Continente #144 - Rádio: sintonia total!

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# 144

DIGA

RÁDIO

sim

SINTONIA TOTAL!

PRA VIDA CONTINUAR AVISE A SUA FAMÍLIA QUE VOCÊ É DOADOR.

#144

O MEIO MAIS POPULAR COMPLETA 90 ANOS NO BRASIL

ano XII • dez/12 • R$ 11,00

CONTINENTE

SUCRE

UMA CIDADE VESTIDA DE BRANCO ALCIR LACERDA

50 ANOS DE FOTOGRAFIA EM LIVRO

SEJA UM DOADOR DE ÓRGÃOS. Só assim a Central de Transplantes de Pernambuco pode continuar a salvar vidas. Em 18 anos, foram realizados mais de 10 mil transplantes, graças a pessoas que comunicaram às suas famílias o desejo de serem doadores de órgãos. Mas a fila de espera por novos transplantes não para de crescer. Por isso, comunique. Mais importante do que ser um doador, é dizer.

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CENTRAL DE TRANSPLANTES

E MAIS BEA FEITLER | HOMENAGENS A GONZAGÃO | VEGETARIANISMO MÚSICA DE NATAL | FILMES DE ETS | VIAS DA DANÇA E GRUPO GRIAL 30/11/2012 11:21:12


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REPRODUÇÃO

DEZEMBRO 2012

aos leitores No artigo que escreveu para nossa matéria sobre os 90 anos da radiodifusão no Brasil, a professora da UnB, Nelia R. del Bianco, apresenta dados recentes sobre o perfil de público dessa mídia, que, assim como outras tradicionais, tem o seu futuro questionado. Rádio, como e para quem? Ela lembra que a chegada de novos meios sempre desestrutura os que já existem, e isso já aconteceu com o rádio e o jornal pela ascensão da TV. Com relação ao fim do rádio, somente os pessimistas não veem o que a história tem apontado: que os antigos permanecem ao lado dos novos, passando por ajustes tecnológicos, formais e conteudísticos. Mesmo não adotando uma atitude pessimista, precisamos observar a relação atual do público com esse meio. De acordo com apuração da professora, o hábito de ouvir rádio circunscreve 80,3% da população brasileira. “Os índices mais baixos de escuta estão entre jovens de 20 a 29 anos; e, quando acontecem, são pela internet. Enquanto isso, o consumo de AM restringe-se à faixa etária de 45 a 49 anos”, aponta. Formação de ouvintes: um desafio para os que atuam na área.

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De sua parte, o jornalista Paulo Carvalho trouxe uma breve história do rádio em Pernambuco e elaborou uma variedade de perfis de radialistas consagrados no estado. Alguns deles mostram-se preocupados com o futuro do veículo e outros percebem na conjunção com a internet um “pulo do gato” . Gino César, por exemplo, com 60 anos de carreira, decreta: “Nós, radialistas, somos uma classe em extinção. Não há mais nenhuma perspectiva”. Sua opinião está relacionada com a recepção. Na emissora em que trabalha, a Rádio Jornal, mais de 77% da audiência é formada por ouvintes com mais de 35 anos. Tendo sido funcionário da BBC em Londres, o jornalista e professor Marcelo Abreu escreve sobre a excelência da emissora, que, desde 1922, investe numa programação diversificada, que atrai interessados em boa música, radionovela ou radiojornalismo. A BBC tem sido modelo para a criação de grades de programação e estrutura organizacional de várias emissoras ao redor do mundo. E, hoje, sua presença no ambiente online é significativa. Ao que parece, ela vai ser exemplo de competência por mais tempo.

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sumário Especial Rádio 6

Cartas

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Expediente + colaboradores

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Entrevista

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Leitura

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Sonoras

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Matéria corrida

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Artigo

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Saída

Alfredo Marcos Filosofia da Ciência é discutida por espanhol

Conexão

Tate Gallery Projeto Gallery of Lost Art reúne registros de obras que foram destruídas

Portfólio

Bea Feitler Trinta anos após sua morte, designer brasileira tem seu trabalho publicado em livro

20

Balaio

48

Cardápio

Perdas Intelectuais de fino texto que se foram em 2012

Natal A canção pop natalina é tradição nos EUA e repercute no Brasil

São nove décadas de radiodifusão no Brasil. Data incita discussões sobre a realidade do radiojornalismo hoje, com o desenvolvimento das novas tecnologias

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José Cláudio Idas e vindas

Mariana Baltar Os poderes do excesso no melodrama

Fernando Vasconcelos A nova cinefilia

Little Richard Um dos mais respeitados nomes do rock chega aos 80 anos

Vegetarianismo Saúde, ética e ecologia são principais motivações para aderir a essa dieta

Palco

Companhias Vias da Dança e Grupo Grial comemoram, respectivamente, 20 e 15 anos de existência, tendo como princípio a formação de bailarinos

60 CAPA FOTO Leo Caldas

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Viagem

Luiz Gonzaga

Situada a 3 mil metros de altura, capital constitucional da Bolívia guarda, na sua arquitetura e no povo, reflexos do passado espanhol e indígena

Lançamento de CDs, livros e museu no Marco Zero, no Recife, completam pacote de homenagens ao centenário de nascimento do artista nordestino

Visuais

Claquete

Livro lançado pela Cepe compila imagens em preto e branco dos 50 anos de carreira do fotógrafo pernambucano, enfocando temas como o Recife, o litoral e o sertão

Filmes sobre alienígenas expõem os mais diversos sentimentos humanos relativos à possibilidade desse encontro interplanetário

Sucre

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Alcir Lacerda

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100 anos do Rei do Baião

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Dez’ 12

Extraterrestres

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cartas Especial

ao Nordeste e a Pernambuco, escritores pernambucanos, matérias sobre Educação e comportamento. Ainda gostaria de destacar a atenção, o carinho e a consideração dos funcionários que entram em contato conosco.

Que beleza de homenagem, o especial da Continente de novembro dedicado a Álvaro Lins pelo seu centenário! Caruaru agradece pelo reconhecimento. E eu, como caruaruense, sinto-me agraciada. Parabéns e obrigada a todos que fazem a Cepe.

ARNADYA CLEIDE FARIAS PAULISTA – PE

CILENE SANTOS

NO TWITTER

CARUARU – PE

Primeiro contato A revista é muito bem-editada: as fotografias, reportagens, matérias, todas muito bem-feitas. O primeiro contato me agradou muito e por isso resolvi assinar. A matéria com Nelson Rodrigues foi o motivo pelo qual comprei a revista na banca. Seria interessante que vocês trouxessem artigos sobre escritores consagrados, livros clássicos e nacionais, e tudo o que diz respeito à cultura literária. Também gostaria de ver matérias sobre Pernambuco e outros estados brasileiros. SAMANTHA LIMA DE ALMEIDA RECIFE – PE

Parabéns a @revcontinente, sem sombra de dúvida: a melhor revista cultural do Norte e Nordeste do Brasil.

Filarmônicas Sou músico e gostaria de encontrar textos sobre as bandas filarmônicas de Pernambuco na Continente. Parabéns pela revista!

BRUNO GAUDENCIO CAMPINA GRANDE – PB

NO FACEBOOK

ADELMO APOLÔNIO RECIFE – PE

Temas Gosto muito dos assuntos abordados na revista Continente. Seria muito bom ver nas suas páginas artigos sobre as regiões do Brasil, dando ênfase

E aí pessoal!! Tudo em paz? Sou guitarrista da banda paulistana Korzus. E fiquei sabendo que, no número 137, da revista Continente, teve uma matéria na qual a nossa banda foi mencionada! Fico grato... Obrigado. ANTONIO ARAÚJO

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

José Afonso da Silva Junior Professor e pesquisador do PPGCOM–UFPE

Marcelo Abreu

Nelia R. del Bianco

Paulo Carvalho

Jornalista, professor e autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu

Jornalista, doutora em Comunicação e professora da UnB

Jornalista, mestre em Comunicação pela UFPE e repórter freelancer

E MAIS Ana Veloso, Jornalista, professora e doutoranda em Comunicação pela UFPE. Antônio Martins Neto, repórter especial da TV Jornal/SBT e mestre em Jornalismo Internacional. Christianne Galdino, jornalista, mestre em Comunicação Rural. Eduardo César Maia, jornalista, mestre em Filosofia e doutorando em Literatura. Fernando Vasconcelos, designer gráfico, escreve sobre cinema em www.kinemail.com.br. Gilson Oliveira, jornalista e revisor do jornal Pernambuco. Herbert Bender, ilustrador. Jorge Roaro, filósofo e escritor. Leo Caldas, fotógrafo. Lucas Colombo, jornalista e editor do site Mínimo Múltiplo. Mariana Baltar, doutora em Comunicação, professora da UFF e coordenadora do Nex – Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais. Rafael Medeiros, fotógrafo. Renata do Amaral, jornalista, professora e doutoranda em Comunicação. William Medeiros, designer gráfico e ilustrador.

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ALFREDO MARCOS

“Os filósofos estiveram cegos”

Professor espanhol é um dos artífices de discussões em torno da “humanização” das atividades científicas, que, na opinião dele, não devem ser apartadas da vida TEXTO Eduardo Cesar Maia e Jorge Roaro

CON TI NEN TE

Entrevista

Uma das razões pelas quais as pessoas costumam confiar nas conclusões e nas predições dos cientistas é a de imaginar que a linguagem da ciência é completamente objetiva. Contudo pensadores como Thomas Kuhn, Karl Popper e Paul Feyerabend já nos advertiram de que, na atividade científica, como em qualquer outra atividade humana, intervêm também questões, digamos, “contextuais”: preferências, preconceitos, crenças; além das exigências políticas e econômicas de sua época, a situação sociocultural, os modismos teóricos e ideológicos, os interesses que movem a atividade acadêmica, a rentabilidade e a possibilidade de desenvolvimento comercial de uma investigação ou projeto, entre outros aspectos. E tudo isso termina por influenciar diretamente no estabelecimento dos paradigmas científicos. Devido ao reconhecimento da importância desses fatores, nas últimas décadas, a Filosofia da Ciência tem-se aberto a questões de caráter prático. Recobrou, assim, felizmente, o diálogo com o pensamento social, moral e político.

Nesta entrevista, o filósofo espanhol Alfredo Marcos apresenta os fundamentos históricos e filosóficos dessa concepção ampliada de ciência e nos mostra como funciona sua aplicação em diferentes âmbitos: comunicação da ciência, investigação clínica, política ambiental, poética da ciência. Alfredo Marcos, que é doutor em Filosofia pela Universidade de Barcelona e catedrático de Filosofia da Ciência da Universidade de Valladolid, publicou mais de uma dezena de livros, ainda sem tradução no Brasil, entre os quais Pierre Duhem. La filosofía de la ciencia en sus orígenes (Barcelona, 1988), Aristóteles y otros animales (Barcelona, 1996), Hacia una filosofía de la ciencia amplia (Madrid, 2000), El testamento de Aristóteles (León, 2000), Filosofía de la Ciencia. Nuevas dimensiones (México, 2010).

que a ciência é aquilo que aparece nos livros e nos artigos, as palavras e as fórmulas. Mas, atrás desses resultados, há muitas ações humanas. Gente que observa, que ensina, que calcula, que viaja, que dialoga, que imagina e cria… A ciência é composta pelos resultados, mas também pelo conjunto de ações humanas que os produzem. Os filósofos da ciência, durante muitos anos, estiveram cegos ante essa realidade; observavam somente os resultados desse campo, suas teorias, mas não queriam ver as ações, as práticas científicas. Por isso, a Filosofia da Ciência era muito incompleta. Mas, há duas décadas, ela vem se ampliando muito. Agora se incluem também reflexões éticas, políticas, poéticas, pedagógicas, retóricas, comunicacionais. Ao pensar a ciência como ação humana, a Filosofia da Ciência se abriu a um novo mundo.

CONTINENTE Em Ciencia y acción: una filosofía práctica de la ciencia, você apresenta uma visão da ciência como ação humana e convida a uma compreensão ampliada relativa ao conhecimento científico. Em que consiste sua perspectiva? ALFREDO MARCOS Costuma-se pensar

CONTINENTE A ideia que as pessoas comuns têm da ciência costuma estar equivocada? ALFREDO MARCOS Há duas imagens errôneas e comuns da ciência: a imagem cientificista, segundo a qual ela é o único modo de se obter conhecimento e a única esperança de bem-estar

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ACERVO PESSOAL

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sabemos que mesmo nosso melhor conhecimento contém doses de incerteza. Não há método que garanta a certeza do conhecimento, tampouco o método científico. Temos que aprender a viver com isso. Neste panorama pósmoderno, a ciência e a filosofia são fontes de conhecimento respeitáveis, e não são as únicas. Relacionam-se em pé de igualdade. Dialogam. Respeitamse. Isso significa que fracassou o projeto neopositivista de reduzir a filosofia a uma mera análise linguística da ciência. Karl Popper e Thomas Kuhn produziram

IMAGENS : REPRODUÇÃO

para a humanidade; e a imagem anticientífica, segundo a qual a ciência é a fonte de todos os nossos males. O cientificismo causou muito danos, e produziu expectativas falsas. Depois veio a decepção e, após a decepção, a atitude anticientífica. Nesse sentido, o cientificismo conduz à anticiência. As ideias que temos da ciência nos são dadas pelo sistema educativo, por algumas obras de literatura e cinema e pelos meios de comunicação. Nessas três frentes, devem ser melhoradas as técnicas comunicativas e os conteúdos.

CON TI NEN TE

Entrevista Devem ser evitadas as imagens científicas simplistas e exageradas. É preciso humanizá-las. É preciso tratar a ciência como mais uma parte da ação humana, como tratamos a arte, o esporte ou a religião. Merece respeito por suas conquistas, e deve ser observada de modo crítico, como fazemos com as demais atividades. CONTINENTE Bertrand Russel dizia que aquilo que o homem busca realmente não é o conhecimento, mas a certeza. O grande projeto da filosofia e da ciência modernas, relacionado diretamente com a busca da certeza, fracassou? ALFREDO MARCOS Um dos projetos característicos da modernidade foi a busca da certeza, desde Descartes. Sim, esse projeto fracassou. Hoje

uma mudança profunda em nossa forma de pensar. Eles nos ensinaram que a certeza é inalcançável e que a ciência é ação humana e, como tal, submete-se à mesma falibilidade que o resto das ações humanas. Se já não se identifica com o conhecimento certo, como pretenderam os modernos, é porque já estamos num contexto de ciência pós-moderno. A nova atitude de humildade intelectual, a nova consciência de incerteza e de falibilidade, pertencem a uma atmosfera intelectual distinta da que se respirava nos tempos modernos, nos tempos do “orgulho da razão”. CONTINENTE É preciso repensar o conceito de racionalidade? ALFREDO MARCOS Sim. Devemos

abandonar o conceito logicista e algorítmico de racionalidade. Ser racional não consiste em seguir um algoritmo ou um método. Por essa via se chega ao absurdo de localizar a racionalidade lá onde é prescindível a presença humana. Tampouco nos serve, hoje, uma ideia meramente instrumental do racional, segundo a qual ser racional consiste em encontrar os meios apropriados para qualquer fim, seja este bom ou mal. Por esse caminho, pode-se atribuir racionalidade ao maior dos criminosos. Endosso um conceito de

“Um dos projetos característicos da modernidade foi a busca da certeza, desde Descartes. Esse projeto fracassou. Hoje, sabemos que mesmo nosso melhor conhecimento contém doses de incerteza. Não há método que garanta certeza do conhecimento” racionalidade prudencial. Ser racional consiste em ser prudente, quer dizer, em orientar cada uma de minhas ações de modo sensato em direção a uma vida boa. O fim tem que ser este: a vida boa, a felicidade humana. De outro modo, a ação não será racional. Claro que a ciência faz importantes contribuições nesse sentido, mas não tem o monopólio do racional, senão quando se apoia ela mesma na sensatez, na prudência, no senso comum. CONTINENTE O positivismo lógico repudiava radicalmente o uso da linguagem metafórica no âmbito filosófico e científico. Para você, qual é o papel da metáfora na ciência? ALFREDO MARCOS A ciência requer criatividade e imaginação em quase

