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#139 ano XII • jul/12 • R$ 11,00
CONTINENTE
REDES ÓTIMAS PARA DEITAR E DAR COR À CASA
NERDS DE BORRALHEIROS DA ESCOLA A PRÍNCIPES DO MERCADO
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E MAIS MÚSICA NAS ESCOLAS | BANQUETES E PODER | GUSTAV KLIMT | CLOWNS 28/06/2012 09:09:35
IV FESTIVAL
MINISTÉRIO DA CULTURA E PREFEITURA DE GRAVATÁ apresentam
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DE JULHO DE 2012
VIRTUOSI
IGREJA MATRIZ DE SANT’ANA
DE GRAVATÁ Rafael Garcia Diretor artístico
Homenagem ao centenário de
Luiz Gonzaga
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19h MOZART PARA SEMPRE
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11h HOMENAGEM A DEBUSSY I
sex
sab
150 anos do nascimento RECITAL VICTOR ASUNCION, piano
19h HOMENAGEM A DEBUSSY II
150 anos do nascimento DUO KASPARAS UINSKAS, piano NIKITA BORISOGLEBSKY, violino
11h
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RAFAEL ALTINO, viola VICTOR ASUNCION, piano
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19h HOMENAGEM A DEBUSSY III
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19h ORQUESTRA DO FESTIVAL
18 qua
19h HOMENAGEM A DEBUSSY IV
seg
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APOIO
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19h GILLES APAP & TRANSYLVANIAN MOUNTAIN BOYS
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11h
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sab
ALESSANDRO BORGOMANERO, violin RAFAEL ALTINO, viola LEONARDO ALTINO, cello KATARINA BUNDGAARD, cello RINAT IBRAGIMOV, baixo TIAN LU, piano
CAROLINE CHÉHADÉ, violino TIAN LU, piano
19h MEMORIAL MUSICAL DE LUIZ GONZAGA
RAFAEL ALTINO, viola LUCYANE ALVES, acordeon CORO SONANTIS LEONARDO ALTINO, cello ORQUESTRA DO FESTIVAL RAFAEL GARCIA, regente
150 anos do nascimento KASPARAS UINSKAS, piano
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JOÃO CARLOS MARTINS, regente
11h HOMENAGEM A DEBUSSY V 150 anos do nascimento LEONARDO ALTINO, cello ANA LUCIA ALTINO, piano
Informações: 3363 0138
150 anos do nascimento TIAN LU, piano
PATROCÍNIO
19h RECITAL DE MÚSICA DE CÂMARA
qui
ORQUESTRA DO FESTIVAL Rafael Garcia, regente CAROLINE CHÉHADÉ, violino RAFAEL ALTINO, viola VICTOR ASUNCION, piano
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ENTRADA FRANCA REALIZAÇÃO
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REPRODUÇÃO
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aos leitores Em meados dos anos 1970, o jovem Steve Wozniak trabalhava num modelo avançado de computador pessoal, que idealizava junto a Steve Jobs. Mas o rapaz tinha um contrato de prestação de serviço com a HP, que estabelecia sua obrigação em apresentar à empresa qualquer projeto que estivesse desenvolvendo. Quando soube disso, Jobs ficou transtornado, porque viu ali o fim de seu sonho: colocar um aparelho desse tipo nas casas de cidadãos comuns, assim como ocorrera com a TV e o rádio. Acontece que, ao voltar da reunião, Wozniak lhe disse que os executivos não se interessaram pelo empreendimento e ainda ironizaram: “Para que as pessoas vão querer um computador em casa?”. Em 1977, os dois jovens lançaram o primeiro microcomputador como conhecemos hoje, o Apple II, e o mundo nunca mais seria o mesmo. No tempo transcorrido entre o computador deixar de ser apenas um objeto instalado em poucas grandes empresas e tornar-se item indispensável para milhões de pessoas no mundo, muitas inovações aconteceram. Para que isso ocorresse, foi necessária a existência de um tipo de gente com comportamentos e interesses específicos, ao qual chamamos “carinhosamente” de nerd. Antes alvo de
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chacotas nos colégios e nos bairros, por se dedicar obsessivamente a alguma área de conhecimento, geralmente voltada à tecnologia, esse personagem passou de borralheiro a príncipe, a partir da ascensão de jovens empreendedores como Bill Gates – fundador da Microsoft, arquirrival de Jobs e homem mais rico do mundo. Hoje, “ser nerd” é cool e prenúncio de sucesso profissional e financeiro. Para poder lucrar com esse perfil ascendente de consumidor, o mercado vem lançando produtos que lhe são atrativos, como iPhone, iPad, séries de TV, brinquedos, roupas, músicas, jogos, filmes e até eventos, como a Campus Party. Criada na Espanha, em 1997, a “festa”, que, neste mês, terá sua primeira versão no Recife, conta com palestras e negócios voltados para a tecnologia digital. De acordo com a organização, são mais de 189 mil campuseiros (nome dado aos participantes) de todo mundo, sendo 62 mil brasileiros. Para tratar desse tema, a Continente publica uma matéria especial que remonta aos primórdios do termo nerd, os maiores acontecimentos na área; ambienta a importância dessa figura para o avanço da ciência e da tecnologia, e discute o preconceito e os clichês em torno desse personagem.
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sumário Especial Nerds 06
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
Rafael Cardoso Professor lança livro em que discute vários campos de reflexão sobre o design
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Conexão
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Portfólio
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Leitura
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Matéria corrida
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Sonoras
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Artigo
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Saída
Tatuagem Tumblr reúne imagens e textos sobre desenhos na pele
Raul Luna Música independente e minimalismo inspiram designer recifense
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Balaio
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Peleja
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Educação
Jane Fonda Atriz norte-americana volta às telas e à malhação
Acervo Obras raras de autores pernambucanos voltam às prateleiras
Comunidade de aficcionados por tecnologia movimenta importante nicho da indústria de entretenimento e deixa de ser pária, usufruindo de prestígio
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José Cláudio Dom Diego
Beach Boys Banda comemora 50 anos com o primeiro álbum de inéditas lançado em duas décadas Jorge Antunes O ativismo político na música erudita
Séphora Silva O protagonismo da direção de arte
Villa-Lobos Os arranjos de obras de Villa-Lobos devem ser autorizados em qualquer circunstância?
Música no currículo Escolas públicas e particulares adaptamse de diferentes formas à lei federal
Visuais
Gustav Klimt Aos 150 anos nascimento do pintor austríaco, autor de O beijo, mostras em sua homenagem são agendadas em seu país de origem e nos Estados Unidos
66 CAPA ILUSTRAÇÃO Flávio Pessoa
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Têxtil
Cardápio
Artefato herdado dos índios dinamiza a economia de estados do Nordeste, abrangendo variedade de técnicas de confecção e acabamento
Desde a Idade Média, encontros sociais à mesa transcenderam os meros propósitos comensais e passaram a definir rumos da política, tanto pública quanto privada
Claquete
Palco
Diretores questionam os padrões homossexuais vigentes no cinema nacional e denunciam a rejeição a roteiros que evidenciam a causa gay
Cursos de formação de palhaços no Brasil recebem cada vez mais mulheres e redefinem o estereótipo do personagem mais famoso dos picadeiros
Redes
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Contra o preconceito
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O poder dos banquetes
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Jul’ 12
Clowns femininos
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cartas
Tradução Li uma matéria na última Continente que me deixou curioso. Trata-se de “A Divina comédia, segundo Romero”, escrita por Paulo Carvalho. O jornalista informa que Romero de Andrade Lima – que, além de ilustrar, está fazendo uma nova tradução de A Divina Comédia – acha as traduções que temos, em português, insatisfatórias. Esperei, então, que ele apresentasse uma perspectiva interessante sobre o velho tema do fundo e da forma nas traduções poéticas. Andrade Lima argumenta, segundo a matéria, no sentido de que, para Dante “cada palavra é escolhida com esmero e tem, muitas vezes, um significado
metafísico. Suas palavras, não raro, não pedem outra, senão a tradução literal”. Tal afirmação por si só já é bastante problemática, levando em conta o preciosismo técnico e formal de A Divina Comédia e da própria impossibilidade de uma ruptura absoluta entre forma e conteúdo na obra de um poeta como Dante. O novo tradutor parece radical em suas criticas a traduções que tentam preservar aspectos formais: “Se você tenta ler essas traduções sem um original por perto e sem explicações menos rocambolescas, você desiste, tal o esforço que eles fazem para manter a métrica e a rima. Obviamente, a métrica e a rima, apesar de muito belas (sic), são menos necessárias que o sentido exato (sic!)”. O que ele entende por “sentido exato”? Se considera que esses elementos não têm mesmo importância, por que não escreve uma tradução em prosa? Aliás, seria o caso de tentar uma comunicação psicográfica e perguntar a Dante porque ele mesmo não escreveu em prosa
(teria perdido menos tempo com esses pormenores de rima e métrica...). Vindas de um pintor, essas opiniões me parecem ainda mais inconsequentes, já que, para um poeta, a escolha de um determinado ritmo ou o uso de uma aliteração, por exemplo, pode ser tão importante no sentido geral do seu poema quanto, para um pintor, seria a utilização de uma determinada combinação de cores ou um peculiar movimento de pincel. EDUARDO CESAR MAIA
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).
RECIFE – PE
Bechara Evanildo Bechara foi meu professor quando eu era ainda adolescente num colégio de freiras na Tijuca. Seu texto lúcido e atual sobre dicionários só fez aumentar a admiração por ele. Parabéns à revista Continente por ter tão ilustre colaborador e é pena que as autoridades não a leiam. Espero que haja outros textos do autor que me tragam reflexão. MARIA DE LOURDES SOBRAL RIO DE JANEIRO – RJ
As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
Baptistão
Bruno Albertim
Carol Almeida
Jorge Antunes
É caricaturista de O Estado de S. Paulo, com vários prêmios nacionais e internacionais
Jornalista e crítico gastronômico, atua no Jornal do Commercio
É jornalista, mestre em Comunicação e repórter da Editora Globo
Compositor, regente, pesquisador da UnB e membro da Academia Brasileira de Música
E MAIS Flávio Pessoa, designer e ilustrador. Guilherme Bauer, compositor, membro da Academia Brasileira de Música e professor da Escola de Música VillaLobos, no Rio de Janeiro. Marcelo Abreu, jornalista e professor da Unicap. Olívia Mindêlo, jornalista e curadora de arte. Ricardo Moura, fotógrafo. Ricardo Tacuchian, compositor, ex-presidente da Academia Brasileira de Música e professor da Unirio. Roberta Guimarães, fotógrafa. Séphora Silva, arquiteta, urbanista, cenógrafa e diretora de arte. Yellow, designer gráfico, trabalha com sistemas interativos, músico e mestrando em Ciências da Linguagem.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
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RAFAEL CARDOSO
“As coisas existem em processo e fluxo” Com o livro Design para um mundo complexo, o historiador da arte, professor e escritor amplia a discussão sobre essa área de criação sob uma perspectiva histórica, sociológica e tecnológica TEXTO Duda Gueiros
CON TI NEN TE
Entrevista
Em 1971, o educador Victor Papanek
lançava sua obra-prima Design for the real world. Através da premissa “Design é o esforço consciente para impor uma ordem significativa”, pela primeira vez, discutia-se a atividade em termos de sustentabilidade, filosofia aplicada e outras questões igualmente pertinentes e inéditas. Este ano, o historiador da arte, professor e também escritor Rafael Cardoso, lança, pela Cosac Naify, Design para um mundo complexo. De certa forma, o livro assume o papel que a publicação de Papanek teve àquela época. Idealizado para decodificar complexidades envolvidas nas variadas instâncias do design, e utilizando uma estratégia narrativa de leve conversa com o leitor, Cardoso esmiúça questões importantes e inusitadas nesse campo. Os assuntos lugares-comuns como sustentabilidade, influência dos meios digitais, relação forma e conteúdo são abordados em contraste com os menos discutidos comumente – a exemplo de logística reversa, lógica de consumo e reaproveitamento. E ganha um fecho reflexivo no que diz respeito aos
modelos de educação nas escolas de Design que, para ele, tendem a remar contra uma coerência de aprendizado. Rafael Cardoso passou pelo Recife para o debate A incrível forma do passado e recebeu a Continente para falar de sua recente publicação. CONTINENTE De que se trata esse “mundo complexo”? RAFAEL CARDOSO O mundo complexo é a contraposição à ideia que se tem de mundo real. O que a complexidade exige, principalmente, do designer, é a presença em mais de um lugar ao mesmo tempo – espaço da vivência, do virtual e da informação. Essa pressão da telepresença, telecomunicação, trocas de informações, que são feitas de forma virtual, exigem um pensamento mais complexo que anteriormente, quando as pessoas estavam mais focadas num ponto específico no tempo e no espaço.
relações de continuidade ou de antagonismo? RAFAEL CARDOSO O livro de Papanek marcou fundamentalmente os anos 1970 e até os 1980. Hoje, as pessoas tendem a menosprezar a obra, achando que já é ultrapassada; mas ela ainda tem muito a contribuir. De fato, o mundo mudou consideravelmente nos últimos 40 anos, principalmente com o nascimento da internet. O que tentei fazer no meu livro foi repensar as ideias expostas no livro de Papanek. É uma tentativa de pegar as inquietações que moveram o escritor e atualizar o seu pensamento. A preocupação central dele era que o design deveria servir para a sociedade, solucionar problemas que existem no mundo – uma questão mais válida do que nunca. Com certeza, ainda nos dias atuais, o design enfrenta esse desafio. O livro é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma revisão crítica.
CONTINENTE O Design para um mundo complexo é uma espécie de homenagem ou resgate do livro Design for the real world, de Vitor Papanek. Quais pontos do livro podem ser destacados como
CONTINENTE Na publicação, você fala dos funcionalistas com um certo ranço, porém muitas vezes se apoia em suas teorias. Qual a sua opinião sobre o Funcionalismo? RAFAEL CARDOSO O Funcionalismo
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PEDRO MAIA
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foi um movimento historicamente importante. Teve uma atuação nos anos 1920 e 1930 que fazia sentido, mas hoje em dia está completamente ultrapassado. Nunca teve base conceitual ou filosófica. Era mais uma manifestação ideológica. Agora, que os conflitos ideológicos dos anos 1930 estão muito longe, o que o Funcionalismo tinha a oferecer em termos de discussão está esgotado.
todo à discussão desse problema. Quais os aspectos que poderiam mudar? RAFAEL CARDOSO É preciso mais liberdade para o aluno. Atualmente, impõe-se regras e soluções ao alunado. O aprendizado deve ser, na verdade, ao contrário: tentar criar um espaço livre e fértil de discussão, para que os estudantes possam encontrar por si mesmos as respostas. Educar é puxar de dentro para fora, revelar o conhecimento que as pessoas já têm, mas que não trouxeram à propria compreensão. A função da
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CONTINENTE Você fala sempre de concepções voltadas para um universo
das artes é como achar a expressão material de um conceito. No caso do design, o livro parece ser uma constante tentativa de explicação dessa premissa. Como você sintetizaria sua opinião sobre essa questão? RAFAEL CARDOSO Acho que, durante muito tempo na história, as pessoas tinham uma posição em relação a isso. Na época modernista, por exemplo, os artistas pensavam que certas formas iam representar determinadas ideias e que esse processo ajudaria a emplacar uma mudança da sociedade em vários âmbitos da política, economia
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Entrevista tecnológico, virtual, quase futurista, mas, ao mesmo tempo, comenta o retrô, na realidade atual, como um elemento estético essencial em alguns processos de significação. RAFAEL CARDOSO No meio virtual em que vivemos, de variedade e excesso de informações, as pessoas não sabem escolher entre as fontes de informação disponíveis e, muito menos, as informações que são oferecidas. Então, buscam modos de se posicionar dentro do universo da informação. O retrô e o passado são uma chave para os indivíduos se situarem. Como o presente é sempre disperso e fragmentado e o futuro, por definição, não existe, as pessoas vão buscar no passado pontos de apoio. É como uma tábua de salvação no meio de uma enchente. O retrô não é um movimento contrário ao presente, é uma forma que a sociedade encontrou de se situar no presente. CONTINENTE Uma questão secular no campo
e ideologia. Isso não aconteceu. Partes do Modernismo acabaram virando receitas de bolo vazias ou fórmulas prontas. Vários preceitos da arte, até mesmo da arquitetura, se traduziam em cacoetes formais que, na verdade, não passavam as ideias que estavam em sua origem. Ou seja, a forma ficou divorciada da concepção. A criação de vínculos entre conceitos e formas é uma questão perene da arte. Como historiador da arte, é algo obsessivo para mim, é quase o Santo Graal da História da Arte. A gente sabe que é impossível obter essa resposta, mas não se pode parar de tentar. Tem uma linhagem de pensadores que estudou esse problema de modo averiguável, o que é superinstigante, mas não obteve respostas. CONTINENTE Você discorda abertamente do modelo de ensino das escolas de Design no Brasil e no mundo e dedica um capítulo praticamente
escola, ao meu ver, seria de ensinar a descobrir dentro das experiências dos alunos aquilo de que precisam para resolver problemas. Tenho a impressão de que o ensino desse campo tende a agir de modo contrário. Quer moldar e preencher o aluno com uma visão de mundo, informação, no lugar de estimulá-lo com uma reflexão. A meta ideal das universidades de Design deveria ser gerar designers que pensem por si mesmos. Dar liberdade para as pessoas pensarem só pode dar certo. CONTINENTE Qual a sua opinião sobre padronização e customização de produtos no mundo atual? RAFAEL CARDOSO Cada vez menos existe a padronização. Essa é uma das grandes questões de mudança no design de 40 ou 50 anos para hoje. O que ocorre é que decresce a possibilidade de impor uma solução para todos. O desafio é pensar em soluções que se abrem com
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a multiplicidade de usos. O usuário sempre tem a possibilidade de subverter ou distorcer o projeto. Um exemplo: pode-se pegar uma garrafa que foi feita para conter água e colocar uma flor dentro. A garrafa está sendo usada como vaso, o que não quer dizer que ela foi projetada para ser um. Do ponto de vista de quem projetou esse utensílio, é um uso errado do objeto. Acho que esse pensamento tende a mudar. A pessoa que projeta deve pensar: agora é uma garrafa, mas o que ela vai ser depois? Em suma, durante um tempo,
de informação. Essa, talvez, seja a grande questão do mundo complexo em relação ao velho mundo real. Hoje, mais do que nunca, o material e o imaterial se completam, um vira o outro e vice-versa. O que a gente está vendo agora é um começo de uma nova compreensão dessas relações. As coisas não existem em si, elas existem em processo e fluxo. CONTINENTE No “mundo complexo”, a internet é um elemento que encabeça mudanças. Qual a relação histórica e social
“O mundo mudou nos últimos 40 anos, principalmente com o nascimento da internet. O que tentei fazer no meu livro foi repensar as ideias expostas no de Papanek. É uma tentativa de atualizar o seu pensamento” a garrafa tem uma função e sentido e, depois, perde. É preciso criar uma lógica projetual que abra possibilidades para que o usuário também participe do processo de produzir sentido. CONTINENTE Outra questão que parece ser uma constante busca de explicações no livro é o trinômio forma, conteúdo e significado. Qual é a problematização gerada em torno disso? RAFAEL CARDOSO De forma sucinta, os três são a mesma coisa. Tento falar sobre essa tradicional problemática entre esses três elementos, do ponto de vista da Filosofia da Arte. O importante é que forma e conteúdo não são uma oposição, são aspectos e desdobramentos da significação. Uma parte razoavelmente grande do livro discute a significação como um processo e não como uma coisa isolada. É preciso parar de coisificar forma, conteúdo e significado, e pensar em como isso ocorre dentro de um sistema de fluxo
entre o design e a web, e como se converteram em fenômeno sociológico? RAFAEL CARDOSO As pessoas têm a tendência de contar a história de que a internet surgiu a partir de preceitos da informática. Não sou autoridade em tecnologia, mas não se pode dizer que a internet surgiu nos anos 1940, 1950, como dizem os tecnólogos. Para as pessoas, na verdade, a internet foi um fenômeno da década de 1990. A WWW foi inaugurada em 1989, sendo a internet com interface gráfica que deu à sociedade possibilidade de navegação. Antes disso, ninguém que não fosse da área de informática conseguiria ter acesso àquilo. Para mim, isso é um marco significativo. A tecnologia que fundamenta a internet pode ter surgido na década de 1940, mas a web como fenômeno social só foi possível com a inserção de uma camada gráfica, do design, nos anos 1990. Partindo disso, é preciso
atribuir uma importância grande a essa questão visual. Ela é, pelo menos, tão importante quanto a tecnologia da informação que está por trás dela. Ou seja, a linguagem de programação sustenta a internet, mas o que torna possível que a usemos é o design. Isso tudo foi um preâmbulo para chegar à questão da arquitetura da informação, ou seja, da tecnologia a serviço das interfaces. A informação no espaço é o espaço na informação, essa transposição significa que, para você se movimentar em um espaço, é preciso de sinalização ao redor. Ao mesmo tempo, para se mover ao redor dessa informação, depende-se da construção espacial. Isso envolve tipografia, escolha de imagens, perspectivas, planos, todas as questões importantes para designers, artistas e produtores de imagens. Cria-se um mundo que é absolutamente novo, no qual a informação é arquitetada e estruturada. Isso é tão revolucionário quanto o cinema foi em sua época. CONTINENTE Você não é designer. Como surgiu a ideia de fazer um livro nesse segmento e voltado para um leitor, por vezes, inquieto? RAFAEL CARDOSO Eu sempre fui envolvido nos processos de imagem. Muitos anos atrás, quando fazia mestrado, resolvi estudar e pesquisar design. Na época, nem sabia formular perguntas. O livro surgiu a partir do olhar sobre a sociedade em que vivemos, que produz uma quantidade imensa de bens materiais. E, no entanto, quase não temos instrumentos reflexivos ou filosóficos para falar sobre a materialidade. Quase toda filosofia é baseada em textos, palavras; poucas pessoas conseguem problematizar as coisas. Isso me despertou interesse. Como historiador da arte, migrei para a História do Design. Nos últimos 16 anos, comecei a pesquisar, fiz alguns livros sobre esse tema e acabei lecionando em escolas de Design. Estou fechando esse ciclo com o livro. Design para um mundo complexo é tudo que um leigo pode aprender com um profissional e pesquisador do campo. O design mudou meu pensamento como historiador e escritor. Quero devolver para ele o que ele me deu.
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O melhor deste mês no ambiente virtual da revista Continente
CON TI NEN TE
A VEZ DOS NERDS
REDE DE DORMIR
Neste mês, a revista traz como destaque a redenção dos nerds, grupo que nos últimos anos conquistou status positivo, e que povoa a Campus Party, evento que chega pela primeira vez ao Recife. Sobre esse assunto da matéria especial, o site da Continente disponibiliza vídeos dos debates, palestras, competições e situações inusitadas que aconteceram nas últimas edições da Campus Party, em São Paulo. Também traz uma cronologia de imagens dos games mais famosos e lembrados na história, desde a criação dessa tecnologia pró-entretenimento.
Confira vídeos que registram etapas da produção manual de redes em Pernambuco e no Ceará, estados que, junto com a Paraíba, concentram artesãos do setor.
Conexão
OBRAS RARAS Leia trechos de alguns dos 10 títulos lançados pela Cepe no selo Acervo Pernambucano, todos, há tempos, fora de catálogo, como A personagem dramática, de Rubem Rocha.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
BODY ART
MÚSICA
LITERATURA
CAMPUS PARTY
Os tatuados, a marca na pele e suas histórias, em texto e ilustração
Jornalista resenha o cenário nacional e internacional
Um acervo digital em nome da memória literária
Site traz programação detalhada e novidades sobre tecnologia
penandink.tumblr.com
popload.blogosfera.uol.com.br
campuspartyrecife.com.br
Quanto de história existe por trás de uma tatuagem? Na maioria das vezes, para uma gravura virar marca na pele, ela contém um significado valioso. A proposta do Pen and Ink é reunir esses relatos através de textos das pessoas que possuem tatuagens, acompanhados de uma bela ilustração, daí, a alcunha “caneta e tinta”. Quem organiza o site são dois tatuados com histórias interessantes sobre as próprias tatuagens e os desenhos que as originaram. Um deles, Isaac Fitzgerald, teve a primeira delas feita por uma máquina caseira e queimaduras de cigarro.
Aninhado na cena musical alternativa do Brasil e curador do festival Popload Gig, o jornalista Lúcio Ribeiro escreve sobre as novidades e peculiaridades da música atual. O Popload traz coberturas de vários eventos ligados à música, como o SXSW, além de grandes, médios e pequenos shows do circuito mundial, a exemplo recente do Sónar Barcelona. A página apresenta resenhas sobre lançamentos e indicações de artistas recém-descobertos. E também é famosa por fazer especulações — depois confirmadas — de shows internacionais que supostamente virão ao Brasil, mas que ainda não foram divulgados.
casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/ literatura/Site_literario_FCRB.html
No site da Fundação Casa de Rui Barbosa, uma das páginas internas é dedicada ao Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), que tem como objetivo preservar a memória literária do país. Seu acervo reúne 126 arquivos privados de escritores brasileiros e uma coleção de documentos avulsos abertos ao público. Para facilitar o acesso a esse material, ele está sendo paulatinamente organizado no site, que detalha seu conteúdo e apresenta informações biográficas e bibliográficas sobre vários autores.
O maior evento nerd do mundo chega ao Recife, neste mês de julho, como tratamos nesta edição da Continente. Com o slogan “Unimos talento, criamos futuro”, a Campus Party criou um site especial para a versão recifense. O espaço virtual funciona como um guia para quem já decidiu comparecer ao evento, e organizar ou informar aqueles que ainda não estão por dentro do acontecimento. Junto a isso, informações sobre palestras, mesas, debates, competições e os serviços oferecidos estão lá detalhados.
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blogs HUMOR comoeumesintoquando.tumblr.com
O mais compartilhado tumblr “dos últimos tempos da última semana” é Como eu me sinto quando. São gifs bem-humorados que retratam reações às situações do dia a dia precedidos pelo bordão que lhe dá título.
JORNALISTAS jornalices.tumblr.com
DISCUTINDO A MÚSICA NA ESCOLA Coletânea destinada a educadores e músicos reúne artigos, entrevistas e propostas de atividades pedagógicas em torno da disciplina www.amusicanaescola.com.br
A incorporação da educação musical ao sistema de ensino brasileiro, um
dos temas desta edição da Continente, vem acontecendo de forma bastante desigual no país, em meio a dúvidas, falta de abordagens específicas e limitações materiais e humanas, em se tratando dos estados retardatários no assunto. No intuito de dirimir dúvidas e auxiliar os educadores, o projeto A música na escola empreendeu o mais atualizado dossiê sobre o assunto, disponibilizando a coletânea resultante para download — e para envio pelos correios às escolas e instituições públicas interessadas. Dentre os diversos tópicos do livro, estão um painel histórico da educação musical lato sensu no Brasil, e da situação das Unidades da Federação quanto à adaptação à Lei 11.769/08; as relações entre música e neurociência; os métodos tradicionais de ensino musical; a presença da música folclórica rural e popular urbana nos programas didáticos, e o diálogo da música com outras disciplinas. Na parte final, são oferecidas diversas sugestões de práticas pedagógicas para o ensino infantil, fundamental e médio, que atendem ao currículo geral adotado em boa parte dos estados. CARLOS EDUARDO AMARAL
Os jornalistas também ganharam sua versão do Como eu me sinto quando, o Jornalices. Nesse tumblr, as peripécias da vida na redação e dos jornalistas também são contadas em gifs.
