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A GENTE É MAIS SURFISTA DO QUE SUPÕE
# 141
DIGA
SURF
sim
PRA VIDA CONTINUAR AVISE A SUA FAMÍLIA QUE VOCÊ É DOADOR.
#141 ano XII • set/12 • R$ 11,00
CONTINENTE
TEMPO DE
CINEMA
SEJA UM DOADOR DE ÓRGÃOS. Só assim a Central de Transplantes de Pernambuco pode continuar a salvar vidas. Em 18 anos, foram realizados mais de 10 mil transplantes, graças a pessoas que comunicaram às suas famílias o desejo de serem doadores de órgãos. Mas a fila de espera por novos transplantes não para de crescer. Por isso, comunique. Mais importante do que ser um doador, é dizer.
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CENTRAL DE TRANSPLANTES
60 ANOS DO SÃO LUIZ
E MAIS ANTONIO RISÉRIO | SUPER TERRA | BLOW UP DE ANTONIONI | BOTERO | HISTÓRIA DO CABELO | PETER SLOTERDJIK | PARTIDO PIRATA 29/08/2012 11:39:05
ROMANCE
14 A 16/ 09 A PA R T I R D A S 1 6 H M A R CO Z E R O N O V O S e S P e Tác u lO S D e 7 PA Í S e S d E g R Aç A
VENHA VER OBJETOS VIRAREM PERSONAGENS. Depois de surpreender Recife no ano passado, o FITO volta com nova programação. companhias de Teatro de Objetos da Argentina, da Alemanha, de Portugal, da Bélgica, da França, de Israel e do Brasil. Performances, cenografia temática, exposição fotográfica, shows com Naná Vasconcelos e Hermeto Pascoal.
W W W.FITOFeSTIVAl.cOM.BR Entrada gratuita. Para as peças das salas-teatro 1, 2, 3 e 5, pegue seu ingresso na bilheteria da sala escolhida meia hora antes de começar o espetáculo. Nessas 4 salas, os ingressos são limitados a 200 pessoas por sessão, por sala. Será permitida a retirada de somente 1 ingresso por pessoa para cada sessão. Nos demais espaços, o critério é por ordem de chegada.
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clemente coutinho
setembro 2012
aos leitores Durante um bom tempo, o surf foi visto como uma atividade recreativa “radical”, de contato extremo do homem com a natureza, e como o esporte representativo de um modo de vida naturalista, associado à contracultura originada nos Estados Unidos. Em larga escala, os surfistas também eram tidos, ao menos no Brasil, por pessoas desocupadas e de falar limitado e desleixado. Esse preconceito não levava em conta que o surf já havia se propagado por todas as classes sociais: se, para os surfistas de menos posses, bastava-lhes uma prancha e as roupas de banho necessárias para integrar-se à tribo, os de melhores condições puderam descobrir points mundo afora e estruturá-los para o turismo, além de estabelecer uma indústria de moda e uma abordagem específica do gênero na mídia. A nosso convite, o surfista e jornalista Marcelo Sá Barreto fez para esta edição um apanhado das principais contribuições da cultura surf, incluindo as que prestou à música, à fotografia e ao comportamento social. O outro tema de destaque desta edição é o Cinema São Luiz, que completa 60 anos, no dia 6 de setembro, e preserva sua importância
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não apenas no contexto da cadeia produtiva cinematográfica, mas no âmbito arquitetônico e, sobretudo, na memória afetiva dos recifenses, cuja mobilização impediu que ele fosse fechado em definitivo ou se rendesse à programação de baixa qualidade. Para abranger o complexo de significados que o São Luiz constitui, três críticos de cinema escreveram sobre sua história, as mudanças urbanísticas que testemunhou, o lugar que ocupa entre as salas de exibição pré-multiplex e os fatos vivenciados por cinéfilos na cidade. Em uma época na qual os espectadores dirigem-se aos shopping centers para assistir à estreia de blockbusters, o São Luiz evoca boas lembranças e serve de espaço para mostras competitivas e filmes artísticos. Por fim, no centenário de nascimento do cineasta Michelangelo Antonioni, discutimos qual seria a argumentação de um dos seus clássicos, Blow up, de 1966, diante das digitalizações de hoje. Convidamos o professor Thiago Soares para escrever sobre o tema que, instigado, trouxe ótimas reflexões sobre as novas tecnologias e a permanência do enigma: houve ou não um crime, depois daquele beijo?
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Por meio do Programa Ganhe o Mundo, o Governo de Pernambuco selecionou 1.100 alunos da rede estadual para aperfeiçoar, no exterior, os seus conhecimentos em inglês e espanhol. Até setembro, 700 estudantes vão passar um semestre nos Estados Unidos e no Canadá. Em janeiro, mais 300 jovens viajarão para a Nova Zelândia e outros 100 para a Argentina e a Espanha. Todos eles, vindos das mais diversas regiões do Estado, recebem tablets com livros didáticos e programas educacionais. No total, estão sendo distribuídos 170 mil aparelhos nas escolas públicas. Assim, cada vez mais jovens pernambucanos estão embarcando em um futuro melhor.
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sumário Comportamento Surf 06 Cartas 07 Expediente
+ colaboradores
08 Entrevista
Antonio Risério Antropólogo aponta problemas críticos das metrópoles brasileiras
12 Conexão
This is now Site promove a construção de narrativas urbanas a partir do Instagram
14 Portfólio
Super Terra Produção de coletivo formado por músicos de banda tem por marca a cultura underground
20 Balaio
Conrad Veidt Ator alemão serviu de inspiração para o Coringa e interpretou o primeiro gay do cinema
33 Política
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Matéria corrida José Cláudio Discursos antigos
70 Palco
livier e Lili O Versão brasileira da peça Les drôles, com apenas 900 frases, transita entre realidade e ficção
Como o esporte surgido nos mares do Pacífico integrou-se à cultura mainstream contemporânea e influenciou aspectos da moda, do turismo, da TV e das artes
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78 Sonoras
João Gilberto Abrangente coletânea não evitou o desagrado do ícone da bossa nova
82 Leitura
Peter Sloterdijk Crítica da razão cínica chega ao país 30 anos após a primeira edição
86 Artigo
Carmela Grüne A cultura que deveria haver por trás das grades
88 Saída
Luciana Torreão A entrada para o universo do vinho
Partido Pirata Legenda recém-lançada no Brasil defende os direitos relacionados ao uso da internet
Visuais
Fernando Botero Exposição do artista colombiano, conhecido por representar figuras humanas volumosas, chega ao Recife e enfoca a violência persistente em seu país
60 Capa foto Jarbas Jr.
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Especial
História
Aos 60 anos, sala constitui-se marco de resistência às transformações urbanas pelas quais passou a capital pernambucana nas últimas décadas
Aparência determinada pelos penteados, ao mesmo tempo em que fornece traços da identidade pessoal, revela crenças, ritos de passagem e papéis sociais
Cardápio
Claquete
Para quem quer qualificar-se em casa e entre amigos, sem pressões para ser um chef, aulas em pequenos grupos ensinam segredos da culinária mundial
Obra-prima do cineasta italiano, Blow up – depois daquele beijo ainda problematiza os limites da fotografia quase 50 anos depois de seu lançamento
Cinema São Luiz
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Cursos particulares
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Cabelos
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Michelangelo Antonioni
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cartas constroem, por isso gostei muito da reportagem. EUNICE VAZ CURADO
conhecimento e divulgação da cultura pernambucana. No que for possível a ajuda, muito agradeceria.
RECIFE – PE
MARCOS MARSULO SÃO paulO – SP
Nelson Rodrigues
Quintais Minha mãe, Jane Albuquerque Siqueira, me presenteou com uma assinatura da Continente. O conteúdo da revista é excelente, a cada edição me surpreendo. Eu comprava sempre avulso nas bancas, mas sendo assinante é melhor ainda. Na edição de agosto, tem uma matéria que adorei: “Quintal: escondido por trás da fachada”. É uma pena não termos acesso a essas casas para visitações. Sou técnica em paisagismo e tenho um projeto que se chama Crianças: mãos que
Sou historiador e consultor em Cultura, Turismo e Artesanato, prestando serviços ao Sebrae – São Paulo em desenvolvimento e consultoria de projetos voltados àquelas três áreas. Há alguns anos, tomei conhecimento da revista Continente e me interessei em assiná-la. E não só: em poder ter os exemplares anteriores. Estou aqui, na cidade do Recife (de 22 a 24/08), onde irei prestar um serviço na Torre Malakoff, quando da exposição sobre os 100 anos de Nelson Rodrigues. Dessa forma, gostaria de saber se existe a possibilidade de doação ou então da compra de edições anteriores a preço acessível. Esclareço que será importantíssimo termos esses exemplares em nossa biblioteca, justamente para efeito não só de consulta, mas de
resposta da redação Tivemos a satisfação de receber o leitor Marcos Marsulo na redação da Continente em 23 de agosto, ocasião em que assinou a revista e adquiriu diversos títulos lançados pela Cepe – Companhia Editora de Pernambuco. Em atenção ao apreço pela nossa publicação, retribuímos com edições anteriores da Continente publicadas em 2012. do facebook
Nelson Rodrigues Parabéns a Cleodon Coelho e à Continente pela bela matéria sobre a montagem de Senhora dos afogados – Companhia Teatro de Seraphim, em 1993, na edição dedicada ao centenário de nascimento de Nelson Rodrigues. ANTONIO CADENGUE RECIFE – PE
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
alexandre Figueiroa
Marcelo sá barreto
pollyanna diniz
thiago soares
Jornalista, professor universitário e doutor em Cinema pela Sorbonne IV
Repórter de esportes do Jornal do Commercio e editor do blog Surf is in the air
Jornalista, colaboradora do blog sobre teatro Satisfeita, Yolanda?
Jornalista, professor universitário e doutor em Comunicação pela UFBA
e Mais andré dib, jornalista. carmela Grüne, escritora, jornalista, advogada, mestre em Direito pela Unisc e idealizadora do projeto Direito no cárcere. Frederico antonio cordeiro Feitoza, jornalista e doutorando em Comunicação pela UFPE. kleber Mendonça Filho, jornalista e cineasta. Luiz Joaquim, crítico de cinema, mestre em Comunicação Social e curador do Cinema da Fundação. olívia Mindêlo, jornalista e curadora de arte. rafael Medeiros, fotógrafo. renata amaral, jornalista, professora e doutoranda em Comunicação Social. ricardo soares, ilustrador.
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ANTONIO RISÉRIO
“Nossa luta é contra a favelização do planeta” O antropólogo baiano Antonio Risério, autor do recém-lançado A cidade no Brasil, analisa o processo de urbanização do país e a atual crise que atinge as metrópoles e seu desenvolvimento caótico TEXto Gianni Paula de Melo
con ti nen te
Entrevista
Empenhado na campanha do
candidato a prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, o antropólogo Antonio Risério, que também participou dos bastidores da briga pela presidência ao lado de Lula e de Dilma Rousseff, vem dividindo sua agenda cheia de afazeres com outra atividade menos partidária: a divulgação do seu recém-lançado livro A cidade no Brasil (Editora 34). No momento em que o país apresenta um significativo número de metrópoles que não param de “inchar” – para usar o termo que Gilberto Freyre considerava mais adequado que a simples ideia de “crescer” – , o intelectual baiano reúne uma série de ensaios que remontam ao processo de urbanização do país desde o período colonial, mostrando como e por que chegamos ao atual modelo caótico. Ao tópico crise urbana contemporânea, ele dedica apenas o último capítulo do livro, no qual condensa questões como segregação, segurança pública e privatização de espaços coletivos. A Continente procurou Risério para aprofundar esses assuntos que têm pautado discussões diárias nas grandes cidades brasileiras.
CONTINENTE A atual crise urbana é generalizada ou conseguiríamos apontar metrópoles do país que escapam dessa lógica? ANTONIO RISÉRIO A crise é geral. Nenhuma cidade importante, de uma ponta a outra do país, vive dias tranquilos. Brasília, apesar de sua claridade e de suas virtudes, está no meio disso. E vai ficando sempre mais violenta. Curitiba, exemplo extremo de city marketing, com aquela arquitetura pesada e fechada – como boa parte dos seus habitantes –, também. É claro que a cidade experimentou avanços, mas a Curitiba real, com favelas e discriminações, não coincide com a retórica de Jaime Lerner. O Brasil fez seu grande movimento de transição urbana – coisa que hoje vemos na China, na Índia e em países africanos como a Nigéria – entre as décadas de 1950 e 1970. Foi aí que tivemos a migração massiva do campo para a cidade, com o país deixando de ser vastamente rural para se tornar predominantemente urbano. Mas os problemas não foram resolvidos. São Paulo, por exemplo, tornou-se ainda mais desequilibrada, desigual e segregada, com uma nova e
imensa periferia, formando-se a partir da década de 1950, no rastro da indústria automobilística – dessa vez, não mais com imigrantes europeus, mas com a migração nordestina. Hoje, ainda é a nossa cidade mais rica e poderosa, mas é um lugar onde a “mobilidade urbana” corre o risco de se converter em ficção urbanística e os serviços públicos são de baixa qualidade. Triste, ainda, é a situação de Salvador, mergulhada num estágio avançado de deterioração física e simbólica, com uma prefeitura que mescla corrupção e incompetência, um governo estadual omisso e uma população surpreendentemente apática. Para sair da grande crise urbana brasileira, vamos precisar de um verdadeiro Ministério das Cidades, de uma verdadeira reforma urbana nacional e de uma verdadeira vontade coletiva de sair do buraco. CONTINENTE Há uma música do Tom Zé que diz: “Bahia que padece de usura, que quer fazer torre de toda altura”, remetendo a um quadro de verticalização similar ao do Recife. É possível traçar um paralelo entre a capital pernambucana e Salvador?
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praia. O pior exemplo brasileiro, nesse sentido, é Copacabana. Afora isso, penso que a verticalização é menos danosa ao meio ambiente do que o espraiar dos subúrbios. A começar pelo consumo de terra: o sujeito que mora no vigésimo piso de um prédio, consome menos terra do que quem mora num condomínio de casas. Menos terra, menos água e menos energia. A cidade dispersa implica mais e maiores deslocamentos automobilísticos, mais gases de efeito estufa. A cidade compacta, ao contrário, aproxima as pessoas e as coisas.
reeducação entre as pessoas e a cidade? ANTONIO RISÉRIO Talvez seja o caso de a “sociedade civil” começar a pensar em sua própria educação, antes de pensar em qualquer outra coisa. Porque ela não é nenhum exemplo. É a grande criadora de problemas em nossas cidades. De onde vem toda a grossura no trânsito? Quem promove, consome e até celebra privatizações escandalosas de espaços públicos, como, por exemplo, de segmentos litorais de algumas cidades? A sociedade civil pode não ser a origem de todo o mal, como querem
reprodução
ANTONIO RISÉRIO Historicamente, a verticalização de cidades como Salvador e o Recife começa com os altos sobrados coloniais. Sobrados de cinco e seis andares marcavam a paisagem dos antigos centros urbanos brasileiros. Outra coisa, que muita gente parece não notar, é o gosto ou a opção popular pela verticalização, visível em tantas favelas e bairros pobres, onde processos de autoconstrução geram prédios que vão somando andares. Não vejo isso nas “vilas” paulistanas, com suas casas de dois pavimentos, mas é coisa comum
con ti nen te
Entrevista no Rio e na capital baiana. Nesta cidade, outro dia, na confusão cheia de vida do bairro proletário de Pernambués, vi uma casa térrea com uma placa na qual se lia “edifício fulano de tal”. Quer dizer, para além do otimismo do proprietário, tratava-se de um projeto, de algo predeterminado. Mas há uma diferença entre Salvador e o Recife, além do fato de que a capital pernambucana hoje é uma cidade mais organizada e menos malcuidada que a baiana. No Recife, já temos a verticalização da orla, como em Boa Viagem. Em Salvador, essa verticalização, em grande medida, ainda vai acontecer. Mas Salvador não deve seguir o exemplo do Recife, nesse caso. Porque o importante não é a altura das construções, mas a distância entre os prédios, que não pode ser pequena e deve ser definida com clareza e força de lei, de modo a garantir a passagem da luz e o movimento das brisas. Em Boa Viagem, temos uma parede de prédios, sombra na
CONTINENTE A “cultura do medo” é interessante e rentável para várias frentes ideológicas e áreas de negócios. Você acredita que a fobópole interessa ao próprio Estado? ANTONIO RISÉRIO A “cultura do medo”, levando elementos e princípios da engenharia de guerra (guaritas, cercas elétricas, sirenes, câmeras de vigilância e outras do gênero) para a produção de moradias, por exemplo, é altamente lucrativa para certas fábricas, empresas de segurança etc. Deve interessar a quem atua nessas áreas. Mas não vejo razão maior para isso interessar ao Estado. A onipresença do medo pode conduzir a uma espécie de militarização cotidiana da vida citadina que, se pode interessar a milícias, não interessa ao Estado, que se vê até mesmo na obrigação de tentar recuperar seu monopólio da coerção organizada.
alguns pensadores, mas certamente não é nenhuma fonte sublime do bem. Vejamos uma coisa simples. O problema, hoje, começa na esfera da educação doméstica – e se prolonga no campo da educação urbana. As pessoas não sabem mais se comportar dentro e fora de casa. Perderam o senso dos padrões razoavelmente aceitáveis de conduta urbana. Lembro-me, aliás, de que, quando eu era adolescente, as pessoas mais velhas costumavam empregar as palavras “urbano” e “urbanidade” como sinônimos de boa educação, de saber se comportar ou se conduzir na urbe. Num certo sentido, a expressão urbanidade era o nosso equivalente da sociabilité dos franceses. Uma pessoa urbana era uma pessoa polida. E hoje? A sociedade tem de reaprender até os chamados “bons modos”.
CONTINENTE Quais medidas a sociedade civil organizada poderia tomar para estimular uma
CONTINENTE Os movimentos ligados às questões da urbanização refletiriam a segregação
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da sociedade, posto que são liderados por intelectuais de classe média e, às vezes, pouco articulados com as camadas populares? ANTONIO RISÉRIO Não é bem assim. Primeiro, porque, com ou sem intelectuais de classe média, as camadas populares vêm discutindo, a partir de suas óticas e informações, temas e problemas da vida urbana brasileira. Isso é bem visível em São Paulo, com associações de bairro, mas também em muitas outras cidades brasileiras. Acontecem até “audiências públicas” na Câmara Municipal, para ouvir esses agrupamentos comunitários.
“Durante o século 19, as maiores cidades do mundo eram europeias, mas as coisas mudaram. Hoje, no século 21, nenhuma das megacidades do mundo está na Europa. Elas se distribuem pelas Américas, Ásia e África” De outra parte, não olho com nenhum preconceito o desempenho políticosocial de intelectuais da classe média. A classe média sempre esteve na vanguarda das transformações sociais e culturais do mundo moderno. Um dos erros espetaculares do marxismo, com sua ênfase no confronto antagônico entre burguesia e proletariado, foi, exatamente, o de achar que o destino da humanidade estava inteiramente nas mãos do proletariado e de atacar e afastar a classe média do campo progressista, empurrando-a para os braços do conservadorismo, da direita. Acho, por isso mesmo, que nossos artistas e intelectuais “de esquerda” ainda devem um grande hino, um elogio à coragem, à criatividade e à ousadia classemedianas. A classe média muitas vezes está na linha de frente de extraordinários avanços, de grandes conquistas. Está presente, sim, nos “movimentos ligados às questões da urbanização”.
Mas não meramente em decorrência da segregação socioespacial – e, sim, porque vive intensamente as cidades. CONTINENTE No livro, o termo urbanização pirata aparece relacionado às ocupações realizadas por moradores de ruas e favelas. Esse conceito está associado basicamente a esses tipos de ocupações ilegais? ANTONIO RISÉRIO São ocupações ilegais ou extralegais. Mas é preciso fazer uma diferenciação sociológica, porque os ricos também invadem terrenos públicos, constroem sem alvará, fazem mil coisas proibidas, sem falar do uso escandaloso de inside information, de informação privilegiada, para fins altamente lucrativos. Só não falamos de urbanização pirata, a propósito de tantas coisas, porque as elites não raro têm o aparelho estatal a seu serviço. Mas a verdade é que o comportamento de nossas elites sociais e econômicas, diante do espaço urbano, pode muitas vezes ser classificado como “caso de polícia”, embora essas pessoas raramente paguem pelo que fazem. Então, a expressão urbanização pirata fica reservada para coisas que envolvem segmentos populacionais menos favorecidos socialmente. É o caso de loteamentos clandestinos nas grandes cidades, com frequência assentados sobre as chamadas “áreas de risco”, com a autoconstrução proletária ou lumpemproletária ameaçando mananciais. É bandidagem fundiária atraindo pobres, não a bandidagem fundiária dos ricos, regra geral muito bem protegida. CONTINENTE Outro termo que você usa é fundamentalismo ambientalista. Acredita que há uma militância exagerada ligada à temática verde? ANTONIO RISÉRIO O problema não é de “militância exagerada”, mas de um ativismo cego, em que reinam uma série de clichês e uma carência absurda de informações. O que temos, no Brasil, é um ambientalismo de ideólogos, em que não há cientistas. Então, a racionalidade é destronada pela crença, pelas fantasias, pelo fundamentalismo. Por esse mesmo caminho, nossos ambientalistas também querem fazer de conta que não serão gigantescas as dificuldades evidentes da passagem da economia de alto carbono para uma nova economia, uma
economia “verde”, de baixo carbono. Vão ser dificílimos, também, a superação de hábitos, o descarte de ideologias e signos de “status” etc. Quando não se leva nada disso em consideração, o fundamentalismo dá as cartas. CONTINENTE Além da superpopulação das metrópoles e do esvaziamento do campo, existe um movimento de urbanização das cidades de interior. Este é um quadro preocupante ou inevitável? ANTONIO RISÉRIO É inevitável. Marx já antevia uma urbanização em escala planetária. Diante das megacidades que nos aguardam, num futuro próximo, nossas atuais metrópoles ainda vão sugerir cidades de porte médio. As cidades caminham para conturbações espetaculares. No Brasil, também, precisamos estar preparados para isso. Especialmente, porque há um aspecto fundamental para nós, que não vivemos nas democracias ricas do Atlântico Norte: cidades imensas, hoje, são um fenômeno da pobreza, coisa de países emergentes. Durante o século 19, as maiores cidades do mundo eram europeias, mas as coisas mudaram. Em meados do século passado, Nova York deixou Londres para trás, tornando-se a maior cidade do planeta – mas, já pela década de 1980, Tóquio desbancou Nova York. Daí para cá, cidades extraeuropeias, cidades do Hemisfério Sul, crescem de modo espantoso. Hoje, no século 21, nenhuma das megacidades do mundo está na Europa. Elas se distribuem agora pelas Américas, pela Ásia e pela África. E aqui, fora dos EUA, estão se expandindo de um modo terrivelmente favelizado. São as megacidades subequatoriais, crescendo na China, na Índia, no Brasil, na Indonésia, no Egito, na Nigéria, na Turquia. Megacidades com megafavelas. Daí que Mike Davis diga que nosso futuro urbano, o futuro urbano do Hemisfério Sul, estará nas favelas, das barriadas mexicanas aos kampongs asiáticos. Isso não é profetismo apocalíptico, mas algo que já está acontecendo. A nossa grande luta urbana, nesta primeira metade do século 21, é contra a favelização final deste lado do nosso planeta. É dessa perspectiva que devem ser encarados todos os problemas, da mobilidade urbana aos delitos ambientais, passando pelo narcotráfico. Ou seja: o inevitável é, também, extremamente preocupante.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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SURF
CABELOS
A revista Continente deste mês destaca o esporte praticado nos mares cuja popularidade gerou muitos diálogos culturais. Da publicidade à moda, passando pela música, o cinema e a fotografia, várias expressões artísticas se apropriaram das especificidades surgidas em torno do surf. No site, disponibilizamos um teaser do filme Pegadas salgadas, o curta Roots times – reciclando uma prancha e o trailer do filme Licuri surf, que concorreu ao Festival de Berlim este ano e mostra a experiência de um índio pataxó com as ondas.
Confira imagens com diferentes cortes e penteados que carregaram significados sociais, além da entrevista, na íntegra, com a jornalista Leusa Araújo.
Conexão
rilke Leia alguns poemas de O livro de horas, assinados pelo escritor tcheco no início do século 20, que estão presentes na antologia traduzida por José Paulo Paes.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
ANIMAÇÃO
HISTÓRIA
IDEIAS
DOCUMENTOS
Concurso para dar vida a um Monty Python
Site resgata a prática da caligrafia
Publicação reúne discussões sobre o mundo das letras
Acervo em favor da memória da educação
animatechapman.com
iampeth.com/about.php
revistazunai.com
Com o objetivo de promover a cinebiografia em 3D sobre a vida de Graham Chapman, único membro falecido do grupo de humor inglês Monty Python, os produtores do filme lançaram The animate Chapman competion. O concurso disponibiliza oito áudios antigos do comediante, que os participantes poderão baixar para escolher e produzir uma animação em cima de um deles. As inscrições vão até dia 22 de outubro e os vencedores serão premiados com o programa Adobe CS6 Production Premium, além da exibição do curta no site PythonLine, no canal oficial do Monty Python no YouTube e uma aparição nos extras do DVD.
Fundada em 1949, a Iampeth é a maior associação internacional dedicada a preservar a arte e história da prática da caligrafia da humanidade. O site da entidade disponibiliza para download jornais e documentos antigos, bem como análises históricas, revistas, artigos, fotografias e opiniões de profissionais, sem fins lucrativos. Através desse rico acervo, seus membros buscam lembrar uma parte da história da humanidade que geralmente é esquecida nos tempos do teclado.
A revista virtual Zunái é dedicada a explorar o debate em torno de produtos literários de todos os gêneros. A usabilidade do site prejudica um pouco a navegação, mas vale explorá-lo com paciência, pois o conteúdo compensa o esforço. Com as sessões Poemas, Ensaios, Entrevistas, Galeria, Opinião, Traduções, Especiais, Prosa e Depoimentos & Debates, a página centraliza ricas discussões sobre a literatura e seus desdobramentos. O conselho editorial é formado por especialistas de todo o mundo que ajudam a montar cada edição.
www.arquivoestado.sp.gov.br/ educacao
Memória da Educação é um site direcionado a pesquisadores e interessados em documentos sobre a história da educação nos séculos 19 e 20 que integram o acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nele, são disponibilizados relatórios, dados estatísticos, instruções pedagógicas, revistas, trabalhos escolares, ou seja, uma multiplicidade que permite criar um canal de aproximação do pesquisador com a complexidade dessa temática. Variados caminhos convergem nessa documentação: métodos pedagógicos, modificações na estrutura física e patrimonial da educação pública.
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blogs MONTY PYTHON hollydgilliam.blogspot.com.br
Holly Gilliam é filha de ninguém menos que Terry Gilliam, diretor de renome e ex-Monty Python. Neste blog, Holly posta preciosidades do arquivo pessoal do pai, que vão de storyboards e sketches artísticos a roteiros antigos.