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todas as suas fases. Ela se parece mais à arte do que costumamos acreditar. E eu diria que a forma normal de criatividade na ciência é a metaforização. Contudo, uma vez produzida a metáfora, os caminhos da arte e da ciência divergem. O artista se lançará na busca de uma metáfora nova, enquanto o cientista buscará obter todas as consequências possíveis daquela que criou. A dicotomia entre linguagem metafórica e linguagem literal não é correta nem iluminadora. Toda nossa linguagem é metafórica em maior ou menor grau. As metáforas

no momento em que vemos a ciência como ação humana, os problemas morais se colocam diante de nós. Ela, em todas as suas fases, deve ser realizada conforme parâmetros morais adequados, levando sempre em conta a dignidade das pessoas. A ética da ciência é parte imprescindível de sua filosofia. A ciência deve estar guiada pela prudência. Deve estar orientada pela sensatez, pelo senso comum. As ações científicas devem se inscrever no conjunto da vida humana de modo que conduzam ao que os clássicos chamaram vida boa

“Devemos abandonar o conceito logicista e algorítmico de racionalidade. Ser racional não consiste em seguir um algoritmo ou um método. Por essa via se chega ao absurdo de localizar a racionalidade lá onde é prescindível a presença humana” têm sua própria vida, e ao longo da mesma podem ir se convertendo em linguagem convencional. Assim, portanto, a distinção correta é a que se estabelece entre linguagem metafórica e linguagem convencional. E é uma mera distinção de grau. Isso afeta a ciência. Alguns pensaram que a ciência era o território da linguagem literal, enquanto que a arte ou a metafísica empregavam linguagem metafórica. Não é assim. A ciência, como a arte ou a filosofia, cria metáforas. E as boas metáforas podem ir se convertendo, gradualmente, em convenções. CONTINENTE O âmbito da moral deve ser considerado na Filosofia da Ciência? ALFREDO MARCOS Evidentemente,

ou felicidade. O conceito aristotélico de prudência é imprescindível hoje. Necessitamos dela para evitar o movimento pendular que já nos levou desde as luzes da orgulhosa razão até as sombras do niilismo. Essa tese não é nada original. Autores como Hans-Georg Gadamer ou Hans Jonas já nos haviam alertado, há décadas. CONTINENTE Qual é a atitude mais prudente em relação ao problema da mudança climática? ALFREDO MARCOS O mais urgente é mitigar as pressões ideológicas que rodeiam essa questão. Alguns cientistas chegaram a maquiar dados para pressionar mais a população mediante o alarmismo. É importante evitar o complexo de culpa que está

se instalando. Toda a questão da mudança climática está rodeada de incertezas. Não sabemos a que ritmo está se produzindo, não sabemos com segurança as causas, não sabemos com certeza quais serão suas consequências, nem que resultados terão as medidas que se tomem. Tampouco sabemos como evoluirão nossas tecnologias – as de produção energética e as de recaptação de CO2. Deve-se aceitar que nos movemos em um oceano de incertezas. Nessa situação, o mais prudente é atuar contra a mudança climática, sim, mas sem estrangular o desenvolvimento nem supor uma carga intolerável para a população. Parece aconselhável uma leve redução das emissões de gases de efeito estufa, assim como a ênfase na investigação sobre energias não emissoras. CONTINENTE Pode-se dizer que você propõe uma nova visão humanista da ciência? ALFREDO MARCOS Durante algum tempo se pensou que a vida humana deveria se tornar mais científica. Isso nos daria uma melhor visão do mundo e um maior bem-estar. Em certa medida, é assim, ninguém poderia negar. A ciência nos ensinou muito e melhorou nossas vidas. Mas é certo que o conhecimento científico tem limites próprios, e não serve para abordar questões de grande importância relacionadas com o bem e o mal, com a beleza ou com o sentido da vida, para citar algumas. Não são defeitos da ciência, diz respeito ao bem-estar; a História nos mostra que houve progressos, mas também que foram criados novos problemas. Creio que o balanço é positivo, mas isso não nos deve impedir de ver os problemas gerados pela sua aplicação. Nem todos os problemas do ser humano, epistêmicos e práticos, solucionam-se a partir dela. Ela pode gerar distorções epistêmicas e problemas práticos. Um modo de evitá-los consiste em recordar sempre que a ciência é somente uma mais entre as atividades humanas. Deve dialogar com os demais âmbitos da vida humana e respeitá-los. Em resumo, se a tarefa moderna foi fazer a vida humana mais científica, nossa tarefa como pós-modernos consiste em humanizar a ciência.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

90 ANOS DO RÁDIO

PRETO E BRANCO

Nestas nove décadas de radiodifusão no Brasil, muita programação interessante foi criada, sempre atendendo às mudanças culturais e tecnológicas. A Continente Online explora o assunto, tomando partido de sua multimidialidade. Reunimos alguns áudios históricos e disponibilizamos a radionovela Cicatrizes da paixão, melodrama encenado pelos alunos da UFPE, através do projeto Universitária em cena: radionovela e cidadania, coordenado pela professora Adriana Santana, de quem também publicamos o artigo A volta da radionovela em novos formatos.

Confira alguns dos “tesouros” de Alcir Lacerda registrados no livro Alcir Lacerda – fotografia (Cepe Editora), primeira obra a publicar o trabalho do pernambucano.

Conexão

ETS Assista ao curta Viagem à Lua (1902), de George Méliès, que deu início ao gênero de filmes sobre extraterrestres, que abarca sucessos como ET - o extraterrestre.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

MÚSICA

ACERVO

FOTOGRAFIA

EDUCAÇÃO

Um tipo de rádio online que garimpa raridades da música popular brasileira

Periódicos nacionais de várias épocas são disponibilizados

Espaço para quem é aficcionado por imagens antigas

Variedade de cursos gratuitos na web, com certificado de conclusão

radinha.com.br

hemerotecadigital.bn.br

retronaut.com

coursera.org

Entre tantos sites dedicados à música popular brasileira, o designer carioca Alexandre Porto desenvolveu uma pequeno achado na rede. A Radinha funciona como uma espécie de rádio online, operando via streaming, com foco na MPB e em alguns artistas internacionais. Diferentemente de outras estações já disponíveis na web, o seu ponto forte é o enorme acervo de raridades. Com um sistema de busca e acessibilidade fáceis, o site também faz seleções aleatórias de músicos tanto antigos quanto contemporâneos.

Oferecida pela Fundação Biblioteca Nacional, a Hemeroteca Digital Brasileira é um portal de periódicos nacionais que possibilita o acesso virtual ao seu acervo, como jornais, revistas, anuários, boletins e publicações seriadas. Os títulos incluem desde os primeiros jornais criados no país – Correio Braziliense e a Gazeta do Rio de Janeiro, fundados em 1808 – a jornais extintos, como o Diário Carioca e o Correio da Manhã, que não circulam mais em sua forma impressa. Importantes publicações do século 20 também podem ser consultadas no acervo, como Careta, O Malho, O Gato, Revista da Semana, Klaxon, Revista Verde, Diretrizes.

Os amantes de imagens antigas irão se deliciar com o Retronaut, um site que se dedica ao armazenamento de fotografias históricas, disponibilizando em seu banco de dados um acervo gigantesco de fotos dos últimos 200 anos, separadas por décadas. Registros de moda dos anos 1950, até clicks de celebridades do começo do século são alguns exemplos das galerias do site. Uma curiosidade da página é a seção dedicada à reprodução de imagens clássicas com o uso de bonecos Lego.

Através de parcerias com importantes centros universitários ao redor do globo, como as universidades de Michigan, Princeton e Stanford, o Coursera oferece cursos online e gratuitos, em diferentes áreas , de tecnologia, biologia, música e cinema. O sistema funciona assim: cada curso tem uma determinada data para começar, os estudantes realizam um espécie de pré-matrícula, e aguardam o início das aulas. O site também atua como uma comunidade global, constituindo uma importante ferramenta de interação entre alunos e professores. E com o trunfo de oferecer certificado de conclusão.

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blogs BLCK DMNDS blckdmnds.com

Criado por um grupo restrito de amigos que se conheceram através das mídias sociais, e hoje trabalhando com um vasto número de colaboradores, o BLCK DMNDS produz textos que abrangem toda a área de manifestação artística e cultura.

VAI PRA RUA, MENINO! vaipraruamenino.wordpress.com

PEÇAS QUE SOBREVIVEM NA MEMÓRIA Projeto da Tate Gallery reúne registros de obras de arte que foram destruídas, sacrificadas ou roubadas ao longo da história galleryoflostart.com

Não faltam referências na história da arte de obras que desapareceram, foram

destruídas ou mesmo furtadas. Nem por isso elas deixaram de fazer parte do nosso imaginário. Apostando que alguns dos trabalhos artísticos mais relevantes dos últimos 100 anos foram perdidos, criou-se a Gallery of Lost Art. A seção virtual da Tate Gallery passou a funcionar em julho, reunindo 20 obras. Desde então, a cada semana, o espaço ganha uma nova peça, com um texto informando sobre seu desaparecimento e sua representatividade dentro da trajetória do autor. A inserção de novas obras se encerra este mês. Estão reunidas, ali, histórias como a do Merzbau (de Kurt Schwitters), considerada a primeira instalação da História, que foi destruída em 1943, por um bombardeio das Forças Aliadas, em Hannover, na Alemanha. É possível conhecer tanto a saga de uma pintura de Frida Kahlo, doada aos russos na década de 1950, cujo paradeiro é indefinido, quanto o fim trágico da barraca de acampamento na qual a artista Tracey Emin colocou fotografias de todos os seus amantes, queimada por um incêndio no galpão que reunia parte das obras do colecionador Charles Saatchi, em Londres, no início dos anos 2000. Fazem parte da mostra Lucian Freud, Joan Miró, Otto Dix, Wassily Kandisnky e até Marcel Duchamp (Quem nunca quis saber o fim que levou o seu famoso urinol?). MARIANA OLIVEIRA

Desde o nascimento de seu sobrinho, a socióloga e turismóloga Thaysa teve a ideia de reunir, numa só página, dicas e sugestões de lugares no Recife que promovam atividades interessantes para crianças.

DIBARATO ZORÓ dibaratozoro.blogspot.com.br

“Um acervo de música boa de verdade.” Bem-humorado e bastante irônico, o blog Dibarato Zoró reúne obras de gosto duvidoso para download, que, de certa forma, marcaram a infância, sobretudo de quem viveu durante os anos 1990.

DOOT DOOT GARDEN dootdootgarden.com

Blog do quadrinista norte-americano Craig Thompson, autor das graphic novels Habibi e Retalhos. O site reúne notícias, textos sobre viagens e processos criativos do autor, fotografias e ilustrações.

sites de

revistas online SOMA

NOIZE

IDEAFIXA

soma.am/revista

noize.virgula.uol.com.br

ideafixa.com/revista

Projeto de informação e discussão sobre arte, música e cultura, a Soma lança, a cada dois meses, um nova edição.

Com projeto gráfico atraente e dinâmico, a Noize é uma revista mensal sobre música, também com versão impressa.

Divertida publicação virtual brasileira sobre arte, sendo hoje referência em design, ilustração, fotografia e artes plásticas.

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Portfólio

Bea Feitler

DESIGN BRASILEIRO EM NOVA YORK TEXTO Luiz Arrais

Beatriz Feitler , designer brasileira mais conhecida no exterior do que no Brasil, onde nasceu e viveu até a maioridade, somente agora, depois de 30 anos de sua morte, tem seu trabalho publicado em livro (O design de Bea Feitler, CosacNaify). A iniciativa foi de seu sobrinho, Bruno Feitler, com a colaboração do designer André Stolarski. O livro, apesar de um pouco desconfortável à leitura, conta com um belo projeto gráfico de Elaine Ramos e Gabriela Castro, sendo composto por duas narrativas simultâneas e cruzadas. A primeira apresenta a biografia de Bea; a segunda, um apanhado das caracaterísticas de sua obra. Nascida em 5 de fevereiro de 1938, no Rio de Janeiro, filha dos imigrantes judeus Rudi e Erna, fugitivos das sanções impostas pelos nazistas na Alemanha, Bea teve uma infância tranquila em meio a areais e casarios, numa Ipanema ainda bucólica. Com uma educação requintada, que se revelou na preferência pelas artes e letras, gostava muito de balé e ópera. E, por influência paterna, em 1957, foi estudar na Parsons School of Design, em Nova York, onde decidiu fazer desenho gráfico: "que requer mais cores e formas do que desenho, que é o meu fraco". Depois da graduação, tentou trabalhar na cidade, mas ouviu conselhos de que praticasse mais, e voltou ao Rio. Contratada por Carlos Scliar, diretor de arte da Senhor, chegou a assinar três capas da mítica revista, célebre pelo seleto grupo de colaboradores. Voltou à Big Apple e,

Página anterior 1 HARPER'S BAZAAR

Página dupla em que recurso de corte das imagens parece imantar as modelos

Nestas páginas 2 TÉCNICAS

Uso de fotos e ilustrações, alternadas entre a cor e o preto e branco

3-6 MODA Capas célebres da Harper's Bazaar, dos anos 1960-70, com a colaboração de grandes fotógrafos

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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CON TI NEN TE

Portfólio dessa vez, por sorte, foi convidada a trabalhar por um antigo professor da escola de Design, que havia assumido a direção de arte da Harper's Bazaar, uma das mais antigas e importantes revistas de moda do mundo. Em pouco tempo, com apenas 25 anos, assumiria a coeditoria de arte da publicação com Ruth Ansel, uma dupla que, em sintonia com um núcleo de fotógrafos — Richard Avedon, Hiro, Bill King, Diane Arbus, entre outros — e com liberdade para experimentar e grana para usar, fazia

de tudo para não deixar a revista cair na monotonia. Afinal, eram os anos 1960, década de transformações, ousadias e todo tipo de loucura. Os grafismos geométricos, brincadeiras com perspectivas, texturas, escalas geométricas, uso de cores diferentes, imagens sangradas eram sua marca. Não hesitava em fazer cortes bruscos em fotografias, por conta do uso da dobra (ou espinha) da revista, para um melhor efeito, o que nem sempre agradava aos profissionais de imagens. Aos amigos e colaboradores com quem trabalhou, deixou a imagem de mulher que entrava em passo de ganso na redação, cheia de si, chacoalhando colares e balangandãs

e dizendo: "É assim que tem de ser". Mas nem tudo dura para sempre, e a direção da Harper's começou a reagir aos custos altos e ao baixo retorno da publicação, talvez até por conta de uma nova visão de moda que se impunha: mais simples, individualizada, hippie. Ela deixou a revista nos anos 1970 para trabalhar na Ms, um projeto de publicação temática para o público feminino, chefiada por Glória Steinem, com a redação toda composta por mulheres. Foi a primeira publicação a trazer a suas leitoras temas como assédio sexual no trabalho, violência doméstica, direito ao aborto e ao planejamento familiar, participação política e igualdade de

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7 MS Primeira edição da revista feminista, feita exclusivamente por mulheres 8 THE BEATLES Trabalho de Bea em colaboração com Andy Warhol 9 ROCK'N'ROLL Parceria com o fotógrafo Hiro. A imagem cobre capa e contracapa, recurso incomum à época 10 ROLLING STONE Considerada a melhor capa dos últimos 40 anos, com foto de Annie Leibovitz 11 SENHOR Um dos seus primeiros trabalhos profissionais para a prestigiosa revista carioca

