Continente #136 - Recife rural: de barro e asfalto

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# 136

#136 ano X II• abr/12 • R$ 11,00

CONTINENTE

RECIFE RURAL

DE BARRO E ASFALTO OS CONTRASTES QUE HABITAM A CIDADE ABR 12

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E MAIS VIDEO GAME – 40 ANOS | TARKOVSKY | CORAÇÕES SUJOS | BECHARA INSTAGRAM | QUEIJO DE TERROIR | FOTODOCUMENTAÇÃO | MALVINAS 30/03/2012 16:04:21


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RICARDO MOURA

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aos leitores Contra qualquer ideia de evolução linear das coisas do mundo, vivemos diariamente uma realidade de sobreposições que nos arrebata, mesmo com toda sua evidência. Caso contrário, não acharíamos “absurdas” cenas como as que observamos com frequência e que nada mais são do que materializações dos desníveis econômicos e das demandas da sociedade de consumo, na qual estamos todos imersos. Num sinal de uma via movimentada do Recife, ladeiam-se uma caminhonete superpossante e uma charrete que carrega sobras para alimentar porcos de uma criação mantida perto dali. Um detalhe: ambos os motoristas usam celulares para se relacionarem e fechar negócios. O desconforto do ocupante da caminhonete com tal situação antitética é expresso em manifestações de desagrado em matérias da grande imprensa, que os representa. Aos charreteiros, cabe resistir. Ou seja, mesmo com interdições e impedimentos, usam as ferramentas de que dispõem para trabalhar e circular pela cidade. Não que tivéssemos, na Continente, a pretensão de “dar voz” ao segmento dos que

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estão à margem das estatísticas de vendas de veículos motorizados que alegram o mercado, mas situações como a que descrevemos acima são dignas de um registro histórico. Nesse caso, assumimos a posição de quem observa o fenômeno social “de fora”, do ponto de vista de quem “caminha” pela cidade e “reage” ao que presencia. Foi com disposição de andarilhos que Carol Leão e Ricardo Moura desenvolveram o tema do “Recife rural” que propusemos para esta edição. Eles trouxeram para os que trafegam sobre o asfalto vivências daqueles que se alojam num ambiente diverso, numa cidade de barro dentro da cidade de pedra. Espaços e tempos imbricados. O leitor perceberá, em outros momentos desta edição, nosso interesse por antagonismos geográficos e econômicos no ambiente urbano, particularmente na reportagem ao estilo gonzo de Thiago Lins, sobre a Rua Ferreira Lopes, e no artigo de Kleber Mendonça Filho, que se detém na relação do cineasta com a cidade. Embora com locuções diferentes, eles trazem uma consonância que o leitor logo identificará.

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sumário Portfólio

André Neves 06 Cartas

56 Leitura

Juan Pablo Villalobos Romance Festa no covil perpassa violência urbana em narrativa fabulosa

07 Expediente

+ colaboradores

08 Entrevista

Vicente Amorim Cineasta conversa sobre as fontes que guiaram a concepção de seu mais novo filme, Corações sujos

12 Conexão

They draw and travel Site reúne mapas do mundo inteiro criados por artistas plásticos e ilustradores

20 Balaio

Os penetras do Oscar Sean Young e outros não convidados mostram o lado nada elegante da cerimônia hollywoodiana

40 Peleja

Reconhecimento A regulamentação da profissão traz benefícios efetivos para os designers?

52 Pernambucanas

Ferreira Lopes Belos casarões e quase ninguém nas calçadas são visões frequentes em rua chique de Casa Amarela

60 Sonoras

Ilustrador de livros infantis revela diálogo com a obra de consagrados pintores pernambucanos em seu processo de “confabulação de imagens”

14

Tiago Araripe CD Baião de nós marca a volta do compositor aos estúdios após 30 anos

64

Matéria corrida José Cláudio A la ursa azul

76 Palco

Coletivos Grupos de teatro recifense ganham maior visibilidade no país

80 Claquete

Tarkovsky Aclamado cineasta russo completaria 80 anos este mês

86 Artigo

leber Mendonça Filho K No cinema, a cidade como um reduto de “não lugares”

88 Saída

Evanildo Bechara Lições dos dicionários

Tecnologia Video games

A complexidade dos jogos eletrônicos em seu 40° aniversário reacende a discussão: já podemos chamá-los de arte ou eles ainda são mero entretenimento?

42 Capa foto RICARDO MOURA

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Urbanismo

Fotografia

Feiras de cavalos, ferradores e construtores de carroças movimentam um comércio informal típico do interior, no ambiente da metrópole

Ensaio problematiza os limites do subjetivo e do objetivo nesse campo, quando a imagem é considerada uma exclusiva reprodução do “real”

Visuais

Cardápio

Aplicativo de celulares para captura e compartilhamento de fotografias tem sido empregado cada vez mais para fins jornalísticos e artísticos

Produtores do Agreste Meridional buscam aprovação de selo de procedência para o único pernambucano dos cinco queijos brasileiros de terroir

Recife rural

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Instagram

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Documental

32

Abr’ 12

Coalho

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cartas nº 135/março, e a considero muito boa. Um grande abraço e felicitações para toda a equipe! Erivan Felix RECIFE – PE

Cangaço II A repórter Danielle Romani foi feliz com a matéria Feminismo acidental. Escrever sobre o tema não é fácil, mas ela deu conta do recado. Percebe-se uma exaustiva pesquisa, entrevistas e texto enxuto. Foi uma das poucas dignas de elogios nos últimos tempos. Ela deveria escrever mais sobre o assunto.

Capa de janeiro Compartilho com vocês a novidade boa deste ano. A imagem de capa que fiz para a revista Continente, edição nº 133, foi premiada no XX Salão Internacional de Desenho para Imprensa, na categoria Ilustração Editorial. Agradeço de novo aquela parceria. Foi um grande presente!

Wanessa Campos RECIFE – PE

Cangaço III

Mauricio Negro

Gostei muito do texto Feminismo acidental, publicado na Continente de março. O trabalho ficou bem acessível. Estou mandando a revista para a Bahia.

SÃO PAULO – SP

Rosa Bezerra RECIFE – PE

Cangaço I

Revistão

Li a matéria Feminismo acidental, publicada na Continente, edição

Chegou hoje o exemplar da Continente. Já passou por seis

olhos e várias mãos na redação do Correio do Estado. Que revistão! Parabéns! Vou lê-la calmamente, à noite, junto com Truman Capote, Talese e Nietzsche – ultimamente, meus prediletos. Montezuma Cruz MATO GROSSO DO SUL – MS

Vitrais Parabéns pela edição nº 132 da Continente. A matéria de capa Sob a luz do vitral foi muito especial. Conheço Suely Cisneiros e o colega Fernando Guerra. Gostaria de registrar que a maior coleção de vitrais clássicos da América Latina está na Catedral de Petrolina, vindos da França, da fábrica Balmet, trazidos pelo primeiro bispo da cidade, Dom Malam. Além de arquiteto, sou marchand, artista plástico e também faço vitrais modernos, com mais de 20 exemplares em igrejas, centro ecológico, obras públicas e residências, aqui, em Petrolina, todas com o aval de Fernando Guerra. Cosme Cavalcanti PETROLINA – PE

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

Breno carvalho

carolina Leão

José Afonso Jr.

Luciano trigo

Designer e coordenador do curso de Jogos Digitais da Unicap.

Jornalista, gerente de Literatura da PCR e doutora em Sociologia pela UFPE.

Fotógrafo, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da UFPE.

Jornalista, crítico de cinema e escritor. Autor dos livros O viajante imóvel e Engenho e memória.

e MAiS Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Bruno Albertim, jornalista especializado em Gastronomia. chico Ludermir, jornalista e fotógrafo. evanildo Bechara, professor, gramático e filólogo. Kleber Mendonça Filho, jornalista, crítico de cinema e cineasta. Jacques Waller, jornalista, repórter do caderno Tecnologia do Jornal do Commercio. Josias teófilo, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB. Lucas colombo, editor e colunista do site Mínimo Múltiplo, professor de Jornalismo Cultural da Unisinos. olívia Mindêlo, jornalista e mestre em Sociologia. Sérgio Lobo, fotógrafo. Rael Lyra, ilustrador, trabalha no Porto Digital, na área de games. Schneider carpeggiani, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutor em Teoria da Literatura.

GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco

SuPeriNteNDeNte De eDiÇÃo

coNtiNeNte oNLiNe

ateNDiMeNto ao aSSiNaNte

goverNaDor

Adriana Dória Matos

Gianni Paula de Melo (jornalista)

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

SuPeriNteNDeNte De criaÇÃo

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SecretÁrio Da caSa civiL

Luiz Arrais

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Leda Alves

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Diretor De ProDuÇÃo e eDiÇÃo

Gabriela Alcântara, Ingrid Melo, Pedro Paz

ProDuÇÃo grÁFica

Ricardo Melo

e Ricardo Moura (estagiários)

Júlio Gonçalves

Diretor aDMiNiStrativo e FiNaNceiro

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Eliseu Souza Sóstenes Fernandes

Bráulio Mendonça Menezes coNSeLHo eDitoriaL:

arte

Everardo Norões (presidente)

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

Antônio Portela

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

PuBLiciDaDe e MarKetiNg

Lourival Holanda

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

e circuLaÇÃo

Nelly Medeiros de Carvalho

diagramação e ilustração)

Armando Lemos

Pedro Américo de Farias

Roberto Bandeira

Alexandre Monteiro Rosana Galvão Gilberto Silva Daniela Brayner

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE reDaÇÃo, aDMiNiStraÇÃo e ParQue grÁFico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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VICENTE AMORIM

“Vi todos os filmes japoneses que pude” Diretor fala sobre seu novo filme, Corações sujos, em que mobilizou elenco de atores nipônicos que falam exclusivamente sua língua-mãe num longa brasileiro texto Luciano Trigo

con ti nen te

Entrevista

Fosse apenas uma adaptação bem feita do livro do jornalista Fernando Morais, o filme Corações sujos, de Vicente Amorim, já mereceria atenção. Como se sabe, Morais investigou a Shindô Remmei, ou Liga do Caminho dos Súditos, que, mesmo após terminada a Segunda Guerra, continuava acreditando na vitória japonesa. Seu propósito era levar ao extremo a lealdade ao imperador, e suas práticas incluíam o extermínio de compatriotas “traidores”. Seus seguidores – 80% da população japonesa em São Paulo – perseguiram os imigrantes que traziam notícias sobre a derrota do Japão. O resultado foi que, entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947, 23 imigrantes morreram e outros 147 ficaram feridos – um exemplo das consequências trágicas a que pode levar a combinação de isolamento social (a colônia japonesa vivia praticamente sem contato com o mundo exterior) e um código de conduta rígido que não acompanhou as transformações da História. O filme de Vicente Amorim vai além: transforma essa história em pano de fundo para uma reflexão sobre valores

em conflito e sobre temas permanentes, como honra e justiça, orgulho e culpa. Amorim é um cineasta que se sente atraído por personagens normais, arrastados pela força das circunstâncias para o lado errado, por motivos aparentemente certos. Aumenta a força de Corações sujos o fato de seu protagonista não ser apresentado como herói ou vilão, mas como uma pessoa dividida entre a lealdade à pátria e aos superiores e uma realidade na qual os alicerces de sua identidade deixam de fazer sentido. Mesmo o personagem do Coronel Watanabe (Eiji Okuda), mais próximo do vilão, é construído de tal maneira, que ganha credibilidade psicológica. É uma fala de Watanabe que condensa uma das mensagens de Corações sujos: o principal inimigo está dentro de nós. Sobre o filme, seus entornos e a produção cinematográfica brasileira, Amorim conversou com a Continente. CONTINENTE Como foi a decisão de filmar o livro de Fernando Morais? VICENTE AMORIM Eu comprei o livro do Fernando Morais por curiosidade. Já tinha lido e gostado de vários: Olga, A ilha,

Chatô... Comprei sem pensar em fazer uma adaptação. Minha mulher, Anne Pinheiro Guimarães, também cineasta, leu o livro antes de mim, enquanto eu fazia O caminho das nuvens. Quando terminei, procurava o meu próximo projeto. Sabia que queria fazer algo sobre identidade, adequação, pertencimento... São temas próximos a mim por conta da minha formação pessoal, mas as tentativas de criar uma história em torno disso me pareciam todas muito cabotinas e autocentradas. Foi quando a Anne me disse para ler o livro. Li e tive quase uma epifania: meu filme sobre identidade estava ali, mas com muito mais músculo. Percebi que Corações sujos indicava a possibilidade de, com o recorte certo, gerar um longa sobre identidade, racismo, fundamentalismo e o conceito de “verdade” – sendo, ao mesmo tempo, um thriller. O componente melodramático, típico da dramaturgia japonesa, foi incorporado mais tarde. A adaptação, a cargo do David França Mendes, foi trabalhosa. Além dos elementos do livro, precisávamos fazer mais pesquisa, e isso durou dois anos.

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rafael andrade/divulgação

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sujos foi concebido, de certa forma, como um western-samurai. A situação, um homem comum que se torna assassino, o tipo de violência e o setting – as ruas de terra, as casas de madeira, o calor e a poeira –, tudo somado dava, desde o início, um sabor de faroeste à história. E, claro, o filme é passado no oeste do estado de São Paulo. Durante a concepção, vi todos os filmes japoneses que consegui e revi alguns clássicos. Os filmes mais barrocos, mais “de samurai” do Kurosawa foram influências importantes, como foram alguns filmes

Fotos: DIVULGAção

CONTINENTE Fale sobre a influência do filme de Clint Eastwood, Cartas de Iwo Jima, na concepção de Corações sujos. VICENTE AMORIM Na concepção da história, não houve influência do filme do Eastwood. Quando o filme dele foi lançado, a gente já tinha escrito uns dois tratamentos. O processo entre a compra dos direitos do livro e a filmagem durou sete anos! Mas, como só fui filmar alguns anos depois do lançamento do Cartas de Iwo Jima, é claro que houve influência, mesmo que indireta, do filme do Clint. Alguns dos seus filmes são minhas

con ti nen te

“Corações sujos foi concebido, de certa forma, como um western-samurai. A situação, um homem comum que se torna assassino e o setting, tudo somado dava um sabor de faroeste”

Entrevista obras preferidas, com Os imperdoáveis no topo da lista – e não passou batido ele ter feito um filme de guerra todo falado em japonês. Acho que dá para perceber influências na construção dos personagens, na fotografia e nos diálogos, que foram adaptados para o japonês pela mesma pessoa nos dois filmes, a escritora Yuki Ishimaru. Mas o filme do Clint, e seu sucesso, foi muito importante por um motivo inesperado: ele me libertou das pressões para fazer o filme em português, “com sotaque” – o que teria sido um desastre, já que uma das razões para tudo que acontece no meu filme é o fato de a maioria dos imigrantes não falar português. CONTINENTE Com que outros cineastas o filme dialoga? VICENTE AMORIM Não dá para responder a essa pergunta sem voltar à anterior: um dos cineastas que mais admiro é o Clint Eastwood, e o Corações

sendo enorme, não há oportunidade para atores japoneses no Brasil. Os melhores atores nisseis do país estão no filme. Para escalar o elenco, além de critérios artísticos, procuramos atores que fossem relevantes comercialmente; e quem me ajudou na escolha foi o mesmo produtor de elenco do Cartas de Iwo Jima, Yutaka Tachibana. Ele me mandou dezenas de filmes japoneses atuais – sem legendas. O engraçado é que você se dá conta de que o clichê da “linguagem universal do cinema” é verdadeiro. Dá para fazer a primeira

contemporâneos – especialmente, os do Kitano e os do Miike. Mizoguchi, Ozu, Kobayashi foram importantes, mas como construção de um universo cultural, como foi também a leitura do Hagakure, de Mishima e mesmo de Murakami. Perceber a queda dos japoneses pelo melodrama foi fundamental. Eu falava com a Yuki Ishimaru (a dialoguista): Vocês são os mexicanos do Oriente! Ela confirmava. Isso me ajudou a aceitar uma história emocional, a afastar preconceitos, a construir um filme que, mesmo brasileiro, tivesse alma japonesa. CONTINENTE Como foi a escolha do elenco e a comunicação dos atores japoneses ? VICENTE AMORIM Demorou mais de um ano. O filme foi concebido para o mercado brasileiro, mas, sabendo do potencial comercial no Japão, a decisão de trazer o elenco principal de lá foi óbvia. Teríamos dificuldade de fechar os principais papéis aqui. Mesmo a colônia

avaliação da qualidade de um ator mesmo sem entender nada do que ele está falando. Depois dessa triagem “surda”, passamos para a fase de entrevistas. Acabamos fechando um elenco, com atores que trabalharam em Cartas de Iwo Jima, Kill Bill, entre outros. CONTINENTE O filme difere do livro em quê? VICENTE AMORIM O livro é uma reportagem, não um romance. Não tem enredo, não é centrado num só personagem e relata eventos acontecidos ao longo de muitos anos, protagonizados por centenas de pessoas. Adaptá-lo, não seria simples. Escolhemos fazer um recorte. Pinçar personagens e situações descritas no livro, outras que conhecemos ao longo da pesquisa, ficcionalizá-las e restringir a ação no espaço e no tempo. Usamos uma cidade do interior de São Paulo como setting e centramos a trama em torno de um casal. Tudo o que está no filme

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é inspirado na realidade, inclusive a cidade, mas nada é literalmente verdadeiro. A obra funciona como uma metonímia da História. CONTINENTE Existe um ponto em comum com seu longa anterior, Um homem bom, que é o fato de retratar o drama de um cidadão qualquer que é conduzido pelos acontecimentos a ficar do lado errado da História. Esse é um tema que o atrai conscientemente? VICENTE AMORIM Um homem bom acaba quando a Segunda Guerra começa, e Corações sujos começa quando a guerra

acaba. Os dois filmes são sobre “súditos do Eixo” e personagens que sucumbem à pressão do grupo e a escolhas equivocadas. São, de certa forma, filmes existencialistas – ou, como me disse Jason Isaacs numa conversa sobre os dois projetos, são “thrillers éticos”. Mas as escolhas feitas pelos personagens só são equivocadas de forma absolutamente óbvia, para nós, graças à perspectiva histórica. O que garante que não estejamos fazendo escolhas tão equivocadas quanto Takahashi ou John Halder, hoje? Não quero dar lição de moral. Quero emocionar e entreter com os filmes que faço. Se, junto com isso, pudermos refletir sobre nossas contradições, melhor. CONTINENTE Você considera que amadureceu como diretor em Corações sujos? VICENTE AMORIM Tem aquela platitude de o diretor sempre considerar seu último filme o melhor. Não tenho

como negar que acho Corações sujos meu melhor filme. Mas, por outro lado, sem a experiência, especialmente a de Um homem bom, eu talvez não tivesse a coragem de encarar um projeto complicado como esse. Ela trouxe a libertação de amarras de linguagem e a compreensão de que o improviso só funciona com preparação. Tenho uma clareza maior a respeito do resultado que quero, de cada plano que faço, do que cada personagem é, da razão de estar contando uma história e do que fazer para contá-la melhor.

CONTINENTE Como você lida com essa oposição que se costuma fazer entre cinema comercial e cinema de autor? VICENTE AMORIM Quanto mais difusa for a fronteira entre o autoral e o comercial, melhor. Tento fazer filmes que me digam respeito, mas que funcionem para o maior número de pessoas possível. Não me interessa o comercial oportunista, descerebrado, nem o autoral hermético, que tem medo – travestido de desprezo – do público. Não fiz, no Corações sujos, “concessões” para tornar o filme mais palatável, mas procurei, sempre, construir pontes para que a razão pela qual eu estava fazendo aquele filme transparecesse. A verdade é que o domínio da sintaxe clássica no cinema é muito mais difícil do que a porralouquice chata, vazia e inconsequente, travestida de nova e experimental. Nada contra filme radical, moderno e, de fato, experimental, mas para

desconhecimento da linguagem, não tenho a menor paciência. Prefiro uma história bem contada. CONTINENTE Você considera que o cinema brasileiro pode se tornar uma indústria autossustentada? O que falta para nosso cinema “decolar”, de vez, como indústria? VICENTE AMORIM Não há país com expressão no mundo, incluindo os Estados Unidos, que não proteja e subsidie direta ou indiretamente suas indústrias culturais. A única chance de haver uma indústria cultural relevante no Brasil é através de apoio do Estado. É possível que, com o amadurecimento das políticas em vigor, daqui 10 ou 20 anos, as linhas de apoio sejam mais seletivas. Penso que o cinema começa a decolar como indústria. Se falta algo, é que as formas de apoio sejam pensadas para carteiras de projetos, para empresas produtoras, e não para obras individuais. Tem essa conversa mole de que roteiro é o que falta no cinema brasileiro. Falta é dinheiro para que os produtores invistam em carteiras de projetos, em vários roteiros ao mesmo tempo, e tenham linhas claras de atuação. CONTINENTE Com quais diretores brasileiros você mais dialoga? VICENTE AMORIM Sou da geração de Andrucha Waddington, José Padilha, Claudio Torres, Karim Aïnouz, Beto Brant, mas, confesso, não me sinto parte de um movimento junto com eles, mesmo gostando dos seus filmes. Essa geração começou em funções técnicas no final dos anos 1980 e, depois do Collor e por causa do hiato provocado por ele na produção de cinema, entrou para a publicidade. Há um cuidado técnico, característico dessa geração, que tem sua origem aí. Porém não há um movimento coordenado, ou mesmo conversas informais suficientes para que tenhamos convergências estéticas ou dramatúrgicas racionalizadas. As que existem são fruto da época, de amizades e consultas. Mesmo o chamado “novíssimo cinema” é um movimento inventado, muito mais fruto de uma possibilidade técnica e de uma certa coragem de fazer como der, o que é genial, do que um grupo esteticamente coeso. Talvez, no futuro, dê para olhar esta época e achar o que nos une e identifica.

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O melhor deste mês no ambiente virtual da revista Continente

con ti nen te

Paul McCartney no Recife

Portfólio

Na noite de 21 de abril, o recifense terá um encontro musical inédito e histórico. Paul McCartney fará show no Estádio do Arruda, com previsão de público estimada em 60 mil pessoas. O boato sobre a vinda do ex-beatle à capital pernambucana, que começou em meados de 2011, foi confirmado em entrevista coletiva com a produção do espetáculo, no dia 23 de março. Para comemorar o evento, que já vem movimentando fãs de todo o Nordeste, o ambiente online da Continente preparou um hotsite especial, com textos, curiosidades, fotos, vídeos, serviço, infográfico e links sobre o cantor e compositor inglês.

Conheça outros trabalhos do escritor e ilustrador pernambucano, radicado em Porto Alegre, André Neves, na galeria de imagens do site.

Conexão

Cinema e cidades Assista a vídeos que refletem sobre o espaço urbano do Recife, assunto abordado em artigo pelo jornalista e cineasta Kleber Mendonça Filho.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

EDITORIAL

ideiAs

MÚSICA

REVISTA

Site de designer oferece portfólio e interatividade

Filosofia e cultura tratados de modo independente

Notícias, entrevistas e um pequeno selo virtual

Para além das raves e da música alternativa

anajuan.net

umbigodascoisas.com

rockinpress.com.br

rraulr.com

Graças à sua bela homepage, é fácil encantar-se pelo trabalho da espanhola Ana Juan. Além de imagens editoriais, que vão desde ilustrações para a New Yorker até retratos, como o do cantor Devendra Banhart, para a Rolling Stone, o visitante pode encontrar representações de obras em vários suportes: peças em madeira, papel machê e mesmo joias. Todo o site segue o estilo da artista, com um tom poético e, ao mesmo tempo, simples, sem excessos visuais.

Uma coletânea de bons textos, com enfoque em filosofia e cultura, numa escrita leve. O Umbigo das coisas, editado por Bernardo Malamut e Rogério Bettoni, vai de matérias afetivas, como a que se detém sobre a memória que Sartre e Simone de Beauvoir cultivaram da visita ao Brasil, até as divertidas Contradições filosóficas, propostas pelo jovem produtor Diego Max. Um ótimo conjunto de pensamentos críticos e culturais independentes.

Com foco em matérias e batepapos com artistas brasileiros, como Jennifer Lo-Fi e Karina Buhr, ou grandes nomes da música independente internacional, como Beirut, o site é um dos veículos mais conhecidos e interessantes para se ler sobre música. O grupo, liderado pelo editor Marcos Xi, criou também o minisselo virtual RockinPress, que lança e divulga bandas independentes de maneira gratuita, tendo no currículo a sergipana Nantes, entre outras.

Uma revista online com design dinâmico, a Rraulr é baseada em funções colaborativas (como blogs de usuários) e tem um conteúdo bem diverso, que vai das tradicionais resenhas e notícias a podcasts e downloads de sets de DJs. A publicação surgiu em meados de 2007, como um zine que pretendia divulgar raves e a cena de música eletrônica brasileira. Atualmente, conta também com matérias sobre música pop e de vanguarda, além de guias de festivais que acontecem pelo país.

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blogs memória eutededico.tumblr.com

Elaborado pela jovem Mariana Guglielmelli, o tumblr traz belas dedicatórias escritas em livros. Sejam elas de namorados, mães, amigos ou de um antigo dono, o importante é que foram escritas com carinho.

COMPORTAMENTO whatshoulwecallme.tumblr.com

MAPAS DE VIAGEM QUE DESTACAM O LÚDICO Representações gráficas feitas por artistas de todo o mundo são destaque na página dos irmãos Nate Padavick e Salli Swindell theydrawandtravel.com

Você pode até não ter talento para desenhar, mas, possivelmente,

gosta de colocar o pé na estrada. Quando buscamos novos destinos e aventuras, nada como contar com indicações de lugares para visitar. Com representações gráficas lúdicas e interessantes, o site They Draw & Travel, dos irmãos Nate Padavidck e Salli Swindell, agrupa mapas feitos por artistas, com pontos turísticos e ilustrações que vão das mais elaboradas, como uma da cidade do Porto, em Portugal, da artista Agata Kowalska, até as mais simples, como a de Porto Alegre, por Nik Neves. O site nasceu pouco depois dos designers perceberem o grande número de visitantes que contribuíam com um projeto anterior deles, a página They Draw & Cook (com receitas ilustradas). They Draw & Travel conta ainda com seções para diretores de arte que procuram por novos talentos, livros infantis ilustrados pelos artistas parceiros, e uma lojinha vendendo os mapas no formato de quadros. Ótima referência para viajantes. Pelos trabalhos expostos, é possível passear por vários países durante horas, ao mesmo tempo em que se conhecem diferentes artistas e suas obras. GABRIELA ALCÂNTARA

Uma estudante de Direito criou esse blog, que traz imagens engraçadas de cenas do cotidiano de boa parte das pessoas, como, quando alguém mais alto senta à sua frente, no cinema.

