Continente #140 - Nelson Rodrigues

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# 140

#140 ano XII • ago/12 • R$ 11,00

CONTINENTE

NELSON RODRIGUES JORNALISMO DE GÊNIO

AGO 12

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E MAIS QUINTAIS DE OLINDA BOI DO MARANHÃO SÉRIES DE TV DANÇA DOS ORIXÁS

VENTOS HISTÓRIAS DE AGOSTO

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REPRODUÇÃO

A G OS TO 2 0 1 2

aos leitores Um jornalismo inclinado a observações quase assépticas sobre a realidade, que reproduz depoimentos em vez de interpretá-los, que relegou a voz pessoal dos jornalistas a espaços exíguos, e que perdeu o costume de ouvir as duas partes de uma contenda. Seria insensato e forçoso atribuir esse quadro como um todo ao jornalismo praticado atualmente, mas, em separado, aqueles vícios foram surgindo gradualmente nas redações enquanto alguns dos mais brilhantes cronistas e repórteres das redações de outrora chegavam ao ocaso da carreira. Um deles está sendo celebrado este mês por seu centenário de nascimento. Na contramão da objetividade absoluta pregada pelo jornalismo norteamericano, Nelson Rodrigues defendia que o tino e a bagagem intelectual do repórter é que construíam a notícia e conquistavam o leitor. O dramaturgo, escritor, cronista e redator nascido no Recife e radicado no Rio de Janeiro, como amplamente difundido, manifestouse de forma contundente contra aquelas mudanças de paradigmas – não porque fosse averso ao novo e, sim, pelo que intuía como mediocridade ou falta de maturidade no exercício do labor jornalístico. Sem se alinhar a nenhuma corrente de pensamento e

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sem o falso prazer de buscar a polêmica por ela mesma, Nelson também se pronunciava sobre tudo na política e na cultura nacional, para não falar do futebol (paixão herdada de seu irmão, igualmente habilidoso com as palavras, Mário Filho). Para além disso, a obra literária e teatral rodriguiana, criticada pelo linguajar e pela crueza que carregava, era igualmente dotada de mérito dramático e poético. Mas é no jornalista Nelson Rodrigues que nos centramos aqui. É possível que você leia esta edição da Continente quando não estiver assistindo a uma de suas séries televisivas favoritas: Game of thrones, The walking dead, qualquer que seja... Pela quantidade e qualidade atual desses produtos, paramos diante da TV e procuramos verificar a partir de quando as emissoras passaram a investir orçamentos comparados ao da indústria do cinema no intuito de conquistar audiência e quais são as mais bem-sucedidas séries do gênero. Não dizem que agosto é o mês dos ventos? Então, fomos verificar a veracidade da afirmativa e encontramos, no caminho, pessoas que têm ótimas histórias para contar de sua relação com esse elemento da natureza.

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As ações do Governo de Pernambuco são fundamentais para o avanço da Educação no Estado. Das 928 escolas avaliadas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação de Pernambuco (IDEPE) em 2011, 75% conseguiram elevar sua média. O Bônus de Desempenho Educacional (BDE) vai beneficiar professores e gestores de 520 escolas da rede estadual que alcançaram pelo menos 50% das metas estabelecidas. Serão distribuídos cerca de R$ 50 milhões. Todas as Escolas de Referência em Ensino Médio superaram o Índice de Desenvolvimento na Educação Básica (IDEB) previsto para 2019 em Pernambuco. Destas, 20 tiveram média acima de 5,0 - o equivalente ao índice das escolas da rede privada. O número de escolas de referência continua a crescer no Estado. Em janeiro de 2007, eram apenas 13 escolas em tempo integral. Hoje, já são 217 escolas em regime integral ou semi-integral distribuídas em todas as regiões. Para a volta às aulas, no segundo semestre, mais uma boa notícia: 170 mil tablets para alunos da rede estadual. Os primeiros 30 mil serão entregues no Recife. Com ensino de qualidade, Pernambuco está cada vez mais preparado para o futuro.

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sumário Portfólio

Marilyn Monroe 06

Cartas

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Expediente + colaboradores

08

12

20

33

48

60

68

Matéria Corrida

70

Sonoras

74

Cardápio

76

Palco

80

Leitura

86

Artigo

88

Saída

Entrevista

Eugenio Barba & Julia Varley Diretores do Odin Teatret revelam as dificuldades de se fazer teatro na Europa

Conexão

Lumlab Site incentiva a criação multimídia para fins de acervo, parceria e investimentos

Balaio

Andy Warhol Manias e extravagâncias do artista que transcendeu seus 15 minutos de fama

Perfil

Antônio Casemiro O vendedor de rapé mais conhecido de Juazeiro do Norte e seu inconfundível chifre de ervas

Tradição

Humbert, o Guriatã Principal cantador do Boi de Maracanã, de São Luís, completa 40 anos na agremiação

José Cláudio Mata?

Armando Lôbo Músico recifense do antigo grupo Santa Boêmia lança CD e livro de poesias

Além da soberba fotogenia, atriz americana mantinha com as câmeras relação de entrega e cumplicidade, tornando-se a diva de vários fotógrafos

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Comidas da sorte Como as sociedades utilizam os alimentos para atrair bons presságios desde a Antiguidade Dança dos orixás Gestual e padrões rítmicos característicos das divindades do candomblé

Lúcio Cardoso Escritor mineiro foi um dos raros nomes do romance psicológico no Brasil Luiz Felipe Aguiar A voz do povo em Jorge Amado Irineu Franco Perpétuo Músico de ouvido fechado?

Claquete

Martin Scorsese Filmes amadores garantiram incentivo ao aclamado diretor em seu início de carreira

Pernambucanas Quintais

Casario do Sítio Histórico de Olinda esconde recantos de mansidão e verde a poucos metros das vias por onde circulam diariamente centenas de turistas

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Memória

Especial

As polêmicas, as crônicas esportivas e a visão feminina do consagrado escritor e jornalista, cuja obra literária ficou marcada pela visão crua das paixões

Conhecido como mês dos ventos, esse período remete a pessoas ligadas o ar, como empinadores de pipa, pilotos, meteorologistas e pescadores

TV

Visuais

Produções televisivas dos EUA investem cada vez mais em obras que incorporam qualidades antes restritas ao cinema, aí incluídos os orçamentos milionários

Artistas norte-americanos contemporâneos criam trabalhos que valorizam as subculturas, criticam a sociedade de consumo e expõem crises

Nelson Rodrigues

22

Séries

54

Agosto

36

Ago’ 12

Contestação

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cartas caneta! Tinha que ser foto da genial Roberta Guimarães! Costumo doar para a biblioteca da minha cidade, Salgueiro, as revistas a que não me apego muito (o que é difícil), pois graças aos exemplares doados para o CAC hoje sou assinante e, como tal, multiplicadora cultural! SYNARA VERAS ARAÚJO RECIFE – PE

Multiplicadora Há 11 anos leio a revista Continente, só há pouco me dei conta desse fato! E tudo começou na Biblioteca do CAC-UFPE, sertaneja tímida, querendo entender a capital e sua diversidade, li todos os exemplares que a biblioteca tinha, que não eram muitos, mas impactantes, tanto que até hoje me surpreendem (ainda bem!). Hoje mesmo, recebi a edição nº 139, matéria de capa Redes: ótimas para deitar e conversar. Mas juro que a foto de capa não me pareceu, ao olhar rapidamente, uma rede, mas um papel com

RESPOSTA DA REDAÇÃO Synara, gostaríamos de lhe dizer da nossa alegria de receber sua carta, não apenas no que diz respeito ao seu apreço pela Continente – quisera toda publicação ter uma leitora fiel como você –, mas à sua percepção da importância dos acervos públicos como multiplicadores de conhecimento. Imagine o quanto um rico conjunto de livros e periódicos é capaz de iluminar e enriquecer a existência de milhares de pessoas que – por motivos diversos – não têm acesso a eles, salvo pelos títulos disponíveis em bibliotecas! Agradecemos sua consideração e sensibilidade para o assunto e

esperamos que seu depoimento sensibilize todos, sobretudo os mantenedores de acervos públicos.

Ilustração Uma coisa que sempre prezo muito é a consideração por algo bem-feito e é por esse motivo que mando esta mensagem. Acabo de receber o exemplar da revista de junho, edição n° 138, da qual participei com a caricatura do William Faulkner e fiquei bastante feliz. Nunca – prestem atenção – NUNCA alguma outra editora teve a hombridade de me enviar um exemplar da revista, sempre tive que comprar. Vocês conseguiram de verdade me surpreender de uma forma incrivelmente positiva e por isso parabenizo e agradeço. Eu queria muito que as outras editoras do nosso país respeitassem o ilustrador como vocês respeitam. Forte abraço, e mais uma vez, obrigado. Até a próxima! Acompanhem meu novo site: www.felipeilustrador.com. FELIPE MOREIRA SÃO GONÇALO – RJ

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

Chico Ludermir

Luiz Felipe Aguiar

Maria Lúcia Rodrigues

Saulo Neiva

Jornalista, fotógrafo e integrante da Rede Coque Vive de pesquisa e ação social

Bacharel em Crítica Literária, mestre em Ciências Sociais e professor de Literatura

Professora universitária e pesquisadora, filha de Nelson Rodrigues

Professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidade Blaise Pascal

E MAIS Álvaro Filho, jornalista, professor e autor de quatro livros, entre eles o romance policial Jornalismo para iniciantes. Chris Galdino, jornalista, produtora cultural, crítica e pesquisadora em dança. Eduardo Canavieira, jornalista. Eduardo Sena, jornalista. Fernando Monteiro, escritor e cineasta. Irineu Franco Perpetuo, jornalista, colaborador do jornal Folha de S.Paulo e da revista Concerto. José Neves, jornalista, pós-graduado em Jornalismo e História, editor da revista de futebol Clássico. Márcio RM, fotógrafo. Márcio Padrão, jornalista, redator do BOL e autor do blog Quadrisônico. Mariana Camaroti, jornalista. Ricardo Moura, fotógrafo. Roberta Guimarães, fotógrafa.

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BARBA & VARLEY

“Nascemos das impossibilidades” Figuras centrais do Odin Teatret, da Dinamarca, contam como criaram uma companhia a partir de toda sorte de situações adversas, valorizando o contato com o público TEXTO Chris Galdino

CON TI NEN TE

Entrevista

Muito já se disse sobre o poder transformador da arte, e também de sua vocação transgressora. Porém, com a popularização dos recursos tecnológicos e a tendência ao individualismo em alta, não faltam vozes para anunciar o fim das chamadas artes vivas, e entre elas, o teatro seria um forte candidato à extinção. Contrariando tais previsões, a arte teatral resiste, reinventando-se a cada momento. Nesse caminho de persistência, muitas vezes obscuro, alguns nomes inspiradores funcionam como farol. O italiano Eugenio Barba, radicado na Dinamarca, é um desses mestres que iluminam e inspiram atores e atrizes de todo o mundo. Fundador e diretor do Odin Teatret desde 1964, ele permanece na ativa, mantendo acesa a mesma paixão pelo ofício teatral dos anos iniciais. Ao seu lado encontra-se a atriz Julia Varley, que nasceu em Londres e cresceu na Itália, país em que permaneceu até 1976, quando chegou à sede do Odin, em Holstebro, pequena cidade do interior da Dinamarca. Figuras centrais da Antropologia Teatral, eles estiveram pela primeira vez no Recife a convite

do Sesc Pernambuco, para participar do 6º Festival Palco Giratório, em maio último. Em apresentação única, Julia fez uma demonstração de trabalho intitulada O eco do silêncio, seguida da palestra Aprender a aprender – A evolução técnica do ator, liderada por Barba, para um Teatro Apolo lotado. A simbiose total entre Julia e Barba faz crer que o pensamento de um completa o do outro. A atriz e o diretor comungam dos mesmos ideais, partilham o discurso a tal ponto que fica difícil separar suas falas. E assim foi na entrevista à Continente. Ele chegou um pouco antes e, com um jeito simpático e informal, quis informações sobre o cenário político do estado, as questões culturais e o perfil dos meios de comunicação locais. Somente com a chegada dela, a entrevista foi oficialmente iniciada. Sempre juntos, eles falaram sobre as particularidades e o cotidiano do Odin Teatret; a relação com o Brasil; e o processo de formação de ator na atualidade, com a propriedade de quem dedicou toda a vida ao fazer teatral. “Você tem que pensar o Odin como uma cultura de culturas, diferentes

realidades que resultam em uma realidade única e muito particular. Essa diversidade cultural é a riqueza do nosso grupo”, diz o diretor, referindose também às nacionalidades distintas dos atores do seu elenco. Lições de um mestre do teatro mundial. CONTINENTE Quais os segredos para manter um grupo de teatro trabalhando junto por tanto tempo, como é o caso do Odin? EUGENIO BARBA Nascemos das impossibilidades. Numa época em que teatro era sinônimo de um prédio, com um diretor e atores contratados por temporada para trabalhos comerciais ou subsidiados pelo governo, exclusivamente para fins de entretenimento, eu (um estrangeiro) não tive chance de atuar em Oslo, na Noruega. Então juntei-me a um grupo de jovens atores, também rejeitados nas escolas de teatro, e fundamos o Odin, para criar nosso próprio caminho. Não tínhamos prédio nem professores, então tivemos que inventar também uma pedagogia autoral; aprendemos fazendo. Algum tempo depois, conseguimos um local para nos abrigar, só que na

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PATRICIA FURTADO DE MENDONÇA/DIVULGAÇÃO

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CON TI NEN TE

ator poder construir uma formação coerente consigo mesmo. E é isso que queremos proporcionar. JULIA VARLEY Então, para ajudar nesse processo de formação, começamos a ministrar oficinas e oferecer alguns programas de intercâmbio como o WinWorkout for Intercultural Navigators, que promove cursos cíclicos, intervenções práticas e experiências sob a orientação do Odin Teatret e artistas residentes na nossa sede, em Holstebro. Porém, cada turma tem no máximo 20 alunos, e nos interessava também acompanhar o processo de desenvolvimento, de formação dos atores. Assim surgiram as demonstrações de trabalho, que podem ser vistas por cerca de 200 pessoas em cada apresentação, ampliando as possibilidades de formação. E ainda tem um grupo chamado Ponte dos Ventos, coordenado pela atriz do Odin, Iben Nagel Rasmussen, e formado por 10 atores de várias partes do mundo, que se reúnem na Dinamarca uma vez por ano e estão em contato permanente.

CONTINENTE Essa é a primeira vez de vocês no Nordeste brasileiro, mas desde os anos 1980, o Odin Teatret é uma forte referência no Brasil. Como essa relação se estabeleceu? EUGENIO BARBA Em 1984, conheci um jovem ator que estudava em Paris, Luís Otávio Burnier. Ele, que fundou o Lume Teatro, em Campinas; Paulo Dourado, diretor teatral e professor da Universidade Federal da Bahia; Aderbal Freire Filho, ator e diretor teatral residente no Rio de Janeiro; e Nitis Jacon, que por muitos anos dirigiu o Festival Internacional de Teatro de Londrina, o Filo, RINA SKEEL/DIVULGAÇÃO

Dinamarca, um país conservador e até xenófobo. Talvez a nossa disciplina e o horário intenso de trabalho diário – em uma jornada iniciada às sete da manhã, como a dos demais trabalhadores daquele país – tenham ajudado na nossa adaptação e na aceitação daquela comunidade. E até hoje continuamos com uma dinâmica de trabalho intenso, presencial e contínuo, apesar dos projetos independentes de cada integrante do Odin. Atualmente, a realidade é outra, e reina o que acredito ser um retorno à real natureza do teatro: a fugacidade das relações. Os atores se juntam por contrato, por espetáculo ou projeto, e depois se separam. Pensar o teatro como algo que junta as pessoas durante toda a vida, acredito que só o Odin mesmo teve essa obsessão. Ninguém tem paciência para processos muito longos, hoje em dia. JULIA VARLEY Para ser um grupo, tem que haver continuidade, mesmo

Entrevista que os encontros não sejam mais presenciais. É preciso que se estabeleça uma relação de pertencimento, ainda que os grupos tenham virado redes. E o Odin também se relaciona com essa nova realidade. Temos, por exemplo, um grupo que está trabalhando muito conosco. Um integrante é brasileiro e mora na Alemanha; dois são italianos, sendo um do norte e o outro do sul da Itália; e um outro, espanhol, que mora na Bélgica. Então, como pode ser um grupo? Mas eles se encontram três vezes por ano, fazem espetáculos juntos, têm uma experiência coletiva, ainda que não se encontrem todas as manhãs como nós fazemos. CONTINENTE Se as escolas não formam os artistas e os grupos quase não existem, como pode se dar o processo de formação do ator? EUGENIO BARBA O trabalho do Odin pode ser uma referência, pode servir como uma orientação para que cada um descubra seu próprio caminho, pois não existe um método único. Acho que uma das razões da popularidade do nosso grupo, sobretudo com os jovens, é a possibilidade de cada

CONTINENTE Diante de todas as dificuldades e depois de 48 anos à frente de um grupo como o Odin, o que lhe faz continuar trabalhando com teatro? EUGENIO BARBA Confesso que, passados tantos anos, a minha primeira reação diante de novas iniciativas, turnês, montagens é a de rejeição. Uma inércia causada pelo cansaço mesmo. Se nós somos carne vestida de anos, tenho vestidos muito pesados agora, não é? Porém, depois de vencida essa inércia inicial, sou tomado por um fascínio quase infantil, uma paixão que não consigo sequer definir em palavras. Falar em transcendência é muito solene, mas é como percebo esses momentos excepcionais. Outro forte motivo que me faz prosseguir são os atores do Odin. Muitos deles são jovens ainda e, se eu for embora (ou decidir me afastar, parar), o estado dinamarquês pode retirar os subsídios. Porque os governos, de uma maneira geral, funcionam com uma lógica de hierarquias. Eles não entendem que o Odin não é assim, muito pelo contrário, é profundamente descentralizado. Cada um dos atores, e alguns diretores têm projetos próprios. Odin não é só um planeta, é uma espécie de constelação.

foram os responsáveis pelas primeiras turnês do Odin no Brasil, que incluíam espetáculos coletivos e individuais, demonstrações de trabalho, teatro de rua, palestras, oficinas, encontros com estudantes e grupos de teatro. Desde então, essa relação só se torna mais intensa. O Brasil é uma parte da casa não geográfica do Odin, faz parte da família. É como se tivéssemos o mesmo tipo de sangue. Somente no Brasil – na cidade de Londrina – foi realizada uma Ista (International School of Theatre Anthropology). Em nenhum outro país latino-americano foi organizado um Odin Festival como o que aconteceu, em 2006, no Rio de Janeiro, com um mês integral de atividades ininterruptas abertas ao público. E temos ainda a presença do

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ator-dançarino baiano Augusto Omolu, no elenco do Odin desde 1993. JULIA VARLEY O Odin chegou ao Brasil pela primeira vez em 1978, quando os atores Roberta Carreri e Francis Pardeilhan passaram dois meses em Salvador estudando capoeira e dança dos orixás, convidados pelo Grupo Teatro Livre da Bahia. De lá para cá, as trocas entre o Odin Teatret e vários artistas brasileiros só fizeram aumentar, em quantidade e constância. Todos os anos, eu e Eugenio visitamos o Brasil para atividades do projeto A Arte

que o Odin escolhe se apresentar, na maioria das vezes, para públicos reduzidos? EUGENIO BARBA Começamos nossa trajetória de grupo em uma sala de escola emprestada para nós. Então, tínhamos o público não só reduzido como muito próximo dos atores. Isso fez com que desenvolvêssemos uma forma diferenciada de utilizar o espaço cênico. E percebemos que o movimento de mudança acontece é na intimidade, ou por causa dessa relação próxima que se estabelece. Deixa eu te dar um exemplo: se você tem um filho, você prefere que

Essa presença é física, concreta. Tem uma cultura que pertence ao corpo, e é como se, na sociedade contemporânea, essas possibilidades estivessem desaparecendo. O fazer teatral é baseado na inteligência do corpo, a maneira de pensar do corpo, que é mais que intuição. Isso permite às pessoas virem completamente a sua realidade. Em Holstebro, onde vivemos, temos a possibilidade de criar, através do teatro, relações entre pessoas que normalmente não se encontrariam: pacifistas e o exército, por exemplo.

“Fazemos espetáculos de rua e para grandes públicos também, mas só a intimidade nos dá possibilidades de trabalhar com nuances muito finas. É isso que nos interessa.”

Secreta do Ator, uma formação de caráter intensivo que conta com a participação de um grupo seleto de atores, diretores e professores de todo o país, que se reúnem em Brasília para reciclagem, apuro e uma aproximação diferenciada com as técnicas do Odin. A Patrícia Furtado, que é nossa tradutora oficial, mantém a rede Odin Teatret Brasil, e organiza a nossa agenda por aqui. Participo também anualmente do Festival Internacional de Teatro Feito por Mulheres – Solos Férteis, realizado no Brasil e ligado à Rede Internacional de Mulheres de Teatro, The Magdalena Project. CONTINENTE Na era em que reina a cultura de massa, e o sucesso dos espetáculos costuma ser medido pela quantidade de espectadores, por

ele estude numa sala com 20 alunos ou com 200? (Risos.) À distância, nas multidões, você não consegue perceber as mudanças do corpo, as sutilezas. JULIA VARLEY As dificuldades são um estímulo criativo muito forte para nós. Fazemos espetáculos de rua e para grandes públicos também, mas só a intimidade nos dá possibilidades de trabalhar com nuances muito finas. É isso que nos interessa. CONTINENTE Quais são as principais lições que o ofício teatral pode oferecer às sociedades contemporâneas? JULIA VARLEY O teatro oferece a possibilidade do encontro, de relacionar-se. Para fazer teatro, precisamos de ator e espectador.

EUGENIO BARBA Eu posso fazer o melhor espetáculo da minha vida, e isso não mudar a vida de ninguém. Pode emocionar, porque a beleza sempre pode emocionar, mas para transformar tem que ir além. Cada um vive o espetáculo à sua maneira. O que nos interessa é saber como podemos deixar rastros, marcas no espectador. Acredito que atores e diretores, quando realmente juntos, podem descobrir algo muito maior, que vai além de tudo que poderiam imaginar sozinhos. Quando o espetáculo acaba, é que o teatro começa na memória e nos sentidos do espectador, que vai para casa, refletir sobre a sociedade, à luz da experiência quase espiritual que viveu no teatro.

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O melhor deste mês no ambiente virtual da revista Continente

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NELSON, O DRAMATURGO

NELSON, FRASISTA

Neste mês, a revista traz como destaque o centenário do escritor, que nasceu no Recife, mas criou uma identidade artística vinculada à cidade do Rio de Janeiro, onde morou a maior parte da vida. Complementando a edição impressa da Continente, que priorizou o lado jornalista de Nelson, o site disponibiliza o artigo de Cleodon Pedro Coelho, intitulado De como Nelson virou Shakespeare, voltado à sua dramaturgia, a partir da memorável montagem de Senhora dos afogados (1947), com a Companhia Teatro de Seraphim, sob direção de Antônio Cadengue, encenada no Recife, em 1993 (foto).

Relembre comentários ácidos do escritor que ficaram famosos, alguns deles presentes no livro Nelson por ele mesmo, resenhado nesta edição.

Conexão

VENDEDOR DE RAPÉ Assista ao pregão de Antônio Casemiro dos Santos, que se mostra um perspicaz artista na hora de comercializar o seu inusitado produto, nas ruas de Juazeiro do Norte (CE).

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

BROADCAST

FOTOGRAFIA

CURTA-METRAGEM

VESTUÁRIO

Filmes e séries disponíveis para download gratuito

Cem pessoas do mundo todo retratam suas vidas

Portal oferece acervo de filmes de pouca circulação

Camisetas divertidas: um guia de compra, venda e curiosidades

Um dos mais acessados sites da Argentina é o Cuevana, que traz um bem nutrido acervo de filmes, vídeos, séries e programas de TV disponíveis para download de graça. Mas nem sempre foi assim. Entre idas e vindas de problemáticas com os direitos autorais, o portal, hoje, se tornou bem estabelecido, seguro e com boa usabilidade. Apesar de a página ser toda em espanhol, os produtos audiovisuais estão disponíveis no seu idioma original. Um deleite para os “baixadores” frenéticos de conteúdo.

Como seria conhecer o cotidiano de 100 pessoas, de 1 a 100 anos de idade, através de fotografias? Foi essa a ideia que um grupo de entusiastas da sensibilidade da imagem teve ao criar o projeto The 100. As cem “vagas” foram lançadas junto com o site e, hoje, a maioria delas estão preenchidas por pessoas de diferentes lugares, etnias e culturas. Após selecionarem os participantes, os organizadores enviaram às suas casas câmeras que serão devolvidas com a série de registros a serem posteriormente postados no site.

“Desde 2007, servimos um banco de dados para mais de um milhão de realizadores e fãs de curta-metragem. Acreditamos que o curta-metragem é base da criatividade e inovação dos contadores de histórias”, assim se define o site, que é quase uma rede social dos curtas e agrega como proposta principal a divulgação qualitativa da produção mundial desses filmes – intensa e pouco disseminada por um canal comprometido com isso. O portal tem uma equipe especializada de curadores para elegerem os curtas mais legais da semana.

A estamparia das camisetas é uma viagem aos recados do mundo das artes e do comportamento. A internet mostra-se um mercado de excelência para esses produtos – sejam os de referências mais específicas aos mais populares –, já que a maioria das marcas não possui loja física. O Easy to Wear propõe uma compilação dos melhores sites-camisetaria sob diferentes pontos de vista: acervo, temas, mensagens, estilistas etc., além de trazer outras novidades sobre o mundo das camisetas.

www.cuevana.tv

the100.thinkplaymake.co

shortoftheweek.com/about

easytowear.blogspot.com.br

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blogs CORES humanae.tumblr.com

E se a pele humana fosse catalogada em cores Pantone? O Tumblr mostra, de forma divertida, como seria se cada tom de nossa derme virasse um número agregado a uma cor.

