome e aparece como narradora e personagem. O fio condutor do espetáculo são seleções de seu diário, em que relata impressões e episódios vividos ao lado de Stravinsky nos anos 1960, incluindo os de sua visita ao Brasil em 1963 junto à mulher, Vera, e ao amigo, maestro e biógrafo Robert Craft.

Naquela época, Jocy dedicavase à interpretação pianística (com esparsas experiências no teatro e na literatura) e conheceu, através dessa atividade, boa parte dos compositores mais ativos da Europa e dos Estados Unidos de então, chegando alguns deles a dedicarlhe obras inéditas. Na conversa que tivemos com a compositora, tangenciamos assuntos como as manias de Stravinsky, princípios estéticos vigentes, o estímulo à composição contemporânea no Brasil, o papel ocupado pela mulher na música erudita e projetos em andamento. CONTINENTE Um trecho de Revisitando Stravinsky revela esquisitices cultivadas pelo compositor russo, como descrever os próprios movimentos peristálticos durante uma conversa casual. Que outras manias você constatou durante o convívio com ele, nos anos 1960? JOCY DE OLIVEIRA Stravinsky era hipocondríaco e até mesmo sua mulher reconhecia isso e não levava muito a sério suas pequenas mazelas.

Porém, quando tinham uma gripe, ele logo se cuidava e se curava, enquanto ela, que não tinha mania de doença, demorava para sarar... Ele também gostava de falar sobre finanças e como evitar impostos. Uma vez me disse: “Ma chère, você deve viajar só de primeira classe, do contrário, o lucro dos cachês vai todo para o fisco”. Ao que respondi: “Maître, se eu viajar de primeira, não sobra nada dos meus cachês...”. CONTINENTE Que trechos de seu diário foram cogitados para integrar o espetáculo, mas você preferiu deixar de fora? JOCY DE OLIVEIRA A escolha teve muito a ver com o ritmo do espetáculo e sua duração. Não houve nenhuma censura, porém alguns trechos que se referiam mais a análises musicais foram reduzidos porque eram mais apropriados a um livro do que a um espetáculo. O que prevaleceu foi tudo que oferecesse ao público uma percepção da obra e do criador através do meu olhar e do momento de sua vida que tive o privilégio de testemunhar.

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marcos morteira/divulgação

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Foss como seus amigos. Quanto a (Olivier) Messiaen, Stravinsky me estimulou muito a tocar a sua música e tentou algumas vezes programá-lo em seus concertos. CONTINENTE Stravinsky, Messiaen ou os demais compositores citados conheceram seu trabalho composicional? Que orientações ou incentivos lhe passaram? JOCY DE OLIVEIRA Cage, Lukas Foss, Berio e Robert Craft conheceram bem meu trabalho composicional. Com Stravinsky e Messiaen, talvez

Fotos: reprodução

CONTINENTE Falemos de John Cage, Karlheinz Stockhausen, Lukas Foss e outros com os quais você trabalhou como intérprete e que serão tratados com detalhes no seu futuro livro Diálogo com cartas. Qual a visão que os compositores vanguardistas contemporâneos a Stravinsky tinham da obra dele? JOCY DE OLIVEIRA Reconheciam de que ele foi um dos mais relevantes pilares da música no século 20. Aquele que transformou a história por meio de sua descoberta rítmica. Não há dúvida sobre isso. Mas, na verdade,

con ti nen te

excepcional músico e ser humano e sempre me estimulou bastante. CONTINENTE Você, como compositora, defendia como princípio “projetar o ouvido para o futuro”. Esse continua sendo seu objetivo? A qual ideia de futuro você se refere? JOCY DE OLIVEIRA Não sei, acho que quis dizer que nossa obra representa os dias em que vivemos, reflete o passado e se projeta ao futuro. Ainda penso que compor é inventar (Stravinsky já se referia a si próprio como um inventor), portanto, é

“Cage, Lukas Foss, Berio e Robert Craft conheceram bem meu trabalho composicional. Com Stravinsky (ao lado) e Messiaen, pela intensa relação que tive como pianista dedicada à obra deles, preferi me abster de falar sobre o assunto”

Entrevista nunca conversei sobre Stravinsky com alguns deles; com Cage, por exemplo. Sabe-se da admiração de Cage por Schoenberg, com quem teve contato. CONTINENTE E o que Stravinsky pensava a respeito deles (tanto pessoal quanto musicalmente)? Era uma relação de respeito pleno ou havia ressalvas da parte do russo? JOCY DE OLIVEIRA Stravinsky tinha total conhecimento e contato com as novas gerações de compositores pelo filtro de Robert Craft – músico arguto e de extraordinária capacidade analítica, que levava a ele a criação presente. Assim, Stravinsky ouvia e se interessava pelo que estava sendo criado, considerando mesmo (Luciano) Berio e Lukas

pela grande distância de gerações, pela intensa relação que tive como pianista dedicada à obra deles, preferi me abster de falar muito do meu trabalho composicional. Com Berio, ao contrário, houve uma memorável colaboração em Apague meu spotlight – um drama que estava escrevendo quando o conheci, com música eletrônica composta em colaboração com ele. A peça de música-teatro estreou em setembro de 1961, no Rio e em São Paulo, e teve como elenco a Companhia dos Sete (Fernanda Montenegro, Sergio Britto, Ítalo Rossi, entre outros) e representou a primeira apresentação de música eletrônica na América Latina. Com Lukas Foss, executei várias de minhas peças em séries de música contemporânea dirigidas por ele no Carnegie Hall, em Buffalo e na Brooklyn Academy. Ele era um

procurar pelo menos uma nova visão. Não vejo razão para um compositor vivo reescrever música do século 19. CONTINENTE Seu catálogo é formado, na maioria, por peças de câmara (com ou sem intervenções eletroacústicas) e espetáculos multimídia envolvendo teatro, música e vídeo. Quando poderemos ouvir um concerto, uma sinfonia ou uma sonata composta por Jocy de Oliveira? JOCY DE OLIVEIRA Acho que minha resposta à pergunta anterior se aplica a essa. A forma de um concerto, uma sonata ou uma sinfonia está intimamente ligada ao século 19. Já no início do século 20, Debussy, Ravel, Satie não escreveram nenhuma sinfonia. Existem outras formas e estruturas musicais para serem utilizadas e é o que tenho feito com música de câmara, até mesmo em orquestra de cordas. A forma do concerto que dá ao solista a capacidade

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de demonstrar suas qualidades virtuosísticas não é a única. Minhas peças camerísticas requerem de cada músico uma excelente capacidade técnica e conhecimento musical para explorar os timbres e habilidades que a partitura solicita. De maneira diferente, cada um é um virtuose. CONTINENTE Em um ofício no qual mulheres ainda são minoria, com que outras compositoras você mantém contato e o que destaca no trabalho delas em termos de contribuição estética?

obras de autores do passado. Afinal, música brasileira existe antes e depois de Villa-Lobos. Muitas obras de Cláudio Santoro nunca foram ouvidas no Brasil, por exemplo. O passado da música erudita no Brasil é muito rico e mesmo assim quase não se ouvem as importantes obras de (Alberto) Nepomuceno, Leopoldo Miguez, Francisco Braga, para citar apenas alguns. Além disso, é necessário incluir a música contemporânea nos programas das temporadas.

Luciano Berio (Berio sem censura, nos moldes de Revisitando Stravinsky) e, para tal, escrevo o roteiro, componho e pesquiso sua obra para extrair dela segmentos relevantes para complementar minha memória e reflexão sobre nossa convivência. Será uma obra dramática e talvez com uma dinâmica cênica ainda mais envolvente do que Revisitando Stravinsky. Estou compondo duas peças de câmara, uma para flauta, clarineta/clarone, cello e percussão e outra para bandoneón solo e parte eletroacústica. Continuo com meu

“Música brasileira existe antes e depois de Villa-Lobos (ao lado). O passado da música erudita no Brasil é muito rico, e quase não se ouvem as obras de Cláudio Santoro, Alberto Nepomuceno, Leopoldo Miguez, Francisco Braga” JOCY DE OLIVEIRA Não tenho contato com nenhuma organização de mulheres compositoras – que de certo modo são um gueto –, pois não é preciso que existam organizações de homens compositores. Reconheço que somos minoria e reputo isso à velada discriminação às mulheres na música, nas áreas de estética e regência. A mulher é muitas vezes vista como a musa, a intérprete dos compositores homens. CONTINENTE No Brasil, as orquestras sinfônicas têm programado e comissionado mais obras de compositores do próprio país nos últimos anos, em especial dos que estão na ativa. Você crê que essa é uma medida suficiente para valorizar o repertório sinfônico nacional? JOCY DE OLIVEIRA Não, porque o número de encomendas é muito pequeno e também seria necessário incorporar aos repertórios sinfônicos

CONTINENTE Já que passamos a falar de orquestra nacional, um depoimento importante: você, como mãe do presidente da Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, Eleazar de Carvalho Filho, que novo relato pode fornecer agora, apaziguada (ma non troppo) a situação? JOCY DE OLIVEIRA A Orquestra Sinfônica Brasileira é uma instituição nacional de grande mérito. Precisamos preservá-la, contribuir para seu desenvolvimento, para que sua programação seja cada vez melhor e mais criativa, assim como para que cumpra seu objetivo de formar um público para o amanhã. Meu filho Eleazar acreditou no sonho do pai, que não pôde chegar à meta que desejou. CONTINENTE E o que esperar de Jocy de Oliveira em 2012? JOCY DE OLIVEIRA Um ano com muitos projetos e planos. Estou escrevendo uma ópera baseada em

projeto sobre a água, Soif, e finalizo a revisão do livro Dialógo com cartas. CONTINENTE Como o elemento “água” é abordado em Soif? JOCY DE OLIVEIRA No nosso planeta, a água é um elemento renovável que se torna finito. O efeito curador da água, a sensação erótica ou o temor de seu poder e, acima de tudo, a falta desse líquido vital é Soif, um projeto multicultural que parte de mitos, lendas e do poder da água em diferentes culturas e que iniciamos em fins de 2010 com um projeto-piloto em Chengdu, na China. Composto para o oboísta Ricardo Rodrigues (catedrático em Berlim e meu intérprete há 30 anos), Soif foi apresentado em várias cidades chinesas, em outubro de 2011, e também na capital alemã. Planejamos continuar apresentando esse projeto, que obteve um prêmio da Guggenheim Foundation, em colaboração com artistas em várias partes do mundo e diferentes formatos.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

VIRTUDE OU PECADO?

CANGACEIRAS

A Continente traz, neste mês, uma reportagem especial sobre a preguiça, observando este que é considerado um pecado capital sob seus aspectos “positivos” e mesmo necessários. Para tratar do assunto, reunimos as matérias dos jornalistas Gilson Oliveira e Thiago Lins, o artigo do escritor Manoel Ricardo de Lima, a entrevista com a professora de Filosofia Olgária Matos e a crônica de Pedro Salgueiro. No nosso site, o leitor poderá conferir o texto de abertura do evento que tratou desse tema, assinado pelo curador Adauto Novaes.

Confira um trecho do livro Dadá - bordando o cangaço, escrito por Lia Zatz e editado pela Callis, sobre a companheira de Corisco.

Conexão

WOODCUT NOVELS Veja a galeria com imagens dos romances em xilogravura, criados no início do século 20 e que influenciam artistas até hoje.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

TATUAGEM

COLABORATIVO

LITERATURA

CINEMA

Dupla de referência não se limita a apresentar o próprio portfólio

Internautas se ajudam na missão de consertar aparelhos eletrônicos

Site recém-lançado oferece recursos para o debate literário

Quatro editores reformulam a proposta da extinta revista Paisà

hyperspacestudios.com

ifixit.com

musarara.com.br

revistainterludio.com.br

Mais que apresentar os trabalhos de Guy Aitchison e Michele Wortman, a página também comporta uma série de links, vídeos e informações sobre a arte de gravar imagens na pele. Nas galerias virtuais da dupla, é possível perceber, através da técnica e da ampla variedade de desenhos, por que eles são referências na área. Além disso, os tatuadores que frequentam o site podem divulgar seu trabalho em uma galeria colaborativa. O espaço virtual conta ainda com newsletter mensal e uma lojinha de livros, roupas e DVDs sobre o assunto.

Aqueles que possuem habilidade com atividades manuais podem economizar um dinheirinho, se passarem a frequentar esse site, cuja finalidade é difundir guias de conserto de objetos diversos. Focados, sobretudo, em eletroeletrônicos, os colaboradores ensinam a fazer reparações em veículos, câmeras fotográficas, computadores, video games, ipods e afins. Além disso, o endereço conta com links para tirar dúvidas rapidamente e trocar informações.

Com uma lista respeitável de conselheiros, formada por nomes como Affonso Romano de Sant’Anna, Lúcia Santaella e Sylvio Back, o site é mais uma bem-sucedida apropriação do espaço virtual para a discussão literária. Editada por Edson Cruz, a página oferece textos acadêmicos, artigos, crônicas, ensaios, entrevistas, entre outras categorias. Conta ainda com 30 colunistas, entre os quais estão nomes como Micheliny Verunschk, Wilson Freire e Andrea Del Fuego.

Apesar de contar com as subdivisões música e comportamento, o foco da página virtual é a sétima arte, única seção que conta com atualizações periódicas: postagens semanais nas categorias Nos cinemas e DVD, quinzenais para Festivais e Fotogramas, bimestrais para Dossiê. O site representa uma renovação da extinta revista Paisà, mas possui apenas o formato eletrônico. Seu mérito é conseguir combinar textos de densidades variadas – do mais rápido ao mais profundo.

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imagens: reprodução

blogs TECNOLOGIA www.shirky.com/weblog

O blog do cyberguru Clay Shirky é puro conteúdo. Shirky usa o espaço para analisar a mídia, só que de maneira mais objetiva do que nos seus livros. Independente, o autor não poupa críticas aos conglomerados do nicho.

DESIGN divasca.blogspot.com

MEMÓRIA SOCIAL no MUSEU DA PESSOA Criada em 1991, com a proposta de construir uma rede de histórias de vida, instituição estimula internautas a tornarem públicas as suas experiências museudapessoa.net

Você pode não ser um escritor, cronista, memorialista, blogueiro, mas

certamente tem histórias pessoais para contar. Um estímulo para que elas deixem de ser reservadas a você e sejam conhecidas pelo público. Criado há duas décadas, a partir da convicção de que toda história de vida tem valor e deve fazer parte da memória social, esse museu virtual convida qualquer um que queira participar dele, gratuitamente, compartilhando experiências. Além daquilo que poderíamos chamar de perfis de “gente como a gente”, o site mantém a seção Doadores de sabedoria, em que pacientes diagnosticados com doenças graves contam (em texto e vídeo) suas vivências. Em outro link, é possível conhecer a história de bairros tradicionais a partir dos relatos de moradores – a série atualmente disponível enfoca os bairros paulistanos do Brás, Bexiga e Barra Funda. Há uma seção no museu chamada Brasil urbano, que é apresentada aos internautas como uma “exposição”. Nela, histórias das cidades e de seus habitantes são imbricadas, muitas das quais de momentos já “apagados” da paisagem urbana. Embora tenha um viés paulistano – o museu mantém endereço físico em São Paulo –, trata-se de uma ótima referência de como o olhar antropológico é capaz de aproximar os indivíduos. ADRIANA DÓRIA MATOS

Cansado de “roubadas” comuns à vida de freelancer, o designer Luís Di Vasca lançou um blog relatando suas histórias, depois de deletar o seu anterior, que só tinha desenhos, “porque ninguém deu a mínima e não deu acesso algum”.

FOTOGRAFIA poeme-se.tumblr.com

Imagens e trechos literários são a fórmula da jornalista Mariana Caldas em seu tumblr. Inspirado no amor e na experiência, seu trabalho se desenvolve com uma câmera analógica, prezando pela baixa tecnologia.

TROTES dontevenreply.com

Algum desocupado misterioso decidiu responder aos anúncios de classificados americanos que julgou mais idiotas. O autor publica as conversas por e-mail, tirando todos os anunciantes do sério.

sites sobre

v iag ens ASSENTOS

CARONA

PROMOÇÕES

www.seatguru.com

www.pickuppal.com

www.melhoresdestinos.com.br

Um passageiro insatisfeito resolveu comentar as condições de seus voos. Muitos colegas, na mesma situação, começaram a colaborar, tornando esse site premiadíssimo por revistas turísticas.

Quem vai ao estrangeiro pode lançar seu destino no Pickup pal e esperar uma notificação: logo surge um motorista querendo dividir assunto (e despesas, claro).

O site reúne ofertas de todas as operadoras de voo nacionais. O usuário condiciona a busca à data de partida e volta, podendo ainda conferir opções de pacotes com hospedagem e até cruzeiros.

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Portfólio

Pietro Tales

APOSTA NO DRAMA TEXTO Mariana Oliveira FOTOS Renato Filho

Quando se trata de seu trabalho como estilista, o jovem Pietro Tales é taxativo:

“Estou mais para um drama do que para uma comédia”. Foi num tom grave, com uma paleta de cores reduzida, sem estampas, que ele lançou, no final do ano passado, a sua primeira coleção totalmente autoral, durante o Moda Recife. Mítica trazia apenas sete vestidos – a quantidade que ele conseguiu produzir em pouco mais de 20 dias de trabalho. Usando tecidos nobres (como voile e organza) e pedrarias, suas peças exploram volumes e texturas e constroem os referenciais da coleção baseada numa mulher forte, sóbria e misteriosa. Ele diz que seu processo de criação é bastante intuitivo. Nem sempre é preciso traçar, no papel, a peça que vai desenvolver. Com uma boa gama de materiais disponíveis em seu ateliê, o estilista vai experimentando. “Eu vou dobrando um tecido aqui, juntando com outra ponta ali e vão surgindo os efeitos”, conta. Foi assim quando aprendeu a fazer fuxicos, utilizando um tecido nobre e transparente. Depois, ao uni-los, gostou bastante do resultado volumoso do avesso da peça. Guardou aquela ideia e explorou-a na coleção Mítica. Pietro criou um vestido preto e transparente todo confeccionado de fuxicos invertidos. O ar futurista da peça ficou por conta do forro em tecido brilhoso e do volume criado ao usar o avesso dos fuxicos. Parte dos acessórios utilizados no desfile também surgiram dessas experimentações. Ao olhar as gargantilhas, tem-se a impressão de que

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so da focinheira aponta U para as referências góticas do estilista, ainda que sublimadas pelo glamour

Nestas páginas 2-3 frente e verso

omposto em recortes de C organza negra, mini explora nudez das costas

4 suntuosidade Único longo da pequena coleção, este vestido utilizou 30m de tecido apenas para a cauda

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modelo: renata calheiros/amazing model

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Portfólio

elas foram produzidas em metal, mas, na verdade, trata-se de couro sintético que, após ser manipulado e misturado por Pietro a outros produtos, adquiriu um aspecto metalizado. Apesar de se interessar por elementos típicos do artesanato nordestino, a exemplo do fuxico, o estilista se esforça para buscar um caminho menos vinculado a essas tradições. “Eduardo Ferreira fez isso muito bem. Melk ZDa vem desenvolvendo, nessa área, um trabalho bastante competente. Então, não vejo por que seguir por esse caminho”, afirma o jovem estilista, que aponta para referências mais urbanas, cosmopolitas, góticas. Isso se explica, possivelmente, pelo seu interesse pela moda de rua japonesa, alemã e californiana. Como não encontrava as peças que queria usar, decidiu ingressar num curso de corte e costura para ter condições de fazer as próprias roupas. Com a nova habilidade,

passou a receber pedidos de amigos e, depois, de amigos dos amigos... Para atender à crescente demanda, criou nas redes sociais a marca Petru’s, na qual oferece opções para um nicho específico de consumidores. Foi nesse momento que o jovem, recém-saído da adolescência, que pensava em se tornar arquiteto e biólogo, começou a encarar o estilismo como profissão. “No começo, eu até pensava em fazer um desfile, criar uma coleção bem autoral, mas acreditava que isso só viria em alguns anos. Tudo aconteceu muito rápido. Recebi o convite para fazer a campanha das santas da Gráfica Santa Marta e depois chegou o convite do Moda Recife”, detalha. Agora, Pietro tenta conciliar as duas vertentes do seu trabalho. Está em fase de produção de uma nova coleção para a Petru's, cobrada há algum tempo pelos clientes (a maior parte de outros estados brasileiros), e, em paralelo, desenvolve

5 mítica A coleção aposta na sobriedade e no mistério, utilizando uma paleta de nuances do branco e preto 6 fluidez O uso da organza conferiu ao vestido um efeito parecido com o de uma água-viva método 7 A produção do estilista nasce de experimentos com tecidos e materiais para composição de acessórios

sua coleção “Pietro by Pietro”, cujo lançamento deve acontecer em julho deste ano. Agora, o tema explorado são dragões. Mas ele desencoraja quem espera o fogo em tons de vermelho, amarelo ou laranja. O seu fogo são as cinzas, a fumaça. Novamente, mais para drama que para comédia.

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cordialidade necessária Tão encrespados estamos, nas relações pessoais – em casa, na rua, na fila, no trânsito, nas compras –, que andamos esquecidos das gentilezas. Contra tal estado de coisas, deveríamos seguir o exemplo dos que costumamos chamar “civilizados” e usar – ainda que compulsoriamente – as expressões “Por favor!”, “Desculpa!” e “Obrigada!” para tudo nessa vida. Paroxismo desse hábito está numa cena presenciada dentro de um metrô lotado, em Paris. O homem queria se locomover no espaço apertado e, para que ficassem claras suas intenções, interpelou o passageiro à frente: “S’il vous plaît?”. No que emendou um “Pardon!”, ao passar, finalizando o gesto com um “Merci!”. Todas as cordialidades juntas! (ADM)

A Paris de Sempé Uma exposição abrangente e deliciosa, com acervo de mais de 300 originais produzidos desde os anos 1950 pelo ilustrador francês Jean-Jacques Sempé – sendo vários deles inéditos –, pode ser vista na sede da prefeitura parisiense, o Hôtel de Ville, até o final deste mês. A mostra Sempé, un peu de Paris et d’ailleurs (Sempé, um pouco de Paris e arredores) acabaria no início de fevereiro, mas seu encerramento foi adiado, tal o interesse que tem despertado. E não é difícil supor o porquê dessa receptividade. Ao circular pelos corredores em que estão postos os trabalhos desse artista nascido em Bordeaux (1932), mas que adotou Paris como casa, o visitante se depara com um tipo de humor sutil, irônico e elegante, realizado em traços leves e precisos, o que lhe confere imediatamente uma atmosfera nostálgica, gentil. O lugar de cronista da cidade e de seus habitantes, característico da obra de Sempé, está ali milimetricamente documentado. Ao tirar os olhos das obras e espiar a reação do público, você será capaz de flagrar expressões de candura, risos e gargalhadas, e mesmo lágrimas fininhas. Tudo que um cartum de primeira é capaz de provocar. Ao sair da mostra, o visitante tem a sensação de que as obras de Sempé ganham vida nas esquinas de Paris. ADRIANA DÓRIA MATOS

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A FRASE

Balaio quem não arrisca ...