FOTOGRAFIA setefotografia.wordpress.com

Segundo suas organizadoras, o 7 é um blog de fotografia, sobre fotografia, e para a fotografia. Escrito por Ana Lira, Priscilla Buhr, Bella Vale, Val Lima, Joana Pires e Maíra Gamarra, traz todo o amor que as jovens cultivam por essa arte, além de reflexões sobre a imagem.

CINEMA horrorbrasileiro.blogspot.com

Um catálogo com memórias e notícias sobre o gênero terror no cinema brasileiro. Com base na pesquisa de Laura Loguercio Cápena, jornalista e professora, a página conta com artigos de temas variados, como o inusitado horror naïf.

sites sobre

acervos de artistas NARA LEÃO

GILBERTO GIL

LITERATURA

www.naraleao.com.br

www.jobim.org/gil

www.machado.mec.gov.br

Com uma linha cronológica da carreira da musa da bossa nova, discografia, imagens, vídeos e documentos, o site oficial é o mais completo sobre a cantora.

Letras de música escritas à mão pelo próprio Gilberto Gil, partituras, correspondências, vídeos e textos. A página traz uma bela compilação de dados sobre o baiano.

O site, homenagem aos 100 anos de morte de Machado de Assis, conta com a obra completa do autor, além de linha cronológica, teses, um curta e outras informações.

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Portfólio

André Neves

um livro para morar TEXTO Gianni Paula de Melo

Quando pensamos nos ilustradores de livros infantis contemporâneos, acreditamos que suas principais referências são os grandes nomes dessa área. A ligação não é de todo falsa, mas também podem constar no repertório do profissional influências das artes plásticas, como as de artistas como Samico, Reynaldo Fonsêca, Cícero Dias, Romero de Andrade Lima e Abelardo da Hora. Esses foram criadores importantes na formação do pernambucano André Neves, destaque entre os escritores e ilustradores de obras infantis, que confessa sentir um “encantamento eterno” pelos pintores de sua terra. Sua carreira profissional começou no Recife, em 1998, época em que tinha aulas com Badida e trabalhava no Espaço Pasárgada, casa do escritor Manuel Bandeira. Atualmente morando no Rio Grande do Sul, André já se considera um pouco gaúcho. No seu trabalho, o ilustrador preza pela variedade de materiais, explora as imagens a partir de colagens e costuma utilizar, como base, tinta acrílica e têmpera. Mas, nesse quesito, ele não restringe as possibilidades, pois acredita que o livro infantil deve estimular a reflexão e o prazer pela fantasia, independentemente da técnica empregada. Escritor dos próprios livros, ele explica que assumir esses dois lugares autorais gera um efeito diferente de continente abril 2012 | 16

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3 Página anterior 1 estilo

Ilustrações do artista apresentam traço e humor suaves, como atesta Remédios e seu demônio

Nestas páginas 2 lino

A história explora a ideia de uma fábrica de brinquedos

Influências 3 Alguns livros mesclam referências tradicionais e contemporâneas, como Maroca e Deolindo

4 a ritmo d'incanto André tem vários livros publicados na Itália, e ilustra obras de escritores desse país

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imagens: reprodução

criar ilustrações para histórias de outros. Nas obras assinadas unicamente por ele, a cadência das palavras é estruturada junto às imagens, como se tudo fosse pensado visualmente. “Mesmo quando o texto se apresenta primeiro, o meu pensamento visual formula situações que, muitas vezes, me fazem mudar as palavras”, observa. O artista costuma dizer que está sempre “confabulando imagens”, expressão que dá título ao seu blog, no qual é possível acompanhar seus últimos lançamentos editoriais, trabalhos gráficos diversos, além de informações sobre o curso de ilustração que ministra. Entre seus livros mais recentes, estão Lino (Editora Callis), Maroca e Deolindo (Editora Paulinas) e Obax (Editora Brinque-Book), sendo este último o vencedor do Prêmio Jabuti 2011, na categoria infantil.

con ti nen te

Portfólio Também foi Obax que permitiu o episódio de reconhecimento mais marcante de sua carreira, quando uma pequena leitora declarou para André que gostaria de morar em uma casinha igual à do personagem. “Na ocasião, ocorreu-me o Monteiro Lobato, porque ele dizia que um dia ainda acabaria fazendo livros em que as crianças pudessem morar. Tem prêmio maior?” Seus traços, cores e humor suaves estão sendo empenhados em um novo projeto pessoal, uma publicação intitulada TOM. Já Malvina e Tra le nuvole, livro publicado na Itália cujo título em português significa “entre nuvens”, estão na fase final de confecção. Embora leve regularmente novidades às livrarias, André também comunga o sentimento de grande parte dos escritores que tem dificuldade em terminar uma obra. “Entregar um livro para impressão é uma dor. Sempre fico com a sensação de que poderia ser diferente, de que poderia mais. Por um lado, acho isso bom, porque essas insatisfações trazem boas descobertas para os próximos projetos”, conclui.

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5 catálogo Ilustração desenvolvida para a Feira Nacional de Literatura Infantojuvenil (FNLIJ), em Bolonha 6 o cAPITÃO E a SEREIA

Neste trabalho, ilustrador também escreve as próprias narrativas

7 PARCERIA O livro Cartão postal traz texto de Luiz Raul Machado 8 VARIEDADE Autor explora diferentes materias e técnicas, como a colagem para Carmela Caramelo

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Fotos: divulgação

abril é o mês do rock

Os penetras do Oscar Quem vê toda a sofisticação da cerimônia de entrega do Oscar nem supõe a associação do tradicional prêmio do cinema americano a uma nada glamorosa delegacia. Mas é o que vem acontecendo nos últimos anos, quando pessoas, especialmente atores não convidados para o evento, tentam nele ingressar a todo custo. Neste ano, foram 20 detenções realizadas pela polícia de Los Angeles. Dentre os detidos, estava a atriz Sean Young. Segundo as autoridades, o incidente com a musa de Blade runner (1982), hoje com 52 anos, esteve relacionado a “algum tipo de confronto físico” que aconteceu quando a estrela tentava entrar no tradicional Baile do Governador, jantar de gala que acontece após o Oscar, ao lado do Hollywood & Highland, antigo Kodak Theatre. A atriz foi liberta de madrugada, após pagar uma fiança de US$ 20 mil, sob acusações de agressão leve. Já a lista de crimes dos aspirantes a penetras inclui invasão, falsificação e roubo – associados à cópia de credenciais. Embora não se acredite muito nisso, pela reincidência, é possível que, na próxima edição do Oscar, os candidatos a penetras se contentem em assistir à premiação pela TV – evitando vexames como o da exandroide dos olhos rasos d’água. DÉBORA NASCIMENTO

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Criado em 1992 pelo produtor Paulo André Pires, o Abril Pro Rock comemora duas décadas de atividade, firmando-se como um dos eventos mais antigos do gênero em toda a América Latina (somando mais um título megalomaníaco para Pernambuco!). Em seus palcos, o país viu surgir o manguebeat, com apresentações da Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi. Para comemorar o feito, este ano, a produtora Astronave traz nomes como Los Hermanos, que tem uma história com o festival, já que um de seus primeiros grandes shows aconteceu durante a edição de 1999. Outro ponto forte da festa é, também, a comemoração dos 30 anos do grupo Ratos de Porão, na noite de peso do Abril. Pelo menos com eles, a farra promete ser grande, e barulhenta. (Gabriela Alcântara)

Balaio a saga dos legumes A francesa Évelyne Bloch-Dano escreveu biografias de alguns personagens secundários da área cultural. Porém, agora, sua atenção recaiu sobre os legumes. Eles são os biografados da obra A fabulosa história dos legumes (Estação Liberdade, 181 páginas). Instigada pelo amigo Michel Onfray, a autora discorre sobre as peripécias vividas pelos impensáveis couve, cenoura, abóbora, sem esquecer aqueles que vivem hoje em recolhimento, como o tupinambor. Para apoiar histórias tão intensas, Bloch-Dano busca referências na literatura, nas artes, na música, no cinema... É curioso compreender porque Freud considerava a alcachofra sua flor preferida ou perceber o interesse de Thomas Jefferson pelo tomate, ainda em 1781, anos antes da leguminosa desembarcar na América, no século 19, e dar origem à receita do ketchup. (Mariana Oliveira)

A FRASE

“A plateia só é respeitosa quando não está entendendo nada.” Nelson Rodrigues, cronista e dramaturgo

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um pirata assumido O Pirate Bay, site famoso entre os que procuram conteúdo pirateado na internet, resolveu divulgar artistas que são a favor do compartilhamento online de suas obras. O primeiro a ter sua foto estampada na página inicial, em lugar do famoso navio pirata do site sueco, foi o brasileiro Paulo Coelho, dias depois de ter feito declarações contra a lei americana antipirataria, pelas quais foi ovacionado por ativistas pró-compartilhamento online. Através da foto no Pirate Bay, chegava-se ao seu blog, em que se liam incentivos para baixar suas obras em qualquer lugar da internet. Segundo o escritor, as vendas de seus livros físicos só aumentaram, quando passou a permitir e incentivar o download gratuito deles. Não só os sedentos por misticismo e bruxaria, mas os dinossauros das indústrias culturais têm muito a aprender com Coelho. (Ricardo Moura)

criaturas

censura esquizofrênica Homer, Marge, Bart, Lisa e Maggie Simpson estavam de malas prontas para viajar ao Irã, mas foram barrados pelo secretário de políticas do Instituto para o Desenvolvimento Intelectual de Jovens e Crianças do país do Oriente Médio. Também, sob o argumento de que a família da sitcom norteamericana promovia a cultura ocidental, Mohammad Hossein Farjoo proibiu a venda de bonecos dos Simpsons em território iraniano. É curioso que a interdição recaia justamente sobre personagens satíricos, que criticam o estilo de vida dos próprios americanos, enquanto Super-Homens e HomensAranhas possuem permissão para circular livremente nas lojas infantis locais. Na visão dos governantes, os heróis estão autorizados porque “defendem os oprimidos”. Então, tá! (Gianni Paula de Melo)

José Pimentel, o eterno Cristo Por Rael Lyra

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URBANISMO

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CIDADE Fronteiras urbanas

Mesmo tendo iniciado sua modernização no século 19, o Recife ainda preserva convivência entre universos heterogêneos, resistentes ao processo de “metropolização” TEXto Carolina Leão Fotos Ricardo Moura

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Foi na feira de Beberibe que Djacy de Lira se encantou por uma charrete. Filho de um administrador de engenho do município de Araçoiaba, a 40 km do Recife, Djacy não se recorda de carroças de tração animal ou charretes em sua cidade natal. No burburinho da feira, sim. Natural. Carroças, carroceiros e charretes complementam a cadeia produtiva desses acontecimentos locais, impulsionando, como qualquer veículo, a chegada de matérias-primas, frutas e animais

aos fornecedores intermediários. A relativa distância entre os bairros exige a circulação rápida dos produtos, e a carroça supre a ausência de veículos motorizados entre a população de baixa renda da cidade. Enfim, um meio de transporte que cumpre, como qualquer outro, o objetivo de quem trabalha como negociante: circular com presteza pela cidade, na qual comerciantes como Djacy se encontram às margens da modernização e urbanização, utilizando a lógica de um tempo

histórico considerado tradicional e obsoleto – sendo, portanto, estigmatizados como atrasados, arcaicos –, pecha de que o Recife tenta se livrar desde a sua larga modernização, iniciada no século 19. Enquanto cidades europeias, como Lyon e Bruxelas, adotam as carroças na coleta de lixo como alternativa contra a poluição urbana, a circulação de carroças no Recife e em suas regiões metropolitanas é compulsória. Única opção para que a tarefa seja executada com rapidez por trabalhadores semianalfabetos, sem documentos suficientes para se profissionalizar ou regulamentar atividades que, algumas vezes, geram renda equivalente aos setores de serviços e comércio formal. Coletando lixo, material reciclado, metralha, madeira e tudo mais que o excedente da produção industrial lhes oferecer, os carroceiros, de tração animal ou humana, irrompem na paisagem urbana, com seu tráfego caótico e alheio aos veículos que um dia foram chamados de modernos. E não faz tanto tempo assim, se considerarmos que a roda, invenção que tornou possível tanto as carroças quanto os carros, existe desde o Neolítico, há cerca de cinco mil anos a.C.

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HIBRIDEZ

No século 19, cabriolés, carruagens, charretes, carroças e até bondes puxados a cavalo movimentavam a cena urbana, em Paris ou no Recife, aumentando o fluxo da cidade pelas avenidas centrais. Também fruto da mentalidade moderna, científica, lógica e racional, carros motorizados, bondes elétricos e ferrovias foram deixando para trás a paisagem híbrida, entre o mundo rural e metropolitano, que pontuou a experiência das principais cidades ocidentais e suas colônias na América, durante o crescimento industrial. No entanto, essa mesma paisagem ainda entrecorta a ambiência citadina local, em que universos

No século 19, cabriolés, carruagens, charretes e carroças puxados a cavalo movimentavam a cena urbana aparentemente antitéticos, antagônicos, convivem numa espécie de “negociação” resultante da própria modernização seletiva (direcionada às camadas mais ricas da sociedade). E Djacy de Lira é um dos que fomentam essa cadeia produtiva, formada por um grupo social como qualquer outro, com sua coesão e comportamento

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cultural específicos, que vão desde a forma de trabalhar, tendo a casa e a rua como espaços comerciais, a ritos religiosos e afetivos que os unem. Desde os 18 anos, ele vive de fazer carroças e charretes. Já trabalhou como caseiro de praia, mas, sem muita habilidade no trato com patrões, resolveu montar o próprio negócio. “A vontade de ter uma charrete era tão grande, que eu mesmo fiz a minha. Peguei peças de ferro velho, pneus usados, fui olhando como se fazia e aprendi”, explica. Hoje, mantém uma oficina nos fundos da casa em que mora, na Mata do Passarinho, entre Recife e Olinda, onde é possível localizá-lo pelo apelido “Galego da Charrete”.

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Página anterior 1 caxangá

odos os sábados, T carroceiros e criadores se reúnem na Feira do Troca de Animais, montada nas proximidades do Parque do Caiara

arreiOS 2 Artigos utilizados por Fábio José da Silva, o Peta, durante a romaria até São Severino dos Ramos Nestas páginas 3 ferrador

Ricardo Santos seguiu o ofício a pedido do pai

4 haras urbano A paisagem rural surge em meio a construções modernas, tanto em bairros populares quanto abastados

Às margens de um Beberibe poluído, assoreado, Galego se responsabiliza por modelos simples, os quais serão utilizados por quem trabalha com frete de cargas médias, e charretes estilizadas, que chegam a ter pneus do clássico Ford 29 e assentos parecidos com os modelos do Ford T, das primeiras gerações de carros modernos do mundo. Charretes românticas e bucólicas são também pesquisadas pela internet, na casa de Galego, meio através do qual ele obtém peças de Minas Gerais, com as quais cria modelos para fazendas, hotéis e atividades turísticas. Algumas chegam a custar R$ 6.500 e levam um mês inteiro de trabalho manual,

artesanal. Um microempreendedor também na periferia da lógica comercial moderna. A oficina, simples, conta com peças e ferramentas rudimentares, em meio à criação de animais domésticos, cavalos e galinhas. Na Mata do Passarinho, reserva ecológica de remanescente da Mata Atlântica, a cidade avança em programas de urbanização com o propósito de modernizar a área de maior concentração de assentamentos de baixa renda, segundo dados do Programa Pró-Metrópole. Com o anúncio da urbanização da região, Galego já retirou parte dos cavalos abrigados em sua casa e lamenta a possibilidade de sair do lugar no qual trabalha

há 30 anos, e que possivelmente se transformará numa estrada asfaltada. “Quero me mudar para Aldeia, que lá tem mais cliente”, afirma. A clientela da qual Galego fala são as classes A e B, consumidoras da tradição rural como nostalgia, em passeios de pôneis e fazendinhas. No Recife, aqueles que têm habilidade com a construção de carroças negociam com trabalhadores de frete – homens e senhores, acompanhados de jovens e adolescentes e com condições mínimas de arcarem com a manutenção das carroças e dos próprios animais. Quem vive essa realidade é Ricardo Santos, filho do conhecido João Ferrador, que habita numa espécie

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con urbanismo ti nen te de “zona rural” do Bairro de Campo Grande. Ricardo já trabalhou como vigia, mas seguiu a carreira iniciada pelo avô, por pedido do pai e necessidade da vida. “Antes de morrer, ele me pediu para continuar o trabalho dele”, diz Ricardo, que reclama, porém, da falta de movimento. “Para esses carroceiros que andam muito, uma ferradura dura, no máximo, 30 dias. Mas eles mal têm dinheiro para alimentar os cavalos.” Num quarto minúsculo, insalubre, ele e o irmão preparam o carvão para fundir uma estreita barra de ferro que será moldada ao casco do cavalo. “Não é todo mundo que faz. É preciso entender o bicho. Eu já

O carroceiro chega aonde os automóveis não conseguem e faz um transporte acessível a quem não pode pagar mais coloquei tanta ferradura, até de doença eu cuido.” Hoje, as ferraduras vêm pré-fabricadas e os que têm maior poder aquisitivo e cuidam especificamente de cavalos, como os donos de haras, contratam ferrador exclusivo. A tarefa de Ricardo é atender quem trabalha com carroças, em fretes e armazéns. Sua mãe, Lídia dos Santos, de 82 anos, preferia outra profissão para o filho. “Ele trabalha muito, até coice já levou. Não queria isso para o meu filho, não”, lamenta. Lídia é testemunha do progresso contraditório que chegou a passos de cavalo, literalmente, a Campo Grande, nas últimas cinco décadas. “Antes, isso tudo aqui era uma vacaria. Era um campo enorme e vivia cheio de gente. Meu marido trabalhava com a cavalaria do exército. Sempre tinha serviço”, conta. Hoje, as casinhas conjugadas em que Ricardo coloca ferraduras por R$ 40 levam o nome de Vila João Ferrador. À frente, um condomínio popular substitui o antigo pasto; mais

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para dentro da vila, porém, crianças brincam com cavalos e burros, em meio ao esgoto a céu aberto.

MOBILIDADE

No centro da cidade, nas áreas dos Coelhos e São José; na Vila Vintém, no Parnamirim; ou na Ilha de Deus, em Afogados, as carroças são vistas constantemente por quem percorre esse trajeto. No Pátio de Santa Cruz, entre a Boa Vista e os Coelhos, cinco carroças azuis ambientam a zona histórica, formada por

casarios antigos e pontos comerciais. Enfileiradas, configuram-se numa composição singular para o local. Severino Inácio, de 63 anos, trabalha há 40 anos na região, no Bar Santa Cruz. Paralelamente ao emprego de servente de limpeza, há quatro décadas, ele aluga as engenhocas também conhecidas como “burros sem rabo” - para o transporte de móveis e madeiras, que segue pela Rua da Alegria, Rua Velha e outras proximidades. Duas horas custam R$ 7, o que permite uma renda extra para

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5 MOBILIDADE

Apesar do progresso, os animais ainda são utilizados como meio de transporte por muitos recifenses

6 Lídia dos santos

Viúva de João Ferrador e mãe de Ricardo Santos, ela conta que, há algumas décadas, o Bairro de Campo Grande era uma grande vacaria

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Severino, antigo morador da Gervásio Pires e hoje residente no Bairro de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes. Na mocidade, ele fazia frete até Olinda, Boa Viagem. Com a idade, terceirizou o veículo. Embaixo do viaduto da Torre, bairro recifense de classe média, fica a carroça de Romildo Soares, 23 anos. “Trabalho desde os 15 anos. Com todo tipo de coisa: metralha, móveis, madeira, o que aparecer. Com o cavalo dá pra carregar até mil quilos”, acredita o jovem, de celular modelo

Blackberry no bolso. Romildo mora num dos oito barracos que ladeiam o Canal do Parnamirim. O local também é ponto de coleta de lixo reciclado. Numa rápida olhadela, poderíamos dizer que estamos diante de um precário município rural, sem luz elétrica, saneamento e infraestrutura mínima de urbanização. O Rio Capibaribe e as bromélias, bananeiras e outras espécies frutíferas que o margeiam até ajudam na paisagem, em que o cavalo de Romildo dá uma pausa para se abastecer de

mel e capim. Chegar à beira do canal, tendo um viaduto ensurdecedor acima, é uma experiência cognitiva transformadora. Como na música de Caetano Veloso, é a cidade que vai avançar e não o mar. Para a pesquisadora e socióloga da UFPB Conceição Oosterhout, o tempo em si não anula uma prática cultural apenas pela passagem de décadas na história. “A mudança de época não leva consigo as condições difíceis e que podem até ser indesejadas enquanto práticas.” Ela chama a atenção, ainda, para a possibilidade de o carroceiro chegar aonde o veículo automotor não chega ou fazer um transporte de mercadoria acessível a quem não pode pagar mais. “A relação entre os carroceiros e a parte urbanizada do Recife, por exemplo, não deve ser entendida apenas como convivência de mundos equidistantes, sobrevivência de valores culturais. Se a cidade fosse pensada para atender os diferentes grupos sociais que por ela circulam (como ocorre também com os ciclistas), poderíamos desfrutar de um olhar diferente nessa paisagem, com vias adequadas para esse tipo de transporte, uma vez que ele persiste na história”, defende.

RURBANO

O Recife está longe de apresentar uma lógica de vida, trabalho e moradia rural, segundo Lúcia Leitão, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE. “Tampouco é uma cidade industrial. Ela vive de serviços médios, do comércio e de áreas que concentram atividades

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como as do chamado polo médico”, coloca. Numa rápida passagem pelos bairros de Campo Grande, Beberibe, Dois Unidos e Cordeiro, no entanto, chegamos a uma lógica cultural permeada de paradoxos, que revelam, além das clássicas questões da desigualdade social e má distribuição da renda, uma certa convivência entre universos heterogêneos, resistentes ao processo de “metropolização da cidade”. “Constatamos, desde o início da década de 1950, segundo dados do IBGE, uma taxa de urbanização no Recife superior a 97%, chegando hoje a 100%. Atualmente, só nos restam vestígios de uma suposta paisagem rural e reminiscências

Apesar das reminiscências rurais, o Recife tem uma taxa de urbanização superior a 97%, segundo o IBGE que alimentam uma cultura da tradição”, acredita o historiador da Unicap Luís Domingues. O que dizer, porém, de bairros e regiões de vazios que se impõem como fronteiras entre o mundo do consumo, do comércio e da circulação e outro, ligado à sobrevivência pela exploração do próprio habitat natural,

possível pela amplitude de suas áreas vazias? É assim, por exemplo, no caminho para a Mata do Passarinho, onde fomos encontrar Galego da Charrete. A região é o que podemos chamar de periferia clássica, estando na ponta do mapa da cidade, na pobre e populosa zona oeste, cuja ocupação massiva se deu, tardiamente, após a erradicação dos mocambos do centro, nas décadas de 1930 e 1940. Beberibe, que também abriga uma famosa feira de cavalos frequentada por carroceiros, foi, porém, um dos primeiros bairros históricos do Recife, sendo local de engenhos e, posteriormente, de construção de sítios e chácaras em seu entorno. Também abrigou linha férrea e foi

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No Pátio de Santa Cruz, na Boa Vista, é possível encontrar carroças estacionadas à disposição do público, para serem alugadas

8 djacy de lira

Desde os 18 anos, o comerciante ganha a vida fabricando charretes

através das quais presenciamos outra lógica de vivência social. A estrada de barro nos acompanha por áreas descampadas, em que se avista superficialmente a Reserva Ecológica do Passarinho e de onde já se pode observar a chegada de tratores e outros elementos da engenharia de construção. O interessante é que Beberibe também guarda o Recife colonial, intensamente explorado pelo mercado imobiliário, em áreas de antigas freguesias aristocráticas,

estação terminal dos primeiros bondes elétricos. Na região, que envolve Dois Unidos e Água Fria, a circulação de carroças é constante, e atividades de trabalho e lazer ligadas ao mundo rural exibem uma realidade inserida em dois tempos históricos. No centro do bairro, a circulação de carros e gente é intensa. Lojas, supermercados, terminais de ônibus, minishoppings, bancos, salões de beleza e escolas caracterizam seu cotidiano como a de qualquer área urbana. Em determinados pontos de Beberibe, a saída desse centro populoso nos leva a vazios de moradia e investimento básico em infraestrutura, verdadeiras fronteiras,

como Poço da Panela, Casa Forte, Apipucos e Madalena. O historiador Luís Domingues explica a diferença. “Na história recente do Recife, com a constituição de uma classe média com poder aquisitivo e capacidade de endividamento, ocorreu um enobrecimento e revitalização dessas áreas. O resultado foi o investimento e a efetivação de um conjunto de obras em abastecimento de água, saneamento, equipamentos urbanos, fornecimento de energia, revitalização de ambientes e outras obras de caráter viário. O mesmo não ocorreu no bairro de Beberibe e em outras do seu entorno.” O pesquisador acredita que um dos motivos para o afastamento da classe média dessa região está na origem de sua ocupação, ao longo do século 20, primeiramente, com o contingente de escravos libertos pela abolição. O local também foi ocupado pela

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con urbanismo ti nen te CORTESIA/COLETIVO JACARÉ

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população de baixa renda, expulsa das proximidades da área central da cidade por grupos sociais oriundos do êxodo rural e por segmentos do proletariado das fábricas instaladas na região. “A pouca capacidade de pressão política e social dessa população quase sempre a colocou à mercê de intervenções municipais alheias aos seus interesses e necessidades.”

compra e venda

Numa ruela transversal à paralela da Avenida Caxangá, carroceiros, freteiros, criadores de cavalos e curiosos se aglomeram todos os sábados na Feira do Troca de Animais, próxima ao Parque do Caiara. Fernando Costa vem de Carpina e conta com a ajuda do colega Jaílson Andrade, de Abreu e Lima. Eles descarregam caminhões com 10, 15 cavalos e esperam a feira começar a encher.