CÉU bluesky.thinkplaymake.co

BANCO DE OBRAS TRANSMÍDIA Lumlab pretende estimular realização multimídia, montagem de acervo e criação de ambientes para parceria e investimento www.lumlab.com.br

O polêmico escritor Andrew Keen diz que “a internet é a celebração do

amadorismo e que, através dela, qualquer um pode se dizer especialista no que bem entender e dividir com o mundo inteiro”. Exageros à parte, Keen merece certo mérito por ter acalorado esse tipo de discussão. Entre amadores e profissionais, o Lum faz um contraponto à ideia do norte-americano: a plataforma funciona como um banco de dados aberto, ao qual qualquer um, mediante inscrição, pode submeter um projeto artístico que tenha entre seus objetivos o desenvolvimento transmidiático, ou seja, os elementos do projeto são pensados antes da escolha da mídia. O autor interessado deve criar uma proposta que se expanda para vários meios e produtos em relações de: continuidade (quando a narrativa começa num meio e termina em outro); complementariedade (os meios contam uma mesma história); contiguidade (a mesma história é contada em dois meios); e independência (em que a história não se relaciona com outro meio). Os projetos são submetidos a um crivo crítico. Como resultado, cria-se um acervo multimídia sem fins lucrativos específicos. Proposto pela TV Cultura em parceria com a Fundação Padre Anchieta, o banco de dados visa não só estimular as produções multimidiáticas, mas criar ambientes de potenciais parceiros de criação, produção e investidores. DUDA GUEIROS

O mesmo coletivo de amigos responsável pelo The 100, criou o Blue Sky, que é uma compilação de fotos dos céus de vários lugares do mundo formando um espectro de cores em variações de tons de azul.

INCOMPLETUDE 501qnaovaochegara501.tumblr.com

Com a moda dos Tumblrs, surgiram alguns nichos deles e um destaque foi o que faz uma lista de 501 coisas. “501 ruivas para ver antes de morrer” é um exemplo. Porém, muitos dos blogueiros pararam e nunca vão chegar à 501ª marca. O blog lista as principais delas.

JURÁSSICO sonofabot.com/sob

No mínimo interessante, a página se propõe a vender réplicas de fósseis da era mesozoica. Desde humanoides até animais e vegetais, em placas, para quem quiser colecionar esses objetos inusitados.

sites sobre

Aprendizado de línguas COMUNIDADE

ESPANHOL

ALEMÃO

www.italki.com

www.rae.es

www.dw.de/dw/0,,2199,00.html

O Italki é uma rede social onde o participante pode conhecer pessoas e praticar o idioma delas (e proporcionar o mesmo a quem desejar aprender o seu).

A Real Academia Espanhola disponibiliza gratuitamente seu dicionário, que abrange os significados presentes em todos os países onde o castelhano é falado.

O curso multimídia de alemão da rádio Deustche Welle é disponibilizado para download (em áudio e PDF) em português e inglês.

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Marilyn Monroe

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DELICIOSO PACTO COM AS CÂMERAS TEXTO Luiz Arrais

O primeiro a fotografar a jovem Norma Jeane Mortenson, em 1944, foi David Conover

para a revista Spy. E o último a retratar Marilyn Monroe, em julho de 1962, foi Allan Grant, enviado da revista Life. Por 18 anos, Marilyn foi o sonho de cada fotógrafo. Ela demonstrava uma compatibilidade com as máquinas fotográficas que ia ficando mais forte a cada ensaio, a cada teste. Ela realmente era mais do que uma modelo. Há ensaios com ela assinados por André de Dienes, Milton Greene, Bert Stern, Alfred Eisenstaedt, Robert Frank, Elliot Erwin, Eve Arnold, Richard Avedon. E o fundador da Magnum, Henri Cartier-Bresson, que a fotografou em 1960, confessou candidamente, quando a viu pela primeira vez em carne e osso, que “ela assemelhava-se a uma aparição mágica, saída de um conto de fadas”. A atriz afirmava que seu retrato preferido era um feito pelo inglês Cecil Beaton, em 1956. “Ela brinca, solta gritinhos e pula no sofá”, escreveu o fotógrafo. “Põe o talo da flor na boca, assoprando como um cigarro. É uma perfomance singela, improvisada e contagiosamente alegre. Provavelmente terminará em lágrimas.” Richard Avedon, por sua vez, revelou que ela era a modelo mais bela que havia encontrado. Para Philip Hallsman, sem mais nem menos, “era a mais fenomenal deusa do amor da história”. Com alguns fotógrafos, fazia amizades que duravam anos. Para Arnold Newman, que a clicou em 1952 para a Esquire, posou seis vezes. Eve Arnold, que a acompanhou por 10 anos e fotografou o seu cotidiano, sentia-se fascinada: “Era exigente, brilhante, luminosa. Em sua volta, capturava a luz”. Para todos, Marilyn tinha

Página anterior 1 BERT STERN

Ensaio para a Vogue, um mês antes da morte da atriz

Nestas páginas 2 ANDRE DE DIENES

Romeno fez centenas de fotos da estrela quando ela ainda se chamava Norma Jeane

3 HENRI CARTIER-BRESSON Lendário fotógrafo clicou Marilyn nos bastidores de uma filmagem 4 SAM SHAW Marilyn e Tom Ewell na tórrida cena de O pecado mora ao lado 5 FRANK POWOLNY A pose glamourosa usada à exaustão pela publicidade 6 ALFRED EISENSTAEDT Norte-americano clicou musa escrevendo em sua casa 7 MILTON GREENE Vestida como uma bailarina, em ensaio para o fotógrafo e sócio de sua produtora

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um caso particular com a máquina fotográfica: ela a amava fisicamente. Este ano, ela completaria 86 anos. É difícil supor como seria sua vida hoje. Encarnaria uma velhinha sapeca, levada da breca (vôte!) ou uma esfinge atormentada pelo passar dos anos, tal uma Greta Garbo, vivendo escondida de todos? De todo modo, no imaginário comum, a imagem que ficou é a da loura platinada, linda em todos os ângulos em que era fotografada, no cinema ou no papel, em cores ou em p&b, e que capturou a alma de uma geração inteira. Ainda hoje, sua morte, há 50 anos, na madrugada de 5 de agosto de 1962, reverbera de modo desafiador e intrigante. Quer tenha sido acidente, suicídio ou assassinato, comoveu o mundo. Em seu pronunciamento fúnebre, Lee Strasberg, diretor do Actors Studio, foi lúcido: para ele, mais que um ícone do cinema, MM era uma lenda, um símbolo do eterno feminino. De fato, seu sorriso magnético, o cabelo loiríssimo, o olhar ao mesmo tempo inocente e sensual, aliados a seu requebrar (usava saltos de tamanhos

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Portfólio diferentes), deixavam os marmanjos com as barbas de molho. Desde sua atuação em 30 filmes e seus três casamentos (o primeiro arranjado com um vizinho, aos 16 anos, para evitar que fosse enviada a um orfanato, os outros com duas lendas americanas, o campeão de beisebol Joe Di Maggio e o escritor Arthur Miller), muitos dos eventos de sua vida são pouco claros. Seus biógrafos continuam a falar da identidade desconhecida de seu pai, dos problemas mentais da mãe, das presumidas violências sexuais na adolescência, das tentativas de suicídio e dos namoros com famosos, tais como Yves Montand, Marlon Brando, Frank Sinatra, John e Robert Kennedy. Em 1999, as revistas Playboy e People a elegeram a mulher mais sexy do milênio. Em 1953, a Playboy já tinha acendido o desejo dos leitores, publicando a famosa foto

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8 SAM SHAW A estrela e, ao fundo, o seu marido, o dramaturgo Arthur Miller 9 JAMES MITCHELL Bastidores do filme inacabado Something's got to give, sem tradução em português 10-11 EVE ARNOLD Fotógrafa e amiga da estrela captou momentos da sua intimidade

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de Marilyn Monroe nua sobre um lençol vermelho de veludo. Tirada por Tom Kelley quatro anos antes, quando ela era apenas uma jovem modelo desconhecida em busca de notoriedade, tinha rendido míseros 50 dólares de cachê. O ator Clark Gable, seu par em Os desajustados, dizia a seu respeito: “É extraordinariamente feminina. Tudo que faz é diferente, estranho e excitante, do modo que fala ao modo que usa o magnifico torso. É como se cada um tivesse uma Marilyn só para

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si. Faz um homem sentir-se orgulhoso de ser homem”. De sua parte, Jean Negulesco, diretor de Como agarrar um milionário, afirmou: “Marilyn representa para o homem aquilo que todos nós sonhamos intimamente”. Inteligente e determinada, Marilyn dizia que “em Hollywood, a virtude de uma moça é bem menos importante que o penteado. É julgada pelo que aparenta, não pelo que sabe. É um lugar onde te pagam mil dólares por um beijo, e cinco centavos por tua alma”.

12 CECIL BEATON A foto preferida de Marilyn, que mandava cópias autografadas para seus fãs 13 BERT STERN Segunda parte do último ensaio, em que aparece vestida com trajes Dior, Givenchy e Balenciaga

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POP SOVINA

Pop hipocondríaco Expoente da pop art, da qual foi o principal representante no início da década de 1960, Andy Warhol cunhou (e imortalizou) a frase de que todos teriam seus 15 minutos de fama, mas ironicamente a contradisse. Na atualidade, apesar do imediatismo e do tom inusitado dos seus trabalhos – que se multiplicaram em serigrafias com estampas publicitárias, produções de filmes B e ensaios fotográficos com polaroides –, Warhol continua sendo alvo de estudos e muita curiosidade. Permanece como uma das figuras cujo interesse público não se concentra apenas na obra, mas no indivíduo. Os diários de Andy Warhol, os quais cobrem o período entre 1976 e 1987, ano da sua morte, mostram que ele, apesar de ser um dos ícones da contracultura, vivia às voltas com problemas comuns a todos os mortais: ganhar sempre mais e mais dinheiro, falar mal dos colegas bem-sucedidos, “cavar” ingressos para festas de famosos e, principalmente, defender-se do contágio da aids, afastando-se de amigos e conhecidos “suspeitos”. Ele, como outros homossexuais novaiorquinos dos anos 1980, chamava a doença de “câncer gay” e tinha pavor do contágio. Assim, recomendou aos empregados de sua casa que separassem talheres e louças para o uso de prováveis visitas “suspeitas”. E chegou a escapar de festas e recepções para evitar o contato pessoal com doentes comprovados. DANIELLE ROMANI

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A FRASE

“A vida é cruel. Há anos não tinha dinheiro para o caviar. Hoje tenho e não posso por causa do colesterol.” Ibrahim Sued, colunista social

Além de hipocondríaco, Andy Warhol era um tanto sovina, para não dizer (também) obcecado por dinheiro. Em seus diários, ele registrava cada centavo que gastava, por dia, com táxis, restaurantes, gorjetas e presentes, e ainda as “barbaridades “– como participar de um jantar em prol dos republicanos, aos quais dizia odiar – a que se sujeitava apenas para tentar receber mais encomendas de retratos. Vender retratos para famosos, por sinal, era um dos principais objetivos do artista nos anos 1980, quando já não detinha o status internacional que conquistou nos anos 1960. Falando a respeito de um leilão em que foram colocados à venda trabalhos seus e de Jasper Jonhs, mostrouse extremamente magoado ao saber que o lance máximo pelas suas obras alcançou não mais do que US$ 100 mil, enquanto o do colega chegava à casa de US$ 1 milhão. Nas palavras de Pat Hackett, que editou seus escritos, o pintor norte-americano poderia ser descrito como um cara que apreciava a fama, a beleza, o talento clássico, um certo tipo de insolência escandalosa - como comprova sua biografia - e dinheiro, especialmente bastante dinheiro. “Títulos de nobreza estrangeira não o impressionavam”, conta a editora. (D.R.)

Balaio ELVIS NO BRASIL Neste ano, completam-se 35 anos da morte de Elvis Presley. Mas a adoração ao rei do rock ainda cresce. É o que comprovam os dois grandes eventos a serem realizados no Brasil, no final do segundo semestre. O primeiro é Elvis in Concert, que acontecerá em Brasília (6/10), São Paulo (8/10) e Rio de Janeiro (11/10), e terá imagens e a voz do cantor remasterizadas. Ele será “acompanhado” ao vivo por sua banda. O segundo trata-se de The Elvis Experience, exposição que acontece em São Paulo, entre os dias 05 de setembro e 05 de novembro, e que reunirá mais de 500 objetos raros e pessoais do músico, como utensílios, documentos e fotos. A maioria nunca foi vista fora de Graceland e outros estavam guardados em cofres. Dentre os principais itens, estarão o carro MG vermelho do filme Feitiço havaiano (1961), o telefone folheado a ouro do quarto do artista e diversos figurinos, como os usados no especial de TV Comeback Special (1968) e o macacão american eagle, do espetáculo Aloha from Hawaii (1973), o primeiro concerto transmitido via satélite no mundo e que bateu recorde de público, com 1,5 bilhão de pessoas em 40 países. (Débora Nascimento)

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CRIATURAS

O PRIMEIRO BEIJO Em reportagem sobre Gustav Klimt, na edição de julho da Continente, foi mencionada a inclinação que o pintor austríaco possuía não só para retratar o sexo feminino como também para envolver-se com ele. Segundo fontes, Klimt conseguiu roubar o primeiro beijo de uma das mulheres mais cobiçadas do século 20, Alma Schindler (foto), que viria a casar-se com Gustav Mahler, o arquiteto Walter Gropius e o poeta Franz Werfel, mas que também viveu casos amorosos com os pintores Zemlinsky e Kokoschka. Entre parênteses: o envolvimento de Alma com Gropius, quando Mahler convalescia do coração, levou o compositor austríaco a consultar-se com Freud. Pelo visto, Alma Mahler-Werfel não apreciava envolvimentos platônicos ou epistolares, mais chegados a outra musa intelectual da época: Lou Andreas-Salomé. (Carlos Eduardo Amaral)

AGRURAS DE AGOSTO Cada mês tem sua “marca registrada” e isso pode ter caráter mundial ou local. Fevereiro é o mês mais devasso, por conta do Carnaval, enquanto maio é o mês familiar ou feminino, pelo Dia das Mães e pelas noivas. Embora o Dia das Bruxas seja 31 de outubro e o dos Mortos, 2 de novembro, coube a agosto ser o mês do azar. Ao observarmos os fatos que motivaram tal associação e compará-los a outros maus acontecimentos que se desenrolam noutros meses (o 11 de Setembro certamente é o mais recente e midiatizado deles), vemos que essa pecha se deve muito mais ao sensacionalismo. Dê uma olhada, leitor, nos “causos” de agosto e veja se ele não é um injustiçado! (Adriana Dória Matos)

Elvis Presley (1935-1977) Por Lucas Falcão

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MAURICIO PLANEL

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MEMÓRIA

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PERSONA

No ano do centenário de seu nascimento, escritor que criou na literatura um paradigma para a classe média brasileira tem na controvérsia sua marca autoral TEXTO Álvaro Filho

ENTRE POLÊMICAS E AUDÁCIAS

Há pouco mais de três décadas, Nelson Rodrigues perdia a guerra contra um edema pulmonar que o levaria a morrer de parada cardíaca e respiratória. Se, por um lado, o Brasil se privou da arte de um de seus cronistas e dramaturgos mais geniais, o óbito o livrou de constatar que o mundo, 100 anos após o seu nascimento, também foi derrotado por um inimigo mais traiçoeiro e contagioso que a tuberculose que o acompanhou a vida inteira: o bacilo do politicamente correto. Salvo as homenagens pertinentes em anos de efeméride – como o material produzido para essas páginas –, é provável que, passado o oba-oba do centenário, o pensamento rodriguiano volte a ser escanteado, cultuado por poucos e cada vez mais raros os que ainda resistem à pasteurização dos modos e costumes, mas que, tementes de serem tratados a pauladas como vira-latas, são tímidos em expressar esse “desvio”. Como diria o próprio Nelson, os idiotas da objetividade venceram. Basta uma olhadinha no Facebook. Diariamente, um Niágara de frases, máximas, pensamentos, aforismos e trechos de poemas de pesos-pesados da literatura, do porte de uma Clarice Lispector, ou de queridinhos de gerações mais recentes como Caio Fernando Abreu, deságuam nas redes sociais, a serviço de alegrias, tristezas e angústias, ou simplesmente para dar um prosaico recado ao amor que se quer ter ou se perdeu. Apesar da profusão até certo ponto entediante, Nelson Rodrigues não figura na lista. Nem uma mísera linha. Mas vamos e venhamos: num ambiente no qual é preciso medir as palavras, incluindo em número de caracteres, não há espaço para um polemista de

mão-cheia, que arrumou encrenca com a população do Piauí – por afirmar o óbvio ululante de se tratar de um estado pobre –, que achava a companhia de um paulista a pior forma de solidão e chegou a dizer que o mineiro só era solidário na hora do câncer. Nem o ex-arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara, escapou de sua fúria. Para Nelson, não passava de um “padre de passeata”, que propunha trocar o órgão, o violino e a harpa nas igrejas pelo reco-reco, tamborim e cuíca, transformando a “catedral numa gafieira gótica”. Provavelmente, Nelson herdou o dom da polêmica do pai, o também jornalista Mário Rodrigues, que foi obrigado a trocar o Recife pelo Rio de Janeiro, no início do século passado, para não sofrer as consequências do que havia escrito contra políticos locais. Mário, de tão ácido, nem na Guanabara encontrou a liberdade de expressão desejada. A solução foi fundar o próprio jornal. Chegou a ser dono de dois, entre eles o A Manhã, no qual Nelson estreou na redação, com 14 anos incompletos, como repórter da editoria de polícia, migrando pouco tempo depois para a seção de opinião. A ira paterna contra os poderosos teve como preço uma série de processos, que culminaram na falência dos empreendimentos jornalísticos e no endividamento familiar. Coube a Nelson, já como repórter de O Globo, multiplicar-se entre publicações a fim de arrecadar o suficiente para garantir o sustento da numerosa família – tinha 13 irmãos –, o que o transformou numa máquina de escrever, fossem crônicas esportivas ou sobre o cotidiano, folhetins, peças publicitárias e de teatro, e até de aconselhamento sentimental, travestido sob o

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pseudônimo de Suzana Flag e Myrna. E o fez com magistral competência. É bom lembrar que o jornalismo na primeira metade do século 20 ainda era atividade quase amadora, com remuneração baixíssima e, assim sendo, sem exigências de treinamento específico. Os egressos das redações eram na maioria aspirantes a escritores ou curiosos, quase todos em busca de reconhecimento literário e de um trocado para garantir a vida boêmia. Alguns até semianalfabetos ou com os estudos incompletos, como o próprio Nelson Rodrigues, que abandonou a escola sem terminar o que hoje seria o Ensino Médio – o que não o impediu de sempre escrever com correção e velocidade, apesar de datilografar apenas com dois dedos de cada mão, fora o espantoso vocabulário, de fazer inveja a muitos fardados da ABL. Além da destreza na redação, Nelson tinha uma qualidade cara ao jornalismo: o poder de observação. Apesar da miopia galopante, farejava cada detalhe como um bom perdigueiro. As andanças como repórter policial serviram para que ele coletasse histórias habitadas por maridos traídos, esposas infiéis e crimes passionais testemunhados por gordas com varizes e “colares” de brotoejas em volta do pescoço, que lhe renderiam centenas de crônicas na série de A vida como ela é, por exemplo.

VISÃO JORNALÍSTICA

O míope Nelson Rodrigues não só via muito bem, como também de forma diferente. Sua visão sobre o modus operandi da profissão provocaria urros de cachorro atropelado nos atuais professores de jornalismo. No manual de redação rodriguiano, a “arte jornalística” consistia no que chamava de “pentear e desgrenhar o acontecimento” e o bom repórter nunca poderia ser um “reles e subserviente reprodutor do fato”. Para ele, o que dava autoridade à notícia era justamente o “acréscimo da imaginação”. Quando os primeiros jornalistas oriundos das universidades começaram a povoar os jornais, Nelson não escondeu sua decepção. Lamentava a ausência de um Homero, Camões ou Dante, capaz de entupir de rimas e poesia uma boa história. Várias de suas crônicas foram dedicadas à estagiária com “odor da PUC”, que

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Para Nelson Rodrigues, o que dava autoridade à notícia não era a realidade, mas o “acréscimo da imaginação ”

deslizava entre as mesas e cadeiras com “leveza irreal” e “a agilidade incorpórea das sílfides”, mas que não sabia articular uma pergunta. Chegou a contar, quando foi entrevistado por uma que quis saber a opinião dele sobre a tecnologia: “Depende..”, começou a responder Nelson, sendo bruscamente cortado pela estagiária, pulando à questão seguinte, já satisfeita, como se “depende” fosse uma resposta “total e de uma clarividente originalidade”. Na verdade, Nelson Rodrigues tinha pouca paciência e até certo desprezo pelas novas gerações. Chegou a dizer que, na vida, em geral, o jovem tem apenas duas alternativas: “Ou é um Rimbaud, ou então um débil mental, desses que babam”. Mas nem por causa disso era um saudosista. Quando os telejornais surgiram, foi um dos primeiros a vaticinar o fim do jornal impresso. Nelson alertava que se liam apenas os “fatos da véspera” e nunca do próprio dia. Diagnosticou assim a “velhice” profissional que acometia os “jornalistas de papel”, cada vez mais obsoletos, “mais fora de moda que o charleston”.

Grande parte da sua fama de polêmico jazia justamente na forma singular de ver o mundo. Inconscientemente, contemplava uma prática pouco valorizada no jornalismo, mas de grande importância: o contraditório. Na verdade, Nelson se lixava para a opinião dos outros. Achava, inclusive, que “toda unanimidade era burra”. Quando os companheiros de redação, muitos chamados por Nelson de “idiotas da objetividade”, refutavam suas crônicas esportivas, utilizando o que viam no replay das partidas, Nelson não se fazia de rogado e, ressaltando a ausência de criatividade de uma tecnologia que reduzia sua existência ao ato de apenas repetir e repetir uma rotina, cunhou a célebre máxima: “O videotape é burro”. E ele sabia o que estava dizendo. Os textos de Nelson Rodrigues sobre futebol são o que de melhor a crônica esportiva brasileira foi capaz de produzir até hoje. Peladas poderiam virar batalhas épicas e sangrentas, disputadas numa atmosférica feérica e decididas por lances sobrenaturais. Nada escapava ao “não olhar” rodriguiano, capaz de encaixar a presença “impalpável” de uma “grã-fina de nariz de cadáver” em um Botafogo e Santos, no Maracanã que, aflita, questionava incessantemente “Quem é a bola? Quem é a bola?”. Na mesma proporção que colecionava fãs com suas crônicas esportivas, Nelson via engrossar a fila de desafetos, que o tachavam de “reacionário”. E não

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REDAÇÃO Máquinas de escrever e fumaça de cigarro compunham o ambiente de trabalho do escritor

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FAMÍLIA DO AUTOR 1. Milton, 2. Nelson, 3. Joffre, 4. Maria Esther, 5. Mário Rodrigues, 6. Mário Filho, 7. Célia, 8. Stella, 9. Roberto, 10. Augustinho, 11. Elsa, 12. Maria Clara, 13. Irene, 14. Helena, 15. Paulinho, 16. Sérgio, 17. Elsinha, 18. Mário Júlio

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por acaso. Sempre tinha uma opinião sobre tudo e geralmente contrária ao pensamento vigente, seja sobre a exposição banal do umbigo após a popularização do biquíni, à histórica passeata dos “Cem Mil” que, na visão dele, não reuniu ninguém do povo, um “desdentado, favelado ou batedor de carteira” sequer. O afã crítico de Nelson Rodrigues não poupou o ministro da Fazenda da época, Delfim Netto, que justificou o mau rendimento da indústria têxtil ao uso crescente da minissaia, diminuindo assim o consumo de tecido, nem o Festival da Canção, quando zombou tanto do derrotado Geraldo Vandré quanto do vencedor, Tom Jobim, dois intocáveis ícones da MPB. Vingativo, sempre que podia tirava um sarro do então crítico de teatro Paulo Francis, não muito simpático à dramaturgia

rodriguiana, a quem Nelson se referia singelamente como “um falso cínico”. Paulo Francis, aliás, foi considerado por alguns, ironicamente, como um dos seguidores da linha de um jornalismo sem papas na língua, embora seu texto não se comparasse à prosa metafórica rodriguiana. Outros se arvoram de tentar imitar o estilo, porém sem o mesmo sucesso, como o duvidoso Diogo Mainardi, que mais que ter uma opinião sobre os fatos, faz questão mesmo é de ser gratuitamente um chato. Curiosamente, quem tem cumprido com certo êxito a missão é o cineasta Arnaldo Jabor, um fã confesso de Nelson Rodrigues, que levou às telas vários dos textos desse autor. Jabor, por sinal, não raro convoca o próprio Nelson a participar de sua coluna semanal para um sobrenatural bate-papo telefônico.

Mas a verdade é que, desde que Nelson Rodrigues se foi, não surgiu nada de novo ou inspirador na imprensa, suficiente para vencer as barreiras do politicamente correto sem apelar para o humor de mau gosto e raso como um pires. A unanimidade reina, apoiada em números do Ibope ou da circulação de vendas dos jornais e, somado ao videotape, o tirateima não abre espaço para batalhas sobrenaturais no campos de futebol. O contraditório e a polêmica foram sepultados ao lado do velho Nelson, esquecido até mesmo em sua terra natal, onde há uma avenida presidente Kennedy, mas nenhuma rua, praça, viela, quiçá um beco com chão de terra batida que ostente o seu nome. O centenário do dramaturgo e escritor é a chance de se perceber que o legado de Nelson Rodrigues não está contido na magistral obra que produziu, mas na atitude de suspeitar e duvidar de tudo, de enxergar o mundo não com os olhos, e sim, com a cabeça.