Em 2005, David Choe (acima) era apenas um talentoso grafiteiro à procura de “trampos”. Naquele ano, foi convidado para pintar as paredes de uma pequena e descolada empresa que começava a ser montada por jovens empreendedores de Harvard. Os clientes sugeriram que Choe poderia receber o pagamento em ações. Ele disse “Ok!”. Agora, tais ações valem U$ 200 milhões – uma bela fatia do bolo de U$ 5 bilhões, valor em que a rede social Facebook está inicialmente avaliada na bolsa de Nova York. O “frila” de Choe tornou-se, ironicamente, uma das obras de arte mais caras da história, ultrapassando valores já pagos por telas de Pollock, Klimt, Picasso, Renoir e Van Gogh. (Débora Nascimento)

“Não é que tenho medo de morrer, eu apenas não quero estar lá quando acontecer.” Woody Allen, cineasta americano

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criaturas

musa de bin laden Apesar de ter declarado ódio aos Estados Unidos, Osama Bin Laden mantinha uma paixão secreta pela América, quer dizer, por uma americana: Whitney Houston. O líder da Al Qaeda sonhava casar-se com a cantora, falecida em fevereiro. O semanário musical NME divulgou que a ativista e poeta Kola Boof, que garante ter sido escrava sexual de Bin Laden, disse que ele expressava com frequência a vontade de ir aos EUA para conhecer a artista. Em sua autobiografia, Diário de uma jovem perdida, Kola revela que ele “tinha um desejo ardente por Whitney Houston e, por mais que reclamasse de que sua música era do mal, dizia que um dia gastaria grandes quantias de dinheiro para ir à América e tentar arranjar um encontro com ela”. Bin Laden teria comentado sobre “o quão bonita ela era, como era incrível seu sorriso” e que desejava matar o ex-marido da cantora, o também cantor Bobby Brown. Se houver vida após a morte, Whitney terá trabalho com esse pretendente. (DN)

o vampiro baiano

Numa das passagens do livro Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer (acima), no qual o jornalista alemão narra sua saga para encontrar João Gilberto, o compositor Roberto Menescal levanta uma suspeita. Para ele, o cantor baiano carregaria consigo uma maldição, que afetaria a vida de quem dele se aproxima. Para exemplificar, conta o caso de um produtor japonês que tinha uma vida pessoal e profissional bem equilibrada. Após ter levado o ícone da bossa nova para uma série de shows no Japão, passou por tanta contrariedade, que acabou sofrendo um enfarte. Tudo indica que Menescal tinha razão. Em abril de 2011, Fischer, um dos melhores nomes do jornalismo de seu país, suicidou-se aos 40 anos, sem ter assistido à ótima repercussão que seu livro teve no final do ano. (DN)

Cláudio Assis, diretor de Febre do rato Por Mário Alberto

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PREGUIÇA Virtude disfarçada de pecado capital

Enaltecida por filósofos da Grécia Antiga, mas perseguida pela Igreja, por regimes políticos e econômicos, a “aversão ao trabalho” começa a recuperar status, por conta de mudanças sociais e culturais texto Gilson Oliveira

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esPeciAL

em sua forma original, a fábula A

cigarra e a formiga, escrita por Esopo cerca de 500 anos a.C. e recontada por Jean de La Fontaine no século 17, termina com a primeira ouvindo da segunda, após pedir um pouco de comida: “Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno dançando?”. Moral da história: “Os preguiçosos colhem o que merecem”. Mas, numa versão moderna, de autor desconhecido, a narrativa tem desfecho diferente, com a cigarra dizendo à formiga que vai a Paris porque um produtor gostou de sua voz, e perguntando se a outra queria alguma coisa de lá. “Sim”, respondeu a formiga: “Se você encontrar o La Fontaine, manda ele pra ‘PQP’!”. Moral da história: “Aproveite

sua vida, saiba dosar trabalho e lazer, pois trabalho em demasia só traz benefício em fábulas do La Fontaine!”. Uma espécie de terceira moral da história surge, naturalmente, quando se faz a comparação entre os dois textos: a visão que a humanidade (ou pelo menos parte dela) tem hoje da preguiça é diversa da que predominava nas épocas dos dois famosos fabulistas e em outros períodos históricos, inclusive por ter sido classificada por São Tomás de Aquino, no século 13, entre os sete pecados capitais – aqueles que geram muitos outros pecados. Para o santofilósofo, a preguiça (ou acídia) “era um tédio ou tristeza em relação aos bens interiores e aos bens do espírito”, o que afastava o ser humano de Deus,

viCTor ZALMA

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por não “conhecer e dominar suas paixões, extirpar de si os vícios (...) procurar a felicidade e a operação mais elevada e mais perfeita”. Um dos filósofos contemporâneos com ideias radicalmente opostas às do pensador católico é Adauto Novaes, que organizou o bem-sucedido ciclo de conferências Elogio à preguiça, realizado no ano passado em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Tem mais: com a “conivência” do filósofo francês Francis Wolf (que abordou o tema A apologia grega da preguiça) e de alguns dos mais renomados intelectuais brasileiros, como Marilena Chauí (Sobre o direito à preguiça), Sérgio Paulo Rouanet (Preguiça e ócio na ética iluminista), Olgária Matos (Educação para a preguiça), Maria Rita Kehl (Boêmia e malandragem: a preguiça na cadência do samba) e José Miguel Wisnik (Ócio, labor e obra). O tom das conferências do ciclo foi dado pelo próprio Novaes na apresentação do evento, iniciada com a reprodução de um texto do pintor russo Kazimir Malevich, intitulado A preguiça como verdade definitiva do homem: “O trabalho deve ser maldito, como ensinam as lendas sobre o paraíso, enquanto a preguiça deve ser o objetivo essencial do homem. Mas foi o inverso que aconteceu. É esta inversão que gostaria de passar a limpo”. A apresentação de Novaes – que está organizando a edição de um livro com o conteúdo de todas as conferências – faz uma síntese histórica dos vários olhares lançados sobre a preguiça, que foi “vilipendiada pelos moralistas, em nome da religião, e o é igualmente pelos economistas, em nome do trabalho”. Enquanto a obra não chega, a íntegra das conferências pode ser assistida no elogioapreguiça.com.br.

neG-ÓciOS

Considerada pelos sociólogos uma das épocas em que o ser humano mais tem sido absorvido pelo trabalho, o que o leva a viver mergulhado no estresse e repetir frases como “não tenho tempo”, a atual é também aquela em que o ócio – considerado irmão gêmeo da preguiça, por significar falta

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de ocupação – desfruta de grande status. Provavelmente, nunca se tornará paradigma de virtude capital, mas o próprio capital (financeiro) já não vê como “pecado”, por exemplo, um costume que durante muito tempo estigmatizou como preguiçoso o povo espanhol: a sesta. Pelo contrário. Muitas são as empresas que criaram confortáveis salas para os funcionários descansarem após a refeição. Essa mudança na postura empresarial foi tema de uma reportagem publicada pela revista Istoé Dinheiro, com o título O despertar da soneca: “O mundo corporativo acorda para o sono. Tirar o clássico cochilo depois do almoço transforma-se em modo de vida em empresas dos Estados Unidos, Japão, China e Europa. (...) Virou tendência amparada na ciência. Um estudo realizado pela Nasa mostra que 40 minutos de repouso no meio de uma jornada aumenta em 34% a performance das pessoas. (…) No Japão, as empresas o adotaram (o cochilo) como norma e brotam os ‘salões de sesta’. Na China, as pessoas também são obrigadas a dedicar alguns minutos ao descanso total. O xiu-xi (sesta) faz parte da Constituição. Não adotá-lo é sinônimo de penalidades”. Compondo esse novo olhar estão as profundas transformações ocorridas, nos últimos anos, nos campos da moral e da cultura, e, principalmente, nas esferas da inovação tecnológica, da produção e do trabalho. “A revolução que se avizinha, a grande revolução ocidental depois da Revolução Industrial, é a Revolução do Ócio”, afirmou o filósofo Gerd Bornheim, falecido em 2002. São vividos tempos de “formigas-cigarras”, em que o mundo do espetáculo, do entretenimento e do lazer faz a fortuna e a fama de muitos. Tempos de negócios, neologismo empregado pela também filósofa Suzana Albornoz, no livro Trabalho e utopia na modernidade. Não sem motivo, um dos principais gurus do mundo de hoje é o sociólogo italiano Domenico de Masi, autor de O ócio criativo, no qual estão presentes frases como: “O homem que trabalha perde um tempo precioso”. A questão de De Masi não é com a labuta em si, mas com o modelo de produção adotado nos EUA e outros países, no

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“A grande revolução ocidental, depois da Revolução Industrial, é a Revolução do Ócio” Gerd Bornheim

qual prevalece a competitividade radical e a idolatria do trabalho, levando o profissional ao estresse e à depressão. Acrescente-se a isso o fato de ser um modelo típico da Era Industrial, com os trabalhadores subordinados às máquinas e usando apenas o corpo – nunca o potencial do cérebro –, o que efetivamente cria estreita relação entre a quantidade de tempo de trabalho e a produtividade.

TRABALHO “CABEÇA”

No mundo atual, conhecido como Era Pós-industrial, o trabalho físico é feito pelas máquinas tradicionais e o mental por outro tipo de máquina, o computador, deixando o ser humano com mais tempo livre e com a tarefa

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básica de criar, ter ideias, na qual ele é insubstituível, pois nenhum aparelho, por mais inteligente que seja, consegue superá-lo nesse campo. Os historiadores apontam que essa nova era começa depois da Segunda Guerra Mundial – quando se amplia a comunicação entre os povos, ocorre a difusão de novas tecnologias e a base econômica sofre profundas mudanças – e é caracterizada pelo crescimento do setor de serviços (que absorve atualmente cerca de 60% da mão de obra do planeta), pelo incremento da informação e pela transformação do conhecimento e da criatividade em “matérias-primas” fundamentais. É nesse cenário – em que o uso das mãos e dos pés está sendo cada vez mais substituído pelo uso da cabeça, com predominância de trabalhos intelectuais, científicos e artísticos – que deve reinar o ócio criativo, o qual, segundo De Masi, não é o “não fazer nada” (curtir um dolce far niente, como dizem seus conterrâneos), e, sim, uma mistura de atividades, em que o trabalho se confunde com o aprendizado e com a brincadeira.

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1 tomás de aquino A preguiça foi classificada pelo religioso, no século 13, como um dos sete pecados capitais marilena chauí 2 Para a filósofa, as ideias de Lafargue sobre a relação entre economia e religião precedem as de Max Weber adauto novaes 3 O filósofo conceitua a preguiça de modo oposto ao de Tomás de Aquino

Como exemplo de atividades que se fundem ao aprendizado, ele cita as de um grupo de cientistas realizando uma experiência inovadora; entre as que parecem brincadeiras, ele inclui as de uma equipe cinematográfica, que se diverte durante a produção de uma comédia.“Eu mesmo, quando dou aula, vivo o ócio criativo”, diz. Além de analisar e discutir essa realidade, O ócio criativo mostra as descobertas e inovações humanas desde a pré-história até os dias hoje, e traz, entre as curiosidades, o fato de que a Era Pós-industrial – na qual um grande número de profissionais trabalha em casa, dispondo de mais tempo para o lazer, os familiares e os amigos – se assemelha à Era pré-industrial, que tinha a agricultura como base econômica e permitia que, muitas vezes, as pessoas não distinguissem trabalho e brincadeira. Nessa época, o camponês e o artesão viviam no mesmo lugar em que trabalhavam e misturavam os ofícios com as tarefas domésticas e as diversões. Nesse aspecto, tudo era – e é – muito bonito, mas como é que fica a questão do desemprego, que não dá trégua, em razão

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con especial ti nen te da própria reorganização do mundo? De Masi não tem resposta pronta para isso, embora tenha estudado o tema e publicado livros como O futuro do trabalho.

UM DIREITO

ideologicamente instalada verdadeira servidão voluntária. Visando livrar os trabalhadores da alienação e despertá-los para sua missão de rebelar-se contra a sociedade, e assim mudá-la, o escritor recorreu aos pensadores da Grécia Clássica, que achavam o trabalho físico degradante, pois impedia as atividades do intelecto, e até a Jesus Cristo, dizendo que ele, em seu Sermão da montanha, insinuou a preguiça: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos; eles não trabalham nem fiam, e não obstante, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”. Autor da proposta de jornadas de trabalho de três horas, ainda hoje vista como grande utopia, Lafargue parecia ter mesmo o dom da antecipação. É o que também observa Marilena Chauí, na apresentação da edição de 1999 do mais famoso livro do escritor. De acordo com a filósofa, as ideias dele sobre a relação entre a economia e a religião precedem um clássico

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“Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho.” Assim começa o panfleto O direito à preguiça, de Paul Lafargue, que obteve repercussão mundial logo que foi difundido na França, em 1880, e continua influente, como demonstra uma edição organizada em 2001 por Domenico De Masi, o qual preferiu rebatizá-lo como O direito ao ócio. No Brasil, a primeira edição data de 1980, ou seja, 100 anos depois de sua publicação no jornal socialista L’Égalité. O longo eclipse sofrido pela obra no país deve-se à repressão desencadeada, ao longo do século

20, contra as ideias socialistas. Além do seu tom demolidor e irônico, a começar pelo título, O direito à preguiça (que, originalmente, teria o mesmo nome atribuído por De Masi, mas acabou assim titulado por conta dos choques de Lafargue com a Igreja, ao aludir aos pecados capitais), encontra na biografia do autor elementos pouco recomendáveis em certos contextos políticos. Entre eles, o fato de Lafargue ter sido fundador da Internacional Operária e do Partido Socialista Francês e secretário e genro do “pai do comunismo”, sobre o qual, em 1890, escreveu um longo e apaixonado relato intitulado Recordações pessoais sobre Karl Marx. Inimigo número um do que chamou de “a religião do trabalho”, Lafargue, como acentuou a filósofa Olgária Matos, em prefácio da edição de 2003 de O direito à preguiça, foi um “pioneiro quando observou que libertar o trabalhador não significa fazer desaparecer o capital ou os capitalistas, mas permitir ao operário livrarse de sua ‘alma’ ”, na qual foi

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do assunto, Ética protestante e espírito do capitalismo, de Max Weber. O que ninguém, nem o próprio Lafargue, pôde antecipar foi a maneira como ele morreu: num pacto de suicídio com sua mulher, Laura Marx, em 1911. A carta-testemunho que deixou revela o motivo do ato: preferiu matar-se antes “que a impiedosa velhice (...) acabe por paralisar as minhas energias (...) fazendo de mim um peso para os outros e para mim mesmo”. Coerente com seus princípios até na hora da morte, o grande advogado da preguiça não queria dar trabalho a ninguém.

MÃE DO PROGRESSO

Em um poema intitulado Filosofia, diz Ascenso Ferreira: “Hora de comer – comer!/ Hora de dormir – dormir!/ Hora de vadiar – vadiar!/ Hora de trabalhar?/ – Pernas pro ar, que ninguém é de ferro!”. O também poeta Mário Quintana não fez por menos e, além de criar um aforismo muito conhecido – “A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de

caminhar, não teria inventado a roda” –, ainda escreveu o livro Da preguiça como método de trabalho. Mesmo que sejam apenas preguiçosos “teóricos”, levando uma vida pessoal e profissional intensamente ativa, há diversos autores que teceram e tecem loas ao “não fazer nada”. Por verem nisso uma forma de fazer muitas

Os pensadores da Grécia achavam o trabalho físico degradante, pois impedia as atividades do intelecto coisas. Bons exemplos? O filósofo Bertrand Russel, autor de Elogio ao ócio, e o Prêmio Nobel de Literatura, Albert Camus: “São os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo algum”. Essa visão fica mais compreensível ao considerar-se que a palavra trabalho, em sua origem etimológica,

4 macunaíma Grande Othelo (D) interpreta personagem que se tornou símbolo da preguiça no país Paul lafargue 5 O socialista francês chegou a propor jornada de trabalho de três horas diárias

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indica uma atividade típica dos escravos – algo que faz sofrer, tira a liberdade e impede o desenvolvimento do espírito. Caso da francesa travail e da espanhola trabajo, originárias da latina tripalium, denominação de um instrumento de tortura formado por três (tri) paus (palus). O certo é que muitos artistas também mexeram seus próprios pauzinhos e defenderam aquela que sempre foi o maior contraponto ao trabalho –“Quem cedo madruga, fica o dia inteiro com sono”, atestou o poeta romano Ovídio, nascido em 43 a.C., parodiando, segundo registros, uma frase que séculos depois teria no Brasil a seguinte forma: “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Relançado em 2011 pela Companhia das Letras, um livro moderno que louva a preguiça, no que ela tem de inimiga da pressa, é A lentidão, do tcheco Milan Kundera, que pergunta logo no começo: “Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas?”. Profusa no restante do mundo, a produção artística que tematiza a preguiça é bastante expressiva no Brasil e está presente, inclusive, nos títulos de várias obras. No teatro, um exemplo é Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna; no campo jornalístico, O livro da preguiça, de Gillian Borges; na área musical, ABC do preguiçoso, de Xangai; no âmbito do romance, um dos livros mais conhecidos não traz a palavra preguiça na capa, mas, mesmo assim, tornou-se um dos seus grandes símbolos: Macunaíma, de Mário de Andrade. Basta dizer que o herói passou seis anos para aprender a falar e a primeira frase que disse foi: “Ai... que preguiça...” Mas, num país em que a cultura popular é forte até como expressão econômica, não se podem esquecer certas frases, encontráveis em porta de banheiro público, a exemplo de: “A preguiça é a mãe de todos os vícios e, como mãe, deve ser respeitada”.

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f con especial ti nen te

Artigo

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manoel ricardo de lima traço ingênuo do caráter brasileiro “Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda. Não poderia viajar pelo mundo inteiro.” (Mário Quintana, Da preguiça como método de trabalho)

Domingos Caldas Barbosa, em suas modinhas, escrevia assim sobre aquilo que Sérgio Buarque de Hollanda chamou de “suavidade dengosa e açucarada”: “Se não tens mais quem te sirva/ O teu moleque sou eu,/ Chegadinho do Brasil/ Aqui’stá que todo é teu” e “Ah nhanhá, venha escutar/ Amor puro e verdadeiro,/ Com preguiçosa doçura/ Que é Amor de Brasileiro”. O que aparece nos trechos das modinhas de Caldas Barbosa, da segunda metade do século 18, é o anúncio da composição de um traço ingênuo da origem brasileira, a partir da vida colonial miscigenada; uma espécie de afetividade radical porque incorporada e evidenciada como um tempo propositivo da experiência de um próprio. Essa malemolência amorosa se alimenta, diz Mário Faustino, da poesia popular e de um vocabulário que já se pode chamar de “muito brasileiro”, mesmo que ainda misturado e permeado de algumas alusões clássicas. Ela é um traço que sempre foi tido como ingênuo, mas que agora se instala como um elemento às avessas de nossa composição em meio à alegria desesperada do tempo presente que é, também, um vetor imposto por uma afetividade desincorporada e praticamente desfeita. A circunstância quase interrogativa lançada logo no começo de Raízes do Brasil – “somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra” –, por exemplo, tem desdobramentos em torno dessa questão porque, para Sérgio Buarque, isso advém

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Riobaldo, narrador de Grande sertão: veredas, sempre me chamou a atenção em torno dessa ideia da preguiça

do fato de termos trazido de países muito distantes as nossas formas de convívio, ideias e instituições e de lançá-las em um ambiente hostil. Esse ambiente tem a ver com o que ele argumenta ao dizer que “todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”. Este um outro, o nosso próprio – que Caldas Barbosa nomeia como “chegadinho do Brasil” e “amor de brasileiro”, clima e paisagem diferentes – tem

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a ver também com outra demanda para a atividade produtora, que para nós seria muito “menos valiosa que a contemplação e o amor”; é o ócio que importa muito mais que o negócio, lembra Sérgio Buarque. Ou seja, num ajuste de contas, um certo empenho para a preguiça como nosso próprio ou praticamente como sugestão de um pathos; não como uma oposição à ideia de trabalho, mas, sim – para nós –, como uma compósita à outra ideia de trabalho. Quase a construção de um éthos tão particular e singular, que nos remeteria diretamente ao traço de nossa hospitalidade radical também desesperada. Os desdobramentos disso estão, principalmente, nos trabalhos de Oswald e Mário de Andrade. Oswald, numa articulação inteligente e bárbara, que vem de seu pensamento para a cultura brasileira através de seus poemas e textos, anota no seu

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6 preguiça Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Guimarães Rosa usaram o conceito como mote em algumas de suas obras

estamos apenas diante da descrição de um bicho de nossa floresta, mas, numa bipolaridade, estamos diante de um caráter do nosso horizonte formativo. É o que ele chama de uma “perspectiva de outra ordem”, que inclui a sábia preguiça solar, a reza, a energia silenciosa e a hospitalidade. Daí, a utopia antropofágica, a tarefa da alegria e a máxima: “Nunca fomos catequizados”.

HERÓI NACIONAL

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Manifesto da poesia pau-brasil que somos “bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos”. Podemos pensar que ele elabora para a origem da cultura brasileira um espaço constituído entre a floresta e a escola – “O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica” – que é habitado por uma possibilidade imaginativa que estaria, por sua vez, vinculada a um imaginário rural que implode a formação de nossas cartografias urbanas tão absurdamente orgânicas e descontroladas. Essa seria, para Oswald, a “Festa da raça”, expressão que dá título a um poema de sua série chamada História do Brasil: “Hu certo animal se acha também nestas partes/ A que chama Preguiça/ Tem hua guedelha grande no toutiço/ E se move como passos tam vagarosos/ Que ainda que ande quinze dias aturado/ Não vencerá a distância de hu tiro de pedra”. No poema, não

O projeto de Mário de Andrade, grosso modo, tem a ver com a tentativa de entendimento do que seria ou pode vir a ser esse caráter do qual fala Oswald. Quando publica Macunaíma, em 1928, estabelece, via o barroco de Marini, um scherzo, que vem do verbo italiano scherzare (brincar, jogar), um jogo e um livro de pura brincadeira: “malicio nele o fenômeno” e “a falta de caráter do herói nacional”. A expressão “Ai... que preguiça...”, que permeia toda a narrativa pela boca indolente do personagem Macunaíma, imprime aquilo que Mário pensava como um “sintoma da cultura nacional”. É possível ler isso em várias passagens desse seu livro, como quando escreve: “Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas e dourou a face limpa do ar. Macunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo... – Ai... que preguiça... O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Macunaíma, era bom...”. Mas já num texto de 1918, intitulado A divina preguiça (em que pese o adjetivo divino que desfaz o impedimento sugerido por Paulo Prado se o Brasil seria, na visão do português, um degredo ou um purgatório), Mário postula acerca do que chamou “uma visão nova do

mundo” em torno dessa questão, ao dizer que “via a Terra, modorrada de calor, redondinha, vestida de um imenso gramado esmeraldino sobre o qual a humanidade toda se deitara, chapéu nos olhos, mãos nas cavas dos coletes, pausas pantagruélicas culminando no espaço, a dormir, a dormir serenamente, num gigantesco, universal convescote”. O que se nota é que, para Mário, essa indolência é a armadilha de nossa bipolaridade. Em algumas de suas cartas, esse “sintoma” também aparece com veemência; numa delas, para o seu Tio Pio, ele fala do quanto sua concepção de vida é marcada por uma “amorosa contemplação e paciência” e que por isso não seria alegre nem triste, mas, sim, “maravilhosamente sábia”. O que, de certo modo, retoma a sugestão das modinhas de Caldas Barbosa e a preguiça solar e sábia de Oswald de Andrade. Mas um personagem que sempre me chamou muito a atenção em torno dessa ideia da preguiça como a constituição de um pathos e também de um éthos de nossa origem é Riobaldo, o narrador de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Interessante notar que, como se trata muito mais de uma narrativa de aventuras jagunças no sertão de Minas Gerais, a quietude malemolente de Riobaldo invariavelmente passa despercebida. O apontamento é que, desde o começo do romance,“– Nonada.”, ele já se encontra terno e indolente: “Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede”, diz calmo ao interlocutor enquanto fabula a sua história entre amorosa e pactuária. Não só deitado numa rede, mas também num “abrenúncio” da existência, da convivência com o diabo, das suas melancolias e da frase indômita que o persegue: “Viver é negócio muito perigoso...”. Ora, dentro da frase que Riobaldo repete num sem-número de variantes, há a palavra negócio que identifica a vida moderna como ambivalente, se pensada numa trajetória contingente, acidental, inoperante e, por que não, no caso brasileiro, naturalmente dedicada ao ócio ou radicalmente à preguiça como espaço de imaginação.

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recarga Descansar, um bom negócio

Reconecte. Recarregue. As

O setor corporativo rende-se a técnicas que visam a pausa e o lazer no trabalho e investe num repouso lucrativo texto Thiago Lins

palavras soam como slogans para aparelhos portáteis, mas servem à divulgação de uma cama – ou da cama do futuro, que chegou primeiro na Austrália. É lá que fica a sede da Metronaps, pioneira na “manutenção de fadiga” – um nicho promissor. Especializada em equipamentos para descanso, que vão de fones de ouvido a softwares, a empresa adota um marketing agressivo. “Resumidamente, a fadiga está matando a nação. Olhe bem ao seu redor, e verá que a afirmação é verdadeira”, garante o texto de apresentação no site da empresa. O fato é que a Austrália tem uma média de horas de sono entre as mais baixas do mundo – em torno de

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7 metronaps A empresa australiana é pioneira na área de equipamentos para descanso

sete. E a maioria dos mortais gostaria de poder dormir mais um pouco. Propondo o serviço como uma solução corporativa, a empresa já construiu filiais nos Estados Unidos, Dinamarca, Alemanha e Inglaterra. O negócio é levado tão a sério, que a Metronaps contratou os engenheiros automotivos mais disputados da Alemanha para projetar a cápsula de descanso Napshell. A cápsula, de design futurista, parece ter sido encomendada pela Nasa. Toda branca por fora, com linhas suaves e um formato que se assemelha a um bico de tucano, emite sons e luzes relaxantes, e já foi adotada em megaempresas como a Procter & Gamble, que divulga

abertamente o uso dela em suas unidades, escolha que “renova as energias dos empregados”. Outras gigantes, principalmente do ramo da tecnologia, como a Google e a Cisco, já incorporaram a “política de recarga”. Sem falar no governo de Queensland, estado do nordeste da Austrália. Em Pernambuco, o Cesar (Centro de Estudos Avançados do Recife, parte integrante do polo Porto Digital) ainda não foi tão longe, mas já disponibiliza uma sala com pufes para que os funcionários descansem. Mas não é toda empresa que tem o privilégio de manter um espaço só para descanso. É por isso que estão aparecendo as “casas de cochilo”. No Brasil, elas são mais presentes em

São Paulo, cidade onde as pessoas apressam o passo até na escada rolante. São lugares com poltronas, redes e pufes. Na capital paulista, até restaurantes reservam espaço para a soneca, como o Bello Bello, situado na zona oeste. O antigo e ocioso porão do local virou uma sala de repouso, com quatro futons. Embora a frequência tenha aumentado após a mudança, velhos hábitos (como o de reservar o horário de almoço ao pagamento de contas e à busca dos filhos na escola) ainda geram alguma resistência. Em outra grande cidade brasileira, o Rio de Janeiro, outra casa de cochilo atende seus clientes com mais tecnologia. O espaço Pausadamente foi concebido para sugerir repouso,

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Crônica

Pedro salgueiro da Preguiça como mÉtodo de guerrilHa Desde que me entendo por gente, sou um sujeito lesado. Minha mãe diz ter suspeitado até quase o oitavo mês de que eu não nasceria, tamanha era minha imobilidade intrauterina: não chutava, não me virava, permaneci (para desespero dela e do médico) quietinho até a véspera do parto. Até a véspera não, até a hora exata, pois mesmo já enxergando a luz forte vinda da janela do quarto de minha avó, ainda aproveitei para uma última e descompromissada cochiladinha dentro daquele líquido quentinho. Claro, não sou bobo, nasci a fórceps. Cresci um menino mofino: vivia pelos cantos, coçando a cabeçona cheia de lêndeas. Por conta disso, levei muitos cascudos de meu pai, bastantes gritos de minha mãe, além de mangação dos amigos e irmãos.