Na Feira do Troca de Animais, realizada no Bairro de Caxangá, aos sábados, é possível encontrar pangarés e alazões Jaílson, 38anos, afirma ser louco por cavalos. “É meu ponto fraco. Aprendi a andar com meu avô. Na minha casa, tem uma cocheira. Tem vezes que fico com 10, 20”, detalha. Servente na Prefeitura de Abreu e Lima, Jaílson diz que é preciso saber negociar, o que faz desde os 13 anos. Pergunto se ele tem interesse em se profissionalizar, virar um empreendedor registrado. “Trabalho com cavalos porque sou analfabeto. É só o que eu sei fazer, e é preciso fazer bem”, adianta. Como em toda feira, o burburinho é grande. A rua barrenta tem pouco

mais de 50m de extensão x 10m de largura e abriga criadores de porcos, bodes, galos. Numa panorâmica, vemos os arranha-céus dos bairros da Torre e Madalena ao fundo. Num pequeno haras, o criador Jaime Moura mantém raças nobres e populares de cavalos que serão comercializados por carroceiros e comerciantes medianos. Por R$ 400, o fretista Arlindo Leite levou um pangaré de médio porte. “Vou usar para entregar mercadorias do armazém que trabalho. É um meio de transporte. Mas não saio com ele para a cidade, só passeio por aqui mesmo”, diz. Para ele, o trânsito complica a circulação de carroças e, por isso, sua preferência é pelo bairro em que mora. Criada há mais de 70 anos, a feira também é chamada de “Feira da Mentira”, uma alusão às propriedades dos cavalos defendidas pelos criadores,

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um frigorífico. Hoje, mantém uma criação de 500 porcos no bairro do Curado. No jardim de casa, uma carroça perturba o sono dos filhos de Alfredo. “Eles odeiam, me pedem para tirar o tempo todo. Mas adoro isso. Não sei fazer outra coisa.” A feira tem seus códigos específicos. É raro ver uma mulher. Trata-se essencialmente de um universo masculino. Nele, tanto encontramos carroceiros, que trabalham com fretes, como olheiros e comerciantes com poder aquisitivo para investir R$ 10 mil num bom alazão. Depois de um dia exaustivo de negociação, os bares garantem a diversão de quem buscou no comércio uma fonte de renda. Jaime também fiscaliza o movimento da feira e o tratamento com os animais. “Se a gente vê alguém maltratando os cavalos, cai em cima. Também não é permitido o comércio de bicicleta”, explica. Até pouco tempo, bicicletas eram comercializadas na feira, mas o comércio foi suspenso por conta de irregularidades com a origem dos produtos.

SÃO SEVERINO Dos RAMOS

nem sempre correspondentes à realidade do animal. Ela já foi realizada em Afogados e há 10 anos é coordenada por Jaime, que vive especificamente do comércio de animais e do aluguel de charretes e carruagens do tipo Cinderela, para atividades culturais e turísticas. O comerciante José Carneiro, 72 anos, veio de Gravatá e trouxe a kombi cheia de produtos para abastecer e manter a cavalgada diária. O suador, feito de junco, amortece o peso da sela; já a garapa da cana garante energia para o animal circular com vitalidade. O amigo Alfredo Ribeiro, 73 anos, só veio conferir o agito. Alfredo trabalha com cavalos desde os anos 1960, quando saiu do Jockey Club da Madalena para prestar serviços à tradicional família paulista Almeida Prado, no Jockey Club de São Paulo. Casou-se lá e depois voltou ao Recife com o objetivo de montar

Galego da Charrete, Jaílson, João Ferrador, Romildo. Todos se encontram na primeira semana de dezembro, durante a procissão de São Severino dos Ramos. São cerca de 40 km até o Engenho Ramos, em Paudalho, onde mais de mil cavalos percorrem a estrada íngreme, para que seus donos, muitos deles carroceiros, façam pedidos e agradeçam as preces atendidas por um dos santos mais populares do Nordeste – cuja história está relacionada às graças atendidas por pobres, miseráveis. Dados da Fundação Joaquim Nabuco apontam a procissão como um dos maiores centros de romaria do Nordeste. Neto do criador de cavalos José de Tuta, que iniciou a procissão, o comerciante Fábio José da Silva, o Peta, mantém a tradição de família e, todo ano, organiza um grupo de romeiros que segue até Paudalho para reverenciar o santo. “Antigamente, só tinha cavalo. Hoje, o pessoal vai de bicicleta, de moto, caminhão. O

9 romaria

Participantes da procissão em homenagem a São Severino dos Ramos fazem o percurso do Recife a Paudalho a cavalo, de bicicleta, moto, ônibus e caminhão

bom é que a tradição não se perdeu, nem vai ser perder”, declara. João Lucas, jornalista e um dos integrantes do Coletivo Jacaré, é um dos produtores de um documentário específico sobre a cavalgada. A ideia da produção surgiu quando ele e outros cineastas viram uma fila imensa de carroças, charretes e cavalos circulando pela Avenida 17 de Agosto, no nobre Bairro de Casa Forte. “Lembramos já ter visto esse acontecimento outras vezes e, a partir daí, iniciamos a pesquisa e entramos a fundo no universo do cavalo na cidade”, explica. A equipe viajou em 2008, 2010 e 2011. “A ideia é mostrar essa cultura no meio urbano, as pessoas que estão nela e como conseguem manter essa tradição milenar tão presente e viva, convivendo com o suposto desenvolvimento das cidades. O filme pretende discutir esse tema, adentrar o máximo na complexidade em que ele está envolvido, como também colocar a questão da força popular de criar trabalho, mantendo uma tradição que está sendo sufocada, ou seja, os meios enraizados de ‘desenrolar’ sua sobrevivência.” Para João, a viagem a São Severino foi uma espécie de retorno ao tempo. “Transportamo-nos para a Idade Média, vendo a incrível dedicação que os cavaleiros devotam ao animal. A prova disso é a mistura da fé e da festa; a diversão e a religiosidade que movem a procissão dos cavalos.” O curta está em fase de finalização e deve ser lançado ainda este ano.

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CORTESIA/MATEUS SÁ

CON TI NEN TE

FOTOGRAFIA

DOCUMENTAL Indistinção entre objeto e sujeito

Tradicionalmente, trabalhos de documentação tomam para si a tarefa de “reproduzir o real”. Novos profissionais, entretanto, discutem esse pressuposto, por ser inevitável a interpretação pessoal TEXTO José Afonso Jr

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Quando perguntaram a Edmond Dansot, sobre o seu acervo, na Semana de Fotografia do Recife de 2009, sem hesitar, ele respondeu: “Tenho em torno de 75 mil imagens. Imagens, não, 75 mil documentos”. Mas, como esse valor documental é atribuído às fotografias? Provocando Dansot, não se pode afirmar diretamente que toda imagem seja um documento. Seria mais cuidadoso perceber que a fotografia assimila intenções desse tipo, podendo vir a ser documental, dependendo de fatores complementares. No caso da fotografia pernambucana, observamos, nos últimos 10 anos aproximadamente, um cenário de exploração das alternativas de documentação e as possibilidades e limites envolvidos. Talvez, essa busca esteja sincronizada historicamente com as próprias reorientações da cultura, promovidas por um acesso sem precedentes a horizontes amplos de referências e informações. Em adição, os contornos da prática documental, seja como estilo ou gênero da fotografia, remetem a um universo relacionado ao real, tendo, contudo, aberturas para um estilo mais pessoal, subjetivo, ligado à interpretação do fotógrafo. É também um debate que reproduz, especificamente no nosso estado, as mesmas inquietações e questões presentes no debate histórico da fotografia. Portanto, talvez não seja tão rico olhar a questão somente pelo prisma de uma “fotografia documental pernambucana”. Isso a limitaria por ser um rótulo, uma tipificação. Mais interessante, talvez, seja perceber que os mesmos apelos históricos, realistas, factuais e interpretativos na discussão do documental em cenário internacional se refletem sobre o que se produz localmente. Daí, podemos compreender por que justamente os temas da realidade recorrentes em Pernambuco se replicam para a produção da fotografia. Exercício comparativo: os trabalhos sobre o Sertão, documentados por Dansot, nos anos 1960; por Alcir Lacerda, no mesmo período; e por Fred Jordão, no trabalho que cobre as décadas de 1990 a 2010, são tão diferentes nas abordagens e opções estilísticas quanto o repertório de apoio com que cada um deles dialoga. Portanto, cabe a pergunta: seria o mesmo Sertão? Obviamente, continente abril 2012 | 33

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con fotografia ti nen te imagens: reprodução

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trata-se de um mesmo referente temático, mas com significações, se não divergentes, complementares, que formam uma visão complexa, não superficial da região. Se as variações são diferentes sobre o mesmo tema, é igualmente cambiante o que o termo documento significa em cada época. Documentar, hoje, é diferente, justamente pela busca de um conjunto particular de abordagens, capaz de estabelecer o destaque de um tema em relação a outros, e ter relevância não só pelo que foi fotografado, mas, cada vez com mais importância, pelo como foi fotografado. É uma discussão documental, mas também estética. Mais que uma confrontação, é uma dualidade. Numa análise pouco cuidadosa, essa possibilidade é facilmente transformada em ambiguidade. Há muito pode ser percebida a superação dessa busca ontológica do documental que

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Para realizar ensaio sobre o litoral, o fotógrafo percorreu 180 km a pé

Nestas páginas 2 edmond dansot

Registro da arte popular, realizado pelo profissional nos anos 1980

3-4 alcir lacerda Do seu acervo, consta vasta documentação do litoral e sertão

exclui o jogo de referências entre linguagens. Por exemplo, o que deveria ser uma fotografia-documento era algo estritamente descritivo e informativo. Nesse caso, o apelo a recursos plásticos seria secundário, algo mesmo problemático para uma retratação fiel do real. Esse discurso vintage mais atrapalha do que ajuda a perceber o contorno do documental. O problema é que esse falso antagonismo permanece em quase todo debate sobre o que é um documento fotográfico. A progressiva repetição dessas questões – e de respostas – viciadas criou a enganosa ideia de que documentos não podem ter valores expressivos e, por outro lado, que experimentos estéticos desprezam recursos documentais. Para Paulo Cunha, professor e pesquisador da área de Imagem da UFPE, “obras de grandes fotógrafos sobrevivem não só pelo que

O cruzamento entre o informar e o subjetivar pode ser o meio de oxigenar o gênero documental, preservando-o fotografaram, mas também pelo uso estilístico que fizeram. Por outro lado, a mais radical fotografia experimental traz pedaços do real. Esse é um problema da representação visual como um todo. Seja o cinema, que se divide entre essas abordagens, o desenho, e a própria pintura, que nesses caminhos documentais ou expressivos, aqui e acolá se encontram”. É esse pensamento que permite ver a documentação do litoral pernambucano dos anos 1960, feita por Alcir Lacerda – em glorioso preto e branco –, fazendo

um contraponto com o trabalho de Mateus Sá, 40 anos depois, feito na base de caminhadas, percorrendo a pé 180 km de praias. Ou da catalogação sobre a arte popular pernambucana, publicada em 1982, de Edmond Dansot, dialogando com trabalhos recentes sobre artesanato, como os de Roberta Guimarães e Rildo Moura. De certo modo, esse “como ver” repete, na escala local, o mesmo que gente como Eugene Smith, Walker Evans, Robert Frank, Lee Friedlander e Sebastião Salgado – só para ficar nesses exemplos – souberam sintetizar ao perceber tanto a importância de temas como uma pista que nem sempre se apresenta de modo óbvio, mas é fundamental: a superação do falso problema entre documento e expressão visual se dá justamente por não confrontá-los, e, sim, optar pelo cruzamento entre informar e subjetivar como meio de oxigenar e garantir a sobrevivência do documental.

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con fotografia ti nen te cortesia/roberta guimarães

5 roberta guimarães A fotógrafa tem vários trabalhos voltados ao artesanato, como essa foto, capa do livro Pernambuco popular - um toque de mestre 6-7 homo faber Em Arte popular pernambucana, obra rara, Dansot registra o cotidiano dos artesãos

A COR LOCAL

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FORMAÇÃO DO OLHAR

O que poderia, então, singularizar o momento da fotografia documental em Pernambuco? Fatores múltiplos, formando uma equação complexa que, com um pouco de engenho e arte, podem mapear os novos arranjos produtivos. Certamente, o local de referência de atuação do fotógrafo mudou de posição. É um fenômeno que se dá em paralelo ao surgimento de cursos, no nível superior (Aeso, Unicap e Maurício de Nassau) de formação em Fotografia. Em certa medida, isso reorienta o percurso da formação profissional do fotógrafo em nosso estado. Antes, até os anos 2000, o script passava por um dos jornais e complementava a formação em cursos de Jornalismo, Arquitetura, Economia etc. Mas nunca de Fotografia. O resultado dessa “tradição de jornal” é que, por estabelecer um contato diário com a realidade e com a cobertura visual dos fatos, a necessidade documental se sobrevalorizava, pela prática, como capital formativo dos fotógrafos.

Na prática, pelo contato diário dos profissionais com o fotojornalismo, há uma supervalorização do documental Segundo Fred Jordão, “as faculdades de Fotografia abrem possibilidades de uma abordagem mais estética, com mais formação, referências e aprofundamento. Isso pode criar um olhar diferencial, mais consistente. Mesmo sendo um fotógrafo documental, pode-se dilatar essa fronteira o quanto se quiser”. Embora saibamos que uma formação não se limita a uma perspectiva curricular. “Quando se cria um curso, vetorizase para um afunilamento hipotético de perfil profissional ideal. Mas o que ninguém consegue prever, ou deter, é a disponibilidade de informação que essas pessoas, alunos e professores, conseguem trazer e trocar”, pontua o professor Paulo Cunha.

O interessante é perceber que, se o perfil do fotógrafo está mudando, nesse movimento, fica mais evidente a síntese entre o mundo real e o expressivo, a estetização e o modo de abordar o repertório de temas consolidados em torno do imaginário cultural, popular, ambiental, religioso, das minorias, e de problemáticas urbanas. São temas coincidentemente presentes na produção internacional, nacional e local. O reflexo disso pode ser observado de um modo simples. Basta percorrer as estantes dedicadas à fotografia nas boas livrarias e ver que, no conjunto recente de trabalhos documentais, a recorrência a esses assuntos é frequente. Roberta Guimarães, fotógrafa com vários projetos documentais concluídos, inquieta-se com esse quadro: “Hoje, há uma tendência de tudo ter que ser inusitado, mesmo que o tema a ser desenvolvido não crie nenhum interesse. Será que isso não cansa, depois de um tempo?”. Esse direcionamento para soluções no campo estético pode ser resultante de um certo enviesamento da produção em busca de modelos mais eficientes de posicionamento de um trabalho visual em meio a um horizonte diversificado. Dois prismas: a fotografia brasileira teria, por tradição, a tendência de buscar o documental. Assim como no cinema, por exemplo, em que se considera que a corrente documental brasileira tem um peso e importância maior que a ficcional. Segundo Paulo

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imagens: reprodução

Cunha, isso se dá por sermos “uma cultura nova que encontra muito proximamente situações de ordem social, antropológica, etnográfica que demandam uma presença fotográfica”. Seria assim a prática nas sociedades mais periféricas, como a nossa, desse recurso suplementar, de se buscar no manancial das singularidades culturais a fonte de referência dos trabalhos e, assim, provocar respostas visuais que a documentação pode oferecer. Parece haver no país um peso grande da expressão visual para dar conta da realidade local, presente no cinema, na pintura e na fotografia. “Daí, é como se o fotógrafo brasileiro fosse demandado a dar conta de uma certa realidade, e esse conjunto de problemas pede aos artistas, cineastas e fotógrafos que se voltem para esses temas”, complementa o professor. Então, esse prisma político e sociológico ajuda-nos a compreender as tendências documentais que se refletem também no caso de Pernambuco.

SENHA: DOC.PE

Assimilando essa relevância de um conjunto de temas atrelados às questões culturais e de identidade, não se pode esquecer de que a significativa retomada de projetos fotodocumentais, na última década, tem um impulso significativo: a consolidação dos editais de apoio à cultura com linhas específicas para a fotografia, tanto no nível nacional, como no local, a exemplo do pernambucano Funcultura. Para Eduardo Queiroga, fotógrafo e coordenador do bacharelado em Fotografia, da Faculdade Aeso, os editais “de certo modo, priorizam assuntos e abordagens que reconduzem o campo da fotografia pelos temas propostos. É um processo de revisão que toca no próprio papel do fotógrafo e do que se pode propor como pesquisa”. A aproximação entre projetos documentais e financiamento público não está livre de desvios. Numa visão mais crítica, Fred Jordão, fotógrafo há 25 anos, provoca: “Na verdade, atende-se uma demanda de quem financia os editais. É como se cada livro, cada projeto fosse um samba-enredo de exaltação, direcionado às belezas. Mas acho que iremos vencer isso”. O caminho possível para essa

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con fotografia ti nen te cortesia/fred jordão

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superação talvez seja tanto olhar para a realidade como lugar de referência como incorporar o esforço de dar conta de um mundo que é, ao mesmo tempo, particular, subjetivo e individual. Esse ponto de encontro, obviamente, acha no fotógrafo, de modo deliberado, ou por vezes intuitivo, as próprias referências. “É raro o documental sair da zona de conforto. Mas o caminho é se aprofundar. E isso é difícil, porque ninguém sai para fotografar e deixa as referências em casa. Acho que os fotógrafos de verdade carregam consigo os seus DNAs, e isso se faz presente no trabalho deles”, afirma Fred Jordão. Já Roberta Guimarães justifica o seu

Se assumirmos que tudo já foi fotografado, uma saída talvez seja nos concentrarmos em como fotografar caminho autoral vinculado à sua atração por temas das manifestações populares, “talvez, por influências de acompanhar o Carnaval desde criança. Mas é um tema abordado por muita gente, fica repetitivo”. E como fugir da cilada? Eduardo Queiroga aponta um possível caminho de resposta. “É muito ruim quando se

repetem fórmulas que, rapidamente, cansam porque não têm profundidade. Busco um processo de começo, como se fosse um adolescente, como um desafio. Sem ter tanta preocupação. A saída é evitar a visão do instante, como se não houvesse nada antes do que se retrata, como se somente o instante fosse necessário. Muitas vezes há esse vício de não se preocupar com informação, referência, e termina com uma solução pré-formatada que não vai além.” Essas estratégias, entretanto, não apontam para respostas únicas. Uma saída, se assumirmos que tudo já foi fotografado, talvez seja nos concentrarmos no como fotografar, como estabelecer uma discussão que venha da imagem, atravesse-a, e

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cortesia/projeto lambe lambe

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vá além dela. Um exemplo disso é o Projeto Lambe-Lambe. Executado há 16 anos durante o Carnaval, a princípio em Olinda, e depois no Recife, foi elaborado pela inciativa de vários fotógrafos: Jarbas Júnior, Breno Laprovítera, Roberta Guimarães, Daniel Berinson e Fred Jordão. Durante esses anos, alguns saíram do projeto, outros ingressaram, como Xirumba, Arnaldo Carvalho e Dominique Berthé. O resultado é tanto uma incorporação de elementos ficcionais (o cenário de estúdio, as próprias pessoas fantasiadas, o jogo de pose etc.) como o registro de uma parcela do Carnaval ao longo do tempo e dos diversos suportes da fotografia trabalhados (negativos cor e preto

e branco, cromo, digital, polaroide, pinhole e grande formato). Além disso, diante dos resultados, é virtualmente impossível se detectar a autoria de uma foto isolada. Um questionamento, sem dúvida, do processo de autoria na fotografia que antecipa, pela prática, e em alguns anos, o debate sobre os coletivos fotográficos. O que dá contorno à fotografia documental em Pernambuco parece ser algo, a princípio, contraditório: lançar esforços para conciliar a realidade e a subjetividade como o cenário de temas a serem abordados. Há, sem dúvida, tensões nesse processo. Mas, o que de certo modo garante a presença do documental é a manutenção de uma questão:

8 fred jordão

Fotógrafo realizou ensaio, que será lançado este ano, sobre o Sertão

9 lambe-lambe

Projeto faz documentação de fantasiados, com incorporação de elementos ficcionais

como, sem a fotografia e seus descendentes técnicos (como o cinema e vídeo), podemos dar conta do problema que é interpretar, subjetivar e construir visualmente o real? O domínio dos limites e dos códigos envolvidos parecem compor a camada movediça e porosa na qual repousam as respostas.

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JANIO SANTOS

con ti nen te#44

Peleja

A regulamentação da profissão traz benefícios efetivos para os designers? O mestre em Design, Lucídio Leão, para quem “regulamentar não significa restringir” é completamente a favor. A jornalista e designer Cecília Lima, que nega existir uma resposta definitiva sobre o assunto, reconhece avanços, como benefícios trabalhistas, mas não deixa de fazer ressalvas, a exemplo do possível surgimento de cursos sem reconhecimento.

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Lucídio Leão

Cecília Lima

A profissão de designer no Brasil é

considerada relativamente recente, pois as primeiras graduações no país datam de cerca de 40 anos. Por isso, e também devido aos desafios cada vez mais complexos, colocados tanto pela sociedade quanto pelas novas tecnologias, ainda não se tem muita clareza a respeito dos direitos e das obrigações de Mestre em um profissional da área. Daí o interesse Design e sócio do estúdio Amaro na discussão sobre sua regulamentação. Nesse sentido, é importante lembrar que regulamentar não significa restringir, fixar parâmetros pouco flexíveis, ou dificultar o acesso ao desempenho da profissão, pois a Constituição Federal garante a todos o direito de desempenhar as mais diversas profissões, desde que respeitadas as leis. A regulamentação consiste na organização de um conjunto estruturado de regras com a finalidade de promover a melhoria na qualidade de vida dos profissionais, e, para tanto, pode incluir normas sobre fixação de jornada, de modo a valorizar o tempo de atuação, definição de um piso – com a finalidade de evitar o barateamento precarizante dos serviços prestados –, delimitação de padrões de formação profissional básica e especializada etc. A criação de tais regras pode ocorrer por meio da promulgação de uma lei específica acerca da matéria, ou mesmo pela organização autônoma dos interessados, os quais podem criar uma norma coletiva para a categoria, como ocorre com profissionais de jornalismo. Esse regramento pode se estender por uma cidade ou mesmo por todo o país, observadas as peculiaridades de cada local. Quanto mais abrangentes e uniformes as regras, mais sólida a organização profissional. A história mostra que as conquistas profissionais sempre foram obtidas pela força da organização coletiva e, além disso, a necessidade de regulamentação decorre do sentimento generalizado entre os profissionais da área de que o cotidiano de trabalho é árduo, e muitas vezes solitário – isso os tornaria mais vulneráveis nas relações com o mercado. Nesse contexto, o estabelecimento de parâmetros de atuação profissional trará a necessária transparência a tais relações, evidenciando os direitos e os deveres dos profissionais, bem como o seu campo de atuação. Em resumo, todos ficam cientes do que esperar. Esse é o caminho necessário para o crescimento da expressão social da carreira, conferindo aos designers mais dignidade e motivação. A mim, parece justo.

É importante lembrar que regulamentar não significa restringir, ou dificultar o acesso ao desempenho da profissão

Em tempos de regulamentação, ainda

tenho dúvidas de que teremos benefícios reais com essa conquista, afinal, até quem propõe tal regulamentação não sabe a diferença entre design e designer, foi isso que ficou bem claro no projeto de lei 1391/2011 apresentado pelo deputado Luiz Penna, em Brasília. Sou uma das pessoas em cima do muro. O mais Jornalista, designer engraçado é que passo por uma situação e editora-chefe do site Closet Online inversa em outra profissão que abracei, o jornalismo, em que a obrigatoriedade do diploma foi extinta, o que acabou por me beneficiar, já que sou apenas pós-graduada nessa área. Já fiz uma lista de prós e contras, e se hoje fosse feito um plebiscito, eu realmente não teria a resposta. Separar o joio do trigo vai evitar que qualquer pessoa, com o mínimo de conhecimento em Photoshop, ou qualquer editor de imagens, possa se autointitular designer. Sabemos que isso muitas vezes prejudica o trabalho de quem leva a sério a profissão. Por outro lado, a falta de diploma poderia prejudicar muita gente de talento que abraçou o oficio há menos de cinco anos (entendi que é o prazo para ser considerado um profissional da área). A regulamentação nos daria benefícios trabalhistas e o direito de participar de licitações publicas – será? No entanto, imagino o número de encargos que isso acarretaria e, no fim, não nos beneficiaria em nada, só daria mais uma grana para o governo. Podemos falar também do canibalismo dos preços, embora de nada adiante um teto mínimo, tiro por exemplo os jornalistas que ganham bem menos que a tabela. Quem sabe poderíamos ganhar um código de ética?! Mas, em contrapartida, fico imaginando o que seria do ensino, que já não é tão bom. Milhares de novos cursos sem reconhecimento surgiriam em busca dos desesperados que precisariam de diplomas para exercer seu ofício. Programas com baixa qualidade só para abraçar esses profissionais sem “carteirinha” é algo que me assusta! Em poucas linhas, ficou claro que ainda não existe uma resposta certa para esse assunto, pelo menos não para mim. Tenho certeza de que essa discussão ainda vai ser muito longa, tudo precisa ser muito bem pensado para realmente ajudar o mercado, ao invés de prejudicá-lo. Enquanto isso, precisamos aprender e, principalmente, ensinar o verdadeiro espírito do design aos novos e velhos profissionais, para que eles lembrem a premissa básica: “Para haver forma é necessário existir uma função”.

