Continente #138 - Luiz Gonzaga

Page 1

www.revistacontinente.com.br

# 138

#138 ano XII • jun/12 • R$ 11,00

100 ANOS CONTINENTE

LUIZ GONZAGA

O HOMEM QUE MOSTROU O NORDESTE PROFUNDO AO BRASIL

DOENÇA MÉDICO GANHA PRÊMIO POR “BIOGRAFIA” DO CÂNCER

JUN 12

CAPA 138.indd 1

E MAIS DANTE REVISITADO | BIOGRAFIAS | ON THE ROAD | FESTA DO SOL 28/05/2012 16:07:13


CAPA 138.indd 2

28/05/2012 16:07:16


reprodução

junho 2012

aos leitores “Uma vez cheguei em Nanuque, em Minas Gerais, procurei o dono do cinema para ver se poderia dar um show. Ele me falou que não poderia porque naquele dia ele ia projetar um filme de Elvis Presley. Eu sugeri que o show fosse depois da projeção, às 21h. Ficou acertado assim. Meu secretário saiu pelas ruas, na caminhonete, anunciando o show, distribuindo folhetins e eu fui para o hotel aguardar a hora de me apresentar. Era a polícia: o senhor está intimado para comparecer imediatamente no cinema, está a maior confusão lá, todo mundo quer ingresso e não tem mais, e o juiz quer falar com o senhor! Eu fui encontrar com o juiz, e acabou que ele resolveu que eu faria duas sessões.” O depoimento de Luiz Gonzaga, publicado na biografia Vida do viajante (1996), evidencia a precariedade do show business no Brasil nos anos 1950/1960, com as poucas turnês sendo realizadas de forma mambembe. A declaração do músico também registra um nome que, vez ou outra, é trazido à tona como comparativo ao próprio cantor nordestino: Elvis Presley. Ambos eram de origem pobre, surgiram quase na mesma época, tiveram o auge do sucesso

Editorial.indd 4

quase paralelamente, foram tratados como soberanos de algum estilo musical. No entanto, o Rei do Baião não teve a projeção internacional do Rei do Rock. Mesmo sem ter desfrutado de impacto considerável fora do Brasil, Gonzaga teve papel fundamental na ampliação do horizonte do brasileiro sobre a própria diversidade sociocultural. Nenhum artista , fora do eixo Rio-São Paulo, havia conseguido, até então, ter alcance nacional e, ainda, expor os anseios e os problemas da gente simples do interior. O baiano Dorival Caymmi, que surgira anos antes, não entra nessa consideração, pois focava sua temática no cotidiano do homem simples do litoral. Dessa forma, Gonzaga ingressou no imaginário popular como uma espécie de super-herói do Sertão, e sua amplitude como artista tornou-o um patrimônio do Nordeste e da música brasileira. Neste número, movidos pela comemoração do ano do centenário do músico, preparamos uma edição especial na qual vários profissionais direcionam seus olhares sobre a vida e a obra do ícone, analisando-o sob o ponto de vista sociológico, musical, político e histórico.

28/05/2012 15:26:46


Sem tĂ­tulo-1 24

28/05/2012 15:28:36


Sem tĂ­tulo-1 25

28/05/2012 15:28:40


sumário Portfólio

Tatiana Clauzet 06 Cartas

66 Visuais

07 Expediente

+ colaboradores

08 Entrevista

Tiago Santana Fotógrafo cearense conta sobre a importância do lugar de nascimento na sua obra

Dante revisitado Romero de Andrade Lima prepara sua tradução ilustrada de A divina comédia

70 Leitura

76 Sonoras

20 Balaio

84 Palco

48 Memória

86 Artigo

40 Matéria

88 Saída

Protesto Museu italiano queima acervo em ato contra indiferença do governo

Biografias As diferentes formas de retratar a vida e a obra de personagens históricos

Corrida

José Cláudio A idade

14

José Condé Viagem a Caruaru inicia relançamento da obra do escritor regionalista

12 Conexão

The Burning House Site propõe que listemos os itens que salvaríamos em caso de incêndio

Universo simbólico das pinturas da artista paulista tem como principal matéria-prima a observação da natureza em seus arranjos complexos e harmônicos

Discos malditos Álbuns que pesaram na carreira de músicos e bandas famosas

Leve Apresentação de dança desperta reflexão sobre propostas à acessibilidade Marcelo Amorim A percepção de um espetáculo de dança por um espectador surdo

Isabel Meunier Identidade latinoamericana: redesenhando tradições

História

Uma “biografia” do câncer Oncologista indiano Siddhartha Mukherjee recebe prêmio por recapitular a evolução da doença através de relatos clínicos, em que há histórias de medo e superação

52 Capa ilustração Jô Oliveira

continente junho 2012 | 4

Sumario JUN.indd 4

28/05/2012 15:30:16


Especial

Tradição

Rei do Baião é analisado a partir de elementos como a paisagem sertaneja, os ritmos de seu tempo e a “ascensão” do Nordeste no imaginário nacional

Principal celebração da cidade peruana de Cuzco mobiliza milhares de visitantes em torno de cultos a deuses cristãos e de antigas civilizações andinas

Claquete

Cardápio

Aguardada adaptação do clássico da literatura americana On the road tem direção de Walter Salles, que realiza mais um road movie na sua carreira

Cozinhas peruana, espanhola e sueca dão exemplos de pratos sofisticados, elaborados sem cozimento, como o ceviche, o gaspacho e o gravilax

Luiz Gonzaga

22

Kerouac nas telas

60

Festa do Sol

42

Jun’ 12

Culinária sem fogo

80

continente junho 2012 | 5

Sumario JUN.indd 5

28/05/2012 15:30:18


cartas

Cangaço Recebi a revista nº 135, que trata do tema cangaço, do qual sou estudioso, e gostaria de elogiá-la pelo trabalho e por ter permitido a presença de vários pesquisadores com opiniões conflitantes perante os fatos vividos naqueles tempos, e que causam divergências em sua interpretação. Vejamos, por exemplo, a discordância do nosso amigo Frederico Pernambucano quanto a Dadá ter feito os enfeites dos bornais e das alças dos cangaceiros, com flores estilizadas e de colorido vivo. Pois bem, ela não teve a intenção de influenciar ninguém para que usasse as peças que enfeitou. Lampião, ao vê-las, gostou e pediu-lhe que

fizesse um jogo para ele. Quando o usou, todos o seguiram. Jamais ouvi da boca de Dadá que a mesma tivesse o intuito de ser maior que Lampião nem em costura nem em bordados. A foto da matéria, de Lampião em uma máquina de costura, foi reconhecida por Dadá, Balão, Sereno e Criança. Segundo todos eles, o chefe estava fazendo um conserto em um bornal, fato corriqueiro entre os componentes do bando, todos acostumados a isso em suas lides de vaqueiros. ANTONIO AMAURY CORRÊA DE ARAÚJO SÃO PAULO – SP

Sugestão de pauta Como assinante da revista Continente, só tenho que parabenizá-los pela qualidade e conteúdo da mesma. Desejaria, no entanto, ver a revista divulgando os escritores jovens do Recife, que já estão com livros nas livrarias, e não tiveram ainda a oportunidade de vê-los analisados e criticados pelos bons escritores maduros do nosso Pernambuco.

Como sugestão, envio cópia da capa do próximo livro de minha filha Rafaella, que já está com o segundo nas livrarias. Do mesmo modo, informo-lhes que foi criado um Clube do Livro no Recife, na Faculdade Maurício de Nassau, com duas reuniões ao mês. ANTÔNIO CAVALCANTI DE ARAÚJO RECIFE – PE

Recife rural “Contra qualquer evolução linear das coisas do mundo”, mais uma arrebatadora matéria da Continente: De barro e asfalto (nº 136, abril). Parabéns por “tocar” a nossa racionalidade cotidiana, pois o “Recife rural” é muito mais do que costumeiramente lemos em matérias da “grande” mídia. Levarei para meus alunos de Socioantropologia a fim de refletirmos sobre esse ambiente diverso – que não deixa de ser perverso. Parabenizo os andarilhos: Carol Leão e Ricardo Moura. SYNARA VERAS ARAÚJO salgueiro – PE

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

Fax

(81) 3183 2783

Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

continente JUNHo 2012 | 6

Cartas_colab JUN.indd 6

28/05/2012 15:33:37


colaboradores

climério de oliveira

Felipe trotta

Jô oliveira

José teles

Doutorando em Música e professor do Conservatório Pernambucano de Música

Doutor em Comunicação, professor, pesquisador do CNPq e músico

Ilustrador e autor de livros infantis, como O pavão misterioso e Bumba meu boi

Crítico musical do Jornal do Commercio e pesquisador de MPB

e MAiS Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Breno Laprovitera, fotógrafo. christianne Galdino, jornalista e professora de dança. conrado Falbo, músico, pesquisador e professor. eduardo Sena, jornalista. Marcelo Abreu, jornalista, professor universitário e autor de livros-reportagem e de viagens. Marcelo Amorim, professor de Libras das Faculdades Integradas Barros Melo. Marcelo Robalinho, jornalista e doutorando em Comunicação e Saúde na Fiocruz - RJ. Paulo carvalho, repórter do Diario de Pernambuco. Schneider carpeggiani, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutor em Teoria da Literatura.

GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

gOVERNADOR

Adriana Dória Matos

Gianni Paula de Melo (jornalista)

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO

Juan Ropero (webdesigner)

Fone/fax: (81) 3183.2750

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Luiz Arrais

assinaturas@revistacontinente.com.br CONTATOS COM A REDAÇÃO

Francisco Tadeu Barbosa de Alencar REDAÇÃO

(81) 3183.2780

EDIÇÃO ELETRÔNICA

coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco – cePe

Danielle Romani, Débora Nascimento,

Fax: (81) 3183.2783

www.revistacontinente.com.br

PRESIDENTE

Mariana Oliveira, Carlos Eduardo Amaral

redacao@revistacontinente.com.br

Leda Alves

(interino) (jornalistas)

DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO

Maria Helena Pôrto (revisora)

PRODUÇÃO gRÁfICA

Ricardo Melo

André Valença, Elisa Jacques, Ingrid Melo,

Júlio Gonçalves

DIRETOR ADMINISTRATIVO E fINANCEIRO

Duda Gueiros e Olivia de Souza

Eliseu Souza

Bráulio Mendonça Menezes

(estagiários)

Sóstenes Fernandes

CONSELHO EDITORIAL:

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Roberto Bandeira

Antônio Portela

ARTE

PUBLICIDADE E MARKETINg

Lourival Holanda

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

E CIRCULAÇÃO

Nelly Medeiros de Carvalho

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

Armando Lemos

Pedro Américo de Farias

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Alexandre Monteiro

diagramação e ilustração)

Rosana Galvão

Everardo Norões (presidente)

Gilberto Silva Daniela Brayner

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE gRÁfICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

continente JUNHo 2012 | 7

Cartas_colab JUN.indd 7

28/05/2012 15:33:39


TIAGO SANTANA

“Sou um fotógrafo de paisagem humana”

Nascido e “cultivado” no Ceará, ele se diz profundamente identificado com a região, fato que se destaca na sua obra, em que predominam os contrastes do preto e branco e a temática social, tratada de modo afetivo TEXto André Valença

con ti nen te

Entrevista

Nascido no Crato, conterrâneo de

Padre Cícero, o fotógrafo Tiago Santana fez como milhares de romeiros que visitam anualmente a terra dos cariris cearenses: peregrinou. No entanto, não se limitou a visitar a cidade vizinha de Juazeiro do Norte, onde realizou seu registro fotográfico Benditos, nem a ir ao interior alagoano, ponto de partida para o livro O chão de Graciliano, que, produzido em parceria com Audálio Dantas, é considerado uma das mais proeminentes obras sobre o autor de Vidas secas. A partir do semiárido, Tiago ganhou o mundo, com suas imagens predominantemente focadas nesse território e seus enredos. Em março de 2011, a lendária coleção francesa de livros de bolso Photo Poche – que vem editando há quase 30 anos obras de autores como Cartier-Bresson, Michael Ackerman e Robert Frank – lançou o título Sertão, com ensaios de Tiago (sem previsão de lançamento no Brasil). Antes dele, apenas Sebastião Salgado havia representado o Brasil na coleção idealizada por Robert Delpire. O cubano Eduardo Manet, autor dos textos publicados em Sertão, vê

nas fotos de Tiago uma “profunda fecundidade do caos”. Nota que “os santos e os anjos não são de um céu abstrato, mas fazem parte da terra árida, da paisagem tormentada, dos elementos anárquicos”. Em entrevista para a Continente, Santana analisa sua trajetória e observa em seu trabalho esse tom dicotômico, que acredita ser inerente à cultura popular nordestina. CONTINENTE A região do Cariri educou de alguma forma o seu olhar fotográfico? TIAGO SANTANA Não tenha dúvida. O lugar foi responsável por me tornar fotógrafo. Uma pessoa que passa a infância lá sente um impacto visual muito forte. É engraçado porque nasci lá por acaso. Meu pai é de Quixeramobim e minha mãe, de Fortaleza. Ele foi trabalhar na Petrobras na Bahia. Como era envolvido em questões políticas, sindicato, foi demitido na época da ditadura militar, e então foi para o Crato. Meu pai é engenheiro, tinha uma fábrica sendo montada lá, na época. Ele só ia passar uns dias, acabou passando 20 anos. Eu brinco que a única coisa boa que pode ter saído da ditadura é o fato de

eu ter nascido no Crato. Quando Padre Cícero fundou o Juazeiro do Norte, atraiu muita gente, muitas famílias de artesãos, por exemplo. Aquele lugar virou uma espécie de síntese do Nordeste. CONTINENTE Não só seu pai, mas por dois anos você também cursou Engenharia. Por que desistiu? Era um entrave à fotografia? TIAGO SANTANA Não, é porque, até então, eu não sabia o que a fotografia significava para mim. Meu pai fotografava, tinha um laboratório improvisado em casa. Usou muito super- 8 na época, que usei também. Inclusive, comecei com super-8 antes de começar com a fotografia. Lembro que fiz um filme sobre a volta de Miguel Arraes do exílio, quando foi visitar o Crato. Foi um pequeno documentário. Meu pai era muito ligado a ele por questões políticas. Inclusive, quando meu pai morou esses 20 anos no Cariri, na época da ditadura, ele recebia muitos militantes que passavam por lá se escondendo. Uma vez, ele desapareceu por 15 dias. Mas você perguntou sobre Engenharia e eu mudei de caminho, falei de super-8...

continente JUNHo 2012 | 8

Entrevista_Tiago Santana.indd 8

28/05/2012 15:34:50


CELSO OLIVEIRA/DIVULGAÇÃO

continente JUNHo 2012 | 9

Entrevista_Tiago Santana.indd 9

21/05/2012 15:43:40


Fotografia e o Cariri foram fundamentais para cimentar minha forma de ver o mundo. Eu voltei lá pra fazer o trabalho Benditos. Você viu o Benditos? CONTINENTE Sim. Em Benditos, há uma relação interessante entre os rostos velados e desvelados. É intencional? Você é adepto da máxima que diz que o rosto humano é a mais vasta das paisagens? TIAGO SANTANA Ah, sim. Sou um fotógrafo de paisagem humana, de gente. É isso que você falou sobre o rosto velado, incompleto, algo

CONTINENTE E a respeito dos suportes? Normalmente, você usa analógico ou digital? TIAGO SANTANA Até hoje uso o suporte analógico. Por uma questão de processo mesmo. De relação tátil com o negativo. A própria questão de fazer a foto e não ter o filme revelado na hora, aquele tempo de processo. Tudo isso faz parte do meu trabalho. No Chão de Graciliano, uso uma câmera panorâmica com filme 120mm, que é para extrapolar essa coisa do espaço. Ponho um filme nessa câmera e ela só faz quatro

FOTOS: DIVULGAÇÃO

CONTINENTE É, mas continua... TIAGO SANTANA Pois é, o super-8 entrou na minha vida por conta do meu pai. O filme era, na época, o que é hoje o homevideo. Todo mundo usava pra família, festa de aniversário, essas coisas. Foi meu primeiro contato. Aí, segui minha vida, fiz o ginásio, segundo grau e comecei Engenharia Mecânica, tudo em Fortaleza. Dentro da universidade, aconteceu um fato que considero marcante, um evento ligado ao Instituto Nacional da Fotografia, que era da antiga Funarte do governo Collor.

con ti nen te

Entrevista Eles promoviam as Semanas Nacionais de Fotografia. Eram itinerantes e uma delas aconteceu em Fortaleza. Acho que existe um momento na fotografia brasileira antes das Semanas Nacionais e depois, porque elas possibilitaram o intercâmbio entre fotógrafos do país inteiro. Lembro bem as palestras, as projeções no auditório da reitoria, no museu... Foi então que percebi que a fotografia não era uma coisa isolada, o homem e a câmera. Era muito maior que isso. Existia gente pensando, refletindo. Isso detonou um processo na minha cabeça, era uma coisa muito maior do que eu imaginava. Aos poucos, fui me desligando da Engenharia e mergulhando mais nisso aí. É bom lembrar que sou de uma época em que não existia formação em fotografia, ou a gente pagava uma cadeira no curso de Jornalismo ou eram cursos livres, esses momentos de encontro – e o livro: sou da época que não tinha internet. Foi isso aí: as Semanas de

que falta. Mas tem certas coisas que só se descobrem mais tarde. Logo depois que fiz o livro, um jornalista perguntou se essa fotografia fragmentada tinha alguma coisa a ver com os ex-votos. Os ex-votos são umas esculturas de madeira que os romeiros doentes mandam fazer da parte do corpo que está ruim; tem coração, perna... tem muito lá em Juazeiro do Norte. Eles levam esses ex-votos para a sala de milagre pra fazer promessa. Caiu a ficha. Descobri que a minha forma de fotografar tinha muito a ver com aquilo, aquela coisa fragmentada, meio cortada. E, às vezes, não se tem total consciência disso. Está na sua cabeça e você acaba construindo o seu trabalho em cima disso sem saber. Outra coisa do Benditos que tem a ver com isso é o mistério. Aquela fotografia que não conta tudo. A foto direta, óbvia, clara, não acho que tem tanta força.

poses. Voltando ainda mais para trás na experiência de fotografar. CONTINENTE Na sua opinião, o equipamento digital acaba com a ternura da fotografia? TIAGO SANTANA Não, não acho. Acho o digital genial. Conheço muita gente produzindo maravilhosamente com o digital. O que me preocupa é a questão da memória e da preservação. Vejo que os álbuns sumiram, mesmo os amadores. Quando a gente pega álbuns de 30, 40 anos atrás, mesmo os de família, eles são importantes para contar a história, a transformação do lugar, dos costumes. Tem que se ter muito cuidado para não se perder a memória. Mas o digital é fantástico, como a história do fotojornalismo mesmo. Você tira uma foto e já está sendo enviada em questão de segundos. Mas, no meu trabalho, que precisa de uma dedicação e maturação mais profundas, é mais interessante trabalhar com filme. Não quer dizer

continente JUNHo 2012 | 10

Entrevista_Tiago Santana.indd 10

21/05/2012 15:43:40


que eu não faça. Estou aprendendo esse universo também. É uma questão de processo. Todas as formas de produzir imagem podem ser interessantes. CONTINENTE E o preto e branco na sua obra? É uma escolha pessoal ou o tema demanda? TIAGO SANTANA Tenho muita coisa guardada nas gavetas, também em cor, que ao longo da vida vai se acumulando e ainda não faz parte de um projeto maior. Fica lá esperando seu momento. Em um trabalho como Benditos, acho que a cor dispersaria a atenção do que

geração de fotógrafos. Tenho vários livros dela. Quando comecei a trabalhar com fotografia, tive a ideia de fazer livros. Eles consolidam um trabalho, vão para bibliotecas, escolas, rodam por aí. E foram os livros que me levaram a ser publicado na Photo Poche. Tanto Benditos como O chão de Graciliano chegaram às mãos de Robert Delpire, um dos maiores editores de fotografia do mundo. Ele os recebeu por intermédio de outro fotógrafo e quis me encontrar. Fui conhecê-lo e fiquei maravilhado pela sua delicadeza e simplicidade. Tinha

em português. Provavelmente, vão publicar o Sertão.

tudo para ser aquele francês sisudo, meio metido, mas ele foi ótimo. Na conversa, me convidou para participar da coleção. Confesso que quase caí da cadeira. Aquilo ali marcou minha carreira. Eu me tornei fotógrafo vendo os autores da coleção. Depois desse encontro, levou uns dois anos de produção e lançamos o livro. Foi o próprio Delpire quem sugeriu o título Sertão. Ele falou que a palavra, para o francês, é muito simbólica, misteriosa. É difícil de traduzir, mas é entendida no imaginário europeu de alguma forma, através do cinema de Glauber Rocha, da literatura de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa. Eu até tinha tido outras sugestões para o título, mas achei acertada a sua escolha.

mas o fundamental é que os livros sejam publicados e distribuídos para os lugares onde eles devem estar: livrarias, bibliotecas... Promover o encontro da fotografia com os outros. A fotografia, para mim, é encontro. É o encontro do autor com ele mesmo, com o seu mundo, seus afetos, com o outro que ele está fotografando. Com o escritor, com os outros fotógrafos, com o editor, com o curador. E o fundamental é isso. Até brinco que a fotografia é só um pretexto para ter essas experiências de vida, essas trocas. E os encontros com essas pessoas e esses lugares são tão intensos, que nem sempre a foto dá conta da eternidade deles. A gente tenta traduzir em imagens, mas o mais importante é isso, é muito maior do que a própria fotografia. A intensidade dessas relações, quando você tem esse olhar aberto, é muito maior do que o resultado final.

CONTINENTE Além de fotógrafo, você também atua como editor. Criou a Tempo d’Imagem com o intuito da autoedição? TIAGO SANTANA De certa forma, fomos forçados a montar uma editora para poder viabilizar esses projetos. Se observarmos, 15 anos atrás, não existiam muitos livros do gênero. No meu caso, não há um intuito comercial. Claro que a venda e a distribuição são importantes,

“A fotografia, para mim, é encontro. É o encontro do autor com ele mesmo, com o seu mundo, seus afetos, com o outro que ele está fotografando”

eu queria contar. Com o p&b, você fica mais focado nas expressões humanas, nos traços. Além disso, o meu p&b tem a ver com xilogravura, aquele preto no branco bem duro. Outro fator é a dicotomia do sagrado e profano, dos dois lados que estão sempre presentes. É da forma que eu queria contar. Conheço trabalhos feitos no Juazeiro, em cor, que são ótimos, mas cada um tem que encontrar o seu caminho. CONTINENTE No ano passado, trabalhos de sua autoria foram publicados na coleção Photo Poche com o título Sertão, palavra e conceito bem brasileiros. As palavras conseguem traduzir o Sertão lá fora, ou a fotografia é mais incisiva? TIAGO SANTANA Acho que a fotografia. Mas posso voltar um pouquinho antes de chegar em Sertão? Uma das relações da minha história é com o livro. A própria coleção Photo Poche, idealizada por Robert Delpire, foi fundamental para mim e para uma determinada

CONTINENTE O livro será editado no Brasil? TIAGO SANTANA A Cosac Naify comprou os direitos autorais da coleção para o Brasil. Ela já publicou cinco títulos, vai publicar mais cinco

continente JUNHo 2012 | 11

Entrevista_Tiago Santana.indd 11

21/05/2012 15:43:42


O melhor deste mês no ambiente virtual da revista Continente

con ti nen te

100 ANOS DE LUIZ GONZAGA

CUZCO

Em junho, a revista destaca o compositor pernambucano, no ano do seu centenário. No bojo dessa iniciativa, o site da Continente traz vídeos do músico interpretando canções célebres, como Assum preto, Respeita Januário e A feira de Caruaru. Organizamos também uma galeria com imagens pouco divulgadas, que abrangem fotografias de shows, momentos familiares e até curiosas publicidades tendo o artista como “garoto propaganda”. E ainda disponibilizamos a íntegra de dois textos do arquivo da revista sobre o compositor de Exu.

Todos os anos, a cidade histórica recebe milhares de pessoas para a Festa do Sol. Confira outras imagens das festividades de rua na galeria do site.

Conexão

RENEGADOS Além dos discos citados na matéria da seção Sonoras, ouça músicas de outros álbuns que carregam o estigma de “malditos”, como o de Odair José (ao lado).

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

MÚSICA

CINEMA

COZINHA

RÁDIO

Plataforma para artistas e apaixonados por novidades musicais

Publicação digital acadêmica sobre o audiovisual

Criatividade e cultura pop a partir de pratos, talheres, panelas e afins

Uma viagem no tempo às músicas mais populares das últimas décadas

thesixtyone.com

ufscar.br/rua/site

marketingnacozinha.com.br

radiotimemachine.herokuapp.com

O site possui controles e estrutura de uma rádio, nesse caso, randômica. A seleção das músicas pode ser customizada pelo usuário de acordo com a popularidade, estilo musical preferido e o seu próprio humor. As bandas ou cantores que submetem seu trabalho ao Sixtytone não buscam fins lucrativos, mas a divulgação de seu trabalho para algum potencial fã, já que o site permite agrupamentos e indicações conforme o perfil do usuário. Além disso, é possível apontar como favoritas bandas e faixas, e compartilhá-las nas redes sociais.

A Revista Universitária do Audiovisual (RUA) nasceu de uma iniciativa de alunos e professores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e tornou-se um espaço para divulgação de trabalhos acadêmicos, novidades e atividades acerca de cinema. Através do olhar de profissionais da área, o site pretende estimular a produção crítica e a reflexão sobre cinema e audiovisual. A página conta com seções que abarcam desde textos analíticos, coberturas de festivais e estreias até resgate histórico de filmes.

Dedicado a fazer um garimpo de utensílios divertidos e curiosos que podem ser usados na hora de cozinhar e comer, o site é comandado pelo publicitário Rafael Manteso, que largou tudo para se dedicar à gastronomia. Diferente do nome indicado para a página, marketing está longe de ser a proposta do conteúdo, que não se atém a nenhuma marca ou a vendas, mas, sim, à inspiração gastronômica que pode existir no mercado de objetos inusitados.

“Olá, eu sou uma máquina do tempo musical. Volte ao tempo e escute como as músicas mais populares mudaram de 1940 até os dias atuais, segundo o Top 100 da Billboard.” A mensagem apresenta a proposta do site minimalista que se atém a uma escala navegável dos últimos 72 anos, acompanhada dos discos mais ouvidos de cada época. Estão disponíveis as faixas completas de cada álbum, além da correspondente capa. Uma boa opção para relembrar a história das paradas musicais de forma prática, rápida e fácil.

continente junho 2012 | 12

Conexao_Jun.indd 12

21/05/2012 15:48:07


blogs ILUSTRAÇÃO howfuckingromantic.wordpress.com/about

69 love songs, ilIustrated reúne belíssimas histórias em quadrinhos, de diferentes ilustradores, baseadas em composições da banda americana The Magnetic Fields.

classificados missedconnectionsny.blogspot.com

E SE SUA CASA INCENDIASSE? Site abre espaço para qualquer um revelar seu apego a objetos pessoais. A forma de fazer isso é fornecer uma lista e, principalmente, uma fotografia tipo still life theburninghouse.com

Existe uma frase genial de Jean-Yves Leloup que afirma: “Se minha casa pegasse

fogo, eu salvaria o fogo”. Uma declaração fortíssima de desapego. Mas nem todos conquistaram tal desprendimento. O site The Burning House é uma prova disso, ao indagar e obter respostas exatamente contrárias ao pensamento de Leloup. Instigados, os mais nostálgicos responderam “fotos antigas” ou “lembranças da infância”, enquanto os mais artísticos levariam suas câmeras fotográficas, pincéis ou cadernos de anotações. Haveria também quem não desgrudasse de seu calhamaço de dinheiro economizado ou do computador. O projeto dá essas respostas através de um belo acervo de imagens, que reúne fotografias produzidas, no estilo still life, de objetos pessoais dos entusiastas da ideia, vindas do mundo inteiro. O critério para a escolha dos objetos são a praticidade, o valor material e, principalmente, os sentimentos. Qualquer um pode fazer parte da experiência e mandar a sua versão fotográfica do que não deixaria para trás, no caso de um incêndio. O resultado é um convite aos bastidores afetivos da vida de desconhecidos. Os utensílios – desde documentos, fotos e maquiagens a facas, eletrônicos e animais domésticos – refletem os interesses, histórias e prioridades envolvidos na vida de cada um. MARIA EDUARDA GUEIROS

Sabe aquele site Craigslist, em que há a seção Missed Connetions, pela qual é possível achar pessoas que lhe interessaram na rua? Nesse blog, a artista Sophie Blackall traduz em desenhos esses classificados, em imagens poéticas, evocativas.