Em compensação, na escola, eu era o mais comportado. Não por convicção, verdade se diga, mas por puro comodismo, preguiça mesmo de fazer bagunça. Logo, fui me tornando um adolescente atípico, preferia músicas lentas, ambientes despovoados, colegas tristes, os esportes menos radicais. Jogar bila e soltar arraia eram minhas brincadeiras preferidas, nelas desenvolvi grandes habilidades. Mesmo no futebol, esporte obrigatório no colégio e no bairro, escolhi (claro) a posição de “beque parado”: compensava com um bom passe a minha total falta de mobilidade. Nunca entendi por que me apelidaram de “coqueiro”, que não foi o pior dos muitos apelidos que levei pela vida afora. “Marcha lenta”, “Devagar com câimbra”, “Recordista de 100 metros rasos para tartarugas” e mil outros mais. Se na época já se falasse em bullying, eu seria um caso a ser estudado pela universidade. Mas, graças a Deus, tornei-me um adulto tranquilo, casei-me cedo... porque sempre fui caseiro, para desespero dos de casa. Tenho um verdadeiro fascínio por televisão, que

minha adorada esposa diz (sem dó) ser o vício predileto dos malandros. Também adoro livros, muito embora passe meses para terminar um reles voluminho de contos. Poesia é minha preferência, haicais especialmente. Com o tempo, fui me aventurando pela prosa, contos e crônicas sempre, romances jamais. Até arrisco escrever alguns minicontos e ganhei diversos concursos literários. Ah, sim, meu livro preferido é Da preguiça como método de trabalho, do mais que “acomodado” e querido poeta Mário Quintana, e a música que vivo cantarolando por aí é Soy latino-americano, de Zé Rodrix, um “molenga” convicto. Concluí a faculdade de Turismo em longos 12 anos, quase o triplo do tempo permitido e quando já havia recebido vários avisos ameaçadores da coordenação. Mas terminei, mesmo tendo que colar grau em data especial, pois esqueci o dia da solenidade. E, como todo bom “descansado”, passei mais alguns anos pensando num emprego que se adaptasse ao meu ritmo, o que, com a ajuda de amigos e familiares, não foi lá muito difícil. Hoje, sou um modesto funcionário público,que

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divulgação

cumpre todo santo dia o calvário de bater ponto, não sem contar (e marcar no calendário sobre a mesa) religiosamente os dias que faltam para a minha tão sonhada (e ainda distante) aposentadoria. Atravessando a meia idade, vou adquirindo o meu ritmo ideal, pois o avançar dos anos vai me concedendo os álibis necessários para uma vivência mais tranquila. Mas, para fechar minha penosa missão aqui na Terra, decidi finalmente fazer um mestrado, sonho antigo de quando ainda terminava a faculdade (e lembrado até a exaustão por minha família em muitos enchimentos de saco). Escolhi o tema, soletrando na cartilha de Dom Gilberto Freyre e rezando na igreja de São Cascudo: a lenta e eficientíssima guerrilha (mais eficiente que o magistral pacifismo de Ghandi) movida pelos nossos “preguiçosos” indígenas contra o ganancioso explorador europeu que aportou em nossos “tristes trópicos”. Tática tão eficiente, que os forasteiros tiveram que recorrer ao continente africano para conseguir mão de obra escrava para seus nefastos projetos. Até escolhi (mentalmente, claro) a bibliografia a ser usada e, principalmente, já elegi a eficientíssima arma usada pelos nativos em seu paciente (e vitorioso) empreendimento: a rede. Esse que talvez seja o símbolo maior dessa maravilhosa guerrilha, com o qual nosso primeiro habitante enfrentou e venceu o poderoso inimigo. Objeto lúdico e mortal que, hoje em dia, apenas o vizinho e pobre estado do Ceará usa. P.S.: Até já teria começado a rabiscar as primeiras linhas de meu projeto, não fosse a encomenda de uma croniqueta de duas páginas sobre a “preguiça”, feita pela prestigiosa revista Continente de Pernambuco, que me consumiu os meses de dezembro e janeiro todinhos, e que talvez ainda me leve uns bons dias de revisão.

8 carl honoré Em Devagar, o jornalista narra sua jornada junto a um movimento europeu que prega a desaceleração

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Começam a aparecer no Brasil “casas de cochilo”, especializadas em oferecer um espaço para descansar

a começar pela arquitetura. O lugar é desenhado em linhas curvas, para facilitar o fluxo de energia. Ele ainda conta com luzes coloridas e em degradê que seguem conceitos de cromoterapia (prática que busca a harmonia do corpo e da mente). As cabines são equipadas com poltronas especiais, inspiradas no modelo que a Nasa adota em situações de gravidade zero. O cliente fica deitado com os joelhos acima do nível do coração, o que produz uma sensação de relaxamento. De acordo com a empresa, a posição ainda reduz os batimentos cardíacos.

BEST-SELLERS

Descansar tem se revelado um bom negócio, também, no campo literário. Desde o lançamento de O ócio criativo (Domenico de Masi), diversos escritores têm obtido sucesso na apologia ao descanso. Depois

do best-seller, vieram obras como Devagar, do jornalista escocês Carl Honoré. O livro é resultado de uma pesquisa envolvendo entidades de um movimento europeu que preconiza a desaceleração, e narra a jornada de Honoré em meio a espaços de retiro. Mais recentemente, o americano Timothy Ferris alcançou o topo da lista dos mais vendidos com o inusitado Trabalhe quatro horas por semana. Ferris, um palestrante de mão-cheia, premiado até pela conceituada revista de tecnologia Wired, prega no livro a “ignorância seletiva”. O autor, que trabalhava oito horas por dia, foi reduzindo a carga, até que chegou às quatro horas, sem deixar de viajar e investir (menos) na aposentadoria. Antes um bem-sucedido professor de Princeton, Ferris mudou de vida após a namorada acabar o relacionamento, deixando-lhe o recado: “Seu trabalho deveria acabar às cinco da tarde”. Depois do rompimento, ele abandonou o emprego e viajou por 18 meses, num longo sabático. Então, de um professor com apego excessivo ao trabalho, ele passou a exemplo de como realizarse pessoalmente aconselhando os indivíduos a não negligenciarem outros aspectos da existência.

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Entrevista

olgária matos “preguiça e ócio contradizem a lógica do acúmulo” Muito se fala sobre a preguiça, mas,

como ocorre a vários verbetes, no uso cotidiano, nunca sabemos se estamos nos referindo ao mesmo conceito, partilhando a mesma ideia. Preguiça é não fazer nada, não produzir? Rende ou não rende frutos? Coincide com ócio? É benéfica ou é “pecado”? Em 2011, no evento Mutações, organizado por Adauto Novaes, a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo, Olgária Matos, apresentou uma reflexão sobre o campo conceitual em que se inscreve a preguiça hoje. Olgária, que também assina o prefácio do livro O direito à preguiça, de Paul Lafargue, conversou com a revista Continente sobre a experiência e o uso desacelerado do tempo, e sua aparente incompatibilidade com a sociedade contemporânea. CONTINENTE Na perspectiva filosófica, como diferenciaríamos preguiça de ócio? OLGÁRIA MATOS A preguiça – a priguizia latina –, em seu sentido primordial, diz respeito ao tempo lento, contrário à pressa ou a urgências, como se o presente vivido coincidisse consigo mesmo, um tempo em que qualquer alteração significaria uma perda desse estado de plenitude já realizada. É um tempo também dos retardamentos e da não ação, mais próximo da contemplação, que é a forma suprema da atenção. O ócio, a scholé, era uma temporalidade dedicada “àquelas coisas que merecem que se dedique o tempo”. Por uma miraculosa evolução, veio a significar “escola”, o tempo voltado para a formação do espírito, para os “cuidados de si” com vistas à virtude e à felicidade, à busca da harmonia consigo mesmo e da concórdia na cidade. A preguiça como condenável só veio a ser comparada ao seu simétrico oposto, a atividade desmedida, com o advento

da “ética protestante e do espírito do capitalismo” que, em sua fase atual, se realizou com a universalização da ética do novo-rico, para a qual “tempo é dinheiro”, entendido como valor supremo. O novo-rico é aquele que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece o seu valor. Preguiça e ócio, bem como seus corolários, que são todos os saberes não vinculados a resultados materiais – as “humanidades” –, são proscritos. Preguiça e ócio contradizem a lógica do acúmulo, acréscimo e reposição do capital e do mercado consumidor, ligados à aceleração e ao não pensamento. CONTINENTE Em que aspectos a experiência do tédio se aproxima ou se afasta das duas citadas anteriormente? OLGÁRIA MATOS O tédio – o ennui baudelairiano – é a experiência de um tempo que se arrasta, herdeiro da acídia medieval (a “tristeza do coração” ou o “coração pesado” e “maus pensamentos”), quando o anacoreta solitário, nos desertos de Alexandria, nos quais buscava a ascese até Deus,

calcinava ao sol e o dia lhe parecia insuportavelmente longo. O tédio é o desgosto de existir, que traz consigo o sentimento da perda do sentido das coisas e do passado, dos valores estimados que fazem do presente um tempo de planura, prosaico e sem maravilhamento. Mas o tédio baudelairiano é, simultaneamente, um contato com a interioridade de um sujeito e a consciência de um mundo esvaziado de sentido, porém, que exige do spleenático criação contínua. Não por acaso, Baudelaire escreve um livro cujo título é Spleen et idéal. Pelo spleen (palavra inglesa que significa tédio), o sujeito fica prisioneiro do passado, experimentando um luto do impossível, pelo qual ele sonha o futuro, vivendo esse conflito de que nasce a criação. CONTINENTE Em que sentido nós podemos entender o preguiçoso como um artesão do vazio? OLGÁRIA MATOS O preguiçoso vive um tempo pleno de bem-estar e de conforto moral, enfrentando o vazio sem tédio, quer dizer, sem angústia,

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tempo não passa e, simultaneamente, a vida é por demais breve. Baudelaire caracterizava a modernidade como o “desaparecimento no mundo dos vestígios do pecado original”, com o que indicava a imersão total do homem na matéria, incapaz de transcendência, que se desconhece a si mesmo, que se procura no exterior, dispersando-se no mundo das coisas sem sentido para os fins do autoconhecimento, do autoaperfeiçoamento, para o reconhecimento de suas possíveis fontes de prazer e satisfação.

porque é um tecelão do tempo, exerce a autodeterminação, não espera que de acontecimentos externos, da indústria do entretenimento ao mundo do trabalho pelo trabalho, da ação pela ação, advenha o bemestar. Um ceticismo mitigado — uma certa afasia, apatia e ataraxia — faz com que o mundo do preguiçoso seja um mundo antiviolência, descente do poder do ser humano de mudar totalmente o curso do mundo por sua simples vontade, mais afeito à “força das coisas”, a tudo que escapa ao poder do homem. CONTINENTE Quais as principais dificuldades para o homem contemporâneo alcançar certa indiferença à duração? OLGÁRIA MATOS A cultura contemporânea – a pop, se se pode dizer – é anti-intelectual, violenta e brutalista, além de ser cultura das novidades, associada ao fetiche das inovações, fazendo apologia ao curto prazo e o desejo de “economizar o tempo”. Mas quanto mais tecnologia se produz para isso, menos tempo se tem. De onde a antinomia de que o

CONTINENTE Poderíamos dizer que vivemos num tempo de pouca sabedoria dos usos do tempo? OLGÁRIA MATOS O tempo na sociedade de massa, do mercado e do espetáculo se caracteriza pela ilimitação e pela valorização do excesso: obesidade mórbida, anorexia, bulimia, esportes radicais etc. A temporalidade que subjaz a essa sociedade é patológica, porque incapaz de criar ou reconhecer valores, pois esses dependem da noção e da experiência do limite, do reconhecimento do permitido e do interdito, face ao qual haveria as transgressões. Na cultura da desinibição, desaparece a ideia de tabu, nada é realmente proibido e, no entanto, nada é realmente possível. Por isso a ação pela ação – o ativismo contemporâneo é uma das figuras da inação, porque movimento para nada, simples mobilização infinita. Todos os laços que necessitam do longo-prazo – relações de amor, amizade, entre pais e filhos, no trabalho etc. – tendem a desaparecer na mudança incessante e sem “objetivo final”. Essa temporalidade sem “sabedoria” é em tudo diversa da percepção humanista da brevidade da vida e, por isso, da necessidade de bem-viver, a que se dedicavam o pensamento e a ação. Metafísica da impermanência, da lei do efêmero, da vanidade de tudo e da grandeza do instante caracterizava a percepção do tempo como busca da sabedoria nos seus usos, porque viver não é senão uma certa maneira de usar o tempo. O “homem contemporâneo” é o resultado ou o agente de

uma cultura da incuriosidade, incapaz de sublimação. CONTINENTE Hoje, algumas empresas estabelecem espaço e tempo para o ócio e o descanso na rotina do empregado. Por outro lado, o tempo do lazer parece ter sido contaminado por uma lógica produtiva, pois tentamos estabelecer um “superaproveitamento” do tempo livre. Como você avalia esse diálogo entre preguiça e trabalho na contemporaneidade? OLGÁRIA MATOS Com o fim da “longa duração”, as formas tradicionais do trabalho, fundadas no desenvolvimento de uma profissão, na valorização do mérito, da constância, da perseverança, foram substituídas pelo trabalho temporário, e o ócio converteu-se em otimização do tempo de trabalho, de um trabalho sem experiência, como Walter Benjamin o compreendeu na expressão “experiência da pobreza e pobreza da experiência”. É como o jogador que recomeça sempre do zero a jogada. Seu gesto é vazio, carente de recordação, repetitivo e sem sentido algum. CONTINENTE A preguiça facilita ou dificulta os processos de dominação? Por quê? OLGÁRIA MATOS A questão assim colocada é de difícil resposta porque põe, latente, a ideia de que o homem é um ser inteiramente social. Seria preciso lembrar que, além da vida pública, existe a dimensão da vida privada e da intimidade. A preguiça é tão constitutiva do homem como a exuberância. Lembre-se de que durante o Terror, na Revolução Francesa, o simples fato de não afetar entusiasmo pela revolução e seus métodos fazia do tímido, por exemplo, um “inimigo da República” e um suspeito punível pela guilhotina. O que se pode pensar é que a preguiça está mais ao lado da “resistência passiva”, do “pacifismo”, da não violência e da reflexão não apressada. Ela seria um “parar para pensar”, face a que o ativismo significaria “parar de pensar” para agir prontamente. Ambos são importantes para a vida social e para a vida do espírito, para o jogo entre a solidão da subjetividade e o rumor da praça pública. gianni paula de melo

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jornais Contra a força bruta? Palavras!

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Livros avaliam a atuação da “imprensa nanica”, profusa nas décadas de 1960 e 1970, e produzida por sindicalistas, intelectuais e anônimos que resistiram à ditadura militar texto Marcelo Abreu

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A imprensa alternativa brasileira,

que marcou época nos anos 1960 e 1970 como instrumento de resistência à ditadura militar, volta a ser tema de debate com a publicação de três livros que tratam do assunto, além de uma série de depoimentos lançados em vídeo. Os chamados jornais nanicos variavam muito em qualidade editorial, na apresentação gráfica, no perfil dos colaboradores, na capacidade de chegar aos leitores através de assinaturas ou de vendas avulsas em bancas e eventos políticos. Muitos não passavam dos primeiros números. Mas todos tinham em comum a coragem de enfrentar o sistema, a censura e as ameaças e marcar sua posição política com clareza e determinação. O livro As capas desta história, lançado pelo Instituto Vladimir Herzog, é possivelmente a publicação mais completa já feita sobre os alternativos. Coordenada pelo jornalista Ricardo Carvalho, a obra, em grande formato (38cm x 29cm), quase no tamanho original, reproduz capas de jornais não convencionais e clandestinos que circularam no Brasil desde o começo do século 20 até o fim da ditadura militar, em meados dos anos 1980. O forte são as publicações de esquerda e as ligadas à contracultura dos anos 1970. O livro traz também um acervo de capas de jornais e boletins lançados no exterior, em línguas como o italiano, francês e sueco, que exerceram o papel de veículo entre os exilados e de apoio aos ativistas políticos brasileiros. As capas demonstram a riqueza da cena cultural nacional na oposição ao regime militar. Dependendo de quem fazia o jornal, as linhas editoriais iam do deboche humorístico às discussões teóricas a respeito do processo revolucionário brasileiro dentro da ótica marxista, da luta sindical ao desbunde contracultural. No livro, estão fac-símiles de publicações, como a revista PifPaf (lançada por Millôr Fernandes, em 1964, e considerada como iniciadora do período mais fértil da imprensa alternativa no Brasil), de O Sol, jornal que circulou diariamente durante alguns meses de 1967, e do Opinião (semanário muito importante criado pelo empresário nacionalista Fernando Gasparian, em 1972).

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1 movimento Fundado em 1975, cobriu as greves e o surgimento do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva a hora social 2 De matriz trabalhista, teve origem entre 1919 e 1920, no Recife o pasquim 3 Hebdomadário carioca, de 1969, reuniu elenco competente de redatores e desenhistas

4 de fato Impresso foi criado, em 1976, por jornalistas que se demitiram do Jornal de Minas, que defendia as ações do regime militar

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5 pifpaf Idealizada por Millôr, inaugurou, em 1964, o ciclo da imprensa alternativa contra a ditadura no país 6 gasparim Empresário foi o criador do jornal Opinião raimundo pereira 7 O jornalista pernambucano (4º à esq.) editou os jornais Movimento e Opinião

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Há curiosidades, como o jornal anarquista O Inimigo do Rei, publicado na Bahia. A Tribuna Metalúrgica, lançada em 1971 pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, tinha como diretor um certo Luiz Inácio da Silva. O católico O São Paulo era da arquidiocese, comandada por Dom Paulo Evaristo Arns. O Coojornal, de Porto Alegre, era formado por uma cooperativa de jornalistas. Novos Rumos foi o jornal oficial do PCB até 1964. Tição, do Movimento Negro Unificado, apareceu em 1978. O Porantim, do Conselho Indigenista Missionário, teve sua primeira edição no mesmo ano e existe até hoje. Estão também lá o Amanhã, do Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, e A Classe Operária, órgão oficial do PCdoB, que virou apenas um boletim mimeografado nos anos mais pesados da repressão; O guerrilheiro, da Ação Libertadora Nacional de Carlos Marighella; a Tribuna da Luta Operária, do PCdoB, e a Voz da Unidade, do PCB, que surgiram já no processo de redemocratização, em condições menos adversas.

O grande formato de As capas desta história proporciona também uma apreciação sobre os padrões gráficos usados na época, as inovações estéticas às vezes feitas em oficinas gráficas clandestinas e muito precárias. Sendo um dos principais títulos da imprensa alternativa brasileira, um jornal em especial mereceu estudo somente para ele. Trata-se do livro Jornal Movimento – uma reportagem, de Carlos Azevedo, da Editora Manifesto. Em 336 páginas, a obra conta, a partir de novos depoimentos, a trajetória da publicação que circulou entre 1975 e 1981. Os personagens que participaram da elaboração do Movimento relembram como decidiram sair do Opinião e fundar o novo semanário, criando uma espécie de cooperativa de jornalistas que vendia ações aos simpatizantes. Tinha entre seus apoiadores a nata da intelectualidade progressista da época. Nomes como Fernando Henrique Cardoso, Chico Buarque de Holanda e Hermilo Borba Filho faziam parte do conselho editorial. O grande personagem do Movimento é o jornalista pernambucano

Raimundo Rodrigues Pereira, nascido em Exu e radicado em São Paulo desde criança. No livro, Pereira passa em revista as dificuldades para criar e manter o jornal, as constantes polêmicas internas, a luta contra a censura e a decisão de fechar a publicação, em 1981.

FENÔMENO MUNDIAL

A imprensa alternativa foi, durante boa parte do século 20, um fenômeno mundial. Em 1973, o filósofo JeanPaul Sartre caminhava pelas ruas de Paris vendendo exemplares do Libération, diário de tendência maoísta do qual foi diretor por um ano. Nos Estados Unidos, jornais como The Village Voice e o The East Village Other, ambos de Nova York, eram a voz da cultura underground. A própria Rolling Stone, hoje publicada em vários países, começou como uma revista alternativa na Califórnia, em 1967. A existência de um conselho de redação no qual todos tinham voz e voto, como existia no francês Le Monde, nos anos 1970, fascinava os jornalistas de muitas partes do mundo que buscavam uma imprensa mais independente e engajada. O Recife também teve sua imprensa alternativa (não citada nos livros acima). Ainda que tenham sido experiências muito incipientes, houve por aqui jornais que ajudaram a movimentar intelectuais, poetas, jornalistas e cartunistas no início dos anos 1980, com títulos como O Rei da Notícia, Universo, O Eventualloyd, Papa Figo, Príncipe e Oxente. Os livros sobre a imprensa alternativa de décadas passadas suscitam uma série de discussões importantes sobre os motivos que causaram a diminuição no ímpeto de contestação através das palavras impressas em jornais e revistas. Diante da diversidade e quantidade de publicações do passado, é inevitável que se pergunte como foi possível que a redemocratização do país e as facilidades atuais de publicação não tenham, paradoxalmente, ajudado a imprensa alternativa. Seria necessário um regime de exceção a fim de que jornalistas, pensadores e intelectuais se mobilizassem para

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questionar o sistema através da palavra escrita? Que papel teria o surgimento da internet na dispersão dos interesses, num momento em que tudo pode ser publicado (pelo menos, online) e todo mundo fala, mas parece que ninguém escuta? Raimundo Pereira, respeitado por ter transitado entre órgãos da grande imprensa, como Veja e Realidade e os principais alternativos, como Opinião e Movimento, acredita que a imprensa nanica ainda é necessária porque “acabou a ditadura militar, mas veio a ditadura do capital financeiro”. Pereira diz que blogs independentes não substituem o jornalismo alternativo de qualidade. “Não se pode combater fatos apenas com opiniões. É preciso uma apuração jornalística profissional. É um delírio liberal achar que cada um pode fazer sozinho um jornal em casa, através da internet”, afirma.

DOCUMENTOS DA CENSURA

Outro livro que trata da relação entre a palavra impressa e o regime militar é Repressão e resistência – censura a livros na ditadura militar, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). A autora Sandra Reimão reúne artigos, escritos originalmente para revistas acadêmicas, que detalham a atuação dos censores no caso de livros hoje

Para Raimundo Pereira, os blogs independentes não substituem o jornalismo alternativo de qualidade

famosos, como Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós. Aborda também a censura a revistas como a Status. O trabalho de Reimão tem a virtude de resgatar, nos arquivos, os originais dos despachos das autoridades, que são interessantes para se observar a lógica que determinava as decisões de tirar de circulação uma publicação jornalística ou um trabalho artístico. Os pareceres emitidos pelo serviço de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal são particularmente ilustrativos. Através de números, o livro deixa claro como a repressão não funcionava em todos os momentos, deixando passar muita coisa que só era apreendida depois de chegar ao comércio. Repressão e resistência mostra também que as sugestões para a censura de livros e revistas partiam, muita vezes, de reclamações feitas por leitores que escreviam

ao ministro da Justiça pedindo providência para que determinados assuntos não fossem abordados em livros escolares, por exemplo. Os protagonistas desta história – a imprensa alternativa, clandestina e no exílio no período 1964 - 1979 (do golpe à anistia), também do Instituto Vladimir Herzog, é uma série de 12 DVDs que reúne 60 entrevistas com personagens que vão de Ziraldo (Pasquim) e Ana Arruda Callado (O Sol) a Bernardo Joffily (Tribuna da Luta Operária). Lá também se encontram depoimentos de jornalistas que, não tendo se notabilizado exatamente na imprensa alternativa, foram importantes com seu trabalho na resistência à ditadura, como Fernando Morais, Juca Kfouri e Fernando Pacheco Jordão. Por ironia da história, a trajetória desses jornais que combatiam o governo militar e o capitalismo chega hoje aos leitores com patrocínio oficial do Ministério da Cultura, de órgãos estatais e até do grande capital privado. A Petrobras, por exemplo, financiou a coleção de DVDs e o livro sobre o Movimento. O BNDEs financiou As capas desta história, que teve o apoio também de grandes empresas privadas, como Souza Cruz e Camargo Corrêa. Repressão e resistência foi publicado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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CANGAço Feminismo acidental

Estudos a respeito de Maria Bonita, companheira de Lampião, e de outras mulheres que aderiram ao banditismo, apontam para uma insuspeita relação de igualdade entre gêneros nos bandos TEXto Danielle Romani

A imagem é reveladora: em

plena caatinga, num intervalo entre combates com as volantes, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, deixase flagrar em cena íntima. Diante da câmera do cinegrafista síriolibanês Benjamin Abrahão, o Capitão Virgolino – de quem poucos podiam se aproximar – permite-se ser penteado pela companheira Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, que viria a se tornar Maria Bonita. O ato de carinho aponta para uma mulher zelosa, ocupada do seu amado. A felicidade conjugal da baiana Maria Déa, ou Maria do Capitão, era perceptível. Jovial, sorridente, a figura flagrada no ano de 1936 por Benjamin – no único filme que registrou o bando – mostra um momento de descontração num período de intensa perseguição aos cangaceiros. Imagem de uma sertaneja que não fazia a menor ideia da importância que teria na história nordestina. Apesar de não poder antever esse futuro, Maria tinha consciência da importância do seu papel como mulher de Lampião. “Ela encarou as

lentes da câmera com ar zombeteiro, mas imponente. Sabia que tinha poder”, diz o sociólogo Erivan Felix Vieira, autor de Coronelismo e cangaço no imaginário social. Nas comemorações do centenário do seu nascimento – que se encerram este mês – , a história de Maria Bonita foi revista por vários pesquisadores. A fama de que era cruel – forjada no passado – foi rechaçada. Maria Déa é uma das poucas unanimidades entre os que se dedicam a estudar o tema, descrita como uma personagem determinada, corajosa e apaixonada. “Maria Bonita tinha alguma coisa de superficial, de vaidosa. Um jeito meio de moleca, meio de meninona... Era amiga com quem simpatizava e arengueira com quem não gostava, mas fiel e ousada. Seguiu Lampião porque quis. Teve peito para desafiar a sociedade sertaneja. O Capitão, por sua vez, era apaixonadíssimo por ela e a chamava de Santinha. Os dois se amavam verdadeiramente”, descreve o historiador Frederico Pernambucano de Melo, que a considera a mais autêntica das cangaceiras.