JORGE AMADO blog.jorgeamado.com.br
COM A FLUIDEZ DO INSTAGRAM This is now propõe a construção de uma narrativa das metrópoles, editada em tempo real, de imagens feitas pelo aplicativo por gente do mundo inteiro www.now.jit.su
O This is now é um projeto visual que utiliza as fotos do aplicativo Instagram
para montar uma galeria de imagens tiradas nas principais metrópoles internacionais, editadas em tempo real. Basta usar a hashtag #thisisnow ao postar suas fotos, que o site trata de agrupá-las através do mecanismo de geolocalização. A proposta é instigar no imaginário dos internautas uma história fluida dos lugares mais badalados do mundo, a exemplo de Paris, Tóquio e São Paulo. Se você acessar, vai perceber que o “em tempo real” é levado bem a sério – as fotos são postadas a cada segundo. Bem-intencionado e curioso, o site, contudo, provoca a reflexão em torno do conceito de virtual versus real. Você compra o celular do momento e, quando se der conta, estará envelhecendo sem visitar os lugares que passa o dia inteiro vendo na tela dos computadores, celulares ou tablets. Esse avanço tecnológico trouxe, sem dúvidas, perspectivas bastante positivas; por exemplo, aproximou-nos digitalmente dos desejos e sonhos, mas nos distanciou de fazê-los acontecer. O internauta “visita” comodamente os confins do mundo, mas protela a aventura mais próxima, mesmo que essa seja apenas uma visita ao amigo, geralmente substituída por uma mensagem de texto. DUDA GUEIROS
No ano do centenário do escritor Jorge Amado, a Companhia das Letras criou um blog que reúne material histórico e inédito sobre a vida do autor. Com entrevistas e conteúdo bem pesquisado, a página também conta com vídeos e homenagens de outros artistas.
COMBINAÇÃO www.matchbook.nu
Roupas de banho que combinam com capas de livro. Das coisas inusitadas que a internet nos oferece, o Matchbook convida artistas a compartilharem seus trabalhos.
MÚSICA www.euovo.blogspot.com.br
O Eu Ovo compila álbuns e faixas de artistas que disponibilizam suas músicas para download gratuito. Levantando a bandeira da causa da liberação da música digital, o blog oferece raridades e produtos mais populares.
sites sobre
Culinária criativa TOQUE MATERNO
MISTURA
APRENDIZ
www.pitadinha.com
www.naminhapanela.com
www.temoscomida.com
Receitas fáceis, gostosas e inusitadas, com o toque de uma mãe dedicada. Já provou bolo de pão de queijo? Lá tem.
Igualmente com um índice de receitas, o autor do blog posta diariamente curiosidades do mundo gastronômico.
Praticidade é palavra de ordem, mas sem deixar o apreço pelo sabor de lado. É para quem gosta de comer bem, mas ainda está aprendendo a cozinhar.
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Super Terra
design superpop TEXTO Olivia de Souza
Não é de surpreender que o universo musical seja o principal motor do Estúdio Super Terra. Com pouco
mais de um ano, o coletivo de designers pernambucanos, cujo trabalho se concentra na produção voltada para a cultura underground, já imprimiu cores fortes e um estilo ousado a dezenas de trabalhos gráficos da região, como cartazes de shows e festas, capas e encartes de CDs, pôsteres de filmes ou identidades de marcas. O Super Terra surgiu da necessidade de Caramurú Baumgartner e Celso Hartkopf de produzir material gráfico para sua banda, a Caapora. Entre ideias de ilustrações e cartazes, o primeiro projeto oficial assinado como Super Terra foi a capa do disco da Desalma, banda pernambucana de thrash metal. Bateram o martelo com a chegada de Raul Souza, no ano passado, durante oficina ministrada pelo coletivo goiano Bicicleta Sem Freio, no Abril Pro Rock. As similaridades entre os dois grupos não são, portanto, coincidência. Com um conceito parecido, o Bicicleta também é formado por músicos que produzem seu próprio material, além de estamparem cartazes de festivais e capas de discos Brasil afora. O sucesso dos pôsteres e camisetas feitos para o show da turnê brasileira da Sublime With Rome com a Mundo Livre S/A, no Clube Português, ano passado, definiu a “cara” do Super Terra, em que as ideias e os estilos do traço de cada ilustrador casaram perfeitamente. “Esse foi uma espécie de ‘trabalho teste’ pra gente ver se rolaria atuarmos juntos. A partir daí nos empolgamos e decidimos fazer mais coisas”, comentou Raul Souza. A propósito, todos fazem questão de dar a sua contribuição a cada projeto, sem concessões. Nenhuma produção é assinada individualmente. “O mínimo que acontece é o seguinte: se só duas pessoas tiverem desenhado, o outro vai ter que ficar dando pitaco. E tem vezes que as seis mãos criam ao mesmo tempo”, revela Raul.
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4 Página anterior 1 ABRIL PRO ROCK
I lustração para o estande da Petrobras na edição 2012 do festival
Nestas páginas 2 BOA SORTE, MEU AMOR
artaz do primeiro longaC metragem do diretor pernambucano Daniel Aragão
20 ANOS 3 Cartaz comemorativo dos 20 anos do Abril Pro Rock
4 estilo sGT. PEPPER'S Capa de A idade dos metais, CD de estreia da banda Os Sertões CINEMA 5 Projeto de marca para a produtora pernambucana Orquestra Cinema Estúdios
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Tudo relacionado à cultura pop serve de inspiração ao Super Terra. Desde arte clássica renascentista aos quadrinhos undeground, como os traços carregados e mulheres voluptuosas de Robert Crumb, ou os ciborgues e ninfetas da HQ italiana RanXerox, de Stefano Tamburini e Tanino Liberatore – tudo cercado de muita safadeza e humor. E já que o trabalho dialoga bastante com a música, o ambiente é o mais inspirador possível nesse sentido. Funk, soul, rock’n’roll, progressivo, entre outros, fazem parte do repertório musical da vitrola do estúdio, que toca a todo vapor durante os brainstorms. A miscelânea que compõe esse enorme repertório está evidente no
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projeto gráfico do disco de estreia da banda Os Sertões. Numa versão nordestina da antológica capa do Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, estão lá referências a Georges Méliès, Bob Dylan, Charles Bukowski, Planeta dos Macacos, Santos Dumont, Lampião, até um ovo frito imitando um disco voador. O trio também é responsável por assinar a arte de bandas como Tagore, Feiticeiro Julião, Caravana do Delírio, além das festas Agito Pesado e King Congo, das quais eles próprios são frequentadores assíduos. “Nossa relação com a cena musical daqui foi muito natural, porque já fazia parte do nosso universo.” Com dedicação intensa e exclusiva ao Super Terra, Raul, Celso e Caramurú hoje pensam em atender
6 ANIMAÇÃO VT de abertura do programa Estereoclipe, temporada 2012 VOLÚPIA 7 Pôster da festa Inferno, realizada em julho de 2012 Agito Pesado 8 Cartaz de festa faz referência às antigas figurinhas de jogadores
outros mercados. “Queremos fazer um quadrinho, temos milhões de ideias. Cada um também pensa em tocar algum zine. Além dos projetos pessoais de cada um, afinal, somos três pessoas diferentes, com raízes diferentes. No Super Terra, procuramos focalizar numa coisa só, mas isso não quer dizer que devemos esquecer nossas particularidades.”
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Fotos: divulgação
cortina rasgada Além do suspense, das reviravoltas, das pitadas de humor em meio à tensão, da inserção da trilha sonora como elemento narrativo, uma outra marca do cinema de Hitchcock eram as atrizes loiras. Dentre elas, estava Tippi Hedren, que despontou em Os pássaros (1963) e, em seguida, protagonizou Marnie – confissões de uma ladra (1964). Em recente conferência da Associação de Críticos de Televisão, Tippi revelou ter vivido uma péssima experiência com o cineasta: “Ele arruinou a minha carreira, mas não a minha vida”. O tema será abordado no filme The girl, a ser exibido nos Estados Unidos, no dia 20 de outubro, pela HBO. Nele, Hitch é retratado como um homem vingativo e obcecado pela atriz, após ter suas investidas rejeitadas. Segundo Tippi, ela teria perdido muitos papéis depois da batalha para encerrar o contrato com o diretor. (DN)
O primeiro sorriso coringa O fato de o autor do atentado na exibição de Batman – o cavaleiro das trevas ressurge ter recorrido à maquiagem do Coringa para incrementar sua “performance” como assassino é mais uma prova de como o vilão da HQ entrou no imaginário popular. Isso graças, principalmente, à atuação do ator Heath Ledger, que, para boa parte da crítica, superou, em 2008, a de Jack Nicholson no Batman de 1989. Mas o que poucos sabem é que o bizarro personagem da HQ americana foi inspirado na interpretação do ator alemão Conrad Veidt, no filme O homem que ri (1928). No entanto, Connie, como era chamado entre os colegas, ficou mais conhecido pelo papel do sonâmbulo do clássico do expressionismo alemão Gabinete do Dr. Caligari (1920) e do militar alemão em Casablanca (1942) – na época, seu prestígio era tanto, que chegou a ganhar o maior cachê do elenco, que incluía a estrela Humphrey Bogart. Veidt também tem outro pioneirismo em seu currículo: foi o primeiro ator a interpretar um homossexual no cinema, em Anders als die Andern – diferent from the others (1919). Por isso, tornou-se um dos primeiros ícones gays da história. O ator, que trabalhou em 118 filmes, morreu de ataque cardíaco aos 50 anos, um ano depois do estrondoso lançamento do agora “setentão” Casablanca. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“O homem que se vende sempre recebe mais do que vale.”
Balaio seleção à darwin Assim como para tudo na vida, os alemães têm uma palavra que definiria bem o Prêmio Darwin: Schadenfreude. Significa algo como “o prazer advindo da desgraça dos outros”. A honraria é uma brincadeira de um site da internet comemorando “indivíduos que protegem nossa linha genética sacrificando a própria vida”. Os vencedores são pessoas que morrem de maneira estúpida e, ao retirar seu DNA da jogada, “aumentam as chances de prolongação da espécie humana”. Dois brasileiros já tiveram seu nome na lista de premiados: um tal de Manoel, que teria acendido um isqueiro para ver melhor dentro de um caminhão de gasolina, e o conhecido padre Adelir de Carli, que se perdeu nos ares numa viagem feita com balões de hélio. (André Valença)
Barão de Itararé
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criaturas
troca de gentilezas O professor Fábio Andrade, na apresentação ao livro de Austro-Costa da Coleção Acervo Pernambuco, da Cepe, nos lembra um desafio “poético” enfrentado pelo poeta de Caruaru. Ele chegou a um bar na Rua do Imperador e encontrou uma quadra endereçada a ele por Ascenso Ferreira, com o seguinte conteúdo: “Aqui jaz o Austro-Costa/ um poeta sem segundo/ Morreu atolado em bosta/ na pior bosta do mundo”. Sem perder tempo, Austro-Costa respondeu na bucha: “Na pior bosta do mundo/ Não morri, fiquei suspenso/ Pois antes de ir ao fundo/ Peguei no chifre de Ascenso”. (Luiz Arrais)
polêmicas de moore Alan Moore, talvez o mais respeitado e influente nome da graphic novel mundial, escandalizou mais uma vez. Seu trabalho mais recente, Neonomicon, já é considerado um dos mais polêmicos do inglês, criador de clássicos como Watchmen e V de vingança. No enredo, agentes do FBI investigam assassinatos que fazem referência às obras do escritor norteamericano Howard Philips Lovecraft. A história se desmembra em rumos cada vez mais bizarros, abordando toda uma subcultura de demonismos e perversões sexuais ligadas aos crimes. Apesar de agraciada no Bram Stoker Awards 2012, recentemente, a HQ sofreu retaliações por parte de uma biblioteca dos EUA, que retirou duas de suas edições das prateleiras. Polêmicas à parte, a Panini Comics anunciou para breve o lançamento da obra em volume único no Brasil, com tradução de Guilherme Braga, especialista em Lovecraft. (Olívia de Souza)
farpas de guerra-peixe “De quando em vez”, como gostava de dizer César Guerra-Peixe (1914-1993), o músico fluminense tecia comentários de caráter mais pessoal nas apostilas que preparava para seus alunos de composição. Certa feita, alfinetou um célebre intelectual potiguar ao falar que “reza de defunto” foi uma expressão “registrada pela primeira vez pelo autor destas linhas em Caruaru, 1950, e que Luís da Câmara Cascudo publica no seu Dicionário de folclore brasileiro sem mencionar a fonte”. (Carlos Eduardo Amaral)
Herman Hesse, 50 anos de morte Por Ricardo Soares
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surf Uma onda que veio para ficar
De propaganda na TV à moda, o esporte praticado nos mares vem se infiltrando, ao longo das décadas, nas mais diversas expressões artísticas e comportamentais texto Marcelo Sá Barreto
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“Uau!”, exclama a bela moça ao
ver, da praia, o surfista dos seus sonhos decolar, em cima de uma prancha, para um aéreo 360° perfeito. Entre ela e o atleta, o carro vermelho é o produto que se quer exibir. A agência de publicidade que produziu o filme poderia ter usado qualquer outro esporte para divulgar
o modelo e a marca do automóvel. Mas a plasticidade do surf está na moda. Não são poucos os comerciais que utilizam o tema a fim de chamar a atenção do consumidor para a cerveja do verão, o refrigerante mais refrescante ou o automóvel radical. Antes rechaçada e muitas vezes associada à rebeldia – não raramente
às drogas –, a modalidade está em transformação e, até pelo número de praticantes no Brasil, cerca de 3 milhões, começa a ser bem vista socialmente, sem os olhares oblíquos de antes. Você pode até não ter se dado conta, mas, da roupa que usa à linguagem cotidiana, cultiva mais afinidades do que diferenças
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1 popularização O surf transformou-se na principal modalidade dos esportes radicais
com a tribo dos amantes das ondas. Para quem começou no esporte há muitos anos, o momento é surpreendente. No início da década de 1980, por exemplo, contar aos pais sobre o interesse pelo surf era uma atitude temerária. Com a profissionalização e, principalmente, por estar associado à ideia de vida
saudável e à natureza, divulgadas primeiramente pelas mídias especializadas e, depois, pelas demais, o esporte transformou-se no carro-chefe entre os radicais, colocando-se mesmo ao lado das modalidades tradicionais. “Nunca pensei que o surf seria tão aceito socialmente. Vivemos hoje uma realidade que não tínhamos imaginado”, diz o pernambucano Carlos Burle, hoje com 45 anos, um dos maiores expoentes da modalidade no mundo. “O contato intenso com a natureza e alguns valores, como qualidade de vida, saúde, felicidade e superação, contribuem para que o surf consiga se estabelecer entre os esportes”, argumenta. Burle é um dos profissionais que ajudaram a derrubar pechas carregadas pelo esporte durante anos. Com uma postura considerada exemplar, sempre foi benquisto pela opinião pública, e, a cada ato de bravura – conquistou o recorde de maior onda surfada no mundo, além de ser bicampeão mundial da categoria –, mais jovens se identificavam com ele. O ideal de surfista encarnado por Carlos Burle destaca, acima de tudo, o profissionalismo e a maneira sadia de viver – muito diversa do estereótipo de vagabundos de praia criado no passado para os esportistas. Além desses valores, a cultura do surf tem proliferado também no comportamento, na moda, na linguagem. Vestimentas e gírias comuns aos praticantes estão incorporadas ao dia a dia até de quem nunca entrou no mar. “O surf não é um tema que se adeque a qualquer produto ou circunstância, mas é bonito e tem um poder de atração grande. A aura de liberdade desse esporte faz a diferença”, comenta o publicitário Thiago Diniz.
Empresário pernambucano do setor de vestuário, Pedro Cavalcanti tinha como referência a mãe, que atuava no setor de confecções. Nunca havia surfado, mas pretendia montar um negócio e optou pelo surfwear, um conceito de moda calcado na indumentária própria dos praticantes da modalidade. “O surf é um esporte vigoroso, idealista, de pessoas que esbanjam saúde. Vi que existia esse filão e fui em frente”, pontua. E ele tem sido bem-sucedido num mercado que avança à beira-mar, indo conquistar consumidores até mesmo em áreas agrestinas e sertanejas. “Não é preciso morar na praia para se consumir surfwear. Na realidade, esse tipo de roupa atende às expectativas da maioria das pessoas, por ser confortável, colorida, despojada e ótima para ser usada no dia a dia, em regiões onde existe sol forte, calor”, argumenta.
“Nunca pensei que o surf seria tão aceito. Vivemos hoje uma realidade que não tínhamos imaginado” Carlos Burle A noção de beleza e de espírito de liberdade também está presente em outras referências ao surf, que cumprem a função de difundir culturalmente o esporte. A surf music tem sido um dos elementos que favoreceram a quebra de barreiras e preconceitos. Fotografias em fine art e filmes em torno do assunto, como o clássico Endless summer, transportam o esporte para o âmbito da arte. “Há imagens clássicas do esporte que passam emoções e se fixam na memória do espectador. Fotos de surfistas como Garrett McNamara ou Carlos Burle descendo as maiores ondas do mundo são de tirar o fôlego. Para mim, como fotógrafo, poder estar participando desse momento, ouvindo o barulho da onda e sentindo o bafo do tubo, é algo impagável. Um sonho”, descreve o fotojornalista Rodrigo Lobo.
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CONTINENTE Hoje, o surf tem projeção midiática, entre outras situações positivas. Qual a sua sensação diante do fato de que seu exemplo ajudou na inserção do esporte? CARLOS BURLE Até hoje, esse aspecto transformador é o meu maior estímulo. Tenho a sorte de gostar de desafios. O surf foi e tem sido um terreno muito fértil para o exercício das minhas habilidades dentro e fora d’água. Poder mostrar o lado profissional desse esporte e de realmente sermos atletas são meus agentes motivadores. Amo muito o surf e vê-lo inserido em campanhas ou projetos que estão além dos da mídia especializada me dá muita satisfação.
Entrevista 1
CARLOS BURLE “JUNTO COM O SKATE, O surf É O ESPORTE QUE MAIS INFLUENCIA JOVENS” Carlos Burle é um dos surfistas
brasileiros de maior reconhecimento no exterior. O pernambucano, que é adepto das ondas gigantes, dá palestras motivacionais pelo Brasil e fora dele. É uma espécie de guru do esporte. Prestes a se aposentar das competições realizadas em condições extremas, ele conversa com a Continente sobre o esporte que o projetou.
CONTINENTE Você começou a surfar no início dos anos 1980. Imaginava que um dia o esporte estivesse tão inserido no cotidiano das pessoas?
CARLOS BURLE Comecei a surfar em 1981. E nunca pensei que o surf fosse estar tão bem-resolvido socialmente. Não é só a questão de ser aceito. O surf, junto com o skate, são os dois esportes, fora dos tradicionais, que mais têm influência sobre os jovens e os adolescentes. O surf vive uma realidade que nunca tinha imaginado. CONTINENTE Na sua análise, quais os motivos que levaram o surf a conquistar um lugar cativo entre outros esportes, inclusive falando dos mais tradicionais? CARLOS BURLE O surf é um esporte que tem um contato muito forte com a natureza. Além disso, carrega valores de qualidade de vida, saúde, felicidade, superação, contracultura, entre outros. Foi justamente com esses aspectos da rebeldia e da contracultura que ele se identificou. E ainda se identifica fortemente entre os jovens. Os jovens de ontem são o público e os consumidores dos dias atuais. E os de hoje são os do futuro. Com isso, o surf se consolidou como um dos grandes esportes do país.
CONTINENTE O surf ainda é um esporte segmentado. De que forma é possível torná-lo mais popular? CARLOS BURLE Talvez eu seja tendencioso nesse meu argumento, mas, para mim, o surf de ondas gigantes tem mais chances de levar o nosso esporte para fora da segmentação. É simples fazer manobras radicais em ondas pequenas. É muito legal para quem pratica ou acompanha o esporte. Mas as ondas gigantes, com suas imagens impressionantes, e o aspecto do homem encarando a natureza, chamam a atenção de todos. CONTINENTE Aonde o surf pode chegar como esporte? CARLOS BURLE Fala-se do surf nas Olimpíadas. Eu não acredito nisso, pelo aspecto de ser um esporte que depende muito da natureza e, principalmente, por ser subjetivo em seu julgamento. Talvez trace o mesmo caminho das Olimpíadas de Inverno, nas quais são amparados o ski na neve e o snowboard. Mesmo assim, acho que o grande valor do surf sempre vai ser esse enigma em torno da sua prática. É aí que – mais uma vez – o surf de ondas gigantes se sobressai. O time que envolve homens que enfrentam tempestades, ondas gigantes, preparados física e psicologicamente para essa situação, é um forte apelo.
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ARTE Surf em forma de som e imagem
O esporte se mantém como um poucos que têm desdobramento nas artes, além de gerar produtos na música, no cinema, na fotografia e na moda
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Fábio Trummer, líder da banda
pernambucana Eddie, não era ainda conhecido, quando se viu envolvido pela atmosfera do surf e suas trilhas musicais. Amante das pranchas e do mar, na adolescência, o caminho para a praia era uma diversão à parte, momento em que experimentava a mistura entre o esporte e as ondas sonoras. “Sem o som no toca-fitas do carro, o trajeto não era a mesma coisa”, lembra o vocalista. A surf music inspirou o som da Eddie. “Somos uma banda de praia e
esses elementos mexem com a gente. Tanto que várias de nossas letras falam sobre eles”, explica Trummer. Ele acrescenta que a música inspira o surfista e está ligada ao esporte de maneira única. “Cada um tem sua preferência. Nos vídeos e nos campeonatos, o som é importante. E isso liga o amante do esporte ainda mais à música.” Surgida nos anos 1950, com Dick Dale, a surf music teve seu ápice com uma banda que até hoje é ícone: The Beach Boys, de som “praieiro”
com levada rock’n’roll moderna para a época, e que em 1966 lançou seu principal álbum, Pet sounds, que imortalizou clássicos como Wouldn’t it be nice e Sloop John B. Ali nascia uma vertente que mais tarde seria o trampolim para a criação de grupos como Midnight Oil, Spy Vs. Spy e New Model Army. “A ligação entre o surf e a música é tão grande, que não são poucos os surfistas músicos, como Kelly Slater, Tom Currem, Rob Machado, Teco Padaratz, só para citar alguns”, comenta Trummer.
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uitarrista Fábio Trummer G (à frente) tem a surf music como referência para compor
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Surfista é o mais premiado da história do esporte
4 teco paradatz É um dos nomes que transitam entre o surf e a música
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Na música, o surf situa-se num respeitado patamar; e, no cinema, o trabalho de anos foi o de reproduzir nas telas algo que pudesse ser fiel à cumplicidade resultante do íntimo relacionamento entre o surfista e a onda. A eterna busca pelas ondas perfeitas está na base de filmes como Endless summer, considerado um dos maiores clássicos da temática. “Bons filmes de surfe como Pacific vibrations, Five summer stories, Cristal voyager, Innermost limmits of pure fun, Evolution, Free ride, September sessions, Sons of fun e Endless summer são capazes de surpreender até o mais exigente diretor de fotografia”, comenta Júlio Adler, especialista no assunto e articulista
da revista Hardcore, uma das maiores do segmento no Brasil. Como, nas imagens, a vontade de impactar é maior que a de alisar o espectador, já na década de 1960, o diretor George Greenough foi celebrizado pela criação de uma grande-angular que permitisse filmar o surfista dentro de um tubo. “Nascia a primeira lente olho de peixe de que se tem registro”, diz o carioca. “Na literatura, o surf também é riquíssimo; pena termos pouca coisa publicada no Brasil. Mas destaco o escritor brasileiro Tito Rosembergue como obrigatório”, comenta. O norte-americano Matt Warshaw é considerado o maior historiador do esporte, autor das publicações The history of
surfing e The encyclopedia of surfing, consideradas “bíblias” do gênero. Com a força das redes sociais, e cada vez mais apreciado pela mídia não especializada, o surf tem sido projetado também entre o público leigo. Há quatro anos, uma série de fotos do surfista e fotógrafo Clark Little chamou a atenção do mundo. A concepção do artista de fotografar as ondas à beira-mar, com cores e texturas diferentes, gerou belas imagens, mudando conceitos estabelecidos há décadas. A resposta positiva impulsionou profissionais a expor fotografias até então desconhecidas, trazendo à tona uma produção rica de informação e beleza. “A fine art, que hoje vemos com Clark, abre possibilidades para a fotografia de surf. Antes das digitais, com só 36 poses nas máquinas, tínhamos de cair na água para fotografar o surfista e sua manobra. Se sobrassem fotos, tentávamos algo mais artístico. Com as digitais e seus cartões de memória, temos mil e quinhentas oportunidades de fazer fotos nos mais diversos ângulos”, explica o fotógrafo pernambucano Clemente Coutinho. O ambiente ajuda. Na praia, há a possibilidade de 12 horas de claridade, entre o nascer e o pôr do sol do Brasil. É ali que o fotógrafo joga com a natureza e vários gráficos de luz no decorrer do dia. “Isso faz com que o fotógrafo de surf seja uma fonte se inspiração permanente. Conseguimos inspirar quem não tem essa vivência. Eu tenho trabalhos ligados à fine art. E, certamente, profissionais como Clark Little, Sean Downey e Brian Bielmann guiaram-se por esse estalo, mostrando muita coisa nova”, diz Clemente. MARCELO SÁ BARRETO
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5 no havaí Duke Paoa foi um dos precursores do surf, no começo do século passado
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HISTÓRIA Do Peru ao boom na Califórnia
Se uma grande história é potencializada por uma boa polêmica, o surf traz uma discussão controversa bem na sua gênese. Onde tudo começou, ainda nos dias atuais, é tema recorrente nas rodas de especialistas. O Havaí e o Peru são parte central dessa trajetória milenar. No arquipélago norte-americano, diz-se que a arte de deslizar sobre as ondas, praticada pelos reis polinésios, vem de mil anos atrás. No país sul-americano, os caballitos de totora – embarcações parecidas com pranchas, feitas a partir de fardos de totora, espécie de palha peruana – eram usados pelos pescadores. E não se descarta que esses homens do mar, há 3
mil anos, aproveitavam o espumeiro das ondas para chegar à praia, com suas grandes tablas. Discussões à parte, a versão moderna do esporte está prestes a completar 100 anos. Foi do havaiano chamado Duke Paoa Kahanamoku, campeão olímpico de natação e praticante do surf no dia a dia, que partiu a iniciativa de compartilhar um pouco do que, até então, só se conhecia no 50º estado norte-americano. Em 1915, na Austrália, ao se deparar com as condições perfeitas apresentadas lá para o exercício do esporte, confeccionou uma prancha e, na praia de Freshwater, com uma apresentação inédita naquele país, apontou o seu “marco zero”, que tem na terra aussie (gíria para “australiana”) a sua maior potência. A popularização do surf ocorreu por volta da década de 1950, nos Estados Unidos, na Califórnia. A partir dali, várias transformações sucederam-se. Uma das principais diz
respeito às pranchas. A lendária papa nui, um compensado de madeirite utilizado por Duke, tinha cinco metros de altura e pesava 50 kg. Com o passar dos tempos, a tendência foi reduzir tamanhos e pesos. O surf ganhou maior velocidade e progressão. Belo esteticamente e de aura contestadora, logo o esporte tornou-se vedete no cenário internacional – não sem ser marginalizado pela sociedade, que não via com bons olhos uma modalidade com ideais tão libertários. Aos poucos, com mais organização, ocorreu o embrião do que viria a ser o campeonato mundial da modalidade, em 1964, quando o australiano Midget Farrelly sagrou-se seu primeiro campeão. O surf produziu ídolos. O maior deles é o norte-americano Kelly Slater. Não bastasse ser o recordista no número de títulos da ASP World Tour (WT), a elite mundial, com 11 taças, Slats, como é chamado, venceu mais eventos (50, ao todo), foi o campeão mais jovem (aos 21 anos), o campeão mais velho (aos 39) e só de premiação embolsou mais de US$ 3 milhões. No Brasil, que tem como berços do esporte as praias do Arpoador (Rio de Janeiro) e Quebramar (Santos), aos poucos, os investimentos começam a focar a formação de jovens talentos. Não à toa, a maior esperança do tão sonhado primeiro título mundial recai sobre Adriano de Souza (Mineirinho), de 24 anos, e Gabriel Medina, de 18, ambos de São Paulo. Mineirinho, a cada ano, consolida-se entre os melhores do mundo, mas é Medina quem chama a atenção da mídia internacional. Com um surf ultrarradical, modelado nas manobras aéreas, é considerado o substituto de Slater, com quem já se confrontou no circuito mundial, num encontro legítimo da nova geração com a velha escola. Em quatro disputas, Medina ganhou duas e perdeu outras duas. Pernambuco vive pela metade o boom do esporte. Antes da proibição do esporte em vários trechos da orla, por conta dos ataques de tubarão, no início da década de 1990, o Recife era considerado a terceira surf city do Brasil, atrás do Rio e de São Paulo. Agora, com as praias surfáveis distantes da Região Metropolitana, o número de praticantes diminuiu sensivelmente. Mesmo assim, pernambucanos são destaque no cenário internacional, como Carlos Burle, bicampeão mundial de ondas gigantes. Outros nomes, como Bernardo Pigmeu, Paulo Moura, Halley Batista e Alan Donato mantêm viva a chama do esporte no estado. O futuro pertence aos garotos voadores. Esse é o novo foco do surf, que faz sucesso nas mais variadas praças internacionais e soma um time de 20 milhões de praticantes, dos quais os mais apaixonados fazem das transmissões no webcast das etapas do mundial um sucesso. Os aéreos alcançaram o status do tubo, antes, a manobra mais celebrada entre os surfistas. A plasticidade continua sendo a grande propaganda para o esporte ganhar espaço nos próximos anos. MARCELO SÁ BARRETO
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con COMPORTAMENTO ti nen te DIVULGAÇÃO
DESTINOS À procura da onda perfeita
Várias regiões, inclusive algumas inspóspitas, entraram no mapa do turismo mundial a partir da busca dos esportistas por locais ideais para surfar
O surfista é um viajante compulsivo.