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gênero perante a lei, remuneração justa e homossexualidade. Chegou a trabalhar em uma revista da Editora Abril, Setenta, via malote, com um fotógrafo da Harper's na redação, no Brasil. Mas com os mesmos tipos de diagramação e produção, o que encarecia as matérias e culminou em sua curta trajetória de nove números. Ao mesmo tempo, Bea começou a atuar em dezenas de empreendimentos para editoras, gravadoras, magazines e outros projetos, como o dos cartazes para o Alvin Ailey American Dance Theatre. Fazia as capas dos livros e também o miolo, evitando com isso desvirtuar o visual com uso de fontes e desenhos

diferentes, prática ainda em uso em muitas editoras brasileiras. Um de seus mais belos livros é uma biografia dos Beatles, com capa assinada por Andy Warhol. Outro é sobre Elvis Presley, apenas com a imagem do cantor na capa, sem texto. Recurso usado na capa da Rolling Stone de janeiro de 1981, em foto de Annie Leibovitz. Tirada no dia da morte do beatle, mostra John, nu, com perna sobre Yoko Ono, numa pose para lá de edipiana. Bea optou por usar, acima da imagem, apenas o logo da revista, deixando a capa com cara de homenagem silenciosa. Contratada pela Condé Nast como consultora de Design, fez vários projetos, como o da revista Self e um

mais ambicioso, o da volta da Vanity Fair, revista de comportamento e estilo de vida requintados, que falira na recessão da década de 1930. Não chegou a ver o seu projeto para a Vanity Fair pronto, pois foi acometida por um tipo raro de câncer muscular numa perna, que se transformou em metástase, atingindo os pulmões. Faleceu em abril de 1982, aos 44 anos, na cama de sua mãe. Ainda hoje é perceptível a atitude revolucionária na criação de muitas de suas capas, que se tornaram celébres e são referências de experiência e ousadia gráfica. Seria fundamental que os cursos de Design despertassem para a sua importância na história da arte, da fotografia e do desenho.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

O PASSADO TE CONDENA

Transgressor octagenário Com um perfil típico de “artista maldito” – daqueles predestinados a uma morte prematura –, Little Richard chega aos 80 anos como uma das mais respeitadas e influentes lendas vivas do rock, recebendo, entre outras distinções, a de “8º maior artista da música de todos os tempos”, dada pela revista Rolling Stone. Nascido nos EUA em 5 de dezembro de 1932, Little sempre teve a “corda bamba” como palco principal. Entre outros motivos, por assumir a negritude em meio a intenso racismo (chegou a fazer show em locais que os brancos ficavam de um lado e os de sua cor de outro); homossexual que usava maquiagem num ambiente de machismo radical; e intérprete de um tipo de música que, em tempos de “caça às bruxas”, fazia contundentes críticas ao sistema político e social. Gravada em 1955, Tutti frutti (também sucesso com Elvis Presley) tem em sua letra uma instigante onomatopeia, um dos maiores “gritos” do rock: “A-wopbop-a-loo-wop-a-wop-bam-boom”! O rebelde só capitularia diante de sua formação religiosa, que o levaria a graves conflitos com a homossexualidade e a tornar-se, em 1958, cantor de música gospel e pastor. A gradativa ressurreição para o “rock pauleira” aconteceu pouco tempo depois, na Inglaterra. Algumas de suas apresentações ficariam na história, até por terem, nos shows de abertura, grupos como os Beatles e os Rolling Stones. GILSON OLIVEIRA

CON TI NEN TE

A FRASE

“As boas opiniões não têm valor. Depende de quem as tem.”

Os detentores do patrimônio do escritor William Faulkner (1897-1962) movem uma ação contra a Sony Pictures, alegando que esta não solicitou a permissão de uso de uma citação do livro Requiem for a nun no filme Meia-noite em Paris (2011), de Woody Allen. A frase é dita pelo protagonista Gil Pender (Owen Wilson): “O passado não está morto! Na verdade, nem é mesmo passado. Você sabe quem disse isso? Faulkner. E ele estava certo. E eu o conheci, também. Corri de encontro a ele em um jantar”. No livro, está escrito: “O passado nunca está morto. Ele não é nem mesmo passado”. A Faulkner Literary Rights quer parte do lucro total da comédia (US$148,4 milhões), que é um dos raros filmes de Allen a alcançar sucesso de bilheteria. (Débora Nascimento)

Balaio MA COMME?!

O cineasta Bernardo Bertolucci, 72, que, devido a problemas de saúde, precisa usar cadeira de rodas, denunciou o descaso da prefeitura de Roma com os que têm difuldades de locomoção. “Vivo na cidade proibida”, reclamou, ao lançar seu novo filme, Io e Te. Ele revelou que chegou a ser carregado nos braços por desconhecidos para subir o Capitólio para participar de um casamento. “Quando perguntei se havia uma rampa, me olharam como se eu fosse um marciano”, declarou. O diretor enviou uma carta ao prefeito Gianni Alemanno, recebendo uma “resposta patética e de má-fé” sobre não poder desfigurar um lugar construído por Michelângelo por causa de uma rampa para deficientes. (DN)

QUEEN: MELHOR QUE SEXO Bohemian rhapsody, a emblemática música do Queen, foi apontada como algo melhor do que sexo. A pesquisa examinou a relação entre música, amor e sedução, a partir da opinião de 2 mil britânicos, com idades entre 18 e 91 anos. A lista das “20 canções melhores que o sexo” ainda destaca Sex on fire, do Kings of Leon, e Angels, de Robbie Williams. Já Sexual healing, de Marvin Gaye, ocupa o primeiro lugar no ranking das “20 melhores canções para se animar”. (DN)

Karl Kraus

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CRIATURAS

NÃO HÁ PARAÍSO A música popular aparece em diversos momentos importantes da nossa vida. Por isso é natural que esteja presente também no último deles, o sepultamento. Na Grã-Bretanha, onde essa tradição é respeitada, foi feita uma pesquisa que aponta My way, famosa na voz de Frank Sinatra, como a preferida nos funerais. Segundo a pesquisa, em 30 mil cerimônias, nos últimos 12 meses, para cada hino religioso, são usadas duas canções pop. O ranking das mais pedidas ainda conta com Time to say goodbye (com Sarah Brightman e Andrea Bocelli), na segunda posição; Wind beneath my wings, com Bette Midler, na terceira; e Over the rainbow, com Eva Cassidy, na quarta. Ainda aparecem nas 10 mais, Angels, de Robbie Williams, My heart will go on, com Celine Dion, e Unforgettable, com Nat King Cole. O estudo revela também que, em um 1/4 dos enterros, os sacerdotes recusam algumas músicas por considerá-las inapropriadas. Uma delas é Imagine, de John Lennon, por causa do verso “there is no heaven” (“não há paraíso”). (DN)

ERRO DE IMPRESSÃO Quem lê o livro Nunca vai embora, de Chico Mattoso, talvez não se dê conta de que existe um inseto passeando no meio do texto. A intervenção nada intencional, que veio na tiragem completa, pode ser chamada de acaso ou, mais precisamente, de erro de impressão. Nela, uma formiguinha aparece no caminho da leitura. Sem saber se deveria recusar a tiragem, a Companhia das Letras consultou o escritor da obra, que decidiu manter a “intrusa”, tomando-a por uma espécie de amuleto da publicação. (Gianni Paula de Melo)

MODÉSTIA À PARTE... Normalmente, quem atravessa a Avenida Norte e cruza a esquina com a João de Barros, já avistou duas plaquinhas fixadas no primeiro andar do prédio Bernardino Soares: “Conserta-se jeans com perfeição”. O letreiro, com tipografia simples, manual, traz uma dose de megalomania que condensa um sentimento comum à cultura pernambucana. Não raramente, encontramos isso no comércio popular, em empreendimentos como “O Rei das Coxinhas”. O engraçado é que o dono do negócio, Maurício, também traduz essa impressão; é igualmente popular e aristocrático – um alfaiate, com modos de lorde, que costura jeans a preços populares. (André Valença)

Cássia Eller

Por William Medeiros CONTINENTE DEZEMBRO 2012 | 21

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Quando ele chegou, foi anunciado como “uma maravilha da eletricidade” e logo alçado à mania. Seu domínio foi questionado pela TV, ainda que se tenha mantido o mais popular dos veículos. E hoje, qual o seu papel? TEXTO Paulo Carvalho

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ESPECIAL

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O rádio chegou a Pernambuco como “uma maravilha da eletricidade”. Um aparelho de funcionamento misterioso, mesmo para quem já tinha ouvido falar de ondas eletromagnéticas. O jornalista e político pernambucano Zilde Maranhão narra, em depoimento publicado no Diario de Pernambuco, o espanto de uma primeira audição. O ano era 1925, Zilde estava na casa de seu avô paterno quando ligaram um aparelho ao qual foi apresentado por “radiotelefônico”. O dispositivo chiava, dava estouros e levou muito tempo para ser ajustado. “Entre os estouros e o chiado – que meu avô disse ser consequência da estática –, uma música que fiquei sabendo ser parte da opereta A viúva alegre, que o Rádio Clube de Pernambuco estava irradiando.” O texto de Zilde integra um caderno especial sobre a Rádio Clube, veiculado originalmente no dia 19 de julho de 1984 e recentemente compilado em Raízes do rádio, livro do pesquisador e radialista Luiz Maranhão Filho. A Rádio Clube de Pernambuco (na época, escrevia-se “Club”) foi a primeira emissora a funcionar em solo nacional, diz a pesquisa de Luiz Maranhão Filho, contestando a consagração de Roquette Pinto pela criação da Rádio Sociedade, do Rio de Janeiro, em 1924. Não aceita também a data de 1922, quando, em comemoração ao primeiro Centenário da Independência, seria realizada a primeira transmissão oficial, na presença do presidente Epitácio Pessoa. Documentos mostram que a fundação jurídica da Rádio Clube é de 6 de abril de 1919. “A transmissão reproduzia discos trazidos da Europa ou, então, a música tocada ao vivo, muitas vezes pelas professoras de piano do Recife e região”, lembra Luiz Maranhão Filho, em entrevista à Continente. Mas, naquele tempo, possuir um rádio em casa era um privilégio pelo qual cada família pagava aos Correios uma taxa anual de 20 mil réis. O dinheiro da subvenção jamais chegaria aos cofres da Rádio Clube. Como recorda Antônio Camelo, ex-diretor da Rádio Clube, em texto também publicado no caderno

O profissional do microfone era chamado de speaker, até que surgiu, em Pernambuco, o termo locutor especial do Diario de Pernambuco, engana-se quem imagina uma rádio tecnicamente estruturada, com transmissões regulares. Até o final do ano de 1920, em nenhuma parte do mundo havia transmissões radiofônicas desse tipo. Empresas como as que conhecemos hoje em dia só apareceriam em 1926, quando a publicidade passa a integrar a receita. “Augusto Pereira, Carlos Rios, Raymond e Jorge Gatis, João Pereira de Lira, Abelardo do Rego Barros, Alexandre Braga e demais pioneiros

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pernambucanos devotaram-se ao rádio sem qualquer objetivo econômico”, observa Camelo. Enquanto os profissionais do microfone eram designados pelo estrangeirismo speaker, Abílio de Castro, então professor de português do Ginásio Pernambucano, propôs a palavra locutor, de origem latina, como o melhor termo para a profissão. O ano era 1930 e ele teve que brigar com Mario Melo, que preferia – ou, por gozação, dizia que preferia – o ambíguo termo falador. De acordo com Luiz Maranhão Filho, os pernambucanos mandaram uma carta para César Ladeira e Celso Guimarães, speakers do Rio de Janeiro, que aceitaram o novo nome e o difundiram mais amplamente. Os locutores eram a alma da estação, o carro-chefe, sua marca registrada. E não era fácil ingressar na profissão. Além da dicção perfeita

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CON ESPECIAL TI NEN TE FOTO: REPRODUÇÃO

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e domínio de línguas estrangeiras, os candidatos deveriam ter muita erudição e desenvoltura para improvisar sobre qualquer tema. No mesmo especial do Diario, Severino Barbosa, produtor da Rádio Clube, recordaria que, já antes de 1930, os concursos para locutor da Rádio Clube apavoravam os candidatos – a maioria, acadêmicos. “Mantendo média de reprovação, às vezes chegando aos 100%, a prova de dicção, de caráter eliminatório, tornou-se o terror dos candidatos, em face da exigência de frases complicadas como ‘a aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha’ e outras, a serem repetidas 10 vezes, sem que se permitisse a menor falha de pronúncia.” O Recife também sediaria outro evento inaugural – a primeira transmissão nacional de FM, em 1938, durante o Congresso Eucarístico

Nos anos 1930, as emissoras de rádio chegaram a manter três novelas no ar, assim como acontece hoje com as TVs Nacional. Na ocasião, o enviado do sumo pontífice, cardeal Eugenio Pacelli, futuro Papa Pio XII, teria sua procissão pelo Rio Capibaribe e ruas do centro transmitida por aparelhos criados pelo alemão Otto Shiller. Primeiro técnico da Rádio Clube, Shiller contratou dois estivadores para acompanhar o cardeal. Um levava uma bateria de caminhão nas costas e o outro o transmissor. Para que não se afastassem um do outro, no meio da procissão, atou-os com uma algema, tomada

de empréstimo de um policial. A voz era de José Renato, o primeiro repórter de transmissão externa. Shiller lembra, em depoimento para o Projeto Memória, produzido por Luiz Maranhão Filho, que o transmissor profissional de FM, fabricado pela americana General Eletric, só chegaria a Pernambuco depois da Segunda Guerra. O pai do pesquisador, Luiz Maranhão, também contribuiu para o vanguardismo radiofônico do estado. É de sua autoria Sinhá-moça, a primeira história seriada do Brasil adaptada para o rádio, do romance Senhora de engenho, do pernambucano Mário Sette. A história foi apresentada em sete capítulos, transmitidos em 1938, depois do Congresso Eucarístico Nacional. Uma das estrelas foi Mercedes del Prado. Era o começo de uma série de trabalhos de sucesso em que “galãs e mocinhas se amavam sem jamais falar de sexo”.

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TIAGO BARROS

Página anterior 1 AUDITÓRIO

Superproduções caracterizaram os anos de ouro do rádio, entre 1930 e 1950

Nestas páginas 2 DIVAS

As cantoras Emilinha Borba e Mary Gonçalves conquistaram milhares de ouvintes

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PESQUISADOR

Luiz Maranhão Filho é um dos responsáveis pela consolidação da história do rádio em Pernambuco

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Pela Rádio Nacional, iriam ao ar textos de Ibsen, Shakespeare, Eugene O’Neill, Tennessee Williams, Garcia Lorca, Brecht, Pirandello, e não demorou para que a Rádio Clube de Pernambuco tivesse três novelas diárias, uma de aventuras, à tarde, outra religiosa, após a ave-maria, e uma à noite, com peças do grande teatro. Em 1939, o país tinha 357.921 aparelhos de recepção. Sucesso absoluto.

RADIOMANIA

A Rádio Clube dominou as transmissões em Pernambuco até a criação da Rádio Jornal do Commercio, em 1948. Em programa transmitido para a Inglaterra, a professora Janete Svaitom pronunciava o famoso slogan da emissora: “Pernambuco speaking to the world.” As ondas curtas e médias alcançavam todo o mundo e as vozes de Valdemar de Oliveira, Mário Sette, Brivaldo Franklin, Edson Nery da Fonseca e Fernando Castelão viraram referência. O jornalista e escritor Jorge José Barros de Santana, autor do livro O rádio pernambucano por quem o viu crescer, conta em entrevista à Continente que, nos idos de 1940, o rádio local oferecia programação mais qualitativa, composta de concertos musicais, com a participação de figuras da sociedade, adaptação de contos literários e crônicas

escritas por intelectuais. Já a década de 1950 registraria certa expansão da dramaturgia. A partir dos anos 1930, a música popular teve presença maior e os programas de auditório com seus animadores e atrações ganharam mais espaço. Era a vez da “radiomania”. Nos auditórios de rádios do Sudeste e do Nordeste, as jovens se acotovelavam para ver as estrelas: Cauby Peixoto, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, Dorival Caymmi, Dick Farney, Ivon Curi, Marlene, Emilinha, Jackson do Pandeiro e Almira, César de Alencar, Jorge Goulart, Ângela Maria, Carmélia Alves, Nora Ney e Isaurinha Garcia, entre outras vozes que disputavam títulos de reis, rainhas, príncipes e princesas, além de ditar moda e vender produtos. Luiz Maranhão Filho recorda que as fãs eram tão irreverentes e bagunceiras, que, para designá-las, o cronista Nestor de Holanda criou o termo macacas de auditório. O rádio foi o grande propulsor da indústria fonográfica. Na década de 1930 e início da 1940, a maior expressão feminina do rádio pernambucano era Aline Branco. A jovem ingressou na Rádio Clube aos 15 anos e tornou-se a estrela principal do programa A Hora Azul das Senhorinhas, veiculado no horário da tarde. Por aqui, também seriam descobertos os talentos de Clovis Paiva, Ernane Dantes,

Luiz Bandeira, Maria Celeste, Irmãs Parísio, Dorinha Peixoto e do menino prodígio Paulo Molin. Abelardo Barbosa, o Chacrinha, também começaria sua carreira na Rádio Clube de Pernambuco, no final de 1939. Era estudante de Medicina, quando foi convidado para ser locutor da emissora. Como ressalta Jorge Santana, em 1960, a capital pernambucana ganharia suas duas primeiras emissoras de televisão, o que geraria uma crise para as rádios locais. Mas, enquanto se perdia audiência, aumentavam os experimentos na forma e nos conteúdos. “A plataforma AM introduziu mais música, programas com sorteios e prêmios, radiojornalismo mais compactado.” Já o sistema FM proporcionaria outro choque aos gestores das AM. A qualidade do som conquistaria a maioria dos seus ouvintes. Contudo, a popularização absoluta dos pequenos aparelhos de recepção preservaria o espaço do rádio na produção e consumo de informações, que parece ter sido sua principal vocação e espinha dorsal durante quase um século. “É justamente nesse ponto em que o rádio supera a força da imagem. A televisão e o jornal perdem porque não podem estar com a mesma velocidade que o rádio nas mais distantes e variadas regiões”, compara Jorge Santana.

