Continente #143 - Palavrão

Page 1

www.revistacontinente.com.br

# 143

PALAVRÃO POR QUE GOSTAMOS TANTO DE USÁ-LO?

#143 ano XII • nov/12 • R$ 11,00

CONTINENTE

MORTE

ESCRITOS DO ENCONTRO COM O FIM NOV 12

CAPALAVRAO.indd 1

E MAIS EUGÈNE IONESCO | CONFEITARIA COLOMBO | TECNOLOGIA & ARTE | TEATRO DE BONECOS | A INVENÇÃO DA LEITURA SILENCIOSA 29/10/2012 10:59:26


CAPALAVRAO.indd 2

29/10/2012 10:59:32


gabriel uchida

n ov e m b r o 2 0 1 2

aos leitores Qual a força gerada por uma palavra? Muitas vezes, falamos sem ao menos imaginar o efeito que o dito produz. Em outros momentos, calculamos resultados, usando expressões singelas, amenas, sóbrias, neutras ou, ao contrário, fortes, enfáticas, agressivas, chulas. Há muitas gradações para o léxico, e esses níveis são conferidos não apenas pelos vocábulos, mas pelo que os acompanha e contextualiza, como a modulação da voz, os gestos e as expressões. Há um consenso de que certas palavras devem ser ditas e que outras estão interditas. O palavrão figura entre as últimas. Uma pessoa de “boca suja” é mal vista, condenada socialmente. Quem usa palavrão desceu ao baixo nível. Se igualou à ralé. Esse é o senso comum, que orienta a etiqueta da fala. Moderado é aquele que controla seus instintos e revela temperança no discurso. Gente educada não fala palavrão, é o que aprendemos desde a infância. Se assim é, porque os nomes feios insistem em surgir? Por que os soltamos? Na matéria de capa desta edição, fizemos “amizade” com o palavrão, observando com tolerância sua presença entre nós. O jornalista Gilson Oliveira constatou, por exemplo, que chega a ser injusta a fama de desbocados que os brasileiros imputam a si mesmos. Porque, quando deu por finalizado seu Dicionário do palavrão e termos

Editorial NOV.indd 4

afins, o etnólogo Mário Souto Maior havia registrado três mil desses verbetes em língua portuguesa, enquanto, na Alemanha, no mesmo período, o livro O sexo na linguagem popular registrava mais de nove mil. Se o material produzido por Gilson já apontava para a vinculação entre palavrão e sexualidade, o artigo de Marlos de Barros Pessoa foi a última pá de cal a esse respeito. Num artigo leve e instrutivo, ele explica linguisticamente a relação que se estabelece entre tais expressões e o “baixo corporal”. O professor coloca um monte de palavrão no seu texto e, no entanto, eles não soam nada chulos, porque foram retirados do contexto que os origina e colocados no campo da reflexão. Isso nos leva a uma evidência: uma palavra ou palavrão podem soar contrários àquilo que exprimiriam. Assim, um” FDP” dito num ambiente fraterno pode ser bem-vindo, enquanto que um “querida” proferido por alguém que lhe espicaça soará muito desagradável. Nesta edição, ainda, oferecemos dois presentes ao leitor: um CD inédito do cantor e compositor Geraldo Maia, Estrada, e uma edição especial, encartada, sobre o crítico literário caruaruense Álvaro Lins, cujo centenário de nascimento comemora-se em dezembro.

24/10/2012 15:00:28


2_3_ANUNCIO.indd 24

25/10/2012 08:14:47


2_3_ANUNCIO.indd 25

25/10/2012 08:14:47


sumário Portfólio

Flora Pimentel

6 Cartas

7 Colaboradores

8 Entrevista

Expediente

58 Sonoras

Geraldo Maia Em seu nono CD, Estrada, cantor reinterpreta antigas composições

+

Fábio Zanon Aos 30 anos de carreira, violonista diz que não conhece “bom intérprete de miolo mole”

12 Conexão

José Guadalupe Posada Site disponibiliza reproduções de obras do gravurista mexicano

20 Balaio

Torquato Neto Há 40 anos, o poeta que foi um dos artífices da Tropicália deu fim à vida, aos 28 anos

42 Comportamento

70

Matéria Corrida

Em seu trabalho de documentação de orquestras sinfônicas, fotógrafa realiza ensaio em que registra os músicos em momentos de descontração nos bastidores

14

José Cláudio Acordar cedo

72 Leitura

Coautoria online A aventura de escritores, como Mario Prata, na exploração da internet para criar narrativas

78 Artigo

Mariana Trajano Um olhar sobre o tempo dos trambolhos

84 Saída

Solange Coutinho O design dos não designers

Morte Autores como Christopher Hitchens expõem a vulnerabilidade e a fragilidade humana

52 Palco

Eugène Ionesco No final dos anos 1940, o dramaturgo consolidava o Teatro do Absurdo

Cardápio Colombo

A confeitaria mais famosa do Brasil abarca três séculos de história, que envolvem clientela ilustre, arquitetura luxuosa e gastronomia tradicional

46 Capa ILUstração Nelson Provazi

co n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4

Sumario_NOV.indd 4

23/10/2012 16:18:57


Especial

História

Cada vez mais presentes no cotidiano, os termos de baixo calão têm maior identificação com a natureza humana do que supõe o patrulhamento da sociedade

Hoje uma prática comum, essa forma de ler surgiu em contraste com a oratória e retórica da cultura greco-romana, atendendo à introspecção medieval

Claquete

Visuais

Lançamentos de filmes com enredos baseados em questões da maturidade sugerem uma mudança de parâmetros da indústria cinematográfica

Obras artísticas criadas a partir de aparatos tecnológicos e intrinsecamente ligados ao seu manuseio mobilizam criadores e público

Palavrão

22

Acima de 50

62

Leitura silenciosa

36

Nov’ 12

Arte e tecnologia

66

co n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5

Sumario_NOV.indd 5

23/10/2012 16:18:59


cartas Fileteado e nudez

breno laprovitera

Gostaria de registrar minha admiração pelo ecletismo das matérias de suas edições. Morei alguns anos na Argentina e deparar-me com o fileteado portenho, na revista de outubro, foi uma surpresa! É como se disse: “Uma graciosa marca”! E uma grande saudade! Na oportunidade, expresso minha “adesão” a todos os textos sobre o direito à nudez sem censuras; Gianni Paula de Melo

conseguiu respaldar, com firme escrita, todo conhecimento e sentimento que um dia esperávamos ler, ouvir. Parabéns pela edição primorosa!

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões.

Vânia Brandão Descalzi Recife–PE

Nudez Gostaria de parabenizar a jornalista Gianni Paula de Melo pela matéria de capa da Continente do mês de outubro. Parabéns pela coragem de trazer esse assunto à tona de uma forma comovedora. Espero que cada vez mais sejamos respeitadas.

No Twitter Parabenizo a @revcontinente #142. Perfeita como sempre. Outubro foi the best.

Larissa Arruda

Jardson Lemos

Recife–PE

Jaboatão dos Guararapes – PE

Luxo

No Facebook

Parabéns! Adoro esta revista. Conheci quando estive no Recife na pré-produção d’A Pedra do Reino. Assinei e pedi que me enviassem todos os números. Um luxo.

A Vera França dignifica toda a arte e todo artista. Ela tem uma trajetória linda de vida dedicada à profissão de modelo. E a foto ficou excepcional.

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

CAPA

Francisco Bocchini

Raimundo Rodriguez

A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140).

São Paulo – SP

(81) 3183 2780

Fax

(81) 3183 2783

Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6

Cartas_Colab_NOV.indd 6

24/10/2012 13:27:21


colaboradores

Gilson oliveira

Marlos de barros Pessoa

nelson Provazi

talita correia

é jornalista, revisor e coorganizador do livro Palavra de jornalista

é doutor em Filologia Românica pela Universidade de tübingen e professor de letras da UFPE

é ilustrador e colaborador de várias publicações nacionais e internacionais

é jornalista e editora de conteúdo web da Rede Globo

e MaiS carlos eduardo amaral, jornalista, mestre em Comunicação. Fernando Monteiro, escritor e cineasta. José teles, crítico musical do Jornal do Commercio e pesquisador de MbP. Mariana trajano, bacharel, mestre e doutora em Sociologia e professora de Sociologia. Pollyanna Diniz, jornalista e colaboradora do blog Satisfeita Yolanda. renato Mota, jornalista. Schneider carpeggiani, jornalista, mestre e doutor em teoria literária, editor do jornal literário Pernambuco e da revista ArtFliporto. Solange coutinho, professora da UFPE, doutora em Design. thiago corrêa, jornalista, mestrando em teoria literária.

GoVerno Do eStaDo De PernaMbUco

suPerintendente de ediÇão

continente online

atendimento ao assinante

goVernador

Adriana Dória Matos

Gianni Paula de Melo (jornalista)

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

suPerintendente de criaÇão

Juan Ropero (webdesigner)

Fone/fax: (81) 3183.2750

secretÁrio da casa ciVil

luiz Arrais

assinaturas@revistacontinente.com.br contatos com a redaÇão

Francisco tadeu barbosa de Alencar redaÇão

(81) 3183.2780

ediÇão eletrÔnica

coMPanHia eDitora De PernaMbUco – cePe

Danielle Romani, Débora Nascimento e

Fax: (81) 3183.2783

www.revistacontinente.com.br

Presidente

Mariana Oliveira (jornalistas)

redacao@revistacontinente.com.br

leda Alves

tiago barros (fotógrafo)

diretor de ProduÇão e ediÇão

Maria Helena Pôrto (revisora)

ProduÇão grÁfica

Ricardo Melo

André Valença, Duda Gueiros e Olivia de

Júlio Gonçalves

diretor administratiVo e financeiro

Souza (estagiários)

Eliseu Souza

bráulio Mendonça Menezes

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Sóstenes Fernandes

conselho editorial:

Roberto bandeira

Everardo Norões (presidente)

arte

Antônio Portela

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

PuBlicidade e marKeting

lourival Holanda

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

e circulaÇão

Nelly Medeiros de Carvalho

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Armando lemos

Pedro Américo de Farias

diagramação e ilustração)

Alexandre Monteiro Rosana Galvão Gilberto Silva Daniela brayner

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE redaÇão, administraÇão e ParQue grÁfico Rua Coelho leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

co n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7

Cartas_Colab_NOV.indd 7

24/10/2012 13:27:23


FÁBIO ZANON

“Toca bem quem tem cabeça boa”

Violonista defende que jovens intérpretes devem aliar formação pessoal e acadêmica, e que projetos sociais são mais eficientes na difusão da cultura musical TEXTO Carlos Eduardo Amaral

con ti nen te

Entrevista

Conversar com um intérprete de

música clássica geralmente implica falar de um projeto novo – CD, DVD, turnê, participação em festival etc. – ou de uma data redonda, recapitulando seus principais feitos artísticos, neste caso. Em 2012, Fabio Zanon completou 30 anos de carreira e lançou um álbum com peças contemporâneas, junto com o flautista Marcelo Barboza, porém decidimos entrevistá-lo não por essa razão. Também não por sua discografia ou sua atuação como professor na Royal Academy of Music, de Londres, cujo corpo docente inclui duas lendas do violão clássico mundial: John Williams (homônimo do compositor de Hollywood) e Julian Bream. Tratamos de assuntos fora de pauta na grande mídia, mas de todo modo pertinentes, a começar pelo vasto (e desconhecido) repertório violonístico brasileiro. E, ao adentrarmos outros tópicos, como o apoliticismo da maioria dos músicos, as dificuldades de apoio para o aperfeiçoamento interpretativo e a necessidade de atuação em outras frentes (como produção e agenciamento), Zanon mostrou-

se cada vez mais contundente, colocando abaixo lugares-comuns e questionando o status quo de diferentes setores musicais e culturais. CONTINENTE Após o final do programa Violão com Fábio Zanon (veiculado na Rádio Cultura FM de 2006 a 2009), você ainda se dedica à pesquisa do repertório nacional para o instrumento? FABIO ZANON Agora estou mais preocupado em tocar o que pesquisei. Tenho incluído em meu repertório várias obras que não conhecia antes do programa. Fico contente em ver que a série serviu como inspiração para outras pessoas pesquisarem o violão brasileiro em seus trabalhos de mestrado e doutorado. CONTINENTE Dado o repertório com o qual você teve contato nessas pesquisas, quem, dentre os compositores e intérpretes brasileiros, ofereceu contribuições universais para a técnica e a escrita composicional violonística? FABIO ZANON É uma pergunta de muitas faces. Se pensarmos no mexicano Manuel Ponce, tirando

sua posição de dentro da cultura musical de seu país, sua contribuição universal é ínfima. Mas, dentro do repertório do violão, ele é obrigatório. Acho que, indiscutivelmente, VillaLobos é um autor universal, com ou sem obra de violão. No repertório para o instrumento, eu agregaria Francisco Mignone e Marlos Nobre. Dos mais jovens, acho que Alexandre de Faria, Arthur Kampela e Marcus Siqueira deram saltos excepcionais na maneira de se escrever música de concerto para violão. Entretanto, fora do país, existe um interesse muito grande pela música que prolonga a tradição nacionalista. Por isso, Sérgio Assad é, com razão, o brasileiro mais tocado fora do Brasil, depois de Villa-Lobos. Sérgio é um fenômeno, além de compor bem, é integrante do duo que estabelece o parâmetro internacional. E vejo uma tendência forte em se incluir o violão solo de MPB em programas de concerto. A toda hora vejo concertistas fora do Brasil tocando Paulo Bellinati, Marco Pereira, e acho que isso tende a aumentar.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 8

Entrevista_OUT.indd 8

23/10/2012 16:23:11


edgardo gonzalez/divulgação

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 9

Entrevista_OUT.indd 9

23/10/2012 08:34:04


CONTINENTE Após várias gerações de bons intérpretes nacionais, quais os violonistas que estão firmando (ou poderão firmar) o nome do país nas salas de concertos mundiais? FABIO ZANON É difícil fazer um prognóstico. Depende muito de quanto o jovem alimenta seu talento, a maneira como conduz seus estudos, sua carreira. Acho que é a hora dos duos. O Brazil Guitar Duo e o Duo Siqueira-Lima são, para mim, os melhores duos do mundo depois do Duo Assad. Tem um rapaz da Bahia morando na Suíça, João Carlos Victor,

Entrevista

imagens: divulgação

con ti nen te

mas não se esforça o suficiente para se tornar alguém melhor. Uma vez esgotadas as possibilidades aqui, acho que a pessoa deveria tentar descobrir onde estão o curso e o professor mais adequados. Muitas universidades nos EUA oferecem bolsas e ajuda de custo para alunos de alto nível. Algumas instituições na Alemanha, Holanda e Suíça, também. Uma boa quantidade de escolas na Europa Central é praticamente grátis. Nesse caso, acho que o aspirante a aluno poderia trabalhar com afinco no Brasil por

que provavelmente é o mais talentoso da geração sub-30; boto muita fé nele. Por outro lado, o cenário de concerto tem mudado muito. Hoje, se a gente procurar, vai ver que o Yamandu Costa toca como solista de orquestra mais até que a maioria dos concertistas clássicos. Daí, nesse setor, o Brasil é uma grande força. CONTINENTE E qual o caminho para quem quer obter um aprimoramento musical de excelência? FABIO ZANON Acho que a primeira coisa é cuidar da cabecinha. Toca bem quem tem cabeça boa. Tem de se instruir, de fazer um investimento pessoal em cultura e buscar uma condição psicológica e emocional para atuar em alto nível. As duas coisas andam juntas, na verdade. Não conheço nenhum grande intérprete de miolo mole. Acho que muita gente se esforça para estudar no exterior,

uns dois ou três anos, para financiar sua estada, ou ao menos o primeiro ano dela, na Europa. Hoje, no Brasil, há várias pessoas iluminadas que financiam os estudos de quem possui potencial excepcional, mas claro que isso depende de sorte, indicações e contatos, e capacidade de se comunicar e evidenciar seus talentos. Nem todos têm isso. Talvez fosse interessante criar uma fundação, um pool de empresários que poderiam fazer essas doações a candidatos selecionados por uma banca de notáveis. Seria interessante ainda ter uma modalidade de bolsa que contemplasse aquele que vai se beneficiar ao estudar num conservatório ou numa escola de belasartes, sem título de doutorado. CONTINENTE O repertório violonístico – diferente do de outros instrumentos solistas do universo erudito – tem uma relação intrínseca com fontes populares e folclóricas em que seus

compositores beberam. Mas, dentre os que optam/optaram por uma linha estética sem ligações telúricas, quais valeriam a pena ser destacados em programas de grupos de câmara e orquestras sinfônicas? FABIO ZANON Acho que hoje as fontes telúricas são outras. Veja, por exemplo, o uso que o Thomas Adès faz da house music em sua Asyla. O repertório de violão dos últimos 40 anos é incrível. Isolar uma ou outra coisa seria até injusto. Eu destaco a extensa obra de Takemitsu, que tem três concertos incríveis; os concertos de Benjamin

“Num ambiente dominado pela cultura de massa e todas as suas implicações, só o fato de nos dedicarmos a Mozart já é um posicionamento político de resistência” Dwyer, Alexandre de Faria, John Corigliano, Hans Werner Henze, Luis de Pablo e Luca Francesconi. Quando falamos de música de câmara, se levarmos em conta a guitarra elétrica, a quantidade de obras espetaculares é imensa e, normalmente, para formações bastante inusitadas. Acho que a primeira formação inusitada é o Sexteto místico, de Villa-Lobos, e a partir dali tem de tudo. George Crumb, Tristan Murail, Boulez, Elliott Carter, Harrison Birtwistle, Magnus Lindberg, Olga Neuwirth, é uma quantidade incrível de grandes obras de câmara que usam violão ou guitarra elétrica. CONTINENTE Para um violonista, no Brasil, seria mais fácil empreender recitais solo e subsistir do violão, dado o binômio repertório/ aceitação do instrumento, ou as dificuldades são as mesmas que outros solistas enfrentam? FABIO ZANON Hoje, o violão se organiza ao redor de clubes e

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 0

Entrevista_OUT.indd 10

23/10/2012 08:34:05


sociedades de aficionados. Existem centenas de sociedades de violão e cerca de 200 festivais desse instrumento ao redor do mundo. Há 30 anos, existiam uns 20. É a única área da música clássica que teve um crescimento dessa envergadura. A explicação para isso é simples: as pessoas que administram teatros, séries de concertos, não atentaram para quem quer ouvir violão. Não programam e, nas raras vezes que o fazem, geralmente programam mal. A solução foi se insular. Isso tem acontecido

sejam elas música de quinta categoria, McDonald’s ou desumanização do trabalho, só o fato de nos dedicarmos a Mozart já é um posicionamento político de resistência. As questões de autonomia nacional que motivaram Sibelius ou Verdi, ou mesmo VillaLobos, não existem da mesma forma hoje. Talvez um Leo Brouwer, em Cuba. Aqui, no Brasil, temos o Jorge Antunes, mas digamos que sua obra tem uma repercussão mais limitada que a de um cantor de MPB. Os meus colegas estão dedicando suas vidas

musical. A toda hora reclamam dos músicos de orquestra, que deveriam saber tocar música popular, mas alguém sugere que a Ivete Sangalo deveria ser capaz de tocar Tchaikovsky lendo partitura? Acho que cada um tem sua especialidade. As escolas deveriam orientar os estudantes sobre isso, mas quando se chega num certo ponto é melhor entregar na mão de alguém que entende do assunto. Acho que quem tem as duas especialidades é a pessoa qualificada para trabalhar com produção e

“A toda hora reclamam que os músicos de orquestra deveriam saber tocar música popular, mas alguém sugere que a Ivete Sangalo deveria ser capaz de tocar Tchaikovsky lendo partitura?” no Brasil também. Não acho que seja possível subsistir exclusivamente de dar concertos. Seria uma iniciativa pioneira. O que acontece é que as orquestras e séries estabelecidas ainda tratam o violão como uma coisa um pouco especial e diferente, e o planejam com pouca frequência. CONTINENTE Por que a música erudita (talvez ao lado da dança clássica) ainda é considerada terreno da arte pura, no qual compositores ativistas são raridade e os instrumentistas são despolitizados e dedicados ao próprio labor, tal qual Lang Lang? Essa rejeição a se levantar uma bandeira parece apagar da memória os conflitos políticos em que se envolveram Sibelius, Smetana, Wagner, Verdi e outros. A música erudita pode voltar a ser um veículo para uma causa social aliada a preocupações estéticas pertinentes? FABIO ZANON Acho que, num ambiente dominado pela cultura de massa e todas as suas implicações,

à integração social das crianças pela música em projetos como o Guri, o Instituto Bacarelli (ambos em São Paulo) ou o Neojibá (na Bahia). O que fazem, e digo realmente fazem, as estrelas da MPB, como Chico Buarque e Caetano Veloso, além de darem apoio ao candidato X ou Y? Por que essa cobrança em cima de nós? Já não basta dar a oportunidade às pessoas de terem sua vida amparada por Bach ou Beethoven? CONTINENTE Músicos que gostariam apenas de se dedicar à sua atividade são a regra, mas não seria importante que eles também desenvolvessem habilidades que auxiliassem a própria carreira, como produção, agenciamento, captação de recursos e marketing pessoal? FABIO ZANON Em teoria, sim, acho que é preciso ter ao menos alguma noção de como fazer isso. Porém, também acho que ninguém cobra de um publicitário que tenha dom

agenciamento; talvez não para subir sozinho no palco e dar um recital de 90 minutos de música densa. CONTINENTE A volta do ensino musical nas escolas implicará uma exigência mais disseminada por críticas abalizadas na imprensa ou isso é um problema interno dos cadernos culturais? FABIO ZANON Não consigo ver uma relação tão direta entre uma coisa e outra. Essa obrigatoriedade vai formar melhores ouvintes? Eu, pessoalmente, acho que o poder de disseminação dos projetos sociais é maior. A música obrigatória nas escolas foi implantada de uma maneira caótica, sem planejamento e sem uma noção clara de sua missão. Não há profissionais treinados para isso na quantidade necessária, e não há consenso sobre o que será ensinado e qual seu objetivo. Tem toda a cara de uma coisa que, daqui a 10 ou 15 anos, será derrubada por outra lei.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 1

Entrevista_OUT.indd 11

23/10/2012 08:34:06


O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

palavrão

bonecos

A Continente deste mês destaca os verbetes que, normalmente, não são bemvistos, embora estejam muito presentes no nosso cotidiano, na boca de homens, mulheres e adolescentes. O especial aborda os “termos chulos” pelo viés histórico, linguístico e comportamental, observando sua presença e seus contextos de manifestação, sobretudo no Brasil. No site, complementamos a reflexão disponibilizando os artigos O palavrão: formas de abrandamento, de Antônio José Sandmann, e O palavrão em dicionários latinos escolares, de Fábio Frohwein.

Assista ao breve documentário sobre a experiência das últimas edições do Teatro de Bonecos nas principais capitais do país.

Conexão

MORTE Leia capítulo do livro Últimas palavras, de Christopher Hitchens, no qual o escritor registra o período de enfermidade que o levou a falecer.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

LITERATURA

CRÔNICAS

artes visuais

AUDIOBOOK

A relação com os livros, sejam promessas de leitura ou fetiches de consumo

Ideias, observações do mundo e sensibilidades compartilhadas

Norte-americano submete-se a vários tipos de drogas para criar desenhos

Uma maneira de levar Moby Dick a novas gerações de leitores

menosumnaestante.com

vidabreve.com

mobydickbigread.com

Uma lista de livros a serem lidos no ano seguinte. Quem nunca fez um planejamento assim? Foi a angústia de tentar ler mais e diminuir a pilha de obras à espera de leitura que levou a jornalista Márcia Lira a criar o Menos um na estante. No blog, ela posta de tudo: trechos de obras, indicações de sebos, comentários dos títulos que está lendo, e até formas criativas de criar a própria estante. Com bom humor, apresenta ainda dilemas vividos por todos, como a dolorosa decisão de abandonar um livro pela metade. Um espaço em que uma leitora fala com iguais.

Em 2009, o Vida breve nasceu de uma ideia simples e interessante: a cada dia da semana, uma dupla de colaboradores, formada por um cronista e um ilustrador, publicaria seus trabalhos. O resultado é uma coletânea de crônicas sensível e esmerada que une imagens e textos de qualidade. De segunda a sábado, o site é abastecido com as mais diversas discussões que o gênero em questão nos permite explorar, e, em eventuais domingos, um convidado é chamado para colaborar com o periódico virtual.

cultso.com/artist-takes-everydrug-known-to-man-draws-selfportraits-after-each-use/

Vários artistas na história recente ofereceram-se como cobaias na busca da expressão visual da ingestão de drogas. Basta lembrar o frisson que causou a geração beat com suas assumidas experiências com LSD, mescalina, peiote, heroína, entre outras substâncias alucinógenas. Seguindo essa “tradição”, Bryan Lewis Saunders ingeriu, separadamente, variados tipos de drogas ilícitas e semilícitas conhecidas pelo homem e, sob seus efeitos, fez desenhos que pretendia serem autorretratos.