E faz qualquer coisa para se refugiar do que chama de crowd, ou mar lotado, em português. O paulista Allois Malfitani, de 50 anos, é um exemplo. Sempre sonhou com um paraíso particular para praticar em paz o esporte do coração. Já tinha 13 anos de Havaí, quando, em 2000, folheou uma revista especializada e apaixonou-
se por uma imagem sem qualquer referência. Naquela hora, decidiu dedicar o tempo disponível à descoberta do lugar. E encontrou. Não foi fácil. Após uma série de coincidências – numa delas, esbarrou com um médico nascido naquele pedaço de terra cercado por água salgada, perdido no Pacífico Sul –, ligou para a administração das Ilhas Carolinas
e escutou da telefonista algo animador: “Sim, existe um norte-americano que reside e que surfa aqui”. Conseguiu o número telefônico do cidadão e entrou em contato. Pouco depois estava lá. “Da primeira vez, achei tudo caro. Além disso, fui sem conhecer as ondulações. Resultado: passei oito dias e surfei uma vez, mas senti o potencial da onda. Tinha, finalmente, feito uma grande descoberta”, lembra Malfitani. Três anos depois, estava de malas prontas para morar no paraíso. Por lá, instalou uma pousada e colocou as Ilhas Carolinas na rota do surf. Mais do que isso, na rota do turismo. Nas primeiras temporadas, o surfista guardou o local em segredo. Ao lado de um agente de viagens havaiano, organizava pacotes sem que os turistas soubessem o seu real paradeiro. A fase oculta ficou para trás. Em 2012, já é possível surfar em P-Pass, o pico de ondas perfeitas, descoberto por Malfitani há 12 anos. O único senão é a fila de
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6 PUERTO ESCONDIDO Praia é point mexicano pacífico sul 7 As Ilhas Carolinas entraram na rota do surf no início dos 2000
NO MAPA DO SURF
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espera. Pode-se levar até dois anos para desfrutar as belezas naturais do lugar. Assim como as Ilhas Carolinas, entraram no mapa do turismo mundial, com a ajuda do estilo de vida dos surfistas, outros destinos internacionais. O esporte foi a espoleta para que emergissem do isolamento geográfico. A afluência pós-descoberta segue um roteiro semelhante: num primeiro momento, uma espécie de “segredo” é mantido em torno dos paraísos “particulares”. Logo depois, dependendo do potencial das ondas, as revistas segmentadas organizam trips e expõem matérias e imagens de tirar o fôlego. No passo seguinte, com a visibilidade, vem o investimento na infraestrutura. E o local passa a constar nos catálogos de viagem como uma ótima opção de lazer, não só para o surfe. “Geralmente, fechamos pacotes com surfistas. Mas hoje o surf camp está preparado para oferecer aos hóspedes
Havaí, Puerto Escondido, Ilhas Carolinas, Bali... Outros lugares fantásticos foram encontrados ou desbravados pelos surfistas. Alguns são conhecidos, outros menos. Mas, no mapamúndi, espalham-se os paraísos que, um dia, tiveram seu solo pisado por surfistas e suas ondas desbravadas pelos componentes dessa tribo, como os abaixo listados. Costa Rica Pavones, Salsa Brava Equador Montañitas Filipinas Cloud Nine Havaí North Shore, da ilha de Oahu Ilhas Carolinas P-Pass Indonésia Bali, Sumba, Lombok México Puerto Escondido Nova Zelândia Raglan Peru Lobitos
atividades prazerosas, caso faltem as ondas. Temos mergulhos, passeios, as pessoas podem conhecer como se relacionam as tribos locais... Trata-se de uma ilha tropical com grande riqueza natural e bela”, diz Malfitani. Não foram poucos os destinos desbravados pelos surfistas, ou que se desenvolveram a partir do surf, que despontam como opções de diversão. Um dos mais famosos, sem dúvida, é o arquipélago havaiano. Procurado pelos viajantes mais exigentes, é referência no mundo pelo esporte e pelas suas belezas naturais. Uma máquina de fazer dinheiro, que atrai mais de um milhão de forasteiros, atletas ou não, a cada temporada – sendo o inverno a melhor época de ondas –, gerando mais de US$ 6 bilhões anuais. Havaí e Ilhas Carolinas não estão sozinhos. A mexicana Puerto Escondido, até a metade da década de 1990, não despontava em listas de empresas de viagem. Com a chegada dos surfistas, tudo mudou. O que, nos tempos passados, era uma praia com potencial de onda e lazer com pouca infraestrutura, transformou-se, nos anos 2000, num local pronto para receber todo tipo de visitante, com seus hotéis, pousadas e restaurantes. Bali e suas milhares de ilhas não ficam atrás. “O mundo está aberto a qualquer um que queira explorar. Eu ‘achei’ uma ilha com boas ondas. Existem muitas ondas para serem surfadas, sozinho ou com poucas pessoas. É só ter paixão, querer explorar e ter tempo para isso”, afirma Malfitani.
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con ti nen te
Política
PIRATA Nascido na nuvem virtual
Tendo à frente o ex-profissional liberal Rick Falkvinge, a nova legenda surge na Suécia e espalha-se pelo mundo sob os influxos da cultura digital e em defesa da liberdade de expressão TEXto Duda Gueiros
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1 protesto Manifestação do Partido Pirata alemão máscaras de v 2 Partido ocupa 15 cadeiras no parlamento alemão livre acesso 3 Cartaz do PP português contra a vigilância virtual
4 julian assange Versão espanhola de pôster em favor da libertação do jornalista
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Historicamente, a criação de partidos políticos advém da diversidade de causas e união de interesses comuns de grupos de pessoas: o dos trabalhadores, a favor do proletariado; o Partido Verde, militando pelo meio ambiente; os religiosos, em prol de suas crenças, e a lista se estende. O cenário socioeconômico do mundo e as variadas demandas moldam motivações e definem diretrizes governamentais. No poder ou não, a multiplicidade de partidos e a busca por diferentes ideais refletem a evolução cultural e social de uma sociedade. Em tempos de revolução tecnológica e presença constante da internet, surgem necessidades para usuários e detentores de tecnologia e, como consequência, para as autoridades, responsáveis pela ordem e bom uso. Assim, o Partido Pirata nasce com a intenção de preencher a lacuna que existe na regulamentação nos meios digitais. O sueco Rick Falkvinge, fundador do PP, explica que tudo começou com uma conversa de bar. “Trabalhei minha vida inteira com informática, mas sempre tive inquietações em torno do domínio, repressão e falta de jeito dos governos, quando se trata da web. Um dia, depois
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de discussões acaloradas com pessoas que compartilham esse sentimento, senti que poderia criar uma articulação política que se preocupasse com essas questões. Em 2006, pedi demissão do meu antigo emprego, que me garantia uma vida confortável de homem da classe média alta, e passei a viver de uma rede de contribuições de pessoas que acreditavam que aquilo não era uma loucura completa. Foi uma decisão difícil e que iria me atingir no âmbito pessoal, além da incerteza de como isso ia decorrer. Felizmente, não foi um fiasco e continuamos crescendo.” Com sede na Suécia, em 2010, o PP foi lançado oficialmente na
conferência de Bruxelas e começou a ser disseminado ideologicamente na Europa, incluindo a Rússia. Hoje, ganhou correlatos em 56 países e ocupa 15 cadeiras no Parlamento da Alemanha e duas no Parlamento Europeu. Falkvinge atribui a decolagem do partido aos crimes cometidos contra o maior site de hospedagem de arquivos para download do mundo, o Pirate Bay. As bandeiras de luta do Partido Pirata são, estruturalmente: os direitos humanos, o livre acesso ao conhecimento e à cultura, o livre compartilhamento para fins pessoais não lucrativos e a universalização com qualidade dos serviços e políticas públicas – educação, saúde,
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indÚstria FonográFica
transporte, cultura, segurança, inclusão digital, participação democrática plena e colaboração. Como causas mais específicas estão listadas, e são exaustivamente debatidas por eles, as atuais leis de propriedade intelectual e industrial, incluindo copyright e patentes, a luta contra a violação do direito de privacidade e a favor do respeito ao domínio público, da promoção de práticas de copyleft (o oposto do que é exercido pelo regime do copyright), dos sistemas operativos livres e das práticas do compartilhamento. A estrutura horizontal também é uma proposta inovadora. Todas as pessoas devem ter a mesma importância no processo decisório,
a plataforma ideológica do partido abarca o livre acesso ao conhecimento e ao compartilhamento para fins pessoais sem discriminação hierárquica, em democracia plena. Todas as decisões de ocupantes de cargos decisórios (políticos, eletivos ou outros) são tomadas apenas mediante a deliberação de todos os membros do Partido Pirata. Não há autonomia dos administradores, eles são apenas representantes perante a sociedade.
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O mais recente episódio e, talvez, o mais marcante – que envolve crimes digitais, especificamente o compartilhamento de conteúdo online – foi a prisão de Kim Dotcom, fundador do site de hospedagem de arquivos Megaupload. Antes disso, o fechamento temporário do Pirate Bay também havia sido um marco nessa recente e ainda confusa história de contravenções digitais. Em ambos os casos, o Partido Pirata tentou interceder pelos responsáveis de ambos os portais, mas só obteve sucesso no segundo caso, pois se trata de um site originalmente sueco. Dotcom foi perseguido pelas autoridades americanas, preso, teve todos os seus bens confiscados e o seu site foi colocado fora do ar em tom “educativo” de punição. Não bastando parar o funcionamento, ao entrar no Megaupload, o usuário se depara com
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con política ti nen te uma mensagem postada pelo governo americano que diz que a página infringe leis federais e que as pessoas responsáveis foram condenadas pelo tribunal federal. O Partido Pirata observa na distribuição feita pela indústria fonográfica um problema mundial que deve ser combatido arduamente. Para os integrantes, o artista deve se conscientizar de que um modelo mais democrático de distribuição é a possibilidade trazida pela web. Para os piratas, o que a internet trouxe de liberdade para o usuário deve ser considerado nas etapas de feitura de um produto cultural. Ou seja, quem consome não deve ser tratado como criminoso, mas quem produz deve se adequar às novas formas de acesso e criar vias rentáveis em torno disso.
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FILIAL BRASILEIRA
Na Campus Party do Recife, que aconteceu em julho último, a filial brasileira dos piratas foi oficialmente lançada. De acordo com integrantes do movimento, mais de 100 pessoas de 15 estados do país estiveram presentes na estreia. Os militantes assinaram o programa, o estatuto e elegeram a primeira direção nacional da nova sigla, o PPBr, que já existia no papel desde 2007. Para poder concorrer em eleições, o partido precisa ainda passar pelo aval do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O Brasil tem uma realidade legislativa diferenciada no âmbito online. No país, existe empenho de parte das autoridades para modificar a regulamentação e canalizar o uso da internet para ações positivas. O Marco Civil da internet foi o primeiro grande passo dado nessa área, com boas intenções. No entanto, é algo que fica em segundo plano, quando confrontado com outros problemas brasileiros. O partido terá que lidar com essa realidade. Quando perguntados sobre como isso seria feito, eles respondem que, a princípio, pretendem exercer a democracia plena baseada em uma participação da sociedade e gestão horizontais, praticar os direitos humanos em sua totalidade e usar a internet como ferramenta básica para a mudança de pensamento e, consequentemente, de uma macroconjuntura.
Entrevista
rick falkvinge “O MARCO CIVIL É ABSOLUTAMENTE ÚNICO NO MUNDO” Rick Falkvinge se autodenomina evangelizador. Perguntado sobre a tônica pejorativa do termo, ele diz que, embora pareça estranho, o termo é adequado à ação empreendida por ele, que almeja mudanças profundas na mentalidade da sociedade, acomodada às distorções da prática democrática. Aos 40 anos, Falkvinge passou de homem bemsucedido da classe média sueca para um dos políticos visionários dos dias atuais, quando começou
a se dedicar completamente às atividades políticas. Graças a esses esforços, suas ideias inovadoras acabaram achando pares pelo mundo, unindo indivíduos que tinham as mesmas inquietações. CONTINENTE Você veio ao Brasil em missão política: analisar as possibilidades de atuação do Partido Pirata, bem como criar a sede brasileira do partido. Quais são as suas primeiras reações ao país? RICK FALKVINGE Antes de tudo, é um país impressionantemente lindo. O primeiro traço que percebi é que as pessoas aqui tendem a ser relaxadas, às vezes não levam as coisas tão a sério e sempre se atrasam, mas não é, de forma alguma, o fim do mundo. Só é um hábito muito diferente de como agimos na Suécia; pontualidade é algo que levamos muito a sério.
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para usar a web, o qual deveria poder acessar de onde quiser e o que quiser sem ser obrigado a se expor de alguma forma. No entanto, no fim das contas, não acho que isso seja uma medida tão ruim, já que os brasileiros não levam regras tão a sério. A internet é um espaço público.
CONTINENTE Na sua palestra, você mostrou-se bem impressionado com o Marco Civil da internet. Quanto você sabe sobre o projeto e o que acha dele? RICK FALKVINGE Acho que o Marco Civil é absolutamente único no mundo. Ele estabelece que o acesso à internet é um direito de todo e qualquer cidadão. Atualmente, nós exercemos nossos direitos mais fundamentais – liberdade de expressão, liberdade de opinião, liberdade de imprensa e muitos outros – através da internet e, por isso, ela própria se tornou um direito tão fundamental quanto os demais que exercemos através dela. A lei também estabelece que o usuário não é responsável pelo conteúdo que ele compartilha. Observar tudo isso em uma mesma legislação é algo sem precedentes em todo mundo. A minha única ressalva é a identificabilidade, que prevê a identificação do indivíduo
CONTINENTE Algumas empresas privadas, como Google e Facebook, centralizam o conteúdo da internet e o direcionam quantitativa e qualitativamente. Tendo isso em vista, você acha que a internet, como fenômeno social e parte do nosso cotidiano, pode levar as pessoas a um padrão de pensamento e escolhas? RICK FALKVINGE Na verdade, eu acho o oposto. A internet promove a diversidade, mesmo com essa malha capitalista. O modo como as pessoas se comunicam umas com as outras mudou drasticamente, e para melhor. Por exemplo, se você observar uma pessoa que nasceu há mais de 40 anos, ao ter um problema com sua impressora, normalmente, ela busca em sua agenda de endereços alguém para quem possa telefonar e pedir ajuda. As pessoas que já cresceram na era digital recorrem à web e transmitem sua dificuldade para sua nuvem de amigos. Isso nos ajuda a crescer como uma grande comunidade, aproxima as pessoas. Na minha opinião, é uma nova forma de socialização, e não de padronização. A internet nos dá voz para descobrirmos juntos os próximos passos. CONTINENTE Como uma das propostas do Partido Pirata, você fala bastante em privacidade online, que as pessoas devem usar a web sem serem rastreadas ou identificadas, mas entende que a internet, cada vez mais, é um canal para vários tipos de crimes, como pornografia infantil. Como você enxerga esse impasse e qual seria uma solução? RICK FALKVINGE As pessoas acham horrível quando eu lembro que houve um tempo em que a Alemanha Oriental abria todas as cartas que eram enviadas e recebidas pelos seus cidadãos, para averiguar se existia algum tipo de comunicação que fugia à regra. Pois é o que vem
acontecendo em alguns lugares do mundo, nos dias atuais. Nós não nos importamos que as autoridades mapeiem, gravem, rastreiem legenda à direita indivíduos que sejam formalmente suspeitos por determinado crime. O que é inadmissível é fazer isso com todo o universo de usuários, simplesmente porque é uma operação fácil, a exemplo do que tem praticado o governo dos Estados Unidos. Voltando à comparação, a antiga abertura de cartas era um processo absurdamente caro, enquanto o rastreamento online é muito barato. Isso nos leva a uma indagação: será que esse tipo de violação não era comum antes da internet só porque era caro demais ou por uma questão de princípios? CONTINENTE O que você acha da internet como um fenômeno social? RICK FALKVINGE Absolutamente fantástica. Quando falo com sociólogos sobre a internet, eles se dividem, geralmente, em dois grupos. O primeiro diz que a web é o maior e mais importante sistema de comunicação da humanidade desde a invenção da imprensa. O outro discorda e diz que a internet é o maior invento desde a linguagem escrita. Então, como a imprensa e a escrita, a web, no papel de organismo social, muda drasticamente relações estruturais, por exemplo, de poder. CONTINENTE No Brasil, temos problemas graves com corrupção e desvio de interesses por parte do poder público. Como você compararia os sistemas políticos brasileiro e sueco? RICK FALKVINGE A corrupção é um problema endêmico das sociedades que não são transparentes. Enquanto, na América do Sul, existe corrupção de cunho monetário, em países como a Suécia há corrupção de amizade. A questão se liga mais à sua rede de contatos: se você não conhecer as pessoas certas, não terá casa, trabalho ou mesmo acesso ao sistema de saúde – e isso tudo piora se você for imigrante. Os dois tipos de corrupção são obviamente ruins, mas considero o da Suécia bem pior.
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con ti nen te
especial
são luiz Um palácio para a sétima arte
Testemunha de outro tempo e de outra cidade, única antiga sala de cinema em atividade no Recife é, hoje, espaço de preservação, mantido com programação de filmes de arte, preços populares e festivais concorridos TEXto Alexandre Figueirôa
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Quando me entendi como gente, os cinemas no centro do Recife ainda existiam e neles descobri que era possível sonhar de olhos bem abertos. E o que mais me encantava, entre todos, era o São Luiz. Primeiro, pela arquitetura. O mural de Lula Cardoso Ayres no hall, a ampla sala de espera no primeiro andar com um janelão de vidro com vista para o Rio Capibaribe; o alto-relevo dos motivos de decoração do teto e das laterais; a suntuosa cortina vermelha abrindo lentamente, após o gongo; os vitrais coloridos que se acendiam por alguns segundos, entre o apagar das luzes e o início da projeção, tornavam as sessões do São Luiz um momento único. A segunda razão do meu fascínio residia no fato de ele ser, nas condições da época – entre os anos 1960 e 70 e até a inauguração do Cine Veneza – uma das melhores salas do Recife em termos de projeção e conforto para o espectador. Tanto na plateia quanto no balcão, a maior parte dos lugares permitia uma boa visibilidade da tela. Essas qualidades do São Luiz fascinaram não apenas a mim, mas a todos os cinéfilos que viam a sala como
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A inauguração do São Luiz coincidiu com um período de grandes intervenções modernizadoras no centro do Recife
um símbolo da consagração da arte cinematográfica, a expressão artística mais autêntica do século 20. Desde sua inauguração, no dia 6 de setembro de 1952, o São Luiz se tornou uma espécie de templo à imagem em movimento das gerações que o alcançaram em seus dias de glória. A inauguração da sala, com 1.206 lugares, pelo grupo Severiano Ribeiro, coincidiu com um período de grandes intervenções modernizadoras na região central, iniciadas na década de 1940, e da consolidação do eixo formado pela Avenida Guararapes, Ponte Duarte Coelho e Avenida Conde da Boa Vista. O São Luiz, no térreo do Edifício Duarte Coelho, na esquina da Rua da Aurora com a Avenida Conde da Boa Vista, tinha, portanto, uma localização
privilegiada, quando o lugar– com suas lojas grã-finas, cafés, sorveterias, cinemas, teatros – era o de circulação preferido pelos recifenses, para fazer compras e se divertir. Conhecendo um pouco da história do São Luiz, é fácil verificar porque ele se tornou um símbolo para os cinéfilos locais. Durante décadas, todo jovem fascinado por filmes realizava alguns de seus cultos de iniciação diante de sua tela. O cinema foi entregue ao público com o filme O falcão dos mares, de Raoul Walsh, estrelado por Gregory Peck e, desde então, era nele que aconteciam os principais lançamentos da cidade. A abertura de um novo cinema na cidade também mobilizou os cronistas cinematográficos da época, preocupados em nela consolidar uma cultura fílmica mais sólida. Eles tinham esperança de que a sala abrisse espaço para uma programação de melhor qualidade e se mostraram otimistas pelo fato de o São Luiz apresentar boas condições técnicas – os projetores Simplex XL instalados, segundo o grupo Severiano Ribeiro, eram iguais ao do Radio City Music Hall, em Nova York –, algo que
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Guga Matos/JC Imagem
1-2 histórico Alberto Cavalcanti teve préestreia badalada de O canto do mar, no cinema da Boa Vista festivais 3 Mostras como a Janela Internacional de Cinema do Recife atraem grande público ao São Luiz
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nem sempre era encontrado em outros cinemas do centro. Mesmo que, no decorrer dos anos, a programação do cinema possa ter desagradado aos críticos, não se pode contestar o fato de as avant-premières, as sessões especiais – como foi a caso da Sessão Bossa Jovem, aos sábados pela manhã, que, por muitos anos, na década de 1970, foi o ponto de encontro de todos os jovens descolados da cidade – e o bochicho nas estreias dos grandes lançamentos, algumas vezes com a presença dos realizadores e do elenco do filme, terem feito do São Luiz um equipamento indispensável na vida sociocultural do Recife desde sua inauguração.
O CANTO DO MAR
Entre as avant-premières, uma das mais marcantes da história do São Luiz foi, sem dúvida, a de O canto do mar, de Alberto Cavalcanti, todo rodado em Pernambuco. A produção do filme no Recife causou um grande alvoroço. No período, vivia-se certa efervescência em torno da sétima arte, com o surgimento de diversos cineclubes e o crescimento do número de cronistas cinematográficos
nos seis jornais em circulação. Entre os críticos, era bem clara a divisão existente entre as linhas editoriais da imprensa. De um lado, estavam os admiradores incontestes do cinema clássico de Hollywood, e, do outro, os que preferiam o cinema europeu. O cinema brasileiro sempre provocava muitas controvérsias, principalmente as chanchadas. Apesar do sucesso popular, elas não eram muito bem-vistas pela maioria dos críticos e esperava-se que o filme de Cavalcanti, pelo seu reconhecimento como cineasta de renome no exterior, pudesse alinharse a um cinema sério e de bom nível. Outro motivo para a grande expectativa em torno de O canto do mar era o fato de ele contar majoritariamente com atores pernambucanos, ter roteiro de autoria de Hermilo Borba Filho e o cronista José de Souza Alencar como assistente de direção. A pré-estreia aconteceu no dia 5 de outubro de 1953 e foi um grande acontecimento social na cidade. Cerca de 450 convites foram distribuídos pela prefeitura local para políticos e autoridades e exigiu-se o uso de traje a rigor, decisão que acabou sendo
revogada, permitindo-se o uso de paletó e gravata. Um incidente, porém, por pouco não apagou o brilho da festa. O deputado José Santana, devido a brigas políticas na sua cidade natal, Flores, foi assassinado na calçada do São Luiz, quando chegava para assistir ao filme. Apesar da trágica ocorrência, o cinema ficou superlotado e, segundo o noticiário dos jornais da época, muita gente acabou ficando em pé, inclusive o elenco e parte da comitiva. A estreia de O canto do mar, segundo aponta a pesquisadora Luciana Araújo, agradou; todavia, mais como acontecimento social do que como filme, pois a plateia presente ao São Luiz buscava diversão e não sensações artísticas. Muitos críticos fizeram comentários desfavoráveis, afirmando que Cavalcanti, por ser também documentarista, não conseguira construir uma narrativa ficcional convincente, ou pior: fizera uma obra expondo a miséria da região e maculando a imagem do Brasil. Exceções foram os artigos de Jomard Muniz de Brito e José do Rego Maciel Filho, que teceram elogios. A recepção morna da estreia e as críticas feitas não ajudaram a carreira do filme de Cavalcanti. Ao entrar no circuito comercial, ele acabou sendo colocado no Teatro do Parque, um dos locais para lançamentos da cidade, mas com condições de exibição bem inferiores às do São Luiz. Outra estreia significativa para o cinema pernambucano, realizada no São Luiz, foi a de Baile perfumado, em 1996, quando o cinema já não ostentava as mesmas boas condições do passado. O filme marcou o retorno da produção cinematográfica em longa-metragem em Pernambuco e foi a grande sensação do I Festival de Cinema do Recife (atual Cine PE). Na primeira exibição, a plateia,
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con especial ti nen te JARBAS JR.
4 programação O São Luiz mantém-se como importante palco para as produções pernambucanas decoração 5 Suntuosidade até hoje fascina os espectadores
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que lotava o cinema, ovacionou os cineastas Paulo Caldas e Lirio Ferreira, elenco e equipe técnica, e fez o São Luiz reviver os seus dias de glória.