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CON ESPECIAL TI NEN TE

HÁBITO O rádio como parte da vida

4 GERALDO FREIRE Radialista pensa em jornalismo 24 horas por dia 5 GRAÇA ARAÚJO Jornalista tornouse um dos ícones do rádio e da TV pernambucana

Radialistas e ouvintes dão testemunho sobre o que faz desse meio um lugar para se informar, ajudar os outros e conhecer pessoas

6 BANDEIRA 2 Gino César comanda programa de maior audiência da Rádio Jornal

TEXTO Paulo Carvalho FOTOS Leo Caldas

Naquela tarde de segunda-feira, antes

de receber a reportagem da Continente em seu confortável apartamento no Bairro da Madalena, o ouvinte Paulo Henrique do Cordeiro, 41 anos, realizaria mais uma interferência por telefone no programa de Ednaldo Santos, na Rádio Jornal (AM 780). Dessa vez, o assunto era a desapropriação judicial da Vila Oliveira, no Bairro do Pina. As palavras do servidor público seguiram no ar para os mais de 30 mil ouvintes da faixa de horário. Há pelo menos 15 anos, é assim. Paulo Henrique participa diariamente de programas de emissoras do Recife via telefone. Tem predileção pela Rádio Jornal, em que opina, critica, denuncia, protegido por um codinome comum, mas marcante. Segundo o “ouvinte-celebridade”, o nome do seu personagem é conhecido “por quatro entre cinco taxistas”. “Através de uma simples ligação telefônica, consigo passar uma mensagem, desenvolver uma visão crítica.” A observação é feita sem atropelos e com a voz grave de quem já pensou, na juventude, em se tornar também locutor. Paulo Henrique chegou a iniciar um curso na área, mas se formou em Administração de Empresas. Tem cerca de oito aparelhos de rádio em casa. Um em cada cômodo. “As pessoas precisam se posicionar publicamente, cobrar posições não apenas do poder público, mas também das corporações.” O último levantamento a respeito da audiência, realizado entre julho

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e setembro de 2012, mostra o perfil dos ouvintes da emissora à qual esse administrador participativo se filia: 28% fazem parte da classe A e B; 49% são da classe C, os demais, das classes D e E.

VISÃO DE DENTRO

Antes de Ednaldo Santos entrar no ar, às 16h, a apresentadora Graça Araújo comanda o programa Rádio Livre. Nele, dedica uma hora à revista eletrônica Consultório de Graça, em que médicos e profissionais de saúde são entrevistados a respeito de um tema. O programa tem quase 30% do share de audiência. Graça está há 12 anos à frente da atração. Chegou à emissora depois de passar pela TV Manchete e TV Pernambuco. Na TV Jornal, pertencente ao mesmo grupo da emissora, é âncora de um telejornal, ao meio-dia. “Quando fui convidada, achava que não ia dar certo. O ambiente, em geral, é muito machista. Lembro que, quando entrei, só tinha eu de mulher na cabine.” Hoje, 61,25% dos ouvintes da Rádio Jornal são homens. Graça nasceu em Itambé, interior de Pernambuco. O pai faleceu quando ela tinha menos de um ano e a família mudou-se para São Paulo. Foi uma estudante pobre, de escolas públicas. Formou-se em Jornalismo em 1983, sem estagiar na área, porque sustentava a família com o salário que recebia como gerente numa rede de lojas. “Entendo tudo de vender coisas.” Cursou a Universidade Alcântara Machado, no Bairro do Morumbi, São Paulo. Sonhava em fazer parte da Rádio Jovem Pan. “Eles faziam um jornalismo espetacular. Eu queria trabalhar lá. Mas, quando me formei, pensei: ‘Não posso bater à porta da Jovem Pan, se não tenho sequer um estágio’.” Acabou vindo para o Recife com a intenção de estagiar na Rádio Clube e depois retornar. Trabalhou seis meses na Rádio Transamérica, que praticava o que se chama, pejorativamente, no meio jornalístico, de “gilete press” (que significa “cortar” material publicado em outros veículos, dele apropriando-se sem citar a fonte, na maioria das vezes). “As FMs subestimavam muito o público, não investiam no jornalismo.” Depois da experiência, foi para a Rádio Clube, fazer jornalismo de rua e de serviço, que considera a principal vocação do rádio. Nunca mais trabalhou em São Paulo.

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“A televisão é muito egoísta. Pouco interage e pouco se interessa pelas novas ferramentas de interação. Já o rádio tem todo tempo para atender o ouvinte”, compara, com a autoridade de quem comanda programas diários nos dois veículos. “Você não tem nem que pentear o cabelo para fazer o programa de rádio. Aliás, não tinha, porque agora colocaram câmeras no estúdio, também. Mas o fato é que a televisão exige que você passe um tempo pensando na forma, em detrimento do conteúdo. Ao passo que no rádio você fica tranquilo, só focado no conteúdo. Todo o resto não interessa. É você e o microfone.” Para a apresentadora, a internet e o celular deixaram o rádio mais ágil. “E olha que ele já era o meio de

comunicação mais rápido antes de tudo isso. Nenhuma mídia moderna ultrapassou essa potencialidade, pelo contrário, só aumentou sua agilidade”. No programa da tarde em que nos recebeu, um ouvinte mandara um e-mail da Espanha para pedir aconselhamentos médicos. Graça diz que não é “louca por rádio”, na mesma intensidade que seu colega Geraldo Freire, que apresenta a Supermanhã, da mesma emissora. Mas, durante a semana, escuta rádio em todos os lugares. “Meu terapeuta até recomendou que eu ouvisse um pouco menos.” Quando está cansada da rotina, a apresentadora diz pensar nos ouvintes – e também vê o reflexo do trabalho diário com profissionais de saúde na

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CON ESPECIAL TI NEN TE própria vida. “Alguns ligam para o Consultório (de Graça) e dizem que não têm acesso a médico, plano de saúde, nada. O rádio é importante na vida dessas pessoas. Para mim também é. Me deu muita informação.”

EM EXTINÇÃO

Na sala ao lado, de chapéu marrom de abas largas, dois anéis em cada mão e bem-vestido, encontramos Gino César, “o repórter do Bandeira 2”, como diz o slogan. Mais de 20 anos de Rádio Jornal (“Mas não me venha perguntando datas, eu não me lembro de nada. Nada mesmo”, antecipa-se à entrevista). Gino apresenta o Plantão de Polícia e o Bandeira 2, pela manhã, e uma segunda edição desse mesmo programa policial ao meio-dia. Tem 71% do share pela manhã. Mais de 162 mil ouvintes diários. Ao meio-dia, tem mais de 37 mil. Em números, é a maior audiência da emissora. Nasceu em Rio Formoso, em março de 1936. Com 11 anos, veio para o Recife, onde trabalhou no comércio. Em 1954, quando estava em casa, ouviu a Rádio Clube fazer uma convocatória para inscrições num curso de radioator. A chamada falava de Torres Filho, radialista que tinha criado uma escolinha de radioteatro. Gino se inscreveu e participou da escola. Ficou três meses interpretando as historinhas que Torres Filho criava. Foi aprovado e, em 1955, passou para o elenco da rádio. Em fevereiro, assinou o primeiro contrato como radioator. Atuava em novelas de rádio escritas por autores do Sudeste, como Mário Lago. “Com o tempo, passei a ser galã. Durante muitos anos, fiquei também fazendo programas humorísticos. Mas, quando chegou a era da televisão, o rádio praticamente acabou. Os programas de auditório, novelas e humorísticos foram para o outro meio.” Na época, com a carteira assinada como radioator na Rádio Clube, Gino pediu a Ivan Lima, diretor da emissora, para colocá-lo também como motorista na Rádio Tamandaré, que pertencia ao mesmo grupo. Era um segundo salário e a chance de conviver com o departamento esportivo da outra rádio, viajar e acompanhar os jogos de futebol mais próximos do Recife. Num carnaval, foi mandado ao Hospital da Restauração

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“Houve um tempo em que o rádio era tudo. Do começo ao fim. Era o correio, o jornal e a vitrola” Geraldo Freire

para fazer pequenas matérias. Agradou. Passou para o departamento de jornalismo, no qual marcaria a história do rádio em Pernambuco, com sua entonação musicada, inconfundível. “Criei um estilo para não parecer com ninguém e para que ninguém pudesse ficar parecido comigo.” O nome Bandeira 2 é uma referência aos assaltos a motoristas de táxi. Em função do programa, Gino já sofreu alguns atentados. Num deles, deram tiros na frente de sua casa, no Bairro da Imbiribeira. “Meu filho, Paulo Ricardo, aprendeu comigo a ser uma pessoa fria. Quando ligavam com ameaças, ele dizia: ‘Não precisa telefonar aqui pra casa, não. Mate meu pai e depois a polícia nos avisa’.” Segundo Gino, as tentativas

de intimidação eram de “policiais policiáveis”. “Desses, eu sofri ameaças, atentados, mas jamais de bandido. Bandido não ameaça.” Gino César, quase 60 anos de carreira, e o ouvinte Paulo Henrique do Cordeiro compartilham a mesma visão sobre o futuro do rádio. A despeito das novas tecnologias que permitem o acesso via computadores pessoais, tablets e telefones celulares, ambos pensam que falta um determinante menos técnico: o estímulo à cultura do rádio entre os mais jovens. Mais de 77% da audiência da Rádio Jornal é formada por ouvintes com mais de 35 anos. “Nós, radialistas, somos uma classe em extinção. Digo todo dia aos meus colegas. Não há mais nenhuma perspectiva”, lamenta Gino.

24 HORAS NO AR

Geraldo Freire é menos pessimista. O radialista, que recebeu a nossa reportagem em sua agência de publicidade, no Bairro do Prado, pensa o rádio como um meio de comunicação aberto à convergência. Mais novo e único filho homem entre duas irmãs,

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7 ALEX LUCENA Interação do radialista com ouvintes já evitou até suicídio

Geraldo chegou ao Recife vindo de Mimoso, distrito de Pesqueira, depois da morte da mãe, quando tinha 5 anos. Não sabe exatamente o ano em que nasceu. Oficialmente, é de junho de 1949. Mas, quando tinha entre 9 e 10 anos, uma irmã mudou seu registro para 14 anos. Era a condição para ter uma carteira assinada. Trabalhou em várias ocupações, entre elas, como empregado doméstico. Mas foi entregando cartas, em 1964, que o rádio atravessou o seu caminho. “Cheguei à casa de uma senhora, ali em Salgadinho, para entregar uma carta e ela falou que o amigo do marido dela gostaria de ter alguém para mandados na sua agência de propagandas. Esse amigo do marido era um jornalista chamado Hermes de Melo, que me contratou para ser contínuo.” O publicitário tinha comprado um horário na Rádio Capibaribe e a função de Geraldo era levar o gravador e o transformador, que pesavam mais de 20 kg, para as reportagens. “Eu carregava aquela parafernália, ligava e pensava: ‘qualquer pessoa faz essa merda’.” Numa ocasião em que

Hermes de Melo faltou, Geraldo fez o trabalho e foi bem-recebido. Passou a apresentar, ainda sem a carteira assinada, um programa aos domingos. A entrada oficial na profissão só aconteceria um pouco mais tarde. “Naquele tempo, não existia curso de Radialismo e as pessoas entravam via concurso interno. Juntavam 10 caras, testavam voz, leitura. Fui reprovado no primeiro, no segundo, no terceiro, em 10. Mas, um dia, em 1968, entrei. Fui para a Rádio Repórter, que era da Globo, e assinaram minha carteira.” Na Rádio Repórter, fez transmissões do campo de futebol durante “pelo menos uns 15 anos sem férias e sem folga”. Entre os anos 1970 e 1980, trabalhou na TV Jornal fazendo locução de cabine e futebol. “Quando me disseram que eu ia ser transferido da televisão para o rádio, me apavorei. Era o tempo das grandes vozes, dos grandes locutores e eu, um camelô. Tinha vindo de uma rádio modesta, a Capibaribe, e, depois, a Rádio Repórter. Rádio Jornal do Commercio? Era como você ir para Roma.” “Empiricamente, fui analisando os caras que estavam no ar, fortões, como Geraldo Liberal e Tavares Maciel. Cheguei à conclusão de que eles falavam muito e pensei em fazer um programa falando o mínimo, pouco mesmo. Falar é correr riscos.” Geraldo Freire peregrinou por muitas rádios. “Fui rolando.” Rádio Relógio, Rádio Jornal (está pela terceira vez na emissora), Rádio Olinda (quatro passagens), Rádio Capibaribe (duas passagens), Rádio Clube. Segundo os cálculos do radialista, ficou em primeiro lugar em muitas delas. Só na Rádio Jornal, é um dos recordistas de audiência há 22 anos. Seu horário, hoje, atinge 50% do share e picos de mais de 150 mil ouvintes. Para Geraldo, o rádio não é arcaico, apenas teve que aprender a conviver com outros espaços e meios. “Houve um tempo em que o rádio era tudo. Do começo ao fim. Era o correio – por ele

você mandava o recado. Era o jornal – por ele você sabia das notícias. Era a vitrola – por ele você ouvia as músicas. Daí que, hoje, as pessoas olhem para ele como sendo um dinossauro. Mas, como canal de convergência, o rádio é o meio mais fácil para você desaguar nele.” O apresentador conta que “cansou de viajar” para São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, com a intenção de ouvir o que as emissoras de lá andavam fazendo. Hoje, escuta emissoras do México, Argentina, Itália, pela internet e pelo aparelho celular. Mas não aceita a câmera que colocaram no estúdio e transmite imagens da cabine em streaming. “É uma bobagem. O rádio envergonhado. Querendo ser televisão, o que não vai ser nunca. Eu nem olho para câmera. Sei exatamente o mal que ela me faz, porque, no fundo, você trabalha para voyeurs que ficam se masturbando para você.” Pai de quatro filhos, mudou-se de Jardim Atlântico, Olinda, para o Bairro do Espinheiro. Queria se assegurar de que não chegaria atrasado, nunca. “Trabalhei todo esse tempo sem nunca ter faltado, sem nunca ter chegado menos de meia hora antes de entrar no ar.” Quando adoeceu, tomou providências para ser substituído a tempo. “Achava até que um dia ganharia hora extra por essa antecipação diária, mas nunca ganhei. É só para o meu sofrimento pessoal.” Tanto amor pela profissão é sintetizada pela coleção de receptores de “rádios diferentes” e antigos, alguns comprados, outros oferecidos pelos amigos. Mas o prazer de ouvir rádio também vem junto com sofrimento. Esta entrevista chegou a ser adiada algumas vezes, porque o apresentador estava adoentado. “Inventaram uns boatos de que eu teria infartado. Mas estou doente por não dormir. Eu me deito e fico pensando em notícia. Fico me perguntando o que a Globo News está veiculando, o que a Jovem Pan está transmitindo às 2h da madrugada, o que a CBN está fazendo. Quando durmo três horas numa noite, eu dormi muito. É uma tensão filha da puta. É péssimo, porque quem dorme pouco pensa pouco.” A voz aveludada de Alex Lucena comanda há 12 anos o programa Momentos de Amor, que vai ao ar todos os