Moby Dick é um dos maiores romances norte-americanos, hoje pouco conhecido pelas novas gerações. O escritor Philip Hoare e a artista Angela Cockayne desenvolveram um modo alternativo de contar o épico de Herman Melville para esse público. Moby Dick Big Read é um audiobook virtual que disponibiliza, a cada dia, um capítulo da obra, durante quatro meses. São 135 narradores para cada um dos 135 capítulos, ilustrados por 135 imagens de artistas contemporâneos. O projeto teve sua estreia em 16 de setembro.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 2

Conexão_NOV.indd 12

23/10/2012 08:37:00


reprodução

blogs PRETO & BRANCO blackandwtf.tumblr.com/

Tumblr de fotos nonsense em p&b. Das antigas às modernas, o site traz um divertido e qualificado ensaio de imagens, feitas pelos colaboradores ou garimpadas por eles. Tudo bem estranho.

CIÊNCIA sciencetothepowerofart.com/

MEMÓRIA DO MÉXICO DO SÉCULO 19 Site disponibiliza acervo de José Guadalupe Posada, gravurista mexicano que criou uma das mais famosas versões de La Catrina artspawn.com/artists/Jose_Guadalupe_Posada/

Considerado o maior gravurista do México e um dos mais expressivos

representantes da cultura popular da América Latina, José Guadalupe Posada realizou, com sua obra, uma sátira veemente da vida burguesa, lançando mão da representação da morte como elemento estético e gerador de discurso. A morte tem sido uma temática comum no país, uma importante marca folclórica. Posada é mais conhecido mundialmente por um desenho que é a sua versão de La Catrina, a caveira com roupas extravagantes e cheia de adornos, emblema do Dia de Los Muertos. Além do seu vínculo direto com o tema em questão, La Catrina também satiriza uma sociedade medíocre, que vive de aparências. Uma parte da produção de Posada foi voltada para a imprensa, na qual desenvolveu ilustrações, charges políticas, comédias, farsas e suspenses, que foram publicados em periódicos no fim do século 19. A outra porção de suas obras foi unicamente artística, embora não tenha abandonado o teor social e protestativo. O site da galeria de arte Artspawn disponibiliza um acervo de 119 gravuras de José Guadalupe Posada, além de uma breve biografia do desenhista. Uma excelente oportunidade para conhecer o trabalho dele – é uma página simples, mas com rico conteúdo. duda gueiros

O blog traz resultados da cooperação de descobertas científicas nas artes. Seja ela qual for. Para o autor, além da ciência ser uma fonte de inspiração, sua relação com a arte rende boas discussões.

esquerda soft socialistamorena.com.br/

Nem tudo é luta armada, mas devemos ser combativos, com ternura. Essa definição pode parecer um tanto sem sentido, mas essa é a postura evidenciada pela jornalista Cynara Menezes, neste espaço virtual, que cultiva “ideias e notícias com viés esquerdista”, enquanto não abre mão do hedonismo.

HYPE

hypenotice.com

Notícias diversificadas do universo hype encontram-se nesse blog charmoso. Entre os links, contribuições da tecnologia e outras modernidades para o mundo das artes visuais, com o adendo de conteúdo multimídia.

sites de

ioga PORTAL

AUTOCONHECIMENTO

KUPFER

www.yoga.pro.br

www.eumaior.com.br

www.facebook.com/pedrokupfer

A página mais completa sobre ioga, em português, compila entrevistas, reportagens, curiosidades, divulgação de eventos, galeria de imagens e estudos sobre a prática.

Projeto subvencionado em crowdfunding disponibiliza entrevistas com personalidades que expressam suas escolhas no campo da espiritualidade.

Fan page do instrutor uruguaio, radicado em Santa Catarina, Pedro Kupfer. Diariamente, ele compartilha imagens e textos inspiradores e educativos.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 3

Conexão_NOV.indd 13

23/10/2012 08:37:01


Port f Portfolio_NOV.indd 14

23/10/2012 08:38:46


t f贸lio Portfolio_NOV.indd 15

23/10/2012 08:38:47


con ti nen te

Portfólio

Flora Pimentel

BASTIDOR DE ORQUESTRA TEXTO Carlos Eduardo Amaral

Um concerto orquestral envolve uma sucinta e aparentemente inquebrantável ritualística: os

ajustes de roupas e instrumentos fora do palco; a entrada dos músicos, sucedida pela do spalla, que faz a checagem final da afinação com o auxílio do primeiro oboé; e a chegada do regente, acompanhado ou não de solistas, momento em que os instrumentistas se colocam de pé até o sinal de preparação para o primeiro acorde ou nota. Deixemos de lado os maestros, cujo repertório de gestos rende análises próximas às da homilética, e as regras de etiqueta que cabem ao público. Os rituais, contudo, ficam reservados para o mise-en-scène. Nos bastidores, as formalidades perdem a razão de ser e dão vazão à intimidade e à trivialidade: namoricos, nós de gravata, retoques na maquiagem, limpeza de instrumentos – com aquele cuidado, para não dizer carinho mesmo, que se tem com alguém querido –, reprimendas e afagos dos maestros... Acostumada a registrar momentos oficiais de orquestras juvenis, Flora Pimentel também viu na descontração delas uma temática de beleza própria. Quanta gente já não se apaixonou por um músico só em lhe apreciar o manejo de um violino, de uma flauta ou dos tímpanos? Flora mostra que, através das lentes fotográficas, a sedução por trás (ou à frente) da técnica e da forma cavalheiresca de postar-se com os instrumentos pode ser apreendida. Por tabela, ela revela a expressão de outros músicos, que tentam seduzir, mas ainda não ultrapassaram a condição de adolescentes posers. Às vezes, outras facetas escapam, porque recônditas, o que não quer dizer que não possam ser deduzidas pelas cenas. O desligamento dos problemas cotidianos, esquecidos enquanto escalas, arpejos, ligaduras, pausas de respiração são recapitulados; o exercício lógico, treinado na leitura de modulações,

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 6

Portfolio_NOV.indd 16

23/10/2012 08:38:49


c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 7

Portfolio_NOV.indd 17

23/10/2012 08:38:50


con ti nen te

Portfólio

transposições, células rítmicas repetitivas, ritornelos; a desenvoltura da parte psicofísica, na prática de dedilhados, arcadas, posições de mão e demais posturas corporais. Escapam, sobretudo, os elementos evocados pelo olfato e pelo tato, que, escusado dizer, não têm como ser transpostos em pixels ou grãos de prata. Porém, quem já conviveu com músicos de orquestra, consegue reconstituir, nas fotos de Flora, o cheiro do breu das crinas dos arcos, o discreto mofo das caixas de instrumentos, e a textura das palhetas de fagotes, clarinetas e oboés, dos pistões dos metais e das chaves das flautas.

O ensaio despretensioso da fotógrafa – que já acompanhou a Orquestra Jovem de Pernambuco, dirigida por Rafael Garcia, e a Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música, conduzida por José Renato Accioly – acaba vivificando, mesmo com a incompletude muda, calada, das imagens, a influência decifrada por Pitágoras, e pouco compreendida, das escalas musicais nos nossos estados de espírito. Por outro lado, tal qual se vê na maior parcela das fotos, boa parte dos músicos sempre está entretida com os instrumentos. Um exemplo está no extenuante trabalho de microafinação das cordas – que precisa ser refeito nos

intervalos dos concertos, já que a tensão aplicada nelas, o atrito do arco, e mesmo o calor ambiente, sutilmente, tiram-nas da posição em que são deixadas antes da entrada em cena. Atribuir toda essa poética exclusivamente ao universo da música clássica seria míope, pois ela se estende à música em sentido amplo, livre das distinções auditivas que operam no âmbito que lhe é devido. Porém a orquestra como um corpus, um grupo coeso, carrega uma aura única, fascinando pelo volume que só ela é capaz de atingir (sem o expediente da amplificação eletrônica), pela infindável paleta de cores sonoras que proporciona e, vale recapitular, pela ritualística que a envolve. Talvez por isso seja tão apaixonante desnudar os seus bastidores.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 8

Portfolio_NOV.indd 18

23/10/2012 08:38:52


c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 1 9

Portfolio_NOV.indd 19

23/10/2012 08:38:54


Fotos: divulgação

ODE AO TRASH Fãs do trash do mundo inteiro andam em polvorosa. A Troma Entertainment, produtora norte-americana de filmes independentes de baixo orçamento, ofereceu um presente para os aficionados do gênero, disponibilizando grande parte do seu acervo no Youtube (www.youtube. com/tromamovies). Estão lá verdadeiras “pérolas”, como Cannibal, The musical (1993), primeiro longa-metragem de Trey Parker e Matt Stone, criadores da série South Park; White Zombie (1932), estrelado pelo eterno Drácula, Bela Lugosi – e considerado o primeiro filme de zumbis da história –, além de curiosidades mórbidas como Luther, The Geek (1990), sobre um psicopata que ataca suas vítimas munido de uma chapa com dentes de ferro. Fundada em 1974 por Lloyd Kaufman e Michael Herz, a Troma é referência internacional desse tipo de produção, principalmente depois de filmes d’O Vingador Tóxico (foto). (Olivia de Souza)

Pessoal intransferível Eram meados dos anos 1980 e o vento ainda bafejava a contracultura. Aqueles não eram tempos de Google, claro, e, nas bancas de revista, uma coleção – a Literatura comentada – dava as dicas para aqueles que se iniciavam no campo, ainda tateando, buscando iluminar os próprios caminhos. Tinha o Poesia jovem anos 70, título que encontrava empatia imediata na moçadinha. O conteúdo do volume magrinho era pura epifania. Em tempos de ditadura e caretice, ler “É proibido pisar na grama/ O jeito é deitar e rolar” (Chacal) ou “feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta/ lobiswoman” (Ledusha), entre tantas descomposturas poéticas, valia como um ato de protesto. Entre os autores, aparecia um de nome antigo, um tal de Torquato Neto, que, nascido no Piauí, desceu pelas paredes do mapa nacional, indo bater na Bahia e, depois, no Rio de Janeiro. O rapaz tinha sido um dos artífices da Tropicália. Mas, naquele livrinho fino que nem sua figura, ele era o autor cujo suicídio, em 10 de novembro de 1972, aos 28 anos, ficaria gravado. Versos do seu Cogito ecoam na memória: “eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível// eu sou como eu sou/ agora/ sem grandes segredos/ dantes/ sem novos secretos dentes/ nesta hora// eu sou como eu sou/ presente/ desferrolhado indecente/ feito um pedaço de mim// eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo/ tranquilamente/ todas as horas do fim”. ADRIANA DÓRIA MATOS

con ti nen te

A FRASE

“Viver o mais intensamente, arriscar sempre.” James Dean, ator

Balaio ROTEIRO RESSUSCITADO A expressão “o mundo dá voltas”, de vez em quando, dá provas de sua veracidade. A mais recente delas está nos bastidores do novo filme de Tim Burton, Frankenweenie, que estreia neste mês no Brasil. O longa de animação conta a história de um menino solitário e apaixonado por ciência, que vê seu cão ser atropelado. Após alguns experimentos, a criança devolve à vida o animal, proeza que não consegue esconder. Ironicamente, o roteiro é baseado em um curta-metragem homônimo de Burton, de 1984, que, na época, provocou sua demissão da Disney, sob a alegação de que o universo do cineasta seria muito sombrio para o público jovem. Quase 30 anos depois, o estúdio dá carta branca ao diretor para que conte a mesma história. Burton exigiu que fosse em stop-motion, em preto e branco e 3D, caso contrário, não o faria. O trunfo: o lucro de um bilhão que sua versão de Alice no País das Maravilhas (2010) rendeu à empresa. (Débora Nascimento)

c o n t i n e n t e n ov e m B R O 2 0 1 2 | 2 0

Balaio_NOV.indd 20

23/10/2012 08:42:32


criaturas

BOND HIgh TECh 1 Cinquenta anos nos separam da primeira aparição de um dos personagens mais marcantes do Reino Unido e do cinema mundial, James Bond. Em 007 e O Satânico Dr. No (1962), filme que deu início à famosa franquia do espião internacional, um jovem Sean Connery (foto) combatia a Spectre, organização terrorista liderada pelo recluso Dr. No, vilão das próteses biônicas de metal que substituíam suas mãos. O uso da ciência avançada na série impressionava e antecipava tecnologias. Em tempos nos quais o usufruto de muitas delas ainda não havia se popularizado, Bond já fazia uso dessas novidades, como o jatinho particular de Goldfinger (1964), ou a wetbike (uma espécie de jet ski) pilotada por Roger Moore, em O Espião que me amava (1977), veículo que seria comercializado apenas duas décadas depois. (OS)

BOND HIgh TECh 2 A inserção dos novos aparatos tecnológicos do século 21, no entanto, parecem não trazer ao personagem a renovação de que ele necessita. A questionada escolha do escocês Daniel Craig, o sexto ator a viver Bond nos cinemas, e o fracasso de filmes como Quantum of solace (2008), reforçam esse desgaste. Evidência disso é que Connery e Moore ainda são considerados os melhores espiões, tecnologias à parte. (OS)

TOP 5 DE WOODY ALLEN Há pouco, Woody Allen revelou ao jornal The Guardian a lista com aqueles que seriam seus cinco livros prediletos. Entre eles, está Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O cineasta contou que recebeu a indicação via e-mail de um brasileiro desconhecido, e resolveu ler porque se tratava de um livro pequeno. Terminou gostando. “Eu fiquei impressionado de como o livro era charmoso e divertido. Eu não conseguia acreditar que o autor havia vivido há tanto tempo. Dava a impressão de que ele havia escrito isso ontem. A obra era tão moderna e divertida. É um trabalho muito, muito especial. Despertou algo em mim, da mesma forma que O apanhador no campo de centeio. Era sobre um assunto de que eu gostava, tratado com grande sagacidade, grande originalidade e sem sentimentalismo.” (Mariana Oliveira)

Eric Hobsbawn, o historiador (1917-2012) Por Ricardo Melo

c o n t i n e n t e n ov e m B R O 2 0 1 2 | 2 1

Balaio_NOV.indd 21

23/10/2012 08:42:34


especial

nelson provazi

con ti nen te

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 2

Palavrao_NOV.indd 22

23/10/2012 08:47:44


LINGUAGEM Com a palavra, o palavrão

Cada vez mais presentes no cotidiano e, muitas vezes, alvos de cruzada moralista, os “nomes feios” têm mais a ver com a natureza humana do que as tentativas de interdições pretendem encobrir texto Gilson Oliveira

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 3

Palavrao_NOV.indd 23

23/10/2012 08:47:46


con especial ti nen te gabriel uchida

Uma incômoda pergunta pode

surgir ao iniciar-se uma matéria sobre o palavrão para uma publicação não especializada em pornografia ou assuntos similares: como usar exemplos? Como utilizar “palavras cabeludas” – mesmo com a exclusiva finalidade de ilustrar ou esclarecer aspectos do texto – sem descontentar os leitores mais sensíveis ou, antes disso, despertar a ira do editor? A questão, no entanto, desaparece mais rapidamente do que surge. Pelo simples fato de que não é necessário exemplificar. Basta substituir a palavrada por pontinhos ou colocar apenas as iniciais que a maioria das pessoas conseguirá captar a mensagem. Afinal, não são poucos os seres humanos que possuem um amplo e diversificado repertório dos chamados termos de baixo calão. “O mundo inteiro diz palavrão: homens, mulheres, velhos, moços, crianças, ricos, pobres, em russo, em chinês, em croata, em todos os idiomas”, afirma o escritor e etnólogo Mário Souto Maior (1920-2001), autor do Dicionário do palavrão e termos afins, obra considerada a mais completa do gênero em língua portuguesa, por reunir cerca de três mil “termos chulos” colhidos em todas as regiões do Brasil. Quantidade que deve ter decepcionado os que acreditavam que o brasileiro era o povo mais chegado a uma palavrinha obscena. Como destacou o próprio Souto Maior, o livro O sexo na linguagem popular, publicado na Alemanha por Ernst Borneman, registra mais de nove mil palavrões, número semelhante ao contabilizado por uma obra similar lançada na França. Já na Inglaterra, foi editado, há alguns anos, um livro que, se não possui a mesma quantidade de “termos torpes”, tem um espírito bem globalizado, o Dicionário de insultos em cinco línguas, cuja apresentação diz: “O primeiro guia prático destinado expressamente a turistas que têm de lidar com bagagens perdidas, reservas malfeitas, café frio, mau serviço e contas exorbitantes”. E cresce, no mundo inteiro, o número de obras especializadas no assunto. No Brasil, uma das últimas, em formato bilíngue (português e inglês), é Dicionarinho do palavrão & correlatos, do poeta Glauco Mattoso.

1

Um ponto comum à maioria dessas publicações – incluído o dicionário de Souto Maior, lançado originalmente em 1980, depois de seis anos censurado pelo regime militar – é a boa receptividade junto aos intelectuais. “Um dicionário de gíria proibida é também importante do ponto de vista etnológico e etnopsicológico”, disse Ernest Liber sobre a publicação alemã. À época do seu lançamento, Carlos Drummond de Andrade, em artigo no Jornal do Brasil, saudou com entusiasmo a pesquisa de Souto Maior, afirmando que o autor, embora considerado um pornógrafo pelos censores, “é um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação”. Mas... em qual país se fala mais palavrão? Pergunta difícil de responder, até porque, como disse Souto Maior, a cada dia surgem nomezinhos pouco pronunciáveis em todas as partes do

planeta, o que levou o pesquisador pernambucano a considerar o seu dicionário uma obra eternamente aberta, um trabalho ao qual, ao longo dos anos, sempre poderão ser incorporados novos termos. O que se pode afirmar, no entanto, é que, em escala mundial, a pornografia – da qual o palavrão é apenas um dos mais desbocados componentes – é algo que vem, cada vez mais, circulando sem “tarja preta”.

TURPILÓQUIOS

Seja por uma exagerada euforia decorrente do fim da censura militar – semelhante ao forte vapor que escapa ao se abrir uma panela de pressão; seja devido à revolução ocorrida nos campos dos costumes e da sexualidade – que teria grande influência das teorias de Freud e ganhou considerável impulso, a partir da década de 1960, com o movimento hippie e outras manifestações

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 4

Palavrao_NOV.indd 24

23/10/2012 08:47:47


reprodução

futebol 1 Não existe torcida que, durante um jogo, não solte um palavrão mário souto maior 2 O seu Dicionário do palavrão e termos afins é a mais completa obra do gênero em português

2

leveza do ser: “É curioso: dizemos palavrão desde a manhã até de noite, mas se ouvimos no rádio uma pessoa conhecida e respeitada pontuar suas frases com ‘essa gente é um pé no saco’, ficamos um pouco decepcionados”. Hoje, até mesmo os dicionários tradicionais, uma das últimas fortalezas da resistência às palavras chulas, renderam-se aos turpilóquios (sinônimo de palavrão com a cara do dito cujo), como demonstram trabalhos de Aurélio Buarque de Holanda, Silveira Bueno e Antônio Houaiss, da contracultura; seja pela soma desses dois fatores e outros mais, a verdade é que nas últimas décadas se fortaleceu uma mentalidade diferente em relação aos tabus, o que teve grande reflexo sobre a linguagem antes considerada obscena e transgressora. “As diversas aberturas do comportamento social, sobretudo o relaxamento de normas de conduta moral, favorecem a expansão dos chulismos”, diagnostica o linguista Francisco da Silva Borba, autor do Dicionário de usos do português contemporâneo. Bem, seja qual for o motivo, inquestionável é que o palavrão e a pornografia em geral estão mais presentes nos mais variados espaços da sociedade. Podem ser facilmente vistos – e ouvidos – nas histórias em quadrinhos, filmes, vídeos, revistas eróticas, música popular, publicidade e rádio. Por essas e outras, impressiona o envelhecimento de observações como a de Milan Kundera, autor de A insustentável

Em escala mundial, a pornografia – da qual o palavrão é um dos componentes – tem circulado cada vez mais sem “tarja preta” que, em 2001, dicionarizou também vocábulos que constituem verdadeiros palavrões e que, como a evolução da ciência e da medicina, se tornarão cada vez mais comuns, a exemplo de pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico (46 letras!), “doença pulmonar causada pela inalação de poeira de vulcão”. A própria televisão, antes altamente vigiada, tem sido um instrumento desse processo de banalização de palavrinhas nem um pouco angelicais, como se pode comprovar em programas

que ocupam os mais variados dias e horários da grade televisiva, como Domingão do Faustão e, principalmente, os humorísticos, a exemplo do CQC e Pânico. E pensar que, há pouco tempo, tinha gente que ficava corada depois de pronunciar em público palavras como “camisinha” e “menstruação”... Aliás, muitos vocábulos, mesmo sem qualquer carga obscena, eram evitados como se fossem palavrões, a exemplo de “câncer”, normalmente representado pela abreviatura “C.A.”, e “diabo”, substituído por “diacho”. Na área cinematográfica, inusitado é um tipo de produto voltado para o público religioso, que, mesmo sem palavrões, é considerado pornográfico. É o que registra o blog Sétimo Dia, ligado à Igreja Adventista, no artigo Pornografia: o novo ramo da indústria gospel: “A indústria gospel resolveu investir na produção de filmes eróticos evangélicos. (...) Para se diferenciarem da pornografia tradicional, todas as obras possuem algumas regras de conduta: os protagonistas dos filmes são casais – marido e mulher mesmo – na vida real, todas as cenas seguem preceitos do sexo cristão – e tem a religião como princípio. Mas não pense que é somente isso. Há também sex shops online criadas para apimentar a relação de acordo com preceitos da Bíblia, mas que na prática oferecem os mesmos produtos das outras sex shops – o que muda é só o nome”. Uma grande “contribuição” para a disseminação da pornografia (e da

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 5

Palavrao_NOV.indd 25

23/10/2012 08:47:48


con especial ti nen te imagens: reprodução

3

pornofonia) é a internet, com um semnúmero de opções para quem estiver a fim de curtir uma safadezazinha. Foi ela que difundiu, por exemplo, a existência de uma cidade cujo nome é, nada mais, nada menos, que... PQP! Não assim, com abreviatura, mas escrito por extenso, obviamente. Divulgado através de e-mails, o local, como era de se esperar, não existe, o que ficou comprovado pelas pesquisas de vários internautas. Quer dizer, não existe no plano concreto, mas já foi construído, como uma espécie de “Pasárgada dos pornógrafos”, no imaginário de muitos brasileiros. É também na “grande rede” que pode ser encontrada uma crônica jornalística – atribuída a vários autores, como Millôr Fernandes, Luís Fernando Veríssimo e Arnaldo Jabor – que faz verdadeira apologia da “pouca vergonha verbal”: O direito ao palavrão. Diz o texto: “Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua. Como o latim vulgar, será esse português vulgar que vingará plenamente um dia”. Interessante assinalar que “latim vulgar” era a expressão usada pelos romanos para depreciar as modificações que os bárbaros (vistos como inferiores) introduziram no “latim clássico”. Modificações das quais surgiriam várias línguas, como o português, o francês, o espanhol e o italiano.