FILAS PARA TITANIC
Na verdade, o São Luiz, dentre os cinemas do centro do Recife, foi o único que resistiu à decadência da região e não fechou imediatamente suas portas. Ele continuou sendo rentável para o grupo Severiano Ribeiro e conseguia manter um público popular fiel, graças ao preço mais em conta que o dos cinemas dos shoppings centers. Enquanto a elite da cidade migrou para os multiplex, o público interessado em ver pornochanchadas, filmes de ação, comédias dos Trapalhões ou grandes lançamentos nunca abandonou o São Luiz. Prova maior disso foi o sucesso de Titanic (1998), de James Cameron, com Leonardo Di Caprio e Kate Winslet, no elenco. A bilheteria foi uma das maiores entre todas as salas do Brasil, alcançando o impressionante número de 30 mil espectadores médios por semana, numa época que isso já não era tão comum. Apesar desse público fiel pagante, desde os anos 1990, o grupo Severiano Ribeiro nunca
fez grandes investimentos para melhorar as condições de conforto para o espectador. Muitas poltronas estavam rasgadas e quebradas, o ar condicionado às vezes não funcionava totalmente, fazendo das sessões uma verdadeira sauna, e a qualidade da projeção e do som era péssima. A deterioração do entorno do Edifício Duarte Coelho, por conta dos assaltos, dificuldades para estacionamento, mendigos, também contribuiu para afastar o público de classe média. A sentença de morte da sala só não foi promulgada porque a programação, embora não fosse lá grande coisa, escapou dos filmes de sexo explícito, recurso fatal capaz de apressar o fechamento total de uma sala. Contudo, via-se claramente que o Severiano Ribeiro, mais cedo ou mais tarde, encerraria as atividades do São Luiz, algo que acabou se confirmando em 2007. A mobilização dos cinéfilos, intelectuais, animadores culturais e dos críticos dos principais jornais, no entanto, salvou o São Luiz de ser transformado em templo evangélico ou loja de eletrodomésticos, como se verificou em tantas salas de rua no centro e nos bairros. No mesmo ano em que o grupo Severiano Ribeiro anunciou a paralisação
das atividades do cinema, uma instituição de ensino particular arrendou a sala com a intenção de transformá-la num centro cultural. No ano seguinte, porém, desistiu do empreendimento. Finalmente, em 2008, o prédio foi tombado pelo governo do estado e a Fundarpe assumiu a revitalização da sala. Hoje, o São Luiz pode não ter recuperado o glamour do passado, mas cumpre uma importante função na vida cultural do Recife. A sala foi reformada, tendo agora 992 lugares, e exibe, a preços populares, uma programação diversificada, com filmes de destaque da produção nacional e clássicos do cinema. Conta ainda com uma programação fixa de filmes infantis e, pela manhã, promove as atividades do Cine-Escola, voltadas para os alunos da rede pública de ensino. O cinema vem abrigando, também, em suas dependências, mostras e eventos como o Animage – Festival Internacional de Cinema de Animação de Pernambuco – e a Janela Internacional de Cinema do Recife, ocasiões em que vemos com satisfação centenas de jovens amantes do cinema refazendo os mesmos caminhos feitos por nós, hoje cinéfilos cinquentões, quando aprendemos a enriquecer a nossa imaginação com as imagens que desfilavam pela tela do São Luiz.
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memória Um sexagenário fundamental
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O São Luiz venceu, com a relevância de sua história, as mudanças urbanísticas e comportamentais da cidade texto Luiz Joaquim Fotos Jarbas Jr.
Se, do alto do cinema São Luiz, houvesse uma câmera de filmar registrando o cenário que o cerca no Recife, de 1952 até hoje, e outra registrando as transformações em seu interior, a primeira nos daria uma interminável gama de ricas informações socioculturais sobre o que levou o centro da capital pernambucana a ser o que é, em 2012. A outra câmera, felizmente, forneceria apenas algumas pequenas diferenças sofridas pelo palácio da Rua da Aurora. A própria ideia, há 60 anos, de construir uma sala de exibição tão portentosa, por parte do Grupo Severiano Ribeiro, nasceu da crença de que, na época, o Recife era uma cidade que não
apenas se adequava a um empreendimento assim, como também o merecia. O próprio convite para a sua inauguração, no dia 6 de setembro, com o filme O falcão dos mares, de Raoul Walsh, é explícito nesse sentido. Nele, estava escrito: “... É que ao entregar ao grande público pernambucano um dos mais luxuosos e bem aparelhados cinemas do Brasil, colocamos a cidade do Recife, no âmbito cinematográfico, numa posição de igualdade, se não de superioridade, em relação aos grandes centros do território nacional. E foi a própria cidade do Recife, pelo seu desenvolvimento, pelo progresso manifestado em todas as suas atividades, que
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deu oportunidade a que, acompanhando esse progresso e esse desenvolvimento, lançássemos ombros a uma realização de tamanha envergadura”. Como testemunha daquele momento, o arquiteto e vice-presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, José Luiz Mota Menezes, afirma que, desde a abertura do Teatro de Santa Isabel, no século 19, a sociedade recifense não presenciava a abertura de uma casa tão luxuosa, dedicada à cultura. “A chegada do São Luiz corresponde a uma série de situações novas para o usuário da cidade. O cinema foi responsável pela descentralização do foco de interesse do Bairro do Recife para o Bairro da Boa Vista, para as margens do Rio Capibaribe.” O arquiteto lembra que, com a construção do Edifício Duarte Coelho, pelo engenheiro Américo Rodrigues Campello, abrigando o cinema no térreo, voltava-se a valorizar as vistas para o Capibaribe e a revalidar aquele corredor urbano a partir da cultura. “Foi por isso que houve um deslocamento dos footings, que antes eram feitos pela alta sociedade,
“Desde o Santa Isabel, no século 19, não se via a abertura de uma casa tão luxuosa quanto o São Luiz” José Luiz Mota Menezes essencialmente na Rua Nova e Rua da Imperatriz, para o cais da Rua do Sol e Rua da Aurora, restaurando um valor que esses corredores já possuíam no século 19”, contextualiza. A planejadora urbana e professora da Universidade Federal de Pernambuco, Norma Lacerda, conta que, ainda hoje, se surpreende com a devolução do São Luiz à sociedade pernambucana. Norma refere-se ao fato de o cinema ter sido fechado em fevereiro de 2007 pelo Severiano Ribeiro, e reaberto em dezembro de 2009, sob a coordenação do governo do estado, que o compraria por R$ 2,5 milhões, em 2011. “Fui lá, recentemente, e é incrível como entrar ali ainda provoca uma sensação única. Desde sua
inauguração, ele virou uma referência para o Recife. Do ponto de vista arquitetônico, é um trunfo que o Recife ainda tenha um espaço como aquele, com uma decoração interna tão suntuosa, que lhe confere imponência até hoje”, salienta. Já no convite de 1952, a decoração era um ponto de destaque. Além de ressaltar o mural de Lula Cardoso Ayres na sala de espera, justifica o projeto de Pedro Correia de Araújo para o auditório: “A decoração da plateia representa o interior de uma grande tenda real: vastas tapeçarias suspensas, bordadas com os três lírios de França, sobre os quais repousam 16 escudos de guerra, em lembrança das cruzadas. O teto é como um imenso véu de rede, que grossas cordas amarram”. E continua: “Na frente do palco, os variados ornatos simbolizam as grandes virtudes de um rei, que desceu do trono para subir a um altar: a Palma (o prêmio eterno da boa aventurança), a Concha (o brasão do peregrino), os Besantes (os arautos do valor), a Flor-de-Lis (orgulho da casa de França) e os dois ramos policromados (o perfume de todas as
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6 geraldo pinho Para o programador, a segurança do público é essencial Norma lacerda 7 Arquiteta destaca a referencialidade ocupada pela sala no tecido urbano milton botler 8 Para o urbanista, há um processo de “negação da rua” que isola o cinema
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virtudes), em cujo colorido os nossos olhos descansam”. Tanto luxo exigia galhardia também de seu frequentadores. Até a segunda metade dos anos 1960, os homens vestiam seus melhores ternos para entrar no palácio da Rua da Aurora. O atual programador do São Luiz, Geraldo Pinho, lembra que, na sua primeira vez no São Luiz – aos 12 anos, em 1963, para ver La violetera, com Sarita Montiel –, ainda vivenciou esse ritual. José Luiz Mota Menezes explica que, já no final daquela década, uma série de questões urbanas e sociais propiciaram o relaxamento quanto à exigência do paletó no São Luiz. “Seu entorno começava a não oferecer tanta facilidade de estacionamento, e, como precisava de público, o espaço começou a programar títulos que atraíssem os jovens, que vinham de transporte coletivo e vestidos mais à vontade.” Para Geraldo, ele envelheceu, mas o São Luiz, não. “É um cinema moderno, desde que foi entregue ao público – e o é ainda hoje. Ele, funcionando naquela esquina, quase como uma afronta a uma cidade que é hostil a um cinema de rua. Tem transeunte ali que já me perguntou: ‘Isso aqui é um cinema mesmo?’”, recorda. Norma, que, na juventude, após uma sessão de cinema, não deixava de passar na sorveteria Gemba da Rua da Aurora, destaca que hoje é uma covardia comparar o entorno do São Luiz com as opções dos cinemas nos shopping centers. E Geraldo endossa:
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“Somos apenas um cinema. Não temos praça de alimentação, a gente oferece filmes. Estamos na rua e somos um alvo fácil. É uma casa de cultura, e todas as casas de cultura da cidade precisam melhorar a estrutura para receber seus frequentadores”, diz.
NEGAÇÃO DA RUA
Milton Botler, arquiteto urbanista e coordenador geral do Instituto Pelópidas Silveira – órgão que nasceu na atual gestão da prefeitura do Recife para “pensar o Recife do futuro” –, deixa a questão mais complexa ao explicar que, dos anos 1970 para cá, a população vem passando por um processo de “negação da rua”. “O que acontece é uma espécie de recolhimento para espaços mais segregados. E isso tem a ver com a massificação do automóvel. Daí começa o esvaziamento do centro, pois tanto o programa habitacional quanto o comércio, ali, não foram pensados para a cultura do automóvel”, diz o urbanista, que, na infância, era levado pelo tio ao São Luiz para ver desenhos de Tom & Jerry. Botler ainda aponta que, no final dos anos 1970, os cinemas de rua iniciaram um processo de perda do fluxo de público misto, que circulava pela cidade com outros fins. Processo que é consagrado com a chegada do Shopping Center Recife, quando as pessoas começam a usufruir, ali, um simulacro de espaço público. “O grande jargão dos shopping centers é ‘No parking, no bussiness’ (sem estacionamento,
sem negócio) e, de fato, a população começa a migrar para esses complexos comerciais”, diz. Para Botler, esse simulacro de espaço público oferecido pelos shoppings, com conforto, segurança e outras opções de lazer, levou ao empobrecimento do centro urbano, pois substituiu o que no passado era uma realidade das ruas. Dessa maneira, todos parecem concordar que, para o Cine São Luiz manter-se saudável por mais 60 anos, é preciso devolver esses valores ao centro. “Esse discurso de valorização do centro urbano que estamos vendo atualmente é muito recente e o cinema de rua é uma peça importante aí”, diz o urbanista. Na sua experiência de programador, Geraldo Pinho defende que segurança é o item mais desejado pelos seus atuais frequentadores. “As pessoas se inibem de ir às sessões, à noite, mas a gente sabe que, para continuar contemporâneo, o cinema também precisa se reequipar em termos de tecnologia e, claro, ter uma programação atraente.” A receita de Geraldo comunga com o pensamento de todos os outros entrevistados para a boa saúde do cinema. “Além de uma reestruturação em seu entorno, a função do São Luiz deve ser reforçada com festivais e uma programação alternativa diferenciada, até voltar a ser incorporada à vida cotidiana do Recife. A partir daí, ele vai conseguir sobreviver sem subsídios extravagantes, assim como hoje funciona o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco”, vaticinou Botler.
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MERCADO Cinema como vetor para cultura e turismo
Com investimento público, setor audiovisual vive momento de expansão, assegurando a produção de dezenas de novos filmes pernambucanos neste ano texto Danielle Romani
A produção cinematográfica
pernambucana vive uma fase vigorosa. Atualmente, oito longas-metragens encontram-se em fase de distribuição; outros dois, em circuito nacional; e mais 30 estão sendo elaborados. Performance possibilitada pela política de audiovisual implantada pelo governo estadual, que está injetando, em 2012, R$ 11,5 milhões na área. “O cinema e a TV, como atividades econômico-culturais, geram emprego e renda, agregando todas as outras expressões artísticas, como os
profissionais de teatro, música, artes plásticas e fotografia. São também responsáveis pela transmissão e recepção de símbolos e escalas em proporções universais. Um filme ou vídeo produzidos aqui contribuem para o ‘destino Pernambuco’, divulgando a cultura, o cenário e a identidade locais no Brasil e no exterior. Portanto, temos a convicção de que investir no audiovisual traz retorno e incentiva nossos valores”, diz Carla Francine, coordenadora estadual de audiovisual da Secretaria de Cultura.
O edital Funcultura Audiovisual possibilita esse ciclo virtuoso e está liberando para o período 2011/2012 a maior quantia já investida no estado. “No período 2007-2008 foram disponibilizados R$ 2,1 milhões. Em 2008-2009, foram R$ 4 milhões. Em 2009-2010, R$ 6 milhões. No ano passado, tivemos R$ 8 milhões. Os R$ 11,5 milhões deste ano são um recorde e serão destinados à produção de 24 longas, 27 curtas-metragens, 11 documentários para televisão, 36 projetos de formação, difusão e pesquisa e criação de 16 cineclubes” , contabiliza Francine. Esse aporte financeiro coloca o estado como o sexto no ranking nacional de investimentos em cinema. O campeão de desembolso para a produção audiovisual, naturalmente, é o governo federal, com a Agência Nacional do Cinema dispendendo R$ 213,5 milhões, e a Secretaria do Audiovisual, com R$ 17,9 milhões. Em terceiro lugar, vem a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro que, por meio do Fomento Audiovisual Carioca (FAC), está desembolsando, em 2012, R$ 15,2 milhões. Ela é considerada a
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divulgação
9 programação Vitrines do São Luiz trazem em destaque produções do estado 10 o rochedo e a estrela Longa de Kátia Mesel recebeu subvenção do edital do Funcultura
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maior investidora nacional por meio de edital. A Rio Filme (agência do município fluminense) é a quarta no ranking, com R$ 15,1 milhões. Em seguida, vem o BNDES, com R$ 14 milhões. Pernambuco fica em sexto, à frente de Paulínia (R$ 9,5 milhões) e até mesmo da Petrobras, que está em oitavo, com gastos de R$ 9 milhões. O levantamento foi produzido pelo site Filme B. “O cinema pernambucano integra, junto com o da Bahia, do Ceará, de Brasília, Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, o que costumamos chamar de time ‘fora do eixo’, uma vez que, dentro do eixo, estão apenas as produções paulistas e cariocas. Crescemos e damos mostra de vigor, nitidamente, a cada ano. Temos filmes frequentemente premiados – a exemplo de O som ao redor (Kleber Mendonça Filho), que ganhou quatro prêmios no Festival de Gramado, há algumas semanas– e selecionados para festivais internacionais, como Cannes, Berlim e Veneza, nos quais já ganhamos prêmios importantes”, diz Carla Francine. Diretor do Baile Perfumado, filme que projetou o cinema local em 1996, Lírio Ferreira avalia que nada “é dado de graça”, mas considera fundamental o apoio do governo do estado ao setor audiovisual. “O atual cinema pernambucano é reflexo de uma geração, de um lugar, de uma estética, mas também de uma proposta do governo de estado de assumir a responsabilidade dentro desse processo. Existe uma grande sensibilidade em relação à área. Começo a filmar o longa-
metragem Sangue azul no final do ano. Tive incentivo da Eletrobras, Petrobras, mas não teria feito nada se não fosse o Funcultura: foi ele quem primeiro liberou dinheiro para a execução do roteiro, depois para a pré-produção. Lógico que alguns ajustes precisariam ser feitos na política do audiovisual, em especial no que diz respeito ao formato dos editais. Mas o caminho é certíssimo”, apontou o cineasta. Diretor de filmes como Amarelo manga e A febre do rato, Claúdio Assis também considera fundamental o incentivo dado pelo Funcultura. Inclusive, começa a filmar uma nova história, Big jato, em janeiro, com dinheiro liberado pelo edital. “Nossa política de audiovisual é um exemplo para outros estados. O único problema é que não deveria ser um fundo, deveria virar uma lei, para que não fosse abandonado, futuramente, por outros governos que não considerem o setor uma prioridade.”
SÃO LUIZ
A decisão do governo de comprar e tombar o Cinema São Luiz, livrando-o de ter o destino das outras casas de exibição – de virar loja ou templo religioso – também é saudada por Lírio Ferreira, que recorda: o Baile perfumado, um marco na trajetória cinematográfica de Pernambuco, foi lançado nacionalmente nas suas dependências. “O tombamento foi uma coisa inovadora. Mas não basta disponibilizar a sala e baratear ingressos. Tem que se fazer uma administração melhor”, pondera.
Para Cláudio Assis, a decisão de preservar o cinema foi acertada, mas não é suficiente. “Foi bom preservá-lo, é ótima a sua existência. Embora não veja lógica em termos um cinema bonito, mas cujo maquinário não funciona corretamente, com uma péssima sonoridade e imagem: é preciso um bom som e boas máquinas de projeção. Caso contrário, é como uma caixa bonita com nada dentro”, ressalva. A coordenadora Carla Francine antecipa que, até dezembro deste ano, as queixas dos frequentadores mais exigentes serão atendidas. “Já encomendamos novos maquinários. Temos R$ 600 mil disponíveis para equipamento digital de ponta, com tecnologia 4K e 3D”, garante. A reforma esperada no entorno, entretanto, com a criação de uma área de cultural e de lazer, não tem data prevista para acontecer. “Existe, sim, o projeto para fazer o Corredor da Aurora, mas não vai ser para agora, ele está em stand by”, afirmou a representante da Secretaria de Cultura. No entanto, ela ressalta que, mesmo com algumas deficiências, o cinema vem cumprindo o papel desejado pela atual gestão, que é de possibilitar o acesso ao público de baixa renda, com entradas que custam R$ 4, inteira, e R$ 2, meia. Francine também chama a atenção para o projeto Cine Cabeça, que, diariamente, leva 500 alunos de escolas públicas para assistir a filmes no São Luiz. “Estamos formando um público cinéfilo infantil, principalmente crianças que estão em território de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Com ingressos mais baratos, damos possibilidades às classes C e D de virem ao cinema. Também, na sala, realizamos algumas mostras importantes, como o Animage, Festival de Stop Motion, Cinema Silencioso. Enfim, estamos cumprindo nossa função de preservar um espaço que é patrimônio do Recife, abrindo suas portas para a produção local e para a comunidade.”
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ANTIGAS Espaços de educação e amor ao cinema
Para manter a memória cultural coletiva, cidades ao redor do mundo vêm conseguindo resguardar, pelo menos, uma de suas tradicionais salas de exibição TEXto E Fotos Kleber Mendonça Filho
O Cine São Luiz faz parte de uma espécie de irmandade internacional de palácios de cinema que sobreviveram ao tempo. Como ocorreu no Recife com a sala antes pertencente ao Grupo Severiano Ribeiro, cidades ao redor do mundo conseguiram salvar pelo menos um desses antigos templos por um desejo de manutenção da memória coletiva e cultural. É um fenômeno curioso que une o Recife a cidades tão distantes como Lisboa, Sydney, São Francisco e Los Angeles.
Curiosamente, a média para cada cidade é a de um único palácio sobrevivente, uma amostragem quase científica do que esses lugares significaram para gerações passadas. Se existisse uma Arca de Noé dos cinemas antigos, o São Luiz e seus companheiros de geração em outras cidades do mundo estariam a bordo como exemplares salvos de uma outra era. Atualmente, Nova York prepara-se para tomar uma atitude em relação à sua última grande sala comercial, o Ziegfeld, localizado na Rua 54,
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com 1.153 lugares. A comunidade cinematográfica local mostra sinais de preocupação com um cinema não tão antigo assim (foi inaugurado em 1969), mas que não dá sinais de que irá sobreviver por muito tempo. No último Festival Internacional de Cinema de São Francisco, uma fila dava voltas no quarteirão para a exibição de três curtas de Buster Keaton no mítico The Castro, que comemora atualmente seus 90 anos. A sessão foi aberta ao som do órgão original que sobe num elevador hidráulico do poço da orquestra, diante de uma sala de décor espetacular, não muito distante dos interiores do São Luiz pernambucano. Na verdade, cada um desses cinemas guarda nas suas paredes, décor e número de assentos, uma arqueologia dos costumes das sociedades, da história das suas comunidades locais. Guarda uma ideia de espaço público e de como funcionava a própria indústria do cinema. Muitas vezes, revela as afinidades iniciais entre o teatro e o cinema nos seus portes e linhas, nos seus palcos e cortinas. Eles eram localizados em ruas, nos centros das cidades ou em bairros nobres,
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11 the castro Sala de São Francisco tem seus 90 anos marcados por mostras 12 dome Na decadência, foi tombado e virou patrimônio cultural de Los Angeles
ou antes nobres. Eram protagonistas de suas áreas urbanas, peças-chave para a valorização dos espaços públicos e agentes de socialização. Antes de uma sessão, filas nas calçadas; ao final, centenas de espectadores devolvidos à rua. Um verdadeiro senso de comunidade em espaço público aberto. Nesse sentido, é emblemático que exista no centro antigo de Los Angeles, a capital do cinema industrial, um tesouro de salas antigas que só parecem ter sobrevivido pela absoluta falta de interesse da própria cidade naquela área ainda decadente, algo que pode também explicar a sobrevivência do próprio São Luiz, no Recife. São cerca de 10 palácios clássicos (o Palace, o Los Angeles Theater, The United Artists Theater, The Million Dollar Theater...), num trecho de avenida de não mais do que um quilômetro. Há os que permanecem fechados e outros em fraco funcionamento; ou ainda outros transformados precariamente em lojas, ou na brasileira Igreja Universal. Muitos deles foram tombados, mas sem projetos de revitalização. Um museu a céu aberto das relações que
antes existiam entre o cinema e a rua, numa área da cidade muito usada como locação de grandes filmes como Mulholland drive, de David Lynch, ou Blade runner, de Ridley Scott. Hoje, no mundo moderno, essa relação entre o cinema e a rua foi tomada pela iniciativa privada, através dos shopping centers. Estamos na era dos não lugares, espaços comerciais que canalizam clientes em direção às compras, dando-lhes uma simulação padronizada (e de perfil privado) de um novo espaço comum. A sobrevivência dos grandes cinemas antigos geralmente guarda um mesmo roteiro nervoso, às vezes através de décadas. Em geral, as salas entraram em decadência junto com os seus arredores e centros urbanos. Alguns exibiram pornôs por um tempo, outros, filmes de segunda linha e reprises. O medo da extinção vem primeiro através de uma reforma, em que o espaço original é subdividido em salas menores, mutilação que matou o Roxy de Copacabana, no Rio, ou o Odeon Marble Arch, em Londres. A simples demolição, via especulação imobiliária, é quase sempre certa, após a constatação de que a exploração comercial dos espaços já não faz mais sentido. Essas grandes salas são três ou quatro vezes maiores do que as consideradas “salas grandes” de um multiplex, atualmente com não mais do que 400 lugares. Foram projetadas e dimensionadas num outro tempo, quando o acesso a imagens em movimento era exclusivo do cinema e a frequência semanal chegava aos 30 ou 40 mil espectadores, que esgotavam um ou dois mil assentos por sessão. Não é difícil, por exemplo, ver o São Jorge, em Lisboa, inaugurado em 1950, e imaginar os milhares de espectadores que frequentaram a grande sala, algo perceptível nos enormes banheiros com dezenas de mictórios projetados para receber espectadores nos intervalos entre sessões. O São Jorge foi salvo, mas mutilado. Sofreu uma reforma que o dividiu em três (nos anos 1980), restando intacto o enorme balcão como sala principal. Sua grande plateia deu lugar a duas novas salas, na parte inferior. As três salas são hoje administradas pela Câmara Municipal de Lisboa, que reequipa o espaço com projetores
digitais que logo irão aposentar os equipamentos 35mm. É um espaço dedicado à programação alternativa, mostras e festivais, sem a pretensão de concorrer com os multiplex. Esse perfil, em linhas gerais, tem muito em comum com a trajetória e vocação recentes do São Luiz pernambucano, que também passa por processo de aquisição de novos equipamentos. Na verdade, ao sobreviverem, essas salas seguem um mesmo roteiro. No auge da decadência, são tombadas, viram patrimônio cultural, como aconteceu com The Castro, o State Theatre de Sydney, o Cinerama Dome, em Los Angeles, e também com o São Luiz. Isso exige visão política de preservação e um projeto de cultura
Em Los Angeles, capital da indústria cinematográfica, salas sobrevivem pelo desinteresse nas áreas onde se localizam que custará dinheiro. É essencial que a área urbana nos arredores seja valorizada pelas prefeituras. Há também a compreensão de que esses espaços não terão valor comercial, mas cultural. O roteiro para esse tipo de espaço também define que esses palácios serão transformados em salas de referência técnica e de programação, vitrines luxuosas para o próprio cinema e para a cultura, um endereço certo em que o público terá uma experiência cinematográfica especial, distinta da norma atual imposta pelos multiplex. As programações especiais de cinema parecem sempre dar uma piscada de olho para o passado, como a extraordinária agenda de filmes modernos e antigos do Castro, exibidos com excelência técnica em todos os formatos da exibição cinematográfica, do 35mm e 70mm a projeções em digital 4K. São espaços de educação e amor ao cinema como arte e forma de expressão, mantendo ainda viva a memória de toda uma comunidade e cultura locais. Para o São Luiz pernambucano, numa cidade rica culturalmente como o Recife, o caminho deve ser esse.
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BERLIM Cinemas que guardam a identidade urbana
Salas de exibição na capital alemã resumem influências sociais e políticas e guardam a efervescência das estreias de clássicos do século 20 TEXto E FOTOS André Dib
É possível conhecer uma cidade através de seus cinemas. Em Berlim, isso emana de antigos palácios, redes comerciais e pequenas salas independentes, um conjunto de quase 200 pontos de exibição de filmes que reflete mudanças complexas, algumas ainda em processo, como a condição de cidade dividida pelo muro soviético
para a de um dos maiores centros do capitalismo contemporâneo. Inaugurada em 1963, a Kino International talvez seja a sala que melhor represente esse contraste. Por quase três décadas, o cinema oficial do regime comunista, situado na Karl Marx Allee, foi a sede das grandes estreias. Ali também trabalhavam, no
subsolo, os funcionários da censura. O muro caiu e, hoje, ironia do destino, o International faz parte da Yorck Kinogruppe, rede que evitou a falência de vários cinemas de rua ao padronizar a programação com lançamentos comerciais, em sua maioria, norte-americanos. Entre outras salas históricas administradas pela Yorck estão o Paris Cinema, o Delphi Filmpalast, o Kant Kino e o Babylon. Os dois primeiros ficam em Charlottenburg, centro da antiga Berlim Ocidental e antigo reduto da burguesia alemã. Já o Babylon, inaugurado em 1929 na Rosa-Luxemburg Strasse (em frente ao teatro Volksbühne, onde se formou Bertold Brecht), mantémse fiel às influências humanistas, recebendo mostras de cinema mundial e apresentações especiais, como a homenagem com música ao vivo em memória de Nosferatu,
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13 delphi Sala fica em Charlottenburg, centro da antiga Berlim Ocidental 14 babylon Inaugurado em 1929, recebe mostras internacionais 15 kino central Nos intervalos das sessões, cinéfilos se encontram no Café Cinema
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clássico do expressionismo alemão que completa 90 anos, este ano. No Potsdamer Platz, estão as salas tecnologicamente superiores, como as da rede CineStar (Sony Center) e o Cinemaxx. Região devastada pela Segunda Guerra, abandonada durante a Guerra Fria e, na última década, redesenhada como ícone do capitalismo megacorporativo, no qual se afirma a nova Berlim, o Potsdamer Platz foi o local eleito para abrigar o Berlinale Palast, complexo especialmente construído para o Festival de Berlim e que, uma vez por ano, se torna a maior referência em termos de conforto, tamanho de tela e projeção cristalina. Anualmente, a Berlinale também se apropria do Friedrichstadt Palast, luxuoso palco dedicado a espetáculos de dança, que, equipado apropriadamente, se transforma em espaço de
Salas como o Paris Cinema, Delphi, Kant Kino e Babylon situam-se no antigo reduto da burguesia de Berlim Ocidental excelência, como foi a sessão de Taxi Driver, de Martin Scorsese, restaurado em digital 4K. Também no Potsdamer Platz, a Deutsche Kinemathek tem uma programação de clássicos, como a mostra Fritz Lang, legendário diretor de Metropolis. No entanto, nada supera a experiência de frequentar as pequenas salas alternativas, encontradas principalmente em redutos ideologicamente libertários, de diversidade étnica e cultural, como nos bairros de Kreuzberg,
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Friedrichshain, Schöneberg e Neukölln. No Eiszeit, por exemplo, pude assistir a Jimi & das Fehmarn Festival, documentário sobre a influência de Jimi Hendrix, que se apresentou em Hamburgo e deixou marcas na cultura local. De inspiração anarquista, no Regenbogen Kino é possível deixar as crianças no playground durante a sessão. E, se sua bicicleta quebrar, basta pagar um euro para usar a oficina ao lado. No Kino Central, após o filme, vale conhecer o Café Cinema, contíguo à sala. Além do bom cardápio e decoração, é um tradicional ponto de encontro para cinéfilos e afins. Esse é apenas um recorte, entre tantos possíveis, ao explorar o circuito de cinemas de Berlim, cuja diversidade permite revelar não somente filmes inesperados, mas as diferentes faces de uma cidade.