DESIGN designsponge.com

Compilação de tutoriais e dicas de como transformar utensílios em desuso em objetos criativos e cuidadosamente dirigidos à determinada ocasião.

HUMOR togato.tumblr.com

Tô gato? pode ser considerado um desvario. Ele supõe o que diriam escritores – e aqui não importa de que geração – antes de sair para uma balada. As frases-legendas que começam pelo bordão “Tô fazendo isso ou aquilo” são inspiradas em frases lidas nas orelhas dos livros deles.

sites sobre

retratos AUTORRETRATO

TERRY RICHARSON

MÚSICOS

www.thetutuproject.com

www.terryrichardson.com/BRAZIL

www.nikolajlund.com

O fotógrafo Bob Carey viajou por diferentes lugares do mundo e fez fotos dele mesmo vestindo apenas um tutu de balé.

Nesta série, o fotógrafo norte-americano mostra seu olhar pop e sexy sobre o carioca em seus maiores estereótipos.

Nikolaj Lund fotografa músicos clássicos em situações e cenários curiosos, na companhia de seus instrumentos.

continente junho 2012 | 13

Conexao_Jun.indd 13

21/05/2012 15:48:08


REPRODUÇÃO

Port f 1

portfolio.indd 14

continente junho 2012 | 14

21/05/2012 15:51:41


t f贸lio continente junho 2012 | 15

portfolio.indd 15

21/05/2012 15:51:43


con ti nen te

Portfólio

Tatiana Clauzet

NATUREZA E SÍMBOLOS EM HARMONIA TEXTO Adriana Dória Matos

De tão simétrica, tão rica em detalhes, a pintura de Tatiana Clauzet dá, a quem a

observa, a impressão de rigoroso controle e planejamento. De que houve estudos, esboços, racionalizações, enfim. Nada disso. A artista conta que a relação formapensamento em seu trabalho é intuitiva: ela não “sabe” o que vai pintar até que se coloque diante da tela ou do papel, que se oferecem como lugares de expressão poética, apenas considerada plenamente realizada quando está tudo equilibrado, harmônico. Essa estética, de um rigor não calculado, é construída pela observação ou imitação da natureza, esclarece Tatiana. “A simetria está muito presente nas sementes, folhas e se expressa nas polaridades inerentes a tudo, como o dia e a noite, o masculino e o feminino, o céu e a Terra.” É verdade que Tatiana conta com abundante material de referência para sua obra telúrica e vibrante. Nascida em São Paulo, em 1980, ela mora no Rio de Janeiro, num pedaço espesso de Mata Atlântica, na Serra da Itatiaia, onde também mantém seu ateliê. Além desse contato diário com os elementos da natureza muito bem interpretados em sua obra, ela investe constantemente em viagens de pesquisa a ambientes naturais, tanto no Brasil quanto fora dele. Dos relatos que faz dessas viagens, podemos depreender a tarefa de anotar elementos que posteriormente serão incorporados ao seu repertório imagético. “Sempre levo meus bloquinhos, que ficam repletos de anotações. Minhas viagens nada mais são que a busca pela beleza do aqui

Página anterior 1 azul-guará

arte do que é P retratado por Clauzet é colhido em viagens a ambientes naturais

Nestas páginas 2 jorro

O colorismo equilibrado e a profusão de adornos em Meditando palavras

âmago em flor 3 Nesta obra, alguns dos elementos caros à artista: vegetais, répteis, aves

4 felino O grito de Thalu, o tigre da Tasmânia, integra acervo recente da artista

continente junho 2012 | 16

portfolio.indd 16

21/05/2012 15:51:45


2

3

4

continente junho 2012 | 17

portfolio.indd 17

28/05/2012 15:36:53


5

Portfólio

con ti nen te

e agora.” Tatiana desenha animais – sobretudo aves, répteis e pequenos mamíferos – e vegetais, ciclos solares e lunares; e uma variadíssima gama de cores, padrões e texturas. Embora declarar-se autodidata não cause espanto – quando sabemos de incontáveis talentos que não tiveram qualquer educação formal

–, surpreende o depoimento de Tatiana de que jamais havia pensado em ser artista plástica, até conhecer seu marido, numa viagem que fez à Austrália, no final dos anos 1990, quando ainda não tinha 20 anos. Quando casaram, eles foram morar numa fazenda no deserto australiano, “no meio do nada”, e naquele ambiente forte e isolado se dedicaram, ambos, inteiramente à pintura. Ainda que não soubesse do seu futuro trabalho, Tatiana Clauzet vinha sendo preparada pela vivência familiar

para a tarefa. Podemos verificar isso em sua árvore genealógica: os avôs paternos eram artistas da pintura e da madeira. O pai escreve, a mãe é paisagista. Em sua casa, portanto, sempre houve livros e arte, e um apreço pela natureza. Podia ter acontecido de nada disso gerar uma artista, mas... a semente germinou. Árvore e germinação, palavras contidas no parágrafo anterior não são gratuitas, pois remetem a aspectos recorrentes na pintura dessa artista, em cuja obra há a imbricação de

continente junho 2012 | 18

portfolio.indd 18

28/05/2012 15:36:56


6

5 de onde tudo vem Elementos desta pintura sintetizam a imagética da obra da artista paulista, radicada em Itatiaia, no Rio de Janeiro 6 noite e dia O caráter simbólico e espiritual de suas pinturas evidencia-se em Compasso do tempo

referências a simbologias antigas – de matrizes espirituais, artes e artesanias de povos tradicionais – e a representação de elementos da natureza. Tatiana diz que, muitas vezes, desconhece a interpretação de vários dos símbolos manejados e que

recebe do público diversas informações, as quais ela vai agregando à sua experiência. Sua obra alegre e colorida pode ser um testemunho de que não precisamos racionalizar tudo para chegarmos a resultados harmônicos e satisfatórios.

continente junho 2012 | 19

portfolio.indd 19

28/05/2012 15:36:59


Fotos: divulgação

instrumento flatulento

Destruir para conservar Nunca se ouviu falar tanto do Contemporary Art Museum (CAM) de Casoria, situado na província de Nápoles, como nos últimos meses. No quesito visibilidade, a ação Art war, idealizada pelo diretor do espaço, Antonio Manfredini (acima), foi um sucesso e ganhou as páginas dos jornais do mundo inteiro. Mas, se os resultados efetivos virão, ainda não se sabe. O ato consistiu em queimar diariamente algumas obras do museu, começando pelos trabalhos da artista francesa Séverine Bourguignon, que concordou com o protesto. Segundo Manfredini, a motivação da direção é simples: a indiferença do governo já está condenando aquelas obras, trata-se, apenas, de agilizar as perdas. Apesar de não se manterem com dinheiro público, a recessão tem eliminado fontes de financiamento privado. Para completar, a máfia vem aumentando seu poderio econômico na região e tirando o sossego das instituições artísticas. O CAM ficou conhecido por fazer exposições contra o Camorra – grupo mafioso de Nápoles – e, posteriormente, receber ameaças. Por isso, o diretor chegou a pedir asilo político à chanceler alemã Angela Merkel, mas não obteve respostas. Diante do quadro desanimador, Manfredini não parece tão esperançoso, e lembra o descaso com outros patrimônios: “Se o governo italiano deixa Pompeia desabar, que esperança pode ter este museu?”. GIANNI PAULA DE MELO

con ti nen te

A FRASE

“Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.”

O contrafagote é um dos instrumentos visualmente mais bonitos de uma orquestra sinfônica, porém de fraca potência sonora. Apenas ouvidos muito bem treinados conseguem distinguir seu timbre grave e rouco em passagens orquestrais massivas – e raro é seu emprego em solos, como no início do Concerto em ré para piano de Ravel. Por outro lado, Dmitri Chostakovitch (19061975) arrumou um emprego inusitado para o contrafagote em sua ópera O nariz, baseada na peça teatral de Gogol. Em uma cena do primeiro ato, quando o major Kovaliov encontra-se no quarto assimilando o desaparecimento de seu nariz, ocorreu ao compositor russo representar os escapes matinais de flatulência do protagonista da história recorrendo aos esquisitos rosnados que o instrumento pode emitir. (Carlos Eduardo Amaral)

Balaio feijoada da repressão

Há 40 anos, o semanário O Pasquim publicava uma entrevista com um personagem esdrúxulo, mas especial: a feijoada enlatada. Com as mãos atadas pela censura – o tópico “política” impedido –, os editores formularam essa sarcástica empreitada para criticar a colonização ideológica do Brasil, personificada pela ditadura militar. O gosto ruim da comida em lata servia de metáfora para o regime opressor. Diante desse clássico do humorismo, pergunta-se: aonde andam comediantes e jornalistas capazes de criar dispositivos inteligentes e hilariantes para discutir os problemas do país? (André Valença)

José Saramago, escritor português

continente junhO 2012 | 20

Balaio.indd 20

28/05/2012 15:38:42


criaturas

sabotage para crianças Entre as várias homenagens póstumas feitas a Adam “MCA” Yauch, ex-integrante dos Beastie Boys, morto de câncer no mês passado, uma das mais engraçadas (e fofas) é o remake de Sabotage, clássico da banda de 1994 e considerado um dos melhores videoclipes de todos os tempos. No vídeo do cineasta James Winters, crianças com falsos bigodes, perucas, armas e óculos ray-ban, interpretam os papeis do trio de hip hop, no clipe dirigido originalmente por Spike Jonze, uma verdadeira paródia aos filmes policiais da década de 1970. Yauch, que também dirigiu vários vídeos da banda, protagonizou uma polêmica no MTV Video Music Awards de 1994, quando sua banda perdeu para o R.E.M. Na ocasião, ele, fantasiado (foto acima), interrompeu o discurso vencedor do vocalista Michael Stipe, afirmando que Jonze deveria ter levado o prêmio. (Olivia de Souza)

da “cozinha” à cozinha

O ex-baterista dos Ramones, Marky Ramone, nunca escondeu sua paixão por comida; até já participou de uma edição do programa televisivo do chef Anthony Bourdain, fã da mítica banda novaiorquina de punk. Atualmente, Marky, que está à frente do grupo The Blitzkrieg, atrelou a culinária a interesses financeiros, criando a Cruisin Kitchen. Instalada numa caminhonete, a empresa vende quatro tipos de pratos com almôndegas, preparados pelo chef Keith Album. A “cozinha sobre rodas” circula por Nova York. Marky, conhecido pela velocidade e vigor com que conduzia a “cozinha” dos Ramones, foi expulso do grupo, em 1983, pelo guitarrista Johnny Ramone, devido a seus problemas com o álcool, mas retornou em 1987 e permaneceu até o fim do quarteto, em 1996. (Débora Nascimento)

Willian Faulkner (1897-1962) Por Felipe Moreira

continente junhO 2012 | 21

Balaio.indd 21

28/05/2012 15:38:44


ilustração: jô oliveira

con ti nen te

especial

continente junho 2012 | 22

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 22

28/05/2012 15:45:25


No ano do centenário do Rei do Baião, além das esperadas comemorações, sua vida e obra voltam a ser alvo de análises que reafirmam o seu pioneirismo em diversos aspectos, seja como criador de um gênero, como self-made man ou o primeiro nordestino a tornar-se astro nacional. Nesta série de matérias, propositadamente lançada no mês em que se celebra São João Batista, período em que a música de Gonzaga se faz presente nos festejos juninos nas ruas, casas de shows, praças e arraiais, revisitamos esse personagem e seu contexto: a história do forró, a propagação do uso da sanfona no Brasil, o impacto do cancioneiro gonzaguiano, a legitimação da identidade nordestina através de sua música e a sua marcante personalidade cênica.

continente junho 2012 | 23

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 23

28/05/2012 15:45:27


con especial ti nen te

FORRÓ O gênero que guiou a estrela

Desde a criação do trio zabumba-sanfona-triângulo, por Luiz Gonzaga, até sua eletrificação, difundida pelo próprio sanfoneiro, o estilo musical passou por diversas transformações texto José Teles

Priscila é a última colega de infância, ainda viva, de Luiz Gonzaga e mora em Exu (PE). Ela está perto dos 100 anos, como estaria Gonzagão (a quem chama de Lula), e em cuja casa, no Rio de Janeiro, trabalhou durante 38 anos. É igualmente uma das raras pessoas no Sertão que ouviram as músicas com as quais Luiz Gonzaga cresceu. Uma delas é Cesário Pinto que, segundo Priscila, é também uma dança. Cesário Pinto, provavelmente, é o autor da música. Não por acaso, Severino Januário (mais conhecido como Zé Gonzaga), irmão de Luiz Gonzaga, compôs uma música com esse título, lançada em 1953. Nas primeiras décadas do século passado, não havia a preocupação dos autores com direito de composição. Chamavase “toque”, conforme ressaltou em entrevista ao programa Ensaio, da TV Cultura, Sebastião Biano, da Banda de Pífanos de Caruaru – que inspirou Gilberto Gil a elucubrar o que viria a ser o Tropicalismo: “Nessa época, não era ‘musga’, chamava não, era moda ou toque. Toca o

toque de fulano! Ou toca uma moda de fulano. Que a gente não sabia fazer música, tocava a dos outros”. Priscila canta também Asa branca (com letra bem diferente da que ficou conhecida) e Quixabeira, a possível inspiração para Juazeiro, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (Teixeira compôs outra Quixabeira, depois

A cantoria de viola é crucial na formação da música do sertão, que, anos mais tarde, seria chamada de forró que parou de assinar músicas com Gonzaga). Os que entrevistaram Luiz Gonzaga pecaram nesse aspecto. Não puxaram por ele para que relembrasse o cancioneiro popular no Sertão até a década de 1930, quando foi embora de sua cidade natal com 18 anos incompletos. É o próprio Gonzaga quem fala da música que

aprendeu na infância e adolescência, em sua biografa autorizada, O sanfoneiro do Riacho da Brígida, de Sinval Sá (1966) – infelizmente, de forma bastante resumida, em um trecho do livro, com um toque de ficionalização do muitas vezes empolado biógrafo. Escreve ele: “Certa vez, numa daquelas brincadeiras, um cabra fiota, das bandas do Baixio dos Doidos, daqueles de lenço no pescoço, pensando que me desmoralizava, fez blague, pra se tornar engraçado: ‘Ô menino, tu sabe tocar tango ‘agintino’?’ Grelei para ele, entendendo suas intenções, e rematei em cima da bucha: ‘Só pra quem sabe dançar’. Todo mundo riu. O cabra vacilou, olhou pras moças com ar de desprezo, como a dizer que as damas não o acompanhariam, que era bom no tango, mas não tinha com quem dançar. Procurou uma desculpa, uma saída honrosa. Percebi, num lampejo, aonde queria chegar. Estava me ardendo pra dar-lhe uma lição, pois sabia tocar um tango caprichado. Fui dando o tom e gritei-lhe: ‘Pode tirar, que elas riscam’. Meio descabriado, o cara tirou a primeira moça que se lhe

continente junho 2012 | 24

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 24

28/05/2012 15:45:27


informações que vão aparecendo. Os batuques dos negros em cidades como Salvador, Recife, Rio de Janeiro foram se impregnando da música europeia. Manteve-se mais “pura” nos grotões do país, sobretudo no Nordeste, onde foi maior o tráfico de africanos. Embora em bem menor número no Sertão, os escravos eram suficientes para suas festas serem anotadas por viajantes estrangeiros, como o inglês Henry Koster ou o francês L.F. Tollenare, que aqui estiveram no século 19. Em seus livros, são descritos os ritmos e danças até então não registrados em partituras, discos e, evidentemente, longe das primeiras transmissões de rádio. Especificamente em relação à música nordestina, é fundamental o romance Dona Guidinha do Poço, do cearense Manuel de Oliveira Paiva, escrito em 1892, mas lançado 60 anos depois. Dona Guidinha do Poço não pode ser classificado como um grande romance, mas é de valor inestimável pelos detalhes que o autor narra de sua época. Oliveira Paiva destrincha o momento exato em que os batuques de negros, mesclados a gêneros europeus, faziam a transposição da senzala para a casa-grande, e ratifica a importância da cantoria de viola na formação da música do sertão, que, anos mais tarde, seria chamada de forró. À época, o violeiro não era apenas apreciado pela precisão e prumo dos versos que tirava de improviso, mas também por animar um samba, com baiões e rojões. Em relação ao primeiro atributo, o pinicado da viola incensando a verve poética

1 traje completo Músico com indumentária e instrumento que foram suas marcas registradas

reProdução

apresentou. O cabra tirou a moça para dançar, mas ela, que se chamava Naninha, de acordo com a narrativa, era excelente dançarina e o rapaz se perdeu no tango. Geni (Efigênia, irmã de Gonzaga) gritou: ‘Este nojento sabe lá o que é tango argentino!’ Começou a risadaria, a mangofa. O coitado olhava pra um lado, procurando uma saída. E não achando pretexto pra parar, inquiriu: ‘Isto é tango agintino ou foxtrote?’”. Quando isso aconteceu, Luiz Gonzaga deveria ter de 16 para 17 anos. Geni já tinha idade suficiente para ir aos sambas (num tempo em que as mulheres casavam-se adolescentes) e a música estrangeira havia alcançado o Sertão. Música, como apontou Sebastião Biano, era “musga”. Um tocador de fole na região pouco se importava com quem era seu dono ou que idioma falava. Luiz Gonzaga nunca se preocupou com as tais “raízes”, tão prezadas pelos chamados gonzaguianos. Em 1973, numa entrevista ao Jornal do Commercio, ele assumiu com todas as letras que foi influenciado pela música gringa: “Eu tive a influência do jazz, porque eu consegui no baião, mesmo no choro, um certo balanço diferente na sanfona, porque eu toquei em orquestra, porque eu toquei em cassino, porque eu toquei em gafieira, porque eu toquei no rádio. Eu toco de ouvido até hoje. Então eu criei meu próprio estilo assim. Um pedacinho dacolá, pedacinho do jazz, e um pedacinho de regional”. A música do povo vive em constante evolução, interagindo com as

1

continente junho 2012 | 25

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 25

28/05/2012 15:45:31


con especial ti nen te do cantador; ao segundo, os versos que engrenavam acompanhados pelos dedos ágeis nos bordões e primas. Nas palavras de Oliveira Paiva: “Até que enfim, executadas diferentes afinações, em cima e em baixo, o da viola de melhor regra fez a postura do baião, entrando em seguida a marcar com o polegar no bordão, ao passo que com aquele outro dedo passava a pontear um sapateado sereno, encrespado de quando em vez por um trecho vermelho de rasgado. O toque produzia nos circunstantes aquele susto que é sintoma de prazer. ‘Chegue, seu Secundino’! A outra viola enfiou no rojão, amarrando o toque, e naquilo seguiram casadinhas que era um regalo. Zé Tomás, que sentia umas dorzinhas cansadas nos músculos do pescoço, ficara febril. O jeito era escorregar no sapateado. Bateu rente no terreiro, com as mãos para trás, avançou para os tocadores, peneirando pé atrás, recuou, pé atrás, pé adiante, pisou duro, estirou os braços para a frente com a cabeça curvada e, estalando as castanholas dos seus dedos rijos, fez uma roda de galo que

arrasta a asa e atirou em Carolina ‘Abre a roda!’, gritou o Secundino, ‘Quero vê, Calu’. A pernambucana saiu, empinada para diante, dando castanholadas para os lados”. Mais à frente, o romancista conta sobre a irritação de um dos personagens, Silveira, porque ninguém dava atenção ao que cantavam os repentistas, atendo-se à levada do rojão que se prestava à dança: “Já os cantadores haviam entrado num desafio que o Secundino reclamava não poder bem apreciar: – ‘Neste fordunço a cantoria se perde quase toda’ – fez-lhe ver o Silveira. ‘Eu não gostei nunca de cantá im samba... Home! Essa fonção de samba só mesmo pra quem qué se metê na vadiação’”. Em Dona Guidinha do Poço são citadas, também, a polca, a quadrilha e a habanera, a trinca fundamental na miscigenação de ritmos que desaguou na música popular brasileira.

NASCE O BAIÃO

Até começar a carreira profissional no Rio de Janeiro, no último quarto

2 trio

O segundo conjunto de Gonzaga era formado por Salário-Mínimo (triângulo) e Cacau (zabumba)

3 jackson do pandeiro Paraibano apresentou uma nova vertente para o forró, com um canto influenciado pela embolada

4 genival lacerda

Integrante da segunda geração forrozeira, cantor ficou famoso pelas músicas de duplo sentido

da década de 1940, Luiz Gonzaga foi encorpando seu baú musical com os mais diversos gêneros. Como soldado do exército, ele conheceu de norte a sul do país. Fixandose em Minas Gerais, até deixar a farda, ele assimilou valsinhas do acordeonista Antenógenes Silva, sambas de Moreira da Silva, canções de Orlando Silva e Francisco Alves. O estágio no efervescente mangue, a zona do baixo meretrício carioca, coalhada de marinheiros estrangeiros, em plena Segunda

2

continente junho 2012 | 26

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 26

28/05/2012 15:45:32


imagens: reprodução

Guerra Mundial, trouxe àquele matuto semianalfabeto dos cafundós do Sertão beguines, blues, boogie-woogies. Ele e Humberto Teixeira, embora fossem de castas diferentes (Gonzaga negro, pobre, iletrado; Teixeira, branco, de família abastada, e com curso superior), comungavam da mesma formação cultural sertaneja. Naquela tarde em que os dois se reuniram no escritório de advocacia de Humberto Teixeira, na Avenida Calógeras, no centro da então capital da República, recorreram ao baião da viola, citado no Dona Guidinha do Poço, para criar a música-guia do gênero – que logo seria a dança da moda, não apenas na capital federal, mas no Brasil inteiro, o baião. Lançado pelos Quatro Ases e um Coringa, em 1946, Baião foi um sucesso imediato, com o ritmo já consolidado quando Luiz Gonzaga o gravou três anos mais tarde. No entanto, como denominação de um gênero musical, a primeira vez em que o nome baião constou no rótulo de um disco foi, coincidentemente, no ano em que Luiz Gonzaga fugiu de casa, em 1930. O baião intitulava-se Estrela d’alva e foi gravado pela pernambucana Stefana de Macedo, que gozou de imenso sucesso e prestígio até os anos 1940. A música era de autoria de João Pernambuco (que acompanha a cantora na gravação), mas nem de longe se assemelhava ao Baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, do mesmo modo que o Forrobodó, de Chiquinha Gonzaga, não tem nada a ver com o forró nordestino. Forrobodó é uma expressão antiga, com significado mais ou menos igual a furdunço, confusão, zoeira, festa, samba. Aliás, a primeira música que apresentava esse termo, Forrobodó , é de 1913, de autoria de M. Malaquias e interpretada pela Banda Odeon (um tango, conforme o selo do 78 RPM). A primeira música gravada por Luiz Gonzaga, que leva forró no título, foi Forró de Mané Vito, assinada por ele e Zé Dantas, em 1950. Mas, até aí, forró não designava uma música, mas uma festa, um “forrobodó”, um “samba”. Isso já havia acontecido antes com o maxixe e o frevo – usado inicialmente para designar “frege”, a festa animada pela música ainda sem nome definido.

3

4

A VEZ DO FORRÓ

Forró, como um gênero musical, aparece pela primeira vez em um disco, em 1956, com Forró no Alecrim, de Venâncio e Corumba, gravado por Zito Borborema, pela RGE. O paraibano de Taperoá, Zito Borborema, fez parte da segunda geração do forró que, influenciada por Luiz Gonzaga, entrou em cena nos anos 1950. Com Dominguinhos e Miudinho, Zito integrou a composição original do Trio Nordestino, que terminou sem gravar disco – segundo Dominguinhos, porque Zito Borborema já era relativamente bem-sucedido quando participou do trio. Nessa segunda geração, destacam-se também Abdias, Marinês, Genival Lacerda, Zé

Gonzaga, Severino Januário e Jackson do Pandeiro, o único entre os citados que estenderia os limites do gênero sem se ater ao coco, já que é muito comum tratar o paraibano, de Alagoa Grande, de “coquista”. Jackson do Pandeiro (1919-1982) criou uma nova vertente do forró. Se Luiz Gonzaga valeu-se do baião, ele foi de rojão, com Forró em Limoeiro, de autoria do injustiçado compositor pernambucano Edgar Ferreira, fornecedor de uma “ruma” de sucessos para Jackson. De formação musical bem diferente, Jackson passou por um estágio fundamental para sua carreira como pandeirista da Orquestra Paraguary, da Rádio Jornal do Commercio, convivendo com

continente junho 2012 | 27

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 27

28/05/2012 15:45:34


con especial ti nen te reprodução

5

nomes como Clóvis Pereira, Sivuca e Luperce Miranda, acompanhando com o pandeiro os mais diversos tipos de músicas e cantores que vinham fazer apresentações na emissora. Quando se mudou para o Rio de Janeiro, com Almira Castilho, Jackson não se ateve aos ritmos nordestinos. Foi de marchinhas, choro, samba, coco, embolada, forró, baião. Embora se valesse da instrumentação formatada por Gonzagão – triângulo, zabumba, sanfona –, ele era acompanhado por conjuntos regionais, sopros e metais. Ao contrário de Luiz Gonzaga, que passou a aceitar novidades na sua música somente a partir do show Volta pra curtir, em 1972, Jackson inovou com canções como Chiclete com banana (1959), de Gordurinha. Essa liberdade do paraibano o levou a criar a própria versão do forró, influenciando uma leva de intérpretes e forjando uma assinatura vocal, verdadeiro malabarismo na divisão de frases. Luiz Gonzaga não era mais o único modelo de forró a ser seguido. Jacinto Silva, Ary Lobo, Genival Lacerda e Joci

A lambada estilizada de bandas dos anos 1980 passou a ser chamada de “forró”, e a música de Gonzaga, de “pé de serra” Batista são alguns dos que seguiram a escola de Jackson do Pandeiro. Um momento de transição na carreira de Luiz Gonzaga, e do forró, foi o citado espetáculo Volta pra curtir, com direção musical de José Carlos Capinam. Lua trocava a carroceria de caminhão pelo palco classe A do Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, com plateias de universitários lotando a casa para ouvir a música que havia sido escanteada para os grotões do Nordeste desde o advento da bossa nova. Seu grupo foi turbinado com guitarra e baixo elétricos. Vale ressaltar que o forró plugado já existia antes desse show. Dois irmãos de Gonzagão, Zé e Chiquinha Gonzaga, tocavam com sanfonas ligadas à tomada.