4

3 simbologia Nas histórias em quadrinhos, chulismos são representados por ícones 4 NELSON RODRIGUES Para ele, não existiria futebol sem nome feio ficcional 5 Foi na internet que a cidade imaginada ganhou fama

Até os dicionários tradicionais, que sempre resistiram às palavras chulas, renderam-se às obscenidades Uma das poucas áreas não atingidas pela avalanche pornográfica talvez seja a do futebol. Isso, pelo simples fato de que não havia mais espaço, nem na geral nem na arquibancada, para o ingresso de mais palavrões. “Retirese a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? (...) o craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando,

5

rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável”, já dizia, há muitos anos, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Como normalmente acontece, a radicalização de uma tendência costuma trazer o seu oposto. Nos Estados Unidos, um exemplo dessa dialética é o movimento Boca Limpa, que tem entre os líderes o consultor James O’Connor, que, em sua cruzada moralista, criou um decálogo antipalavrões, que tem, entre outras, as seguintes recomendações: “Reconheça que falar palavrão causa estragos. Você não ganha nenhum argumento nem prova inteligência”; “Comece eliminando os palavrões casuais – finja que a sua avó ou a sua filha estão sempre ao seu lado”; “Se você estiver preso no trânsito, em vez de xingar a mãe do motorista da frente, pense nas suas tarefas do dia”.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 6

Palavrao_NOV.indd 26

23/10/2012 08:47:49


NELSON PROVAZI

ORIGENS Uma pedra, uma topada... e ele surge na História O palavrão foi tão perseguido quanto usado (e cultivado) ao longo dos tempos, além de ter sido um indicativo de que o homem estava evoluindo

De acordo com o Dicionário Eletrônico

Houaiss, o vocábulo “palavrão” surgiu em meados do século 19, no sentido de palavra grande e difícil de pronunciar. Mas, quando adquiriu o sentido mais comum atualmente – o de obscenidade –, é algo muito difícil de identificar, por serem extremamente raros – se é que existem – estudos sobre essa

origem. E se é para lá de complexo situar o caráter semântico no tempo, imagine dizer quando foi que o ser humano começou a proferir palavrões... Quando levou a primeira topada? Nesse caso, qualquer hipótese pode ter valor científico. Podendo-se até argumentar que, se há uma coisa que não faltava para se tropeçar, na Idade da Pedra,

era exatamente... pedra. E que, como diz o escritor Mark Twain, “em certas circunstâncias, um palavrão provoca um alívio inatingível até pela oração”. A ciência vem dando dicas de como caminhar nessa “longa e tortuosa estrada”. Um trabalho publicado na revista britânica NeuroReport, por exemplo, revelou que dizer palavrões pode ajudar a diminuir a sensação de dor física. O texto focaliza um teste realizado com 64 pessoas, que foram orientadas a colocar as mãos em baldes de água supergelada enquanto diziam palavrões. A experiência foi repetida com os mesmos voluntários, só que, na segunda vez, eles pronunciaram palavras comuns. Resultado? Na etapa do teste em que chamaram seus palavrõezinhos, as pessoas suportaram a dor provocada pela gélida água por 40 segundos a mais, em média. De acordo com a publicação, os cientistas também realizaram

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 7

Palavrao_NOV.indd 27

23/10/2012 08:47:50


con especial ti nen te imagens: divulgação

6

o monitoramento do batimento cardíaco dos voluntários durante o teste, constatando que ele se tornou mais acelerado quando as pessoas diziam palavrões. A conclusão é de que a aceleração pode ser resultado de um aumento da agressividade, a qual também concorreria para reduzir a sensação de dor provocada pela água com gelo. Na opinião dos pesquisadores, em tempos remotos, esse “mecanismo” teria sido muito útil para o homem primitivo, ajudando-o, nos momentos de perigo, a suportar a dor provocada por algum ferimento e a lutar contra o eventual inimigo. Em resumo, o teste demonstrou que, ao ser pronunciado, o palavrão provoca uma considerável resposta física. Então o palavrão está eternamente vinculado à agressividade e, por isso, seu caráter é sempre negativo? Não é preciso ser pornógrafo convicto para negar isso. Porque até mesmo numa época como

7

As mudanças semânticas fizeram com que palavrões de outras épocas se tornassem expressões banais hoje a atual – na qual a violência nem de leve está para brincadeira – os “nomes cabeludos” têm passado por “um visível enfraquecimento de sentido”, como diz Souto Maior, acrescentando que existe “até o palavrão carinhoso, pois nem sempre o palavrão significa, realmente, o que sua literalidade quer dizer”. O escritor refere-se ao costume que algumas pessoas, principalmente homens, têm de saudar os amigos com palavras e expressões que, em outros contextos, seriam ofensivas. Exemplo é “FDP”, que pode representar até um

elogio. De maneira geral, devido ao processo de banalização, o palavrão bem que tem perdido sua carga negativa. Existe até uma página na internet, o Portal Power, que brinca com essa tendência, disponibilizando um artigo intitulado Aprenda a falar palavrão de maneira educada, no qual o “FDP” acima citado recebe a seguinte definição: “Filho de uma inocente mãe que presta serviços sexuais a troco de dinheiro”. Na verdade, o palavrão, ao longo do tempo, sempre passou por mudanças semânticas, podendo os nomes feios de certa época terem se transformado em expressões banais de hoje, da mesma forma que palavras atualmente consideradas chulas podem ter uma cândida origem. “As palavras fazem sexo, convivem, cortejam-se, acasalam até virarem uma só carne”, diz Luiz Costa Pereira Júnior, em Com a língua de fora, que tem como subtítulo A obscenidade por trás de palavras insuspeitas e

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 8

Palavrao_NOV.indd 28

23/10/2012 08:47:52


9

6-7 primórdios O Kama Sutra e a Vênus de Willendorf figuram no hall dos pornográficos grécia 8 As canções dedicadas ao deus Dionísio traziam elementos ligados à sexualidade

9 steven pinker Linguista ressalta os vínculos do palavrão com a natureza do ser humano 8

a história inocente de termos cabeludos. Num dos capítulos do livro, intitulado Turista acidental, Pereira Júnior alerta para o fato de que as mudanças de significado não se dão apenas no tempo, mas também no espaço. Referindo-se a Xuxa, por exemplo, ele diz que, se for fazer um show no Chile, a “apresentadora infantil que se cuide”. Nesse país, o nome é sinônimo de genitália feminina.

CIVILIZATÓRIO

Talvez não seja impertinente afirmar que em certos períodos da História, ou da Pré-História, o palavrão chegou a ser um grande indicativo de que o homem estava evoluindo. “Se considerarmos as ideias de Sigmund Freud em O mal-estar na civilização, somos levados a supor que foi e ainda é necessário certo esforço para controlar nossos impulsos agressivos em direção aos outros seres humanos. O primeiro ato civilizatório teria ocorrido quando,

em vez de responder ao impulso de eliminar fisicamente alguém que o tenha desagradado, o ser humano xingou aquele outro. Converteu o impulso que pedia uma ação contra o outro em palavra contra o outro”, exemplifica o mestre em Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), Paulo Bessa da Silva, no artigo Linguagem obscena. Um pensador contemporâneo que tem ressaltado os profundos vínculos do palavrão com a natureza do ser humano é o psicólogo e linguista da Universidade de Harvard, nos EUA, Steven Pinker. Para o autor de Como a mente funciona – um dos grandes best-sellers científicos dos últimos tempos –, o palavrão é muito mais rico e sofisticado do que as palavras comuns. “Mais do que qualquer outra forma de linguagem, xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o poder de combinação da sintaxe; a força evocativa da metáfora e

a carga emocional das nossas atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas”, diz Pinker em seu mais recente livro, Coisas do pensamento. Isso porque o palavrão consegue dizer até o indizível, expressar o inexpressável, devido à carga emocional que contém. Pudera. Ao contrário da linguagem comum e bem-comportada, ligada ao neocórtex – que desempenha um papel central nas funções mais complexas do cérebro –, o palavrão tem a ver com o sistema límbico – responsável pelas emoções e que, por isso, induz as pessoas a comportamentos nem um pouco refletidos, como xingar a pedra em que se tropeçou. Claro que, por essas características, o palavrão pode também assumir feições patológicas. É o caso da coprolalia, definida como “tendência involuntária de proferir palavras obscenas”. Espécie de loucura que atinge os neurônios, essa inclinação tornou-se mais

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 2 9

Palavrao_NOV.indd 29

23/10/2012 08:47:56


con especial ti nen te imagens: reprodução

conhecida como Síndrome de Tourette, por ter sido estudada pioneiramente por Gilles de la Tourette. O primeiro caso do gênero analisado pelo neurologista francês se deu em 1825 e teve como “protagonista” a marquesa de Dampierre, descrita como “uma nobre de 26 anos, que impressionava a todos pela inteligência”, mas que, ao mesmo tempo, costumava pontuar seus discursos – mesmo que o tema fosse a arte francesa – com fortes palavras relacionadas a sexo e assuntos correlatos. Por ser a sexualidade uma das características fundamentais no ser humano, nada mais natural do que a maioria dos palavrões estar a ela associados, embora também se refiram a órgãos de excreção e aos produtos em que estes são especializados. Nada mais lógico que, por assim ser, o palavrão e a pornografia em geral – perseguidos, mas também adorados ao longo dos tempos – tenham escrito os seus nomes e “nomes feios” (além de muitas imagens) na História. Como diz o filósofo belga Raoul Vaneigem, autor de Nada é sagrado, tudo pode ser dito, “a proibição incita a transgressão. O que é recalcado suscita o furor da catarse e as astúcias do ressentimento”.

PORNOGRAFIA

Há quem defenda a tese de que a pornografia, em seu aspecto visual, teve como primeira manifestação uma estatueta esculpida há mais de 20 séculos, a Vênus de Willendorf. Com apenas 11 centímetros, retrata a figura de uma mulher que, na descrição de um dos descobridores, é “gorda, inchada, com grandes glândulas mamárias, uma barriga saliente, cadeiras e coxas grossas (...)”. Por que um artista produziria uma peça tão distante dos padrões de beleza? Difícil dizer os significados culturais de algo tão antigo, mas acredita-se que a estatueta seja um louvor à fecundidade, expresso no estilo que hoje talvez fosse chamado de “expressionista”. No terreno da literatura, uma das mais antigas produções é o Kama Sutra – escrito na Índia, há cerca de 18 séculos, por Mallanaga Vatsyayana –, hoje mais conhecido como “o livro do amor”, por sugerir mais de uma centena de posições sexuais. Na Grécia, onde a sexualidade desfrutava de

grande liberdade, o pornográfico estava presente nas canções em homenagem ao deus Dionísio e até nos pratos de terracota, decorados com cenas de sexo. Aliás, a própria palavra pornografia tem origem grega e significa, literalmente, “escrever sobre prostituta”. Já no teatro, um dos destaques é a comédia Lisístrata, de Aristófanes, com tão fortes cenas de sexo, que, em 1950 (mais de 2.400 depois de sua estreia), foi censurada nos EUA. A Grécia é também a terra natal de Safo, de cujo nome teria se derivado a palavra “safada”. Outro termo ligado à poetisa – nascida na ilha de Lesbos e, segundo a tradição, homossexual – é “lésbica”. Em Roma, a pornografia correu solta em vários períodos históricos e, durante o Império Romano, é encontrada não apenas nas inscrições feitas nos banheiros de Pompeia – e em paredes de vários locais da cidade –, mas em livros como A arte de amar, de Ovídio, e Satyricon, de Petrônio (levado ao cinema por Federico Fellini), que discorre detalhadamente sobre todas as formas de perversão sexual. Tempos de Nero, Calígula e outros famosos libertinos,

A sexualidade é uma das características básicas do ser humano, por isso a maioria dos palavrões está a ela associada muitos romanos da época imperial demonstravam um profundo interesse pelas formas mórbidas de prazer. Marcada por grande religiosidade, a Idade Média tinha um espírito bem diferente do romano, chegando muitos cristãos, perturbados pelo sexo, ao autoflagelo, a fim de castigar o diabo que teimava em habitar seus corpos. Foi nesse período que surgiu, entre outras invenções, o “cinto de castidade”. Mas, no embalo das transformações sociais e culturais, as coisas começaram a mudar, chegando-se à chamada “pornografia moderna”. Um dos marcos desses novos tempos é o Decameron, de Giovanni Boccaccio, com histórias que focalizavam até a luxúria de religiosos. Desnecessário dizer que o

10

livro terminou alimentando as chamas das fogueiras da Inquisição. Muitas obras e escândalos depois – até Marguerite de Valois, mulher do rei Henrique IV, escreveu um livro na linha de Boccaccio, o Heptameron –, chega-se ao século 18, no qual pontificam figuras como Casanova, autor de Memórias, com picantes detalhes de sua famosa vida amorosa, e o Marques de Sade, que lançou obras como Os 120 dias de Sodoma e terminou sendo o responsável pelo surgimento do vocábulo “sadismo”. Um amplo apanhado do que foi a literatura pornográfica nesse período é um estudo publicado por Jean-Marie Goulemot, com o sugestivo título Esses livros que se leem com uma só mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 0

Palavrao_NOV.indd 30

23/10/2012 08:47:58


11

10 Satyricon Obra de Petrônio, levada ao cinema por Fellini, discorre sobre todas as formas de perversão sexual 11 Annie Besant Uma ação jurídica foi movida contra ativista devido a um folheto seu sobre controle de natalidade

O século 19 não deixaria por menos. É nele que Sacher-Masoch publica A Vênus de peles, inspirador do termo “masoquismo”. Também são desse período, entre outras obras célebres, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e As flores do mal, de Charles Baudelaire, que terminaram alvos de processo por ofensas à moral e à religião. Uma curiosa ação jurídica do século 19 foi movida, na Inglaterra, contra Annie Besant, por haver escrito um folheto sobre controle da natalidade. Em revide, ela preparou uma lista com 150 trechos do Antigo Testamento e seis do Novo, dando a esse segundo folheto o título Será a Bíblia condenável?. Entre os trechos do mais famoso livro do cristianismo

reproduzidos por Annie estão o Cântico dos cânticos – atribuído a Salomão e ainda hoje considerado fortemente erótico – e capítulos sobre o profeta Ezequiel, que, furioso com questões religiosas e políticas de Jerusalém, compara a cidade a uma mulher infiel, chegando a dizer: “(…) profanaste a tua formosura, e abriste as pernas a todo que passava, e multiplicaste as tuas prostituições. Também te prostituíste com os filhos do Egito, teus vizinhos de grandes membros...”. O século 20 – perfeito ascendente do século 21 – vive um verdadeiro boom pornográfico, por contar com o desenvolvimento da tecnologia voltada para a cultura e o lazer, muito bem representada pela fotografia e

pelo cinema. A literatura, no entanto, não fica atrás, como demonstra o lançamento, logo em 1907, de As onze mil varas, de Guillaume Apolinaire. Maior impacto teriam Ulysses, de James Joyce (com aspectos da fisiologia humana considerados impublicáveis), O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence (que mostra o despertar sexual de uma mulher) e Trópico de câncer, de Henry Miller (em que as relações sexuais têm descrições mais que naturalistas). Lançados, respectivamente, em 1922, 1928 e 1934, esses livros – classificados entre as maiores criações artísticas do século passado – passaram muitos anos proibidos em vários países do chamado “primeiro mundo”. gilson oliveira

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 1

Palavrao_NOV.indd 31

23/10/2012 08:47:59


con especial ti nen te

Artigo

MARLOS DE BARROS PESSOA PALAVRÕES SURGEM DE ALUSÕES AO “BAIXO CORPORAL” Considerando-se a formação do termo

palavrão, pode-se notar o aumentativo de palavra, mesmo entre falantes leigos em descrição linguística. Obviamente, não se trata disso, mas o sentimento linguístico do falante acusa um valor expressivo, subjetivo, emotivo, como acontece com outras palavras, tais como jogão, amigão etc. Percebemos um sentido objetivo, que associa os significados básicos, dicionarizados, das diversas partes que compõem uma palavra; em segundo lugar, um sentido emotivo, que extrapola essa primeira intuição. Nessa segunda zona, repousam as metáforas, terreno fértil para a substituição dos nomes de sentido neutro por outros com funções variadas. Exatamente no caso de palavrão, estamos diante de uma palavra que compõe uma zona especial do léxico das línguas, que serve a conteúdos específicos (1), a usos determinados (2) e a funções específicas (3). A seguir, faremos uma incursão por essas dimensões que corporificam o uso do palavrão, sem deixar de mencionar um pouco de sua história e da transformação de sentidos que o tema enseja. Só ultimamente os dicionários passaram a incluir nos seus verbetes palavras que denotam conteúdos associados ao sexo, à escatologia ou aos valores morais vinculados ao mundo do sexo e da sexualidade (V. dicionários de Aurélio e Houaiss). Esses são os terrenos conteudísticos (1) de onde são retirados os termos que, designados com expressões metafóricas, constituem o universo do que se chama palavrão. Com alusão aos órgãos genitais – “o baixo corporal”, no dizer de Bakhtin (Mikhail Bakhtin, Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Hucitec) –, vê-se de onde brotam as designações, o corpo, e daí a extensão para o universo dos valores morais.

reprodução

Com base na metáfora direcional – “para o alto, o bem; para baixo, o mal” –, essas partes baixas reúnem as condições para a produção do escárnio, da depreciação, da baixeza, para resumir. Tanto os órgãos sexuais, já aludidos, quanto o que eles produzem constituem a extensão dos conteúdos, transformados em palavrões. Assim, o ventre, o ânus, as nádegas, a vulva, o pênis assumem designações pejorativas, sarcásticas, para produzir ora o gracejo, ora a depreciação, ora a agressão. Daí o que esses órgãos produzem também assumem essas funções. As fezes, os gases, o esperma, por exemplo, recebem outras designações pejorativas. Por outro lado, os homens e as mulheres, na sua sexualidade ou nas formas como realizam suas relações sexuais, portanto no contato com o “baixo corporal”, passam a fornecer matéria-prima para esse universo das formas linguísticas agressivas ou pejorativas para se aludir à moral. Muitas formas, hoje mitigadas, trazem essa herança. “Ele é macho” não tem o correspondente “ela é fêmea”, evidenciando um fenômeno chamado “sexismo linguístico”, que não se confunde com o nosso tema, mas relaciona uma pseudodiferença entre modos de falar de homens e mulheres. Mas “mulher-macho”, usada em canção conhecida na voz de Luiz Gonzaga, Paraíba mulher-macho, passou a denotar um caráter ambíguo, com gracejo evidente. Ademais, designações como gilete, veado, fresco (essa última hoje muito menos contundente e prova da perda da força expressiva do palavrão), ao lado do clássico puta, mais popular do que lupa (latim loba), de onde provém lupanar, demonstram essa conexão.

SOCIAL

Em relação ao uso (2) do palavrão pelas classes sociais, observa-se uma extensão de empregos entre outras camadas da sociedade. Muito do que se criou nos palavrões da língua portuguesa surgiu no seio das culturas populares. Evidência disso se nota pela modificação dos termos originários, como no caso de cuião, derivado de c(o)ulhão, c(o)ulhões. Essa transformação do lh em i é característica das

12

variedades linguísticas mais populares e a oscilação na grafia indica existência cômoda na oralidade e dificuldade de padronização na grafia (Veja-se boceta ou buceta). Também a escolha lexical dos falantes aponta o tipo de vocabulário e sua função. É claro que, no caso do exemplo anterior, testículos (etimologicamente pequenas testemunhas, talvez do ato sexual) não surtiria o mesmo efeito. Essa extensão vai se dando ao longo de décadas e séculos até que, com a transformação de valores educacionais, de caráter moral e

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 2

Palavrao_NOV.indd 32

23/10/2012 08:48:04


12 Brassaï Entre 1930 e 1950, o artista registrou grafites. Entre eles, os que aludiam à genitália

de agressão com que é usado. Geralmente se recorre ao palavrão nos momentos de raiva, ofensa, menosprezo e pode levar muitas vezes à agressão física. Essa tem quase sempre o motor da linguagem no seu desencadeamento. Associado a esses efeitos está o humor. As peças teatrais, os programas humorísticos, as músicas de duplo sentido recorrem sobremaneira ora ao palavrão, ora à ambiguidade de sentido que esses termos evocam, combinando chacota, humor, ridicularização para produzir o riso. Quanto à extensão e perda de efeito de sentido dessas expressões, as gerações mais novas vão assumindo o palavrão do passado com outra conotação. Esse perde o caráter de agressão, neutralizando seu efeito, permanecendo o tom emotivo, impulsivo, ácido em contextos de brincadeiras coletivas, como jogos

Com o tempo, alguns palavrões perdem o caráter de agressão, neutralizando seu efeito, permanecendo o tom emotivo

religioso, aumenta a licenciosidade para uso dessas palavras. Em última análise, novos conceitos de moral e maior laicização da cultura promoveram mudanças comportamentais importantes. Isso não quer dizer que as camadas socialmente mais prestigiadas sejam refratárias ao uso do palavrão, mas, historicamente, em face desses valores educacionais mais universais e tradicionais acima aludidos, elas passaram a empregar esses termos de cunho mais popular num movimento contrário ao que

acontecera na Idade Média, quando a separação entre as duas culturas não existia. A partir do século 16, a cultura popular e a erudita foram se separando, principalmente com o advento da imprensa (Peter Burke, A cultura popular na Idade Moderna, Cia. das Letras). A democratização das sociedades ocidentais e a massificação da indústria cultural capitalista interpretam um papel importante nessa reaproximação. Quanto à sua função (3), talvez o sufixo ão de palavrão se deva ao ímpeto que promove no papel

de equipes, em que muitos desses termos emergem. Carai, no lugar de caralho, porque não é mais o objeto que se quer designar, senão o emotivo, preservado na sua função genérica, carrega outra conotação. Porra, cuja origem deve remontar a um pedação de madeira com formato cilíndrico, rijo, portanto, que substitui de forma pejorativa o nome pênis, já se ouve nos meios de comunicação de massa. (Compare-se porrete, porrada, derivados de porra, mas sem a associação semântica da obscenidade, e ainda pau ou cacete, para confirmar a associação entre porra e pênis, embora o termo possa assumir outros significados nesse mesmo universo discursivo). Estamos, evidentemente, diante de um fenômeno de reinterpretação semântica, que, em última análise, consubstancia o surgimento dessa zona especial vocabular das línguas humanas.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 3

Palavrao_NOV.indd 33

23/10/2012 08:48:07


con especial ti nen te

BRASIL O marco zero da carta de Caminha

O documento do escrivão deu o tom que vincularia a produção cultural brasileira à temática sexual, ao longo dos séculos

imagens: divulgação

13

Perpassada por um “voyeurismo quase pornográfico”. É assim que Denise Saive, da University of Wisconsin – Madison, se refere, no artigo A carta de Pero Vaz de Caminha: pornografia do século XVI?, à missiva que o escrivão enviou a Dom Manuel I, rei de Portugal, dias depois da chegada ao Brasil. Discorrendo sobre a nudez das indígenas, disse Caminha: “(...) suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tinham nenhuma vergonha”. Chamando a atenção também por ser um documento oficial, e dirigido ao soberano, a carta parecia dar o tom nem um pouco inocente que marcaria a produção cultural brasileira ao longo dos tempos, a começar, talvez, pelos versos de Gregório de Matos, conhecido como Boca do Inferno. Com os anos, as coisas foram “pero-vaz-caminhando”. Até os poetas “sérios” exercitaram o gênero, como Manuel Bandeira (A cópula) e Carlos Drummond de Andrade (A bunda, que engraçada). Um caso à parte é o do escritor Jorge Amado, colocado por Mário Souto Maior no topo da “literatura boca-suja”. Sem palavrões – até pelo fato de ser “mudo” –, o cinema brasileiro, ainda na década de 1920, começa a botar as unhas pornográficas de fora em filmes como Vício e beleza (1926), de Antônio Tibiriçá, e Depravação (do mesmo ano), de Luiz de Barros. Como mudanças sociais significam também transformações na linguagem, nos anos 1960, o palavrão começa a fazer a festa na área cinematográfica com produções como Os cafajestes, de Rui Guerra. Festa que ficaria ainda mais animada na década seguinte – apesar de a censura cismar de apagar a luz – com a chegada da pornochanchada, cujo slogan, como alguém já disse, parodiando o do Cinema Novo (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”), era “uma câmera na mão e um casal nu na cama”. Surgido em fins do século 19, o teatro de revista, ou teatro rebolado, incomodava até pelos títulos dos espetáculos, como É xique-xique no pixoxó, Tifutuco no futuca e Tem bububu no bobobó. Nele, atuaram atrizes que ficaram famosas também

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 4

Palavrao_NOV.indd 34

23/10/2012 08:48:09


13 albert eckhout A representação da índia brasileira explicita sua nudez

pelos palavrões. Uma delas, Dercy Gonçalves, falando sobre a crescente aceitação destes pela sociedade, disse: “Antigamente, diziam que eu era p... Hoje, dizem que eu sou cultura”. Outra, Leila Diniz, conseguiu preocupar até mesmo o pessoal de O Pasquim, para o qual, em plenos “anos de chumbo”, deu uma entrevista com cerca de 70 palavrinhas que precisaram ser substituídas por asteriscos. A resposta do regime foi a censura prévia, através de documento que, ironicamente, ficou conhecido como “Decreto Leila Diniz”.