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reprodução
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História
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CORPO Repousa aqui tuas madeixas...
1 anos 1960 Perucas surgem no mercado com o conceito de praticidade
Publicação remonta a trajetória dos cortes e penteados, ao longo dos séculos e em diversas culturas, para rever o importante papel social dos pelos que cobrem a cabeça texto Olivia de Souza
“Não passa um dia sem que pense
no cabelo. Se deve cortar muito, pouco, cortar logo, deixar crescer, não cortar mais, raspar, rapar a cabeça para sempre. Não existe uma solução definitiva. Está condenado a lidar, volta e meia, com o assunto. Assim, escravo do cabelo, quem sabe, até bater as botas.” No primeiro parágrafo de História do cabelo (Cosac Naify), o mais recente romance do argentino Alan Pauls, somos apresentados a um personagem cuja vida gira em torno dos fios de sua cabeça. Totalmente obcecado pelo corte perfeito, o homem vaga de salão em salão em infinitas tentativas e divagações sobre os melhores produtos capilares e penteados. As reflexões do personagem, a princípio bastante superficiais, aos poucos revelam os verdadeiros simbolismos por trás dos fios, com estilos vinculados a questões sociais, como o loiro liso representando a burguesia, e o afro como símbolo de rebeldia. Preto, branco, colorido, liso, crespo, cacheado, raspado, trançado, solto, amarrado. Não importa sua disposição, o fato é que eles estão longe de serem ligados unicamente às aparências e vaidades. Considerados a parte do corpo humano que mais passa por mudanças culturais, os cabelos dão um enorme significado à construção da identidade
pessoal, além de oferecer pistas sobre o contexto da sociedade em que vivemos, em diferentes épocas. Em seus primórdios, a espessa cabeleira era utilizada pelos homens como um artifício para se diferenciar de outras espécies. Basta observar a Vênus de Willendorf (25000-20000 a.C.) ou a Vênus de Brassempouy (aproximadamente 23000 a.C.), famosas estatuetas do período paleolítico, e mesmo artefatos arqueológicos: pinças depilatórias e cosméticos como o gel de cabelo, encontrado nos moicanos e topetes das múmias celtas de Clonycavan, na Irlanda, povo que há 2.300 anos utilizava uma mistura de óleo vegetal e resina de pinho para fixar os penteados. Assim como as unhas, cascos, plumas e chifres, cabelos possuem queratina em sua composição, uma proteína insolúvel e extremamente resistente ao tempo, o que faz com que eles continuem a crescer, mesmo após a morte do indivíduo. Essa característica é considerada, por muitas civilizações, um símbolo de ressurreição, tendo feito muitos povos temerem os fios de cabelo separados das pessoas, por acreditarem numa suposta conexão com o sobrenatural. Até os dias de hoje, o costume de guardar mechas de recém-nascidos e de pessoas mortas é reflexo dessa crença.
O entendimento de que os cabelos poderiam adquirir sentidos muito maiores que o simples modismo levou a jornalista e pesquisadora em moda, beleza e comportamento, Leusa Araújo, a escrever o Livro do cabelo (Editora Leya), sua segunda publicação de não ficção depois de Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo, de 2005. Com fundamentação teórica baseada em estudos acadêmicos sociológicos e antropológicos, além de referências a filmes, novelas, músicas e afins, o livro, um verdadeiro almanaque sobre o tema, é resultado de seis anos de pesquisa sobre o assunto, registrando histórias e diversos simbolismos. “Fazia tempo que eu achava o discurso da moda sobre esse tema muito preso ao penteado e às tendências de momento, como se não houvesse uma longa história por trás desses fenômenos culturais e sociais. Me senti definitivamente encorajada ao ler Uma história do corpo na Idade Média, de Jacques Le Goff e Nicolas Truong, quando os autores dizem que ‘fenômenos culturais e sociais intimamente ligados ao corpo estão em estado bruto para a pesquisa histórica: a cabeleira, o bigode, a barba’”, revelou. Muitos povos consideram que o ritual de cortar o cabelo (também conhecido como tonsura), tanto em homens quanto em mulheres,
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requer cerimônias especiais, podendo representar uma mudança de status dentro da comunidade. É o caso do povo indígena gorotire, da tribo dos caiapós, que evocam mitos fundadores como o do herói Bebgororóti, primeiro tonsurador do grupo. Antes da chegada dos portugueses, as mais de 300 nações indígenas que por aqui viviam exibiam uma variedade imensa de cortes e maneiras de raspar o alto da cabeça, costume que foi sumindo ao longo do hostil processo civilizatório europeu, culminando num intercâmbio cultural entre as tribos, que uniformizou a aparência do índio à sua imagem mais conhecida, o cabelo negro, escorrido, com corte redondo, ou curto – ao estilo jesuíta. Para a maior parte dos rituais religiosos em diferentes épocas e lugares, ter os cabelos grandes, raspados ou cortados promove a separação entre sagrado e profano, ou marca a passagem de diversas etapas da vida: nascimento, infância, puberdade, vida adulta, casamento, morte. O estilo raspado dos monges tibetanos, por exemplo, ajudaos a focar a nova vida espiritual. Livre dos
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Para algumas religiões, ter cabelos grandes, raspados ou cortados promove a separação entre o sagrado e o profano cabelos, chamados por eles de “capim ignorante”, os budistas podem praticar o exercício da humildade e do desapego às aparências. Apesar de seguirem a mesma premissa, certas religiões fazem exatamente o contrário: cabelos sem restrições para crescer, como prova de se libertar das vaidades corporais. É o caso dos judeus hassídicos, que adotam grandes cachos nas laterais (peot) e barba comprida, assim como os siques indianos e os rastafáris. Bastante celebrado em países como China e Bolívia – onde o costume perdura desde a época pré-colombiana –, bem como em inúmeras tradições, cortar o cabelo de crianças e recémnascidos marca o início do processo de constituição da própria identidade.
No caso dos índios caiapós, no Brasil central, o tamanho dos cabelos indica o estado reprodutivo do indivíduo. Os bebês permanecem com o cabelo longo até o desmame, após isso, os garotos os mantém curtos até a puberdade, e as garotas até o nascimento do primogênito. Daí, então, homens e mulheres os conservam compridos. “Os membros das sociedades tradicionais expressam, por meio do cabelo, assim como de outras marcas corporais, não apenas seus próprios valores, mas acompanham o depoimento coletivo de toda a sua linhagem ancestral. Enquanto, nas sociedades contemporâneas, a aparência dos cabelos demonstra cada vez mais um exercício de identidade”, explica Leusa. Em algumas sociedades, cortar ou raspar os cabelos em público é considerado um dos piores atos de punição. O escalpelamento talvez seja sua forma mais extrema. Originalmente indígena, a prática – famosa nos westerns norte-americanos e registrada em batalhas durante a Segunda Guerra Mundial – consiste em arrancar o couro cabeludo do inimigo, sinalizando a submissão e a derrota do adversário.
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2 SANSÃO E DALILA O clássico bíblico associa os cabelos à força e sedução ANTES DA COLONIZAÇÃO 3 Índios brasileiros exibiam diversidade de cortes e tonsura religião 4 No Budismo, cabelo raspado expressa desapego e humildade
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À época, cerca de mil jovens francesas tiveram os seus cabelos raspados em público, nas ruas de Paris, em 1944, sob acusação de terem mantido relações sexuais com soldados alemães durante a ocupação nazista. A punição permanece nos dias de hoje. Registros desde a década de 1980 revelam moradoras de favelas cariocas que são julgadas diariamente pelo “código penal” do tráfico, por condutas como traição, brigas, rompimento de namoro, entre outros “delitos”. Nas periferias brasileiras, onde ter cabelos longos e lisos é unanimidade entre as mulheres, raspar a cabeça, além de descaracterizálas, é sinal de humilhação.
MULHERES E HOMENS
As tranças de Rapunzel, os fiosserpentes da Medusa, ou sereias encantando os homens no simples pentear dos seus cabelos. Estas são referências de que, em diversas sociedades, por tradição, cabelos soltos e compridos são considerados atrativos sexuais e símbolos de fertilidade, ao passo que fios curtos ou amarrados simbolizam a “indisponibilidade” das
matriarcas, a retidão como sinal de seu caráter. Basta observar as fotografias familiares antigas, mostrando mulheres com seus cabelos repartidos ao meio e presos em coque. Motivada pela indústria do cabelo, a enorme variedade de penteados, tinturas e cortes voltados para mulheres nem sempre fez parte da história, marcada por fortes proibições e tabus, que representavam sua inferioridade em relação aos maridos, que deveriam consentir qualquer mudança feita em seu visual. À medida que nos aproximamos das histórias religiosas, percebemos que o cabelo é um dos principais símbolos da sedução feminina. O clássico bíblico de Sansão e Dalila é o que melhor sintetiza a relação do cabelo entre os dois sexos. A força e a virilidade masculina representadas pelos cabelos de Sansão definiram os nortes que os fios representariam para os homens a partir de então. Os cabelos grandes foram marca registrada de guerreiros, nobres, reis e imperadores durante os séculos de domínio da civilização europeia cristã, mesmo sob forte oposição do clero.
Se, por um lado, a aparência do cabelo feminino sempre esteve ligada à regulamentação dos homens, os pelos masculinos, durante boa parte de sua história, estiveram submetidos à ordem superior dos governantes e dos exércitos, a exemplo de Alexandre, o Grande, no século 3 a.C., que ordenou aos seus soldados que tirassem a barba, com receio da possibilidade de eles serem arrancados dos cavalos por seus adversários. Os militares brasileiros, até hoje, são proibidos de ter outro corte que não o específico dos pracinhas, diferente dos oficiais e feito com máquina 2, devendo ser renovado a cada 10 dias. A quebra dessa norma é considerada transgressão disciplinar. “De fato, é impressionante como a aparência requer aceitação pública. E isso mostra o quanto o comportamento, conforme as regras sociais, é sinônimo de ‘conformação’. Só mesmo um mundo multiculturalista e mais tolerante para conviver com a diversidade de aparências, sem poderes dominantes”, afirma Leusa Araújo. Motivados pelo movimento da contracultura na década de 1970, que levou a uma discussão mais extensa sobre a divisão de papéis e desigualdade entre os sexos – com os cabelos desempenhando papel fundamental –, o unissex passa a ser incorporado ao comportamento de homens e mulheres, seja no uso das roupas, seja na prática dos esportes, mas, principalmente, nos cortes dos cabelos. Mulheres passam a usar em seu cotidiano cortes mais curtos, homens adotam os cabelos compridos. Porém a revolução de costumes havia começado antes. A “tesourada do século”, dada pelo cabeleireiro parisiense Antoine, em 1917, elevou Paris ao centro da moda mundial. O Livro do cabelo aponta que o movimento é indissociável do contexto da Primeira Guerra, que deixou mulheres à mercê dos próprios recursos. “Ganha as ruas, bebe e fuma em público, e passa a realizar trabalhos considerados masculinos. Está em busca de uma vida mais livre e de participação política. Além
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disso, a guerra provocou a escassez de produtos de higiene e do tempo dedicado aos cabelos.” Nesse contexto, em detrimento dos coques altos e chapéus frondosos, é adotado um estilo de corte e penteado mais livre e menos trabalhoso. Entram as roupas confortáveis, os penteados chanel – tendo a estilista Coco Chanel como símbolo –, e os cortes à la garçonne (curtos, lisos e com franja). Antes mesmo da revolução de comportamento, que deu o tom aos valores ocidentais do século 20, o cabelo já podia ser considerado um símbolo de enfrentamento. Os hippies cabeludos dos anos 1970 não foram os primeiros a demonstrarem sua insatisfação com o sistema. Na China, durante o Período Manchu, um camponês convertido ao cristianismo, chamado Hung Xiu-Chuan, liderou um levante camponês (1850-1864) que reivindicava a posse comunitária da terra. A maior característica desses rebeldes eram os longos cabelos despenteados, uma verdadeira afronta aos costumes da Dinastia Qing, que mandava decapitar quem não adotasse o bianzi, o penteado oficial – testa raspada, com rabo de cavalo no topo. Sob o lema do “Faça amor, não guerra”, os hippies norte-americanos, com seus cabelos, barbas e pelos crescendo livremente, opunham-se à
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5 dreadlocks Apesar de secular, penteado ganhou fama com Bob Marley
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barba feita ainda predominam na corporações em todo o mundo – é a aparência estabelecida no longo poderio ocidental, do mundo branco, judaico-cristão.
tintura para cabelo 6 Do início do século 20, anúncio francês exibe chancela de médicos
política apoiada no consumo e na guerra dos Estados Unidos. O comportamento ditou os costumes e a moda em muitas partes do mundo. À mesma época, surgia a Tropicália no Brasil, movimento que mais se aproximou dessa cultura, revolucionando a música popular brasileira. Já marchinhas carnavalescas, como Cabeleira do Zezé (1963), escancaravam a forte oposição e preconceito que cercavam os cabeludos. A história do cabelo negro merece um capítulo à parte. O longo processo de descaracterização a que foram submetidos os escravos africanos, por quase quatro séculos, aliado às péssimas condições de vida e aos maus-tratos, prepararam o que talvez seja, até os dias de hoje, uma das mais simbólicas formas de enfrentamento refletidas nos cabelos, como o black power de 1960-70, nos EUA, e os dreadlocks rastafáris, na Jamaica. A raspagem dos cabelos dos escravos africanos, feita pelos colonizadores, era a primeira etapa da desculturação das tribos, processo que continuava nas colônias, em que se criavam estruturas sociais de acordo com o cabelo e o tom da pele. Negros mais claros recebiam maiores regalias que os mais escuros, a quem eram destinados os trabalhos mais pesados. Com isso, era fácil odiar ser negro, internalizando o pensamento de que ter cabelo crespo e pele escura era ser menos atraente e inteligente. Exatamente o que os senhores brancos queriam, uma forma de evitar levantes. Leusa cita uma frase da escritora norte-americana Alice Walker, uma das defensoras do cabelo negro ao natural, que revelou, com isso, abrir-se a uma nova etapa para seu autoconhecimento: “Finalmente, descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. (…) O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim”.
Entrevista
LEUSA ARAÚJO “a aparência pede aceitação” Escritora e jornalista
especializada em moda e comportamento, Leusa Araújo estreou na literatura em 1994. O Livro do Cabelo é seu segundo livro de não-ficção junto com Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo, publicado em 2005. É editora e pesquisadora dos livros de Glória Kalil, e atualmente trabalha como pesquisadora de núcleo de teledramaturgia. Na entrevista a seguir, a autora conta sobre sua incursão no tema, fala sobre o cabelo como forte símbolo de identidade e como ele sempre esteve ligado à regulamentação de instituições superiores.
CONTINENTE Por que o modo de pentear/ cortar o cabelo sempre esteve tão ligado a uma “ordem superior”? LEUSA ARAÚJO Incrível. Essa pergunta é quase o mesmo que investigar a razão pela qual os homens vivem sob o poder de reis, ditadores, ou mesmo sob o poder do Estado. De fato, é impressionante como a aparência requer aceitação pública. E isso mostra o quanto o comportamento conforme o establishment é sinônimo de “conformação” – no sentido de ter uma forma pré-estabelecida. Homens de cabelos curtos e
CONTINENTE Por que perder os cabelos descaracteriza tanto? LEUSA ARAÚJO Durante séculos, o tipo de penteado usado funcionou como uma espécie de documento de identidade: uma declaração de pertencimento das pessoas a determinado sexo, grupo, idade, religião, profissão e posição ocupada dentro da comunidade. Pensando dessa forma, o cabelo raspado de forma involuntária estará sempre associado ao desejo de apagar identidades pessoais, étnicas e religiosas. O cabelo raspado nos navios negreiros, nas prisões, nos campos de concentração – sob a máscara da higienização – é, na minha opinião, um ato desumanizador. A primeira coisa que o mercador fazia, depois de arrancar o escravo de sua família, era raspar-lhe o cabelo, como forma de submetê-lo à nova condição e, sobretudo, de apagar aquele que era o traço mais marcante da identidade do africano: o penteado. CONTINENTE Por que a história do cabelo é tão marcada pela intolerância aos considerados “despenteados”? LEUSA ARAÚJO Se entendermos que a aparência “conformada” significa estar de acordo com os valores do sistema– qualquer movimento que coloque esses valores em cheque vai lançar mão da aparência para isso. Os cabeludos chineses (da Revolução Taiping, de 1850-1864) já o fizeram um século antes dos cabeludos hippies em relação ao modo de vida do branco, americano, de cabelo escovinha a caminho do Vietnã. Para entender a ousadia dos rebeldes chineses, lembre-se de que a etnia manchu, durante o longo período em que dominou China (1644-1911), mandava decapitar os chineses que não usassem o bianzi (um rabicho) no topo da cabeça, como sinal de submissão ao governo.
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Discursos antigos
matéria corrida José Cláudio
artista plástico
Não sou nenhum oráculo, bem sei,
mas noto alguma expectativa sobre o que penso dos pintores de casa, das exposições que ocorrem no Recife, tendo até obrigação, até certo ponto, de tocar nesse assunto, já que ocupo essas páginas de generalidades e sabendo-se que pintar quadros tem sido minha atividade principal “há muitos e muitos anos”: a idade permite o uso da expressão mesmo que, para nós, idosos continuem sendo os outros. Até de menos idade às vezes. Mas há essa ilusão de a idade nos dar certa credibilidade. Muito discutível, admito. Vejamos três ou quatro exposições de pintores abstratos, digamos, para simplificar. De peso: Gil Vicente, Raul Córdula, Roberto Lúcio e Carlos Pragana. Estes sim, artistas de grande credibilidade, com um currículo que se impõe, e é uma honra para o Recife poder contar com três exposições desse
nível simultâneas, de individualidades distintas, de impecável seriedade e de artistas que aqui militam e residem, fazendo parte de nossas vidas, enriquecendo-nos numa grandeza incomensurável, um patrimônio nosso que deveria ser preservado a todo custo, defendido com unhas e dentes, pedindo eu perdão por esses arroubos, a que não pretendia chegar e nem são do meu feitio, mas sem um pingo de exagero. Quanto à discutível credibilidade do idoso, do velho, seja lá o termo que queiram empregar, o fato de ter presenciado o nosso movimento artístico desde l952, aos 20 anos, que foi quando larguei tudo para me dedicar à pintura, justamente essa antiguidade me torna suspeito para falar do assunto, sem a necessária pureza de quem não carrega o peso dos anos. Independentemente da luta ideológica que se travava entre pintura figurativa e pintura abstrata, e ainda por cima entre uma pintura
responsável ou comprometida ou engajada e outra alienada, como se dizia na época, de um lado o sentimento nativista e do outro o cosmopolitismo desfibrado e entreguista, questões que o tempo se encarregou de superar, acontece que já àquela altura, década de 1950, a pintura abstrata, em todas as suas vertentes, seja a geométrica ou o seu oposto, o tachismo, a pintura ótica e a polimatérica, para dividi-la em alguns grandes grupos pelo menos quanto ao seu aspecto exterior da apresentação ou aparência visual, sem falarmos do aspecto conceitual, já tinha em linhas gerais cumprido o seu curso, já estava sendo dicionarizada. O livro Art Abstrait, ses orgines, ses premiers maîtres (Arte abstrata, suas origens, seus primeiros mestres) de Michel Seuphor foi publicado em Paris em 1949. Nessa mesma década de 1940, Cícero Dias, para citar um brasileiro, praticava a pintura abstrata. As primeiras pinturas murais abstratas da América
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1 carlos pragana érie Desconstrução, S 90 x 180cm
2 roberto lúcio C artazes 40, 41 e 43, fotografia sobre tela, 180 x 300cm, 2012
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Latina foram pintadas aqui em 1948 por esse nosso conterrâneo nascido em Escada (1907-Paris, 2003). Hoje estamos livres dos ranços do passado, discursos antigos, contabilidade de datas como corrida para ver quem chegou primeiro, como se a história da arte se resumisse a um livro de recordes, uma forma de cada um proclamar a sua superioridade, um tipo, em última análise, de intolerância ou racismo, o velho vale-tudo (ou MMA) da competividade, a histeria do novo que chegou ao ponto de alguns artistas se proporem o suicídio físico pelo fogo ou pelas mutilações como supremo valor estético. Sei e deploro. Mas, por
3 gil vicente eometria 17, óleo G
4 raul córdula omposição, tinta C
sobre tela, 74,5 x 97,8cm, 2012
acrílica sobre tela, 80 x 100cm, 2007
Hoje estamos livres dos ranços do passado, como se a história da arte se resumisse a um livro de recordes outro lado, por defeito de nascença ou de geração, fruto das guerras, da bomba atômica, de Abelardo da Hora, apesar de toda a capacidade de aceitação que nos trazem os anos, não escapo desses meus aleijos, não consigo deixar de ver a nossa pintura abstrata atual
como uma espécie do que em moda se chama revival (“riváivol”, n’é, Joca?), rejuvenescimento, não enxergando uma renascença em caminho, uma pintura que o mundo nunca tenha visto, o que artistas da importância, da seriedade de Pragana, Córdula, Gil, Lúcio estão aí a bradar às minhas oiças meio entupidas pelo cerume: em arte, nada morre. “Tomara que essa arte tenha defeitos, assim como as pessoas, então a personalidade da obra ficará mais interessante. Estou escrevendo isso em agosto de 2010 e não sei como será em junho de 2012” (Pragana). Eu estou escrevendo em julho de 2012 e não sei como será em agosto de 2013.
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BOTERO Reforço crítico para uma obra hedonista
Conhecido por suas figuras corpulentas, artista colombiano cria série de pinturas em que a lascívia cede ao julgamento social TEXto Olívia Mindêlo
Boa parte do imaginário construído em torno da América Latina deve-se às narrativas, às frases, às pinceladas e aos versos deixados, ao longo dos últimos séculos, por artistas, historiadores e cientistas sociais. São eles e outros que, de alguma maneira, contribuem para intermediar – ou tensionar – uma compreensão de quem somos “nós”, sem que isso resulte numa única verdade, tampouco tenha a ver com um estereótipo. No território das artes plásticas, o pintor, escultor e desenhista colombiano Fernando Botero é, provavelmente, um dos nomes mais representativos nesse sentido, muito
embora haja em suas criações visuais um DNA europeu que vai dos fios de cabelo até os dedos gordos dos pés de suas figuras. Artistas como Frida Kahlo, Diego Rivera, José Clemente Orozco e, no caso brasileiro, Cândido Portinari, Vicente do Rêgo Monteiro, Tarsila do Amaral e tantos outros, decerto, estão em patamar semelhante de representatividade. Ou até mais, se considerarmos a busca identitária que marca o fazer artístico dos modernistas aos quais Botero não se filia tão diretamente. No entanto, poucos gozam da mesma popularidade do colombiano, cujo trabalho
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1 MASSACRE NA COLÔMBIA Violência, desolação e morte, que não escolhem sexo ou idade MÃE E FILHO 2 Despidos de qualquer tecido, esqueletos exibem a miséria, espreitada por um urubu
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é conhecido em todos os continentes e trafega, até hoje, entre os principais museus dos grandes centros de arte do mundo e suas lojinhas de suvenires. Sendo assim, parte da percepção que muitos têm da “Latinoamérica” foi largamente intermediada pelo olhar do artista, sobretudo quando ele era um dos poucos nomes “exóticos” das bandas de cá, habitando Nova York, em plena década de 1960. Curiosamente, poucos o conhecem no Recife, que recebe até o dia 9 de setembro, no Instituto Ricardo Brennand (IRB), esta que é a primeira exposição individual de Fernando Botero na cidade. Marcada pela abordagem social e política da violência que tomou o
seu país nas últimas décadas, com a guerra ligada ao narcotráfico, Dores da Colômbia parece reunir todas as expectativas relacionadas à chamada “arte latino-americana”, ainda que a história da nossa produção artística vá muito além de um espírito combativo de ex-colonizados com fome de justiça – seja na literatura, no cinema, no teatro, na dança ou nas artes visuais. No entanto, tratase de um conjunto de pinturas e desenhos que ajuda a reforçá-lo como um nome preocupado com as questões de sua terra de origem, não obstante esse seja um elemento mais diluído ao longo de sua trajetória. Um outro ponto curioso é que, depois de circular por várias capitais
do Brasil, os 67 trabalhos chegam ao IRB como uma verdadeira exceção na carreira desse artista de 80 anos, comemorados em 2012. Exceção mais nos motivos e menos na estética. As suas inconfundíveis figuras rechonchudas estão lá. Mas, em vez de tirarem o sutiã para o parceiro que dorme acuado debaixo do edredom, suas personagens gritam o horror de perder um filho inocente ou simplesmente são corpos jogados para deleite dos urubus. “Sou contra a arte como arma de combate, mas em vista do drama que atinge a Colômbia, sentia a obrigação de deixar um registro sobre um momento irracional de nossa história”, procura justificar Botero, numa das frases que estampam as paredes da exposição, ajudando também a atestar a importância das obras que ali estão. Todas, aliás, foram doadas pelo artista ao Museu Nacional da Colômbia, responsável pelo projeto de itinerância que chega à capital pernambucana. Entre as imagens da mostra, há também caveiras que ora assombram as vítimas, ora atestam a miséria política colombiana, como na tela Viva la muerte (2001). A composição traz como emblema um esqueleto sentado entre caixões, vestindo a faixa presidencial colombiana. Com aspecto semelhante, outro quadro apresenta uma mãe esquelética que nina sua criança igualmente cadavérica, enquanto um urubu repousa sobre seu ombro. A pintura chama-se Madre e hijo, um óleo sobre tela de 2000. É interessante observar que as caveiras, assim como a própria exposição, funcionam como um contraponto às suas criaturas obesas. Também são elementos que dialogam bastante com os motivos que marcam o imaginário latino-americano abordado, de forma mais recorrente, pela pintora mexicana Frida Kahlo.