OITO BAIXOS ELÉTRICO

Numa entrevista à revista Bondinho, que fazia a linha udigrúdi chique, Luiz Gonzaga comenta sobre a irmã Chiquinha: “O folezinho dela, de oito baixos, é elétrico também, que é pra fazer um volume melhor no forró, né? Zé Gonzaga, meu irmão, também toca fole elétrico”. Uma eletricidade que ainda lhe soava como iconoclastia. Talvez por isso, falando sobre os músicos que tocam com ele no Volta pra curtir, Gonzaga não cite o nome do guitarrista, tratado como um “guitarristazinho que tá tendo uma oportunidade agora”. Mas, dentro de pouco tempo, Lua viu-se obrigado a reconhecer que não dava mais para continuar sendo acompanhado pela instrumentação que inventou nos anos 1940; nos anos 1970, ele formou até uma banda, a LG Som. O ano de 1972 foi crucial para a música popular em todas as áreas. A poeira levantada durante os anos 1960 havia assentado em 1970, ano de transição, e, em 1972, surgiam sonoridades e estilos. O forró mudou. Foi no começo dos 1970 que a malícia sempre presente na música

continente junho 2012 | 28

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 28

28/05/2012 15:45:36


divulgação

5 herdeiro musical

Assim como outros músicos, Dominguinhos (E) teve apoio de Gonzaga no início da carreira

6 maciel melo

Mesmo tendo desenvolvido estilo próprio, cantor e compositor traz o Rei do Baião como referência

6

nordestina, de O cheiro da Carolina à Peba na pimenta, deu lugar ao duplo sentido. Procurando tu, Severina Xique-Xique, Pescaria em Boqueirão foram grandes sucessos nacionais, rivalizando com as versões dos Fevers nas paradas. Surgiram forrozeiros que radicalizaram, como Assisão, Zenilton e Genival Lacerda, que passou a ser conhecido como o rei do duplo sentido. Nas décadas seguintes, Luiz Gonzaga e Jackson (este, bem menos) continuaram a ser cantados pelo povo, mas quem fazia sucesso para valer mesmo eram os novatos Jorge de Altinho, que incrementou o forró com naipes de metais e guitarras, e Alceu Valença, cujo forró rock, considerado mais MPB, foi uma das influências mais marcantes dos anos 1970. Aliás, não apenas Alceu, como também o Quinteto Violado, com seu forró de pau e cordas. Curioso é que, enquanto o Quinteto atrelava-se a Luiz Gonzaga, com o qual iniciou o circuito universitário no Brasil em 1973, Alceu Valença pendia para Jackson do Pandeiro, com quem fez turnês e participou de festivais de música popular.

POPULARESCOS

Nos anos 1980, a música popular fragmentou-se em ritmos mais popularescos do que populares: axé, sertanejos, pagodeiros, e surgiu o maior adversário na trajetória do forró, bem mais do que a bossa nova, ou a jovem guarda: a fuleiragem music. Bandas como Mastruz com Leite, Mel com Terra, Feijão com Arroz denominavam de forró a lambada estilizada que tocavam. Tiveram maciça execução nas rádios, sobretudo na rede de FMs SomZoom, de Emanuel Gurgel, o produtor que idealizou a Mastruz com Leite – a princípio, apenas uma banda para tocar em bailes, em maratonas de cinco horas ininterruptas. Assim, a oxente music (como chegou a ser denominada) tomou o lugar dos verdadeiros forrozeiros nos grandes arraiais juninos do Nordeste. No começo dos anos 2000, as bandas passaram a dominar o mercado de tal forma, que o forró que Gonzaga criou recebeu o epíteto de pé de serra para evitar a confusão com as bandas de lambada estilizada

– agora espalhadas por todos os estados nordestinos. Mesmo sem estar vinculadas a grandes gravadoras, competiam em pé de igualdade com o axé, o sertanejo e o pagode, a ponto de serem cooptadas para o carnaval de Salvador, para as micaretas. Foi quando surgiram Calcinha Elétrica (Calcinha Preta) e Saia Elétrica (Saia Rodada), adotando o modelo das bandas de axé. Nesta segunda década do século 21, as bandas tornaramse globais. Aviões do Forró, Garota Safada, entre outras, entraram para o cast da Som Livre, a gravadora da Rede Globo, e, consequentemente, participam dos programas de alta audiência, tais como o Faustão e Fantástico, e têm músicas nas trilhas das novelas da rede de TV. Hoje, o pé de serra continua firme, mas não tão forte. A temática recorrente nas letras dos forrozeiros é o amor, quase sempre cantado em versos banais, com honrosas exceções, como no caso do pernambucano Maciel Melo. O gênero toca o ano inteiro, é certo, mas é bem diferente do forró que Luiz Gonzaga definiu na entrevista à Bondinho, 40 anos atrás. Nela, reafirma que o forró é criação sua e acrescenta: “É a negrada (por “negrada” entenda-se o povão). Como disse Caetano, chuva, suor e cerveja. O forró é aquilo. Ele disse aquilo pro Carnaval, mas o forró é aquilo. É aquela negrada suando por todos os poros. Bebendo e chacoalhando o esqueleto com as caboclas”.

continente junho 2012 | 29

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 29

28/05/2012 15:45:37


con especial ti nen te

ASA BRANCA O despertar do olhar nacional para o Nordeste Como o clássico do cancioneiro gonzaguiano chamou a atenção do país para os problemas da região, legitimando também a identidade local texto Climério de Oliveira Santos

Em 2010, no Rio de Janeiro, participei do Fórum Regional de Etnomusicologia. Essa disciplina trata, entre outros temas, de lutas e desigualdades socioculturais no campo da música. No último momento do evento, alguns participantes improvisaram uma confraternização, durante a qual cada um tocava um instrumento. Com uma gaita de caboclinhos, toquei alguns pontos de jurema e improvisei. No finalzinho do improviso, alguém da plateia gritou: “Canta Asa branca”. O pedido foi reiterado, eu cantei e a maioria dos presentes cantou comigo. Senti naquele momento que ela é um símbolo não apenas dos nordestinos, mas de muitos brasileiros de outras regiões do país. Qual a relação entre o conteúdo da canção Asa branca e os significados socioculturais a ela atribuídos? Quais as implicações dela na obra de Gonzaga? Em 1939, Gonzaga aporta no Rio de Janeiro, onde começa a tocar ritmos da moda radiofônica – valsa, foxtrote, choro, samba –, mas, assim que percebe que a musicalidade das suas origens é um nicho de mercado, ele passa a flertar com o Sertão. Convida o cearense Humberto

Teixeira para a empreitada que tem em mente: lançar a música nordestina nos grandes centros urbanos. Teixeira era advogado, letrista reputado e residia no Rio desde o início da década em que Gilberto Freyre e os autores do chamado “romance de 30” sedimentaram uma definição de Nordeste como espaço telúrico e área cultural. Criado como reação aos cânones antigos, focalizando a decadência da sociedade patriarcal e a emergência da sociedade urbana industrial, o romance de 30 operou pela reunião de topoi – imagens, formas, geografia do semiárido, modos de pensar, agir e sentir (migração, saudade), desigualdade social, cangaço, seca, flagelo – representados através de personagens típicos que denunciavam a sua condição humana. Com um discurso que buscou legitimar a identidade do Nordeste enquanto repositório da cultura brasileira, o romance regionalista dos anos 1930 teve uma exitosa propagação e recepção e alcançou o status de literatura nacional, tendo um papel influente na construção de um ethos brasileiro.

O encontro de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira pode ser visto como a junção de sons e imagens de uma dada localidade com a escrita de alguém que está ciente de processos socioculturais mais largos. Gonzaga não queria gravar Asa branca, argumentando que era “muito lenta, cantiga de eito, de apanha de algodão”. Humberto Teixeira o convenceu e, ante as galhofas que ocorreram durante a gravação, preconizou: “Tome nota, isso aí vai ser um clássico”. O que Gonzaga estava dizendo, segundo me contou a sua irmã Chiquinha Gonzaga, é que “Asa branca é muito triste, melancólica, que ninguém ia dançar como aconteceu com a música Baião”. De fato, os versos de Asa branca não poupam melancolia: “terra ardendo qual fogueira...” , “braseiro”, “fornalha” (seca); “Deus do céu”,

continente junho 2012 | 30

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 30

28/05/2012 15:45:38


jô oliveira

“tamanha judiação”, “São João” (cristianismo católico); “nem um pé de plantação/ por falta d’água perdi meu gado/ morreu de sede meu alazão” (seca, calamidade); “adeus, Rosinha”, “hoje longe muitas léguas/ nessa triste solidão” (sujeição, partida, saudade). Asa branca (1947) varreu o Brasil rapidamente, elevou Luiz Gonzaga à condição de astro da música nacional e se configurou como força centrípeta que manteve a obra desse artista situada no eixo simbólico calamidade-partida-saudade. Nos anos 1950, no programa intitulado No Mundo do Baião, veiculado pela Rádio Nacional (encampada por Vargas), Humberto Teixeira, Zé Dantas e Luiz Gonzaga (e intérpretes convidados) vão ressaltar elementos cunhados no romance de 30, além de outros, como a valorização da moral

Gonzaga não queria gravá-la, pois era melancólica; Humberto Teixeira o convenceu do contrário religiosa, a distinção e a hierarquia sociais. O sucesso de Gonzaga não é apenas fruto do seu inegável talento. Todos esses signos de Nordeste vão se encaixar na necessidade de emblemas nacionalizantes do regime varguista, que almejava desmantelar os focos de insurgência então espalhados pelo Brasil e tocar em frente um projeto de modernização do país. A música e o rádio foram ferramentas fundamentais para as ações dessa área e Gonzaga entrou na agenda do governo da época.

Se, por um lado, o regime autoritário utilizou os signos regionais da sua música, por outro, Gonzaga utilizou a própria reputação e chamou a atenção de vários governos para o problema do empobrecimento material da região e o respectivo contraste com a sua riqueza cultural. Os reclamos desencadearam investimentos em irrigação e revitalização de áreas atingidas pelas secas. Atitudes como essas fizeram de Gonzaga um artista pioneiro em questionar a marginalização da cultura nordestina. Não à toa, Asa branca passou a ser cantada em muitos movimentos sociais e se tornou um símbolo de luta de nordestinos e de muitos brasileiros das demais regiões, como aqueles que comigo entoaram o canto de redenção gonzaguiano no Fórum Regional de Etnomusicologia.

continente junho 2012 | 31

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 31

28/05/2012 15:45:39


con eSpecial ti nen te

r iC ar d

Artigo

o

Me

lo

cONRaDO FaLBO a cRIaÇÃO DO mItO e Da caRIcatURa Quem hoje tem 30 e poucos anos não sabe o que é a vida sem Luiz Gonzaga. É o meu caso: cresci escutando sua voz nas canções e reconhecendo imediatamente sua figura sempre que aparecia na televisão, no jornal ou nas lojas de discos. Obviamente, o fato de eu ter nascido no Recife faz com que essa presença tenha um significado todo especial, mas é igualmente óbvio que sua força foi percebida muito além das fronteiras de minha terra natal. Luiz Gonzaga é um símbolo cultural de grande alcance e complexidade. Como não estive lá para ver o fenômeno surgir, meu ponto de vista necessariamente inclui as caricaturas que também aprendi a reconhecer e que já foram incorporadas à persona pública desse artista. Existem pelo menos três delas: o mito, o estereótipo e o ritmo. O mito e o estereótipo são duas faces de uma mesma moeda e estão profundamente relacionados à dicotomia entre nordestinos e sulistas, uma divisão do mundo que o próprio Gonzaga ensinou em suas canções. Do lado dos nordestinos, o mito evoca uma realidade de exclusão social e sofrimento, mas acaba gerando uma identificação positiva, já que a “voz da seca” pertence a um cantor de enorme sucesso. Conforme essa lógica ambivalente, Luiz Gonzaga representa o retirante bem-sucedido, que venceu as dificuldades e conquistou a terra dos sulistas cantando sua própria terra. Do outro lado da moeda, a imagem de Gonzaga foi reforçada como estereótipo que respondia a um apetite da indústria cultural pelo que era considerado exótico aos olhos do grande centro da época. Aliás, conta-se que foi um cantor gaúcho, de bombacha, Pedro Raimundo, quem inspirou Luiz Gonzaga a trocar o terno pelo gibão em suas apresentações. Mito e estereótipo são ambivalentes, ao

mostrar uma realidade de sofrimento suavizada pela alegria do artista e a esperança da maioria das canções. Além disso, temos a caricatura do artista como ritmo, ou melhor, ritmos: o baião e o xote. Essa caricatura remete a dois aspectos centrais de vários fenômenos musicais brasileiros: as misturas e o gosto pela dança. A síntese de batidas europeias (como a mazurca e a polca) e africanas (batuques e umbigadas) marca as origens da nossa música popular urbana, e

produziu uma linhagem seminal que inclui o lundu, o maxixe, o choro e o samba. O debate sobre a gênese e as ramificações de cada um desses ritmos é complexo, em grande parte devido à enorme facilidade com que eles se contaminam nos espaços urbanos. Discutivelmente, o baião teria surgido do lundu, e o xote de um tipo de polca conhecida como schottisch (escocesa). Em todo caso, ambos fazem parte da movimentada história da música popular no Brasil, também marcada pela dança. Seja

continente junho 2012 | 32

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 32

28/05/2012 15:45:41


reprodução

7 indumentária

Gonzaga inspirouse na experiência do gaúcho Pedro Raimundo (com ele, na foto à dir.) para compor sua imagem

nas ruas, quintais ou salões, a dança costuma ter papel importante na consolidação de um sucesso musical junto ao público brasileiro, e não foi diferente com Luiz Gonzaga, hoje considerado a personificação do baião e do xote. Gonzaga não é um caso isolado, quando percebemos as tensões identitárias que suas caricaturas revelam. A exacerbação do exotismo de imagens estereotipadas é uma estratégia de promoção historicamente muito utilizada pela indústria cultural: Carmen Miranda é um exemplo notável. Antes de chegar

A dança costuma ter papel importante na consolidação de um gênero musical no Brasil; e foi assim com o baião aos EUA, ela já havia começado a construir um personagem que reunia os elementos necessários à identificação com o Brasil, atrativa aos olhos estrangeiros e versátil o suficiente para adequar-se ao rádio e à TV. Sua figura é especialmente complexa por aliar pele branca e origem europeia ao samba, ritmo que ainda era rejeitado por sua matriz negra e relação com a marginalidade. O sucesso da intérprete nos Estados Unidos, se não foi o responsável por alçar o samba à categoria de símbolo nacional, pelo menos despertou o interesse das elites para o poder de fogo dessa manifestação. Um caso pouco conhecido, mas não menos emblemático, é o da cantora peruana Yma Sumac (o nome vem de uma expressão quéchua de admiração), que se dizia descendente do imperador inca Atahualpa. Essa controversa

7

origem, assim como os trajes incas que usava, tornaram-se marcas registradas em sua longa carreira internacional. Sumac possuía um registro vocal extraordinariamente amplo (ia além de quatro oitavas), um ótimo exemplo de como esses estereótipos costumam ser construídos sobre uma sólida base de excelência técnica e talento artístico – regra que tanto Carmen Miranda quanto Luiz Gonzaga confirmam. Todos somos de algum modo caricaturas, para os outros e para

nós mesmos. Isso é especialmente verdadeiro no caso dos artistas, já que suas personas passam por diversas mediações e deformações na interação com o público, sem falar nas construções que são feitas diante desse compartilhamento. Partir das caricaturas na busca por melhor compreender determinados fenômenos culturais pode nos esclarecer aspectos importantes da recepção social desses fenômenos, mas muitas vezes pode nos levar de volta ao ponto de onde partimos..

continente junho 2012 | 33

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 33

28/05/2012 15:45:42


con eSpecial ti nen te

SaNFONa Desde o tempo em que não existia forrobodó

Instrumento que chegou ao país pelas mãos dos imigrantes europeus tem capítulo importante de sua história dedicado à vida de Luiz Gonzaga hoje nos parece difícil

conceber a ideia e, principalmente, a imagem. Mas houve um período em que Luiz Gonzaga tocou violão. No início da década de 1930, antes de se tornar o mais famoso sanfoneiro do Brasil, ele vendeu seu fole de oito baixos e tentava expressarse num outro instrumento. No entanto, não gostou da experiência e voltou a ter um fole, dessa vez, um

acordeom. Com o sucesso do músico, a sanfona, que está diretamente ligada à trajetória do Rei do Baião, tornou-se o símbolo máximo do forró e encontra-se tão intrincada à cultura nordestina, que parece estar entre nós desde sempre. Porém foi uma longa jornada até ser encostada ao bucho daquele que lhe daria fama e excelência DÉBoRa naSciMento

1. CHENG a história do acordeom começou há cerca de 5 mil anos, com a criação do cheng, o primeiro instrumento a utilizar a vibração de palhetas. ele possuía entre 13 e 24 tubos de bambu, e uma pequena cabaça que vibrava o som. o cheng, que é até hoje utilizado, atraiu a atenção de fabricantes europeus e foi introduzido naquele continente em 1777.

2. ACCORDION em 1822, o alemão Christian Buschman reuniu lâminas afinadas e fixadas numa placa, formando uma escala cujos sons saíam através do sopro, e denominou o invento de handaolina. em 1829, o austríaco Cyrillus damian adicionou acordes aos baixos e patenteou a descoberta como accordion – através da abertura e fechamento do fole foram produzidos efeitos como a interferência na duração das notas e o vibrato.

3. FaBricaÇÃo a fabricação em massa teve início na década de 1860, quando surgiram marcas como Hohner, Paolo soprani e stradella. Posteriormente, foram feitas modificações. no lado direito, houve a introdução do teclado de piano e, depois, a inserção do campo de registros, com teclas que alteram o timbre do instrumento. também foi empregada a inserção do sistema de baixos, que é o padrão utilizado hoje em todos os modelos que contenham mais de 12 baixos (estes podem chegar até 140). os principais tipos de acordeom são o cromático com botões, cromático com teclas (teclado, do lado direito, e botões, no esquerdo) e diatônico (botões dos dois lados).

continente junho 2012 | 34

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 34

28/05/2012 15:45:49


5. chegada ao Brasil os primeiros registros da presença do instrumento no Brasil vêm da época da Guerra do Paraguai (18641870), quando foi trazido pelos imigrantes europeus, principalmente alemães e italianos, que executavam ritmos como o fado, a valsa e a polca. Quando chegou ao país, ingressou no sudeste, Centro-oeste, sul (onde é chamada de gaita de foles, gaita e realejo) e no nordeste. nessas duas últimas regiões, no início do século passado, revelaram-se dois grandes ícones do acordeom no país, respectivamente, Pedro raimundo, primeiro, e luiz Gonzaga, depois. do sul, destacaram-se nomes como Gilberto Monteiro, Bagre Fagundes, oscar dos reis e renato Borghetti; do sudeste, Mário Zan, osvaldinho do acordeon e toninho Ferragutti; do nordeste, dominguinhos, sivuca, Genaro, Camarão, Zé Calixto e arlindo dos oito Baixos – que herdou o fole de januário dos santos, o legendário pai de luiz Gonzaga.

4. origem Festiva

6. aFinaÇÃo

assim como acontecia na europa, o acordeom foi – e ainda é – um instrumento utilizado para animar bailes campestres em muitas cidades interioranas brasileiras. apesar dessa origem festiva e quase folclórica, é capaz de executar qualquer estilo de música. “tudo o que você quiser harmonicamente a sanfona tem. vamos parar com essa história de que é um instrumento do mato. Mantive a sanfona como meu principal instrumento porque nós temos o dever e a missão de trazer a ela a qualidade de instrumento sinfônico”, defendia sivuca (ao lado).

se há poucos músicos que se dedicam a tocar acordeom, por ser um instrumento de execução complexa, afiná-lo também não é fácil. um dos raros afinadores em atividade é arlindo dos oito Baixos (foto), que executa o serviço para todos os renomados acordeonistas da região, tendo feito isso, inclusive, para luiz Gonzaga. Para ser afinador, é preciso compreender a intricada lógica da sanfona, que possui 448 palhetas internas. e, claro, nenhum sanfoneiro vai querer pôr seu fole em risco, pois é bastante caro, com preço entre r$ 2 mil e r$ 20 mil.

continente junho 2012 | 35

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 35

28/05/2012 15:45:51


con especial ti nen te reprodução

continente junho 2012 | 36

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 36

28/05/2012 15:45:53


performance Uma sanfona peculiar e a imbatível interpretação A popularidade de Luiz Gonzaga deve ser entendida para além de seu talento e virtuosismo, aos quais se somam as habilidades corporais e o domínio de palco TEXto Felipe Trotta

O sucesso de um artista da música pop não pode ser explicado apenas por parâmetros musicais. Astros como Madonna ou Michael Jackson, ocuparam lugares de ponta na mídia internacional, conjugando talento musical com indiscutíveis habilidades corporais para a dança e performance de palco. No Brasil do século 21, casos como o de Michel Teló ou da banda Calypso só podem ser entendidos a partir de uma complexa conjugação de fatores como repertórios, estruturas de palco, performances e sedução. O artista do mundo da música é um sujeito que reúne múltiplas facetas, irredutíveis ao universo restrito da prática de elaborar sons. Porém, em alguns casos, a habilidade de construir sons e timbres se torna um eixo a partir do qual a projeção midiática se constrói, quase sempre em torno da voz do cantor – protagonista da cena pop. Luiz Gonzaga era exatamente um desses casos. Acordeonista de indubitável talento, ele elaborou um universo simbólico e temático que alavancou a invenção de um novo gênero musical – o baião – cuja estruturação sonora narrava e difundia uma certa ideia de Nordeste. Em torno da sonoridade de sua sanfona e do seu peculiar canto, o ritmo sedimentou um imaginário que descrevia o sertão ou, mais especificamente, a saudade do sertão. Com esse pano de fundo, seus parceiros materializavam temáticas, histórias e refrões que se

revestiam de uma ambiência centrada musicalmente no fole de mestre Lua. Fole que, basicamente, se presta a duas inflexões ligadas à referida saudade do sertão. A primeira, que acentua o sofrimento da distância, é acionada pela execução do fole esticado, prolongando as notas e os acordes, tensionando o percurso de seu canto e da granulação de sua voz. É quando a “saudade dói”, as “vozes da seca” gritam ou quando o sertanejo se pergunta “pra que tamanha judiação?”. A segunda, festiva, é ouvida no suingue da articulação rápida de sua sanfona, jogando para a pista de dança de terra batida a sensualidade dos bailes desse mesmo sertão, visto de longe. É a sanfona da “sala de reboco”, sanfona que “funga” e mantém o baile até “o sol raiar”. A sanfona de Luiz Gonzaga é a grande protagonista da invenção do baião, é a “sanfona do povo” – de um determinado povo, o “nordestino” – e é também o som de seu portavoz, hábil performer da indústria da música. Por esse motivo, considero irrelevantes as dúvidas que pairam em torno das habilidades composicionais de Luiz Gonzaga, intensificadas pela justa homenagem que seus parceiros têm recebido (como Humberto Teixeira, Zé Dantas, João Silva, Miguel Lima, Zé Marcolino, entre outros). Segundo esses discursos, o sucesso de suas músicas era antes de mais nada uma elaboração composicional de seus parceiros, que Gonzaga moldava

sonoramente. Na impossibilidade de medir a contribuição de cada um dos parceiros numa composição e sem negar, novamente, a participação estética decisiva deles, podemos notar claramente que toda a obra de Luiz Gonzaga parte de um mesmo um marco estilístico. Em torno de seu canto aberto, de seu sorriso (que molda a emissão das notas) e, principalmente, da sonoridade da sua sanfona, o artista elabora as temáticas relativas ao Nordeste e “inventa” um som para a região, povoando-a com o timbre aberto do fole. Soma-se a isso outro aspecto difícil de quantificar ou mesmo de entender, que se associa a todo pop star: o carisma. A voz, o sorriso aberto, o figurino e o canto de Luiz Gonzaga estabeleceram na indústria da música uma referência simbólica e temática de nordestinidade, que era acionada por seus parceiros na elaboração composicional dos sucessos difundidos pelo artista. Ora, tal universo foi uma construção autônoma de Luiz Gonzaga, que estabelecia uma espécie de filtro estilístico e temático, sonorizado com sua sanfona. Não é demais lembrar que foi esse o instrumento que possibilitou ao artista uma porta de entrada no mundo do disco e do show business. Nas capas de discos, nas introduções, acompanhamentos e nos temas de diversas canções, ela é onipresente em sua obra, encarnando o “som de Luiz Gonzaga”; ou, indo um pouco além, o som do próprio Nordeste. Se Madonna ou Michael Jackson construíram suas performances midiáticas na conjugação de dança e canto, é possível afirmar que, muitas décadas antes, Luiz Gonzaga acionou a mesma ideia de artista multifacetado para elaborar em si mesmo um mito que encarnava toda uma identidade regional, fundindo seu canto com sua sanfona. Simbioticamente atados, cantor e instrumento – este “grudado” ao peito – constroem uma obra cujos parceiros talentosos souberam captar e traduzir em palavras e melodias: a obra do artista imortal, celebrado e festejado este ano em seu primeiro centenário. Ao som da sanfona!.

continente junho 2012 | 37

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 37

28/05/2012 15:45:53


con especial ti nen te marguerite bordat/divulgação

Entrevista

DOMINIQUE DREYFUS “Senti a pessoa gonzaga muito sofrida, triste” São três horas da madrugada na

França. O telefone toca. Dominique, antes de atender, pensa: “Só pode ser do Brasil. Ninguém lá se lembra do fuso horário”. Era o cantor João Gilberto: “A televisão está anunciando que Luiz Gonzaga morreu...”. A jornalista francesa não consegue

pensar em mais nada. Havia falecido um de seus maiores ídolos e o objeto de uma extensa pesquisa que originaria a biografia mais detalhada sobre o músico, Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga (Editora 34), lançada em 1996. Luiz Gonzaga fora o artista que tecera a mais forte ligação cultural de Dominique Dreyfus com o Nordeste do Brasil – a partir dos dois anos de idade, ela foi com a família morar na cidade de Garanhuns, agreste pernambucano, até regressar à França, aos 13 anos. O fascínio pelo astro começou num dia em que, quando criança, apontou para o rádio, que tocava uma música do Rei do Baião, e disse para a mãe: “C’est ça que j’aime” (“É disso que eu gosto”).

Em 1986, já em Paris, e trabalhando como repórter cultural, fazia a “cobertura” do festival de música brasileira Couleurs Brésil, quando assistiu ao show do sanfoneiro e teve a ideia da biografia. Após o espetáculo, tentou falar com o ícone, mas o camarim estava cheio. Alguns meses mais tarde, escreveu uma carta a Gonzaga. Ele demorou a respondê-la, mas aceitou a proposta, convidando-a para ir ao Parque Aza Branca, em Exu, e lá permanecer o tempo que precisasse para a coleta de informações. A jornalista conviveu com o Rei do Baião, de junho a agosto de 1987, tendo contato direto e diário com o cantor, que a chamava de “Francesa”.

continente junho 2012 | 38

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 38

28/05/2012 15:45:56


que ganha, neste ano do centenário do músico, sua quarta edição, voltando à lista das biografias mais procuradas de nomes fundamentais da história da música brasileira. CONTINENTE Como você definiria Luiz Gonzaga para um estrangeiro que o desconhece? DOMINIQUE DREYFUS Curiosamente, Luiz Gonzaga (LG de agora em diante…), que foi ou continua sendo um ícone da música brasileira, é totalmente desconhecido fora do Brasil. Se bem que, quando devo definir quem é LG para o publico estrangeiro, costumo dizer que é o pai da country music do Nordeste, o equivalente brasileiro dos norte-americanos Woody Guthrie ou Hank Williams.