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CON MEMÓRIA TI NEN TE

MÁRIO FILHO O Homero do futebol

O irmão mais velho de Nelson foi de tal modo importante para a crônica esportiva, que o gênero não seria o mesmo depois de sua contribuição TEXTO José Neves

Mário Filho, o terceiro da prole de 14 herdeiros da família Rodrigues, era chamado de “Homero do futebol” por Nelson. Mas, se a narrativa da vida do poeta grego mistura lenda e realidade, a do irmão do Anjo Pornográfico, não. Ele faleceu em 1966, aos 58 anos, deixando importante legado para o esporte brasileiro. Primeiro, explicou a presença do negro nessa apaixonante modalidade esportiva, em O negro no futebol brasileiro, maior clássico sobre o futebol no Brasil. Depois, exerceu importante papel na evolução da crônica esportiva. Mas, se Mário influenciou o irmão Nelson, que o idolatraria eternamente, é preciso registrar também a influência de Gilberto Freyre sobre Mário: a partir do artigo Foot-ball mulato, que o Mestre de Apipucos publicou em 17/6/1938, no Diario de Pernambuco. Nele, o sociólogo pernambucano aborda a participação brasileira na Copa do Mundo de 1938. Destaca a coragem que tivemos de mandar à Europa “um time fortemente afro-brasileiro”. Com seu olhar perspicaz, Freyre já observava as características originais do jogador nacional: “O nosso estilo parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e, ao mesmo tempo, de espontaneidade individual... Os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses (...)”. Freyre seria convidado nove

anos depois para escrever o prefácio de O negro no futebol brasileiro. Mário Filho era dotado de visão intelectual privilegiada e também de um empreendedorismo nato. Depois dele, a cobertura de eventos esportivos mudou no Brasil. Ele inventou o desfile das escolas de samba no Rio, os Jogos de Primavera, batizou o

Na crônica esportiva, Gilberto Freyre influenciou Mário Filho que influenciou o comentarista de mão-cheia Nelson clássico mais tradicional do futebol carioca, o Fla-Flu, e foi decisivo para a construção do Estádio do Maracanã, ao qual emprestou o nome. Dois fatos contribuíram para aproximar ainda mais os irmãos Mário e Nelson. Em 1929, Roberto, que era primogênito e artista plástico, foi assassinado. No ano seguinte, Mário Rodrigues, o pai, veio a falecer. Coube a Mário Filho assumir a chefia da família. E ele fez mais que isso, tornando-se uma espécie de mentor intelectual do seu jovem irmão. A identificação entre os dois, a partir daí, ficou mais forte. Nelson absorveu naturalmente as explicações e forma de interpretação de Mário sobre o estilo brasileiro de jogar futebol. A

morte do pai da crônica esportiva obrigou o dramaturgo a intensificar a divulgação de sua obra, de suas qualidades, uma forma de imortalizar o irmão. E isso ele fez com pleno êxito. Nelson dizia que o irmão inventara a crônica esportiva, com uma nova linguagem e que o futebol passara a ocupar espaço privilegiado nos jornais a partir de Mário. Os jornalistas esportivos, antes primos pobres dos colegas de redação, passaram a andar de gravata, a ter carros novos, em vez de mendigar míseros sanduíches e refrigerantes aos clubes nos dias de jogos. Para Nelson, a presença de Mário na cobertura esportiva trouxe dignidade à categoria, além de uma nova linguagem. Verdade em termos. Podemos dizer que Mário apenas levou ao noticiário os novos conceitos criados a partir da Semana de Arte Moderna, de 1922. Ele era um assíduo leitor de Mário de Andrade e de outros bambas que introduziram aquele novo estilo literário no Brasil, como registra Ruy Castro, em O anjo pornográfico: “... os vapores da Semana de 1922 já tinham se espalhado pelo Brasil e os truques mais modernosos do Modernismo – as frases curtas, os ‘flashes’ visuais, um certo jeitinho malcriado de escrever – eram uma doença entre os jovens escritores. Os modernistas eram fáceis de imitar, tanto que se imitavam uns aos outros, como Oswald de Andrade e Ronald de Carvalho, que eram os que Mário Filho, por sua vez, imitava.”

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FOTOS: REPRODUÇÃO

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3 e 4 PELÉ Em textos escritos sobre o craque, Mário (acima) adota tom sociológico; Nelson, apoteótico

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Coube a Mário, com seu olhar sensível, explicar aquela realidade com uma visão sociológica. Contou em seu livro como aqueles negros descalços conseguiram a inclusão social com arte e malícia, jogando contra brancos, vencendo o preconceito com manha e picardia. Para ele, o futebol adquiriu relevância por incluir aquela população negra marginalizada recém-saída da escravidão numa sociedade dominada pela oligarquia. Mário Filho criou o jornal O Mundo Esportivo, que durou pouco tempo, antes de adquirir de Roberto Marinho (um dos cúmplices de Nelson na divulgação do mito do inventor da crônica esportiva) o título de Jornal dos Sports. Ele acreditava no futebol como possibilidade de ascensão social para os negros e de encantamento para as multidões. Como admirador e fã do irmão, cabia a Nelson a outra parte do processo de construção desse projeto. Dramático, teatral, ele assumiu a missão de enxergar e divulgar os dramas humanos, as tragédias gregas

dentro do gramado. Mário era o verbo, a ação. Nelson, o adjetivo, a metáfora. Há vários exemplos, mas em dois textos sobre o mesmo personagem, Pelé, podemos conectar Mário e Nelson, e entender o papel de cada um neste contexto: o primeiro, com seu olhar sociológico; o outro, apoteótico, profético. Ambos, porém, na mesma direção. Uma tabelinha entre o analista atento à questão social e o gênio da crônica esportiva a vislumbrar um reinado em plena construção por um negro. No prefácio da segunda edição de O negro no futebol brasileiro (de 1964, pela editora Civilização Brasileira), Mário exalta a personalidade do futuro do maior ícone nacional da bola: “Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, mas para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória. Nenhum preto, no mundo, tem contribuído mais para varrer barreiras raciais do que Pelé. Tornouse o maior ídolo do esporte mais popular da terra. Quem bate palmas

para ele, bate palmas para um preto. Por isso, Pelé não mandou esticar os cabelos: é preto como o pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. Para exaltá-los, exalta o preto. Por isso, é mais do que um preto, é o Preto. Os outros pretos do futebol brasileiro reconhecemno. Para eles, Pelé é o Crioulo”. Numa coluna para a revista Manchete Esportiva, em março de 1958, antes da consagração do santista na Suécia, Nelson chama Pelé de rei, pela primeira vez: “Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei. Da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”.

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CON MEMÓRIA TI NEN TE

Artigo

MAURICIO PLANEL

MARIA LÚCIA RODRIGUES AS MULHERES ABRIGADAS EM NELSON RODRIGUES Consultório sentimental , Biblioteca das moças? Histórias moralistas, edificantes? Educação da sensibilidade feminina nos idos de 1940? Tramas bem-escritas e bemurdidas, cheias de suspense. Sensualidade quase resvalando no erotismo. Certamente, a aparência pode lembrar a Biblioteca das moças, mas se ali existia alguma intenção era a de deseducar a sensibilidade feminina conservadora. Isso num homem que, anos depois, nas suas memórias, confessava que sua intenção não era convencer ninguém e, sim, ser fiel ao que lhe parecia certo. Nelson escreveu folhetins e consultórios sentimentais nos jornais dos Diários Associados e em Última Hora sob os pseudônimos de Myrna e Suzana Flag. Como escritora mulher, teve um sucesso estrondoso e contínuo. Suzana teve maior produção, prova de maior longevidade do trabalho de um jornalista que se “matava de trabalhar”. Myrna apareceu no Diário da Noite em maio de 1949 e lá ficou até o final do ano. A mulher libertária. Falemos de Suzana Flag. Em Meu destino é pecar (publicado pela primeira vez em livro em 1944), ela já dizia logo de início, “O que defende uma esposa é o amor”. Entende-se que a defesa a que ela se refere é a do risco do adultério. Esposa mal-amada, conclui-se, poderia trair o marido. Antes, ela já havia colocado na boca de uma personagem: “Esse negócio que dizem por aí, que a mulher é que deve ser conquistada, é bobagem. Que nada!”. Em outras muitas passagens do mesmo livro, ela descreve suas personagens como mulheres fortes e decididas. A fragilidade só aparece quando elas querem, sempre fazendo de conta que a iniciativa era dele.

O desejo é tanto dele quanto dela. Mas quem leva a culpa (quem supostamente força o encontro) é ele. Ela, “frágil e sensível, se rende ao abraço, ao beijo, a não sei mais o quê. A autora apenas deixa entrever, incendiando decerto a imaginação de suas leitoras. O que mais viria depois? Como não se identificar com a escritora Suzana Flag? Há milhares de anos, as mulheres utilizam, o tempo todo, estratagemas semelhantes. É claro que não se pode abstrair, das situações de dominação explícita ou implícita, o que Suzana não negava. O que ela

fazia era dar voz às rebeliões surdas, bem-urdidas, sob o véu da submissão inconteste. E, ainda, elevava constantemente a autoestima de suas leitoras. “As mulheres enxergam muito mais que os homens.” Em Escravas do amor, publicada em livro em 1946, na Coleção O Cruzeiro, Suzana, não satisfeita em subverter o ideário feminino, questiona a hierarquia social. Malu conta ao pai o episódio do assaltante e logo em seguida pede que o jardineiro, ferido ao defendê-la, venha morar na casa da família. O pai fica escandalizado e ela diz: “Que tem

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mulheres. “Como todas as mulheres!”, generalizava, sem sentir o que havia de ingênuo nesse ódio contra um sexo inteiro. É o Dr. Carlos, em Escravas do amor, irritado com Lydia, completamente perdido, cego às tramas das mulheres que o cercavam. O egoísmo e a pretensão masculina aparecem com bastante clareza, fria e objetivamente, em Myrna, a outra escritora abrigada em Nelson Rodrigues. Talvez mais moderna? Mais decidida? Não fazia tantos circunlóquios como Suzana Flag. Em A mulher que amou demais (1949), quando o pai de Lúcia diz à Paulo (o noivo) que não pode haver casamento, pois a filha perdera a razão, Paulo responde: “Mas na véspera do casamento? Logo na véspera do casamento?”. Dir-se-ia que o trágico do fato não estava na loucura em si, mas na oportunidade. Nesse romance, aparece a firme e clara determinação da mulher em não se sujeitar ao desejo da família e do homem. Lúcia diz à Paulo: “Vou lhe dizer o que acho. Se a noiva descobrir, de repente, que não

Nelson tem uma alma feminina, que observa profundamente e com extrema sensibilidade os desejos e anseios das mulheres

isso? E jardineiro por acaso não é homem, como o senhor, como o Dr. Meira?”. Fica evidente que Nelson/ Suzana tem uma alma feminina, que observa profundamente e com extrema sensibilidade os desejos e os anseios das mulheres. Por admirá-las, estabelece cumplicidade e solidariedade imediatas com elas, mas isso não significa que aprove as condições a que eram submetidas as mulheres de seu tempo. Volta e meia, ele/ela exagera a condição em que se encontravam as personagens, para, talvez, demonstrar-lhes o contrassenso

de hipotecar suas vidas a homens que estavam longe de merecê-las. Dizia Noêmia, em Minha vida: “Quero um homem que me transforme numa escrava”. Seu ideal amoroso era a servidão absoluta diante do bem-amado. No final, Noêmia é abandonada por Aristeu, que prefere Suzana, muito mais rebelde que Noêmia, e esta última enlouquece, destino das mulheres que hipotecam toda sua autonomia. Nelson/Suzana não simpatizava muito com seus personagens masculinos. Egoístas, pretensiosos, incapazes de compreender as

ama seu noivo, deve desmanchar o casamento, até diante do juiz”. Outras passagens do mesmo livro mostram a observação sensível e crítica do mundo das mulheres e das relações conjugais e/ou amorosas. Mas quero, por fim, fazer uma homenagem a esse escritor/essa escritora que sabia como ninguém chamar a atenção do distinto público, transcrevendo o “reclame” da coluna de Myrna. Em 16 de março de 1949, aparece um singelo anúncio no Diário da Noite: “E Myrna escreve! De amor também se morre, De amor também se vive. Brigou com seu marido? Que dirá Myrna?”. Uma semana depois, aparecia a coluna Myrna escreve!, que obteve um sucesso estrondoso enquanto durou.

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COLETÂNEA DEPOIMENTOS QUE DESFAZEM MITOS E RÓTULOS Quando o garoto solitário, de relações superficiais e enorme pudor físico, em pleno 4º ano primário, se inscreve no concurso de composição da Escola Prudente de Moraes, ele ainda não é o dramaturgo vaidoso de anos mais tarde. Mesmo assim, arrisca e vence a disputa, dividindo o primeiro lugar com outro menino da turma. O colega da instituição da Tijuca havia escrito uma narrativa sobre um rajá que passeava montado num elefante, texto que foi lido em voz alta, enquanto a história de traição – que terminou com o marido esfaqueando a adúltera –, também premiada, ficou guardada no silêncio atormentado das professorinhas. Nelson Rodrigues, ainda pequeno, escrevia a sua primeira trama nos moldes de A vida como ela é... . Aos 13 anos, ele assumia o cargo de repórter policial no jornal A Manhã com verdadeiro deslumbramento, pois as páginas sangrentas tinham outro status e outro mistério: um tempo em que as redações não se resumiam a “essa massa de máquinas e redatores batendo”, em que “o diretor era o gênio absoluto, o Proust, o dono da língua”, em que “o nariz de cera, que a imprensa atual não usa, era inevitável” e que “o pessoal retocava a realidade”. Foi no ambiente do jornal, aliás, que ele adquiriu um profundo horror ao assassinato, mas não pelos casos apurados e escritos. A morte do irmão Roberto, o qual considerava um gênio, veio de forma prematura e com uma tranquilidade assombrosa. O tiro foi desferido por uma mulher que atravessou a vida de Nelson com apenas três frases: “O Dr. Mário

REPRODUÇÃO

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Rodrigues está?”, “O Sr. (dirigindo-se a Roberto) pode me dar um minutinho de atenção?” e “Eu não vou fazer mais nada. Vim aqui matar Mário Rodrigues ou um de seus filhos”. Essas são algumas passagens da vida do dramaturgo que podem ser encontradas textualmente no livro Nelson Rodrigues por ele mesmo, organizado por sua filha Sônia Rodrigues. O lançamento da Nova Fronteira consiste numa colagem de entrevistas coletadas em pesquisas, além da íntegra de três textos do próprio Nelson que se encaixam aos demais conteúdos apresentados. Apesar das intervenções da organizadora, sempre destacadas em negrito para não confundir o leitor, existem momentos em que o caráter fragmentado da publicação fica evidente, seja em truncamentos ou em repetições. No entanto, o mérito de organizar depoimentos do escritor controverso e problematizar os estereótipos aos quais ele fora condenado é inconteste. Diante das falas de Nelson,

5 VESTIDO DE NOIVA Peça tornou-se marco do teatro experimental brasileiro, quando estreou em 1943

ninguém pensará que o arrogante e o reacionário não existiram dentro dele, mas, certamente, o leitor reconhecerá a incompletude desses rótulos. Há criticidade, pioneirismo e ferocidade nos seus pontos de vista, mas também insegurança e doçura. O que, definitivamente, não consta na sua trajetória é concessão. E, ao que parece, quem não faz concessão pode ficar muito só. “Ele não era de partido, não era de igreja, não era de esquerda ou de direita, não era da Academia (nem a de Letras, nem a universitária), não pertencia a grupos de opiniões, nem a ‘panelas’ de nenhuma espécie”, relembra Sônia. Não fazer concessão também incomoda. Por isso, ele vai despertar desprezo à direita e ojeriza à esquerda. Para os moralistas, será o pornográfico; e, para os pornográficos, o moralista. Nelson é um espinho na

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DIVULGAÇÃO/ITAÚ CULTURAL

pata do humano. Uma imagem que pode parecer bastante consagradora hoje, depois de sua ampla aceitação, mas que condenou sua carreira à inconstância. Apesar do grande sucesso da peça Vestido de noiva, elogiada por críticos como Manuel Bandeira e Álvaro Lins, as montagens seguintes dos seus textos foram rejeitadas e malcompreendidas. No livro, essa irregularidade se manifesta na fala do dramaturgo em dois tons frequentes: o de superioridade, por saber que estava fazendo um teatro completamente novo na história do Brasil, e o de mágoa, por perceber que estava ilhado, sem interlocutores que compreendessem o seu estilo e as suas propostas. Mas ele sempre esteve consciente de que o caminho escolhido para a sua linguagem tinha um quê de intragável, sobretudo para uma época de tanto puritanismo e hipocrisia (nem tanto diferente de hoje): “Que caminho será este? Respondo: de um teatro que se poderia chamar assim – desagradável. Numa palavra, estou fazendo um teatro desagradável, peças desagradáveis. (…) E por que peças desagradáveis? Segundo já se disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”. O seu discurso ora revela um intelectual ranzinza, ora deixa escapar fragilidades do artista nesse enfrentamento voraz do mundo. O olhar amadurecido fica indo e vindo na publicação, já que o livro está dividido de acordo com fatos e temas, respeitando certa cronologia biográfica, mas sem uma linearidade rígida. Em muitos momentos, o dramaturgo parece fazer uma revisão do próprio comportamento, reconhecendo o seu perfil ambicioso e até mesmo invejoso, no início, em relação às obras e à fama já conquistadas pelos pares. Mas não há margem para arrependimentos ou mea culpa: ser Nelson Rodrigues tinha que ter um preço. GIANNI PAULA DE MELO

EXPOSIÇÃO Cenário e memória de um polemista

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TEXTO Álvaro Filho

Para quem um dia chegou a dizer que

a “pior forma de solidão é a companhia de um paulista”, Nelson Rodrigues estava muito bem-acompanhado. Numa fria manhã de julho, quando os termômetros da Avenida Paulista teimavam em ficar abaixo dos 15 graus, a mostra sobre o dramaturgo e escritor pernambucano atraía um bom número de visitantes ao Itaú Cultural, cravado no coração de São Paulo. Turistas, curiosos, profissionais do teatro e estudantes, alguns deles com “odor de PUC”, e até algumas “grã-finas com o nariz de cadáver”, como observaria o próprio escritor, circulavam pela exibição que, no ano do centenário dele, busca traçar um perfil definitivo sobre o polêmico autor, com um enfoque especial, e até certo ponto inédito, sobre as origens pernambucanas.

A força da influência pernambucana na formação do homem e do mito Nelson Rodrigues, inclusive, levou o Itaú Cultural a quebrar uma tradição: pela primeira vez, em 13 edições, uma exposição criada para o espaço Ocupação da casa deixa a capital paulista e, de forma itinerante, aporta na Torre Malakoff, no Recife, a partir de 23 agosto, dia do aniversário do dramaturgo. Além do background geográfico, o trabalho também se debruça sobre o aspecto “família” dele, e aí o faz com direito, afinal a curadoria está a cargo da filha, a jornalista e pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues, e da neta, Sônia Rodrigues Muller, esta última responsável por coletar, em Pernambuco, depoimentos sobre o avô e também sobre o clã dos Rodrigues, numa das partes mais ricas e originais do acervo exibido.

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Página anterior 6 OCUPAÇÃO

Exposição sobre Nelson Rodrigues, em São Paulo, atraiu centenas de visitantes

Nesta página 7 INTERATIVA

Mesa com tablets representa a família do escritor

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A soma dessa arqueologia nostálgica dá à Ocupação Nelson Rodrigues um ar de álbum de família, nome que justamente remete a uma de suas peças mais polêmicas, que o levou a sair do jornal Última Hora e ainda ajudou a carimbar de uma vez a fama de autor maldito. Imagem que a filha e curadora habilmente tenta desconstruir, a partir do texto que abre a exposição, quando argumenta que o pai havia retratado o quanto era “pequena, mesquinha e hipócrita” a sociedade da época e que ele, mesmo sabendo que o “preço a pagar seria a solidão intelectual”, optou em ser um homem livre. Além da faceta de maldito, um outro Nelson, o de “autor carioca”, também está na berlinda, constantemente confrontado pela onipresença das raízes pernambucanas na mostra, que se inicia não coincidentemente com o visitante cruzando uma pequena ponte de madeira armada sobre uma grande foto em preto e branco das pontes do Recife. Aliás, o mar pernambucano é uma presença quase obsessiva na exposição, através da projeção de ondas se arrebentando nos arrecifes da praia de Boa Viagem ou no marulhar que pontua o início e o fim das audições, uma memória nostálgica que levou Nelson Rodrigues, na deliciosa e imperdível entrevista concedida ao Museu da

A exposição desfaz a imagem histórica que restringia Nelson Rodrigues a reacionário, obsceno ou polêmico Imagem e do Som do Rio de Janeiro, a confessar seu fascínio por Copacabana por remetê-lo aos banhos de mar em Olinda, na infância. A Ocupação Nelson Rodrigues é dividida didaticamente em quatro partes, começando por uma apresentação geral do escritor, jornalista e dramaturgo através das mitológicas máximas rodriguianas, ilustradas por um riquíssimo acervo fotográfico da família. O tour segue pelo lado familiar do autor, através de uma gigante mesa de jantar, com 16 cadeiras, destinadas ao pai, à mãe, aos 13 irmãos, e a ele, Nelson. Em frente de algumas delas, foram instalados tablets, em que se é possível navegar, inclusive retroagindo com o toque, a interessantes conteúdos audiovisuais, entre eles o já citado registro do MIS carioca, realizado em 1967, com um Nelson ainda vívido e sagaz, que vale a pena ser ouvido do início ao fim.

Ainda nesse segundo espaço, uma outra parada necessária são os vídeos captados pela neta de Nelson, Sônia, em Pernambuco, como a inflamável defesa do pesquisador José Luiz da Mota Menezes sobre o “pernambucano” Nelson Rodrigues, rechaçando sem titubeios qualquer possibilidade de ele ser classificado como “autor carioca”. Igualmente imperdível é a emocionante participação da atriz Geninha da Rosa Borges, que lê os originais da peça Vestido de noiva, encenada pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), em 1955, com a própria Geninha no papel da protagonista Alaíde. A Ocupação Nelson Rodrigues segue desvendando o jornalista. Dois birôs estilizados, remontando às jurássicas redações frequentadas por ele, guardam depoimentos em áudio e vídeo de companheiros de batente, como Otto Lara Resende. O ponto alto é a crítica à “objetividade jornalística” que invadiu os jornais a partir da profissionalização da área, na segunda metade do século 20, confrontada de forma irônica pelo próprio Nelson. Em viva-voz ele também explica o que o levou a escrever as deliciosas crônicas de A vida como ela é, e o que o motivou a encarnar o papel da escritora Suzana Flag, aquela cujo destino era pecar. A exibição termina visitando o dramaturgo, na parte mais tímida da mostra, talvez porque boa parte do giro constantemente flerta com essa face. Assim como o paradoxal pensamento rodriguiano, a Ocupação Nelson Rodrigues é, ao mesmo tempo, concisa e abrangente, reparando um erro histórico de se tentar restringir como reacionário, obsceno ou polêmico um autor que, longe de ser um só, deveria ter seu nome conjugado sempre na terceira pessoa do plural, evitando, de quebra, que se concretize uma das máximas concebidas – quiçá temida – pelo próprio Nelson: a de que o morto já começa a ser esquecido no velório.

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Perfil

CASEMIRO O vendedor de rapé Ambulante do Juazeiro do Norte cativa clientela com a raridade do seu produto e com sua verve

TEXTO Danielle Romani FOTOS Roberta Guimarães

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Perfil 1

Pequenininho, dono de um rosto

teatral, no qual se destaca um bigode ao estilo de Carlitos, personagem imortalizado por Charles Chaplin, Antônio Casemiro dos Santos, aos 74 anos, é um gigante e um artista na hora de comercializar seu inusitado produto, hoje raro nas grandes capitais, mas ainda comum nos sertões nordestinos: o rapé. De megafone na mão, chapéu, camisa social engomada, calça de tergal, sandália de couro e o inseparável recipiente de chifre, no qual guarda a mercadoria oferecida, Antônio solta o vozeirão pelas ruas de Juazeiro do Norte para propagar os efeitos benéficos das suas combinações de ervas, consideradas, pelos muitos clientes, como as melhores da cidade. “Olha o tabaco do véio, minha gente. Olha o rapé! Bom pra rinite, pra sinusite, pra resfriado, dor de cabeça, dor de estômago, cansaço, canseira e até espinhela quebrada”, costuma berrar o ambulante, que se diverte com a atividade e chama a atenção dos clientes e passantes não apenas pela qualidade do rapé – apreciado no Juazeiro, no Crato e redondezas –, mas também

pelo seu incrementado instrumento de trabalho, caprichosamente decorado. Metade de madeira, metade de corno de boi, o objeto é também motivo de orgulho para Antônio, que o ostenta como uma peça de arte. Originalmente um chifre comum, a peça foi aumentada a partir de uma base de madeira, que lhe confere cerca de 80 cm de dimensão. Seu toque final é uma escultura em forma de rosto, semelhante ao de Antônio, que serve como tampa. Uma estratégia de “marketing” que ajuda nas vendas e no folclore em torno de sua imagem. “Ele (o chifre) chama atenção do povo. Todo mundo que olha quer ver o que tem dentro. É uma arapuca: mesmo quem não quer, se encanta, pois o cliente acha bacana, não resiste e leva o rapé”, conta Antônio, com um sorriso maroto. O recipiente, que tem capacidade para um quilo do produto, foi montado por ele. Apenas o boneco não é criação sua. “Ganhei de presente de um vizinho. Achei bonito e, quando fiz o novo chifre, coloquei outro bonequinho porque se tornou uma espécie de marca registrada minha”, gaba-se. Aliás, Antônio é caprichoso em tudo. Da decoração da

própria casa – localizada na rua que fica logo abaixo do topo da colina do Horto, de onde se pode ver o casarão e a estátua de sete metros de Padre Cícero do Juazeiro – ao preparo do rapé. “Vendo três tipos de torrado (como o pó também é conhecido). Sou eu quem mói as ervas e prepara as misturas. O tradicional, feito com o fumo do tabaco, é o mais conhecido. O de imburana de cheiro é bom pra dor de barriga, disenteria, comida que ofende. E a mistura que tem noz moscada, pixurim, eucalipto, hortelã grande, hortelã miúda e alecrim serve pra problema respiratório, rinite e sinusite”. Antônio começou a fazer o rapé há alguns anos, após a morte da esposa Maria Nazaré. “Ela vendia ervas e raízes, como casca de umburana, quebrapedra e eucalipto. Quando ela foi embora, foi que tive a ideia de continuar mexendo com as ervas, mas de outra forma. O pessoal das redondezas gostou. Vendo uma média de, no mínimo, 100 gramas de rapé por dia”. Nas épocas de romaria, Antônio nem precisa sair de casa. E multiplica a saída dos potinhos de 100 gramas,

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usualmente vendidos por R$ 3. No terraço da sua residência, vende quilos do produto aos romeiros e conhecidos que chegam à cidade, às centenas, para reverenciar o Padre Cícero Romão Batista, e que passam, obrigatoriamente, pela porta da sua casa. Independentemente do rapé, Antônio é conhecido pela boa prosa e pela religiosidade. Na sua sala, como em muitas outras da colina do Horto, encontra-se montado um altar em homenagem ao “Padim” e ao Sagrado Coração de Jesus. Diferentemente de outros encontrados no bairro, o seu chama a atenção pelas proporções gigantes e pelo apuro com que é decorado: ocupa uma parede inteira do recinto, com flores de papel, velas, pisca-piscas, figuras de santos diversos e uma colcha de fuxico, tecida pela esposa querida e jamais tirada do local. “Quando minha mulher era viva, o altar era menor. Mas gosto de tudo grande, e resolvi fazer ele bemabastado”, conta o comerciante, que anualmente, no mês de fevereiro, promove uma festa em devoção ao Sagrado Coração de Cristo. “Durante três domingos fazemos reza para o Coração de Jesus. A decoração é mudada todo ano, nessa data, e passa 12 meses do mesmo jeitinho. Gosto de tudo bonito e arrumado. O homem que segue com Deus não tem com que se

"Bom pra rinite, sinusite, dor de cabeça, dor de estômago, canseira e até espinheira quebrada", diz o pregão preocupar”, diz Antônio, que resolveu morar no topo do morro exatamente pela proximidade do Padre Cícero. Alagoano de nascimento, era dono de terra e agricultor em Viçosa, onde nasceu e viveu até 1985, com a mulher e os 17 filhos. Somente então se mudou para o Crato. Os motivos da mudança se deveram à falta de perspectivas de sobrevivência. “Antes, na minha fazendinha, cheguei a plantar 11 mil pés de inhame, mas depois as coisas complicaram, até em cana tivemos que trabalhar. Os tempos estavam difíceis”. Com o dinheiro que ganhou da venda das suas terras, comprou uma casa num bairro nobre de Juazeiro, mas logo se mudou. “A vizinhança era muito grã-fina, aguentei não.” Com o dinheiro da casa, comprou outras três, todas no Bairro do Horto, onde se concentra uma comunidade mais popular. Com os filhos encaminhados, o rapé

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ALTAR Religiosidade de Antônio Casemiro é expressa no altar meticulosamente arrumado de sua sala

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ARTEFATO Feito em chifre e madeira, o porta-rapé é encimado por uma pequena escultura figurativa, que lembra o rosto do comerciante

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fazendo sucesso na freguesia e a aposentadoria governamental por idade garantida, seu Antônio não tem do que reclamar: “Aqui estou no céu”. Os clientes também agradecem a decisão do alagoano de se instalar no Juazeiro. “Desde sete anos cheiro o torradinho (rapé). Quando tomava chuva, mãe gritava pra gente dar uma pitada pra evitar resfriado. Sou consumidor assíduo. E o de seu Antônio é o mais bem-feito da região. Venho do Crato pra comprar as misturas dele”, comenta João Bosco Peixoto de Oliveira, motorista de táxi que faz praça na cidade vizinha, mas que, sempre que pode, dá uma escapulida para visitar Antônio Casemiro e abastecer o estoque próprio de rapé. Tradicional entre os sertanejos, e famoso no topo da colina do Horto, o rapé medicinal de seu Antônio, afirma o fisioterapeuta Paulo Gurgel, pode ter méritos. “Com base na aromaterapia e na medicina holística, os cheiros influenciam a emoção e alteram a química corporal. Vão atuar no nível dos brônquios e entrar na corrente sanguínea, surtindo bemestar. Mas é importante ressaltar que as substâncias podem irritar a mucosa, e os produtos a serem inalados têm que ser confiáveis. Espero que seu Antônio use os produtos corretamente”, ajuíza o terapeuta.