AUTOAJUDA icanread.tumblr.com
Já esse tumblr é uma espécie de biscoitinho da sorte — com mensagenssurpresa que quase sempre serão levadas em conta —, só que calcadas em imagens. Todos os dias, são postadas animações com frases motivadoras.
HQS xkcd.com
O blog reúne tirinhas digitais do estadunidense Randall Munroe e se autodenomina “um webcomic de romance, sarcasmo, matemática e linguagem”. Religiosamente, às segundas, quartas e sextas são publicadas novas tiras.
sites sobre
Artes e ofícios NEGÓCIO
TUTORIAL
REVISTA
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www.comofaz.net
craftzine.com
O Etsy é um grande mercado virtual de art & craft. Qualquer um que produza objetos manufaturados criativos pode colocá-los à venda para o mundo todo.
O site é voltado para quem quer aprender a fazer utensílios criativos. Oferece tutoriais de vários tipos de art & craft, além de receitas e outras dicas.
O CraftZine é uma revista digital completa que reúne desde tutoriais até dicas de sites, ferramentas de trabalho e concursos na área do artesanato.
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CON TI NEN TE
Portfólio
Raul Luna
MOVIMENTO EM PRETO E BRANCO TEXTO Duda Gueiros
O que esperar de um designer autodidata, formado em Arquitetura, que já foi DJ e cultiva o trabalho em cinema e vídeo como primeira fonte de inspiração gráfica? E acredita que trabalhar sozinho, isolado e imerso é a chave para um bom resultado? Experimentação e quebra da formalidade são palavras essenciais para Raul Luna. Quando ingressou na universidade, ele já tinha um pé (e o coração) no design, por isso tratou de canalizar os aprendizados arquitetônicos para o desenho experimental. Custou para se formar, já que muito do curso estava em total desacordo com suas expectativas, como hoje ele afirma estar do seu trabalho. Na agitação da vida universitária e numa tentativa de fuga dos formalismos acadêmicos, montou com amigos um coletivo de vídeo chamado TV Primavera, que explorava as possibilidades visuais das artes plásticas em movimento. “Aquilo foi a sementinha de tudo o que eu colho hoje. Devo bastante a esse período bastante criativo e fértil”, comenta. O coletivo acabou, mas a dinâmica de estar sempre envolvido com outro tipo de expressão artística permaneceu. Raul começou com aquela iniciativa um ciclo de trabalho que dura até hoje – a produção gráfica para músicos. Aninhou-se na cena indie da música pernambucana e daí surgiram parcerias com China, Tibério Azul, os integrantes d’A Banda de Joseph Tourton e da Bande Dessinée. “O trabalho gráfico com os músicos é especial porque, quando surge essa demanda, já existe certa sinergia com o artista e, depois, ela só aumenta. São muitas conversas e estudos daquele som, para que o resultado seja uma identidade visual, sem nenhum tipo de dissociação conceitual da música”, diz.
1-2 CARTAZES Colagens e referências históricas à aviação integram o trabalho para a Banda Joseph Tourton 3 a 8 MÚSICA Projetos para músicos é o enfoque do trabalho de Luna. A exemplo destes, para Niedermeier & Whitehead, M. Takara, China, Thavius Beck e The Wink's
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Portfólio O universo artístico de Raul é em preto e branco. Apenas uma parcela pequena de suas obras ganha cor e, quando isso acontece, é de forma monocromática e minimalista. Ele vê o mundo em extremos: linhas vertiginosamente sinuosas
ou extremamente retas, escatologia ou sobriedade, elementos dissonantes ou simétricos, quietude ou inquietação. “Todo o sentimento envolvido no meu trabalho está refletido na minha primeira exposição, a Lava”, explica Raul, que já mostrou esse conjunto de desenhos no Recife e o levou a São Paulo e
Rio de Janeiro, e que, agora, deve alçar voos mais longos, com exibição em Tóquio. A exposição traz o conceito de fluxo, a partir de elementos orgânicos e das ciências exatas. É um remix de criações de formatos diferentes entre si, mas iguais no conceito, que exploram a biogênese e geram um discurso marcado pela ideia de que tudo está em movimento e que a significação é
um processo lento. Para ele, atuar como designer que atende ao mercado permite o desenvolvimento da expressão artística. Raul, que já desenhou sites, fez encartes de CDs, cartazes e variados tipos de material gráfico, impõe uma condição a ele mesmo: que todo o seu trabalho – dos autorais aos comerciais – mostre artisticamente a sua visão de mundo.
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9 AUTORAL Lava, primeira exposição solo de Raul, reúne gravuras que remetem à biogênese 10 MI INDEPENDENTE Luna está entre os idealizadores da revista bimestral sobre música, que não tem projeto gráfico fixo
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BEE GEES NO CORAÇÃO Em 20 de maio, faleceu, aos 62 anos, o cantor e compositor Robin Gibb, vítima de câncer. Em 2003, Maurice, seu gêmeo, se foi aos 53 anos. Agora, o único dos Bee Gees vivo é Barry Gibb. O trio australiano despontou em 1977, com a trilha sonora do filme Embalos de sábado à noite. Um dos hits do álbum era Staying alive, música que, em 2008, voltou à mídia após a descoberta de que seu ritmo é adequado para orientar mentalmente quem está realizando massagem cardíaca em vítima de parada respiratória. Em janeiro, a British Heart Foundation utilizou a informação para promover uma campanha com o intuito de dirimir o medo da população com relação ao procedimento. Atualmente, os estudantes de Medicina em vários países, inclusive no Brasil, recebem essa orientação. Ficamos devendo essa a Maurice, Barry e Robin. (DN)
De volta às telas e à academia Uma das maiores atrizes e musas de Hollywood está de volta. Depois de 15 anos longe das telas e de uma malfadada aparição, em 2005, com a pífia comédia A sogra, Jane Fonda terá o ano de 2012 marcado como o ano de seu regresso ao cinema. Ganhadora de dois Oscar de Melhor Atriz, Jane era uma das mais elogiadas estrelas norte-americanas, mas decidiu largar a atuação, em 1990. Passou, então, a ser mais conhecida pelos vídeos de ginástica aeróbica, da qual foi uma das precursoras. Agora, em 2012, a atriz aparece na série The newsroom (HBO), em dois filmes (E se vivêssemos todos juntos? e Paz, amor e muito mais) e prepara-se para mais dois títulos – em um deles, The butler (2013), interpretará a ex-primeira dama americana Nancy Reagan. Além disso, volta também a lançar um projeto audiovisual com aulas de malhação, no qual exibe um corpo invejável, aos 74 anos. Vaidosa, Jane cuida de si com uma dedicação espartana, chegando a desembolsar 55 mil dólares em um tratamento dentário. Mas, ao contrário do que se pode supor, a eterna Barbarella, que já foi modelo, não gosta de se ver em revistas de celebridades. Há dois anos, em entrevista a David Letterman, revelou que costuma repetir roupas em público, só para poder estragar o trabalho dos paparazzi. Detalhe: era a segunda vez que ela ia ao Late show com a mesma vestimenta. E o apresentador fez essa observação. DÉBORA NASCIMENTO
CON TI NEN TE
A FRASE
“Prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem.”
Balaio SERÁ QUE MOON TOPA?
Keith Moon, baterista do conjunto inglês The Who (ainda na ativa), músico alucinado e um dos maiores gênios do instrumento, morreu há 34 anos. Isso não impediu os organizadores da cerimônia das Olimpíadas de 2012, em Londres, de perguntarem ao empresário da banda, Bill Curbishley, se Moon estaria apto a participar de um show de fechamento do evento. “Eu retornei o e-mail dizendo que Keith agora reside no crematório de Golders Green, tendo seguido à risca o verso do The Who ‘I hope I die before I get old’ (Espero morrer antes de ficar velho). Se eles tiverem uma mesa redonda, alguns copos e velas, pode ser que a gente entre em contato com ele”, declarou ironicamente Curbishley ao jornal inglês The Times. Bem feito para quem perguntou. (André Valença)
Santo Agostinho
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GOD SAVE THE MOZ Enquanto o Reino Unido estava mobilizado pelo aniversário dos 60 anos de reinado de Elizabeth II, e artistas como Paul McCartney, Elton John e Stevie Wonder reverenciavam a soberana, numa festa suntuosa no Palácio de Buckingham, uma voz dissonante ressurgiu: Morrissey. Além de ausentar-se do evento, o cantor e compositor inglês lançou-lhe críticas, no seu site: “O Jubileu de Diamante da Rainha nos dá uma nova lição da força da tirania, e uma expressão de ódio e repulsa aos pobres ingleses – e tudo feito, naturalmente, com dinheiro público. Enquanto ditaduras no Oriente Médio são condenadas pelo governo inglês, ninguém fala nada sobre o extremismo usado pela ‘realeza’ britânica, que continuam sendo as pessoas mais bem pagas e mais inúteis do planeta”. Nada mau para quem, entre os discos de sua ex-banda, The Smiths, lançou um dos clássicos dos anos 1980: The queen is dead. Elizabeth II é a segunda monarca britânica a chegar aos 60 anos de reinado, sendo superada apenas por sua tataravó, Vitória, que reinou de 1837 a 1901. (DN)
CRIATURAS
AQUI, NÃO, GENTLEMEN Aproveitando-se de seu poderio naval e da desistência de Portugal e Espanha em manter suas pouco rentáveis possessões insulares no Atlântico Sul, o Reino Unido tomou para si a quase totalidade das terras dessa região. Poucos sabem que, em 1890, os britânicos ocuparam também nossas ilhas oceânicas mais distantes: as de Trindade e Martin Vaz, a mais de 1.200 km a oeste da costa do Espírito Santo. Nesse caso, talvez tivesse entrado em ação o notável Barão do Rio Branco, que, no entanto, estava defendendo outras causas prioritárias do país, tal qual a Questão de Palmas. Porém, bastou a intervenção de Portugal – que comprovou uma tentativa de colonização com imigrantes açorianos em tempos passados e a soberania brasileira sobre os rochedos de Martin Vaz e a ilha da Trindade após 1822 – para os gentlemen se resignarem e se retirarem em 1895. (Carlos Eduardo Amaral)
Jackson do Pandeiro (1919-1982) Por Baptistão
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FLÁVIO PESSOA
NERDS A força (do mercado) está com eles A ascensão econômica de nomes como Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg ajudou jovens, antes considerados os “patinhos feios” da escola ou do bairro, a conquistarem prestígio social, por estarem no epicentro do superenriquecimento TEXTO Carol Almeida
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Tarde de sábado, em São Paulo,
10 de março, e o sol está impiedoso. Dentro de um auditório no Complexo do Anhembi, centenas de jovens, representados em boa parte por meninos vestidos com seus moletons escuros, nem percebem o arcondicionado tinindo seu vento gelado para abafar o verão paulistano. Eles gritam, urram, assoviam e batem palmas, galvanizados pelo vídeo que acaba de ser exibido no telão montado no espaço. Ninguém menos que J.J. Abrams, o criador de séries como Lost e Fringe e diretor de filmes como Star Trek e Super 8, mandava seu recado: “Neville deveria estar aqui comigo, concluindo Star Trek 2, mas só o deixei viajar para o Brasil porque ele me falou que esse evento é muito importante”. O evento a que Abrams se referia se chama The Union, e teve sua segunda edição este ano, na capital paulista. E o Neville por ele mencionado atende pelo nome de Neville Page, artista que tem no currículo a autoria de criaturas em filmes como Avatar, Tron: o legado e, claro, o Star Trek de Abrams. Em qualquer cenário da nossa prosaica vida de contas a pagar e metas a fechar, Neville Page é um nome tão próximo quanto o daquele vizinho que nunca vimos. Mas, para as centenas de jovens, ainda majoritariamente do sexo masculino, que atentamente assistiam à sua apresentação no Brasil no começo deste ano, o cara é um herói, desses colossais. Isso porque, no fundo (nem tão profundo assim), ele é um sujeito que, como todos os anônimos, tem contas a pagar e metas a fechar. A diferença? Ele faz tudo isso sendo muito bem-pago para ser aquilo que, há não muito tempo, vinha com uma carga semântica pejorativa: um nerd. E eis aí uma palavrinha anglicana que sempre é muito citada a cada edição do “Woodstock” desse grupo. Estamos falando da Campus Party, agora, com lona armada no Recife. Criada na Espanha, em 1997, a Campus Party é, hoje, o evento que melhor traduz a relevância social e econômica dos nerds, reunindo palestras e apresentações simultâneas sobre os mais diversos campos do conhecimento que tenham uma
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A obsessão de Steve Jobs e Bill Gates em aprimorar o computador pessoal transformou hábitos sob diversos aspectos
relação direta com a tecnologia digital. Segundo o gerente do evento no Brasil, Mario Teza, são mais de 189 mil campuseiros (nome dado aos participantes do encontro) ao redor do mundo, sendo cerca de 62 mil deles brasileiros. Em cada edição da Campus Party, além de troca de informações – que por si só é o motor
que sustenta a ideia –, negócios são fechados e empresas descobrem colaboradores potenciais. Pessoas que, em lugar de concursos públicos ou empregos estáveis, têm como sonho profissional lançar aplicativos para celulares ou novas redes sociais que as tornem, na melhor das possibilidades, milionárias. Na pior, felizes em trabalhar com aquilo pelo qual são fissuradas. Sim, porque mais de três décadas depois do Apple II, em 1977, do IBM PC, de 1981, e de toda a revolução da computação pessoal e da internet, que viria logo em seguida, chegamos à era daquilo que o jornalista Robert X. Cringely chamou já há 16 anos de Triunfo dos nerds, em documentário
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1 STEVE WOZNIAK E JOBS Criadores do primeiro computador pessoal comercializado em larga escala estão na lista dos top nerds 2 BILL GATES Fundador da Microsoft tornou-se o homem mais rico do mundo, mudando o estigma dos nerds 3 A REDE SOCIAL Filme aborda o surgimento do Facebook, site que fez do jovem Mark Zuckerberg um milionário 4 THE BIG BANG THEORY A série, que retrata o cotidiano de nerds, tem a maior audiência da TV aberta nos EUA
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sobre a maneira como jovens fora de padrão, como Steve Jobs e Bill Gates, tomaram as rédeas do mundo tal como o vivenciamos hoje. E, a partir daí, eis que surge o momento em que ser nerd é ser, sobretudo, rentável. Favor, passar a senha para entrar no clube.
COMPUTAÇÃO GRÁFICA
Para entender melhor esse cenário social e sua aplicação pragmática na vida tal como a consumimos, precisamos voltar à palestra de Neville Page. Convidado, pelo segundo ano consecutivo, a apresentar parte de seu portfólio hollywoodiano no Brasil, ele será também um dos professores da primeira escola brasileira de
Computação Gráfica (CG), com padrões da indústria fincada lá em Los Angeles. Fala-se aqui da Axis, parceria inédita entre a Gnomon, mais conceituada escola de CG do mundo, com a Saga, escola brasileira com know how no ensino de técnicas em computação gráfica. E, assim como Neville, profissional bróder de gente como o diretor James Cameron, o pernambucano Rodrigo Bastos Didier, que participou da entusiasmada plateia de Neville, em março deste ano, estará em breve no papel de professor da Axis, em São Paulo. Formado em Design pela UFPE, Rodrigo passou, recentemente, seis meses em Los Angeles, em um treinamento intensivo da Gnomon,
voltou ao Recife e está aguardando sua convocação para se mudar para São Paulo. Desenha desde os seis anos de idade e, há cinco, aplica esses desenhos no computador. É fã da saga Senhor dos anéis no cinema e, quando comprou a caixa de DVDs com os filmes, saiu procurando os nomes dos vários artistas digitais que trabalharam na produção. “Tentei adicionar alguns no Facebook, porque eles não são estrelas. Você consegue contato fácil”, explica, admitindo que um de seus sonhos de carreira é trabalhar para a Weta, empresa da Nova Zelândia responsável por toda a criação digital de produções como o próprio Senhor dos anéis e, muito em breve, os dois filmes do Hobbit. Pelo andar da carruagem (ou melhor, dessa nave espacial que transporta ambições cada vez mais palpáveis), ele não está tão distante assim de chegar ao outro lado do hemisfério. Ainda reticente sobre os significados que o rótulo implica, Rodrigo diz não se considerar um nerd nos padrões mais rígidos do título: “Não gosto nem de Star Trek, nem de Star Wars”, revela, sem medo de represália (e olha que, nesse caso, ela pode ser séria). Mas admite que “fica difícil não ser chamado de nerd, quando as paredes do meu quarto são pintadas com desenhos de Street Fighter e Samurai X”. Para os não iniciados, as duas referências citadas são respectivamente um game (clássico da geração Arcade) e um anime. Ele deixa claro também que sua coleção de espadas medievais nunca aumentou sua nota na faculdade, mas considera esse tipo de “investimento” essencial para quem quer trabalhar com
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CON ESPECIAL TI NEN TE TIAGO BARROS
5 JOGOS Rodrigo Bastos aguarda chamado para atuar em SP 6 STAR WARS A saga de George Lucas é uma espécie de religião para os nerds 7 JOVEM NERD O site aborda assuntos voltados para esse público 8 WIRED A revista virtual é uma das mais acessadas por aficionados de tecnologia
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qualquer tipo de ficção, ser aberto e apaixonado pela fantasia. “Quando uma pessoa tem contato com jogos, filmes ou RPG, ela está estudando aquilo que nem sabe estar estudando. A Blizzard (famosa editora e produtora de games), por exemplo, só contrata quem joga os jogos que ela produz”, ressalta.
DEFINIÇÕES
Fica, então, a questão essencial por trás de duas gigantes indústrias– a da tecnologia da informação e a do entretenimento – que movem montanhas de dinheiro todo ano: o que podemos definir como nerd, e como esse grupo saiu da marginalidade social para se transformar na Coca-Cola gelada do deserto. Para responder à primeira questão, duas definições convergem. A primeira é do escritor Douglas Adams, autor de uma das “bíblias” dessa tribo, o romance O guia do mochileiro das galáxias: “Um nerd é uma pessoa que usa um telefone para falar com outras sobre... telefones”. A obsessão do meio pelo meio se aplica
também, nesse caso, à noção de que não existe, a priori, um objetivo ou propósito nas pequenas grandes “taras” de um nerd. Na opinião do empresário Alexandre Ottoni, “nerd é a pessoa interessada em aprofundar seu conhecimento; ele quer saber mais. É o cara que vai descobrir um detalhe que ninguém viu em um frame de filme”. Ottoni fala com propriedade. Sócio do Jovem Nerd – site que, nas últimas contagens, recebe cerca de 3 milhões de visitas por mês –, ele dedica sua vida, hoje, a tratar dos assuntos dentro do vasto escopo de interesse dessa comunidade, de cinema e games a quadrinhos e séries de TV. Tudo com senso de humor e piadas próprias de quem sabe com quem está dividindo a pizza. Desde 2008, trabalha exclusivamente no site que nasceu como blog, em 2002, ao lado dos demais quatro sócios. E acaba de lançar o Skynerd, que se propõe a ser, online, a primeira rede social nerd do Brasil. “A ideia surge para melhorar a interatividade das pessoas que já frequentam o site.
Nosso público é extremamente fiel e o único espaço que tinha para interagir nele era a área de comentários. Fomos entendendo e pesquisando como funciona a dinâmica das redes sociais e adaptando isso para o Jovem Nerd. No nosso caso, tal como num jogo de RPG, quanto mais a pessoa interage, mais forte ela fica na comunidade.” Além dos cinco sócios, o Jovem Nerd conta com três funcionários, estrutura mantida a partir de anúncios dentro da página. Segundo Ottoni, “o mercado aqueceu” nessa última década. “Um holofote se acendeu sobre o nerd, por causa também de todas as revoluções da era da informação, que são controladas e criadas por pessoas consideradas nerds. Além disso, a internet possibilitou às pessoas criarem seus próprios canais de comunicação. Para fazer um programa do Jovem Nerd, por exemplo, a gente precisa realmente ir para TV? Porque temos nossa audiência fiel e um canal de mídia que controlamos 100%. Portanto...” Laura Buu, criadora de outro site centrado nesse público, o Pink Vader (mais de 100 mil visitas por mês), concorda. “Nerd é uma palavra que terminou se banalizando. Qualquer pessoa que assiste à Game of thrones hoje é nerd. Mas acredito que o conceito vá além disso. Na minha opinião, trata-se justamente de quem se dedica mais a conhecer alguma coisa”, explica ela que, apesar de chamar de pink o site que divide com amigos, compartilha um conteúdo para meninas e meninos. Através dessa iniciativa, ela conheceu seu atual namorado, um engenheiro com quem cruzou na Campus Party de São Paulo e que, já tendo acessado o site, puxou assunto.
NOVO COMMODITY
“O mundo está muito mais nerd hoje. Quem faz as séries de TV mais vistas? Quem escreve os livros mais vendidos? Quem são os diretores mais bem-sucedidos do cinema? Steven Spielberg, James Cameron... todos nerds”, aponta Mauricio Muniz, responsável pela edição de quadrinhos da Gal Editora. Ele mesmo fã hardcore de
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produtos populares na comunidade, Muniz acredita que o comércio do entretenimento vê potenciais cada vez mais vantajosos nesse segmento. Por esse “mercado aquecido”, mencionado por Ottoni, Buu e Muniz, referimo-nos às duas indústrias já citadas, a da tecnologia da informação e do entretenimento, que foram criadas pelos nerds; são consumidas em massa pelo segmento; têm nesse grupo seu maior formador de opinião e, finalmente, alimentam novas gerações, distintas do perfil do indivíduo fechado em si mesmo, quase sempre míope, notívago e movido a fast food. Ainda que esse modelo esteja longe de ser extinto e tenha, a propósito de interesses comerciais, adquirido um certo charme, depois
do seriado cômico de maior sucesso hoje na TV aberta americana: The Big Bang Theory. Graças à própria série, a figura clássica desse sujeito alheio às mais fundamentais etiquetas do comportamento em grupo, porém extremamente inteligente no campo da ciência, tornou-se um tipo de herói possível. “Também por conta de The Big Bang Theory, criouse um novo público para esse conteúdo. Mas é preciso dizer que há, em paralelo, uma tentativa maldisfarçada de empurrar goela abaixo esse tipo de conteúdo para consumo, de colocar o público nerd como commodity.” A opinião é de André Conti, editor do selo de quadrinhos da Companhia das Letras, que também assina uma coluna de
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9 V DE VINGANÇA Máscara do personagem de HQ e filme virou símbolo para hackers e ativistas
games no jornal Folha de S.Paulo. Conti sustenta que esse público existe, sim, mas que há várias brechas para o marketing do consumo dirigido. Ciente dessa movimentação do mercado, a Livraria Cultura inaugurou, este ano, em São Paulo, sua primeira unidade dedicada exclusivamente aos produtos que congregam esse espírito. Geek, palavra que não deixa de ser uma tentativa de atualização do nerd, é o nome do espaço. A loja está em funcionamento há dois meses e Igor Oliveira, coordenador do Projeto Geek da livraria, afirma: “A resposta está sendo espetacular”. Segundo ele, “a intenção é que todas as próximas lojas da Cultura a serem abertas tenham esse espaço”. Oliveira, que um dia já fez parte de um fã-clube de Star Wars, explica que a ideia é manter uma área com games, quadrinhos, jogos de cartas e colecionáveis, que seja acolhedora tanto para os iniciados, quanto para “a vovó que vai ali para comprar um game do Wii pro neto”.
CONSUMO & PRODUÇÃO
Respondendo aos estímulos da cultura pop e de um tal mercado da inovação, os nerds estão na crista da onda da Era da Informação, tanto no que diz respeito ao consumo quanto à produção. “Na Campus Party, não apenas aproveitamos essa onda, como a ajudamos a crescer”, explica Mario Teza, que faz parcerias com governos e companhias privadas para realização de cada edição desse acontecimento tecnológico. “As empresas perceberam que seu consumidor agora é completamente diferente da geração anterior, porque seu cliente hoje pode ser o solucionador de seus problemas”, afirma o coordenador do evento no Brasil, cuja decisão de montar uma edição no Recife foi, segundo ele, movida porque “Pernambuco é o
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Os nerds estão na crista da onda da Era da Informação, tanto no que diz respeito ao consumo quanto à produção
estado que mais cresce no Brasil, e o Recife a cidade que mais inova”. Se a posição privilegiada que esse segmento usufrui é uma realidade para a esfera dos negócios, podemos dizer que ela também é a natureza de praticamente todos os movimentos sociais existentes no momento. Lembrando que o símbolo maior do ativismo que circula pelo planeta de um ano pra cá é a máscara de Guy Fawkes, sujeito que existiu na Londres da virada do século 16 para o 17, e serviu de inspiração para o quadrinista Alan Moore criar o personagem conhecido apenas como “V”, um ativista anônimo numa Inglaterra fictícia sob um regime de ditadura. Essa história foi adaptada para o cinema em 2005 e, em 2011, o
movimento Occupy Wall Street incorporou a simbologia da tal máscara, replicando com isso a ideia central de que é preciso que a sociedade tome controle da informação. O personagem de Alan Moore era um hacker (assim como era Steve Jobs muito antes da Apple) e essa figura do nerd que sabe quebrar códigos fechados se tornou um mártir contemporâneo. Pontuando que o Anonymous, nome do maior coletivo de hackers que existe neste momento, usa a máscara de Guy Fawkes como avatar. Na assimiliação e ressignificação de figuras fictícias, V ou Sheldon Cooper, o nerd-alfa de The Big Bang Theory, ou na projeção de indivíduos reais como Julian Assange, mentor do Wikileaks, ferramenta que já vazou vários documentos confidenciais de governos ao redor do mundo, e Mark Zuckerberg, criador do Facebook, a rede social mais rentável de todos os tempos, percebese que, seja para ganhar, consumir ou denunciar, os nerds são o que há de mais excitante na bolsa dos nossos valores estéticos, éticos e financeiros. E suas ações só fazem crescer.
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Histórico
MUNDO NERD De Isaac Newton à série de TV The Big Bang Theory, passando pelo surgimento do HomemAranha, acompanhe a cronologia dessa cultura.
1643
1954
1972
1994
Nasce Isaac Newton, pai de todos os nerds (a lembrar do episódio em que Sheldon, de The Big Bang Theory, quer colocar o busto dele no topo da árvore de Natal).
É publicado o livro Senhor dos anéis: a sociedade do anel, de J.R.R. Tolkien. Precisa dizer mais?
É fundada a Atari, Inc., a empresa de jogos eletrônicos que vai deixar muita gente com calos nas mãos.