Dominique foi redatora-chefe da revista Guitare & Clavier, dirigiu a edição francesa da revista Rolling Stone, trabalhou como repórter de cultura do jornal Libération e chefiou a Rádio Latina de Paris. Há alguns anos, tem se dedicado principalmente à direção de documentários (recentemente fez um sobre Gilberto Gil para TV francesa). Em dezembro passado, defendeu uma tese de doutorado sobre a música popular brasileira, que agora pensa em publicar. Atualmente, pertence a um centro de pesquisas sociológicas na Sorbonne sobre o Brasil. Nesta entrevista à Continente, a jornalista relembra o período em que conviveu com Gonzagão e fala sobre temas que permeiam a biografia,

CONTINENTE Como foi a dinâmica daqueles três meses em que você conviveu diariamente com Gonzaga? Ele demonstrava alterações de humor ou era solícito para responder às suas perguntas? DOMINIQUE DREYFUS No tempo que passei ao lado de LG, observei que ele podia ter acessos de mau humor que repercutiam sobre as pessoas que o rodeavam: volta e meia ele xingava, reclamava, zangava-se… No entanto, em nenhum momento, ele demonstrou a mínima alteração de humor em relação à minha pessoa. Pelo contrário, sempre demonstrou a maior solicitude e disponibilidade para responder às minhas perguntas, sem jamais reclamar da minha presença constante ao lado dele, do gravador ligado em permanência, das minhas incessantes perguntas. Uma vez que ele aceitou o princípio de uma biografia, abriu todas as portas de sua memória para mim com extraordinária gentileza, generosidade, sinceridade. Enfim, ele foi meu maior cúmplice nesse empreendimento. Eu diria que nossa relação foi muito amiga. CONTINENTE Houve questões que Luiz Gonzaga se recusou a responder? Era difícil conseguir informações específicas dele? Quais? DOMINIQUE DREYFUS Ele nunca se recusou a responder uma pergunta. Agora, a arte de qualquer entrevistado é driblar as perguntas que incomodam, mudar de assunto de mansinho, pegar outro caminho… (um dos

exemplos mais óbvios no caso das conversas que tive com LG foi a questão de paternidade. Quando falei do Gonzaguinha, ele respondeu “Eu não dei meu nome a ele? Então, ele é meu filho”) e a arte do entrevistador é trazer o entrevistado de volta ao assunto e, mais ainda, de estabelecer uma relação de confiança com o biografado, de saber levá-lo a falar daquilo que queremos que ele fale sem que seja necessário fazer uma pergunta direta (numa conversa posterior, o tema foi a esterilidade de LG e assim veio a resposta certa à pergunta sobre a paternidade…). Além do mais, num primeiro tempo, o biografado – LG, no caso – conta tudo que já contou à imprensa ao longo de sua carreira, repetindo o que já falou na vida e que a biógrafa já leu, já sabe… Mas quando o biografado acaba de dar o seu “testemunho oficial”, aquele que passou a vida dando à mídia, ao público, o biógrafo continua sentado ao lado do biografado – e é quando as coisas começam; é quando o biografado é obrigado a abrir novas portas que ele nunca abrira, a pegar caminhos que ele nunca pegara, a abordar temas que ele nunca abordará etc. Ao mesmo tempo em que eu entrevistava LG, ia entrevistando também outras pessoas, testemunhos de sua vida, recolhia muitas informações que LG omitira (voluntaria ou involuntariamente). Quando então eu evocava essas informações, ele ria, comentava “Você já está sabendo disso, Francesa?”, e dava o ponto de vista dele. Acho que também ficou muito claro para ele que meu objetivo não era penetrar, além do que a ética permite, na sua privacidade; meu projeto não era revelar segredos escabrosos, eu não estava à procura de “furos”; apenas queria explicar esse homem e artista extraordinário, fundamental e emblemático da sociedade brasileira e, através dele e de sua música, contar o Nordeste – meu Nordeste. CONTINENTE Luiz Gonzaga sempre passava a impressão de ser uma pessoa alegre e de bem com a vida. Nesse período de convivência, você percebeu algum tipo de ressentimento, tristeza ou arrependimento do músico?

continente junho 2012 | 39

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 39

28/05/2012 15:45:56


con especial ti nen te Fotos: reprodução

DOMINIQUE DREYFUS Uma coisa que comento, principalmente na “Apresentação”, no início do livro, é a tristeza, o ressentimento e a solidão que descobri em LG. Mas em todo artista há duas pessoas: o artista e a pessoa privada. O ente é um só, mas a personalidade é dupla e não raro contraditória. No caso de LG, se o homem público, o artista passava voluntariamente a impressão da alegria, o homem privado era muito mais ressentido. Isso não significa que o artista LG fazia de conta que era feliz: ele se sentia profundamente feliz na sua vida artística; o artista era feliz, alegre, de bem com a vida. Em compensação, senti a pessoa Gonzaga muito sofrida, ressentida, triste. Mas esses sentimentos eram ligados aos problemas conjugais, familiares, à sensação de não ser tão amado quanto queria pelos seus, ao sentimento de ter ajudado muito e não receber a gratidão que merecia por tudo que ele tinha feito e continuava fazendo pelos outros. O livro conta detalhadamente os conflitos familiares de LG e dá para perceber e entender por que a vida cotidiana dele não foi um mar de rosas. CONTINENTE Sendo Luiz Gonzaga uma figura tão fascinante, como você conseguiu afastar-se dessa atmosfera envolvente do ídolo para poder escrever a biografia com imparcialidade? A propósito, é possível ser imparcial na feitura de uma biografia? DOMINIQUE DREYFUS Fico feliz e muito orgulhosa de que você aponte imparcialidade na biografia. Claro que tive a preocupação de ser imparcial. Por isso era importante recolher a palavra do maior número de protagonistas, de gravar quantas versões da mesma história fossem possíveis, cruzar testemunhos, conferir a veracidade das informações, verificar etc. Esse é o nível “histórico” da imparcialidade. Depois, tem outro nível, que é o “psicológico”, que consiste em entender o porquê das coisas; não julgar os fatos, as pessoas, as situações, mas procurar entender as circunstâncias, as motivações. Eu responderia à sua segunda pergunta através de duas perguntas: será que a imparcialidade absoluta existe? E, se existe, será que é necessário ser absolutamente imparcial num trabalho desse teor? Para mim, os limites da

8

“Gonzaga foi um grande divulgador do Nordeste, o que não significa que o público tenha entendido essa cultura, essa região”

minha imparcialidade são meu “afeto”: acho que está claro para o leitor que eu admiro e gosto profundamente de LG; inclusive, se resolvi biografá-lo, é justamente por isso: ele era meu ídolo e eu era sua fã. Portanto, o incentivo da biografia foi a admiração e o objetivo foi o desejo de mostrar ao mundo que LG era maravilhoso! Mas, evidentemente, isso não impede que eu seja objetiva e saiba observar um certo distanciamento na hora de escrever, decifrar o homem, descrevêlo tal como o percebi, tentando não ser nem cega, nem burra… E, enfim, vale relembrar que a pesquisa para o livro foi obviamente no Brasil, mas a sua redação foi feita na França, onde vivo, longe do contexto envolvente.

CONTINENTE Está sendo realizado um filme sobre Luiz Gonzaga. Você foi contatada para subsidiar a produção com informações? DOMINIQUE DREYFUS Fui informada já há algum tempo pela produção desse projeto e do fato de que meu livro era uma fonte importante de inspiração e informação. Fora isso, nada… CONTINENTE Alguns estudiosos afirmam que Luiz Gonzaga reforçou os clichês em torno do Nordeste, outros afirmam que ele ajudou a criar o imaginário da região, enquanto se fala também que ele apenas projetou nacionalmente esse mesmo imaginário. Como você situaria esse papel sociológico dele? DOMINIQUE DREYFUS É inegável que Luiz Gonzaga teve um papel sociológico primordial. Isso está claro. Não sou propriamente socióloga, não sei se tenho autoridade para responder essa pergunta que pede uma verdadeira reflexão (a pergunta pode ser tema de tese!). Mas digamos que posso dar meu ponto de vista. Primeiro, acho que ninguém precisou dele para criar clichês em torno do Nordeste. Eles eram anteriores a ele e continuaram depois dele (e até hoje os

continente junho 2012 | 40

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 40

28/05/2012 15:45:57


9

clichês continuam vigorando fortes e firmes apesar de todos os nordestinos que brilharam nacionalmente, como, por exemplo… Lula!). O projeto do cidadão Luiz Gonzaga foi lançar nacionalmente um Nordeste despojado de seus clichês, um Nordeste real, verdadeiro e não o fantasiado pelos sulistas: “o Sertão das mulheres sérias/ dos homens trabalhadores”, o Nordeste sofrido, esquecido dos políticos, desdenhado, mas também alegre, detentor de uma cultura imensa. Porém, o que aconteceu foi que o público se encantou com a música de Luiz Gonzaga, que atingiu um sucesso inesperado, o forró virou moda. Só que, quando a moda acabou, no final dos anos 1950, a constatação que se fez foi de que o Brasil inteiro conhecia a música nordestina, mas continuava desconhecendo o Nordeste propriamente. E os clichês continuavam iguais porque o que interessou o público foi a música, não o Nordeste. Da mesma forma, o imaginário nordestino é anterior a ele: confira-se a literatura, a mitologia, as tradições, os contos, a música etc.,

que, desde o século 17, dão testemunho da cultura oriunda desse imaginário que Gonzaga projetou nacionalmente. Resumindo, Luiz Gonzaga foi um grande divulgador do Nordeste, da cultura nordestina, o que não significa que o público não nordestino tenha entendido profundamente essa cultura, essa região. CONTINENTE O que explicaria o fato de o forró ainda ser tratado como música regional enquanto o samba é considerado símbolo nacional? DOMINIQUE DREYFUS Esse fato procede de um fenômeno (que, aliás, estudei na minha tese de doutorado) que não é específico ao forró e que faz com que tudo que é oriundo do Rio de Janeiro seja considerado e sentido pelo povo brasileiro como símbolo nacional, e o que não vem do Rio é sentido pelo povo como regional. A cultura carioca é considerada cultura nacional, enquanto a das outras partes do país é considerada regional. CONTINENTE Existe algo que você acrescentaria ao livro ou que extrairia?

8 em família

Luiz Gonzaga, acompanhado da esposa Helena e dos filhos Gonzaguinha e Rosinha

9 em 1987

Patativa do Assaré, Gonzaga (ladeado por um amigo) e Dominique Dreyfus, no período da produção da biografia

DOMINIQUE DREYFUS Não, não há nada que eu ache que deveria extrair do livro. Quanto a acrescentar algo… é obvio que, desde o lançamento do livro, há 16 anos, tive oportunidade de receber novos testemunhos sobre a vida de LG e isso me remete a temas de que não me lembrei de falar com ele, a perguntas que não fiz, a assuntos que esqueci de abordar… No entanto, nenhuma biografia poderá jamais dar conta da totalidade da vida de alguém. Acho que o que conta é conseguir percorrer os momentos-chaves de vida do herói, aqueles que permitem entender como e por que ele se tornou o que é; e dar uma visão daquilo que ele é. Acho que consegui isso no meu livro. DÉBORA NASCIMENTO

continente junho 2012 | 41

Especial_Luiz Gonzaga 100 anos.indd 41

28/05/2012 15:45:58


con ti nen te#44

Tradição

1

continente JUNHO 2012 | 42

Tradiçao_Festa do Sol_JUN.indd 42

28/05/2012 15:50:28


FESTA DO SOL O réveillon dos povos andinos

Celebrado na América pré-colombiana antes da civilização inca, o culto ao astro rei mobiliza a cidade peruana de Cuzco durante o mês de junho TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa

continente JUNHO 2012 | 43

Tradiçao_Festa do Sol_JUN.indd 43

28/05/2012 15:50:31


2

con ti nen te

Tradição No alto da Cordilheira dos Andes,

a mais de três mil metros de altitude, o ano-novo só começa no dia 24 de junho. Realizada em homenagem ao solstício de inverno no hemisfério sul, a Festa do Sol – ou Inti Raymi na língua quéchua – é a maior e mais importante celebração da cultura andina, um espetáculo que remonta às origens do império e que busca relatar a mítica chegada do primeiro inca em território peruano. Ao mesmo tempo, suplica para que o Sol permaneça iluminando as montanhas que dominam esse trecho da América do Sul. Segundo a lenda, Manco Capac teria sido enviado diretamente do Sol para fundar a civilização que durante séculos dominou boa parte do continente americano. É exatamente nessa data que a terra se encontra em seu ponto mais distante do astro rei. Quando a madrugada do dia 25 chega, ainda sob o clima da festa, o

planeta novamente começa a se aproximar dele. A vida, mais uma vez, vai prosseguir. No tempo dos incas, durante a festa, quase toda a população de Cuzco – cerca de 200 mil pessoas – era convidada a se retirar da cidade, onde permaneciam apenas o imperador, sua família e a nobreza, formada especialmente por sacerdotes. Durante três dias, o soberano mantinha abstinência sexual e mergulhava numa sequência de orações e rituais que culminava com o sacrifício de uma lhama e a declaração pública de que o Sol, enfim, havia vencido as trevas. O antigo convite real para evacuar a cidade é, nos dias de hoje, apenas mais uma lenda contada nas escolas. Com a conquista espanhola e a violenta sobreposição da cultura europeia frente à milenar tradição andina, a Festa do Sol acabou se transformando num espetáculo para os milhares de turistas que invadem a região durante a semana que antecede o solstício. Mesmo que xamãs continuem a realizar rituais de caráter místico por toda

a cordilheira, em Cuzco, a data é celebrada com uma incrível mistura de tradições, crenças e danças. Durante uma semana, os desfiles folclóricos transformam a Praça das Armas no mais eclético palco da cultura popular dos Andes. Em alguns anos, a festa coincide com o dia de Corpus Christi, celebrado sempre 60 dias depois do Domingo de Páscoa. Nesses casos, o mosaico cultural ganha novas e coloridas peças, aumentando o já diversificado programa da festa. Quinze santos e virgens são organizados em procissões e carregados em andores ao redor da praça. Antes, porém, precisam passar a noite dentro da igreja. Já no início da manhã, os santos são “acordados” pelo som do María Angola, o maior sino do Peru, construído no século 16. Depois de desfilar ao som de dezenas de bandas que se revezam, as imagens voltam para a catedral e os representantes das comunidades locais se reúnem e conversam sobre problemas cotidianos. Autoridades locais, escolas públicas, associações de camponeses, todas as esferas da

continente JUNHO 2012 | 44

Tradiçao_Festa do Sol_JUN.indd 44

28/05/2012 15:50:32


3

4

5

6

7

8

Página anterior 1 mAscarados

Sagrado e profano unidos na Festa do Sol

Nestas páginas 2 liteira

éplicas de múmias R são carregadas em cortejo

3-8 detalhes Participantes da festa emprestam colorido especial a Cuzco

sociedade participam da celebração católica que durante uma semana parece preparar a chegada da atração principal da data, a Festa do Sol.

TRANSLITERAÇÃO

Segundo alguns pesquisadores, a celebração cristã, na verdade, é uma adaptação da antiga celebração inca, quando as múmias dos antigos

imperadores eram retiradas do templo principal e carregadas em liteiras ao redor da grande praça. Hoje, centenas de homens, todos trazendo na face os traços que os caracterizam como verdadeiros descendentes da etnia incaica, carregam os pesados andores em intermináveis horas de desfiles. Mas é no dia 24 de junho, depois que os santos voltam para suas

comunidades, que a festa se aproxima das suas reais origens. Proibida em 1572, pelo vice-rei da Espanha, que considerava a cerimônia pagã e contrária à fé católica, a Inti Raymi continuou sendo festejada de forma clandestina durante os séculos seguintes. Em 1944, o fundador da Academia de Idioma Quéchua, Faustino Espinoza, desenvolveu

continente JUNHO 2012 | 45

Tradiçao_Festa do Sol_JUN.indd 45

28/05/2012 15:50:39


con ti nen te

Tradição 9

uma reconstrução histórica da antiga festa, resgatando as origens religiosas do ritual. Foi o próprio Espinoza, a propósito, que escreveu o atual roteiro do espetáculo e, de 1944 a 1958, representou o papel do imperador. O que inspirou Faustino foi o realismo contido nos textos do cronista inca Garcilaso de La Veja. “Era uma festa ao sol, em reconhecimento por sua proteção, um culto religioso que exaltava o astro rei como único deus que, com sua luz e poder, criava e sustentava todas as coisas na terra”, relata Garcilaso em uma de suas crônicas. O ritual começa logo cedo, no Templo do Sol, quando o astro é invocado pelo soberano rei inca. Depois, carregado numa liteira, o imperador e sua esposa são levados até a Praça das Armas, cercados de uma grande comitiva. Mulheres finamente vestidas vão jogando flores pelo caminho, súditos carregam água, milho e outros produtos. Na praça, uma multidão se espreme para tentar ver de perto o Deus Sol encarnado, nem que

O culto ao astro remonta à antiga civilização de Tiwanaco, na Bolívia, onde está a famosa Porta do Sol seja de relance. A última parte da festa é realizada na imponente fortaleza de Saqsayuamán – dois quilômetros montanha acima – e que, anualmente, se transforma num grande teatro a céu aberto. A fé do povo peruano na figura no soberano inca é visível em vários aspectos, o que prova que nem mesmo 500 anos de imposição cultural foram suficientes para abafar o forte sentimento que o povo andino nutre pelo Sol. Muitos se emocionam e consideram o dia como o mais sagrado do calendário, um momento de avaliação interior e extremamente propício para traçar as novas metas, que serão perseguidas no novo ano que começa. A gente simples dos

mais remotos povoados andinos chega à capital para participar da festa e volta para suas comunidades com a crença fortalecida.

MÍSTICOS

Para os místicos, algo de extraordinário está acontecendo na segunda maior cadeia de montanhas do mundo. Desde a época em que algumas dezenas de espanhóis montados a cavalo invadiram e conquistaram o mais vasto império já estabelecido no continente, nunca se viu um movimento tão intenso em prol do resgate da antiga visão de mundo oferecida pelos incas. Em diversos povoados ao redor de Cuzco, a festa continua sendo realizada no seu formato xamânico, quando experientes sacerdotes realizam rituais que incluem sacrifícios, oferendas e ingestão de bebidas psicoativas. Para esses xamãs, a energia espiritual que pulsa no mundo ora está concentrada ao norte do globo, ora ao sul. Segundo esses nativos, a revalorização da cultura andina, suas

continente JUNHO 2012 | 46

Tradiçao_Festa do Sol_JUN.indd 46

28/05/2012 15:50:40


9 oferenda Por conta do seu retorno depois do solstício de inverno, o Sol é homenageado 10 rei inca Ponto alto da festa se dá quando o imperador é levado até a Praça das Armas

10

festas e tradições, é um sinal claro de que o coração do planeta parece mesmo estar batendo por essas bandas. Para esotéricos do mundo inteiro, ir a Cuzco durante a Festa do Sol, pelo menos uma vez na vida, é tão importante quanto

é para os muçulmanos ir até Meca. O movimento de restauração da cultura pré-colombiana é tão forte, que já chegou à escala administrativa. Em Cuzco, várias ruas estão recebendo seus antigos nomes incas, palácios

estão sendo reconstruídos e a sua bandeira – com as cores do arco-íris – é novamente o símbolo oficial da cultura andina. O culto ao sol, que centraliza as celebrações da Inti Raymi, é, na verdade, muito anterior ao império

inca, remontando à antiquíssima civilização de Tiwanaco, na Bolívia, onde está a famosa Porta do Sol. Vivendo na altitude e tendo que desenvolver técnicas de plantio que superassem as adversidades geográficas, os incas acabaram desenvolvendo complexos estudos dos astros e elaborando uma interessante cosmologia, que colocava o Sol no centro da sua visão de mundo e o vale andino como uma espécie de terra prometida. Com as crescentes especulações acerca do ano de 2012, envolvendo as previsões maias para o final de um ciclo, e as profecias incas de uma nova era de transformação, a Festa do Sol desse ano está sendo aguardada ansiosamente pelos xamãs peruanos. Se, para boa parte dos turistas que desembarcam na capital arqueológica das Américas em junho, a Inti Raymi é apenas mais uma das atrações que incluem a ida a Machu Picchu, antigas catedrais barrocas e um casario tombado pela Unesco pelo seu valor arquitetônico, para a população nativa dos Andes, essa festa simboliza a esperança, presente nas cores da sua bandeira. E no dia 24 de junho de 2012, no coração desse antigo império, milhares de filhos do sol esperam receber sua herança sagrada.

continente JUNHO 2012 | 47

Tradiçao_Festa do Sol_JUN.indd 47

28/05/2012 15:50:45


renato alarc茫o

con ti nen te

mem贸ria

continente junho 2012 | 48

Biografia.indd 48

28/05/2012 15:52:04


biografia A vida como ela pode ter sido

Os vários métodos de criar narrativas sobre personagens do mundo real vão desde a pretensa isenção do biógrafo ao escancaramento do processo de elaboração da obra, que expõe suas naturais lacunas texto Gianni Paula de Melo

O heterônimo Alberto Caeiro, em versos famosos, registrou: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte/ Entre uma e outra coisa todos os dias são meus”. No entanto, o seu “mentor”, o escritor português Fernando Pessoa, foi o primeiro a se preocupar em criar histórias de vida para suas várias identidades literárias – inclusive para o bucólico Caeiro –, como se assim delimitasse melhor o estilo de cada um. Ir além da nascença e da morte, investigar (ou criar) uma travessia, é um exercício vacilante. O jornalista Sergio Vilas-Boas, pesquisador do gênero há anos, define o texto biográfico como uma tentativa de atribuir sentido à existência humana. De certa forma, era o efeito que o poeta parecia buscar ao criar uma narrativa de vida para seus heterônimos. No caso de Pessoa, criar biografias estava atrelado a um universo ficcional, remetendo à invenção. Mas passando ao campo da não ficção, em que o gênero, de fato, está alocado, não

deveríamos, ainda assim, reconhecê-lo também como exercício criativo? Embora possamos encontrar o texto biográfico em diferentes culturas e épocas, é perceptível o crescimento de produção desses escritos no período renascentista, quando o individualismo começa a se tornar um valor central para a sociedade. Naquele momento, eles eram estrategicamente publicados junto aos prefácios de obras de literatos, como relembra o teórico Peter Burke, no artigo A invenção da biografia e o individualismo renascentista: “Esta questão do contexto da publicação não é trivial. Ela ilustra a ascensão do conceito da individualidade da autoria, o pressuposto de que as informações sobre um escritor nos ajudam a entender suas obras”. Esse pensamento, aliás, também ajuda a melhorar o entendimento sobre o porquê dos textos de Pessoa. Nas suas reflexões, Burke ressalta ainda a mutabilidade das convenções relacionadas ao gênero que fez com que julgássemos o modelo renascentista amorfo, digressivo e fragmentado.

Atualmente, é reconhecido o caráter transdisciplinar do texto biográfico e também sua tendência subjetiva inevitável, porém vislumbramos uma variação mínima de linguagem. No livro Biografias & biógrafos (2002), VilasBoas esboçava sua primeira definição do gênero, dizendo que “biografia é o biografado segundo o biógrafo”. Para ele, o modelo amplamente reproduzido hoje – “onisciente, pretensamente isento, com cara de jornalismo investigativo” – chega a ser cansativo. Ainda assim, ele avalia o boom mercadológico desse setor como positivo e necessário para o amadurecimento cultural da nação. “Mais que um painel sobre as realizações de um indivíduo, a biografia é um arcabouço de revisões sobre o viver e o pensar. Sendo assim, precisamos dela como bem cultural. Mas, claro, para emergir algo que realmente valha a pena guardar para reler, é inevitável que se produza muito lixo.” As recentes estratégias e metodologias do fazer biográfico geraram a ilusão de que é possível

continente junho 2012 | 49

Biografia.indd 49

24/05/2012 16:46:33


con memória ti nen te Fotos: reprodução

1 SIGMUND FREUD Ernest Jones (acima, ao centro) biografou o psicanalista (abaixo à esq.) tim maia 2 Nelson Motta narrou a trajetória do cantor no livro Vale tudo ruy castro 3 Escritor conheceu de perto o biografado Nelson Rodrigues

1

2

esgotar a pluralidade de uma vida em uma narrativa. Irrefletidamente, falase em “biografia definitiva” que, para Sergio, é sinônimo de antibiografia. O termo gera um desserviço à reflexão sobre o gênero, visando apenas à publicidade do livro. Foi a consciência sobre a impossibilidade do texto de não ficção dar conta da realidade que conduziu Freud a recusar a proposta de Arnold Zweig, seu ex-paciente, de biografar sua vida. Na carta em que explica sua decisão, o psicanalista escreve: “Aquele que empreende

uma biografia está comprometido com mentiras, dissimulação, hipocrisia, disfarces, bajulação... A verdade biográfica não existe”. Ironicamente, o episódio é citado por Ernest Jones, biógrafo de Freud. É evidente que esclarecer essa incompletude não deslegitima o gênero, apenas reconhece seus limites. A elucidação das estratégias do autor na pesquisa e construção do texto raramente é feita e, ao leitor, é oferecida uma narrativa opaca, que não revela o seu caráter processual. No

livro Biografismo (2008), a problemática da transparência é um dos principais pontos abordados por Sergio, que questiona o fato de a maioria dos biógrafos não compartilhar os rumos intelectuais e perceptivos escolhidos. Além disso, uma construção narrativa de não ficção que é mais aberta e zelosa deveria ter mais credibilidade que a centralizadora e impositiva. Arriscando uma comparação com o cinema documental, é como colocar lado a lado um filme que almeja mascarar as imprecisões da construção de um discurso – tentando causar um efeito de realidade – e outro que reconhece a sua natureza subjetiva. Como essas questões no âmbito do documentarismo já foram postas e repostas, a discussão sobre deixar transparecer o processo chega a ser redundante. Porém, para o biografismo, ela parece urgente, até mesmo para estimular uma diversificação estilística verdadeira. “Não é difícil encontrar diversas biografias responsáveis abordando a mesma pessoa, às vezes até com visões divergentes. Por outro lado, seria tarefa duríssima identificar diferenças significativas de linguagem de uma obra para outra”, avalia Vilas-Boas. Essa não inclusão do processo colabora para que o leitor brasileiro se

continente junho 2012 | 50

Biografia.indd 50

24/05/2012 16:46:35


“O biógrafo sabe quando o sujeito está mentindo, omitindo ou apenas se enganando” Ruy Castro mantenha atento apenas à história do personagem, o que ofusca o percurso do biógrafo. Aos olhos do apreciador ligeiro, basta o que é revelado e não o modo como isso se desenrola. Uma das razões para esse fenômeno, na opinião de Sergio, é o despreparo da própria crítica cultural para comentar os textos de não ficção. A academia parece também ter uma dívida com o gênero, que não possui uma historiografia própria. Outra justificativa é a relação utilitária daqueles que são apenas “consumidores” de biografias e, por isso, “compram” apenas um personagem.

DOIS MÉTODOS

De um lado, O anjo pornográfico e Estrela solitária. Do outro, Vale tudo e A primavera do dragão. Ruy Castro e Nelson Motta são amigos há mais de 40 anos, encontram-se constantemente no calçadão carioca e... escrevem biografias.