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ATMOSFERA De bons ventos agosto se faça No mês em que se registram os ventos mais fortes no Brasil, procuramos pessoas e situações que são como mensageiros – ou emblemas – desse elemento poderoso... e invisível TEXTO E FOTOS Chico Ludermir

Bóreas é um idoso alado com cabelos e barbas longas, veste uma túnica de nuvens; traz o vento frio e o inverno do norte. Muito forte, chega a ser violento. Seu irmão, Zéfiro, depois que se apaixonou por Clóris, rainha da primavera, passou a soprar suave do oeste, lentamente, para não danificar a beleza criada por sua amada. Foi Zéfiro quem fez emergir Afrodite, a deusa do amor e da beleza das espumas do mar, soprando-a e conduzindo-a, suavemente, até a ilha de Chipre. A mitologia grega nos oferece explicações fascinantes sobre a força dos ventos. Brisa, sereno, ciclone e furacão têm ganhado o olhar atento dos climatologistas e dos meteorologistas. No entanto, para muitos, o vento está repleto de mistério, suspense, poesia... Em agosto, mês que mais venta no Brasil, a Continente traz quatro histórias relacionadas ao ar. A da meteorologista, dos empinadores de pipa, do aviador e do jangadeiro. SACERDOTISA DO TEMPO

“O vento é o ar em movimento decorrente das diferenças de pressão no globo terrestre”, diriam os meteorologistas, mostrando a projeção

de Mercator. “Os ventos seguem das altas para as baixas pressões e modulam o clima do nosso planeta”, continuariam em tom professoral. E diriam mais: “O sistema de alta pressão no Oceano Atlântico é determinante para os ventos que temos na costa do Brasil. Quando esse sistema está fraco, os ventos ficam fracos, reduzindo as chuvas; quando está forte, os ventos ficam fortes, trazendo as precipitações para o continente, como geralmente ocorre nos meses de agosto”. Mas Francis Lacerda, meteorologista do Instituto Agronômico de Pernambuco, deixa de lado a veste puramente cientificista e se mostra quase como uma sacerdotisa do tempo. Ou Dama do Apocalipse, como alguns amigos a chamam, de brincadeira. Para ela, não basta analisar os números gerados por satélites ou boias nos oceanos. Em junho de 2010, por exemplo, Francis foi a única que previu a dimensão da catástrofe na Zona da Mata Sul: “Fiz uma previsão daquele evento extremo e nenhum outro centro de meteorologia previa daquela forma. Disseram-me que eu estava equivocada. Aí, eu fui

para casa e não consegui dormir, pensando no que podia acontecer, até que me ligaram pedindo para ir ao Palácio do Campo das Princesas. – O senhor vai querer pagar para ver?, perguntou ao governador Eduardo Campos, que logo acionou uma equipe para reagir à catástrofe. “Para mim, foi um sentimento de tristeza, mas acho que minha previsão salvou muitas vidas. É que, além de desenvolver essa expertise que envolve vários modelos conceituais, você também vai adquirindo experiência”, conta ela, graduada e mestre em Meteorologia, comparando seu trabalho ao de um médico que infere a partir da análise de exames. Com o grau de conhecimento que se tem hoje, pondera ela, ainda não dá para ter certezas nas previsões. A atmosfera é muito complexa e, por isso, a previsão do tempo tem muito de interpretação. Exige vivência, maturidade e feeling. A sensibilidade de Francis vem do berço. Seu bisavô era profeta do tempo. Seu avô também. Por isso mesmo, há 30 anos, ela optou por entender melhor aquilo que já era costume familiar e fez vestibular para o curso de Meteorologia, em Campina Grande, na Paraíba.

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As previsões ainda fazem parte das conversas dela com o avô sertanejo e agricultor, que hoje tem 94 anos. “Quando eu passei no vestibular, meu avô ficou muito emocionado porque sua neta mais velha iria estudar aquilo por que ele é encantado”, conta, enquanto lembra dos tempos de criança, quando passava as férias na fazenda. Os agricultores têm o hábito de observar a nebulosidade, olham o que chamam de barra de nuvens no horizonte no primeiro dia do ano, comemoram quando chove no dia de São José, 19 de março. A explicação científica chega depois e, geralmente, não nega a sabedoria popular, que se aplica bem aos microclimas. “Depois que a gente termina a graduação em Meteorologia, não olha

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mais o céu de uma forma romântica. Estamos sempre analisando”, afirma Francis. “Quando acordo e vejo no céu um tipo de nuvem, sei o que ela está indicando porque já tenho uma visão tridimensional”, diz ela, que também leva em consideração a pressão atmosférica, os ventos, a umidade relativa do ar, a fração de cobertura de nuvens, a radiação solar, a temperatura com precisões fornecidas por supercomputadores. Uma sacerdotisa munida de recursos modernos.

DONDINHO, POLOPA E BOCHECHA Era manhã de sol. Céu de brigadeiro, como se diz quando não há nenhuma nuvem. Depois de alguns dias seguidos de chuva, Dondinho, Polopa e Bochecha, moradores da

comunidade do Coque, no Recife, encontraram-se num de seus últimos dias de férias e foram juntos à vendinha perto de casa. Compraram cola, linha e uma seda bem colorida. A época era de bola de gude, mas os ventos sopravam, indicando que era dia de empinar pipa. Depois de gastarem R$ 1,75 com o material, os três amigos foram para a casa de Polopa, onde tem um coqueiro; subiram no pé, cortaram a palha e separaram a folha do talo para usar na sustentação do brinquedo. Com as mãozinhas pequenas, os meninos, pouco a pouco, foram confeccionando a pipa, numa diversão antecipada: colocaram os dois talos em forma de cruz, depois um terceiro na vertical. Enrolaram com a linha

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1-2 POLOPA E BOCHECHA Garotos que moram no Coque dizem que agosto é o melhor mês para as pipas 3 FRANCIS LACERDA Meteorologista herdou do bisavô e do avô a paixão pelos ventos 4 PILOTO AÉREO Profissão do comandante Fleck depende do humor das correntes de ar

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aqui, colaram a seda ali e fizeram uma dobra cuidadosa no acabamento. – Tu faz a rabiola, Bochecha?, pergunta Polopa. E Bochecha foi cortando um saco de lixo em várias tirinhas, para depois dar os nós. Enquanto brincavam de artesãos, os três iam jogando conversa fora. Falaram dos peixes beta que eles colocam para brigar. Da alternância das temporadas de brincadeiras – época de peão, de bola de gude, de totó, de video game. Mas a de que eles mais gostam é da época de papagaio. – É um corre-corre danado de menino. Quando tora a pipa, vai todo mundo correndo. Sobe em cima dos telhados e das árvores, pra recuperar a sua ou pegar a dos outros, descreve Dondinho.

Mas também conversaram sobre assunto sério. O avô de um deles morreu e, falando da saudade, Bochecha diz que deu um aperto tão grande no coração, que ele até chorou. Quando a pipa estava pronta, saíram os três juntos de novo. Enquanto um segurava mais ao longe, o outro pegou o cordão e saiu correndo, fazendo aquele colorido levantar voo. Foi tão rápido, que pareceu mais simples do que é. “Quando o vento tá forte, é bom. Num instante sobe. Chovendo é que não dá”, explica Dondinho. Os meninos têm prática. Aos 12 anos, eles já somam seis de experiência. – Aprendi a empinar com meu primo mais velho. Foi ele, também, que me ensinou a fazer a minha própria pipa e a botar cerol. A gente

bate o vidro todinho, peneira e mistura com cola. Aí, vai soltando a linha e melando – conta Polopa, explicando como faz para ir a toque (disputa). – No meu melhor dia, eu torei cinco papagaios. Era com cerol de cola de madeira. A pessoa tem que ir por cima da outra pipa e depois decair rapidamente. Se você conseguir aparar, as pipas ficam enganchadas e você ganha a do outro, resume Bochecha.

DA ARTE DE VOAR

Comandante Fleck saiu apressado pela porta de desembarque. Acabava de fazer um voo fretado de Miami até o Recife e já se encaminhava para voar de volta. Todo fardado e em tom formal, explicou como as aeronaves conseguem se deslocar através do ventos.

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A decolagem acontece pela diferença de pressão entre as partes de cima e a de baixo da asa, chamadas de extra e infradorso, criando uma força resultante de sustentação. O vento determina o tempo de voo, a quantidade de combustível e o horário de chegada. Em função da força e do sentido do seu sopro, a viagem pode ser alongada ou encurtada. Tudo é calculado pelo despachante operacional de voo, o DOV, que manda boletins meteorológicos com as velocidades e condições de vento em diversos níveis, principalmente no nível de cruzeiro (o nível final). João Lycio, piloto da companhia Gol desde 2000, exemplifica: “A mesma rota tem grandes variações: São Paulo - Recife dura 2h45, já

Recife - São Paulo, 3h10. O vento sopra mais para o Equador”. São os ventos que causam as turbulências, acarretadas pela confluência de correntes em altitude. “Passamos sempre por elas. É muito comum na profissão”, ameniza Lycio. “As turbulências não são nada mais do que os ventos perturbados, como um mar que balança muito. A gente sempre calcula para fugir, mudando de nível.” Algumas, no entanto, são imprevisíveis. Chamadas de turbulências de céu claro, essas não são detectadas pelos sonares. São como rajadas de vento sem moléculas de água, por isso, os radares não acusam. O avião está voando lisinho e leva uma pancada. “Já peguei uma indo para Bariloche e foi muito forte. Eu estava descendo

com vento normal, sem nuvem no céu. Começou balançando um pouquinho, mas depois balançou bem forte, como se fosse um tubo de jato”, conta. “A técnica é reduzir a velocidade do avião e passar com tranquilidade, para não ter degradação na estrutura, nem empenar, nem perder nenhuma peça. Mas é raríssimo o vento causar um acidente em aviões de grande porte. A maioria dos problemas é causada por falha humana”, explica.

O PESCADOR

Numa casinha miúda em Brasília Teimosa, beira-mar recifense, mora Laércio Gonçalves da Silva. Nascido no dia 4 de novembro de 1932, muito em breve o pescador completará 80 anos.

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5 PESCADOR Laércio analisa os ventos marítimos todas as manhãs 6 BIRUTA Tradicional instrumento que indica o caminho dos ventos, em Brasília Teimosa

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Com boa parte da vida dedicada à pesca, durante muito tempo, ele passava mais tempo dentro d’água do que fora. “Antigamente, eu ficava quatro, cinco dias no mar. Saía na segunda e só voltava na sexta-feira de manhã. Aí, pegava os peixes graúdos. Deixava alguns pra família comer e o resto vendia”, conta o pescador, que tem 13 filhos, 33 netos e 12 bisnetos. Quando era tempo de verão, Laércio achava melhor estar no silêncio do mar do que em casa. Só era ruim quando ia anoitecendo, porque dava muita tristeza e solidão. Com sua jangada ao sabor do vento, o pescador, naturalmente, foi ganhando intimidade com o ar. “Na enchente da maré, o vento vem mais alvoroçado. Quando está secando, fica manso, manso. O terral, que dá bem

friozinho de manhã, é bom de viajar. Já o ‘gerar’ só faz botar a gente pra trás. Até vira a jangada”, conta. – E o senhor já teve algum problema com vento? – Eu? Já dei umas cinco viradas mais Marcos, meu filho. Aí, eu desvirava a jangada e voltava. Não perdia nada, porque eu sou vivo e deixava tudo amarrado. O homem prevenido zomba do tempo. E ele sempre voltava com peixe. Cavala, beijupirá, tainha, cioba, carapeba. Até hoje, Laércio pesca de tarrafa (rede) e de jangada. Mas, no período em que nos encontramos, o vento estava deixando o mar agitado. Como todo pescador, também tem sua história fabulosa: pescava com o filho, quando sentiu um movimento

muito forte embaixo da jangada. Quase derruba os dois. Era um tubarão grande, que tinha vindo tomar o peixe do anzol. “Mas não faz medo, não. Não tenho um tico de medo.” No dia seguinte à entrevista, o pescador ia voltar para o mar. “Já olhei o tempo e vi que amanhã vai ser verão. Vou pegar uma baiteira e vou lá na maré catar marisco. Não gosto de ficar sem fazer nada. Os meninos não querem mais que eu pesque, mas vou é comprar outra tarrafa para mim”, avisa. Na despedida, já na entrada da noite, o pescador deu uma olhada no mar. Viu que a biruta indicava vento soprando para o leste. Mostrou sua jangada vermelha com banco branco e voltou para casa, com sua mente de homem do mar em movimento.

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QUINTAL Escondido por trás da fachada

Sítio histórico de Olinda é conhecido no mundo todo pela beleza do seu casario, mas poucos têm o privilégio de usufruir a quietude do seu interior TEXTO André Valença FOTOS Ricardo Moura

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Página anterior 1 ARCO E VERDE

Varanda de Guita Charifker, amplamente registrada em suas pinturas e aquarelas

Nestas páginas 2 QUATRO CANTOS

Na casa de Zé Som, no inverno, a família procura evitar desabamento de espécimes

3 HORTA DA CANTINA Francesco e Norma consomem ervas do próprio jardim

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Pernambucanas Como nos filmes, quando o herói

adentra uma tenda enfeitiçada e se vê, surpreso, no saguão de um palácio. Nem tanto, mas é por aí a sensação de conhecer os quintais de Olinda. Acostumados que somos a transitar, sem nunca penetrar, na atmosfera da cidade alta, nem sempre nos atentamos à manifestação

de um verde entre as frechas de um portão, ou de uma árvore que se ergue e faz as pontas dos galhos aparecerem sobre o telhado. Para os visitantes, Olinda só se exibe pela metade na conhecida silhueta que a transformou em Patrimônio Cultural da Humanidade (título concedido há 30 anos pela Unesco),

enquanto guarda a outra metade do segredo para os moradores. Evocando os versos de Carlos Pena Filho (Olinda é só para os olhos,/ Não se apalpa, é só desejo/ Ninguém diz: é lá que eu moro/ Diz somente: é lá que eu vejo), buscamos quem mora lá, que vê e apalpa uma Olinda fundada também na terra, com árvores, plantas, flores e frutos. A artista plástica Guita Charifker, por exemplo, é detentora de um dos quintais mais invejáveis da cidade; da Igreja de Nossa Senhora do Amparo até a Academia Santa Gertrudes, brota-lhe um verdadeiro matagal – incluindo bananeiras que dão banana toda semana e um cajuzeiro que nunca deu caju. “Eu adoro natureza, nunca morei num lugar que não tenha planta, por isso você vê que sai naturalmente no meu trabalho”, afirma a pintora, cultivadora de muitas mudinhas que, depois de 35 anos, já estão altas, bem mais próximas do céu. Passando em frente à casa de Guita, lá vem o Trenzinho de Olinda – verde e miudinho, patrocinado por um parque de diversões –, marchando pelo Amparo. A pequena locomotiva sobre rodas faz um tour pelo Sítio Histórico e, no seu percurso, acaba passando na frente do ateliê de Iza do Amparo. Sua filha, a cantora Catarina Dee Jah, revolta-se: “Aqui pro trenzinho de Olinda! Aquilo ali é o maior safári. Vai mostrando o casario sem o menor olhar sentimental pela cidade”. Para Catarina, “a gringalhada está dominando tudo”, especulando o mercado imobiliário e dirimindo a identidade do local. “No tempo da gente, os muros entre os quintais eram bem baixinhos”, diz, “dava para pular e ir brincar com os meninos nas outras

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Pernambucanas casas. Hoje em dia, estão subindo esses paredões”. Seu irmão, o artista plástico Paulo do Amparo, conta ter passado um terço da sua infância no quintal, inventando brincadeiras e ilusões. “Olinda, sem isso aqui, para mim, é impensável”, conta. E de ilusões seu quintal é cheio. Não acredite em tudo o que você vê por lá – não coma as uvas do pé, que podem ser de plástico; não pense que está louco, CDs e DVDs de fato não crescem em árvores. Tem até “pés de cinzeiro” espalhados pelos cantos, que são na verdade frutos secos

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do xixá (árvore também conhecida como pau-de-cortiça), comumente usados para bater cinzas de cigarro. O xixá também cresce atrás da casa de Francisco Motta. Além de lichia, pau-brasil, pinha, pitanga e bambu. Antes deles, uma “torre” reinava no seu quintal: “era um pé de fruta-pão que tinha 28 metros e mais de 100 anos, mas estava ameaçando a cair por causa do cupim”. Sob a ameaça da praga, o artesão deu início a uma jornada para resolver o entrave legal que o impedia de cortar a árvore. “Fui ao Iphan em

busca de autorização, porque as árvores também são tombadas. O Iphan me redirecionou para a prefeitura de Olinda, que me botou em contato com seu departamento de paisagismo”. A região onde Francisco, Guita e Iza moram faz parte do Setor Verde 3 da cidade e, de acordo com a legislação municipal, são áreas de “grande densidade de elementos naturais que envolvem monumentos tombados” . Portanto, não podem ser alteradas sem a autorização dos órgãos competentes da prefeitura. “É crime cortar as árvores aqui na cidade alta”, explica Francisco, “é o mesmo que cortar uma árvore na Amazônia”. Quem também teve problemas com as plantas do quintal foi o artista plástico Zé Som, que mora nos Quatro Cantos. Quando caem no inverno, as chuvas formam um lamaçal no terreno e fragilizam as estruturas das plantas, que acabam desabando no chão. “Caiu um pé de coqueiro

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4 RUA DO AMPARO Família de Iza cuida da casa e do entorno com ludismo e arte 5 ESCADARIA Muitos terrrenos da Cidade Alta se estendem em declive, como o de Guita Charifker

que era o maior de Olinda, duas árvores em cima do telhado e uma palmeira imperial”, conta Sutra da Cunha, filho de Zé. “Mas o lugar é bom e a gente tem muito espaço. Ultimamente, estamos pensando em começar uma horta”, acrescenta. Na horta já existente do restaurante Dom Francesco você encontra manjericão genovês, hortelã, pimentão, rúcula e salsinha. “Eu começo o cultivo lá pras quatro da tarde”, conta Francesco, dono do estabelecimento, “a luz está caindo, os pássaros se recolhem, as cigarras passam voando, fazendo som de matraca, os saguis descem pra comer as larvas... é muito agradável”, discorre. Ele mora em Olinda há 12 anos com sua esposa Norma Siqueira, arando terra no fundo do quintal. “Semeamos em pequenos vasos e depois transplantamos para a hortinha”, explica Norma sobre o processo, “não podemos plantar as

Além de histórias da natureza, moradores também cultivam narrativas fantásticas sobre seus quintais e jardins mesmas coisas nos mesmos lugares, por isso fazemos um sistema de rotatividade, para a terra não ficar pobre. Também temos uma composteira que alimentamos com restos de folhas. E desde sempre servimos o carpaccio com o manjericão da nossa horta”, completa. “É muito prazeroso, mas dá trabalho. Na Itália, a gente diz que se a terra fosse mais alta, e não no chão, todo mundo trabalhava nela”, brinca. O cozinheiro italiano, inclusive, foi o único dos entrevistados que apareceu com uma razão que explicasse

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o porquê de as casas históricas de Olinda serem tão extensas: “No tempo da Colônia, os portugueses vinham cobrar impostos de moradia. O imposto era em cima da largura dos imóveis, e não da profundidade, por isso os habitantes foram construindo casas estreitas e que vão até lá atrás. Já aplicavam o jeitinho brasileiro”. Além das crônicas da luz do dia, os quintais de Olinda reservam um mistério: a história do Homem da MeiaNoite. Diz-se que o boneco Cariri de dentes de ouro, terno verde e cartola comprida foi inspirado num galante senhor que atravessava sorrateiramente as casas pelos fundos para desposar as moças compromissadas. Outros afirmam que a figura foi inspirada num ladrão que agia quando soavam as 12 batidas da meia-noite e que, para não ser flagrado, escapava pelos muros, mata adentro. Histórias guardadas pelos “sítios” da Cidade Alta.

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BOI DE MARACANÃ Folguedo que mobiliza milhares de pessoas

Agremiação centenária de São Luís comemora 40 anos de atividade ininterrupta de seu mestre mais antigo, Humberto, o Guriatã, com eventos que se estendem por vários meses, concentrados entre a Páscoa e as festas juninas TEXTO Eduardo Júlio Canavieira FOTOS Márcio RM

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Quando chega o mês de maio, matracas e pandeirões começam a ecoar em toda a zona rural da Ilha de São Luís. São os ensaios dos inúmeros grupos de bumbameu-boi da capital maranhense, que anunciam a aproximação do período junino. É o momento de reencontro dos brincantes e de preparação para a grande festa que percorre quase todo o mês de junho. Um dos grupos mais importantes de São Luís, o Boi de Maracanã, este ano realizou uma festa especial, pois além de comemorar o aniversário dos 400 anos da cidade Patrimônio da Humanidade, o grupo folclórico festejou os 40 anos de atividade de Humberto de Maracanã, 73, também conhecido como Guriatã, amo do boi, principal cantador e compositor da brincadeira. “Estou muito feliz de fazer parte dessa festa. Fico orgulhoso de ter participado de 10% da história da capital do Maranhão”, brinca Humberto. Sobre os festejos de São João, ele comenta: “É ao mesmo tempo um momento de alegria e devoção,

mas é também de responsabilidade, porque tenho que compor toadas novas e comandar o grupo em muitas apresentações. Mas ainda tenho disposição”. Há um terceiro motivo para comemorar: ano passado, o bumba-meu-boi do Maranhão conquistou o reconhecimento como patrimônio imaterial brasileiro. Como acontece em todos os anos, o primeiro encontro do Boi de Maracanã é realizado no Domingo de Páscoa, momento em que os organizadores se confraternizam e discutem o cronograma de atividades com vistas aos festejos juninos. Afinal, são sempre mais de 50 apresentações nos arraiais e terreiros de São Luís, além de quatro ensaios oficiais a céu aberto, na comunidade, divididos entre maio e junho, que costumam atravessar a madrugada até o dia clarear. “É quando damos as boas-vindas aos organizadores, e cada cantador apresenta as novas toadas compostas para a temporada”, ressalta Maria José Soares, coordenadora da brincadeira e esposa do amo Humberto, sobre o primeiro encontro.