OLHOS AZUIS

No livro A dona de Lampião, lançado este mês, a jornalista e pesquisadora Wanessa Campos traça um perfil da mulher e do mito. E traz algumas informações recentes. A primeira delas é a possibilidade de Maria não ter nascido em 8 de março de 1911, data oficial do seu aniversário. Segundo uma certidão de batismo encontrada pelo sociólogo Voldi Ribeiro, de Paulo Afonso, na paróquia São João Batista de Jeremoabo, também na Bahia, ela teria nascido em janeiro de 1910. Mas não há consenso na veracidade dessa datação. Outra especulação diz respeito à aparência física de Maria Déa, que teria os olhos claros. “Ela era morena clara, tinha mais ou menos 1,58m de altura, pernas grossas, busto pequeno (o que na época era valorizado), dentes perfeitos. Suas irmãs Antônia e Dorzinha, diziam que ela tinha olhos azuis. Uma geneticista que consultei me afirmou ser isso possível, visto que elas tinham uma avó holandesa. Mas achei melhor me acautelar e considerar que Maria teria olhos claros, mas não totalmente azuis”, pondera Wanessa. Maria entrou

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b.abrahão/aba-film/família ferreira nunes/reprodução do livro estrelas de couro - a estética do cangaço

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1 casal Maria Bonita e Lampião em foto de Benjamin Abrahão, datada de 1936 2-3 sobrevivente Sila (segunda, da esquerda para a direita) relatou , na maturidade (D), sua passagem pelo bando no livro Angico, eu sobrevivi

História

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no bando aos 20 anos, em 1930, após um flerte iniciado com Virgolino, no início de 1929, no sítio Malhada de Caiçara, a 38km de Paulo Afonso. Nesse dia, segundo testemunhas, os dois conversaram muito. “Houve uma simpatia recíproca. Maria tinha então um pouco mais de 19 anos e Lampião, 30”, descreve a jornalista. Virgolino

passou a visitar a fazenda, a despeito do marido de Maria, Zé de Neném, o José Miguel da Silva, com quem a sertaneja se casara aos 15 anos, e de quem já tinha se separado várias vezes. A presença do cangaceiro rapidamente atraiu a ira das volantes sobre a família, que teve de mudar-se para Alagoas. Foi então que a jovem escolheu seguir

com Lampião. “Maria demonstrava alegria, quando largou a família. Trocou o vestido de voile estampado por uma mescla azul de mangas compridas, meias, perneiras de lona, alpercatas, lenço no pescoço, chapéu de abas largas, bornais, cintos, alforjes”, descreve Aglae Lima de Oliveira, no livro Lampião, cangaço e Nordeste.

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reprodução do livro angicos eu sobrevivi

acrisio siqueira/reprodução do livro angicos eu sobrevivi

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Apesar de não ter sido considerado bonito, Lampião tinha charme e atrativos. “Aqueles homens, vestidos de forma diferente, com ouro à vista e chapéu de couro, despertavam sonhos. Avistar um deles era como estar diante de um ídolo, de um artista famoso e rico”, descreve Wanessa. A beleza de Maria também suscita debates. O escritor Joaquim Goís, que a conheceu ainda adolescente, antes de Virgolino, descreve-a de forma impiedosa: “Uma cabocla apagada, rosto de linhas inseguras, olhar vago, corpo solto em desalinho, seios bambos”. Bem distante da musa cantada pelos cordelistas e cantadores. Retrato questionado por cangaceiros que conviveram com ela e por suas irmãs. “Os que a conheceram dizem, inclusive, que ela não era fotogênica, que pessoalmente era muito mais bonita. Temos que levar em conta, ainda, que as mulheres do cangaço eram escolhidas pelos atrativos físicos. Lampião, certamente, encantouse com seus atributos”, pondera a jornalista. Nesse contexto, vale ressaltar que a alcunha “Maria Bonita” só veio a ser usada um ano antes de sua morte, e, ao que tudo indica, foi criada pela imprensa do Sudeste, para dar um tom mais atraente às manchetes de jornais. Quem

Estima-se que, entre 1930 e 1936, cerca de 40 mulheres passaram a integrar os bandos, interferindo no cotidiano deles conta a história do apelido é Frederico Pernambucano. “O nome não apareceu no Sertão. Foi coisa dos repórteres do Rio”, explica o historiador. O termo, por sua vez, originou-se de um romance de Afrânio Peixoto, do início do século, que foi transformado em filme homônimo, em agosto de 1937. O fascínio da sertaneja pelo que lhe oferecia Lampião era compreensível. “Maria Déa queria apenas sair daquela vida ‘todo dia sempre igual’, deixar o marido infiel, livrar os pais da perseguição da polícia e dar um novo destino à própria vida. Afinal, o que ela tinha a perder? Amava Virgolino, sentia-se amada, ele era rico, iria ter uma vida diferente”, defende Wanessa. Presidente do Núcleo de Estudos do Cangaço da União Brasileira de Escritores – Seção PE, a psicóloga social Rosa Bezerra defende que a decisão tomada por Maria foi a de uma mulher à frente do seu tempo.

“Apesar de elas não terem consciência, o movimento dessas mulheres, de optar por seguirem os homens que amavam, gestou o feminismo no Sertão. A mulher sertaneja era treinada para ser doméstica e nada mais. No bando, uma vida nova se apresentava: elas não cozinhavam, não lavavam, eram tratadas como rainhas, uma vez que o cangaceiro era acostumado a fazer tudo. As mulheres só entravam nessa partilha se quisessem. Depois, porque puderam viver sua sexualidade abertamente, puderam usar saias no joelho (quando na época a altura dos vestidos era nas canelas), puderam usar joias, se enfeitar. Se a gente for observar as roupas que elas usavam, existem semelhanças com as que adotamos na década de 1970”, defende Rosa, que é autora do livro A representação social do cangaço. Neta de Maria e Virgolino, a escritora e diretora da Sociedade do Cangaço, Vera Ferreira, assina o álbum Bonita Maria de Lampião, e diz que a avó não seguiu sozinha. “No caminho ao encontro de Lampião, Maria recebeu a companhia da ex-cunhada, Mariquinha, que também decidiu viver ao lado do cangaceiro Labareda. Uma interpretação em relação às sertanejas que se tornaram cangaceiras é de que elas, nativas de um ambiente árduo e sem perspectivas de mudanças,

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reproDução Do livro estrelAs de couro - A estéticA do cAngAço

buscavam, acima de tudo, entrar num novo mundo, e com proteção.”

HÁbitoS

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História

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freD jorDão/reproDução Do livro estrelAs de couro - A estéticA do cAngAço

Se os cangaceiros mudaram a perspectiva de vida dessas mulheres – estima-se que 40 delas se agregaram aos bandos, entre 1930 e 1936 –, elas também interferiram no cotidiano deles. Graças à presença feminina, os grupos se tornaram mais limpos, mais cordatos, menos violentos e mais vistosos nas roupas. No seu estudo, Wanessa Campos reforça essa ideia, batizando os anos entre 1930 a 1938 de período “mariadeano” (de Maria Déa). “Quando Lampião se apaixona por Maria Bonita, a partir de 1930, quase todos os coitos se dão nas cercanias da Bahia e de Sergipe, onde havia afluentes dos rios. Eles se fixam numa região dadivosa, com águas potáveis, águas puras. Passam a tomar banho quase que diariamente, coisa que não faziam antes delas”, explica Frederico Pernambucano. O historiador destaca, também, que a convivência das cangaceiras com as mulheres e filhas dos coronéis poderosos, aliados de primeira linha dos cangaceiros, mudaram os hábitos das primeiras. “Da convivência resultará o aprimoramento da estética presente em trajes e equipamentos, e o aburguesamento de maneiras: a máquina de costura, o gramofone, a lanterna elétrica portátil, a filmadora alemã em 35mm e a câmera fotográfica... É o tempo dos bailes perfumados, dos cheiros de Fleurs d’Amour, da casa Roger & Gallet, ou de Atkinsons, da Royal Briar”, explica Pernambucano. Ao admitir as mulheres, contrariando os ensinamentos do seu mestre, o cangaceiro Sinhô Pereira, Lampião não apenas dava novo rumo ao cangaço, como, sem querer, mantinha o costume brasileiro de acolher mulheres em campanhas militares. “Há registros dessa presença na Primeira Batalha dos Montes Guararapes, em 1648, às mulheres cabendo o amasso do pão na cozinha móvel do exército holandês. Ele retorna também à saga das vivandeiras, cantada em verso e prosa ao final do conflito da Guerra do Paraguai, quando as mulheres acompanhavam seus amados à guerra. Ou de Canudos,

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b.abrahão/aba-film/família ferreira nunes/reprodução do livro estrelas de couro - a estética do cangaço

4 utensílio A máquina era insdipensável para a confecção de objetos em tecido e couro enfeites 5 Na história do cangaço, consta a maestria na produção de bordados por Lampião e Dadá

6 laMPIÃO Para Frederico Pernambucano de Mello, o cangaceiro era exímio costureiro, superando outros “artífices” do bando

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em 1897, quando a mulher precisou enrijecer-se de amazona, para fazer frente às jagunças”, explica Frederico. Excelente estrategista, Lampião também se pautou na observação da Coluna Prestes, em 1926, que abrigava em sua formação centenas de mulheres, e que fez incursão pelo Nordeste. “As lições de 1926 devem ter vindo à mente do apaixonado de 1929 como um conforto providencial”, sugere o pesquisador. As mulheres do bando não pegavam em armas nem participavam das batalhas. A elas era dado um revólver para a defesa pessoal e, no caso de Maria Bonita, havia sempre guardiões ao seu redor, inclusive um ajudante pessoal, para auxiliá-la nas suas tarefas diárias. No livro Angico, eu sobrevivi, a sergipana Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, mulher de Zé Sereno, o José Ribeiro Filho, lembra que o maior temor das cangaceiras era serem presas pelas volantes. “Sabíamos que seriamos submetidas a estupros e atrocidades terríveis. Eles nos chamavam de prostitutas, e sonhavam em nos pegar para atemorizar nossos

A presença feminina foi fundamental para tornar os grupos mais higiênicos, menos violentos e mais vistosos nas roupas companheiros.” Sila, assim como Maria, nunca participou de batalhas. Aliás, o fato de que Maria jamais usou de violência leva muitos pesquisadores a afirmar que a sua morte foi uma arbitrariedade, pois a ela não eram imputados crimes, a não ser o de seguir o bando. Tudo indica que ela foi “massacrada” no dia 28 de julho de 1938, pelo simples fato de ser a mulher de Virgolino. No seu livro, Wanessa relata a crueldade com que o soldado Panta de Godoy abateu a baiana: “Quando avistei Maria Bonita, ela deu meia volta, correu, gritou: ‘Valha-me, Nossa Senhora!’. Eu atirei nas costas dela e ela caiu, fez uma corcunda e se levantou quando um soldado gritou: ‘Segura a bandida!’. O soldado Santo

cortou a cabeça de Lampião e, com o mesmo facão, eu cortei a cabeça de Maria Bonita. Ela ainda estava viva”.

DADÁ

A pernambucana Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, mulher de Cristino Gomes da Silva Cleto, o alagoano Corisco, era uma exceção nesse contexto. Exímia atiradora, valente – citada por alguns cangaceiros como “mais homem que os próprios homens”–, ela se notabilizou pela coragem e pela eficiência nos combates, usando revólveres, espingardas, rifles. Conta-se que era muito respeitada por Lampião, o que provocou os ciúmes de Maria Déa e o afastamento entre Virgolino e Corisco. Além de guerreira, foi a responsável pela confecção de bornais de bordados floridos em cores vivas, que passaram a ser usados pelos cangaceiros, em meados da década de 1930, segundo afirma Antônio Amaury Corrêa de Araújo. Frederico Pernambucano discorda dessa informação. Atribui a criação dos adereços ao próprio Lampião, que, segundo afirma, era excelente

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b.abrahão/reprodução do livro GENTE DE LAMPIÃO - DADÁ E CORISCO

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História 7

costureiro. “Dadá não tinha ascendência sobre o bando. Lampião, sim, ditava moda. Tenho peças bordadas por ele e por ela, e posso afirmar que as de Lampião são superiores em originalidade e qualidade”, diz. Coautora do livro Bonita Maria de Lampião, professora de Artes e Design da Universidade Federal de Sergipe, e desenvolvendo uma tese de doutorado sobre a estética do cangaço, Germana Gonçalves de Araújo foge da polêmica em torno dessas autorias. “É bobagem questionar isso. Devemos desabilitar as definições ‘verdadeiras’ acerca de quem deu início à aparência exuberante dos cangaceiros. Na minha opinião, não há importância ou polêmica quanto a isso. Ou seja, Dadá pode ter sido responsável por parte da estética cangaceira, mas foi Lampião quem aceitou e definiu os construtos de uma identidade”, afirma. Ela ressalta que, depois da entrada da mulher, a imagem do cangaceiro

As viúvas eram obrigadas a arranjar um novo companheiro no bando; caso contrário, poderiam ser mortas passou a ser menos agressiva. “O traje uniformizado recebeu novos e inusitados elementos. Flores, estrelas, joias e moedas são alguns dos ornamentos que, com base na geometria regular, foram organizados por princípios de composição e se tornaram arranjos com ritmo e simetria.”

RAPTOS

Apesar de apontados como cordiais companheiros, houve episódios que desabonam o discurso de que os cangaceiros eram gentis com as

mulheres. Dois exemplos chocantes são os de Dadá e de Sila. As duas foram raptadas e desvirginadas aos 13 anos de idade, quando ainda brincavam com bonecas e temiam a presença daqueles homens imponentes, vestidos com roupas extravagantes. No livro Gente de Lampião, Dadá e Corisco, Antônio Amaury Corrêa de Araújo transcreve o depoimento oral de Dadá sobre como ocorreu seu rapto. Primo distante, Corisco a conheceu na fazenda onde morava, e desde que a avistou preveniu o pai da menina que não a casasse com ninguém, porque ela seria sua. Tempos depois, inflamado por uma fofoca de que ele teria sido denunciado pela família de Dadá e de que a menina fora desflorada por um vizinho, Corisco foi à casa do pai de Sérgia, e comunicou: “Vim buscar a menina”. Segundo Dadá, no mesmo dia, Corisco a violentou. Ela sofreu hemorragia, ficou traumatizada

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b.abrahão/aba-film/família ferreira nunes/reprodução do livro estrelas de couro - a estética do cangaço

7 corisco e dadá Apesar de ter sido raptada e estuprada pelo cangaceiro, sua companheira lhe declarou posterior amor e afeto Segurança 8 As cangaceiras só usavam armas para defesa, ficando fora das batalhas

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física e mentalmente. Criou aversão pelo seu raptor, e passou a evitá-lo a todo custo. Com o tempo, diante do homem aparentemente arrependido pela brutalidade, ela perdoou o que ele lhe havia feito. Já idosa, ao relatar o primeiro encontro com Corisco, Dadá usou as seguintes palavras: “Eu, a Sussuaruna (como era chamada por um primo), não podia adivinhar que aquele estranho loiro, forte, alto, ombros largos, cabelos longos, olhos azulados, era Corisco, que iria ter influência decisiva na minha vida. Em companhia dele percorri, mais tarde, quatro estados, enfrentei lutas terríveis, tive momentos de grande alegria e outros de dor”. A declaração de Sérgia para o pesquisador Antônio Amaury, que a recebeu em casa para depoimentos durante cinco meses, leva o estudioso a concluir que Dadá era verdadeiramente apaixonada pelo companheiro, o

qual defendeu até a morte. “O amor deles era intenso. Um amor trágico, mas tão forte quanto o de Maria e Virgolino”, compara Amaury. Na opinião de Rosa Bezerra, a relação entre Dadá e Corisco, que teria tudo para ser infeliz, acabou sendo contornada. “Corisco a ensinou a ler e escrever, e a tratava como uma deusa. Dadá conseguiu perdoá-lo e ver o grande homem que ele representava”, aponta a psicóloga. Raptada da mesma forma por Zé Sereno, Sila também relembra o dia em que foi levada à força de casa. Poupada nas primeiras semanas, posteriormente foi violentada. O episódio é narrado por ela, no livro Angico, eu sobrevivi. “Comemos à vontade, pois a comida era farta e a pinga, saborosa. Naquela noite, conheci o sexo. Experiência ruim. Lua de mel tão amarga quanto as amarguras sofridas por mim nos dois anos seguintes do cangaço”, narra Sila,

que aprendeu a gostar de Zé Sereno, com quem viveu até a morte dele, em São Paulo, na década de 1960. Os cangaceiros não admitiam mulheres sem homem nos bandos. Caso ficassem viúvas, não poderiam permanecer no grupo, salvo se contraíssem matrimônio com outro integrante. “Se fossem rejeitadas, ou seja, se ninguém mais as quisesse, muito provavelmente seriam mortas. A informação difundida entre pesquisadores é de havia o temor quanto à possibilidade de que, ao voltarem à vida em sociedade, elas fossem pressionadas a contar onde ficavam os esconderijos do grupo”, afirma o historiador Jovenildo Pinheiro de Souza, que tem no prelo o livro Sertão sangrento: luta e resistência. Outra conduta imperdoável era a traição feminina, punida com morte, sem apelação. “Homem podia, mulher não”, contou Dadá. Cristina, mulher do cangaceiro Português, teve um caso, fugiu e tentou refugiar-se no grupo de Corisco. Não aceita, quando era levada de volta à família, foi emboscada e assassinada pelos companheiros do exmarido. Final ainda mais trágico coube à Lídia, mulher de Zé Baiano, outro integrante do bando de Lampião, morta a pauladas pelo companheiro por tê-lo traído com outro homem. Jovenildo ressalta, entretanto, que a traição era algo imperdoável em qualquer esfera social. “Fora do cangaço, ela também era punida sem piedade. Além disso, a mulher comum era maltratada e não tinha qualquer relevância. Com os cangaceiros, pelo menos, elas eram respeitadas, tinham deferências. Era uma sutileza, mas, no contexto da época, mostra a capacidade desses homens de respeitarem suas mulheres.” @ continenteonline Confira um trecho do livro Dadá - bordando o cangaço, da Editora Callis, escrito por Lia Zatz no site da Continente.

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Marlene Bergamo/Folhapress

Artigo

ANA PAULA PORTELLA COADJUVANTES NA HIERAQUIA DA CRIMINALIDADE Aos 102 anos, em fevereiro de 2012, morreu Dona Mocinha, a última irmã viva de Lampião. Apesar de retratada pela imprensa com o típico chapéu do cangaço, fazendo crer que seria ela também uma cangaceira, o que se sabe é que, por ser muito jovem à época, Dona Mocinha não chegou a participar do bando de Lampião. Mas a sua imagem com o adorno traz à memória outras mulheres, especialmente Maria Bonita e Dadá, as figuras emblemáticas da presença feminina no cangaço. O cangaço é um fenômeno que permanece ambíguo em nosso imaginário. Bandidos, heróis, justiceiros, aventureiros são epítetos que se misturam para compor a imagem desses homens e mulheres que marcaram a história do Nordeste na primeira metade do século 20. Independentemente de qual dessas imagens prevaleça e do julgamento que se faça a esse respeito, não se deve esquecer de que esses grupos constituíram um modo de vida alternativo aos rígidos padrões morais da sociedade da época. Em um vídeo sobre a sua vida (A musa do cangaço, de José Umberto Dias Brasil), Dadá, companheira de Corisco, descreve o cotidiano desses grupos e, em seu relato, é perceptível o encantamento pela forma como as atividades diárias eram divididas entre homens e mulheres e, principalmente, pelo respeito com que as mulheres eram tratadas pelos homens. Seu depoimento é curioso e importante por muitas razões, embora se deva ponderar sobre a nossa tendência natural de embelezamento do passado como uma forma de apaziguamento pessoal e de justificação perante o público. Mas, aqui, isso é irrelevante.

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Dadá foi levada ao cangaço como parte de uma vingança de Corisco contra seu pai, que supostamente teria denunciado à polícia um integrante do bando do cangaceiro. O rapto, um ato de violência cometido por homens armados, porém, não foi suficiente para produzir em Dadá sentimentos negativos com relação ao raptor. Pelo contrário, em sua fala, ela apaga toda a conotação violenta do episódio, reveste-a de características românticas, enfatizando os aspectos positivos de sua vida no bando, na qual o que sobressai é o carinho e o respeito que Corisco lhe tinha. Como líder do grupo, ele exigia dos demais que mantivessem igual postura com relação a Dadá.

Ela não fala sobre a vida que levava antes do cangaço, mas não é difícil imaginar como vivia uma jovem solteira no interior de um Nordeste extremamente pobre e isolado do litoral e de outras regiões do país. É farta a literatura sobre esse contexto, não preciso recorrer a ela, bastando lembrar que cabia à mulher os cuidados com a casa e com a família, acumulados com o trabalho agrícola na roça familiar. Sua mobilidade limitava-se ao perímetro doméstico e familiar e seu destino era seguir os passos da mãe, o que, com exceção do sexo, representava a repetição de sua vida na família de origem. Ao contrário do que se tentou fazer crer às mulheres durante séculos, esse não é e nunca foi um destino

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9 detentas

A maioria das presidiárias brasileiras envolveu-se no tráfico de drogas e, nele, ficou subordinada aos homens

muito atraente ou desejável, por isso é compreensível que, diante de outras possibilidades, as mulheres dele abram mão. E não foram poucas as que fizeram isso ao longo da história e em todos os continentes. Trata-se, na verdade, de um movimento de autonomia em direção à construção de possibilidades de vida mais satisfatórias. Pergunto-me se, sem o rapto, Dadá conseguiria fugir por vontade própria ou encontrar outros caminhos para a própria vida. Essa é a pergunta que deve ser feita diante da presença de mulheres em grupos que desenvolvem atividades criminosas. Que possibilidades são oferecidas a elas para que escolham ou construam seus modos de vida?

Entrar no mundo do crime é uma decisão que produz surpresa, quando o indivíduo em questão é uma mulher. Apesar das muitas representações das mulheres como seres desviantes e perigosos, quando se trata de delito, o que se sobressai são as imagens de cuidadoras, afetuosas, responsáveis pela manutenção dos vínculos familiares, que contrastam com a ideia detrangressão, especialmente a violenta. Daí o espanto. É verdade que tem aumentado a participação delas nesse universo, o que se atesta pelo crescimento do número de presidiárias e também pelos estudos que analisam a atuação de grupos criminosos em áreas periféricas de grandes cidades brasileiras. Apesar disso, elas ainda representam uma parcela muito pequena nesse contexto e, assim como nas atividades lícitas, concentram-se nos postos de menor poder e com menor capacidade de geração de recursos financeiros. O tráfico de drogas é o negócio que mais as atrai, mas também se registra a sua participação em roubos e assaltos, geralmente atuando como iscas, distraindo a vítima antes do ataque. De forma minoritária, encontramse mulheres que controlam o varejo de drogas em algumas áreas e que utilizam armas de fogo. De modo semelhante às cangaceiras, muitas vezes, a entrada das mulheres no crime é decorrente do envolvimento amoroso com um homem, que lhes garante proteção e abre caminhos dentro do grupo. Outra particularidade de sua situação – pouquíssimo explorada em documentos sobre o assunto – são as

experiências e os conflitos decorrentes da vida sexual, reprodutiva e familiar. Os raros estudos sobre esse tema sugerem que as mulheres que se envolvem com a criminalidade são muito jovens, iniciaram a vida sexual antes dos 15 anos e logo se depararam com a primeira gravidez, enfrentando os dilemas e possibilidades de interromper a gravidez ou de ter filhos, geralmente em relações afetivas tumultuadas com os rapazes e sem qualquer apoio por parte da família ou de instituições governamentais. Para algumas, esses novos acontecimentos se dão em contextos extremamente precários de violência doméstica, do uso de drogas, da exploração sexual e da vida na rua. É aí que se estabelece o início de uma trajetória que antecipa para a adolescência questões e situações da vida adulta, levando-as ao abandono dos estudos e dificultando o desenvolvimento de aptidões profissionais para a inserção no mundo do trabalho. Antes dos 20 anos, portanto, suas alternativas de vida já são bastante limitadas. O vínculo com um parceiro que detém certo poder na comunidade lhes oferece o sustento, a proteção e, em alguns casos, uma atividade com alguma rentabilidade. É compreensível o espanto das pessoas diante dessas escolhas, especialmente quando se comparam os limites vividos pelas mulheres há 80 anos às possibilidades oferecidas e aos direitos garantidos às meninas, hoje. O que parece escapar, aqui, é a noção de que as escolhas não se dão no vazio, mas dependem dos contextos em que vivem os sujeitos. Infelizmente, as circunstâncias de vida de algumas jovens brasileiras ainda sofrem as restrições da pobreza, da violência doméstica e da ausência de suporte para o controle efetivo da vida reprodutiva. Desse modo, a entrada na criminalidade pode se constituir como via de saída e alternativa a uma condição de vida pouco promissora – o que aproxima essas meninas das jovens mulheres que se juntaram ao cangaço e nos faz ver que, em certos aspectos da vida social e das relações de gênero, ainda há muito a ser feito.