3

Os jornalistas, cujos métodos são diferentes, já conversaram bastante sobre o assunto. Na percepção de Ruy Castro, a diferença central é o fato de ele trabalhar prioritariamente a memória das fontes, enquanto Nelson Motta une às pesquisas as próprias lembranças sobre o biografado. A respeito do uso da memória pessoal, o autor de O anjo pornográfico questiona: “A memória costuma trair, não?”. No entanto, concorda com o fato de que ter familiaridade com o cenário, a época e os coadjuvantes facilita o trabalho. O autor de Vale tudo observa: “Quando você conhece alguém muito de perto, como o Ruy conheceu Nelson Rodrigues, ajuda muito. Claro que me ajudou a compor os meus personagens o fato de eu saber qual o jeito deles falar, seus gestos, ritmos, estilo”. Em Noites tropicais, a visão distanciada seria mesmo impossível a Nelson Motta, já que os personagens que biografou eram amigos próximos e foi, antes de tudo, o sentimento que estimulou a escrita. “O primeiro impulso para escrever essas biografias foi o amor, a amizade, a admiração que eu tinha por eles (Tim Maia e Glauber Rocha). Não tive a pretensão de fazer história, só contar a vida desses queridos do meu jeito”, comenta o crítico musical, que não se considera biógrafo. Apesar

das intenções serem as melhores, ele não escapou da intolerância de determinadas fontes e leitores. Seu trabalho mais recente, justamente a biografia do cineasta Glauber Rocha, que saiu no final do ano passado, recebeu críticas por conter falhas, sobre as quais o escritor se posiciona: “Os equívocos foram mínimos e pontuais, prontamente assumidos e corrigidos”. Por essas e outras, Ruy Castro, que tem lançado regularmente obras de não ficção, estabeleceu critérios rigorosos que incluem não biografar personagem vivo e buscar se certificar sobre o que é mentido e omitido por uma fonte. “Depois de um ano de trabalho duro em cima do personagem, o biógrafo sabe quando o sujeito está mentindo, omitindo ou apenas se enganando. Mas a experiência demonstra que as fontes não têm muito interesse em mentir. Podem, apenas, exagerar um pouco a própria participação na história”, comenta. Os amigos afinam na percepção de que o texto biográfico é híbrido e que a preocupação com a organização das informações, para que essas se distribuam de forma atraente, é fator sine qua non. Discordam, entretanto, quando se fala em “biografia romanceada”, que, para Nelson, não soa como uma expressão paradoxal, pois remeteria apenas ao estilo e não à ficcionalidade, enquanto Ruy acredita que o termo é inadmissível, pois, nas suas palavras, “biografia romanceada não é biografia, é romance”. Há, ainda, outra semelhança entre eles: estão distantes do fazer biográfico, engajados em outras atividades. Nelson reconhece seus livros como homenagens e confessa que, no momento, não pensa em biografar mais ninguém. Atualmente, está trabalhando num musical sobre a época da casa noturna Dancin’Days. Ruy Castro, por sua vez, está organizando um festival sobre Nelson Rodrigues para o Sesi de São Paulo e se preparando para lançar O melhor da Senhor, um apanhado da revista que circulava no início da década de 1960, editada pela Imprensa Oficial de São Paulo. Quando questionado sobre a biografia do recém-falecido Millôr Fernandes, projeto que já demonstrou interesse em desenvolver, o escritor é categórico: “Tão cedo, neca de biografia, nem mesmo a do Millôr”.

continente junho 2012 | 51

Biografia.indd 51

24/05/2012 16:46:36


reprodução

con ti nen te

História

1

continente JUNHo 2012 | 52

Historia_Cancer_JUN.indd 52

25/05/2012 08:08:04


CÂNCER Uma doença que já se ousa nomear

1 mastectomia Ilustração de Nicolas-Henri Jacob para o tratado de anatomia de Marc Bougery

Embora ainda cercada de tabus, enfermidade encontra mais espaço no debate público, através de campanhas de prevenção, do noticiário e de livros voltados aos leigos TEXto Marcelo Robalinho

Doenças costumam ultrapassar o domínio privado e incidir também sobre a esfera pública. A dimensão biológica torna-se, então, insuficiente para compreendê-las em sua completude, sendo necessário expdir a análise para o contexto sociocultural. Nele, o câncer é emblemático. Apesar de antigo, é considerado um flagelo moderno, pela progressão e visibilidade assumida nos últimos dois séculos. Em 2010, mais de sete milhões de pessoas morreram no mundo das mais diferentes formas de neoplasias. Tamanho impacto justifica, em parte, o título da obra O imperador de todos os males, lançado em fevereiro deste ano no Brasil (Companhia das Letras). Concebido pelo oncologista indiano Siddartha Mukherjee, ganhador do Prêmio Pulitzer 2011 na categoria não ficção nos Estados Unidos, o livro tem a curiosa proposta de traçar uma “biografia” do câncer. Partindo da experiência na pós-graduação em imunologia do câncer e no treinamento em oncologia realizado no Dana-Faber Cancer Institute, em Boston, o médico transforma a doença num personagem metafórico, uma espécie de “ator social” concretizado através dos vários fatos que compõem o enredo geral. Por trás dessa licença poética, o objetivo é saber se a morte e a erradicação do câncer são possíveis no futuro.

Difícil indagação, sobretudo pelo caráter múltiplo e complexo da enfermidade. Hoje, existem documentados mais de 200 tipos de cânceres e 500 subtipos histológicos – considerando as diferentes espécies de um mesmo tumor. Todas as formas são chamadas de câncer por comungarem de uma característica biológica comum: o aumento anormal (maligno) do número de células, que invadem tecidos e órgãos e podem se espalhar para outras partes do corpo (metástase) e matar. As semelhanças, em geral, param por aí, já que cada gênero de tumor tem uma especificidade própria. Em linguagem de crônica e dividida em seis partes, a obra de Mukherjee recupera histórias contadas em outros livros, pesquisas e artigos científicos, além de documentos e relatos médicos. Retorna a um passado distante a fim de determinar o “nascimento” do câncer. Sendo assim, descobrimos que os primeiros registros datam de um papiro egípcio do século 7 a.C. de cinco metros de comprimento, comprado ou roubado (não se sabe ao certo) de um vendedor de antiguidades, em Luxor, no Egito, em meados do século 19. Traduzido em 1930, esse documento conteria os ensinamentos de Imhotep, famoso médico egípcio que viveu em torno de 2625 a.C. e descreveu uma

“massa saliente no peito”, possivelmente um câncer de mama, sem indicação de terapia. Dois milênios depois dessa descrição egípcia, o câncer volta a ser relatado na historiografia grega, por volta de 400 a.C., através de Heródoto. Ele registra o caso de Atossa, rainha da Pérsia, subitamente acometida por uma doença incomum, um caroço que lhe sangrava o peito, provavelmente uma forma malévola do câncer de mama.

Caranguejo

Do ponto de vista gramatical, a doença é ligada a dois termos também gregos. Um deles é karkinos, que significa “caranguejo”, sendo usado para designar tumores grandes com vasos sanguíneos inchados à sua volta e visíveis a olho nu, motivo pelo qual fez Hipócrates, o pai da Medicina na Grécia Antiga, pensar na imagem desse crustáceo como sendo ligado ao câncer. Outro termo, onkos, originou a palavra oncologia e foi utilizado para descrever tanto tumores grandes e facilmente observáveis quanto uma máscara específica na tragédia grega que denotava a carga psíquica suportada por um personagem. Em ambos os significados, porém, preexistia o sentido de algo sendo carregado, seja na saúde ou na arte. Repleto de idas e vindas de acontecimentos, O imperador... narra

continente JUNHo 2012 | 53

Historia_Cancer_JUN.indd 53

25/05/2012 08:08:06


imagens: reprodução

con ti nen te

História

2

3

4

5

diversas etapas do câncer, fazendo com o que o leitor tome conhecimento dos avanços científicos e tecnológicos, além das dificuldades de aplicação dessas descobertas no seu combate. Um desses avanços foi o conhecimento da anatomia patológica, em fins do século 18, que lançou as bases para a extração cirúrgica dos tumores, a exemplo da mastectomia. Bastante rudimentar no início, essa técnica de extração da mama foi se aperfeiçoando a ponto de se tornar radical, a fim de evitar a reincidência do câncer. Acabou sendo questionada, posteriormente, devido ao grau de mutilação das pacientes e à mortalidade registrada tempos após a operação. O desenvolvimento da radioterapia e da quimioterapia também foi outra

importante contribuição registrada neste trabalho. Surgida com a descoberta do elemento químico rádio, no final do século 19, pelo casal Pierre e Marie Curie, na França, a radioterapia significou um novo domínio terapêutico contra o câncer, especialmente para os tumores mais localizados. Porém, ainda na fase de experimentação da técnica, muitas pessoas morreram, inclusive alguns dos cientistas realizadores dos testes, tendo em vista que a própria radiação provoca câncer. “A radiação era uma faca poderosamente invisível – mas ainda assim uma faca, que, por mais ágil e penetrante que seja, tem utilidade limitada na batalha contra o câncer”, descreve Siddartha.

Já a descoberta da quimioterapia foi possível graças a um acaso. Numa operação militar, realizada na Segunda Guerra Mundial, constatou-se que pessoas expostas acidentalmente ao gás de mostarda sofriam uma diminuição dos leucócitos (células sanguíneas oriundas da medula óssea). Deduziu-se, então, que a droga introduzida por via intravenosa poderia ter efeito similar em pacientes com linfoma. A experiência acabou sendo bem-sucedida e hoje é considerada uma das principais estratégias para controle do processo de reprodução celular de vários tipos de cânceres. Evidentemente, há guerras perdidas contra o câncer. Como o próprio Siddartha frisa, entre promessas de

c o n t i n e n t e junh o 2 0 1 2 | 5 4

Historia_Cancer_JUN.indd 54

25/05/2012 08:08:14


divulgação

2 química Casal Pierre e Marie Curie descobriu o elemento rádio mary lasker 3 Empenho da socialite rendeu-lhe o apelido de “fada madrinha da pesquisa do câncer”

4-5 ANOS 1940 Museu da Saúde Pública Emílio Ribas guarda importante acervo de peças publicitárias 6 SIDDARTHA MUKHERJEE Médico recebeu o Pulitzer 2011 pela obra O imperador de todos os males

de arrecadação de fundos para combater o câncer, após se curar de um linfoma, no final da década de 1940, nos Estados Unidos. Mary Lasker, socialite de Manhattan, também é uma pessoa importante dessa “biografia”, segundo o autor. Exemplo de determinação e persistência, ela se une a Sidney Farber (considerado o pai da quimioterapia), a partir dos anos 1940, para fazer lobby político e levantar fundos para realização de pesquisas médicas. Tamanho empenho lhe rendeu o título de “fada madrinha da pesquisa do câncer”.

MÉDICO BRASILEIRO

6

vitórias e recaídas, tratamentos como a mastectomia e a própria quimioterapia passaram por períodos de radicalizações, diante dos experimentos realizados nas pesquisas biomédicas. Esse talvez seja um dos pontos altos do livro. “A dramaticidade do câncer ensejou, em diversas fases, atitudes heroicas em muitos profissionais que lidaram com a doença, como forma de buscar resultados improváveis”, comenta o médico Marco Porto, professor da Universidade Federal Fluminense e ex-coordenador de Ações Estratégicas do Instituto Nacional de Câncer (Inca). É o caso, por exemplo, do médico Barry Marshall, um dos personagens enfocados na obra. Sem verba para realizar o seu estudo, ele próprio decidiu

se submeter a uma experiência, em 1984, com a bactéria Helicobacter pylori (localizada próximo da válvula de saída do estômago), ingerindo-a para comprovar se ela era causa da gastrite e predispunha ao câncer de estômago. Submetido a uma série de biópsias depois da ingestão voluntária, o médico acabou sendo “diagnosticado com uma forma altamente ativa de gastrite, com uma densa camada de bactérias no estômago e crateras ulcerosas por baixo – exatamente o que encontrara em seus pacientes”, conforme relata o livro. Além dele, outras pessoas importantes têm suas histórias contadas. Um deles é o pequeno Jimmy, ou Einar Gustafson, criança que se tornou símbolo de uma campanha milionária

Para os brasileiros, uma curiosidade é a menção ao oftalmologista Hilário de Gouvêa. Atuando no Rio de Janeiro, ele identificou casos de retinoblastoma (forma rara de câncer no olho) na família de um paciente que, quando criança, desenvolveu a doença e precisou ter o olho extraído na segunda metade do século 19. Ao se tornar pai, duas de suas filhas acabaram morrendo do mesmo problema. Na época, o médico relatou o caso como um enigma desconcertante, por não saber sobre a genética – não se tinha conhecimento sobre a matéria ainda, embora alguns especialistas já notassem a hereditariedade em alguns cânceres. Só recentemente a pesquisa genética tornou possível desvendar os mecanismos dessa doença, incorporando as descobertas à terapêutica. Para as mulheres, especialmente, a obra vale como curiosidade ao explicar o surgimento do exame papanicolau. O nome surgiu a partir da contribuição do citologista grego George Papanicolau no desenvolvimento do teste que identifica estados patológicos de doenças ginecológicas ao raspar células cervicais. Considerada “inútil”

c o n t i n e n t e junh o 2 0 1 2 | 5 5

Historia_Cancer_JUN.indd 55

25/05/2012 08:08:16


imagens: reprodução

con ti nen te

História

7

no começo, a invenção acabou adiantando, com o passar do tempo, a detecção do mal em quase duas décadas, o que modificou a lógica da enfermidade de predominantemente incurável para curável. Além de recuperar fatos relativos ao passado distante, Siddartha busca explicar o presente do câncer. Para tanto, entrelaça informações atuais com histórias de pacientes. Inclusive, ele aparece no enredo, em primeira pessoa, relatando casos de que tratou, como contraponto para as narrativas sobre o câncer em terceira pessoa. Um dos destaques tratados pelo médico indiano é o da professora de jardim de infância em Ipswich, Massachusetts, Carla Reed. Acometida de uma hora para outra por uma leucemia aguda (variação especial cancerígena que atinge o sangue), em 2004, Carla se vê obrigada a iniciar uma série de tratamentos para combater a doença. Sua história é usada como ponto de partida da biografia e permeia toda a obra, chegando até o final da narrativa como forma de conferir um caráter mais humano ao assunto árido.

Pela falta de informações mais consistentes antes do séc. 18, o câncer foi associado a imagens punitivas Apesar de reais, esses casos parecem adquirir, no texto de Siddartha, contornos mais ficcionais pela forma como descreve as situações vividas por ele e seus pacientes. Isso torna mais leves os principais aspectos culturais e políticos que envolvem os diversos cânceres, sem perder a densidade da história. A estratégia literária também ajuda a construir uma narrativa, em certa medida, unificadora; um modo de contar marcado pelo medo e pela dor de uma moléstia que, até bem pouco tempo, era denominada sinistramente de “aquela doença”. Esse termo sem caracterização específica não é em vão. Tratado historicamente como uma maldição, o câncer equivalia a uma sentença

definitiva de morte ao doente. Pouco se sabia sobre a doença e era nula a capacidade dos médicos em evitarem o sofrimento e a morte das pessoas. Além disso, a sociedade do passado pouco a percebia, por ser típica da idade adulta e da velhice, num momento em que a evolução demográfica ainda não tinha se consolidado como hoje, com nações essencialmente formadas por pessoas mais velhas. Para os franceses Claudine Herzlich e Philippe Adam, o medo relacionado ao câncer é semelhante ao de epidemias do passado, por isso “continua sendo obcecante ainda hoje”, segundo escreveram no livro Sociologia da doença e da Medicina. Antes pensado como um desequilíbrio dos fluidos e um problema orgânico mais geral, que desaconselhava cirurgias e uso de medicamentos nas pessoas, somente no século 18 o câncer passou a ser visto como uma doença localizada no corpo, permitindo um maior conhecimento da anatomia patológica e do funcionamento das células. Justamente pela falta de informações mais consistentes, e voltadas à noção da

c o n t i n e n t e junh o 2 0 1 2 | 5 6

Historia_Cancer_JUN.indd 56

25/05/2012 08:08:17


divulgação

8

7 em 1897

Austríaco Karl Gussenbauer inicia intervenção para tratamento de tumor cerebral

8 susan sontag

Autora de A doença como metáfora, em que refletiu sobre os significados negativos associados aos males degenerativos

morte, o câncer foi atrelado a imagens punitivas, sendo o sujeito responsável pelo surgimento da sua doença, e não o ambiente externo. “É o câncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva, um papel que conservará até que, algum dia, sua etiologia se torne tão clara e seu tratamento tão eficaz quanto se tornaram a etiologia e o tratamento da tuberculose”, previu a escritora Susan Sontag, em 1978, no célebre ensaio A doença como metáfora. Segundo a ativista americana, ela própria vítima de um câncer nos anos 1970 e falecida em 2004, o câncer é uma doença polêmica, usada para propor novos padrões de saúde individual e exprimir um descontentamento para com a sociedade. “As metáforas da doença são usadas para julgar a sociedade,

não como desequilibrada, mas como repressiva”, explica. Não à toa, a Aids – denominada, no início da epidemia, de “câncer gay” – impulsionou uma ressignificação semântica pelo fato de as duas doenças guardarem entre si uma função intrinsecamente degenerativa. Ao final do livro, Siddartha reconhece que a trajetória do câncer em direção ao futuro ainda é imprevisível, dada a falta de um maior conhecimento sobre a base biológica da enfermidade. Por isso, ele acredita que uma saída possível seja prolongar a vida, em vez de eliminar a morte a todo custo. “Talvez a melhor maneira de ‘vencer’ a guerra contra o câncer seja redefinir o conceito de vitória”, defende. Nessa nova relação com a saúde, a instabilidade dos sentidos das coisas nos ajuda a compreender melhor a mudança entre o cultural e o biológico, justo por revelar um traço diferenciado da doença no meio social. A vida do câncer seria “um resumo da vida do corpo, sua existência é um espelho patológico da nossa”.

CAMPANHAS ANTIFUMO No Brasil, desde 2001, os fabricantes de cigarros são obrigados por lei a inserirem nas suas embalagens imagens alertando sobre os riscos do tabagismo, sendo o segundo país no mundo a adotar esse tipo de medida (o primeiro foi o Canadá). Essas advertências têm o objetivo de mostrar os malefícios causados pela fumaça do cigarro, conforme as evidências científicas divulgadas no século 20. Hoje, o país está na terceira geração das imagens de advertência. A última mudança ocorreu em 2008 e representou uma inovação. Pela primeira vez, a sua produção saiu das mãos de uma agência de publicidade e passou a ser feita por um grupo técnico do Departamento de Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e pelas áreas de Psicofisiologia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da UFRJ, em parceria com o Inca e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, algo inovador no mundo. Todas as imagens foram criadas e testadas previamente, ganhando um apelo mais dramático e aversivo, com base em três grandes grupos: as metafóricas, as realistas com abordagem científica e as de teor jornalístico. Além de uma palavra de ordem, foram inseridas fotos com maior apelo dramático, frases relacionadas às imagens mais fáceis de serem compreendidas pelo público e o logo do Disque Saúde. Algumas das ideias criadas no Brasil chegaram a ser copiadas no Uruguai e no Chile. Para a jornalista Cristina Ruas, que analisou em sua dissertação de mestrado Os processos de produção e circulação das 29 imagens de advertência produzidas entre 2001 e 2008, o uso dessas imagens é uma tendência internacional para afastar o consumidor do produto e tornar a embalagem menos atrativa. “Ao longo dos últimos 10 anos, as imagens de advertência foram ficando cada vez mais aversivas, no Brasil, levando o fumante a pensar sobre os riscos envolvidos com o cigarro e a evitá-los”, afirma. Na sua opinião, um dos desafios para a área da saúde está nos sentidos provocados pela campanha antitabagista, que utiliza o senso comum e a moral vigente para chocar através das imagens, e na necessidade de refletir sobre a manutenção do efeito de choque e a aversão ao longo do tempo. (MR)

c o n t i n e n t e junh o 2 0 1 2 | 5 7

Historia_Cancer_JUN.indd 57

25/05/2012 08:08:18


míDia Abertura para o diálogo e contra a mistificação Divulgação do drama das celebridades e as campanhas publicitárias perenes contra a doença contribuem ao seu esclarecimento

imagens: reprodução

Dilma Rousseff, Lula da Silva,

con ti nen te

Reynaldo Gianecchini, Hebe Camargo, Drica Moraes, Elba Ramalho, Patrícia Pillar, Glória Perez e Ana Maria Braga. Em comum, essas personalidades brasileiras já vivenciaram publicamente, em maior ou menor grau, seus cânceres. No Brasil, a ampla divulgação do assunto na mídia vem contribuindo para desmistificar a doença, tornando-a um assunto mais difundido e menos envolto em medo. De 2001 a 2011, ela foi capa de cinco exemplares da revista Veja, considerado o maior semanário de circulação nacional no país, hoje. Desse total, três edições trataram diretamente do câncer em celebridades. O número pode parecer irrisório, à primeira vista, mas é representativo, se levarmos em conta a cobertura anterior. Nos anos 1990, foram identificadas apenas duas capas sobre esse mal, um quantitativo semelhante ao encontrado nos anos 1970. “A divulgação do câncer nos meios de comunicação, inclusive tendo as celebridades como ilustração do drama, pode ser vista como algo positivo, contribuindo para tornar a doença cada vez mais compreensível para a população. Entretanto, essa superexposição e o enfoque nos casos de famosos podem atrapalhar, na medida em que se utilizem de motivações mercantilistas”, pondera o médico Marco Porto. Para o público leigo, ele diz também que a notícia de “supertratamentos” e “superdiagnósticos”, comumente destacados pela mídia, costumam ser vistos como os melhores. “Essas novidades científicas nem sempre representam a melhor opção para as pessoas, especialmente se esses

História

9

c o n t i n e n t e junh o 2 0 1 2 | 5 8

Historia_Cancer_JUN.indd 58

25/05/2012 08:08:24


9 humor

Cartaz de autoria de Ziraldo ataca, com graça, o tabagismo

10 anos 1980

Campanha do Ministério da Saúde traz mensagem leve e direta

11 cigarros

Publicidade antitabagista sugere que o mal vestese em pele de cordeiro

estudos ainda estiverem em caráter experimental”, complementa o historiador e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/ Fiocruz) Luiz Antônio Teixeira. Luiz Antônio e Marco Porto coordenam o projeto Histórias do câncer – atores, cenários e políticas públicas, uma iniciativa da COC em parceria com o Inca. Surgido há dois anos, o projeto tem a finalidade de produzir conhecimento histórico sobre o controle da moléstia no Brasil, além de contribuir para a valorização e preservação do patrimônio cultural das instituições ligadas ao câncer. A pesquisa e a documentação das campanhas são uma das iniciativas do projeto. Até agora, foram recuperados mais de 300 materiais gráficos, entre cartazes, fôlderes e panfletos produzidos entre as décadas de 1940 e 2000. A Continente teve acesso a boa parte desse material. Analisando numa perspectiva cronológica, é interessante notar as variações de abordagens em diferentes períodos. Num primeiro momento, os anúncios enfocavam a importância do diagnóstico precoce. Inspiradas no modelo americano, as mensagens abordavam o medo como forma de impor medidas preventivas obrigatórias. O discurso de guerra era bem marcante nesse período, com o uso de metáforas bélicas. Influenciado pelo contexto mundial, esse discurso lançava mão de palavras comuns ao campo militar, tais como guerra, luta, batalha e inimigo; assim ocorria nas mensagens referentes a doenças infectocontagiosas. A imagem do caranguejo servia para retratar a doença. “O câncer era concebido como um inimigo cruel e um flagelo que atacava

10

11

as nações, sendo necessário combatêlo a todo custo”, explica Luiz Teixeira. A partir dos anos 1970-80, as campanhas mudam de enfoque, buscando se aproximar mais das pessoas através de um discurso de promoção da saúde, no qual o forte era a adoção de estilos de vida mais saudáveis a fim de evitar o aparecimento da doença. A mensagem se aproxima mais do corpo, tanto textual quanto imageticamente, mostrando o sujeito como principal responsável pelo cuidado consigo mesmo. Nesse sentido, a célebre propaganda da atriz Cássia Kiss, no finalzinho dos anos 1980, ensinando as mulheres a fazerem o autoexame se converte num exemplo representativo dessa fase.

“A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) representa um corte fundamental na história do câncer e da própria propaganda de saúde no Brasil. Até os anos 1980, a doença era apenas mostrada, havendo poucas opções de tratamento para a população. Somente o trabalhador com carteira assinada tinha acesso aos serviços através do antigo Inamps, ligado à Previdência Social. Com o advento do SUS e a paulatina criação de uma rede de atendimento, os anúncios passaram a enfatizar também onde buscar diagnóstico e tratamento”, acrescenta Luiz Teixeira. Ele e Marco lançarão, este mês, o livro O câncer no Brasil, passado e presente, pela editora Outras Letras, que pretende traçar uma trajetória do câncer no país. MARCELO ROBALINHO

c o n t i n e n t e junh o 2 0 1 2 | 5 9

Historia_Cancer_JUN.indd 59

25/05/2012 08:08:33


divulgação

Claquete

1

ON THE ROAD Na trilha de Jack Kerouac

Dentro do Vesuvio Cafe, no bairro

Nos EUA, muitos lugares lembram o livro mais conhecido do beatnik, clássico da contracultura que chega aos cinemas com direção de Walter Salles TEXto Marcelo Abreu

de North Beach, em São Francisco, foi afixado numa parede um trecho da abertura do livro Viajante solitário, de Jack Kerouac: “Aqui embaixo na terra escura/ antes de irmos todos para o Céu/ Visões da América/ Todas essas caronas/ Todo esse sacolejar ferroviário/ Todos esses regressos/ à América”. O poema resume a vida frenética e o pensamento de Kerouac, considerado um dos grandes escritores do século 20, e está num local que foi ponto de encontro dos beats durante anos, mantendo-se aberto até hoje. Jack Kerouac era um jovem aspirante a escritor, quando, aos 25 anos, em 1947, decidiu pegar a estrada pela primeira vez. Saiu de Nova York, onde morava, com uma mochila de lona nas costas e 50 dólares no bolso, decidido a pegar caronas para encontrar amigos em Denver, no Colorado, e em São Francisco, do outro lado do

continente JUNHo 2012 | 60

Claquete_JUN.indd 60

25/05/2012 08:12:43


reprodução

também o documentário À procura de On the road, no qual entrevista amigos e contemporâneos do escritor. Hoje conhecido essencialmente como escritor-viajante, cuja prosa espontânea (o fluxo da consciência) é toda centrada nas experiências que viveu, Kerouac (1922-1969), paradoxalmente, pouco se aventurou fora dos Estados Unidos. Usou o próprio país como experimento existencial e, sem a menor intenção, acabou tornando-se o principal divulgador da nova sensibilidade que surgia entre seu grupo de amigos escritores: a rejeição ao complexo industrial militar da Guerra Fria e ao que chamou de “civilização do aço”, a valorização da experiência direta, da vida nas ruas, do amor livre, da espiritualidade oriental e da diversão sem limites como forma de iluminação – todo um conjunto de novos valores que iriam se fortalecer nas décadas seguintes.