Com mais de um século de existência, o Boi de Maracanã é formado por cerca de 300 integrantes fantasiados, entre percussionistas e brincantes, a maioria oriunda da comunidade homônima situada a aproximadamente 25km do Centro de São Luís, onde se localiza a sede da agremiação. A área do Maracanã é famosa pela natureza exuberante e pelas plantações de juçara, a denominação maranhense do açaí. Lá, inclusive, ocorre todos os anos a Festa da Juçara, durante o mês de outubro. O Boi de Maracanã é de sotaque de matraca, também chamado sotaque da ilha, típico da zona rural de São Luís. Sotaque é como chamam no Maranhão o tipo de bumba-meuboi. Cada um deles se origina de uma região do estado e se difere pelas vestimentas, personagens, instrumentos e variação rítmica. Além do de matraca, existem outros quatro sotaques: baixada (também chamado de pindaré), orquestra, zabumba e costa de mão. Em comum, a célula rítmica e a encenação do auto do boi, que conta a história

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Página anterior 1 TRAJES

Colorido marcante das vestes e acessórios dos brincantes

Nestas páginas 2 MATRACAS

Ruidosos instrumentos de madeira dão nome a essa variedade de bumba-meu-boi

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GURIATÃ

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DEVOÇÃO

Principal cantador e compositor da agremiação destaca alegria e responsabilidade de sua tarefa As celebrações do bumba-meu-boi são também marcadas por orações de seus integrantes

do desejo de Catirina, cujo marido (Pai Francisco) corta a língua do boi preferido do dono da fazenda para satisfazer a vontade da esposa grávida. Os grupos de matraca produzem uma massa sonora mais pesada que os demais. São orquestras percussivas, devido ao uso de muitas matracas e pandeirões, instrumentos de percussão tocados exaustivamente pelos participantes. Compõem, ainda, a sonoridade deste sotaque o tambor-onça (espécie rústica de cuíca) e o maracá, que é sacudido somente pelos cantadores. Índias, vaqueiros, rapazes, caboclos e miolo (boi) são alguns dos personagens que integram os bois de sotaque de matraca. Uma multidão costuma seguir esses grupos. Não é à toa que são chamados de batalhões. O Boi de Maracanã, por exemplo, chega a reunir, aproximadamente, mil pessoas durante as apresentações. Outro detalhe: os bois de matraca costumam ser batizados com o nome da comunidade na qual nasceram. Assim, existem os bois de Iguaíba, Ribamar, Madre Deus e Maioba, entre outros, que disputam com o Boi de Maracanã o posto de mais querido de São Luís.

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DATAS DE SANTOS

No calendário oficial, as datas principais dos festejos de junho em São Luís são os dias 13 (Santo Antônio), 24 (São João), 29 (São Pedro) e 30 de junho (São Marçal). Mas é no

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Maioba é o mais popular. É como se fosse Vasco e Flamengo. Por isso, quando estão em campo, os amos cantam toadas que satirizam o boi opositor. São as chamadas toadas de pique, feitas de improviso, que costumam empolgar a multidão. E essa disputa é tratada de forma lúdica, sem violência. “É uma rivalidade sadia. Nós brincamos com isso. Quando um cantador de outro boi satiriza com o nosso batalhão sempre tem alguém que nos avisa para a gente dar o troco. Mas, ultimamente,

O Boi de Maracanã também contribui para a formação profissional e técnica dos jovens da comunidade onde está sediado não costumo responder mais às provocações”, conta Humberto. Passado o período junino, as atividades anuais do Boi de Maracanã só encerram no segundo sábado de agosto, quando é realizada a festa da morte do boi. No Carnaval deste ano, o grupo folclórico levou mais de 60 brincantes para desfilar na Marquês de Sapucaí, integrando uma ala da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, que homenageou São Luís, em razão do aniversário de 400 anos.

DEDICAÇÃO

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dia 23 de junho que a maioria dos bois recebe as bênçãos de um padre para brincar pelas ruas. É o chamado batizado, quando o “couro” do boi recebe a nova vestimenta e está autorizado para divertir o público. Ao contrário do calendário junino da maioria das cidades do Brasil, a data mais importante do período em São

Luís é o Dia de São Pedro, 29 de junho, quando é feriado municipal. Durante a festa, o Boi de Maracanã rivaliza, principalmente, com o Boi da Maioba. Os dois grupos são os que mais dividem os corações dos ludovicenses. Enquanto o Boi de Maracanã é o mais pesquisado e admirado pelos intelectuais, o da

Humberto de Maracanã não é somente considerado um dos mais importantes amos de bumba-meu-boi, mas é também uma das personalidades mais reverenciadas da cultura popular maranhense. Ele exalta em versos a natureza, a vida na comunidade e ainda tece críticas à cena política local. Ao longo da vida, já compôs centenas de toadas e, no Maracanã, o compositor é considerado um líder, um mestre, um poeta, uma autoridade querida por todos. O cantador conta que, desde criança, inventa toadas de bumbameu-boi e que, quando tinha 11 anos, chegou a participar de um boi mirim na comunidade em que morava. “Quando entrei na adolescência,

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29 DE JUNHO

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PROTAGONISTA

São Pedro é o santo junino mais festejado do Maranhão e seu dia é feriado municipal em São Luís

Com o couro “batizado”, o boi desfila a nova vestimenta pelas ruas por onde circula

me convidaram para cantar no Maracanã, mas no começo eu hesitava, porque não queria assumir essa responsabilidade. Afinal, ainda era muito jovem... Com o tempo, não teve jeito, resolvi aceitar”, lembra. É de Humberto a toada Maranhão, meu tesouro, meu torrão, um dos hinos mais populares e cantados da cultura do estado. Assim diz a letra: “Maranhão, meu tesouro, meu torrão/Fiz esta toada pra ti, Maranhão/ Terra do babaçu, que a natureza cultiva/ Essa palmeira nativa que me dá inspiração”...

Somente os cantadores compõem as toadas do boi. Além dele, o Boi de Maracanã conta com mais sete: Roberto Ricci (famoso compositor e instrumentista popular do Maranhão), Valdete, o Cabeça Branca, Toinho Rocha, Gaguinho, Ribinha, Humberto Filho e Teteco. Os três últimos são filhos de Humberto. Além das festas, o Bumba-meu-boi de Maracanã também contribui para a formação profissional e técnica dos jovens da comunidade. Desde 1979, o folguedo é uma associação; hoje, um Ponto de Cultura. Na sede, diversas oficinas são oferecidas a jovens de 7 a 25 anos, entre as quais, percussão, dança, bordados, confecção de fantasias e instrumentos e inclusão digital. Ao todo, mais de 200 pessoas estão aprimorando a sua formação na entidade. O curso mais procurado, segundo Maria José Soares, esposa de Humberto, é o de informática.

“A cada período, temos que adaptar os horários para adequar o número de participantes.” Ela também relata o crescimento da credibilidade da brincadeira junto à comunidade, depois que se tornou Ponto de Cultura e passou a investir mais em arte-educação. O Boi de Maracanã já contou com a colaboração de músicos e produtores de renome nacional. Em 2000, depois de algumas viagens a São Luís, o músico pernambucano Siba, na época integrante do Mestre Ambrósio, e o produtor musical Beto Villares realizaram o CD Luz de São João, do Boi de Maracanã. No ano seguinte, Beto Villares assinou sozinho a produção dos discos Desejo de São João e Graça de São João, lançados como um CD duplo. E, em 2007, o grupo paulista A Barca produziu para o grupo folclórico um CD e o documentário Rio do Mirinzá, que teve lançamento nacional.

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DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

TV

SÉRIES O status do cinema dentro da televisão

Com a crise na indústria cinematográfica, canais por assinatura investem na ficção televisiva, com tratamento antes exclusivo das telonas e orçamentos equiparados aos de arrasa-quarteirões TEXTO Márcio Padrão

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Em 25 de maio de 1977, um filme

sobre cavaleiros espaciais, alienígenas e vilões robóticos chegava aos cinemas com enorme sucesso. Em 22 de setembro de 2004, um programa sobre um acidente aéreo que deixou os sobreviventes perdidos numa ilha misteriosa causou muita repercussão na sua estreia. Se você acompanha cultura pop, notou facilmente que estamos falando de Star wars e Lost. Apesar dos 27 anos que separam os dois produtos, há um importante valor que os une: ambos ultrapassaram a barreira dos 10 milhões de dólares de orçamento. Em Star Wars, foram 11 milhões; no caso de Lost, o episódio piloto custou entre 10 e 14 milhões. Qual a importância desse dado, afinal? Em décadas anteriores, seria inimaginável um executivo aprovar um episódio de seriado com o mesmo orçamento de um dos filmes mais rentáveis da história. Mas, ao piloto de Lost (2004-2010), seguiram-se outros como Fringe (estreou em 2008), Game of thrones (estreou em 2011) e Pan Am (20112012), todos com capítulos iniciais de mais de 5 milhões de dólares. O atual recordista é Boardwalk empire, cuja estreia, em 2010, custou 18 milhões de dólares. Todo esse investimento vem sendo revertido positivamente para o mercado de entretenimento. Há muito fala-se que estamos vivenciando uma espécie de vanguarda da ficção televisiva, com séries, minisséries e filmes para a TV tratados com o mesmo respeito que outrora foi exclusividade do cinema. Esse cuidado na concepção, mais os citados orçamentos inflados, estão gerando resultados palpáveis, como alta audiência, anunciantes, críticas generosas e prêmios da indústria, fazendo a roda girar mais e melhor a cada ano. Talvez, a mudança mais significativa dos últimos 25 anos tenha ocorrido em termos de narrativa. Até o final dos anos 1980, as séries de um modo geral seguiam modelos específicos de ambientação e narrativa, com gêneros fáceis de identificar: as clássicas sitcoms, as policiais, de ação, de ficção etc. Porém, Twin Peaks (1990-1991) quebrou paradigmas não apenas por ser coassinada por um importante autor de cinema – David Lynch, ao lado do roteirista Mark Frost –, mas

2 Página anterior 1 GAME OF THRONES

Série vem sendo filmada em cenários naturais e conta com numeroso elenco

Nestas páginas 2 LOST

Episódio piloto do seriado custou entre US$ 10 e 14 milhões

3 TWIN PEAKS Aclamado diretor David Lynch assinou a série ao lado de Mark Frost 4 SUPER-SÉRIE The walking dead foi onerosa por demandar muitos efeitos especiais

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também por trazer uma espécie de novela mórbida com muitos elementos “difíceis” para o público, como um cadáver envolto em plástico, uma entidade maligna que “possui” humanos, pesadelos e diversos personagens com comportamentos fora do convencional. Não que não tivessem havido outros seriados inovadores antes de Twin Peaks. I love Lucy (1951-1957), Além da imaginação (1959–1964), Jornada nas estrelas (1966–1969) e As Panteras (1976-1981) são só alguns casos das

décadas anteriores que merecem menção. Mas o programa de Lynch e Frost foi o embrião de uma pequena revolução na TV que repercute e gera frutos até hoje. A partir dali, o público estaria pronto para receber, além das histórias de sempre, experimentos mais radicais na pequena tela. Pouco depois veio Arquivo X (19932001), que era ao mesmo tempo policial, ficção científica e romance, com influências díspares como as séries A Gata e o Rato, Além da imaginação e Kolchak e os Demônios da noite; além da própria

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Twin Peaks e de filmes como O silêncio dos inocentes e Todos os homens do presidente. Paralelo ao sucesso de Arquivo X , houve o êxito dos seriados médicos E.R. (Plantão médico no Brasil) e de dois dos maiores expoentes das sitcoms, Friends e Seinfeld.

SEM FRONTEIRAS

A essa altura, as fronteiras entre a TV e a “sétima arte” estavam cada vez mais borradas. A Amblin, produtora de Steven Spielberg – que já havia se aventurado na televisão com os desenhos animados Tiny Toons e Animaniacs –, era uma das responsáveis por Plantão médico. Os escritores William Gibson e Stephen King chegaram a escrever episódios de Arquivo X. E, seguindo os passos de Robin Williams e Bruce Willis, que também começaram nos seriados, Jennifer Aniston (Friends) e George Clooney (Plantão médico) esticaram seu sucesso na sétima arte. Veio o terceiro milênio e, após a queda das Torres Gêmeas, uma série captou o espírito da época como nenhuma outra produção do cinema conseguira. Estreando dois meses depois do ataque, 24 horas (2001-2010) abordou

O cinema viu a derrocada do chamado star system, no qual astros como Tom Cruise eram chamarizes de público a tensão geopolítica da era George W. Bush, tendo como protagonista um herói torturante e torturador, Jack Bauer (Kiefer Sutherland, outro astro do cinema que se deu melhor na TV) e utilizando-se do recurso alucinante da história contada em “tempo real”, com cada episódio representando uma das 24 horas de um dia em que os Estados Unidos enfrentam sucessivas ameaças terroristas. A colheita televisiva dos últimos anos rendeu fenômenos de público e/ ou de crítica como 24 horas, Lost, Two and a half men (2003, ainda no ar), Desperate housewives (2004-2012), The Sopranos (1999-2007) e House (2004-2012) até chegarmos na safra atual, de The Big Bang Theory (que estreou em 2007), The

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walking dead (2010), Mad men (2007) e Game of thrones. Também transformou alguns de seus “faz-tudo” – sujeitos que acumulam funções de diretor, roteirista e produtor executivo – como J. J. Abrams (Lost, Alias, Fringe) e Chuck Lorre (Two and a half men, The Big Bang Theory) nos nomes mais badalados do entretenimento audiovisual. Enquanto isso, o cinema viu a derrocada do chamado star system, no qual astros como Tom Cruise eram chamarizes de público e ganhavam salários astronômicos. Na tela grande, basicamente apenas os gêneros de ação e fantasia têm rendido dividendos, graças aos efeitos digitais. Vários dos grandes criadores e astros do meio cinematográfico – de Martin Scorsese e Frank Darabont a Al Pacino e Kate Winslet – estão cada vez mais aderindo às possibilidades comerciais e estéticas das narrativas da TV.

OUSADIA

The walking dead e Game of thrones são casos singulares dessa nova era das “super-séries”. Ambas são adaptações de histórias que

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5 BOARDWALK EMPIRE Piloto do seriado foi dirigido pelo cultuado diretor Martin Scorcese 6 MAD MEN Série tornouse sucesso da emissora AMC na concorrência contra a HBO

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repercutiram em mídias fora do audiovisual. A primeira é uma história em quadrinhos de Robert Kirkman; a segunda veio de uma série de livros de George R. R. Martin. Ambas possuem temática fantástica, o que exige produção onerosa e repleta de efeitos especiais. As duas séries trouxeram seus criadores no cargo de produtores executivos, o que, na prática, significa que eles têm voz ativa em decisões importantes no desenvolvimento dos programas. Os canais a cabo norte-americanos AMC e HBO, que produzem The walking dead e Game of thrones respectivamente, são considerados pela crítica os líderes dessa revolução televisiva ao apostar pesado em histórias com temática adulta aliada à produção de alta qualidade. Vão na contramão das emissoras rivais ao investir em temporadas anuais menores, de 10 a 13 episódios, enquanto os demais seriados ficam na média dos 23 episódios por ano. A HBO tem no currículo sucessos variados como Sex and the city, The Sopranos (Família Soprano), Roma e

Boardwalk empire, enquanto a AMC é a dona de Mad men e Breaking bad. Outro ponto importante das recentes levas de seriados é a utilização da continuidade de episódios como elemento de atração. Nos anos 1960, nossos pais e avós se divertiam com Jeannie é um gênio e A Feiticeira, sem se preocuparem com o que haviam assistido nas semanas anteriores ou o que aconteceria nas posteriores, pois cada episódio era pensado isoladamente, como microfilmes com começo, meio e fim dentro daquele universo ficcional. Já quem acompanhou Lost desde o começo percebeu que cada cena e cada detalhe era um pedacinho de um quebra-cabeça maior que formaria uma grande história aos poucos, aumentando o suspense e exigindo bastante da memória do espectador. Game of thrones divide sua narrativa por núcleos, focando nas castas dos reinos que estão em diversos pontos de um reino central. A variedade de personagens é imensa – uma lista na Wikipedia cita mais de 170 nomes – e a importância destes

varia conforme o andar da trama. Por exemplo, após a morte do então protagonista, Ned Stark, o filho Robb, que até então mal aparecia na série, passa a conduzir o núcleo Stark e a batalha destes contra os Lannisters, que atualmente ocupam o disputado trono de Westeros. O anão Tyrion, que era um coadjuvante divertido na primeira temporada, ganhou mais destaque após assumir o posto de “Mão do Rei” (uma espécie de primeiro-ministro) e também após o seu intérprete, Peter Dinklage, ganhar o Emmy e o Globo de Ouro pelo papel. As séries para a TV a cabo dos EUA também contam com maior liberdade para filmar cenas e temas que poderiam desagradar públicos mais sensíveis. Game of thrones abusa da nudez feminina e das cenas de decapitações, além de mostrar um incesto entre irmãos já no capítulo inicial. Boardwalk empire exibiu incesto de forma mais explícita, com mãe e filho mantendo relações sexuais na segunda temporada, encerrada neste ano. E séries como Breaking bad e Weeds mostram traficantes

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de metanfetamina e maconha na condição de protagonistas.

MÃO DUPLA

A simbiose entre cinema e TV também progride. Temos cineastas como Martin Scorsese dirigindo o piloto de Boardwalk empire, Frank Darabont (Um sonho de liberdade) como produtor em The walking dead e o veterano Steven Spielberg emprestando seu nome a uma infinidade de séries e minisséries recentes, como Band of brothers (2001), Taken (2002), Terra nova (2011) e Falling skies (estreou em 2011). Os atores, alguns com Oscar e Globo de Ouro no currículo, estão igualmente migrando: Steve Buscemi estrela Boardwalk empire, Kate Winslet protagonizou Mildred Pierce (2011), Meryl Streep e Al Pacino estiveram em Angels in America (2003), e Kathy Bates participou de The office (que estreou em 2005) e Harry’s law (2011-2012). Na mão inversa, diretores e roteiristas da TV também estão galgando posições no cinema. J. J. Abrams dirigiu o terceiro filme Missão impossível (2006) e não parou mais:

Em sentido contrário, diretores e roteiristas de TV estão galgando posições no cinema, como J. J. Abrams e James Wong produziu o terror Cloverfield (2008), dirigiu o novo Star Trek (2009) e o suspense juvenil Super 8 (2011). James Wong, roteirista de diversos episódios de Arquivo X, nos anos 1990, dirigiu dois filmes da cinessérie Premonição (2000 e 2006) e Dragonball evolution (2009), adaptação do famoso mangá. E há ainda os criadores da TV que circulam há anos em produções diversas, tornando-se verdadeiros operários do meio. David Nutter já dirigiu tantos episódios-piloto – como os de Supernatural, Smallville, Millennium e Without a trace – que ficou conhecido como o “pilot whisperer”, ou seja, o cara que conhece todos os meandros para iniciar um seriado. Tim Van Patten é outro bastante “rodado” na área, com

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nome nos créditos de Roma, Boardwalk empire, Game of thrones, The Sopranos e outros. Casos como estes provam que não falta trabalho para quem está construindo uma carreira na TV e não quer se aventurar no cinema. Esse panorama indica que, apesar dos seus mais de 60 anos de existência, o formato série de TV ainda tem muito a percorrer nos próximos anos e poderá, quem sabe, ser uma ameaça ao cinema enquanto arte audiovisual por excelência. Em entrevista ao site Collider, o cineasta Martin Scorsese dá seu pitaco sobre esse momento. “É certamente interessante o que está acontecendo agora, nos últimos nove ou 10 anos. Esperávamos que haveria [na TV] esse tipo de liberdade, essa capacidade de criar um outro mundo e de desenvolver personagens em uma história de narrativa longa. Isso não aconteceu nos anos 1970 e 1980 com a televisão. Eu tenho tentado, ao longo dos anos, estar envolvido em uma série. É uma nova oportunidade para contar histórias, que é muito diferente da televisão no passado.”

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REPRODUÇÃO

1 COLABORAÇÃO Caminhos Perigosos , de 1973, estabelece uma duradoura parceria entre o ator Robert De Niro e Martin Scorsese

Claquete

MARTIN SCORSESE Produções amadoras de um futuro ícone

Um dos diretores-prodígio da história do cinema conta com uma importante lista de filmes feitos ainda na universidade TEXTO Duda Gueiros

“Tenho certeza de que gravitei para

o cinema porque estava procurando alguma excitação melodramática, uma alívio à ‘bondade’ que era o mais alto valor daquele tempo e espaço. Os primeiros anos de Marty foram evidentemente o contrário, passados sobretudo na Little Italy de Nova Iorque – classe trabalhadora, mas também criminosa, com a Máfia comandando boa parte da organização social do bairro. Havia um elemento perigoso nos caminhos perigosos de sua meninice. E havia um elemento de ansiedade em sua casa, cheia de discussões sobre complexas questões familiares, com argumentações tensas, mesmo que amorosas. Quando ia ao cinema, ele estava escapando para uma realidade muito

diferente – de melodrama e fantasia, com certeza, mas, na verdade, do tipo menos ameaçador do que as duras realidades que esse pequeno menino asmático encontrava na vida diária”. Palavras de Robert Schickel – documentarista, escritor, historiador do cinema, amigo de longa data de Martin Scorsese – sobre os primeiros passos da vida adulta do cineasta. Scorsese integra um elenco de grandes cineastas que, no começo de suas carreiras, ainda em universidades, buscou no cinema uma maneira de expressar várias inquietudes de uma fase ideológica e artisticamente fértil, que obteve como resultado pequenas obras-primas de aventuras fílmicas. Inevitavelmente, Scorsese deslanchou desde cedo. Hoje, ele também compõe,

junto com cineastas como Woody Allen, outro grupo: o daqueles que se situam conceitualmente entre autores de grandes produções comerciais e de obras que poderiam facilmente circular no circuito B de cinema. Como estudante de Cinema da New York University, Martin Scorsese teve como sua primeira produção audiovisual o curta What a nice girl like you is doing in a place like this? (1963), que conta a trajetória à maioridade de um escritor fascinado em pintar uma gravura de um homem em um barco no meio de um lago. A crítica da época considerou o filme irritante, mas, mesmo assim, o estudante recebeu por ele um prêmio de U$ 1 mil da Sociedade de Cinematologistas. Endossado por um professor da faculdade e sob supervisão e olhar crítico dele, Scorsese produziu It’s not you, Murray, em que mostra um traço zombeteiro que desapareceria de sua filmografia. É também nessa produção que emerge uma de suas mais notáveis e permanentes características: a habilidade na direção de atores. Numa reação agressiva ao seu ambiente social e à forma como os Estados Unidos lidaram com a internacionalização militarista, ele produziu, ainda na NYU Film School, The big shave (1967) – um curta que mostra um homem se barbeando até o ponto da automutilação. Tempos

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INDICAÇÕES depois, numa série de entrevistas à revista Cahiers du Cinéma, Scorsese revela que seu plano inicial era mesclar cenas da Guerra do Vietnã enquanto o barbear acontecia, mas tudo aquilo já era muito hostil para ele, que decidiu deixar a menção direta à guerra de fora. Ao fim da obtenção do terceiro grau e já com filmes marcantes no currículo, rodou, em 1965, Bring on the dancing girls, que, quatro anos depois, receberia novas cenas, o título de Who’s that knocking at my door e ganharia destaque em festivais dos EUA e simpatia da crítica. O diretor exerceu um papel de motivador de boas produções dentro da NYU Film Studies jamais visto na história daquela escola. Por conta disso, ganhou apoio financeiro e espaço na cinematografia da época, o que gerou expectativa e burburinho no que concernia à continuidade dos trabalhos fora da faculdade. Foi, então, que dirigiu Boxar Bertha, sem tanto sucesso. Mas, logo em seguida, lançou o excelente Caminhos perigosos (Mean streets, 1973), resultado da dedicação a uma forte representação autobiográfica, já que se passa no eixo conflituoso dos bairros do Harlem e Little Italy, onde o diretor nasceu e cresceu, e também marca a descoberta de um grande ator. Apresentado por Brian De Palma, o jovem Robert De Niro, que compartilhava a mesma realidade de jovens descendentes de italianos em Nova York, integrou o elenco. Caminhos perigosos é o início da longa parceria de sucesso com De Niro, que permanece até os dias atuais. Poucos anos depois, já tendo produzido outros filmes, não se podia mais chamar aquele de um

começo de carreira, mas não deixavam de ser os primeiros passos firmes de um jovem cineasta com motivações trazidas de uma vivência tumultuada. Scorsese lança, então, Taxi driver e, com ele, coloca-se definitivamente como um diretor ao qual valia a pena prestar atenção.

CINEFILIA

No começo, a inquietação quanto à realidade à sua volta e a dedicação aos estudos levaram Martin Scorsese a formar um acervo impressionante em termos de qualidade e quantidade ainda na universidade. Justo nessa época que seu perfil profissional e estilo fílmico se formavam, adquiriu algumas habilidades que transcendem a competência da direção e o fazem um dos grandes nomes da cinematografia. Scorsese é um cinéfilo aficionado por todas as nuances da história do cinema, de forma geral. Em 1979, começou a se preocupar com a preservação dos rolos de filmes em cor que estavam sendo manipulados de forma errônea e que os levaria à total degradação. Assim, lançou uma espécie de cartilha para educar cineastas mais relapsos e há 22 anos criou a The Film Fundation que, no mundo, encabeça pesquisas na área de restauro de películas, cuidados na preservação e resgate de exemplares em extinção. É possível perceber o resultado desse trabalho em seu último filme Hugo, pela utilização de trechos de produções do diretor George Mèlies que acreditava-se terem sido perdidas para sempre, mas cujos rolos foram achados e restaurados pela instituição.

BIOGRAFIA

HELENO – O PRÍNCIPE MALDITO Direção de José Henrique Fonseca Com Rodrigo Santoro, Alinne Moraes e Othon Bastos Paris Filmes

DRAMA

SETE DIAS COM MARILYN

Direção de Simon Curtis Com Michelle Williams, Eddie Redmayne, Kenneth Branagh Imagem Filmes

Dez anos após atuar em Bicho de sete cabeças (Laís Bodanzky), Rodrigo Santoro topou o desafio de voltar aos manicômios na biografia do futebolista Heleno de Freitas. Com bela fotografia em p&b de Walter Carvalho, o longa foca na ascensão do atacante botafoguense durante a década de 1940 – período pré-Garrincha – e seu envolvimento com mulheres, bebidas e drogas.

Pegando carona nas homenagens aos 50 anos da morte da estrela, Sete dias com Marilyn mostra a atriz em Londres, com enfoque nos bastidores do filme O príncipe encantado e na relação com o jovem assistente Colin Clark (Eddie Redmayne), que sonha em se tornar cineasta. A aventura amorosa mudará para sempre a vida de Colin, ao passo que irá revelar uma nova faceta de um dos ícones do século 20.

ROMANCE

ANIMAÇÃO

O ARTISTA

Direção de Michel Hazanavicius Com Jean Dujardin, Bérenice Bejo, John Goodman Paris Filmes

George Valentin, uma das maiores estrelas da Hollywood dos anos 1920, protagonizou várias aventuras ao lado de seu companheiro de cena, um cão da raça terrier. Com a chegada do cinema falado, e diante de sua resistência às mudanças, Valentin enfrenta o ostracismo e assiste ao crescimento da amiga Peppy Miller. O filme é uma homenagem ao cinema e seus primórdios, e foi o grande vencedor do Oscar 2012, com cinco premiações.