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Conhecido culturalmente por dar à morte, digamos, um caráter mais pitoresco, principalmente através das populares figuras das caveiras, o México foi, aliás, um dos lugares onde Botero viveu, logo depois de retornar de quase quatro anos na Europa, nos anos 1950. Já com o acúmulo das referências europeias e, logicamente, colombianas, o artista não se identificou, de imediato, com a pintura modernista de Kahlo, Rivera, Orozco e Siqueiros, segundo conta Mariana Hanstein, no livro Botero (Taschen). No entanto, herdou deles o gosto pela amplitude das figuras, ocupando quase toda a área da tela, e a inspiração na arte popular como uma maneira de buscar uma linguagem mais desgarrada dos padrões europeus, embora esses também estejam impregnados em sua obra. Nesse sentido, Fernando Botero não se mostra um artista “tipicamente”
Botero já afirmou que coloca humor em suas telas para que as pessoas “levem as suas informações a sério” modernista, no sentido classificatório, histórico. Contudo, ao sintetizar na sua arte uma alma naïf com uma habilidade técnica para a pintura e o desenho, seu espírito se coloca totalmente sintonizado aos nomes da América Latina que ajudaram a conceber uma marca para a nossa produção artística no século 20. Essa mesma, tão reconhecida pela figuração e pelas cores, e por poéticas que não tendem a tratar a realidade com distanciamento. Isso vale, mesmo se considerarmos que
Botero encontrou em pintores do renascimento italiano, como Giotto, Piero della Francesca e Paolo Uccello suas grandes fontes de formação, enquanto esteve na Itália. A pintura modernista tem como marca um discurso de oposição aos paradigmas clássicos, nos quais os renascentistas se inserem. Todavia, sendo o colombiano também um estudioso de Pablo Picasso e de outros nomes da história da arte, sua relação com tudo isso se processa numa atitude tipicamente moderna, que resvala para sua criação. Não é à toa que, em vez de reproduzir muitas telas de seus “mestres”, ele preferiu refazêlas a partir de seu próprio estilo, o que confere a quadros como Mona Lisa com 12 anos (1959) a mesma carga sarcástica do bigodinho e cavanhaque colocado por Marcel Duchamp na figura mais famosa de Leonardo Da Vinci, por meio da obra-paródia LHOOQ (1919).
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3 HOMEM NA RUA Obra de 2001 transporta para a natureza o gigantismo outrora presente nos corpos 4 MULHER VESTINDO O SUTIÃ Tema e formas da pintura de 1976 sintetizam a obra do colombiano
Tanto que a pintura foi escolhida para representar a Colômbia na Bienal de São Paulo, de 1959. Embora o caráter dessacralizador não seja uma característica relevante na obra de Botero, tanto quanto na do dadaísta francês, suas releituras de pinturas canônicas soam sempre bastante irônicas. Esse ar bem-humorado, digamos assim, deve-se talvez à imagem que os próprios gordos, sempre tão recorrentes em seu trabalho, suscitam no senso comum, muitas vezes de maneira estereotipada. Mas não há como negar a existência, nas figuras do artista, de uma serenidade que parece querer deixar escapar um sorriso no canto da boca, como se estivessem zombando de nós, da vida, do mundo. Mesmo quando ele pinta a violência colombiana. O artista já afirmou certa vez, em uma de suas entrevistas, que coloca humor em suas telas para que as pessoas “levem as suas informações a sério”.
LAS GORDITAS
Embora seja quase uma unanimidade que Fernando Botero é “o artista” das figuras gordas, rechonchudas, redondas, volumosas, generosas, ele não as vê assim. E é categórico quanto a isso: “Não pinto pessoas gordas”, responde frequentemente, quando questionado sobre o porquê de retratar “pessoas gordas” – pergunta que todos realmente fazem, no Recife, em Paris ou em Bogotá. E não, não é porque Botero seja gordo. Ele não é. Para Mariana Hanstein, não são apenas as figuras que são gordas, mas todos os elementos da pintura. Até as frutas de suas naturezas-mortas.
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Como se Botero visse o mundo com certo exagero, pela ótica das curvas fartas, da deformação como princípio estético. Essa perspectiva é também, em parte, debitária das influências dos pintores renascentistas italianos, como lembra Hanstein, e não é à toa que ele “se encontrou” quando pisou em território italiano. Há também a especulação de que tal característica tenha a ver com a ideia de “gordura” como algo associado ao caráter abundante e provinciano que perpassa uma visão de América Latina, em contraponto ao “magro” e “cosmopolita” dos grandes centros. Seja qual for o ponto de vista – ou o rótulo –, existe uma preocupação com o volume e a forma que persegue o pincel e o traço de Botero desde a década de 1960, quando desenvolveu, em Nova York, o estilo que o acompanha até hoje. Isso fez com que sua obra se tornasse mais
famosa e inconfundível, embora também um pouco repetitiva, se pensarmos na sua produção recente. Uma marca que, inclusive, foi parar nas suas esculturas, quase como uma necessidade de expandir os limites da superfície bidimensional. Os temas, no entanto, variaram de maneira razoável, bem como a paleta de cores, sempre a serviço de um trabalho assumidamente figurativo. Dele surgem gordinhas sensuais, bem como gordinhos bispos, cabeludos e bigodudos. Mesmo nos momentos mais prosaicos, eles são extremamente atraentes. Talvez seja por isso que o artista tenha conseguido se aproximar do grande público, tornando-se tão querido não só na Colômbia, onde tem um museu que leva seu nome, mas em várias partes do mundo, que, se depender da visão dele, certamente têm muita simpatia pela América Latina.
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cursos Sem pretensão, mas com estilo
Aulas de cozinha ministradas por profissionais da gastronomia para quem nem pensa em ser chef, mas quer fugir do feijão com arroz de todo dia texto Renata do Amaral Fotos Rafael Medeiros
Foi-se o tempo em que cozinhar se aprendia apenas em programas de televisão como os comandados por culinaristas – era assim que se chamavam – com jeito e simpatia de avó, como Ofélia Anunciato e Palmirinha Onofre. Ou em cadernos de folhas amareladas pelo tempo que passavam de geração em geração. O Recife vem assistindo ao crescimento de cursos rápidos para quem não tem a meta de virar cozinheiro profissional, mas quer convidar os amigos, impressionar
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1 isabel sehbe Professora (de avental) defende a culinária baseada na própria horta
a família ou apenas se alimentar melhor na própria casa. Adepta da alimentação aiurveda, a professora de ioga Isabel Sehbe vai logo explicando que a base da doutrina reside na harmonia de seis sabores na refeição: doce, salgado, azedo, amargo, apimentado e adstringente. A ideia é fornecer nutrientes suficientes ao corpo para que ele busque sua própria cura – como o chutney, por exemplo, que auxilia o processo digestivo. Seu curso de vegetarianismo conta com cinco módulos: básico 1 e 2, árabe,
indiano e oriental. No último, o sushi não leva peixes, mas vegetais. É uma tarde de quarta-feira, quando seis mulheres se reúnem para a oficina, na casa de Isabel, com vista para a praia de Boa Viagem. Curiosamente, nenhuma delas é vegetariana ou mesmo praticante de ioga. “Somos simpatizantes do vegetarianismo”, explica a servidora pública Cláudia Pessoa, que se inscreveu pensando em ter uma alimentação mais saudável e aprender receitas de saladas. “Pretendo começar a cozinhar em casa os pratos que quero comer”, resume. A aula, que custa R$ 80 por pessoa, começa com agradecimento e exercício de respiração. Em seguida, toucas no cabelo, seguem todas para a cozinha. A aula é demonstrativa e as alunas acompanham com atenção a mescla de sementes de cominho, coentro, mostarda e cardamomo na panela. “É uma macumba”, brinca a professora, que depois explica que cada família indiana tem sua própria receita da mistura de temperos garam masala. Atenta ao tempo de cozimento de cada alimento, a professora prepara inacreditáveis nove pratos em cerca de duas horas: arroz amarelo, grão de bico, mix de vegetais subji (cozidos), chutney de abacaxi, chutney de mix de sementes, batatas com folhas de mostarda, raita de beterraba (com iogurte), salada verde com molho de tahine (pasta de gergelim) e pão chapati, usado como talher na Índia. Apenas a sobremesa já estava pronta na geladeira: é o burfi, doce feito com leite e salpicado com cardamomo e pistache. Na área de serviço do apartamento, todas se juntam para ver o pôr do sol ao final do dia. “Isso não é só dar aula: é compartir”, considera Isabel. Depois, é arrumar a mesa e partir para a degustação. A empregada doméstica Maria Aparecida da Silva, que veio acompanhando a servidora Fernanda
Wangham, está disposta a provar os novos sabores, apesar de não gostar de pimenta. Gostou? “Ela gosta”, brinca, falando sobre a patroa. Das apostilas de aulas passadas, já fez quiche, quibe, escondidinho e lentilha com arroz. A também servidora pública Flávia Feitosa trouxe dois convidados: a empregada doméstica Vera Lúcia da Silva e o filho Bernardo, de 4 anos. Conta que fez questão de que o menino participasse para ver adultos comendo alimentos saudáveis. Até agora, ele não tem dado trabalho na hora das refeições. Flávia fez três módulos e começou a mudar a alimentação. “Como eu não tinha prática de cozinha, uni o útil ao agradável”, diz ela, que já percebeu a mudança no corpo e não sente mais vontade de comer alimentos industrializados. A caçula da turma é a estudante de arquitetura Jéssica Simón – apesar de não largar o celular, estava tão concentrada, que terminou eleita a subchef do grupo. Jéssica ficou sabendo do curso quando sua família foi ao Ecohar Yoga Ashram, espaço que Isabel mantém na praia de Maragogi, em Alagoas, e que integra meditação, ioga, retiro, alimentação saudável e outras práticas. Está começando a cozinhar agora e já fez o tomate recheado com arroz aprendido na oficina anterior. Depois de uma temporada na Índia e na França, onde se aperfeiçoou não apenas na ioga, mas também na culinária vegetariana, Isabel abriu o ashram em 2008. Os cursos foram uma consequência natural e passaram a ser promovidos também no Recife, a pedido dos alunos. Filha de libaneses, a gaúcha acredita que o caminho é voltar a cozinhar como nossas avós faziam. “É o que mais falo para os alunos: façam seu molho de tomate, plantem sua horta”, afirma. “A gente está se dando cada vez menos tempo para essa felicidade.”
INSUMOS À MÃO
Do outro lado da cidade, na creperia Montmartre, em Casa Forte, o menu é italiano: risoto de jerimum com brie e de salmão defumado com aspargos. O salão do restaurante é rearrumado, com as mesas dispostas em círculo, para abrigar as 11 alunas. A proprietária Cecília Montenegro enumera os três
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2 cecília montenegro Na Montmartre, curso de saladas é o mais procurado Cláudio Galvez-Kovacic 3 Objetivo do chef é mostrar que todos podem cozinhar
4 agnolotti Entrada com massa de pastel é preparada no Kovacic
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ingredientes essenciais para a receita: arroz arbóreo, vinho branco seco e queijo. Não há fogão no salão, mas um fogareiro vermelho. “Qualquer fogo serve. O mais importante são a panela e os ingredientes, orgânicos e frescos”, defende. Ninguém sabia ainda exatamente o que seria preparado naquela tarde de
quinta-feira. “Não divulgo as receitas antes porque tudo depende de como a gente prepara”, explica. Segundo ela, a pessoa pode até vir a gostar de algo que achava que não apreciava e ter boas surpresas. Dona da creperia desde 2000, ela vem percebendo uma mudança no paladar dos clientes. “Estamos abrindo o leque, pois antes
ficávamos restritos ao regional. Por que não experimentar algo mais sofisticado?”, pergunta. As dicas vão além da prática e abarcam também o lado social da cozinha: para agregar os amigos, o ideal é fazer a cozinha aberta, em estilo americano. Como o tempo de cozimento do risoto é breve, o melhor é juntar os amigos, abrir uma garrafa de vinho e começar a fazer o prato: quando a segunda garrafa for aberta, já é hora de jantar – e, claro, de conversar. “A gente leva um tempão para fazer e come em cinco minutos. É um pecado! O correto é comer lentamente”, avisa. Cecília lembra que, logo que abriu o restaurante, era difícil encontrar rúcula nos supermercados para fazer a famigerada dupla da moda, com tomate seco. “Hoje, encontra-se de tudo”, comemora. Seus cursos começaram há cerca de um ano, depois de uma experiência com um grupo fechado. Atualmente, ela ministra oficinas para turmas a partir de oito pessoas, ao custo individual de R$ 60. O maior sucesso é o curso de saladas, que abriu 20 vagas e contou com 40 interessados. Oito turmas já participaram da oficina. “As pessoas estão voltando para a cozinha. É uma prática muito boa que está retornando”, conta. O público é variado e inclui leigos, como a dentista Pollyana Rabelo, que não sabia cozinhar nada e fez um risoto para 20 pessoas, para comemorar o aniversário da mãe. “Antes, eu só fazia gororoba: pegava tudo que havia na geladeira, misturava e comia”, diverte-se. Dois cursos de risoto, dois de salada, um de crepe e um de sopa; já comprou panela nova e até secadora de folhas – para ela e para a mãe.
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Com casamento marcado para este mês de setembro, a preocupação da advogada Selene Carvalho Padilha foi bem prática: não morrer nem matar o marido de fome. “Mas ele desenrola, porque já morou sozinho”, afirma. Após terminar o primeiro curso, já estava animada para fazer as receitas nos dias seguintes. “Não tinha noção nenhuma e adorei. A aula é muito didática, bem melhor do que ler as receitas nos livros de cozinha, que não explicam direito para iniciantes”, opina.
REORGANIZAÇÃO SOCIAL
Voltado para a cozinha japonesa, o curso da dupla Ivânova Oliveira e Taró Matsumoto, da loja Wassabi, inclui arroz, sunomono, conserva de gengibre, sashimi, sushi e carioca. O curso é realizado em domicílio, para grupos de três ou quatro pessoas, e todos colocam a mão na massa durante três a quatro horas. “Os alunos geralmente são jovens recémcasados, sem a facilidade de ter empregada em casa e que precisam se virar na cozinha”, define Ivânova,
Os cursos são reflexo da transformação da sociedade: com a família trabalhando fora, o convívio passa a ser mais valorizado que dá suporte ao marido Taró, com mais de 25 anos de experiência. Cerca de duas vezes por mês, o casal leva toda a estrutura – incluindo produtos, apostilas e certificados – para apartamentos cada vez menores, mas habitados por proprietários cada vez mais interessados em comer bem. “Às vezes, os apartamentos são tão pequenos, que é até difícil de a bancada de apoio entrar”, diz. O lado da brincadeira pode até se sobrepor ao conteúdo, como quando os alunos ficam comparando qual sushi está mais bonito. Cada pessoa paga R$ 200 pela oficina. Também professora de gastronomia da Faculdade Senac, Ivânova observa que os cursos
são reflexo da transformação da sociedade: com toda a família trabalhando fora, o convívio passa a ser mais valorizado. “A cozinha deixou de ser renegada para ser espaço de convivência”, explica. Segundo ela, antigamente, a sala podia ter castiçais de prata, mas a cozinha era velha e sem manutenção. Hoje, esses espaços são funcionais e buscam trazer conforto para os donos da casa, diferentemente do que acontecia em gerações anteriores. “Os cursos não são uma moda, mas um reflexo da própria organização da sociedade”, afirma. Por isso as receitas fazem parte do repertório de quem passa muito tempo fora de casa, e o sushi substitui o tradicional feijão com arroz. A loja existe desde 2005, mas mudou-se para Parnamirim no ano passado. A dupla já ministra cursos há cinco anos, mas deixou de oferecê-los na loja nova por falta de estrutura. Em outubro, porém, a programação deve ser retomada após uma reforma. Paralelamente, o atendimento em domicílio vai continuar.
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AUTORAL SEM ESTRESSE
Cozinhar sem frescura, com produtos fáceis de encontrar em qualquer mercadinho de praia, é a proposta do dono do Kovacic, Cláudio GalvezKovacic. As aulas acontecem aos sábados, sem pressa, bem ao estilo do restaurante. Os encontros duram quase sete horas, mas ninguém percebe o tempo passar. “Se ficar estressado, a coisa não vai dar certo: tem que relaxar”, resume esse quase brasileiro que nasceu na Croácia e mistura sotaques do semfim de países por onde passou.
O relaxamento vai dos pés descalços das cinco alunas à interação entre todos que participam do processo inteiro. A cozinha é propositalmente aberta – segundo ele, assim ela tem que ser mantida muito mais limpa, pois está à vista de todos. A peça de resistência é uma cioba fresca, pescada na tarde anterior, comprada ao fornecedor Três Malhos. O grupo de quatro engenheiros de pesca trabalha com pescadores artesanais e monta uma barraca de peixe fresco no Kovacic às sextas-feiras.
O primeiro passo do curso é colocar na mesa todos os ingredientes do dia. A ideia é despertar a capacidade criativa de cada um e mostrar que todos podem cozinhar. Uma por uma, as participantes vão pensando no que fariam com aqueles produtos aparentemente tão triviais. Em seguida, preparam-se para entrar na cozinha. Os aventais são decorados com motivos natalinos fora de época, maçãs ou bandeira da Inglaterra. Uma aluna confessa que comprou o seu especialmente para a aula, assim como a faca.
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do vegetariano ao oriental
5 refeição completa Atenta ao tempo de cozimento, Isabel Sehbe prepara nove pratos em duas horas
isabel sehbe Fone: (81) 9974-5976 www.ecoharyogaashram.com.br
kovacic Rua Dom Pedro Henrique, 153-A, Boa Vista, Fone: 9612-7776 www.facebook.com/kovacic.acozinha
montmartre Rua Alfredo Fernandes, 61, Casa Forte Fone: 3034-5327 / 9139-9235
wassab Estrada do Encanamento, 149, loja 6, Parnamirim Fone: 3267-5688 www.wassabi.com.br
A entrada, agnolotti (massa de pastel fechada) com molho de tomate doce, ocupa as meninas por um bom tempo. A musse de papaia verde da sobremesa contém vinho moscatel, o que leva uma aluna a perguntar sobre a propriedade de seu uso. “Cozinhar com vinho caro é cafona e novo-rico, linda!”, solta Kovacic. O prato principal – peixe recheado com abóbora frita e risoto de palmito com alho assado – só entraria no forno bem depois, o que levou a uma enxurrada de perguntas sobre o que, afinal, seria feito com aquele jerimum.
E os gatos com nomes de deuses hindus passeando pela sala, pode isso? Se a ideia é cozinhar como se estivesse em casa, pode, sim. A colher de pau, tão criticada pela vigilância sanitária, mas insubstituível, também marca presença. Com uma dica: no inverno, pode-se colocar o utensílio no forno, para que ele fique bem seco e não pegue fungos. Aqui não há apostila e as alunas podem até fazer uma cota para comprar uma cervejinha. Daqui a pouco, as convidadas – filhas, mães e amigas – chegam à casinha na Boa Vista. A proposta diferente atraiu as irmãs Kelen, “designer tentando ser artista plástica e tatuadora”, e Karen Linck, economista. Kelen ficou sabendo do curso pela internet, por indicação de amigos, e levou Karen, que aprendeu a cozinhar em casa, com a avó e a mãe, e nunca tinha feito curso antes. “É diferente do tipo de cozinha corriqueira”, afirma. A mãe de ambas e a filha de Karen foram as escolhidas para experimentar o resultado da manhã. A estudante de Relações Internacionais Isabella Albuquerque, que diz se virar na cozinha, já quer fazer os próximos. “Amei porque é sem frescura mesmo!” Foi ela que convidou a designer Marina Guerra,
“aspirante à dona de casa e mãe de família”, que sabia que ia se divertir e que precisava começar a cozinhar de algum modo. O resultado deixou-a surpresa. “Eu não dava nada pelos ingredientes!” Para ela, que adorou a música de fundo (um passeio de canções turcas a jazz), o curso foi muito além da cozinha. A única que já conhecia o restaurante era a professora de Bioquímica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Maria do Carmo Pimentel, responsável por explicar aos interessados como creme de leite vira chantili. “Gosto muito da forma como ele faz, sem tempero demais, porque realça o sabor dos alimentos”, explica. Ela cozinha desde pequena, quando morava em Vitória de Santo Antão e era educada para ser uma esposa daquelas bem prendadas. Desde a adolescência, porém, não fazia uma oficina de cozinha. “Cozinha, para mim, é arte”, afirma, observando que o professor sempre usa fogo baixo, o que demanda também uma pitada de paciência. Sua convidada é a filha Vanessa Maranhão, que, ao contrário, foi criada para ser independente e não aprendeu os dons da mãe. “É um ponto de vista diferente daquele da minha avó”, diz. “Outra diferença é que hoje os homens também estão começando a ir para a cozinha. Meu marido cozinha divinamente”, conta. “Comida de restaurante, ninguém faz em casa. Espero que a pessoa saia pensando: eu posso fazer”, defende Kovacic, que oferece cursos para até 10 pessoas, desde 2010. Cada aluno paga R$ 115, com direito a um convidado na hora da degustação. Além da noção de como se constrói um cardápio, os alunos aprendem a mudar a linguagem para apresentá-lo e, assim, seduzir os convidados. “A aula é também uma provocação cultural”, afirma. Tudo para curtir a tranquilidade de cozinhar nas horas vagas.
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OLIVIER E LILI Até que ponto o que ali está posto é ficção?
rogério alves/divulgação
Utilizando vários recursos e encenada em ritmo telegráfico, a partir de base textual de 900 frases, essa história de amor une realidade e invenção TEXto Pollyanna Diniz
Palco Teatro é ficção. O que para
alguns pode soar óbvio nem sempre é verdadeiro. Ao invés de uma afirmação, talvez fosse mais coerente uma pergunta, a dúvida: até que ponto o que se vê no palco é ficção? São muitos os exemplos na história do teatro, mas vamos trazê-los para uma realidade mais próxima. Na década de 1970, em Olinda, o grupo Vivencial Diversiones levava à cena (sempre performática, musical, de homens travestidos) elementos da biografia dos atores. Mais recentemente, no festival Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano, a atriz e travesti argentina Camila Villadas revelou um pouco da própria história no espetáculo Carnestolendas – retrato escénico de um travesti. A dramaturgia foi construída ainda a partir de poemas e textos de García Lorca, como Yerma e A casa de Bernarda Alba. Veio da Argentina também uma experiência mais radical. A dramaturga e diretora Lola Arias dirigiu um espetáculo chamado Mi vida después, em que os atores eram “personagens reais”. Filhos de desaparecidos políticos encenavam a experiência de terem convivido com a dor da ausência. O diretor Rodrigo Dourado foi influenciado por essas e muitas outras referências para montar o espetáculo
Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases, com duas temporadas agendadas para este setembro. “Há muitos anos me interesso pela dramaturgia contemporânea, por uma cena performática. Tenho mais de 200 textos arquivados: dramaturgia latina, europeia, americana, canadense”, conta. No original francês, Olivier e Lili é Les drôles (algo como “Os engraçados”). O texto foi escrito em 1993 pela dramaturga e atriz Elizabeth Mazev, que registrou em mil frases (não em 900, como na versão pernambucana) a sua relação com o conceituado diretor francês Olivier Py. Os dois se conheceram ainda crianças, apaixonaram-se pelo teatro na mesma época, fizeram descobertas e passaram por perdas juntos, e até se casaram, embora Py seja declaradamente homossexual. E não bastou colocar a história no papel – os dois encenaram “os personagens de si mesmos” no palco. “Quero criar aqui, também, essa espécie de vertigem do real e do ficcional, só que com mais camadas ainda. Elizabeth e Olivier, por exemplo, vão aparecer no meio da montagem, não os personagens, mas as pessoas reais, através de vídeos”, explica Dourado. O ator Leidson Ferraz dá vida a Olivier; e Fátima Pontes, a Lili.
“Quando comecei a traduzir o texto, vi que havia muitas referências à vida na França nas décadas de 1970 e 1980. Pensei em como aproximá-lo da nossa realidade. Mas não poderia simplesmente mudar de ambiente. É a história de vida dos dois. Foi aí que pensei na aproximação. Quando, por exemplo, Olivier fala de um programa de televisão que via aos sábados, fui questionar os atores sobre o que eles assistiam quando crianças.”
PROCESSO INTENSO
Foi assim que a dramaturgia apresentada em Pernambuco ganhou mais uma camada: a história real dos atores. “Nas leituras e ensaios, vi que aconteceu um milagre! Leidson era realmente Olivier e Fátima era Lili. Eu não sabia disso! Rolou uma projeção muito forte. Leidson hoje fala de Olivier como se fosse ele mesmo”, brinca o diretor. “Foi um processo forte, intenso. Muitas pessoas vão se identificar, porque são experiências comuns a todo mundo, a infância, a juventude, o amor”, explica Leidson Ferraz.
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Teatro Hermilo Borba Filho Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases Informações: 81 3222.0025
Na cena, há momentos em que fica difícil distinguir quem é quem. Será aquela a história de Olivier ou dos próprios atores? Há, por exemplo, uma sequência em que Lili perde o pai. Nesse momento, a dramaturgia abarca ainda mais a realidade: Fátima fala da morte do pai dela e até o diretor entra em cena contando o que aconteceu, quando soube do falecimento do pai da amiga. Sim, porque, em última instância, o espetáculo é uma história de amizade. Uma celebração! Entre Olivier e Lili e entre Rodrigo Dourado, Fátima Pontes e Leidson Ferraz, que, apesar de serem amigos há 15 anos, nunca tinham trabalhado juntos. Para montar esse quebra-cabeça entre real e ficção, público e privado, a pesquisa contou com vários elementos “verdadeiros”, como fotografias e objetos do uso cotidiano. “A partir do momento em que a memória é também uma reconstrução do real, criamos aí outra camada para o público mergulhar”, aponta o diretor. Rodrigo Dourado vinha de uma experiência de direção frustrante. Ele, que também é jornalista e professor universitário, se apaixonou
por um texto do venezuelano Gustavo Ott. “Enlouqueci, quando conheci a escrita do cara. É bem parecida com a escrita de Newton Moreno, de Marcelino Freire”, diz. E aí, em 2009, estreou o espetáculo Chat – que o público, o diretor mesmo conta, achou chatíssimo. “Foi um fracasso de público e de crítica. Mas foi muito bom, para perceber os interesses da plateia do Recife. Chat tratava de questões religiosas, islamismo, migração, violência”, relembra. Com Olivier e Lili, tanto direção quanto elenco apostam noutro resultado, inclusive com o público jovem. “O espetáculo tem uma pegada pop muito grande. É engraçado, divertido”, diz Leidson Ferraz. Se, em Chat, Rodrigo Dourado trabalhava com quatro atores, neste novo espetáculo também poderia ter optado por um elenco mais numeroso, já que o texto traz essa possibilidade. São vários os personagens que passam pela vida de Olivier e Lili ao longo da encenação. Aí entra a decisão do diretor, que queria se aprofundar no trabalho dos atores e facilitar a produção e, por isso, resolveu focar apenas os personagens principais.