O Weezer lança Blue album. Agora, os nerds também são estrelas do rock.
1961
1974
2001
Gene Roddenberry faz o rascunho daquilo que, três anos mais tarde, vai estrear na TV com o nome de Star Trek, a série vai viajar no espaço e transformar subsequentes gerações de jovens em trekkers religiosos.
É publicado o Role Playing Game (RPG) Dungeons & Dragons, a fantasia medieval que vai servir de base para várias histórias e jogos como experimentamos hoje.
A Apple exibe, em outubro deste ano, o iPod, transformando a maneira como consumimos música.
1937 George Stibitz, da Bell Laboratories, consegue criar uma calculadora digital com lâmpadas de flash, tiras de latas de estanho e uma tábua de cozinha. Ok, era uma calculadora que só efetuava adição de dois bits, mas ainda assim é o embrião dos sistemas computacionais.
1938 É criada a Hewlett Packard (hoje mais conhecida simplesmente como HP), para fabricar equipamentos eletrônicos.
1950 A palavra nerd, no sentido de “ser esquisito”, surge pela primeira vez na história em If I ran the zoo, do Dr. Suess (hoje figura clássica na cultura nerd).
1977
1962 Os quadrinhos recebem seu primeiro herói tipicamente nerd. Sim, estamos falando dele, Peter Parker, também conhecido como o Homem-Aranha.
1970 É inaugurada a primeira edição do Golden Stat Comic-Minicon, evento que reúne fás de quadrinhos e séries como Star Trek. Anos mais tarde, essa Minicon se transforma naquilo que hoje é a meca de todos os nerds do mundo: a San Diego Comic-Con, que acontece todo mês de julho, na cidade de San Diego, Estados Unidos.
“Há muito tempo, numa galáxia muito muito distante…”. Quando os letreiros do primeiro Star wars começam a subir, nasce o maior clássico do cinema da iconografia nerd. No mesmo ano, Steve Jobs lança o Apple II, o primeiro computador pessoal a ser comercializado em larga escala.
1981 Tentando buscar o mercado da Apple, a IBM vem com o seu popular e funcional IBM PC, operando com o sistema operacional da Microsoft do jovem Bill Gates.
2006 A Apple anuncia o Macbook e iMac com chips da Intel, levando parte dos nerds a migrarem do PC para o Mac.
2007 Steve Jobs apresenta o primeiro iPhone, que mudará a maneira como interagimos em mobilidade. No mesmo ano, o canal CBS, nos EUA, estreia a série The Big Bang Theory, com personagens nerds em nível avançado.
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32% da população do mundial têm acesso à internet, o que significa que a quantidade de nerds no mundo pode crescer ainda mais.
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Artigo
YELLOW NERDS, ALÉM DO ESTEREÓTIPO DA SESSÃO DA TARDE Os filmes de Sessão da Tarde dos
anos 1980 costumavam retratar os nerds como figuras patéticas que ganhavam a simpatia apenas quando apelavam para o lugar comum do loser, do perdedor, de bom coração. Eles eram majoritariamente do sexo masculino, aficionados por Guerra nas estrelas, filmes de zumbis e video games, e apresentavam pouca, senão nenhuma, percepção de moda e higiene pessoal.
Os anos 2000 trouxeram a expansão da economia da internet, mostrando uma leva de jovens empreendedores e nerds que moldaram o mundo atual ao criarem suas empresas inovadoras. Depois de três décadas em que os ícones dos jovens eram provenientes da música (Chico Buarque, Bob Dylan, Bruce Springsteen, Sid Vicious, Kurt Cobain), uma mudança de paradigma ocorreu, e os jovens inteligentes de hoje têm, como modelo, nerds como Sergey Brin e Larry Page (criadores do Google), Mark Zuckerberg (Facebook) e Lawrence Lessig (Creative Commons). O mercado de consumo esforçase para explorar o que talvez seja o maior fenômeno cultural desta geração. De repente, ser nerd é cool, então, as corporações tentam
fazer produtos e serviços moldados a eles. Infelizmente, estão caindo na armadilha do estereótipo de Sessão da Tarde, e, pior ainda, arrastando consigo muitos jovens de bom coração. Gostar de computadores, video games e comunicar-se através de redes sociais não são traços comportamentais exclusivos dos nerds – são geracionais. Entender minimamente de informática é uma necessidade para quem precisa de ferramentas de tecnologia da informação para estudar e trabalhar. No entanto, o mercado insiste em associar o “mundo da informática” aos nerds. Afinal, o que são nerds? São aqueles que têm extrema habilidade em pensar, aprender, agir e comunicar-se dentro dos limites de uma determinada área de conhecimento. Trata-se simplesmente
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FLÁVIO PESSOA
de um traço de comportamento, muito mais comum do que se imagina, que os leva a apresentar características bastante peculiares. As conquistas do nerd em sua profissão ou hobby o induzem a acreditar que sua habilidade nesse campo específico pode ser aplicada a todas as situações de sua vida. Como não consegue “pensar fora da caixa,” ele pode ser arrogante e pedante na defesa de suas opiniões, mesmo em situações em que está obviamente errado. E vê-lo mudando de opinião é um dos fenômenos raros do universo. Eles se desenvolvem vigorosamente no domínio de sua especialidade, mas são confrontados com obstáculos intransponíveis, quando enfrentam problemas corriqueiros, mas que
requerem certa flexibilidade. Poucos têm inclinação ou paciência para lidar com as pequenas politicagens da vida profissional, por exemplo. A lendária intolerância de Bill Gates e de Steve Jobs com os resultados negativos de seus subordinados não se deve a nenhuma estratégia calculada para moldar suas auras de gênios excêntricos. São simplesmente reflexos involuntários de suas personalidades nerdísticas, quando confrontadas com situações que requerem sutileza gerencial. É natural ao comportamento desses “seres” perderem contato com a sociedade e suas regras, por ser tão desconfortável aos mesmos estarem em ambientes heterogêneos. Por isso, costumam sentir-se à vontade em lugares de normas estabelecidas e
conhecidas, como a universidade. Para recompensar o pesadelo que lhes foi o ensino médio (o espectro curricular é muito abrangente para suas mentes focadas), é um sonho fazerem parte de uma comunidade em que podem ocupar-se apenas da geração de conhecimento, tendo seu crescimento intelectual específico recompensado em titulação, mérito e no contracheque. A necessidade humana por acolhimento os leva a unirem-se em comunidades. Em seus grupos de estudos, fã-clubes, ONGs ou redes sociais, nos quais se reconhecem, confabulam, são enaltecidos, relaxam e trocam desejados tapinhas de aprovação nas costas. A personalidade nerd não indica, de maneira alguma, uma doença mental ou social. No entanto, pessoas que sofrem de certos distúrbios, como autismo ou esquizofrenia, podem encontrar, nas comunidades nerds, amparo para suas aflições, em ambientes de regras bem-definidas para comportamentos e opiniões. Por isso, eventualmente, encontramos psicopatas na companhia de nerds. E fica meio difícil distinguir um do outro até que um deles descarregue uma metralhadora na cantina da escola. Nerds autênticos podem, sem dúvida, apresentar algumas características do estereótipo. O desconforto em situações sociais, por exemplo, está mais perto da regra que da exceção. Mas existem nerds em todas as áreas do conhecimento, não só nas Ciências Exatas, como o preconceito nos leva a crer. Eles, graças ao seu foco e paixão, são forças importantíssimas ao avanço intelectual. Infelizmente, não é possível tornar-se um nerd, talvez um geek – aquele que tem interesse exagerado em alguma coisa, mas não chega a ser focado unicamente naquilo. Talvez a influência mais danosa do estereótipo do nerd no cotidiano seja o culto à extensão das horas de trabalho (algo que aconteceu, por exemplo, nos primórdios da Apple). O nerd as aceita porque tende a sentir-se mais à vontade no escritório do que no ambiente familiar. Enquanto isso, empresas, como a Google, utilizam o comportamento desses empregados a seu favor. Mas, passar tempo a mais no trabalho pode ser tão profícuo quanto colecionar espadas Jedi de brinquedo.
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CON ESPECIAL TI NEN TE
DIVULGAÇÃO
CAMPUS PARTY Onde nerds de várias cepas se encontram
Feira que une tecnologia, inovação, ciência e cultura digital percorre o mundo, atraindo gente interessada em novidade e diversão TEXTO Duda Gueiros
O estereótipo do nerd “clássico” –
jovem de comportamento antissocial, que encontra no computador seu principal meio de expressão –, de conotação pejorativa, encontra respaldo sociocultural positivo. Alguns aspectos, como o fato de a tecnologia encabeçar as transformações da humanidade, e de pessoas com esse perfil estarem associadas ao segmento, contribuíram para essa inversão de papéis. Nesse contexto de mudança de status se insere a realização da Campus Party, que ergue uma bandeira da celebração nerd desde 1997, data de sua primeira edição, na Espanha. A partir de 2008, com a internacionalização da feira, que chegou a mais quatro países (Brasil, México,
Colômbia e Equador), o encontro passou a ser um dos maiores e mais completos do mundo na área de tecnologia, inovação, ciência e cultura digital. Durante os cinco dias de realização do evento, os participantes se mudam para uma arena indoor com suas barracas de acampamento, computadores, malas, e imergem nas oficinas, palestras, conferências, competições e atividades de lazer. Os múltiplos ambientes, temas e convidados que compõem a programação da feira justificam o slogan “Unimos talento, criamos futuro”. Até este ano, a versão brasileira da CP acontecia na cidade de São Paulo. Foi lá, em reuniões informais entre a diretoria, palestrantes e campuseiros (como são chamados os participantes
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do evento), que a decisão de produzir a feira no Recife foi tomada. “Percebemos o que estava, há muito tempo, diante dos nossos olhos: a capital pernambucana é o polo principal de tecnologia e inovação do país. Na cidade, já existe um ambiente muito forte de mentes que pensam o futuro e a economia criativa, a exemplo do Porto Digital, C.E.S.A.R e o Centro de Informática da UFPE”, explica o diretorgeral da “festa”, Mario Teza. Segundo os diretores e criadores da feira, a dimensão e a importância que a Campus Party conquistou não se devem somente por criar um ambiente de discussões pertinentes e destacar esse novo grupo de “pensadores” contemporâneos, mas também em deixar um marcante legado de reflexão sobre o futuro. Nos dias em que ocorre, são promovidos campeonatos e maratonas de programação, espaços de experimentação, mesas de propostas em torno da sustentabilidade, e outros debates que objetivam a prática de um futuro tecnologicamente viável. O resultante dessa “colônia de férias” são novas plataformas e uma conjuntura de ideais para o segmento tecnológico.
ESTRUTURA
Nesta primeira edição recifense, que acontece no pavilhão do Centro de
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CAMPUSEIROS
Termo denomina os acampados durante os dias do evento de tecnologia e entretenimento
Convenções, de 26 a 30 de julho, a Campus Party colocou à venda 2 mil ingressos para participantes rotativos e 800 vagas disponíveis para campuseiros acampados. Até o fechamento desta edição, só restavam duas centenas de ingressos avulsos. A estrutura está organizada em três grandes espaços: Arena, camping, com infraestrutura necessária para esse tipo de hospedagem, e a Zona Expo, de acesso gratuito e que visa à inclusão digital. Na Arena, três dos cinco palcos de conteúdo recebem profissionais vinculados a importantes áreas de conhecimento. O cenário Galileu apresenta temas de robótica, modding, astronomia, nanotecnologia, hacking, biohacking, biotecnologia e hardware. O espaço Michelangelo aborda música, design, fotografia, vídeo, mídias sociais e blogs, com base conceitual na união entre cultura e tecnologia. No território Pitágoras, serão discutidos desenvolvimento, sistemas operacionais, software livre, segurança e redes, em termos práticos. O ambiente Stadium será o arcade do evento, voltado para o entretenimento digital, com atividades relacionadas a games e simuladores. Por fim, o cenário Principal irá receber os palestrantes magistrais e discussões em torno da internet brasileira e do empreendedorismo. Historicamente, a grade de participantes da Campus Party nunca é fechada no momento inicial da venda dos ingressos. Os interessados compram sua entrada confiando na programação que toma forma aos poucos, até o dia do evento. Para esta edição, já estão confirmados pelo menos quatro nomes de peso que já valeriam o investimento: o fundador do Partido Pirata, Rick Falkvinge; o bioartista brasileiro Eduardo Kac, conhecido por obras de arte polêmicas e visionárias, como o coelho florescente; o engenheiro Mike Comberiate, que atuou por mais de 40 anos na Nasa e irá realizar o Acampamento de Robótica (Boot Camp) pela primeira vez na história da Campus Party; e a brasileira Bel Pesce, um dos grandes nomes do empreendedorismo no Brasil e no Vale do Silício (EUA).
Entrevista
PACO REGAGELES “O RECIFE LIDERA A TECNOLOGIA DE PONTA NO PAÍS”
Em 1997, Paco Regageles teve
a ideia de criar a Campus Party, da qual é cofundador. Em passagem pelo Recife, para divulgar a festa, Paco, cuja origem profissional remonta ao radialismo, conversou com a Continente a respeito desse evento que hoje é considerado um dos maiores do entretenimento eletrônico. No breve encontro, o empresário espanhol afirmou que, em poucos anos, a internet desaparecerá e que dela não se falará como se fala agora. “Ela fará parte de nossas vidas de forma tão integrada, que vamos parar de chamá-la assim e a chamaremos de eletricidade, ela estará em toda parte”. Apostem suas fichas. CONTINENTE Qual é o perfil profissional e pessoal de um campuseiro? PACO REGAGELES É um estudante universitário ou jovem profissional que trabalha no setor de tecnologia ou relacionado às questões tecnológicas em qualquer outro setor. CONTINENTE Por que o Recife? De onde partiu a ideia de trazer o evento a esta cidade?
PACO REGAGELES O presidente da Telefónica/Vivo, Antônio Carlos Valente, nos deu a ideia, incentivou e impulsionou. O motivo da escolha foi evidente: o Recife, em Pernambuco, lidera a tecnologia de ponta no país. Se São Paulo é a maior referência em termos de megacidade, polo econômico, o Recife é a maior do ponto de vista da inovação, empreendedorismo, compromisso com o futuro e economia baseada no conhecimento. CONTINENTE Como se dá o estímulo para que conhecimento com resultados atingíveis seja gerado em cinco dias de evento? PACO REGAGELES Atualmente, a rotina que vivemos passa numa velocidade enorme, nunca temos tempo para compartilhar com outros a nossa paixão, nossas aptidões. No geral, vamos aos eventos, participamos de algumas palestras e saímos correndo sem tempo para mais nada. A Campus Party oferece esse “tempo” para as pessoas conviverem em um ambiente cercado por outras igualmente talentosas, no qual podem compartilhar projetos. É um terreno fértil, perfeito para o surgimento do empreendedorismo tecnológico. CONTINENTE Como a Campus Party pode contribuir para o desenvolvimento futuro da cidade em termos culturais? PACO REGAGELES Sem dúvida, a cultura digital faz parte do século 21, portanto, essa é uma forte discussão que a Campus pretende fincar. A contribuição se deve ao exercício de explorar novas formas de criação, que é uma das mais bonitas formas de expressão que você possa imaginar, tanto para o artista tradicional como para o digital, lançando mão da criação em conjunto e usando o espaço virtual. Além disso, tudo que é criado na Campus é publicado on-line e disponível. Tudo é livre.
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JANIO SANTOS
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Peleja
Os arranjos de obras de Villa-Lobos devem ser autorizados em qualquer circunstância? Nos últimos meses, os membros da Academia Brasileira de Música, detentora dos direitos autorais do compositor, manifestaram-se quanto a uma petição do acadêmico Guilherme Bauer, que exigia da ABM a proibição de intervenções nas partituras originais de Villa-Lobos (não de arranjos). Por sua vez, Ricardo Tacuchian, ex-presidente da instituição, ponderou que arranjos de qualquer espécie devem ser amplamente permitidos, desde que não caracterizem deturpação das composições.
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Guilherme Bauer
Ricardo Tacuchian
Inúmeros compositores, em diferentes épocas, usaram temas de outros autores para construírem obras próprias, em forma de variações ou não. Nada contra que um tema de Villa-Lobos ou de qualquer outro autor sirva de base para um desenvolvimento próprio de outro compositor, mudando, assim, a autoria da peça. Não diríamos que as VaCompositor, riações sobre um tema de Haydn, de Brahms, professor e membro da ABM por exemplo, sejam uma obra de Haydn. Porém, uma obra adulterada com arranjos ou versões que a desfigurem, tal qual a inserção de batucadas, como vem acontecendo em concertos sinfônicos, para atrair um suposto público com esses apelativos “acréscimos” a uma obra concluída pelo autor, não constitui mais obra desse autor. O mesmo se poderia dizer de versos acrescidos, ou modificados, dentro de um poema de um Drummond ou, que tal, um desenhozinho a mais em um quadro de Picasso... Villa-Lobos, por exemplo, ao utilizar-se do tema “Oh, mana, deixa eu ir...” na quarta Bachianas, estava compondo, de forma personalíssima, uma peça sua, apenas com inspiração do tema folclórico. Toda a sua obra é escrita e tem um acabamento estrutural complexo, não se trata de um simples inventor de melodias, como um compositor popular (ou song writer, como se diz nos EUA), cujos arranjos possam variar em harmonia, orquestração etc. Aquele era o seu trabalho (e ponha-se trabalho nisto!). Não é pelo fato de uma peça de Chopin usar melodias folclóricas polonesas que se possa entulhar de outras tantas melodias polonesas suas obras, continuando-se a dizer que elas foram escritas por Chopin. Isso é usurpação! Na Europa, os temas e ritmos populares também sempre foram usados nas composições mais complexas, e as melodias de obras elaboradas também tiveram a popularidade atingida por arranjos diferentes. Só que, aí, o nome dos “arranjadores” (podendo não ser um simples “arranjo”, mas até “composições” sobre temas de outros) se impõe ao lado dos autores das melodias. É claro que, na Europa, se um grupo de música pop enxerta uma participação em uma obra de Bartók, ou de qualquer outro que se tenha apoiado nas tradições populares de sua terra, não terá a divulgação de tais obras como sendo de “autoria” de Bartók ou de quem assim fosse “usado”. E nunca se pode deixar de lembrar do trabalho de Bartók (ou do Villa) em construir o próprio estilo, partindo de observações da espontaneidade musical do povo. Tal estilo, “retocado” por outros, já não é deles.
“Não é pelo fato de uma peça de Chopin usar melodias folclóricas que se possa entulhá-la de outras tantas”
Os conceitos musicais de paráfrase,
paródia, citação, arranjo e transcrição, com diferentes nomes, vêm da Idade Média e, com o passar dos séculos, adquiriram significados mais ou menos diversos. Portanto, alterar a música de um compositor do passado, com o objetivo de torná-la mais simples para intérpretes iniciantes ou de mais fácil Compositor, entendimento para um público pouco professor e membro da ABM preparado musicalmente, não causa nenhum mal-estar. Já vi um operário da construção civil assoviando trechos da Ode à alegria, da Nona de Beethoven e, no entanto, ele nunca tinha entrado num teatro para assistir a um concerto sinfônico. O “culpado” foi um desses arranjos pop que andam por aí. Nada contra. Se a obra está em domínio público, o intérprete pode fazer o que bem entender da música. Depende de sua consciência estética e de seu preparo musical. Se, ainda, existe o direito de execução, o compositor ou o seu herdeiro poderá autorizar ou não uma versão interpretativa, diferente da original escrita pelo autor. No caso de Villa-Lobos, dezenas de “adaptações”, numa vertente popular, já foram feitas, algumas de bom gosto e outras execráveis. Cabe à Academia Brasileira de Música, como herdeira do compositor, autorizar ou proibir essas adaptações, mas sem ortodoxia, somente proibindo versões que, ao invés de divulgar a obra do maestro, deformam suas característica básicas. Assim, novos ouvintes podem ser conquistados para as versões originais. Muitas vezes, jazzistas improvisam, a partir de uma ideia de Villa-Lobos, com resultados magníficos. Numa sala de concerto ou numa gravação de orquestra sinfônica ou de recital de música clássica, o texto original deve ser preservado. Em quaisquer circunstâncias, a obra nunca deve ser apresentada ao público sem uma ressalva de que se trata de um arranjo ou não, mesmo com a autorização do compositor ou de seu herdeiro. O ouvinte precisa ser prevenido do que está ouvindo, assim como o consumidor precisa saber que o produto “não contém glúten”. Quando o público vai ao teatro ouvir uma orquestra sinfônica ou um recitalista clássico, ele quer a obra original. Ele não quer uma sinfonia de Mozart com um “reforço” de trombones, ver e ouvir A Valquíria com cantores vestidos de terno e gravata ou uma peça de Villa-Lobos acompanhada por bateria de escola de samba. A arte é a arena da liberdade, desde que preservados os direitos do compositor e do público. E ninguém gosta de comprar gato por lebre.
“O ouvinte precisa ser prevenido do que está ouvindo, assim como se informa sobre o conteúdo de um produto”
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REDES Ótimas para descansar
Um dos legados culturais indígenas mais assimilados no país movimenta a economia de cidades do sertão nordestino e incentiva a realização de feiras e consórcios especializados TEXTO Danielle Romani FOTOS Roberta Guimarães
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A rede de armar, usada para dormir, embalar bebês e crianças, cochilar, fazer sexo, descansar e conduzir os mortos à sua “morada final”, como nos mostrou João Cabral de Melo Neto no poema Morte e vida severina, é um utensílio doméstico tão integrado ao cotidiano dos brasileiros, que poucos se dão conta de sua importância como peça emblemática da cultura indígena sul-americana, como mobiliário 100% nativo, incorporado e disseminado pelo mundo a partir do descobrimento das Américas. Citada pelo escrivão Pero Vaz Caminha na carta ao rei de Portugal, D. Manuel I, numa segunda-feira, dia 27 de abril de 1500, logo após a chegada à “Terra de Santa Cruz”, a descoberta do artefato indígena foi uma surpresa para os portugueses recém-desembarcados, que jamais haviam visto algo semelhante nos lugares por onde tinham passado. Descrevendo a povoação dos tupiniquins que encontrara no
A rede foi um dos primeiros elementos de adaptação dos portugueses aos costumes dos índios da América atual território baiano, Caminha chamava a atenção para as habitações e mobiliários da tribo, em que a rede se destacava como peça central. “...haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia... todas de uma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam...”. O texto é o primeiro registro em língua portuguesa do artefato.
Se houvesse perguntado aos gentílicos o nome dado por eles à peça que ornava as tabas, Caminha a teria grafado como ini. E foi como era chamada pelos tupiniquins que a registraram os estrangeiros que posteriormente por aqui chegaram, a exemplo do náufrago Hans Staden. Certamente, a analogia encontrada por Caminha deveu-se à semelhança do mobiliário indígena com a rede dos pescadores, tão conhecida dos navegadores portugueses. Os demais colonizadores, que também se depararam com redes em territórios sulamericanos, utilizariam nome diferente e largamente difundido na Europa. Em vários países, ela é citada e conhecida, até os dias atuais, como hamaca, denominação encontrada primeiramente entre os povos do Peru. “Batizou-a (Caminha) pela semelhança das malhas com a rede de pescar. Rede de dormir nunca Pero Vaz Caminha deparara em
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1 TÉCNICA Artesãos gastam horas, e andam “quilômetros”, para urdir os fios que tecerão as peças 2 ARTEFATO Feitas à mão, as varandas, invenção das sinhazinhas portuguesas, embelezam as redes
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dias de sua vida”, relata-nos Luís da Câmara Cascudo no seu clássico Rede de dormir – uma pesquisa etnográfica. Independentemente do nome dado, a rede foi um dos primeiros elementos de adaptação e acomodação dos portugueses aos costumes indígenas. Peça que se tornou fundamental para a consolidação da conquista do território, uma vez que podia ser facilmente transportada, e protegia os desbravadores dos animais e insetos rasteiros, a rede foi um importante utensílio para integrar o colonizador à terra quente e inóspita, onde as dormidas ao sabor do vento eram mais do que aconselhadas.
AFETO SERTANEJO
A rede está presente entre os indígenas brasileiros e é encontrada largamente entre povos amazônicos, fabricada no tear com fios de algodão ou com fibras naturais, como o tucum
e outros vegetais. Desde a chegada dos portugueses, já era produzida em teares pequenos e rudimentares, de forma limitada, com fios abertos, bem menos cerrados do que os atuais, sem o uso das varandas, bordados e adereços que seriam implementados séculos mais tarde pelas sinhazinhas portuguesas, que transformariam as peças em verdadeiras obras de arte. Para aproximar-se da produção atual desse utensílio, a revista Continente percorreu três estados – Pernambuco, Paraíba e Ceará – e verificou que a rede mantém-se incorporada ao cotidiano do nordestino. No Sertão, especificamente entre os cearenses, a rede de dormir alcança importância afetiva exemplar, sendo presença constante no ambiente doméstico. Essa relação de proximidade com o artefato verifica-se no escritor e médico Ronaldo Correia de Brito, que
nasceu em Saboeiro, no Sertão dos Inhamuns e viveu parte da infância e adolescência no Crato. Ronaldo afirma que, até os 19 anos, dormiu apenas em redes – hábito que abandonou – e recorda o papel central que o artefato detinha na família e na sociedade sertaneja. Ele possui mais de 20 redes, mantidas na sua residência no Recife e em casa de campo no interior pernambucano. “Todas as casas sertanejas tinham um tear manual, para a fabricação e consumo próprio das famílias. Minha avó, Maria de Caldas, quando casou, tinha um patrimônio riquíssimo: levou 60 redes no enxoval! O que era um número considerável, mas bem adequado, visto que ela teve nove filhos. Se levarmos em conta que os meninos faziam xixi, coco, dormiam, comiam, usavam as peças em tempo integral, era um bom acervo, mas que se desgastou devido ao uso constante e às necessidades da família ”, explica Ronaldo, que especula sobre a presença da rede no Sertão nordestino. Para ele, o artefato tem sido um democratizador do espaço, que se torna mais amplo com a supressão de móveis e fixação de ganchos para abrigar visitas e parentes que porventura apareçam. “O indivíduo nascia e era posto na rede. Depois, nela dormia a vida toda; quando morria, era enterrado nela. As pessoas costumavam conversar escanchadas na rede, a exemplo do meu avô, José Leandro, que só resolvia os negócios conversando com o irmão dessa forma. Hoje, ela ganhou um caráter de descanso, decorativo, mas antes não: toda a dinâmica das casas sertanejas funcionava em torno da rede”, diz Ronaldo.
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CON TÊXTIL TI NEN TE A arquitetura tradicional da casa sertaneja cearense, segundo o escritor, diferencia-se da urbana, exatamente para adaptar-se ao artefato. Observe-se, a esse respeito, os alpendres e a presença de pouca mobília no interior das residências, em que muitas vezes sequer existem camas. “Antigamente, não havia mesmo! No Sertão do Saboeiro (Inhamuns), encontrei, recentemente, uma casa cujo vão era todo ocupado por redes e armadores, o que quer dizer que é uma prática mantida na região”, pontua Ronaldo.