AS AVENTURAS DE TINTIM

Direção de Steven Spielberg Com Jamie Bell, Andy Serkins, Daniel Craig Sony Pictures

Nostalgia define a mais recente aventura em 3D de Steven Spielberg. Baseado em dois livros do cartunista belga Hergé, As aventuras de Tintim é a primeira parte de uma trilogia em parceria com o neozelandês Peter Jackson. Foram quase 30 anos de espera para que o diretor realizasse o sonho de transpor o personagem para as telas, feito só possível graças à tecnologia digital de captura de movimentos.

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DESCONSTRUÇÃO A morte da inocência norte-americana

Artistas das gerações de 1970 e 1980 revelaram aspectos das subculturas então insurgentes e anteciparam discussões prementes nos EUA TEXTO Mariana Camaroti

A arte norte-americana surgida

a partir do pós-guerra, marcada pelo contexto político e econômico favorável, celebrou o apogeu do último império mundial. A televisão e o cinema de Hollywood, a propaganda pró-consumismo e a difusão do sonho americano permitiram que um ideal de cultura se alastrasse pelo planeta e o influenciasse. O leilão de obras emblemáticas daquelas décadas, como Double Elvis (1963), de Andy Warhol, e Sleeping girl (1964), de Roy Lichtenstein, ocorrido em maio deste ano em Nova York, e que arrecadou 37 e 44,8 milhões de dólares para cada obra, respectivamente, indica que a arte norte-americana das décadas de 1950 e 1960 continua em alta no mercado. Porém, o apogeu dessa civilização – tão bem delineada por Andy Warhol e pela geração pop art – abriu passagem, a partir dos anos 1970, à desconstrução da cultura dominante daquele país e sua fragmentação em múltiplas subculturas. Esse movimento não tem nome nem escola, mas apresentase como uma tendência da cultura geral. Acirrada nos últimos tempos, essa produção viaja o mundo através de mostras, ganha prêmios em salões e bienais e levanta discussões. Exemplo disso foi a exposição de Nan Goldin – a fotógrafa mais influente

Conjunto de obras expressa descontentamento com um modelo social discriminatório e consumista dos últimos 20 anos, segundo The New York Times –, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) em abril último. Causou polêmica pelo seu forte conteúdo de sexo, drogas, homossexualidade e presença de crianças nas cenas. Em janeiro, a mostra havia sido rejeitada pelo espaço Oi Futuro na capital carioca, com a alegação de não ser condizente com a proposta educativa do espaço. Movidos pelo descontentamento com a injustiça social, a discriminação contra negros, mulheres e gays, com a voracidade consumista e com a falência daquele modelo de sociedade, artistas como Nan Goldin, Jean-Michel Basquiat, Larry Clark, Barbara Kruger, Jenny Holzer, Cady Noland, Paul McCarthy, Mike Kelley, Jeff Koons, Louise Lawler, Sherrie Levine, Richard Prince, Charles Ray e Cindy Sherman trazem à tona as angústias e insatisfações de uma geração que deseja se diferenciar da busca pela

perfeição e do romantismo que marcou a dos seus pais. Após os desenganos dos anos 1960 – o desapontamento quanto ao idealismo político, a derrota na Guerra do Vietnã e o arrefecimento do movimento hippie –, os artistas sentem a necessidade de dar vazão a outras experiências artísticas de caráter político. Por meio de diversas formas de expressão – fotografias, pinturas, audiovisuais, justaposições, esculturas, instalações, cinema –, revelam a subcultura das drogas, dos homossexuais, do sadomasoquismo, da dissidência política, dos novos movimentos religiosos. O cenário muitas vezes são ambientes frequentados por eles mesmos. Houve uma mudança conceitual na arte. A concepção dela como ambiente autossuficiente de práticas estéticas limitadas deu lugar à ideia de que o ato produtivo “não tem nada a ver com o talento da mão, mas, sim, com a capacidade de ver e decidir o que se tenta tornar visível”, usando as palavras do pintor alemão Gerhard Richter. De acordo com o curador e escritor canadense Philip LarrattSmith, estudioso do assunto, num sentido puramente técnico, essa ideia já estava presente nas obras de Andy Warhol, Marcel Duchamp e muitos outros artistas, embora

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Página anterior 1 LARRY CLARK

Ensaio fotográfico Tulsa revela lado sombrio da vida no campo

Nestas páginas 2 BARBARA KRUGER

A paráfrase “Compro, logo existo” direciona a crítica da artista ao consumismo

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MISTY TABOO

Cultura das minorias e das drogas marca enfoque das fotos de Nan Goldin

WHITE TRASH

Visuais nem sempre explícitas. Warhol é a figura-chave do pós-guerra, diz Smith. Então de que maneira sua influência pode ser identificada na ruptura social realizada por artistas como os aqui citados? Em resposta à Continente, LarrattSmith descreve: “Na fascinação pelo mundo under de Larry Clark, no uso de instântaneas de Nan Goldin, na criação de uma pessoa pública muito forte por Jean-Michel Basquiat, na manipulação dos estilos de publicidade de Barbara Kruger, nas serigrafias e negatividade franca de Cady Noland, nos métodos de Jenny Holzer para alcançar o público massivo e na exploração dos mitos de Hollywood por Paul McCarthy”. “O que realmente se expandiu durante esse período foi primeiramente o conteúdo que a arte podia captar e, em segundo lugar, a incorporação dos meios técnicos com os quais a arte podia interceptar a cultura dominante”, analisa, no estudo El malestar en la cultura, publicado no catálogo da exposição Bye Bye American Pie, do qual Larratt-Smith foi curador.

A mostra foi exibida no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) de abril a junho deste ano, reuniu 110 obras de sete dos mais importantes americanos contemporâneos que protagonizaram esse movimento de fragmentação da cultura dos Estados Unidos – Nan Goldin, Jean-Michel Basquiat, Larry Clark, Barbara Kruger, Jenny Holzer, Cady Noland, Paul McCarthy – e atraiu dezenas de milhares de visitantes. “Um terceiro matiz nessa mudança foi o ponto de vista mais permissivo e a relação com o público. A originalidade absoluta não foi em nenhum caso o ponto mais importante, mas, sim, quem falava e para quem falava. Grupos que nunca tinham sido escutados ou interpelados começaram a formar seus próprios espaços”, completa Larratt-Smith. A maioria dos expoentes da arte contemporânea dos Estados Unidos comunica sua arte em forma de acting out – termo da psicanálise que se refere a ações de defesa do ser humano que expulsam da mente conteúdos percebidos como insuportáveis.

Pode-se dizer que a decomposição da cultura hegemônica começou de uma maneira mais concreta com a publicação do ensaio do fotógrafo e cineasta Larry Clark, nascido em 1943, intitulado Tulsa, nome de sua cidade natal. A publicação (1971, 50 fotos) revela o lado sombrio da vida no campo e o submundo das drogas e do sexo no centro do país. “O tema é bastante white trash (termo depreciativo usado para designar pessoas brancas com pouca formação e perspectiva de vida), mas a composição clássica e o claro-escuro das fotos produzem uma tensão fina entre o conteúdo e a forma”, explica Larratt-Smith. Tulsa foi seguido por Teenage lust (1982), The perfect childhood (1993) e Punk Picasso (2003), séries em que os jovens, a sexualidade e as drogas continuam presentes. Embora esses temas façam parte da vida do artista, ele consegue tomar uma distância narrativa enquanto se identifica com os seus personagens. “A qualidade cinemática e a arquitetura narrativa das suas séries fotográficas lembram filmes de gênero, desde o filme noir até a pornografia”, relaciona Larratt-Smith. Vinte e quatro horas da vida de adolescentes em Nova York são a matéria-prima de Kids (1995), primeiro longa-metragem do artista. A película, que mostra jovens sempre drogados, durante o auge da crise da aids, teve aceitação e notoriedade e sucesso entre o público massivo. Pequenos apartamentos alugados, sujos e com camas desfeitas, no subúrbio de Nova York, Berlim ou Paris, foram os cenários decadentes para que a fotógrafa americana Nan Goldin capturasse o cotidiano de seus amigos e se incluísse

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em alguns de seus instantâneos. Homens e mulheres injetam e cheiram drogas, fazem sexo, exibem seu lado mais cru – na presença de crianças, inclusive – diante da câmera, esta, testemunha de um grupo do qual poucos sobreviveriam. Os amigos de Nan morreriam dias, semanas, meses após virarem matéria para a sua obra em forma de diário de fotos. Mas, para ela, esses registros são a melhor forma de expressar amor, para lembrar pessoas e momentos. O que fica claro, embora de uma forma chocante para as pessoas que assistem à sua obra-prima, The ballad of sexual dependency (A balada da dependência sexual, um audiovisual montado com imagens captadas entre 1981 e 2008). “Esse realismo e falta de pretensões tornam seu diário fotográfico uma fascinante e sincera crônica da sua vida”, é a interpretação oferecida no livro The 20th century art book (Phaidon).

A representação das minorias, a apropriação crítica da publicidade e o senso de negação norteiam esses artistas MORDACIDADE

“Our prices are insane” (Nossos preços são uma loucura), alfinetava Barbara Kruger, em 1987, em uma de suas obras características, que se assemelham a cartazes ou outdoors, impactantes pelo contraste entre frases vermelhas sobre foto preto e branca e pelas suas enormes dimensões. Em mais uma crítica ao mercado, ela parafraseia o filósofo René Descartes: “I shop therefore I am” (Compro, logo existo), em trabalho do mesmo ano.

Na série contra o machismo e a posição inferior da mulher na sociedade, um rosto feminino é o pano de fundo para a frase “Our body is a battleground” (Nosso corpo é um campo de batalha) ou “It’s a small world, but not if you have to clean it” (O mundo é pequeno, mas não se você tiver que limpá-lo). Com suas fascinantes e muitas vezes disjuntivas justaposições de texto e imagens, Kruger adaptou as estratégias de propaganda política clássica à ideologia consumista predominante dos Estados Unidos de Ronald Reagan. Suas primeiras obras foram pequenas colagens, enquanto ainda trabalhava como editora de revista, que depois ganharam grandes dimensões em serigrafias sobre vinil vermelho e preto que a tornaram conhecida. Com referência ao construtivismo soviético e à publicidade da Madison Avenue, as montagens desta americana nascida em 1945 são maliciosas,

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

engenhosas, perturbadoras e polêmicas. “A força da sua obra se baseia nas tensões entre as imagens apropriadas das colagens e as frases mordazes que questionam nossas suposições sobre o poder, o gênero, a sexualidade e o dinheiro”, comenta Larratt-Smith. A mecanização do desejo, a experiência subjetiva estereotipada, a estratégia de venda dos desejos infantis, a usurpação da autoridade por parte dos meios de comunicação e o uso de tecnologias como mecanismos para garantir o cumprimento ideológico e o controle social são explorados ao mesmo tempo pela artista em sua obra. Sua linguagem direta e o uso de “você, nós, nosso” envolve o expectador, que, seduzido pela artecrítica-propaganda, não consegue ficar indiferente nem seguir sem uma reflexão sobre o que vê e lê. Consciente do seu público, e no intuito de se comunicar diretamente com ele, Kruger usou suportes em espaços públicos (cartazes publicitários, paradas de ônibus, capas de revista e até edifícios públicos inteiros) anticonvencionais ao mundo da arte. Recentemente, a artista aumentou as dimensões da sua obra, fazendo instalações que cobrem paredes, solos e tetos com textos, mas também com videoinstalações em que atores interpretam suas frases. Já a relação próxima de Jean-Michel Basquiat (1960-1988) com Warhol fez com que ele “aprendesse” a cultivar a própria imagem na mídia e ascendesse meteoricamente a um mito da arte das últimas décadas. A sua morte precoce de overdose em meio a uma crise de criatividade e a perda de referência após a morte do amigo, com quem fez várias colaborações, ajudou a construir sua imagem de lenda contemporânea. O jovem afrodescendente, que começou como grafiteiro que fazia desenhos crípticos nos muros do Soho e assinava como “Samo” (abreviatura de “same old shit”, a mesma merda de sempre), misturou as tradições da cultivada pintura europeia com a cultura negra e as formas vernáculas das ruas. Tornou-se a primeira celebridade negra cultuada nos salões da arte, então terreno apenas de brancos, e beneficiou-se da veloz expansão do mercado de arte nos anos 1980.

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O ANJO CAÍDO

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INFLÁVEIS

Detalhe do óleo sobre tela de JeanMichel Basquiat Esculturas gigantes de Paul MacCarthy parodiam ícones da cultura de massa

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MARCOS COSTA/DIVULGAÇÃO

Palavras repetidas obsessivamente e às vezes sublinhadas para serem vistas melhor, como o próprio Basquiat revelou, criavam um código pessoal em sua obra, numa alternância entre uma linguagem consciente e o gesto irracional, resultando em pinturas majoritariamente infantis, confusas, pictóricas, com caveiras, ossos, civilizações mortas.

APROPRIAÇÃO

Distanciando-se da temática dos seus colegas, Paul McCarthy utiliza os mitos da cultura de massa – como

Papai Noel, os personagens de Hollywood, os mecanismos da política dos Estados Unidos, e o fascínio exercido pela Disneylândia sobre crianças e jovens, para desconstruí-los através de performances, instalações, desenhos e esculturas. “Estou interessado na apropriação da estética de Disneylândia, abstraindo e distorcendo imagens (…), na Disney e no fascismo, nas crianças e no condicionamento, na autoridade e no patriarcalismo – uma mistura entre o natural e o antinatural (…), também me interesso pelos artefatos de Hollywood e pelos seus aparatos de produção como escultura”, aponta o artista no livro Conversation with Chrissie Iles (Yale University Press, 2008). A tentativa de abordar temas atuais é feita conscientemente hoje pelos artistas que seguem a tendência de desconstrução da cultura hegemônica. Mas o mesmo não se pode afirmar olhando para as décadas de 1970 e 1980, quando esse caminho começava a ser trilhado. “Eu jamais diria que eles sabiam que estavam abarcando um tema tão grande quanto o declive ou a decadência dos Estados Unidos. Por outro lado, é inevitável que os artistas reflitam seu tempo e capturem coisas que o resto da população ainda não percebe”, opina Larratt-Smith. Para o curador, esses americanos são dotados de uma capacidade incomum e sublimar: têm a necessidade de deixar o inconsciente falar, dar forma e simbolizá-lo. “Sempre me interessei mais pelos artistas que começam com suas próprias psicologias e não vice-versa”, revela.

Fotografia

ENSAIO DE ORQUESTRA A Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque completou seis anos de atividades integrando a lista dos mais bemsucedidos projetos de inclusão social através da música no país: dentre as 92 iniciativas do gênero no Brasil listadas pelo Anuário VivaMúsica!, único guia de negócios sobre música clássica na América Latina, 10 foram selecionadas pela publicação como destaque da matéria de capa da edição de 2012, “cidadania sinfônica”, dentre eles a OCCMC. Para além da projeção midiática adquirida pela orquestra – cuja clipagem inclui as repercutidas aparições no Domingão do Faustão e no Globo Repórter –, as conquistas mais importantes obtidas pelos seus integrantes foram os convênios de assistência social firmados com empresas parceiras, que garantiram faculdade, assistência médico-odonto-psicológica, bolsas de estudos e outros benefícios. Faltava mostrar os Meninos do Coque em sua individualidade; se não em seu ambiente familiar, ao menos dentro do universo em que atuam. Conforme advertido no prefácio de Amanhã, do fotógrafo Marcos Costa, o livro não abarcou todos os 150 membros da OCCMC, mas nomeou cada um dos que foram retratados, dedicando umas poucas legendas adicionais ao projeto em si. A ênfase das fotos não recaiu em enquadramentos, cores, luzes; nem o ensaio teve pretensões artísticas: a proposta era realmente enfocar o rosto e mencionar o nome de cada jovem, estivessem eles em ação, sob a regência do falecido maestro Cussy de Almeida, ou descontraídos, entretidos com afinações, brincadeiras e conversas. Pode-se dizer mesmo que se trata de um book, o que é verdade, porém um merecido book, preparado como um presente para os músicos. Parte da tiragem de Amanhã foi destinada a funcionários do Tribunal de Justiça de Pernambuco que aderiram a uma campanha de contribuição para a manutenção da orquestra. CARLOS EDUARDO AMARAL

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“MATA?”

MATÉRIA CORRIDA José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

Na crônica Mens sana in corpore sano,

Jornal do Commercio, sábado, 23/06/2012, de Joca Souza Leão, o assunto é uma luta chamada MMA, que significa Mixed Martial Arts (artes marciais misturadas) e o chique, diz ele, é dizer “ememêi”, em inglês. A ideia de Joca é que, quando a luta terminar, um painel eletrônico informará a contagem de votos do público, “os que estiverem no estádio, por aclamação (através de um palmômetro); os que não, pela internet, celular ou telefone” em resposta à pergunta: “Mata?”. Fiquei pensando cá c’os meus botões na maneira de morte que desse mais brilho ao certame. Passei em revista os tipos de execuções mais em voga no Ocidente. Insisto: pode-se extrair daí, do fato em si, outra bilheteria, além de uma agência de apostas (quanto tempo o condenado vai resistir, se vai ou não gritar, chamar por mamãe etc.).

Indubitavelmente, a forma de sucesso mais duradouro é a crucificação, ainda mais com o componente erótico de o cara ser crucificado nu (a tanga é invenção da igreja), podendo-se pensar numa versão feminina. As fogueiras, também de muito ibope (vide Joana d’Arc), tão usadas nas festas juninas, em decadência nas áreas urbanas, poderiam ser revitalizadas. Seriam empregadas madeiras de plantio exclusivo, renovável. Ou gás de cozinha. Enforcamento, atraía muita gente, pelo menos nos filmes de caubói, mesmo com a população rarefeita do faroeste naquelas épocas. Hoje seriam multidões. Poder-se-iam instalar telões para os lances menos visíveis a distância, como o garrote vil espanhol, pouco explicado na gravura de Goya. Olho com alguma reserva para certos tipos de execuções mais

novas. Cadeira elétrica, injeção letal, quanto ao apelo ao grande público, tenho minhas dúvidas. Não acho que se prestem a maiores aberturas cenográficas e acústicas: talvez neste último caso, com o incremento de música de fundo, ópera, tenores dramáticos, sopranos de gritos lancinantes, inclusive coro dos espectadores puxado por uma claque. Ainda assim, não confio muito em tecnicismo, até sobrepujando a coisa em si, uma espécie de desvio. Virando ficção. Mesmo fuzilamento. A não ser que se tratasse de fuzilamento coletivo, como, voltando a Goya, Os fuzilamentos do 3 de maio, e o estádio tivesse um lado fechado correspondente ao paredón, o que restringia o número de ingressos. A roda proporciona belo espetáculo. O indivíduo era esticado pernas e braços estendidos numa cruz de Santo André, em xis, ou mesmo

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REPRODUÇÃO

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numa roda de carroça erguida na horizontal no topo de um poste a uns três metros do chão e o carrasco ia lhe quebrando os ossos com um cacete, ficando o justiçado exposto aos urubus. O erro dos doicódis, que nem doeu tanto assim, foi que só uma elite tinha acesso e não o grande público: por isso que a Idade Média durou onze séculos e a ditadura só uns minguados vinte e poucos anos. Ainda sou pelo esquartejamento. Os proprietários dos prédios em volta da praça Saint-Sulpice (e não, como muitos dizem, supplice, suplício) em Paris, onde se realizavam as execuções, ganhavam verdadeiras fortunas com o aluguel das sacadas. Numa dessas, levado por um tio, o menino Donatien-AlphonseFrançois de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade, assistiu ao

Também pensei no método dos astecas de arrancarem o coração com uma faca de pedra e espargirem sangue num altar esquartejamento do autor de um atentado ao rei Luís 14, 15, 16, um desses, ao vivo (o de Tiradentes foi moleza): como preliminar, o sujeito teve pedaços do corpo arrancados com alicate e nos buracos o carrasco vertia chumbo derretido; em seguida, amarraram-lhe pernas e braços a quatro juntas de cavalos parrudos, da raça percheront, que foram açoitados até o desmembramento completo (tornou-se necessário

SUPLÍCIO DA RODA

Petit Larousse illustré

que um médico ajudasse cortando alguns ligamentos pois, os cavalos, mesmo com as ferraduras tirando faíscas do calçamento, não conseguiram rompê-los: perguntar a Caio se isso é possível). Também pensei no método dos astecas de arrancarem o coração com uma faca de pedra e espargirem sangue num altar no alto de uma pirâmide, elementos cenográficos nada desprezíveis. Acresce que pernas e braços eram comidos. Outra ideia. Conheço pelo menos o nome de duas receitas da culinária mexicana para o preparo de carne humana: tlacatlaolli, feito com carne humana e milho, e pozole, que hoje, na falta da matéria prima, fazem com carne de porco. Mas isso é assunto para Lectícia Cavalcanti, da Folha de Pernambuco.

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RODRIGO MONTENEGRO/DIVULGAÇÃO

Show Técnicas modernas de êxtase

TEATRO DO IMIP

25/8 - 21h R$ 20,00

Sonoras

ARMANDO LÔBO Eterno estudante dos sons que virão

Compositor, cantor e arranjador pernambucano lança seu terceiro álbum solo, Técnicas modernas do êxtase, em que mescla estilos musicais e referências culturais TEXTO Débora Nascimento

Havia um lado B na geração manguebeat. Enquanto a maior parte das atenções se voltava para Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi, protagonistas do cenário musical pernambucano dos anos 1990, outras bandas ficavam obscurecidas pelo impacto daquelas duas, embora não estivessem abaixo da qualidade artística de ambas. Em meio a essa parcela menos badalada, encontravase a Santa Boêmia, cujo vocalista era Armando Lôbo, músico inquieto que não se contentava apenas em levar adiante o trabalho de seu grupo. Queria mais. Em 1997, seguiu carreira solo e saiu do Recife para estudar composição, harmonia, fuga, contraponto e orquestração no Rio de Janeiro.

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NO RECIFE

Armando Lôbo volta a se apresentar em sua cidade natal após 10 anos

mim”, lembra o artista, que, após 10 anos sem se apresentar na terra natal, volta à cidade para lançar, no dia 25 de agosto, em show no Teatro Imip (na Ilha do Leite), Técnicas modernas do êxtase, CD encartado nesta edição da Continente. Na ocasião, também divulgará o livro de poemas S.O.S reversos (Editora Moinhos de Vento). Na primeira parte do espetáculo, o artista vai interpretar algumas músicas do disco, acompanhado de uma formação instrumental que inclui sax, bateria, contrabaixo, trompete, flauta e piano. Na segunda metade, vai apresentar composições inéditas. “Como tenho pouca oportunidade de tocar no Recife, vou logo mostrar minha produção futura, mais experimental, com influência de jazz e música erudita”, explica. Apesar de ser um bem-sucedido professor, arranjador e compositor de trilhas sonoras, Armando Lôbo ainda

“Para conseguir apoio, muita gente está fingindo que não é mainstream, passando-se por alternativa”

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“A principal razão de ter saído do Recife foi para evoluir meus estudos, pois na cidade não existia, nem existe, curso superior de composição, e o mercado de música clássica é ainda muito restrito”, conta Armando, em entrevista por telefone, de sua casa no bairro de Santa Tereza. O músico afirma que o mercado está muito voltado para a música comercial e que é preciso estimular a experimentação, inclusive na música erudita. “A música eletrônica não teria existido sem os eruditos, sem os rudimentos eletrônicos que iriam formar a sua base. É preciso ter espaço para o experimento. Por isso saí do Recife, para estudar mais. Saí do Recife, mas o Recife não saiu de

enfrenta os problemas do mercado da música. E um dos entraves que mais lhe incomodam é ter que ultrapassar a fronteira musical e adentrar nos pormenores e trâmites burocráticos dessa indústria. “Tenho que ser meu próprio produtor, o que inclui fazer planilha, agendar teatro, fazer assessoria de imprensa, tocar, compor, produzir. E sem contar que é tudo de meu bolso. Eu trabalho, dou aula, cuido de filho; não posso virar produtor de uma hora para outra. Os produtores costumam gostar de coisa pronta, do que é comercial. Seria ótimo se a gente tivesse dois Sergei Diaghilev (empresário que promoveu Stravinsky), que conseguiu impor um artista. Aqui a gente fica sozinho”, reclama. Além de investir orçamento próprio para poder gravar e tocar, Armando conta que ainda não consegue ter retorno financeiro com

os shows e as vendagens de discos. “É difícil se fazer uma música que busque originalidade e que não tenha prejuízo. Há outra coisa: não basta só a obra, você tem que fazer o social, ter prestígio nas relações sociais. Vejo pessoas que, depois de um tempo de fracassos, vestem a roupa da hipocrisia, de forma a conseguir com a vida social o que a obra não conseguiu”, lamenta. “É preciso manter a dignidade. O artista tem que ser fiel a uma visão. Quando ele começa a virar um burocrata, um ser social demais, o foco fica mais na vaidade do que na própria expressão artística”, avalia. O cantor também lembra a dificuldade que muitos músicos têm para conseguir verbas para gravar seus discos de forma independente. Para ele, as leis de incentivo à cultura e vários setores do mercado da música estão caindo na armadilha do “falso alternativo”: “Para conseguir apoio, muita gente está fingindo que não é mainstream, passando-se por alternativa. Mas sua música é comercial, com estética comum; apenas não teve sucesso”.