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romeiros Na trilha da fé em Padre Cícero 1

Circuito de peregrinação congrega fiéis, artesãos e comerciantes, transformando Juazeiro do Norte no maior centro religioso do Ceará TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa

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Para qualquer romeiro que se

preze, ir a Juazeiro do Norte e não subir a pé a antiga Ladeira do Horto é o mesmo que ir à Jerusalém e não percorrer a Via Sacra até o lugar em que Jesus teria sido crucificado. Para muitos, o sacrifício deve ser ainda maior, o que os encoraja a verdadeiras penitências em que pedras são carregadas na cabeça ou parte do trajeto é percorrido de joelhos. Durante a Semana Santa, que sempre ocorre poucos dias após as comemorações de nascimento do Padre Cícero, em 24 de março, milhares de pessoas refazem, ao estilo sertanejo, os passos da Paixão de Cristo. O curioso é que muitos desses fiéis, geralmente devotos de primeira viagem, acabam

Muitos fiéis, devotos de primeira viagem, desistem de voltar para suas casas e fixam residência na região desistindo de voltar para suas casas e simplesmente decidem fixar residência na famosa ladeira. Os casos se multiplicam e fornecem uma pequena ideia da incrível força exercida pela religiosidade popular no interior do Nordeste. Em Juazeiro do Norte, mais especificamente no endereço conhecido como

“Subida do Horto”, onde a fé definitivamente está acima da razão. Um bom exemplo é a família de Manoel Soares dos Santos, que desde a década de 1960 vive numa casa em uma das curvas da ladeira. Ele conta que, quando morava em Alagoas, teve sucessivos sonhos que indicavam que ali não era o seu lugar. Em um deles, o Padre Cícero em pessoa apareceu e ordenou que arrumasse as malas e pegasse a estrada rumo a Juazeiro. Hoje, sentado numa velha cadeira de balanço, Manoel vê toda a sua família trabalhar na fabricação das tradicionais estátuas de gesso com a figura do “Padim”. A calçada vive abarrotada de pequenos “padrinhos cíceros” brancos que secam sob o

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escaldante sol do Cariri. Toda a casa foi transformada em oficina e três gerações trabalham na produção das disputadas peças religiosas. Além da tradicional imagem do líder cearense segurando seu cajado, a família recupera antigas imagens sacras, e, em épocas como a Semana Santa e o Natal, aproveita para fabricar soldados romanos açoitando Jesus ou presépios inteiros em variados formatos e estilos. “A maior estátua que fiz foi a de um beato de mais de cinco metros, sob encomenda de um comerciante de Santa Brígida, na Bahia”, diz Cícero dos Santos, filho mais velho de seu Manoel, enquanto retira da fôrma mais um “Padim Ciço” novinho em folha.

No entanto, antes de comprar as estátuas que irão abençoar as salas de milhões de casas nordestinas, os romeiros fazem fila no mais concorrido endereço da Ladeira do Horto. Ali, numa casa de vários cômodos, com uma sala repleta de imagens de santos, uma senhora de 98 anos resguarda a tradição da reza. Também natural de Alagoas – de longe, o estado que mais exporta devotos migrantes ao Juazeiro –, Alzira Mendes do Nascimento chegou ao local ainda criança, trazida pelas mãos de “Mãe Dodô”, devota contemporânea do Padre Cícero e que ficou célebre como a mais poderosa rezadeira da região. Com a morte de “Mãe Dodô”, em 1998, Alzira herdou a casa e, junto com ela, a missão de rezar os milhares de romeiros que batem à sua porta. Em romarias maiores, ela diz que chegou a atender a mais de 600 pessoas por dia. Hoje, com alguns problemas de saúde, ela não consegue manter o mesmo ritmo. Em Juazeiro do Norte, território em que a oração está na ordem do dia, as rezadeiras estão em todos os lugares, cada uma com o seu jeito próprio de exercer o dom. Francisca da Silva, outra devota do Padre Cícero, usa uma garrafinha com água, que coloca na cabeça de quem vai ser rezado. Outras usam ramos de plantas e apenas algumas palavras. Dando sequência à subida da ladeira, depois de passar pela estação em que Jesus cai pela segunda vez, encontramos Maria Luíza Nunes trançando a palha da carnaúba

Página anterior 1 imagem Romeiros fazem pose diante da estátua de concreto de 27 metros de altura do religioso Nestas páginas

2 memorial Peregrinos deixam lembranças de suas passagens por Juazeiro do Norte, em sala do Museu Vivo Padre Cícero 3 manoel soares Alagoano mudou-se para a cidade nos anos 1960 e passou a produzir estatuária com a família

e encorpando os chapéus que protegerão as cabeças dos romeiros, já devidamente rezadas algumas casas abaixo. Confeccionando as peças há mais de 30 anos, Maria Luíza trabalha hoje ao lado da sua mãe, Maria Izabel, uma senhora de 78 anos que lamenta que apenas um dos cinco filhos tenha aprendido o ofício. “Mas, por um lado, eu acho bom, porque eles estão estudando e podem ter melhores condições de vida”, espera. A artesã nasceu na própria região e, desde criança, é testemunha das cenas de devoção que fazem do caminho o mais autêntico palco para o espetáculo da fé sertaneja. Na famosa Missa do Chapéu, realizada anualmente na Igreja Matriz da cidade, milhares de romeiros se espremem para receber a benção e abanar no ar o chapéu de palha amarelo carregado de esperanças. A exemplo de Maria Luíza, diversos outros artesãos vivem ao longo da Subida do Horto, produzindo esse que talvez seja o mais tradicional item da indumentária do romeiro, depois, é claro, do onipresente escapulário com a imagem do “Padim”.

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Depois de apreciar a Santa Ceia esculpida na base da estátua do Padre Cícero, os romeiros se emocionam ao “encontrar” seu líder espiritual em tamanho natural, bem ali, na frente dos olhos. O Museu Vivo do Padre Cícero é, na verdade, a origem da famosa Ladeira do Horto. Foi aquele casarão que o religioso escolheu para

fazer suas orações e passou a viver durante muitos anos em companhia dos devotos. No local, estão réplicas de cenas cotidianas dele em momentos de descanso, de oração ou mesmo numa reunião com políticos locais na sala de jantar. A riqueza de detalhes impressiona os romeiros que, enfim, são recompensados pelo esforço

vivenciando uma espécie de audiência particular com o seu guia espiritual. Não raro, as pessoas confessam algo para um Padre Cícero estático ou simplesmente deixam bilhetes aos seus pés com pedidos de cura e agradecimentos por graças alcançadas. No altar da capela, ao lado do casarão, há uma imagem do Padre Cícero ladeada pela da Beata Maria de Araújo, protagonizando a cena que transformou a história de Juazeiro do Norte e que custou ao padre sua excomunhão por parte de Roma. Em 1889, durante a missa, uma hóstia teria se transformado em sangue na boca da beata. O suposto milagre teria se repetido várias vezes e rapidamente a notícia de um milagre no Sertão começou a atrair verdadeiras multidões para a cidade, dando origem às romarias que hoje percorrem a ladeira. Atualmente, os estados de Alagoas e Pernambuco lideram a lista de romeiros que chegam a Juazeiro. O resultado faz parte de um levantamento feito a partir de informações cedidas por 178 mil devotos ao Mapeamento da Nação Romeira, uma pesquisa que somou dados

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cenário

No Museu Vivo do Padre Cícero, há uma sala dedicada ao polêmico episódio do milagre da hóstia

5 ex-votos

Objetos que simbolizam promessas e graças alcançadas estão no acervo popular de Juazeiro do Norte

6 alzira mendes

Desde 1998, beata tem a missão de rezar milhares de romeiros que batem à sua porta

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estatísticos durante as comemorações do centenário de Juazeiro do Norte, em 2011, e que confirmou que a devoção ao “santo do povo” continua crescendo ano após ano. Ainda hoje, pesquisadores tentam explicar o fenômeno da religiosidade popular que, em apenas um século, transformou uma vila de poucos casebres no maior centro religioso do Ceará e uma das mais importantes cidades do Nordeste. Se pouco mais de dois quilômetros separam o início da Ladeira do Horto da emblemática estátua erguida em homenagem ao Padre Cícero, a diversidade de personagens e de histórias que se concentram nesses dois mil metros, no entanto, é variadíssima. Além das rezadeiras e dos artesãos, penitentes também identificaram no lugar o metro quadrado mais sagrado do mundo. Para muitos deles, Juazeiro e Jerusalém não são semelhantes apenas na primeira letra de seus nomes. O nome “Ladeira do Horto”, a propósito, é uma homenagem ao bíblico Horto das Oliveiras, onde Judas teria beijado Jesus e dado início ao seu martírio. No imaginário popular, até mesmo o rio Salgadinho, que corre na base do morro, é uma espécie de réplica espiritual do famoso rio Jordão. Não é à toa que, depois de subir a ladeira, passando pelas estações que marcam o trajeto de Jesus rumo à crucificação, o caminho naturalmente siga até o Santo Sepulcro onde, numa gruta transformada em oratório, os devotos ascendem velas e cantam benditos que falam sobre a prisão, o julgamento e a morte de Jesus. No cume do trajeto, imponente em seus 27 metros de concreto e com o olhar direcionado para a planura, o Padre Cícero parece abençoar o esforço dos romeiros.

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PEDRO NUNES Homem da lei com alma de artista Advogado e auditor aposentado revela vertente artística em livros e esculturas, obras baseadas em raízes sertanejas do Pajeú pernambucano e do Cariri paraibano texto Danielle Romani FOTOS Ricardo Moura

O sertão nordestino foi palco de lutas, invasões, sequestros e saques. Mas poucos sabem, e nem todas as publicações revelam, que, no final do século 19 e início do século 20, essas ações não foram responsabilidade apenas dos cangaceiros e dos fora da lei que transitavam pela região. A briga pelo poder no território sertanejo envolveu coronéis e autoridades policiais, religiosas e jurídicas, que transformaram municípios em verdadeiros feudos. Inconformados com isso, cidadãos de bem, que não admitiam ser manipulados, resolveram fazer justiça, não raro usando de extrema violência. Apaixonado pelo Sertão, em especial pelo Cariri paraibano, onde residiu até os 14 anos, o advogado e auditor aposentado da Receita Federal, Pedro Nunes, cresceu ouvindo relatos sobre pessoas que pegaram em armas, seja por vingança, seja por questões de honra pessoal. Muitos desses casos foram narrados no alpendre de sua casa, na Fazenda Mugiqui, na qual chegou ainda bebê – vindo de São José do Egito, Pernambuco, seu local de nascimento. Uma história em especial, a do bacharel Augusto Santa Cruz, conhecido como Sinhozinho Doutor do Areal, impressionou o menino Pedro, que esperou quase cinco décadas para recontá-la. A saga desse advogado – que, após ser traído e desmoralizado pelos

poderosos do município de Alagoa do Monteiro, sitiou a vila com 200 homens, quebrou com marreta as portas da cadeia e perseguiu poderosos, como o prefeito, o juiz da comarca e militares – é contada nas 514 páginas do livro Guerreiro togado (Jabre Edições), publicado em 1997, e que se encontra na segunda edição. A história de Augusto, ocorrida na década de 1910, é incomum. Após sitiar a cidade, rumou em direção a Juazeiro do Norte (CE) para pedir proteção ao Padre Cícero. Para garantir sua integridade, levou como reféns o prefeito e o delegado de Alagoa do Monteiro. Apesar de denunciado, nenhuma autoridade conseguiu frear a ele e seus homens, que chegaram são e salvos ao Cariri cearense. Depois de entrarem lá, segundo narra Pedro, Augusto contou com a proteção dos coronéis Domingos Furtado, Antônio Pequeno e do padre local, que teria proferido aos moradores que ficaram receosos diante do forasteiro e seu bando armado as seguintes palavras: “O Doutor Augusto não é um bandido. Trata-se de um homem formado em Direito, que vem sofrendo perseguições políticas na Paraíba”. E, assim, Augusto permaneceu na cidade. Dali, reiniciaria nova fase de brigas, perseguições e invasões a municípios paraibanos, até meados de 1918. No fim da vida, já perdoado pelos crimes que cometera, voltou a atuar na área

jurídica e a exercer cargo público como magistrado. Um final feliz para quem poderia ser chamado de herói inusitado. “Meu pai, Pedro Nunes Farias, contava essa história, que me encantava. Depois de muitas décadas, resolvi descobrir o que era ficção e o que era verdade. Para tanto, entrevistei muita gente no interior, procurei o Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, li os jornais da época, e descobri um mundo. Contratei uma bibliotecária para fazer esse levantamento. Foram cinco anos de pesquisa”, conta Pedro Nunes, que tem outros três títulos, todos versando sobre o sertão e seus meandros. Em Caatinga branca, o autor registra personagens da cena sertaneja e, através deles, penetra no ethos local. Em Cariris velhos, divaga sobre a terra, os homens, as histórias que ouviu contar em sua infância. Em Mundo sertão, terra não revelada, nova incursão no misto de personagens reais e ficcionais, sempre pautado na memória e na busca por esse território emocional. O sucesso com as publicações foi inesperado. Desde Guerreiro togado, Pedro é convidado para palestras e debates no interior da Paraíba. Graças a eles, tornou-se sócio do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco, do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri e da Sociedade Paraibana de Arqueologia. Algo antes

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Além de dedicar-se à literatura, Pedro Nunes cria peças inspiradas na ficção e nas tradições

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impensável para um bacharel que se dedicara, durante quase três décadas, apenas ao Direito e à advocacia. Os seus livros, aliás, não são encontrados em livrarias. Quem os desejar, tem que encomendar pela internet. “Eles vendem bem, e quero, como todo autor, ter lucro. Não faço por diletantismo”, afirma.

escultura e objetos

O Sertão está presente em outros setores da vida de Pedro Nunes. Além dos livros, o advogado e pesquisador se dedica às artes plásticas, pela criação de esculturas e quadros que remetem a esse território. Ao entrar em sua casa, num sítio da Região Metropolitana do Recife, o visitante é recebido por sete esculturas gigantes, em barro, que mesclam animais emblemáticos das fábulas de Esopo com as lendas da caatinga: a raposa, o cachorro, a onça, o bode, o cavalo, o boi e o macaco. “As fábulas de Esopo e Lamartine chegaram ao Sertão e, para elas, o sertanejo criou novas versões. Esses animais estão presentes nos clássicos e também nas histórias contadas durante a noite, na varanda. Elas se

misturavam às histórias de cangaceiros, vaqueiros, bois misteriosos, almas, casas mal-assombradas e botijas contendo tesouros”, observa Pedro, que ressalta: as figuras em argila não são criações exclusivas suas. São produzidas juntamente com o artista Uruda, que mora no Cabo. “Ele molda no torno e eu as retrabalho”, conta. O advogado também produz belas peças com base em tampas de cisternas, esgotos e caixas subterrâneas, facilmente encontradas em pavimentos térreos. “Modelo no cimento, que aprendi a usar. Elas surpreendem todos que chegam à minha casa, pois são originalíssimas”, gaba-se. Além dessas figuras, ele costuma esculpir formas abstratas em troncos e restos de madeiras encontradas na caatinga, a exemplo da imburana de carrão, que é usada por vários santeiros. “Essas madeiras são originárias da Fazenda Mugiqui, que herdei do meu pai e onde crio cabras e ovelhas. Só pego as madeiras que estão mortas”, diz. A habilidade com as ferramentas foi adquirida na fazenda da infância, admirando o pai, que conhecia os

segredos da marcenaria. “Aprendi a usar os instrumentos ainda novo. Depois de aposentado, comecei a colocar em prática essa habilidade. Descobri que tenho alma de artista”, conta. “Só vim frequentar escola na adolescência, quando fui estudar no Seminário Diocesano de Campina Grande. Fui educado por padres holandeses, com uma disciplina forte. Acredito que vem daí minha tenacidade.” No seminário, estudou latim, grego, inglês e francês. “Traduzia Shakespeare e lia o Evangelho de São Lucas em grego. Tive chance de adquirir uma base humanista e cultural sólida.” Em 1966, veio para o Recife. Em plena ditadura militar, participou de movimentos estudantis. “A Faculdade de Direito era um foco de resistência. Além disso, eu morava na Casa do Estudante de Monteiro, e era o presidente. Dom Helder Câmara inaugurou a casa. Padre Henrique – morto pela ditadura – era o capelão e assessorava nosso grupo. Quando ele foi brutalmente morto, ficamos penalizados, mas nos calamos, porque seria muito perigoso nos pronunciarmos”, lembra. Anos depois, conheceu a esposa Maria Lucília, que morava em Monteiro, na Paraíba, e que hoje trabalha na confecção de doces maravilhosos, que fazem a festa dos que visitam a casa de Pedro Nunes. Ingressou na Receita Federal em 1978, como auditor, na qual trabalhou até 1993. Também atuou como professor de Direito Tributário na Escola de Administração Fazendária. Somente na década de 1990 começou a escrever: “Sempre gostei de literatura, mas não imaginava que pudesse virar escritor”. A partir de 2003, passou a trabalhar com esculturas e montagens. “Foi como se eu renascesse e todo o meu passado emergisse. Diria que descobri uma vertente artística da qual não tinha conhecimento pleno, e que trouxe à tona minhas raízes sertanejas do Pajeú pernambucano e do Cariri paraibano”, descreve.

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MENUS As circunstâncias para se dispor pratos em lista Restaurantes apostam na figura do chef consultor, que cria e executa cardápios, treina equipes e orienta proprietários para se destacarem no mercado texto Eduardo Sena Fotos Ricardo Moura

O músico francês Henri Salvador não imaginaria que os versos “Il fait dimanche au bord de l’eau/ Vin blanc glacé sous les glycines”(em tradução literal: “É domingo à beira d’água/vinho branco gelado sobre as glicínias”), de sua canção Il fait dimanche, pudessem inspirar a concepção de cardápio de um bistrô recifense. Tal feito partiu do chef Leandro Ricardo, que viu na união do vinho branco e das glicínias (um tipo de arbusto que bota flores de cor lilás) à sensação repousante do domingo o ponto de partida para o trabalho. Há 21 anos trabalhando com cozinha, sendo os últimos 10 desses também dedicados à área de consultoria gastronômica, o chef concluiu que a casa não poderia servir apenas café e acepipes óbvios que rimassem com a bebida; poderia ir além. Imbuído da elegância de Il fait dimanche, apresentou sua proposta à contratante – um projeto que transformaria o antigo café num bistrô, em que se pudesse fazer uma refeição típica de uma casa do gênero, mas com a simpatia de um café. Assim nasceu o Giardino Bistrô, em 2009. O experiente chef lembra, entretanto, que nem sempre é o poético que desencadeia o processo

de criação. “Restaurante é, antes de tudo, um negócio. E, se o mercado está aquecido e movimentado, é preciso redobrar as atenções para as demandas e particularidades dele, para atendê-lo da melhor maneira”, alerta Leandro, que não abre mão de um estudo minucioso do mercado nas adjacências da casa que está para abrir, respeitando a lei de oferta e demanda. “É preciso pesquisar para não se repetir. O chef consultor cria conceitos e produtos diferentes para o cliente e não para ele. É como gerar um filho e entregá-lo.” Igualmente especialista nesse métier, o chef paulista – radicado há uma década no Recife – Hugo Prouvot, que já prestou consultorias para casas como Mingus, Ferreiro Café e Bistrot du Vin, defende a importância de um chef consultor, quando o assunto é criação de menus. “Existe uma distância muito grande entre o ser chef e ser chef consultor. Enquanto o primeiro se especializa na criação e execução, o segundo, além dessas características, traz uma bagagem mercadológica que lhe permite menor chance de erros diante de sua atuação no mercado”, pontua. Prouvot lançou recentemente a empresa Gastronomika, responsável

por desenvolver, estudar e implantar um trabalho com base e capacitação profissional nos estabelecimentos. Ele lembra que um dos primeiros passos de uma consultoria começa na contratação de pessoal. “Se eu tenho um restaurante francês, sei que a variedade de molhos com os quais tenho que trabalhar é muito maior, a aptidão para a delicadeza de confecção e montagem também é levada em conta. Já em um italiano, a possibilidade de molhos é menor, no entanto, é um trabalho mais rústico e braçal, até. Essas minúcias devem ser consideradas na hora da contratação dos cozinheiros e auxiliares”, exemplifica. A quantidade de lugares na casa também é outro ponto importante no processo de concepção do menu. “Num bom restaurante de 60 lugares, o ideal é ter, entre todas as opções, um total de 35 pratos”, calcula Hugo. A premissa faz parte da equação de funcionamento da cozinha, que determina: “Quanto menos itens no cardápio, mais atenção na comida, resultando na excelência do produto”. O cálculo é motivo de impasse entre consultores e proprietários. Segundo o chef, empresários inexperientes no ramo imaginam que quanto mais extenso o cardápio,

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maior a credibilidade e o giro econômico da casa. Depois de muita conversa entre consultor e proprietário – com concessões de todos os lados, e definida a quantidade de pratos do menu –, os chefs entram em fase de estudo para conceber o cardápio, de acordo com o rótulo da casa. “Para além de uma pesquisa sobre cozinha regional, por exemplo, precisamos perceber de que forma podemos melhor apresentá-la e interpretála na casa em questão; devemos estar atentos a questões geográficas, como sazonalidade do produto, de que forma ele vai chegar até à casa. Sempre queremos ingredientes frescos e da melhor qualidade”, explica a chef Taciana Teti que, junto à chef Lícia Maranhão, mantém o Ateliê das Chefs, no qual desenvolve o trabalho de consultoria e personal chef. Para Taciana, o norte para a concepção é sempre o desejo do cliente. “Como consultora, faço apenas intromissões no sentido de lapidar a ideia do contratante, e situálo das condições reais de uma cozinha.

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Algo como: ‘Você quer carne de javali no seu restaurante? Então, saiba que carne de javali é comprada em grande quantidade e é pouco pedida pelos clientes. Onde vamos armazenar essa grande quantidade de carne? Vai ficar sempre congelada? E a qualidade do produto, já que não teremos o produto consideravelmente fresco?’”. A partir daí, o consultor elabora e sugere o menu ao contratante, que acata ou não, fazendo as suas intervenções. “Um grande vício que os empresários têm é o de querer estender o seu gosto pessoal ao cardápio, tentando tornar excentricidades gastronômicas em algo universal. Nem todo mundo gosta de carne de tatu, por exemplo”, diz a chef Lícia Maranhão.

TREINAMENTO

Após a definição do cardápio, dá-se início à parte mais dinâmica do trabalho, processo que compreende da seleção de fornecedores à escolha de louças. “Até nesse aspecto, a importância de um chef experiente é importante. Por ter passado por várias consultorias, ele vai indicar os

melhores fornecedores e promover parcerias, otimizando o processo de elaboração da casa”, defende Leandro Ricardo. “Se houver oportunidade, dou ‘pitaco’ na arquitetura da casa e até na música que vai tocar. Cozinha é holística, por isso mesmo deve ter uma equipe homogênea, na qual todo mundo deve se ajudar. Com essa sinergia, o resultado sai totalmente harmonioso”, sugere. Já Hugo Prouvot faz questão de escolher cada utensílio que a cozinha terá, da panela usada na cocção à louça que vai à mesa. “Quem pensou o cardápio, sabe do que realmente precisa para aquele prato ser executado da maneira correta. Não é uma questão de capricho, é técnica. Existem insumos que, para atingir o seu ponto ideal, precisam de fornos especiais, maçaricos, mixers. A louça também vai definir a forma mais apropriada do prato vir à mesa, que é critério de primeira ordem da clientela gastronômica atual: apresentação”, explica. Compras devidamente realizadas, começa o trabalho mais nevrálgico

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no processo de consultoria: o treinamento da equipe. Sim, porque o chef foi contratado para desenvolver o cardápio, repassálo para o cozinheiro residente e supervisioná-lo durante algum tempo (definido previamente no contrato). “Costumo dizer que preciso criar pratos com 200% de perfeição porque, invariavelmente, metade da excelência do prato se perde nesse repasse. Sendo assim,a casa em questão sempre terá um prato com 100% de qualidade”, pontua Leandro Ricardo. De olho na qualidade futura, o chef Hugo Prouvot prepara todo o cardápio para a equipe inteira do restaurante, incluindo garçons e “pratos” (funcionários responsáveis pela lavagem de louças). A ideia é que toda a equipe tenha uma referência correta do que deve ser apresentado ao cliente, a fim de fomentar a compreensão do bom nível do serviço que deve ser prestado. A dupla Lícia Maranhão e Taciana Teti também partilha da mesma ideia no que diz respeito ao aspecto determinante do treinamento para o sucesso do empreendimento. Para isso, as chefs acham fundamental a abertura da casa no esquema soft open (abertura não oficial para período de testes) e se dedicam integralmente à cozinha nessa fase. “É preciso passar confiança para os cozinheiros e assistentes que irão levar o trabalho adiante. Confeccionamos toda a demanda de pedidos com eles, mostrando as técnicas de armazenamento, cocção, temperatura e montagem. É quase que um ‘pegar na mão’ para fazer”, explica Taciana Teti. “Além do que, a soft open tira um pouco da pressão, minimizando os erros – se porventura eles acontecerem, temos essa benesse do ‘não oficial’ e vamos reequacionando a dinâmica da cozinha da melhor forma possível”, esclarece Lícia.