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dias da semana, às 20h, na Rádio Recife (FM 97,5). O radialista de 42 anos (“mas tem que falar mesmo?”) começou a carreira numa rádio comunitária de Jardim Paulista. Tinha 17 anos e decidiu estudar para adquirir a DRT. Formouse em Radialismo no IFPE e, hoje, faz questão de lembrar que, em rádio, “não basta ter apenas uma voz bonitinha”. Depois de formado, o início foi como operador de áudio da extinta Rádio Caetés FM. O diretor Pedro Vilela propôs um programa romântico e Alex Lucena aceitou. “Me espelhei muito em Ari Corione, que apresentava um programa chamado Love songs, na década de 1980, na também extinta Rádio Cidade. Algumas coisinhas eu até roubei dele. Hoje tenho minha linha, meu segmento, quadros que deram certo, outros, nem tanto.” O apresentador se diz “realizado nesse segmento”. Cria quadros constantemente e testa a popularidade com os ouvintes. Alguns são sugestões da própria audiência. “Tinha a mania de mandar beijos para os ouvintes e, geralmente, colocava um estalo no ar. Aí, um deles disse, certa vez: ‘Manda

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Para Alex Lucena, não basta ter apenas uma “voz bonitinha” para trabalhar em rádio, é preciso ter vocação e dinamismo um BB, beijinho com barulhinho, pra mim. Pegou. Hoje, os ouvintes pedem simplesmente um BB’.” Segundo Alex, os quadros são mantidos por um determinado tempo no ar e depois substituídos por outros, “para não se tornar cansativo”. “As pessoas acham que, por ser um programa romântico, ele tem que ser algo paradinho, na linha empostada do ‘olá, tudo bem’. Eu já não vejo dessa forma. Brincamos muito com a imaginação.” Um dos quadros de maior sucesso é o da letra traduzida. “Uso ‘cacos’, como se eu tivesse recitando um texto em cima da música. Tento viver aquele sentimento.” Mas nem sempre a interpretação deu certo. Alex

conta que, no começo da carreira, não entendia muito bem o inglês e fez uma tradução sem pé nem cabeça de uma música romântica. Nas cinco horas em que está no ar, o radialista também manda textos de motivação e valorização à vida. Num desses momentos de mensagens, ele conta que, do outro lado, estava uma ouvinte em meio a uma tentativa de suicídio. Quando escutou a voz de Alex, ligou para o hospital e pediu socorro. “Ela diz que sou o anjo salvador da sua vida. Até hoje somos amigos.”

VOU DE TÁXI

Não é à toa que Paulo Henrique do Cordeiro fez o levantamento pessoal de sua audiência entre os taxistas. A profissão une duas coisas importantes para o rádio de serviço. Em primeiro lugar, os taxistas têm acesso constante ao rádio e fazem uso de suas informações para escolher itinerários. Em segundo, conhecem a cidade como a palma da mão. José Francisco da Silva, também conhecido como Passarinho TX, é um desses ouvintes. Mas é também um pouco mais que isso. Seu

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8 PASSARINHO TX Motorista manda informações, das ruas, para as rádios 9 ZEZÉ TAXISTA Ouvinte costuma participar ao vivo de programas

táxi funciona como um estúdio móvel, de onde o motorista de 50 anos manda informações diárias para programas da Rádio Clube e da Rádio Jornal. Passarinho TX recebeu a reportagem da Continente em sua casa, no Bairro de Afogados. O carro, um Siena ano 2011, sofrera uma batida e estava na seguradora há dois dias. O apelido de Passarinho veio da cidade natal, Limoeiro, onde escutava a Rádio Difusora (hoje pertencente ao mesmo grupo da Rádio Jornal): quando era criança, soltava os passarinhos dos vizinhos. “Não gostava de ver ninguém preso.” Hoje, denuncia por telefone as calamidades que vê na rua. Trabalha no ponto do Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, no Bairro de Joana Bezerra. Mora há 20 anos em Afogados, 12 deles dedicados à atividade de taxista. Quando o encontramos, preparava-se para ir a uma lan house próxima, assistir aos programas de Graça Araújo e de Ednaldo Santos, ao vivo, pelo site da emissora. “É o mesmo que na TV.” Filho de policial aposentado, Passarinho diz não ter medo de

confusão. Fala dos guardas da Companhia de Trânsito e Transporte Urbano, dos canos de água e esgoto estourados (um deles foi na própria rua), dos buracos e do tráfego cada vez mais travado. As reclamações surtem efeito. Segundo o taxista, não é raro que, no mesmo dia da intervenção no ar, os órgãos públicos façam os reparos reclamados por ele. Em 2011, quando uma nova onda de boatos sobre o arrombamento de Tapacurá circulou pela cidade, Passarinho TX estava nas ruas. Ligou para a rádio a fim de ajudar a desmenti-los. “Na hora do desespero, as pessoas estão na rua, e não na frente da TV.” Passarinho é amigo de Zezé Taxista, outra ouvinte que costuma participar ao vivo. Zezé é Maria José de Lima Cavalcanti, pesqueirense, 51 anos, mãe de um casal de filhos. Trabalha há 20 anos como taxista e traz, da infância, a paixão pelo rádio. Quando criança, morava atrás da antiga Rádio Difusora de Pesqueira. “Vivia dentro da rádio. Fui criada lá. Minha mãe me chamava de macaca de auditório.” Acompanhava todos os shows e festas da casa, apresentações de artistas como Sidney Magal e Sérgio Reis. O espaço ao vivo, geralmente em programas da Rádio Jornal, é conseguido com obstinação e dois celulares, ligando para emissora simultaneamente, para aumentar as chances de ser atendida. Zezé, Passarinho e Paulo Henrique do Cordeiro não possuem um contato direto com as rádios. Tentam pela linha comum, sempre ocupada. Às vezes, Zezé tem que desligar o rádio do táxi. Alguns passageiros não gostam. “Fico agoniada.” Mas, com jeito e paciência, também acontece de Zezé mudar o hábito dos clientes. “Tenho uma passageira que não suportava o programa de Geraldo Freire. Ela achava o apresentador muito machista. Dizia: ‘Eu odeio esse homem’. Hoje, ela já entra no carro perguntando com quem

é o debate do programa.” Porém, quando Geraldo “está com as coisas dele” ou sabe que o tema do debate vai descambar em algum assunto mais picante, não tem jeito. Zezé desliga o rádio para não perder a cliente.

ÍDOLOS DO INÍCIO

Ao lado de Aderval Barros e Rubem Souza, de segunda a sexta, às 13h, o narrador de futebol e comentarista Luciano Duarte, 68 anos, comanda o debate esportivo A Verdade É, na Rádio Olinda (AM 1030). O apresentador viu nascer seu gosto pelo futebol via ondas de rádio. Da cidade de Santa Inês, nas proximidades de Jequié, sudoeste da Bahia, acompanhava as partidas do Botafogo de Garrincha e Didi. Gostava mais de ouvir as informações sobre o Rio de Janeiro, via Rádio Nacional, que “sintonizava muito bem na região”, do que propriamente sobre Salvador. Assim, apaixonou-se pelo Botafogo antes do Vitória, que é o seu time na Bahia. Na cidade de Santa Inês, havia três serviços de alto-falantes. O da igreja, um pertencente ao comerciante chamado Seu Nascimento, e o da prefeitura. Neles, começou a trabalhar e a tomar gosto pela profissão. Na época, o prefeito da cidade de Santa Inês era inimigo político de seu pai, mas isso não foi um impedimento. Mais tarde, mudou-se para Salvador, onde foi vendedor de jornal, vendedor de picolé, engraxate. De Salvador foi para o Rio de Janeiro, trabalhar nas Lojas Americanas da Rua Uruguaiana, como conferente. Perto, na Rua Buenos Aires, estava a Rádio Vera Cruz. Na hora do almoço, ia para a emissora, na qual foi fazendo amizades, em especial com os radialistas de futebol. Passou a integrar a equipe e, certa vez, um colega faltou; entrou no ar pela primeira vez, substituindo-o. Tinha 20 anos. A primeira transmissão esportiva foi no jogo Flamengo x Olaria, no qual também estreava como repórter Kléber Leite, depois presidente do Flamengo. Acompanhava os clubes pernambucanos que jogavam no Rio de Janeiro e, num desses encontros, recebeu o convite para trabalhar no estado. Chegou ao Recife para ser locutor da Rádio Repórter, que

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funcionava na Rua da Concórdia. Luciano Duarte conta que ouvia muito a Rádio Nacional, na qual tinha como referência os locutores Jorge Curi e Oswaldo Moreira. Também se espelhou em Paulo Gracindo, César de Alencar, Jair de Taumaturgo, Euclides Duarte, Haroldo de Andrade. Grandes nomes do rádio brasileiro, em especial do realizado no Rio de Janeiro, nos estúdios da já citada Rádio Nacional, da Rádio Mayrink Veiga, da Tupi e, posteriormente, da Rádio Globo. “Eles tinham o dom da oratória, sabiam como se dirigir ao ouvinte e, muitas vezes, a falta de recursos estimulava a criatividade do locutor. Eram levadas ao ar histórias até inventadas, mas de uma invenção que não era prejudicial a ninguém. Uma mentira gostosa.” Da Repórter, foi para a Rádio Jornal do Commercio, onde trabalhou por 16 anos, a convite de Walter Spencer. Tentou a vida com o empreendimento de um estúdio de gravação. “Não me levou a nada ou quase nada.” Tornouse superintendente da Rádio Clube, e mudou para a Rádio Olinda, na qual trabalha há mais de 16 anos. Colega de Luciano Duarte na Rádio Olinda, em que é diretorexecutivo, Aderval Barros, 54 anos, recebeu a Continente no coro da

O rádio, como parte do ambiente, sempre impregnou a vida das pessoas, por estar em toda parte, graças ao aparelho portátil capela em que funciona a emissora (a rádio pertence a três padres da Arquidiocese de Olinda e Recife). O Implacável, como é conhecido, nasceu em Orobó, município localizado no Planalto da Borborema, mas foi criado em Peixinhos, onde morou por 46 anos. Tem 34 anos de profissão. Aderval conta que, quando criança, era “torcedor de pé de rádio”, porque não tinha dinheiro para pagar o ingresso dos jogos. Brincava de narrador, quando tinha uns 8 anos, mas, antes de ser admitido pela Rádio Capibaribe e posteriormente pela Rádio Jornal, era vendedor de móveis. Teve como ídolos Ivan Lima, Paulo Marques, Jaime Cisneiros, José Santana, Ralph de Carvalho. “No começo, queremos imitar, até que você ganha sua identidade.” O locutor também acena para o lugar estratégico do veículo – “Temos, hoje, várias plataformas de comunicação, e o

rádio atravessa todas elas. Se o mundo acabar, quem vai informar primeiro é o rádio, mesmo que seja ele via internet” –, mas critica a formação dos novos profissionais. “Antes, tínhamos uma mão de obra extraordinária e poucos recursos técnicos. Agora, temos recursos extraordinários, e falta mão de obra de qualidade, com talento, especialização.” Para Aderval, o ensino da profissão está tecnicamente defasado. “A universidade não acompanhou o avanço tecnológico. Há faculdades que não têm um laboratório ou, se têm, é muito precário, rudimentar. Por exemplo, é possível baixar, em casa, programas avançados de edição, como o Sound Forge, e, mesmo assim, os estudantes saem da universidade sem conhecer esses recursos.”

COMENTÁRIO DE FUTEBOL

Mas, entre os comentaristas esportivos em atividade, nenhum é mais celebrado que Ralph de Carvalho, 67 anos. Nascido em Riachão do Dantas, interior de Sergipe, interessou-se pelo rádio quando tinha 12 anos. Na época, começou a fazer um curso de radiotécnico por correspondência. Tinha um interesse especial por radio frequency (transmissão), o que o motivou enquanto ouvinte.

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10 ADERBAL BARROS Para radialista, ensino da profissão está defasado 11 EXPERIÊNCIA Ralph de Carvalho é o mais celebrado dos comentaristas esportivos locais 12 LUCIANO DUARTE O rádio despertou a paixão do narrador pelo futebol

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Quando tinha 14 anos, um narrador esportivo e também dentista, Carlos Magalhães, convidou-o para cobrir o carnaval de Aracaju. Era sua estreia, amadora, na Rádio Jornal de Sergipe. “O rádio não tinha esse tom profissional, era meio amador. Então, na cobertura, ele me deu uma pontinha para ficar falando de um lugar por onde o carnaval ia passar. Fui inoculado com o vírus da profissão, aí.” Mais tarde, Ralph de Carvalho se mudaria para o Rio de Janeiro. Entrou para a Aeronáutica, e lá encontrou nomes famosos, como José Cabral, narrador de futebol da Rádio Tupi. Jairo de Souza, do Plantão Esportivo da Rádio Globo. Carlos Ramiro, da Rádio Nacional. “Aproximei-me desse povo em função do fascínio pelo rádio.” A primeira oportunidade como profissional foi na Rádio Difusora de Caxias, emissora pertencente ao político Tenório Calvalcanti. Era 1964 e Ralph tinha 18 anos. Em seguida, foi para a capital do estado, convidado pela Rádio Vera Cruz, hoje Rádio América. “Com as viagens, senti a necessidade de optar. Deixei a Aeronáutica.” Surgiu o convite para a Rádio Olinda, em março de 1972. De lá, foi para a Rádio Clube, na qual trabalhou por 27 anos. Da Rádio Clube, resolveu dar voo próprio. Formou a equipe Escrete de Ouro,

e seguiu para a Rádio Capibaribe, Rádio Sat, e, há seis anos, está na CBN e Rádio Jornal. “Vinha do Rio, cuja cadência de transmissão era diferente. Aqui, era mais rápido. Busquei um padrão próprio, por carência de comentarista (na época, só tinha José Santana e Luiz Cavalcanti. Barbosa Filho já estava indo embora para São Paulo). O próprio Barbosa me estimulou para que eu analisasse futebol. Tinha muita facilidade de fazer a leitura tática e técnica do jogo.” Fez sete Copas do Mundo. Todas a partir de 1982, com exceção da realizada no Japão/Coreia, em 2002. “Copa de madrugada, a rádio achou que não valia a pena.” Descobriu a rara vocação de narrador por acaso. Foi para o campo comentar o jogo, e o narrador, Paulo Roberto, faltou. O ano era 1969 e a partida, São Cristóvão x Flamengo. “A retaguarda disse: ‘Transmite, que não temos outra alternativa, temos que colocar alguma coisa no ar’. Transmiti. Quando terminou, as pessoas disseram ‘Rapaz, nem parecia que era a primeira vez’. Daí, fiquei.” Foi melhorando, aprimorando-se. “Daqui e dali tirava alguns defeitos. Ouvia as gravações e pensava, “bem, aqui eu posso gritar menos, fazer o grito de gol mais curto, para não ser tão cansativo...”. Narrou futebol até 1986.

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Para Ralph, entre os principais desafios do comentarista, há o de oferecer um posicionamento a respeito de um lance, logo quando ele acontece. “Hoje, está mais fácil. Se você tiver dúvida, pode eventualmente conferir na televisão o replay, quando o jogo é transmitido. Mas existe, na minha cabeça e na de muita gente que faz rádio, uma coisa chamada convicção do lance. Você fotografa mentalmente o lance, e não muda nem que o cara aqui do lado diga que não foi. É o que você viu naquele flash, naquele momento, pode até estar errado, mas a prática diz que você deve segurar.” “O cara de rádio é diferente do da TV, porque ele não relaxa. Ele tem que confiar no seu taco. Não desligar. O ouvinte não aceita que você diga ‘espera um pouco que vou ver na TV para te dizer’. Ora, se ele está ouvindo agora, ele quer saber agora.” Ralph já teve atritos com um dirigente de clube pernambucano, que proibiu a entrada de profissionais da emissora no campo. Acabou cedendo, diante da pressão da imprensa. Hoje, é seu amigo. “Como dizia Carlos Alberto, a gente não pode ser o tribunal da inquisição, que fica falando daquilo o tempo todo e não perdoa nunca.”