A história deles, no entanto, não é contada de forma tradicional. Muito antes do surgimento do Twitter, Elizabeth criou um texto telegráfico, uma narrativa fragmentária. Escrito em terceira pessoa, não há diálogos entre personagens; ou, mesmo, antes disso, a definição de personagens. É quase um diário dos hábitos e do que acontecia na vida dos dois. A partir daí, podem surgir diversas questões, como o público e o privado, a sociedade do espetáculo, do Big Brother e das câmeras de segurança. “A sociedade já está tão teatralizada, que o teatro parece que está fazendo o caminho inverso. A política, a religião, está tudo tão performático, que o teatro parece querer se tornar menos empolado, menos ‘teatral’ demais”, diz Dourado. Não é, no entanto, um mergulho em definitivo na realidade. “Se for realidade 100%, a plateia rejeita.” Rodrigo Dourado lembra o que diz a pesquisadora francesa radicada no Canadá, Josette Feral: que o real só deve entrar em cena quando tiver um sentido dramatúrgico. É a realidade servindo ao propósito de poetizar a ficção.
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américo nunes/divulgação
VESTÍGIOS Entre a essência e a aparência
Peça aborda o tema universal da tortura, mas o faz problematizando aspectos como desejos e autoflagelo TEXTo Anco Márcio Tenório Vieira
Palco
Grosso modo, há duas maneiras
de se encenar uma peça. Uma é lançando mão dos elementos cênicos (a sonoplastia, o cenário, o figurino, a luz, a representação dos atores) como parte dos procedimentos formais da encenação; outra é obliterar todos esses recursos e privilegiar apenas o texto e a representação dos atores. No primeiro caso, que é o mais corrente, os elementos cênicos organizam formalmente o texto dramático, ao mesmo tempo em que exploram dele tanto os significados que, em geral, não são observáveis quando da leitura ou da encenação pura e simples da obra, quanto criam a mágica do ilusionismo que o teatro encerra desde a sua origem.
O encenador Antonio Edson Cadengue se inscreve nessa tradição que traz como marca o uso e a exploração de todos os recursos formais que são oferecidos pelo teatro, urdindo-os de uma maneira, que eles venham a constituir um todo coerente. Sua última encenação Vestígios, de Aimar Labaki, é um bom exemplo desse modo de conceber o teatro. A peça, que aborda um velho tema da literatura universal — a tortura — se firma em cima de dois opostos: o torturado, Marcelo (na atuação segura de Roberto Brandão), um professor universitário de 29 anos, e os seus algozes — Cardoso (Carlos Lira) e Marcos (Marcelino Dias), de 60 e 45 anos, respectivamente. Apesar
do tema da tortura, seja ela física ou psicológica, ser bastante presente na literatura do século 20, existem outros aspectos na prática da tortura que nem sempre são visíveis. Um deles é o que busca problematizar o que leva alguém a escolher tal ocupação. Um segundo aspecto, que não raras vezes está subsumido naquele, é inquirir quais taras ou desejos recônditos se entrelaçam com o prazer de submeter o outro ao suplício. O terceiro são as autoflagelações psicológicas que imprimimos ao nosso próprio corpo. Por fim, o silêncio social, político e cultural que paira sobre a prática desses atos. Silêncio que se instala tanto no seio da sociedade, que finge não ver essa prática ignominiosa
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um todo inseparável. Valendo-se da música, da luz, dos espelhos e dos vidros, Cadengue busca quebrar, no espectador, o “reconhecimento”, isto é, o pré-conceito que temos sobre o assunto em questão. É desse modo que o espelho disposto no palco cumpre uma função inversa da que lhe é correntemente destinada. No caso, ele não reflete por semelhança o que deveria refletir: seja enquanto metáfora da imagem pública que construímos de nós e pela qual somos reconhecidos, seja, de maneira substantiva, por deformar os objetos e as pessoas que nele são refletidos. O mesmo ocorre com as paredes de vidro, pois enquanto divisórias elas só permitem que os torturadores vejam a vítima, impedindo que esta os veja. E por que esse jogo de luzes sobre os espelhos e os vidros construindo permanentemente uma sensação de lusco-fusco? Por que todo o ambiente é envolvido por sons que mantêm a atmosfera sempre em suspensão? Porque a tortura é, aqui, o pano de fundo para se discutir o
Teatro Barreto Júnior Vestígios Até 30 set Informações: 81 3326.4177
(afinal, a vítima é sempre o outro), quanto no algoz, pois ninguém se vangloria publicamente de praticar a mais covarde das covardias: a tortura. A peça de Aimar Labaki lida com algumas dessas questões e, por sua vez, o encenador da sua obra soube usar todos os procedimentos formais oferecidos pelo teatro para ressaltar certos aspectos do texto que passariam desapercebidos pelo leitor ou espectador menos atento. No caso, os recursos oferecidos pela iluminação (a cargo de Saulo Uchôa), pela sonoplastia (assinada por Eli-Eri Moura) e pelo cenário (concebido por Doris Rollemberg). Esses três recursos teatrais se entrelaçam na encenação e formam
O texto de Aimar Labaki lida com questões que foram bem-transpostas à cena pelo diretor Antonio Cadengue jogo e a dialética entre a aparência (o que se vê à luz do dia) e a essência do Ser (o lusco-fusco); entre o que somos de fato e a imagem social que representamos; entre a moral da casa e a moral da rua. O espelho, na encenação, não reflete, como deveria refletir, a imagem dos personagens, mas a sua alma (Nelson Rodrigues chamaria de os desejos que apodrecem na alma), assim como a divisória de vidro é a metáfora entre o que vemos nos outros, mas, em contrapartida, o que não queremos que os outros vejam em nós. Assim, o torturado pode ver no espelho o farrapo psicológico e humano em que ele se tornou. Mas o espelho é também, aqui, uma
espécie de Retrato de Dorian Gray, pois guarda, dentro das quatro paredes de vidro, as suas vontades mais secretas: o prazer que ele, Marcelo, sentiu em beijar um rosto apartado do seu corpo e em avançado estado de putrefação, assim como o gozo que nutre por mulheres mutiladas. Já os torturadores veem nos espelhos as suas verdadeiras faces: não as dos respeitáveis pais de família que representam ser, mas as dos que se regozijam em subtrair a humanidade do outro, ou, no caso de Marcos, no poder externar, por meio da tormento, o lado “escuro” do seu desejo, “porque o meu desejo sempre foi na rua, mas fora do sol”. Afinal, para ele, “A família é o lugar do dever. Não o lugar do prazer. Família, com prazer, vira baderna”. Mas a peça encerra outra sutileza: Marcelo e Marcos, torturado e torturador, representam faces de uma mesma realidade; apesar de estarem em campos opostos, ambos são prisioneiros dos seus desejos: a da autoflagelação psicológica. A tara nunca revelada do primeiro (a necrofilia e o gozo por mulheres mutiladas) o leva a cair em uma trama que nem ele mesmo sabe a extensão das suas implicações. Já o segundo se vale da “legalidade” da tortura para externar a sua verdadeira natureza: o prazer por outros homens. E mais uma vez os vidros e os espelhos escondem de um e de outro aquilo que deveriam revelar: a transparência e a imagem da alma, do Ser. Vestígios, de Aimar Labaki, na encenação de Antonio Edson Cadengue, parece-nos, à primeira vista, mais uma peça a tratar de um tema mais do que explorado. No entanto, termina por dizer muito mais sobre o algoz que cada um traz no seu íntimo do que sobre a tortura em si (esta, enquanto prática de Estado). Afinal, o recurso a ela revela uma sociedade de homens e mulheres comuns, pedestres, que estão doentes e feridos. E ninguém gosta de falar das doenças que acometem a sua alma e das feridas que nunca cicatrizam. O mundo não foi feito para os fracos, mesmo que todos nós sejamos filhos da Queda.
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Fotos: reprodução
Claquete 1
BLOW UP A foto, depois daquele filme
Cem anos de Michelangelo
Nos 100 anos de Antonioni, sua obra icônica é revista sob a ótica das novas tecnologias na fotografia texto Thiago Soares
Antonioni (nascido em 1912), o cineasta que talvez nunca tenha almejado essa coisa maiúscula de palavras “superiores” como “sucesso” e “reconhecimento” – porque, sendo ele mesmo um tanto quanto avesso a tudo isso, se escondia/revelava por filmes que traziam ambiguidades na sua gênese. Cerne ambivalente. Tão ambivalente, que, seu filme mais notabilizado, Blow up – depois daquele beijo (1966), é justamente uma obra sobre a dúvida: um fotógrafo que faz um clique acidental de uma cena que, supostamente, é um crime. O instantâneo do clique. A cena registrada no negativo.
A revelação do filme. A ampliação da cena. A cena. Blow up – depois daquele beijo pode ser visto como uma espécie de metáfora de Michelangelo Antonioni, o cineasta que, embora sendo italiano, optou por não tatuar a geografia de seu país de maneira óbvia nas suas películas. Que preferiu cenas internas, histórias narradas quase como se sussurra. Que – acredite – olhou Jeanne Moreau de soslaio, naquela cena de A noite (1961), quando o mundo queria vê-la de frente. Muitas dúvidas. Muitas ambiguidades. Quem é Antonioni? Uma fotografia que, de tanto tentar ser “revelada”, mais esconde que revela.
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1 david hemmings Ator inglês interpreta fotógrafo cena 2 Flagrante revelaria suposto crime foto 3 Com a ampliação, o estudo da imagem
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Ampliação que vai “borrando” o tema. Esse grão estourado de prata que nos coloca diante do paradoxo. Não sabemos quem é Antonioni, da mesma forma que não sabemos se o protagonista de Blow up, de fato, registrou um crime. Depois de um exaustivo dia de cliques, um fotógrafo de moda passa por um parque da cidade e retrata um casal. A mulher das fotos, furiosa de ser clicada, segue-o até seu estúdio e exige os negativos. Ele, no entanto, devolve um filme virgem. Curioso com a atitude da mulher, resolve fazer ampliações (blow ups) de suas fotos no local. Muitas ampliações. Apesar da intensa granulação provocada nas imagens em preto e branco, julga estar vendo o que acredita
Diante das câmeras digitais e redes sociais, ainda seria possível o argumento do mais notável filme do diretor italiano? ser um corpo e uma mão apontando uma arma. Mais uma vez: a dúvida. Possivelmente, a grande questão evocada por Blow up, nos anos que se seguiram ao seu lançamento, sobretudo na década de 1970, tenha sido a premissa da indicialidade fotográfica. É um filme sobre uma dúvida evocada pela impossibilidade
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de a fotografia registrar – de maneira acabada e satisfatória – o real. Ou a constatação de que a imagem fotográfica é apenas – e meramente – um recorte, um vestígio, uma tentativa. E olhar para esse filme tão particular de Antonioni, de alguma forma, resulta na busca por captar algum vestígio sobre a suposta imagem que o cineasta queria que fizéssemos dele: como já diria Roland Barthes, em Sade, Fourier, Loyola, o maior registro de autoria de alguém é fazer com que enxerguemos uma pessoa numa obra. Olhar Blow up e enxergar Antonioni é o exercício de observar uma foto que queremos desvendar – como o personagem do filme Blow up. Seguimos tentando. Pensar o que foi a questão evocada por Blow up no debate sobre o fotográfico nos direciona para o reconhecimento de que, ao tratarmos sobre fotografia, aspectos como deriva, evasão, afeto, acaso, dispersão e assim por diante, são “portos seguros”. O filme nos coloca diante da perplexidade que é a impossibilidade de certeza diante de algo que sempre fora tratado como “o registro do real”. Quando vemos uma foto e não temos certeza do que enxergamos ali, desvela-se aquilo que Roland Barthes chamou, em seu clássico ensaio A mensagem fotográfica, de “mensagem sem código”. Onde está o chão da certeza diante do registro? Essa premissa da “mensagem sem código”, proposta por Barthes,
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Fotos: reprodução
4 cenário Filme de 1966 é ambientado na Swinging London
gerou inquietações em semiólogos e semioticistas. Ao separar a “mensagem” (aquilo que vemos) do “código” (o significado e a reverberação cultural do que foi fotografado), Barthes possivelmente estaria criando as bases para toda a sua argumentação sobre a fotografia, que culminaria, inclusive, com A câmara clara. É da impossibilidade da certeza e da necessidade da deriva na argumentação sobre a fotografia que se sustentam os argumentos de um Barthes pós-estruturalista. Evocar o francês Roland Barthes, ao trazermos à tona alguns pontos de Blow up, de Antonioni, resulta na tarefa de reconhecimento de como os dois foram centrais para se pensar
antonioni 5 Na obra do italiano, também se destaca a trilogia da incomunicabilidade
Claquete o estatuto da imagem fotográfica. Quando, em 1979, Barthes redigiu A câmara clara, certamente, registrou a mesma impossibilidade de “frieza objetiva” no tratamento da fotografia. Não à toa, a obra é quase um diário de Barthes, tendo imagens como formas de diálogo e exasperação. As ambiguidades de Antonioni em Blow up. Os paradoxos de afeto de Barthes em A câmara clara. O que os une: a certeza de que falar sobre fotografia é revelar camadas de sentido das quais, muitas vezes, não se pode dispor. Um dos exercícios mais profícuos de reconhecimento de longevidade de uma obra/autor está em atualizar as suas questões. Fotografar é, antes de tudo, uma disposição que se utiliza de uma tecnologia (a câmera) e de uma técnica (a expertise em manusear a tecnologia). Pensar o traço particular da fotografia significa debater como tecnologia e técnica se transformam e de que maneira as questões outrora evocadas aparecem a partir de processos de significação. Então, neste centenário de Michelangelo Antonioni, diante de novas formas de fotografar, câmeras digitais, redes sociais de fotografia, ainda seria possível o argumento de seu mais notável filme, Blow up? Algumas ponderações. A primeira é que, realmente, o argumento de Blow up diz respeito a uma
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práxis analógica. O que “move” a dúvida do personagem é tão somente a impossibilidade de reconhecimento do real diante do processo de revelação/ampliação. Recai a questão sobre nós: qual é a materialidade da fotografia atualmente? Vemos imagens em papel ou, fundamentalmente, nas telas de
computadores, celulares, tablets? A coexistência de disposições materiais (papel e telas) nos convoca no nosso cotidiano com a fotografia, mas temos, atualmente, o que podemos chamar de “imagens líquidas” – para usar um termo tão caro a Zygmunt Bauman – que navegam entre telas, pixels, dispositivos.
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INDICAÇÕES E, então, uma segunda ponderação: mudaram as tecnologias (câmeras agora são digitais, celulares passam a ser “máquinas fotográficas”), criaram-se novas disposições técnicas (fotografar pela tela da máquina ao invés do visor, olhar o registro que acabou de ser feito), mas o cerne do processo fotográfico continua o mesmo? Continuamos a ter dúvida sobre a imagem fotográfica? Certamente. Há algo de que Blow up trata, que A câmara clara aborda e que segue incólume, mesmo diante de todas as transformações do fazer fotográfico: a ambiguidade do registro. A imagem ainda é o traço do real. Os grãos de prata do sistema analógico se converteram na lógica dos pontos digitais, os pixels, na fotografia digital. Hoje, se o fotógrafo de Blow up fizesse a tal imagem de uma suposta cena do crime numa câmera digital, a sua dúvida persistiria. Se ele não conseguia distinguir o real por causa das inúmeras ampliações de outrora, seguiria sendo “impedido” de fazê-lo diante do estouro dos pixels. A “cortina” do fotográfico sobre o real continua – mesmo diante de mudanças, alterações nas tecnologias. Se adotasse procedimentos contemporâneos do ato fotográfico, o personagemfotógrafo de Blow up poderia estar ainda mais “enrascado”. Imagens fotográficas hoje são pontos de partida para compartilhamentos em plataformas digitais. A fotografia poderia ocupar redes sociais como Instagram ou Facebook. E ser usada como “ameaça” para a tal mulher, no filme,
que se irritou ao ser clicada. As inúmeras possibilidades de pós-produção disponíveis com as câmeras digitais poderiam acarretar “ornamentos estéticos” na suposta cena do crime de Blow up. Filtros de aplicativos digitais poderiam “limpar” a imagem: acrescentar brilho, contraste, luminosidade. Fazer recortes, dispor bordas. E a pergunta segue: nós enxergaríamos “melhor” a imagem? Possivelmente. No entanto, não a ponto de sanarmos a dúvida em torno do que foi fotografado. Uma outra questão parece nos chamar diante das problemáticas de um Blow up contemporâneo: o tempo que detemos para olhar uma fotografia. O excesso de imagens, o deslizar de fotos sobre o Instagram, o Facebook e afins, parece que nos está legando um olhar cada vez mais horizontal sobre imagens. Sem a verticalização do tempo e da profundidade. Vemos fotografias. Mas será que olhamos fotografias? Ver e olhar aqui são distinções diante do tempo que se leva em frente da imagem. Blow up é, também, um filme sobre o tempo de quem se detém olhando uma foto. A investigação quase obsessiva em torno da procura pelo registro na imagem. A cena mais icônica de Blow up, aquela em que vemos pessoas jogando tênis sem a bola, ainda faria sentido: a ausência da bola é uma alegoria para a nossa relação com as imagens. Uma imagem não precisa, necessariamente, pertencer ao real para fazer sentido para nós. Muito daquilo que vemos são construções, sombras – só para lembrar o mito da caverna, de Platão – que se infiltram no nosso cotidiano e passam a ocupar lugar nas nossas certezas.
DOCUMENTÁRIO
COMÉDIA
Direção de Walter Carvalho Com Paulo Coelho, Tom Zé, Nelson Motta, Marcelo Nova Paramount
Direção de Roman Polanski Com Jodie Foster, Kate Winslet, Christopher Waltz e John C. Reilly Sony Pictures
RAUL – O INÍCIO, O FIM E O MEIO
DEUS DA CARNIFICINA
Walter Carvalho buscou compreender quem foi o homem e o artista Raul Seixas, ao realizar dezenas de entrevistas com personagens que fizeram parte da vida do músico, ícone do rock nacional. O documentário parte da infância do cantor na Bahia, o início da carreira na banda Os Panteras, o estrelato, até sua morte em São Paulo. Destaque para os depoimentos dos compositores Cláudio Roberto e Paulo Coelho.
Adaptado da peça homônima da francesa Yasmina Reza, o mais recente longa de Polanski conta a história de dois casais procurando resolver uma questão envolvendo uma briga entre seus filhos. Filmado dentro de um apartamento, com exceção de duas tomadas externas, Deus da Carnificina utiliza forte artilharia verbal nos excelentes diálogos travados entre os quatro personagens, interpretados por elenco respeitável.
DOCUMENTÁRIO
ARTE
Direção de Michael Glawogger Lotus Film
Direção de Lech Majewski Com Rutger Hauer, Michael York e Charlotte Rampling Lume Filmes
WHORE’S GLORY
Uma das características do cinema de Glawogger é que ele gosta de trabalhar um mesmo tema em diferentes partes do planeta. Assim o fez em Megacities (1998) e em A morte do homem trabalhador (2005), dando início a uma trilogia que se encerra com Whore’s Glory. O documentário apresenta, de forma voyeurista, três estudos sobre as diversas maneiras de exploração da prostituição em três espaços geográficos: Tailândia, Bangladesh e México. O diretor registra histórias de mulheres envolvidas na indústria do sexo.
O MOINHO E A CRUZ
Em O moinho e a cruz, os quadros fotográficos dão lugar à reprodução da tela A procissão para o Calvário (1564), do pintor flamengo Pieter Bruegel. Não seria exagero dizer que essa criação de Majewski é uma das mais bem-sucedidas transposições de uma obra de arte para um filme. O longa recontextualiza a Paixão de Cristo para a invasão espanhola de Flandres, mantendo o esplendor visual do original de Bruegel, recomposto com fidelidade através da fotografia e efeitos especiais.
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COLETÂNEA João incomodado com João Gilberto
Reunião de artigos, depoimentos e entrevistas procura abarcar vida e obra do ás da bossa nova, que, mais uma vez, diante desse trabalho, mostrou-se insatisfeito texto Elisa Jacques
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O livro João Gilberto incomoda
João Gilberto. Porque textos e fotografias que revelam cenas inéditas de sua vida e carreira desafiam a sua intimidade. Deixam o artista nu, arredio, fraco e chato. Apontam outras faces do gênio e invadem a sua privacidade. É como se lhe tocassem na alma. Por isso, até hoje, o criador da bossa nova mostra-se pouco interessado em explicar o seu trabalho, pois acredita que “o verdadeiro criador não deve perder tempo discorrendo sobre as tendências e consequências de sua arte”, ela fala por si só. Mas o fato é que João contradiz o que afirma, pois já expôs muitas de suas intenções artísticas ao dar entrevistas, como a que concedeu à revista Radiolândia, citada na coletânea. Em novembro de 1959, João declarou ao periódico que não era fácil vencer na profissão de músico. Não porque sua trajetória pessoal fosse repleta de obstáculos, ou porque ele travasse uma série de batalhas profissionais no mundo do entretenimento, mas porque era um desafio cantar com simplicidade, já que isso exigia horas de estudo. Talvez esse registro tenha incomodado João, assim como outros depoimentos que ocupam as 512 páginas de João Gilberto, organizadas pelo professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Walter Garcia, em edição pela Cosac Naify. Dentre entrevistas, crônicas e artigos, surgem declarações reveladoras e singulares sobre o músico, assim como a que foi descrita acima, indicada pela pesquisadora Edinha Diniz, na cronologia de entrevistas publicadas no Jornal do Brasil, em 2001. Depois disso, o que mais deve ter incomodado o artista foram os depoimentos íntimos de amigos e colegas de carreira, publicados no
livro. Da personalidade tímida, quem depreenderia a ideia de um João namorador? Que insiste na cantada até conquistar a pretendente? Pois foi nesse sentido que Stella Caymmi falou do namoro dele com sua filha, Nana Caymmi, ainda adolescente. E ainda revelou que era durante a madrugada que Nana mantinha longas conversas íntimas com o amigo. Outras questões ganham corpo no extenso volume, como a da repercussão da música de João Gilberto na França. A influência da música joãoalbertiana Brasil afora vai sendo discutida no trabalho de pesquisadores de várias partes do mundo, que relacionaram o gênero a que o músico era filiado a outras áreas da cultura brasileira, norteamericana e europeia, como o artigo da francesa Anaïs Fléchet, intitulado Samba cool e samba hot – a recepção de João Gilberto na França. A cada depoimento reunido no livro, procurou-se esboçar uma parte do percurso de um gênio musical que se mantém produzindo aos 81 anos de idade. O livro fornece material de qualidade – e em grande quantidade – para investigar a vida e obra de um artista que se tem mantido polêmico desde a década de 1950. Concentra uma parte significativa de textos críticos sobre o músico e constrói novas reflexões sobre esse trabalho. Outras declarações inéditas vão aparecendo nos relatos dos companheiros de palco, como um de Caetano Veloso, de 1966, apresentando a ideia de “retomada da linha evolutiva” na música brasileira, através das recriações de João Gilberto para a modernidade na MPB. Outro testemunho que não poderia deixar de ser citado, mas que ficou fora da publicação por já
estar disponível em outros livros e na internet, é o que foi escrito em 1968, por Chico Buarque. Ele aparece no artigo Desenho mágico, da pesquisadora Adélia Bezerra de Meneses, sob o título de Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha. Buarque argumenta: “É certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção”. A insatisfação de João Gilberto sobre essas passagens do livro surpreendeu, pois a obra João Gilberto é uma proposta que reúne a maior quantidade de matérias, ensaios e fotos já realizada sobre ele, e tem credibilidade pela pesquisa que foi feita em fontes primárias, como os recortes do jornal Última Hora. A publicação também superou a ideia inicial de reunir material de pesquisa, ao permitir outras leituras da personalidade do artista. Não ousou, diversificou; e, com isso, talvez o músico tenha achado que teve a sua intimidade exposta demais, mesmo diante de uma boa amostra da riqueza do seu pensamento. O organizador procurou distanciarse dos boatos e fofocas para relatar a vida profissional do artista e do homem, evitando os entraves que poderiam resultar num registro tendencioso de alguém considerado um mito na história da música brasileira. Evita-se, em todos os capítulos, a fixação em estereótipos. Busca-se, no entanto, observar outras representações sociais do artista que deu à música popular no Brasil um caráter único.
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fotos: divulgação
Mimo 2012
mais enxuto e mais amplo
Sonoras Graceland
Uma pérola resgatada
“I’m going to Graceland/Graceland/Memphis/Tennessee.” Em meados dos anos 1980, Paul Simon estava com essa frase na cabeça, como se fosse um mantra. Ele nunca tinha ido à mítica mansão de Elvis Presley, e nem pretendia fazer referência ao Rei do Rock, mas o que podemos dizer é que se trata de uma coincidência do destino que Simon, assim como Presley nos anos 1950, tenha sido, na década de 1980, mais um artista branco a ser responsável por divulgar para o mundo a música negra. E foi exatamente o que aconteceu com seu disco Graceland, em que o músico norteamericano foi beber na fonte dos ritmos africanos, indo à África do Sul, ignorando o boicote da comunidade internacional ao país que vivia ainda sob o regime do apartheid. O interesse de Simon pela música africana foi despertado após ter ouvido, em 1984, uma fita cassete com alguns artistas do país. Fascinado, teve a ideia de ir a Joanesburgo. Lá se encontrou com músicos locais e começou a compor, estabelecendo parcerias com esses compositores. O cantor, que já havia lançado algumas pérolas da música pop, como Sounds of silence e Mrs Robinson (junto com Art Garfunkel), não desconfiava de que estava dando vida ao disco mais importante de sua carreira (14 milhões de cópias e Grammy de Álbum do Ano), que quebraria barreiras políticas, culturais e sociais e se tornaria um dos pilares da world music, influenciando diversos artistas, como a banda Vampire Weekend. Agora, para comemorar os 25 anos do disco que figura na lista dos melhores de todos os tempos, é lançada uma edição de luxo, com seis faixas extras. Há encartado, também, o documentário Under african skies, que traz depoimentos de nomes como Whoopi Goldberg, Barney Rachabane, Paul McCartney, David Byrne, Phillip Glass, Ray Phiri, Harry Belafonte, Hugh Masekela e Oprah Winfrey. Como disse Paul Simon, Graceland serviu para mostrar ao mundo que as vítimas do apartheid tinham um rosto, mesmo que fosse o de músicos talentosos e sorridentes. DÉBORA NASCIMENTO
Talvez pouco repercuta em Pernambuco a expansão da Mostra Internacional de Música em Olinda, Mimo para a cidade de Ouro Preto-MG. Mas o público do Recife e Olinda certamente vai comemorar a possibilidade de ir ao máximo possível de shows e concertos do festival, já que não haverá mais apresentações simultâneas como nas edições anteriores. Dentre os convidados principais da Mimo 2012 estão o ex-Mutante Arnaldo Baptista, Tom Zé, o cubano Chucho Valdés, os portugueses Maria João e Mario Laginha, e o Duo Assad (foto). A etapa educativa, que inclui o curso de regência com o maestro Isaac Karabtchevsky, e o Festival Mimo de Cinema também estão confirmados. O compositor residente do festival será Edino Krieger. CARLOS EDUARDO AMARAL
Virtuosi Século XXI
a música do agora Se faltava no Recife um festival dedicado exclusivamente à música de concerto contemporânea, a primeira edição do Virtuosi Século XXI preocupou-se em trazer intérpretes e compositores de diversas linhas de expressão nesse campo. Dentre os executantes, estão o Gotlands Blasarkvintett, da Suécia, o Grupo Sonantis, da Paraíba, e o violinista suiço Egidius Streiff, que apresentarão obras de Eli-Eri Moura (curador do festival), Marlos Nobre, Harry Crowl (foto), Roberto Victório, João Pedro Oliveira e do francês Tristan Murail, que transita pela música espectral e pela música árabe e norte-africana. Os compositores convidados ministrarão palestras e oficinas em sala multimídia durante o evento, que acontecerá nos dias 9, 10 e 11 de outubro, na Caixa Cultural, Recife Antigo. CEA
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INDICAÇÕES JAZZ
COCO
JORGINHO NETO Samba Jazz
ZÉ DE TETÉ O rei do coco chegou
O primeiro CD do trombonista paulista que se apresentou no último FIG traz apenas seis faixas, arranjadas por cinco músicos diferentes, mas, por isso mesmo, abundantes em improvisos e exploração de registros. Integrante de diversas big bands, entre elas a Mantiqueira, e avalizado por Raul de Souza, um dos expoentes maiores do samba jazz, Jorginho Neto retoma o espírito desse gênero, popular nos anos 1960, e dá espaço para todos os músicos convidados destacarem-se como solistas.