COLECIONADORAS
O escritor não é o único cearense a devotar-se às redes. Aos 86 anos, Almina Arraes de Alencar, residente no Crato, é uma incentivadora do trabalho das artesãs estaduais, descrito por conhecedores como um dos mais requintados e elaborados entre os produzidos no Brasil. Além de ser dona de uma coleção com dezenas de redes – uma delas centenária, herdada de sua mãe; e outra, parte do seu enxoval de casamento, ocorrido há 66 anos –, Arminda é responsável pela realização de um inusitado consórcio: o de redes bordadas em ponto cruz, ponto estrela, amorperfeito, Brito Alves (assim batizada em homenagem ao advogado que defendeu o governador Miguel Arraes durante o golpe de 1964) e outras preciosidades produzidas por artesãs do Sertão dos Inhamuns, de Várzea Alegre e de cidades vizinhas ao Crato. “Muitas desses redes levam até seis meses para serem produzidas”, diz Almina, que não ganha um centavo na comercialização, apenas faz o papel de intermediária para ajudar as artistas populares. Desse consórcio, participam mulheres que muitas vezes esperam anos para receber um exemplar. Recifense, a bancária Nina Morais sempre comprou redes de tear coloridas, das que são comumente encontradas em Pernambuco. Mas alterou os hábitos depois que conheceu as fiandeiras cearenses na casa de Sônia Lessa, socióloga e colecionadora, que se responsabiliza por trazer os lotes sorteados no
consórcio para as pernambucanas adeptas dos pontos e bordados produzidos pelas artesãs ajudadas por Almina. “Nas visitas à casa de Sônia, fiquei deslumbrada com seu acervo. Acho que as redes cearenses se destacam pela leveza, pelo colorido, pela qualidade. São diferentes. A confecção é feita em uma linha só, há o acabamento, o babado elegante, o crochê das varandas. As redes produzidas por essas artesãs do Ceará são verdadeiras obras de arte. Você não consegue ver uma emenda, são perfeitas. Já tenho duas: uma de ponto estrela e outra de ponto de cruz. E continuo no consórcio, aguardando novos exemplares”, conta Nina, que também possui exemplares da Paraíba.
CARAIBEIRAS
Em Caraibeiras, distrito de Tacaratu, no Sertão pernambucano, 85% da população da cidade – segundo dados da prefeitura local – vivem da confecção e venda do produto. A atividade, também segundo informações das autoridades municipais, teve início no final do século 19, quando uma índia da tribo pancararu levou um pequeno tear para a localidade. Desde então, a produção é contínua, e em todas as partes é possível encontrar peças estendidas nas fachadas das casas e pessoas usufruindo do descanso em uma colorida rede de tear. Há também pequenas fábricas familiares que se dedicam a produzir as peças que, espalhadas por todas as partes, confere um ar informal ao distrito. Uma mudança significativa no ritmo de produção em Caraibeiras se deu na década de 1970, quando o tear conhecido como batelão, maior e mais rápido, foi trazido à cidade. Mas a “revolução” das redes caraibenses se deu, realmente, algumas décadas antes, com uma invenção de Mário Pedro da Silva, 74 anos, nascido na região e morador do Sitio Ouricuri. Foi o tear de rede de casal que dispensou o trabalho extra das tecelãs, que juntavam módulos para compor uma rede mais larga, ainda visto em várias regiões do Ceará. “Criei o tear largo, manual, para fazer as redes sem emenda. Toda
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minha família trabalhava com rede, então resolvi descomplicar”, explica o empresário, que se lembra de ter visto, quando criança, índios tecendo os fios de algodão no fuso. Ele afirma que seu tear foi copiado em todo o Nordeste, o que simplificou o trabalho de gerações de artesãos. Maria de Fátima Gomes da Silva, parente de Mário Pedro, é uma das poucas que resistem ao tear elétrico, usado maciçamente pelas fábricas e artesãos da cidade. Ela utiliza o
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sistema manual, o que resulta em redes um pouco mais caras, porém, mais disputadas. “Em Caraibeiras, sou a única que ainda faz assim. Se tiver mais alguém, só se for nos sítios que ficam nos arredores. Mas a vantagem é que sou procurada por todo o Brasil, pela qualidade do meu trabalho, porque a peça produzida no tear manual é mais resistente”, conta a artesã que, desde os 11 anos, se dedica a fazer redes e produz uma média de 30 a 40 delas por mês, todas já pré-encomendadas e
enviadas, via postal, para diversas regiões brasileiras. Mas mesmo as redes feitas em teares elétricos, produzidas pela maioria dos artesãos, não podem ser classificadas como algo “industrial”, mecanizado e fácil. Na verdade, a rede é um objeto cujo acabamento demanda trabalho artesanal e divisão de tarefas entre várias pessoas. Apenas o pano da rede é produzido em máquinas e, mesmo assim, essas ferramentas não são automatizadas: elas exigem esforço manual para serem operadas.
3 CALÇADAS Integradas ao cotidiano do distrito de Caraibeiras, no Sertão pernambucano, as redes lhe dão colorido e informalidade
“Depois de tecer o corpo da peça, vem a parte do acabamento, que exige trabalho e minúcia”, explica Edilma Gomes Feitosa, uma das artesãs que se dedica à produção de redes e que se recusa a comercializar os produtos na feira da cidade, que acontece aos sábados. “O meu material, apesar de ser feito em tear
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CON TÊXTIL TI NEN TE 4 GUARDIÃ Almina de Alencar, que tem coleção de redes antigas e raras promove consórcios com peças bordadas para ajudar as artesãs cearenses 5 IRMÃS Fátima e Edilma Feitosa trabalham desde muito novas na produção de belas redes de tear
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elétrico, é extremamente elaborado, e não custa menos de R$ 70 a peça (a rede). Na feira, o pessoal pratica preços vergonhosos. Não vou perder meu tempo”, ressalva Edilma, que também tem quase toda a produção despachada para fora de Tacaratu, via encomenda postal.
SÃO BENTO
Em São Bento, Sertão da Paraíba, o comércio em torno das redes é intenso. Às segundas, uma grande feira em torno do produto reúne centenas de comerciantes da região. A cidade tem, inclusive, grandes fábricas, como a Santa Luzia, que gera mais de 150 empregos diretos e indiretos, exportando peças para o Brasil e para
o exterior. Assim como ocorre com alguns produtores de Caraibeiras, a administração da empresa não vê vantagens de participar da feira. “Nossos produtos têm design, são melhor acabados e destinados a um público informado, a maioria de fora, que dá valor ao trabalho artesanal”, afirma Delci Bezerra Borges Filho, gerente-geral da fábrica. Na Santa Luzia, que possui vários andares de fabricação de redes, mantas, adereços de cama, mesa e banho, o processo é industrial só em parte. “O fio – que vem da China, de Cajazeiras e do Recife – é colocado na grade para urdir (processo no qual se enrola a linha e se montam rolos gigantes); depois
vai para a barcada (na qual os rolos são colocados, com as cores de linhas que serão usadas na confecção do tecido), segue para o tecedor, que vai fazer o desenho já pré-moldado pela máquina”, explica Delci. Mas o processo mecânico para por aí. Depois disso, os fabricantes têm que recorrer a artesãos autônomos para a execução dos detalhes. “Se houver bordados, eles têm que ser produzidos separadamente. A união dos fios para a ligação com o punho (que no Ceará é conhecido como mamucaba e, em Pernambuco, como cadio), precisa ser feita, manualmente, por outra pessoa. O punho, em si, e as varandas são outras tarefas, à parte. Portanto, podemos dizer que qualquer rede, por mais que sua base seja tecida numa máquina industrial, sempre terá um acabamento extremante trabalhoso e manual”, aponta Delci. Nos três locais visitados, Ceará, Pernambuco e Paraíba, o trabalho de confecções de redes tende a se tornar, cada dia, mais industrial, e menos artesanal, com exceções de comunidades isoladas (veja matéria nas próximas páginas).“As peças 100% feitas à mão são raras, caras e dispendiosas, seja para os que as produzem, seja para os que as compram. Também é impossível que só uma pessoa faça a rede: a tendência é que se criem núcleos dedicados a cada uma das etapas de elaboração das peças. Apesar de valorizar a qualidade, de termos um material bem elaborado e trabalhoso, no sentido que prezamos por peças de primeira linha, acredito que a tendência é que os tecidos das redes sejam cada vez mais industrializados e que se encontrem alternativas para simplificar os acabamentos. O mercado e seus custos se sobreporão ao artesanato”, antevê o gerente-geral da Santa Luzia.
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CONFECÇÃO Da colheita do algodão à harmonia da fibra urdida
Em todo o Nordeste, a produção é intensa e diversificada. No Ceará, encontra-se a maior variedade de motivos e materiais utilizados nas redes
O processo de confecção da rede
artesanal, a que era produzida há algumas décadas pelos antepassados dos atuais fabricantes, difere bastante do atual. Como lembra o médico e escritor Ronaldo Correia de Brito, o modus operandis anterior envolvia quase sempre uma pré-produção, com raras exceções,
hoje abolida, na qual se colhia o algodão, que era descaroçado e tinha seus fios penteados para serem colocados em novelos que, aí sim, entravam no momento de tear. Em Pernambuco, hoje, as artesãs de Caraibeiras explicam que a confecção obedece às seguintes etapas: urdir
(colocar os fios ao comprido, em linha reta), tecer (no tear manual ou elétrico), amarrar (dar pequenos nós para que o tecido não desfie), cochar (torcer o nó para que ele fique firme), perfilar (fazer o acabamento desses procedimentos), passar o cadil (barra que fica entre a rede e o punho, conhecida como mamucaba, no Ceará), fazer o punho (que deve ser bem firme para sustentar a rede) e, por último, fazer a varanda, que pode ser criada com vários materiais, pontos e tamanhos, de acordo com o gosto do artesão e do cliente. Há algumas diferenças de nomenclatura entre os artífices de Pernambuco, Ceará e Paraíba, mas os processos se assemelham, embora os tipos de redes encontradas nesses estados sejam bastante variados. Em Caraibeiras, é tradicional a produzida no tear elétrico ou manual, com varandas em ponto de abelha, macramê e ponto de parede (com delicados fios de cordão).
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CON TÊXTIL TI NEN TE 6-7 ADORNOS Nas varandas, utilizam-se acabamentos variados 8-9 DETALHES Os bordados valorizam as redes, transformando-as em peças com autoria 10 a 12 TRAMAS O corpo das redes pode ter colorido e estamparia diversificada, que embeleza os ambientes
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produzir as redes devido à idade, mas tem na neta uma seguidora. Essas redes, principalmente as todas lisas, apenas com a varandas bordadas ou tecidas, como as feitas em Várzea Alegre, no Ceará, são – na opinião dos que gostam de descansar ou dormir numa rede – as mais confortáveis, porque propiciam mais frescor e comodidade. “As bordadas são muito bonitas, decorativas, mas incomodam pela quantidade de detalhes que roçam na pele”, afirma Ronaldo. Em Várzea Alegre, são fabricadas, ainda, peças em brim bordado, com varandas rebuscadas, em rendas e crochê. “São as mais bonitas e confortáveis”, defende a professora Fátima Moura, que costuma passar pela cidade para adquirir modelos. No local, também se encontram exemplares totalmente artesanais, produzidos desde a coleta do algodão ao trançado dos fios, com varandas rebuscadas bordadas delicadamente. A responsável pela manutenção dessa tradição é Merandolina Costa Pereira, que resiste às novas técnicas de produção.
PRIMITIVAS
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Na Paraíba, as redes de tear também são comuns, mas os modelos mais valorizados são os conhecidos como “sol a sol”, cujo corpo, ao invés do tear, é composto por brim, com cadil imitando um bordado desfiado. Os modelos podem ter o corpo em brim liso, bordado, e varandas também lisas ou bordadas. Depende do capricho e da paciência da artesã. As varandas, de uma forma geral, são feitas em macramê, crochê ou tecido bordado. Comerciantes da cidade afirmam que a modalidade sol a sol, com as
varandas também em tecido bordado, foi criada por Herlinda Maria Diniz, 88 anos, que nasceu e vive nas redondezas de São Bento, tendo se mantido a vida toda, de acordo com ela mesma, “de fazer rede”. Sempre que passava pela cidade e via modelos de sol a sol bordados, pensava: “Vou fazer toda de tecido, toda bordada e vai ficar linda”. Devido à beleza das peças, tornou-se famosa entre compradores e colecionadores que procuram a cidade. Herlinda ou Dona Lalá, como é conhecida, deixou de
No Ceará, ainda é possível observar a confecção da rede tradicional, que consiste apenas nas peças fiadas em tear, em algodão simples, sem textura, com três costuras (devido ao fato dos teares antigos serem pequenos) e sem varandas rebuscadas, ou até mesmo sem varanda. Mas essa versão, revalorizada pelas donas de casas e artesãs locais no início do século 20, transformou-se em objeto de desejo dos que buscam redes refinadas. Em cidades como Caririaçu, artesãs como Zenilda Josefa Silva Simplício, residente na zona rural, no Sítio Abraão, produzem essas redes típicas, mas com detalhes rebuscados, como tramas e bordados que as tornam peças muito finas. São produtos que podem chegar
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ao preço de R$ 250. “Faço todas por encomendas. Bordo as costuras, as beiras das mamucabas, e minha irmã e primas fazem bordados em ponto de cruz bem caprichados e bonitos no corpo da rede e na varanda, normalmente feita em crochê”, descreve Zenilda Simplício, cuja renda semanal é de apenas R$ 30. Em Santana do Cariri, outra preciosidade pelas mãos das cearenses. Uma cooperativa, criada em 2009 pela prefeitura local, resgatou uma arte antiga, a rede de renda de bilro, ou rede de almofada, criada há muitas décadas por Maria Cesarina Lacerda, que aprendeu o ofício com sua mãe Vicência, uma paraibana. Hoje, o projeto de revalorização da rede de almofada é mantido por sua filha, Luíza Lacerda, e as mulheres que nele estão engajadas são chamadas de “cesarinas”. “Uma rede toda de renda de fio cru sai por R$ 500 e a toda de renda de linha, a mais elaborada, sai por R$ 600”, explica Luíza. “Uma rede de renda de bilro, feita por quatro a cinco mulheres, leva até quatro meses para ficar pronta. São produtos raros e refinados. Exclusividade da região”, afirma. A diversidade de estilos encontrada no Ceará é animadora. De acordo com informações do livro Mãos que fazem história – a vida e a obra das artesãs cearenses, das jornalistas Cristina Pioner e Germana Cabral, uma coletânea, em edição de luxo, de matérias publicadas no Diário do Nordeste, há ainda mais estilos no estado que os encontrados pela reportagem da Continente. No Ceará, as redes estão no patamar de patrimônio cultural. A rede de tucum, herança indígena observada nas cidades litorâneas de Jaguaribe e Acaraú, é vendida por peso e fabricada magistralmente por Maria de Lourdes Gomes de Almeida – que leva um mês para produzir uma peça. No litoral oeste, ainda há vestígios da cultura indígena, a partir das redes de travessa, produzidas em retângulos vazados, com bilros, e que têm as varandas ornadas por belas flores de tenerife. Em Varjota, aldeia Tremembé de Itarema, Maria Edite Ferreira de Menezes ganhou o título de mestra da cultura, em 2005, pela confecção de tais rebuscadas peças. Igualmente rara é a rede totalmente em crochê produzida por Neucila Spinosa, de São Gonçalo do Amarante,
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na Região Metropolitana de Fortaleza. A artesã começou fazendo almofadas e colchas, depois se empolgou e passou a fazer redes. Devido às possibilidades do crochê, que não dependem de tear nem de outro artefato fixo, mas apenas de agulhas, as redes de dona Neucila costumam alcançar dimensões bem maiores do que as produzidas em outros materiais. Autointitulada de “capital das redes”, a cidade de Irauçuba, no Vale do Acaraú, também no Ceará, notabiliza-se pela produção de redes sol a sol, devidamente
bordadas e decoradas, com uma diferença: enquanto em Várzea Alegre os teares elétricos produzem o tecido, nesse município, eles já chegam prontos. Entre todas as redes hoje produzidas no Ceará, nenhuma encanta mais o visitante que aquelas bordadas em ponto estrela, frente e verso – belas, perfeitas e de confecção extremamente detalhada. Produzidas por 20 trabalhadoras rurais da Barra, em Aiuaba, essas redes são as mais disputadas pelos que apreciam peças de valor decorativo. DANIELE ROMANI
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USOS De malocas, porões, varandas e senzalas
A rede é um artefato criado pelos índios sulamericanos, mas que ganhou, em pouco tempo, espaço entre colonizadores e viajantes
A rede é um objeto 100% sul-
americano e sua descoberta mudou hábitos e costumes dos europeus que aqui chegaram. Foi vista pela primeira vez pelos portugueses no dia do descobrimento do Brasil e adotada, posteriormente, por mamelucos, bandeirantes, donos de engenhos, sertanejos e por viajantes que no Brasil colonial aportaram. Nas naus portuguesas, o uso de redes logo se tornou comum, como uma forma de economizar espaço. Pouco mais de um século depois da chegada dos lusos, era popular seu uso pelo lavrador e pelo missionário da Companhia de Jesus. “Depois da farinha de mandioca, foi o primeiro elemento de adaptação, de acomodação de conquista do português. Eram fios torcidos de algodão com algumas travessas que serviam de reforço e coesão”, registrou Câmara Cascudo, no livro A rede de dormir – uma pesquisa etnográfica.
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As índias, responsáveis pela confecção das redes, já em pequenos teares artesanais, apenas trançavam um retângulo com fios largos, o que as assemelhava às redes de pesca. As redes originais, portanto, não tinham o capricho que seria visto, décadas depois, com a chegada das portuguesas, que as adornariam e as embelezariam. “As redes de tecido compacto foram técnicas das mulheres portuguesas. A vinda de teares aperfeiçoou a rede, ampliando-a, enfeitando-a, dandolhe as franjas, varandas, tornando-a mais macia, confortável e ornamental”, escreveu o antropólogo potiguar. O viajante do Brasil holandês Johan Nieuhof informava que os brasileiros não possuíam muitos utensílios domésticos: “...seu cuidado maior é com a rede a que dão o nome de ini. Esta é fabricada de algodão, tecida em malha e tem, em geral, de seis a sete pés de comprimento e quatro de
largura. Quando vão dormir, amarram a rede a duas traves em suas tendas, ou em duas árvores, ao ar livre, a certa altura do chão, para evitar os animais daninhos e as exalações pestíferas da terra. Os tapuias denominados cariris fazem redes bem grandes de 12 a 14 pés. As portuguesas também fabricam lindas redes decoradas”. As mulheres e moças das aldeias indígenas aprenderam a tecer redes mais compactas com os jesuítas. “A rede de malha unida é presença de mãos portuguesas. Depois a técnica derramou-se por toda parte”, diz Câmara Cascudo. Armada na orgulhosa varanda da casa-grande, a rede representava o trono do senhor patriarcal, que do terraço supervisionava o seu mundo, povoado de escravos. “Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho se tornou uma vida de redes. Rede parada com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes e cortinas. Redes rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se para dar suas ordens ao negro, escrever suas cartas, jogar gamão com algum parente ou compadre”, escreveu Gilberto Freyre. Mas a rede não amoleceu a têmpera de muitos dos que dela se utilizavam como descanso. Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, dom Antônio Felipe Camarão, Henrique Dias saíram de redes para expulsar o holandês. Sabiam ter voz de comando, apesar de, como aristocratas, desprezarem os que usavam pés e mãos para o trabalho diário.
MIGRAÇÕES
Se, no Nordeste, ela disseminou-se, servindo de berço, leito, transporte e até mesmo de caixão, em outras localidades, adaptou-se de forma diferente. Nas regiões meridionais e centrais, foi adotada pelo colono, mameluco e curiboca, brasileiro dos seiscentos e dos setecentos. O bandeirante, em especial, também a tinha em estimação, pois ela lhe facilitava o transporte, a dormida e evitava os perigos que vinham do chão. Já na região Sul, nos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, não teve boa aceitação: lá, o frio não
13 TRONO MÓVEL No quadro Viagem ao Brasil, Debret registrou escravos transportando seus senhores
favorecia o embalo e, sim, a dormida fixa, perto do fogo, aquecida na esteira de couro de boi ou de outro animal. Fora do Brasil, a rede foi levada para a África pelo português, onde não vingou, uma vez que os africanos tinham o hábito de dormir em esteiras, peles de animais, estrados de madeiras com treliças, cobertos com couro. Os soberanos negros dormiam em estruturas de madeira cobertas com almofadas franjadas. Na senzala brasileira, era bem-vista pelo escravo. Aliás, era vista como um amansaescravo, pois este se orgulhava quando ganhava do dono uma rede avarandada, sinal de que era distinto dos demais. No Norte e Nordeste, portanto, fixou-se devido às temperaturas e às conveniências de seu uso. Em 1817, o historiador Von Martius elogiou a abundância de redes entre os paulistas e dizia que eram praticamente desconhecidas na Capitania das Minas Gerais. Na verdade, a rede migrou com o tupi-guarani, e há informações de que chegou ao Chaco, entre Paraguai e Bolívia, espalhando-se, tempos depois, para regiões das Américas onde não era muito conhecida, como o México. O que não quer dizer que não fosse amplamente conhecida na América caribenha e central. “A rede derramavase, do século 16 em diante, pelas grandes e pequenas Antilhas e do Panamá atual até a Guiana. E era rainha nas planícies e cordilheiras sul-americanas”, escreveu Câmara Cascudo. Como muitos outros artefatos que povoaram o cotidiano do Brasil colonial, também foram alvo de campanhas contrárias. Alguns médicos condenavam seu uso, recomendando que fossem trocadas pela higiene da cama. Houve um período em que foi considerada detestável, anticivilizada e feia, obrigando seus donos a esconderem-na das varandas quando chegavam visitas. Mas, diferentemente das gelosias e beirais, banidos no início do século 19, a rede resistiu a todos os ataques, porque já se impusera, insuperável, no cotidiano e no coração dos brasileiros. (D.R).
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NA ESCOLA Dentro do compasso
Após período de adaptação de três anos, implantação do ensino musical no currículo dos colégios pernambucanos segue diretrizes gerais da lei federal, mas requer melhor estrutura TEXTO Carlos Eduardo Amaral FOTOS Ricardo Moura
Publicada em 18 de agosto de 2008,
a Lei n° 11.769/08 estabeleceu que os sistemas de ensino teriam três anos letivos para se adaptarem às exigências da reintegração da música ao currículo escolar, no qual se deveria incorporar aos componentes curriculares de outras artes, tais quais dança, fotografia, artes visuais e teatro. O terceiro ano letivo mencionado no dispositivo legal, 2011, expirou e o ensino musical nas escolas, além de não ter sido plenamente efetivado, encontra obstáculos práticos para a sua expansão, embora venha solucionando os questionamentos iniciais com que se deparou. Segundo o levantamento feito pelo projeto A música na escola, estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo adequaram-se à lei, ao passo que Roraima e Rondônia, por exemplo, não se manifestaram a respeito. Essa mesma desigualdade de resultados pode ser verificada dentro de cada estado, posto que as redes municipais de ensino e as escolas particulares seguem sua própria dinâmica pedagógica.
A fim de fazer uma comparação entre essas dinâmicas, a Continente visitou três instituições na Região Metropolitana do Recife: a Escola Municipal Antônio Januário, em Jaboatão dos Guararapes, cidade que implantou o ensino musical em 2011; o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco, de responsabilidade federal; e o Instituto Capibaribe, colégio particular situado no Recife. O Instituto Capibaribe e o Colégio de Aplicação incluem música no currículo há algumas décadas e foram consultados em função da experiência com a disciplina.
NOVOS DOCENTES
Jaboatão dos Guararapes abriu concurso público em 2010 para a contratação de professores de várias matérias – entre eles, 10 docentes de música em nível II (do 6º ao 9º ano) – e promoveu a organização curricular da disciplina a partir das sugestões dos profissionais aprovados e da experiência de escolas públicas e particulares. “Vimos o que podíamos fazer unindo o aspecto legal ao pedagógico, buscando, claro, subsídio nos documentos oficiais e
contemplando as artes como um todo”, explica Edilene Soares, secretáriaexecutiva municipal de Educação. Desde então, a secretaria realiza três encontros mensais entre os professores de música da rede, para atualização de conteúdos e convergência de ações. Como cada docente trabalha determinados componentes ou habilidades musicais, de acordo com sua própria formação acadêmica ou profissional anterior, as reuniões servem também como um relatório atualizado das atividades didáticas em andamento. Estas podem abranger, entre outras, prática instrumental e/ou vocal, composição de caráter improvisado e construção de instrumentos artesanais. O currículo de artes das escolas de Jaboatão dos Guararapes observa ainda o disposto nas Leis 10.639/03 e 11.645/08. Ele prescreve o estudo de influências africanas na cultura e história brasileiras, e contempla o que denomina de “vivência de estilos”, que envolve gêneros escolhidos dentre quatro universos pré-estabelecidos: dois ritmos regionais pernambucanos, dois ritmos populares de influência
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estrangeira (como o funk, o rap e a música folk), dois de nível nacional (samba, choro, cantigas de roda, axé e folclóricos de matriz africana), e música erudita, além dos elementos básicos de linguagem musical. A carga horária de artes na rede municipal de Jaboatão dos Guararapes é de uma hora-aula por semana – sendo a aula de música revezada, a cada semana, com a de outras artes (dança, artes cênicas e artes visuais). Já o salário-base dos professores de nível II, segundo informado pela Secretaria Executiva de Educação, remunera a hora-aula em R$ 8,13, ou seja, uma remuneração de R$ 1.626 por um regime de 200 horas, alcançando R$ 2.113,80 com as gratificações.
Escolas municipais de Jaboatão pretendem introduzir todos os módulos do currículo de musicalização, nos próximos anos Na Escola Municipal Antônio Januário, no Bairro de Massangana, em Jaboatão dos Guararapes, o professor Eduardo Simões, licenciado em música pela UFPE, dá aulas de musicalização para 20 turmas do 1º ao 9º ano, contando com as de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Ele também coordena quatro turmas extracurriculares de canto e
violão e conta que, como começou a lecionar em 2011, está trabalhando o primeiro módulo de musicalização com todas as séries, para, nos próximos anos, introduzir os demais oito, já que terá alunos mais habilitados. Nesses módulos avançados, o conteúdo abarca: contribuição de recursos tecnológicos, notação não convencional, percepção musical crítica e teorias estéticas. Alice do Monte, aluna do professor Eduardo desde abril do ano passado, participa das aulas extracurriculares e possui outros três irmãos na escola, que só assistem às aulas de musicalização. “Como aqui é meu último ano, estou no 9º ano, penso em estudar música em outro lugar”, relata. Jaboatão dos Guararapes não conta com
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conservatório público, mas já considera a possibilidade de abrir um, pois, atualmente, os alunos mais destacados são enviados para o Conservatório Sol Maior, instituição particular com a qual o município tem convênio. Segundo a secretária Edilene Soares, 18 escolas de Jaboatão dos Guararapes possuem fanfarras, formadas com o incentivo do Programa Mais Educação, do Ministério da Educação. Ela acrescenta que a coordenação de cultura municipal provê a manutenção dos instrumentos e o salário dos monitores. No entanto, problemas de infraestrutura comuns à grande parte das escolas públicas, tal qual a Antônio Januário, demandam mais atenção, como a ausência de salas adequadas para atividades musicais.