14 dercy gonçalves Atriz era famosa por ser uma desbocada convicta

SEGURANÇA NACIONAL

No auge da popularidade, no final da década de 1960, quando mulher nua era vista também como questão de segurança nacional, as revistas eróticas bem que iam um pouco além dessa designação, podendo, em muitos casos, serem chamadas de pornográficas, por utilizarem – entre um e outro ensaio fotográfico – palavras que também eram tidas como coisas inventadas pelos comunistas. Um decreto publicado em 1970 chegou a estabelecer que as edições desse tipo de publicação só poderiam ser vendidas depois de registradas na Polícia Federal, determinação que durou até o início da redemocratização, quando começaram a circular livremente, ostentando, ao lado de nus frontais e brindes afrodisíacos, palavras mais cabeludas que os cantores de heavy metal. E foi na área roqueira que, em termos de música popular, os raios do sol da abertura política mais estimularam o crescimento do palavrão, presente nas canções de muitas bandas, como Titãs (Bichos escrotos), Legião Urbana (Faroeste caboclo) e Camisa de Vênus (o próprio nome do grupo já diz tudo...). Mas, ainda em 1980, Chico Buarque já testava o fim da censura, com Geni e o zepelim, o que, de certa forma, tinha sido feito anos antes pelos forrozeiros, não sem problemas, com o uso de palavras de sonoridade dúbia, a exemplo de Genival Lacerda. Grande divulgador desse tipo de música, o radialista pernambucano Geraldo Freire (também conhecido pelos palavrões que costuma falar em seus programas) revelou em entrevista:

No teatro, os palavrões distraíam a censura, que fazia cortes de cunho moral e esquecia as questões políticas “Durante o regime militar, fui várias vezes dar explicações por causa das músicas de duplo sentido”. Com origem na palavra latina scena, que significa, literalmente, “fora de cena” a obscenidade, na forma de palavrão, marcou forte presença na cena teatral brasileira nos anos da ditadura, mesmo com a censura a

14

peças de vários autores, como Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri. “O uso de palavrões era uma tentativa de distraí-los, pois, ao se preocuparem em efetuar cortes de cunho moral, os censores afastavam-se das questões políticas presentes nas peças”, diz a historiadora Miliandre Garcia. Talvez o único setor onde a palavra “merda” é sinônimo de “boa sorte” (por isso mesmo, pronunciada pelos atores antes de começarem os espetáculos), o teatro continua tendo profunda relação com as “palavras feias”. Uma prova recente é a A arte de dizer palavrão – uma p... comédia, com texto e interpretação de Alexandre Ribondi, que no início deste ano fez grande sucesso no Teatro Brasília Shopping. (go)

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 5

Palavrao_NOV.indd 35

23/10/2012 08:48:09


reprodução

con ti nen te

História

1

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 6

Historia_NOV2.indd 36

23/10/2012 08:49:57


hábitos Ele lia com os olhos colados ao papel Hoje uma prática comum, a leitura silenciosa surgiu em contraste com a oratória e retórica da cultura greco-romana, atendendo a introspecção da religiosidade medieval texto André Valença

Avalie a perplexão de Santo

Agostinho de Hipona ao descobrir que um irmão de “santidade”, Santo Ambrósio de Milão, o padre que lhe ministrara o batismo, conseguia ler... em silêncio. “Quando ele lia seus olhos conduziam através das páginas nas quais seu espírito percebia o sentido do texto, enquanto sua voz e sua língua repousavam”, relata um impressionado Agostinho, no sexto volume de Confissões, seu memorial e “guia ético” cristão, escrito durante a última década do século 5. Resultado do processo de alfabetização nos dias de hoje, a leitura silenciosa no Ocidente era uma prática heterodoxa àquela altura da Idade Média, desempenhada por uns poucos casos isolados, e, até ali, nunca fora a maneira hegemônica de se ler nessa sociedade. O que passa a existir, então, é um testemunho desse tipo de leitura, um elogio que antes se direcionava à oratória e à retórica da cultura greco-romana, e que começa a se ligar diretamente à introspecção da religiosidade medieval. De acordo com a professora de História da UFPE Marília de Azambuja Ribeiro, “a leitura silenciosa sempre foi muito ligada a essa questão religiosa, de contato com uma leitura interior mais profunda, para buscar a salvação da alma”. Isso explica

bem uma das causas fundamentais para que houvesse a mudança desse paradigma. Mas por que somente na Alta Idade Média? Em um primeiro momento, vale a pena evidenciar a relevância do suporte físico na interpretação de uma obra. No Egito Antigo, por exemplo, os hieroglifos eram apoiados na superfície de rolos de papiro; ler um livro ali significava ter as duas mãos sempre ocupadas, já que cada uma segurava uma ponta do rolo. Isso impedia uma acepção dinâmica, e também a anotação simultânea, tornando-se imperativa a presença de um escriba que registrasse as reflexões do leitor acerca do texto, necessariamente ditadas. Muitos historiadores também apontam o caráter elitista da leitura como influente no valor atribuído à oralização até antes da Idade Média. Como na Antiguidade as leituras eram coletivas, e públicas, apenas um orador tinha acesso ao texto, enquanto aos interlocutores, geralmente analfabetos, cabia a escuta passiva. O senso comum apontava na oralidade o dom de contagiar com fervor o ouvinte, daí a valorização dessa modalidade. Foi com a transição dos rolos de papiro para o códex que houve o primeiro grande passo para uma nova ordem de organização textual. Apontada

Na Antiguidade, as leituras eram feitas por um orador; aos interlocutores analfabetos cabia a escuta passiva por Roger Chartier, especialista em história da cultura escrita, como a primeira grande revolução da leitura, a transição do formato de papéis enovelados para uma organização estruturada em páginas e costuradas em cadernos, o livro, tal como conhecemos, foi o primeiro instrumento necessário para que o arquétipo silencioso de leitura ganhasse popularidade. O códex manuscrito, antes mesmo da imprensa, já oferecia uma flexibilidade maior, porque, ao mesmo tempo que deixava as mãos mais livres e o livro pousado na mesa, permitia, com o folheamento, uma paginação mais ágil, em oposição à rolagem. A facilidade do códex, no entanto, não foi ainda suficiente para que as normas de leitura e escrita fossem completamente subvertidas; e foi apenas nos monastérios medievais que começou a se dar uma transformação no sentido de uma apreciação textual mais

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 7

Historia_NOV2.indd 37

23/10/2012 08:49:57


imagens reprodução

2

con ti nen te

História

visual, e menos oral. Foi nas abadias, a partir do século 7, que monges bretões e irlandeses começaram a separar as palavras com espaços em branco e adicionar pontuação. Até ali, os textos eram escritos em scriptio continua, ou seja, não havia hiatos, bloqueios ou interrupções entre as palavras, daí a preleção pela oralidade na hora de ler, pois a configuração dos escritos já implicava numa narração fluida, definida pelas entonações da voz – razão pela qual, inclusive, muitos dos textos em prosa da Antiguidade eram metrificados. Objeto do seu famoso ensaio Space between words – the origins of silent reading (Espaço entre as palavras – a origem da leitura silenciosa), Paul Saenger considera a separação vocabular uma

das invenções mais importantes da história da leitura, acusando também o desinteresse da elite alfabetizada de facilitá-la como fator cabal na demora para que se utilizasse a separação de palavras.

NOVA COGNIÇÃO As frases, agora pontuadas e formadas por palavras desprendidas umas das outras, permitiram que redações complexas fossem mais facilmente absorvidas pelos leitores, e isso acarretou mudanças que incluíam leituras reflexivas, comparações de obras e anotações simultâneas, entre outros avanços que abriram cognitivamente a capacidade do ser humano de pensar o texto. “Nas línguas pioneiras, como o aramaico e o hebraico, não havia a vogal. Então a interpretação variava muito. Os gregos inventaram as vogais. Os medievais, a separação entre as palavras. Tudo isso

facilitou a interpretação e abriu caminho para a leitura silenciosa”, comenta Marília Ribeiro. Sob as regras de conduta dos monastérios, compreende-se a mudança de uma prática coletiva (oral) para uma solitária (silenciosa). Um ponto interessante quando do estabelecimento da leitura silenciosa é que os escribas começaram, visando atingir uma maior concentração nos estudos, a reduzir ainda mais a oralidade nas suas relações. Para não causar incômodos, na sala de leitura a comunicação passou a ser por meio de gestos, como explica Alberto Manguel em Uma história da leitura: “Se queria um novo livro para copiar, o escriba virava páginas imaginárias; se precisava especificamente de um Livro dos salmos, colocava as mãos sobre a cabeça, em forma de coroa (referência ao rei Davi); um lecionário era indicado enxugando-se a cera imaginária de velas; um missal, pelo sinal da cruz;

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 8

Historia_NOV2.indd 38

23/10/2012 08:49:59


Página anterior 1 santo ambrósio

Religioso foi um ávido leitor, grande intérprete da Bíblia

Nestas páginas 2 papiro

Manuseio das folhas em rolo difucultava tomada de notas, por ocupar as duas mãos

códice 3 Conjunto de placas, articulado por dobradiças, foi o protótipo do livro

uma obra pagã, pelo gesto de coçarse como um cachorro”, explica. Outra curiosidade, esta descrita em A aventura do livro, de Roger Chartier, é que, mesmo depois disso, a leitura ainda não se tornou completamente silenciosa: “Os primeiros textos que impunham silêncio não datam senão dos séculos 13 e 14. É apenas nesse momento que, entre os leitores, começam a ser numerosos aqueles que podem ler sem ‘ruminar’, sem ler em voz alta para eles mesmos a fim de compreender o texto (...) Pode-se então supor que antes, nas scriptoria monásticas ou nas bibliotecas das primeiras universidades, ouvia-se um rumor, produzido por essas leituras murmuradas, que os latinos chamavam de ruminatio”, relata o historiador. Para Ribeiro, vocalizar ou não as palavras é o menor dos problemas da leitura na contemporaneidade. “Existem duas leituras silenciosas

Um dos momentos cruciais da história da leitura foi a separação vocabular, que facilitou a compreensão textual atualmente: a leitura reflexiva e a ‘do computador’, que não é atenta. A leitura de boca fechada não quer dizer que é de alta concentração. O aluno tem dificuldade de fazer essa leitura interior, de extrair uma compreensão profunda do texto, como se buscava na Idade Média. Perdemos a capacidade de fazer uma leitura concentrada, é só silenciosa, mas mesmo assim, ruidosa.” Sejam quais tenham sido as motivações para que se desenvolvesse, ou os entraves para

3

que não viesse a se popularizar, a leitura silenciosa ainda tem no relato de Santo Agostinho a descrição mais misteriosa – tanto quando se espanta, como quando, de certa maneira, dessacraliza os estímulos do seu mestre enquanto pratica o ato curioso: “Lia em silêncio (...), talvez para evitar que algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis. Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava, embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que facilmente lhe enrouquecia”. Seria de uma simplicidade mística e assombrosa, se todo um alinhamento histórico que permitiu essa evolução pudesse ser substituído pela justificativa de que ficaríamos roucos se não lêssemos... em silêncio.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 3 9

Historia_NOV2.indd 39

23/10/2012 08:50:00


reprodução

fazem uma leitura intensiva, porque está ligada a uma perspectiva filológica, para estabelecer o sentido do texto. Ao mesmo tempo, são leitores extensivos, porque querem fazer referência ao máximo de leituras possível, já que pretendem reconstruir uma cultura moderna com referência na Antiguidade.

con ti nen te

História Entrevista

ROGER CHARTIER “Produzimos mais escritos. Já literatura, não sei” O francês Roger Chartier é professor e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e do Collège de France, onde ocupa a cadeira de Cultura Escrita na Europa Moderna. Autor de obras como A aventura do livro, que analisa as adaptações sofridas pela escrita com o advento da internet, Chartier pode ser considerado uma das maiores autoridades em história da leitura. Em entrevista à Continente, traça um panorama que começa na transição da leitura oral para a silenciosa e chega à noção de autor no mundo contemporâneo.

CONTINENTE Existe mais de um tipo de leitura silenciosa? ROGER CHARTIER Há uma leitura intensiva, que se prende ao texto – que faz o texto penetrar no espírito do leitor –, ou uma leitura extensiva – rápida, desenvolta, mais solta à letra do texto. As duas são silenciosas, mas são modelos diferentes. E aqui encontraríamos uma dicotomia da perspectiva. Alguns historiadores consideram que, na Europa do século 18, nós passamos de um modelo de leitura intensivo – preso ao corpus do texto, em que há uma força de pureza, espécie de sacralidade concernindo ao texto, um modelo de leitura religiosa – a um modelo extensivo, que se dá principalmente no Século das Luzes, à leitura dos pequenos formatos, dos novos gêneros, dos periódicos... Então, é uma visão cronológica. E tem os historiadores que acreditam que há um modelo de leitura intensivo e extensivo, que pode ser empregado pelo mesmo leitor, de acordo com o gênero do texto. Poderíamos dizer que os humanistas do século 16

CONTINENTE No que diz respeito à forma, nós tínhamos o livro em rolos, passamos para o códex e chegamos à era da multimídia. Como o suporte muda a maneira de ler? ROGER CHARTIER A primeira grande revolução da leitura foi a substituição do livro em rolos da Antiguidade pelo códex, que é formado por cadernos de páginas. Em seguida, passamos pela invenção de Gutemberg, a imprensa, que também mudou paradigmas. Pensando na tela, essa é uma terceira ruptura material. Uma ruptura particular, porque nos tablets, ou nos computadores, se encontra dissociada a ligação que era mantida no rolo ou no códex entre o livro como obra e o livro como objeto. Um tablet, ou uma tela, não é um livro, no sentido de que a sua materialidade não está ligada unicamente a um texto que leremos. É um suporte que pode receber uma pluralidade de textos. Há a transformação de uma materialidade que não é da mesma ordem do rolo ao códex, ou do códex manuscrito à imprensa. Não há uma analogia imediata, trata-se de uma apropriação possível desses objetos. Por isso devemos nos resguardar de qualquer determinismo tecnológico ou morfológico. As práticas e os usos do texto certamente podem ser favorecidos ou impedidos por esse ou outro suporte, mas têm uma certa autonomia à materialidade. CONTINENTE E quanto à prática editorial, o quanto muda com o multimídia? ROGER CHARTIER Mais uma vez, depende de como você olha. Podemos ter uma concepção que considera que simplesmente damos uma nova forma, numérica, a textos que poderiam existir numa outra forma, como impresso. E tem toda a discussão sobre a “numerização” do texto impresso, do manuscrito, o fato de que podemos ter uma edição impressa e numérica

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 0

Historia_NOV2.indd 40

23/10/2012 08:50:01


do mesmo livro. Temos que rever essa ideia, porque a consideração é de que as novas tecnologias são uma base diferente para formas de texto que não são necessariamente ligadas a esse suporte, já que esse texto existiu e vai existir em outra plataforma. A coisa fica diferente quando pensamos na forma de inscrição do texto como pertencente aos suportes. Por exemplo: porque são multimídia, podemos inserir imagens, sons... ou porque são maleáveis, e móveis. Eu penso que o mundo numérico é o mundo da coexistência dessas duas formas: os textos “numerizados”, que já existiam anteriormente em outro formato, e os textos nascidos numéricos, impossíveis de se imaginar noutro suporte. Essa diferença traz algumas consequências, como a oposição entre a edição e a premissa inicial. Para estabelecer um copyright é preciso que haja, no mínimo, uma identidade perpetuada. Num texto aberto, não há possibilidade de copyright, o que modifica a própria noção de propriedade intelectual. No primeiro caso, ela é defendida, no segundo, abolida. No primeiro caso, o autor pode dispor de novas possibilidades graças à forma numérica do texto, como não precisar ir à uma biblioteca, ou poder fazer anotações digitais, mas o texto permanece da maneira que é; no segundo caso, o leitor vira autor, o que provoca uma cadeia de autores. CONTINENTE Essa cadeia de autores, então, propicia um aumento na produção literária, não é? Mas qual é a qualidade dessa literatura? ROGER CHARTIER Ao meu ver, produzimos mais escritos. Já literatura, não sei. Porque temos aqui quase uma oposição à definição do conceito de literatura do século 18, que supõe a singularidade da escritura, a originalidade da obra e a propriedade do autor sobre o texto. São três elementos que a segunda modalidade numérica de livros da qual falava coloca em questão. A escritura não precisa ser mais singular, pode ser coletiva; a originalidade reside nesse movimento permanente de composição; e, finalmente, não há propriedade de um autor sobre uma obra. Talvez o que deveríamos fazer

seria batizar esses novos escritos de “literatura”, porém, eles abrem uma série de noções que não são originalmente da literatura. O autor pode desaparecer. A obra não pode mais ser definida e delimitada como o mundo impresso ou manuscrito. E a liberdade, ou a gratuidade dessa transmissão são contraditórias com uma noção de propriedade. Então, eu penso que há um universo de escritura que se abre, ao qual o mundo da literatura se adapta muito mal. Mas temos várias formas de pensar a literatura através dos séculos, o problema é a tendência de universalizar noções que têm continuidades históricas particulares. Não há literatura eterna. CONTINENTE E a noção de autor nas compilações épicas, como em Homero? ROGER CHARTIER No gênero épico, temos uma tradição oral, na qual a memorização é essencial. A partir de um momento, há uma passagem da oralidade à transcrição desses textos, que pode fazer emergir um autor. Quer dizer, não necessariamente o fato de saber que existe um escritor, mas considerar que um texto pode ser atribuído a um nome próprio. É o que se passa com Homero, e o que se passa com todos os indivíduos aos quais se atribuíram obras. Portanto, não penso que a categoria do autor tem uma durabilidade comparável com a da literatura em si. Na Idade Média, havia os textos que pretendiam dizer a verdade – a verdade sobre o mundo, sobre a natureza... – eram ligados à autoridade de um nome próprio, fosse esse o do escritor que produziu o texto, fosse um nome próprio que servisse de fiador dessa “verdade”. E depois, a partir do século 18, o texto literário passou a exigir o nome do autor. Então, há figuras sucessivas, aquelas ligadas a uma função de autoridade, de autorização e de autentificação do texto, ou vinculadas a essa identidade posta entre o nome do escritor e o nome do autor. CONTINENTE Como você interpretaria a literatura de pessoas como Jorge Luís Borges, que faz uma brincadeira com a

autoria e com a falsa historicidade? ROGER CHARTIER Nós poderíamos dizer que Borges faz um jogo permanente com essas questões. Borges y yo, por exemplo, mostra que o nome do autor constrói e absorve o desejo do escritor. Nesse modelo, não há autoria sem a pessoa do escritor; o que há é uma espécie de relação de permanência dialética entre um e o outro. E, a partir daí, Borges atribui textos reais a autores que ele imagina, ou utiliza nomes reais atribuindolhes textos que ele próprio escreveu. Ele mesmo pode se vincular a um certo número de pseudônimos. Poderíamos dizer que a obra de Borges tange essa tensão, à maneira dos séculos 19 e 20, entre o escritor e o autor. Mas outros criadores levam isso ainda mais longe. Um exemplo é Fernando Pessoa, com a publicação de obras inteiras sob outros nomes, cada um com uma especificidade literária, estética ou política. Os heterônimos são uma realização magnífica a partir do escritor Pessoa, uma multiplicidade de autores, que são ele e também não o são. Então, a literatura contemporânea brinca até o infinito com essa tensão que concerne aos heterônimos, pseudônimos, ao plágio e ao inverso do plágio, que é atribuir diferentes autorias aos seus textos, para fazê-los circular. CONTINENTE Na internet, isso é muito comum. Acontece com muitos autores aqui, do Brasil, de terem textos que são seus ligados a outros nomes por conta de uma semelhança estética, ou temática. ROGER CHARTIER Não é uma coisa nova. Lope de Vega reclamava porque publicavam obras atribuídas a si, mas que ele jamais havia escrito. Sob o nome de Shakespeare, as livrarias londrinas publicavam peças, ou poemas que ele nunca escrevera. O nome do autor é uma espécie de comodity, de valor que pode ser dissociado da escritura. Nós temos muito o que pensar, já que o paradigma da literatura contemporânea supõe que há identidade entre o escritor e o autor, mas, num passado mais antigo, a assinatura poderia servir como o recurso publicitário. ANDRÉ VALENÇA

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 1

Historia_NOV2.indd 41

23/10/2012 08:50:01


creative commons

con ti nen te

COMPOrTAMENTO

morte Um tema inescapável

Em diversas obras, como no livro Últimas palavras, de Christopher Hitchens, autores expõem a vulnerabilidade e fragilidade humana diante do fim inevitável texto Schneider Carpeggiani

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 2

Morte_NOV.indd 42

23/10/2012 08:51:59


Pode ser a qualquer momento. Numa virada de esquina. Na hora do jantar, com a família ao redor da mesa. Justamente quando você está distraído e, pronto, acontece. Muitos relatos dão conta de que o mais provável é que seja ao acordar, como naqueles romances de Franz Kafka, em que a condenação sincroniza com o abrir dos olhos. Não são apenas sonhos intranquilos, como de imediato pensou o protagonista de A metamorfose. “Nada me preparou para o começo da manhã de junho em que recobrei a consciência sentindo-me como que acorrentado a meu próprio cadáver”, assinalou o crítico e polemista inglês Christopher Hitchens aquele instante zero quando ingressou, sem direito a retorno, em uma

nação que não há discriminação de cor, idade ou sexo, a (em suas cirúrgicas palavras) Tumorlândia. Tenho duas lembranças fixas de Hitchens. Fui plateia no seu circo de frases de efeito e divertidos processos de desconstrução de Deus, do Islã, de Madre Teresa, George Bush, e alguns outros inimigos favoritos menos cotados, durante uma coletiva da Flip de 2006. Ao falar, soava imbatível: uma metralhadora verborrágica milimetricamente bem-articulada para tratar qualquer um à sua frente como reles seguidor ou descrente pronto a ser convertido. Era também charmoso e bem-humorado, características que faziam da sua arrogância uma qualidade hipnótica. Duas ou três horas depois do encontro com a imprensa, vi Hitchens caminhando sozinho numa rua vazia de Paraty. Não tinha a ajuda de assessores ou algum possível ouvinte. Mal conseguia equilibrar os pacotes de livros que carregava enquanto tropeçava no irregular calçamento de pedras pé de moleque da cidade histórica. Suas bochechas estavam inflamadas pelo sol daquele inverno postiço. Havia sido flagrado num daqueles momentos em que estamos tão desarmados que, bingo!, somos apenas nós mesmos. Não era mais o domador de circo; apenas outro gringo sem protetor solar. Nas memórias de Últimas palavras (Globo Editora), Hitchens se oferece ao leitor num retrato de corpo inteiro, como se dois homens estivessem falando, e, ao mesmo tempo, por um só: é o súbito paciente que não esconde o espanto e a fragilidade diante do câncer de esôfago, que acabou por vencê-lo em 2011; ainda assim, permanece o polemista hábil em desembrulhar os argumentos contrários num piscar de olhos, e por “contrários”, leia-se aqui a infâmia de grupos religiosos que atribuíam sua doença a algum castigo divino (e jamais à decorrência natural do seu estilo de vida nada frugal) e até rezavam por uma redenção tardia. Mas ele preferiu a escolha do materialista Voltaire: a morte não é uma hora boa para começar novas amizades. No seu caso, a possibilidade de uma morte iminente foi a hora de pesar

Últimas palavras, de Christopher Hitchens, tem a particularidade de trazer o relato de alguém em luto por si mesmo contradições, de farejar o perfil de um inimigo que não se importava com seu calibre intelectual ou com sua posição política – esquerda ou direita, tanto fazia, o inimigo já ocupara o centro de tudo. Fez da relação com a mortalidade um assunto de pesquisa e inquietação como qualquer outro, um exercício delicado, mas necessário. Não havia outra forma de reagir: “Contra mim está um alienígena cego e sem emoções, animado por alguns que há muito me desejam mal. Mas do lado da continuidade de minha vida está um grupo de médicos brilhantes e devotados, mais um número impressionante de grupos de oração. Sobre ambos espero escrever da próxima vez se – como meu pai invariavelmente dizia – eu for poupado”.

PROBLEMA SEDUTOR A morte, assim como o amor, é tema recorrente da literatura. A narrativa mais famosa do Ocidente é justamente a detalhada descrição dos últimos dias de um homem: sabemos (e alguns de cor) todas as chagas que marcaram o corpo de Cristo, os detalhes da crucificação, suas últimas palavras. Nossa cultura é quase toda construída a partir desse padecimento. O enigma do Santo Sudário, por exemplo, persiste como assunto favorito dos sensacionalistas, a partir de sua dupla função: o manto nos lembra da morte do Filho de Deus, ao mesmo tempo em que assinala como possível nossa crença na Ressurreição, nossa suspeita de que não há um fim definitivo. “Nada, falso ou verdadeiro, é tão impressionante”, arrematou o historiador italiano Thomas de Wesselow em O sinal – o Santo Sudário e o segredo da ressurreição (Cia das Letras), quando do seu primeiro encontro com a relíquia cristã. Não poderia ter sido mais exato.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 3

Morte_NOV.indd 43

23/10/2012 08:52:00


con comportamento ti nen te fotos: divulgação

1

Um fisiológico Tolstói expôs uma espécie de making of da morte e do luto na novela A morte de Ivan Ilitch, texto perturbador por mostrar os personagens desprevenidos, despidos da encenação que a vida exige, como aquele Hitchens que um dia flagrei em Paraty. Tolstói nos descreve o terror e a falta de sentido do falecimento de Ivan Ilitch apenas para fazer um raio X da falta de destreza dos que sobrevivem em lidar com o tema. Morrer é um problema apenas para os vivos. Um problema até sedutor, como ironizou a poeta Emily Dickinson, que fez da morte um derradeiro príncipe encantado, que a resgataria de sua vida claustrofóbica: “Éramos nós dois na carruagem e a eternidade”, “suspira”,

Tolstói fez um making of da morte em A morte de Ivan Ilitch e Barthes transformou o luto pela mãe num diário de aforismos num dos seus poemas sem título mais forrados por passagens fantasmagóricas. Roland Barthes transformou o luto pela mãe num diário de aforismos preciosos. Temia que a perda corresse o risco de ser esquecida. “Todos calculam – eu o sinto – o grau da intensidade do luto. Mas é impossível (sinais irrisórios, contraditórios) medir quando alguém

está atingido”; “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?” são algumas das suas anotações. Em determinada altura, é certeiro ao questionar a função daquela escrita que o consumia diariamente: “Não quero falar disso (da morte) por medo de fazer literatura – sem estar certo de que não o será –, embora, de fato, a literatura se origine dessas verdades”. Mas em que consiste o trabalho realizado pelo luto, tão materializado na nossa cultura? “O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto. Isso desperta uma compreensível oposição – observase geralmente que o ser humano não gosta de abandonar uma posição libidinal, mesmo quando um substituto já se anuncia”, observa Freud em seu ensaio Luto e melancolia (1917), que lembra a incômoda verdade do quanto fazemos questão de continuar a viver com o morto ao lado. Precisamos, ao menos por um tempo, nos afastar de qualquer atividade que não se ligue à memória do falecido. O funcional paradoxo de lembrar para esquecer. No best-seller O ano do pensamento mágico (Nova Fronteira), a escritora norte-americana Joan Didion seguiu a lição barthiana de escrever para compreender o trabalho do luto: seu marido morre subitamente durante um jantar. “A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente. A questão da autopiedade.” Foram as primeiras palavras que ela escreveu após o “ocorrido” (necessário eufemismo da autora para tratar da morte do marido, afinal, por um tempo, talvez seja melhor não dizer a palavra precisa, temos de riscá-la do dicionário). Durante longos meses, Joan não conseguiu mais escrever coisa alguma. Mas salvou num arquivo de computador “A vida se transforma rapidamente”, como o refrão que um dia lhe guiaria de volta ao trabalho, de volta a algo próximo a uma existência normal e menos dependente do trauma. Em pouco menos de dois anos, Joan sofre outra perda: desta vez, a da filha. A escrita volta a ser sua tentativa de

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 4

Morte_NOV.indd 44

23/10/2012 08:52:03


1 Hitchens O polemista inglês faleceu em 2011, vítima de um câncer de esôfago 2 joan didion Em O ano do pensamento mágico, a escritora tenta compreender o trabalho do luto 3 santo sudário O enigma que envolve sua história é tema recorrente

2

3

reconstrução no recente Noites azuis (Nova Fronteira), testamento de quem se sabe a mulher que restou, mas que ainda assim deixa escapar a incredulidade com suas tragédias pessoais, a mesma incredulidade que nos leva, muitas vezes, a pensar “Emergência, continuo a acreditar, é algo que acontece com os outros” – frase que a autora destaca com precisão no texto.