A falta de diploma poderia prejudicar muita gente de talento que abraçou o ofício há menos de cinco anos

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divulgação

con ti nen te

tecnologia

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ViDEO GAMES Patrimônios da era digital

Aos 40 anos de existência, os jogos eletrônicos comprovam sua força no mercado do entretenimento, são elevados por alguns estudiosos à categoria de arte, e se tornam ferramentas na área educacional TEXto Jacques Waller

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con tecnologia ti nen te imagens: divulgação

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Muito mais que diversão, os video games se tornaram um patrimônio cultural na virada do milênio. Completando 40 anos neste 2012, não é exagero dizer que as atividades eletrônicas estão, aos poucos, moldando a cultura da humanidade. Desde a criação do Pong, uma diversão rudimentar que, com a ajuda da imaginação, simulava uma partida de tênis de mesa, os jogos evoluíram para algo próximo a uma forma de arte e conquistaram um espaço no mercado de entretenimento, semelhante ao do cinema. Fizeram isso bem mais rápido e atingiram plataformas que a arte cinematográfica tem mais dificuldade de alcançar, como celulares e redes sociais. Para se ter uma ideia do seu alcance, o mercado global de jogos é estimado em mais de US$ 35 bilhões. Segundo dados da Associação de Software de Entretenimento (ESA), 72% dos lares dos Estados Unidos possuem video games ou computadores com jogos instalados. Mas a informação que mais demonstra o impacto dos games no mundo de hoje é que não são crianças e adolescentes os que mais jogam. A média de idade dos gamers, globalmente, é de 37

anos – gente que cresceu jogando e que mantém o hábito como forma de obter diversão, relaxamento, de transcender sua “condição mortal” da mesma forma que, em outras épocas, fazia exclusivamente pela leitura de livros. “Foi um dos meus contatos mais fortes com a arte fantástica. Até hoje me pego reproduzindo padrões dos video games em minha literatura”, diz a escritora carioca Ana Cristina Rodrigues. Por falar em livros, recentemente, a British Library decidiu abrir espaço também para os jogos eletrônicos. A instituição está montando um arquivo digital para “preservar a cultura dos games para as futuras gerações”. A ideia é registrar não somente os jogos, mas os subprodutos culturais dos gamers: resenhas, customizações, convenções, cosplays, vídeos de jogabilidade, romances derivados e outros elementos. Tudo para assinalar o impacto dos jogos na história recente da sociedade. Com uma população madura ligada aos games, para além de uma massa de jovens adultos, adolescentes e crianças, era de se imaginar que

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os video games influenciassem no comportamento social. Para o professor do Centro de Informática (CIn) da UFPE, Vinicius Garcia, as pessoas mais expostas aos games são as que mais têm dificuldade de desempenhar funções consideradas tediosas, e costumam reagir quando não têm seu esforço reconhecido. Justamente porque uma dinâmica inerente aos jogos eletrônicos são as recompensas obtidas pela dificuldade, pelo esforço e desafio trazidos – sejam ganhos “materiais” ou simplesmente diversão. “Sinto isso principalmente entre os mais jovens. Quem mais joga video game é quem mais reage positivamente ao estímulo. Se você pegar um gamer e alimentá-lo constantemente de desafios, certamente ele terá um desempenho excelente. Por outro lado, essas pessoas não atingem sucesso, se não forem provocadas”, comenta o professor. Segundo ele, gestores de empresas e

Página anterior 1 heavy rain

É aclamado como um expoente dos “games de arte” Nestas páginas 2 pioneiro

Hojerudimentar, Pong era um jogo que simulava uma partida de tênis de mesa

3 L.A. noire

Leva o gamer para a Los Angeles dos anos 1940

4 custos

Jogos como o Grand theft auto 4 podem ter orçamentos superiores a US$ 100 milhões

5 God of war

História baseada na mitologia grega, com o protagonista lutando a serviço dos deuses do Olimpo

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educadores perceberam o valor dos jogos no trabalho e nos estudos. “Hoje, muitos setores trabalham com a teoria da gameficação. Quer dizer, você estimula a competição, brinca e dá recompensas pelo desempenho da atividade. Na educação, isso funciona muito bem, até porque os jogos são inerentemente multidisciplinares. Brincando, é possível abordar vários tópicos, várias disciplinas ao mesmo tempo”, defende Vinicius Garcia, que acompanhou a criação da Olimpíada dos Jogos Educativos (OJE), iniciativa do governo, desenvolvida pelo Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar).

COMPARAÇÕES

Hoje, é impossível não comparar os games ao cinema. Ambos são plataformas para exibição de uma narrativa. Dependem do meio visual e da interpretação de um personagem para tornar a experiência

O alcance dos games é tão grande, que o mercado global de jogos é estimado em mais de US$ 35 bilhões

crível e empática. E são produzidos por um exército de profissionais: roteiristas, artistas gráficos, atores e, claro, programadores, além de orçamentos altos, muitas vezes, milionários, para cada título. Segundo dados da desenvolvedora Activision, um game do tipo AAA, ou seja, sua fina flor, custa pelo menos US$ 35 milhões – orçamento superior US$ 5 milhões ao do longametragem Distrito 9, produzido por Steven Spielberg. Jogos eletrônicos, como Grand theft auto 4, podem ter orçamentos superiores a US$ 100 milhões.

Para o designer Carlos Cavalcante, responsável pela arte conceitual dos jogos da empresa recifense Manifesto Games, a sofisticação encontrada no setor, hoje, leva facilmente ao entendimento dos games como uma forma de arte. “Já se vendem os desenhos originais e conceitos de um jogo em forma de artbook.” Além disso, Carlos defende que o sistema de criação de cada jogo envolve as mesmas angústias, questionamentos e desafios técnicos de uma pintura ou de um romance. “O processo é totalmente artístico. Na feitura de um deles, há escultores que usam programas 3D para criar personagens e cenários. Há pintores que usam tinta a óleo para obter o resultado desejado. Tem gente, também, que compra um jogo só porque ele é belo.” Para o pesquisador e pós-doutorando em cibercultura Fábio Fernandes, essa definição não é unânime. “Tem

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con tecnologia ti nen te

Entrevista

SUZETE VENTURELLI “A SOCIEDADE, A EDUCAÇÃO E A CULTURA ESTÃO SE GAMEFICANDO” A artista, professora e

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6 MÁRIO

O personagem da Nintendo só usa boné devido à deficiência de se construir, em pixels, um cabelo convincente à época de sua criação

muita gente boa na área dos games que despreza a ideia de que jogos são arte. Mas acho que eles podem, sim, ser considerados obras de arte, sem precisar se conformar aos padrões da indústria cultural”, diz Fernandes. No fim das contas, se arte é o que chamamos de arte, games também podem ser o que as pessoas queiram que eles sejam. “Games são diversão, plataforma educacional, mídia social e forma de expressão. Essa multiplicidade de funções abre uma grande possibilidade para a compreensão deles também como arte”, defende o pesquisador. Pensar que video games são uma forma de entretenimento raso é desmerecer o esforço de desenvolvedores que, cada vez mais, têm se esforçado para entregar histórias intensas, personagens memoráveis, narrativas complexas e jogabilidade de vanguarda.

pesquisadora Suzete Venturelli trabalha com computação gráfica desde 1987. Doutora em Ciência da Arte pela Sorbonne, criou em 1989 o Laboratório de Imagem e Som da UnB, no qual ensina até hoje, e já participou de diversos eventos nacionais e internacionais ligados aos jogos. Ela também coordena projetos como o Wikinarua, uma rede social que leva a tecnologia de realidade aumentada a comunidades isoladas. O sistema em 3D funde elementos virtuais com o ambiente real e foi um dos assuntos comentados pela artista, que ainda falou do papel dos games na cultura contemporânea, da subutilização das redes sociais no ambiente educacional e de campos em desenvolvimento, como o transumanismo, ciência que busca a superação dos limites humanos através da tecnologia.

CONTINENTE É fato que os games, hoje, fazem parte da cultura pop. Não faltam referências em HQs, filmes etc. Mas em que grau podemos dizer que eles estão inseridos na cultura? SUZETE VENTURELLI Na atualidade, os games fazem parte, profundamente, da cultura digital, que ainda está em formação. As características que eu atribuo à mesma e que fizeram com que os games se tornassem tão populares são: possibilidade de misturar diferentes produtos baseados na linguagem digital, comunicação em tempo real entre a cultura local e global e conexões diversas e diferentes entre indivíduos, centros, grupos etc. CONTINENTE Os video games portáteis já eram relativamente populares antes dos celulares. Muita gente ainda tem saudade

do Game Boy (aparelhinho da japonesa Nintendo, um sucesso nos anos 1990). Afora os grafismos e a possibilidade de jogar em rede em qualquer lugar, em que mais avançamos com os consoles portáteis? SUZETE VENTURELLI Ocorreram avanços artísticos e tecnocientíficos. Os artísticos dizem respeito à computação gráfica, realismo da simulação de personagens, cenários e ambientes. A jogabilidade ou a experiência que o jogador tem, quando está imerso no game, é um aspecto ampliado com os avanços da tecnociência, principalmente na interatividade que a tecnologia da inteligência artificial proporciona, como movimento, ações e aprendizado do game sem a intervenção humana. O game é uma entidade viva. Um ser vivo. Por exemplo, em 2001, Black & White (jogo de estratégia em que o gamer é um deus e precisa convencer os mortais a acreditarem nele) foi citado pela mídia em função dos personagens aprenderem com as decisões do jogador. Usavam a tecnologia de observation learning e redes neurais (o primeiro, método de aprendizado que se baseia em observar e repetir; já as redes neurais são um sistema computacional cuja estrutura se assemelha à do cérebro). CONTINENTE Nos ambientes corporativo e acadêmico, os jogos vêm sendo adotados como incentivo ao desenvolvimento dos sentidos e do espírito competitivo. Eles nasceram como uma forma de entretenimento e não o deixaram de ser, embora o status tenha sido ampliado. Mas o perfil do jogador é necessária ou majoritariamente competitivo? SUZETE VENTURELLI Como artista, tenho buscado, de forma coletiva com a equipe aqui do Midialab, criticar essa história de competição, como se isso fizesse parte de nosso instinto. Acho que a competição é cultural. Para mim, os jogadores querem, sim, ter prazer e brincar. Competir não é a prioridade. Games educativos, nos quais não há competição, são lúdicos, também prendem o jogador, por causa da motivação que trazem. O jogo Myst (best-seller de aventura que marcou época, lançado em 1994), de

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imagens: divulgação

CONTINENTE Hoje, qualquer um pode conceber um jogo, com algum orçamento e um bom computador. Essa circunstância remete à máxima do punk rock, o façavocê-mesmo. Os games já passaram, ou devem passar, por um tipo de revolução alternativa, com jogos sendo “viralizados” sem o aval de grandes corporações? SUZETE VENTURELLI É tão bom ter liberdade de criação sem ter que se submeter às grandes empresas... Alguns estudantes que orientei estão se lançando no mundo com seus próprios negócios. É muito bacana. Espero que eles continuem jovens e tragam propostas criativas para o campo e a indústria, introduzindo a pesquisa como base para a inovação das equipes.

resolução de enigmas, é um clássico que foge da competição e violência. CONTINENTE Myst foi um dos jogos que mais inspiraram quadrinhos e livros. Hoje, os games estão diretamente ligados a outros ramos de entretenimento, como o cinema e a música. A “crise da indústria fonográfica” virou lugar-comum – não é diferente com o cinema. Mas o mercado de games não sentiu o abalo de maneira tão forte... O público gamer é mais rigoroso? SUZETE VENTURELLI Para o gamer, a coisa é diferente, pois o fato de jogar vai além do reflexo psicológico ou puramente fisiológico. Ocorre, por meio do jogo, uma função significante, que contém sentido, através da relação ação/ resultado. A sociedade, a educação e a cultura estão se gameficando, acho que é isso que está segurando esse mercado. CONTINENTE A internet e as redes sociais podem substituir as escolas, mais ou menos como já acontece com os escritórios? SUZETE VENTURELLI Hoje, se você entrar em qualquer sala de aula, retornará ao século 19, apesar de toda

a evolução tecnológica e dos meios de comunicação. Acho que as instituições de ensino deveriam estar pensando em como aproveitar tudo isso que temos, para proporcionar um ensino presencial mais adequado ao ciberespaço. Acho que a educação à distância pode ser melhor aproveitada no ensino presencial. Estou tentando trabalhar com meus alunos, envolvendo-os em projetos e pesquisa desde a graduação. Recorro à arte e à tecnociência para isso, também. CONTINENTE A realidade aumentada já tem aplicações práticas, porém específicas, como o projeto Wikinarua, que você coordena. Como esse conceito pode ser ampliado e que benefícios pode trazer para a sociedade? SUZETE VENTURELLI A implementação de tecnologia de ponta em dispositivos móveis ainda está devagar. É muito cara, mas não tem retorno. A fusão entre o real e as imagens de síntese é inevitável e traz a possibilidade de enriquecer com mais informações o mundo físico, em tempo real. É uma nova forma de ver o mundo e de proporcionar maior integração e ampliação da percepção sensorial.

CONTINENTE Já existem empresas de comunicação especializadas no nicho sensorial, possibilitando novas formas de alcançar o público, uma vez que mais sentidos são atingidos. Esse tipo de publicidade está longe de ser massificado? SUZETE VENTURELLI O problema é que a publicidade está comprometida com a venda de um produto. É necessário ter uma filosofia para enfrentar a massificação das informações. Acho que uma saída é o transumanismo. CONTINENTE A ideia do transumanismo ainda soa como um delírio nerd, por buscar a superação dos limites humanos. Aonde essa ciência já chegou? SUZETE VENTURELLI Estou lendo alguns textos de Miguel Nicolelis (neurocientista paulista) e fiquei impressionada com as pesquisas da neurociência, principalmente sobre a interface máquinacérebro. Ano passado, realizamos o 10º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, aqui em Brasília, e o tema principal foi sobre neuroestética. Os transumanistas – e me considero uma também – acompanham as pesquisas tecnocientíficas e já perceberam que estamos sendo mudados por elas. Conhecendo o que acontece podemos interferir, criticar e propor outros caminhos. THIAGO LINS

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con tecnologia ti nen te imagens: divulgação

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EXPERIÊNCIA PESSOAL

Um dos maiores expoentes do que se pode chamar de “games de arte” é o aclamado Heavy rain, criado pela Quantic Dream para o console Playstation 3. Nele, o gamer encarna um policial que deve investigar uma série de assassinatos atribuídos ao Assassino do Origami. O jogo é estruturado como um filme noir interativo: em cada cena, o jogador deve interagir com personagens e objetos em cena, para progredir. Dependendo dessa interação, a próxima cena será modificada, fazendo com que cada experiência de jogo seja pessoal. O clima de detetive também é a escolha de L.A. noire, jogo que custou R$ 50 milhões e que transporta o gamer para a Los Angeles dos anos 1940. Tudo no título merece destaque: os enquadramentos de câmera, a fotografia cheia de contrastes e a

Ray Kurzweil afirmou em palestra, no Game Developers Conference, de 2008, que os jogos irão competir com a realidade estrutura narrativa digna de um Dashiell Hammett. O esforço serve para criar uma trama policial de época e também imergir quem controla o personagem na dinâmica de uma cidade completa, reconstruída digitalmente nos mínimos detalhes. Mais conceitual, Okami brinca com as cores para, literalmente, pintar o universo ficcional. Nele, o jogador é uma divindade que tem que restabelecer o colorido do mundo. Misturando ação clássica com uma ferramenta de pincel

virtual, ele permite que o jogador use a TV como tela de pintura e adicione brilho e alegria a um mundo em preto e branco. Outro bom exemplo é Shadow of the Colossus, um jogo em que um herói sem nome precisa destruir uma série de criaturas colossais para salvar sua amada. O elemento inovador é que, em nenhum momento, o passado do personagem ou da sua amada inconsciente é revelado. Aliás, o silêncio predomina na maior parte do jogo, que também envolve horas de cavalgadas por campos vazios, como que para enfatizar a solidão sentida pelo herói misterioso.

FUTUROLOGIA

Há quatro décadas, o conceito de vídeo game limitava-se a um ponto branco sendo rebatido por dois travessões paralelos e opostos em uma tela negra. Hoje, a complexidade dos

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7 Shadow of the Colossus

No jogo, um herói sem nome precisa destruir uma série de criaturas colossais para salvar sua amada

8 realidade aumentada

O conceito envolve a fusão do mundo real com o ciberespaço

9 batman

O jogo que envolve o famoso personagem traz imagens extremamente realistas

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jogos é imensa, a cada ano surgem novas formas de interação. A última novidade é o sensor de movimento Kinect, que tornou obsoletos os controles tradicionais e aponta para como iremos interagir com os jogos eletrônicos, seja em casa ou na rua. Sim, porque é certo que, em 10 anos, os jogos estarão conosco em todos os lugares. E é bem possível, também, que estejamos dentro deles aonde quer que formos. A estimativa da fabricante de celulares Ericsson é de que, em 2020, haja mais de 50 bilhões de aparelhos eletrônicos conectados à internet. Serão desktops, laptops, celulares, tablets, TVs, consoles, eletrodomésticos e até móveis ligados à internet. Todos serão computadores, no fim das contas, e todos terão capacidade de processamento suficiente para rodar aplicações complexas, como jogos. Vale lembrar que, há duas décadas,

o computador de consumo mais sofisticado tinha processador de 100 Mhz e disco rígido de pouco mais de 1 Gb. Hoje, os smartphones mais avançados usam processadores de núcleo duplo de 1,5 Ghz, além de poder armazenar até 64 Gb de informação. Definitivamente, a mesa da cozinha ou a parede do escritório poderão rodar a última versão de World of Warcraft. A mudança será ainda mais significativa, quando as tecnologias de realidade aumentada estiverem disponíveis. O conceito envolve a fusão do mundo real com o ciberespaço. Através de óculos conectados, por exemplo, será possível interagir com um conteúdo digital relacionado a objetos do mundo real. Aplicada ao universo dos games, a realidade aumentada criará um tipo de imersão nunca experimentada. Será possível, por exemplo, participar de

narrativas ficcionais em um ambiente real e ter estatísticas, localização e pontuação de outras pessoas (até desconhecidos) no meio da rua. Como um jogo de polícia e ladrão, mas com meios para determinar se um “tiro” atingiu seu alvo ou não. Para o futurólogo Ray Kurzweil, autor do livro A era das máquinas espirituais, esse tipo de tecnologia estará disponível por volta de 2020. “Os jogos irão competir com a realidade”, disse o cientista, em sua palestra de abertura da Game Developers Conference, de 2008. “Mais importante que isso é que os meios de produção já estão disponíveis para qualquer um. É possível criar um jogo tendo apenas US$ 1 mil no bolso e um laptop”, observou. Um mundo com computação e internet universal e com um game designer em cada família. Esse deverá ser o futuro dos video games.

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con tecnologia ti nen te divulgação/kinect

Artigo

BRENO CARVALHO PERSONAGENS QUE MARCARAM ÉPOCA Uma modificação na funcionalidade de um osciloscópio (instrumento de medida eletrônico), na década de 1950, provocou uma revolução na indústria do entretenimento. Se, antes, as máquinas eram voltadas apenas para o trabalho e o processamento de dados – algo frio, rápido e calculado –, a mudança de perspectiva fez nascer os jogos digitais, um entretenimento bilionário que diverte, até os dias atuais, crianças, jovens, adultos, mulheres, homens e idosos em todo o mundo. Durante esses 40 anos, a tecnologia dos hardwares evoluiu assim como a narrativa dos games. A imersão dos jogadores passou a intensificar-se a partir de personagens que marcaram época e tecnologia. Nos dias atuais, estamos convivendo com a sétima geração dos consoles e a internet ajudou a mudar a maneira de jogar, pois, além do você criar seu próprio sujeito (modificando seu avatar), pode lutar contra o inimigo do outro lado do planeta, como, também, fazer amizade com quem você nunca viu. Na história dos videogames, em cada evolução tecnológica, destacam-se indivíduos que trouxeram narrativas complexas, efeitos especiais, gráficos realistas e expressões, hoje reconhecidas em todo o mundo. O video game Odyssey, da primeira geração de consoles, compreendida entre os anos 1972 e 1977, podia apenas processar gráficos muito simples e em uma única cor, como o famoso Pong. Na época, ainda estava sendo desenvolvida a tecnologia dos microprocessadores, tornando impossível a criação de personagens e histórias mais complexas. Na segunda geração, de 1976 a 1984, com aparelhos de 4 e 8-bits de processamento, foram introduzidos os primeiros personagens já com aspectos humanoides, dentre eles o bonequinho do game Pitfall, a carinha

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Nesses 40 anos, houve uma grande evolução na tecnologia dos hardwares e também nas narrativas dos games amarela do Pac-Man e o encanador baixinho, Jumpam, do game Donkey Kong, chamado de Mario nos Estados Unidos. Para se ter uma ideia da relação entre a tecnologia do console e a criação de personagem, o famoso Mário da Nintendo só usa boné devido à deficiência de construir, em pixels, um cabelo convincente para a época em que foi criado. A partir do poder tecnológico dos consoles da terceira geração, de 1983 a 1992, com processadores de 8-bits e a quarta geração, de 1987 a 1996,

com 16-bits, a imersão nos games será ainda mais fascinante, devido às possibilidades gráficas e efeitos especiais, como simulação 3D e o avanço do processamento de arquivos de áudio com qualidade para a época. Assim, foi possível usar um novo recurso, expressões faciais e diálogo dos personagens, que já possuem vida. Quem não se lembra do poder da expressão Hadouken dos lutadores de karatê, Ryu Hoshi e Ken Masters da lendária série arcade Street fighter, desenvolvida pela Capcom? A internet comercial já estava popularizada no mundo e chegava também ao Brasil. A possibilidade de jogar contra outra pessoa, que não fosse o amigo com o joystick ao lado, dava ainda mais emoção às batalhas. Em 1994, um jogo para multijogadores fez tanto sucesso, que ainda é ovacionado nos dias atuais – World of Warcraft, da produtora

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10 kinect O sensor de movimento, uma das novidades na área, dispensa o uso de controles

Blizzard, um jogo online, de ação e aventura, no qual você poderia criar seu próprio personagem, dando nome, escolhendo a raça, alterando indumentária, proporção corporal, entre outras alterações no seu avatar. Outro recurso bastante interessante era a visualização em 360˚ do cenário, possibilitando ao jogador a exploração de lugares à procura de itens colecionáveis, como ferramentas, saúde, powerups, inventário e alguns artigos com habilidades especiais, recursos esses usados no game seguinte. Em 1996, surge um título, para computadores, que permitiu destruir objetos que não fossem os inimigos, na tela, quebrando caixotes, janelas e portas através de tiros e socos. Duke Nukem 3D trouxe um design inteligente, permitindo a visualização do personagem através do espelho distribuído no cenário (jogos em

primeira pessoa não possibilitavam esse recurso). Em 2002, a técnica de modelagem 3D, combinada à captura de movimento de atores, inclusive de expressões faciais, aliada ao poder de processamento de 128-bits, irá encarnar-se no papel do policial Max Payne, numa trama de investigação vista apenas no cinema. Nesse mesmo título, experimentaremos o efeito bullet time (tempo de bala) do filme Matrix, mostrando o que já era possível fazer nos games. A sétima geração de consoles (2005) marca o início do realismo como força visual padrão, além do uso de inteligência artificial mais avançada. O estudo de iluminação, recursos de transparência, interação com objetos no cenário (uma cortina poderia ser mexida várias vezes em todas as direções), além de não haver mais os fundos finitos (o

céu ou uma parede poderiam não existir em algumas caminhadas com seu personagem). As animações introdutórias não tinham mais qualidade visual do que a fase de jogabilidade – tudo agora é real, basta entrar na aventura e gritar “Ação!”. Com todos esses recursos, vemos a glória da terceira aventura do Deus da guerra, Kratos, da trilogia God of war, que até design de luta fora incorporado na equipe de planejamento do jogo. Personagens de outros títulos nos deixarão confusos sobre o que é computação gráfica, pois é possível jogar na pele do Messi, do Barcelona. O console – o Playstation 3 da Sony – explorou ao máximo o processamento de gráficos realistas, que iniciará o uso do blu-ray como mídia, bem antes da sétima arte. A revolução tecnológica foi tão grande, que impulsionou os fabricantes de televisores a desenvolverem aparelhos com resolução full HDA, mostrando tal riqueza de detalhes, a ponto de os personagens terem textura de pele humana, transformando o game em um filme que pode ser jogado. Em 2010, a Microsoft lançou outra maneira de jogar, sem a necessidade de joystick, revolucionando com o famoso periférico Kinetc para o Xbox 360. Essa nova jogabilidade trouxe títulos com gráficos mais simples, mas que empolgaram muitos jogadores adultos, tanto que alguns programadores começaram a fazer teste, lançando o golpe de Ryu, que comentei anteriormente neste artigo, na esperança de, num futuro próximo, vestir, literalmente, a roupa do personagem na tela, e, sem acessório algum, derrotar seu oponente como se estivesse num filme. Hadouken!!