CAMINHOS SEGUROS

Nessa sucessão de etapas, os chefs consultores buscam um lugar seguro para minimizar as chances de erro num cardápio. Não existe fórmula infalível, mas a manutenção de clássicos nos cardápios é inevitável,

1 Leandro ricardo Ele não dispensa estudo de mercado do entorno da empresa em que vai intervir hugo prouvot 2 Contratação de pessoal é um dos primeiros aspectos considerados pelo chef consultor (D) dupla 3 O trabalho de Taciana Teti e Lícia Maranhão é orientado pelo propósito do cliente

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A montagem de um menu exige várias etapas, que vão além dos pratos e pretendem minimizar chances de erros

por exemplo. Naturalmente, aqueles cujo rótulo permite. Na segmentação do menu de um restaurante variado, por exemplo, os pratos, comumente, estão divididos entre carne vermelha, peixes, aves, frutos do mar e caprinos. Nas plagas pernambucanas, nada vende mais do que medalhões de filet mignon sobrepostos por um molho escuro e camarões com molho de queijo, ambos acompanhados por uma massa, atestam os chefs. No entanto, o desafio é sempre o de reinventar o clássico, dando-lhe o toque de quem o assinou. Esse foi o trabalho encarado pela dupla Lícia e Taciana, ao ser incumbida de criar um menu para uma sorveteria. Ora, sorveterias,

como o próprio nome faz supor, são casas cujo principal produto é sorvete na sua forma mais bruta. No máximo, recebem uma calda e pequenas guloseimas por cima. A responsabilidade ainda foi maior, por se tratar de um projeto pioneiro da Fri-Sabor que, fundada no Recife em 1957, sobreviveu a diversas fases, à concorrência cada dia mais acirrada e refez-se em grande estilo. No cardápio, 12 sobremesas elaboradas com a matéria-prima da casa, claro. “O mais desafiante foi deixar o sorvete com cara de gourmet, enxergando nele outras possibilidades. Do outro lado, os pratos tinham que ser rápidos, sorveteria é rotativa, ninguém espera muito. Come-se e vai-se embora”, explica Taciana Teti. Mas engana-se quem pensa que as consultoras se limitaram ao sabor doce do gelado. “Pensamos também em salgados, para aplacar aquela pequena fome de belisquetes rápidos. E foi uma grande surpresa: atualmente, uma das coisas que mais se vendem na casa são os sanduíches especiais”, diz Lícia.

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versos

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Não tenho a pressa que aniquila

o verso. Manuel, João e Joaquim. Eu faço versos como quem chora. Severino Milanês/é um cantor de primeira/ele é filho natural/de Afogados da Ingazeira. Sabes quem foi Ahasverus?... — o precito,/O mísero Judeu, que tinha escrito/Na fronte o selo atroz!/Eterno viajor de eterna senda.../Espantado a fugir de tenda em tenda,/Fugindo embalde à vingadora voz!//O Gênio é como Ahasverus... Solitário/A marchar, a marchar no itinerário/Sem termo do existir./Invejado! a invejar os invejosos./Vendo a sombra dos álamos frondosos.../E sempre a caminhar... sempre a seguir… It was many and many a year ago,/In a kingdom by the sea,/That a maiden there lived whom you may know/ By the name of Annabel Lee;/And this maiden she lived with no other thought/Than to love and be loved

by me. Por um campo fantástico me vou/brutalmente pisando sobre flores/e nos meus ombros vai perdendo as cores/o paletó de Jean Arthur Rimbaud. Meu Deus! que sorte essa minha:/Na festa de Santo Antônio/Ver o dente do demônio/Na boca de Cazuzinha. Chi nel culo il dito mette/poi in bocca si 1o mette/ così lascerà pulito/carta, muro, culo e dito. Nos Colégios Marista (Recife),/ se a ciência parou na Escolástica,/a malvada estrutura da carne/era ensinada em todas as aulas,/com os vários creosotos morais/com que lavar gestos, olhos, língua;/à alma davam a água sanitária/que nunca usavam nas latrinas. A/cauã/a/cauã./ Cauã! Mataram Pedro Mineiro/dentro da Secretaria/para dar depoimento/ daquilo que não sabia. Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Fernão Dias Paes Leme agoniza. Um lamento/Chora longo, a rolar na

longa voz do vento. Manuel Maria Barbosa du Bocage. Luiz Vaz de Camões. Manuel Bernardes. Com duas donzelas vim/Ontem de uma romaria;/Uma feia parecia;/Outra era um serafim./E vendo-as eu assim/ Sós, sem os amantes seus,/Pergunteilhes: anjos meus,/Quem vos pôs em tal estado?/Disse a feia, que o pecado!/A mais formosa, que Deus! Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage,/Ou comme cestuy là qui conquit la toison,/Et puis est retourné, plein d’usage et raison,/ Vivre entre ses parents le reste de son aage! O meu caixão ponham num burro/ajaezado à andaluza/a um morto nada se recusa/e eu quero por força ir de burro. Olha quem chegou de repente/Erasmo Carlos no seu novo carrão. Guariba vendia escova/ que fazia do bigode/urubu vendia goma/porque tem de lavra e pode/a onça sussuarana/vendia carne de

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imagens: reprodução

1-2 xilogravura Capas de folheto, de Dila uma; outra sem assinatura visível

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bode. (...) E ali trincou-se o tempo/ na porta do barracão/da baronesa preguiça/comadre do rei 1eão/e ela telegrafou-lhe/pedindo paz na questão.//O leão passou depressa/ um telegrama pra trás:/— minha comadre levante/a bandeira e peça paz/ela não tinha bandeira/levantou a macaxeira/ali ninguém brigou mais. José Pacheco. Veio uma diaba moça/com a calçola de meia/puxou a vara da cerca/dizendo: a coisa está feia/hoje o negócio se dana/e disse: eita baiana/agora a ripa vadeia. (...) Morreu a mãe de Canguinha/o pai de Forrobodó/três netos de Parafuso/ um cão chamado Cotó/escapuliu Boca Ensoça/e uma moleca moça/ quase queimava o totó. Pero lo que pintas? Lo que salir. Que cara de herido pongo/cuando te veo y me miro/por la ribera del hombro. Sus muslos se me escapaban/como peces sorprendidos/la mitad llenos

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“Todo gordo quer emagrecer/todo magro quer engordar/para o gordo não tem que fazer/para o magro biscoitos Pilar” de lumbre/la mitad llenos de frío. La ragazza indorata/si bagnava nell’àcqua/e l’àcqua s’indorava. Tu fais 1’effet d’un beau vaisseau que prends le large. Dom Frei Francisco de Assunção e Brito/Os teus olhos sonharam com certeza/Como era linda a nossa natureza/E como Pernambuco era bonito. Irene preta/ Irene boa/Irene sempre de bom humor. Entro no samba meu corpo está duro/Bem que procuro cadência e não acho. Eu sou Jorge Veiga/ cantor de samba de breque/eu faço

a barba com Gillette Teck/com esse novo aparelho de fazer a barba/eu me barbeio num instante/sou um tipo elegante/guarde esse nome de cor/Gillette Teck. Todo gordo quer emagrecer/todo magro quer engordar/para o gordo não tem que fazer/para o magro biscoitos Pilar. Isso acontece a toda gente/seja no Norte ou no Sul/dormido em Cama Patente/mas que tenha a faixa azul. Porque sem Bébé/Ninguém pode brincar/Vamos cair na folia/Divertir no Carnaval. Mas o povo estão dizendo/você cai daí. Capinheiro do meu pai/não me corte o meu cabelo. Chove chuva/pra nascer capim/pro boi comer/pro boi sujar/pra sabiá ciscar/pra fazer seu ninho/pra por seus ovos/criar seus filhinhos/chove chuva. Se a vida fosse de rosas/se a gente nunca morresse/se cachaça fosse água/eu queria ser um peixe. Ô lelê ô bambu/Ói a morte atrás de tu.

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WOODCUT NOVEL A matriz dos quadrinhos

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Criada no início do século 20, tendo como suporte a xilogravura, essa narrativa gráfica inspirou mestres da arte sequencial TEXto Germano Rabello

Há um capítulo pouco divulgado

da arte do século 20, no qual as artes plásticas e as histórias em quadrinhos se encontraram. Algo desconhecido mesmo entre especialistas de ambas as áreas. São os “romances em xilogravura” ou woodcut novels, que tiveram um ciclo de vida curto, mas impactante. A xilogravura é uma das mais antigas formas de impressão, com provável origem na China. O artista talha um desenho em alto-relevo na madeira e, em seguida, aplica tinta e o reproduz em série a partir desse molde. Não é incomum que a xilogravura sirva a propósitos narrativos. Um bom exemplo são as ilustrações dos folhetos de cordel na tradição nordestina, quase sempre ilustrados com essa técnica. O que é mais raro é o seu uso em publicações quase inteiramente sem palavras, como é o caso das woodcut novels.

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Esses trabalhos são desafiadores e surpreendentes para os leitores da atualidade, pois conseguem elaborar com muita precisão seu discurso, deixando os desenhos falarem por si mesmos. São muito próximos do que hoje se convenciona chamar de graphic novels, as histórias em quadrinhos com uma narrativa mais complexa, dirigidas ao público adulto. Will Eisner inventou o termo “romance gráfico” para definir Um contrato com Deus (1979), sua obra pioneira no gênero, e sempre admitiu a influência que teve de Lynd Ward e Milt Gross. Esses artistas são referências, quando se fala de woodcut novels, seja na forma ou na temática, que tratam sobretudo dos problemas enfrentados na Grande Depressão de 1929, das questões de classe influindo nas relações pessoais e da arquitetura das grandes cidades. Os artistas da revista de quadrinhos

políticos World War 3, como Peter Kuper, Eric Drooker e Seth Tobocman, estão entre os mais influenciados por essa estética, mesmo que através de novas formas (scratchboard, stencil, grafitti). São, de fato, continuadores da tradição wordless (sem palavras) e da inquietação política do gênero, que sempre se detinha em temas sociais. Essas obras vêm de um tempo em que a maioria dos quadrinhos era publicada em jornal. Apresentar uma história gráfica completa em livro era algo inédito até então. Em 1919, quando a primeira woodcut novel foi publicada, nem mesmo havia o formato revista de quadrinhos no mercado americano. A técnica estava à frente de seu tempo, abordando temas realistas com uma densidade incomum. Para os interessados em cinema, elas são como filmes mudos em papel; para os interessados em artes visuais, são um deleite estético,

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pela riqueza de estilos, pelas formas e ideias gráficas. E, ao se constatar que, ainda hoje, nos quadrinhos ou no cinema, o excesso de texto por vezes sufoca a narrativa imagética ou opera de forma pleonástica e pouco imaginativa com os recursos da linguagem, fica evidente o poder expressivo dessas narrativas “mudas”. O gravurista belga Frans Masereel é apontado como o fundador da tradição das woodcut novels. Nascido em 1889 e falecido em 1972, trabalhava magistralmente os contrastes de branco e preto, num estilo despojado. Suas imagens são manchas de nanquim que tomam formas de pessoas, prédios, carros. Mas a aparente simplicidade do seu trabalho revelava o apuro e a liberdade de um exímio gravurista. Politizado, conseguiu emprego como chargista de jornal entre 1917 e 1920; abandonou, então, as texturas elaboradas e aprendeu a

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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usar os traços grossos que se tornaram sua marca, já que a impressão do jornal Le Feuille não possibilitava reproduções em linhas muito finas. Suas primeiras publicações na linguagem foram os álbuns 25 pictures of a man’s passion (de 1918) e Passionate journey (de 1919). Talvez seja mais fácil interpretar o primeiro como um conto, uma narrativa curta, em 25 imagens. O segundo, com 167 imagens, seria efetivamente o primeiro romance em xilogravuras. E não poderia haver nome mais perfeito do que Jornada passional, que se refere ao tempo em que se dá a narrativa, enquanto remete ao sentido trabalhista de uma época convulsionada por greves, propagação de ideologias, conquista de direitos,

lutas e paixões conflituosas. A chegada de um jovem à metrópole, o contexto social de pobreza, dificuldades, amores, são o painel da vida na grande cidade, com crítica social e política. Mas o personagem mostra um espanto quase ingênuo diante do que vê, e manifesta nas suas ações uma liberdade tal, que transcende qualquer panfletarismo, a idealização, o mundo caótico e opressor. Essa liberdade também salta aos olhos na forma narrativa e no estilo dos traços espontâneos, muito vivos.

MODERNISTA

O lançamento de um livro sem palavras, como esse de Masereel, era fruto do contexto de experimentações modernistas que, certamente,

favoreceu seu sucesso editorial. Não se pode esquecer de que as linguagens imagéticas do século 20, como a pintura e a escultura, estavam passando por grandes transformações, sob os influxos dos recém-chegados cinema, fotografia e histórias em quadrinhos. Essas narrativas são contemporâneas dos poemas visuais de Apollinaire, dos experimentos dadaístas, das colagens. O escritor Thomas Mann, certa vez, foi perguntado sobre qual filme o impressionava mais, e preferiu citar Passionate journey, dizendo que as narrativas do autor eram “tão tocantes, tão ricas em ideias, que ninguém se cansava de olhar”. Mann e Herman Hesse escreveram prefácios para obras de Masereel, indício do seu prestígio entre os intelectuais da época. Frans Masereel lançaria mais algumas obras, enquanto outras vozes se uniriam a ele para compor a história das narrativas silenciosas. Na Alemanha, surgiu Otto Nückel (1888-1955), que publicou Destiny: a novel in pictures, em 1930. Em sua obra, usa a xilogravura com um estilo expressionista, duro, em que os personagens parecem desumanizados com seus rostos sem feições, e sombras profundas. Como protagonista, uma jovem com uma vida sofrida e dramática, semelhante à de filmes mudos da época. Nückel se revela brilhante nas composições, no cuidado com a ambientação e nos cenários, com tracejado de linhas finas e contrastes. Nos Estados Unidos, Lynd Ward (1905-1985) foi o grande nome desse gênero, publicando livros como Gods’ man (1929), Wild pilgrimage (1932) e Vertigo (1937). A maior característica de Ward era seu domínio técnico facilmente identificável. Ao contrário de Masereel, suas gravuras são repletas de grafismos e texturas, linhas e pontilhados, e uma representação mais realista da figura humana, quase clássica, com pitadas de expressionismo. Curiosamente, na mesma época, o cartunista americano Milt Gross lançou He done her wrong, livro sem palavras, mas feito em nanquim e papel, num estilo dinâmico e bemhumorado, como em resposta à sisudez de Ward e outros artistas da época. Vertigo foi o último trabalho que Ward lançou em vida, e representa

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Página anterior 1-4 passionate journey Obra de Frans Masereel, de 1919 , com 167 imagens, seria o primeiro romance em xilogravuras Nestas páginas 5 destiny O alemão Otto Nückel usou um estilo mais expressionista no seu trabalho de 1930

6 aMÉRICA Nos EUA, Lynd Ward foi o grande nome do gênero, publicando livros como Wild pilgrimage (1932)

um grande aperfeiçoamento do seu estilo. A história envolve três personagens durante os anos da Grande Depressão e é desmembrada em três capítulos que apresentam o ponto de vista de cada um deles: a moça, o velho gentleman, o rapaz. A estrutura é inteligente e inovadora, restando ao leitor ligar os pontos da narrativa. A moça tenta a carreira de violinista, apaixona-se pelo rapaz, o gentleman doente toma as decisões que dificultam a vida de todos, o rapaz corre de cidade em cidade procurando emprego. A bibliografia básica dessa forma de arte costuma incluir também White collar (1939), do italiano Giacomo Patri – mais uma obra engajada,

As woodcut novels abordavam temas realistas de forma densa e tinham no contraste do branco e preto um trunfo dessa vez em linogravura; Southern cross (1951), do canadense Laurence Hyde, sobre o cotidiano numa calma ilha do Pacífico e de como a vida de sua população, a flora e a fauna são afetadas pela explosão de uma bomba atômica. Vários desses livros passaram anos sem uma edição disponível, e agora parece haver um

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interesse renovado por eles. Não há edição nacional dos trabalhos aqui citados, mas esse material – que antes era muito restrito – pode ter um alcance mundial em sites e blogs. Entre as boas fontes de referência estão alguns textos do blog português Ler BD, de Pedro Moura. Nas livrarias, e para quem lê em inglês, há disponibilidade da obra do especialista David A. Berona, Wordless books: the original graphic novels (2008), que situa o gênero tanto do ponto de vista histórico quanto estético. Berona assina o prefácio de algumas edições de woodcut novels e ajuda no entendimento do gênero como matriz genealógica das histórias em quadrinhos.

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divulgação

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CLÁSSICOS Olha só o que fizeram à Bela Adormecida!

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ADORMECIDA

Versão perturbadora do conto dos Irmãos Grimm concorreu à Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2011

Depois dos super-heróis, bruxos e vampiros, personagens de contos infantis protagonizam adaptações “mais adultas” para o cinema TEXto Ingrid Melo

Era uma vez, em uma cidade muito

distante, uma jovem linda, de pele muito branca e cabelo de cor vermelho-ouro. Um dia, uma mulher igualmente bela lhe ofereceu uma xícara de chá que a fez adormecer profundamente. Então, essa senhora retirou as roupas da jovem e a repousou em uma cama de um quarto com ares de palácio, no qual ingressou um senhor bem vestido e já idoso. Ele se despiu, enquanto tragava um cigarro, deitou-se ao lado da inerte garota e acariciou seu corpo. Depois, encostou impiedosamente a brasa do cigarro na nuca da menina, ao mesmo tempo em que passeou a língua pelo seu rosto e lhe sussurrou palavras obscenas. No filme Beleza adormecida (2011), da diretora estreante Julia Leigh, não há espaço para fadas madrinhas e final feliz. O longa, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, no ano passado, traz uma versão perturbadora do conto imortalizado pelos Irmãos Grimm e baseado nos escritos de Charles Perrault. Na história, Lucy, uma universitária imersa em um mundo de drogas e apatia, aceita um trabalho peculiar: ela deverá ingerir um sonífero para satisfazer o fetiche por necrofilia dos clientes. Pode-se perceber que a adaptação pouco tem a ver com a animação lançada em 1959 pela Disney, cuja princesa adormece devido à maldição de uma rainha má e acorda com o beijo apaixonado de um príncipe. O filme é uma amostra do tratamento que tem sido dado às adaptações de contos de fadas para o cinema. Ainda

no ano passado, essa tendência pôde ser observada em longas como Alice no País das Maravilhas (Tim Burton), A Fera (Daniel Barnz) e A garota da capa vermelha (Catherine Hardwicke). Neste semestre, duas clássicas fábulas infantis chegam à tela grande em versão live-action (com atores reais): Branca de Neve e os sete anões e João e o pé de feijão. Até 2013, pelo menos mais cinco releituras estão previstas. Segundo o professor do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco, Rodrigo Carreiro, a recriação dos contos de fadas decorre da ampliação dos recursos da adaptação literária à sétima arte, que se mostrou viável comercialmente. “As versões existem desde as primeiras produções e se tornaram mais comuns depois de sucessos como E o vento levou e O mágico de Oz, nos anos 1930. Quando a história faz sucesso em outra mídia, o cinema sabe que ali existe potencial. Como fazer um filme é caro, é natural que se queira arriscar menos em tramas originais. Daí, a atual opção pelas fábulas infantis: são histórias que já foram testadas em várias gerações e funcionaram”, explica. A professora Ângela Prysthon, também da UFPE, concorda. Para ela, esse interesse nas histórias infantis é cíclico em Hollywood. “Esse fenômeno compreende desde versões mais ou menos fiéis (como as da Disney), passando pelas paródias (Branca de Neve e os três patetas, dirigido por Walter Lang e Frank Tashlin, em 1961), até versões mais estranhas (A companhia dos lobos, Neil Jordan, 1984). Nessa leva

recente, um aspecto interessante é a ‘adolescentização’ das histórias, em uma proximidade com outros gêneros, como os filmes de vampiros, que pode ser observada nas versões de contos de fadas pensadas por Dario Argento (Suspiria, 1977) e Luchino Visconti (Noites brancas, 1957) ”, conta. As fábulas modernas pegam carona na lacuna deixada por produções como Harry Potter e a saga Crepúsculo, além de se valerem de sua posição destacada na memória afetiva dos espectadores. Como se caracterizam por obras de domínio popular repletas de nuances psicológicas e obscuras, é mais simples modificar as histórias e torná-las atraentes ao público, que tem sua curiosidade sobre a nova versão aguçada. A roupagem inusual da história de Chapeuzinho Vermelho foi o maior mérito de A garota da capa vermelha. Dirigido pela primeira diretora da saga dos vampiros e lobisomens, a trama, repleta de suspense e romance, tinha como alvo os fãs da série. Não à toa, nos cartazes de divulgação, o nome de Catherine Hardwicke se destacava. Não fosse a exploração da sexualidade e dos conflitos psicológicos, como o medo do desconhecido presente nas primeiras versões da Chapeuzinho, o filme estaria destinado ao fracasso, posto que a direção de Catherine não convence. De modo semelhante, A Fera, de Daniel Barnz, seria apenas mais um romance adolescente açucarado, se não abordasse, ainda que superficialmente, questões atuais como o bullying.

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FOTOS: divulgação

2 joão e o pé de feijão Dirigido por Bryan Singer (X-Men 1 e 2), o filme apresenta a história de forma sombria 3 branca de neve Clássico dos contos infantis vai ganhar duas adaptações neste ano, uma delas traz Charlize Theron como a Rainha Má 4 a garota da capa vermelha A trama com suspense e romance teve como público alvo os fãs de Crepúsculo

casar com um príncipe para salvar-se da falência. O mocinho, porém, está apaixonado por Branca de Neve e, para concretizar seus planos, a personagem de Roberts resolve se livrar da princesa, mas ela se junta aos sete anões para recuperar o seu reino. Em Branca de Neve e o caçador, de Rupert Sandres (nos cinemas nacionais em junho), o mote é uma guerra entre a Rainha Má (Theron) e a Princesa (Stewart). Mas aqui o caçador é bem mais do que um coadjuvante. A personagem de Theron – em uma versão mais maligna que a de Roberts – é a única pessoa capaz de destruir a princesa vivida por Stewart. Mas o que a malvada não imaginou é que a mocinha vinha treinando a arte da guerra com o caçador contratado para matá-la...

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VARINHA MÁGICA

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ESPELHO, ESPELHO MEU

Outro grande catalisador das adaptações das fábulas infantis para o cinema está no fato de as heroínas dessas histórias serem, em sua maioria, jovens mulheres. A maior parte dos frequentadores de cinema são do sexo feminino, na faixa etária que vai dos 13 aos 30 anos. “Estudos sobre o fenômeno do blockbuster apontam que o público jovem é o que mais vai ao cinema. As mulheres costumavam ser neglicenciadas, até os pesquisadores perceberem que todos os filmes de bilheterias estrondosas tinham personalidades femininas fortes em sua trama: Titanic (1997) e Avatar (2009), a saga Star wars...”, lembra Carreiro. Como um dos principais méritos para o sucesso de um filme está na

identificação do público com seus protagonistas, as produtoras enxergam no filão dos contos de fadas uma maneira de fisgar ainda mais essas espectadoras, que veem a tela grande como um espelho e as mocinhas como um reflexo. As duas primeiras adaptações que chegam às salas de projeção este ano, por exemplo, são versões para a Branca de Neve, estreladas pelas “namoradinhas de Hollywood” Julia Roberts e Charlize Theron, e as incensadas Kristen Stewart e Lily Colins. Em Espelho, espelho meu, dirigido por Tarsem Singh (estreia no dia 6 de abril), Roberts vive a Rainha Má e Colins, a Branca de Neve. O enredo traz uma ambiciosa rainha, que precisa se

Outra vilã dos contos de fadas ganhará destaque no cinema: Malévola, a rainha má de A Bela Adormecida, em filme dirigido por Robert Stromberg, com Angelina Jolie. O roteiro ficou a cargo de Linda Woolverton, que assinou as páginas do Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton, e o filme mistura computação gráfica e live-action. A tecnologia é uma varinha mágica para as atuais releituras das fábulas infantis no cinema. “É incrível como filmes com atores de verdade se esforçam para parecer irreais, com aspecto de desenho animado, remetendo à escola de fantasia de Georges Méliès. Ao mesmo tempo, desenhos animados querem parecer mais reais que a realidade. Isso mostra que, em comum aos filmesfábula, está a fantasia explícita. Já essa fantasia está cada vez mais possível de realizar, graças à liberdade de criação da tecnologia digital. Hoje, pode-se adaptar ao cinema praticamente tudo. O 3D facilita a ilusão e o momento é extremamente oportuno”, analisa o crítico de cinema André Dib.

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INDICAÇÕES drama

TODA FORMA DE AMOR

Direção de Mike Mills Com Ewan McGregor, Christopher Plummer, Mélanie Laurent Universal Pictures

suspense

A PELE QUE HABITO Direção de Pedro Almodóvar Com Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes Paris Filmes

O longa une quatro histórias para justificar que amar é preciso. Um homem gay (Plummer) casase com sua melhor amiga e se mantém fiel a ela até que se torna viúvo. Então, envolve-se com um jovem. Seu filho, que não acredita no amor, encontra uma mulher que tem medo de amar e vive com ela um relacionamento. Plummer ganhou o Oscar 2012 de Melhor Ator Coadjuvante e o Globo de Ouro da mesma categoria.

Filme de Almodóvar está sempre à beira de um ataque de nervos, certo? Errado. Nesse longa, cada movimento é calculado, o vermelho dá lugar ao azul e o ritmo parece mais lento que o habitual. Ainda assim, estão presentes elementos caros ao diretor: sexualidade e relações de poder, cores, closes e flashbacks. O filme é um resgate de suas primeiras produções, um carimbo em sua assinatura e um divisor de águas como Fale com ela e Tudo sobre minha mãe.