SOMBRIO E RADIANTE

Apesar de toda a sua batalha na atual indústria fonográfica, cujo novo perfil ainda está se desenhando, Armando não se dobra ao caminho mais fácil. Isso está evidente nos 40 minutos de Técnicas modernas do êxtase. Nas 10 faixas, percorre-se trilhas sombrias, íngremes, mas, por vezes, radiantes. E nesse trajeto de intricados arranjos e letras bem estudadas o compositor exibe algumas amostras de seu estofo cultural, tecendo referências a variados nomes da literatura e da música. A faixa de abertura, Litania do gozo, começa com uma marcação lembrando uma marcha fúnebre, o que pode assustar os mais fracos, mas ela é apenas um prólogo para o tema que é pontuado aqui e ali no disco, a morte. A partir de então, adentramos na música Homem da mata, na qual paira uma sutil e agradável atmosfera de Milton Nascimento e Tom Jobim. Na canção, o afinado cantor faz dueto com a intérprete italiana Cristina Renzetti. Em seguida,

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ANDRÉ FONTES/DIVULGAÇÃO

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temos a primeira composição do CD que não é de autoria de Armando Lôbo, Matinta-Perêra, clássico do Amazonas, composto por Waldemar Henrique e Antônio Tavernard. A faixa faz um elo conceitual com a anterior e tem participação de Carlos Malta nas flautas. Quando o disco começa a trilhar um percurso uniforme, Tempestade e ímpeto quebra a expectativa e mostra uma de suas primeiras surpresas, um galope dissonante, embalado em um rock herdeiro de Alceu Valença. Nela, Armando, responsável pelo violão de todo o disco, toca guitarra. Depois, surge a caribenha e dançante Canción de negros en Cuba, em que o instrumentista mostra seu talento como compositor, inserindo música no poema homônimo de Frederico García Lorca. A canção é do tempo da banda Santa Boêmia. Em mais duas faixas, o artista utilizou poesias para, a partir delas, criar a sonoridade, como em Atrás das máscaras, com poema de Conde Belamorte, poeta soturno de quem faz um resgate, e Cópula, a partir de versos

As canções de Armando Lôbo dialogam com Mahler, Garcia Lorca, Wagner, Tom Jobim e a literatura medieval de Santa Teresa d’Ávila e San Juan de la Cruz, na qual apresenta uma releitura da música medieval. Diurno ou a noite dentro de uma fruta comprova a preocupação do compositor com o acabamento das obras. “Eu sempre tenho que fazer o arranjo, pois, para mim, a composição só termina nele. Na música erudita, a orquestração é parte da composição. Na música popular, não. Construção, de Chico Buarque, deve muito ao arranjo de Rogério Duprat. Aquele impacto que a letra tem, sem aquele arranjo, perde o sentido. O arranjo dramatiza o discurso musical”, afirma. Para incrementar mais a diversidade desse disco, Armando, que é também cofundador do Frevo

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ORQUESTRANDO

Para o compositor recifense, o processo de criação de uma canção só se conclui com o arranjo

Diabo, grupo carioca que compõe e toca o ritmo pernambucano, inseriu o frevo de rua O crepúsculo do frevo, cuja letra provocativa relata a morte imaginária do gênero. A música foi construída a partir da abertura da ópera O crepúsculo dos deuses, de Richard Wagner. Ainda num tom desesperançoso, mas belo, Armando Lôbo encerra o disco com a faixa Morte em Veneza, que traz uma “parceria” com Gustav Mahler (1860-1911), de quem fez uma adaptação do adagietto da Quinta sinfonia. A letra ambienta no Recife a tragédia do romance de Thomas Mann, retratada por Luchino Visconti no filme homônimo de 1971. Essas tantas referências de Técnicas modernas do êxtase atestam uma frase que o músico pernambucano de 41 anos diz como uma filosofia de vida: “Quero ser como Stravinsky, chegar perto dos 90 anos ainda estudando”.

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INDICAÇÕES REGIONAL

VÁRIOS ARTISTAS Ciranda Caiçara de Paraty Independente

O nome do folguedo no litoral carioca é ciranda, mas a música aproxima-se mais do cateretê e da folia de reis do que da ciranda praiana nordestina, embora as letras de ambas compartilhem as mesmas vivências de pescadores locais. Este CD, que resgata o trabalho de mestres e conjuntos populares daquela tradição em Paraty-RJ, traz oito músicas de quatro grupos caiçaras locais – formados por cordas dedilhadas, pandeiro e timba – e uma poesia do Mestre Amélio Vaz.

CONTEMPORÂNEA

MPB

Independente

Independente

GRUPO AUM Cortesia

Cortesia surgiu como um especial da TV Cultura sobre Edmundo Villani-Côrtes, compositor que alia a MPB instrumental à música erudita contemporânea, a exemplo de Egberto Gismonti e Radamés Gnattali. A parceria entre Villani-Côrtes e o Grupo Aum – sexteto de câmara formado por piano, duas flautas, oboé/corne inglês, contrabaixo e percussão – já rendeu três CDs e, neste DVD, celebra os 80 anos do artista mineiro. Os extras incluem uma entrevista com o compositor e o making of.

JAZZ

LAURA DANTAS Mil Tons Acompanha pelo Grupo Quanta, Laura Dantas destaca-se em seu CD de estreia pela entusiamante performance vocal e pela qualidade das letras que escreveu, carregadas de riquíssimas paráfrases – a começar pela música-título. O universo sonoro e poético da cantora baiana perpassa as paisagens urbanas do Rio, a inventidade dos Novos Baianos e a expressividade de Elis Regina. Especialmente envolvente é a reinterpretação de Último desejo, de Noel Rosa.

RICARDO BALDACCI TRIO Hello, Mr. Cole! Independente

Na era das pomposas big bands norte-americanas, Nat King Cole fez sucesso acompanhado apenas por um intimista drumless trio (isto é, um trio sem bateria). Em Hello, Mr. Cole!, essa ambientação instrumental é reconstituída de forma primorosa pelo trio formado por Ricardo Baldacci (voz e violão), Hercules Gomes (piano) e Ricardo Ramos (contrabaixo). Entre as 10 faixas, presença obrigatória de Unforgettable, Route 66 e Sweet Lorraine.

Festival Debussy/Albéniz

RECITAIS, ÓPERA E MARTÍRIO FOTOS: REPRODUÇÃO

Entre os dias 7 de agosto e 1 de setembro, o Recife reúne, pelo terceiro ano seguido, destacados intérpretes pernambucanos da música de concerto para a realização de mais uma iniciativa com o patrocínio da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco e apresentação da Continente. Depois das homenagens a Chopin e Schumann, em 2010, e a Liszt e Mendelssohn, em 2011, agora é a vez de dois grandes nomes europeus de verve latina: Claude-Achille Debussy (1862-1918, foto 1), conhecido pela estética que desenvolveu, chamada de impressionista (ainda que o compositor francês ressaltasse sua ligação com a poesia simbolista), e o espanhol Isaac Albéniz (1860-1909, foto 2), caro ao repertório de muitos pianistas e orquestras do Velho Mundo, porém pouquíssimo executado na região Nordeste. Das 14 apresentações do Festival Debussy/Albéniz, 10 delas serão dedicadas ao repertório pianístico e camerístico e terão lugar no Teatro Valdemar de Oliveira. Já as outras quatro récitas caberão à ópera cômica Pepita Jiménez (1895), de Albéniz, em primeira execução no Brasil, e ao drama em cinco atos O martírio de São Sebastião (1911), de Debussy. Cada obra ocupará duas noites no Teatro de Santa Isabel e o público poderá acompanhar os libretos via legendagem sincronizada.

A pianista e diretora artística do evento, Elyanna Caldas, explica a escolha do compositor espanhol junto às celebrações do sesquicentenário de nascimento de Debussy: “Estamos fazendo os festivais anuais patrocinados pela Cepe de dois em dois compositores, porque assim ficamos com uma programação mais variada e contrastante. E achei Albéniz uma boa companhia para Debussy, porque ele morou muito tempo na França e foi um importante nome do nacionalismo espanhol (que também influenciou Debussy), além da admiração do próprio compositor francês por Albéniz e de ambos terem pertencido a uma mesma geração”. Ademais, Elyanna revela que a notícia da encenação de Pepita Jiménez foi bem recebida na Espanha: “Me mandaram a partitura de presente, dizendo que era uma alegria e uma honra muito grande esse interesse de nossa parte por Pepita. Quanto ao Martírio, tudo indica que se trata da primeira execução no Nordeste”. A produtora destaca, ainda, a primeira execução integral no Recife dos quatro cadernos da suíte Ibéria, de Albéniz. Todos os concertos do Festival Debussy/Albéniz têm entrada gratuita. A programação encontra-se disponível no site: www.revistacontinente. com.br. CARLOS EDUARDO AMARAL

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CORBIS

Reza a sabedoria popular que

PRESSÁGIOS Quem come os males espanta

Sociedades antigas e contemporâneas utilizam-se da comida como estratégia para atrair a sorte e evitar o mal TEXTO Eduardo Sena

Cardápio 1

“agosto é o mês do desgosto”. E se tem uma coisa que acaba fazendo sentido no mundo é o clichê mundano. Historicamente, a sentença vai além da perspicaz força de expressão. Senão, vejamos. Foi no oitavo mês do ano que o primeiro homem foi eletrocutado em uma cadeira elétrica; começaram a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais; as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki foram destruídas pela bomba atômica. É um mês negativamente carregado pelo tempo, não há como se negar. Para passar incólume a esse agouro de 31 dias, vale tudo: reza, meditação, banho de sal grosso e comida – por que não?. “Comer não é apenas um ato complexo biológico. É, antes de tudo, um ato simbólico e tradutor de sinais. É um ato que une memória, desejo, fome, significados, sociabilidades e ritos”, sintetiza o antropólogo Raul Lody, que se dedica aos estudos da relação humana com os alimentos. É por meio das panelas que se estabelece, portanto, um dos elos mais atávicos do homem com a sorte. Embora desprezadas solenemente por vários comensais durante todo o resto do ano, quem nunca se rendeu a um pouco de lentilhas cozidas no Ano-Novo, na intenção de trazer bons fluidos? “É uma tradição italiana que estabelece que comer uma colher delas durante o réveillon é certeza de fartura à mesa; já que durante o cozimento o grão dobra de tamanho. Além disso, era a comida preferida do rei Midas, aquele que transformava em ouro tudo o que tocava”, explica a pesquisadora gastronômica Maria Lectícia Cavalcanti. Também na passagem do ano, a carne de porco é um item bastante presente na ceia. Aqui, o simbolismo passa pelo gestual do animal que fuça para frente. Aliás, nesse momento, dizem, as aves devem ser evitadas, porque ciscam para trás. Fortemente marcado por aspectos gastronômicos, o judaísmo também apresenta alguns rituais de sorte. Segundo a escritora e antropóloga Tânia Kaufman, o que marca verdadeiramente a cozinha judaica como ritual de transformação é a comida doce. A tentativa? Trazer uma vida cheia de dulçor.

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Para isso, os acepipes feitos à base de muito açúcar são fundamentais nas principais cerimônias religiosas dos judeus: no batismo, no ritual de dar o nome, a maioridade religiosa dos meninos, o casamento e os procedimentos fúnebres. “Na grande maioria delas, sempre é servido chalá (pão trançado), bolo de mel e flúden (pequena massa folhada recheada de frutas secas). O doce excessivo significa uma vida açucarada para o praticante”, explica Tânia Kaufman.

BISCOITO CHINÊS

Igualmente milenar, a sabedoria oriental foi incorporada e popularizada, no que diz respeito à relação entre comida e bons presságios. Para grande parte dos ocidentais, o elemento comestível que mais corporifica essa “felicidade do acaso”, digamos assim, é o famoso biscoitinho da sorte, cuja origem remonta à China, há 800 anos, em uma circunstância de guerra. Para livrar parte de seus territórios do domínio do guerreiro mongol Genghis Khan, o exército chinês elaborou uma estratégia de ataque e de transmissão, que finalmente o levaria à reconquista das terras perdidas. À época, havia um doce chamado de “bolo da lua”, cujo sabor era detestado pelos mongóis. Valendo-se disso,

É por meio das panelas que se estabelece um dos elos mais atávicos, mais ancestrais, do homem com a sorte os chineses esconderam os planos bélicos dentro desses bolos, que foram enviados a todos generais. Por meio dessa ação, o povo chinês reconquistou sua autonomia, dando início à dinastia Ming. E, para comemorar tal feito, anualmente os chineses passaram a trocar mensagens de felicitação da mesma forma em que as mensagens secretas foram enviadas, dentro do que pode ser chamado de “bolinhos da vitória”. As frases que vêm dentro do biscoito normalmente são tiradas do I Ching, livro de sabedoria baseado na filosofia chinesa. Mas não se encerra aí o casamento representativo entre comida e sorte para o povo oriental. O guioza, tipo de pastel japonês, é bastante popular e pode ser recheado com legumes ou carne de boi. “Na véspera do AnoNovo, as cozinheiras colocam moedas dentro dele. Quem as encontrar terá mais sorte”, detalha o sushiman Yoshi

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MENSAGENS

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LENTILHAS

Biscoito da sorte surgiu em episódio de guerra na China Tradição de preparo dos grãos no AnoNovo nasceu na Itália

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Matsumoto, egresso de Nagasaki, no Japão. Já na China, uma curiosidade: mesmo no dia a dia, é importante não cortar o peixe nem retirar sua cabeça e, ao comê-lo, não virá-lo quando acabar a carne de cima, o que pode ocasionar má sorte nos negócios, acredita-se. O Brasil não fica atrás quando o assunto é superstição alimentar. Por aqui, o ritual e a etiqueta à mesa estão permeados de simbolismos. No livro História da alimentação no Brasil, o escritor e folclorista Câmara Cascudo nos lembra alguma delas. “Comer despido é ofender o anjo da guarda. Comer com chapéu ou afins é deselegante. Quando cai comida no chão, da boca ou do garfo é sinal de parente passando necessidade. Não se levanta comida do solo porque é das almas. Vinho derramado é alegria. Sal derramado é agouro. Donzela não serve sal, não corta galinha, nem passa palitos. Beber sobejos é ficar sabendo dos segredos dos outros. Não se oferece o primeiro nem o ultimo bocado. Deve deixar-se sempre um pouco de comida no prato. Não se joga pão fora, é o corpo de Cristo. Antes de findar o repasto, não se cruza o talher. Donzela não deve ficar na ponta da mesa senão fica solteira. Dinheiro em mesa de comida provoca miséria.” E quem ousa contrariar uma desses ditados, tendo a profecia do povo como principal certeza?

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ROBERTA GUIMARテウS

Palco

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Plasticidade, dramaticidade e

ORIXÁS Dança que encena gestos de divindades

Tal qual um espetáculo dramático cercado de preceitos, uma festa de terreiro pressupõe hierarquia de posturas e significações TEXTO Danielle Romani

religiosidade. Esses e outros elementos estão presentes nos rituais do candomblé, religião de matriz africana que possui mitologia própria, com mais de 400 divindades, conhecidas como orixás. Quem já participou de um xirê – como são chamadas as festas celebradas nos terreiros – pode atestar a riqueza ritualística em torno dos orixás e deleitar-se com um cenário complexo e belo, comparável a um elaborado espetáculo cênico. A força e expressão gestual das divindades chama a atenção dos que participam das festas nos terreiros, inclusive dos pesquisadores, que procuram analisar as características desses deuses. Na dissertação A dança dos orixás de Augusto Omolu e suas confluências com a Antropologia Teatral, apresentada ao programa de pósgraduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia, Antônio Marcos Ferreira Júnior pondera: “Segundo a filosofia do candomblé, o universo é dinâmico e ao manter-se em movimento ele está em equilíbrio. A dança é o testemunho mais correto e expressivo desse ritmo universal. A vida faz parte desse processo rítmico e dinâmico de criação e destruição, de morte e renascimento, expresso no ritmo das danças dos orixás, que simbolizam as energias da natureza nesse eterno e alterno ritmo, que continua em ciclos infinitos”. Comida, vestimenta e dança são fundamentais para que as entidades se manifestem com harmonia e distribuam sua força aos devotos. As danças, em especial, são coreografadas com movimentos e sinais específicos, exprimindo a maneira de ser de cada divindade. Nelas, os orixás revivem momentos importantes e se conectam à energia original que os envolveu durante suas criações. O corpo do devoto, portanto, é essencial ao rito, para que a devoção se concretize. “É o instrumento de expressão e comunicação com o orixá, que vem para este plano e se comunica pelo cavalo do santo (como é chamada a pessoa que incorpora)”, explica Mário Ribeiro, historiador e diretor da Casa do Carnaval (Recife). Assim como o corpo, as vestimentas e expressões corporais também

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FOLHAPRESS

Palco 2

são peças-chave na representação das divindades. “Os objetos e os movimentos vão expressar suas naturezas peculiares. Pela dança, percebe-se a correlação que o orixá tem com os ventos, com as matas, com as águas, com a terra”, diz Mário. Para entender essa conexão entre o corpo e o espírito, entre o devoto e a santidade, a repórter fotográfica Roberta Guimarães vem trabalhando, há dois anos, na produção do livro A pessoa, o sagrado e o orixá, previsto para ser lançado em 2013. Nos últimos 24 meses, ela acompanhou a transformação de vários filhos de santo, a partir do momento da colocação das indumentárias e da entrada no peji, ou camarim, espaço sagrado em que os fiéis se ornam com vestimentas típicas e artefatos próprios, permitindo que os orixás se incorporem. “É admirável perceber essa transformação. Conferir a mudança

Movimentos e sons estabelecem conexão entre o corpo e o espírito, entre o devoto e a divindade à qual ele se consagra que acontece quando vestem as indumentárias. Ver o respeito e a reverência que eles alcançam depois da saída do peji”, diz Roberta, que já documentou incorporações de Oxum, Xangô, Nanã, Oxalá e Ogum. Segundo ela, é visível a força e o respeito que o candomblé detém no Recife, apesar do preconceito ainda existente contra a religião. Por todo Brasil, várias nações – como são chamadas as diversas ramificações do candomblé, de acordo com a diáspora africana – têm rituais

semelhantes, mas com nuances que, na linguagem dos “iniciados”, são chamadas de “ética própria de se relacionar entre o zelador e as divindades”. Os terreiros dos xambás, angolas, nagôs, jejes, moçambiques, quetos, minas e iorubás, portanto, mantêm cerimônias e ritualísticas que possuem raízes aproximadas, mas com batidas que os distinguem na devoção. A relação com a música – “rezas cantadas”, segundo observa Mário Ribeiro – obedece ao modo de tocar das nações. “Em algumas, o atabaque é tocado com as mãos. Em outras, com cipós de aroeira ou de goiabeira. Isso muda radicalmente a sonoridade”, descreve Mário. No livro Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo, Pierre Fatumbi Verger mostra que são muitos os ritmos, devidos às formas de tocar e aos sistemas de tensão dos couros dos atabaques. “O etnomusicólogo

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Página anterior 1 OXUM

Orixá figura entre as “mães d’água” e sempre se faz presente nas festas

Nestas páginas 2 TERREIRO

As danças representam as energias da natureza de cada divindade

Xavier Vatin identifica no candomblé contemporâneo 20 fórmulas rítmicas: oito seriam originárias da nação nagô-ketu; sete da nação jeje, quatro da nação angola e um da nação nagô-ijexá. Cabe notar que, como em outros aspectos litúrgicos, há nesse âmbito uma forte interpenetração entre as diversas nações”, escreveu o africanista e fotógrafo.

GESTUAL

No que diz respeito à dança, em todas as nações, as divindades se assemelham, principalmente quando se trata de Exu, cujos movimentos são copiados por dançarinos de vários grupos. “Mensageiro por excelência, Exu apresenta-se numa dança serpenteada, as mãos ora levantadas para o orun (céu), ora para o aye (terra), os quais ele interliga. A comissão de frente das escolas de samba, em especial a partir dos anos 1960,

executa inúmeros dos seus passos... O mesmo acontece com Iansã, que domina os ventos, as tempestades e cuja principal característica é o enlaçar dos braços. Toda graça do jogo cênico dos braços dessa coreografia era exibida no desfile das grandes escolas, com a passagem da veterana Paula do Salgueiro, que durante três décadas foi uma das passistas mais famosas do Rio de Janeiro”, explica o pesquisador de carnaval José Carlos Rego, autor do livro Dança do samba. No Recife, essa relação pode ser percebida claramente nos blocos de afoxés, nos maracatus de baque virado e nas escolas de samba. “Nos afoxés, além da indumentária típica, os ritmos, os cânticos e a dança são uma clara referência às divindades. No maracatu, isso fica marcado na ala dos orixás (que nem sempre está presente nas agremiações). Quando essas alas são formadas, os brincantes fazem exatamente os movimentos que os representam. Na escola de samba, a presença do sagrado na gestualidade fica patente na ala das baianas, principalmente na hora em que elas rodam e dão uma parada brusca. “É como se fosse a ‘caída’ do santo, o oriki do santo”, pontua Mário. Portanto, essas são as manifestações artísticas que têm mais afinidade com o candomblé e suas coreografias. Músicos, em especial os baianos, costumam executar passos de orixás nas suas apresentações artísticas. “A Timbalada tem uma música Ashanshu, em homenagem a Obaluaiê. Na coreografia, eles fazem exatamente os passos da divindade. O Olodum, na música Iemanjá amor mar, também repete os movimentos dela. E se não fosse isso, teríamos um exemplo muito claro dessa apropriação dos movimentos das divindades a partir de Maria Bethânia, que, ao interpretar a música Iansã, se manifesta no palco com a força e ênfase dela”, diz o historiador.

ENTRADAS

Pós-graduado em Políticas Culturais e Cultura Popular e babalorixá há quatro décadas, Albemar Araújo explica que as religiões de matriz africana são muito presentes em Pernambuco, e que, no Recife, especificamente,

os terreiros e o próprio candomblé são conhecidos como “xangô”, que é também o nome de um dos mais poderosos orixás masculinos. “Xangô é uma das entidades mais reverenciadas e queridas. Manifestase com ênfase, com violência, com muita força, carregando seu machado, o oxê, e o maracá, o xerê. Ele tem a ver com a justiça, o poder, a realeza”, diz o babalorixá. Apesar da fama, não cabe a Xangô a primazia de abrir os trabalhos nos terreiros. Em todas as nações, os rituais iniciam-se reverenciando Exu, o mensageiro. “Ele faz a varredura e vai chamar os outros orixás. Toma conta da festa do começo ao fim. Nem sempre se manifesta, mas quando o faz, dança com graça, com beleza. Traz consigo um grande falo e dança semeando a fertilidade”, explica Albemar, que atua em terreiro de tradição nagô. Ogum, que na mitologia africana é o deus da metalurgia, o guerreiro, é sempre o segundo a entrar. “Sua dança tem gestos ríspidos, pois ele promove a guerra contra o mal, abre os caminhos. No candomblé, sua cor é o azul-escuro. Ele normalmente incorpora”, explica Albemar. A partir desse momento, a ordem de entrada vai depender da “ética” de cada nação. “Cada um vai dar a primazia às suas entidades. O denominador comum só surge quando Oxalá é convocado para encerrar a cerimônia”, pontua. “Quem fecha o xirê é Oxalá. Ele encerra as atividades, ordena que todos os orixás se virem para a porta da rua, mandando embora as energias negativas e deixando apenas as positivas. Ele tem mais de uma faceta e forma de se apresentar. É o único orixá masculino a usar o filá (véu) das deusas femininas e se divide em dois: Oxaguian, o jovem, o guerreiro, que porta uma espada e dança com ênfase, vibrando; e o Oxalufan, o velho, que vem coberto por um pano e dança curvado, apoiando-se no seu cajado, o opaxorô”, distingue Albemar. Assim é que, numa festa de terreiro, devotos e demais participantes têm a oportunidade de ver encenada por homens e mulheres a gestualidade dos deuses que reverenciam.

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ROMANCE Viagem em torno de Lúcio Cardoso Escritor mineiro produziu obra de ficção de caráter psicológico, rara no contexto realista brasileiro TEXTO Fernando Monteiro

Leitura Uma literatura que se inaugura com

a obra de um Machado de Assis deveria ter podido manter o rumo firmado por tal começo pela mão de um mulato de gênio. Na cronologia que prefiro usar – e que não diz respeito somente ao tempo que passa em calendários – a data do pontapé inicial não remontaria a Alencar nem a nada antes da grande ficção machadiana (de gosto já tão moderno). Começamos com o pé direito criando a Capitu que ainda resiste como um mistério psicológico... Estamos falando de sorte grande e meu assunto não é Machado, mas – surpresa – Lúcio Cardoso. E agora devemos fixar o Brasil perdulário que foi, pouco a pouco, perdendo o rumo literário dado por instrumentos assim de ouro, nos seus inícios: a bússola épica de Euclides da Cunha ao mesmo tempo em que produzia o intimismo, nos seus cueiros, de um Le grand Meaulnes tupiniquim mais gostoso do que o francês de Alain Fournier. Refiro-me ao romance O ateneu, de Raul Pompeia, que antecedeu Fournier também nas febres da imaginação transida pelos não acontecimentos durante as adolescências especialmente nervosas... Com o que chegamos às naus da preferência do mineiro nascido há 100 anos: Joaquim Lúcio Cardoso Filho (1912-1968).

Eis, então, uma literatura que começa com pelo menos três mestres criadores de obras de alta voltagem literária. Foram as tutelares “divindades” que Afrânio Coutinho escolheu para si, enquanto o espírito sombrio de Lima Barreto via a estranheza dos destinos adultos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado... Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo João do Rio, enveredaria por dentro das noites, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo. Desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial, de raiz “psicológica”, incrementada por um Dyonelio Machado, no Sul, e um Cornélio Penna, até chegar Lúcio Cardoso. Firmando o leme dessa viagem literária, enfrentemos as águas, agora, do romance regional como um subproduto modernista. Lúcio, aliás, começou aderindo ao gênero – na primeira hora da poderosa influência de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego – ao publicar seu romance de estreia Maleita, em 1934. Na própria carne ficcional da obra que vai publicando de forma quase sequenciada (1935, 1936), o que esse escritor “à margem” vai operar é a

passagem de volta à literatura que perdemos. Porque Lúcio Cardoso se assemelharia à restauração de algo como um “elo” perdido, como legítimo herdeiro daquela modernidade inicial da nossa (melhor) literatura, se a ele juntamos, numa etapa posterior, os nomes de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, num mesmo platô introspectivo e de invenção literária. Para a ótica mais ortodoxa – em se tratando do que apenas parece “linear” na evolução da narrativa brasileira –, certamente que acabo de dar alguns saltos mortais, ao propor uma espécie de elipse do regionalismo, do qual só recentemente fomos nos emancipando. É, entretanto, o único recurso que permite que se possa chegar a Lúcio como “módulo intercambiável” do quadro, e se fazendo o pulo necessário do longo hiato que torna Lúcio, agora, o nosso romancista psicológico. No meio do salto, de algum modo, foi atropelado o carioca Octávio de Faria. Pois tentou escrever seu roman-fleuve – a Tragédia brasileira –, não conseguiu, e a sua obra-prima está fora da Tragédia: leiam as Novelas da masmorra, e estarão a braços com três das melhores ficções brasileiras de todos os tempos. Octávio talvez precisasse apenas alargar a visão católica, para dar o outro tipo de salto mortal necessário – embora a força estivesse,

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DIOGO VALENTE

naquela altura, com o tipo de asa “torta” do Modernismo que foi o romance regionalista, convenhamos. Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-1930. Daquele “pontapé” inicial – e seus desdobramentos – é ele, com certeza, um criador mais ambicioso do que Cornélio Penna e sua literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde algum pálido retrato. O Sul iria trazer a voz de Veríssimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americano. Não era. Ninguém irá se impactar, atualmente, com novelas ao estilo de Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços

Mário de Andrade afirmou que, na obra do escritor mineiro, “Deus voltou a se mover sobre a face das águas” farroupilhas – em tom épico forçado –, quando o vento forte da literatura latinoamericana vem a soprar, nos ouvidos de Érico, com trompa rouca demais para ser ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, casa arrombada, casa de demônios, a casa assassinada de Lúcio Cardoso. A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do pontilhista Luis Jardim – com vocação de voyeur (em As confissões do meu tio Gonzaga) que recuou um passo

do tema do incesto – e, assim, é Lúcio mesmo o único Faulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e sentindo, na carne, a morada do diabólico Outro. Antonio Gala nos diz que “o corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”. Ora, somente em Lúcio o leitor de verticalidades enxerga o portador daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver, não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar”. Quando o poeta Lêdo Ivo afirma ser Lúcio “o grande emissário da noite, da sombra e do silêncio numa literatura que sempre foi solar e tropical”, ele situa bem o escritor cuja estreia foi quase desajeitada, com um romance que traça a trajetória do seu pai aventureiro, Joaquim Lúcio Cardoso, fundador de Pirapora.