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FERREIRA LOPES Beverly Hills (também) é aqui Sobre a dificuldade de, casualmente, conseguir um corpo a corpo com os habitantes da rua de belos casarões localizada no popular bairro de Casa Amarela, zona norte do Recife texto Thiago Lins Fotos Ricardo Moura

Pernambucanas No meio de Casa Amarela,

um dos bairros de feição tradicionalmente popular do Recife, encontra-se o que se poderia chamar de “um pedacinho de Beverly Hills”. Com suas mansões, carros de luxo e palmeiras imperiais, a Rua Ferreira Lopes sugere com facilidade essa associação. O cenário de seriado californiano contrasta com o restante do bairro que, mesmo com a exagerada especulação imobiliária, ainda guarda referências a uma “modesta” localidade. Mas – sabemos – o Recife é uma cidade de extremos, onde complexos de compras avizinham-se a favelas. Definir o padrão demográfico da rua é tarefa penosa. Numa investida de um turno, por exemplo, foram poucas as

informações que o repórter conseguiu extrair de seus desconfiados moradores. Pela reincidência de câmeras de segurança, cercas vivas, muros altos e vigilância privada, há, certamente, naquelas residências tesouros muito bem guardados aos quais jamais teremos acesso. É a única razão para justificar tanta desconfiança. Nosso propósito: um perfil da Rua Ferreira Lopes e de seus moradores. Primeiro empecilho: a vida naquele lugar circula sobre quatro rodas ou para além dos muros. Quando é possível superar os bloqueios mencionados – entre uma grade e outra, ou graças a uma brecha que escapa –, avista-se quase ninguém. Estão todos em outro lugar que

não as dependências mais visíveis das casas. Meu trabalho era semelhante ao de promotores de vendas de cosméticos, livros, bíblias: bater às portas, arriscar. Quase perturbar a ordem alheia. Vamos lá. Primeira casa, uma de tijolos aparentes com muro alto e ampla garagem. Um toque e o interfone disparou. Constrangedor. OK, nem tudo na Ferreira Lopes é perfeito. Espero um tempo razoável. Desisto, mas torço para que aquilo não seja um mau sinal. Segunda casa. Ninguém atende. E, assim, sucessivamente. Eis que alcanço o que supus ser um caseiro, regando um jardim cirurgicamente bem-feito. Simpático, porém não me ajuda muito.

Explica que na mansão só mora uma senhora muito doente, o que praticamente impossibilitaria a entrevista. Fico pensando em como alguém tão doente pode desfrutar de tanto espaço, mas o elevador panorâmico instalado na fachada externa do imóvel dizia tudo. Arrisco outra mansão, mas, novamente, não passo do portão. O sorriso

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do vigia me faz achar que posso ter um retorno a qualquer hora. Quem sabe? Deixo um exemplar da revista como suborno e meu contato. Sair tocando campainhas rua afora não estava sendo propriamente frutífero. Cesso a operação-cigarra e decido abordar pedestres. Mas a Ferreira Lopes não é como a Padre Lemos, uma rua situada a alguns metros dali onde há congestionamento de tudo: carros, motocicletas, gente, em que não há distinções claras entre o que é casa, calçada, rua, porque tudo se mistura.

O jeito é esperar. A primeira pessoa que vejo é uma mulher de meiaidade com um cachorro (quando a avistei, ela carregava o animal no braço). Sintomático: algo sempre tem que ser ostentado por ali, mesmo se passando a pé. Um cachorro fino e fofo, que seja. Pena, ela mora em outra rua, adjacente. Não serviu. Interrompo outra transeunte, uma estudante com roupa, ar e aparente “saúde” de quem voltou da academia. Outra passageira, não reside naquela rua. Mas as duas dizem

algo sobre o lugar: a primeira, pela fineza, e a segunda, pela beleza. E nenhuma das duas morava na rua. O que era suposição ganha ares de confirmação: na Ferreira Lopes, só se anda de carro. De preferência, um 4x4 blindado. Enquanto isso, a reportagem continuava à míngua. Decidi tentar as duas lojas do local. No caminho, tropecei no lixo: uma caixa vazia de iMac e, outra, enorme, de um telão LCD. Coincidência? As duas lojas que ficam na rua são uma de roupas e outra de móveis.

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Pernambucanas 1

Na primeira, compro o vigia com uma revista e passo até a loja, após uma espécie de interrogatório. Ninguém dá as caras, mas a dona de uma voz cansada responde ao nosso pedido de atendimento, do recinto onde ela estava, dizendo que aquele era um horário “muito chato”. Ah! Horário de almoço... De qualquer modo, passava muito das duas da tarde. Tinha até as 18h para entrevistá-la, mas receei que aquela refeição não fosse ter fim (para a reportagem, digamos assim). Cruzo a rua até o seu final, onde há uma fina loja de móveis. Quase sem querer, descubro que todos os objetos estão em liquidação, embora continue longe de poder comprar qualquer um deles. O movimento do estabelecimento, que passou por uma expansão recente, é fraquíssimo: imagino que uma venda pontual já garanta um lucro razoável.

A Ferreira Lopes não é como a Padre Lemos, rua situada a alguns metros dali onde há congestionamento de todo tipo Suposições à parte, a vendedora relata que a dona do ponto comercial também estava no horário de almoço e que nossa reportagem poderia voltar depois. A coincidência me faz pensar que naquela vizinhança se almoça mais tarde, ou com mais calma: talvez seja um privilégio de quem deu duro a vida inteira para ocupar um espaço razoável entre os metros quadrados mais caros de uma cidade transformada rapidamente pela especulação imobiliária. Mas a pauta não tinha mudado, e eu ainda tinha a tarde inteira pela frente.

Sem entrevistas, gravador vazio. O jeito foi registrar notas na caderneta, antes que a pressa e a angústia me fizessem deixar passar alguma coisa. Eis que um homem de farda interrompe o desenvolvimento do meu trabalho jornalístico. – Boa-tarde, companheiro! É corretor? Nego, e comento com ele a pauta. Com o esclarecimento, ele, mais tranquilo, diz que foi acionado para me interceptar porque os condôminos de um prédio “acharam que você fosse ladrão”. Gente fina, às vezes, é fogo. Queria poder processá-los pela ofensa, quem sabe assim tornar-me rico também. Fiquei pensando se os engenheiros, arquitetos e corretores que alimentam a especulação passam pela mesma situação quando trabalham ali. Continuei com as anotações – escrevendo o que ocorria, como

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1-3 bloqueios

As casas da rua investem fortemente em segurança, com muros altos, portões com fechaduras resistentes e equipamentos eletrônicos

4 DEtalhes

A beleza dos adornos chama a atenção dos poucos pedestres que circulam pelo local

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um artista pinta o que vê, mas sem nenhuma musa inspiradora, sob o sol escaldante, na mira de seguranças mais desconfiados que os de banco. Cruzei com PMs de moto três vezes, o que talvez se deva à natureza “suspeita” desse vagar jornalístico. Mesmo sem ter falado com nenhum morador, a matéria já estava tomando forma... na minha cabeça. Ia tentar fazer como Joseph Mitchell, que traçou o antológico perfil de Sinatra sem ter trocado uma palavra com A Voz. Mas, antes que um choque de realidade soterrasse meu delírio, deparei-me com aquela que seria minha primeira e última fonte em potencial. Luiz Marcos Vilaça, um senhor aparentando mais de 50 anos de idade e afirmando ter 40 só de residência ali: a única pessoa solícita que encontrei. Ele estava em sua garagem, sem camisa, quando o

Ao caminhar pela calçada, o repórter tropeça no lixo: caixas de iMac e de telões LCD. Seria uma coincidência?

chamei do portão, já com a revista na mão – minha contraparte às gentilezas. Ele não demora em me deixar entrar e me oferecer uma cadeira, enquanto torço para que não haja no local algum cachorro assassino. Conta que foi morar ali com os pais, vivendo com a mãe até hoje (o pai faleceu). Diz que os primeiros prédios da rua começaram a ser construídos na década de 1980. Ainda são poucos, ou muito baixos ou muito altos (outra discrepância, só que geométrica),

os últimos sendo muito recuados, para interferir menos na paisagem. Sobre as mansões, ele sublinha que sempre foram uma marca do local. E aponta para uma das mais pomposas, na esquina, revelando que ela pertencia ao grupo Othon Bezerra de Melo, tendo sido comprada, há pouco tempo,por uma construtora local, que tem loteado o Recife (o nosso gonzismo não demanda uma verificação para comprovação, mas vale a especulação, neste caso). É evidente que a expansão imobiliária e todos os seus sedentos agentes já conseguiram penetrar na (até aqui) intocável e (ainda) arborizada Ferreira Lopes. Mas a rua continua resguardando algum segredo por trás das cercas vivas, dos muros altos, dos cães de guarda e da segurança privada. E seus moradores se mostraram dispostos a levá-lo para o túmulo.

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FESTA NO COVIL Homens na pele de animais

Livro de estreia do mexicano Juan Pablo Villalobos traz personagens com ações comandadas pelo instinto de preservação e pela violência TEXTO Schneider Carpeggiani

Leitura Num texto clássico sobre Franz

Kafka, Walter Benjamin destacou que o mundo kafkiano é mais jovem que o dos mitos. Nele, as sereias não cantam, silenciam. O escritor tcheco também seria contrário ao universo das fábulas, que convertem homens em animais em busca de alguma lição, alguma moralidade tardia, antes do ponto final. Poderíamos ler durante muito tempo as histórias de animais de Kafka, sem percebermos que elas não tratam de seres humanos porque o mundo dos homens já estaria bem longe. Animais são animais. O escritor priva os gestos humanos dos seus esteios tradicionais e os transforma em temas de reflexões intermináveis. Podemos pensar não em fábulas em relação a Kafka, mas em parábolas, ainda que todas as tentativas de aproximar a leitura da sua obra de algum estrito sentido religioso tenham se mostrado inúteis. Parábolas, sim, porque invocam o sentido de ordem de um mundo em crise com o espírito moderno, no período entre as duas grandes guerras. Não trazem ensinamentos, mas ordenações. A elogiada estreia do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, Festa no covil, segue a premissa kafkiana: homens com nomes de animais, que vivem regidos por instinto de preservação e

violência, atacam e cercam o possível inimigo, como se seus hormônios vivessem em constante sentido de alerta. O protagonista se chama Tochtli, que em dialeto asteca significa coelho, o animal que, segundo Lewis Carrol, sabe que o tempo é um elemento evasivo e traiçoeiro. Tochtli é, também, uma criança

O autor mexicano optou por uma voz narrativa infantil, a do coelho-filhote Tochtli, para protagonizar a obra fascinada por dicionários e suas cercas interpretativas. Procura apreender o sentido das palavras todas as noites antes de dormir, como se contasse ovelhas. Já sabe de cor as implicações por trás de “sórdido”, “nefasto”, “pulcro”, “patético” e “fulminante”. Expressões bastante necessárias, em se tratando de alguém cujo pai é chamado apenas pela alcunha de Yolcault (serpente). Tochtli não tem mãe. Quer até chorar por isso em alguns momentos, mas não chora. Garotos (e coelhos) não choram.

É criado para dar continuidade a uma hierarquia masculina que prescinde de sentimentos. Aquele que não quer que o chamem de “pai” faz questão de lembrar constantemente a Tochtli: “Diz que somos o melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros. O Yolcaut é dos realistas, e por isso não diz que somos o melhor bando do universo, nem o melhor bando num raio de oito mil quilômetros. Os realistas são pessoas que acham que a realidade é assim, como você pensa que é. Foi o Yolcaut que me falou. A realidade é assim, e pronto. Sem chance. ‘É preciso ser realista’ é a frase favorita dos realistas”. Nesse mundo sem choros, sem mulheres (quando elas aparecem são secundárias, anônimas e silenciosas) e povoado por animais (uso animais, sem aspas, para não me afastar da lição kafkiana), Villalobos nos oferece sua interpretação do universo trágico do narcotráfico que transforma a América Latina num longo e tempestuoso cartel. Não poderia ter sido melhor escolha para narrar a história um coelho-filhote: o olhar infantil apreende o mundo no seu real absurdo de significados à flor da pele, como a Alice que tem

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divulgação

seu rito de passagem ao descobrir que, depois de encolher, existem em algum lugar “cogumelos” que a fariam crescer novamente. Ou mesmo no Guimarães Rosa de Primeiras histórias.

IMPACTO

“Tentei por diversas vezes encontrar uma voz narrativa convincente para escrever esse livro, mas só a infantil é que se mostrou concreta para o que eu desejava”, explicou Villalobos, em conversa com a Continente, por telefone. O mexicano – casado com

uma brasileira, atualmente residente em Campinas, interior de São Paulo – não esconde a perplexidade diante do impacto de Festa no covil. O romance já foi vendido para mais de 14 idiomas, com críticas positivas em publicações como The Telegraph e The Independent. Seu espanto ganhou proporções maiores porque ele conhece bem o jogo das editoras europeias, que (ainda) insistem em buscar a América Latina de possíveis e anacrônicos imitadores de Gabriel García Márquez. “Eu não posso deliberadamente dizer que quero

me afastar da tradição do boom literário latino-americano, porque, dessa forma, estaria confirmando ainda mais suas premissas. Prefiro fazer a minha própria literatura”, destaca. O crítico que se propõe a descrever os trâmites de Festa no covil deve evitar possíveis spoilers no seu texto: o livro assusta justamente porque tateamos no imaginário dos seus animais sem compreender muito bem o que está prestes a acontecer. E, como se trata da narração de um filhote, a violência e os respingos de sangue pululam na cara do leitor, travestidos de uma inocência perturbadora. Seria possível cair no clichê de tratar esse romance como uma obra de formação, mas, no fundo, toda a história literária é também a saga de personagens fraturados, que se formam e se decompõem com o passar das páginas. A versão inicial de Festa no covil teria 70 páginas. Mas o autor conseguiu esticar a narrativa para não menos sucintas 88. Seu próximo livro, que será entregue à editora espanhola Anagrama, no final do ano, já tem o dobro disso. “Um dos meus autores favoritos é Roberto Bolaño, que ficou famoso por livros enormes, como 2666 e Detetives selvagens. Até pouco tempo, nunca havia pensado em fazer um romance com essas dimensões, porque seus livros com tamanho reduzido, como Noturno do Chile e Estrela distante, já dizem tudo, num espaço de tempo tão curto. Mas penso que, no futuro, irei me entregar à liberdade de fazer um grande romance, no qual nem todas as páginas são necessárias. Essa liberdade é um exercício importante para um escritor”, afirma Villalobos, que escreveu uma crônica para o blog da sua editora brasileira, Companhia das Letras, contemporizando o fato de que “lemos Bolaño porque precisamos acreditar”. Pelo visto, Villalobos já está acreditando.

Juan Pablo Villalobos FESTA NO COVIL Companhia das Letras Um pequeno “coelho” observa a violência, tendo seu pai como referencial.

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MOEBIUS Mestre do fantástico e da ficção científica

A saga completa de Incal, que coroaria a trajetória de Jean Giraud como um dos maiores ilustradores da arte serial, ganha relançamento

reprodução

TEXTO Danielle Romani

Leitura

1

Em 1991, durante a Bienal de Quadrinhos do Rio, alguns dos maiores mestres das HQs mundiais circularam pela capital fluminense: o italiano Sergio Bonelli, “pai” do ranger Tex Willer; o norteamericano Will Eisner, criador das modernas graphic novels e do clássico The Spirit; e o francês Jean Giraud, o Moebius, podiam ser facilmente vistos pelos visitantes da sede do evento, na Fundição Progresso, na Lapa. Eram, à sua maneira, simpáticos, acessíveis e conscientes de que as HQs tinham um longo caminho para percorrer até que se consolidassem como arte. Não agiam como celebridades, mas com disponibilidade frente aos fãs e aos autores nacionais que os seguiam por todas as partes. Hoje, duas décadas depois, os três se foram, deixando um espaço irrecuperável nas artes sequenciais, mas cumprindo a missão de serem referência para apreciadores e artistas. Dos três autores citados, Moebius foi o último a partir. Morreu na madrugada do dia 10 de março, legando-nos uma vasta obra que o consolida como um dos mais importantes autores da atualidade. Naquele início da década de 1990, os três eram uma síntese do que havia de melhor nos quadrinhos do período. Bonelli tinha na bagagem a criação do mais famoso caubói de todos os tempos, um produto autoral de sucesso comercial, vendido aos milhares nas bancas de revistas de toda parte. Eisner, conhecido pelo The Spirit dos anos 1940-1950, começava a se firmar com as novelas gráficas. E Moebius já era reverenciado como um mestre da ficção científica e do fantástico. Antes de se tornar famoso nesse universo, Moebius fez nome na área do western. Desenhista de Blueberry, espécie de cowboy fora da lei, criado e produzido entre os anos de 1963 e 1964 em parceria com Jean-Michel Charlier, ele assinava como Gir, derivado de Jean Giraud, seu nome de batismo. Rebelde, amigo dos índios e extremamente sentimental, Blueberry era o anticaubói. Um personagem gauche, bem ao sabor do clima contracultural do período, e notadamente inspirado no western spaghetti italiano, que influenciou vários outros gêneros. O pseudônimo Moebius – emprestado do matemático alemão

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INDICAÇÕES August Ferdinand Moebius – foi criado exatamente para definir o outro “lado” e estilo de trabalho. Para nomeálo nos seus projetos mais autorais e artísticos. A importância do artista, que também foi criador da revista Metal Hurlant, na década de 1970, não se alterou com o tempo. Ao contrário de muitos que enveredaram pela ficção científica, e que foram atropelados pelos avanços tecnológicos reais, suas histórias não são datadas e continuam atraentes, seja pelos argumentos, seja pelas imagens, que inspiraram filmes como Duna e Blade runner. As cidades futuristas imaginadas por Moebius contaminaram toda a estética cinematográfica pós-moderna, pautando os cenários e figurinos que seriam vistos na maioria dos bons filmes de ficção das últimas décadas. Artistas gráficos, como o pernambucano Watson Portela, autor do cultuado Paralelas, tiveram em Moebius uma declarada fonte de inspiração.

CYBERPUNK

Entre os grandes parceiros artísticos de Jean GiraudMoebius, nos seus 73 anos de vida, destaca-se Dan O’Bannon, com quem produziu The long tomorrow. Mas foi com Alejandro Jodorowsky que ele manteve a colaboração mais duradoura e bem-sucedida. Com o argumentista chileno, lançou Incal, que o coroaria como maior ilustrador mundial de ficção científica. Lançada em capítulos entre os anos de 1981 e 1988, a série mostra os apuros vivenciados pelo detetive John Diffol, que se vê às voltas com um ser mítico, o incal que dá nome ao livro, e que nos leva a passear

1 atemporal

Mantém-se atual o futurismo da obra de Moebius, a exemplo do mítico Incal

por um mundo cyberpunk, com castas superiores e inferiores, pelas quais são caracterizados os indivíduos – assassinos interplanetários e seres inconcebíveis. A saga completa, numa edição bem cuidada, foi lançada no Brasil pela Devir Livraria, coincidentemente, semanas antes da morte do francês. Moebius também costumava escrever as próprias histórias. A garagem hermética é sua obra seminal: protagonizada pelo Major Gurbert, a série é confusa, mas nem por isso deixou de arrebatar milhares de fãs, que se renderam ao desenho preciso e às situações inusitadas criadas pelo autor. Estudiosos da sua obra afirmam que ele a desenhava sem saber exatamente o que iria conceber. Por isso, o nonsense dos acontecimentos. Dizem que ela era, na verdade, um espaço para o exercício da escrita e da ilustração. Arzach, um herói alado é outro trabalho magistral, pautado praticamente na narrativa visual. Os que procuram argumentos mais consistentes, e mais fantásticos, beirando o horror, terão em Absoluten calfeutrail e Outras histórias um bom canal para conhecer a narrativa absurda, onírica e com fortes pitadas de terror produzida pelo autor. A obra do artista francês também conta com o lado pop. Juntamente com Stan Lee, um dos ícones da Marvel Comics, Moebius recriou O surfista prateado, numa graphic novel considerada um dos marcos dos anos 1980, que terminou adaptada para o cinema por Hollywood.

TEORIA LITERÁRIA

MARIA LÚCIA BALESTRIERO Mário Faustino: uma poética da modernidade Unesp

INFANTOJUVENIL

SHAUN TAN Contos de lugares distantes Cosac Naify

A apreciação crítica da breve obra do modernista tem importância na reflexão sobre este escritor pouco lido e analisado. O texto apresenta tendências da poesia do século 20 e, em seguida, atém-se aos versos do autor, apontando neles dois aspectos opostos: o intuicionismo e a racionalidade.

Chamar os textos do escritor australiano de “contos” parece restringir sua interpretação. Embora formado prioritariamente por breves narrativas, o livro ilustrado se permite intervalos com criações mais fragmentadas, livres e poéticas, além de trechos em que a história é contada apenas por imagens e elementos prosaicos e mágicos.

LITERATURA POPULAR

POESIA

MARCO HAURÉLIO (ORG) Antologia do cordel brasileiro Global Editora

Reunindo textos de cordelistas de diferentes gerações, o livro alinha-se à proposta da editora de recuperar temas e formas ligados à brasilidade. Estão presentes na coletânea criações de veteranos, como Leandro Gomes de Barros, e da nova geração, como Pedro Monteiro e Rouxinol do Rinaré.

PAULO FERRAZ (ORG) Roteiro da poesia brasileira – anos 90 Global Editora

O livro faz parte de uma coleção que revisita os poetas do Brasil desde a formação do país até os anos 2000, sendo cada exemplar editado por um estudioso diferente. Neste número, marcam presença 45 escritores que publicaram pela primeira vez nos anos 1990, como Antonio Cícero, Joca Reiners Terron, Marco Lucchesi e Ricardo Aleixo.

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divulgação

augusto pessoa

Sonoras 1

BAIÃO DE NÓS Experimentações e um sotaque brasileiríssimo

Com direção musical de Zeca Baleiro, Tiago Araripe grava no Recife e em São Paulo seu segundo disco, três décadas depois do emblemático Cabelos de Sansão texto Augusto Pessoa

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No final da década de 1980, Zeca

Baleiro era estudante e fuçava numa loja de discos no Rio de Janeiro em busca de algo interessante, quando se deparou com um vinil, no mínimo, estranho. Na capa, montado num leão, no espaço sideral, um homem exibia sua vasta cabeleira. O nome da bolacha também não passou despercebido: Cabelos de Sansão. “Uma sonoridade incomum, de cara, prendeu a minha atenção, assim como a voz aveludada do cantor. Fui ouvindo as canções e me assustando a cada faixa com a atmosfera sonora, a um só tempo ácida e lírica, rica de timbres, as letras de pura verve e os arranjos de espírito tão irreverente quanto engenhoso”,

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1 cabelos de sansão

Tiago Araripe, no início da década de 1980, quando gravou seu primeiro trabalho

nova edição 2 Trinta anos depois, músico exibe regravação, em CD, do disco que chamou a atenção de Zeca Baleiro

relembra Baleiro, no texto de abertura do relançamento de Cabelos de Sansão em 2008, pelo Saravá Discos. O selo foi criado pelo músico maranhense para resgatar trabalhos de qualidade que, por motivos comerciais, acabam não se enquadrando nos projetos das grandes gravadoras. Em março de 2012, após 30 anos da gravação do emblemático vinil, o cesarense Tiago Araripe voltou ao estúdio para a gestação do seu Baião de nós, uma parceria com músicos pernambucanos, cearenses, paulistas e, é claro, a participação mais que especial do amigo Zeca Baleiro, que, além de assinar a direção musical do trabalho, canta e divide duas composições com Araripe. “Depois

da descoberta e do relançamento de Cabelos de Sansão pelo Zeca, o convite acabou sendo uma consequência natural”, explica Tiago. Junto com músicos da Orquestra Contemporânea de Olinda, o baixista e produtor Fernando Nunes e alguns outros convidados, o músico misturou os ingredientes guardados durante anos para gravar um disco que promete ser o resumo da sua extensa e diversificada experiência musical. Desde a época em que estudava arquitetura no Recife, na década de 1970, Tiago bebia nas mais criativas fontes disponíveis – do Tropicalismo ao vanguardismo de Frank Zappa –, mas sempre com os pés e os ouvidos cravados na cultura popular do Cariri cearense, onde

passou a infância ao som das bandas de pífanos e reisados. Foram essas influências, a propósito, que caracterizaram o Papa Poluição, grupo formado em 1975 por Tiago, José Luiz Penna, Paulo Costa e outros músicos. Ele agitou a vanguarda da música paulistana embalada pelo talento de gente como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Tetê Espíndola, todos influenciados pela inquietação artística do famoso Lira Paulistana. “Na década de 1970, eu ouvi falar de uma certa escola de música que o Tom Zé havia criado em São Paulo. Mas, quando cheguei, a escola já tinha sido fechada. Minha sorte é que ele tem a capacidade de descobrir o que cada pessoa tem de melhor e de revelar isso”, diz Tiago, que, no convívio com Tom Zé, acabou sendo apresentado aos poetas concretistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Alguns anos depois, Araripe adentraria o Lira Paulistana, que incendiava a cena cultural da capital paulista. As parcerias surgiram naturalmente. Com Décio Pignatari, Tiago compôs duas canções, uma delas gravada no compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe, de 1974. A outra foi o tango Drácula, apresentada no Festival Abertura da Rede Globo, em 1975, e que mais tarde se transformaria num videoclipe gravado nos porões do Theatro Municipal de São Paulo e exibido no Fantástico. É de alguns anos depois a trilha sonora criada pela turma do Papa Poluição para o filme Sargento Getúlio – vencedor do Festival de Gramado em 1983 –, que tinha Lima Duarte no papel principal.