COMÉDIA

ANIMAÇÃO

Direção de Nando Olival Com Juliana Schalch, Gabriel Godoy e Victor Mendes Warner Bros

Direção de James Bobin Com Jason Seagal, Amy Adams, Chris Cooper Disney

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Como exemplo, estão os filmes Hansel e Gretel: caçadores de bruxas, longa dirigido por Tommy Wirkola, que estreia no próximo semestre, e Jack the giant killer, de Bryan Singer, que será lançado em junho. Ambos possuem a tecnologia 3D e, enquanto o primeiro atualiza a fábula de João e Maria, o segundo dedica-se a recriar a história de João e o pé de feijão. Além desses, há o superaguardado Pinóquio, de Guillermo Del Toro (O labirinto do fauno, 2006), cuja versão também em 3D e em stop-motion está prevista para 2013. O mexicano não para por aí: tem engatilhada uma adaptação de A Bela e a Fera, que ele começará a filmar no ano que vem, e já possui até protagonista definida – Emma Watson, a Hermione de Harry Potter. “Quando a tecnologia dá um salto grande, faz com que os filmes do passado

pareçam velhos ou malfeitos. Outro dia, por exemplo, fiquei chocado com os efeitos especiais de De volta para o futuro (Robert Zemeckis), que pareciam tão perfeitos em 1985. Refilmar é uma boa maneira de despertar o interesse das novas gerações, que rejeitam esses filmes antigos porque narrativa ou estilisticamente não estão no padrão a que eles estão acostumados”, afirma Carreiro. Então, não se espantem se, no próximo ano, ao assistirem à versão de A pequena sereia, de Shana Festa, se depararem com a Ariel cometendo suicídio em 3D – a versão é bem mais sombria que a do clássico da Disney. O casamento entre contos infantis, tecnologia e o cinema para adultos parece estar fadado ao “felizes para sempre” – e com gerações e gerações de herdeiros.

OS 3

O filme mescla lirismo, humor e filosofia numa trama que acompanha um triângulo amoroso entre amigos, que transformam o apartamento onde moram em um reality show. Sensual, com diálogos inteligentes e uma eficiente trilha sonora, o mérito da obra está em conciliar o universo jovem com temas como verdade e mentira, imagem e a permanente questão de como lidar com os sentimentos. Ponto para Olival, que soube conduzir com delicadeza o bom roteiro e as atuações medianas.

OS MUPPETS

Os famosos personagens de feltro criados por Jim Henson nos anos 1950 foram modernizados com inteligência e nostalgia nessa nova produção. Na história, conhecemos o paradeiro de cada Muppet – desde o solitário Kermit (Caco) até a imponente Miss Pig, agora editora da Vogue – e acompanhamos sua tentativa de voltar a brilhar em Hollywood. Repleto de autoironia, piadas ingênuas e musicais kitch, o longa é a prova de que um filme infantil pode agradar aos adultos.

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foto: divulgação

Edu Lobo

Teatro de Santa Isabel

Praça da República, s/n, Santo Antônio 22 Mar

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EDU LOBO Alguns anos depois daquelas férias...

Em novo show, compositor interpreta músicas de várias fases de sua carreira e enfatiza canções que trazem influências nordestinas texto Marcelo Robalinho

Quatro anos depois, Edu Lobo volta ao Recife com novo show, marcando o início de uma turnê por algumas capitais brasileiras. Embora tenha como ponto de partida as músicas do seu mais recente CD, Tantas marés, lançado pela Biscoito Fino, em 2010, o repertório é formado por canções compostas por ele e parceiros em diferentes momentos da carreira. Para a apresentação no Teatro de Santa Isabel, foi escalado um quarteto de músicos, em vez do sexteto que normalmente o acompanha. O grupo é formado por Cristóvão Bastos (piano, arranjos e direção musical do espetáculo), Jurim Moreira (bateria), Carlos Malta (saxofone e flauta) e Alberto Continentino (baixo acústico).

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1 performance Após um acidente, Edu Lobo foi obrigado a cantar sem tocar o violão durante o show

Todos são velhos conhecidos de Edu e já atuaram em outros discos e shows. Ele também deve tocar violão, mas não como antes, quando empunhava o instrumento praticamente todo o tempo das apresentações. Segundo o compositor, a mudança de postura no palco ocorreu no ano passado, depois que ele caiu da escada de sua casa, fato que o impediu de tocar e compor por alguns meses. Apesar do acidente sugerir uma situação estritamente negativa, ele afirma que o ocorrido lhe despertou o prazer de cantar no palco com mais desenvoltura e sem a obrigação de tocar todo o tempo. “Quando sofri a queda, a minha preocupação foi enorme. Pensava em como faria

o show e onde colocaria as mãos. O violão serve de proteção, como uma armadura. Por algum motivo, felizmente, não me incomodei com a ausência dele. As mãos ficaram no lugar que tinham de ficar e, hoje, sinto um prazer enorme em cantar e poder andar de um lado para o outro do palco, escutando o que os caras da banda fazem, cada dia de um jeito diferente. Tem muito improviso no meu show e valorizo cada vez mais a parte instrumental”, diz. No dia 15 de fevereiro, Edu recebeu a Continente em sua casa, que fica em São Conrado, bairro da zona sul carioca, para uma entrevista de pouco mais de duas horas de duração. Um dos principais assuntos tratados foi a relação afetiva e musical dele com Pernambuco. Filho de pernambucanos (o compositor Fernando Lobo é seu pai), Edu conta que passava, todos os anos, as férias escolares no estado, na casa dos tios, o que se repetiu mais ou menos até os seus 18 anos. “Naquela época, nós tínhamos três meses de férias. E eu ainda tinha um brinde porque era muito bom aluno na escola, e minha mãe me deixava ficar mais tempo. Até hoje, brinco dizendo que era estudioso para nunca ficar em segunda época e não perder a viagem para o Recife. Inicialmente, eu ia de navio, levando três dias do Rio a Salvador e, depois, mais dois dias para o Recife. Futuramente, passei a viajar de avião”, relembra o carioca, atualmente com 68 anos.

MÚSICA “ESQUISITA”

Divididas entre as cidades de Garanhuns, no Agreste, onde morava o tio Pedro (um dos nove irmãos de sua mãe), e a capital, as férias em Pernambuco são motivo de boas recordações entre os familiares, e foram determinantes para a carreira musical de Edu. O contato com o frevo, o maracatu e a ciranda, os pregões cantados pelos vendedores ambulantes de frutas que passavam na frente da casa dos tios, misturados – tempos depois – às harmonias da bossa nova carioca, inspiraram suas composições. “Eu chamava a minha música de ‘esquisita’ porque juntava as

harmonias aprendidas na bossa nova com as escalas nordestinas, que têm a quinta diminuta, uma influência meio moura de que sou fã de carteirinha desde criança, mas que o pessoal da bossa nova não usava. Essa mistura não foi nada programada. Surgiu espontaneamente por tudo que vivenciei no Rio e no Recife. No início da minha carreira, achava que, se não descobrisse um caminho novo para mim, que fosse diferente dos demais compositores da época, eu ia acabar sendo engolido”, afirma. Interessada em saber mais sobre as referências do compositor carioca a Pernambuco, a reportagem apresentou a Edu uma lista com 13 composições levantadas em sua discografia que fizessem menção a algum aspecto ligado ao estado, seja em termos de ritmo, letra ou melodia. Com o desenrolar da entrevista, ele acabou ampliando essa listagem, ao identificar em seus discos, pelo menos, 35 composições nas quais se percebem claramente elementos pernambucanos e nordestinos, de um modo geral, nas melodias criadas. Nessa lista, não faltam sucessos. A começar pela famosa Arrastão, parceria com Vinicius de Moraes que venceu o 1º Festival de Música Popular Brasileira, em 1965, na voz da cantora Elis Regina (1945-1982). A música catapultou nacionalmente a carreira dela e de Edu, ambos iniciantes na época. Em função dessa canção, ele lembra que o lançamento do seu primeiro disco, A música de Edu Lobo por Edu Lobo, chegou a ser adiado pela extinta gravadora Elenco para depois do festival. Outros exemplos de canções com influência nordestina, apontadas por Edu, são Candeias, Zambi, Casa Forte, Vento bravo, Upa neguinho, Corrida de jangada, Ponteio (outra composição vencedora de festival, em 1967, na voz dele e da cantora Marília Medalha), Viola fora de moda, Veneta e Cambaio, além de Ode aos ratos, Dança do corrupião e Angu de caroço, essas três últimas gravadas no disco mais recente do compositor. Dos frevos, No cordão da saideira talvez seja o mais conhecido da sua obra. Composto originalmente em dó menor e com uma letra saudosista recheada de negativas (“Hoje não tem dança, não tem menina de trança,

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FOTO:REPRODUÇÃO

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Edu Lobo comemora vitória de Ponteio, no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record

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nem cheiro de lança no ar/ Hoje não tem frevo, tem gente que passa com medo e na praça ninguém pra cantar”), a música foi feita, segundo lembra, no inverno parisiense de 1966, numa homenagem ao Recife e aos frevos do pernambucano Antônio Maria (1921-1964) que até hoje tocam nos carnavais. “Frevo é um mistério, né? Era um negócio para estar no mundo inteiro e só tem um lugar onde as pessoas sabem tocar realmente, que é Pernambuco. Os baianos acham que fazem frevo, mas não sabem nem tocar nem fazer. Fazem outra coisa, um tipo de marcha que eles chamam de frevo”, considera Edu.

COM VINICIUS

Da safra de canções inéditas, Edu tem o frevo intitulado Pé de vento. Tema instrumental, foi criado recentemente a pedido da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) e apresentado em público em 2011. “Fiz ele inteirinho no piano, depois passei para o computador. De tanto ficar ouvindo e mexendo na música, cheguei a pensar em não mandar para

Entre as suas canções inéditas, está o frevo Pé de vento, executado pela Osesp, que ele pretende gravar em disco o Nelsinho (o maestro Nelson Ayres) e jogar fora a música. Mas deixei de ouvi-la por uns 10 dias. Depois, voltei a escutá-la e vi que tinha ficado legal, então decidi mandar para a Osesp. É um frevo barra-pesada, com muita nota e que foi tocado pela orquestra maravilhosamente bem”, diz Edu. Ele pretende incluir a composição num próximo disco. O compositor possui ainda uma música inédita chamada Silêncio, feita com Vinicius de Moraes e que já vem despertando a atenção das pessoas. A parceria póstuma foi possível graças a uma das filhas do poeta, Luciana de Moraes, que faleceu no ano passado. Antes de morrer, ela entregou a Edu o poema recém-

descoberto por um pesquisador. “Fiquei absolutamente emocionado com o presente. O poema é lindo, datado de 1956 ou 1957, no auge do Vinicius como letrista, quando trabalhava com gente como Tom Jobim e Baden Powell. A música ficou pronta. Uma menina já me pediu para gravar, mas estou ‘pão-duro’ com essa canção. Vou ficar com ela para gravar quando fizer meu próximo disco.” Dentre os seus diversos parceiros, Vinicius teve lugar cativo. A primeira música dos dois, Só me fez bem, foi composta por volta de 1962, numa festa em Petrópolis, na casa de Olívia Hime. “Lembro que voltei de ônibus para o Rio com a letra guardada dentro da meia, com medo de perdêla, algo que infelizmente aconteceu depois. A partir dessa canção, não só comecei a ser visto no meio musical com outros olhos, como também eu mesmo passei a me ver como compositor, deixando de ser apenas um cara da PUC que estudava Direito e compunha (ele largou o curso no terceiro ano), para ser um dos parceiros do Vinicius. Isso para mim foi melhor que qualquer artigo de jornal ou elogio de festa. Era um cara por quem eu tinha o maior respeito como letrista e poeta. Então, isso é muito significativo para mim”, afirma. Em agosto de 2004, Edu sofreu um aneurisma cerebral que quase o matou. Felizmente, a cirurgia a que foi submetido não deixou sequelas. A recuperação ocorreu de tal forma, que o permitiu viajar a Pernambuco para receber da Assembleia Legislativa, em novembro do mesmo ano, o título de Cidadão Honorário, e se apresentar no Santa Isabel, mesmo lugar em que agora faz o show. “A doença não mudou a minha música, apenas a forma de encarar a vida. Antes, por exemplo, eu era uma pessoa que não conseguia ficar sozinha. Tenho três filhos e dois netos. Quer dizer, não sou uma pessoa sozinha, evidentemente, mas hoje em dia moro sozinho, numa boa.”

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INDICAÇÕES INSTRUMENTAL

MPB

TONINHO FERRAGUTTI E BEBÊ KRAMER Como manda o figurino

ASSUNÇÃO DE MARIA E GERALDO AZEVEDO Assunção de Maria e Geraldo Azevedo

Após várias apresentações pelo Brasil, o duo de acordeom selecionou um repertório com 11 composições próprias – cinco de cada e uma parceria de Bebê com Guto Wirtti. O projeto atualiza a audição da sanfona, trazendo referências a nomes como Luiz Gonzaga. Em Na sombra da asa branca, reconhecemos acordes de Asa branca. No entanto, a música, assim como todo o disco, percorre um caminho melódico próprio, com elementos contemporâneos e construção rítmica particular.

O intervalo curto entre lançamentos do cantor Geraldo Azevedo chamou a atenção do público e da crítica, já que o disco Velho Chico chegou às lojas há seis meses. Mas a curiosidade em torno do seu novo trabalho é o seu parceiro, Assunção de Maria, desconhecido até então. O álbum foi sugestão do produtor Robertinho do Recife, que percebeu afinidades entre os dois compositores – e ganhou visibilidade no país por integrar o selo recémcriado Nossa Música.

Borandá

Biscoito Fino

SAMBA

DALUA E MESTRE MAURÃO O samba de roda de Dalua e Mestre Maurão Tratore

Produzido de forma independente, o disco duplo é exemplo de um bem-sucedido diálogo sonoro entre tradição e experimentação. O percussionista Dalua, em parceria com o mestre de capoeira Maurão, revisita o samba típico do Recôncavo Baiano, promovendo uma renovação do gênero, mas sem descaracterizálo. Desde a abertura do CD1, com um solo de piano de Yaniel Matos, notase a inventividade do projeto, que conta também com a participação do músico Marcelo Jeneci.

MPB

ROBERTA SÁ Segunda pele Universal Music

Depois do disco idealizado junto ao Trio Madeira Brasil, a cantora se inclina a uma proposta musical mais pop e, no seu quinto CD, distancia-se um pouco do samba. Opta por ritmos e arranjos diferentes sem abrir mão de parceiros de longa data, como os compositores Pedro Luís, Lula Queiroga e Carlos Rennó. Merecem destaque a empolgante regravação do frevo Deixa sangrar, de Caetano Veloso, e a faixa O nego e eu, de João Cavalcanti, do grupo Casuarina.

Rui Ribeiro imagens: reprodução

TALENTO PARA COMPOSIÇÃO E ARRANJOS musicais

Embora não tenha uma presença tão hegemônica quanto no Rio de Janeiro, o samba vem ganhando força no Recife. Um dos responsáveis por essa

mudança é o cantor Rui Ribeiro, mais conhecido como um dos integrantes do grupo Mesa de Samba Autoral. O músico lança seu segundo trabalho

solo, expandindo os limites do estilo musical e provando que esse pode ir além da cuíca e do cavaquinho, ou dos compassos da bossa nova. Nas 16 faixas de Cumplicidade, o compositor faz uma ode à música e reforça o talento local para o gênero. Rui não faz um disco apenas de autor (todas as canções são suas), mas de intérprete, instrumentista e produtor (os arranjos foram realizados em parceria com o músico Sérgio Godoy). O apuramento do CD vai desde as composições até o acompanhamento instrumental e a finalização, com a masterização feita no estúdio Classic Master, em São Paulo – todo o processo foi bancado com verbas próprias. Em Cumplicidade, Rui Ribeiro evidencia sua dedicação à música, como atento ouvinte e dedicado artista, transitando por diversos estilos, como tango, samba de roda, samba jazz, valsa, maracatu,

blues e música caribenha – alguns desses se misturam sutilmente, sem variações bruscas e possíveis clichês musicais. Em algumas faixas, como Pra aprender a ser feliz, o timbre de Rui nos lembra o de Chico Buarque, e afirma a sua sofisticação como compositor. Ladeado por Márcio Silva (bateria), Adílson Bandeira (sax/clarinete), Nando Barreto (baixo acústico) e Sérgio Godoy (piano), ele ainda contou com participações especiais das cantoras Naara, Cláudia Beija, Mônica Feijó, do cantor Geraldo Maia e dos músicos Publius Lentulus (que divide a única parceria do CD, em Rio), Fred Andrade (violão e guitarra), Nilson Amarante (trombone) e Sérgio Cassiano (percussão e voz). Como diz o instrumentista Nenéu Liberalquino, no encarte de Cumplicidade, é “um CD digno de ser apreciado”. DÉBORA NASCIMENTO

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Amos fricke/divulgação

DOMENECK Um personagem de carne e osso

Livro de poeta brasileiro radicado na Alemanha incita questionamentos sobre fronteiras entre gêneros. Podemos ler poemas como romances? TEXTO Schneider Carpeggiani

Leitura Ricardo Piglia nos fala sobre a existência de uma fotografia em que se vê Jorge Luis Borges tentando decifrar as letras de um livro que segura grudado ao rosto. Lê as páginas abertas à sua frente como se estivesse diante da tábua de revelação do mundo, ou mesmo já prenunciando que aquelas letras seriam as últimas que enxergaria. Borges foi o “leitor-modelo” do século 20, alguém que deixou como ensinamento maior a perspectiva de que a ficção não depende de quem a constrói, mas de quem a lê. É possível ler tudo como ficção. É também possível ler tudo como verdade. O leitor é um investigador que cria suas suposições e trilhas a despeito da sociedade, das convenções e do

criador original da obra. Leitura é declaração de independência. Ao publicar um livro com o título Ciclo do amante substituível (frisando a precisão “do” amante e não “de” um amante), o poeta brasileiro, radicado em Berlim, Ricardo Domeneck, deixa uma trilha de biografemas para que o leitor siga e, talvez, perca-se. Há ainda a dedicatória “a Jannis Birsner”, que nos leva a farejar outras conexões possíveis. Seria Jannis o tal amante substituível ou o arquétipo perfeito de todos os amantes que já substituímos e/ou substituiremos algum dia? Ou o escritor estaria propondo um exercício de exibicionismo público, despindo, como um stripper, suas frustrações para uma plateia de leitores?

Os questionamentos prosseguem: É possível ler um livro de poemas como um romance? Ou com os pressupostos esperados de uma autobiografia sensacionalista, menosprezando assim a intrincada matemática exigida por um verso? Borges, certamente, abençoaria essas possibilidades e transformaria a dedicatória para Jannis em algo tão palpável e concreto quanto o mundo de Tlön, que o escritor argentino jurou ter encontrado num verbete da Enciclopédia Britânica. O poeta (como Domeneck gosta de ser chamado) dá início ao seu livro justamente com um texto em prosa (o único em toda a obra), no qual lista perdas e danos, como se necessitasse de um prólogo (ou seja: uma desculpa,

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amorosa se equilibra entre a tragédia grega e uma música popular. Como estamos falando de uma obra que tematiza ciclos, há um ponto que antecede a irrevogável substituição do amante. O instante zero de fascínio amoroso. Jannis recebe a precisa dedicatória do poema Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos, que enaltece o êxtase e desconhece o amargor de um samba-canção: “Houve/ guerras mais duradouras/ que você./ Parabenizo-o pelo sucesso/ hoje/ de sobreviver à expectativa/ de vida/ de uma girafa ou morcego,/ vaca/ velha ou jiboia-constritora,/ coruja./ Pinguins, ao redor do mundo, e porcos,/ com você concebidos, morrem./ Saturno,/ desde que se fechou seu óvulo,/ não/ circundou o Sol uma vez única”. Jannis reaparece, ainda que desta vez não evocado diretamente, como a inspiração capaz de resgatar o poeta de uma existência pregressa de desilusões, fazendo-nos entrever que nem sempre a crença num “ciclo do amante substituível” foi uma realidade irrevogável. Houve, sim, um momento de suspensão, um “antes”

O autor inicia seu livro com o único texto em prosa de toda a obra, como se necessitasse de um prólogo um álibi) que sustentasse as palavras a seguir e ampliasse nossa curiosidade em torno de um Jannis feito de carne, osso e abandono: “Seja para sair pela porta da frente ou receber pelo correio o convite para retirar-me, carrego as próprias pernas com os dentes, cão com o rabo entre as costelas fazendo ligações a cobrar, tanto para o serviço de atendimento ao perdedor como para o que me derrota, o derrocado. Minhas mandíbulas desacostumaram-se das mordidas, culpa dos meses em que ladrei apenas com legendas”. Pelo restante do livro, o poeta declara que toda Medeia pouca é bobagem e se confessa uma Medeia-Maysa. Parece saber – e nos avisar – que toda desilusão

da máscara de Medeia-Maysa ser uma fantasia pouco carnavalesca colada à face: “nunca mais comensal de farelos e migalhas/ de machos-alfa ou godfathers,/ e doravante/ não mais sofresse a dependência/ dos movimentos voluntários/ alheios/ para exercitar no amante meus cinco sentidos,/ ou acabar, como sempre dantes, forçado,/ com minha própria mão febril/ sobre minha própria testa,/ a constatar e provar a mim mesmo a minha febre,/ pois relegaria a você, moço,/ a regulação da nossa temperatura”. Jannis é o amante, mas não o único objeto de desejo, a trafegar diante de um escritor carente por epifanias (como costumam ser os escritores) e por musos ocasionais. O poema O

acordeonista da Catedral de Bruxelas se ergue num crescendo de erotismo, na visão ideal que parece ser o desejo de todo flâneur: “De Bruxelas eu/ esperava tudo, talvez (…)/ mas não/ este acordeonista/ loiro de 20 anos/ diante da Catedral,/ sim, a de Bruxelas,/ acordeonista loiro e imberbe,/ alto e imundo,/ a quem doei 2 euros/ num excitativo segundo de tato/ entre sua mão e meus dedos fechados/ abrindo-se em bojo sobre sua palma/ após fazer com a visão/ o rodízio contemplativo e luxurioso”. O acordeonista permanece anônimo até o fim do poema, como anônimas costumam ser essas fantasias/visões, a despeito da frustração do poeta em travar alguma possível maior intimidade: “e passarei a chamar de Loïc/ ou quem sabe Guillaume/ pelo resto dos meus dias/ após falhar em criar os colhões/ de pedir seu nome”. O acordeonista, um desconhecido, assim como de certa forma acaba sendo Jannis, esse alvo de uma dedicatória, que acabamos conhecendo tanto e tão pouco ao final do livro. É compreensível. Afinal, Ciclo do amante substituível é uma obra de ficção, embora sua narrativa pareça devedora de pessoas e fatos reais, negando qualquer mera coincidência. E é justamente nessa fricção entre memória e imaginação que uma obra literária faz sentido e nos proporciona a liberdade borgiana de interpretá-la à nossa vontade. Somos nós que escolhemos o ponto exato onde parar no ciclo dos amantes; é nossa a escolha de substituir ou não a figura de Jannis, ainda que estejamos diante de uma roda-viva. Escritor de obsessivo cuidado com a escolha da palavra exata (para além de biografemas e conjecturas que venham a atropelar o leitor), Domeneck fez da sua “teoria” sobre um possível (e não o possível, para não sermos tão deterministas quanto o poeta) ciclo do amante substituível uma obra de pura sedução estética.

Ricardo Domeneck CICLO DO AMANTE SUBSTITUÍVEL 7 Letras Poeta exercita a não distinção entre gêneros literários e esmera-se no uso da palavra.

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janio santos

Leitura CLARA DOS ANJOS A pele que o autor habita

Reedição do romance corrobora as referências autobiográficas na abordagem ficcional de Lima Barreto sobre conflitos raciais no Brasil Texto Pedro Paz

Um dos desvios que podem

acometer a crítica literária é inclinarse, exageradamente, à biografia de um escritor em detrimento da avaliação técnica da sua obra. As circunstâncias pessoais não são aspectos que devam ser relevantes na interpretação da obra ficcional. Contudo referências à vida do autor às vezes se tornam incontornáveis. No caso do romancista carioca Lima Barreto (1881-1922), vivências amargas são inseparáveis da sua produção literária. Sua intenção, por exemplo, de promover debate em torno de questões de raça na sociedade brasileira estão em Clara dos Anjos, cuja primeira edição ocorreu em 1948. Reeditado pela Penguin Companhia, o romance é acompanhado de textos dos críticos Sérgio Buarque de Holanda, Lúcia Miguel Pereira e Beatriz Resende, que confirmam elementos autobiográficos na abordagem do preconceito de

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cor e raça pelo autor. A edição também apresenta um conjunto de notas explicativas de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Galdino que auxiliam na interpretação textual por meio da explicação de metáforas e autorreferências presentes na narrativa. Lima Barreto anotou situações de preconceito por ele enfrentadas. Seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, teve acesso a esses registros confidenciais antes mesmo da publicação deles em livro, em 1956, pela editora Brasiliense, sob o título de Diário íntimo. Na época, o material foi cedido a Sérgio Buarque de Holanda, que, na primeira publicação de Clara dos Anjos, relata um desses acontecimentos que marcariam a vida do escritor até o seu perecimento: “Numa entrada correspondente ao mês de novembro de 1904, ano em que trabalhava na versão primitiva de Clara dos Anjos, consta que, de volta da Ilha do Governador, onde fora pagar uma dívida do pai, encontrou um desafeto, que passeava ‘como me desafiando’, diz, ao lado da esposa. ‘O idiota’, prossegue, ‘tocou-me na tecla do sensível, não há como negá-lo’. Ele dizia com certeza: ‘Vê, seu negro. Você pode vencer nos concursos, mas nas mulheres não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse talho aristocrático’ ”. No prefácio que escreveu para o livro, Sérgio Buarque de Holanda afirma que a obra de Lima Barreto é, em grande parte, uma confissão mal-escondida de ressentimentos, de malogros pessoais, que, nos seus melhores momentos, ele soube transfigurar em arte. Compara Lima a Machado de Assis, escritor também mulato. “A verdade é que Lima Barreto não foi o gênio de que suspeitam alguns dos seus admiradores e nem é possível, sem injustiça, equipará-lo ao autor de Brás Cubas. Ele não conseguiu forças para vencer, ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o humilhava”, aponta. De fato, Lima Barreto não foi tão elegante quanto Machado de Assis no trato daquilo que o afligia. Antes de abordar aspectos do problema do mestiço em Clara dos Anjos, o

romancista já o deixa transparecer em vários escritos. Em Isaías Caminha, por exemplo, há o episódio em que um caixeiro atende mal o personagem que lhe pede troco, ao passo que recebe com prazer a reclamação de outro freguês, este louro, e não mestiço, como Isaías. Uma curiosidade em Clara dos Anjos é que a sedução da protagonista por um malandro menos humilde ocorreria em 13 de maio, dia em que foi proclamada, como nos diz a história oficial, a Abolição da Escravatura.