A SENTENÇA

O livro de Hitchens se insere num lugar estranho na literatura sobre morte. Últimas palavras é a narrativa de alguém em luto por si mesmo. É alguém aperfeiçoando a arte de (se) perder. O fato do livro ser inacabado só realça o esforço vivido pelo autor

em ordenar o caos de um diagnóstico e em tentar responder a perguntas como “o que fazer quando há uma sentença irrevogável que vai de encontro a tudo o que você havia planejado?”. “O fato fascinante sobre estar mortalmente doente é que você passa bastante tempo se preparando para morrer com um bocadinho de estoicismo (e de provisões para os entes queridos), enquanto está simultânea e altamente interessado na questão da sobrevivência. Essa é uma forma de ‘vida’ bizarra – advogados pela manhã e médicos à tarde -, e significa que a pessoa tem de viver com uma postura mental dupla para além do habitual. O mesmo é verdade, aparentemente, para aqueles que

rezam por mim. E a maioria entre estes é tão ‘religiosa’ quanto o camarada que quer que eu seja torturado aqui e agora – o que serei, mesmo se acabar me recuperando – e depois torturado para sempre, se não me recuperar. Ou, presumivelmente, inclusive se eu me recuperar”. Sabendo-se morador da Tumorlândia, Hitchens se esforça para criar uma espécie de manual de etiquetas para os estrangeiros. Um doente não precisa ouvir falar o tempo inteiro do seu mal; ninguém deve perder tempo relatando a experiência de conhecidos, ou conhecidos de conhecidos, que não tiveram cura; e mais: evite a superioridade de olhar com a expressão de “eu entendo o que você está passando...”. Não, definitivamente não entende. Essas são algumas das regras preciosas, as primordiais, que os visitantes não podem deixar de ter em mente na hora de cruzar a fronteira da Tumorlândia. E com certeza seus editores também não compreenderam as regras dessa nova terra, tanto que pontuaram a edição com um posfácio da viúva lembrando as qualidades do marido e com deixas lembrando que determinada passagem havia ficado incompleta ou desordenada. A própria vida é uma experiência incompleta e, em alguns momentos, desordenada. Por isso se escreve.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 5

Morte_NOV.indd 45

23/10/2012 08:52:05


divulgação

colombo Um chá da tarde na belle époque

Numa pequena rua do centro carioca, a confeitaria mais famosa do Brasil atravessa três séculos de história, unindo clientela ilustre, arquitetura luxuosa e gastronomia tradicional texto Talitta Corrêa

Cardápio 1

1

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 6

Cardapio_NOV.indd 46

23/10/2012 08:55:32


“Orlando!”. Quando o nome do garçom dobrava os “Os” e ecoava pelo salão, seu cliente mais ilustre havia chegado. Era um freguês sorridente, que mirava na mesa 23 (cantinho iluminado pelos lampadários de cristal tcheco). Entre vitrais, piano de cauda e pilastras de mármore, ele desfilava na direção do peru fatiado com molho rôti, farofa de ovos e banana frita, sabendo que, vez ou outra, as baixelas de prata portuguesa vinham também guarnecidas de uma dobradinha de porco ou um linguado. Na Confeitaria Colombo – que há mais de um século coloca esplendor na estreita Rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio de Janeiro –, o presidente Juscelino Kubitschek era presença constante. Além de JK, visitantes célebres como Olavo Bilac, Machado de Assis, José do Patrocínio, Washington Luiz, Santos Dumont, Rui Barbosa, Chiquinha Gonzaga, a rainha Elizabeth, Villa-Lobos e Getúlio Vargas ajudaram a transformar a confeitaria numa suntuosa referência da cidade. “Servi muitas dessas pessoas”, orgulha-se Orlando Almeida Duque. Aos 72 anos, ele é o funcionário mais antigo da casa, na qual trabalha desde os 15. “O Getúlio, por exemplo, escolhia a mesa 38 e só comia o filé mignon à gaúcha: medalhão, arroz, batata frita, farofa de alho, torrada e molho à campanha. Por R$ 49,50, o prato ainda está no cardápio.” Foram os imigrantes portugueses Manuel Lebrão e Joaquim Meirelles que, em setembro de 1894, fundaram esse estabelecimento de luxo comparável, à época, aos melhores restaurantes de Paris. Um rico pedaço do Rio de D. Pedro II, exuberante de sobremesas sofisticadas, cujos proprietários – dizem muitos historiadores – criaram a famosa frase “O cliente tem sempre razão”. A Confeitaria Colombo é, até hoje, um lugar em que se vive certo tipo de alumbramento. Dentro de suas portas de madeira jacarandá e em dois andares espaçosos, um banquete de história, cultura e especial gastronomia se posta às mesas, elegantemente. c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 7

Cardapio_NOV.indd 47

23/10/2012 08:55:34


imagens: divulgação

Página anterior 1 salão

um dos mais É representativos exemplares da belle époque brasileira e da arquitetura art nouveau

Cardápio

Nestas páginas 2 quitutes

Renato Freire, chef da confeitaria há 10 anos, montou o cardápio com receitas clássicas

decoração 3 Os espelhos belgas e o mobiliário encantam os frequentadores

2

“A Colombo é uma das poucas casas que atravessaram três séculos. O segredo do sucesso é ter sido idealizada por homens de grande inteligência, visão do futuro e com um faro comercial inigualável, criadores de um negócio suntuoso numa época que o centro do Rio de Janeiro ainda era um local insalubre, com as ruas sujas e dominadas pelos cortiços’’, relembra Renato Freire, chef da confeitaria há mais de 10 anos. “No seu início, a Colombo instalou-se num sobrado antigo. Composta por uma fábrica de doces, restaurante, armazém e uma refinaria de açúcar. A refinaria trazia o açúcar bruto de Pernambuco, considerado, à época, o melhor

do Brasil. Seus donos mandavam buscar as melhores mercadorias que pudessem existir. A banha vinha dos Estados Unidos, as manteigas eram trazidas da Holanda, França ou Dinamarca; os biscoitos vinham da Inglaterra, os chocolates da Suíça e da Bélgica”, completa o chef.

DIA E NOITE

A marchinha de carnaval Sassaricando, sucesso de 1952 na voz da vedete Virgínia Lane, lembra que a Colombo tinha movimento de dia e de noite (“Tá sassaricando/Todo mundo leva a vida no arame/ Sa, sassaricando a viúva, o brotinho e a madame/ O velho na porta da Colombo/ É um assombro/ Sassaricando/

Quem não tem seu sassarico sassarica mesmo só/ Porque sem sassaricar/ Essa vida é um nó...”). À tarde, enchia-se de madames para o chá. Depois, era tomada pelos boêmios. Um lugar com uma poesia tão própria, que virou cenário de diversas obras, sobretudo, televisivas. Na novela O casarão, de Lauro César Muniz, exibida em 1976, o personagem João Daniel (vivido por Gracindo Jr.) marca um encontro na confeitaria com a jovem Carolina (Sandra Barsotti). Apenas ele comparece. Muitos anos mais tarde, João Daniel, já idoso, volta à confeitaria e reencontra sua amada, com cabelos brancos, no emocionante capítulo final,

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 8

Cardapio_NOV.indd 48

23/10/2012 08:55:37


embalado pelo valsa Fascinação, na voz de Elis Regina. Na atual novela das seis, da Globo, Lado a lado, a personagem Isabel, interpretada por Camila Pitanga, procura emprego na luxuosa “Confeitaria Colonial”, que reúne intelectuais no centro do Rio, no ano de 1904, numa clara referência à casa.

MAUS TEMPOS

Os primeiros sinais de desaquecimento do negócio só vieram com a mudança da capital para Brasília, na década de 1960. Com o esvaziamento do Rio de Janeiro, a Colombo começou a viver um período de dificuldades. Seu momento mais crítico foi no início da

Com a mudança da capital para Brasília, na década de 1960, a Colombo começou a viver um período de dificuldades década 1990, quando se especulava que ela se transformaria num bingo ou numa igreja evangélica. O estabelecimento só não foi fechado por ter sido tombado antes como patrimônio histórico da cidade. Em 1992, foi comprada pela marca Arisco, mais interessada nas suas fábricas de doces e de geleias.

3

Sete anos depois, voltou ao ramo familiar, sendo comprada pelos irmãos Mauricio e Roberto Assis. Logo em seguida, Renato Freire foi escolhido para assumir o posto de chef executivo das suas cozinhas. Foi quando itens tradicionais do passado voltaram às vitrines da casa, como o bolinho rivadávia, os gaufrettes, os pingos de tochas, as trouxinhas de ovos, os pastéis de nata, o famoso mil-folhas (doce preferido de Olavo Bilac) e os pãezinhos de miga, servidos à Rainha Elizabeth, em 1968 – embora a majestade tenha se encantado mais pelo sorvete de bacuri, armazenado em muitas caixas, e levado a bordo do seu navio para a Inglaterra.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 4 9

Cardapio_NOV.indd 49

23/10/2012 13:31:05


divulgação

4 APRESENTAÇÃO Os pratos servidos hoje ainda preservam o charme de outras épocas

Cardápio 4

A estreitíssima ligação de políticos, personalidades, intelectuais e artistas com a confeitaria já foi detalhada no livro Colombo, 100 anos no dia a dia da cidade do Rio de Janeiro, editado e escrito por Batty Mattos, em 1994. A publicação conta, por exemplo, que, no início do século 20, a mãe do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, Dona Noêmia, lavava e engomava os guardanapos da confeitaria. Daí surgiu uma relação quase sentimental, dizia o músico, com um tal de escalopinho de filé à la Bouquetière. Não por acaso, quem visita o segundo andar da Colombo, atualmente, encontra um pequeno coreto para Villa-Lobos. Esses atributos históricos atraem ao local visitantes de todo país. De segunda a sábado, suas cadeiras estão sempre ocupadas, com o fervilhar do centro da cidade. O que transforma clientes em espectadores

Entre os artistas que mantiveram relação afetiva com a confeitaria está o compositor Heitor Villa-Lobos boquiabertos são o belo mobiliário, esculpido pelo artesão Antônio Borsoi, os espelhos belgas e a claraboia imponente, colocando o público diante de um dos mais representativos exemplares da belle époque brasileira e da arquitetura art nouveau. Em 1944, ao completar 50 anos, a casa abriu uma filial em Copacabana. A unidade funcionou até 2003, quando se mudou para o Forte de Copacabana, tornando-se ponto turístico que oferece, além de quitutes, uma bela vista da orla carioca.

Hoje, a casa principal atende, em média, três mil pessoas dia, ou cerca de um milhão de clientes por ano. A procura do público para realização de festas de casamento na confeitaria é tão grande, que só há vagas para os fins de semana no segundo semestre de 2014. Lá, dois mil doces e salgados são produzidos, diariamente, por quase 80 funcionários. Aos sábados, das 12h às 16h30, vale experimentar o bufê de feijoada (R$ 49,50 por pessoa, com salada e uma sobremesa). Opções como pastel de avelã com feijão branco, ou de chocolate com pimenta, incorporam novidade ao menu e conquistam novos cariocas, turistas e celebridades, como atores, atletas e jornalistas. A cúpula do Flamengo reúne-se ali todas as terças-feiras. É quando o garçom vascaíno Orlando forra, contrariado, uma das mesas do salão com a bandeira rubro-negra.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 0

Cardapio_NOV.indd 50

23/10/2012 13:31:10


Cardapio_NOV.indd 51

23/10/2012 13:31:11


REPRODUção

Palco EUGÈNE IONESCO Estética do desconcerto para um teatro absurdo Autor franco-romeno foi responsável por consolidar o gênero teatral, com peças como A cantora careca e a obra-prima Rhinocéros TEXto Fernando Monteiro

Em 1948, o francês de origem romena Eugène Ionesco consolidava um importante gênero teatral, ao escrever a peça – de um único ato – intitulada A cantora careca, levada ao palco em 1950. A base para o inusitado texto havia sido um livro-texto para o ensino da língua inglesa, cujo desdobrar de lições didáticas apresentava um certo casal Smith informando um ao outro que eles eram ingleses porque haviam nascido na Inglaterra, tinham três filhos e viviam em Londres, na companhia da empregada Mary, que

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 2

Palco_NOV.indd 52

23/10/2012 08:53:11


FOTOS: DIVULGAÇÃO

trabalhava seis dias por semana na residência deles, na qual o teto era em cima e o chão era em baixo etc. Estava ali o involuntário surrealismo verbal pronto para servir de inspiração à mente inquieta do filho de um advogado romeno que emigrara para Paris, pouco antes da Primeira Guerra Mundial – a “guerra que iria acabar com todas as guerras”. O pai de Eugène viria a deixar o menino de saúde frágil e a irmã aos cuidados da mãe francesa, para voltar à Romênia dos velhos contos populares, às vezes, com diálogos nonsense, mais ou menos no estilo da conversa daquele casal “Smith”. E o garoto iria encontrálos em Bucareste, a partir de 1922, nas idas e vindas da família dividida entre dois países bem diferentes. O que se tornaria uma peça-cânone do Teatro do Absurdo contaria também com a cacofonia de outro casal (Martin), bombeiros e demais criações saídas duplicadas do livro-texto ionescamente transformado numa “anticomédia”, também extraída das primeiras experiências do jovem Ionesco. Não havia comédia nas situações bizarras que o filho do catedrático em Leis vivera, algumas vezes, nos bancos do liceu francês e, depois, na Universidade de Bucareste (na qual fez amizade com o lúcido pessimista Cioran e com o místico Mircea Eliade, o criador da cátedra de Religiões Comparadas).

1

DESCONCERTO

O emprego num banco que o fazia anotar duas vezes o movimento do seu lote de contas de clientes vips não pareceu nada engraçado ao futuro escritor, e o primeiro texto que ele escreveu, intitulado Nu! (Não!), provocou estranheza, mesmo na redação da revista literária que o publicou, em 1934. A sua “estética do desconcerto” já estava em marcha desde as brincadeiras domésticas, e continuaria pela vida afora, com foco central no labirinto da linguagem (“o horror de um labirinto sem centro”), frequentemente levando da falta de sentido para a incomunicabilidade que pode gerar pequenas e grandes catástrofes do “irracional pleno, numa simples esquina ou numa frenética declaração de guerra”. Por rigor cronológico, cabe lembrar que a base antes das bases do Teatro do Absurdo, provavelmente já

2

despontara, no final do século 19, na obra do francês Alfred Jarry (18731907), cuja peça Os poloneses trazia o personagem emblemático do Ubu-Rei, a criação mais conhecida de Jarry como autor teatral e também de um excêntrico modo de viver (baseado na herança de pequena fortuna). Alfred Jarry está presente no imaginário das primeiras reuniões parisienses do Surrealismo, mas a base do seu teatro, eminentemente visual, inicialmente de marionetes, fornece chave mais para gags do que para o bem-fundamentado teatro que se firma com as obras de Eugène Ionesco, do irlandês Samuel Beckett e dos franceses Arthur Adamov (de origem russa) e Jean Genet, escritas não unicamente

para o palco, mas também na forma de romances, contos e ensaios. Diferentemente de um Gestos e opiniões do Doutor Faustroll do “patafísico” Jarry, com eles não estamos no território da comédia, mas da seriedade existencial que põe em cheque a comunicabilidade humana através de situações comuns do dia a dia que “mascaram” o sentido dos gestos cotidianamente repetidos de forma no mais das vezes automática. Na literatura e no Teatro do Absurdo, há um fio narrativo que logo se desata, e não uma “história” cômica construída com os itens tradicionais de apresentação-resolução, embora subsista a perfeita observação de trejeitos e maneiras de ser dos senhores e senhoras “Smith” que Ionesco seguiu

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 3

Palco_NOV.indd 53

23/10/2012 08:53:12


imagens: reprodução

1 Rhinocéros O mote da peça é a chegada de um rinoceronte a uma pacata cidade 2 A cantora careca Com um único ato, espetáculo consolidou, em 1950, o Teatro do Absurdo enquanto gênero 3-4 Cartazes Divulgação de montagens francesas recentes dos textos de Ionesco

Palco 4

desenvolvendo surrealisticamente, como num pesadelo que se adensa, desde o começo até a ausência de fim. A ação, esvaziada de sentido “lógico”, apenas ressalta nossas incongruências, à maneira do Tomorrow, o conto de Joseph Conrad que prenuncia o vazio instalado nos diálogos assim como Bartleby de Herman Melville prenunciava Kafka diante do muro bianco-nero do abismo da rotina. Essa questão, então, dos “antecessores” do gênero do Absurdo poderia ser objeto de lições e ligações inúmeras – algumas talvez absurdas. O que há de claro (e obscuro), pelo menos no teatro, é a mise-en-scène da angústia metafísica no centro da observação da condição humana, insuficientemente assistida da base racional. “Base racional”? Essas duas palavras não fariam sentido para o célebre romeno de formação francesa que visitou o Recife, em 1982, com o semblante de um Akim Tamiroff ainda perplexo com alguma escala inesperada do avião. Dezenove peças se seguiram à primeira do mestre reconhecido pela Academia Francesa, ao longo dos anos (até 1975). Entre elas, as já clássicas A lição, As cadeiras, O mestre, Vítimas do dever e a obra-prima Rhinocéros – essa suma nada teológica do teatro de Ionesco, encenada exatamente no início de uma década (1960). Na pacata cidade que lhe serve de cenário, coisa nenhuma permanecerá igual após a passagem de um

Estamos no território da seriedade existencial que põe em xeque a comunicabilidade humana através de situações do dia a dia rinoceronte por ruas surpreendidas pelo animal inesperado. De onde poderia ter vindo aquela criatura cujo fascínio irá se tornando força de transformação insidiosa? Rinoceronte começa – como não poderia deixar de ser – por diálogos estúpidos entre os habitantes da cidadezinha, a partir da passagem do ser estranho que primeiro motiva a intensa curiosidade daquela população de gente comum e indecisa quanto ao rumo de suas vidas sem brilho. Uns recusam admitir que o rinoceronte não seja um sonho, uma visão; outros o aceitam imediatamente, e passam a discutir o desleixo das autoridades que deixam circular livremente um animal daqueles. Por fim, há quem ignore a passagem dele, continuando no mundinho interior da monotonia. Um personagem não se abala com o rinoceronte (Bérenger) enquanto se preocupa apenas com o objeto do seu amor (Daisy) e sente ciúmes do colega de escritório. Quando o animal reaparece em meio aos diálogos de surdos – e seu peso

esmaga um gato desprevenido –, a conversa inútil passa a ser sobre a natureza do mamífero perissodátilo: “Bicórnio ou unicórnio? Veio da Ásia ou da África?”... A besta se espalha pelas casas e surge uma obsessão de Ionesco – os bombeiros (a força vinda “de fora”). As confusões se sucedem e as mentes paralisadas dão chance ao mimetismo que é o centro da peça: aquelas pessoas irão se transformando naquilo que temem, desenvolvendo uma carapaça a mais, perdendo a fala e, pouco a pouco, a humanidade. Em palestra no Recife, o dramaturgo contou que seu ponto de partida foi o relato que lhe fez Denis de Rougemont, escritor francês que se encontrava em Nuremberg por ocasião das impressionantes reuniões nazistas de massa, conduzindo a multidão à histeria que quase contagiava o próprio Rougemont. “Ele se achava já próximo de render-se àquela estranha magia, quando parou para se perguntar sobre que espécie de demônio estaria agindo sobre o seu alto senso crítico”... Só o tímido Bérenger pretende também resistir à transformação em animal urrante, embora o faça ainda medrosamente: “Eu me defenderei contra todo o mundo... Eu sou o último homem. Não me rendo”. Eugène Ionesco também não se rendeu, e levou a expressão do Absurdo tão longe quanto pôde, antes de falecer no dia 28 de março de 1994, em sua residência parisiense, aos 82 anos. Ou melhor, aos 85 anos, porque o grande romeno diminuiu três anos da sua idade, durante muito tempo, no qual enciclopédias e outras obras de referência deram a data de 26 de novembro de 1912 como a do seu nascimento, por informação do vaidoso autor careca de saber que havia nascido no mesmo dia e mês de 1909. Coquetterie nada absurda...

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 4

Palco_NOV.indd 54

23/10/2012 08:53:13


glauce rocha Seis meses em cena carioca

1 angu de sangue Peça inaugura temporada de espetáculos

Grupos nordestinos mostrarão produção recente dentro do projeto Visões coletivas

divulgação

texto Pollyanna Diniz

1

Há três anos, o Teatro Glauce

Rocha, no centro do Rio de Janeiro, reabria as portas. A programação que dava as boas-vindas ao público tinha sotaque pernambucano: eram montagens do Recife, do Cabo de Santo Agostinho, de Caruaru e de Arcoverde. O Coletivo Angu de Teatro estava nessa seara apresentando Angu de sangue, texto de Marcelino Freire. A companhia pernambucana que completa 10 anos em 2013 voltou ao Glauce Rocha no último mês de março para uma curta temporada que provocou muita fila na porta do teatro – a apresentação de Essa febre que não passa, texto da jornalista Luce Pereira. Depois dessas duas experiências, o Angu agora ocupa a casa de espetáculos carioca por um tempo mais prolongado. Serão seis meses de peças de grupos nordestinos dentro de um projeto proposto pela companhia, intitulado Visões coletivas – Nordeste contemporâneo.

“Já pensávamos em fazer um projeto semelhante desde 2008. Mas não tinha ainda um formato ideal. Isso só veio com o edital de ocupação do teatro, lançado pela Funarte”, explica Tadeu Gondim, idealizador do projeto e produtor do Coletivo Angu de Teatro. Na grade de espetáculos, montagens do Recife, de Fortaleza, Natal, João Pessoa e de Salvador. “Assim como no resto do país, o teatro de grupo também está fervilhando no Nordeste. Existe a curiosidade do público do Sudeste sobre o que é feito no Nordeste. Ainda há uma visão, para quem não conhece, de que teatro nordestino é cordel e fala de seca”, avalia Gondim. Do Recife, a programação inclui três montagens do Angu – Angu de sangue (novembro), Essa febre que não passa (dezembro) e Ópera (janeiro) - e o espetáculo O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas (também em novembro), da Trupe Ensaia Aqui e Acolá. Já se

apresentaram os grupos Mão Molenga Teatro de Bonecos, com O fio mágico, e a Cia. Enlassos, com Assim me contaram, assim vou contando... No caso de algumas companhias, o público poderá ter uma visão mais ampla de suas criações, com a presença de mais de um espetáculo do repertório. O grupo Bagaceira de Teatro, por exemplo, do Ceará, participa do projeto com quatro montagens: Tá namorando! Tá namorando!, Meire Love, A mão na face e Lesados. Da Paraíba, está na programação Deus da fortuna, do Coletivo Alfenin de Teatro; do Rio Grande do Norte, A mar aberto, do Coletivo Atores à Deriva. E ainda Ricardo Guilherme (CE), com Bravíssimo e A comédia de Dante e Moacir; Fábio Vidal (BA) com o espetáculo Sebastião; Felícia de Castro (BA) com Rosário; e Ceronha Pontes (CE) com Camille Claudel. A única exceção na programação é o francês Maurice Durozier, ator do Théâtre du Soleil, que mantém uma relação próxima com o Nordeste brasileiro. “O nosso mote é discutir o teatro contemporâneo feito no Nordeste. E talvez a gente perceba que as questões contemporâneas são muito parecidas, sejam elas tratadas por espetáculos do Nordeste ou do Sudeste. Nos nossos espetáculos, por exemplo, as referências nordestinas estão sempre muito presentes. Mas se dão de outra forma – não necessariamente no tema, na estética. O discurso é contemporâneo”, observa Tadeu Gondim.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 5

Palco_NOV.indd 55

23/10/2012 08:53:14


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Festival Sesi Bonecos do Mundo Teatro de Santa Isabel e Parque 13 de Maio De 7 a 11 de novembro

Palco

1

BONECOS Quem disse que é só mamulengo?