SOLO EXPERIMENTAL

Depois da rica experiência com o Papa Poluição, Araripe entrou numa fase solo mais experimental, da qual surgiu o incrível Cabelos de Sansão. “Músicos fantásticos, como Oswaldinho do Acordeon, Tony Osanah, Jica e Turcão, Félix Wagner, Mané Silveira e Dino Vicente faziam a festa e os arranjos”, relembra Baleiro que, ainda hoje, gosta de ouvir o velho vinil. Mesmo aparentemente afastado da música desde os anos 1980, Tiago nunca parou de criar. As letras das músicas que integram o Baião de nós são a prova de que o processo de criação do artista prioriza muito mais

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FOTOs: Augusto pessoa

3 Baião de nós

A música que dá título ao disco é uma parceria entre Zeca Baleiro e Tiago Araripe

4 Gravação

O processo, que aconteceu em várias cidades, contou com a participação do músico pernambucano Juliano Holanda

3

Sonoras 4

a qualidade do que a quantidade. Segundo Baleiro, isso é parte do mistério que envolve a criação musical. “As músicas do Tiago, que estamos gravando agora, mostram que ele continua compondo cada vez melhor. Essa coisa da criação é muito misteriosa, cada um tem seu ritmo e seu processo particular. Tem pessoas que escrevem 10 músicas por dia. Dorival Caymmi compôs pouco mais de 100 em toda sua carreira e todas são obras-primas, maravilhosas”, diz Zeca. Junto com Tiago, ele escreveu a letra da canção que dá título ao álbum e emprestou seu poderoso vocal à faixa que é, de longe, a mais nordestina do disco, com a inconfundível sanfona do pernambucano Beto Hortiz e uma

Ainda que tenha ficado décadas fora do circuito musical, Tiago Araripe não deixou de compor canções merecida referência/homenagem ao rei Luiz Gonzaga e à rainha Marinês. Baião de nós, a ser lançado pelo selo pernambucano Candeeiro Records, tem um pouco de tudo: desde as experimentações que caracterizavam o Lira Paulistana até o sotaque brasileiríssimo de quem nasceu no Ceará, descobriu Pernambuco e se

encontrou musicalmente na São Paulo dos anos 1970. O mais curioso é que a própria produção do trabalho acabou percorrendo o mesmo caminho geográfico do artista. Uma faixa do disco foi gravada no Ceará – numa forma de incluir no registro músicos cearenses que Tiago admira. O caldo principal teve registro no estúdio Muzak, no Recife, com a participação do guitarrista Juliano Holanda entre outras pratas da casa. E acrescentouse o tempero final do “baião” em São Paulo, com a entrada do guitarrista Tuco Marcondes, do tecladista Adriano Magoo – que, juntamente com Fernando Nunes, trabalham com Zeca – e a especial presença de Clarissa Araripe, filha de Tiago, nos vocais. De 1982, quando Cabelos de Sansão foi lançado pelo selo Lira Paulistana, até hoje, muita água passou debaixo da ponte. Do encontro casual de Zeca Baleiro com um vinil escondido numa loja de discos no Rio de Janeiro ao relançamento do álbum e a parceria iniciada desse reencontro, surgiram os ingredientes que terminaram por compor uma receita única. Baião de nós, realizado por meio de projeto aprovado pelo Funcultura, do Governo de Pernambuco, é o registro do talento de um músico que viveu intensamente uma das épocas mais criativas da música popular brasileira e que soube esperar a hora certa de nos presentear. A riqueza e a inteligência das letras, associadas aos arranjos que instigam nossa capacidade de sentir a arte em toda sua profundidade, tornam difícil a tarefa de definir o trabalho de Tiago, tamanha sua capacidade de nos fisgar. Talvez a melhor definição tenha sido dada por Tom Zé: “Uma arte cuja força sai diretamente dos nervos e persegue a exatidão com obsessiva raiva; transplante em que o dente fica no lugar da flor; ranhura no diamante; se quiser coisa que tal, bipe Tiago Araripe”.

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INDICAÇÕES CONTEMPORÂNEO

MATEUS ALVES Música de câmara e orquestral Independente

Nos últimos cinco anos, por influência do curso de Licenciatura em Música na UFPE, o contrabaixista Mateus Alves passou da vivência em bandas de pop rock ao estudo de linguagens contemporâneas. O resultado encontra-se nesse CD, com três obras de câmara – para cordas, madeiras e metais – e a suíte orquestral Duas estações nordestinas, dedicada a Clóvis Pereira. A interpretação é dos integrantes da Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música.

INSTRUMENTAL

PIANÍSTICO

SKA MARIA PASTORA As margens do Rio Doce

MARIA HELENA DE ANDRADE Brasil: do clássico ao choro

Após a destacada atuação na cena musical olindense dos últimos anos, o Ska Maria Pastora lança seu primeiro CD, As margens do Rio Doce, e apresenta o repertório na íntegra durante o próximo Abril Pro Rock. Todas as nove faixas autorais valem a audição (e o sacolejo), mas as releituras dos famosos frevos de rua Cabelo de fogo e Elefante de Olinda prometem conquistar o público que tem na cabeça as versões originais.

Especializada na obra de Francisco Mignone, um dos maiores expoentes do nacionalismo musical brasileiro, a pianista carioca decidiu realizar uma coletânea que abrangesse obras dele e de outros compositores nacionalistas, além de representantes do choro e do tango brasileiro, como Nazareth e Zequinha de Abreu. As peças eruditas vão do romântico Alberto Nepomuceno ao atualíssimo Edino Krieger, passando por Villa-Lobos e Guarnieri.

Em 2012, são comemoradas as três décadas que lidamos em sistema non-stop com Madonna: a garota católica perturbada com a contradição entre desejo e repressão; a eterna habitante dos clubes noturnos; a mulher que desafia o tempo e a condenação freudiana de que anatomia é destino; a revolucionária com “rodinhas”... O primeiro single do seu novo álbum, MDNA, Give me all your luvin, não deixava a menor pista do que viria a seguir. A canção, bobinha, com rimas adolescentes, passava a impressão de que o disco traria a cantora disputando espaço com suas concorrentes do mundo pop, muito mais jovens. Mas ainda bem que foi só um susto inicial. MDNA é um álbum esquizofrênico entre a agonia e o êxtase, como Madonna não realizava desde o falastrão Erotica (de 1992, um favorito dos seus fãs). Até mesmo nas faixas mais voltadas aos clubes noturnos, como I’m additcted

e Turn up the radio, há um tom sombrio, um gosto amargo, reflexo direto do seu tumultuado divórcio do cineasta inglês Guy Ritchie, em 2008, após um sem-fim de altos e baixos, largamente divulgado na imprensa. Com a produção dividida por nomes como William Orbit, Benny Benassi e Martin Solveig, Madonna preenche suas frustrações com ritmos pulsantes, como a industrial Gang bang, e I don’t give ..., em que canta “eu tentei ser uma garota legal, engoli a minha luz”. Ponto alto são as baladas, como Love spent e Masterpiece (ganhadora do Globo de Ouro deste ano, trilha sonora do seu filme W.E.), em que a cantora nos lembra que as obras-primas são importantes, justamente, porque dependem da observação atenta de ladrões noturnos. MDNA é Madonna sendo Madonna, como há muito tempo ela não ousava. E, há três décadas, nós sabemos o que isso significa. (SCHNEIDER CARPEGGIANI)

QUARTETO RADAMÉS GNATTALI As 4 estações cariocas

REGGAE/SKA

Ao lado do violonista Zé Paulo Becker, Radamés Gnattali apostou em um arrojado projeto de composições inéditas para quarteto de cordas e violão, encomendadas a Maurício Carrilho, Jayme Vignoli, Paulo Aragão e Sergio Assad. Porém, diferente de Vivaldi e Piazzolla, que tiveram como inspiração as estações do ano, os compositores convidados construíram retratos musicais de quatro estações de trens cariocas: Mangueira, Madureira, Leopoldina e Central do Brasil.

Independente

Independente

Independente

Madonna

imagens: divulgação

Divórcio na pista de dança

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a laursa azul

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Henrique Sposito nasceu no Recife, 30/10/70. Criado na Madalena. Alugavam casa em Olinda para passar o Carnaval, ele mais uns trinta ou quarenta na mesma casa. Rua Henrique Dias, Varadouro, entre os quais Juliano Dubeux e sua mulher Taciana. 1996, sábado de Carnaval, saindo Henrique e outros, 9h da manhã, para comprarem alguma coisa para o café da manhã, na Rua do Amparo, entre a Bodega de Véio e o Pau do Índio, uma janela que vende cachaça já chegando na curva dos Quatro Quantos, vinha descendo o Urso Cascudo do Amparo. Não devia ter quarenta pessoas. “Esse ano eu quero ouvir/triângulo, sanfona, zabumba no frevo” cantavam na

maior alegria. “Se você ficar de bobeira/deixar ela em casa e cair na bebedeira/o Urso quebra o seu galho/eita Urso do Amparo” que logo virou “eita Urso do caralho”. Acompanharam o Urso. Nos Quatro Cantos encontraram-se com a troça Trinca de Ás, troça grande, quase do tamanho da Ceroula hoje. O Urso foi engolido pela troça. Nesse Carnaval, Henrique se fantasiou de “o cão chupando manga”, todo pintado de vermelho, fantasia de que teve ideia ao passar por acaso na barraca de Julião das Máscaras e ver dois chifres,que logo adquiriu para compor a personagem. (O pedreiro Galego, tirador de coco, pai do pintor Sandro Maciel, me contou

essa. Estavam cantando um coco em casa do mesmo Julião: “Vamos cantar esse coco/batendo palma de mão/ vamos cantar esse coco/na casa de Julião”. Logo passaram a responder “na casa de ‘Boi Tungão’”, apelido que Julião detestava. Resultado: Julião acabou o coco, botou todo mundo para fora.) Isso, quinta-feira à noite, quando o pessoal da casa vinha trazendo colchões e outros objetos, malas, fantasias: pararam na frente da barraca porque vinha passando uma troça. “Vamos sair de demônio?” Como roupa, uma sunga velha do pai e o corpo nu pintado de vermelho (guache). Saíram de demônio domingo, dia da feijoada na casa, que eles próprios faziam.

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1 duas laursas Ornamentação para o Carnaval de 2012, a partir de desenho de Zé Cláudio, feita pelo escritório de Carlos Augusto Lira

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1997. “Vamos sair de urso”. Enredo: Henrique, o urso; caçador, Taciana, esposa de Juliano; e Juliano, para não ficar de fora, inventou uma raposa que, aproveitando-se do fato de o urso estar preso pela caçadora, atanazava-o, primeira quebra da ortodoxia laúrsica. A segunda foi que quando passaram numa loja, para comprar o pano da roupa da laursa, atrás do Mercado São José, junto de uma loja de umbanda, Henrique se agradou de um pano peludo azul, muito embora então, pelo menos no Carnaval de Pernambuco, só existissem três tipos de ursos: brancos, pretos e pardos (marrons). Aliás, foi aí que Juliano teve a ideia de sair de raposa, por também lhe aprazer, do mesmo tecido, um padrão amarelo.

Nesse Carnaval, Henrique teve a ideia de se fantasiar de “o cão chupando manga”, todo pintado de vermelho Quanto à caçadora, teve de se contentar com vestido comum e na mão uma preaca, aquela flechinha que estala usada pelos caboclinhos. Botaram o nome de “O Urso Azul de Setúbal e a Raposa Amarela da Borborema”, uma favela perto de Setúbal. Infelizmente, apesar do nome pomposo, naquele ano O Urso Azul

teve de sair sozinho. As roupas ficaram prontas, graças à costureira da mãe de Henrique. Acontece que Paulinho, irmão de Siba, cantor do Mestre Ambrósio, Siba esse que tinha um boi, “O Boi da Gurita Seca”, onde Paulinho saía de Catirina, a cara pintada de carvão, pediu a roupa da raposa emprestada para devolver na mesma noite. O Urso Azul ia sair na manhã seguinte. Mas bebeu tanto que só encontraram a roupa no outro Carnaval. Mesmo assim, Henrique no seu urso azul fez tanto sucesso quando se incorporou ao Urso Cascudo, as moças querendo tirar retrato junto dele, que no outro dia saiu no jornal o estandarte do Urso Cascudo e na frente muito fagueiro O Urso Azul. Em 1998 finalmente saiu o trio mas, quando quiseram se enturmar no Urso Cascudo, o puxador, numa Veraneio de propaganda, mandou pelo alto-falante: “Queria pedir, por favor, na frente do bloco, somente O Urso Cascudo. Os ursos de outras cores e outros animais, saírem depois do carro de som”. Henrique foi lá. Mostrou, por baixo da roupa azul, a camisa do Urso Cascudo. Resumindo, desde então o Urso Azul tem saído com ou sem o Cascudo, porque, alguns anos, ou o Cascudo não saiu ou o Azul não conseguiu encontrá-lo. E também sem a raposa nem a caçadora, desde que Taciana e Juliano se separaram. Às vezes as mulheres dizem: “Que urso bonito!” E Henrique: “Lógico, minha senhora. Marido pode ser feio; urso tem que ser bonito!”.

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Visuais

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INSTAGRAM Compartilhando o apego à imagem

Aplicativo gratuito para publicação de fotos, que é um dos mais bem-sucedidos apps da atualidade, conquista fotógrafos e leva usuários a educarem o próprio olhar TEXto Chico Ludermir

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1 alexandre urch

Fotógrafo paulistano ganhou prêmio da Leica com série feita com um iPhone

Em março deste ano, o fotógrafo

paulistano Alexandre Urch ganhou a categoria Ensaio do importante prêmio Leica – Fotografe Melhor, com Everyday people, um conjunto de fotos tiradas por ele no metrô de São Paulo. As imagens captam a espontaneidade de pessoas comuns, em uma “fotografia de rua” executada com maestria. Mas não é essa a qualidade que mais tem recebido atenção no seu projeto. Com as 10 imagens capturadas em um celular iPhone, Urch comprovou que a fotografia anda

mesmo trilhando um novo caminho: ampliado e simplificado por programas desenvolvidos para celulares. Paradoxalmente, ele ganhou, pelo seu trabalho feito com o Instagram, uma máquina Leica (modelo M9), sonho de qualquer fotógrafo mais purista ou resistente às novas tecnologias. Urch faz parte dos mais de 27 milhões de usuários dessa nova febre tecnológica chamada Instagram. Um aplicativo gratuito de compartilhamento de fotos para aparelhos móveis da Apple, criado pelo brasileiro Mike

Krieger e pelo americano Kevin Systrom, lançado em outubro de 2010, que permite aos usuários fotografarem e editarem suas fotos, com um variado número de efeitos, e as compartilharem instantaneamente na rede. Isso, tanto na timeline do próprio aplicativo quanto em outras redes sociais, como Facebook, Twitter e em sites de compartilhamento como o Flickr ou o Tumblr. O vencedor do concurso faz parte também de um grupo mais restrito, que enxerga o celular como novo instrumento fotográfico, uma ferramenta imprescindível para a atual captura de imagens, profissionais ou não. “Fotografar com telefone, hoje em dia, tornou-se uma coisa indispensável. Acho que esse ano eu cliquei mais com o iPhone do que com minha câmera ‘profissional’ ”, conta Alexandre. “Gosto muito de fotografia de rua, sem muita pose, e o celular permite fotografar sem que ninguém perceba. Você faz imagens espontâneas maravilhosas. É possível capturar até um segurança embaixo de uma placa de proibido fotografar”, brinca, exemplificando o maior ganho, na sua opinião. “As pessoas saem sem roupa, mas não sem o telefone.” O advogado Ricky Arruda também andava com seu celular/câmera para todos os lugares, fazendo cliques do cotidiano. Aderiu ao Instagram com a mesma naturalidade com que fez com a lomografia (febre nos anos 2000), buscando grupos para debater suas fotos com efeitos e distorções. Começou mais ou menos como um “tuiteiro da imagem”, como ele mesmo se definiu, mas, no final de 2011, recebeu de J. R Duran – fotógrafo conhecido por seu impecável trabalho com nus na revista Playboy – a alcunha de “Instagram man do ano”. Postava diariamente algumas “bobagens”, até que seu perfil na rede ganhou respaldo e valor inesperados. Foi convidado a escrever um artigo que recebeu destaque de capa da revista Photo Magazine, edição de outubro do ano passado, realizou um ensaio de fotos sensuais para ilustrar uma matéria da revista Alfa e, para fechar o ano, fotografou a Miss Bumbum Rosana Ferreira para a revista Sexy, utilizando apenas o iPhone. “Com isso tudo, creio que demonstrei que a foto com o telefone, desde que feita de forma correta e

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imagens: divulgação

2 balazS gardi Fotógrafo húngaro registrou em celular o ambiente de guerra no Afeganistão

Credenciado pela revista IstoÉ Gente para uma cobertura digital, Pires chegou a causar estranhamento nos seguranças acostumados às grandes máquinas fotográficas. “Cadê seu equipamento? A entrada de jornalistas de texto é do outro lado”, afirmaram. E, enquanto os outros fotógrafos trabalhavam com câmeras mais caras e pesadas, utilizou apenas três iPhones, levados no bolso, que o permitiram fotografar, tratar e postar em alta velocidade, atrativa para todo e qualquer veículo de comunicação.

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respeitando os limites do aparelho, pode ser, além de muito divertida, vendável”, defende Ricky. O aumento da resolução das fotos do iPhone já permite fazer impressões maiores, que alcançam alto valor no mercado. Ampliadas, fotos de celular têm sido vendidas para colecionadores e galerias por quantias que chegam a R$ 4 mil.

RECURSOS E EFEITOS

Com cerca de 30 imagens capturadas por celular comercializadas, o fotógrafo Toni Pires tem focado seu trabalho autoral exclusivamente no aparelho. Depois de cobrir por vários anos o São Paulo Fashion Week (SPFW), maior evento de moda do país, este ano, surpreendeu todos com um ensaio conceitual do evento. “Achava tudo muito fake, as modelos e as roupas não existiam, era tudo uma ficção”, conta, explicando a ideia geradora do ensaio. Foi com os aplicativos do celular que ele concretizou a “digressão” que tinha em mente. Já usava o iPhone desde sua primeira versão e, por

NAS REDAÇÕES

Ampliadas, fotos de celular têm sido vendidas para colecionadores e galerias por valores que chegam a R$ 4 mil conhecê-lo, idealizava os efeitos nele disponíveis, capazes de expressar em imagens as sensações de vazio e fuga. “Queria alguma coisa que sujasse”, conta ele, que experimentou muito antes de conceber o ensaio. “As pessoas se deslumbram com as infinitas possibilidades e esquecem que é essencial escolher uma linguagem, ao invés de querer usar todas. O iPhone é um segundo armário de equipamentos. Acho que o grande barato é você saber com que linguagem vai trabalhar.” Acabou usando apenas dois aplicativos: um de captura lenta, que continha o impulso do disparo contínuo, e um filtro. “Não queria me perder. Consegui, com uma câmera e um filtro, chegar ao resultado final. Fácil e rápido.”

Pensando no tempo, o fotojornalismo tem incorporado o celular no rol dos equipamentos indispensáveis a uma redação, e surpreendido com coberturas inovadoras. Neste ano, por exemplo, o jornal Folha de S.Paulo realizou a cobertura do Carnaval utilizando uma conta na rede do Instagram. Em Pernambuco, edições online dos jornais já utilizam a rede para compartilhar fotos, especialmente nas hard news. Thiago Soares, jornalista editor do caderno de turismo do jornal Folha de Pernambuco, vê como fundamental o uso da fotografia de celular no jornalismo atual. Mas, na sua leitura, os ganhos vão além da instantaneidade. “Já fiz várias matérias com Instagram porque acho que essa fotografia proporciona uma narrativa mais íntima. Pela estética, pode criar até mesmo uma nova linguagem na reportagem. É quase uma narrativa de blog inserida no texto jornalístico: um olhar próximo, menos institucional”, explica, citando como exemplo coberturas que fez no Chile e na Argentina. O jornalismo de guerra também ganhou cara nova. No Afeganistão, o fotógrafo húngaro Balazs Gardi, várias vezes premiado em seu país, fez belíssimos retratos de famílias afegãs. Nos últimos anos, Gardi tem visitado alguns pontos do planeta com

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3-7 são paulo fashion week

Após cobrir o evento por anos, Toni Pires lançou trabalho conceitual sobre os desfiles de moda

8 thiago soares Com página no Instagram, ele vê como fundamental o uso da fotografia de celular no jornalismo contemporâneo

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seu iPhone, que, ele mesmo conta, jamais teve um chip para funcionar como telefone. A leveza e discrição do equipamento o colocaram num contato íntimo com a realidade, que ele apresenta com força e visceralidade. Tal como Balazs Gardi, Damon Winter também usou, na Líbia, o popular aplicativo Hipstamatic, que confere um aspecto semelhante ao do Instagram às imagens. “A verdade é que, quando falamos de fotojornalistas com vasta experiência na cobertura de conflitos como esses, pouco importa a câmera que utilizam. É a sua visão, timing, sensibilidade e saber acumulado que determinam o valor da imagem final”, reflete Toni Pires, em seu blog (tonipires.com.br/blog).

CONTAR HISTÓRIA

As discussões conceituais parecem já ter ultrapassado o debate da banalização da fotografia X democratização dela. Adentram, no entanto, em temas como formação de um novo público e até mesmo num possível caráter pedagógico da rede. Nas mesas dos grandes encontros de fotografia, como

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imagens: divulgação

9 priscila buhr

Profissional utiliza a fotografia para além do jornalismo, como instrumento de memória pessoal

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hélia scheppa

Fotógrafa vem realizando o ensaio É cedo, sobre a avó

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o Paraty em Foco (RJ) e o Foto em Pauta (Tiradentes-MG), e em sites e blogs, muita gente anda pensando os rumos da fotografia digital a partir da chegada do aplicativo. No blog do professor e fotógrafo Clício Barroso, por exemplo, encontramos o post “Instagram, vício ou virtude?”, no qual ele afirma nunca ter imaginado ser tão feliz ao abandonar equipamentos pesados, princípios rígidos, regras engessadas e papos técnicos intermináveis. A maior vantagem, segundo ele, está no imediatismo do compartilhamento da imagem. A partir do diálogo, as pessoas aprendem a ser seletivas. É esse também o seu maior interesse pessoal: a existência de uma comunidade que une todo mundo que gosta de fotografia.

“É como a praia do carioca. Acho que populariza e instrui. As pessoas aprendem a ler imagem, pois podem ver, comentar e ser comentadas o tempo todo”, acredita. “Eu tenho usado o Instagram, mais do que qualquer outra coisa, para contar uma história, imagetizar a minha vida cotidiana”, conta ele, que assume uma presença compulsiva na rede. Para além do uso jornalístico, as fotógrafas Priscila Buhr e Hélia Scheppa, ambas do Jornal do Commercio, viram no celular e no Instagram a possibilidade de conexão com a fotografia de memória. Buhr desenvolve o trabalho intitulado Antes, que consiste na postagem diária de uma foto que faz antes de ir ao trabalho. “Fotografo a minha casa e meu caminho

de várias formas. Cada vez mais tenho que me reinventar. É um ótimo exercício de olhar com mais calma”, explica. O trabalho, iniciado há seis meses, já conta com 24 fotos selecionadas. A praticidade de não ter que pegar a câmera e mudar a lente foi, segundo ela, um fator crucial para o nascimento da série. Mesmo trabalhando com equipamentos profissionais há alguns anos, Buhr se sentia tímida e exposta em portar câmeras fora do trabalho, e não relaxava para fotografar. “Foi uma libertação fazer um clique sem ninguém saber que sou fotógrafa. Tenho um aparelho leve e discreto que congrega aplicativos de câmeras digitais, analógicas e lomo. Me sinto amadora, no sentido de amar fotografia”, diz, mostrando os 20 aplicativos que carrega no iPhone. Scheppa, repórter fotográfica há 15 anos, voltou a se considerar “fotógrafa”, desde que começou a traduzir o amor que sente pela vó Naná, de 95 anos, no ensaio É cedo, que ela compartilha na rede do Instagram. “Sempre ia visitá-la de bicicleta e, por isso, nunca levava a máquina; mas, com o iPhone, veio a possibilidade de fotografá-la.” O nome do ensaio vem do diálogo com a avó, na hora da despedida. “Toda vez que eu vou embora da casa dela, diz: ‘Vai não, fia, é cedo’. É uma figura que eu sei que não vai ficar muito tempo mais comigo. Resgatei esse lado da fotografia de guardar uns momentos das pessoas que a gente ama.” Se, por um lado, fotógrafos vêm revendo postulados, por outro, algumas pessoas passam a se identificar com a fotografia. Foi o caso do jornalista Guilherme Gatis, que, a partir do uso recreativo do Instagram, ficou motivado ao ponto de comprar uma câmera reflex. “Comecei a ver mais fotografia e treinar meu olhar no aplicativo. O respaldo dado pelos comentários de fotógrafos que admiro me fez investir numa câmera profissional”, conta. Apesar de refutar o status de “fotógrafo”, o caso de Gatis aponta para o quanto divisões desse tipo são cada vez menos demarcadas na rede, o que não tem parecido ser um problema para os profissionais. “Sou a favor de que todo mundo fotografe. Se todos fotografassem, o mundo seria melhor”, afirma Priscila Buhr.