APLICAÇÃO
Único espaço específico nas escolas que visitamos, a sala de música do Colégio de Aplicação da UFPE possui revestimento acústico, mesa de som, microfones, CD player, computador e área para acondicionamento de instrumentos, que incluem violões, teclado, alfaias, caixas e agbês de maracatu, cavaquinhos para projetos sazonais, berimbaus e bateria. Ainda assim a manutenção e modernização do local vêm ocorrendo aos poucos, à medida que recursos vão sendo liberados. Rodrigo Luna, professor efetivo no Aplicação desde 2009, observa que a carga horária de artes na escola é de quatro horas por semana, duas de música e duas de outras artes: “São
1 ESCOLA ANTÔNIO JANUÁRIO Alunos do bairro de Massangana ensaiam em aula extracurricular 2 COLÉGIO DE APLICAÇÃO Escola da UFPE possui sala especial para aulas de música
30 alunos por turma: colocamos 15 na aula de música e 15 na de artes e os trocamos no dia seguinte, pois seria difícil trabalhar com mais de 20 alunos dando-se a devida atenção a todos”. Ele ressalta que, pela Lei de Diretrizes e Bases em vigor, a de número 9.394/96, só podem ensinar no nível fundamental os graduados
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com licenciatura, o que deixa de fora bacharéis em instrumento e canto. No Aplicação, fundado em 1958, é requerida ao menos a especialização, já que se trata de uma entidade vinculada a uma universidade federal. Para tanto, Rodrigo licenciouse em Música pela UFPE, possui especialização em Informática Aplicada à Educação e mestrado em Computação Musical. Segundo pesquisa que vem realizando, o ensino musical no colégio remonta aos anos 1970 e teve entre seus docentes o pianista Edson Bandeira de Mello, o compositor Nelson Almeida e a pesquisadora de música folclórica Cirineia Amaral. Para o professor, hoje existe uma proposta de educação musical em sentido específico, isto é, de uso efetivo da música na formação da personalidade. “Antes, havia o ensino de canto coral, hoje é educação musical plena, atuando nos planos cognitivo, psicomotor, social, de memória, raciocínio e senso crítico. O Aplicação praticamente não se adaptou à Lei n° 11.769/08 porque a gente já a praticava”, resume.
“A intenção do ensino musical nas escolas não é formar músicos: é formar alguém mais completo” Profa. Ledjane Sara As discussões sobre a contribuição da música na educação e na formação da personalidade vêm desde a Antiguidade, notadamente com os gregos e os chineses. Na China, a música tornouse matéria obrigatória em todo o país desde o final da Revolução Cultural e são conhecidas as estatísticas que apontam ao menos 15 milhões de alunos de piano após o fenômeno Lang Lang. No entanto, esses números não devem ser interpretados de forma absoluta, pois a quantidade de jovens que seguem outras profissões, quando adultos, chega a ser muito maior – inclusive porque o mercado não teria como absorver tamanha oferta de músicos. A professora Ledjane Sara, também do Colégio de Aplicação, esclarece:
“A intenção do ensino musical nas escolas não é formar músicos, mas cidadãos cuja leitura do mundo possa se dar também através da linguagem musical, ou seja, é formar alguém mais completo; não somente um ser pensante, mas que tem sentido e pode, através da música, chegar à transcendência mais facilmente”. Ela ainda comenta que há uma distorção quanto à forma com que os alunos e docentes de música são vistos por gestores de ensino: “Nas escolas em geral, pega-se o jovem para tocar um instrumento, como que para prestar serviço, e participar de atividades públicas. Mesmo os cursos de licenciatura em Música ainda não preparam para ensinar, mas para tocar”. Mateus Borba e Gabriel Magalhães, ambos com 12 anos de idade e alunos da professora Ledjane no 7º ano, comprovam que o ensino de música não implica, necessariamente, na respectiva profissionalização dos estudantes. Mateus diz que sua matéria preferida é matemática: “Sempre gostei de matemática e minha futura profissão, engenheiro mecatrônico, tem a ver com ela”. Porém, deixa claro:
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3 DESDE 1956 Instituto Capibaribe oferece aulas de música há quase 60 anos 4 D. HELDER CÂMARA Monica Antunes e Vera Lucia Andersen lembram relação do clérigo com a escola
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“Gosto de música: antes, no meu outro colégio, não tinha e aqui tem”. Gabriel fala com a mesma desenvoltura: “Gosto muito de ciências. Quero ser neurologista. Mas, ao contrário das outras pessoas, acho que música não é para relaxar, é pra fazer pensar”.
EDUCAÇÃO INTEGRAL
Algumas escolas particulares do Recife, ativas há tanto tempo quanto o Colégio de Aplicação, adotavam a educação musical no currículo bem antes da aprovação da Lei n° 11.769/08. Fundado por Paulo Freire e Raquel Crasto, em 1956, o Instituto Capibaribe, localizado no Bairro das Graças, já atentava para o papel da música como componente de um plano de educação maior para crianças e jovens. “A ideia dos fundadores da escola era proporcionar educação integral, de modo que a linguagem e a comunicação fossem tratadas em todos os seus vieses para enriquecer as possibilidades de expressão e interpretação”, reporta a diretora Monica Antunes. Os cadernos de anotações da professora Raquel Crasto, cujos
trechos principais foram publicados em livro, trazem observações e orientações pedagógicas que resumem o pensamento construtivista praticado na instituição, elogiado por nomes como D. Helder Câmara e o padre e poeta Daniel Lima: “A escola educa (…) quando a criança canaliza positivamente as energias. (…) Criança educada, portanto, não é (…) criança calada, parada, ‘boazinha’...”. As fotos de D. Helder Câmara no Instituto Capibaribe revelam a relação próxima entre o clérigo e a escola, reforçada por um depoimento transcrito no tomo I, volume III, (p. 213) do livro Dom Helder Camara: Circulares pós-conciliares, editado pela Cepe: “O general Murici foi assistir a uma palestra que eu fiz, numa Semana de Estudos, promovida pelo Instituto Capibaribe (uma escola primária de invulgar poder de irradiação cultural)”. A menção ao general Antônio Carlos Murici situa o depoimento à época dos “anos de chumbo”. Vera Lucia Anderson, diretoraadjunta, explica que as aulas de Artes e Música, nos 6º e 7º anos, são de
uma hora por semana, alternandose as turmas a cada semestre; nos 8º e 9º anos, os alunos decidem-se por uma das duas aulas. Vera é irmã do artista plástico Romero de Andrade Lima, ex-aluno e criador do logotipo original da escola. Ela conta que, entre outros alunos de destaque do Instituto Capibaribe, está Sidor Hulak, gestorgeral do Conservatório Pernambucano de Música, entidade que hoje capacita os professores de artes da rede estadual para ministrar aulas de música. Essa iniciativa de capacitação, considerando-se a quantidade não aproveitada ainda de licenciados em Música em Pernambuco, gera um questionamento quanto ao domínio de teoria musical específico necessário, por parte dos professores de artes em geral, para a aplicação de conteúdos básicos, tais quais solfejo, percepção rítmica e leitura de partituras à primeira vista. No entanto, tal iniciativa seria aceitável a médio prazo, enquanto todas as redes de ensino não possuírem docentes de música suficientes para concretizar essa grande missão pedagógica disposta em forma de lei.
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BANQUETE O poder manifestado entre comes e bebes
Desde que a humanidade passou a sentar-se à mesa, as refeições nababescas em sociedade são utilizadas para respaldar os rumos da política TEXTO Bruno Albertim
Ainda na transição da Antiguidade para a Baixa Idade Média, adotamos um gesto que ajudaria a nos definir como seres sociais. Ao abandonar a etiqueta dos antigos jantares grecoromanos, a humanidade passou a sentar-se para fazer suas refeições em sociedade. Não mais se refestelava, em vinhos e uvas, deitada – como nas imagens cristalizadas em pinturas e filmes em que as decisões e os desmandos dos deuses eram tratados nos banquetes clássicos. Ganhava ainda mais força, ali, a etiqueta da mesa para respaldar os rumos do poder. “A mesa seria uma redução da vida política nas cidades”, resume o historiador francês Jean-Marc Albert, autor de Às mesas do poder, um amplo ensaio histórico sobre as relações entre os dois principais substantivos do título. Desde as antigas Grécia e Roma, é longa, e permanentemente renovada, a relação entre política e comensalidade.
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Dos antigos festins medievais aos brindes revolucionários de Robespierre e companhia. Dos banquetes republicanos de Estado aos jantares obscuros de conchavos e acordos pouco difundidos para além da mesa. Sem esquecer a recente Primavera Árabe: foi nos cafés – onde a bebida quente e a possibilidade de acesso à internet se misturam – que alguns dos principais articuladores deram estrutura à série de levantes contra as velhas ditaduras da região. “A passagem da posição deitada para a sentada marca uma ruptura, mais ou menos clara, entre o tempo do banquete grego e o do festim medieval”, diz JeanMarc Albert, afirmando o caráter político que as refeições coletivas potencializam. “Os príncipes, leigos e eclesiásticos podem organizar até 150 banquetes por ano, tão numerosas são as ocasiões: casamento, acordo, festas litúrgicas, vitória militar, nascimento e partidas para a guerra ou a cruzada, coroamento
de um rei ou de um papa. Pelo luxo e pela abundância exibidos, o tempo do banquete rompe simbolicamente com o cotidiano”, diz ele, sobre as grandes comilanças e bebedeiras inauguradas pelos tempos medievais. Esses eventos apenas se renovariam com o tempo. A eleição dos cafés como arena para a construção do discurso subversivo não é privilégio do mundo árabe contemporâneo. No século 18, salões e cafés públicos se instituem como espaço privilegiado para a mistura da ingestão de alimentos com a extroversão contestatória. “Os cafés aparecem, por seu caráter de novidade, como locais de fluência da palavra: assim, Voltaire, Marmontel, Rosseau e, mais tarde, Danton e Desmoulins, são assíduos frequentadores do Procope, aberto em 1686”, informa o historiador. No Brasil independentista, conspiradores como Tiradentes trocavam o vinho luso pela cachaça pátria. Em Açúcar, Gilberto Freyre registra que mesmo o substrato branco da canade- açúcar que pavimentou o projeto colonial português no Brasil e gerou a sucarocracia, uma sociedade de poder diretamente atrelado à capacidade de produzir e consumir açúcar, serviu de respaldo simbólico para a construção de discursos políticos de oposição. Já usados para homenagear clãs familiares de forte atuação político-social no Brasil das casas-grandes e senzalas, bolos foram também convertidos em símbolos comestíveis para homenagear movimentos sociais. Aqueles nomeados
1 GUARDA CIVIL DE SÃO JORGE Banquete da tropa foi retratado pelo pintor flamengo Frans Hals 2 FRANS FLORIS O também artista flamengo concebeu Banquete dos deuses, para os hábitos frugais da Antiguidade
de 13 de Maio, Cabano, Guararapes, Legalista e Republicano são exemplos.
COMIDA É MARKETING
Dentre os recursos de approach do político contemporâneo com o eleitorado, não podemos esquecer que a alimentação tem espaço de honra. “A regra da arte política é fingir ser do povo”, lembra o historiador Jean-Marc Albert. “Evidentemente, conforme os temperamentos, isso é espontâneo ou resulta de um verdadeiro trabalho de composição”, diz ele, lembrando que, na França, por exemplo, Jacques Chirac perdeu muito em popularidade após ter sido associado a um “prato de rico”. Peça de luxo da nouvelle cuisine francesa, movimento gastronômico de deleite para os moradores de cima da pirâmide social (e de um certo horror para os alocados nos andares debaixo), a sopa de trufas com foie gras, criada por Paul Bocuse, e de que tanto Chirac gostava, era evocada, vez por outra, para ilustrar sua pouca intimidade com o populacho. Albert defende a tese de que “a opinião pública parece principalmente evidenciar sua preferência por aqueles retratados como bons vivants, ou seja,
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cheios de vitalidade e em quem podemos confiar espontaneamente. Comer bem, inclusive em quantidade, ou fazer de conta que come bem, constitui uma das chaves”, diz ele. Regra inconteste do marketing político ou não, o procedimento pôde ser visto em episódios já antológicos da recente crônica política brasileira. Dono de um notório estômago sensível, o mesmo José Serra que demonstrou a resistência de uma bailarina de caixinha de música ao circular entre foliões do Galo da Madrugada não hesitou em comer buchada, quando visitou o município de Exu. Era o ano da graça de 2009. Enquanto Dilma se negava a falar sobre aborto e rezava com evangélicos, José
Serra cantava clássicos de Luiz Gonzaga na cidade onde o compositor nasceu, no sertão pernambucano. Como exercício para desmanchar sua imagem excessivamente sulista, não se fez de rogado diante das câmaras. Dono de uma sutil, mas calculada ostentação, mandou para dentro bons bocados da iguaria de origem europeia em que as tripas e demais pertences do bode são cozidos dentro do bucho do animal. Quem estava lá diz que sua expressão mudou também, sutil, mas tristemente, após a degustação. “Comer bode é uma questão de patriotismo”, disse, na época, o senador Jarbas Vasconcelos, um dos pilares da campanha derrotada de Serra no Nordeste. “Estes gestos artificiais podem não tirar votos, mas também não
dão”, afirmou, na época, o então diretor do Ibope, Carlos Augusto Montenegro.
REGRAS DO JOGO
Herdeiras históricas dos antigos festins medievais ou banquetes republicanos, as festas juninas que há pouco colocaram, como todos os anos, dissidentes e correligionários para mexer a mesma canjica, são ritos anuais obrigatórios. Neles, como em outros eventos, a comilança catalisa prestígios, intenções e planos políticos. Não por acaso, seja na capital Brasília ou nas cidade de base, festas juninas agregam a comunidade de apoio a uma série de políticos no Nordeste. Os tradicionais banquetes são igualmente procurados por congregarem
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3 CORTEJO INGLÊS Reuniões comensais também se prestaram ao entrelaçamento de famílias nobres e burguesas 4 PAUL VERLAINE No Café Procope, poeta francês debatia ideias com seus pares 5 GEORGE IV Opulência na coroação do monarca inglês pretendia afirmar sua autoridade
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a comunidade militante e oferecerem uma nova ocasião ao orador principal de mostrar suas qualidades de comilão, quando não de gastrônomo”, analisa o historiador Albert. “A partilha do alimento cria, determina e reforça a coesão, a confiança e a convivência em torno de um grupo, como testemunham as refeições do adubamento. O dever da hospitalidade é a primeira das obrigações comensais que acompanham toda a história da mesa”, diz o estudioso, lembrando a importância simbólica dos gestos: “A exteriorização da etiqueta encontra a interiorização da ética”. Simulacro na vida política que é, a mesa reproduz as liturgias do poder. Nos anos 1930, os banquetes do Kremlin eram todos montados
Os jantares contemporâneos do poder não deixam de evocar o espírito dos grandes banquetes clássicos em direção à figura de Stálin. Após brindes longos e teatralizados, cada um dos convivas tinha que se dirigir ao líder. Ao tocarem, obrigatoriamente, o próprio copo com o do líder, reforçavam, portanto, a simbologia sobre a centralidade da autoridade. A ostentação gastronômica é sempre evocada como metáfora do
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poder econômico de um país. Vivendo no exílio durante a ditadura militar, acompanhada do falecido líder comunista Diógenes Arruda, a artista plástica pernambucana Tereza Costa Rêgo teve a oportunidade de participar de um jantar de estado da China maoísta. “Era uma sequência interminável de pratos”, lembra a pintora, recebida pelo primeiro escalão de Mao TséTung. A artista teve que recorrer a uma diplomacia que nem suspeitava ter, para declinar o prato principal. “Depois de muitas cerimônias, eles serviram o prato. Na verdade, os miolos de um macaco semivivo. A cabeça do macaco, crânio aberto, estava presa por uma espécie de buraco numa mesa que funcionava como bandeja. Uma coisa que eles só serviam em ocasiões de muita pompa”, conta. Os jantares contemporâneos do poder não deixam de evocar o espírito dos grandes banquetes clássicos. Com a ascensão das monarquias absolutistas, a mesa ganhou relevo nos acordos entre economias grandemente baseadas na troca – ou imposição – de favores. No século 17, a mesa do príncipe, mais do que nunca, aparece como local de dominação e de exclusão, ao mesmo tempo em que elabora uma nova ordem política. “Menos estudada que o aposento do rei, a mesa também é local de expressão da autoridade e aparece, com efeito, como metonímia do reino”, diznos Albert. Nesse momento, a França, ao abandonar a predominância da escola italiana nos cardápios palacianos, em prol da cozinha local, realizou um movimento de afirmação nacional. No campo das identidades, a comida pode ser ferramenta sociológica.
IDEOLOGIA COMESTÍVEL
“Durante a Guerra Fria, a comida assumiu um novo papel como
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6 COCA-COLA Refrigerante sintetiza valores e ideais norteamericanos
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arma ideológica entre capitalismo e comunismo e, em última instância, ajudou a determinar o resultado do conflito. Nos tempos modernos, ela tornou-se campo de batalha para outras questões, como comércio, desenvolvimento e globalização”, diz o jornalista inglês Tom Standage, editor de negócios e tecnologia da The Economist e autor de Uma história comestível da humanidade (Zahar), um levantamento sobre como a alimentação não apenas influenciou, mas determinou a história e os endereços do poder. “A ascensão dos Estados Unidos e a globalização da guerra, da política, do comércio e das comunicações durante o século 20 são espelhadas pela ascensão da Coca-Cola, a marca mundial mais valiosa e mais amplamente reconhecida, universalmente considerada a personificação dos EUA e de seus valores. Para aqueles que aprovam os Estados Unidos, significa liberdade econômica e política de escolha, consumismo e democracia, o sonho norte-americano. Para os que os desaprovam, representa o capitalismo global cruel, a hegemonia das corporações e marcas globais, e
“O açúcar e a batata, tanto quanto a máquina a vapor, sustentaram a Revolução Industrial” Tom Standage a diluição das culturas e dos valores locais, na direção de uma mediocridade homogeneizada e americanizada”, discorre o mesmo autor em outro livro, A história do mundo em seis copos (Zahar), um ensaio sobre a preponderância de um tipo de bebida em cada ciclo histórico. “Assim como a história do Império Britânico pode ser vista numa xícara de chá, a ascensão dos Estados Unidos à superioridade global também tem seu paralelo na história da Coca-Cola – aquela bebida marrom, doce e efervescente.” Séculos antes, sem a produtividade e concentração calórica da batata, o precioso tubérculo descoberto na América, a Inglaterra não teria conseguido liberar mão de obra da
atividade agrícola para empregá-la no esforço que fez do país a primeira grande nação industrial do mundo. “Enquanto nações europeias competiam para construir impérios globais, os alimentos ajudaram a promover a próxima grande transformação na história humana: um surto de desenvolvimento econômico através da industrialização. O açúcar e a batata, tanto quanto a máquina a vapor, sustentaram a Revolução Industrial”, diz o autor, em História comestível da humanidade. Mesmo o recente movimento de reconhecer como patrimônio cultural receitas e ingredientes regionais pode estar a serviço de determinadas ideologias. “A eleição de alguns bens como patrimônios pode sempre privilegiar uma determinada facção de produtores em detrimento de outras”, lembrou, de passagem pelo Brasil, o sociólogo italiano Massimo Montanari, autor de clássicos como Comida e cultura (Ed. Senac). “Uma tradição, no fundo, é uma inovação bem-sucedida”, reflete. Só os tolos, realmente, poderão acreditar que panelas e pratos contém apenas ingredientes e receitas.
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Leitura CRÔNICA O lado B de Ivan Lessa
Durante 40 anos, na Inglaterra, o escritor brasileiro falou de cultura, com elegância e inteligência, nas transmissões da BBC TEXTO Marcelo Abreu
Conhecido por sua
participação iconoclasta no semanário O Pasquim, dos anos 1970, e suas colaborações para a imprensa, o escritor Ivan Lessa tinha um outro lado menos badalado, mas que também atraía uma enorme quantidade de admiradores em todo o Brasil. Era sua atuação como colaborador do chamado Serviço Brasileiro da BBC de Londres, a transmissão em ondas curtas que a emissora britânica realizou, em português, durante quase sete décadas. Lessa participou dos programas entre 1968 e 1972, e entre 1978 e 2005, quando as transmissões se encerraram. Sobretudo no segundo período, quem sintonizasse
um rádio de ondas curtas no Brasil poderia ouvir, no começo da noite, a voz de Ivan Lessa falando de livros, ideias e jazz. O lendário cronista morreu no mês de junho, em Londres, aos 77 anos de idade. A voz de Ivan era grave, aveludada, lenta. Dava a impressão de ser uma voz curtida em muitas noites insones de leitura ou de boemia ao som de jazz, com muita bebida e cigarros. Tirando a bebida, era exatamente esse o seu universo: livros, cinema, jazz, standards da música norte-americana, sambas e marchinhas do passado. Ivan exalava a boemia carioca dos anos 195060. Mas preferiu se isolar
totalmente do Brasil atual e viver numa Londres fria e impessoal, pegando metrô para ir ao trabalho e fugindo de fãs brasileiros que por acaso o procurassem. Em 34 anos de exílio voluntário, só veio ao Brasil uma vez, em 2006, incumbido de fazer um texto para a revista Piauí. Detestou o que viu. Durante anos, sua rotina em Londres era trabalhar de manhã na BBC e, à tarde, fazer o circuito de livrarias, lojas de disco e cinemas. Nas décadas de 1980 e 1990, seu trabalho destacava-se principalmente no programa Livros e Autores, que apresentava às sextasfeiras. A vinheta de abertura soava com Three to get ready, de Dave Brubeck, e aí entrava a voz de Ivan falando lentamente de suas leituras recentes. Gravava também Inglês pelo rádio, aulas que iam ao ar diariamente com sua participação de luxo. Sua presença era ainda mais frequente no Diário de Londres, revista de cultura transmitida de segunda a sexta, na qual dava o seu pitaco bem-informado, crítico e com uma ponta de bom humor sobre algum aspecto da vida cultural inglesa.
O maior volume de sua produção foi mesmo em rádio, na era pré-internet, e quem ouviu, ouviu. Grande parte do material se dissolveu no éter depois de ter cruzado o Atlântico e encantado, do lado de cá, gerações de ouvintes brasileiros. Pouca coisa ficou gravada. Sobraram apenas partes dos scripts com as crônicas. No ar, Ivan passava uma impressão simpática de um intelectual crítico, mas ponderado. Pessoalmente, no entanto, ele cultivava o perfil de um cético radical. Reclamava muito e irritavase facilmente. Muitas vezes, dava a sensação de um homem amargo, prisioneiro da caricatura que fez de si mesmo. Era especialmente intolerante com qualquer comentário elogioso em relação à sua pessoa. Certa vez, uma das muitas cartas que chegavam dos ouvintes terminava afirmando que o remetente sonhava em, um dia, poder visitar Londres, onde passaria na BBC para dar “um abraço bem brasileiro no nosso querido Ivan Lessa”. Informado do conteúdo da carta do admirador, Ivan disparou: “Se ele aparecer, me informe para eu poder fugir. Eu não abraço nem minha filha, quanto mais um desconhecido”. Sua participação no rádio estava a anos-luz do padrão radiofônico estabelecido no Brasil nas últimas décadas. Ouvir Ivan Lessa no rádio era um privilégio que passou despercebido por gerações de intelectuais que o cultuavam no Pasquim, mas não tinham o hábito de ouvir as ondas curtas. Ainda bem que, através da BBC, sua verve poderosa chegava não somente às capitais, mas também ao Brasil profundo.
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ACERVO De volta às prateleiras
Títulos raros e fora de catálogo são relançados pela Cepe, da poesia à prosa de caráter ensaístico, com enfoque na produção pernambucana TEXTO André Valença
Leitura “Efetivamente, de todas as entidades que atuam hoje no Recife nenhuma é mais considerável, mais poderosa, mais cercada de prestígio, que o automóvel.” Apesar de parecer refletir sobre a situação atual da mobilidade do Recife, a citação de Antônio José de Melo e Sousa trata de uma questão bem datada, inserida num registro memorial do Recife dos anos 1940. Ainda assim evidencia essa tendência idiossincrática da cidade com a falta de planejamento urbano e o fascínio pelo automotor, atualmente bastante discutida. Mas, a propósito, quem é esse Antônio José? Nos autos da política brasileira, você o encontrará como senador de linha conservadora, ou ainda como duas vezes governador do Rio Grande do Norte. No título Dois Recifes, a ser publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), ele aparece como cronista, usando o pseudônimo de Polycarpo Feitosa. A obra de Melo/Feitosa é uma das 10 que a Cepe publica no início do segundo semestre e integra a coleção Acervo Pernambuco. O intuito dessa coleção é resgatar livros raros, ou fora de catálogo, que sejam importantes tanto para a cultura de Pernambuco
quanto do Nordeste. Não há restrição de gêneros para os escritos, podendo ir de ensaios à história, de crônicas a poesias, de geografia a teorias do teatro. A temática se divide de acordo com as classificações Letra Pernambucana (no que concerne à literatura), Terra Pernambucana (história, geografia, antropologia, sociologia), Arte Pernambucana (artes plásticas) e Palco Pernambucano (teatro). Dos autores que estão sendo republicados, o único ainda vivo é o artista plástico José Cláudio, que reúne num só volume três livros: Memória do Atelier Coletivo, Artistas de Pernambuco e Tratos da arte de Pernambuco, editados separadamente nas décadas de 1970 e 1980. As obras traçam um panorama detalhado do movimento da arte moderna pernambucana. “Apesar de Pernambuco ser um estado que tem uma grande tradição de artes plásticas, não possui uma massa crítica à altura. Não há aqui livros de estudos teóricos nem de história suficientes a respeito da produção local”, comenta Marco Polo, responsável pela produção editorial do projeto. O registro do Atelier Coletivo (que funcionou de fevereiro de 1952 a
outubro de 1957) é relevante, nesse sentido, porque é praticamente o único sobre uma iniciativa que impulsionou artistas pertencentes ao cânone pernambucano, como o seu fundador Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Guita Charifker e o próprio José Cláudio. “Eu fui fazendo o que encontrava, não tinha pretensão nenhuma quando escrevi tudo isso”, explica este pintor. “Fiquei admirado como atribuíram importância ao ensaio, provavelmente dada à carência de textos sobre a arte de Pernambuco”, reflete. O Artistas de Pernambuco reúne uma série de depoimentos de pintores, desenhistas e escultores que marcaram o painel das artes plásticas no estado ao longo das últimas décadas. Para José Cláudio, os registros servem como “exposição escrita”. “Fiz tudo praticamente sozinho, não tinha gente para escrever dados biográficos dos artistas. A gente achava um quadro e ninguém sabia direito de nada. Comecei a compilar. É como se fosse um álbum desses artistas.” Os outros títulos a serem lançados pela Acervo Pernambuco são Um sertanejo e o sertão, Moxotó brabo e Três ribeiras,
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os três assinados por Ulysses Lins de Albuquerque, que fazem um levantamento antropológico do interior do Nordeste nos anos 1930. São memórias, experiências que ele ouviu dos tipos sertanejos (coronéis, cangaceiros...). Muitas vezes se assemelham a “causos”, mas trazem também a reflexão desses personagens e acabam ganhando um caráter mais científico que literário. O selo Terra Pernambucana reúne ainda A Guerra dos Mascates como afirmação nacionalista, de Mário Melo, sobre o conflito entre Recife e Olinda, no início do século 18, e Paisagens do Nordeste em Pernambuco e Paraíba, de Mário Lacerda de Melo, que analisa aspectos geológicos da região. Em Letra Pernambucana, são lançados o citado Dois Recifes, de Polycarpo Feitosa, e um volume com três livros do poeta AustroCosta: Mulheres e rosas, Vida e sonho e De monóculo. O selo Palco Pernambucano reedita A personagem dramática, de Rubem Rocha Filho, um estudo de como se elaborou a personagem dramática, desde as tragédias gregas até os folguedos populares de agora; e Por um teatro do povo e da terra – Hermilo Borba Filho e o Teatro do Estudante de Pernambuco, de Luiz Maurício Britto Carvalheira, sobre o teatrólogo pernambucano e o Teatro do Estudante, precursor do Teatro Popular do Nordeste. Especialistas de cada área foram escolhidos para escrever um prefácio recontextualizador de cada livro, revelando a pertinência de seu relançamento. O projeto gráfico foi elaborado pela designer Moema Cavalcanti e coordenado por Luiz Arrais. O cuidado de trabalhar com textos raros e antigos é imposto desde os processos burocráticos referentes aos direitos autorais, passando pela revisão, até a impressão e distribuição dos livros. “A Acervo já vem sendo produzida há uns dois anos. Essa coleção tem sido vista com especial cuidado. A transposição da ortografia antiga, muitas vezes com termos arcaicos, para a ortografia atual, é feita com o máximo de atenção. Como aliás é nossa meta em qualquer trabalho feito aqui”, destaca o produtor dos livros.