PROJETO INICIAL

Na apresentação que faz à obra, intitulada Em defesa de Clara dos Anjos, a doutora em Literatura Comparada Beatriz Resende afirma que, segundo o projeto inicial do autor, a história de Clara deveria se desdobrar em outras, tomando tons épicos que a aproximariam de um “Germinal negro”.

No projeto do autor, a história de Clara deveria se desdobrar em outras, tomando tons épicos, como um “Germinal negro” Essa ideia está anotada no diário do autor, em janeiro de 1905: “Registro aqui uma ideia que me está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia”. Para a especialista, a competência do escritor o impediu de escrever tal relato de inspiração naturalista, mas a intenção de colocar em sua obra o debate em torno de questões de raça permaneceu até a realização de Clara dos Anjos, no final da vida do escritor. “Clara tornou-se o oposto da famosa Rita Baiana, mulata sedutora de O cortiço, do naturalista Aluísio Azevedo, ou das inúmeras mulatas que irão povoar o universo literário de Jorge Amado”, relaciona. Ao fazer uma análise de Clara dos Anjos, é interessante observar que o modelo de produção folhetinesco, advindo da experiência de Lima

Barreto como jornalista, trouxe diversas qualidades à sua narrativa. A ensaísta Marlyse Meyer aponta que, entre os ganhos que disso resultam, estão a mobilidade da narrativa, que pula de um personagem para outro como condutor da ação e o intercalar dos capítulos dedicados ao desenrolar da trama com outros, ocupados com a reflexão sobre a vida nos subúrbios, o empobrecimento da população e o total desamparo do estado ao cidadão comum. Outros méritos de sua escrita são a criação das personagens e as múltiplas formas de manifestação do narrador. Beatriz Resende aponta ainda que, no caso de Lima Barreto, a voz do narrador, sem dialogismo, arriscase a apresentar cada uma das figuras – que pelos subúrbios se movem – como esquemáticas, naturalistas ou exóticas. “O discurso do eulírico cola-se ao personagem em um momento; em outro, cede lugar a uma construção do romance ao ponto de vista de sua criatura. A liberdade em relação aos padrões restritos de uso da linguagem, a tentativa de incorporar o linguajar popular, inclusive dos negros pobres, sem identificar-se, porém, com o ideário modernista, faz com que o romance habite um espaço pouco definido na avaliação crítica.” A primeira versão de Clara dos Anjos é o conto publicado em Histórias e sonhos, coletânea organizada pelo próprio autor em 1920. A narrativa foi publicada na Revista Souza e Cruz. O capítulo inicial, no entanto, aparece na revista Mundo Literário, de maio de 1922, como O Carteiro, seguido da indicação: “Página inédita do romance Clara dos Anjos a sair brevemente”. O folhetim terminou sendo publicado após a morte de Lima Barreto, de janeiro de 1923 a maio de 1924, e a citada primeira edição em livro, de 1948, saiu pela Editora Mérito.

Lima Barreto CLARa DOS ANJOS Companhia Penguin Edição traz textos críticos que apontam sinais autobiográficos ligados à questão racial.

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reprodução

Leitura

AS COISAS Em busca de objetos de desejo

Romance de estreia de Georges Perec tem como argumento narrativo a sujeição de um casal à sociedade de consumo

Virginia Woolf defendia que era necessário o estudo das obras “menores” de um grande escritor, porque nelas seria possível detectar não apenas suas falhas, mas seus esforços de evolução. Ficariam evidentes suas artimanhas em busca da lapidação de uma futura (ou, ao menos, de uma sonhada) obra-prima. Não que o romance As coisas, estreia do escritor francês Georges Perec (19361982), publicado agora no Brasil pela Companhia das Letras, seja um trabalho “menor” ou literariamente confuso. Pelo contrário. Apenas aqui não encontramos os exercícios radicais de A vida – modo de usar, que tanto maravilhou Italo Calvino e inspirou a estrutura fragmentária de Detetives selvagens, de Roberto Bolaño. As coisas foi escrito naqueles anos 1960 que se orgulham em ser lembrança e índice de revolução, e também do boom de uma colorida cultura pop, tão injustamente satanizada como politicamente oca (ah, esses revolucionários...). Nesse universo tão paradoxal, Perec dribla clichês políticos ao criar a história do casal Jérôme e Sylvie, parisienses acometidos por um amor à última vista, que é o desejo de consumir. Não de consumir algo específico e concreto, como parece ser o título tão direto ao ponto da obra. Mas de consumir o mundo, de deixar que o desejo pelas “coisas” atravesse seus espíritos; e não o contrário. Os dois agem como maníacos fascinados por uma vitrine de manequins despidos. Temos um romance em que os protagonistas são objetos porque são jornais que ditam o comportamento, os cardápios que elegem os sabores, as roupas que escolhem os corpos, a ideologia que convoca seus partidários... Enfim, um universo no qual os personagens são passivamente escolhidos, em que tudo é ilusoriamente “marrom, ocre, fulvo, amarelo, um mundo de cores desbotadas, em tons cuidadosamente, quase preciosamente dosados, no meio das quais surpreenderiam algumas manchas mais claras, o laranja quase berrante de uma almofada”. Assim como nós, as coisas também não têm paz. Um rápido guia de leitura de Georges Perec: comece com As coisas, salte para A vida – modo de usar com um apetite canino e fuja, fuja com todas as forças, de A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento. Schneider Carpeggiani

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INDICAÇÕES TEATRO

POESIA

Dobra Editorial

Escrituras

ASSIS LIMA Marco misterioso O cearense Assis Lima é médico, mas transita pelo teatro, poesia e cultura nordestina. O “marco” a que se refere no título é o “território simbólico” usado pelos violeiros e poetas populares nos seus desafios poéticos. Neste livro, ele propõe um desafio. E mostra que a poema se justifica pela força das imagens, pela matéria-palavra.

FERNANDO AGUIAR Estratégias do gosto Lançado dentro da coleção Ponte Velha, que apresenta escritores portugueses aos brasileiros, este volume é um ensaio sobre poesia visual e performance poética. Os fotopoemas pertencem à série Calligraphies e foram realizados pelo autor no Brasil, em 2006. Aguiar tem 14 livros e chapbooks de poesia. Antecede o acervo de poemas uma entrevista com o autor.

ENSAIO

HELOíSA DE ARAúJO DUARTE VALENTE E outros (ORG.) O Brasil dos Gilbertos Letra e Voz

Textos de artistas e intelectuais discutem as convergências e peculiaridades dos quatro “Gilbertos” que marcam a história da música e da cultura nacionais: Gilberto Freyre, João Gilberto, Gilberto Gil e Gilberto Mendes. Suas obras são apresentadas, mostrando as afinidades existentes entre elas.

POLICIAL

RODOLFO WALSH Variações em vermelho Editora 34

Antes de enveredar pelos livrosreportagens, o argentino Rodolfo Walsh iniciou sua carreira como escritor de uma série de narrativas criminais. Seguindo a fórmula clássica de um Sherlock Holmes, ele criou o personagem Daniel Hernández, um simples revisor de livros que, por sua obsessão por detalhes, termina sendo capaz de explicar vários crimes e enigmas.

COCO E AÇÚCAR

reprodução

OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A HISTÓRIA DAS IGUARIAS

Pesquisador contumaz do que rege os hábitos alimentares brasileiros, em especial daqueles que têm como matriz o continente africano, o antropólogo, museólogo e escritor Raul Lody oferece aos leitores mais três obras que apontam a importância do alimento na formação cultural

da nação. Os dois primeiros são Coco – comida, cultura e patrimônio (196 páginas, R$ 49,90) e Vocabulário do açúcar (200 páginas, R$ 34,90), ambos com selo da editora Senac São Paulo. No primeiro, Lody expressa sua paixão pelo coco por meio de explicações sobre

a origem do fruto e a sua quase onipresença na mesa tupiniquim. Didático, o livro soa como uma aula sobre esse ingrediente tão presente, mas tão desvalorizado no cotidiano, podendo ser utilizado de modo versátil, da alimentação à cosmetologia e à industria de limpeza. O segundo volume, Vocabulário do açúcar – histórias, cultura e gastronomia da cana sacarina no Brasil, reúne 1,2 mil verbetes reveladores das marcas que o cultivo da cana-de-açúcar e de seus derivados imprimiram à sociedade brasileira. Ele explica o significado do aponom (espécie de cocada de coco verde) e do zeste (casca da laranja ou limão ralada), de termos como ibirica babaca (engenho de acúçar movido à roda d’água) e reminhol (colher de cobre). O livro baseou-se em pesquisas de campo sob a ótica da antropologia da alimentação, realizadas no Brasil, no norte do continente africano (Magreb) e em Portugal.

Em Caminhos do açúcar, lançado este mês, Lody se apropria do legado deixado por Gilberto Freyre para discutir, entre outros temas, a gastronomia, estética, religiosidade, arquitetura e ecologia, nos muitos cenários sociais do Nordeste, em especial o de Pernambuco. Fundamentando a construção do livro em algumas obras mais significativas de Gilberto Freyre, o autor se utiliza de festividades, como Natal, Carnaval, Semana Santa e São João, para abordar, novamente, a culinária e a religiosidade nordestinas. A obra permite que o leitor penetre no universo freyriano e, ao mesmo tempo, perceba outros contextos. Ele oferece, num primeiro instante, uma visão mais ampla dos objetos tratados, para depois explorar suas peculiaridades e seus traços mais pitorescos. A publicação também abre espaço para a relação de amizade entre Lody e o sociólogo. EDUARDO SENA E DANIELLE ROMANI

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REPRODUÇÃO/ PINTURA AUDITÓRIO DO ALTES BURGTHEATER, DE GUSTAV KLIMT

Palco

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ESTUDO O teatro como grupo social

Pesquisa aponta a macroestrutura do setor em quatro capitais europeias, num período de crescimento econômico e urbanístico TEXto Adriana Dória Matos

Quando observamos a bibliografia sobre teatro, deparamo-nos com o texto, a criação dramatúrgica propriamente; perfis de atores, diretores, grupos; dicionários; ensaios históricos; estudos sobre encenação; crítica; livros técnicos. Podemos dizer que a variedade de interesses e demandas nesse campo é, assim, atendida. Uma curiosa abordagem do assunto, que considera o teatro numa perspectiva sociológica, está em A gênese da sociedade do espetáculo – teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena (Companhia das Letras). Nele, o professor de História Contemporânea Christophe Charle dá continuidade às pesquisas que vem realizando no campo da história social e que já resultaram em estudos sobre professores universitários,

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REPRODUÇÃO/ NADAR

1 BURGTHEATER Embora não tivesse a proeminência da cena cultural de Paris, Viena também se constitui um centro de irradiação cultural, tendo essa casa de espetáculos como referência 2 SARAH BERNHARDT Atriz é o exemplo mais célebre da influência e do status inéditos conquistados pelas atrizes no final do século 19

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jornalistas, intelectuais e funcionários de alto escalão do governo do seu país, a França. O interesse do autor recai nas dinâmicas sociais e econômicas que incidem sobre essas categorias em momentos de evidente transformação. Por esse motivo, esse ambicioso estudo comparado – que, não satisfeito com a efusão parisiense, reúne dados sobre mais três capitais europeias – detém-se justamente no período entre 1860 e 1914, quando a Europa vivia intenso crescimento, industrialização, complexificação das relações de trabalho, urbanização radical, tudo o que traz benesses e euforia coletiva, mas também tensões econômicas, políticas e culturais. Charle vai encontrar no ambiente teatral o locus onde essas

transformações ocorrem de acordo com os procedimentos que lhe são peculiares, considerando a influência que o teatro exercia naquele período. Porque, se hoje temos os meios eletrônicos – o cinema e a televisão, especificamente – como fomentadores e criadores de modos e modas, com seus gênios, mitos e celebridades –, à época, cabia ao teatro o papel central de catalisar público, fomentar tendências, provocar debates e transformações na sociedade da qual era partícipe. É justamente aí que encontramos o sentido do título do livro, no original, Théâtres en capitales – naissance de la société du spectacle, Paris, Berlin, Londres, Vienne 1860-1914, lançado na França em 2008. Um estudo comparado que

torna palpável – pela apresentação de estatísticas, números, percentuais; e pelo cruzamento desses dados e de suas comparações – a realidade das relações de trabalho dos profissionais do setor naquelas décadas. A pesquisa de Christophe Charle se interessa por aquilo que é mais material, que dá sustentação ao teatro como meio artístico e local de produção. Nesse sentido, ele antagoniza com estudos que destacam certos agentes que se tornaram ícones, referências. Interessalhe a regra, não a exceção. Assim, nesse livro, deparamo-nos com informações geralmente pouco valorizadas em estudos sobre teatro como: Qual era a formação dos diretores teatrais? Quantos deles tinham educação básica ou eram universitários? A que classe social pertenciam? De que regiões eles vinham? As mesmas questões também são postas para atores e atrizes. Para entender as distinções entre casas de espetáculos (comerciais ou alternativas, óperas, operetas, cafésconcertos) e seus públicos (mais ou menos intelectualizados, endinheirados), o autor mapeia os bairros e regiões das cidades estudadas em que elas mais ocorrem, quais as suas capacidades, que investimentos são necessários para erguê-las e – o mais difícil – mantê-las. Desse modo, observamos as cidades e seus habitantes a partir do teatro, uma perspectiva instigante, um olhar de fora para dentro, como se acompanhássemos o autor em voo planador, vendo tudo numa perspectiva ampla, que nos leva ao entendimento estrutural da sociedade do espetáculo. Junto com Charle, somos levados a desmistificar as figuras de proa – os produtores tiranos, os autores cerebrais, os diretores intocáveis, as atrizes divas, os salamaleques que iludem parte do público – que a história do teatro acaba por enaltecer, porque a elas se refere isoladamente, muitas vezes, sem considerar os contextos em que esses protagonistas estão imersos e dos quais emergem. Nesse estudo, atentamos para o conjunto, a massa de homens e mulheres que escolheram as artes cênicas como profissão e, dentro dela, tiveram que se submeter às suas regras, fossem elas objetivas – e, aqui, os aspectos econômicos são determinantes – ou subjetivas.

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Artigo

Eslam Rezo/Demotix/Corbis

CEZAR MIGLIORIN UM DIA ENTRE KHAN EL KHALILI E TAHRIR Ao lado do hotel, perto do grande

mercado de Khan el Khalili, atravesso uma típica rua do Cairo. Enquanto em nosso ideal de cidade há uma nítida separação entre o lugar do carro, das motos e dos pedestres, no Cairo, assim como em muitas periferias brasileiras, esses lugares parecem estar em disputa. Aqui, entretanto, há uma singularidade, os carros não têm preferência, por princípio. Pedestres atravessam a rua orientando a movimentação dos automóveis. Com as mãos, fazem sinais mandando os carros pararem, diminuírem ou avançarem. Como disse uma amiga egípcia que vive em Londres: “Na Inglaterra, a faixa de segurança diz que o resto da cidade é do carro; aqui, tudo é faixa de segurança”. Na movimentada rua que, além dos veículos motorizados, é ocupada por bicicletas, vendedores de frutas e barracas de comida, procuro um cyber – nome que os cairotas dão às lan houses. Para pedir informação, nem sempre é fácil achar quem fale inglês, o que é adorável. A língua é nosso saudável limite à globalização que está em todo canto. Depois de alguns dias, eu já conseguia identificar com alguma precisão quem poderia falar inglês. Abordei um jovem rapaz que saía de um barbeiro e perguntei pelo cyber. – Salaam Aleikum! Ele não sabia, mas logo chamou um colega que passava por perto em uma lambreta – transporte muito popular por aqui. Depois de uma breve conversa entre os dois, o rapaz da moto fez sinal para que eu subisse na garupa. Nessas situações, não se tem muita escolha, felizmente. Subi na moto, enquanto meu anfitrião dizia uma palavra que ouvi muitas e muitas vezes no Cairo: welcome. No cyber, depois de usar a internet durante 15 minutos, os jovens que administravam o lugar me perguntaram

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de onde eu era, e já foram dizendo: – Você veio por causa de Tahrir? – Mais ou menos, respondi. – Vamos para lá daqui a pouco. Agora, ninguém quer saber de pirâmide, é só revolução. Esse é o cotidiano do Cairo. Por um lado, os últimos acontecimentos políticos estão em toda parte, dos suvenires e grafites à constância com que as TVs, em lugares públicos, aparecem sintonizadas nos canais que transmitem de Tahrir. Por outro, a vida segue inalterada. Ao lado de Tahrir, por exemplo, um homem andava de um lado para o outro oferecendo um pedaço de papelão aos egípcios que tomavam chá na calçada. Finalmente, um deles chama o “vendedor”, que o ajuda a tirar os sapatos. Coloca as meias brancas sobre o papelão e, cinco minutos depois, recebe os sapatos engraxados. Para a mesquita, os pés não podem

estar sujos e, para o dia a dia, é bom ter sapatos brilhando. O Cairo é tomado por um estereótipo que as visitas rápidas em busca de pirâmides e múmias confirmam. Poluição, barulho, trânsito e sujeira. É isso que se comenta sobre a cidade. Mas essa é apenas a superfície, a primeira impressão. Ao lado da rua que, para nossos olhos frequentemente simplistas, não tem ordem, está aquela viela que o motoqueiro tomou. Espaços sem carros, muito mais silenciosos, com pessoas que tentam evitar qualquer constrangimento ao estrangeiro que passa ou que senta para experimentar shisha. Nesses espaços pré-modernos, para pedestres, animais e motos, que se estendem por toda a gigantesca cidade, sente-se uma forte coesão da comunidade. Uma coesão que parece ser importante para o

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1 e gito Manifestação na Praça Tahrir, no Cairo, pela queda de Mubarak

baixíssimo índice de criminalidade na cidade, menor que o da França, por exemplo, e, ao mesmo tempo, dá pistas da tensão que o país vive hoje, nesse momento em que a revolução está em processo e que há buscas de estabilidade. Sim, trata-se de uma revolução. Antes de chegar ao Cairo, via com certo ceticismo essa ideia – um movimento tão moderno, organizado pelo apagamento do passado, pelo corte radical em direção ao futuro. Mas, claro, a mudança está nas ruas, na marcha das mulheres, no enfrentamento heroico de centenas de jovens que vão para o embate com a polícia, nos mortos que caíram na praça Tahrir e nos discursos que se permitem imaginar um país novo. Mas essa revolução parece estar, sobretudo, na dificuldade em colocar palavras para dizer do futuro, para explicar o que acontece. Parece

corporificar-se no desafio que ela coloca ao pensamento. Hoje, curiosamente, todos são a favor da revolução e da queda de Mubarak, até aqueles que o apoiavam contam como estavam presentes nos 18 dias em que o povo, na praça, derrubou o ditador. Mas, no processo que se desdobra depois da queda de Mubarak, dois movimentos se evidenciam. Um encara a revolução como um estado a não ser abandonado e que deve guiar as práticas dos egípcios com os ideais que parecem perturbar os burocratas: democracia e liberdade. Para os que nela se encontram, Tahrir é uma arma poderosíssima. Em uma cidade de 20 milhões de habitantes, as pessoas que cabem em uma praça mudam o país e o mundo. Nesse contexto, a revolução tem urgência de democracia, mas é, antes, um estado permanente em que o Egito pode se reinventar para o século 21. De outra parte, há aqueles desesperados por organizar o futuro do país dando a queda de Mubarak como um ponto final da revolução. “O ditador já caiu, agora é hora de respeitar as eleições e seguir em frente.” Nessas duas posições, está o suposto grande desafio do Egito hoje: a coexistência de duas formulações, dois eventos que não se confundem. A democracia representativa e a revolução. Ou seja, entre o ideal revolucionário e a democracia representativa há uma inevitável decepção. Enquanto a revolução é descentrada, sem lideranças claras, atravessada por ideais de liberdade, frequentemente anarquistas, o resultado das eleições refletiu uma sociedade em busca de estabilidade, hierarquia e centralidade, com mais de 2/3 dos votos para candidatos ligados à irmandade muçulmana. Ao sair do cyber, ganhei novamente a rua para uma longa caminhada até Tahrir, entre ruas e vielas tomadas pelo perfume do cominho e chamados para a prece vindos das centenas de mesquitas que existem na cidade – alguns falam em mais de mil delas. No caminho, cruzo com uma passeata em direção à praça.

Desde meus primeiros dias no Cairo, os egípcios me falam que a revolução foi feita por todas as classes, todas as idades, em suma, todo o Egito. Achava isso um tanto romântico, quase um desejo de encontrar na gênese do movimento um princípio democrático. Mas, ao me deparar com essa marcha de milhares de pessoas em direção a Tahrir, o Egito parecia estar inteiro ali. Naquele grupo se percebia a diversidade: jovens, velhos, mulheres de jeans e cabelo solto e outras com o rosto completamente coberto. Fui tomado pela emoção de estar vendo aquilo. Distante das cenas violentas e espetaculares, com gritos de “revolução” e “Egito”, uma multidão levava no rosto e no corpo as marcas da sua diversidade, materializando o sentimento de que o mundo ali está para se inventar e de que Tahrir é uma arma como nenhuma outra.

Depois da Primavera Árabe, a Praça Tahrir, centro das manifestações públicas, tornou-se ponto turístico Vendo aquela multidão, lembreime de uma cineasta que conheci aqui: “Tenho 32 anos, uma filha de quatro e, em Tahrir, pela primeira vez, tive muito orgulho de ser egípcia”. Entendi perfeitamente. Acompanhando a passeata, chego a Tahrir, onde um grupo de jovens faz uma projeção de vídeos feitos nos 18 dias de janeiro de 2011, numa tela improvisada. O vento que traz a areia do deserto para a cidade é forte e balança a frágil estrutura em que se projetam as imagens. Nessas cenas do cotidiano e do movimento, o Cairo materializa o anacronismo do contemporâneo. Com a revolução, urge inventar o século 21 em meio a uma cidade frequentemente pré-moderna e cercada por imponentes pirâmides de 5 mil anos. Ser egípcio, hoje, não é fácil, mas, nos próximos anos, meus olhos e ouvidos estarão sempre por lá.

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Guilherme Carvalho PRATICANDO A NÃO VIOLÊNCIA

Guilherme Carvalho

é biólogo e gerente de campanhas da Humane Society International (HSI) no Brasil divulgação

O princípio básico do consumo consciente sugere que o modo de cada cidadão usar o seu dinheiro pode direcionar a maneira pela qual o mercado opera. É simples: se você compra roupas de uma certa marca, estimula a produção e a cadeia de fornecimento de roupas daquele tipo. E isso vale para qualquer produto ou serviço que alguém seja capaz de imaginar. Entretanto, o consumidor brasileiro ainda se preocupa pouco com as potenciais implicações éticas das suas compras. Ser um consumidor mais responsável não é muito difícil. Basta um mínimo de pesquisa e, acima de tudo, honestidade consigo mesmo. Em linhas gerais, devemos fazer a nós mesmos algumas perguntas simples para averiguar quais os possíveis envolvimentos morais em adquirir um bem ou serviço. Uma das mais importantes é: “Alguém foi submetido à violência para que eu pudesse adquirir isso?” Seduzidos pelo preço, pela aparência e pelo desejo de tornar nossas vidas mais fáceis e prazerosas, tendemos a nos abster de tal responsabilidade. Mas não podemos pular esse passo nas nossas decisões de compra; isso significa resignar-se à ignorância e recusar-se a tentar corrigir hábitos de consumo de forma a torná-los mais coerentes com os nossos princípios e valores. Uma verdadeira covardia. Ao passar displicentemente no caixa, confirmando tal recusa, tomamos decisões que podem financiar a violência. Nesse momento – o da compra –, o cidadão inocente e bem-intencionado tornase aquele que violenta, bate, escraviza, devasta, confina, explora e mata. Seja com uma peça de roupa produzida com trabalho escravo, um pedaço de carne animal produzido com crueldade ou um móvel fabricado a partir de desmatamento ilegal, o consumidor torna-se o mandante do crime. Evidentemente, o consumo ético e não violento pode encontrar limitações. Um consumidor consciente poderia, por exemplo, buscar e não encontrar informações confiáveis sobre determinada cadeia produtiva. Em outro caso, alguém poderia alegar que é difícil escolher, porque todas as empresas realizam algo de errado. No entanto, tais limitações não nos eximem da responsabilidade de fazer o possível para minimizar nossa contribuição financeira a processos injustos ou violentos. Se, de fato, pretendemos construir um mundo menos violento nas próximas décadas, não basta que se evitem guerras entre nações e que conflitos pessoais sejam resolvidos pacificamente. Precisamos também – para ontem – promover a não violência através das relações de mercado, escolhendo conscientemente o que comemos, o que vestimos e a quem compramos.

con ti nen te

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