Em sua terceira edição no Recife, o Festival Sesi Bonecos do Mundo pretende trazer ao público variada gama de representantes do gênero TEXto Duda Gueiros

Talvez as primeiras manifestações,

rudimentares, do que viria a ser o teatro de bonecos tenham ocorrido na penumbra das cavernas, quando indivíduos iluminados pelo fogo projetavam suas sombras e de objetos nas paredes, coordenando esses gestos com a emissão de vozes e ruídos. A combinação desses três elementos

– luzes, gestos e sons – gerava uma forma de entretenimento. Não há um consenso sobre a justeza dessa matriz ancestral, mas a história desse gênero teatral é tão remota quanto a do teatro tradicional – o de pessoas. Sua origem remonta ao Antigo Oriente, sendo registradas ocorrências em países como China, Índia, Indonésia

e Egito. No Ocidente, na Europa, apareceu há cerca de 3 mil anos, quando os bonecos eram usados como um tipo alternativo de comunicar, educar e também de burlar a censura. Em cada época histórica e contexto social, as marionetes eram usadas com um propósito específico. Na Idade Média, os bonecos eram utilizados como instrumento de catequese; na Grécia, serviam para zombar do cristianismo. Hoje, o teatro de bonecos é praticado, sobretudo, com dois intuitos: o de educar crianças que, no caso, aprendem de forma lúdica, e o de divertir, aqui, atingindo todas as faixas etárias. Ele é praticado em todo o mundo, assumindo fisionomia e espírito dramático diferentes, dependendo da localização geográfica, tradições, crenças e costumes. Neste mês de novembro, o público poderá apreciar criações do gênero, concentradas num grande festival, cuja pretensão é a de preservar a relevância

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 6

Palco_NOV.indd 56

23/10/2012 08:53:19


1 o presente Fernán Cardama, da Argentina, é um dos convidados internacionais marina 2 Sereia é um dos personagens do espetáculo montado pelo grupo Pequod (RJ)

2

histórica e o caráter lúdico dessa expressão teatral. Em sua terceira edição, o Sesi Bonecos do Mundo traz ao Recife 14 espetáculos, encenados por 13 companhias nacionais e internacionais, de países como Japão, Coreia, Itália, Argentina, Inglaterra e Rússia. Além das montagens, integram a programação a exposição de bonecos Autômatos, a performance Torres andantes (ambas do grupo mineiro Giramundo) e o show Música de brinquedo, da banda Pato Fu, que toca instrumentos do universo infantil ao lado do Giramundo. Ao todo, serão 27 apresentações, distribuídas em cinco dias de festival. O evento é gratuito e acontecerá no Teatro de Santa Isabel (entre os dias 7 e 9) e no Parque Treze de Maio (nos dias 10 e 11). Os espetáculos de médio e grande porte irão ao palco do teatro, enquanto as apresentações menores, dos mestres mamulengueiros, e as exposições, acontecerão no parque. O projeto, que está em sua nona edição no Brasil, passou por todas as capitais do país. “O principal objetivo do Festival Sesi Bonecos do Mundo é oferecer um tipo de manifestação artística, cuja forma mais sofisticada é unicamente exercida dentro de casas fechadas e pagas. Também pretendemos quebrar o paradigma de que teatro de marionetes é feito apenas para crianças”, afirma a idealizadora do projeto, Lina Rosa. Ela também espera desconstruir o senso comum de que teatro de bonecos se reduz ao mamulengo. Para isso,

convidou companhias de diferentes vertentes, como as que utilizam em suas apresentações sombras, fios e corpos. A curadoria do festival selecionou, então, os espetáculos com base nos critérios de diversificação e complexidade. Entre os destaques da programação está o espetáculo russo Circo dos fios. Criada pelo mestre de marionetes na Rússia, Victor Antonov, a encenação mostra um pequeno circo em que um palhaço apresenta diversos números: uma bailarina hindu, o halterofilista,

O teatro de bonecos tem dois intuitos: o de educar crianças, de forma lúdica, e o de divertir o público de diversas faixas etárias macacos acrobatas, um camelo diferente. A companhia Kakashiza é a primeira equipe japonesa de teatro de sombras moderna, o que já lhe confere um especial interesse. Ela apresenta o espetáculo Sombras de mão, em que projeções de animais contam uma história de amor. A lista de participantes inclui, além dos já mencionados, os brasileiros Pequod (RJ), Pia Fraus (SP), Casa Volante (MG), Gente Falante e Caixa do Elefante (ambos do RS) e Mão Molenga (PE), e os internacionais Art Stage San

(Coreia), Girovago e Rondella (Itália), Fernán Cardama (Argentina) e Storybox Theatre (Inglaterra). O festival também contará com um ateliê em que os mestres mamulengueiros pernambucanos Zé Di Vina, Saúba, Zé Lopes, Waldeck de Garanhuns e Tonho de Pombos e Chico Simões (DF) se apresentarão e ensinarão como fazer bonecos. O Sesi Bonecos do Mundo também vai promover três oficinas gratuitas. Uma delas, voltada para profissionais da área de audiovisual e teatro e estudantes, trabalhará o stop motion; outra, sobre o teatro de bonecos de modo geral, será ministrada pelo russo Victor Antonov; e a terceira, sobre contadores de histórias, será ministrada por Marcos Ribas.

PRESEPADA

O primeiro registro de teatro de bonecos no Brasil foi uma iniciativa do Padre Anchieta, e tinha fins de catequese indígena. Ele usava o presépio para “educar” religiosamente as tribos. Da contestação a esse tipo de encenação, surgiu, anos depois, em Olinda, o termo presepada, significando reação, personificada no teatro de mamulengos. Não é à toa, portanto, que, quando se fala em espetáculo de marionetes ou bonecos no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, a ideia do mamulengo é a primeira que surge. O personagem se tornou parte importante da cultura popular local, representando a resistência à opressão e o divertimento adulto, com alusões ao grotesco e ao maravilhoso. É ainda possível encontrar, no interior de Pernambuco, mestres mamulengueiros que passam 12 horas seguidas brincando em praças públicas. Espetáculos de tal fôlego começam à tarde, em tom mais ameno, “liberados” para crianças e público mais inocente, ganhando temperatura e licenciosidade à medida que anoitece e as crianças deixam a plateia. Com a presença de mestres tradicionais de Pernambuco, que dominam esse tipo de encenação, como Zé Lopes e Zé Di Vina, o festival espera incorporar essas gradações do inocente ao picante (muitas delas de improviso) e uma maior duração dos espetáculos de praça, porém com o respeito aos limites do público.

@ continenteonline Veja no site mais fotos do festival.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 7

Palco_NOV.indd 57

23/10/2012 08:53:21


GLAUCE OLIVEIRA/DIVULGAÇÃO

Sonoras 1

GERALDO MAIA Quando a voz do autor se impõe

Com a coletânia Estrada, cantor apresenta velhas e novas canções, exibindo estilo que não se enquadra em gêneros e rótulos texto José Teles

São cada vez mais raras as vozes masculinas na música brasileira. No caso, vozes masculinas de cantores que não são compositores interpretando as próprias músicas. Um fenômeno iniciado com a bossa nova, que desbancou o bel canto da MPB. Apesar da complexidade interpretativa de João Gilberto, até hoje insuperável, a bossa nova valorizou mais a canção do que a interpretação. Assim é que Sérgio Ricardo, por exemplo, que não possui o mais belo timbre de voz, pode cantar e fazer sucesso

com a sua Zelão. Daí em diante, os autores passaram a gravar sua produção. Portanto, hoje em dia, contam-se nos dedos os grandes cantores na MPB. E, nessa contagem, certamente, o recifense Geraldo Maia é um dos destaques, embora ele também seja compositor. Mas a maioria da já considerável e consistente discografia de Geraldo Maia enfatiza o intérprete. Em Estrada, nono disco (contando com o LP Cena de ciúme, de 1987, dividido com Henrique Macedo), ele deixa que as luzes destaquem

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 8

Sonoras_NOV.indd 58

23/10/2012 08:57:49


1 geraldo maia Canções se destacam pela força das letras do intérprete

e afirmação: “Um amor tão grande assim/ só quer ser bom/ quer ter o dom/ de ser feliz” (Dom). Porém, este não é álbum conceitual. O repertório básico está montado sobre dois de seus discos: Lundum (2009) e Peso leve (2008). As faixas pinçadas de Lundum foram apenas transportadas para Estrada. As de Peso leve, regravadas, reinterpretadas com pouca instrumentação, valorizando a canção. Das 13 faixas, cinco são inéditas, o que reforça Estrada como um disco novo, não apenas uma compilação. De uma moda de viola, a citada Bendito fruto, passando para Broto de semear, um choro com tempero de morna cabo-verdiana. E, mais à frente, o irromper numa canção tropicalista. Geraldo Maia consegue se impor original e “irrotulável”. É MPB, mas não a que utiliza cacoetes da bossa nova. O samba sutilmente emoldura a tela, mas não é carioca, nem pernambucano – geraldiano. Quanto ao tropicalismo citado acima, entenda-se bem: tropicalismo não à Caetano, e sim à Hélio Oiticica (o artista plástico, autor de Tropicália, obra

O repertório da compilação reúne faixas do disco Lundum e regravações de canções do CD Peso leve o compositor, sem que o intérprete seja ofuscado. O disco é um projeto encampado pela revista Continente, que lhe sugeriu um álbum autoral. Geraldo reuniu canções que assina (só ou com parceiros), algumas delas já gravadas anteriormente, e umas poucas com nova interpretação. Incluiu também algumas inéditas, tornando o CD em mais um álbum de carreira. Súplicas, louvores e afirmações são temáticas que – mais ou menos – cirzem o repertório das 13 canções. Súplica: “Ave-maria de todas as graças/ acuda no agora/ que o agora é a hora/ amanhã não tem paz” (De todas as graças). Louvor: “Ó fruto bendito do ventre/ sois vós os poetas/ altivos guerreiros de pedra e sal” (Bendito fruto),

que emprestou o nome ao movimento dos baianos). Helioiticicando é uma parceria com o ex-Ave Sangria, Marco Polo: “Vamos helioiticicar esta vida/ deflagrar um festival cordon bleu/ vamos soltar o bloco na avenida/ dançando num parangolé colorê”. Mas as palavras, contanto sejam obviamente parte intrínseca da canção, não são o mais importante em Estrada (pinçada de Peso leve). O que mais chamou a atenção nesta coleção de composições de Geraldo (só ou com parcerias) foi a força das canções. Elas como que se impõem no todo. Os versos não são meramente complementos decorativos. São ótimos versos. Mas as canções, elas prendem o ouvinte, por si mesmas. E aí conta

também a interpretação. Mesmo que Geraldo Maia tenha pretendido destacar o autor, não o intérprete. Ele toca com músicos com os quais tem se apresentado, gravado e composto: entre outros, Rodrigo Samico, Publius, Hugo Lins, Bráulio Araújo, Amarelo, Jerimum de Olinda e, sobretudo, o virtuoso Vinicius Sarmento, um violonista que reafirma Pernambuco como terra de grandes neste instrumento. Há faixas em que bastam voz, violão para que o recado seja dado. Das 13 canções, sete são apenas de Geraldo Maia, um autor que não se encaixa em grupos, blocos, gêneros. É MPB porque não faz rock, mas sua música é muito particularmente dele. Em tempos de modernismos, de facilidades de estúdio, Geraldo Maia tem trilhado se não a contramão, pelo menos uma faixa própria na MPB em geral, e na MPP (música popular pernambucana). Já se utilizou de eletrônica em outros discos. Neste, aqui, acolá, ouvese uma guitarra discreta (em Que doam-se os brios), ou programações (na faixa final, Palavra). Mas, no geral, é um artista reafirmando-se como autor, intérprete, criador. Estrada é dedicado à Maria Bethânia. Uma frase que pode parecer redundante porque alhures, no encarte, consta a dedicatória. Ressalto-a porque há certas semelhanças entre o timbre de voz de Geraldo Maia e o de Caetano Veloso. O que leva desavisados a o considerarem mais um cantor influenciado pelo irmão de Bethânia. Influências existem, claro. Não apenas nele, nem na voz propriamente. É impossível a qualquer artista de música popular nos últimos, pelo menos, 40 anos, passar incólume pela influência do mano Caetano. Mas, em Geraldo Maia, mais forte são os poderes de Maria Bethânia. Ela “baixou” nele em pleno Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o então popular Geraldão. O adolescente, filho de portugueses, foi assistir ao show Rosa dos ventos, e nunca mais foi o mesmo. A artista Bethânia “continua com ele até hoje”, e não irá largá-lo mais nunca. Foi por ela, pela magia daquele momento, que ele decidiu que seria cantor. A MPB deve mais uma à mana Bethânia.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 5 9

Sonoras_NOV.indd 59

23/10/2012 08:57:52


DIVULGAÇÃO

Sonoras

Otto A felicidade como um fundo falso Novo disco do artista não rompe com passado, mesmo tendo sido adjetivado como “solar” e “pop” pela crítica texto Schneider Carpeggiani

Preâmbulo necessário:

em italiano, pentimento designa um processo em que os esboços iniciais de um quadro são encobertos pela imagem definitiva. Muitas vezes, durante o restauro de uma obra, acabam sendo descobertas as marcas que o artista decidiu deixar de lado. Não há arte final sem rascunhos ou abandonos. Mas pentimento também significa, pura e simplesmente, arrependimento. No final dos anos 1990, Otto talvez tenha percebido sinais de esgotamento na temática urbana que marcara até então o manguebeat e acabou desviando seu olhar para a construção de uma obra pautada por afetos e

vivências. Cada novo disco seu é a adaptação de um momento vivido, em que a semelhança com fatos e pessoas reais não consiste numa mera coincidência. Da exposição de uma gramática pessoal em Samba pra burro a Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, o “álbum da separação”, Otto é pura autobiografia. Moon 1111 foi recebido pela imprensa com adjetivos imediatistas de obra “pop”,“solar”, um processo de desconstrução da melancolia de Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, como se Otto estivesse erguendo a bandeira de uma rutura radical. Nada é tão simples, ou automático, assim.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6 0

Sonoras_NOV.indd 60

23/10/2012 08:57:53


INDICAÇÕES Após uma década de altos e baixos artísticos e de exposição pública em revistas e colunas de fofoca, parece que finalmente o cantor se sentiu confortável (e seguro) para deixar vazar seus pentimentos, seus esboços e arrependimentos, num trabalho urgente e sem receio das suas imperfeições latentes. Moon 1111 é felicidade com fundo falso, um intrincado terreno movediço. O avesso do avesso, em que toda a discografia do cantor retorna subitamente quando menos se espera. É compreensível: nada é mais insistente que o passado, ainda mais quando ele deixa de ser convidado. A faixa de abertura, Dia claro, trava uma luta com seu próprio título: na verdade, é o acerto de contas com a listagem dos culpados, dos mortos & dos feridos, de uma relação amorosa falida. A letra imatura da canção é resgatada pela ênfase que o cantor coloca em cada sílaba proferida, deixando claro que apenas Otto pode falar sobre Otto – a palavra definitiva é sempre a sua; é o compositor de um intérprete apenas. Sua cover de Odair José, a exponencial A noite mais linda do mundo, por outro lado, pede um intérprete com voz mais polida. Odair José não pode falar por Otto e vice-versa. Uma pena, já que o arranjo da versão consegue reverenciar e atualizar a gravação original que tanto contribuiu para nossa afetuosa relação com as rádios populares do passado. Muito melhor é Exu parede com seus trocadilhos e versos infantis, que nos lembram do quanto

o cantor é imbatível na hora de encontrar sentido no nonsense, bem ao estilo Jorge Ben Jor de ser. Exu parede remete a alguns dos grandes momentos de Condon black, um bom álbum ofuscado pelo impacto de Samba pra burro, sua famigerada estreia solo, que acabou lançando uma sombra em toda sua produção – até o momento em que Certa manhã acordei de sonhos intranquilos silenciou o maior dos descrentes. O dueto com Tainá Muller, Ela falava, traz um bem-vindo (e até inusitado) flerte com sintetizadores oitentistas, mas o clima “Tulipa Ruiz” descontraído da faixa oferece pouco, bem pouco, ao legado de um artista que colocou a diplomática MPB de cabeça para baixo com Bob, sua sintética parceria com Bebel Gilberto. É uma canção fraca, sem sol e força, para ser oferecida como primeiro single do novo álbum: Ela falava acaba amortecendo o impacto de um projeto que precisa apresentar. Moon 1111 talvez tenha sido deliberadamente arquitetado como um processo de iluminar a melancolia de antes, no entanto acabou por vazar pentimentos, revisitando momentos que poderiam ter sido esquecidos. Os pentimentos, no final das contas, não são bons conselheiros, porque fazem emergir lembranças que já não são mais do que espectros. Quem sabe, no próximo disco, Otto consiga fazer a ruptura que Moon 1111 apenas ensaiou, ao compreender que a arte final precisa saber a hora de se desligar do seu rascunho.

SAMBA

ZÉ PAULO BECKER & MARCOS SACRAMENTO Todo mundo quer amar Borandá

As letras engenhosas de Paulo César Pinheiro, calcadas no binônio samba/amor, unem a voz de Sacramento e o violão de Becker neste álbum que passeia por várias vertentes do gênero carioca – mas que igualmente abre espaço ao romantismo, como na faixa Sem rumo. Menção especial para o encarte, em que todas as canções estão acompanhadas das respectivas cifras.

MÚSICA CLÁSSICA

INSTRUMENTAL

SEIS COM CASCA Num dia, no noutro Azul Music

A formação é inusitadíssima: piano, clarinete, contrabaixo, vibrafone/bateria, violino e guitarra elétrica. O repertório, idem: do Hino nacional brasileiro ao folclore iídiche. Os arranjos, portanto, não poderiam ficar atrás em originalidade e, ao menos metade deles, tem um toque caprichoso, a exemplo do próprio hino (tocado não de forma ortodoxa e, sim, com uma máquina de escrever solista à la Leroy Anderson) e de A lenda de Victor Navorsky, de John Williams.

INSTRUMENTAL

CLARA SVERNER Ravel – Debussy

HENRIQUE LISSOVSKY Solo

Depois de empreender a gravação completa das sonatas de Mozart e do Guia prático de Villa-Lobos, a pianista paulistana – após homenagear Chopin em seu último CD – segue concentrada em estúdio e agora lança tributo aos dois nomes maiores do impressionismo musical. Além das peças tidas por obrigatórias, como a Pavana para uma infanta defunta e Claire de Lune, o álbum também traz a Sonatina de Ravel e La plus que lente, de Debussy, dentre outras.

A proposta de Henrique Lissovsky era a de gravar as músicas que tocava em sua juventude, vivenciada nos anos 1970. Por isso encontramos neste álbum, lado a lado, Gilberto Gil, Baden Powell e Keith Jarrett, bem como quatro peças de sua autoria. O grosso do repertório, no entanto, são peças de autores eruditos de várias épocas: desde uma transcrição de Bach ao contemporâneo suíço Stefan Feingold, incluindo dois prelúdios de Heitor Villa-Lobos.

Azul Music

Delira Música

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6 1

Sonoras_NOV.indd 61

23/10/2012 08:57:56


imagens: divulgação

Claquete

ACIMA DE 50 Sessão especial para os mais velhos

Filmes com temas relativos à maturidade sugerem uma mudança de parâmetros na indústria cinematográfica, geralmente voltada ao público jovem TEXto Débora Nascimento

“Os primeiros 90 anos passam muito rápido. E, um dia, você acorda e percebe que não tem mais 81. Você começa a contar os minutos mais do que os dias e percebe que logo, logo, irá embora. E tudo que tem são as experiências. Nada mais. Isso é tudo, as experiências. Vá pegar a mulher! Ou mande-a para mim!”. A frase, que mistura ensinamento com escracho, é dita por Burgess Meredith, intérprete do pai ancião de Jack Lemmon em Dois velhos rabugentos, uma das maiores bilheterias dos anos 1990. Mas, ao contrário de outros arrasa-quarteirões da década, como Esqueceram de mim, não foi protagonizado por belos e jovens atores. As estrelas, Lemmon e Walter Matthau, eram veteranos do cinema,

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6 2

Claquete_NOV.indd 62

23/10/2012 09:00:19


1 um divã para dois Meryl Streep e Tommy Lee Jones vivem casal em crise comédia 2 Lemmon, AnnMargret e Matthau estrelaram sucesso dos anos 1990 Próxima página 3 acima dos 70

E se vivêssemos todos juntos? aborda convivência de idosos

animação 5 Em O castelo animado, feitiço envelhece jovem

1

algumas estreias de sucesso podem estar sinalizando uma mudança no futuro cenário do cinema. Neste ano, estão chegando às telas filmes cujas tramas são situações enfrentadas por pessoas que passaram da meia-idade ou estão na chamada terceira idade. E, melhor, vem conseguindo uma boa recepção da plateia e da crítica. Em maio, foi lançado O exótico hotel Marigold, cujo roteiro apresenta seis ingleses que, por motivos diferentes, deixam seu país para ir à Índia. Ainda no aeroporto, eles se encontram e passam a compartilhar seus anseios e problemas. O que poderia ser um drama acaba resultando num filme leve, cujo maior mérito é reunir alguns dos melhores atores da Inglaterra, como Maggie Smith, Tom Wilkinson e Judi Dench. Todos com mais de 60 anos. A propósito, Dench, aos 78 anos, é uma das intérpretes com mais indicações ao Oscar de Melhor Atriz – só nesta última década, foram três. Outro filme que tem como eixo a reunião de um grupo de pessoas da terceira idade é E se vivêssemos todos juntos (produção franco-alemã). Aos 75 anos, Annie, Jean, Claude, Albert e Jeanne são amigos há mais de quatro décadas. Quando a saúde deles começa a degringolar, e o asilo se apresenta como possibilidade, tomam uma decisão radical: saem de suas casas e vão morar juntos. Nessa espécie de comunidade, aprendem novas formas de dividir suas vidas, ampliando os conceitos sobre amor e sexo.

com 67 e 73 anos, respectivamente. O sucesso da comédia foi tanto, que rendeu mais três títulos com a dupla (Dois velhos mais rabugentos, 1995; Dois parceiros em apuros, 1997; e Meu melhor inimigo, 1998), mostrando à indústria cinematográfica que era possível obter lucro a partir de uma produção protagonizada por rostos com rugas e encimados por cabelos brancos. Ao longo dos 20 anos que se seguiram ao lançamento de Dois velhos rabugentos, a situação não mudou muito para atores com mais de 65 anos. A maior parte deles permaneceu relegada a papéis secundários, como uma espécie de reflexo da posição que os mais velhos geralmente são obrigados a ocupar na sociedade. No entanto, em 2012,

Encabeçado por uma Jane Fonda bonita e esbelta em seus 67 anos, o filme revela outro parâmetro para futuras produções cinematográficas. Há algumas décadas, os atores ficavam velhos antes do tempo, as técnicas de “prolongar” a juventude eram precárias. A pressão por rostos espetaculares em Hollywood era tanta, na primeira metade do século passado, que uma estrela do porte de Greta Garbo decidiu afastarse das telas, aos primeiros sinais de envelhecimento, com apenas 36 anos. Em sua atuação mais recente, Meryl Streep, a grande dama do cinema americano, com 58 anos e algumas rugas orgulhosamente aparentes, protagoniza um dos maiores sucessos de Hollywood, Um divã para dois. Estrelado por ela e Tommy Lee Jones, o filme conta a história de uma casal passando da meia-idade, cujo casamento está estagnado. Insatisfeita, a esposa procura ajuda numa terapia para casais e daí a narrativa se desenrola. Não se trata de um grande drama, nem de uma grande comédia. Mas Um divã para dois torna-se uma obra eficiente, cuja maior qualidade está exatamente nos protagonistas. As plateias reagiram de forma positiva e, durante a sessão, era possível ouvir diversas gargalhadas femininas, talvez de senhoras que estejam assistindo a experiências matrimoniais semelhantes às suas. Com apenas três semanas de exibição, a bilheteria do longa no Brasil já chegava a 382 mil pessoas, público significativo para uma produção de baixo orçamento.

2

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6 3

Claquete_NOV.indd 63

23/10/2012 09:00:22


imagens: divulgação

Filmes

SOBRE VELHICE

3

Claquete

• Morangos silvestres (1957) • O que terá acontecido a Baby Jane? (1962) • Ensina-me a viver (1971) (acima) • Chuvas de verão (1977) • Num lago dourado (1981) • A balada de Narayama (1983) • Cocoon (1985) • Baleias de agosto (1987) • Conduzindo Miss Daisy (1989) • Tomates verdes fritos (1991) • Dois velhos rabugentos (1993) • Uma história real (1999) • O filho da noiva (2001) • Íris (2001) • Confissões de Schmidt (2002) • Alguém tem que ceder (2003) • Adeus, Lenin! (2003) • Duplex (2003) • Antes de partir (2007) • O estranho caso de Benjamim Button (2008) • A janela (2008) • Gran Torino (2008)

4

Para termos de comparação, no mesmo período, a comédia O que esperar quando você está esperando?, estrelada por Cameron Diaz e Jennifer Lopez, teve 432 mil pagantes, em cinco semanas.