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BBC Um exemplo a ser seguido

A British Broadcasting Corporation, empresa de transmissão britânica, mantém impecável programação cultural e jornalística TEXTO Marcelo Abreu

O rádio na Europa é coisa séria e nunca perdeu seu prestígio, mesmo após a popularização da televisão e da internet. O melhor exemplo de sua existência como meio de comunicação de alta qualidade é o modelo vigente na Grã-Bretanha com a renomada BBC. A British Broadcasting Corporation (Empresa de Transmissão Britânica) é um sistema público de rádio que domina as transmissões no país desde a sua fundação, em 1922. Hoje, fazem parte do grupo cinco rádios de alcance nacional, 46 locais, um

Serviço Mundial – que transmite em línguas estrangeiras, além de algumas rádios exclusivamente digitais. A BBC, evidentemente, é também conhecida por seus canais nacionais e internacionais de televisão, sua presença na internet e seu setor de publicações impressas. Mas é no rádio que sua atuação tem mais destaque. O sistema é financiado por uma taxa – a famosa license fee que atualmente custa 145,50 libras, o equivalente a R$ 490,00 (incluindo a transmissão de TV). A taxa é paga anualmente

por todas as residências e permite que a BBC não precise ter publicidade. Consequentemente, a emissora não sofreu com a migração de verbas publicitárias do rádio para a televisão como aconteceu em muitos países. O modelo de financiamento permite também que a emissora fique distante da interferência política, das pressões dos governos e do poder econômico. Esse contexto criou uma situação muito curiosa. Enquanto, no Brasil, o rádio adotou um modelo popularesco da cultura de massas, na Inglaterra, são os tabloides que cumprem esse papel. O padrão de qualidade da BBC foi instituído com muito sucesso entre os anos 1920 e 1950. Quando, na década de 1960, apareceram as primeiras emissoras privadas, o público já estava acostumado ao modelo. O caráter comercial das programações não degringolou em populismo, mesmo havendo hoje mais de 60 rádios privadas na Grã-Bretanha. Mas o tal padrão BBC não tem nada de sisudo. Na verdade, ele comporta uma programação variada. Cada uma de suas emissoras nacionais tem um foco. A Radio 1 toca novas tendências musicais

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para os jovens. A relação da BBC com o rock vem da época dos Beatles e inúmeras bandas tocaram e gravaram nos estúdios da emissora. Foi nela que se notabilizou o DJ John Peel (1939-2005), o primeiro a divulgar bandas, hoje consagradas, como Pink Floyd. A Radio 2, a de maior audiência, é a que mais se aproxima de um padrão comercial, tocando sucessos do mainstream. No outro extremo, a Radio 3 toca música erudita (também um pouco de jazz e world music) e transmite debates e palestras sobre alta cultura. A Radio 5 Live é dedicada a transmissões ao vivo, com foco em esportes. A Radio 4 é um capítulo à parte. Nela, a BBC exercita toda a sua sofisticação, numa emissora sem música, dedicada apenas à palavra falada. Há uma forte presença da literatura, do humor elegante e da dramaturgia. A emissora ainda produz e transmite novelas de rádio, como The Archers, cinco dias por semana, no ar desde 1951. É na Rádio 4 que são exibidos programas de jornalismo de altíssima qualidade, como o Today, o mais influente programa jornalístico do país, transmitido das 6h às 9h. O chamado Serviço Mundial da BBC é o braço internacional da emissora. Transmite em inglês, por ondas curtas e satélite, 24 horas por dia, para o mundo todo. O serviço aproveita parte da programação da Rádio 4, mas lhe dá uma embalagem mais internacional, compreensível em qualquer parte, com programas tradicionais, como o Newshour. No World Service estão situadas as transmissões em línguas estrangeiras. O Serviço Brasileiro, por exemplo, funcionou de 1938 até 2005, transmitindo em português para o Brasil, todas as noites. Teve uma alta audiência, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial e no período da ditadura militar. Longe das restrições impostas pela censura, transmitia notícias para o Brasil que não circulavam por aqui. Ao contrário de outras emissoras internacionais, a BBC

não faz propaganda do país que financia as transmissões. Numa decisão que desagradou muitos de seus ouvintes, a emissora encerrou as transmissões para o Brasil e investiu no site BBC Brasil. O Serviço Mundial chegou a transmitir em 62 línguas estrangeiras, de albanês a vietnamita, usando potentes transmissores em ondas curtas, instalados em vários países. Mas foi reduzindo sua presença no rádio e, hoje, opera em apenas 18 línguas. Porém, se computadas as equipes de estrangeiros que produzem conteúdo (sonoro, em alguns casos) exclusivamente para a internet, são 27 idiomas. Ainda sob o guarda-chuva da empresa, surgiram na última década cinco emissoras digitais, o que, no caso,

O modelo de financiamento da rádio permite que ela esteja livre da pressão do governo e da publicidade não significa transmissão pela internet. O sistema conhecido como Digital Audio Broadcasting (DAB), adorado em alguns países, exige um aparelho de rádio específico para captar o sinal, como se fosse um receptor de TV por assinatura. As emissoras digitais se destinam a atender a públicos mais segmentados como a Radio 6 Music, que toca música pop alternativa, e a Radio 4 Extra, especializada em teatro, programação infantil e reprise de humorísticos. As emissoras que ainda transmitem em FM também podem ser ouvidas no sistema digital. Toda essa estrutura é mantida por cerca de 23 mil funcionários (incluindo as transmissões de TV), entre os quais milhares de jornalistas e produtores espalhados por Londres, Grã-Bretanha e países estrangeiros. A existência da BBC fez com que se desenvolvesse uma forte cultura do rádio no país. Desde 1923, por exemplo, circula a revista Radio Times (que pertenceu à BBC até 2011), trazendo toda a grade de programação semanal das principais emissoras. Vende cerca de um milhão de exemplares por semana.

Outras duas revistas do gênero são a TV Choice e a What’s on TV, que vendem juntas mais de 2,7 milhões de exemplares. Há poucos anos, a BBC mantinha uma loja em Londres, onde vendia livros e gravações de alguns de seus antigos programas. Sucessos na área de humor, dramaturgia, e documentários, por exemplo, podiam ser comprados em fitas cassete ou CDs. Atualmente, existe uma loja online que vende esse material e também livros que transcrevem textos lidos no rádio. É o caso dos comentários de Alistair Cooke, correspondente da emissora nos Estados Unidos que, entre 1946 e 2004, apresentou o programa Letter from America (Carta da América). As séries de crônicas de 15 minutos, escritas e lidas por Cooke, semanalmente, tiveram ao todo 2.869 emissões na Radio 4 e no World Service. Foi o mais longo programa apenas falado da história do rádio, e só acabou com a morte do jornalista, aos 95 anos. Guardadas as proporções, a estrutura da BBC lembra a experiência da fase de ouro do rádio no Brasil, entre os anos 1930-1950. A emissora britânica mantém no seu staff uma orquestra filarmônica, várias sinfônicas e uma orquestra de jazz. Todo ano promove e transmite The Proms, a tradicionalíssima e popular série de concertos de música erudita que ocorre no verão. A BBC, como um todo, mistura alta cultura, excentricidade inglesa, jornalismo crítico de qualidade, valorização da tradição, com um olho para as novidades artísticas contemporâneas e uma dose de bom humor (do tipo britânico, of course). Por ser a experiência de maior sucesso, o modelo vem influenciando outros países. Foi copiado com esmero no Japão pós-1945 pela NHK, a Nippon Hoso Kyokai (Empresa de Transmissões Japonesas), que instituiu até mesmo a taxa compulsória a ser paga pelos ouvintes. Na Europa continental, apesar da crescente desregulamentação do setor, ainda há uma tradição de grandes sistemas públicos de rádio, com muitas emissoras e programação de qualidade, como é o caso, na França, da Radio France (que abriga a France Inter) e, na Alemanha, da Deutschlandfunk. Mesmo nos EUA, berço do modelo comercial, existe a NPR (antes conhecida como National Public Radio), uma rede de altíssima qualidade.

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CON ESPECIAL TI NEN TE

Artigo

NELIA R. DEL BIANCO OS DESAFIOS DO MEIO EM TEMPOS DE CONVERGÊNCIA “E agora, o que será do rádio?” A pergunta é recorrente ao longo da história da mídia. Com o surgimento da TV, não faltaram profetas anunciando o desaparecimento do veículo. O ritmo exponencial de crescimento da internet tem sugerido que, em breve, todas as mídias vão convergir para a web e fora dela não haverá sobrevivência. Mais uma vez repete-se a crônica da morte anunciada do meio. De fato, o surgimento de uma nova tecnologia carrega em si predições de toda ordem. Para os pessimistas, o novo destrói o velho, irremediavelmente. Enquanto os otimistas ficam eufóricos perante a perspectiva revolucionária do meio emergente. No entanto, a análise deve ser cautelosa. O processo de mudança de um padrão tecnológico para outro é bem mais complexo, segundo o jornalista americano Roger Fidler, um estudioso do assunto. Para ele, as novas mídias não surgem espontaneamente e independentes, mas emergem gradualmente, a partir da metamorfose das velhas. O novo meio se apropria de traços dos existentes para encontrar, posteriormente, a própria identidade e linguagem. Diante das novas mídias, as tradicionais normalmente não morrem, mas adaptam-se e continuam evoluindo. O rádio vem se reinventando, fazendo a sua mediamorfose. Com o advento da TV, na década de 1950, perdeu prestígio junto aos patrocinadores. Sem dinheiro, não havia como investir na renovação técnica de equipamentos, e menos ainda manter um cast profissional, formado por cantores, músicos, comediantes e animadores. A saída foi remodelar a programação, adotando a veiculação de música gravada, notícia, esportes e prestação de serviços – informação sobre condições do trânsito, polícia, tempo etc. Nos anos 1980, o radiojornalismo no Brasil revitaliza-se a partir da adoção de quatro recursos técnicos que contribuíram para melhorar a qualidade

REPRODUÇÃO

sonora do rádio: o transmissor-receptor (sistema de áudio em duas vias, que permite ao repórter entrar no ar ao vivo ou conversar com âncoras e entrevistados), a extensão da baixa frequência para telefone (acoplada ao telefone, aumentava a potência de transmissão e permitia que o sinal chegasse mais forte ao estúdio), os satélites (usados cada vez mais para transmissão em redes), e o CD, que substituiu as fitas magnéticas e os discos de vinil, colaborando para a melhoria da qualidade do som da música no meio. Na década de 1990, o celular facilita a transmissão ao vivo e leva o repórter a participar intensivamente da programação, direto da cena do acontecimento, contribuindo para aprofundar e explorar a característica do imediatismo inerente à natureza tecnológica do rádio. O tempo entre o acontecimento e a veiculação da notícia fora encurtado. A cobertura ao vivo criou uma sensação de participação do ouvinte no cenário dos principais acontecimentos políticos da época. No final dos anos 1980 e começo dos 90, a população estava ávida por notícias a respeito das mudanças políticas após o fim de 20 anos de ditadura militar e a perspectiva de eleição direta para presidente. Cresce a importância dos apresentadores no lugar do tradicional locutor de voz empostada e distante. Na década de 2000, o rádio, que era limitado ao que estava disponível nas frequências AM e FM, conquista novas possibilidades de escuta, com a popularização dos computadores, players de MP3 e celulares.

RÁDIO “SEM LIMITES”

O hábito de ouvir rádio alcança 80,3% da população, de acordo com pesquisa realizada pelo governo federal em 2010. O percentual é inferior ao de televisão, com 96,6%. Porém, esse dado revela apenas penetração do meio e não a audiência. Pesquisas de mídia do Ibope indicam que a audiência media do rádio FM é de 15% da população e 3% para o AM. Se for considerado o volume total de ouvintes nos 13 mercados com pesquisas regulares do Ibope, há algo em torno de 11 milhões de ouvintes por minuto. Ocorre que essa audiência é pulverizada, se dividirmos o percentual entre as 380 rádios AM e FM existentes

nas praças abrangidas pela medição. Os índices mais baixos de escuta estão entre jovens de 20 a 29 anos; e, quando acontecem, na sua maioria, são pela internet. Enquanto isso, o consumo de AM restringe-se à faixa de 45 a 49 anos. O segmento de classe C é o que mais escuta rádio, segundo dados da Ipsos, pelo estudo Marplan EGM de 2010. Com a emergência de multiplataformas digitais, o rádio expande a entrega de conteúdo para além do aparelho receptor tradicional e conquista audiência que ainda não é computada pelas pesquisas tradicionais. Uma enquete realizada pelo Grupo dos Profissionais do Rádio, em 2009, com 2.580 ouvintes que acessaram o site www.radioenquete.com.br, revelou que o hábito de ouvir o veículo pelo aparelho portátil ou receiver já rivaliza com outras formas de consumo. De acordo com a pesquisa, 74% disseram que ouvem no aparelho portátil, receiver, microsystem; 63% internet, via computador; 61% no rádio do carro; 37% sintonizam no celular; 37% no MP3/MP4/iPod; 12% pelos canais de áudio da TV a cabo/ parabólica; e 3% pela internet, via

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celular. Quando perguntados se ouviam rádio na internet ou visitavam os sites das emissoras, 82% dos pesquisados confirmaram o hábito. Outra mudança significativa é que a audição acontece simultaneamente a outras atividades, como também ao consumo de outras mídias. A pesquisa do Grupo dos Profissionais do Rádio realizada em 2009 mostra que 79% dos entrevistados disseram ouvir rádio quando estão em casa, 64% enquanto dirigem automóvel, 45% durante o trabalho, 26% enquanto caminham pelas ruas, e 25% ao fazer exercícios. A integração do rádio à internet torna-se cada vez mais necessária como estratégia de sustentabilidade, considerando o crescimento do acesso à rede e seu uso aos poucos sendo integrado ao cotidiano da população. A quantidade de domicílios brasileiros com computador aumentou 264%, de 2005 para 2011. E se forem considerados os que têm acesso à internet, o crescimento foi de 292% no mesmo período. A Fundação Getúlio Vargas aponta que o Brasil tem, hoje, 99 milhões de computadores em uso – incluindo

A interação do rádio com a internet é cada vez mais necessária como estratégia de sustentabilidade tablets – e deve chegar a 140 milhões em 2014. Isso significa ter dois computadores para cada três habitantes do país, daqui a dois anos, podendo chegar à taxa de um por um em 2017. As emissoras têm explorado essa nova fronteira de transmissão, especialmente as de maior porte. Aos poucos, as suas páginas ganham densidade e muitas já apresentam variedade de oferta de produtos como podcast, arquivos de programas, canais de interatividade, blogs de locutores, articulistas, comentaristas e promoções. Ao contrário de vilã, a internet tem sido uma aliada na disputa pela audiência, diante de competidores que passaram a rivalizar com o rádio na oferta de informação em tempo real.