2

continente. Sua vida não seria mais a mesma. A literatura norte-americana também não. De quebra, Kerouac introduziu na cultura pop a idealização da vida na estrada, que iria se espalhar pelo planeta nos anos 1960. O conjunto das quatro grandes viagens realizadas entre 1947 e 1950 pelos Estados Unidos e México foram reunidas no livro On the road (Pé na estrada), escrito em 1951 e publicado, com alterações, em 1957. Virou imediatamente um clássico da literatura, sucesso de crítica e de público, e traduzido para mais de 30 idiomas. As viagens de Kerouac, que precederam em duas décadas o surgimento da contracultura dos hippies, chegam finalmente ao cinema com o filme Na estrada, dirigido pelo brasileiro Walter Salles. A produção é de Francis Ford Coppola, que adquiriu os direitos há mais de 30 anos, mas só agora conseguiu concluir o projeto. Salles realizou

O conjunto das viagens pelos EUA e México, entre 1947 e 1950, transformouse em On the road, escrito em 1951 No início de On the road, ele descreve sua partida: “Certa manhã, deixando meu grosso manuscrito incompleto sobre a escrivaninha (referência ao seu futuro primeiro romance, Cidade pequena, cidade grande) e dobrando pela última vez meus confortáveis lençóis caseiros, parti com meu saco de viagem no qual poucas coisas fundamentais haviam sido arrumadas, caindo fora em direção ao Oceano Pacífico com 50 dólares no bolso”. Kerouac explorava a vastidão dos Estados Unidos (que, 65 anos atrás, ainda tinha um clima de Velho Oeste intenso em algumas regiões). Viveu numa época em que a Rota 66 serpenteava de Chicago, no meiooeste, até Los Angeles, na Califórnia, passando por nove estados, num tempo em que havia, ainda forte, o mito do vagabundo deslocando-se em busca de aventuras. Pela rodovia, passavam famílias prósperas de classe média,

na estrada 1 À frente, Kristen Stewart (Marylou) e Garrett Hedlund (Dean Moriarty), em cena do filme de Walter Salles aos 25 anos 2 Kerouac era um aspirante a escritor quando pegou a estrada com uma mochila e 50 dólares

empreendedores e aventureiros. Era com esses últimos que ele se identificava, quando caiu na estrada. On the road celebra a vida através do vaivém incansável – e até mesmo insano – do amigo Neal Cassidy (no texto e no filme chamado de Dean Moriarty). Quatro anos mais jovem, o hiperativo Neal falava, bebia, drogava-se e movimentava-se sem parar, enquanto furtava carros para deslocar-se com os amigos e as inúmeras mulheres que conquistava quase todo dia. Kerouac (que no livro se chama Sal Paradise) acompanhava as aventuras num papel secundário, deixando as proezas maiores para o amigo, que age como seu alter ego. Enquanto Neal extrapolava sempre, Jack guardava energia para conseguir escrever sobre a experiência na estrada. Tudo servia de inspiração para a sua prosa poética: a saudade da infância em Massachusetts, as grandes distâncias, a dureza do transporte ferroviário, os automóveis usados pelo grupo inquieto de amigos, a sensibilidade para os grandes nomes da música negra e para as populações indígenas, o álcool, a maconha e as bolinhas de anfetaminas que davam energia para as noitadas, a rejeição à literatura acadêmica e ao intelectualismo de gabinete. Ele também usou o jazz de sua época – principalmente o bebop – como inspiração para escrever num ritmo que mistura a ousadia apressada de um solo de trompete com a reflexão lenta de um acompanhamento de piano. Seus maiores ídolos eram músicos como os saxofonistas Lester Young, Charlie Parker e Lee Konitz, o trompetista Dizzie Gillespie e os pianistas George Shearing e Thelonious Monk. Como a escrita de Kerouac lida o tempo todo com acontecimentos reais, sua trajetória no período se confunde com os fatos narrados nos livros, inclusive em On the road. Em várias partes dos EUA, os locais frequentados pelo escritor e pelos beatniks guardam sua passagem na memória.

continente JUNHo 2012 | 61

Claquete_JUN.indd 61

25/05/2012 08:12:44


ROTEIRO Em cada lugar, uma intensa vivência

3 marco

Detalhe de grafite numa parede de edifício que indica a passagem de Jack Kerouac pelo local

De Nova York a São Francisco, várias cidades guardam as marcas da passagem de Jack Kerouac

reprodução

Claquete

3

Em Nova York, a base de Kerouac

durante grande parte da vida adulta, está a Universidade de Columbia, em que estudou e conheceu os amigos que formaram a primeira leva da beat generation (Allen Ginsberg, William Burroughs e John Clellon Holmes, entre outros). Muito significativo é o apartamento no número 454 da rua 20, no qual escreveu a primeira versão de On the road, em abril de 1951, em apenas 20 dias, tomando bolinhas de anfetaminas e sem interrupção nem para trocar o papel da máquina de escrever (usou para isso um rolo contínuo de papel de telex). O manuscrito original só foi publicado sem cortes em 2007 (300 páginas na edição da Viking e um único parágrafo).

Além de registros dos lugares por que passou, o escritor também refletiu sobre sociedade e espiritualidade A façanha seria desdenhada por Truman Capote, nos anos 1950, com uma de suas tiradas: “Isso não é escrever, é datilografar”. O prédio em que morou o autor fica a três quadras do mitológico Chelsea Hotel, que sempre hospedou intelectuais ligados à contracultura. No bairro boêmio de Nova York, continua de pé a Village Vanguard,

famosa casa noturna na qual, em 1957, Kerouac fez leituras de seus poemas acompanhado por músicos de jazz. Na área metropolitana, estão também as casas em que morou sua mãe e para onde o autor sempre voltava entre uma viagem e outra. Ficam no subúrbio, na área do Queens: a primeira, no bulevar Crossbay, em Ozone Park; e a segunda, na rua 134, em Richmond Hill. Foi em Chicago, onde chegou de ônibus em 1947 e percorreu as ruas do centro ouvindo bebop, que Kerouac começou a dominar a arte de pegar carona e viajar com o mínimo de dinheiro. Partindo em direção a Denver, ele escreveu: “A primeira carona foi num caminhão carregado de dinamite, com bandeira vermelha e tudo, uns 50 quilômetros pela esverdeada amplitude de Illinois, com o caminhoneiro apontando o lugar onde a Rota 6, na qual a gente estava, se juntava com a Rota 66 antes de ambas mergulharem nas inacreditáveis distâncias do Oeste”. No centro de Denver, no Colorado, que tem muita importância na narrativa de On the road, encontram-se até hoje a Rua Larimer e a Avenida C-Olfax que, nas décadas de 1940 e 1950, eram repletas de bares e clubes de jazz, nos quais o jovem Kerouac vagueava com os hepcats e com os amigos Neal Cassidy e Allen Ginsberg (Carlo Marx, no livro). A Denver atual, moderna e bem organizada, lembra muito pouco os tempos de On the road. Mas, há alguns anos, um grupo de artistas locais lançou uma campanha para marcar os prédios frequentados pelo escritor com um carimbo-pichação nas paredes, em que está escrito “Jack was here” (“Jack esteve aqui”).

continente JUNHo 2012 | 62

Claquete_JUN.indd 62

25/05/2012 08:12:45


INDICAÇÕES Pertinho dali, aos pés das Montanhas Rochosas, na cidade de Boulder, famosa por sua universidade e como centro alternativo, Kerouac é tratado como um ícone da contracultura. Podem-se ver seus livros nas vitrines de livrarias, nos restaurantes vegetarianos e nas lojinhas new age da Rua Pearl. Na cidade, a Universidade Naropa, uma herança da admiração dos beatniks pelo budismo, reúne a tradição do Oriente e Ocidente, promovendo o que chama de uma “educação contemplativa”. No campus, existe a Jack Kerouac School of Disembodied Poetics (Escola Jack Kerouac de Poética Desencarnada), fundada por Ginsberg, em 1974, e dedicada a ensinar escrita experimental em prosa, poesia e tradução. Em São Francisco, vizinho ao Vesuvio Café, fica a City Lights, criada em 1953 pelo poeta Lawrence Ferlinghetti, editora dos beats e centro intelectual do movimento. Até hoje, é uma das livrarias mais apreciadas do planeta e ponto de encontro de escritores alternativos. Na mesma esquina, existe, desde 1988, a Jack Kerouac Street, na verdade um pequeno beco no qual o escritor é homenageado e que – de forma apropriada – leva à área de Chinatown. São Francisco era uma espécie de exílio interno para os hipsters nos anos duros do pós-guerra. Kerouac passou várias temporadas na cidade, hospedando-se com o casal Neal e Carolyn Cassidy numa casa do Bairro de Russian Hill. Foi lá que reescreveu On the road, no ano de 1952, porque a primeira versão do texto, sem parágrafos e com

alguns palavrões, havia sido rejeitada pelos editores. Também em Russian Hill ficava a galeria de arte em que houve o recital Six poets at Six Gallery (Seis poetas na Six Gallery), em 1955, durante o qual Ginsberg declamou o seu poema Uivo, que lançou para o grande público o movimento beat (hoje é uma loja de tapetes). Na estação de trem Southern Pacific, Kerouac trabalhou como carregador e guarda-freios. Perto dali ficava o hotel The Cameo, na Rua 3, em que o autor hospedava-se e escrevia, quando não estava na casa dos amigos. Das janelas do já então decadente Cameo, que não existe mais, o escritor observava, madrugada adentro, a vida regada a álcool, drogas e jazz, que está presente em muitos de seus livros. O texto de Kerouac era escrito, ao mesmo tempo, em planos superabertos e intimistas. Sua prosa era sonora, exuberante, em tecnicolor, mas também tinha seus momentos de escuridão, sobretudo quando escrita sob efeito da bebida. Na vasta América do Norte, Kerouac registrou sua passagem por centenas de cidades, como Ogallala, no Nebraska; Ashtabull, no Ohio; Baton Rouge, na Louisiana; e Nuevo Laredo, do outro lado da fronteira (“que parece com a nossa Lhasa sagrada”, escreve num rompante de entusiasmo pelo México católico e pelo exótico e distante Tibete budista). Registrou também os vastos horizontes, as mudanças provocadas pela sociedade industrial, a solidão, a procura por Deus, o frenesi de uma juventude em busca da iluminação. MARCELO ABREU

AVENTURA

ação

Direção de Martin Scorsese Com Asa Butterfield, Chloe Moretz, Sacha Baron Cohen Paramount

Direção de Guy Ritchie Com Robert Downey Jr., Jude Law, Naoomi Rapace Warner

A INVENÇÃO DE HUGO CABRET

SHERLOCK HOLMES: O JOGO DE SOMBRAS

Hugo e sua amiga Isabelle tentam fazer funcionar um autômato que o menino herdou do pai. A jornada resulta em uma mágica alegoria às origens da sétima arte, cujas imagens marcantes são resgatadas em novos contextos ou poeticamente recriadas por Scorsese. Como afirma um dos personagens do filme, “se alguma vez você imaginou de onde vêm seus sonhos, é aqui que eles são feitos”.

É possível ver a assinatura do diretor de Jogos, trapaças e dois canos fumegantes nessa sequência de Sherlock Holmes, diferentemente do que ocorreu no primeiro filme da série. Diálogos afinados, narrativas em off e as características câmeras lentas do inglês, que, subitamente, aceleram-se, unem-se numa homenagem a Heath Ledger e seu antológico Coringa, para reforçar as excelentes atuações e tornar o longa um filme que merece ser visto.

BIOGRAFIA

DRAMA

O ÚLTIMO DANÇARINO DE MAO Direção de Bruce Beresford Com Chi Chao, Joan Chen, Kyle MacLachlan Califórnia

Nesse filme sobre o dançarino chinês Li Cunxin, Beresford aborda desde a traumática infância do protagonista até sua mudança para o Texas, onde se encanta pela liberdade e por uma bailarina e decide não voltar à terra natal. A situação causa problemas diplomáticos entre os EUA e a China e uma série de dramas para Li. Como em suas produções anteriores, o diretor apela para o melodrama. Mas o longa atrai pelos belos números de dança.

O GRÃO

Direção de Petrus Cariry Com Leuda Bandeira, Verônica Cavalcanti, Nanego Lira Lume

Longa de estreia de Cariry, O grão foi filmado em 2007, mas só agora chega ao formato DVD, depois de colecionar prêmios em festivais nacionais e internacionais. A tocante história de uma avó doente que tenta preparar o neto para sua morte, contando-lhe uma fábula, é entrelaçada pela da outra neta, que planeja seu casamento. O cearense reflete sobre o tédio e o efêmero, com inteligente uso da câmera e auxiliado por primorosas trilha sonora e fotografia.

continente JUNHo 2012 | 63

Claquete_JUN.indd 63

25/05/2012 08:12:50


A idade

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Bem verdade que ultimamente

estou ficando sensível. Noto que não sou mais daqueles que podem ver qualquer coisa e sair incólume. Vou fazer 80. Atualmente qualquer besteira me deixa abalado. Até cinema. Acho que a censura, em vez de botar “impróprio até 14 anos”, deveria botar “proibido para idosos”. Me perturbo. Começo a ter medo. Como criança que ouvia história de trancoso e não queria dormir. “Você não devia ver essas coisas”, gostaria que alguém me dissesse e desligasse o DVD para me poupar de certos desfechos. Ou deviam fazer uma versão para os velhos, como aqueles livros para o uso do delfim. É melhor ficar lendo sobre arte, os comentários de Goethe sobre a Catedral de Colônia, coisas desse tipo, como o artista deve se posicionar ante a natureza ou, digamos, ler a poesia de Lucrécio. E isso é um grande privilégio do

velho: os moços não têm tempo para degustações assim, os moços correm atrás de finalidades. Fiquei encantado com a descoberta de Goethe de que a melhor luz para ver esculturas era a luz de tochas. Eu até disse a Abelardo da Hora quando suas esculturas estavam expostas no Parque Dna. Lindu. Propor à prefeitura que apagasse todas as luzes e acendessem tochas (Abelardo respondeu, pensando que ainda estava no tempo da ditadura, que iam dizer que era ideia de comunista, tentativa de tocar fogo na cidade, como disseram que Miguel Arraes tinha mandado tocar fogo nos canaviais). Não sei se deva concluir daí esteja me sentindo frágil, como se a fortidão moral e física uma dependesse da outra e precisassem ambas de algum embrutecimento, uma certa rusticidade, carapaça

que o tempo vai desgastando. Nem sempre. Há velhos em que tal carapaça, principalmente de ruindade, é cada vez mais empedernida. Já no meu caso parece que pouco a pouco, muito de pouquinho, estou me tornando bom, digo, sensível. Já pensei em deixar de ler jornal, ver noticiário de televisão, lembrando o que disse não sei se Beaudelaire, que abrir um jornal de manhã cedo é como tomar um copo de pus em jejum, publicado como lema de um jornalzinho do Rio de Janeiro escrito a mão, quem sabe Flor do Mal, de vida efêmera. Bem que invejo aquele brasileiro que vive num mosteiro na Inglaterra sem nenhum contato com o mundo exterior, “as trevas exteriores”. Parece que o Brasil tinha acabado de ganhar a Copa do Mundo no Japão e o repórter perguntou se já ouvira falar

continente junhO 2012 | 64

mat_corrida.indd 64

25/05/2012 08:17:09


tiago correa

1 obra de mestre Monumento ao Maracatu, na Praça das 5 Pontas, bronze, 4 x 3m, 2008, de Abelardo da Hora

de Ronaldo Fenômeno. O monge, rapaz ainda moço, demonstrando vivo interesse, perguntou: “Quem é?” Até hoje morro de inveja. E não é da boca para fora. Vaidade das vaidades. Tanto esforço para querer ser alguém na vida, querer saber de tudo. Esforço vão de querer ser quando já o éramos, o somos, em toda plenitude. Por isso me atrai tanto a patrística. A invulnerabilidade daqueles homens. Eles já eram divinos aqui na terra. Por isso, pouco lhes interessavam as contingências humanas, inclusive essa superficialidade: a felicidade. As implicações do mundo de hoje. Entrei uma manhã dessas na Basílica de N. S. do Carmo. O ambiente é bem mais fresco do que na rua, sombra ampla criando um microclima, por causa da altura do teto, a dimensão da nave, a claridade suave nos dando a sensação de bem

Uma vez fiquei extasiado ao meiodia ouvindo as badaladas do sino da Igreja de Santo Antônio na Rua Nova estar, convidando-nos ao silêncio e à calma, um encanto enfim. Deveria haver uma zona de silêncio em torno da basílica como a área em torno do túmulo de Dante, em Ravena, na Itália, não passar carro, nenhum tipo de zoada. Mas, com a brisa agradável que entra pelas enormes portas, vem também, menos doce, o estardalhaço dos vendedores de discos de músicas gritantes a que nenhuma concentração resiste. Bem atrás de mim, duas idosas, em que a ancianidade não diminuiu a

tagarelice, dialogavam com outras pelo celular de uma delas, que dava vontade de a gente dizer: “Minhas senhoras, silêncio: aqui é a casa de Deus”. Mas será que hoje alguém ainda atenderia a esse convite? Se algum legislador propusesse essa área de silêncio seria acusado de arrogância ou sei mais o que, receberia o repúdio de outras igrejas cristãs ou não. Já houve lugar não sei onde aqui no Brasil em que foi proibido tocar sinos. Nada mais politicamente correto, embora eu possa invocar meu direito inalienável de ouvir os sinos. Não conseguiria imaginar Ipojuca onde nasci nem Recife nem Olinda sem o som dos sinos. Uma vez fiquei extasiado ao meio-dia ouvindo as badaladas do sino da Igreja de Santo Antônio bem na calçada da igreja na Rua Nova. Uma das maiores riquezas do Recife. Algo de grandioso nos suscita na alma.

continente junhO 2012 | 65

mat_corrida.indd 65

25/05/2012 08:17:14


Visuais

letra e traço A divina comédia segundo Romero Artista trabalha num projeto de tradução da obra de Dante Alighieri que agrega textos e ilustrações texto Paulo Carvalho Fotos Breno Laprovítera

continente junho 2012 | 66

Visuais.indd 66

25/05/2012 08:21:17


O ano era 1304. Idade Média. Dante

Alighieri (1265-1321) encontravase exilado de sua Florença, de onde os guelfos da facção branca haviam sido expulsos pelos da facção negra. Enquanto se manteve na vida pública, o poeta tentou estar acima da briga entre os gibelinos e os guelfos, grupos políticos que dominavam Florença. Era rigoroso com ambos. Sua família e seu grande amigo Guido Cavalcanti, expulso pelo próprio Dante da república florentina, alguns anos antes de seu exílio, filiavamse aos guelfos. Guido, com quem se encontraria em comovente passagem de A divina comédia, era um radical. Assim como ocorrera ao amigo, a política apresentou-se terrível para o poeta. Quando os guelfos se dividiram em brancos e negros, ele estava no final do seu mandato de prior e aderiu aos primeiros, para defender-se das manobras do

Insatisfeito com as versões a que teve acesso, Romero de Andrade Lima investiu no que chama de tradução literal

1

papado. Estava sem nenhum bem, condenado a ser queimado vivo, se caísse em poder da administração local. Dante não voltaria a Florença. Nem quando morto. Foi naquele início do século 14, na cidade universitária de Bolonha, frequentando os círculos eruditos, que o exilado Dante compôs – como aulas de um professor visitante – a obra precursora da ciência filológica moderna. De vulgari eloquentia (Sobre a eloquência em língua vernácula) é um tratado de filologia que esmiúça os dialetos e as línguas vulgares de tronco latino. Vulgares, isto é, as línguas que as crianças aprendiam no colo das mães. No vernáculo italiano, Dante identificou pequenos dialetos. Havia os que admirava, como o de Bolonha. Na mesma árvore do italiano, Dante encontraria um “vernacular nobre”, sem identificação com nenhum outro

dialeto, falado em todas as cidades. Por essa contribuição de filólogo e por usar a linguagem vernacular em A divina comédia, Dante é considerado o patrono da língua italiana. Com um interesse duplo pela obra do poeta florentino e pelas traduções que tem recebido para outras línguas ao longo de vários séculos, o artista plástico e encenador recifense Romero de Andrade Lima, 54 anos, encampou um projeto fascinante, que está prestes a concluir. Insatisfeito com as traduções para a língua portuguesa de A divina comédia, ele empreendeu a própria tradução de todos os 100 cantos da obra. Romero também ilustrou as principais cenas das partes do Inferno e do Purgatório. Prepara-se para desenhar o Paraíso. “É uma parte praticamente feita só de luz. Não é tão fácil, tanto que as ilustrações de Gustave Doré para o Paraíso são as mais desinteressantes”, comenta ele, em entrevista à Continente. O trabalho começa a ser disponibilizado no endereço eletrônico de uma “instituição imaginária” criada pelo artista, independente de qualquer patrocínio público ou privado, a Santa Sophia.

NO MEIO DO CAMINHO...

De acordo com Romero, trata-se de uma tradução que busca facilitar a leitura do texto vertido. “Não busquei criar uma releitura. O fato é que existe um leitor que não quer se deparar com a recriação de uma obra. Principalmente de um autor como Dante, para quem cada palavra é escolhida com esmero e tem, muitas vezes, um significado metafísico. Suas palavras, não raro, não pedem outra, senão a tradução literal”, explica. A sintaxe muda. Mas muda muito pouco, segundo o pernambucano. “Veja: ‘No meio do caminho da nossa vida...’, esse verso já é lindo por si. Mas o tradutor geralmente é um poeta que tem pudor de reproduzilo, como se fosse quase uma regra a necessidade de algum tipo de releitura, de modificação. O tradutor, principalmente aqueles do século 19, tem algum receio de ser simples.” Tomando a crítica do artista como referência, podemos observar traduções feitas para o verso “Nel

continente junho 2012 | 67

Visuais.indd 67

25/05/2012 08:21:20


Página anterior 1 processo

omero de Andrade R Lima prepara-se para a tradução do Paraíso

Nesta página 2 detalhe

Ilustrações são criadas ao mesmo tempo em que o artista traduz

manuscrito 3 A ideia de Romero é intercalar os versos originais aos que verte ao português

Visuais

mezzo del cammin di nostra vita”. O verso que abre A divina comédia foi traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1882) como “Da nossa vida, em meio da jornada”. Por Augusto de Campos (1931) como “No meio do caminho desta vida”. “Nesse último caso, abre-se mão do ‘nossa’, que tem um sentido muito mais forte. Uma palavra que aproxima o leitor. Se você tenta ler essas traduções sem um original por perto e sem explicações menos rocambolescas, você desiste, tal o esforço que eles fazem para manter a métrica e a rima. Obviamente, a métrica e a rima, apesar de muito belas, são menos necessárias que o sentido exato”, comenta Romero. O texto do poeta italiano não é composto de maneira simples. São três livros divididos em 33 cantos, introduzidos por um de abertura. Cada canto possui pouco mais que uma centena de versos. Os versos são decassílabos e o metro é o terceto encadeado. Ou seja, no esquema da terza rima, na qual as estrofes rimam continuamente: ABA, BCB, CDC, DED, EFE, e assim por diante. É um esquema que dá a sensação de movimento. Uma vez na Comédia, o leitor é conduzido até ao seu final. O número três também estrutura o conteúdo da viagem ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso, planos divididos em nove círculos, cada. No conjunto, é narrada a história da conversão de um pecador. Trata-se de uma obra doutrinária, de edificação, não obstante a abundância

continente junho 2012 | 68

Visuais.indd 68

25/05/2012 08:21:34


reprodução

de ironia, humor negro e brincadeiras que o autor faz com seus contemporâneos de Florença. A divina comédia é como uma “suma” em que o poeta reúne todo o saber científico, filosófico e teológico de seu tempo.

A LIRA DOS 500 ANOS

Romero conta que conheceu o livro quando era estudante do ginásio. Ficou fascinado com os desenhos de Gustave Doré, publicados nas Edições de Ouro. A intenção de realizar um trabalho semelhante àquele, voltado ao didatismo, também não é recente. Nasceu com o desenvolvimento de um projeto para as escolas de São Paulo, em que realiza montagens teatrais e oficinas, desde os anos 1980. Para cada mês do ano, pensou em um material didático diferente, que pode ser replicado em custo baixíssimo por professores e educadores. “A ideia é não usar nada que precise de dinheiro, para não colocar nenhum obstáculo para qualquer professor ou escola”, explica. Esse grande projeto recebeu o nome de A lira dos 500 anos, e é levado à frente por um grupo de oito pessoas. Juntam-se ao projeto de A divina comédia trabalhos semelhantes em torno do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, entre outros. “A proposta do trabalho é ser didático, no sentido melhor da palavra. Espero que ele possa ser transmitido e espalhado. Por isso resolvi criar uma instituição imaginária, que chamei de Fundação Santa Sofia. Quando se trabalha com um autor como Dante, não se pode correr o risco de se envolver em coisas não muito corretas, obscuras, como acontece

de vez em quando com os editais de patrocínio e, de uma maneira geral, com o marketing cultural. Em relação a essa edição de Dante, a minha ideia é intercalar na página o texto original e o traduzido, colocando as notas explicativas ao lado (homenageados, personagens e de onde vem cada ideia), além dos desenhos, que serão os primeiros a serem divulgados.” O artista comenta que, para a realização das ilustrações, se inspirou nos livros de horas, populares na Idade Média. Não deixa de ser curioso que, hoje, assim como ao novo de trabalho de Romero, só tenhamos acesso a muitos desses livros (o mais famoso são As riquíssimas horas do Duque de Berry) através da internet. O manuseio deles é vetado. Dante foi autor de transição da Idade Média para a Idade Moderna, como eventualmente ele é apresentado. Seu conhecimento é tratado de maneira controversa durante a Renascença, apesar da reverência que recebe dos humanistas do século 15. “Para alguns estudiosos, a Renascença é que foi uma decadência. A vitória de uma burguesia mundana, torradora de dinheiro, guerreadora. Na Idade Média, organizou-se todo conhecimento antigo, preservaram-se todos os livros contra a destruição das invasões bárbaras. A Idade Média, ao contrário do que se diz, é que foi realmente a da luz. Uma idade de grande preservação do conhecimento, de reedição dos livros antigos (através dos copistas)”, arremata Romero. Uma época que tem muito a dizer à nossa, portanto.

Intérpretes

O clássico revisitado Dante Alighieri tem sido inspiração para muitos ilustradores e artistas. Entre os séculos 14 e 15, iluminuras compuseram os códices manuscritos. Michelangelo Buonarroti (14751564), um dos pintores dominantes do Renascimento, pintou A barca de Caronte, em afresco na Capela Sistina. O flamengo Hieronymus Bosch (1450-1416) pintou A ascensão ao empíreo, inspirado em Dante. Sandro Botticelli (1444-1510) também fez uma série de desenhos para A divina comédia. São de William Blake (1757-1827), poeta místico e pintor inglês, desenhos como A serpente ataca Buoso Donati. O classicista inglês Joshua Reynolds (1723-1792) pintou O Conde Ugolino, e Dominique Ingres (1780-1867), o famoso casal Paolo e Francesca. Dante exerceu fascínio também sobre clássicos e românticos. Eugène Delacroix (1798-1863), representante do romantismo francês, pintou A barca de Dante. Já o alemão Anselm Feuerbach (1829-1880) ambientou Dante no mundo subterrâneo. Raquel e Lia foram representadas pelo prérafaelita inglês Dante Gabriel Rosseti (1828-1882). O casal Paolo e Francesca, um dos mais populares do texto de Dante, reaparece em quadro de Amos Cassioli (1832-1891). Gustave Doré (1832-1883), o mais conhecido ilustrador de Dante, é desse período de redescoberta romântica (veja gravura de sua autoria acima). Auguste Rodin (1840-1917) inspirou-se em Dante na criação de diversas esculturas, entre elas O beijo (também representação do casal Paolo e Francesca), O pensador (a próprio figura do poeta) e Ugolino, esculturas do projeto Os portões do inferno. É da autoria do surrealista Salvador Dalí (1904-1989), ainda, uma série de 70 composições à pena e aquarela sobre essa que é a obra mais celebrada do poeta italiano. PAULO CARVALHO

continente junho 2012 | 69

Visuais.indd 69

25/05/2012 08:21:35


JOSÉ CONDÉ Um regionalista posto à margem

1 anos

1960

Escritor posa descontraído, com seu cachorro, para a imprensa carioca

2 parceiro

Relegado ao ostracismo, escritor caruaruense tem relançado o romance Terra de Caruaru, primeiro volume de uma série que pretende recuperar sua obra

Graciliano Ramos (D), era um dos amigos e interlocutores constantes de Condé

TEXTO Danielle Romani

Fotos: reprodução

O romance regionalista teve seu ápice nas décadas de 1930 e 1940. Foi uma resposta ao movimento modernista, que instigou os artistas brasileiros a rever e a valorizar a identidade nacional. Muitos autores se destacaram no gênero que ajudou o Brasil a se conhecer melhor e a entender sua diversidade. Jorge Amado revelou uma Bahia colorida, mística, negra, sensual; o gaúcho Érico Veríssimo criou romances épicos, a partir da saga de ocupação dos pampas; José Lins do Rêgo registrou a miséria e a opressão geradas pelos canaviais paraibanos; e Guimarães Rosa apresentou os sertões e o vasto universo mítico das Minas Gerais. Em Pernambuco, o regionalismo centrou-se na figura de Gilberto Freyre, por meio de artigos e ensaios e, de certa forma, em obras de poetas como Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, que elegeram a terra natal como temática. Mas o romance regional teve também um representante que obteve menos notoriedade que os já citados, o caruarense José Condé, responsável por, pelo menos, uma dezenas de narrativas enfocando o agreste pernambucano – em especial, Caruaru, onde nasceu. Esquecida por editoras, críticos e meio acadêmico durante as últimas três décadas, a obra de José Condé está sendo relançada por iniciativa de seu conterrâneo, o empreendedor cultural Walmiré Dimeron. “Da mesma forma como Condé, outros grandes nomes amargaram e ainda amargam um certo ostracismo. É intrigante um autor como ele, em vida, saudado por nomes como Otto Maria Carpeaux e Renard Perez, aos poucos tornar-se figura pouco presente na crítica literária”, aponta o editor.