FATIA CONSIDERÁVEL

Esses números podem significar que há um público ansioso por esse tipo de produção, que quer “se ver” nas telas do cinema e não apenas assistir aos dilemas referentes a outras faixas etárias. É uma plateia que tem poder aquisitivo, paga meia-entrada, entende o cinema como forma de diversão segura e saudável, e – melhor para a indústria – (ainda) não tem o hábito de “baixar filmes” e, muito menos, foi acostumada a vê-los no computador, características

que a torna fiel, potencialmente. Uma pesquisa realizada em 2011, nos Estados Unidos, revelou que o espectador com mais de 60 anos representa 19% dos frequentadores de cinema – o que é uma parcela significativa, se compararmos com o restante da porcentagem, 14% (211 anos), 8% (12-17), 10% (18-24), 21% (25-39), 14% (40-49) e 14% (50-59). Esse despertar da indústria cinematográfica para a terceira idade está refletido, por exemplo, na filmografia da atriz queridinha do gênero ao qual podemos arriscar a denominação de “sessão da tarde da terceira idade”: Diane Keaton. A eterna musa de Woody Allen protagonizou um bem-sucedido filme que aborda o amor e o sexo após os 60 anos, Alguém

tem que ceder. E de lá para cá, estrelou cinco produções de teor, digamos, leve. Agora, em 2012, aos 66 anos, ela estará em mais dois títulos, Darling companion e The big wedding, ao lado de Robert De Niro (69 anos), com estreia no Brasil prevista para dezembro. Esses filmes apontam para uma questão inescapável: o que fazer com uma quantidade de excelentes e, sobretudo, experientes atores que se encontram acima dos 60 anos, sadios e bem-dispostos, com memória a todo vapor e – vá lá – bonitos? Não custa lembrar que a expectativa de vida aumentou bastante nos últimos 40 anos (segundo dados da ONU, em 10 anos, o mundo terá 1 bilhão de pessoas com idade acima dos 60 anos) e as tecnologias

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6 4

Claquete_NOV.indd 64

23/10/2012 09:00:27


INDICAÇÕES para manter a beleza estão cada vez mais aprimoradas. Os diretores e roteiristas poderão ignorar nomes como Meryl Streep, Jane Fonda, Judi Dench, Helen Mirren, Julie Christie, Susan Sarandon, Jessica Lange, Kathy Bates, Holly Hunter, Jack Nicholson, Robert DeNiro, Al Pacino, Dustin Hoffman, Maggie Smith, Shirley McLayne, Julie Andrews, Vanessa Redgrave, Liza Minnelli, Diane Keaton, Sally Field? Com essa soma de estupendos atores envelhecendo, o mercado cinematográfico vai ter que optar entre colocá-los no limbo, em papéis secundários, ou produzir mais roteiros que possam inseri-los como protagonistas, num movimento que poderá ser inédito no cinema, principalmente o americano, sempre voltado para divas e galãs, jovens.

oscar

Nesse contexto, o Oscar pode ser um termômetro de como funciona a engrenagem da máquina cinematográfica: a maioria das mulheres indicadas ao cobiçado prêmio tem menos de 40 anos. Entre os agraciados, raramente um ator com mais de 65 anos recebe a estatueta. As exceções foram Katherine Hepburn e Henry Fonda, por suas atuações em Num lago dourado (1981), com 75 e 76 anos, respectivamente. Depois, em 1989, Jessica Tandy, aos 81, tornou-se a atriz mais velha a receber o prêmio, por Conduzindo Miss Daisy. A última ganhadora que ultrapassou os 50 anos foi Meryl Streep, com 58 primaveras, em 2012, pela interpretação da exprimeira ministra Margareth Thatcher, em A dama de ferro. Os temas que circundam a velhice podem tanto pender

para a comédia quanto para o drama, e, neste caso, até render honrarias. A ansiada Palma de Ouro do Festival de Cannes, em algumas ocasiões, parou nas mãos de produções que abordaram questões relativas aos idosos, como A balada de Narayama (1983), Tio Boonme (2010) e, o mais recente, Amour, de Michael Haneke, previsto para estrear no Brasil no final de 2012 ou começo de 2013. Ainda mais específico que o drama e a comédia, um outro gênero cinematográfico, a animação, também vem apostando na temática da velhice, com títulos aclamados pela crítica e pelo público, como o americano Up – nas alturas (produção da Pixar de 2010), o japonês O castelo animado (filme de 2004, do importante diretor Hayao Miyazaki) e os franceses As bicicletas de Belleville (2003) e O mágico (2010). Em 117 anos de cinema, há poucas histórias da terceira idade projetadas nas telas, e algumas das melhores abrangem desde o drama existencialista do clássico Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman, à amargura de O que terá acontecido a Baby Jane?, no duelo de Joan Crawford e Bette Davis, e à própria Bette no papel da azeda senhora de As baleias de agosto, contracenando com a ex-musa do cinema mudo Lillian Gish – ídolo de Greta Garbo que, mesmo superada pela própria fã durante os anos 1920 e 1930, seguiu exibindo seu talento (e rugas) até aos 94 anos. Com essa ínfima quantidade de filmes, perdem os mais velhos, e também os jovens, que deixam de experimentar, ainda que de forma fictícia, um pouco de seu possível futuro. Se chegarem lá.

DRAMA

AQUI É O MEU LUGAR

COMÉDIA

KABOOM

Direção de Paolo Sorrentino Com Sean Penn, Frances McDormand, David Byrne Imagem Filmes

Direção de Greg Arakki Com Thomas Dekker, Haley Bennett, Juno Temple Vinny Filmes

Ao receber a notícia do estado crítico de saúde do pai, Cheyenne, um astro de rock decadente, viaja à casa paterna, numa jornada de autoconhecimento com momentos emocionantes, cômicos e reflexivos. Frágil e deslocado do mundo à sua volta, o personagem é mais uma prova da versatilidade de Sean Penn. Misturando road movie, drama e comédia, o filme é o primeiro longa em inglês dirigido pelo italiano Paolo Sorrentino.

Famoso por explorar a temática gay, Gregg Araki dessa vez descambou para o “surrealismo pop”, explorando o universo das sitcoms e dos dramas juvenis californianos. Um protagonista bissexual cercado por personagens estereotipados se vê em meio a uma trama sci-fi. Inclassificável, o filme pode ser de difícil digestão para alguns, porém ganha pontos no que concerne à desconstrução de gêneros cinematográficos.

FANTASIA

SOMBRAS DA NOITE

Direção de Tim Burton Com Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Michelle Pfeiffer Warner Bros

Nesta oitava parceria entre Johnny Depp e Tim Burton, o longa, baseado no seriado Dark shadows, exibido entre os anos 1960 e 70 nos EUA, não traz nenhuma novidade no que diz respeito à temática gótica/ engraçada/infantil explorada incansavelmente pelo diretor, além do mesmo tipo bizarro já tão trabalhado por Depp. No entanto, a direção de arte é esplendorosa, com cores fortes, figurinos e ambientes de cena referentes à cultura pop dos anos 1970.

DOCUMENTÁRIO

A EDUCAÇÃO PROIBIDA

Direção de German Doin e Verónica Guzzo Com Santiago Magariños, Amira Adre e Nicolás Valenzuela Independente

Os diretores seguem essa proposição para questionar as lógicas da escolarização moderna e a maneira de entender a Educação, dando visibilidade a projetos não convencionais. A direção cobriu cerca de oito países, realizando mais de 90 entrevistas com educadores de métodos diferentes. O filme, financiado coletivamente, está disponível para download no site www. educacionprohibida.com.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 6 5

Claquete_NOV.indd 65

23/10/2012 09:00:30


imagens: divulgação

Visuais 1

ARTE DIGITAL Aproximações entre estética e tecnologia

No cenário artístico, o trabalho de cientistas e artistas se imbrica, tornando a diferenciação entre eles algo relativo, e mesmo desnecessário TEXto Renato Mota

Quando se pensa na relação entre

arte e tecnologia, uma das primeiras coisas que vêm à mente (pelo menos para quem é pernambucano ou tem como referência o manguebeat) são os versos de Fred 04, extraordinariamente executados por Chico Science e Nação Zumbi: “Computadores fazer arte/ Artistas fazem dinheiro/ Computadores avançam/ Artistas pegam carona/ Cientistas criam robôs/ Artistas levam a fama”. Entretanto, quando se investiga o cenário artístico no qual se cria a partir da tecnologia, diferenciar artistas de cientistas é algo extremamente relativo. Na era da informação, pintores, músicos e escultores se embaralham com programadores, desenvolvedores de software, engenheiros de computação,

c o n t i n e n t e n ov e m B R O 2 0 1 2 | 6 6

Visuais_OUT.indd 66

23/10/2012 13:26:42


2

eletrônica e até robótica e cibernética. “O campo da arte e o da ciência nem sempre estiveram separados radicalmente, e não é uma novidade o fato de termos uma aproximação dessas áreas nas experiências dos artistas que trabalham com tecnologia na contemporaneidade”, diz a professora e pesquisadora Nina Velasco. Se os computadores avançam e os artistas pegam carona, até onde os avanços da tecnologia influenciam a arte? E quando o objeto tecnológico deixa de ser uma ferramenta para se tornar uma obra de arte em si? “Uma das características da arte contemporânea é a sua total liberdade para a experimentação. Não existem mais limites ou barreiras a serem

ultrapassados. As modalidades artísticas que utilizam tecnologia (considerando esse termo de forma ampla, o que inclui não apenas o digital, mas também as mais diversas formas de imagem técnica e hibridações com campos da ciência, como a biotecnologia e a cibernética) constituem apenas mais uma possibilidade de experimentação entre muitas. Não há uma diferença de grau entre o artista de hoje que usa pincel e tinta e aquele que usa softwares”, acredita Nina. As primeiras experimentações que mesclavam arte e tecnologia (tal como a consideramos hoje, ou seja, a tecnologia digital) foram realizadas nos anos 1960, dentro do conceito de intermídia. Quando propôs essa interdisciplinaridade, visava a uma arte que pudesse cruzar as fronteiras das mídias reconhecidas, ou mesmo para fundir os limites da arte com essas, incluindo atividades que não haviam sido consideradas formas de arte, como os recém-chegados computadores. Como explica Nina, “alguns artistas se interessam pela tecnologia, usando o que há de ponta em suas obras, antes mesmo de sua popularização. Outras vezes, as experiências artísticas parecem antecipar conceitos que servirão para a criação de novas tecnologias. A questão da rede, por exemplo, faz parte do fundamento de experiências artísticas desde a década de 1960, muito antes de a internet se tornar o fenômeno que conhecemos hoje”.

1 Reactable A mesa produz som a partir da interação entre os objetos Myron Krueger 2 A obra Video place (1974) anteviu uma tendência tecnológica

Em um artigo escrito em 2009 para seu blog, o americano Golan Levin apontava alguns dos experimentos realizados em arte cibernética nos anos 1970 e 1980 como à frente do seu tempo, e que hoje encontram contrapartes que integram nosso dia a dia. Em 1974, por exemplo, Myron Krueger, um dos pioneiros da arte com computadores nos Estados Unidos, desenvolveu um sistema interativo de realidade aumentada com a utilização de câmeras. A obra, intitulada de Video place, fazia um registro de corpo inteiro do espectador e, a partir disso, projetava numa TV desenhos, figuras e até criaturas animadas artificiais que interagiam com as pessoas. O projeto é muito semelhante ao controle por movimento Kinect, do Xbox 360, um dos mais populares video games do mundo, fabricado pela Microsoft. Não que os desenvolvedores dos jogos eletrônicos tivessem copiado o artista americano, mas Krueger, em suas experimentações, anteviu uma tendência tecnológica com quase 30 anos de antecedência. “Gosto de pensar que, no fluxo de ideias que existem por aí no inconsciente coletivo, temos as boas e as loucas. São essas segundas que me interessam, já que podem servir

c o n t i n e n t e n ov e m B R O 2 0 1 2 | 6 7

Visuais_OUT.indd 67

23/10/2012 13:26:44


imagens: divulgação

3

3 intiMiDADe em My little piece of privacy, uma cortina se move de acordo com a movimentação dos pedestres 4 VItalINO o pernambucano Jarbas Jácome criou uma escultura digital usando os movimentos dos dedos capturados por duas webcams

Visuais 4

de trampolim para gerar coisas muito mais legais que tenham um impacto positivo na vida das pessoas”, afirma Filipe Calegário, pernambucano que é um desses exemplos de artistas/ cientistas. Mestre em Ciência da Computação pelo Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco e ex-vocalista da banda de brega Faringes da Paixão, Calegário agora se dedica a projetos de experimentação com música, arte e computação. Como entusiasta da prototipação, incentiva que ambos, artistas e cientistas, experimentem mais. “Você não precisa ter na sua cabeça uma pilha de conhecimentos técnicos em programação para poder

criar arte digital. Muitos softwares gratuitos estão disponíveis na internet, prontos para serem usados”, completa.

interAtiViDADe

Um aspecto fundamental da mistura entre arte e tecnologia é o caráter interativo das produções. “Existe sempre a questão de trazer o cotidiano para o debate, utilizando formas de interação que buscam o pensamento fora da caixa. Não se utiliza, por exemplo, mouse e teclado, mas telas touch screen e sensores de movimento para uma maior imersão”, explica Calegário, citando três exemplos. O primeiro é Interactive starry night, do grego Petrus Vrellis, que transformou

o quadro Noite estrelada, de Van Gogh, num aplicativo para iPad, no qual o usuário pode direcionar o fluxo das pinceladas do famoso artista holandês. A ideia é que o público perceba melhor a fluidez que o quadro original possui, além de dar a sua própria contribuição para trazer vida à pintura novecentista. O segundo exemplo brinca com a curiosidade do público. My little piece of privacy, do alemão Niklas Roy, nada mais é do que a cortina que protege o ateliê do artista em Berlim. “Minha oficina era anteriormente uma loja, então tenho uma vitrine grande virada para a rua. Numa tentativa de me dar mais privacidade, decidi instalar uma cortina pequena, mas inteligente, na

c o n t i n e n t e n ov e m B R o 2 0 1 2 | 6 8

Visuais_OUT.indd 68

23/10/2012 13:26:48


janela”, explica em seu site. Como o pano não consegue cobrir a vitrine inteira, uma câmera de vigilância identifica os pedestres que passam pela calçada e move o motor, que desloca a cortina para onde a pessoa está. “Tudo funciona perfeitamente, mas, no fim das contas, minha cortina tornou-se ineficaz justamente por cumprir muito bem o seu papel. O movimento dela atrai o olhar de pessoas que passariam por ali sem dar a mínima atenção para o meu local de trabalho”, brinca Roy. O experimento mais famoso, que até já se tornou um produto estabelecido, é a mesa Reactable, que funciona como um instrumento musical produzindo som a partir da interação entre os objetos dispostos nela. Artistas como Björk e a banda Nero já utilizaram o instrumento em turnês, que ainda inspirou o trabalho de outro artista/cientista pernambucano, um dos idealizadores do LaboCA (Laboratório de Computação e Artes) e ex-aluno do CIn-UFPE, Jerônimo Barbosa, o Jeraman. O projeto em questão é o Illusio, um instrumento

musical/ digital que permite o controle de loops gravados em tempo real, através de uma performance lúdica e colaborativa baseada no relacionamento entre desenhos e sons. “O Illusio mescla o uso de tecnologias multitoques (construídas a partir de canos PVC e fitas adesivas) ao conceito de pedais de guitarra (construídos a

os primeiros experimentos unindo arte e tecnologia datam dos anos 1960, dentro do conceito da intermídia partir de um teclado USB modificado), sob uma perspectiva do it yourself de baixo custo”, explica Jeraman. O Illusio foi desenvolvido com o apoio do Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética e segue a filosofia livre: todo o conhecimento técnico que permitiu sua construção,

seja de hardware (como construir uma mesa multitoque, base para o projeto utilizando caixas de papelão e webcams comuns), seja de software (código-fonte do programa), está disponível para reuso, segundo uma licença não comercial. Esse foi o mesmo pensamento do também pernambucano, ex-aluno de Computação, Jarbas Jácome, que criou Vitalino, uma instalação que permite a criação de uma escultura digital, usando os movimentos dos dedos, capturados por duas webcams. “A escultura é sintetizada por processamento de imagem, através de uma função de intersecção das extrusões das silhuetas dos dedos capturados por cada câmera e desenhada com a utilização do conceito de voxel, isto é, pixel em três dimensões”, explica Jácome. O nome da instalação, além da homenagem ao artesão de Caruaru, traz a ideia de que ali era mais importante que se aprendesse a usar as mãos do que a cabeça. “Use as mãos, não use a cabeça, para modelar no barro de voxels, onde o tato físico não existe”, completa Jácome.

liberdade para os

bonecos. espetáculos de 7 países, show do pato Fu

com bonecos do Giramundo, de graça. teatro de santa isabel, às 19h e 21h.

7/11 - pequod (brasil) - Marina, a sereiazinha 8/11 - Kakashi-za (Japão) - sombras de Mão 9/11 - art stage san (coreia) - a História de dallae

parque 13 de Maio, 10 e 11/11, a partir das 16h30.

Performances, exposição, feira temática, oficinas com mestres mamulengueiros. teatro de bonecos do brasil, da argentina, da itália, da rússia, do Japão, da coreia e da inglaterra.

www.sesibonecos.com.br

c o n t i n e n t e n ov e m B R o 2 0 1 2 | 6 9

Visuais_OUT.indd 69

patrocínio:

realização:

23/10/2012 13:26:50


acordar cedo

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Coqueiros, vocês dormem ao

relento e sorriem às minhas, ainda escuro, manhãs quando me acordo cedo antes do sol, oscilam docemente pintando o azul que começa a clarear, esse azul intuído, antes de o sol nascer. Vocês se levantam antes, aguardando-o, enquanto os passarinhos ainda não se acordaram. Sei que ninguém aguenta mais esse tipo de literatura: mas que jeito, Fernando Monteiro? cada qual como Deus o fez. Espero o primeiro sanhaçu, seu canto rasga-manhã, cortejo de rouxinóis e sibitos. Agora, não, mas quando menino, as risadas das garrinchas, das casacas-de-couro. Bem-te-vi inda tem, meu miniquintal pegado com o quintal das freiras do Monte, Olinda. E rolinhas, andando ligeirinhas pelo chão da rua, olhadas pelas lavandeiras que pulam de pezinhos juntos. Mas isso é mais tarde, sol quente.

Coqueiro, coqueiro de quintal, cada um é um, não havendo coqueiros e sim coqueiro, de um em um. Só não têm nome, mas têm: o de detrás da sucupira, os dois mais de cima, os três ou mais do lado da casa de Abel, o de junto da macaibeira, o da casa de baixo, que eram dois, um foi derrubado e este que ficou não esquece o outro, suas palhas se voltam na esperança de encontrá-lo, como procura o cajueiro, também derrubado, que lhe fazia companhia: sinto falta dos seus cajus amarelinhos, paridos já inteiros e amarelos pulando da noite de inverno para a manhã de verão. E tem os galos. E o zurro do jumento. Urros de boi, vaca, hoje extintos por aqui: quando vim morar, há 40 anos, passava um rebanho de vacas subindo a ladeira, uma pequena boiada, balançando as cabeças num lento saudar, vacas zebuínas de toda cor, às vezes um urro bem na minha

frente, mõ... As orelhas balançando. Alguns chocalhos. Pronto: o sanhaçu cantou, o longo traço incisivo do trinado em ponta seca e logo as rebarbas da algazarra de um bando de jandaias. Em plena Olinda! Só faltou o coro das maria-j’é-dia. Mas já é dia. Pode olhar no relógio que são cinco horas. Já dá para ver as cores do quadro no cavalete. Ao trabalho! Um dia, para ser perfeito, começa no dia anterior, isto é, na noite do dia anterior, você indo dormir cedo. Oito horas da noite, cama. Lembro de uma frase de Pablo Casals, o violoncelista espanhol, lida numa dessas revistinhas Duplex, nº 136: “Há oitenta anos eu começo o meu dia da mesma maneira; e isso não significa uma rotina mecânica, mas sim algo essencial para a minha felicidade”. Como fiz oitenta anos recentemente, talvez isso me tenha tocado. Lembro também que o poeta Augusto Frederico

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 0

Mat. Corrida_NOV.indd 70

23/10/2012 09:07:06


reprodução

1

Schmidt acordava às quatro da manhã, sua hora de eleição, lia, escrevia, e era um homem de mil atividades, além de poeta grande, culto: empresário pioneiro de supermercado, dono de editora (foi quem primeiro editou Graciliano Ramos). Deve ter sido a hora em que se sentia tranquilo. Os monges se acordam no meio da noite para rezar. Dizem que Leonardo da Vinci só dormia três horas. Na Itália ouvi: “O homem deve dormir seis horas; os preguiçosos, sete; oito, nunca”. Me lembro de um velho, mineiro, que morava no Km 33 da Sorocabana, entre Jandira e Itapevi, São Paulo, onde eu arranchava em casa do meu tio Manoel. Certo dia cheguei às onze da noite, por aí. Lá não tinha luz. Aliás não tinha nem estação: a

Um dia, para ser perfeito, começa no dia anterior, isto é, na noite do dia anterior, você indo dormir cedo. Oito horas da noite, cama gente pulava do trem no capim ou no barro. A gente se guiava pelo faro. O 33 era um arruadinho; as casas, de taipa; o chão, barro; na rua como dentro das casas. Ao passar pela casa do mineiro, o cuviteiro aceso dentro de casa recortava no vão da portinha estreita a figura encolhida, em pé, os braços cruzados, escorado no canto da porta. Exclamou baixinho mas

1 amanhecer asa de José Cláudio C

retratada pelo pintor Antônio Mendes, óleo sobre tela, 50 x 60 cm, 2002

dando para escutar: “Zezinho, dormiu na rua hoje!” Respondi que não, que justamente estava chegando para dormir. Ele se surpreendeu: “E que horas são?” Tornei: “Ainda não deu meia-noite”. Ele: “Não? Pois eu já acordei e já tomei café!”. Os coqueiros, quando se despem de sua camisola noturna, se tornam “outra pessoa”, digamos assim. E cada coqueiro, que digo eu, cada folha, tem sua fisionomia particular e que muda a cada momento, tanto desenho quanto luz e consequentemente cor. Há, ainda, antes da claridade, um ciciar de plantas e insetos que em vez de audíveis procuram urdir o silêncio. E que vai desaparecendo à medida que o dia clareia, antes mesmo de se definirem os sons, de perto ou longe.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 1

Mat. Corrida_NOV.indd 71

23/10/2012 09:07:09


DIVULGAÇÃO

Leitura AO VIVO Os autores no centro do espetáculo

A aventura de escritores, como Mario Prata e o seu Os anjos de Badaró, na exploração das características da internet para escrever e divulgar livros texto Thiago Corrêa

Enfileirada na estante, a

lombada roxa com o título Os anjos de Badaró em amarelo e o nome do autor Mario Prata na cor branca não se diferencia em nada das outras brochuras ao seu lado. Aberto, o interior da obra também não denuncia qualquer distinção dos outros volumes, apresenta o mesmo odor de cola que se convencionou chamar de “cheiro de livro”, páginas com folhas de papel branco impressas com fileiras de palavras na cor preta e os prolongamentos da capa que, dobradas para dentro, assumem a função de orelhas. Apesar de todas as semelhanças, a contracapa da nova edição de Os anjos de Badaró (que reaparece

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 2

Leitura_NOV.indd 72

23/10/2012 09:10:42


1 MaRIO PRATA Ao escrever Os anjos de Badaró, o escritor interagiu com os leitores, na internet

1

nas prateleiras através da editora Planeta) revela que a obra representa um significativo ponto de transição na história do suporte livro, acrescentando à literatura brasileira um capítulo que toca em questionamentos teóricos essenciais para a arte literária e provoca reflexões sobre o futuro nesses tempos incertos de premonições sobre o fim do livro impresso. Afinal, essa narrativa foi escrita por inteiro na internet. Ao longo de seis meses, do dia 24 de maio de 2000 em diante, foi possível acessar o site e encontrar Mario Prata, lá da sua casa, escrevendo, fazendo com que milhares de leitores, de diversas partes do mundo, acompanhassem

ao vivo a gênese – “letra a letra, palavra a palavra, corte a corte, morte a morte” – de Os anjos de Badaró. Publicado em papel apenas uma semana depois de o autor ter digitado o ponto final sob os olhares atentos dos leitores, o romance traz a investigação empreendida pelo jornalista Alcides Capella sobre o misterioso suicídio do amigo de infância Ozanan Badaró, um milionário dono de uma rede de prostituição de luxo que envolvia até consórcio para programas com jovens universitárias. “A editora foi fazendo o livro enquanto eu escrevia. Demorei uma semana escrevendo o capítulo final para dar tempo do livro ficar pronto. Tinha até tamanho definido para encaixar direitinho”, lembra Mario Prata. A história conta com um ponto de partida antigo, já usado de maneira tímida pelo autor na primeira versão de James Lins, 51: o playboy que não deu certo (1994). Esse mesmo mote reaparece numa das crônicas de Minhas mulheres e meus homens (1999), na qual Prata revela a origem da sua inspiração, escrevendo sobre um amigo de infância chamado Badaró, que se torna degustador de prostitutas. Aquilo que seria mais um romance tradicional, com publicação já acertada pela Objetiva, ganhou outro rumo quando a cunhada de Prata lhe pediu para vê-lo enquanto escrevia. Curiosidade que – somada ao interesse dos leitores por seu processo criativo, às possibilidades de um novo veículo de comunicação e às promessas de grandes negócios das empresas pontocom – logo empurrou o projeto de Os anjos de Badaró para o ambiente on-line.