Paralelamente à internet, metade dos celulares vendidos no país atualmente possui dispositivo para se ouvir uma FM, sem qualquer custo adicional. As emissoras já estão investindo em aplicativos para conexão para ouvi-las em tempo real pelo celular. A estratégia de permanência do rádio no cenário de convergência midiática tem sido a de buscar o ouvinte onde estiver, em diferentes suportes. Mas isso ainda não é o bastante para atraí-lo. É preciso oferecer conteúdo significativo que estabeleça vínculos com o local, a comunidade, o entorno cotidiano. Esse é o grande diferencial do veículo: o sentido de proximidade, o localismo. Em tempos de internet e celular, a mobilidade é potencializada. O desafio é manter-se necessário frente à emergência de muitos outros meios que passaram a competir com uma antiga capacidade do rádio de dar a notícia em primeira mão, de ser o primeiro a informar. Esse sentido primordial está sendo rivalizado fortemente pela internet, graças à mobilidade conquistada com a ampliação da rede 3G no país. A questão central é por que o rádio ainda seria necessário nesse novo ambiente de consumo midiático, ou seja, em que medida pode oferecer algo de que os outros não são capazes? A resposta pode estar na sua própria natureza constituída pelo código sonoro. A ausência de imagens, que poderia ser considerada uma inferioridade, é, ao contrário, uma superioridade, segundo o filósofo francês Gastón Bachelard, porque na unisensorialidade reside o eixo da intimidade. É por meio das imagens, que se formam na mente do ouvinte, que se constrói o caráter pessoal da comunicação, ou seja, uma relação de proximidade e de interação informal. É o vínculo com a tradição da cultura oral que tem sido capaz de suscitar efeitos junto à recepção, colaborando para manter o poder de mobilização e a permanência do rádio. Mas os tempos são outros e requerem que esse poder de mobilização pela sonoridade seja reinventado. O futuro pertence aos que forem capazes de reinterpretar a sonoridade em tempos de conexão com o ambiente digital.

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SUCRE Cidade senhora, vestida de branco Espanhola na arquitetura, indígena nos costumes e global na atmosfera. Assim é a capital constitucional da Bolívia, uma joia que brilha a quase 3 mil metros de altura TEXTO E FOTOS Antônio Martins Neto

Sucre é uma cidade branca, e

bela. Uma senhora vestida em estilo colonial, orgulhosa do passado de glória e ciente de que, apesar da idade, encanta visitantes de todo o mundo. E eles estão por toda parte: nos cafés coloridos do centro histórico, nas varandas e pátios floridos das pousadas, nas ruas de calçadas estreitas e calçamento secular. Um acervo cuja visão é capaz de proporcionar descanso, conexão espiritual, conhecimento histórico e, por que não, uma certa dose de aventura. Tudo ao mesmo tempo. Tudo o que a Cidade Branca, como é carinhosamente chamada pelos moradores, é capaz de oferecer. De traçado colonial tradicional, Sucre se espalha a partir de uma grande praça. La Plaza 25 de Mayo foi assim batizada em homenagem ao “Primeiro Grito de Independência nas Américas”, levante popular de 1809, marco do espírito libertário do povo boliviano. É lá que está La Casa de La Libertad, onde, a 6 de agosto de 1825, foi proclamada a independência e a fundação do país. Com museu, biblioteca e salas para exposição de arte, o lugar é o ponto de partida ideal para qualquer giro cultural e histórico pela cidade. A bela construção começou a ser levantada em 1621 pela Companhia de

Jesus para abrigar a Universidade de São Francisco Xavier, a primeira de todo o continente americano, fundada em 1624, 12 anos antes, portanto, da prestigiada Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A arquitetura é singela, mas marcante. O portão, em formato de arco, feito de cedro nativo e cravejado de pregos de bronze, abre espaço para um amplo claustro rodeado de galerias, cujo teto é apoiado em colunas de granito. Nas salas em que um dia estudaram os primeiros doutores do continente, estão obras de arte e peças históricas. A Sala de La Independencia, originalmente a capela doméstica dos jesuítas, destaca-se na face oposta à entrada. É o coração simbólico da nação, o lugar onde foi assinada a ata de independência. Nas paredes estão retratos de Simon Bolívar, inclusive aquele considerado o mais fidedigno pelo herói sul-americano: uma obra do peruano José Gil de Castro. De volta à praça principal da cidade, a poucos metros de La Casa de La Libertad está a Catedral de Sucre. A igreja da metade do século 16 teve inicialmente características renascentistas. Mais tarde, ganhou toques barrocos. Sob a ampla nave, estão altar, púlpito e uma série de pinturas. As obras sacras continuam à disposição do visitante na instituição anexa, o Museo de La

Catedral, que reúne as mais importantes relíquias religiosas da Bolívia. A cidade colonial, que desde os primeiros dias se vestiu de branco – a cor está presente no casario espalhado pela cidade –, parece mesmo ter nascido de um longo e bem-sucedido casamento da religião com a história. Igrejas e museus se alternam pelas ruas principais: Templo Nuestra Señora de La Merced, na Calle Pérez; Museo de La Recoleta, na Plaza Pedro Anzures; Convento de San Felipe Neri, na Calle Ortiz; Museo de Los Niños Tanga-Tanga, também na Plaza Pedro Anzures. Assim segue a longa lista de templos históricos e religiosos a serem visitados na cidade que, em 1992, foi eleita Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Seja qual for o roteiro escolhido, não se deve desprezar uma parada no Convento e Museu de Santa Clara, na Calle Calvo. Ali são vendidas as deliciosas empanadas de Santa Clara, receita tradicional de Sucre, seguida à risca pelas freiras. A iguaria é servida num espaço pequeno, simples e acolhedor, com apenas duas mesas coletivas. E, como tudo o que é bom acaba cedo, a última fornada vai embora antes do meio-dia.

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No que diz respeito à gastronomia, a cidade oferece grande variedade de bares e restaurantes com opções que vão da simples e temperada culinária boliviana à sofisticada cozinha internacional. Nas estreitas e acidentadas ruas do centro histórico, há uma grande concentração de cafés e pubs, que atraem clientela jovem, seja de turistas ou de estudantes locais – afinal, Sucre é uma das principais cidades universitárias da Bolívia. Já os restaurantes das pousadas e hotéis atendem a um público mais maduro, em geral turistas europeus ou membros das famílias tradicionais que resistiram à migração e permaneceram na cidade, mesmo depois de Santa Cruz de La Sierra se tornar o principal polo econômico do país. Há também cafés, pousadas e restaurantes nas partes mais elevadas e periféricas da cidade. São estabelecimentos simples, repletos de jovens estrangeiros que encontram em Sucre um destino barato e atraente, com paz e tranquilidade de dia e agitação estudantil à noite.

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Página anterior 1 INFLUÊNCIA HISPÂNICA

Arquitetura colonial local conta com fachadas em arcos e jardins internos bem decorados

Nestas páginas 2 NATIVA

Vendedora prepara e oferece na rua iguarias da temperada culinária boliviana

3 ARREDORES Cafés e pousadas mais baratas atraem turistas jovens 4 URBANISMO Região central caracteriza-se por ruas estreitas, que concentram pontos turísticos e históricos

ARREDORES

Sucre está situada a 2.800 metros acima do nível do mar, no planalto central boliviano. É a capital do departamento de Chuquisaca e a quarta mais populosa cidade da Bolívia, com cerca de 230 mil habitantes. Tem clima subtropical, com temperaturas que variam da mínima de quatro graus centígrados no inverno, em julho, à máxima de 20 graus no verão, em dezembro. Portanto, um bom casaco é imprescindível em qualquer época do ano. Além dos elementos culturais e arquitetônicos da cidade, também há a possibilidade de explorar os seus arredores, onde natureza, tradição e pré-história dão o toque de aventura da viagem. Tarabuco, com pouco mais de dois mil habitantes, a 65 quilômetros de Sucre, é a terra dos Yamparáez, povo que desde o Império Inca mantém costumes, hábitos, roupas, língua e expressões artísticas tradicionais. Uma feira é realizada na localidade todo domingo, quando povos nativos das comunidades vizinhas se encontram para se apresentar e vender artesanato. A 26 quilômetros de Sucre, está a cidade de Quila-Quila, onde as evidências da luta entre as culturas pré-hispânica e colonial da Bolívia estão por todo lado. O povo Jalq’a mantém os principais elementos da cultura tradicional na arquitetura das casas, nas técnicas de agricultura e nos tecidos feitos à mão, considerados únicos. Ao mesmo tempo, a igreja e o traçado colonial lembram que aquela já foi uma terra dominada pelos exploradores espanhóis.

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Além de Sucre, o visitante pode ter contato com cidades dos arredores e seus atrativos ligados à cultura pré-hispânica

De Quila-Quila ainda é possível seguir uma trilha inca, de aproximadamente seis quilômetros, do alto das montanhas de Chataquila ao Vale de Chaunaca. O caminho segue por uma vala profunda, provocada pela erosão, pavimentada por imensas rochas, com muros de contenção e riachos.

E se o visitante quiser ir ainda mais fundo nessa viagem ao passado, encontrá pegadas de dinossauros a apenas cinco quilômetros de Sucre. Os vestígios existentes de titanossauros, brontossauros e até tiranossauros datam de 65 milhões de anos. Foram descobertos nos anos 1994, num imenso paredão de 80 metros de altura e 1,5 quilômetro de extensão no vilarejo de Cal Orcko. O local, que pertencia a uma fábrica de cimento, foi transformado num parque, com informações e modelos dos dinossauros que habitaram aquele sítio. São as camadas de tempo que fazem de Sucre um destino altivo no coração da América do Sul.

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BIOGRAFIA Luiz Gonzaga, segundo Sinval

Há muito fora de catálogo e agora relançada, a obra O sanfoneiro do Riacho da Brígida é trabalho de um confesso admirador do Rei do Baião, que pretende mimetizar sua fala e eternizar o mito TEXTO Danielle Romani

O sanfoneiro do Riacho da Brígida,

de Sinval Sá, foi a primeira biografia escrita sobre Luiz Gonzaga. Lançada em 1966, é um clássico, não apenas por ser o registro da vida do artista que virou ícone da música popular brasileira, mas por ser conduzido como se fosse uma entrevista, com o “vozeirão” de Gonzaga permeando a narrativa. No mês em que se comemora o centenário do músico sertanejo, o título volta às livrarias, desta vez, com o selo da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), que aproveita o aniversário de nascimento do Velho Lua, no dia 13, para republicar o trabalho assinado pelo paraibano Sinval. Sem pretensões de ser uma obra para especialistas – o leitor perceberá que o trabalho não faz análise crítica, por exemplo – o livro é uma grande conversa com Luiz Gonzaga, na qual o artista expôs suas emoções, paixões, sentimentos, dúvidas e expectativas. É um diálogo franco, aberto, passional. O próprio Sinval admite que atuou menos como escritor e mais como uma espécie de ghost writer do artista. O trabalho é descritivo e obedece a uma ordem cronológica. Na abertura, Infância, estão registrados a chegada da família de Gonzaga a Exu, o nascimento do menino no Riacho da Brígida; a vocação musical, que despertou logo

cedo; os primeiros trabalhos; o ambiente sertanejo; as primeiras paixões; e a surra que Luiz levou da mãe, Santana, que o deixou profundamente humilhado e o levou a fugir para Fortaleza. Na segunda parte do livro, O 122 bico de aço, número de recruta de Gonzagão, são contadas suas aventuras como militar, o orgulho que o matuto sentia em vestir

Sem pretensões de ser uma obra para especialistas, o livro apresenta uma grande conversa com Luiz Gonzaga a farda e desfilar na rua – diante de mocinhas deslumbradas –, a viagem para o Sudeste com o exército, as desavenças com oficiais e superiores e sua saída da instituição. A escalada, terceira parte do volume, registra o início da sua carreira. Primeiro, tocando em festas e bares, depois, participando de programas nas rádios cariocas. Um fato, em especial, chama a atenção: sua luta para se firmar como cantor e não apenas como instrumentista. Quem admira a voz de Luiz não imagina que ele ouviu um

diretor de rádio afirmar que ela era “horrível”. Ainda bem que o comentário não o fez desistir. Em 1945, gravou sua primeira mazurca, Dança Mariquinha (Luiz Gonzaga/Miguel Lima). Logo em seguida se daria o encontro com Humberto Teixeira, do qual resultou a gravação de Asa branca, que o levaria a ser reconhecido nacionalmente. O último capítulo do livro, Estórias e fatos, está mais centrado em episódios pitorescos. No apêndice, um cancioneiro de Luiz Gonzaga, com seus mais emblemáticos sucessos.

SOBRE SINVAL

O sucesso de O sanfoneiro do Riacho da Brígida, que tem como marcas a espontaneidade e a coloquialidade, deveu-se à persistência do paraibano José Sinval de Sá, cuja admiração por Gonzaga ajudou a registrar momentos importantes da vida do artista. Numa visita que fizemos a Sinval Sá, há alguns meses, em sua casa, em Brasília, encontramos um nonagenário saudável e com disposição invejável. O ex-funcionário público, que desde a década de 1950 atua também como escritor (tem sete títulos publicados, entre romances, biografia e histórias para crianças), contou como concebeu o livro, numa época em que eram incomuns as biografias de artistas

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populares; lembrou como foram os encontros com Gonzaga e falou sobre a feitura do trabalho. Era o ano de 1955, época em que, ainda oficial da Aeronáutica, Sinval se encontrava em Taubaté, São Paulo. Numa terça-feira de Carnaval, sozinho, longe da família e da mulher Rizete, ele diz que se emocionou profundamente quando, sentado num banco de praça, escutou pelo altofalante a estrofe inicial de Asa branca. Cinco anos depois, instalado em Fortaleza e já livre da farda, soube que Gonzaga estava hospedado num hotel da capital. Telefonou e marcou um encontro com ele. Fez-lhe a proposta da biografia, que foi aceita e elogiada. “Na ocasião, Gonzaga me disse: ‘Gostei de você. Parece sério, direito. Foi o primeiro a me falar em escrever sobre minha vida sem cobrar nada’”. A produção do livro, porém, só se deu um ano depois, quando, em visita ao Rio, Sinval ligou para Gonzaga, que morava na Ilha do Governador. Durante os dois anos seguintes, escritor e artista se encontravam na Praia do Dendê ou da Cocotá (ambos na Ilha). “Conversamos sobre tudo: infância, exército, amores, músicas, sucesso, mágoas. Era um período em que ele tocava nos teatrinhos do interior, nas rádios, uma fase de baixa popularidade, bem diferente da badalação que tivera nas décadas anteriores.” Passado esse período, Sinval voltou para Fortaleza, romanceou a história, deixando-a cheia de floreios, e a enviou para Gonzaga. Recebeu uma resposta desaforada: “Não gostei, está uma porcaria, não foi isso que contei ao senhor!”. Diante do “carão”, resolveu manter-se mais fiel ao linguajar de Gonzagão. Lançada em 1966, na Praça do Ferreira, em Fortaleza, a edição esgotou-se rapidamente. Se, durante os anos de encontro com Sinval, Gonzaga vivia alguma melancolia e certo ostracismo, em breve, recuperaria parte da fama e do sucesso, graças à interferência de Carlos Imperial e dos artistas protagonistas da Tropicália Gilberto Gil e Caetano Veloso. Nas décadas de 1970 e 1980, recebeu várias homenagens, fez centenas de shows, gravou discos. E morreu consagrado como artista único e brilhante que se revelou.

FORRÓ Emblema sonoro do Nordeste

No ano do centenário do Rei do Baião, é lançado livro que narra a trajétoria do gênero musical, desde sua origem mais remota ao dias atuais TEXTO Olivia de Souza

“O sertão perdeu seus cantadores”, afirmava o potiguar Luís da Câmara Cascudo, em 1934, enquanto percorria os cerca de 1.307 km de estrada pelos interiores do Rio Grande do Norte. Integrante da comitiva do interventor federal Mário Câmara, o historiador, antropólogo e jornalista havia se incumbido de registrar tudo o que ali encontrasse. Publicados originalmente no periódico O Potiguar, e posteriormente reunidos no livro Viajando pelo Sertão, os 18 textos de Câmara Cascudo concluíam que o avanço tecnológico possibilitava

a construção de estradas que moviam sertanejos para outros municípios, tão próximos quanto longínquos, gerando a descaracterização da região. De acordo com Cascudo, “o Sertão esvaía-se”. Dentre alguns apontamentos citados nos textos que comprovavam sua tese, a música regional estaria se acabando, resultado das transformações trazidas pelo progresso, e a influência de outros ritmos. Ele finalizava a série com a pergunta: onde estariam a música, o ritmo e a dança tão característicos do povo nordestino?