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Leitura O romance seguinte – Salgueiro, de 1935 – seguiria ainda a mesma receita, mas A luz no subsolo, do ano seguinte, e principalmente Dias perdidos (1938) e a novela Mãos vazias, fariam desviar a sua ficção para o intimismo avant la lettre que Cardoso vai representar na prosa brasileira do pós-guerra. A luz no subsolo é ainda um texto indeciso entre as duas pulsões – a solar e a noturna, para ecoar as palavras de Lêdo –, porém já trazia uma força nova, que Mário de Andrade de imediato reconheceu: “Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas compreendi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas.” Mário não poderia imaginar que, anos mais tarde, Lúcio daria início justamente à sua Trilogia do mundo sem Deus – focado na terra desolada do mesmo Rio de Janeiro a que se devotou Octávio de Faria, infelizmente sem a coragem do mergulho de Cardoso no submundo das modernas cidades ornadas dos colares das prostitutas, das garrafas no lixo dos alcoólatras e nas manchas de sangue na parede dos assassinos. As novelas Inácio, O enfeitiçado e Baltazar (esta, inédita), relançadas pela Editora Record,

“Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto”, diz Lúcio fazem parte do projeto de investigação que Lúcio não chegou a completar com relação ao submundo carioca. Sob a pele das coisas, seu olhar não se deixa fascinar pela cidade – ao contrário da insustentável leveza da literatura do amigo Aníbal Machado, por exemplo. O próprio Lúcio explica a diferença de atitudes: “Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto. Digo TUDO: as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, os grandes becos da necrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, tudo.” A “lenda urbana” dá conta de que, nesse período, o escritor teria chegado a contratar um matador de aluguel para persegui-lo, de modo a sentir na pele a sensação do seu personagem jurado de morte. O que há de certo é o que Lúcio

escreveu em cartas como as destinadas a Cornélio Penna, o autor de A menina morta que merecia toda a sua confiança: “É impossível a alguém viver como eu vivo, sem explodir ou morrer um dia. Estou aqui sem coragem de atravessar o dia, de reunir as minhas numerosas máscaras...” Clarice Lispector também manteve correspondência com Lúcio, e comprova essa tormenta interior (ou a “máquina infernal da mente que Deus me deu”, nas palavras dele), ao mesmo tempo em que testemunha a influência que ele exerceu sobre os autores da sua geração, a partir de quando o seu caminho (para a interioridade) se esclareceu para LC. Tanto quanto detestou o título O lustre, foi Lúcio quem “batizou” Perto do coração selvagem e, ainda segundo a Lispector, foi ele quem lhe ensinou “a conhecer as pessoas através das máscaras”. Amigos de Clarice dão como certo que a admiração da escritora resvalava para o terreno amoroso, num sentimento impossível de ser correspondido por Lúcio, homossexual apaixonado pelas mulheres apenas como criador capaz de instilar vida em personagens como a Nina de Crônica da casa assassinada – que Wilson Martins tem certeza de que “ficará como uma das grandes mulheres do romance brasileiro. Sua personalidade imperiosa e despótica, seu enigma secreto dominam não somente a chácara e a família dos Menezes, mas, ainda, e sobretudo, o próprio leitor”. Essa é a obra-prima de Lúcio – e ainda pede uma viagem mais longa do que tentei esboçar aqui, à volta de uma casa quase inviolada (no que ela tem de mais íntimo e secreto), no fundo do quarto escuro da alma. Precisa ser relida, neste momento agônico de uma ficção que se esgarça em realismo datado, violência e confusão com crônica do dia a dia. A “casa assassinada” de Lúcio talvez aponte para uma literatura de ficção que, aqui e agora, ainda pode ser salva pela leitura de um assassino da banalidade, de um talento maior que se está deixando de ler para perder tempo com os escritores menores que pululam na mídia, reescrevendo – ou tentando reescrever – coisas que já foram ditas de melhor modo e com maior alcance. Que voltem os mestres (e Cardoso é um deles) às girândolas das livrarias culturais brilhando com aquelas últimas novidades que não acrescentam nada.

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RAUL BOPP Uma pele nova para Cobra Norato

Edição bilíngue publicada na França acende o interesse, fora dos círculos literários, pelo mítico poema modernista dos anos 1930 TEXTO Saulo Neiva

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A edição mais recente de Cobra Norato, longo poema narrativo do gaúcho Raul Bopp (1898-1984), data de 2005 e foi publicada na cidade francesa de Nantes. Trata-se de uma primorosa edição bilíngue e ilustrada dessa verdadeira micro-odisseia amazônica e modernista que foi lançada como uma das várias manifestações ligadas ao Ano do Brasil na França. Uma série de gravuras de Sandra Machado, que se inspira na arte caiapó para evocar passagens do poema, dá vida a praticamente cada página. À medida que folheamos o volume, percorremos primeiro a tradução de Ciro de Morais Rego, que ultrapassa com talento os inúmeros obstáculos da escrita boppiana, com suas onomatopeias, adjetivos insólitos ou verbos no diminutivo. Em seguida, podemos ler os versos originais de Bopp, acompanhados de outras ilustrações. Uma breve apresentação da obra e do autor, além de um glossário – utilíssimo para o leitor estrangeiro – completam o livro. Descobrimos assim – primeiro em francês, depois em português – o percurso iniciático do herói que, após

matar a Cobra Norato, com a astúcia de um Ulisses tupiniquim (“Brinco então de amarrar uma fita no pescoço/ e estrangulo a Cobra”), entra na “pele de seda elástica” dela para, por amor, arrastar-se até as terras do Sem Fim; ele sobrevive a diversas provas, peripécias e metamorfoses, com o intuito de liberar a filha da rainha Luzia do poderio da Cobra Grande. O original e a tradução não aparecem “em espelho”, uma defronte da outra. É uma escolha editorial que, no começo da leitura, podemos até lamentar. Por que não deixar que o leitor confronte confortavelmente, verso após verso, o poema e sua tradução, colocando-os na mesma página ou, um na página da esquerda, outro na da direita? Por que isolar um do outro? Só aos poucos percebemos que o livro nos convida a travar outro tipo de relação com o texto e sua tradução. O que se quer aqui não é levar o leitor desde o começo a uma comparação progressiva do original com sua versão em língua estrangeira. E, sim, que ele desfrute inicialmente a tradução, ao lado das belas ilustrações

de Sandra Machado, para em seguida se deliciar com o original e com outras ilustrações da mesma artista. No final, uma releitura do original em confronto com a sua tradução terá ainda mais sentido. O livro, lido e relido assim, de cabo a rabo, nos guia por diferentes viagens, trajetos complementares em que vamos sendo levados por um triplo fio condutor, que é fornecido pelo poeta, seu tradutor e a artista. Viagens quase tão surpreendentes quanto a que conduz o protagonista do poema às paradisíacas terras do Sem Fim.

CAPAS RENOMADAS

Esta cuidadosa edição de Cobra Norato tem um mérito inegável por duas razões pelo menos. Antes de tudo, ela enriquece a história editorial de um texto que, ao longo das suas diferentes edições, se beneficiou de um tratamento gráfico privilegiado, com capas assinadas por artistas de renome, como o húngaro Zoltan Kemeny (1947) e o catalão Joan Miró (1954), além dos brasileiros Aldemir Martins (1956) e Poty (1973).

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Página anterior 1 SANDRA MACHADO

Artista assina ilustrações da edição francesa do livro

Nesta página 2 OSWALDO GOELDI

Trabalhos do xilogravurista figuram na edição de 1937

3 PRIMEIRA TIRAGEM Capa de autoria do desenhista e arquiteto Flávio de Carvalho

Leitura

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A edição francesa deu novo fôlego ao poema modernista e suscitou diversas iniciativas para o público infantojuvenil

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Duas outras edições merecem um destaque ainda maior. A primeira traz uma bela capa do artista e arquiteto Flávio de Carvalho, em que o vermelho e o verde dominantes contrastam com o preto dos contornos, dos detalhes e das letras, para apresentar uma figura feminina enigmática, cuja longa cabeleira sugere tanto a silhueta ondulada e negra da serpente quanto o fluxo agitado do rio. Já a belíssima edição de 1937, de 150 exemplares, ficou famosa por trazer letras capitulares e xilogravuras expressionistas em cores de Oswaldo Goeldi, artista que, em 1945, também ilustraria outro longo poema narrativo do Modernismo: Martim Cererê, de Cassiano Ricardo.

Segunda grande razão para nos debruçarmos com interesse sobre a edição francesa de Cobra Norato: através de uma tradução benfeita e com ilustrações de qualidade, ela tem colocado o longo poema amazônico entre as mãos do leitor francês leigo em poesia brasileira, divulgando-o para além do círculo exíguo de especialistas no assunto. O livro tem dado novo fôlego ao poema modernista, já que suscitou diversas iniciativas, dirigidas tanto a um público adulto quanto infantojuvenil. Foi o caso de leituras ou oficinas realizadas em bibliotecas, em geral para crianças, às vezes acompanhadas da exposição itinerante dos batiks usados por Sandra Machado para ilustrar o livro. Outro exemplo de ações em torno da obra de Boop é o CD que o jornalista e compositor Frédéric Pagès lançou, em que musicaliza trechos da versão francesa de Cobra Norato, em cumplicidade com o percussionista Xavier Desandre-Navarre. A música de Pagès, que foi divulgada através de shows em diferentes cidades do país, pode ser consultada no site do

artista (http://www.grand-babyl. info/index.php). Ela recria o texto de Bopp e, ao mesmo tempo que assume um parti pris narrativo, baseiase no burburinho “amazônico” do poema para envolver o ouvinte numa atmosfera sonora sugestiva. Inspiradas em Cobra Norato, essas iniciativas vão divulgando aspectos da cultura brasileira em terras gaulesas, de maneira discreta mas segura. Poucos livros brasileiros tiveram esse tipo de circulação na França – ao mesmo tempo fecunda, discreta e constante. E nenhum outro poema brasileiro, em todo caso, recebeu tal acolhida.

INTERESSE E ENCANTO

Como explicar o interesse do leitor francês atual por esse poema escrito por um autor que o leitor brasileiro já se acostumou a tratar como um mero coadjuvante do Modernismo – seja por sua frequentação do grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, seja por sua colaboração ativa junto a um movimento antropofágico estrelado por Oswald de Andrade? Como entender que, ao atravessar o Atlântico, o poema de Raul Bopp, que recorre a lendas e mitos da Amazônia, tenha seduzido o leitor pouco conhecedor do modernismo brasileiro, e que ignora as diferenças entre o verde-amarelismo e a antropofagia cultural? Sabemos que, quando lançado, o poema de Bopp foi recebido com entusiasmo por nomes célebres da nossa literatura: Oswald de Andrade julgou que, “pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira grandiosa e sem fraude”; Jorge Amado viu em Cobra Norato “o maior poema que o Modernismo nos deu”; enquanto Drummond, duas décadas mais tarde, o considerou “o mais brasileiro de todos os poemas brasileiros”. Ora, apesar de tão louvado e de ter sido reeditado diversas vezes, Cobra Norato foi aparentemente relegado

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INDICAÇÕES entre nós a um lôbrego limbo, em que convivem obras admiradas e citadas por muitos, mas que no fundo são parcamente lidas. Os outros livros do poeta tiveram destino semelhante, senão pior, já que, como lembra Augusto Massi, Bopp foi o último dos poetas modernistas cuja poesia completa foi reunida em um volume. O que encanta tanto o leitor que descobre Cobra Norato? Ele é, antes de tudo, fisgado pela maneira como Bopp narra uma historinha com um forte teor míticolendário, criando uma atmosfera onírica e até mágica. O herói conta as suas próprias aventuras à medida que as vive e dialoga com os demais personagens, estabelecendo uma proximidade viva com um universo bastante fantasmagórico. Não temos nenhuma descrição detalhada ou realista do mundo exterior que ele atravessa – somente evocações inabituais que se sucedem, tanto de “sapos beiçudos” quanto de “rios afogados”, “águas defuntas” e “árvores grávidas”. Um universo também feito de ruídos e silêncios diversos que “se dissolvem”, “se escondem” e “se respondem”, num constante claro-escuro sonoro. Em suma, o personagemnarrador faz com que o leitor acompanhe e vivencie “por dentro” a sua trajetória em direção às terras do Sem Fim. Mas o tipo de história contada e o modo como ela é enfocada não explicam tudo para se entender o impacto da obra. A preocupação de Bopp em burilar o seu texto é, provavelmente, o segundo segredo para o interesse que, apesar do tempo, o poema ainda suscita em

nós. Depois de ter publicado trechos do poema em revistas e jornais a partir de 1927, ele lança a primeira edição integral em livro no ano de 1931. Desde então, a cada nova edição o autor emendou minuciosamente seus versos, até a nona, que data de 1973 e traz o texto considerado como definitivo. O poeta reescreveu a sua saga ao longo dos anos com um grande zelo artístico, detalhe que, duas décadas após a primeira edição do livro, Drummond, que acabara de lançar o seu exigente Claro enigma, descreveu com entusiasmo: “Numa pesagem de miligramas, atento ao ritmo, ávido de precisão vocabular, cioso de composição, consciente enfim das obrigações literárias que o Modernismo aparentemente desprezava, mas a que, na realidade, não podia esquivar-se”. Preocupado em melhorar a sua obra, Bopp detém a chave, para que ela não fique toscamente presa ao contexto imediato do Modernismo, como explica o poeta de Itabira: “O velho livro de versos modernistas, aparentemente tão datados, ressurge em toda sua novidade, e o amadurecimento do poeta mais o apurou”. A edição francesa do poema trouxe uma contribuição importante para a história desse “velho livro de versos modernistas”, fazendo com que mais uma vez ele volte a ressurgir “em toda sua novidade”. Ela levou a poesia de Cobra Norato a um público que a desconhecia, vestindo-a com mais uma pele nova. Tomara que, assim, contribua para que o leitor brasileiro redescubra algumas facetas injustamente esquecidas da arte de Raul Bopp.

ENSAIO

ROMANCE

JEAN GALARD Beleza exorbitante

ENRIQUE VILA-MATAS Ar de Dylan

A partir da reação da crítica à exposição Êxodos, de Sebastião Salgado (2000), o filósofo francês reflete sobre o lugar do horror, da violência e da miséria na busca pelo belo, atualizando pontos de conflito na antiga discussão entre imagem e representação, ao mesmo tempo em que questiona posturas éticas jornalísticas em jogo nesse embate.

O fracasso é a matéria-prima deste livro, responsável por ampliar a aceitação do escritor perante os críticos espanhóis. O narrador da história, assim como Vila-Matas na vida real, é convidado para um congresso sobre o fracasso, na Suíça. Este contexto edifica mais um romance repleto de referências literárias do autor catalão.

VIAGEM

ENSAIO

Casa da Palavra

A Girafa

Fap-Unifesp

DODÔ AZEVEDO Fé na estrada Walter Salles não foi o único brasileiro a prestar recente homenagem a On the road. O diretor responsável pela recente adaptação cinematográfica do clássico da geração beatnik também assina o prefácio deste livro-relato do jornalista Dodô Azevedo, que caiu junto com a fotógrafa Luiza Leite na Route 66 para recriar os passos descritos na obra de Kerouac.

Cosac Naify

LIEV TOLSTÓI Minha religião Para o autor de Guerra e paz, os ensinamentos propostos por Jesus eram bons, simples e lógicos. Em Minha religião, porém, Tolstói mostra-se frustrado com a conduta dos ditos cristãos e condena a naturalização da miséria da raça humana e a prática de atos vis em nome de Deus. Em vez da doutrina de Cristo, viveríamos, na realidade, na impiedosa doutrina do mundo.

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Artigo

LUIZ FELIPE AGUIAR A VOZ DO POVO EM JORGE AMADO Consagrada, traduzida, exportada, adaptada e controversa. É sobre este último adjetivo que a totalidade da obra de Jorge Amado é sobretudo abordada pela crítica literária. Condenada por uns como tipificadora, pitoresca, feita ao gosto do mercado, de simplória linguagem de costumes; e, por outros, enaltecida como construtora de um imaginário baiano e brasileiro, como proposta de um modelo social sincrético e mestiço, que se volta aos mais pobres e desprovidos da sociedade, ao povo, subvertendo os valores culturais e de classe que os relegam a condições inferiorizantes. A primeira vertente, a crítica mais tradicional, baseia-se na análise intrínseca da literatura, cunhada pelos formalistas russos e radicalizada pelos novos críticos norte-americanos. Para esses, a qualidade da obra literária se dá pelo trabalho com a forma, a matéria literária, a palavra. A outra vertente crítica, antes de tudo, prima pelas relações da literatura com a sociedade. Ela desloca o paradigma ocidental da literatura de qualidade, tomado como universal, e a aproxima ao mito, à literatura oral, ao imaginário popular, aos costumes do povo que representa. Essa última vertente atualiza propostas teóricas do professor Roger Bastide, que defendia a necessidade de avaliar a obra de Jorge Amado pelos critérios da literatura oral, ou seja, que a base sobre a qual Jorge Amado cria sua literatura é popular. Essa última posição é com a qual comungo. Se há um vínculo que perpassa toda a obra de Jorge Amado, diz o próprio escritor, esse é a fidelidade ao povo. São as prostitutas, malandros, oprimidos de todas as formas, aqueles que estão à margem da sociedade. Jubiabá, Baldo, Pedro Bala, Gabriela, Lívia, Dona Flor, são personagens

do povo e exemplos típicos, pois que modelos para uma coletividade. Na construção imaginária de Jorge Amado, há a presença de estereótipos, de linguagem popular, na tentativa de construção de tipos que atendam a um grupo, daí a sua aproximação com o mito e com a literatura oral. São momentos em que a sociedade fala a si mesma. Os heróis e as heroínas são exemplares de comportamento para os que representam: o povo. Baldo, quando criança, sonha em não seguir o triste destino dos meninos pobres e negros: a tradição “da escravidão ao senhor branco e rico”. Ele quer ser “do número dos livres”. Baldo é arruaceiro, malandro e sob a proteção do pai de santo Jubiabá, que dá nome ao livro, transforma-se em rebelde

Na análise dos romances de Jorge Amado, parte da crítica literária enfatiza seu caráter controverso consciente de sua situação social. Em Mar morto, Guma, pescador simples, torna-se um herói homérico que enfrenta as forças naturais e morre no mar. Ganha a amplitude do mito. Lívia, a heroína, foge com Guma evitando o casamento vantajoso desejado pelos tios, numa típica atitude romântica. Após a morte do seu amado, não se entrega ao destino comum das mulheres que perdiam seus maridos: o trabalho nas fábricas ou a prostituição. Ela toma para si o leme do Paquete Voador, o barco de Guma. Assumindo uma profissão legada só aos homens, apossa-se de seu destino. Com Gabriela, cravo e canela, de 1958, Jorge Amado começa uma

nova fase em sua literatura. Abandona o vínculo político com o comunismo e descobre outra forma mais revolucionária de fazer arte. Nas palavras do autor: o riso, o humor. Aqui também se divide a crítica. A mais tradicional aceita o engajamento social da primeira fase, justamente pelo seu viés político, mas despreza sua fase mais populista. Do outro lado, essa segunda fase é avaliada como a mais criativa. É o momento em que se acentuam a construção imaginária e o vínculo com o povo em sua subversão dos valores dominantes. Gabriela se opõe aos costumes burgueses da sociedade de Ilhéus. É ingênua, livre, não se deixa enquadrar pelo casamento, com suas regras de conduta e comportamento social. A fidelidade lhe é um valor estranho quando é uma exigência e não quando podia simplesmente “dormir por dormir” com Nacib. Gabriela é uma defesa da mulher ante uma sociedade castradora e da simplicidade do povo contraposta ao padrão burguês dominante. Sua sexualidade livre completa a contraposição. O casamento padrão, formal, é também temática de Dona Flor que nega, como Lívia, o casamento vantajoso para se unir a Vadinho e não consegue deixá-lo, mesmo depois de morto. Roberto DaMatta diz que Dona Flor realiza a escolha do brasileiro que une a seriedade do trabalho e a vagabundagem do malandro. A narrativa agrega traços contraditórios da cultura brasileira elegendo sua ambiguidade e hibridismo cultural. Já em Tenda dos milagres, Jorge Amado trabalha temas caros à sua literatura, a miscigenação e o sincretismo religioso, através do foco na questão da raça e da cultura e religiosidade afro-brasileira. O candomblé, religião do povo,

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ROGÉRIO SOUD

é um dos elementos fundamentais em sua obra. Jubiabá é pai de santo, personagem importante para o engajamento de Baldo; Pedro Bala torna-se consciente das diferenças de classe a partir do contato com a religiosidade; Mar morto é escrito sobre o signo de Iemanjá, que é o próprio mar; Vadinho, em sua malandragem e ambivalência, é filho de Exu. Pedro Arcanjo, protagonista de Tenda dos milagres, é bedel da Faculdade de Medicina e tem o título no candomblé de Ojuobá, os olhos do rei Xangô. Sendo filho do orixá da justiça, Pedro Arcanjo é aquele que deve “tudo ver, tudo saber, tudo escrever”. Escreve quatro livros em defesa dos valores mestiços entrando em choque com o catedrático Nilo Argolo, referência explícita a Nina Rodrigues, defensor da tese da degenerescência do mestiço, inspirada pelo francês Gobineau. Tenda dos milagres, como as linhas mestras da obra de Jorge Amado, é um romance que afirma a proposta de um modelo para o país: sincrético e miscigenado, frente às teorias racistas que ainda vigoravam no início do século 20. Defende o saber popular na “universidade vasta e vária” do povo, o Pelourinho, frente ao saber constituído academicamente, “atrevendo-se a classificar de mulata a nossa cultura latina”.

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Irineu Franco Perpetuo

MÚSICO DE OUVIDO FECHADO? Diálogo no saguão de um teatro brasileiro, no intervalo da

récita de uma ópera. Sou abordado por um jovem de fraque: “O senhor é aquele crítico de música?” “Sou sim.” “Eu sou músico da orquestra que está tocando hoje. O senhor pode nos dizer como está soando?” “Como assim?” “É que eu não tenho experiência, e essa música, para mim, não tem pé nem cabeça. Então eu gostaria de saber se nós estamos tocando bem”. A conversa aconteceu no último 28 de abril, no Teatro Amazonas, em Manaus. A ópera em questão era Lulu, de Alban Berg, que, naquela ocasião, estava tendo a que pode ser considerada sua estreia brasileira – anteriormente, tinha-se notícia apenas de uma montagem no Municipal do Rio, com Diva Pieranti como Lulu, cantada em italiano, e sem o terceiro ato, em 1970. Embora os integrantes da Amazonas Filarmônica, aparentemente, não tivessem a menor ideia do que estavam fazendo, seu regente, Luiz Fernando Malheiro, felizmente, estava firme no controle: não menti quando disse ao jovem músico que a orquestra estava soando de forma excepcional, em uma performance brilhante de uma obra-prima do século 20. Alban Berg, o compositor vienense que escreveu Lulu, morreu em 1935. A ópera teve estreia póstuma, em 1937. Já se vão aí 75 anos – não dá mais para considerar uma obra tão antiga como contemporânea, certo? Contudo, até hoje sua linguagem soa como se fosse de outro mundo – pelo menos, para os ouvidos fechados dos musicistas daqui. Malheiro inicialmente queria montar a ópera com um elenco 100% nacional, mas teve que desistir, pois muitos daqueles que convidou ou recusaram logo de cara, ou foram pulando fora depois de começar a estudar a partitura. Daí você pode perguntar: mas isso não se deve às especifidades da linguagem dodecafônica? E eu respondo com outra experiência, ocorrida na mesma ocasião. Ao mesmo tempo que acontecia Lulu no Teatro Amazonas, Manaus abrigava a Mostra Internacional de Videodança da Amazônia. Curiosos, alguns participantes do evento resolveram ver a montagem de Alban Berg. Gente que nunca havia assistido a uma ópera na vida foi submetida a três horas de música dodecafônica. O resultado? Ninguém saiu no meio. Pelo contrário. Pois o que os afastava da ópera até então eram aqueles estereótipos de inverossimilhança e afetação tão bem resumidos pelo personagem de Castafiore, a diva lírica do quadrinho Tintim. Lulu, contudo, não tinha nada daquilo. “É uma obra muito atual, muito complexa”, resumia um deles, vidrado, numa conversa depois do espetáculo. Moral da história: Lulu revelou suas belezas a quem chegou a ela sem má vontade ou preconceito. Se os músicos conseguissem adotar esse tipo de atitude para com as outras obras dos séculos 20 e 21, e não fizessem das salas de concerto meros museus de cera do século 19, todos teriam muito a ganhar. Os próprios músicos, inclusive.

Irineu Franco Perpetuo

é jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, e correspondente da revista Ópera Actual, de Barcelona

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