Natural de Limoeiro, Zé de Teté chega ao décimo trabalho cantando desde cenas de seu cotidiano (tais quais as partidas de baralho e o canto dos passarinhos) até as agruras do poder e as preocupações com a natureza, amenizando o tom crítico de algumas letras com engenhosa melodia, até porque o coco é um gênero musical que não dá espaço para a melancolia. E o coquista, altivo, proclama: “O Brasil tem quatro reis: Luiz Gonzaga, Pelé, Roberto Carlos e Zé de Teté”.
Tratore
Independente
INSTRUMENTAL
MPB/JAZZ
RADEGUNDIS FEITOSA Radegundis Feitosa
BETH AMIN Poesia à toa Canto Discos
Independente
O documentário da TV UFPB recapitula o legado humano e artístico do trombonista paraibano falecido em 2010, que se tornara o primeiro brasileiro a doutorar-se no instrumento. O DVD contém depoimentos de diversos músicos que conviveram com o virtuose de Itaporanga, como Eli-Eri Moura e Maestro Duda, e trechos de diversas apresentações musicais de que participou – além do Réquiem para um trombone, composto em sua memória.
Poucos músicos, hoje, aventuram-se a escrever canções cujas letras nasçam primeiro como poemas autônomos e acabados antes de ganharem uma melodia. Esse foi o processo criativo que guiou Beth Amin em Poesia à toa – a exemplo de Eu, soneto decassílabo que se transformou na primeira faixa do CD. Detalhe a mais para a voz de Amin, caso atípico de cantora com formação em fonoaudiologia. A direção artística é do pianista cubano Yaniel Matos.
Coletânea
FACETAS E PARADIGMAS DOS CRIADORES MUSICAIS Talvez pouco subsista, no imaginário coletivo, a figura do compositor do período romântico que permaneceu por gerações, nas palavras de Tim Rescala, como “um sofredor incompreendido, sempre de saúde frágil e sujeito a uma morte prematura” – pelo menos, quando nos referimos aos compositores modernos e contemporâneos. Contudo, nenhuma outra imagem efetivamente substituiu aquela, e continua sendo quase inescapável, conforme o mesmo Rescala, autor de operetas infantis, a condenação ao anonimato como sina dos grandes gênios da música. Assim, a fim de convergir experiências e atuais reflexões a respeito da atividade composicional, bem como situar o leitor em geral a respeito do tema, o “de compositor”, Livio Tragtenberg (da Orquestra dos Músicos de Rua e da Blind Sound Orchestra) reuniu artistas e estudiosos – de expressões tão diversas quanto o compositor de música acusmática Rodolfo Caesar; o sonologista Sérgio Pinto; e Ibaney Chasin, pesquisador
nos campos de música, história e filosofia – para a produção da coletânea O ofício do compositor hoje, que organizou para a Editora Perspectiva. Sem restrições de ordem formal, os colaboradores proporcionaram uma diversidade não só de visões, mas também de gêneros textuais, do acadêmico ao experimental, como na colagem de Emanuel Pimenta (arquiteto e fotógrafo que conviveu com John Cage e Merce Cunningham) e nos aforismos estruturados como variações sobre temas (citações) de Sartre, por Eduardo Seincman. Ao largo de 364 páginas, os 14 autores revisitam o mister da composição sob abordagens tão distintas quanto a do ativismo político, do status social da profissão desde a Renascença, da assimilação da música acusmática, da prática da música popular urbana e da ontologia, direcionando ao que observa José Augusto Mannis, ao mencionar a “acumulação gradativa de novas atribuições, aglutinadas ao redor da composição”. CEA
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divulgação
SLOTERDIJK Antes tarde do que nunca
Trinta anos após seu lançamento, é publicada no Brasil a maior reflexão sobre o cinismo na modernidade, Crítica da razão cínica texto Frederico Antonio Cordeiro Feitoza
Leitura Para todos aqueles que desconfiaram do teor escatológico das acusações de Sloterdijk sobre o cinismo como uma epidemia da modernidade, agora chegou a oportunidade de conferir a atualidade de seus pressupostos. Quase três décadas depois do seu lançamento na Alemanha (1983), quando vendeu aproximadamente 40 mil cópias em três meses, podemos ler, finalmente, em português, a Crítica da razão cínica (Estação Liberdade) e entender por que o cinismo tem sido alçado ao modo de racionalização dominante hoje. À época de seu lançamento, o livro conseguiu emplacar entre um número elevado de leitores (para um “tijolo” de 700 páginas da filosofia atual) porque seu estilo em pouco lembra os grandes tratados críticos: um tanto consternada, em alguma medida escatológica e bastante direta, a escrita de Sloterdijk se concentra na cotidianidade da Filosofia. Andreas Huyssen, reconhecido
intelectual alemão, afirmou, no prefácio à edição inglesa de 1987, que o livro poderia ser lido como um pastiche da Dialética do esclarecimento, mas um pastiche que mantém na memória a dor e a ira da melancolia adorniana. Ainda segundo Huyssen, Sloterdijk dialoga como um “Diógenes pós-moderno”, assentado na ideia de que a crítica deve considerar o corpo e os sentidos como meios de se descrever o desconforto diante de tudo o que concentra poder. Dois são os cinismos com os quais lidamos no livro: o kynismo grego, de Diógenes, que fez escola – um antídoto ao poder, que almeja sua deterioração pelo riso, ironia e sarcasmo –, e o cinismo como um caráter social, fundamentalmente associal, capaz de elevar a consciência à apatia psicopolítica. Para Sloterdijk, o cínico de hoje é uma figura da massa: um sujeito mediano pressionado pelos efeitos individualizantes do espaço
urbano e do clima midiático. “A pessoa com o olhar limpo e ‘maligno’ desapareceu na multidão”, escreve. Diante desse autismo político, restaria questionar de que maneira é possível repensar esse sujeito sem que se corra o risco de aderir, por um lado, à lógica daquele ego kantiano epistemologicamente prevenido, e, por outro, ao fluxo livre, esquizofrênico e sem identidade proposto por Deleuze e Guattari. Buscando superar a teoria crítica frankfurtiana, mas conservando um quê da melancolia adorniana, e tendo na fenomenologia de Heidegger um tipo de standpoint espiritual, Sloterdijk assume, na introdução, que só é possível praticar uma crítica da razão com “carne, sangue (e dentes)”. Nas bases da postura niilista, narcísica e desencantada do caráter cínico, descrito pelo filósofo como um tipo de melancolia borderline, está a relação deserotizada do sujeito com
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cultural. Isso se explicaria pelo fato de ser essa uma forma viável, tanto ao indivíduo quanto às instituições que o representam, de escaparem ao desencantamento e à anomia social que devastavam a Alemanha prénazista. Mas que fórmula ideológica caracterizaria esse cinismo? De acordo com o autor, uma “falsa consciência esclarecida” como forma de racionalidade capaz de sumarizar as condições para uma neutralização moral de posturas capturadas pelo poder. A ideologia não funcionaria mais através da fórmula clássica “eles não sabem o que fazem”, mas por meio de um oportuno “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”.
CINISMO NO CORPO
o saber. Historicamente, a partir do momento (fins do século 18) em que o processo de instrumentalização da razão transformou conhecimento em informação, e, mais ainda, quando se tomou consciência de que saber é poder, todo sujeito comum teve a oportunidade de se transformar em um tipo de Fausto mediano: a experiência com o conhecimento deixou de ser prazerosa para se tornar utilitária. Após esse “esclarecimento”, e não havendo mais o que fazer para reverter esses novos modos de relacionamento do sujeito com a verdade, o cinismo tornou-se um aparato da consciência, relativamente terapêutico, em um mundo de normas paradoxalmente esvaziado de sentido fixo. Sloterdijk traz o exemplo da República de Weimar (Alemanha, 1919-1933), como o primeiro momento da modernidade em que tal cinismo nocivo tornou-se uma dominante
No primeiro momento do livro, ele promove uma revisão das formas críticas que impulsionaram os mais importantes debates filosóficos e políticos nos últimos dois séculos. Do marxismo à psicanálise, com especial atenção à crítica kantiana à razão pura, Sloterdijk se concentra em pensá-las como modos paradigmáticos da crítica esclarecida à ideologia, que se tornaram, um a um, incipientes, diante dos processos defensivos do poder hegemônico. Em outro momento, abertamente escatológico, ele se concentra em localizar o cinismo no corpo, de acordo com uma análise fisionômica escrachada: o sorriso malicioso na boca do cínico, o piscar de olhos, a sua relação com as fezes e com a flatulência. A categoria “merda”, ele diz, deve ser trazida para a filosofia como um modo de entender, por meio de nossas relações animalescas com os excrementos, o comportamento ambivalente dos homens com seus próprios interesses e formas de recusa. Filósofos kynicos são aqueles que nunca se sentem nauseados, afirma, quando lembra que Diógenes pode ser admitido para a galeria ancestral das consciências escatológicas, as quais levam em conta a nossa animalidade inevitável, enquanto produtora de bosta em escala industrial. Filósofos atuais reconhecidos, como o esloveno Slavoj Zizek e o brasileiro Vladimir Safatle, conferem ao cinismo, e à falsa consciência esclarecida, um
importante dispositivo da ideologia ou pós-ideologia e das disposições subjetivas em nossa cultura. O modo de racionalização cínico diante do esvaziamento de uma verdade referencial pelo qual atravessamos é entendido por Safatle como uma solução problemática capaz de estabilizar situações de crises. Assim, o sistema de normas e valores estaria sempre passível de se inverter no momento mesmo de sua aplicação: “Como se fosse capaz de transformar o ‘sofrimento de indeterminação’ em motivo de gozo”, escreve ele em Cinismo e falência da crítica. Também utilizando a fórmula de Sloterdijk da falsa consciência esclarecida para recriar formas efetiva de crítica, Zizek pensa que o cinismo é fundamental para dar suporte à fantasia ideológica e fazer da perversão uma estrutura subjetiva dominante, capaz de levar o sujeito a lidar de forma ambivalente
Filósofos atuais conferem ao cinismo um importante dispositivo da ideologia e das disposições subjetivas com a lei e sua transgressão sem que isso cause qualquer tipo de ansiedade psicopolítica. Ao ter sido lançado somente agora no Brasil, sob o peso de um atraso talvez sintomático, a Crítica da razão cínica pode funcionar como um antídoto atualizado contra a indiferença e a descrença com as quais temos nos relacionado com nossas instituições e seus representantes. Se não há mais a possibilidade de um “desmascaramento” ideológico, nada impede que tentemos recriar os modos de usarmos nossas próprias máscaras. Atrasado, porém bastante bem-vindo e com uma eficiente tradução do presidente da Sociedade Brasileira de Fenomenologia, Marco Casanova, esse lançamento precede a aguardada tradução do primeiro volume da trilogia de Sloterdijk, intitulada Esferas, sistematização filosófica sobre a relação simbiótica entre o homem e o meio ambiente.
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RILKE Equilíbrio entre o semântico e o formal
Antologia traduzida por José Paulo Paes revisita obras do poeta tcheco, buscando respeitar, além do sentido das estrofes, suas rimas e metrificações TEXTO Gianni Paula de Melo REPRODUÇÃO
Leitura
O primeiro “encontro” entre José Paulo Paes e Rainer Maria Rilke se deu em 1926. Naquele ano, em julho – mês em que nasceu o escritor paulista – até novembro –, mês da morte do poeta famoso por sua obra em língua alemã –, os dois artistas comungaram o mesmo mundo; encontraram-se contemporâneos por um breve período. Mais tarde, quando, nas décadas de 1940 e 1950, o rilkianismo ganhou os leitores brasileiros e exerceu influência expressiva sobre os autores nacionais, José Paulo Paes tomou conhecimento
de algumas obras do tcheco – era o segundo “encontro” dos poetas. Suas leituras das traduções feitas para o espanhol e para o francês, no entanto, não o contagiaram como no frenesi da época. Só depois de aquirir alguma familiaridade com a língua alemã, ele retornou à poesia de Rilke, podendo, então, confrontar o texto original com as versões a que tivera acesso. Esse foi o terceiro – e decisivo “encontro” – entre eles. A partir daí, José Paulo Paes começou a esboçar as próprias traduções,
pois notava que, nas existentes, o sentido era priorizado em demasia, enquanto rimas e metrificações não eram tratadas com o mesmo zelo. Dessa forma, a antologia traduzida pelo poeta brasileiro (falecido em 1998) e editada pela Companhia das Letras se preocupa igualmente com os aspectos semânticos e formais. Na tentativa de criar um panorama representativo de Rilke, foram selecionados poemas das obras Livro de horas, Livro das imagens, Novos poemas, Réquiem, Elegias duinenses, Sonetos a Orfeu, além de outros, esparsos e póstumos. Praticamente todas as suas fases são revisitadas e notamos como seu estilo acolhe, em diferentes momentos, traços neorromânticos, simbolistas, impressionistas e expressionistas. Antes dos poemas, o tradutor ainda faz uma apreciação ao mesmo tempo crítica e didática da obra apresentada no livro, em uma introdução que ele próprio avalia como apenas um “trabalho de divulgação”; informações compiladas e reelaboradas “em linguagem mais pedestre”. Modéstia de José Paulo Paes à parte, o texto serve como repertório que amplia as possibilidades de entendimento da poética conhecidamente metafísica de Rilke, sem a arrogância de querer decifrá-la. A intenção é apontar noções-chaves ao público sobre um poeta tão denso, e que, justamente por isso, não se esgota no esforço interpretativo. Os anjos recorrentes na sua poesia, aliás, representam um desses elementos que ficaram reféns do comportamento hermenêutico de alguns leitores diante do texto poético. A seleta é eficaz em transmitir as preocupações e interesses do escritor que passou grande parte da vida sustentado por mecenas e teve tempo para apurar sua arte entre castelos e viagens. Resguardando sempre a solidão necessária à criação – até mesmo depois de se casar –, Rilke persegue suas dúvidas sobre a existência e recorre aos jogos de oposição/complementação para respondê-las: anjo e homem, dor e júbilo, vida e morte. E quando o assunto é Deus, sua inquietude torna-se ainda mais elevada, já que não era passivo aos dogmas ou alinhado às regras religiosas, mas estava sempre embriagado das questões próprias da espiritualidade.
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INDICAÇÕES ENSAIO
CONTOS
RELIGIÃO
Publisher Brasil
Edith
Bom Livro
IGNACIO RAMONET A explosão do jornalismo Nesta reunião de ensaios, ignacio Ramonet aborda as grandes mudanças na produção e recepção de informações, que desestruturam as formas tradicionais do jornalismo, como a notícia e a reportagem. valendo-se de dados recentes, o autor explica sobretudo como o “meteorito da internet” pode pôr em extinção a prática “jurássica” das mídias tradicionais.
CELINA CASTRO Santos de vento Este livro de estreia da jornalista Celina Castro reúne 17 contos sobre a infância. a voz de uma criançanarradora permeia grande parte dos relatos, cujo cenário é uma roça idílica em Minas gerais. Temas sérios, como a morte, estão quase sempre lá, mas passam apenas pela tangente, como se a autora quisesse proteger os personagens infantis da tristeza.
ROMANCE
ANATOLE JELIHOVSCHI A gorda
LISZT RANGEL Por que Jesus? Com um viés arqueológico, o autor liszt Rangel faz uma viagem por ruínas de israel e do Egito em busca de novos subsídios históricos sobre Jesus e o povo judeu. o resultado das investigações se confronta com afirmações dogmáticas da Bíblia e da tradição ocidental, enquanto tentam estabelecer aproximações e distâncias entre o Cristo mítico e o histórico.
Motor
um homem sozinho, no ano-Novo, entra ao léu num restaurante do Rio. a dona do estabelecimento o convida para um espetáculo de cabaré que protagonizará naquela mesma noite. a partir daí, uma trama onírica se desenrola de maneira fluente, refinada e engraçada, apropriando-se também de particularidades da história carioca.
Viagem ao crepúsculo
IMPRESSÕES SOBRE OS RUMOS DA REVOLUÇÃO CUBANA São alguns os pontos que aproximam A ilha, de Fernando Morais, de Viagem ao crepúsculo, de Samarone lima. ambos são relatos de impressões pessoais sobre o único país de resistência socialista na américa latina. Mas enquanto a viagem de Morais a Cuba, nos anos 1970, encanta o escritor – com a organização do sistema escolar, os avanços na saúde, os índices de excelência no esporte... –, Samarone vislumbra o sol se pondo na ilha. “Pelas artimanhas do destino, vivi os últimos dias de Cuba sob o comando de Fidel Castro”, o jornalista fecha a introdução do livro, e a partir daí destrincha a realidade do povo cubano repleta de vicissitudes, como que descascando o verniz dos escritos já datados de Morais e das ovações proferidas por ideólogos de esquerda. Chegando à sua segunda edição pela editora Paés, Viagem ao crepúsculo foi publicado pela primeira vez em 2009 pela Casa das Musas, e teve sua singela tiragem de mil exemplares esgotada. Fruto da permanência de Samarone na ilha, entre dezembro de 2007 e janeiro de 2008, o livro traz ainda informações sobre como o jornalista viajou pelo país, hospedando-se nas casas mais
simples, em detrimento dos grandes resorts que abrigam turistas do mundo inteiro, num modelo paradoxal de mercado capitalista. outras circunstâncias contraditórias saltaram aos seus olhos, como a existência de duas moedas em circulação (o peso cubano e o CuC; grosso modo, uma para os nativos, outra para os turistas), o ativíssimo mercado negro, a escassez de bens essenciais e as polaridades na interpretação para Fidel feita pelos cubanos: cultuado e criticado – líder destemido e ditador. Esses fatores corroboram com a atmosfera particular de Cuba, onde tudo funciona de maneira dual – oficial e oficiosamente. a nova edição, revisada e ampliada, traz um projeto gráfico mais bonito e cuidadoso, além de um capítulo ampliado, no qual Samarone analisa o cerco aos dissidentes políticos e o funcionamento da repressão daqueles que criticam o regime. outro extra é o ensaio fotográfico produzido por Beto Figueirôa na ilha (foto à esquerda), mais uma aproximação com o livro de Morais, que, na sua reedição de 2001, traz um caderno de fotos e novas e descrentes impressões sobre os rumos tomados pela Revolução. aNdRÉ valENça
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Artigo
CARMELA GRÜNE A CULTURA QUE DEVERIA HAVER POR TRÁS DAS GRADES O tema proposto traz como
preocupação a necessidade de fomentar a expressão da cidadania no cárcere, haja vista a cultura repressiva demonstrada por grande parte da sociedade, que prefere isolar, ao invés de incluir. Punir com toda vingança, retribuindo o mal com o mal. Esse comportamento social faz parte de um processo que, ao longo da história da humanidade, foi se perpetuando pelas práticas de opressão, tortura e violência institucionalizadas como mecanismos de correção do indivíduo, práticas que ainda são consideradas eficazes pela população. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma: “A sociedade está cada vez mais individualizada”. Dividida por fronteiras e muros, ela estabelece o grau de contato com o qual quer enxergar as mazelas sociais, entregando aos governantes responsabilidades que são coletivas, somente se interessando pela realidade prisional quando é afetada pelo sistema com um filho ou alguém próximo que vai preso. A partir desse momento, passam a indagar por que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, um sistema prisional superlotado e desumano. Será que estamos mais violentos? Nossas políticas públicas preventivas de combate à drogadição funcionam? Há planejamento familiar? O acesso à justiça é proporcionado de modo adequado? São questões diretamente relacionadas à nossa cultura: 1) prendemos pessoas como se todas fossem violentas; 2) somos coniventes com a propaganda ostensiva em horários nobres na televisão, com atletas, artistas, personalidades, estimulando o consumo de álcool, a droga que mais mata, no trânsito, porta de outras substâncias mais nocivas; 3) falta planejamento
sxc.hu/reprodução
familiar, os pais são ausentes de suas responsabilidades e as mães adolescentes não têm estrutura para enfrentar a maternidade; 4) o acesso à justiça é confundido como sinônimo de poder judiciário, causando confusão na população, a qual acredita que a judicialização da vida seja o caminho, a solução adequada aos conflitos. O que resulta no expressivo número de ações sem julgamento – detentos sem sentença, há anos. É evidente que isso não faz justiça. É necessário refletir: quem pratica um crime, geralmente, tem no seu passado uma história de violência social, familiar, escolar, estatal. Não podemos tratar com violência aqueles que cometem crimes – estamos reforçando comportamentos antissociais, deles e nossos. Numa paz armada, em que sabemos que violência gera violência, qual caminho estamos traçando? Muitas pessoas, quando ouvem falar de algum tipo de proteção ou benefício concedido aos detentos, encaram de modo negativo tal atitude, pois foram “educados” para pensar
Para termos bons cidadãos, é necessário investir em práticas que promovam as qualidades de cada pessoa que quem fez algo errado é um ser perigoso e deve ser isolado. Quando cumprirem a pena, estarão prontos para quê? Promover o diálogo, criar possibilidades de expressão e sinergia entre as pessoas é uma realidade que precisa existir. Aqui estamos falando no desenvolvimento do capital humano e social positivo, isto é, em direcionar potencialidades e capacidades do grupo para o bem comum, tanto de quem vive no cárcere como de quem olha essa cultura que transcende as grades. Assim, a sociedade, como um todo, conhecendo a realidade, pelas histórias de vida, poderá encarar de modo diferente a maneira como
age com as pessoas que, por algum infortúnio, erraram. Quanto maior o número de demandas públicas e a incapacidade do povo em deliberar a agenda política, mais a sociedade, destaca Norberto Bobbio, torna-se ingovernável. Isso quer dizer que, sem conhecimento e consciência coletiva, perpetuamos a cultura repressiva. Quando os meios de comunicação são utilizados como instrumento de debate, de discussão pública, o significado de fazer parte de uma comunidade é fortalecido. Desenvolvemos e garantimos direitos fundamentais pela emancipação de valores sociais, base moral e ética da convivência sadia.
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Para termos bons cidadãos, é necessário um investimento forte em práticas que promovam e enalteçam as capacidades e qualidades de cada pessoa, refletindo na autoestima, na alteridade, na identificação e redução do sentimento de nadificação e inexistência social. A cultura se mantém por meio do modo de propagação e significados da vida. É urgente estimular essa expressão carcerária, advinda de manifestações como música, dança, poesia, grafite, teatro, artigos produzidos pelos próprios detentos, pois são formas criativas de trabalhar com o imaginário social, construir um diálogo transdisciplinar, fazer com
que o cidadão possa compreender melhor a realidade prisional e o seu papel na mudança de paradigmas dentro da vida em comunidade. A interlocução do público com o privado deve acontecer, seja pela união de Ministérios – da Cultura, Justiça, Educação, Saúde – com empresas e instituições de ensino privadas, para a criação de políticas públicas de acesso aos meios de comunicação, seja por rádio, internet, blogs e através de conteúdos devidamente avaliados, para que atinjam o objetivo proposto: fomentar a “cultura do e no cárcere”, expressão cívica dos detentos. Eles são “gente como a gente”. Artistas, educadores, pessoas cheias
de talentos reprimidos, da infância à vida adulta, por diferentes motivos, alguns com grande potencial. A maioria, jovens que precisam de oportunidades para trilhar um caminho longe das drogas, da criminalidade. Fomentar cultura no sistema prisional é construir um novo olhar para a questão de como a sociedade trata suas mazelas sociais – e a arte é um excelente caminho para se fazer justiça e exaltar outra cultura. Cidadania sem expressão gera opressão. Devemos descobrir um novo continente ou permanecer indiferentes a tudo que existe por trás das grades. O resultado está logo ali, no futuro. Faça sua escolha.
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Luciana Torreão
A ENTRADA PARA o UNIVERSO DO VINHO
Falem o que quiserem, mas uma coisa é fato: se, por um lado, os lendários vinhos alemães da garrafa azul foram os responsáveis por muitas pessoas torcerem o nariz para os brancos, por outro, foram porta de entrada de muita gente no mundo dos vinhos. Com a abertura da importação pelo governo Collor, muita coisa chegou por aqui, de boa e de má qualidade. O riesling azul foi um de boa qualidade. A estratégia partiu da importadora de marca pioneira, que, para trazer os riesling ao Brasil, sugeriu ao fabricante que mudasse a cor da garrafa, pois assim chamaria mais a atenção e daria status à bebida. E deu certo: dos 24 milhões de garrafas de vinho importadas no Brasil, 14,4 milhões eram Liebfraumich. A empresa vende até hoje seu ícone azul. Vale destacar que foi ela a responsável por rótulos de outras nacionalidades chegarem por aqui mais facilmente. Entretanto, se havia chance de o brasileiro, naquela época, produzir etiquetas de qualidade, essa avalanche alemã fez com que os fabricantes percebessem que poderiam fazer vinhos de pouca qualidade a baixos preços e, ainda assim, vender muito. Dito e feito. O sucesso do produto significou a expansão de vinhos brasileiros, também de qualidade duvidosa. Vinícolas nacionais passaram a fabricar seu riesling azul com rótulos de nome alemão. Ninguém queria saber se era ou não alemão de verdade. Nem se percebia. O que importava era adquirir a garrafa da cor da moda. A boa notícia é que essa onda levou o brasileiro a querer desvendar esse universo e ir em busca, cada vez mais, de novidades. Naquele período, o interesse pelos frisantes e lambruscos também foi uma febre. A princípio, tudo que era levemente adocicado agradava ao nosso paladar. Se, filosoficamente, o homem é um eterno insatisfeito, o brasileiro é, comercialmente, um desbravador em busca de consumir coisas novas e melhores. Inevitavelmente, os fenômenos azuis ou borbulhantes foram os propulsores para que, aos poucos, bebêssemos vinhos chilenos e argentinos mais leves. Foram eles os responsáveis pela nossa transição para vinhos secos de melhor qualidade, a chegada de rótulos e safras excepcionais e a abertura de casas especializadas e importadoras da bebida por aqui. E, hoje, junto com os Brics, estamos salvando o escoamento da produção de vinhos do Velho Mundo, que vive uma de suas piores crises econômicas. Sem falar em estudos que apontam para a migração do brasileiro, em 15 anos, dos atuais 1,8 litros per capita ao ano, para 9 litros.
Luciana Torreão
é jornalista, publicitária e especialista em marketing
con ti nen te
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ROMANCE
14 A 16/ 09 A PA R T I R D A S 1 6 H M A R CO Z E R O N O V O S e S P e Tác u lO S D e 7 PA Í S e S d E g R Aç A
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