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REPRODUÇÃO

Cardápio

QUEIJOS Marcados com selo de origem controlada

Assim como produtos franceses, que têm no local de fabricação um distintivo de qualidade, cinco brasileiros caminham para o reconhecimento do seu terroir TEXTO Bruno Albertim

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DIVULGAÇÃO/IPHAN

Cardápio 1

Dono de uma fortuna garantida pela presença de sua grife gastronômica em 11 países do mundo, criador da Nouvelle Cuisine – e da noção de elegância e arte associada ao paladar no Ocidente, desde meados da segunda metade do século 20 –, o über chef Alain Ducasse sabe bem da estreita relação de um queijo com seu lugar de origem. “De tudo o que preparamos pela mão humana, como o pão e as massas, de tudo aquilo que não comemos como a natureza oferece, os queijos são, talvez, aqueles que evocam mais fielmente as paisagens, os declives pedregosos, os pastos de verão nas montanhas, ou os prados por onde passam as vacas, as cabras e as ovelhas, fornecendo leite do qual são fabricados os queijos. Por trás de cada queijo, há certamente um prado de um verde particular, sob um céu azul ou nublado, uma colina, um pequeno vale, um aprisco perdido, todo um imaginário precioso e insubstituível”, afirma, no seu Ducasse de A a Z, um dicionário de gastronomia por sua ótica privilegiada. Feitos de tempo e de bactérias lácteas, queijos demoram a se consolidar. Passados pouco mais de cinco séculos desde a sua fundação oficial, o Brasil já conta com cinco entre os que podem ser chamados queijos de terroir: ou seja, produtos únicos,

Acredita-se que o primeiro queijo produzido em terras brasileiras tenha sido feito em Salvador, por padres jesuítas possíveis apenas nos ambientes em que são criados, através da precisa equação entre natureza e cultura. Vocábulo que os compatriotas de Ducasse exportaram para o mundo, terroir, em francês, significa torrão natal. “É uma licença poética, mas prefiro usar apenas queijo terroir, em vez de queijo de terroir”, diz o pesquisador, jornalista e produtor de leite João Castanho Dias, autor de Uma longa e deliciosa viagem (Ed. Barleus), um dos poucos livros dedicados à história do queijo no Brasil. Dos cinco raros, e até desconhecidos, queijos de terroir brasileiros, apenas um tem como endereço o Nordeste. Mais precisamente, Pernambuco. O cotidiano e prosaico queijo de coalho. Com uma história queijeira mais recente que a da Europa, o Brasil consolidou a sua produção nacional com o ciclo do ouro de Minas Gerais. Num livro de 1711, Cultura de opulência no Brasil, um padre chamado Antonil relata

que, àquela época, nas Minas Gerais, havia se consolidado o comércio de três queijos: o caríssimo flamengo, trazido da Holanda; o português, de origem alentejana; e o mineiro, produzido sem maiores subdivisões. Já que o próprio Brasil teve no Nordeste a sua maternidade, com o massapê para cana-de-açúcar viabilizando o grande projeto colonizador português na outra margem do Atlântico, os queijos nacionais também tiveram, naturalmente, estreia na região. “Somente após a chegada a São Vicente, em 1532, da expedição colonizadora de Martim Afonso de Sousa, o primeiro donatário do Brasil, trazendo nos navios vacas e cabras leiteiras, é que se pôde produzir queijo no país (...) Não há notícia concreta da fabricação de queijo em São Vicente, cabendo presumir que o local mais provável disso tenha sido a cidade de São Salvador, na Bahia de Todos os Santos, onde os jesuítas instalaram um colégio e, ao redor de suas cercanias, instalaram a primeira granja leiteira do Brasil, com 12 vacas africanas procedentes do arquipélago de Cabo Verde”, afirma João Castanho. Ele diz que a informação está numa carta do Padre Manuel da Nóbrega ao padre provincial de Portugal, com data de 1552. “Logicamente, tratavam-se de queijos toscos, em nada parecidos com os que se fazem hoje”, diz o escritor. Produzidos pelos mesmos jesuítas “que tiveram um lote de queijo desapropriado pelo Marquês de Pombal, no momento em que foram expulsos do Brasil”, diz ele. O período holandês foi pródigo para a disseminação do produto pelo paladar pernambucano. Em seus tratados descritivos da vida no Recife e em Olinda durante o reinado de Nassau (1637 a 1644), Gaspar Barleus cita a presença do alimento nos hábitos locais. Em O tempo dos flamengos, o historiador pernambucano José Gonçalves de Melo afirma que os queijos consumidos durante a era nassoviana eram de origem holandesa. Maurício de Nassau teria chegado ao requinte de importar gatos da Holanda para afugentar ratos de armazéns de comida. Ele mesmo importou vários queijos holandeses para alimentar suas tropas. Mas, antes dele, informa o

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dIVULGAÇÃO

BIRA NUNES/JC IMAGEM

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1 MINaS gerais Três dos cinco queijos de terroir brasileiro são produtos do estado AGrEste 2 Parte do sabor do queijo coalho deriva da alimentação do gado na região PRODUÇÃO 3 Apenas o queijo coalho produzido em Pernambuco tem uniformidade para demarcação de origem 2

historiador João Castanho, o queijo era importado para substituir, nas casas abastadas, a carne durante a Quaresma.

COALHAR O LEITE

O advento dos queijos no mundo começa, provavelmente, na antiga Mesopotâmia, a belicosa região onde hoje está o Iraque. Talvez essa origem tenha acontecido por acidente, quando, transportado dentro de bolsas feitas com as paredes do estômago de animais, o leite precipitou-se em queijo. Descobriu-se, então, que as enzimas presentes nos tecidos de determinados mamíferos tinham o poder de coalhar o leite. E foi pela técnica do queijo de “coalho” que o produto teve início no Brasil. “O quinteto dos queijos de terroir se fecha com o mais antigo deles, o coalho”, sintetiza o historiador. No agreste pernambucano, cerca de 1 milhão de litros de leite é produzido

todos os dias. Metade é convertida em queijo. Há cerca de quatro anos, uma comissão de técnicos e produtores trabalha para ver reconhecido o queijo de coalho dessa área como um alimento de origem e identidade demarcada. “Pernambuco é o maior produtor do Nordeste, embora haja coalhos feitos em outros estados”, diz João Castanho. Até setembro, o dossiê para análise do selo de procedência do produto deverá ser enviado ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). No momento, técnicos do Governo de Pernambuco trabalham na delimitação do que seria esse terroir – a microrregião do Agreste Meridional que começaria em Cachoeirinha e iria até Arcoverde, na porta do Sertão. “Nem todos os municípios entram por completo. Há só um trecho de Pesqueira, por exemplo”, explica Givaldo Carvalho, analista e gestor do Programa Leite e Derivados, do

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) de Pernambuco. É a última das tarefas. Já estão concluídas a certificação técnica do leite, do rebanho, da alimentação do gado e o estatuto da Associação de Certificação do Queijo de Coalho de Pernambuco. Embora o coalho ocorra em vários municípios do Nordeste, apenas aquele que o produziu, no agreste de Pernambuco, possui uniformidade de características e uma tradição reconhecida para justificar a demarcação de sua origem.

CRU E O COZIDO

Só poderá ser considerado queijo de coalho – artesanal – o que for produzido com leite cru. É o chamado queijo com leite tipo B. O coalho de leite pasteurizado, ou tipo A, é liberado. “Mas não tem o mesmo sabor lácteo”, diferencia Moshe Dayan Fernandes, gerente no Agreste Meridional de Pernambuco do Sebrae. Apenas o não cozido, quando da certificação, poderá receber o selo com a denominação de origem. Leite cru é uma das questões prioritárias no mundo dos queijos. Leite pasteurizado mata bactérias ruins, capazes de provocar infecções – mas também as boas, fundamentais para a transmissão dos condicionantes de clima, geografia e cultura ao produto final. A alimentação do gado, determinada pela natureza, será essencial para a identidade do queijo.”Parte do sabor do leite usado no queijo vem do fato

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CHICO PORTO/jc imagem

Sérgio Lobo

Cardápio

4 tipo b O autêntico coalho deve ser produzido com leite cru sobremesa 5 Queijo e goiabada é iguaria típica pernambucana

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de a palma participar da composição alimentar do gado no Agreste”, rubrica Moshe. “O sabor do nosso queijo é mais fresco, mais para coalhada”, ressalta. Os queijos mineiros e do Sul, feitos com outra técnica, são mais amanteigados. Na Normandia francesa, por exemplo, só tem direito a exibir o selo de autêntico camembert o queijo feito com leite cru. A maior parte dos queijos europeus obedece a um rigoroso conjunto de leis e regras normativas. Em 2007, atendendo às exigências dos produtores tradicionais pernambucanos, o governador Eduardo Campos sancionou uma lei que especifica o queijo de coalho. “É considerado queijo de coalho artesanal o queijo produzido em Pernambuco, a partir do leite fresco e cru de bovinos e bubalinos, retirado e beneficiado na propriedade de origem, que apresente consistência firme, cor e sabor próprios, massa uniforme, isenta de

corantes e conservantes, com ou sem oleaduras mecânicas”, diz o artigo primeiro da lei – o que privilegia uma facção de produtores em detrimento de outras. “É preciso observar que o processo de demarcação de origem de alguns produtos sempre estará favorecendo atores de uma cadeia; o discurso cultural pode encobrir interesses políticos e econômicos”, comentou o sociólogo Massimo Montanari. Autor de Comida e cultura e História da alimentação, o italiano é uma das maiores autoridades em Sociologia da Alimentação. Mais de 2/3 da produção local de queijos é clandestina. “A apreensão do produto nas estradas de Pernambuco é muito grande. Há produtores ameaçados de morrer de fome. Muitos são queijos ilegais, de fato, e com problemas como falta de refrigeração, mas muitos querem se legalizar e não conseguem. Esbarram

na burocracia”, diz o técnico Givaldo Carvalho. “Sinais visuais”, explica Moshe Dayan, “podem indicar se um queijo está ou não contaminado”. Queijos molengas liberando muito soro ou com muitos buracos, oleaduras mais ou menos redondas e constantes, provavelmente, são férteis colônias de bactérias. Para evitar a contaminação do leite, a ordenha da vaca é um dos momentos mais importantes. “Às vezes, faltam medidas simples, como amarrar o rabo da vaca para evitar que ela lance dejetos sobre o leite. Ou higienizar corretamente as tetas”, diz. Com mais de duas horas após a coleta, o leite começa a ficar ácido. O que pode trazer problemas e a necessidade de acréscimo extra de coalho, resultando num queijo de sabor levemente amargo. Para corrigir o sabor, produtores grandes ou pequenos costumam recorrer à adição de salitre, elemento de potencial risco cancerígeno.

PROCESSO

Uma grande parte dos queijos de coalho pernambucanos é ilegal, não apenas por desrespeitar critérios sanitários ou não possuir o registro de funcionamento, mas por preservar uma tradição praticamente extinta: a de coalhar o leite usando pedaços do

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contribuiu para o despovoamento de gado vacum na Zona da Mata, ao estabelecer que ele deveria permanecer a 60 km da orla marítima”, sintetiza o pesquisador João Castanho Dias. Na grande indústria, toda a conversão do leite em queijo é feita em máquinas de condução e caldeiras gigantes. Seja como for, o processo é basicamente o mesmo: depois da coagulação, o corte da coalhada, a dessoragem, a enformagem, a prensa, a salga e a maturação seca.

OUTRAS TERRAS

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bucho de animais. Exatamente como se fazia desde o Crescente Fértil até mais ou menos os impedimentos sanitaristas que ganhariam corpo a partir de meados do século 20. Não é difícil, na fronteira do Agreste com o Sertão, encontrar um produtor tradicionalista. “Faço queijo quase do mesmo jeito que meu avô e meu pai faziam”, diz um produtor de Alagoinha, uma cidade a cerca de uma hora de Garanhuns e a 230 km do Recife. Ele aponta para a gamela e prensa de madeira já antiga, centenárias, fora de uso. Para transformar o leite em queijo, continua usando pedaços secos de bucho de boi. “Posso mostrar tudo, desde que não mostrem a minha cara”, diz ele, 55 anos, três filhos, consumidor do próprio produto e vendedor do queijo excedente nas feiras do Agreste. O quarto em que os armazena está repleto de paredes do intestino do boi. Compradas em qualquer açougue interiorano, ficam três ou quatro dias secando ao sal antes de estagiarem por uma semana no soro lácteo mantido em baldes plásticos. Unidos, leite e vísceras transformam-se no queijo. Expulsas pela fértil cana-deaçúcar da Zona da Mata, as boiadas deslocaram-se da costa, dando início à formação das fazendas de criação no interior pernambucano. “A lei

Os demais queijos de terroir do Brasil não utilizam o coalho. No processo, o leite é coagulado com o pingo, jargão usado para designar as enzimas obtidas do próprio soro lácteo. “É o fermento lácteo, tirado do próprio queijo, que dá consistência, resultando num queijo mais uniforme, mais duro, sem presença de oleadura, mais amarelo,

Os outros quatro queijos brasileiros de terroir usam uma técnica diferente, que dá origem a queijos mais amanteigados mais amanteigado. O nosso tem o sabor mais natural de coalhada”, compara o técnico Givaldo Carvalho. Dos cinco queijos brasileiros de terroir, três estão em Minas Gerais. O da Serra do Salitre é também feito com leite e pingo, como todos os mineiros. Sua produção tem registro do final do século 19, quando era usado para consumo familiar e troca por sal e toicinho. Hoje, são cerca de 160 produtores informais em atuação. Feito com leite de vacas girolandas, resulta num queijo adocicado, suave e de baixa acidez. “São características determinadas pelas bactérias da serra”, diz o professor Fernando Magalhães, do Instituto Cândido Tostes, um dos mais antigos no ensino da formação queijeira no país. Tombado como patrimônio nacional imaterial e estadual mineiro, o queijo do Serro tem seu nome derivado do principal município nos arredores

do Pico do Itambé, no Vale do Jequitinhonha. Seria derivado direto dos queijos portugueses da Serra da Estrela, do Alentejo e da Ilha de São Jorge. Produzido por cerca de 950 famílias, é proveniente de um gado que se alimenta de capim-gordura, responsável direto pelo seu sabor. Segundo as regras impostas pela Associação dos Produtores Artesanais do Queijo do Serro, só se pode usar leite produzido na própria fazenda. O da Serra da Canastra, também de Minas Gerais, é originário dos municípios montanhosos de Medeiros, São Roque de Minas, Bambuí, Piumhi, Delfinópolis, Tapiraí e Vargem Bonita, com 1,8 mil queijeiros registrados. Além do canastra normal, de cerca de 1,5kg, há o canastra real, com peso entre cinco e seis quilos. De leite de vaca alimentada com pasto local, passa por pelo menos 40 dias de cura. A precipitação do leite se dá pelo pingo. O Rio Grande do Sul comparece com o quinto desses queijos: criado por imigrantes europeus da virada do século 19 para o 20, no nordeste gaúcho, é maturado por até 40 dias com leite de vacas comuns e mestiças, que se alimentam de grama local e trevo, além de ração. O queijo é formatado em chinchas (fôrmas de cerca de 1,5 kg cada). Todos de leite cru, eram proibidos de circular além de suas regiões de origem, até o fim de 2011. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento atendeu a uma solicitação encampada pelos produtores artesanais. Publicou uma instrução normativa que permite a maturação de queijos frescos por período inferior a 60 dias. Na prática, isso liberou os queijos frescos ou semifrescos de leite cru para circular pelo país. Antes, apenas os maturados podiam, porque a maturação lhes neutraliza a ação das bactérias. “O queijo de coalho artesanal vai, finalmente, poder ser exportado”, comemorou Moshe Dayan. Assim, até o sr. Ducasse poderá provar um queijo de terroir brasileiro. Não só ele, mas os brasileiros mais acostumados aos elementos plastificados da grande indústria ou mesmo a clássicos internacionais do que aos queijos pátrios, antes impedidos de circular para além de seus lugares de origem.

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Victor jucá/divulgação

COLETIVOS Inquietação criativa

Grupos pernambucanos ganham respaldo em eventos como o Festival de Teatro de Curitiba TEXTO Olívia Mindêlo

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Lucas passou os primeiros meses da

sua vida sem ter um nome. Enquanto sua família não resolvia o impasse, todo mundo o chamava de “menino”. Era menino pra lá, menino pra cá... Até que, um dia, ele ficou doente e a mãe achou que era castigo por falta de batismo. Suplicando a melhora do filho, ela abriu a Bíblia, acordando com Deus que o primeiro nome que aparecesse seria o de seu filho. E, assim, Lucas nasceu de novo. Já com Ceronha, a história foi diferente. Seu nome nada habitual surgiu de uma ideia do pai, inspirada num programa de humor, que satirizava os coronéis da roça. No enredo, um coronel tinha uma mulher, Antônia, que resolveu batizar sua filha de Corônia. O pai disse que, se juntasse o apelido dele, Cenhão, com o nome da mãe, a filha sairia Cenhônia. E, se pegasse emprestado o “ro” da patente do avô coronel, ficaria Cerônia. A brincadeira poderia ter parado aí, se o obstetra não tivesse convencido a família de que a menina seria a única Cerônia no mundo. No cartório, a escrivã registrou Ceronha, com “nh”. E assim ficou. Tanto Lucas Torres quanto Ceronha Pontes são personagens da vida real. Mais do que isso: são atores cuja própria história de vida (e de nomes) se confunde com a ficção que entra em cena nos espetáculos Aquilo que meu olhar guardou para você (2012) e Essa febre que não passa (2011), nos quais os dois, respectivamente, atuam. Por percursos cênicos bem diferentes, são essas peças que levam, neste mês, os nomes do Grupo Magiluth e do Coletivo Angu de Teatro, pela primeira vez, à mostra oficial do Festival de Teatro de Curitiba. Dado o peso do evento para as artes cênicas do país, a escolha da curadoria por dois grupos do Recife, ao mesmo tempo, numa mostra seletiva e disputada pelos “formadores de opinião”, parece querer acender uma pergunta: será que o teatro recifense vive um novo momento, com esses grupos? Tudo indica que os ventos sopram uma fase de reconhecimento e circulação deles fora do estado, uma fase sintomática de inquietação criativa. Além dos dois mencionados, também viaja, este mês, a Trupe Ensaia Aqui, Ensaia Acolá, da mesma

geração teatral do Magiluth e do Angu, nascida com os anos 2000. A trupe não vai ao Festival de Curitiba, mas foi selecionada por curadores de todo o país para circular por cerca de 40 cidades brasileiras, com a “tragicomédia” O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, através do Palco Giratório, projeto nacionalmente já consolidado do Sesc. Com tiradas escrachadas e bom apelo de público, a peça já conquistou plateias do Recife, do interior pernambucano e de outros estados. Mas não é de hoje que a Trupe, o Angu e o Magiluth circulam pelos palcos brasileiros. Festivais como o de Guaramiranga, no Ceará; o Porto Alegre em Cena, no Rio Grande do Sul; o Cena Contemporânea, de Brasília; e o extinto Rio Cena Contemporânea, no Rio de Janeiro, foram alguns dos locais importantes nos quais eles já encenaram seus trabalhos. Dessa vez, no entanto, os holofotes

O que aproxima grupos recentes são as experimentações, que despertam o interesse de formadores de opinião são ainda mais fortes, principalmente no caso do Festival de Curitiba, um terreno fértil para lançar os grupos em novos voos ou, ao menos, tirá-los do anonimato no âmbito nacional.

INFLUÊNCIAS

“No ano passado, o grupo Clowns de Shakespeare (de Natal, RN) abriu a mostra oficial do Festival de Curitiba com a peça Sua incelença, Ricardo III. Depois, acabou se apresentando no Chile (no Santiago a Mil, bem importante na América Latina). Curitiba atrai um público grande e jornalistas e críticos fundamentais na formação da opinião de todo o país. É prestigioso estar na mostra oficial”, ressalta Celso Curi, um dos curadores da edição de 2012, ao lado de Thania Brandão e Lúcia Camargo. Para Celso, a ida do Magiluth e do Angu à principal seleção do festival tem a ver com uma atenção do evento à produção

latino-americana. “Acredito muito no trabalho deles. O público de Curitiba vai se surpreender”, aposta. Além da mostra oficial, composta este ano por 29 espetáculos do Brasil e de outros países, a grade da 21ª edição é formada pelos espetáculos do Fringe, uma seleção paralela ampla (com 365 trabalhos, em 2012), na qual geralmente não se ganha cachê e, às vezes, nem passagem e hospedagem para se apresentar. O Coletivo Angu, por exemplo, já foi por conta própria ao Fringe, numa caravana com 17 pessoas. Esteve em 2007, com as peças Angu de sangue e Ópera. Segundo contam, a ida valeu a pena para a autoestima e para a divulgação do grupo. “Todos os festivais são importantes, mas Curitiba é vitrine”, resume André Brasileiro, um dos fundadores do Angu e diretor, com Marcondes Lima, do drama feminino Essa febre que não passa, com apresentação marcada para os dias 6 e 7 de abril, no evento. O Magiluth, que nunca foi ao festival curitibano, tinha sido chamado inicialmente para o Fringe. Antes de os curadores inseri-lo na mostra oficial, a Companhia Brasileira de Teatro, que é de Curitiba e organiza uma das mostras paralelas, convidou o grupo para apresentar Aquilo que meu olhar guardou para você, depois de ver algumas cenas do trabalho no Rumos Itaú Cultural Teatro, em agosto do ano passado. Na ocasião, em São Paulo, os selecionados pelo edital tinham que exibir o resultado de uma bolsa de pesquisa recebida durante seis meses, a partir de um compartilhamento entre eles – os grupos de teatro contemplados pelo edital. A Cia. Brasileira, o Magiluth, o Angu e outros nomes estavam na seleção. O resultado consistia em mostrar culminâncias do percurso investigativo ou discutir sobre os estudos realizados. “O edital do Rumos não é para montagem e, sim, para dar condições de os grupos fazerem o que já estão fazendo; condições para o estudo. O Magiluth chamou a atenção pela sua maneira própria de criar, tinha leveza e força no jeito de eles fazerem teatro”, lembra Sônia Sobral, gerente de Artes Cênicas do Itaú Cultural. Sobre a participação pernambucana no edital,

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priscilla buhr/divulgação

Isabela Maranhão/divulgação

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ela diz que só assistiu ao Angu e ao Magiluth duas vezes. “Tenho muita vontade de acompanhá-los e ver mais, porque eles têm potencial para construir linguagem. Definitivamente, não estão fazendo ‘mais do mesmo’ que já vem sendo feito no Brasil”, afirma. A Cia. Brasileira e o Grupo Espanca (MG), aclamados na cena contemporânea nacional, foram alguns dos que se surpreenderam com o trabalho do Magiluth no Rumos. Meses depois, o mesmo aconteceria com Celso Curi, após pisar no Recife a convite do Janeiro de Grandes Espetáculos de 2012, festival organizado pela Apacepe – Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco. “Eu já tinha ouvido falar no Angu. Desde o ano passado, eles tinham mandado DVD e tínhamos fechado a sua ida para a mostra oficial. Quando fui ao Recife, aproveitei para assistir, ao vivo, à Essa febre que não passa e só confirmei

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a escolha que fizemos. É um trabalho interessante, contundente, e as atrizes são fenomenais. Agora, o Magiluth foi uma surpresa absoluta. Fui desavisado e, quando voltei do Recife, vi que algo tinha me atingido. É o tipo de teatro que me interessa. Apesar de ser um velhinho de 61 anos, gosto da experimentação”, conta o curador do Festival de Curitiba. Foi assim que o espetáculo Aquilo que meu olhar guardou para você passou a compor a mostra oficial, ficando na seleção da Companhia Brasileira e no Fringe, O canto de Gregório e Torto, outros espetáculos do Magiluth. Depois de se apresentar em Curitiba, o coletivo segue para São Paulo. Este ano, o Fringe também vai receber mais um trabalho do Recife: O varal de casa, do Coletivo Âmbar de Teatro. O elenco do Magiluth também se surpreendeu com o convite para a mostra oficial do festival. Achava que seria improvável, pelo próprio perfil do

evento. “É um festival mais comercial, e que já foi criticado por isso. Talvez tenha sido o motivo de estar mudando, abrindo espaço para uma ‘cota’ de novas apostas, digamos assim. Toda curadoria é estratégica, a gente já aprendeu isso”, analisa Pedro Vilela, um dos cinco integrantes do Magiluth. Pedro Wagner, outro membro do coletivo, acha que eles ainda são vistos como “exóticos” pela cena teatral do Sul e do Sudeste. Por Celso Curi, não. Ele diz que “teatro é teatro”, não tem isso de “sotaque”. Lucas Torres, do Magiluth, acredita que a ida a Curitiba tem a ver com o trabalho focado no coletivo, na continuidade, na pesquisa, na construção de um repertório, na participação em festivais, na troca com grupos de fora e na busca por outra linguagem, outras possibilidades. “Nós não trabalhamos pensando nisso. Quando chegamos ao Itaú Cultural, estávamos onde deveríamos estar”, diz

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Cia de Foto/divulgação

Página anterior 1 Magiluth Apresentação de Aquilo que o meu olhar guardou para você em festival recifense deu impulso à ida do grupo a Curitiba Nestas páginas 2 amor de Clotilde Espetáculo daTrupe Ensaia Aqui, Ensaia Acolá circulará por 40 cidades brasileiras

3 angu Grupo leva para o Festival de Teatro de Curitiba a peça Essa febre que não passa 4 Sônia Sobral Gerente de Artes Cênicas do Itaú Cultural destaca a atuação de grupos que evitam o “mais do mesmo”

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Nos anos 2000, houve um boom na cena local. O século 21 marca a retomada dos grupos teatrais pernambucanos

Pedro Vilela, lembrando que, mesmo sem ganhar um edital – sequer foram contemplados num edital local, como o Funcultura –, o grupo nunca parou. O ator Ivo Barreto, do Angu, vê a ida como consequência: “De alguma forma, já somos uma referência. Há outros grupos se espelhando na gente”. André Brasileiro reforça, ainda, o papel do Festival Recife do Teatro Nacional, que em 2012 completa 15 anos, e do Janeiro de Grandes Espetáculos, como eventos que ajudaram os grupos a circular pelo país. O ator Leidson Ferraz, da organização do Janeiro, credita a circulação dos grupos mais especificamente à estratégia da Apacepe em trazer, a partir de 2007, curadores de fora de Pernambuco para assistirem aos espetáculos do festival. Hoje, a vinda desses profissionais, determinantes na legitimação dos artistas, representa 3% do orçamento total do evento.

“Foi bom, para dar visibilidade aos grupos e ajudá-los a circular, e para o próprio Janeiro de Grandes Espetáculos, que cresceu, tornando-se um festival internacional”, avalia.

CICLOS E FASES

Além do Magiluth e do Angu, outros nomes pernambucanos já se apresentaram na mostra oficial do Festival de Curitiba, como a Companhia Teatro de Seraphim, em 2002, com o espetáculo Churchi blues, e a peça Três viúvas de Arthur, resultado do projeto O aprendiz encena, do Centro Apolo-Hermilo, em 2007. Seria mesmo, então, o sintoma de um novo momento? Para a maioria dos que fazem a cena contemporânea de teatro no Recife não há exatamente uma nova fase, mas um caminho que começa a apontar diferentes possibilidades. “Não diria que é um momento diferente. Grupos sempre apareceram em Pernambuco. O difícil é continuar.

Acontece que, a partir de 2000, houve um boom. O século 21 marca a retomada de grupos em Pernambuco”, diz Leidson, que assina a organização dos dois volumes de Memórias da cena pernambucana, cujas páginas fazem uma compilação da produção teatral no estado, dos anos 1990 para cá. Para André Brasileiro, o teatro também é feito de ciclos, de safras, e é importante que haja continuidade dos grupos para fortalecer o palco no Recife e em todo o Nordeste. Para Giordano Castro, Pedro Vilela e Lucas Torres, do Magiluth, é preciso que haja, ainda, uma política voltada para o teatro em Pernambuco. Articulada e capaz de apoiar a cadeia produtiva, pois, como diz Pedro, “o teatro não é uma arte autossustentável”, e estar em festivais ajuda, mas não é tudo. Jorge de Paula, da Trupe Ensaia Aqui, Ensaia Acolá, acredita que o quadro vem se modificando, a despeito das dificuldades: “Vejo coletivos, grupos e artistas preocupados em discutir as necessidades da contemporaneidade, em investigar uma dramaturgia, em dialogar com o todo”. Que as viagens tragam, então, mais possibilidades de crescimento e amadurecimento para a cena local.