Leitura 1

continente junho 2012 | 70

Leitura_JUN.indd 70

25/05/2012 08:23:46


O primeiro volume que traz de volta aos leitores a obra do escritor caruaruense pelo selo WDimeron Editora é Terra de Caruaru, marcando a estreia do produtor na área de editoração. “A partir dele já tive pedidos de relançamento de outros títulos. Mas, no momento, concentro-me em divulgar este, em procurar sua inserção no meio acadêmico, para pensarmos e sugerirmos outros lançamentos de Condé”, explica Walmiré, que contou com o apoio da família do autor para colocar em prática seu projeto. “Na última vez que voltei a Caruaru, tive a lamentável surpresa de entrar na principal livraria do centro para comprar um livro do meu pai. Lá, fui informada pelo dono que muitas pessoas iam procurar livros dele, especialmente Terra de Caruaru, mas que a obra estava esgotada e seus herdeiros não deixavam reeditála. A iniciativa de Walmiré veio a calhar e desfazer o mal-entendido”, explicou Maria Luiza Condé na inauguração da Casa de Cultura José Condé, instalada em Caruaru em janeiro deste ano e que consiste numa das iniciativas para reavivar o nome e o trabalho de um dos mais importantes romancistas estaduais, que nasceu em 1917 e morreu em 1971, no Rio de Janeiro. Quanto à escolha do livro Terra de Caruaru para reabrir o catálogo de José Condé, ela se deu por motivos evidentes: é o mais emblemático, o que mais capta a essência da cidade, seus tipos, suas relações políticas e sociais. A obra retrata uma época em que a então “Princesinha do Agreste” começava a repudiar o coronelismo e as relações quase “feudais” impostas por famílias que detinham o poder na cidade. Um tempo em que Caruaru se preparava para aderir à modernidade, esboçada a partir do final dos anos 1920. “O livro é o clássico caruaruense, nordestino, brasileiro. Foi a obra que alçou Condé à galeria dos grandes nomes da moderna literatura nacional e, junto com ele, projetou sua cidade. É emblemático porque está no inconsciente de gerações de caruaruenses, um patrimônio”, enfatiza o editor. Editado originalmente em 1960, Terra de Caruaru é um trabalho de fôlego. Em primeiro lugar, porque o autor aproveita o livro para fazer uma homenagem a

2

uma Caruaru que ficou no passado. Mas que, ao ser vislumbrada nas páginas do romance, torna-se real, quase palpável. Unindo ficção e realidade, o autor remonta, com seu olhar de adulto, a cidade em que viveu durante a infância. “Como que retirados de sua memória afetiva, os personagens com os quais Condé povoou as páginas do romance são, no dizer do ensaísta Otto Maria Carpeaux, de um passado meio vivido, meio sonhado”, explica Walmiré. O livro é estruturado em três tempos. No primeiro, são mostrados os primórdios, quando a cidade ainda não existia, e tudo que havia era um rancho para pernoite das boiadas vindas do Sertão. Nessa época, a guerra declarada aos índios cariris provocava intensos combates e ameaçava aos que por ali pousavam. Em 1771, após dizimar os índios, o fazendeiro José Rodrigues de Jesus tomou posse das várzeas, onde hoje se encontra a cidade, mandando construir uma igrejinha sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. Num segundo momento, já em 1790, o autor mostra o povoado às voltas com a disputa territorial entre

dois coronéis. Uma luta brutal, que tem como marca a violência desmedida, não mais entre os brancos e índios, mas entre colonizadores. O terceiro tempo da narrativa se dá num passado recente, a década de 1920. Época em que o algodão trazia fartura e riqueza à cidade, que já se apresentava como uma das mais desenvolvidas de Pernambuco, comandada por um grupo político que enriquecia e interferia, diretamente, na vida dos cidadãos. O que é mais agradável nesse livro, assim como em outras obras de Condé, é a conjunção de relato histórico a uma diversidade de personagens e paisagens. No romance, ele não apenas refaz os roteiros, as ruas, os lugarejos – hoje já perdidos – de uma Caruaru centenária, como recria uma galeria de tipos, perfis humanos e sociais presentes na cidade. Cada um dos personagens representa um segmento importante na configuração dos acontecimentos que sustentam o romance. Chico Lima, o jornalista, sintetiza a imprensa combativa que começa a se firmar e se faz presente contra o poderio político e econômico; Reinaldo, o forasteiro

continente junho 2012 | 71

Leitura_JUN.indd 71

25/05/2012 08:23:47


fotos: reprodução

3

encontro

Mauro Mota (E), José Condé e Gilberto Freyre: autores pernambucanos que valorizaram o regionalismo

Leitura 3

carioca com ideias revolucionárias, o novo que ameaça e fascina o status quo; Taveira, o juiz, o poder judiciário à mercê das decisões políticas, que tem sua carreira ameaçada, toda vez que tenta fazer vigorar a lei. Antônio, o jovem advogado, traz a energia idealista da juventude. Jovina, a mulata, é a mulher do povo, que se identifica com as massas. Os empresários Almeida e Gonzaga são o poder econômico, inicialmente omisso, depois atuante. Os Ribas, pais e filho, expressam o poder político ditatorial, que se mantém à base de influência e violência. Zica Soares, o prefeito, é o “pau-mandado” dos donos do poder. Dondom, a amante do coronel Ribas, o pai, representa o poder pardo e o “falso moralismo” de uma elite que se sustenta nas aparências e nas maledicências contra o próximo.

INSISTÊNCIA

O universo de Condé, portanto, une o grandiloquente, o “oficial”, às mesquinharias humanas, comuns em toda parte, em especial nas pequenas cidades. Apesar do tom de denúncia social, o narrativa possui humor velado, sensualismo latente, que podem ser vistos em outros livros do autor, a exemplo de Pensão Riso da Noite: rua das mágoas (1966) e Como uma tarde em dezembro (1969).

O universo de Condé une o grandioso às mesquinharias humanas, comuns em toda parte, em especial nas pequenas cidades Alguns críticos, a exemplo de Edson Tavares, afirmam que o livro foi escrito, principalmente, devido à insistência dos amigos. “Conta a lenda que ele teria sido instado a escrevê-lo por Jorge Amado. O próprio Condé afirma, no preâmbulo do livro, que o autor baiano o obrigara a escrever. O fato é que a obra veio a lume e se tornou numa quase unanimidade editorial e literária nacional quando foi lançado”, explica Edson, no posfácio de Terra de Caruaru. A importância do livro pode ser medida por alguns estudos realizados em torno da sua temática. Na monografia Falas da cidade, apresentada à pósgraduação de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Veridiano dos Santos lembra que não apenas Terra de Caruaru, mas outros livros do autor foram escritos quando ele se encontrava no Rio de Janeiro, onde morava desde a década de 1930.

“Escrever sobre Caruaru, no Rio de Janeiro, parece ter sido a forma que Condé encontrou para lidar com o conflito identitário que viveu a partir dos anos 1930, quando trocou a pacata cidade no interior pernambucano pela vida frenética na capital da República, em processo de modernização. Aliás, foi servindo-se de imagens de Caruaru que o escritor ingressou na imprensa carioca desde muito cedo. No final da década de 1930, ele já publicava em O Cruzeiro o poema Feira de Caruaru, inaugurando uma temática recorrente tanto em sua produção quanto em outros gêneros, que da imagem da feira se utilizariam para caracterizar a cidade”, escreveu Veridiano. Transferido para o Rio de Janeiro devido à morte do pai, sob os cuidados do irmão Elisio, José Condé formou-se em Direito e, em seguida, trabalhou em diversos jornais, produzindo crônicas e outros textos de caráter literário. Caminhos na sombra, seu primeiro livro, foi publicado em 1945, com o selo da José Olympio Editora. Em 1950, editaria Onda selvagem. Ainda nesse período, trabalharia no Correio da Manhã, com Álvaro Lins, no qual assinaria uma coluna literária. Juntamente com os seus irmãos João e Elísio, fundou, em 1949, o Jornal das Letras. Em 1959, publicaria a novela Um ramo para Luísa. Terra de Caruaru seria editado em Portugal em 1961. Com a reinauguração da Casa de Cultura José Condé, que foi restaurada e reúne um acervo de objetos pessoais, manuscritos e de edições originais de livros do autor , fica a expectativa de que a sua obra seja novamente divulgada e resgatada. “Esperamos despertar o interesse dos jovens e do mundo acadêmico”, diz Walmiré.

José Condé terra de caruaru WDimeron Romance mostra tensões políticas e mudanças sociais na cidade agrestina nos anos 1920

continente junho 2012 | 72

Leitura_JUN.indd 72

25/05/2012 08:23:48


Relatos Tem uma mancha na minha calcinha

Mulheres de várias gerações e nacionalidades contam suas experiências – muitas vezes traumáticas – com a primeira menstruação TEXto Adriana Dória Matos

A primeira coisa que precisa

ser dita a esse respeito: falar sobre menstruação constrange muitas pessoas. Se você puxar o assunto numa roda de amigos – homens e mulheres reunidos –, é provável que alguns se voltem para o outro lado, buscando um escape rápido do tema, e isso inclui aquelas que menstruam todo mês. Sim, a menstruação já foi assunto-tabu, e continua sendo para algumas famílias, que agem como se ela não existisse, até o limite do inevitável. Por conta disso, meninas em mutação passaram momentos de desespero, ao observarem manchas de sangue surgirem “do nada” numa parte do corpo que é também cercada de tabus e interdições: a vagina.

Por conta desse comportamento social em torno dos ciclos femininos de eliminação via fluxo sanguíneo, é muito bom ler Meu livrinho vermelho (Galera Record), em que várias mulheres contam aquilo que para elas é inesquecível: a primeira menstruação. Quem teve a ideia de reunir esses relatos foi uma garota de 18 anos, Rachel Kauder Nalebuff, e não é difícil observar que motivada pela pela própria experiência. Pelo teor do volume, em que há uma centena de relatos, admitimos que serão as mulheres – e também pessoas que lidam com saúde, como psicólogos e ginecologistas – as maiores interessadas nessa leitura. Nem imagine, então, leitora, que você

se sentirá constrangida diante desse livrinho simpático. Uma sensação de cumplicidade e identificação irá invadir você, pode ficar certa. De cara, lembrará da própria adolescência, quando chegou a sua vez de menstruar: onde estava, com quem compartilhou o assunto, os primeiros contatos com absorventes íntimos, aquele misto de vergonha e orgulho de passar para o outro time: o das “mocinhas”. Cada uma tem sua história para contar e, dependendo da geração a que pertence, do país de origem, do contexto histórico e, mais importante, da cultura doméstica (relação mãe x filha aqui preponderante), essa história será mais ou menos aterradora. Um dos relatos que sintetizam bem isso em Meu livrinho vermelho é o da escritora norteamericana Erica Jong, que tem, além de um bom conteúdo, o trunfo do domínio da narrativa. Medo dos 14, 1991, título do seu relato, expressa a situação de um modo que inclui a experiência geral das garotas, a dela mesma e a de sua filha. Há também o gracioso depoimento de Yulia, editora de uma revista de arte novaiorquina. Ela lembra que seu primeiro encontro com absorventes foi aos seis anos, quando confundiu aqueles objetos macios e branquinhos com uma cama de boneca. Levou seu novo “brinquedo” para a sala, numa noite em que seus pais recebiam visitas. Foi o suficiente para receber uma aula básica sobre menstruação. A de Yulia só viria aos 13 anos, mas ela compartilharia desde então o “segredo” com sua mamis. São tantas histórias tocantes e honestas, que, depois de lêlas, muitas das mulheres que conhecemos não vão mais sentir aquele impulso de virar o rosto quando, numa roda de amigos, o assunto menstruação surgir.

Meu livrinho vermelho vários autores Galera Record Reunião de depoimentos de mulheres de várias idades sobre a menarca

continente junho 2012 | 73

Leitura_JUN.indd 73

21/05/2012 15:58:23


divulgação

Leitura

mattinata O fiel da poesia

Assim como se propôs há dois anos, Fernando Monteiro silencia quanto à prosa e lança novo livro em versos texto Schneider Carpeggiani

A literatura de Fernando Monteiro tem uma musa: a própria literatura. Escreve sempre sobre o porquê de continuar escrevendo, tentando nos fazer compreender que tudo é ficção, até mesmo quando carregamos a certeza de termos vivido aquilo. Inventamos lembranças, repetimos os velhos scripts. Era essa a trama a sustentar seu primeiro romance, o

fragmentário Aspades, ETs etc. (1998), livro que obrigava o leitor a caminhar num terreno quebradiço, no qual poderia ser tragado a qualquer momento pelo solo frágil sob seus pés. O auge da sua devoção à musa foi O grau Graumann, em que ironizava o campo literário ao criar o personagem de um escritor brasileiro obscuro que ganha o Prêmio Nobel, desafiando qualquer previsão ou aposta.

De uma hora para outra, o estranho de nome alemão se torna uma necessidade de primeira instância para todos que o ignoravam A impressão é que Monteiro estava tão obcecado em dissecar a essência do que implicava escrever, e sobreviver escrevendo, que só um destino parecia coerente com sua empreitada: parar de escrever romances. O silêncio como obra derradeira, um irônico testamento. Foi o que fez há dois anos com o poema épico e distópico Vi uma foto de Anna Akhmátova, marcado pela declaração pública de que não retornaria à prosa. Sua decisão permanece intacta com o lançamento dos poemas de Mattinata, em que dedica boa parte da obra a responder e problematizar uma pergunta de Roberto Piva, “E para que ser poeta em tempos de penúria?”, uma espécie de variação da

pergunta que ele mesmo fazia na época de Aspades, uma das mais fortes obras da literatura brasileira contemporânea, que precisa ser redescoberta com urgência. “Plantamos a flor carnívora/ mas desviamos a vista/ quando o jardim do pecado/ castiga com isso:/ indiferença, acídia, tédio mortal/ no peito de avestruzes/ (os de estômago forte/ para uma literatura feita/ com lixo)”, nos desafia o autor, em mais um forte rompante de amor/ódio à musa que tanto o segue e cega. Em versos ou em prosa, Monteiro volta a comprovar em Mattinata que é uma voz combativa essencial em tempos acríticos, que dão de ombros para as sutilezas imaginárias entre memória & ficção. Que continue a encontrar novas formas de jamais silenciar sobre sua musa.

c o n t i n e n t e j u n h o 2 0 1 2 | 74

Leitura_JUN.indd 74

21/05/2012 15:58:24


INDICAÇÕES ENSAIO

ELIF BATUMAN Os possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores

TEORIA LITERÁRIA

EVANDO NASCIMENTO Clarice Lispector: uma literatura pensante Civilização Brasileira

ROMANCE

ALEJANDRO ZAMBRA Bonsai Cosac Naify

Os ensaios da jornalista mostram como vida, arte e teoria podem se misturar numa escrita fluida, sem os hermetismos comuns aos textos teóricos. A literatura russa torna-se quase um personagem, abordado em contextos criativos como a investigação de um possível assassinato de Tolstói na sua propriedade.

O escritor não acredita numa “literatura filosófica”, mas que esses campos se influenciam, movidos pela potência do pensamento. O autor observa como a ficção clariciana criou um modo particular de refletir a vida. Para isso, ele analisa não só seus textos canônicos, mas também a correspondência, as entrevistas e as colunas femininas que a escritora assinava em periódicos.

O livro de estreia do escritor chileno é contraindicado para os leitores que se preocupam em não saber o desfecho. Já na primeira linha, o narrador antecipa: “No final, ela morre e ele fica sozinho”. A história de amor de Julio e Emilia acolhe conscientemente a finitude e faz um elogio à experiência literária, pois seus personagens são estudantes de Letras em plena descoberta dos grandes escritores.

ROMANCE

ROMANCE

ENSAIO

Ateliê Editorial

Record

Leya

ADRIENNE MYRTES Eis o mundo de fora A recifense Adrienne Myrtes conduz a história se fundando no jogo de possibilidades vocais e na multiplicidade de pontos de vista. Os protagonistas são Luis e Irene? Ou a vida e a morte? “A morte vive em mim desde o meu início, feito um parasita”, explica Irene. É impraticável, quiçá indesejável, discernir o dono do discurso.

MATHEW PEARL O clube de Dante Um romance noir, best seller estadunidense, com o mote em – isso mesmo? – A divina comédia, de Dante Alighieri. Neste thriller policial, um grupo de intelectuais na Boston pós-Guerra Civil Americana se debruça em uma tradução da obra do escritor italiano. Enquanto isso, um serial killer recria as mais atrozes cenas do livro.

JEAN-MICHEL SALANSKIS Heidegger Estação Liberdade

A coleção Figuras do Saber intenciona apresentar pensadores consagrados de maneira introdutória. É o caso de Heidegger, no qual o leitor se deparará com a explanação de duas grandes ideias do filósofo alemão: a da existência e a da diferença ontológica entre ser e ente.

POESIA

RENATA PIMENTEL Da arte de untar besouros Confraria dos Ventos

Depois de lançar duas publicações teóricas , a pernambucana apresenta sua poesia, numa escrita concisa, somada a uma sensível atenção ao mundo, como podemos observar nos versos: “só sabem como nascem/os girassóis/quem ousa plantá-los/e mais ousa:/ cuidá-los durante/todo o longo e exigente/percurso até a florada”.

POESIA

GIOCONDA BELLI O olho da mulher Arte Desemboque

Publicado pela primeira vez em 1992, este livro, essencial à compreensão da obra de Gioconda Belli, finalmente chega ao Brasil. A poeta e romancista nascida em Manágua reúne 135 poemas, alicerçados numa temática erótica e feminina, além de críticas (não necessariamente) sutis ao processo político da Nicarágua.

continente junho 2012 | 75

Leitura_JUN.indd 75

21/05/2012 15:58:27


fotos: REPRODução

Sonoras

1 ARAÇÁ AZUL

Álbum que sucedeu o celebrado Transa rendeu encalhe a Caetano

2 SELF PORTRAIT

Disco de Bob Dylan foi malrecebido pela crítica, mas tornado cult pelos fãs

3 ODAIR JOSÉ

Capa e título de O filho de José e Maria explicam polêmica religiosa

4 GUNS N’ ROSES

Chinese democracy demorou 15 anos para ficar pronto

5 led zeppelin

Gravação de Presence aconteceu sob circustâncias trágicas

1

MALDITOs Aqueles discos que depõem contra!

Dentre as obras de grandes nomes da música é comum haver um álbum considerado a “ovelha negra”, seja por sua qualidade estética, seja pelo fiasco de vendagens texto Ingrid Melo

“It’s better to burn out than to fade

away” (“É melhor incendiar do que queimar aos poucos”, em tradução livre) foram algumas das últimas palavras de Kurt Kobain, em carta de despedida antes de cometer suicídio. Extraída de uma música de Neil Young, Hey, hey, my, my (Into the black), do disco Rust never sleeps (1979), a frase ganhou diversas interpretações, que presumiam desde a incapacidade do músico de se livrar das drogas até seu medo de não conseguir manter uma regularidade na carreira do Nirvana. Independentemente de qual seria a real intenção do roqueiro, o fato é que há quem acredite que apenas a interrupção prematura de uma trajetória artística é capaz de evitar incursões em trabalhos duvidosos.

continente junho 2012 | 76

Sonoras_JUN.indd 76

21/05/2012 16:04:09


Não é difícil de concordar, se pensarmos que vez ou outra nos deparamos com obras problemáticas cujos autores são nomes consagrados. O próprio Neil Young, que poucos erros cometeu em sua sólida carreira, é responsável por um dos maiores equívocos da música mundial. No disco Trans (1982), Young se inspirou no som techno do grupo musical alemão Kraftwerk para executar suas composições. O problema é que ele abusou tanto dos sintetizadores, que ninguém entendeu nada – nem os fãs nem a gravadora, a Geffen Records. Chegou-se a comentar que os vocais, distorcidos ao ponto de ficarem incompreensíveis, eram uma sátira do canadense acerca da direção que a música tomaria no futuro. Segundo o músico, o disco era uma referência a pessoas com dificuldade de comunicação. David Geffen, responsável pelo selo, não ficou satisfeito com o álbum e processou Young. Experiência semelhante ocorreu na música nacional, com Caetano Veloso. “Araçá azul é brinquedo” é a última frase que se ouve no disco Araçá azul, lançado pelo baiano em 1973. Tivesse ele deixado isso mais evidente antes, talvez o álbum não fosse um dos maiores encalhes da indústria fonográfica nacional. Na época do lançamento, o cantor, então com 30 anos, vinha de uma fase de grande reconhecimento e aumento de vendagens, principalmente devido ao sucesso de Transa, lançado no ano anterior, com músicas adoradas como You don’t know me e Nine out of ten. Tomado por uma vontade de experimentar e resgatar as ideias antropofágicas do Modernismo – e gozando de total liberdade para isso –, Caetano Veloso foi para o estúdio, compôs as músicas no momento de sua gravação e fez tudo praticamente sozinho. Porém, a sequência de falsetes estranhos, grunhidos, superposições de vozes e misturas de estilos, somados à imperfeição técnica, soaram altamente difíceis e o disco foi alvo de protestos e recorde absoluto de devoluções. Se a brincadeira de Caetano não foi bem recebida, o mesmo não se pode dizer do insano Self portrait, lançado em 1970 por Bob Dylan. O álbum é uma espécie de paródia em que o músico resgata algumas pérolas do folk em

versões que soam inacabadas, com sua voz anasalada e arranjos orquestrais. Embora tenham se tornado famosas as primeiras palavras do crítico Greil Marcus, em sua resenha sobre o disco para a revista Roling Stone (“What is this shit?”, ou “Que porcaria é essa?”), Self portrait incrivelmente vendeu bem, talvez por conta do mito que era Dylan, considerado porta-voz de sua geração. No livro Crônicas – Vol. 1 (Planeta), o músico explica o motivo dessa mancha em sua carreira: o disco é jocoso e foi feito para que as pessoas o deixassem em paz, parassem de falar dele tão seriamente e se convencessem de que ele era só um amador. E, para deixar isso ainda mais claro, fez logo um disco duplo: “Não se sustentaria sendo um disco simples. Se você vai colocar um monte de porcaria, então que seja muita mesmo”, justificou.

2

UM CULT

Quisera Odair José ter tido a mesma sorte. Em 1979, cansado de críticas e censura às suas composições (em que eram recorrentes temas como sexo, amor sem casamento e prostituição), ele produziu um disco completamente diferente. A ideia original era a de um álbum duplo, no estilo garage rock experimental. A BMG, porém, exigiu que Odair gravasse com a Azymuth, na época mais conhecida como uma banda de estúdio, o que deixou o rock um pouco mais comercial e limitou o número de músicas a apenas um disco. De resto, tudo ficou como planejado para aquela ópera-rock, desde as influências de Herbie Hancock, Peter Frampton e Khalil Gibran (vindas da Azymuth), até o enredo, que Paulo César de Araújo resumiu no livro Eu não sou cachorro, não (Record): “ a história do nascimento, vida e morte de um jovem pederasta – o filho de José e Maria, que após longos anos de solidão e rejeição social, assume a sua homossexualidade e, aos 33 anos, encontra a plenitude”. Lógico que tamanha ousadia não foi compreendida pelo público, muito menos pela Igreja. O disco foi um fracasso de vendas, Odair José foi ameaçado de excomunhão e, ainda, acusado pelos críticos de querer elitizar sua obra. Hoje, O filho de José e Maria é considerado um álbum cult. Nenhuma das obras acima, porém, pode ser comparada ao fiasco que foi

3

4

5

continente junho 2012 | 77

Sonoras_JUN.indd 77

21/05/2012 16:04:15


Fotos: reprodução

Sonoras

7

6

Chinese democracy, lançado pela banda Guns N’Roses em 2008. Depois de passar 15 anos para ser concluído e de ter custado 15 milhões de dólares, passando por vários estúdios, o disco foi malrecebido. Axl Rose, líder da banda que já foi considerada uma das melhores do mundo, caprichou na elaboração dos temas, mas chega a ser penosa a confusão de ruídos de cordas e batidas eletrônicas. É provável que o resultado fosse mais agradável se a banda mantivesse sua formação original, com os belos solos de Slash e a habilidade de Izzy Stradlin e Duff McKagan. Dificilmente, contudo, o álbum chegaria perto do irretocável Apetite for destruction (1987) e da dupla Use your illusion I e II (1991). Na profusão de baladas estilo Queen, que compõem Chinese democracy, o hard rock do Guns N’Roses passa muito distante. Críticas negativas e parcas vendagens, porém, não são os únicos problemas das “ovelhas negras” das discografias de grandes artistas. Em alguns casos, a mácula vem muito mais dos bastidores da gravação do álbum do que de sua qualidade propriamente

8

dita. É o que ocorre, por exemplo, com Presence - um dos discos com processos de criação e gravação mais carregados da história do rock -, lançado pelo quarteto inglês Led Zeppelin em 1976. O álbum foi gravado em Munique, Alemanha, após o vocalista Robert Plant sofrer um grave acidente de automóvel na Grécia. Plant compôs as músicas imobilizado na cama e as gravou em uma cadeira de rodas. Na época, o guitarrista Jimmy Page estava no auge de seu envolvimento com cocaína, quebrou um dedo e teve que tocar sedado. Não obstante, durante a turnê de divulgação de Presence (que foi gravado em 17 dias), Plant recebeu a notícia de que seu filho, Karac, havia morrido em decorrência de uma doença respiratória causada por um vírus raro. A atmosfera do disco é bastante pesada. As canções são uma enérgica entrega ao blues e chegam a arrepiar em momentos como Tea of one, em que é possível ouvir Plant chorar ao microfone. Para muitos críticos, esse foi o último trabalho com alguma relevância lançado pela banda inglesa, que teve momentos brilhantes em sua carreira.