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ATUALIZAÇÃO Obras que instigam um reencontro
ILUSTRAÇÃO: PEDRO ZENIVAL
TEXTO Marco Polo Guimarães
Leitura A Coleção Acervo Pernambuco ganhou corpo quando se constatou que diversas obras de alto relevo para a cultura do estado achavam-se esgotadas, fora de catálogo ou transformadas em raridades, só encontráveis em arquivos públicos ou em poucas bibliotecas particulares. Eram obras que cobriam diversas áreas, como literatura, teatro, artes plásticas, história, sociologia, antropologia, geografia, música etc., e que mereciam estar ao alcance dos leitores especializados, fossem estudiosos ou pesquisadores, bem como ao alcance do público em geral, interessado em conhecer o passado de Pernambuco para melhor entender seu presente. A partir da constatação dessa realidade, foi solicitado ao Conselho Editorial da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), formado por professores universitários, jornalistas, arquitetos, escritores e pesquisadores reconhecidamente categorizados, que formulassem uma lista de prioridades para que fosse iniciada a coleção. De uma lista inicial de 100 títulos, foram escolhidos 10, para dar início à edição.
Além da atualização ortográfica, ficou patente que seria também necessário contratar um especialista de cada área, a fim de que pudesse fazer uma contextualização da obra, um perfil biográfico do autor, e uma comprovação da pertinência de sua reedição. Uma identidade gráfica, de capa e miolo, atraente e funcional, também foi encomendada a uma profissional competente, estando assim concluído o projeto editorial da coleção. Para viabilizar as publicações, estabeleceu-se contato com os eventuais herdeiros dos autores, tendo em vista que a maioria é falecida. À alegria e orgulho desses herdeiros juntou-se uma imensa boa vontade de cooperar no trabalho de trazer de volta essas obras, o que facilitou bastante todo o processo. Agora, os 10 primeiros livros da Coleção Acervo Pernambuco chegam às mãos de todos, para que se comprove sua importância. E já se dá prosseguimento a uma nova listagem de títulos que enriqueçam esse acervo, que não é mais do que o acervo da cultura pernambucana.
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INDICAÇÕES ROMANCE
MARCIA TIBURI Era meu esse rosto Record
James Joyce abriu espaço para que muitos Ulisses prosaicos emergissem na literatura moderna. No romance de Marcia Tiburi, seu Ulisses faz um retorno sentimental às origens com uma máquina fotográfica para registrar sua peregrinação pela turística V, na Itália, numa busca que explique o mosaico do seu núcleo familiar.
ENSAIO
PATRICK HOWLETTMARTIN O Brasil do Nordeste Topbooks
O Nordeste brasileiro, para o ex-cônsul da França no Recife, Patrick Howlett-Martin, é um verdadeiro país - três, se contarmos quantas vezes o território francês cabe na região. Desse ponto, o autor parte para um estudo sobre expressões culturais e problemas socioeconômicos nordestinos.
Graciliano
A CULTURA ALAGOANA Certa feita, em meados de 2011, quando em visita ao Recife, a jornalista Janayna Ávila evidenciava seu entusiasmo com o trabalho que vinha empreendendo na revista Graciliano, publicada pela Imprensa Oficial de Alagoas, e que passava, então, por um reposicionamento gráfico e editorial. Não era para menos. Com uma equipe reduzida e poucos recursos, Ávila e sua equipe vêm realizando um trabalho sério, numa publicação temática, de distribuição bimestral. O número 13, por exemplo (março/abril), trata de um assunto agudo para a cultura local e de pouca repercussão no contexto nacional: a Quebra de Xangô, ocorrido em 1912 e marcado pela invasão e destruição de terreiros de matriz africana. O problema da revista é comum às publicações regionais, a parca distribuição. Contatos pelo 0800.095.8355.
Jornalismo
CRÔNICA
Por que uma instituição de ensino voltada para propaganda e marketing investiria na edição de uma revista sobre jornalismo? A resposta é simples: porque ela passa a oferecer um curso nessa área. Esse é o motivo da associação entre a ESPM e a Universidade de Columbia, através da qual chega ao Brasil a trimestral Revista de Jornalismo ESPM, uma versão nacional da Columbia Journalism Rewiew. Breve, com apenas 50 páginas, esse primeiro número da publicação ressalta suas intenções de análise crítica ao fazer jornalístico, abordando assuntos como o distanciamento da atual cobertura econômica, a distinção entre o trabalho na imprensa e nas assessorias, e a discussão sobre a presença de negros nas redações.
Caleidoscópio
COM INTENÇÃO CRÍTICA
FLÁVIA DE GUSMÃO Sexo@cidade: 101 crônicas escolhidas A “cidade” é o Recife e o “sexo” são as narrativas da jornalista Flávia de Gusmão, que há 12 anos mantém a coluna Sexo@cidade no Jornal do Commercio, em que reflete sobre o universo feminino e as relações interpessoais. Dessa experiência, ela selecionou 101 daquelas que considera suas melhores crônicas.
ROMANCE
PEPETELA A sul. O sombreiro Leya
Em seu novo romance, o autor reconstrói a história de Manuel Cerveira Pereira, governador de Angola de 1615 a 1617. O contexto da narrativa é a fundação de Benguela, onde nasceu o escritor. Mais uma vez, a reflexão sobre a identidade nacional se destaca a partir de temas como a presença da Igreja Católica, as lutas pelo poder político e o tráfico negreiro.
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DOM DIEGO
MATÉRIA CORRIDA José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
Voltando a Velázquez (o primeiro artiguete saiu em nov./11, Sobre pintura). E a Ortega y Gasset. Porque: eu mesmo, que é que posso dizer, se a última vez que botei os olhos num Velázquez faz mais de trinta anos? É certo que as reproduções melhoraram muito e essas obras dos gênios da pintura ficaram mais acessíveis tanto no preço quanto na facilidade de encontrá-las. Mas falta o contato com o original: acho que muito do que ocorre com a pintura brasileira, não sei se para o bem ou para o mal, decorre da falta de contato com o original, principalmente no início, na juventude, como com a obra de Picasso, por exemplo, para falar somente de um. Antes de tudo, pela dimensão material dos quadros. A gente lê na legenda das fotos tantos por tantos centímetros e metros mas isso não substitui a visão direta da tela. Quem não se postou diante de um quadro
Obras dos gênios da pintura ficaram mais acessíveis na facilidade de encontrá-las, mas ainda falta o contato com o original como Las meninas (e não “las niñas”, porque Dom Diego era também da Silva e seus avós eram portugueses do Porto) não pode falar de Velázquez, repetindo eu aqui infelizmente o que me indignava quando, antes de ter ido à Europa, me tampavam a boca dizendo: “Você não pode falar de pintura: você nunca viu o Louvre, a Sistina”. Como se dissessem: “Recolha-se à sua insignificância”. Mas isso já passou. Em vez de entrar no mérito da questão, eu fui lá ver e devo isso ao grande amigo e grande
artista Arnaldo Pedroso d’Horta (São Paulo, 1914-1973). Numa época em que esse tipo de arte, pelo menos entre os da minha idade, na casa dos vinte, era desprezada. Meus colegas da Academia de Belas Artes de Roma, Accademia di Belle Arti di Roma, chamavam Miguel Ângelo de stronzo, isto é, pedaço de merda, “cagalhão” segundo o dicionário Parlagreco. Léger considerava a Renascença uma época de decadência da arte. Mas mesmo assim procurei ver o máximo durante um ano inteiro, do Dia de Finados, 02/ nov./1957, quando cheguei em Roma, a não sei que dia de novembro do 1958, quando saí de Madri e peguei o navio em Barcelona, o Conte Grande, tanto na ida, Santos-Nápoles, como na volta, Barcelona-Santos, para matar de inveja Arthur Carvalho que o contemplava entrando na baía em Salvador, uma das suas visões inesquecíveis: quem sabe uma dessas
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TIAGO BARROS
vezes eu não ia dentro? Procurei ver o máximo tanto na Itália como em outros países: nenhum museu, igreja, que tivesse esses monstros sagrados, estava livre de mim. O diabo é quem sabe o que eu queria dizer sobre Velázquez. Acho que era que ele deixava pedaços em branco na tela, pintava sumariamente sem preocupação de esconder a pincelada ou dar a ilusão de o objeto pintado ser o próprio como se encontra na natureza, permitindo que o espectador completasse com a imaginação; apenas dando a entender; acabando com “o bem-acabado que os imbecis admiram” como dizia Cézanne; jogando tinta aleatoriamente, o “acidente controlado”, para além
1 UM GRANDE ARTISTA Arnaldo Pedroso d’Horta, 1960, nanquim sobre madeira, 62x60cm
do impressionismo, digo eu, como na pintura zen, levado ao extremo por Jackson Pollock e os tachistas, de modo que Ortega y Gasset se admira de ter, a sua pintura, sido aceita naquela época, na certa pelo respeito que a ele dedicavam o rei e o conde-duque Olivares, que era quem mandava na Espanha, de quem o Museu de Arte de São Paulo, MASP, possui um dos retratos pintados pelo artista; tendo Velázquez residido com a família no palácio real a vida inteirinha desde os vinte anos e falecido lá; sendo, como disse um escritor da época íntimo da realeza, o único lugar com vida em todo o palácio, o atelier do pintor. Tem também outra implicação: a liberdade total de o artista fazer o que
bem entendesse sem se preocupar com o julgamento do público ou seja lá de quem for, sem precisar dar satisfações a ninguém; ou a serventia que a arte pudesse ter a não ser servirse a si própria, livre de engajamento de qualquer espécie, à discrição do próprio pintor; enfim o primeiro pintor profissional, embora ele Velázquez nunca tenha aceitado essa pecha de “pintor profissional”, considerandose apenas um nobre, e como tal avesso e acima de qualquer profissão ou trabalho, dada a sua ascendência aristocrática portuguesa; o primeiro pintor profissional enfim, apesar de rejeitar o rótulo, a pôr em prática a utopia da ars gratia artis ou l’art pour l’art ou arte pela arte.
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KLIMT O pintor que amava as mulheres
Artista da Secessão vienense, nascido há 150 anos, conferiu aos seus temas – sobretudo ao retrato feminino – uma aura sensual e mítica TEXTO Olívia Mindêlo
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Durante parte da minha adolescência, dormi e acordei diversas vezes com Klimt. Toda vez que me deitava no quarto da minha mãe, perdia-me observando cada detalhe do quadro pendurado em cima da cama dela. Não era um exemplar original do pintor, obviamente, mas me impressionava mesmo assim. Não demorei muito para escolher aquela reprodução como minha imagem favorita de todos os dias. As cores, as formas, os gestos, tudo me prendia os olhos em direção ao casal da cena, envolto por um momento de profundo afeto, entrega e rendição. Além disso, marcava-me como o cenário e o figurino da composição – parecida com um patchwork – expressavam e congelavam, a um só tempo, a explosão de um simples ato: o beijo. Percebi, depois, que a pintura de Gustav Klimt (1862-1918) estava por toda parte. Em porta-copos, cartões-postais, bloquinhos de anotação e pôsteres de vários tamanhos, espalhados mundo afora. Bem ou mal, foi justamente por conta dessa série de cópias que a entrada do artista austríaco se tornou possível em minha casa e pude ser apresentada à sua obra. A mesma que mobiliza milhares de pessoas a ir até à Österreichischen Galerie do Palácio Belvedere, em Viena. É lá onde se pode apreciar o original de O beijo, um óleo sobre tela de 180 cm x 180 cm. A partir do dia 13 de julho, este e outros exemplares valiosos do acervo de Klimt no museu devem atrair ainda mais visitantes para celebrar, junto à exposição comemorativa do espaço, os 150 anos de nascimento deste que é tido como um dos principais cânones da história da arte. A data de abertura da mostra, que chega para se somar às inúmeras homenagens em seu país e fora, não foi escolhida por acaso. Estamos no mês de aniversário de Klimt, nascido no dia 14 de julho de 1862, em Baumgarten, cidade próxima à capital da Áustria, Viena. Quando finalizou O beijo, tinha 45 anos. Tão logo a pintura tornou-se pública, em 1908, o governo austríaco tratou de adquiri-la para a coleção do estado. A despeito de alguns conflitos com o poder público e a sociedade austríaca, Klimt obteve reconhecimento em vida e pôde viver da própria arte, trabalhando ora em projetos decorativos por encomenda, ora em pinturas capazes de torná-lo um artista extremamente
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original. Enquadrada por alguns críticos como sua obra-prima, o ápice de sua “fase dourada”, O beijo reforça essa autenticidade, tendo sido responsável pela popularização do pintor em diversos países.
Para Catherine Dean, autora do livro Klimt (Phaidon), a tela figura entre as imagens mais famosas produzidas no século 20. Na visão do especialista Alfred Weidinger, O beijo está para a galeria do Belvedere – onde
atua como diretor – tal qual a Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, para o Museu do Louvre, em Paris. Ambas as obras atraem tanto um largo público de curiosos quanto movimentam um amplo mercado de suvenires e reproduções acessíveis aos apreciadores que não podem, como o magnata norte-americano Ronald S. Lauder, adquirir um original. Proprietário da Neue Galerie, em Nova York, Lauder virou notícia, quando arrematou, em 2006, uma obra de Klimt pelo valor de 135 milhões de dólares. Intitulada Retrato de Adele Bloch-Bauer I (1907), também é conhecida como uma das mais importantes do seu legado, pertencente à coleção da galeria novaiorquina de Lauder, onde está em cartaz outra mostra comemorativa aos 150 anos do austríaco. Feitas em períodos muito próximos, bem no início do século 20, tanto Retrato de Adele Bloch-Bauer I quanto O beijo revelam uma série de elementos recorrentes no trabalho de Klimt. Desde a paleta de cores, que passeia dos tons de ocre ao dourado, à opção pelo formato quadrado, até hoje pouco usual entre os pintores. A presença do “amarelo-ouro”, aliás, está entre as marcas inovadoras de sua produção pictórica. A cor reluzente vem do próprio metal (e não da folha), que ele costumava misturar às tintas. Alguns atribuem a escolha do material à influência do seu pai, que, segundo contam, era ourives e colocou o filho para trabalhar com ele desde cedo. Outros supõem que a aplicação do ouro está relacionada ao fascínio que a arte egípcia causou no artista. Seja como for, pois ambas as observações parecem válidas, a opção
Página anterior 1 EMILIE FLÖGE
Retrato da estilista e amiga, de 1902
Nesta página 2 O BEIJO
Tela de 1907-08 foi o ápice da fase dourada
3 NATUREZA Palácio Kammer no Attersee I, cerca de 1908 4 GUSTAV KLIMT Pintor foi contemporâneo de Egon Schiele e Sigmund Freud 5 DETALHE Hygia, pormenor de A Medicina (1900)
produz um efeito bastante sedutor em suas composições e arrebata o olhar, conferindo sofisticação, delicadeza e autenticidade a uma obra sem precedentes na história. Se é verdade que tomá-lo como único parece ser tão arriscado quanto redundante, se considerarmos o senso comum frequentemente atribuído aos “gênios” da arte, também é certo que, no caso de Klimt, essa é uma constatação indispensável para compreender seu trabalho. Apesar da identificação com ideais artísticos vanguardistas, é difícil enquadrá-lo num movimento ou mesmo num único estilo/gênero, mesmo entre os modernistas contemporâneos (e tão próximos) a ele. Há historiadores da arte que o consideram simbolista, outros que o definem como parte da art nouveau vienense ou ainda precursor do Expressionismo. Mesmo tendo dialogado, de alguma maneira, com essas formas de arte, há no pintor uma identidade muito própria, que faz qualquer tentativa de classificação parecer insuficiente. E isso não se refere somente ao uso inovador do ouro na pintura,
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Mas existem certamente mais fontes, como outros elementos ornamentais das civilizações antigas e mesmo tecidos utilizados pela sua inseparável amiga e estilista Emilie Flöge, cuja relação de intimidade com ele ainda é motivo de especulações. Independentemente das influências, as estampas elaboradas pelo artista para suas telas e seus painéis surgem como aspectos muito especiais, ajudando a dar uma carga de dramaticidade, força e sensualidade às suas ruivas, musas, ninfas ou senhoras abastadas, as quais retratou. A menção à mitologia, aos ciclos de vida e morte, à história e à cultura oriental, expressa em símbolos e alegorias, se soma a esses motivos. Tudo isso poderia situá-lo em diferentes escolas ou períodos artísticos. Nenhum deles, no entanto, parece dar conta de um trabalho cujo espírito é sem dúvida moderno, mas o “corpo” parece trafegar, em sua poética, entre a vanguarda e a arte clássica, por meio de seus signos milenares, sem ser exatamente nenhum deles – com exceção dos trabalhos do início da carreira e de suas pinturas de paisagens, mais próximos do comum na produção de sua época.
ESPÍRITO GREGÁRIO
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do formato quadrado de algumas telas e até da moldura como parte da composição. Seu caráter peculiar referese, antes, a um conjunto de fatores; ao desenvolvimento de uma estética capaz de tornar seus trabalhos simplesmente inconfundíveis. Seja em O beijo ou Retrato de Adele Bloch-Bauer I, e ainda em outros trabalhos, é possível reconhecer uma assinatura, cuja marca subscreve-se na predileção pela figura feminina (quando aparece, o homem é quase sempre coadjuvante) e na utilização de diferentes estamparias, criadas a partir do pincel. Segundo especialistas, como Catherine Dean, Klimt buscou referência nos mosaicos bizantinos de Ravena, na Itália, para onde viajou.
Talvez resida nessa originalidade o fascínio que o artista provoca em toda parte. “Klimt trabalhou num estilo distinto, que foi popularizado e amplamente disseminado no seu tempo pela Secessão vienense e pelo Viena Workshop, grupos artísticos aos quais o artista pertenceu”, sugere Catherine Dean em seu livro. A autora também credita a popularidade do artista ao número relativamente pequeno de pinturas que deixou (cerca de 230 trabalhos) e à bidimensionalidade de suas obras, o que facilitaria a reprodução, bem como a inserção das imagens em qualquer publicação de arte. Colocando à parte tais suposições, o que se sabe é que o austríaco teve uma vida profissional bastante produtiva – não apenas como pintor – e colheu os frutos da própria arte, obtendo fama desde a sua cidade natal. Na medida em que a burguesia começava a ganhar espaço na sociedade vienense, mais efervescente se tornava a cena cultural da capital do país, repleta de novos projetos arquitetônicos e artísticos.
Viena, assim como outros grandes centros urbanos europeus, encantavase pelo processo de modernização do Ocidente em plenos séculos 19 e 20. Contemporâneo e conterrâneo de nomes como o do papa da psicanálise, Sigmund Freud, e dos pintores Egon Schiele e Oskar Kokoschka, Klimt estava inserido num contexto em que seu trabalho foi muito bem-aceito, tanto que nunca parou de receber encomendas nem precisou se mudar para Paris, onde a arte de vanguarda encontrava maior concentração de expoentes. Quando tinha 17 anos e ainda era estudante da Escola de Artes e Ofícios de Viena, seu talento já lhe rendia dinheiro. Começou participando de projetos decorativos, dirigidos por seu tutor, Fernand Laufberger. Entre suas primeiras obras ornamentais, esteve a cenografia para a solenidade de bodas de prata do imperador FranzJosef e da imperatriz Elizabeth, em 1879. Percebendo a rentabilidade de incumbências desse tipo, Klimt resolveu criar, com o irmão Ernst e o amigo Franz Matsch, a Companhia de Artistas. Juntos, eles desenvolveram muitos projetos que dialogavam com a arquitetura dos espaços vienenses, a partir de painéis e pinturas de caráter monumental. Uma das encomendas mais conhecidas dessa fase foi o Burgtheater, o teatro mais antigo da capital da Áustria, onde pode ser visto, até hoje, um Klimt ainda apegado a referências clássicas. O espaço, aliás, também integra o calendário de comemorações ao ano do artista. É interessante observar o seu espírito gregário, presente desde o início da carreira até momentos mais maduros, com os citados grupos Secessão e Viena Workshop. Além de ser algo menos usual na trajetória de um pintor, é provável que tal característica tenha ajudado a fortalecer e a profissionalizar seu trabalho, tendo contribuído para a legitimação de Klimt e de outros talentos de Viena. Não por acaso, as exposições organizadas pelo grupo da Secessão eram um sucesso de público e venda, a despeito dos ideais revolucionários que pautavam a atuação de seus membros. Entre os pontos de interseção do coletivo, estava a defesa de uma arte capaz de romper com o ranço do passado artístico europeu e fazer emergir estéticas mais ousadas. Esse ímpeto modernista
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6 DESENHO Imagem definitiva para a alegoria A tragédia, de 1897 7 MURAL Pintura, Arquitetura, Plástica, disposto no Pavilhão da Secessão, em Viena 8 DE 1898 Primeiro cartaz para a exposição da Secessão, que foi censurado devido à nudez
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desembocava na produção de periódicos, obras, mostras e até na criação de um espaço próprio para as atividades de seus integrantes, o Pavilhão da Secessão. Produzindo coletivamente ou de forma isolada, Klimt nunca deixou de se empenhar num estilo próprio e isso nem sempre agradou. Quando ficaram prontos os primeiros trabalhos da série Quadros de faculdade, requisitados ao artista pela Universidade de Viena, muitas críticas foram-lhe dirigidas. Esperava-se uma interpretação à “altura” dos grandes temas que lhe foram passados. Mas, pelas mãos dele, a filosofia, a medicina e a jurisprudência não pareciam querer seguir a cartilha da razão científica, ou da moral e dos “bons costumes”. A menção à morte, o uso da nudez feminina e um olhar um tanto ácido sobre os motivos encomendados levaram à interrupção da obra, que acabou levada para outro lugar. O fato marcou a vida de Klimt, que sofreu prejuízos sociais – mas seu talento não deixou de ser reconhecido. O valor do seu empenho continuou, portanto, inestimável. Depois de sua morte, em 1918, decorrente de um derrame, mais de 5 mil esboços foram encontrados no seu ateliê. Pinturas, desenhos, projetos decorativos, quase tudo passava por estudo. Grande parte desse acervo ainda é desconhecida pelo grande público, embora isso comece a mudar, sobretudo num ano como este, no qual toda sorte de abordagem é feita em torno do homenageado. Nas mostras organizadas pelos seus 150 anos, há desde fotografias inéditas tiradas do artista – conhecido pela vida reservada – a paisagens feitas no refúgio campestre ao lado de Emilie Flög. Há ainda muitos retratos de mulheres da belle époque austríaca a telas mais desconhecidas. Um sinal de que a data redonda não é só tempo de redundância, mas de jogar luz sobre as muitas facetas de um artista que foi o pintor de O beijo, e mais.
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GÊNEROS Retração e preconceito
A cinematografia brasileira voltada à temática homossexual ainda amarga baixa recepção e pouco incentivo TEXTO Ingrid Melo
O diretor é Bruno Barreto, um dos mais consagrados do país, cujo currículo inclui produções como Dona Flor e seus dois maridos (1976) e O que é isso, companheiro? (1997). No elenco, além da brasileira Glória Pires, está a atriz australiana Miranda Otto, famosa por viver a personagem Éowyn de Rohan, na trilogia O senhor dos anéis (Peter Jackson). O roteiro, baseado no livro de sucesso Flores raras e banalíssimas (Carmem Lúcia Oliveira), conta a história de duas mulheres de personalidades fortes: Lota de Macedo Soares, urbanista carioca,
e Elizabeth Bishop, poeta norteamericana ganhadora do Pulitzer. Apesar de tantos predicados a seu favor, o longa-metragem Flores raras amarga a falta de patrocínio privado. “Não conseguimos um tostão de nenhuma empresa, fora as estatais. Por exemplo, a personagem da Lota terá um carro que aparecerá bastante. Várias montadoras foram procuradas para um product placement (espécie de promoção de vendas). Nenhuma topou”, disse Barreto à coluna de Mônica Bérgamo, no jornal Folha de S.Paulo. Esse é o primeiro filme
da LC Barreto que não consegue captar todos os recursos previstos, em 50 anos de existência. Para que as filmagens não parassem, foi preciso que Lucy Barreto, mãe de Bruno e responsável pela produtora, vendesse ações de um banco. O motivo da rejeição é o fato de a história do longa girar em torno do romance entre Lota e Elizabeth, que durou 14 anos e culminou com o suicídio da urbanista, em 1967, após a separação das duas. Apesar de Bruno Barreto ressaltar que a relação será retratada de forma sutil no longametragem e que seu objetivo é contar como o sentimento de perda reflete de maneira distinta na vida de cada uma dessas mulheres (o título inicial do filme seria A arte de perder, homônimo de um dos poemas mais famosos de Bishop), o empresariado teme que seu nome seja associado à temática gay. Essa reação não é isolada. De acordo com a jornalista e produtora cultural Suzy Capó (responsável por lançar, na década de 1990, o Festival Mix Brasil, com programação voltada para produções LGBT e que impulsionou o cinema nacional dedicado à temática),
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1 MADAME SATÃ Filme expõe sexualidade complexa do personagem-título 2 CARANDIRU Personagem de Rodrigo Santoro (E) era portador do vírus HIV 3 MILTON GONÇALVES Ator interpretou o traficanteprotagonista de A Rainha Diaba
a escassez de obras que abordam a experiência homossexual em nossa filmografia é, em boa parte, devida a esse excesso de moralismo. “Levantar financiamento para um filme é difícil. Se esse filme traz insinuações sexuais entre dois homens, é mais complicado ainda. Para se ter uma ideia, apenas em 2009 conseguimos montar uma programação consistente de longas nacionais no Mix Brasil. Isso, em sua 17ª edição!”, relata. Não é apenas essa a consequência da homofobia para as produções LGBT. Com o intuito de tornarem seus projetos mais palatáveis para os financiadores, muitos produtores acabam por suavizar a abordagem das relações homoafetivas. Assim fez Barreto, que optou por restringir o sexo entre as suas protagonistas em Flores raras a apenas uma cena. “Existe a maior parte do público heterossexual no Brasil que não quer ir ao cinema para ver um filme em que dois caras transam, mesmo que seja um filme que trate de questões que transcendam isso”, explica Suzy. A diretora Sandra Werneck contou, no documentário Cinema em 7 cores (Felipe Tostes e Rafaela Dias, 2008), sobre a representação do gay em nossos filmes, que, ao assistir à première de seu longa Amores possíveis (2001), os espectadores se espantaram quando viram, ao final do travelling da câmera, que as pernas do casal abraçado na cama pertenciam, na verdade, a dois homens. Segundo relata, a comoção foi geral, com direito a interjeições e tom jocoso. Para Capó, essa reação é intensificada por outro desdobramento do moralismo de nossa sociedade, dessa vez ligado ao machismo, e seria menor se fossem duas mulheres na cena: “Tente se lembrar da quantidade de nus frontais masculinos que você viu no cinema brasileiro em comparação com os nus frontais femininos, e você vai perceber que a nudez feminina é muito mais aceita”.