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imagens: reprodução

Claquete 1

TARKOVSKY Em busca da pureza do olhar

O russo, que neste mês completaria 80 anos, entrou para a história do cinema com uma narrativa que deixava o público livre para tecer suas interpretações TEXto Josias Teófilo

O russo Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e Suécia, na década de 1980, quando já exilado. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são

também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes

e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo. Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril de 1932. O nome da família surgiu há, aproximadamente, sete séculos e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser mais antiga do que a genealógica. Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador.

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1 andrei Rublev

Filme foi censurado por Leonid Brejnev, sob alegação de passar uma imagem negativa da Rússia

2 tarkovsky

Cineasta deixa legado de apenas sete filmes. Ele também desenvolveu obra ensaística

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O resultado foi um filme de 3h20, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev. Ao fazer um épico sobre o pintor de representações medievais, que incorpora uma tradição pictórica vinda desde Bizâncio, Tarkovsky se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã. O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxistaleninista. Rublev, contudo, era um símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto. Depois de pronto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Andrei Rublev (1966) não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes, como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo. O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome

Primeiro longametragem do cineasta russo, A infância de Ivan (1962), foi logo premiado no Festival de Veneza e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou às autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que isso, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.

ÍDOLO E ÍCONE

No livro O ícone – uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar a si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com

uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial – a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial – como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte. Ele se mostrou profundamente decepcionado com o que viu, nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, Trier etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Recusava-se a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes, o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém-falecido Erland Josepson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse entender livremente o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem. Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fato que transcende o tempo e o espaço.

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divulgação

Claquete 1

CONFLITO O que os cineastas pensam das Malvinas Iniciada há 30 anos, a disputa entre a Argentina e a Inglaterra pelo arquipélago faz parte da filmografia do país latino TEXto Lucas Colombo

Em 2 de abril de 1982, argentinos invadiram de surpresa as Ilhas Malvinas, situadas a 500km de sua costa, visando retomar o território perdido no século 19 para os ingleses – os primeiros a desembarcar lá, em 1690. Os militares, no poder desde o golpe de 1976, consideraram, ingenuamente, que a Inglaterra, diante da invasão, aceitaria ceder suas longínquas Falklands, pouco habitadas e de economia desimportante, por via diplomática. Mas não: do outro lado, estava a “Dama

de Ferro”, Margaret Thatcher, que, de pronto, organizou a reação. Em maio, a forçatarefa inglesa chegou ao Atlântico Sul e, em junho, após 25 dias de ofensiva por terra e 255 baixas, recuperou o domínio sobre as ilhas. Os adjetivos que hoje vêm colados a qualquer menção à Guerra das Malvinas – inútil, bravateira, insensata – confirmam-se, quando se sabe do seu contexto. Concluiu-se que o generalpresidente Leopoldo Galtieri ordenou a invasão, atiçando a potência militar britânica, com o intuito de desviar a

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tabu” no país, que, com seu proverbial orgulho, evitaria ao máximo lembrar a derrota e seus 649 mortos. Pode ser tabu entre parte da população, mas nas produções culturais o tema é abordado com relativa frequência – e sempre em tom condenatório. Embora para os mais velhos, e para o governo, a soberania das ilhas ainda seja questão mobilizadora (vide os recentes protestos da presidente Cristina Kirchner contra a “militarização” do local pelos britânicos), o uso político da invasão e o conhecimento da crueldade das batalhas e das condições em que os soldados, na maioria recrutas de 18/19 anos, foram mantidos, tornaram a campanha pelas Malvinas alvo de reprovação praticamente unânime na sociedade argentina. E a arte logo se pôs a refletir sobre isso. Como um trauma ainda longe de ser superado, a guerra apareceu, desde 1982, em livros e canções de autores das mais variadas vertentes estéticas. O cinema, porém, talvez seja a arte argentina que mais a tem tratado de frente, na mesma chave crítica. O ataque foi quase imediato.

LOS CHICOS

atenção popular de uma economia em crise e da repressão a opositores. Era um meio de insuflar nacionalismo no povo e obter apoio, já que se tratava de uma demanda antiga do país (Thatcher, em Londres, também enfrentava problemas internos e viu, no conflito, chance de se fortalecer). Pelo registrado depois do anúncio da ocupação, a manobra do general deu certo: políticos da oposição uniram-se ao governo, e a Plaza de Mayo, na capital, foi tomada por manifestações de apoio à presidência. Com a rendição, dois meses depois, no entanto, esse apoio ruiu, e a ditadura chegou ao fim. Em 1983, o poder voltou aos civis. Há quem creia ter a guerra se tornado, nesses 30 anos, “assunto

A primeira ficção sobre a contenda, Los chicos de la guerra, de Bebe Kamin, foi rodada um ano e meio depois. Adaptada do livro homônimo de Daniel Kon, é um drama bélico clichê, em que três garotos de distintas personalidades e gradações sociais têm as vidas abaladas pelo conflito. Levam um dia a dia normal, de jovens estudantes com anseios profissionais e namoros, até vir a convocação. Suas histórias, então, cruzam-se nas Malvinas. Na volta para casa, sofrem dificuldades de readaptação: desemprego, depressão e até violentos distúrbios psiquiátricos. Los chicos tem produção pobre e – pelo contexto em que foi feito, explicável – abordagem sentimentalista, como explicita a cena em que o pai lê carta que enviará ao filho nas ilhas. Mas é, no geral, fiel aos fatos. Não faltam menções à cegueira patriótica que tomou conta da Argentina, nem planos dos soldados sujos e com frio, em pleno outono gelado. O filme também os exibe a lidar com o despreparo técnico, com a brutalidade dos chefes – “Nos tratam pior do que aos ingleses”, diz um – e

01-1 iluminados pelo fogo

No filme, o repórter e veterano Esteban, vivido por Gastón Pauls, relembra sua ida à guerra

a reclamar da fome, o que remete a outro fato amargo: famílias mandavam comida e agasalhos aos filhos, e as caixas nunca chegavam, tal a desorganização, ou a má-fé, do exército argentino. Numa generalização da conduta dos meninos, todavia, mostra-os medrosos e inofensivos, até encantados com a luz das explosões, sendo que há vários relatos sobre a bravura com que os argentinos travaram certas batalhas. Apesar de tratar diretamente da guerra, o drama humano, em suma, é o foco de Los chicos de la guerra. Mesma proposta é a de Iluminados pelo fogo, de 2005. Também adaptado de um livro, do jornalista Edgardo Esteban, ex-combatente, traz o repórter e veterano Esteban, vivido por Gastón Pauls, a relembrar sua ida às Malvinas, após a tentativa de suicídio de um companheiro de trincheira, Vargas. Entre tomadas da paisagem erma e ventosa do arquipélago, também apresenta soldados jovens a andar na lama, passar fome e frio e pensar no que deixaram para trás. Uma cena irônica e muito ilustrativa é a do tenente perante a tropa de tagarnas (soldados ineptos), dando vivas à pátria e subestimando os ingleses “há semanas dentro de um navio, não adaptados ao frio”. A fala é interrompida por um ataque preventivo de avião britânico contra um alvo ali perto. Dirigido por Tristán Bauer, Iluminados pelo fogo tem produção bem mais apurada que a de Los chicos – as cenas de combate são excruciantes – e, outra diferença, não reduz os soldados a medrosos. Não consegue, no entanto, fugir do melodrama no final, quando Esteban, para se entender com o passado, volta às ilhas e chora, com uma canção lamentosa ao fundo. A cena foi gravada nas Malvinas, pela primeira vez num filme sobre a disputa. Veem-se os campos minados, o cemitério dos soldados e até um aviso escrito: “Argentinos:

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FOTOS: divulgação

2 o mesmo amor, a mesma chuva Guerra perpassa relação do casal interpretado por Soledad Villamil e Ricardo Darín 3 los chicos de la guerra Foi o primeiro filme rodado depois do confronto bélico 4 um conto chinês Na comédia, Sebastián Borensztein (Ricardo Darín) é um amargurado veterano da guerra que acolhe um jovem chinês

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Claquete 3

serão bem-vindos, quando deixarem de reclamar a soberania e aceitarem nosso direito à autodeterminação”. Os kelpers, habitantes do lugar, já expressaram que querem seguir pertencendo à Grã-Bretanha. Mas a postura antibélica do filme se enfraquece no último instante, com a aparição, nos créditos, da frase “Las Malvinas son argentinas” – a mesma de muitas placas espalhadas pelo país. Iluminados pelo fogo toca em outro ponto forte: o suicídio de veteranos. Calcula-se que mais de 400 se mataram nessas três décadas. Ao regressarem, os recrutas, muitos com traumas de guerra, não tiveram proteção oficial, nem assistência psicológica. A sociedade, após o furor de abril, recebeu-os com indiferença, e o governo, ao que parece, queria esquecê-los. Só em 1990 começou a ser paga uma pensão. Nas ilhas, também houve tortura. Fica-se sabendo, em Iluminados, que Vargas, por ter roubado para comer, foi punido com estacamiento: horas deitado no chão gélido, com mãos e pés amarrados a estacas. Los chicos de la guerra tem cena parecida. Os dois longas cumprem, ainda, o papel de denúncia, já que os comandantes argentinos obrigaram a tropa ao juramento de não contar nada sobre o que viveram nas Malvinas.

PANO DE FUNDO

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El visitante (1999), de Javier Olivera, e Palabra por palabra (2008), de Edgardo Cabeza, não lançados no Brasil, são produções igualmente ambientadas na guerra. O cinema argentino, entretanto, de reconhecida maturidade, tem abordado a Guerra das Malvinas também em romances e comédias, narrativas em que o conflito bélico

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INDICAÇÕES não está à frente da ação – é um dos elementos de “pano de fundo”. Caso de O mesmo amor, a mesma chuva, de 1999, dirigido por Juan José Campanella, o mesmo realizador do oscarizado, e ótimo O segredo dos seus olhos (2010). Os protagonistas também são Soledad Villamil e Ricardo Darín. História de amor com alguns chavões do gênero, mas bons diálogos, assentase – como de praxe em Campanella – no contexto social e político argentino recente; aqui, do fim do regime militar ao governo Carlos Menem. A guerra é um dos eventos históricos a rondar as idas e vindas do casal. Em off, ele, escritor, vai comentando as situações e, ao presenciar a redação da revista em que publica contos, parada, assistindo feliz na TV ao pronunciamento de Galtieri, pensa: “O governo, ébrio de orgulho pelo êxito da nação, decidiu ampliar seus horizontes e nossa capacidade de espanto”. O rosto de Galtieri aparece através de uma garrafa de vinho posta ao lado do aparelho, numa troça com sua fama de bebedor. Mais adiante, o ufanismo de então é representado por uma cena em que se vê a redação, espaço onde deveria haver uma postura crítica, toda decorada com bandeiras. Darín também protagoniza Um conto chinês, de Sebastián Borensztein, sucesso de bilheteria na Argentina e no Brasil, em 2011. Como Roberto, solitário comerciante que se vê obrigado a acolher um jovem chinês, monta a comédia clássica de contrastes, mas seu personagem não é um tipo raso. O conflito nas Malvinas surge brevemente, porém

de forma marcante, para explicar sua misantropia e amargura. Roberto é um veterano, e esse passado também explica sua mania de colecionar notícias de jornal sobre casos estúpidos: ele se interessa por absurdos porque vivenciou um. O flashback se dá ao final do longa, mas uma cena do início traz Roberto recusando um presente de fabricação inglesa, o que reforça o ressentimento contra a GrãBretanha e a convicção de que a guerra foi uma loucura, mas uma causa justa, ainda existentes em veteranos e em parcela da população local. O personagem, por sinal, depõe que os ingleses trataram prisioneiros inimigos “como merda”, sem se referir à truculência dos próprios militares argentinos contra seus homens. Se não entram na categoria “grande cinema”, os títulos acima também não maculam a tradição de bons roteiros, atuações e “técnica” (fotografia, som...) do cinema argentino. Esse, ao tematizar tal fato indigesto da história do país, seja em narrativas duras ou leves, direta ou indiretamente, contribui para não ser esquecido um episódio que alguns almejam ocultar. Quando revela traumas de uma sociedade e mostra questões políticas reverberando ali, na vida das pessoas, a arte cumpre uma de suas tarefas mais bem-vindas e salutares. “A ficção”, disse o escritor Julio Cortázar, “é a história secreta das sociedades”. Pois, no caso da ficção fílmica portenha em relação à guerra e seus efeitos, esse papel tem sido executado com eficiência e bom senso. O que faltou aos que estavam no poder em 1982.

drama

O PALHAÇO

Direção de Selton Mello Com Selton Mello, Paulo José e Moacir Franco

Segundo longa dirigido por Selton Mello, O palhaço encanta com sua narrativa poética, repleta de um humor pueril que em muito recorda Oscarito. A busca pela identidade do palhaço Benjamin (Mello) e as relações familiares são o cerne da obra, cuja beleza está na estética apurada e na delicadeza dos movimentos de câmera. Não se pode deixar de notar referências a grandes obras cinematográficas, como Bye, bye Brasil (Cacá Diegues, 1979) e A estrada da vida (Federico Fellini, 1954).

THRILLER

PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN

Direção de Lynne Ramsay Com Tilda Swinton, John C. Reilly e Ezra Muller

Ramsay não costuma fazer filmes fáceis de digerir – suas histórias vão de um garoto que mata o amigo acidentalmente a uma namorada que rouba a autoria de um livro do namorado suicida. Esse currículo já bastaria para deixar o espectador prevenido. Precisamos falar sobre o Kevin, que é baseado em obra de Lionel Shriver, incomoda com sua história sombria, imagens chocantes e trilha sonora grotesca (composta por Jonny Greenwood, do Radiohead).

BIOGRAFIA

ROMANCE

Direção de Phillyda Llyod Com Meryl Streep, Jim Broadbant, Iain Glain

Direção de Lone Scherfig Com Anne Hathaway, Jim Sturgess, Tom Mison

A DAMA DE FERRO

Filme que garantiu o terceiro Oscar a Meryl Streep (após 17 indicações), A Dama de Ferro tenta humanizar a controversa primeira-ministra do Reino Unido, Margareth Thatcher. Contudo, ao focar as lembranças de uma Thatcher idosa, com Alzheimer e alucinações com o marido morto, Llyod praticamente esquece a importância política e histórica da governante, o que torna o enredo pouco crível. A salvação é mesmo Streep, impecável em todas as cenas e, essa sim, irretocavelmente fiel à persona da britânica.

UM DIA

A dinamarquesa Scherfig estreou no cinema com o movimento Dogma 95 e trouxe características da escola para essa comédia romântica – o uso de luz natural nas filmagens, por exemplo. Um dia é baseado no bestseller homônimo de David Nicholls e acompanha 20 anos na vida de um casal de amigos. É interessante notar as referências à cultura pop presentes na história e os diálogos bem elaborados. Scherfig peca, porém, na montagem acelerada, que não permite uma profundidade no perfil dos personagens.

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Artigo

DIVULGAÇÃO/ [projetotorresgemeas] / projetotorresgemeas.wordpress.com

KLEBER MENDONÇA FILHO NO CINEMA, A CIDADE COMO UM REDUTO DE “NÃO LUGARES” SEQ. 1. EXT. RUA. CALÇADAS/

MUROS. DIA. Uma sátira aos vídeos institucionais: grupo de passistas de frevo que pulam sorridentes com sombrinhas coloridas. As imagens dos dançarinos hiperativos são feitas contra paredões gigantes de prédios caros, um fundo brutalista que toma todo o quadro. Cada novo plano revela quão pequeno o grupo fica em relação ao fundo absoluto de cimento e quadradinhos brilhosos de cerâmica. Todos dançam e pulam alegres. Na trilha, ouvimos Viva o Recife, da Banda de Pau e Corda: “O Recife acordou, deu bom-dia/ Encontrou todo o povo nas ruas/ Nas pontes, nas praças, se amando/ Se encontrando com alegria/ No eterno gingado de frevo, ciranda e baião/ Batida de coco, maracujá e limão/ Vem, vem, vem fazer parte deste cordão/ Recife tem um lugar pra você dentro do coração”. PLANO FINAL: Num plano geométrico chutando para baixo, tomado do 40º andar de algum prédio em Boa Viagem, vemos o diminuto grupo de frevo lá embaixo, como formiguinhas coloridas e saltitantes. A música agora baixinha e distante. Poderia ser uma cena para algum filme pernambucano sobre o espaço urbano do Recife hoje. Parece que essa cidade toma um caminho apressado para transformar-se num reduto de “não lugares”. Com a montagem certa e ângulos de câmera ok, poderia resultar numa sequência musical remixada com elementos distintos, como o musical (bo/ho)llywoodiano), o VT local chapa branca com figurantes sorrindo aleatoriamente e locações irreconhecíveis do “não espaço” urbano. Talvez funcionasse como mais um ponto

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Na má arquitetura, o drama humano e a sociedade dodói vêm à tona imediatamente. O mau gosto bancado por muito investimento

de vista possível sobre o que estão fazendo com esta cidade, um ponto de vista de dentro do próprio cinema. Nos últimos anos, a produção cinematográfica pernambucana tem registrado o Recife de maneira crítica. Já temos uma boa dezena de filmes, curtas e longas-metragens, que se completam sobre um mesmo tema. Um lugar ao sol, Praça Walt Disney, Menino-aranha, Eiffel, [Projetotorresgêmeas], Recife MD e os vídeos Vurto, Quarteto simbólico, Recife frio, boa parte deles disponível na internet. Os filmes serão documentos para o futuro, talvez de uma época quando, em visão retrospectiva, ainda teria sido possível fazer alguma coisa. Fotografar uma cidade, seja em imagens still, em movimento, oferece inevitavelmente

uma releitura da realidade escrita pela própria arquitetura, e por um desejo de urbanismo que faz essa mesma cidade existir como espaço urbano. Revela também uma relação de amor com esse mesmo espaço. Para tal, não é preciso ser fotógrafo profissional, ou cineasta. Cada vez mais, blogs e jornais recebem imagens, feitas com câmeras baratas ou celulares, da cidade dando errado. Muitos desses registros revelam o próprio lugar. Eu, pessoalmente, acredito que, para o cinema, a má arquitetura fotografa melhor do que a boa e bela arquitetura. Há uma dramaticidade natural na má arquitetura, na organização incompetente do espaço urbano, ditada pelo interesse econômico e não por ideias inteligentes que priorizem as pessoas, a população. As duas torres “dedo no olho” da Moura Dubeux, no Cais de Santa Rita, sem qualquer critério, “poluem” uma área histórica. Fotografam bem pela feiura da inadequação naquele contexto, e representam a mais forte demonstração de desrespeito à cidade e da bagunça em que tudo

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1 recife Nos últimos anos, a produção local de cinema tem registrado a cidade de forma crítica, como no Projetotorregêmeas

se transformou. Dois “puxadinhos” de 40 andares no coração histórico de uma cidade histórica. Armazéns demolidos, no Cais José Estelita, para a construção de uma sequência gananciosa de supertorres de segurança máxima fechadas para o resto da cidade? Ou armazéns portuários reaproveitados para a cultura, a arte, a educação, o comércio e o verde, como em muitas cidades do mundo que já passaram por essa escolha? Transporte coletivo de qualidade que fará a população repensar sua relação com a cidade e os automóveis, com mais qualidade de vida e cidadania? Ou transporte coletivo ruim que continua satisfazendo os interesses das famílias que dominam esse business de terceiro mundo, há décadas? Essa tensão inerente às más ideias transformadas em orgulhosas construções, ou em projetos que sugerem estar contra o povo, rende comentários reveladores a partir das imagens que fazemos. Para mim, as câmeras revelam que a boa arquitetura não parece nos dar essa

tensão dramática necessária no cinema, exatamente por ser ela justa e correta. O registro de uma bela e generosa construção, ou organização de espaço, lembra o registro de uma flor. Pode-se admirar as cores, a luz, as formas, as gotículas de orvalho nas pétalas macias. No entanto, para mim, pouca coisa vai além desse simples prazer estético. Na má arquitetura, o drama humano e a sociedade dodói vêm à tona imediatamente. O mau gosto bancado por muito investimento lembra que dinheiro não compra necessariamente talento, mas que ele anda de mãos dadas com a arrogância. Arrogância, quase sempre, rende bom drama. Nesse sentido, é impossível viver em grandes cidades brasileiras, como o Recife, e não sentir essa tensão. Ela vem da pouca amizade que esse espaço urbano parece nos oferecer, mesmo que nós queiramos ser amigos e defensores desse lugar. De fato, o problema é menos a cidade e bem mais o que estão fazendo com ela. O conceito de “não lugar” propõe um espaço incapaz de agregar uma

identidade, uma relação pessoal nossa com aquele lugar. No cinema, um exemplo válido e prático é uma sala multiplex, um não lugar por excelência, localizado num não lugar ainda maior, o shopping center. O próprio sistema estimula esse anonimato espacial, pois se, antes, nós associávamos filmes aos espaços onde eles foram vistos – exemplo: “Eu vi Veludo Azul no Cinema São Luiz...” – , hoje, isso quase não é mais possível. Grupos exibidores investem na não informação de onde você verá um filme. Se é na sala 12 ou na sala 5, pouco importa, na era dos não lugares. O que vale é o ingresso pago, e não um real senso de espaço reconhecido. Se a sala 12 é maior e mais bem equipada do que a 5 ou a 8, isso não vem ao caso, o ingresso é o mesmo nos não lugares. A cada mês, vêm à tona novas informações e desdobramentos sobre os planos traçados na surdina no sentido de transformar o Recife, cidade tão cheia de personalidade e história, numa paisagem desses não lugares. Ruas pequenas, onde antes existiam casas, hoje lembram valas de uma represa para o escoamento de água. É possível andar hoje nessas “ruas-vala”, os dois lados da calçada tomados por muros de quatro metros de altura, a sensação de estar num não lugar é cada vez mais forte. Ninguém prevê isso, quando planos e projetos são submetidos? Ninguém prevê o efeito nocivo que essa configuração do espaço terá na cidade como um todo? A demolição e a alteração do espaço urbano subtraem obrigatoriamente o que existia antes. A cada novo projeto anunciado e aprovado pelos que deveriam proteger o Recife, vemos sumirem cada vez mais as possibilidades de um espaço público mais sensível, mais inteligente, mais humano. Talvez seja o caminho natural de um país sem cultura e que, de repente, está tendo acesso a muito dinheiro. Nessa nação nova-rica, tudo pode de qualquer jeito, objetivando o lucro a curto prazo, a partir de intervenções urbanas e construções que irão marcar a cara das cidades a longo prazo. As imagens estão registrando tudo isso.

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Evanildo Bechara LIÇÕES DOS DICIONÁRIOS

Evanildo Bechara

é professor, gramático e filólogo, membro da Academia Brasileira de Letras fábio motta/AE

Um dicionário é uma obra de ciência, ainda que construída sob a orientação técnica de um grande escritor, como é o caso de Antônio Houaiss e Aurélio Buarque de Holanda, no Brasil, ou Caldas Aulete e Cândido de Figueiredo, em Portugal. Isto se não nos quisermos reportar ao fluminense Antônio de Morais Silva, que, em 1789, inaugurou a produção de dicionários monolíngues do português, só levando em consideração nossa língua, e não o português em relação com outro idioma, geralmente o latim, como acontecia até o aparecimento de Morais. Como todo produto científico, o dicionário se estrutura por critérios metodológicos. Como bem comenta Diderot, numa contribuição ao orgulho da cultura francesa que foi a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert: “La langue d’un peuple, son vocabulaire: le vocabulaire est une table assez fidèle de toutes les connaissances de ce peuple” (V. pág. 637, ed. 1755). O dicionário reparte o verbete em seções que distribuem os vocábulos segundo as ciências a que pertencem, e os matizes semânticos em que são empregados na linguagem comum do dia a dia. Por isso, o dicionário espera que o consulente saiba lê-lo, para dele tirar as informações que registra sobre as palavras e expressões que ele recolhe. Há palavras que o leitor já conhece do seu repertório lexical ativo, mas dessa mesma palavra desconhece sentidos decorrentes de franjas semânticas de outros contextos, ou de palavras usuais ou raras inexistentes do seu saber idiomático. Assim, o dicionário não é tão somente o registro do léxico corrente na contemporaneidade do consultador, mas também o testemunho veicular de ideias, concepções e juízos que o passado legou ao presente e que vigem como relíquias culturais. Geralmente tais resíduos são apresentados nos verbetes com o rótulo de sentido figurado ou pejorativo. Muitas vezes quando se apresentam ao consulente estão desligados do conceito originário, ou guardam com este ligação remota. A palavra cigano na acepção posta no banco dos réus pelo Ministério Público Federal de Belo Horizonte é um desses exemplos de sentidos figurados de que vimos falando. Será um crime de lesa-cultura se for verdadeira a notícia segundo a qual será eliminada do verbete do Dicionário Houaiss a alusão ao sentido figurado da palavra cigano. Tal medida é empobrecer a obra de nosso Confrade do aspecto histórico que a distingue quando comparada com suas congêneres, ao mesmo tempo que a separa dos léxicos de línguas em que se registra o termo cigano com a mesma conotação figurada. Como vivemos num mundo às avessas, podemos entender os dois seguintes episódios antagônicos, tão distantes um do outro no tempo. Tibério, na Antiguidade clássica, advertido por Ateio por ter usado uma palavra não latina, tranquilizou o gramático, dizendo: “Quando o imperador romano usa uma palavra, ela passa a ser latina”. Ao que respondeu o outro: “César manda nos romanos, mas não na língua”. Nos nossos dias, em Belo Horizonte, o MPF cassa de um excelente dicionário da língua portuguesa a palavra cigano numa acepção que há séculos faz parte do imaginário coletivo no âmbito cultural luso-brasileiro.

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