Na história do grupo brasileiro RPM, um dos maiores fenômenos do rock nacional, também existe um álbum que reflete o clima tenso que o envolveu, durante o processo de gravação. Lançado em 1988, o RPM, também conhecido como Quatro coiotes, foi um fracasso de vendas, motivado por canções que, visivelmente, não tinham nenhuma inspiração, embora tecnicamente soassem bem. Naquele momento, o quarteto formado por Paulo Ricardo, Fernando Deluqui, Paulo A. Pagani e Luiz Schiavon colhia os frutos do sucesso de Rádio Pirata (1986) e mergulhava em uma atmosfera de drogas, bebidas, mulheres e estrelismo. Apesar de contar com toda a infraestrutura possível (de gravação no exterior até a criação de um selo próprio, que lançou uma única banda, a Cabine C), o grupo não conseguia se decidir entre fazer um disco mais pesado ou um álbum com sons eletrônicos, batidas funk e teclados potentes. Ao mesmo tempo, Pagani precisou ser internado em uma clínica de reabilitação. A banda chegou a se separar em 1987, mas, depois de uma proposta financeiramente

continente junho 2012 | 78

Sonoras_JUN.indd 78

21/05/2012 16:04:18


INDICAÇÕES 6-7 the beach boys

Smile foi um dos discos malditos que se transformaram em obra cult

8 RPM

Fracasso do álbum do grupo homônimo marcou o fim da banda, no final dos anos 1990

irrecusável da gravadora, finalizou o disco no ano seguinte. Como a obra não emplacou, o RPM voltou a romper e só se reuniu novamente em um álbum de inéditas com Elektra, lançado em 2011. Até hoje, Quatro coiotes é conhecido como um “disco atormentado e esquecido”. O oposto do que o que ocorreu com Smile, disco igualmente conturbado dos Beach Boys. Em 1967, o quinteto californiano estava prestes a lançar o álbum mais esperado da história, uma “sinfonia adolescente para Deus”, que sucederia o genial Pet sounds (1966). Brian Wilson, o principal compositor e arranjador da banda, experimentava a gravação modular (que grava trechos curtos para depois uni-los) enquanto deixava a cargo de Van Dyke Parks as letras de Smile. Quando os outros Beach Boys se integraram às gravações, começaram os problemas. O vocalista e letrista Mike Love não aprovou as letras de Parks; o quebra-cabeças musical não parecia fazer sentido; estava cada vez mais penoso para o resto da banda acreditar que experimentações como o uso do barulho feito por Paul McCartney ao comer vegetais, na canção Vegatables, seriam bem recebidas; a gravadora cobrava a finalização da obra; e Brian achava tudo que conseguiam terminar aquém do que ele havia idealizado. Somando-se a isso, o mais velho dos irmãos Wilson havia mergulhado

em uma rotina de viagens diárias de LCD, o que agravou sua epilepsia. Entre as alucinações relatadas durante o período, há uma famosa em que ele acreditou que a pequena fogueira que fez no estúdio para gravar Fire havia causado um incêndio em Los Angeles (as fitas foram amaldiçoadas e guardadas em um cofre). O golpe final, porém, ainda estava por vir: os Beatles lançaram o cultuado Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band e Brian deu-se por vencido: os ingleses haviam chegado antes ao que ele pretendia. Com a desistência e instabilidade psicológica de seu principal compositor, os Beach Boys abortaram o projeto do Smile e lançaram um substituto, Smiley smile (1967), apenas para cumprir contrato com a gravadora. Algumas composições de Brian foram aproveitadas no novo trabalho, porém em versões bem mais simples, e o disco foi um grande desapontamento. Contudo, o single Good vibrations, lançado antes do álbum, tornou-se um fenômeno e contribuiu para lançar sobre Smile um mito que duraria 40 anos: o disco perdido dos Beach Boys seria um verdadeiro tesouro. No ano passado, a sinfonia inacabada foi finalmente concluída pelos integrantes remanescentes do grupo (Brian Wilson, inclusive) e Smile saiu da categoria de lenda para a de obra-prima, para parte da crítica. Na história, todavia, ficará sempre marcado como o álbum que poderia ter revolucionado o rock mundial, mas que enlouqueceu Brian, afastou-o da música durante 20 anos e ainda hoje o faz ter calafrios, com músicas como Mrs. O’Leary’s cow em suas notas de morte, fogo e ego.

FADO

ORQUESTRAL

Universal Music

Deustche Grammophon

Vários intérpretes Fado

Gustavo Dudamel Discoveries

Uma coletânea que reunisse representantes do velho e do novo fado, encabeçados, claro, por Amália Rodrigues. O presente álbum duplo poderia agradar pela própria concepção e pelo excepcional repertório, mas oferece também um providencial encarte, que explica – de forma rica e concisa – a história e as características do gênero português. As 40 faixas do disco apresentam ao público brasileiro cantores (homens e mulheres) e instrumentistas de primeira linha, cujos trabalhos pouco circulam pelas margens de cá do Atlântico.

O carismático maestro venezuelano, que parece não perder a unanimidade entre a crítica e entre os seus pares, aqui se apresenta em uma seleção de suas melhores gravações, de compositores românticos standard a obras de latino-americanos modernos e contemporâneos, os quais tanto ajuda a consolidar nos EUA e na Europa. Além dos registros ao lado das Filarmônicas de Berlim e Viena e das Sinfônicas Simon Bolívar da Venezuela e de Gotemburgo, o box contém ainda um DVD com o documentário The promise of music.

INSTRUMENTAL

ROCK

Independente

Cênica

Saracotia Saracotia Depois de atuar ao lado de vários conjuntos da nova cena instrumental recifense, e de cantores consagrados na cidade, os amigos Rodrigo Samico (violão de sete cordas), Rafael Marques (bandolim de 10 cordas) e Márcio Silva (bateria) lançam o primeiro álbum do próprio grupo. Mesclando, de forma engenhosa, bases rítmicas nacionais e jazz (como simboliza a presença de Chick Corea e Jacob do Bandolim em meio às peças autorais), o Saracotia buscou transmitir o máximo de musicalidade ao gravar este disco sem cortes e edições.

Hanagorik Alceu ao nosso jeito Lançado no momento em que Alceu Valença comemora os 40 anos do seu primeiro disco, o CD da banda Hanagorik foi considerado pelo artista como aquele que melhor “entendeu” o seu lado roqueiro, expresso em 10 canções de várias épocas, como Papagaio do futuro, Rajada de vento e Planetário. Produzido por Zé da Flauta e masterizado no Sterling Sound Studio, de Nova York, o disco tem participação de músicos que integraram a primeira banda de Alceu, como o próprio Zé, Paulo Rafael e Lula Côrtes.

continente junho 2012 | 79

Sonoras_JUN.indd 79

21/05/2012 16:04:20


Latinstock/Š Riou/photocuisine/Corbis/Corbis (DC)

1

CardĂĄpio 1

continente junho 2012 | 80

cardapio_jun.indd 80

21/05/2012 16:08:59


PREPAROS Receitas que dispensam o fogão

1 ceviche O prato peruano é feito com peixe branco cru marinado em limão

Técnicas de elaboração de alimentos sem aquecimento desafiam a culinária tradicional, que se baseia no uso do fogo texto Eduardo Sena

Grande pensador do século

20, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que já analisou algumas tribos indígenas brasileiras e registrou suas observações em vários livros, certa vez escreveu que “cozinhar estabelece a diferença entre animais e seres humanos”. Bem antes, ainda no século 19, o naturalista Charles Darwin, autor da Teoria da Evolução, constatou que “o fogo é, provavelmente, a maior descoberta da humanidade depois da linguagem”. A verdade é que foi só depois de dominar o elemento mais quente da natureza que o homo sapiens deixou de viver como outros animais, tendo na caça sua principal forma de alimentação. Por definição, cozinhar um alimento envolve a aplicação de algum tipo de calor para modificar suas características naturais. Ferver, selar, reduzir, assar, fritar, refogar são as técnicas mais utilizadas para isso. “Sem fogo, não haveria a gastronomia. Sem ele, não teríamos como controlar as ações culinárias. Antes do domínio do fogo, o cozido já existia, mas era eventual. Era fruto do fogo vulcânico, das queimadas. O homem já tinha o contato, mas não tinha o domínio”, afiança Raul Lody, escritor especialista em Antropologia

Marinar, desidratar e curar são alguns procedimentos para retirar o ingrediente do estágio do cru e eleválo à outra categoria da Alimentação. No entanto, e na contramão do que defende o estudioso, há também a gastronomia sem fogo. Métodos de “cozimento” sem calor, capazes de modificar a estrutura inicial dos alimentos. Marinar, desidratar e curar estão entre os principais procedimentos para retirar o ingrediente do estágio do cru e elevá-lo à outra categoria. Tais processos já figuram assiduamente como tendência nos cardápios dos restaurantes, sob o válido argumento de estimular cozinhas alternativas a favor da preservação das propriedades dos ingredientes. E mais: sublinhando uma demanda crescente pelo alimento saudável por conta de um novo posicionamento global dos hábitos alimentares voltados para a saúde. “A comida crua, ou modificada de forma sutil, tem muito mais vitaminas e minerais que os alimentos

cozidos; a vantagem é evidente, já que os alimentos não perdem nutrientes, como acontece durante a cocção”, defende a nutricionista Roberta Costi. Vale lembrar que as receitas frias que os cozinheiros utilizam na hora de abrir mão do fogo vão muito além das conhecidas saladas, carpaccios, canapés e sashimis (porque até os sushis precisam de fogo, para cozinhar o arroz).

marinado

Nação das que mais prezam por essas características de preservação do alimento, o Peru tem no seu prato mais representativo um bom exemplo que corporifica a ideia de comida sem fogo, o ceviche. Trata-se de um peixe cru, cortado em cubos ou tiras (nesse caso, tiraditos) e marinado em suco de limão ou qualquer outro caldo ácido – mantido na geladeira. O essencial é que o pescado seja branco, sem muita gordura e de carne firme. Embaixador da cozinha peruana no Recife, o chef Biba Fernandes, do restaurante Chiwake, explica que o cozimento do peixe é realizado pela acidez do limão e pela ação do frio, trazendo como resultado um prato saboroso e leve. “Por se tratar de uma proteína delicada, é preciso estar atento para preservar e elevar o sabor

continente junho 2012 | 81

cardapio_jun.indd 81

21/05/2012 16:09:00


Latinstock/© Wyatt, Rawdon/the food passionates/Corbis/Corbis (DC)

2 jamón O sabor da carne é obtido através da técnica da cura, que retira a água do alimento gaspacho 3 Tradicional sopa espanhola de tomate não é cozida; é marinada com vinagre balsâmico

Cardápio

2

do produto. Deve-se tomar muito cuidado com a quantidade de suco de limão, para não deixar o prato ácido demais, e com o tempo da marinada, que pode modificar demasiadamente a textura do pescado”, explica. Após o consumo do ceviche, o caldo do fundo do prato, conhecido como leche de tigre (leite de tigre), por conta da coloração esbranquiçada, também pode ser ingerido. A ele são associados poderes supernutritivos. Também fruto do “cozimento” com ácido, o gaspacho é uma tradicional sopa espanhola, à base de tomate, cebola roxa e pepino, pimentões e pimenta. Ela não cozinha, marina por até 12 horas por meio do vinagre balsâmico e, depois, é processada no liquidificador. Igualmente europeu, o gravlax é um método típico sueco de marinar o salmão, no qual o peixe cru é temperado, cortado em fatias delgadas, envolvido em plástico e prensado por, no mínimo, 24 horas na geladeira. O nome significa, literalmente, salmão enterrado, já que sua história remonta a uma

Outro método bastante recorrente para alterar o estado dos alimentos sem cozimento é a desidratação técnica de conservação usada pelos pescadores dos fiordes da Península Escandinava, que enterravam o peixe nas areias geladas para que fermentassem. Outro procedimento bastante recorrente para alterar o estado dos alimentos sem fogo é a desidratação, que, como o próprio nome faz supor, consiste em remover a água desses ingredientes com o uso do ar seco e quente. O objetivo é evitar que sejam criadas condições propícias para o desenvolvimento de microorganismos e impedir a proliferação de bactérias. Devido à importância da comida para a sobrevivência humana, o método de conservação é uma das tecnologias mais antigas usadas pelos

seres humanos. “Um bom exemplo do método da desidratação é nossa carne de sol, que, na verdade, deveria se chamar de carne de vento, já que o controle de sua transformação devese mais à combinação do ar e do sal do que propriamente à ação solar”, explica Raul Lody. Também é bastante disseminado o método da cura, que, da mesma maneira que a desidratação, tem como objetivo a remoção da água dos alimentos para impedir o crescimento de micro-organismos e bactérias que possam causar doenças. A técnica é usada há milênios e, até hoje, vários ingredientes são curados, como o conhecido presunto cru espanhol, o jamón, o pastrami (carne magra curada e muito temperada) e o regionalíssimo charque. A principal diferença é o uso de sal, açúcar, nitritos e nitratos (que ajudam a matar as bactérias e realçam a cor). Além de conservar a proteína, os processos de cura e seu tempo de duração são utilizados para adicionar mais sabor aos alimentos.

IMPORTÂNCIA DA TÉCNICA

Outro critério fundamental para realizar com perfeição essas comidas sem fogo é o domínio de habilidades especiais – além da ótima qualidade dos ingredientes, já que dificilmente será “mascarada” pela cocção. “O peixe tem que ser o mais fresco possível. Outro aspecto que deve ser levado em consideração é a preferência por ingredientes orgânicos que, por serem isentos de agrotóxicos, realçam mais o paladar”, aponta Biba Fernandes. Insumos da melhor categoria a postos, o caminho para a boa

continente junho 2012 | 82

cardapio_jun.indd 82

21/05/2012 16:09:03


Corbis (RF)/ Latinstock

comida está trilhado, certo? Não somente. Para a qualidade do prato, há também a necessidade de um cozinheiro bastante habilidoso, que extraia desses produtos todos os seus sabores, o que muitas vezes se consegue apenas com uma boa faca e um corte preciso. Um exemplo disso é que, dependendo do sentido do corte, até um simples legume pode ter outro gosto. Paladares mais apurados conseguem sentir a diferença no gosto de uma cenoura cortada em cubos e em rodelas. “A

faca tem que ser das melhores e deve estar perfeitamente amolada para minimizar o atrito com a proteína. Se você erra o corte, um pedaço de filé mignon pode ficar borrachudo, em vez de se desmanchar na boca. É um constante desafio descobrir quais são os cortes ideais para cada alimento”, afirma o chef Thiago Rangel, dono de rigorosa técnica de cortes. Por isso mesmo, nem todos os alimentos combinam com esse tipo de cozinha. “Em geral, peixes e frutos do mar, que são menores e mais

delicados, vão muito bem, assim como vegetais não tão duros, como abóboras, pepinos e vagens. Certa vez, deparei-me com um ceviche de macaxeira; foi uma experiência interessante, mas não ideal”, explica Thiago. Em termos gastronômicos, a comida crua tem a vantagem de ser mais leve, fresca e rápida de fazer do que as que necessitam de cocção. “Para um tartare de filé mignon, por exemplo, basta picá-lo na ponta da faca e temperá-lo com especiarias. Tanto a textura quanto o sabor jamais irão denunciar que se trata de um prato cru”, afirma. Por outro lado, esses alimentos precisam de cuidados extras, sobretudo no que rege à questão sanitária. Afinal de contas, não contarão com a fervura para eliminar os micro3 organismos indesejáveis. É preciso lembrar que até ingredientes orgânicos podem ter doenças, já que são cultivados sem os agrotóxicos que se encarregam de matar as pragas. Exagerar nos alimentos crus, acredita a nutricionista Roberta Costi, também não é indicado. “É mais por uma questão de hábito, nós não estamos acostumados a muitas receitas cruas”, defende. Acostumados ou não, vale a pena experimentar esses alimentos, provando seus sabores e texturas em diferentes modos de preparo.

continente junho 2012 | 83

cardapio_jun.indd 83

21/05/2012 16:09:08


BRENO CESAR/DIVULGAÇÃO

INCLUSÃO O que os olhos não veem...

Primeiro espetáculo em Pernambuco a incluir audiodescrição, Leve expôs lacunas do senso comum sobre a acessibilidade TEXto Christianne Galdino

Palco Quando um espetáculo é classificado

como “livre”, imediatamente acreditamos que a obra atende todas as pessoas, sem distinção. Esse é um pensamento comum entre artistas e produtores, mas muito ingênuo em tempos de acessibilidade. Uma palavra que, apesar de ser recorrente nos discursos culturais dos últimos anos, ainda carece de estudo e aplicação abrangentes para fazer jus ao seu real significado. Isso nos leva a reflexões sobre o entendimento de outro termo muito mencionado e pouco discutido: o público.

“O espetáculo de vocês é para todos?”, perguntou a atriz Andreza Nóbrega. Prontamente, Maria Agrelli e Renata Muniz responderam que sim, pensando que Leve, obra que marca a estreia da dupla na criação coreográfica, não tem censura, e por isso é acessível a todos. Aos poucos, as artistas foram descobrindo que o significado do nome da peça vai muito além. A cada explicação de Andreza, novas possibilidades se descortinavam, outros tipos de comunicação se apresentavam.

“Nunca tínhamos pensado em acesso dessa forma. Na verdade, eu tinha até um certo receio das pessoas com deficiência, por causa da ideia estereotipada de que todos são agressivos. Agora, meu preconceito se desfez, e sei que surdos, cegos e outras pessoas com disfunção são público potencial de arte, sim. Aí me dei conta do quanto nós somos reféns da linguagem verbal ”, afirma Renata Muniz. As bailarinas contam que a relação com esses públicos alterou a

continente JUNHo 2012 | 84

Palco_JUN.indd 84

21/05/2012 16:11:57


utilizar a audiodescrição, em 2010, no Festival Palco Giratório Recife, evento do Sesc Pernambuco que, desde então, utiliza recursos que facilitam a aproximação do conhecimento. O projeto-piloto surgiu da iniciativa de Andreza Nóbrega que, naquela época, estudava a relação arte e inclusão para sua pesquisa no mestrado em Educação da UFPE, que acaba de concluir. Hoje especializada em audiodescrição, e mais experiente, ela montou a empresa Vouver Acessibilidade, com a amiga Liliana Tavares. O ditado popular diz que o que os olhos não veem, o coração não sente, porém os depoimentos dos cegos que assistiram à Leve mostram exatamente o contrário, graças ao trabalho de audiodescrição – que não se trata de uma simples relato descritivo via aparelhos de tradução simultânea. O audiodescritor, como

Os roteiros de audiodescrição são bastante objetivos, mas não deixam de acrescentar traços poéticos à obra

percepção delas, além de provocar uma sensação de integração e cidadania. “Hoje, consigo ver a dança dentro e fora, percebo o público em detalhes enquanto estou dançando. Trabalhar objetivando essas pessoas muda nossa forma de dançar. Quero sempre poder oferecer recursos de acessibilidade”, relata Maria Agrelli. Tal processo transformador ainda é novidade nos palcos de Pernambuco. Leve foi o primeiro espetáculo de dança do estado a

explica Andreza, precisa elaborar previamente um roteiro e discutilo com os artistas, para chegar aos termos mais adequados e também sistematizar um vocabulário de expressões-código para facilitar o processo, que é sempre feito em tempo real, em uma cabine próxima ao palco e com isolamento acústico. Essas palavras-chave são explicadas ao público antes de cada apresentação em um procedimento denominado notas proêmias. “Nesse momento, fazemos uma espécie de glossário com termos relativos à dança contemporânea, damos referências sobre os artistas e também sobre o teatro onde acontece a apresentação. Ainda antes do espetáculo começar, realizamos um tour tátil, para que eles toquem no cenário, figurinos, objetos cênicos e possam identificar cada intérprete”, detalha a audiodescritora de Leve, que

também foi responsável por convidar intérpretes de Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) para participar da temporada do espetáculo. Os roteiros de audiodescrição são bastante objetivos, mas não deixam de acrescentar traços poéticos à obra ou ao tema tratado. Eles nunca são gravados antecipadamente, até mesmo porque nas artes cênicas cada apresentação é única. Além de oferecer esses dois importantes recursos de acesso, o projeto das bailarinas incluiu também oficinas de “composição para o movimento”, tanto para os cegos como para os surdos “assistentes” de Leve. As aulas aconteceram na sede da Associação Pernambucana de Cegos (Apec) e no Suvag, lugar de referência no trabalho com os surdos; e a procura foi tão grande, que as bailarinas formaram até uma turma exclusivamente para as crianças da instituição. Mais uma vez, o resultado foi surpreendente e transformador, tanto para os alunos como para as duas bailarinas-professoras. “Percebi que a minha metodologia foi modificada a partir da vivência com os surdos, por exemplo, pois precisava ter os movimentos muito mais demonstrados do que quando o público é ouvinte”, conta Maria Agrelli. “Todo esse projeto e o intenso convívio com os cegos e os surdos alteraram e enriqueceram muito nossa vida, interferindo até na forma de criarmos em dança. Não consigo mais deixar esse público fora do meu processo criativo”, completa Renata Muniz. Bailarinas, audiodescritoras e intérpretes de Libras sabem que ainda falta muito para a acessibilidade ser mais que uma palavra da moda e para que o exemplo de Leve deixe de ser exceção e vire regra, porém todos concordam que essa experiência abriu horizontes e mudou definitivamente a sua relação com o público. Agora aprenderam que há muitas maneiras de se assistir a um espetáculo, e que todos os sentidos são convocados na fruição artística, basta que prestemos atenção a eles.

continente JUNHo 2012 | 85

Palco_JUN.indd 85

21/05/2012 16:11:58


Artigo

MARCELO AMORIM A PERCEPÇÃO DE UM ESPETÁCULO DE DANÇA POR UM EsPECTADOR SURDO Sou professor de Libras da Aeso

(Faculdade Barros Melo, Olinda), e convoquei os meus alunos para uma aula extraclasse, a fim de ver de perto o trabalho dos intérpretes de Libras Anderson Correia e Ernani Ribeiro, com os quais entrei em contato e solicitei uma hora para os alunos tirarem dúvidas, antes da apresentação de Leve. O motivo da escolha desse espetáculo foi justamente a garantia de acessibilidade, já que os intérpretes, citados acima, traduziriam a peça – nunca assisti a uma montagem inteira com tradução para língua de sinais. Fui artista por quatro anos em Porto Alegre, participei de algumas encenações escolares, abertas ao público, com um diretor muito bem conceituado da Rede Globo. Resumindo, entendo como funciona o teatro, cheguei a assistir a alguns espetáculos feitos por ouvintes que pensaram apenas em público de pessoas que possuem o sentido da audição, e nenhum deles me agradava, pelo mesmo motivo: falta de acessibilidade. Ou melhor, alguns até tinham tradução para Libras, mas não conseguiam se fazer entender e chegar ao seu objetivo... Quando chegamos ao Teatro Hermilo Borba Filho, meus alunos ficaram curiosos com os equipamentos de audiodescrição (utilizados para fazer a tradução intersemiótica do que está sendo visto em palavras, que descrevem objetivamente os movimentos e a interpretação das bailarinas, luz, cenário, figurinos, tudo especial e poeticamente pensado para as pessoas com deficiência visual, ao vivo e em tempo real) e aproveitaram para conhecer de perto esse trabalho. Nesse momento, o intérprete Anderson traduziu uma vinheta reproduzida em uma caixa de som, na porta do teatro, que falava do espetáculo em geral e das questões de acessibilidade, o que já

breno cesar/divulgação

achei muito bom. Ao entrar, depareime com uma cena diferente, nunca tinha participado de nada parecido, pois a plateia poderia sentar no chão, em tapetes brancos felpudos colocados na redoma em que acontece a dança, ou em duas arquibancadas laterais. Sentei-me no local adequado para as pessoas surdas, até porque o espaço estava preparado, deixando o intérprete bem visível para o público surdo. Encontrava-me bastante ansioso para ver um trabalho tão bem ensaiado. Ao começar, acendeu-se uma luz direcionada ao intérprete, Ernani, que estava posicionado à minha frente, a um metro aproximadamente, e eu nem tinha percebido antes. Adianto que, antes de entrar, não tinha a menor ideia do objetivo do espetáculo que, para mim, agora, é “transformar o negativo em positivo”. Ernani começou a traduzir as músicas, com excelentes expressões faciais e corporais e

“De repente, absorvi todos os problemas relatados pelo intérprete, com uma enorme dor no coração” acompanhei, mesmo sem entender ainda a base da ideia da peça, embora conseguisse seguir. Depois de um tempo, comecei a apreender o sentido. Em uma cena, as bailarinas saem da arena central e se aproximam dos espectadores, inclusive uma delas chegou até a deitar no meu colo, momento exato em que consegui compreender o objetivo principal do espetáculo num gesto. De repente, absorvi todos os problemas relatados pelo intérprete, com uma enorme dor no coração, sentindo o que as atrizes sentiam, e o clima de tensão. As bailarinas foram se soltando e o intérprete repassando as mensagens positivas, tais como “levando os problemas”... Comecei a me sentir outra pessoa, um alívio indescritível dentro do meu corpo. Espetacular! Com essa bela iniciativa, fica claro que a acessibilidade é para todos e não para poucas comunidades. Entre

1

ouvintes, por exemplo, no caso dos índios, existem índios brasileiros que não sabem português, mas apenas a sua língua nativa; índios que sabem português, no caso, são bilíngues; e outros sabem apenas português. Da mesma forma acontece com os surdos: existem surdos que sabem a língua de sinais e a língua portuguesa escrita e,

continente junho 2012 | 86

Artigo_Surdos_Jun.indd 86

21/05/2012 16:14:17


1 audiodEscrição Plateias de cegos contaram com o aparato, enquanto que os surdos, com a comunicação em Libras

portanto, são bilíngues; existem ainda surdos apenas sinalizantes e surdos oralizados (que se identificam com a leitura labial e com o uso do português oral). No caso desse espetáculo, faltou acessibilidade para os surdos que não usam a língua de sinais, já que a peça não contou com o recurso de legenda das músicas e outros textos.

Enfim, acessibilidade é para todos e não para grupos “limitados”, mas quero deixar claro que maximizo a iniciativa com acessibilidade e minimizo os problemas, pois creio que, com o tempo, a acessibilidade será verdadeiramente para todos. A iniciativa das bailarinas Maria Agrelli e Renata Muniz, dos tradutores

Anderson Correia e Ernani Ribeiro, das audiodescritoras Liliane Tavares e Andreza Nóbrega, do Coletivo Lugar Comum... Que vocês sejam modelos para os próximos espetáculos montados na cidade, no estado, no país... Dessa vez, ao sair do teatro, estava emocionado porque, sim, consegui entender o objetivo da peça.

continente junho 2012 | 87

Artigo_Surdos_Jun.indd 87

21/05/2012 16:14:18


Isabel Meunier

IDENTIDADE LATINO-AMERICANA: REDESENHANDO TRADIÇÕES

Isabel Meunier

é mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco beatriz meunier/divulgação

Embora seja um lugar-comum falar em identidade latinoamericana, uma primeira reflexão sobre o conceito suscita determinados questionamentos. Em uma região de vasta extensão e descontinuidades geográficas caracterizada por uma pluralidade de idiomas, de culturas e, principalmente, por acentuadas assimetrias socioeconômicas, a ideia de uma identidade transnacional ligando cidadãos de variadas nações se contrapõe à constatação de que diversas Américas Latinas coexistem, por vezes, conflituosamente. No entanto, acontecimentos históricos convergentes e uma base cultural de influência europeia, indígena e africana unem os países latino-americanos. De fato, seus habitantes vivenciaram histórias semelhantes de colonizações, dependências e esforços direcionados ao objetivo comum de autonomia. Particularmente, observase que, na América Latina, a consciência regional precedeu as próprias construções nacionais, como consequência dos movimentos de independência que, no século 19, conceberam a união das partes como amparo às suas emancipações. No contexto da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), iniciativa de integração criada em 2008 pela Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname e Guiana, percebe-se uma tendência geral nos líderes nacionais relacionados à política exterior a referiremse, em seus pronunciamentos, à identidade sul-americana e a seus símbolos históricos como meio de legitimação da organização regional. Tal identidade sul-americana vem substituindo, nesses discursos, a latino-americana, em um movimento estratégico de delimitação de novos quadros geográficos prioritários para a política externa dos países membros. Mas esses argumentos identitários corresponderiam efetivamente ao esforço de construção de um projeto político comum ou, ao contrário, tratar-se-ia apenas de uma tendência dos políticos latino-americanos ao “realismo mágico”? Os próximos anos de desenvolvimento institucional e atuação da Unasul fornecerão uma resposta. De antemão, observa-se que os argumentos identitários ecoam apenas na parcela das populações sul-americanas com acesso à educação, à informação e à cultura – minoritária nesses países. Se a consolidação de uma identidade regional sul-americana é, realmente, um projeto político de seus líderes nacionais, sua efetivação deve passar necessariamente pela concepção de políticas públicas culturais que levem em conta as desigualdades da região.

con ti nen te

continente JUNHo 2012 | 88

Saída JUN.indd 88

Saída 21/05/2012 16:16:42


CAPA 138.indd 2

28/05/2012 16:07:16


www.revistacontinente.com.br

# 138

#138 ano XII • jun/12 • R$ 11,00

100 ANOS CONTINENTE

LUIZ GONZAGA

O HOMEM QUE MOSTROU O NORDESTE PROFUNDO AO BRASIL

DOENÇA MÉDICO GANHA PRÊMIO POR “BIOGRAFIA” DO CÂNCER

JUN 12

CAPA 138.indd 1

E MAIS DANTE REVISITADO | BIOGRAFIAS | ON THE ROAD | FESTA DO SOL 28/05/2012 16:07:13


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.