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REPRESENTAÇÃO
Pensamento semelhante possui o escritor e pesquisador da UFRJ Denilson Lopes, um dos principais estudiosos de cultura gay no país. No livro O homem que amava rapazes e outros ensaios (Aeroplano, 2002), ele questiona: “Seria tão fora de lugar o amor entre os homens no horizonte do cinema brasileiro? (...) A gente teria que recolher fragmentos, cenas, para que, como os espectadores gays da era clássica do cinema hollywoodiano, no auge da censura moralista, pudesse ir além dos assassinos, michês, travestis e afetados que aqui e acolá aparecem? Por que filmes como Aqueles dois, de Sergio Amon (1984), não possuem herdeiros? Ou eu teria que procurar fora dos longas?”. Lopes ecoa um discurso comum entre os homossexuais brasileiros: eles não se veem representados no nosso cinema, o que contribui para um senso comum deturpado e marginalizado sobre os gays. É recorrente a opção por estereótipos oriundos da pornochanchada, cujos personagens homossexuais eram sempre afeminados e descambavam para a comédia, caso dos filmes de
Oscarito e do longa Os machões (1972), em que Reginaldo Faria, Erasmo Carlos e Flávio Migliaccio fingem ser gays para conquistar as clientes de um salão e abusam de trejeitos exagerados e do conceito de “enrustido” para fazer rir por meio do desconforto. Não é difícil transportarmos tal abordagem para o cinema atual, por exemplo, na figura do divertido e afetado cabeleireiro Renê, em Divã (José Alvarenga, 2009). Na outra extremidade, estão personagens trágicos ou criminosos, sempre permeados por aspectos negativos. Timóteo (Carlos Kroeber) em A crônica da casa assassinada (Paulo César Saraceni, 1971) é um travesti que vive trancafiado em um quarto, como se fosse um animal selvagem preso em uma gaiola. Em A Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974), Milton Gonçalves interpreta o traficante sanguinário que dá nome à obra. Tanto ele quanto o resto da sua quadrilha são travestis de estilo kitsch que maltratam mulheres, além de aliciarem e transformarem o garoto Catitu (Stepan Nercessian) em um perigoso bandido. Mais contemporâneo, Carandiru (Hector Babenco, 2003)
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4 COMO ESQUECER Lançado em 2010, o longa aborda sentimento de perda com fim de relacionamento entre mulheres
contrapor a essa guinada conservadora, surgiu o movimento queer, que valoriza todos os indivíduos que negam o que é considerado aceitável pela sociedade. “Queer não é uma identidade, mas de certa forma uma anti-identidade, tudo que foge àquelas impostas, reguladas e bem determinadas”, define Lacerda, que pesquisa o cinema LGBT.
QUEER
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também traz um travesti criminoso que, embora seja simpático ao espectador, carrega a negatividade, por exemplo, na suspeita de ser portador do vírus HIV. As lésbicas, por sua vez, costumam ser representadas pela ótica do que é permitido pela sociedade heterossexual brasileira, de modo que o relacionamento entre duas mulheres, por vezes, é abordado pelo olhar masculino e erotizado para satisfazer seu fetiche. Ao mesmo tempo, há, também, uma abordagem negativa do lesbianismo. É o que ocorre em As feras (Walter Hugo Khouri, 1995), em que o personagem Paulo Cintra deseja, desde criança, sua prima Sônia, que não apenas o rejeita, mas o maltrata, fazendo-o assistir às suas relações sexuais com mulheres. No filme, a câmera é tão voyeur quanto o protagonista: as atrizes estão lá para despertar desejo no espectador. Uma das mais bonitas exceções vem exatamente da marginalidade, do cinema “imperfeito” de Júlio Bressane. Matou a família e foi ao cinema (1969), em sua viagem de filme dentro do filme, conta a história de duas garotas que se apaixonam enquanto passam férias em uma fazenda isolada. As cenas entre elas são doces e naturais, bem semelhantes ao que ocorre em 1980 entre Giselle e
“A homossexualidade aparece no cinema como doença, perversão, solidão e frivolidade” Marcelo Caetano Haydée, no filme de Victor di Mello, que carrega o nome da primeira. Com o objetivo de tornar mais positiva a imagem do homossexual no país e seguindo uma tendência do cinema mundial, decorrente do ativismo LGBT, muitos cineastas optaram por fazer filmes com personagens homossexuais completamente dentro dos padrões. “A ideia desses realizadores é deixar claro que gays e lésbicas são cidadãos como quaisquer outros e merecem todos os direitos. Mas, para isso, as identidades são higienizadas em nome de gays e lésbicas brancos, de classe média, monogâmicos e não promíscuos. É como se os homossexuais fossem inseridos nos padrões heterossexuais dominantes”, explica o pesquisador Chico Lacerda, da UFPE. Nesse contexto, insere-se o filme de 2001, de Sandra Werneck, e outros como Rosa morena (Carlos Oliveira, 2010) e Como esquecer (Malu de Martino, 2010). Para se
O cineasta paulista Marcelo Batista Caetano, cujos filmes são voltados para a temática homossexual (são dele os premiados curtas Bailão, de 2009, e Na sua companhia, de 2011), se interessou pela teoria queer, quando cursou Antropologia. Seu primeiro filme, o documentário A tal guerreira (2008), é bastante marcado por esse movimento, ao abordar o mito que foi Clara Nunes, a partir do sagrado (ela é considerada um orixá na umbanda) e do profano (representado pela travesti Michelly, que interpreta a cantora em uma boate, cercada de go-go boys seminus vestidos de orixás). “Eu estava interessado em olhar para as vivências urbanas do afeto, do corpo e da sexualidade. É algo que sempre gosto de pensar, nos filmes que faço”, conta. Se, para isso, for necessário explorar ao máximo os estereótipos, ele não vê nenhum problema. “Os estereótipos têm raízes na realidade e podem ser usados de forma narrativa. Por exemplo, sempre me encantei por uma figura recorrente na antropologia – que é a do ‘sacerdote andrógino’. Quando transformei esse tipo em metáfora, na personagem Bethânia, do filme Na sua companhia, coloquei novos sentidos no olhar viciado da realidade”, justifica ele, que hoje está envolvido com a produção do filme Tatuagem, dirigido por Hilton Lacerda e influenciado pelo queer. Tatuagem foi rodado no ano passado e vai contar sobre o romance entre um soldado de 18 anos e um agitador cultural dono de um cabaré anarquista, no início da abertura política do Brasil (1978). Inspirado no grupo teatral pernambucano Vivencial, marcado por
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INDICAÇÕES um visual carnavalesco e cujas apresentações giravam em torno de temáticas como homossexualidade e violência, o filme aposta na estética espalhafatosa e na abordagem subversiva para quebrar a caretice do cinema contemporâneo. Embora essa seja a obra mais queer do cineasta (e, coincidentemente, sua estreia na direção de um longa de ficção), Marcelo Batista Caetano lembra que figuras homossexuais transgressoras são recorrentes no trabalho de Lacerda. “Sempre me encantei com a forma como ele cria beleza a partir de personagens e temas aparentemente sórdidos – Amarelo manga (2003), A festa da menina morta (2008) e Febre do rato (2011), por exemplo. Gosto das bichas desses filmes: elas são autênticas, fortes e politicamente desviantes”, opina. Entre os principais longas-metragens representantes do cinema queer nacional, está o filme Madame Satã (2001), de Karim Aïnouz – fora ele, também costumam ser lembrados o documentário sobre o Dzi Croquetes (Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2010) e a ficção A república dos assassinos (Miguel Faria Jr, 1979). Madame Satã é emblemático porque foge totalmente a identidades pré-determinadas, sem perder a humanidade delas. “O personagem principal é forte e bruto, tem casos com homens, sustenta uma família, traveste-se. São qualidades a priori, e, a partir das identidades aceitas, incompatíveis. A própria família tem uma estrutura tradicional (pai, mãe, filho e empregada), mas com personagens deslocados dos papéis tradicionais.
O pai é o Madame Satã, a mãe é uma prostituta, a empregada é um gay mais efeminado. Enfim, todos esses deslocamentos de identidades aproximamno muito do queer”, esclarece Chico Lacerda. Porém, segundo Caetano, ainda falta muito para nosso cinema ser realmente liberal. Ele acredita que estamos ficando cada vez mais pudicos em relação ao sexo e representações culturais. “Pesquisei a tevê brasileira dos anos 1970, para o filme Tatuagem, e é impressionante como éramos andróginos, libidinosos e sedutores e como estamos nos tornando uma sociedade neoburguesa hipócrita, ascética e recalcada. A internet, por exemplo, abriu uma série de frentes de investigação sexual/erótica e isso ainda não foi absorvido da forma devida. Além do mais, a homossexualidade geralmente aparece como doença, perversão, solidão e frivolidade”, reflete. Chico Lacerda concorda e julga que esse fenômeno merece a atenção de estudiosos, indústria e público. “Diversos vídeos postados na rede propõem uma performance camp (de pinta, de fechação), que traz à tona uma subcultura periférica pouco retratada em nossa filmografia. Falo de Leona, a assassina vingativa, Gays na barraca do Aruba, Bate cabelo na escola, Sapa bonde e a série Laranjas Bahia (todos no Youtube), que são até mais interessantes porque os próprios performers possuem os meios de produção e exibição”, afiança. Esses vídeos mostram que é possível nossa indústria cinematográfica sair do armário. Do lado de fora, há todo um universo de plumas e paetês à disposição.
ROMANCE
MEDIANERAS: BUENOS AIRES NA ERA DO AMOR VIRTUAL Direção de Gustavo Taretto Com Javier Drolas, Pilar López de Ayala, Inés Efron Imovision
DRAMA
SHAME
Direção de Steve McQueen Com Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale Paris Filmes
“Há algo mais desolador no século 21 que não ter nenhum e-mail na caixa de entrada?” A frase dita pelo personagem de Drolas resume bem o longa. Com texto sarcástico e repleto de referências pop, ele aborda a relação entre dois jovens em crise existencial que conversam em um bate-papo virtual, mas desconhecem que são vizinhos. É mais um ótimo filme dessa excelente fase do cinema argentino.
Com atuações brilhantes de Fassbender e Carey, virtuosos manejos de câmera e uma excelente trilha sonora, o segundo longa do promissor McQueen tem oscilado entre o pedestal e a rejeição. Entretanto, apesar de seu criticado roteiro excessivamente elíptico, Shame é um filme primoroso, com sua tristeza que não prevê lágrimas; cenas eróticas que não excitam; personagens que se expõem, mas não se revelam; e ritmo lento que cativa.
DOCUMENTÁRIO
MINISSÉRIE
A MÚSICA SEGUNDO TOM JOBIM Direção de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim Com Tom Jobim, Frank Sinatra, Elis Regina Sony Pictures
O filme é todo composto por números musicais. Dentre estes, vários são versões para Garota de Ipanema – o que não redunda tedioso. Por meio de trunfos, como uma abordagem temática e não cronológica, o rico garimpo de imagens de arquivo e uma edição primorosa, os diretores fizeram um documentário sensível, não convencional e emocionante.
MILDRED PIERCE Direção de Todd Haynes Com Kate Winslet, Melissa Leo, Evan Rachel Wood Warner Home
Com nomes como Todd Haynes (Longe do paraíso, 2002) e Kate Winslet (O leitor, 2008) e um roteiro baseado no romance de James M. Cain, que já havia rendido o ótimo Alma em suplício (Michael Curtz,1954), não havia dúvida de que Mildred Pierce seria uma minissérie de TV aclamada. Após colecionar prêmios como o Emmy e o Globo de Ouro, ela chega em DVD ao Brasil, vendido pela Livraria Cultura.
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HUMOR Elas são uma graça, essas mulheres-palhaças!
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PIONEIRAS
Com cinco anos de atuação, a Cia Animé criou a banda As Levianas
Cursos de formação teatral quebram barreiras de gênero que cercavam o mais conhecido personagem circense, levando atrizes a desenvolverem aptidões para a função TEXTO Olivia de Souza
Quando você pensa num palhaço,
o que primeiro lhe vem à mente? Provavelmente, a imagem de um homem, trajando roupas coloridas e acessórios exagerados, sapatos excessivamente grandes, rosto completamente pintado de branco com detalhes em vermelho, e – sua marca registrada – o nariz de bolinha. Difícil fugir do estereótipo que teve como principais ícones desde a figura do Bozo, sensação da televisão brasileira durante a década de 1980, até o Ronald McDonald, representante da famosa rede de fastfood norte-americana. No entanto, um dos personagens mais simbólicos do universo circense vem tomando diferentes configurações ao longo do tempo e, frente às mais variadas e modernas formas de entretenimento, busca novas maneiras de se (re) conectar ao seu público. O modelo de organização dos circos no Brasil do final do século 19 e meados do 20 era marcado pela forte tradição das famílias circenses, colocando a mulher quase sempre como assistente de picadeiro ou em números que exploravam seu corpo e a sensualidade. “Na história do circo e dos espetáculos, as mulheres sempre foram identificadas com as atividades que as ligasse ao corpo e à beleza
Para as atrizes não há como ignorar a existência do gênero por trás da fantasia, pois há valores próprios ali inseridos corporal. Esse papel reflete a visão que se tinha da mulher na sociedade, assim como o anseio dos homens para vê-las no espetáculo. Dessa forma, seus papéis representavam geralmente a aristocracia, como cavaleiras, dançarinas ou acrobatas. Esses atributos físicos e a destreza da mulher eram muito desejados no espetáculo. Situação incompatível com a origem da personagem palhaço, que representava o bruto, o grotesco, o rude e desengonçado”, aponta a pesquisadora Sarah Monteath, esclarecendo que, a partir da década de 1970, com a explosão de escolas e cursos formadores, ganhou força o movimento de mulheres palhaças. Essa nova vertente sai do tradicionalismo do circo para abraçar outras formas de representações cênicas, em maior conexão com o teatro. O palhaço moderno, contemporâneo, também conhecido
como clown, teve seu desenvolvimento na escola do mímico francês Jacques Lecoq (1921-1999). Para ele, o palhaço não é nada mais que ele mesmo como ser humano, com todos os seus defeitos e virtudes, características que, por trás do nariz vermelho e da fantasia (código que inicia a brincadeira), se tornam exarcerbadas, “dilatadas”. “Todos temos um clown dentro de nós, a questão é encontrar o caminho até ele”, comenta Lecoq, em uma de suas frases mais célebres. Tradição recente no Brasil, o boom de mulheres palhaças teve início na década de 1990, com o surgimento do primeiro grupo do país, As Marias da Graça, no Rio de Janeiro, que fundou, em 2005, o primeiro festival de comicidade feminina, Esse Monte de Mulher Palhaça. No Recife, as primeiras palhacinhas surgiram no Doutores da Alegria, com quase uma década de atividades em Pernambuco. Contudo foi através da Cia Animé que os espetáculos começaram a despontar. Criada em 2007, pelas atrizes Nara Menezes (Aurhelia) e Enne Marx (Mary En), a companhia tem como principal foco de trabalho estimular a formação da linguagem do palhaço através de oficinas e produções teatrais e musicais. Em 2010, Juliana de
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DANIELA NADER / DIVULGAÇÃO
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PICADEIRO
Parceria entre a Cia Animé e a Duas Companhias resultou no curso Formação de Palhaças do Nordeste
Almeida (Baju) e Tâmara Floriano (Tan Tan) se juntaram à companhia, formando a primeira banda brasileira de palhaças. Com uma base sólida de pesquisa e trabalho, As Levianas, que já possui três espetáculos em seu currículo, transita tanto pela poesia e decadência das divas da música, a exemplo de Edith Piaf e Nina Simone, como também passeia pelo universo infantil do pocket show As Levianinhas. “O trabalho é sempre desenvolvido a partir do nosso repertório individual. Não tem um diretor, somos nós quatro produzindo e criando, consolidando nossa base, que pode correr por vários universos. Essa é uma coisa muito simples dentro do grupo. Pesquisamos músicas antigas, consideradas bregas, mas que hoje em dia são tidas como cult, kitsch, elegantes. Já o infantil é a base do palhaço. A partir do repertório é que a gente cria o espetáculo. Primeiro é a música, depois são as costuras, as gags (acidentes cômicos), as brincadeiras e a inclusão do público”, explica Enne.
Palco
MASCULINO E FEMININO
A divisão entre palhaçaria masculina e feminina divide opiniões. Há correntes que defendem a importância de se diferenciar palhaços por gênero, afirmando que existem especificidades de humor em cada um. Outras defendem a figura do palhaço “unissex”, enaltecendo o trabalho do ator ou da atriz em cena. Para Nara Menezes, é impossível negar a existência de uma mulher por trás da figura do palhaço, a partir do momento em que se colocam sentimentos e valores próprios para compor esse universo lúdico. “Você monta um universo a partir das
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próprias referências, então, não tem como dizer que não há uma pessoa ali atrás que tenha sexo.” A ausência de referências femininas num universo tão lapidado pela figura do homem consiste em um dos principais embates na preparação das palhaças, que se reflete no tipo de humor explorado, na forma de se movimentar, nas gags. Mas, por ser tradição recente, essa arte possibilita entre elas uma maior exploração da linguagem, passando por figurino e maquiagem, à descoberta da sua criança interior, da pureza, do ridículo que provoca o riso. “Partindo do princípio de que todo mundo traz dentro de si energia feminina e masculina, é difícil falar dessa diferença, porque eu vejo essas características num palhaço como Chaplin, por exemplo. Mas acho que o humor da mulher palhaça
se deixa levar mais para o mundo do mistério, trazendo uma sutileza maior desses sentimentos que estão no campo da subjetividade”, reforça a bailarina e jornalista Sílvia Góes, responsável por escrever o roteiro do espetáculo de palhaças Divinas, ao lado do jornalista Samarone Lima e do filósofo Marcelo Pelizzoli.
FORMAÇÃO
Foi através da parceria entre a Cia Animé e a Duas Companhias, da atriz Lívia Falcão, que teve início o curso Formação de Mulheres Palhaças do Nordeste, entre 2010 e 2011, depois da semente plantada durante uma oficina ministrada pela palhaça paranaense Adelvane Neia. Dividido em três módulos, de iniciação, aprofundamento e demonstrações públicas realizadas em Nazaré da Mata e cidades do entorno, o curso proporcionou imersão e troca de
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REPRODUÇÃO
Palhaço
TRAJETÓRIA REMONTA AOS BOBOS DA CORTE
experiências entre 15 palhaças, num trabalho intenso de pesquisa e descortinamento de si mesmo, que resultou na atual configuração de Divinas, em que três palhaças, Zanoia (Lívia), Uruba (Fabiana Pirro) e Bandeira (Odília Nunes) viajam a pé em busca de um sonho, num espetáculo que, sem abrir mão do humor, é carregado de poesia e nostalgia. “Descobrir nosso próprio palhaço e libertá-lo é uma coisa muito boa pra vida, independentemente de você ser artista ou não. Nos orgulhamos muito de dar continuidade a esse projeto. O grupo se mantém, estamos
estudando, pesquisando, experimentando esse universo. As palhaças mais inexperientes estão crescendo, tomando corpo e consciência do seu trabalho”, aponta Lívia. Para as mais jovens, como Olga Ferrario (Musquita), a construção do palhaço é processo contínuo. “Esse caminho de descoberta da comicidade nunca se encerra, nem no homem, nem na mulher. O palhaço dialoga com o que está acontecendo dentro e fora dele, e assim vai se transformando, sempre”, afirma Musquita. Engana-se quem pensa ser simples a descoberta do próprio clown. É trajetória dolorosa, de “se olhar pelo
A aparição do palhaço remonta aos bufões, ou bobos da corte, espécie de “funcionários” das cortes europeias, surgidos na Idade Média, cujo papel principal era entreter o rei e a rainha através de piadas. Desagradáveis e, ao mesmo tempo, cômicos, representavam a ponte entre o povo e a realeza, por apontar os vícios e as características da sociedade. Também cumpriam, geralmente, um papel de críticos da monarquia, pois muitas vezes eram os únicos que podiam questionar o rei sem sofrer nenhum tipo de retaliação. O palhaço moderno, desajeitado, de feições pintadas e costumes exagerados – próximo daquele que conhecemos –, teve sua origem na commedia dell’arte, teatro popular de improviso, em países como França e Itália, entre o século 15 e 18. Foi dessa prática que se estabeleceu a hierarquia entre palhaços, interação que possibilita um maior jogo cômico entre eles. No topo dessa ordem, encontrase o palhaço Branco, que comanda a situação. Mais sério, racional, elegante, é a encarnação do patrão, do burguês intelectual. Abaixo dele vem o Augusto, a figura simples, cômica, ingênua, atrapalhada, geralmente enganada pelos outros palhaços. Sua aparência é a mais familiar: rosto parcialmente pintado, sapatos enormes, nariz em ponta vermelha e calças extremamente largas. Palavra derivada do italiano pagliaccio, ou omino di paglia (homem de palha), palhaço é a representação do homem simples do campo que vai para a cidade grande e passa por dificuldades. Sem conseguir se manter, embriaga-se (a maquiagem branca ao redor da boca seria a espuma da cerveja) e, de tanto cair no chão, destrambelhado e bêbado, acaba com o nariz vermelho (principal característica). Ganha roupas dos outros, por não ter dinheiro para comprá-las, por isso o tamanho desproporcional das peças, pequenas ou grandes demais. Tais características, aliadas à sua comicidade, brincam com as desventuras pelas quais o ser humano passa – com a necessidade de encará-las com humor e boa-fé. (O. S).
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RODOLFO ARAÚJO / DIVULGAÇÃO
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DIVINAS
Espetáculo conta a história de três palhaças em busca de um sonho
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avesso”, assumindo falhas, feiuras, fraquezas e medos, resultando num universo belíssimo de subjetividade, a descoberta de sua criança interior. “Mas é claro que não é um processo apenas voltado para dentro. Nos cercamos de referências que admiramos, como Charles Chaplin e Fellini. Tudo que é poético é referência para o palhaço”, comenta Sílvia Góes, também conhecida como a palhacinha Sema.
FESTIVAIS
Em um de seus livros mais célebres, O segundo sexo, a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir (19081986), uma das principais referências do movimento feminista, trata, entre tantas questões que permeiam o universo feminino e a condição da mulher na sociedade, da sua inserção no mercado de trabalho, dominado pelos homens. Para a atriz Nara Menezes, esse é um aspecto que também perpassa a atividade da palhaça. “Como em qualquer campo de trabalho, existe o preconceito. É uma questão
“O preconceito é uma questão histórica que continua presente no universo dessas mulheres” Nara Menezes histórica que continua presente no universo dessas mulheres que foram ao circo e enfrentaram um universo machista, patriarcalista. O máximo que muitas delas conseguiam era ser o partner, o apoio do palhaço. Muitas, para exercer a profissão, tinham que se fingir de homens”, aponta. A esse respeito, sua colega de cena, Enne Marx, lembra o caso de Gena Leão, fundadora do Circo Grock, de Natal (RN). “Gena passou mais de 20 anos fingindo ser homem, vestindo-se de palhaço, era a única forma que tinha de atuar dentro do circo. Hoje, ela tem sérios problemas vocais por conta disso”, pontua. O surgimento de uma rede consistente de festivais femininos
acaba constituindo uma “linha de combate” ao preconceito e de afirmação da mulher, fortalecendo grupos, companhias e solistas, e oferecendo possibilidades para quem quer fazer parte desse universo. No segundo semestre deste ano, o Recife entra no circuito internacional com a realização do Palhaçaria, primeiro festival nordestino de comicidade feminina, organizado pela Cia Animé, e que traz para a cidade, além de palhaças brasileiras, cinco grupos da Argentina, Nova York, França, Alemanha e Dinamarca. “A gente chama de ‘movimento’ porque, de fato, nos comunicamos muito internacionalmente. Nossa ideia é fortalecer essa rede, fechando o circuito aqui no Recife, em conexão com outros festivais internacionais, trazendo para a cidade esse espaço de prática de humor, que a gente acredita ser específico, feminino, abrindo espaço também para que se veja que, no Recife, está se produzindo e promovendo o debate e essa formação, com oficinas e fóruns de discussão”, afirma Nara.
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SAÚDE O riso que ajuda na cura
Doutores da Alegria, os “especialistas em besteiras”, atuam no auxílio ao tratamento de doenças, utilizando técnicas do clown, sobretudo em contato com crianças
Pioneiros em introduzir a linguagem
Barão de Lucena, Imip e Oswaldo Cruz), em rotina constante. A ONG foi criada em 1991, pelo paulista Wellington Nogueira (Dr. Zinho), depois participar da trupe do Big Apple Circus Clown Care Unit, dos Estados Unidos, programa que, pela primeira vez, levou palhaços para visitar crianças em hospitais. Com sede central em São Paulo, o Doutores atua em mais três capitais (Recife, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), tendo realizado mais de 900 mil visitas a crianças hospitalizadas.