METALINGUAGEM

Outro fator que contribuiu para a migração foi a ideia já prevista pelo autor de desenvolver a investigação de Capella através de textos salvos em disquetes por Badaró. Ainda que não fosse pensada especificamente para a web, ao deslocar a narrativa para o meio virtual, essas informações sugerem novos significados, transforma-se em metalinguagem, ganham o peso de uma autorreflexão de alguém que procura se conhecer,

ambientar-se e chamar a atenção para o terreno em que pisa. O autor traz para a obra um hábito que fez parte do seu cotidiano durante os seis meses de escrita, fazendo alusões às conversas abertas pelos internautas que acompanhavam Os anjos de Badaró. “Eles começaram a bater papo todo dia num chat. Aí entrei e vi que eles estavam falando de mim, tudo fã. Achei ótimo aquilo, entrei com meu nome e falei ‘oi, pessoal, tô aqui’. Só que ninguém se manifestou, nada, silêncio. Aí chamei uma menina pro reservado e ela disse que eu era o quinto Mario Prata que entrava ali”, diverte-se o autor, que precisou passar por uma bateria de testes para comprovar a identidade. Em outras cenas, o autor aponta para as praticidades permitidas pela rede, como pegar o resultado de um exame de sangue, a rapidez dos sistemas de busca e o volume de informações contidas na internet. Nesses pontos, o livro apresenta seu valor documental, ao registrar as reações geradas durante o período de transição de uma cultura analógica/ material para a eletrônica/virtual. Para tanto, o autor se vale do personagem Capella, um jornalista policial com 63 anos de idade e 40 de profissão, alheio à informatização do mundo. Na redação, ele resiste com sua velha máquina de escrever Remington, nega-se a ter aulas de informática e vê seu salário desvalorizado em comparação ao do responsável pelos computadores do jornal. Mas, quando o amigo morre e deixa pistas espalhadas em disquetes, ele se vê obrigado a comprar um computador para desvendar o mistério que envolve o suicídio e finalmente escrever uma reportagem relevante capaz de lhe render o tão desejado Prêmio Esso. Embora dê conta da narrativa, a versão impressa serve apenas como um suvenir daquilo que foi a experiência on-line, a exemplo de como funcionam os catálogos para as exposições. Ao contrário de Tabajara Ruas e João Ubaldo Ribeiro, autores já renomados que também se aventuraram pela rede, o mérito de Mario Prata foi pensar a web como suporte diferenciado do papel, explorando

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 3

Leitura_NOV.indd 73

23/10/2012 09:10:45


DIVULGAÇÃO

2 FLiP

Os grandes festivais literários têm investido em escritores bons de palco, como Fabrício Carpinejar

à banda larga no Brasil chegava a apenas 121 mil usuários (em 2011, esse número foi de 18,4 milhões) e pesquisas indicam que, em maio de 2001, o número de internautas no país era de 10,4 milhões.

REPERCUSSÃO

Leitura 2

suas características e não apenas como meio de distribuição do livro. Além da obra, o site possuía seções extras que possibilitavam entretenimento aos internautas, como enquete, horóscopo feito pelo próprio Mario Prata e fichas das garotas de programa que trabalhavam para o Badaró, criadas, sob orientação do autor, por seu filho, o também escritor Antonio Prata. Apenas duas dessas fichas, de um universo de cerca de 20, foram preservadas no livro impresso. Ao longo do processo, também foi criada a rádio on-line Os Anjos de Prata, em que, a exemplo das novelas, cada personagem tinha sua música. Mas o maior diferencial de Os anjos de Badaró está na estratégia de usar o potencial da internet para dar à literatura um viés de evento. O teórico da cibercultura Pierre Lévy lembra que, diante do gigantesco fluxo de informações que renova a rede a cada instante, uma das alternativas das artes virtuais é justamente adotar a lógica de evento. Ou seja, chamar a atenção e marcar território antes de serem engolidas por outras novidades

Em Os anjos de Badaró, Mario Prata utiliza o potencial da internet para dar à literatura um caráter de evento e manias da rede. A produção desse livro realizou uma mudança simbólica na postura dos escritores, trabalhando a escrita como uma forma de performance, quebrando a imagem da criação como algo divino para reforçar a noção de processo. A presença diária no site de um escritor já conhecido do público, como Mario Prata, e as atualizações constantes contribuíram para o sucesso da empreitada, fazendo com que a home page ultrapassasse a marca de 400 mil visitantes espalhados geograficamente em mais de 50 países. Números que impressionam, ao recordamos que foi escrito em língua portuguesa e ocorreu no ano 2000, quando o acesso

Apesar de ser pouco lembrado nos dias de hoje, o projeto despertou grande curiosidade, na época. O seu ineditismo atraiu a atenção da mídia, rendendo ao autor repercussões na imprensa nacional – francesa, italiana e espanhola. De maneira geral, já naquele tempo, as matérias traziam em comum a curiosidade sobre o projeto (relatando o modus operandi da empreitada), a possibilidade de troca de informação com os leitores e a mudança do perfil do escritor, que até então era retratado no imaginário como uma pessoa reclusa no seu ato de criação. A professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Paula Sibilia aponta, no livro O show do eu, que uma das características da literatura contemporânea é a inversão do grau de importância entre a obra e o autor. De acordo com ela, a obra passa para o segundo plano, enquanto o autor sobe ao palco para receber os flashes e falar da sua vida, transformando livros em ornamentos e suas personalidades em “obra”. Um cenário que tem se confirmado com a profusão de eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty – Flip (criada em 2004), o interesse das editoras em pegar carona na fama de cantores e subcelebridades (Adriana Calcanhoto, Lirinha, padre Marcelo Rossi, Gabriel O Pensador, Bruna Surfistinha, Jean Willys) para vender livros, o peso de escritores bons de palco, como Marcelino Freire e Fabrício Carpinejar, e o aparecimento de casos curiosos como Barbú, escritor argentino que, acompanhado de uma fotógrafa, se fantasia de macaco para divulgar seus livros pelas ruas de Buenos Aires, sob o slogan: “O primeiro gorila escritor”.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 74

Leitura_NOV.indd 74

23/10/2012 09:10:47


reprodução

FANDOM

Sob o domínio dos leitores Para escrever Os anjos de Badaró, Mario Prata precisou acoplar seu computador a quatro telas. Na primeira, ele escrevia; a segunda reproduzia a visão que os leitores tinham do site; e a terceira exibia o medidor de audiência, que era atualizado a cada três minutos. Dados que se cruzavam com as informações da última tela, aberta na seção Palpite do site, na qual os leitores podiam escrever, opinar e interagir com o autor. Ao término da empreitada, mais de 800 mil palpites foram contabilizados. Apesar do número, o autor afirma que a influência deles foi pequena. Ele reconhece

que a história ficou mais romântica por conta do público feminino e que a trama ficou mais leve (além da prostituição, a narrativa envolveria tráfico de drogas) devido ao acesso de crianças. Sugestões de detalhes como o vinho bebido pelos personagens também foram acatadas e alguns nicknames dos internautas foram usados para batizar personagens (como a Frau Cyrene, por exemplo, cuja inspiração veio do apelido da Flávia Cintra, a Frau). TROCAS Interferências desse tipo, no entanto, não são exclusivas do meio digital, elas também se apresentam nas outras narrativas do autor, como James Lins (1994) e Purgatório (2007), publicada como folhetim nO Estado de S.Paulo. Segundo Pierre Lévy, a interatividade se dá quando cada usuário

tem o poder da criação, modificando o material diretamente. No caso de Os anjos de Badaró, os leitores não podiam modificar o texto; no máximo, opinar e sugerir mudanças. Por outro lado, o site se tornou um espaço de convivência. “Eles nunca tiveram pretensão de dar palpites, eles queriam conversar entre eles, virou uma farra, um motivo para se encontrarem durante seis meses. Eles se reuniam, se encontraram numa fazenda, iam à churrascaria”, explica Prata. Mas o que era apenas um pretexto de encontros para os leitores, logo se transformou numa experiência criativa. “Mario Prata sugeriu que nós escrevêssemos, pois nos achava inteligentes e criativos. Fez um concurso e pediu pra que a gente escrevesse crônicas. A cada semana, ele escolhia os vencedores do período. O prêmio? Um livro editado pela TV1, totalmente patrocinado, com prefácio de Mario Prata”, lembra Maria Cremasco, uma das leitoras mais assíduas da página e que participou das nove antologias publicadas pelo grupo Os Anjos de Prata. O desdobramento de Os anjos de Badaró é representativo do poder de mobilização da internet. Reações desse tipo ganharam força no ambiente virtual, com a web se mostrando um ambiente propício para a formação de comunidades voltadas à discussão literária e à ramificação das obras através da criatividade dos leitores. Quando as criações se desenvolvem sobre os pilares de universos ficcionais já existentes, propondo novos enredos a uma obra, o fenômeno é chamado de fandom (domínio do fã). “Antes existiam fanzines, fãs vestidos como personagens (cosplay), convenções de fãs; agora existe tudo isso de forma muito mais especializada: fanfics, fanvideos, fanhits, fanarts, e cada vez mais os fãs apresentam novidades, à proporção que surgem novas ferramentas na net”, compara a pesquisadora Fabiana Moés Miranda, mestre em Teoria da Literatura que, na sua dissertação, se dedicou ao tema do fandom. Ela defende que a prática modifica a visão do leitor como mero receptor, possibilitando-lhe ocupar o papel de criador. “O leitor aprende e apreende. O leitor busca informações e recursos para se apropriar do texto que leu. Não é mais uma questão de leitura ativa ou passiva; dizer que se recria a cada leitura é fácil, mas não é fácil escrever o que se sentiu e sobre o que gostaria de ver escrito”, analisa Fabiana. O que, por consequência, lança o desafio aos estudos literários: “de enxergar a leitura não como finalidade, mas como meio para novas experiências no universo do leitor”. THIAGO CORRÊA

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 5

Leitura_NOV.indd 75

23/10/2012 09:10:49


reprodução

1 AUTORRETRATO Alberto da Cunha Melo manteve seus desenhos no âmbito doméstico

O fac-símile de manuscrito que

Leitura 1

SELETA Traços e versos de um poeta

Antologia Cantos de contar é ilustrada por desenhos inéditos a lápis, feitos por Alberto da Cunha Melo, junto a 56 poemas extraídos de três dos seus livros texto Gianni Paula de Melo

serve de introdução ao novo livro de Alberto da Cunha Melo antecipa ao leitor uma faceta artística sua menos conhecida. Ele principia essa nota pessoal, datada de 20 de abril de 1979, desabafando: “Nenhuma linha escrita. Tenho desenhado freneticamente, como uma compensação”. O fato de não ter aspirações profissionais nas artes visuais permitiu que o poeta travasse uma relação amena com seu próprio traço. No entanto, esse aparente descompromisso não o impediu de ilustrar obras de diversos autores, como Sete estórias sem rei, de Mário Souto Maior, além dos seus próprios livros. Em Cantos de contar, antologia recém-lançada pela editora Paés, 28 dos seus desenhos originais, feitos a lápis, aparecem nas páginas, junto aos 56 poemas selecionados. Organizado por Cláudia Cordeiro, professora de Literatura Brasileira e viúva do poeta, o livro encerra um hiato de seis anos sem lançamentos ligados ao pernambucano, cuja última publicação em vida foi O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos, em 2006. Obviamente, o protagonismo continua sendo da arte verbal, aquela à qual se dedicou com afinco e racionalidade. Filho do poeta Benedito Cunha Melo, Alberto se viu na tradicional encruzilhada que envolve a ideia de superação da figura do pai e, logo cedo, optou pela afirmação na diferença. Enquanto o patriarca havia se destacado por sonetos e trovas, ele escolheu como predominante em sua produção poética um metro menos usual, o octossílabo. Quando questionado sobre esse aspecto pelo jornalista Astier Basílio, que pontuava se não era tempo de arriscar outros formatos, considerando a consagração já alcançada pelo poeta, Alberto da Cunha Melo explicou existirem outras razões para essa

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 6

Leitura_NOV.indd 76

23/10/2012 09:10:50


INDICAÇÕES preferência estética: “O octossílabo dominou minha poesia em duas fases, na primeira e terceira, talvez porque tinha a cadência prosaica da conversa, do desabafo, não retórico, da confidência, enfim”. Essa explicação remete aos versos de Ribeiro Couto – em um quarteto octossílabo – que, confessamente, serviu como norte poético de sua produção: “minha poesia é toda mansa/ não gesticulo, não me exalto/ meu tormento sem esperança/ tem o pudor de falar alto”. Tal serenidade, proposta pelo poema de Couto, atravessa a escrita de Alberto da Cunha Melo, que passeia por conteúdos variados, indo do universo clássico àquele promovido pela comunicação de massa. Para o autor de Yacala, “tudo é tema”, contanto que a escrita seja rigorosa. Não à toa, foi muitas vezes comparado a João Cabral e fazia uso pessoal da fórmula 10% inspiração e 90% transpiração para a criação artística. Segundo Alberto, o mais preciso, em termos de arte literária, seria recomendar inspirar 10% de conteúdo e expirar 90% de realização formal. Por trás das convicções do escritor está uma identificação consciente com os construtivistas, os formalistas russos e os estruturalistas, aparato teórico e estilístico que

trouxe para o seu modo de produção específico. Do ponto de vista temático, são recorrentes em sua obra os diálogos com a filosofia, como vemos em Camuflagem nietzschiana; com o cinema, caso do texto Um corpo que cai; e com a própria literatura, tal qual apontam os poemas A João Cabral, Relendo Camões e Edgar Allan Poe. Esses três poemas estão presentes em Cantos de contar, seleta que é complementada por uma longa entrevista coletiva concedida pelo autor a estudiosos de Literatura. As questões foram enunciadas por Alfredo Bosi, Alcir Pécora, Deonísio da Silva, Evandro Affonso Ferreira, Ivan Junqueira, Isabel Moliterno, Ermelinda Ferreira, Ivo Barroso, José Nêumanne Pinto, Mário Hélio, entre outros. A conversa só havia sido publicada, anteriormente, em versão reduzida, na Cronos, revista da pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. As respostas do poeta mostram ao leitor que, além de criterioso em seu processo criativo, ele era muito reflexivo no tocante à própria obra. Também colabora para rememorar sua trajetória artística, iniciada em 1966, quando o escritor foi revelado pelo poeta e crítico César Leal, no suplemento literário que ele editava no Diario de Pernambuco.

ROMANCE

JOSÉ LUIZ PASSOS O sonâmbulo amador Alfaguara

Professor e ensaísta com estudos sobre Machado de Assis e Gilberto Freyre, Passos é também ficcionista, autor do elogiado Nosso grão mais fino (2009). Em O sonâmbulo amador, o personagem-narrador é um funcionário prestes a se aposentar que protagoniza ações que vão mudar sua vida, levando-o a ser internado numa clínica psiquiátrica e a rever seu passado.

RELIGIÃO

REGINALDO PRANDI Os mortos e os vivos: uma introdução ao espiritismo Três Estrelas

Cantos de contar alberto da cunha melo Editora Paés Obra póstuma que reúne poemas extraídos dos livros Círculo cósmico (1966), Publicação do corpo (1974) e Poemas anteriores (1989), com ilustrações de autoria também do poeta. Destaque para o metro octossílabo.

Um dos méritos desse livro é sua leitura clara e desprovida de duas tendências opostas, quando se trata do assunto “religião”: crença ou descrença radicais. Como sociólogo que já se vem dedicando à chave temática há anos, Prandi aborda o assunto com a inteligência e o respeito necessários.

HISTÓRIA

CLARISSA DINIZ ET AL. (ORG) Crítica de arte em Pernambuco – escritos do século XX Azougue Editorial

Reunião de textos de variados gêneros, que percorrem os anos de 1924 a 2000 e pretendem enxergar uma genealogia da crítica de arte no estado e observar, nele, a conformação do pensamento moderno e a ideia de Nordeste como um lugar de criação.

ROMANCE

CARLOS MACHADO Poeira Fria Arte & Letra

Desde que surgiu, há quatro anos, a curitibana Arte & Letra evidenciou seu interesse de fazer do contato com a literatura algo prazeroso. Para isso, cercou-se dos aparatos que dessem ao leitor elementos de qualidade e conforto no contato com a leitura. Seu mais recente lançamento é o romance Poeira fria. Nele, o autor desenvolve a história de um professor em crise.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 7

Leitura_NOV.indd 77

23/10/2012 09:10:53


Artigo

MARIANA TRAJANO UM OLHAR SOBRE O TEMPO DOS TRAMBOLHOS Uma das características da modernidade é a constante busca pelo novo e, por conseguinte, a valorização de toda e qualquer novidade. No âmbito tecnológico, essa “modernização” se traduziu na preservação do corpo através da automação e na otimização do tempo. Inseridos nesse contexto, tendemos a valorizar tudo que é compacto e veloz; que nos poupa o corpo e tempo. Aqueles objetos que possuem maior massa ou menor velocidade não figuram nesses parâmetros, são indesejáveis, rejeitados, descartados – geralmente, chamamos-lhes de “trambolhos”. No dicionário, “trambolho” é definido como “peso atado aos pés de animais domésticos para dificultar seu deslocamento”. Trata-se, portanto, de um obstáculo, um empecilho físico, geralmente volumoso, que nos desgasta fisicamente e que nos faz perder tempo. Mas sua natureza não é absoluta, pois ele só o é em relação a outro objeto que com ele contrasta. Assim, figuram como trambolhos a carruagem em relação ao automóvel, o fogão à lenha em relação ao fogão a gás, ou a canetatinteiro em relação à esferográfica. O trambolho também possui uma faceta histórica: ele foi a tecnologia de ponta de ontem. E a acelerada obsolescência das tecnologias, principalmente das midiáticas, faz com que topemos com mais exemplares desse tipo a cada dia. A essa altura, lembro-me de Walter Benjamin e Marshall McLuhan que, em contextos e épocas diferentes, refletiram sobre como as transformações das tecnologias cotidianas influenciam nossa cognição e performance corporal. Quais as transformações que, por exemplo, o e-mail ou o celular

impuseram sobre a nossa percepção do espaço e do tempo? Ou, mais propriamente, o que nos oferecem, nesse sentido, os trambolhos que coexistem com as atuais e pequenas maravilhas tecnológicas? Há pouco, entrevistando consumidores de discos de vinil, deparei-me com esse tipo de questão. Manter ativo no dia a dia o conjunto vitrola + caixas + discos significa estar disposto, antes de qualquer coisa, a negociar espaço e, principalmente, tempo. Cada vez que um artefato se atualiza, executamos a mesma atividade com menos esforço e menor duração. As novas tecnologias tornam possível realizar um número maior de tarefas dentro do nosso absoluto e inexorável existir biológico; elas nos abrem janelas temporais, relativizando os cursos. Encontramos, cada vez mais, tempo e passamos a viver sob os auspícios do “enquanto”. O estudo da vitrola e do disco de vinil – verdadeiros trambolhos diante do MP3 – me levou à ideia de tempo denso. Os trambolhos nos levam a essa temporalidade, pois, ao contrário dos “primos ricos”, tais objetos desaceleram nosso ritmo: sua massa e sua performance “antiquada” não nos permitem aquela justaposição de janelas temporais. Para que um trambolho ocupe espaço e exerça a função a que se dispõe, ele precisa de nossa dedicação. Sua massa exige, por seu volume e, às vezes, por seu material, atenção sobre nosso corpo e nossos gestos. Nossos sentidos, progressivamente treinados a dar conta de inúmeros estímulos simultâneos, são forçados a fechar o foco e enxergar, mesmo que por um breve momento, apenas aquele objeto e sua performance. Tais objetos, que constantemente se formam e dos quais procuramos de vez em quando nos livrar – correspondências de papel, videocassetes, telefones com fio, máquinas de escrever –, são espécies de “ilhas” de tempo, massas que o atraem e o impedem de correr. Somos obrigados a parar e olhar, antes de seguir em frente. Obviamente, há uma mudança qualitativa. Qualquer alteração no modo como utilizo meu corpo, espaço

e tempo gerará, por conseguinte, alterações no como percebo e imponho significados a esses mesmos elementos. Correndo o risco de soar romântica, acredito que existe algo enriquecedor em escrever uma carta, de próprio punho, com letras caprichadas e, talvez, até perfumada, e vê-la sumindo na caixa de correios. E o que dizer da ansiedade gerada por esperar um disco chegar às lojas e do prazer de voltar com ele embaixo do braço? Se refletirmos sobre essas ações, veremos como elas aumentam nossos níveis de ansiedade, angústia e medo; fazem-nos criar novas soluções com maior frequência; obrigam-nos, enfim, a (re)aprender a dedicar tempo às coisas.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 8

Artigo_NOV.indd 78

23/10/2012 09:11:40


reprodução

A antropóloga Janice Caiafa trata esse tema por outro viés. Em seu livro Nosso século XXI – notas sobre arte, técnica e poderes, ela chama a atenção para o presente como sendo a época da “disponibilidade”; uma época na qual os indivíduos são bombardeados por dispositivos que alimentam atitudes autoindulgentes. Hoje, tudo nos chega “com um clique”, tudo é “interativo”. A pessoa não se depara mais com aquilo que lhe é estranho ou que lhe impõe uma maior dose de trabalho; seu ambiente se torna cada vez mais um espelho, tudo o mais funciona para não o contrariar. As tecnologias cotidianas buscam o menor nível possível de ruído para quem consome seus

A tecnologia de ponta de hoje é o trambolho de amanhã, daí porque encontramos mais exemplares desse tipo a cada dia produtos e conteúdos. O indivíduo contemporâneo perde a capacidade de lidar com o diferente, com o que o contesta, com o inesperado – e isso tudo, de certa forma, o infantiliza, empobrece-lhe a sensibilidade. A questão não é tecnofóbica: escrevo muito satistoriamente essas palavras em um computador, e,

quando aparece alguma urgência e estou no meio da rua, agradeço por ter um smartphone dentro da bolsa. Porém acredito na existência de algumas dimensões da nossa vida em que o tempo denso dos trambolhos – todos os percalços oferecidos por sua materialidade e performance – nos oferece experiências sensoriais mais ricas e necessárias (pelo menos) ao nosso amadurecimento emocional. Um viva ao iPad, mas não há preço que pague o prazer de ir a uma banca, comprar uma revista e correr-lhe nossos olhos e mãos. A vida nos exige praticidade ao mesmo tempo que nos pede o mínimo de cerimônia.

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 7 9

Artigo_NOV.indd 79

23/10/2012 09:11:43


Solange Coutinho

O DESIGN DOS NÃO DESIGNERS

Solange Coutinho

é designer, professora e pesquisadora

PASSARINHO/DIVULGAÇÃO

As informações efêmeras estão por toda parte, nos muros, mercados e feiras. Oferecem serviços gerais, vendem, consertam, entregam. Podem ser pintadas em superfícies móveis ou fixas, em papelão, compensado ou numa cadeira. Essas mensagens configuradas por meio do letreiramento (letras feitas à mão) fazem parte do nosso cotidiano, compõem a paisagem urbana do centro ou da periferia, executados por anônimos, em sua grande maioria. Mas há também aquelas que estão nos acervos – são rótulos, panfletos, canhotos de passagem, convites. Impressos em tipografia, xilo ou litografia, são também efêmeras. Todavia, sobrevivem colecionadas por alguns outros anônimos ou salvaguardadas em centros de documentação, como no acervo da Fundaj, da UFPE, do Arquivo Público Estadual, Biblioteca Pública Estadual, Junta Comercial, Museu da Cidade do Recife, apenas para citar alguns. Todo artefato de memória gráfica teve, e tem, o propósito de solucionar um problema de comunicação. Não nos interessa somente seu valor estético, mas como os originadores de tais informações elaboram os desafios de configuração gráfica e como dominam ou desenvolvem as tecnologias em cada período. O design formal no Brasil é iniciado com as primeiras escolas entre os anos 1950 a 1970. Entretanto sabemos que as atividades nesse campo são anteriores a isso. Pois, como não havia uma formação profissional específica em design, quem executava tais tarefas editoriais e gráficas eram os artífices mais experientes no processo produtivo. Somados a eles, artistas plásticos cuidavam das ilustrações, logotipos, emblemas e marcas expressas antes da constituição do Design. Não obstante, com o advento dessas escolas, cuja raiz é estruturalmente europeia (Bauhaus e Ulm), portanto descontextualizada do fazer brasileiro, identifica-se uma ruptura, uma inconexão. Muitos artífices ficaram à margem do mercado profissional, enquanto muitos designers foram formados “sem saber olhar” para as experiências locais. Hoje, porém, percebemos que há sinais de reconhecimento do passado, assim como um diálogo entre a produção informal e a formal. A apropriação e transposição dos elementos da cultura popular e/ ou periférica para a cultura “dominante”, talvez se explique pela busca do fortalecimento de identidades, ou de uma localidade, em meio ao contexto da globalização. Certos de que a história e, sem dúvida, os artefatos de memória gráfica podem incitar, despertar e ampliar os horizontes do próprio entendimento do design no Brasil, o reconhecimento dos projetistas do passado e aqueles do presente permite alargar os sentidos dos futuros designers, sem descriminação, aprendendo o design do não designer. Nessa perspectiva, conduzimos investigações multicêntricas compondo uma variedade de temas. Alguns dissecam as tecnologias enquanto outros estudam ilustradores, fundidores e impressores ou mesmo periódicos específicos. Somente na UFPE, são mais de 20 pesquisas em Design. Essas são as raspas e restos que nos interessam.

con ti nen te

c o n t i n e n t e n ov e m b r o 2 0 1 2 | 8 0

Saida NOV.indd 80

Saída 23/10/2012 09:13:00


CAPALAVRAO.indd 2

29/10/2012 10:59:32


www.revistacontinente.com.br

# 143

PALAVRÃO POR QUE GOSTAMOS TANTO DE USÁ-LO?

#143 ano XII • nov/12 • R$ 11,00

CONTINENTE

MORTE

ESCRITOS DO ENCONTRO COM O FIM NOV 12

CAPALAVRAO.indd 1

E MAIS EUGÈNE IONESCO | CONFEITARIA COLOMBO | TECNOLOGIA & ARTE | TEATRO DE BONECOS | A INVENÇÃO DA LEITURA SILENCIOSA 29/10/2012 10:59:26


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.