CECÍLIA LASZKIEWICZ / DIVULGAÇÃO
do clown no auxílio a tratamentos de doenças no Nordeste, os Doutores da Alegria, que este ano completam 10 anos de atividades no Recife, têm como principal premissa de trabalho a crença de que arte e ciência podem caminhar juntas, sendo o riso o grande remédio da alma. O grupo de palhaços especialistas em besteira, ou “besteirologistas”, como eles mesmos se denominam, visita os setores de pediatria de quatro hospitais públicos do Recife (Hospital da Restauração,
Contando apenas com atores profissionais, uma forma de garantir a qualidade e o comprometimento com o trabalho, o programa também segue o conceito de escola ampliada, com o núcleo de formação e pesquisa de linguagem do palhaço, focando uma metodologia voltada para o hospital, além de promover blocos carnavalescos e espetáculos de teatro – uma maneira de chegar junto ao público de fora dos hospitais. A recepção à trupe, descrevem os integrantes, é a melhor possível, tanto da parte dos pacientes quanto das famílias ou do próprio quadro de médicos dos hospitais, que já os consideram como parte da equipe. “Posso dizer que a minha vida tem duas fases como artista, uma antes e outra depois do palhaço”, afirma a coordenadora da unidade do Doutores de Recife, Enne Marx, mais conhecida como Dra. Mary En. Ela confessa que, desde que entrou para a equipe, em 2002, seu conceito de mundo mudou. “Meu trabalho ganhou uma dimensão muito maior, porque é social também, eu não tinha essa percepção antes de ir para o hospital.” Seguindo a ética do humor requintado e do bom senso, o grupo é adepto da palhaçaria contemporânea, humana, olho no olho, enxergando a criança de igual para igual, e instigando nela o seu lado saudável, independentemente da situação. “Apesar da rotina dura do hospital, a criança nunca quer parar de brincar. É uma liberdade tolhida, e o palhaço, dentro desse contexto, vem pra quebrar hierarquias, pra distensionar essa rotina de uma forma responsável”, completa a coordenadora. Convivendo com o medo e a morte, sempre com um sorriso no rosto, porém, sem fechar os olhos para a realidade dos hospitais, os palhacinhos acreditam no poder de transformação através da arte, encarando a missão com alegria. “Não negamos de jeito nenhum a realidade, nós a subvertemos. Claro, é difícil não chorar diante de um óbito, mas é recompensador quando vemos outras tantas crianças sorrindo, felizes junto com a gente. É em trabalhos como esse que percebemos a grandiosidade da arte”, diz Enne. OLIVIA DE SOUZA
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Sonoras 1
BEACH BOYS O entardecer dos garotos da praia
No cinquentenário de sua carreira fonográfica, a banda nº 1 dos EUA entra em turnê mundial e lança o primeiro álbum de inéditas em 20 anos TEXTO Débora Nascimento
Os Beach Boys estão para os Estados
Unidos assim como os Beatles estão para a Inglaterra. Ambos ultrapassaram a fronteira de ser (apenas) grupos de rock e tornaram-se algo maior, patrimônios culturais e históricos de seus países, símbolos de uma época. Neste ano, são lembrados os 50 anos de lançamento de seus primeiros discos, o single dos ingleses Love me do/P.S I love you e o álbum dos americanos Surfin’ safari (os dois pela Capitol/EMI). Mas há uma diferença: os primeiros, infelizmente, não vão – e nem poderiam – fazer uma turnê
comemorativa, enquanto os segundos já pegaram a estrada nos EUA, seguindo depois para Europa e Japão. O que já seria surpreendente por si só, esses shows festejando o cinquentenário do grupo californiano, ganhou um reforço singular: seu principal membro, Brian Wilson, está de volta, após mais de duas décadas de carreira solo. Além disso, os “garotos de praia” surpreenderam fãs e crítica com a chegada, no dia 5 de junho, de seu primeiro álbum de inéditas em 20 anos, That`s why God made the radio. A música que intitula o disco foi
“vazada” há um mês na internet e ganhou destaque em vários sites e blogs de música. O refrão diz: “Então sintonize aonde quer que você vá/ Ele acenou com sua mão/ Deu-nos o rock’ n’ roll/ A trilha sonora para se apaixonar/ Foi por isso que Deus fez o rádio”. Os Beach Boys falam do aparelho num tempo em que se ouve música com iPods, iPhones, “xingue-lingues” de MP3. A canção soa como se tivesse sido feita há 50 anos, e esse anacronismo permeia todos os 38 minutos que somam as 12 faixas do disco. Mas isso apresenta dois lados. Embora tenhamos nos costumado a esperar de um artista variedade, surpresa, sempre “o novo”, esse extemporâneo álbum comprova que, se o grupo não tentou “modernizar” sua sonoridade, também não deixou de compor e produzir belas músicas, num modo que somente eles podem fazer e que influenciou desde os citados Beatles, passando pelos novaiorquinos Ramones, nos anos 1970, até a californiana Best Coast, em 2009. Os Beach Boys são a banda norteamericana com maiores vendagens, mais de 100 milhões de álbuns comercializados e 30 sucessos, incluindo
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1 EM TURNÊ Bruce Johnston, Al Jardine, Brian Wilson, Mike Love e David Marks comemoram o cinquentário 2 a 4 ARQUIVO Imagens históricas da banda, feitas ao longo de sua carreira 5 THAT’S WHY... Capa do recém-lançado 29º álbum de estúdio do grupo californiano
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os que chegaram ao primeiro lugar, como I get around (1964), Help me, Rhonda (1965), Good vibrations (1966) e Kokomo (1988). Entre 1962 e 1966, foram 12 álbuns consecutivos nas paradas. O ápice aconteceu em 1966, com o incremento na estética musical e na temática das letras, resultando no clássico psicodélico Pet sounds (lançado em maio daquele ano), que Brian Wilson definiu como “sinfonia adolescente para Deus”. Nos meses seguintes de 1966, os BB tiveram fortes concorrentes na psicodelia: The Byrds, com Fifth Dimension, em julho, e The Beatles (seus principais “adversários”), com Revolver, em agosto. Agora, com That’s why..., o grupo volta a explorar as características vocalizações intrincadas (que foram inspiradas no Four Freshmen). O disco abre com a única faixa instrumental, Think about the days, uma espécie de alerta para os fãs saberem que os próximos momentos serão bem emocionantes. O álbum exibe uma sucessão de apuradas composições, trazidas de um lado por Brian Wilson, e do outro, por Mike Love, primos que compuseram juntos alguns dos maiores sucessos dos BB, como Fun, fun, fun, mas
que depois se afastaram – Mike, junto com os outros primos Dennis e Carl Wilson, e os amigos Al Jardine e Bruce Johnston, levou adiante os Beach Boys e tornou-se seu principal performer, enquanto Brian seguiu carreira solo. É de se notar que, no CD, a maioria das faixas são assinadas por Brian, tendo como parceiros, Joe Thomas, Larry Milas, Jim Peterik e até Jon Bon Jovi (!), na tocante Summer’s gone. Mike, cujo crédito aparece em apenas quatro títulos, assina sozinho uma das melhores, Daybreak over the ocean, um hit em potencial. A propósito, o último grande sucesso do grupo, Kokomo, é de sua autoria – a música esteve na trilha sonora do filme Cocktail (1988), com Tom Cruise. As outras canções que se destacam são Isn’t it time, Spring vacation, The private life of Bill and Sue, com letra ao mesmo tempo lírica e irônica sobre reality shows. Nessas canções e, em especial, From here to back again, Brian Wilson comprova mais uma vez seu talento como compositor, arranjador e produtor. O mais incrível de That`s why God made the radio é que, se tivesse sido lançado há 40, 30 anos, pelo menos,
teria certamente uma repercussão bem maior e entraria para a lista dos melhores álbuns dos Beach Boys, junto com Surfin’ USA (1963), Today! (1965), Summer days (1965), Sunflower (1970) e Holland (1973). Mas é muito provável que essas canções se fixem apenas na memória dos fãs mais fiéis, não toquem nas rádios e não se tornem tão marcantes quanto, por exemplo, God only knows, faixa de Pet sounds, considerada por Paul McCartney a mais bela canção de amor da história. Nas letras desse 29º álbum de estúdio da banda, a praia, o mar, as ondas, o sol, as garotas, os carros são citados, mas não propriamente como temáticas. As músicas estão menos “ensolaradas” e mais “entardecidas”. Há reminiscências, um sentimento constante de passagem do tempo, dos companheiros que já se foram (como Carl e Dennis Wilson, o único surfista deles) e a lembrança do fim da vida. É comovente constatar que aqueles jovens, bonitos, sorridentes, filhos do american way of life envelheceram (Brian Wilson fez 70 anos, em 20 de junho). O ambiente quase intocado, selvagem e ingênuo das praias mudou; o mar está avançando e praticamente não existe época exata para fazer calor ou frio no planeta. O verão, idolatrado pelos Beach Boys, não é mais como era antes. Nem eles são. Mas sua música, que exalava inocência, alegria e esplendor juvenil, ficou eternizada.
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FLORA PIMENTEL/DIVULGAÇÃO
ERUDITA Dez dias de concertos na Serra das Russas Quarta edição do Virtuosi de Gravatá destaca Mozart, Debussy e estreia obra coral-sinfônica em tributo a Luiz Gonzaga TEXTO Elisa Jacques
Sonoras Se “o baião tem um quê que as
outras danças não têm”, ele vai ganhar uma roupagem de música clássica na quarta edição do Festival Virtuosi de Gravatá, que acontece entre os dias 13 e 22 de julho na Igreja Matriz de Sant’Ana, no centro da cidade serrana. O festival se tornará mais “danado de bom” com os outros homenageados da edição: Mozart e Claude Debussy – este, lembrado por seu 150º aniversário de nascimento. O ponto alto da programação fica por conta de A coragem e a cara – memorial musical de Luiz Gonzaga, parceria dos compositores paraibanos Eli-Eri Moura e Marcílio Onofre, sobre texto de Tarcísio Pereira, que estreia no dia 21 de julho. A obra – escrita para acordeom, viola, narrador, coro, orquestra de cordas e sons eletrônicos – terá a participação do Coral Sonantis, dos solistas Rafael Altino (viola) e Lucyane Alves (acordeom) e do ator José Ramos (narrador), com direção cênica de Antônio Cadengue e regência de Rafael Garcia.
Já a abertura de As bodas de Fígaro, o Concerto para violino e viola em mi bemol maior, com a canadense Caroline Chéhadé e Rafael Altino, e o Concerto nº 20 para piano, com o filipino Victor Asuncion, exaltam Mozart no concerto de abertura Mozart para sempre, com a Orquestra Virtuosi e a regência também de Rafael Garcia. Os 150 anos de nascimento de Claude Debussy (1862-1918) serão marcados por quatro recitais, a cargo, respectivamente, de Victor Asuncion; do violinista russo Nikita Borisoglebsky com o pianista lituano Kasparas Uinskas; de Uinskas em concerto solo; e da pianista chinesa Tian Lu, que estudou nos Estados Unidos com a francesa Monique Duphil – renomada intérprete de Debussy e Ravel. Entre outros destaques internacionais do IV Virtuosi de Gravatá, estão, além de Nikita Borisoglebsky, medalha de prata do Concurso Tchaikovsky, em 2007, o violinista francês Gilles Apap, considerado o
“violinista do século 21”, que volta a Pernambuco ao lado dos Transylvania Mountain Boys; e o russo Rinat Ibragimov, principal contrabaixo da Orquestra Sinfônica de Londres. Nessa edição, o festival recebe 40 bolsistas – estudantes de cordas dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Pará e Rio Grande do Norte – que, além de integrar a orquestra do festival, recebem aulas de instrumentistas que participam do festival, como a violoncelista dinamarquesa Katarina Bundsgaard e o violinista italiano, residente em Goiás, Alessandro Borgomanero. Também é esperado pelo público gravataense o retorno do pianista João Carlos Martins, que se alternará entre a regência da Orquestra Virtuosi e o piano, executando peças de Bach – sua especialidade –, Clóvis Pereira, Tom Jobim, Ennio Morricone e outros compositores. Todos os concertos do IV Virtuosi de Gravatá têm entrada gratuita. Programação completa no site: www.virtuosi.com.br
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INDICAÇÕES BLUES
COCO
HERBERT LUCENA Não me peçam jamais... Coreto Records
A frase de Cacilda Becker resultou em um título bem longo para um CD, mas fixa bem o recado de Herbert Lucena em favor dos artistas populares. Em seu segundo disco, que recebeu o prêmio de Melhor Álbum no MPB 2012, o músico retoma as recriações sobre o gênero ao qual é mais ligado, o coco, como na fusão deste com o tango brasileiro em Bom de balançar. Menção à parte para os cartazes desenhados por Fábio José da Silva.
CANTO CORAL
DÁ O TOM Dá o Tom Independente
O primeiro álbum do conjunto coral de 16 integrantes (divididos nos tradicionais naipes vocais: sopranos, altos, tenores e baixos) dá outro tom a sucessos do cancioneiro popular brasileiro, como Feijoada completa, de Chico Buarque, A casa, de Vinícius de Moraes, e o baião Qui nem jiló, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A regência, a direção e a preparação vocal do grupo, que conta com 11 anos de carreira, são de Dalton Coelho.
B. B. KING Live at the Royal Albert Hall 2011
MPB
Universal Music
Universal Music
A set list continha apenas 10 músicas, culminando com a obrigatória The saints, e o andamento delas estava mais lento do que o de costume, mas os fãs aproveitaram ao máximo o show – neste box em CD e DVD – que o guitarrista norteamericano realizou na sala de concertos mais tradicional de Londres. Nos extras do DVD, uma entrevista de B. B. King ao lado de seus convidados: Slash, Derek Trucks, Susan Tedeschi, Ronnie Wood e Mick Hucknall.
Não é preciso recontar aqui a história de um dos álbuns mais importantes da MPB, do qual participaram Gal Costa, Ângela Rô Rô e Jards Macalé. Mencionamos apenas os detalhes adicionais desta edição, dedicada aos 70 anos de Caetano: a adaptação para CD do projeto gráfico original do vinil (uma caixa em forma de prisma triangular), a remasterização no estúdio Abbey Road por Steve Rooke e a ficha técnica adicional fornecida pelo próprio cantor.
CAETANO VELOSO Transa
Edino Krieger
NENEM KRIEGER/DIVULGAÇÃO
REGISTRO MAGNO EM TRIPLA ESCALA
Convém logo advertir que o uso do adjetivo “magno” para o livro Edino Krieger: crítico, produtor musical e compositor, organizado por Ermelinda Paz, deve ser aplicado ao resultado da publicação em si, a primeira a abarcar a catalogação composicional de um músico brasileiro junto ao seu inventário como crítico musical e realizador cultural. Magno, portanto, é o empreendimento, mesmo que seja uma propensão natural atribuir, ato contínuo, a
qualificação ao compositor. A resistência a esse segundo passo emerge quando questionamos em que medida estamos reconhecendo méritos ou escapando para o laudatório. Tal dilema sobressai, aqui e acolá, na grande sequência de depoimentos enaltecedores no livro, já não bastassem os dedicados (e merecidos) à atuação de Edino (na foto acima). Às vezes, a própria autora profere elogios mais aceitáveis em um trabalho autoral, e não documental
como este – uma afirmação peremptória como “A história da música brasileira, em especial a contemporânea, seria outra, não tivesse existido Edino Krieger” exemplifica o caso. Em consequência, não se veem críticas desfavoráveis a Krieger nem conflitos nos quais o compositor tenha se envolvido (apenas testemunhado). Isso mencionado, nada interfere na magnitude da obra. A introdução biográfica sobre o músico transita, sem ser abrupta, da história de sua cidade natal, Brusque (SC), à da família Krieger e surpreende quando integra a história pessoal de Krieger à da música clássica nacional do século 20, descortinando episódios e conflitos quase desconhecidos, como as chacotas sobre o método de escrita das montanhas de Villa-Lobos, as divergências entre Lorenzo Fernandez e Koellreutter e a inadvertida prisão em Ellis Island, em 1948. Nos dois volumes da pesquisa, destacam-se também uma bem-vinda “fortuna crítica do crítico”, com depoimentos de músicos que foram objeto de matéria de Edino Krieger, e a listagem desses textos, acompanhados por uma síntese (em ordem cronológica, quando seria também desejável por divisão temática). CARLOS EDUARDO AMARAL
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Artigo
JORGE ANTUNES O ATIVISMO POLÍTICO NA MÚSICA ERUDITA O rap surgiu na Jamaica, na década de 1960, foi levado para os Estados Unidos 10 anos depois e, em seguida, espalhou-se pelo mundo. A burguesia ficou apavorada. As letras da nova manifestação artística falavam das dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres. O protesto social, a irreverência e a pregação da violência chegaram a amedrontar poderosos. Mas a força do gênero começou a cair quando, na década de 1990, despertou o interesse da indústria fonográfica. Tornou-se, então, manifestação comercial e foi absorvido pelo sistema. Dessa forma, as falas ritmadas de um MC já não assustam ninguém. Tudo passou a ser banal e bom para dançar. Não são apenas os jovens pobres que o dançam e cantam. As dondocas e as patricinhas também entraram na onda. O rap de protesto e o funk se fazem presentes até mesmo nas novelas. Platão, em seu programa éticomusical de A república, estudou as reações emotivas do povo à música. Jean-Jacques Rousseau, no século 18, detalhou alguns aspectos do fenômeno, lembrando que o intervalo de terça maior excita o sentimento de alegria, podendo chegar a imprimir ideias de furor. A terça menor, ao contrário, leva as massas à tristeza, despertando ternura e suavidade. Não é à toa que todos os hinos nacionais, além de usarem ritmo marcial, são escritos em modo maior. Observa-se, por outro lado, que quase todos os cantos religiosos e fúnebres são em modo menor. As reflexões de Platão e Rousseau se juntam a outras que se seguiram, demonstrando o poder que a música tem para influir nos destinos do homem e para formar mentalidades. Sou daqueles que acreditam que a vida imita a arte. Em 1966, quando a ditadura militar reprimia violentamente as manifestações estudantis na Cinelândia, no Rio de Janeiro, escrevi
DAIANE DE SOUZA /DIVULGAÇÃO
uma obra para orquestra de cordas e fita magnética intitulada Dissolução. Como eu já estudava Física, todo mundo pensou que o título de minha peça tinha conotação extramusical com algo científico, de química: a “dissolução” de alguma substância em laboratório. Mas, na verdade, a conotação era política e de contestação. Na obra, tento descrever, com sons, a dissolução de uma manifestação estudantil na rua, feita pela polícia. Na fita, além de sons eletrônicos, uso ruídos dramáticos de vidraças quebradas. Naquela época, não era fácil se fazer música engajada politicamente. Consegui fazer, mas de modo velado, disfarçado. A censura e a perseguição caíam sobre qualquer obra de arte que insinuasse, em seu conteúdo ou em seu título, algo referente às questões sociais e políticas. Os autores de obras daquele tipo, então consideradas subversivas, passavam a ser perseguidos pelo Estado e discriminados pelos próprios colegas artistas. Quem era amigo de um subversivo, corria risco de também ser considerado um deles. Os historiadores são limitados, quando analisam a censura praticada contra a produção cultural na época do regime militar. Eles se atêm ao estudo da repressão sofrida pela imprensa, pela literatura e pela música popular. Desconhecem, totalmente, a censura que foi imposta à música erudita brasileira pelos militares. Em abril de 1964, minha canção Cabra da peste, escrita para voz de barítono e piano, foi censurada pela direção da Rádio MEC do Rio de Janeiro. Para que fosse tocada no programa Jovens Compositores do Brasil, produzido por Dieter Lazarus, fui convidado a fazer nova gravação nos estúdios da rádio, desde que mudasse a letra da música. Não faltaram, no passado, histórias de compositores brasileiros, na área da erudita, que viveram uma fase de ativismo político através da música. Claudio Santoro compôs, em 1953, sua Quinta sinfonia, também conhecida como Sinfonia da paz, com texto da poetisa comunista Antonieta Dias de Moraes. Gilberto Mendes, que à época estudava com Santoro, também escreveu canções engajadas politicamente usando poemas da mesma autora. Do período,
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também data a obra Canto do soldado morto, de Eunice Katunda, com texto do poeta comunista Rossini Camargo Guarnieri. Por volta de 1973, o compositor paulista Willy Corrêa de Oliveira passou a compor unicamente obras musicais com fins de doutrinação política, militando junto às Comunidades Eclesiais de Base. Mas esse direcionamento foi abandonado alguns anos depois. Esses exemplos correspondem a fatos esporádicos e efêmeros, ocorridos nas vidas daqueles compositores. Alguns deles, logo após aquelas experiências, voltaram a fazer “arte pela arte”. Outros chegaram até mesmo a “virar a casaca” e condenar as próprias
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1 OLGA Ópera de Jorge Antunes recapitula a trajetória da militante comunista
posições do passado. Esse foi o caso de Claudio Santoro. Em 1979, em debate realizado durante a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, ele declarou que renegava o passado de engajamento político e que se arrependia de ter defendido ideias de esquerda e de tê-las embutido em algumas obras. Assim, são raros, no Brasil, casos de compositores de música erudita que abraçaram e nunca mais abandonaram o ativismo político por meio da música, tal como aconteceu em outros países. Podemos citar, como exemplos dessas exceções: o alemão Hanns Eisler, o inglês Cornelius Cardew, o italiano Luigi Nono, o chileno Sergio Ortega, o italiano Luca Lombardi, o austríaco Wilhelm Zobl, o grego
“A música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical que resta intocada pelo sistema” Thanos Mikroutsikos e o norteamericano Frederick Rzewski. Intelectuais sempre tiveram, e continuam a ter, enorme responsabilidade com relação ao presente e ao futuro da humanidade. São eles que, detentores de credibilidade, conseguem tribunas e espaços para fazer eco às suas
convicções políticas. Por essa razão, acredito ser obrigação do compositor não se encerrar em uma torre de marfim. O compositor que o faz é um criminoso. A música popular, mesmo aquela de protesto, tem sido rapidamente apropriada como mercadoria pela indústria fonográfica. O rap e o funk seguiram essa trajetória. Mensagens políticas construídas para a venda não convencem ninguém. A música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical que resta, ainda hoje, intocada pelo sistema. Assim, ela passa a ser, ou continua a ser, um suporte capaz de dar credibilidade a mensagens extra artísticas, de cunho social ou político.
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Séphora Silva
O PROTAGONISMO DA DIREÇÃO DE ARTE
“Tudo o que você vê na tela é direção de arte.” Essa frase da
Séphora Silva
arquiteta, urbanista, cenógrafa e diretora de arte DIVULGAÇÃO
cineasta Lina Chamie me acompanha há anos. Ela, em minha opinião como diretora de arte, sintetiza perfeitamente o significado dessa função no cinema: a encantadora missão de materializar palavras e transformar os pensamentos do diretor em quadros compostos de magia, desejo e sentimentos dos mais diversos. A concepção imagética da direção de arte transpassa a construção de cenários arquitetônicos, urbanísticos, design e interiores, pesquisas histórico-sócio-político-econômicas, elaboração de figurinos e caracterização de personagens, que vai além dos símbolos que traduzem suas personalidades. Deliberar o nascer e o renascer de pessoas, resgatar cidades, conferir a objetos banais e presentes no nosso cotidiano uma importância e uma percepção toda especial. Realçar um detalhe arquitetônico que não retrate apenas uma época, mas o torne fundamental para a dramatização da narrativa; ressaltar uma obra de arte e fazê-la – além de pictórica – conectar-se diretamente com a cena, dando-lhe um significado psicológico muito mais profundo e assimilável ao espectador, por torná-lo mais sensível e intenso. Bulir com as cores, não somente com suas tonalidades e nuances, na intenção de conferir sua função primeira de colorir o cenário e tornar a fotografia mais bela e instigante, mas despertar sensações subliminares que podem ir do mais profundo sonho ao mais aflitivo desconforto. O diretor de arte é um pesquisador do mundo, de como ele funciona, como se mostra, de todas as culturas, de todas as formas de comunicação visual. A tarefa de tornar uma realidade criada para alguns minutos de projeção em uma eternidade para os olhos do espectador é fazê-lo crer que tudo o que ele vê é a mais pura verdade, ainda que fantasia explícita e proposital dentro da concepção fílmica de quem a dirige. É tão fascinante saber que podemos proporcionar uma sucessão infinita de impressões através das nossas decisões estéticas e plásticas, e que, uma vez dentro do cinema, com a luz apagada e projeção em luz, tantas mentes irão se emocionar com o que veem na tela, e tudo isso causado por essa gama de elementos pensados na direção de arte para transcender o comum, ainda que mero e corriqueiro e, às vezes, quase inexistente na cena. Como profissional apaixonada pela sétima arte, acredito na capacidade de aprimorar a comunicação através da linguagem visual e promover uma transformação constante na vida dos espectadores, não somente no que diz respeito ao seu gosto estético, mas, principalmente, ao torná-los mais críticos e sensíveis às coisas do dia a dia.
CON TI NEN TE
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IV FESTIVAL
MINISTÉRIO DA CULTURA E PREFEITURA DE GRAVATÁ apresentam
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DE JULHO DE 2012
VIRTUOSI
IGREJA MATRIZ DE SANT’ANA
DE GRAVATÁ Rafael Garcia Diretor artístico
Homenagem ao centenário de
Luiz Gonzaga
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19h MOZART PARA SEMPRE
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11h HOMENAGEM A DEBUSSY I
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150 anos do nascimento RECITAL VICTOR ASUNCION, piano
19h HOMENAGEM A DEBUSSY II
150 anos do nascimento DUO KASPARAS UINSKAS, piano NIKITA BORISOGLEBSKY, violino
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RAFAEL ALTINO, viola VICTOR ASUNCION, piano
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19h HOMENAGEM A DEBUSSY III
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19h ORQUESTRA DO FESTIVAL
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19h HOMENAGEM A DEBUSSY IV
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APOIO
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19h GILLES APAP & TRANSYLVANIAN MOUNTAIN BOYS
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11h
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ALESSANDRO BORGOMANERO, violin RAFAEL ALTINO, viola LEONARDO ALTINO, cello KATARINA BUNDGAARD, cello RINAT IBRAGIMOV, baixo TIAN LU, piano
CAROLINE CHÉHADÉ, violino TIAN LU, piano
19h MEMORIAL MUSICAL DE LUIZ GONZAGA
RAFAEL ALTINO, viola LUCYANE ALVES, acordeon CORO SONANTIS LEONARDO ALTINO, cello ORQUESTRA DO FESTIVAL RAFAEL GARCIA, regente
150 anos do nascimento KASPARAS UINSKAS, piano
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JOÃO CARLOS MARTINS, regente
11h HOMENAGEM A DEBUSSY V 150 anos do nascimento LEONARDO ALTINO, cello ANA LUCIA ALTINO, piano
Informações: 3363 0138
150 anos do nascimento TIAN LU, piano
PATROCÍNIO
19h RECITAL DE MÚSICA DE CÂMARA
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ORQUESTRA DO FESTIVAL Rafael Garcia, regente CAROLINE CHÉHADÉ, violino RAFAEL ALTINO, viola VICTOR ASUNCION, piano
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