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A introdução ao livro O fole roncou! Uma história do forró (Jorge Zahar Editor) oferece uma leitura sobre a importância que tiveram os forrozeiros no que concerne à manutenção da cultura tradicional, alguns anos depois daquelas andanças de Cascudo. Escrita pelos jornalistas paraibanos Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues, e lançada no ano do centenário de Luiz Gonzaga, a publicação pode ser considerada a primeira biografia do estilo que teve o Velho Lua como seu maior representante. Por conta disso, a trajetória dele é esmiuçada no livro, sendo seu ponto de partida. Entre fatos curiosos sobre o Rei do Baião, está explicitada sua vontade de se vestir de símbolos que pudessem ser diretamente associados ao Nordeste – daí sua escolha pelos acessórios de couro que o acompanharam pelo resto da vida, inspirados por sua admiração pelo cangaço. Também a influência do pai Januário, exímio sanfoneiro de oito baixos da região. O livro revela que a parceria de cinco anos com o letrista Humberto Teixeira possibilitou a Gonzaga perder a vergonha de “mostrar as coisas que tinha trazido do mato”, rendendo belíssimas composições que tinham como temática central a dor da ausência e a melancolia do sertanejo com saudades de sua terra (sendo Asa branca e Assum preto referências diretas a esse respeito). O livro também oferece espaço para outros importantes representantes do gênero, como Jackson do Pandeiro e Geraldo Correia (o “João Gilberto dos oito baixos”), além de trajetórias como a do casal Marinês e Abdias, Genival Lacerda, Dominguinhos e Alcymar Monteiro. Dos cânones para a atualidade, chega-se ao “forró universitário” (em São Paulo) e o “forró eletrônico”, este último surgido no Ceará, na década de 1980. Outra qualidade de O fole roncou é a abordagem de assuntos pouco comentados, como o fato de o forró não ter passado incólume à censura militar, que vetou letras de duplo sentido. Além disso, o livro dispõe de vasto material gráfico, fotografias de artistas e capas de discos.

Museu

UM PEDAÇO DE SERTÃO NO CAIS Cem anos após a última reforma, o Porto do Recife vem se transformando num centro de turismo, cultura e lazer, a partir da recuperação de 1,5 km da área de extensão do ancoradouro, onde ficavam nove antigos armazéns de carga. Restaurados, eles ressurgem na forma de equipamentos urbanos com múltiplas funções, a exemplo do Centro de Artesanato de Pernambuco, inaugurado em setembro, que já modificou e alegrou a paisagem do bairro em que nasceu a cidade. Neste mês, o projeto dá um importante passo. No dia 13, será inaugurada a primeira etapa do Cais do Sertão Luiz Gonzaga, que terá – quando completo – 7,5 mil m² de área construída (reunidas no armazém 10 e nos pátios 9 e 10) e investimentos de R$ 47 milhões, provenientes de parceria entre os governos federal e estadual. Uma estrutura de grande porte, que terá espaço para exposições com tecnologia e interatividade semelhantes às dos grandes museus do mundo.“O Cais do Sertão será uma obra mais ousada que o Museu da Língua Portuguesa. Quando o então Ministro da Cultura Juca Ferreira me convidou para produzi-lo, o presidente Lula me disse: ‘Quero algo maior e melhor que o Museu da Língua’”, afirma Isa Grinspum Ferraz, responsável pela produção de conteúdo do equipamento recifense. Ela havia participado da montagem do museu paulistano.

Segundo Isa, o novo centro supera seus congêneres por vários motivos. Um deles, ressalta, se deve à combinação entre a concepção dos conteúdos e das soluções museográficas com a concepção arquitetônica. “Não se trata de um exibicionismo tecnológico gratuito. Queremos trazer para a beira do mar a alma sertaneja”, explica Isa, que conta com uma equipe de 18 pessoas, de vários estados e de diversas especialidades, inclusive um biólogo, responsável pela condução e transplante de um juazeiro. “Os conteúdos serão distribuídos em torno de 10 unidades. Elas contêm instalações, objetos, projeções em audiovisuais de diferentes formatos, estações multimídias, jogos interativos, maquetes, esculturas, textos, obras de arte. Além de surpresas, como jardins sertanejos e um ‘rio’ São Francisco com suas águas e pedras”, enumera. A segunda etapa do Cais do Sertão está prevista para ser entregue em agosto de 2013. Até lá, as instalações serão montadas progressivamente. O centro terá salas de exposições temporárias, salas multiuso para cursos e oficinas, uma biblioteca, uma midioteca, a reserva técnica, um grande auditório, um restaurante, laboratórios de conservação e restauro e, do lado de fora, a Praça do Juazeiro, recepcionando os visitantes. DANIELLE ROMANI

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COLETÂNEA As várias faces de um tributo

CD triplo 100 anos de Gonzagão reúne antigos e novos artistas da música popular brasileira para interpretar clássicos do cancioneiro gonzaguiano TEXTO André Valença 3

Qual a maneira mais adequada de se produzir um tributo a um cantor ilustre, composto por interpretações de artistas diferentes? Para qualquer lado que se corra, você irá se deparar com certos impasses. É o que acontece quando se trabalha com modelos canônicos. A começar pelo recorte: quais as músicas que definem melhor a obra de alguém? Depois, passando pela seleção dos convidados: quem está em consonância? E termina nos arranjos: o que seria ideal, compor novas versões – que, de certa maneira, “maculariam” aquilo que já foi consagrado pelo tempo – ou reproduzir fielmente o que já está dado, apenas preenchendo com outra voz o vazio deixado pelo ídolo?

Essa segunda maneira seria virtualmente irrealizável com a música de Luiz Gonzaga, porque não haveria outra que preenchesse a lacuna por ela deixada. Na voz do Rei do Baião, deciframos – mais do que em qualquer outra – cheiro de mato e gosto de juá. Os timbres ondulam como uma luz difusa – mais do que escaldante e sofrível – e trazem aos olhos uma paisagem fabulosa do Nordeste. Sua voz transporta para o patamar sonoro esses elementos, retira-lhes do plano concreto e literal e os ressignifica subjetivamente. Vai além dessa sinestesia, abarca sentimentos de uma memória coletiva – reminiscências vividas ou não. Tem um poder de interiorização e de

projeção no outro, de a sentirmos em nós mesmos e também em nossos pais, que, por sua vez, percebem-na como indissociável dos próprios pais. Sentimento irreproduzível nas cordas vocais de outro intérprete. Atravessando essas considerações e admitindo a inalcançabilidade do mito, é possível partir para uma homenagem “humilde”. Nesse contexto, o CD triplo 100 anos de Gonzagão dá certo por ser plural. Três linhas claras permeiam a obra: uma, que faz questão de se aproximar da maneira como Gonzaga cantava, outra, que isola e destaca uma particularidade do estilo dele, e aquela na qual os cantores se desprendem e puxam o andamento mais para o próprio modus operandi.

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DIVULGAÇÃO

1 DOMINGUINHOS Sanfoneiro lidera grupo de artistas que regravou Asa branca 2 ZÉ RAMALHO A morte do vaqueiro ganha versão blueseira 3 KARINA BUHR Cantora atualiza a canção Xanduzinha

No primeiro caso, temos os discípulos diretos do Rei, como Dominguinhos e Elba Ramalho, fazendo bem o que sabem fazer. No segundo, temos versões como a de Zé Ramalho, que deixa clara a verve blues do baião. O paraibano canta A morte do vaqueiro de modo ainda mais melancólico que o original, quase como um dark blues. Nessa interpretação, é possível estabelecer uma proximidade inesperada com a música sombria de Tom Waits. No terceiro caso, há uma variedade que abre espaço para análises interessantes. Chico César se apossa de Pau de arara como se ele mesmo a tivesse composto. Vanguart desenvolve-se bem numa versão folk de Assum preto. E Karina Buhr imprime em Xanduzinha uma contemporaneidade inconcebível na canção simples e antiquada. São 50 gravações inéditas, divididas nos três CDs. O primeiro volume, Sertão, discorre sobre a temática da seca. Nele, Asa branca ganha duas versões distintas, uma de Fafá de Belém e outra do grupo formado por Dominguinhos, Anastacia, Ednardo, Amelinha e Geraldo Azevedo. O segundo, Xamêgo, vem com canções de amor e “sem-vergonhices”, como o xote Cintura fina, cantado por Gaby Amarantos – sem que se perceba nele muitos resquícios do tecnobrega da cantora. Já o último disco, Baião, apresenta as músicas mais dançantes, em que Respeita Januário fica nas mãos de Zeca Baleiro. Dentre outros, participaram do projeto Daniel Gonzaga (neto do homenageado), Ângela Rô Rô, Maria Alcina, Jussara Silveira, Elke Maravilha, Wanderléa, Baby do Brasil, Simoninha, Claudette Soares, Eliana Pittman, Filipe Catto, Thaís Gulin, China e Guadalupe.

SHOW Quinteto Violado 6, 7 e 8 de dezembro Caixa Cultural Entrada gratuita

DVD

QUINTETO CANTA O REI DO BAIÃO “A sustança, o tutano do corredor do boi. A vitamina, a proteína. Padim Cícero, Frei Damião. Ascenso Ferreira, Lampião, Cego Aderaldo, Nelson Ferreira, Zé Dantas. Tudo isso é o Quinteto Violado.” Essa descrição que Luiz Gonzaga traçou do grupo recifense quando do lançamento do seu primeiro disco, em 1972, exemplifica a maneira como ele se desenvolveria a partir daí, emparelhado com as manifestações populares, os folguedos e o ambiente das feiras no interior – componentes que também são marcas do Rei do Baião. Se essa correlação entre eles e o Rei era evidente ali, fica ainda mais explícita no DVD Quinteto canta Gonzagão, registro do show ao vivo no palco do Forrocaju, em Sergipe, realizado este ano no São João de Aracaju e encartado nesta edição da Continente. No repertório, estão alguns clássicos da música nordestina, célebres na voz de Gonzagão, e que, sob a régia do Quinteto, vêm com arranjos elaborados. Para Marcelo Melo, voz, violão e viola do grupo, o produto é resultado dessa relação íntima com o cantor sertanejo. “Os primeiros momentos da história do Quinteto foram em turnê com Gonzaguinha,

Gonzagão e Dominguinhos. Desde o início, tivemos uma convivência fraterna, de ouvir, de sugerir e de opinar”, comenta. Dali surgiram algumas parcerias. No disco Antologia do baião (1977), do grupo, Gonzaga empresta a voz para uma versão da música que o tornou célebre. “A primeira vez que ele nos escutou, disse que tocávamos a mais bela leitura da Asa branca. Anos depois, fez essa participação”, lembra Marcelo. O Quinteto retribuiu a participação em O rei volta pra casa, disco de 1982 de Gonzagão. Essa música não entra no DVD, mas outras versões que marcaram a afinidade estão no repertório, como Acauã, Algodão e Pau de arara. “Toda homenagem a Gonzaga é válida, ainda mais este ano. Gonzaga é a essência da cultura nordestina. Tem que ser falado sempre, é um capítulo incontestável da música brasileira”, afirma Marcelo. Para quem quiser conferir uma versão pocket do show, ele será apresentado nos dias 6, 7 e 8 deste mês, sempre às 19h30, na Caixa Cultural (Marco Zero, Bairro do Recife), junto com a exposição Nossos Encontros com o Rei do Baião, que fica em cartaz até o dia seguinte, 9 de dezembro.

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VEGETARIANISMO Os motivos por que abandonamos a carne Saúde, ética e ecologia fazem parte das preocupações de quem prefere colocar no prato cereais, verduras, frutas, amiláceos... TEXTO Renata do Amaral FOTOS Rafael Medeiros

Cardápio 1

“Há uma certa característica

esquizoide no relacionamento que mantemos com os animais hoje em dia, no qual sentimento e brutalidade coexistem. Metade dos cachorros dos EUA receberão presentes no Natal deste ano, entretanto, poucos de nós paramos para pensar na vida de um porco – um animal geralmente tão inteligente como

um cachorro –, que se transformará no presunto de Natal”. A afirmação é do escritor, jornalista e nada vegetariano Michael Pollan, autor de O dilema do onívoro: uma história natural de quatro refeições. A questão que o livro propõe é: nós podemos comer tudo, mas o que devemos comer? Prestes a se refestelar com uma costela malpassada enquanto

lê o clássico do vegetarianismo Libertação animal, do filósofo Peter Singer, ele conclui: ou evitamos olhar nos olhos do animal ou nos tornamos vegetarianos. “Evitar a questão é não saber que, por exemplo, frangos têm bicos arrancados para evitar que se matem por causa do confinamento. Se as paredes dos nossos matadouros se

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Romantismo e a “nova sensibilidade com relação ao mundo natural”. O que está em jogo hoje, diz Fernández-Armesto, é o trinômio saúde, moralidade – frisada por Pollan – e ecologia. O uso da agricultura para alimentar os animais e não as pessoas perpassa a questão ecológica. Em relação à saúde, já se sabe que cereais, leguminosas, oleaginosas, amiláceos, legumes, verduras e frutas suprem as necessidades dietéticas. Apenas a vitamina B12, que só existe em alimentos de origem animal, precisa ser complementada.

NOVOS SABORES

1

tornassem transparentes, literal ou mesmo metaforicamente, não continuaríamos mais a criar, matar e comer animais da maneira como fazemos”, afirma Pollan, ao se referir à indústria da carne nos EUA. E, em seguida, come sua costela. Optar por não consumir nada de origem animal não é novidade. Em

Comida: uma história, Felipe FernándezArmesto conta que o vegetarianismo existe desde a Antiguidade. As razões iam da religião, como a transmigração da alma no budismo, à psicologia, como o suposto caráter colérico de quem ingere carne. O movimento vegetariano contemporâneo, porém, surge no século 18, com o

O Recife conta, há dois anos, com uma representação local da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), que se reúne quinzenalmente. O Grupo Mandacaru, coordenado pela professora universitária Bárbara Bastos, tem como objetivo disseminar o vegetarianismo estrito – sem ovo nem leite – por meio de ações como palestras e panfletagem. Entre os cerca de 40 membros, a ética é a motivação mais forte. A SVB é responsável pela campanha Segunda sem carne, em que o restaurante participante pode não vender carne ou simplesmente oferecer mais opções vegetarianas naquele dia. O slogan: “Descubra novos sabores”. Para Bárbara, em vez de uma dieta específica, é ainda mais importante que os pratos triviais, como feijão, não tenham ingrediente animal. “Algo que encha a barriga você encontra em qualquer lugar, mas realmente gostoso é difícil”, reclama. Foi a preservação ambiental que a fez parar de comer carne, há quatro anos. A ética lançou-a num processo de mudança interior. “A gente se dessensibiliza”, comenta. Ela busca seguir o veganismo, que evita qualquer exploração animal, como seu uso em testes de medicamentos. Durante a entrevista, uma amostra da dificuldade dessa opção: ela quis pedir um inocente açaí na tigela, mas a granola continha mel e manteiga entre os ingredientes. Associado à SVB, Josias Andrade é sócio do Empório Pura Vida, que vende produtos naturais. Há um ano e meio, no Bairro de Santo Antônio, a loja comercializa castanhas, frutas secas, cereais e produtos orgânicos

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Página anterior 1 GERMINAÇÃO

Quem opta pelos brotos e sementes aposta na vitalidade dos alimentos

Nesta página 2 JOSIAS ANDRADE

Vegetariano há cinco anos, acredita que a sensibilidade à causa animal une o grupo

3-4 EMPÓRIO PURA VIDA Localizado no Bairro de Santo Antônio, o estabelecimento comercializa produtos naturais 5 ATIVISMO A causa do vegetarianismo tem ganhado cada vez mais adeptos

e importados. Vegetariano há quase cinco anos, ele defende que não adianta apenas cortar ingredientes sem acrescentar outros. “Não há necessidade de ‘se enganar’ com produtos como carne de soja”, considera. Josias acredita que o que une o grupo é a sensibilidade à causa animal. Ele não se preocupa muito com rótulos como vegetariano, vegano ou crudista, mas defende o consumo de produtos orgânicos e o cuidado com a saúde – é comum que quem opta pela restrição de insumos animais compense aumentando fritura, açúcar e sal. “A dieta é saudável e ética, ou seja, o vegetarianismo é bom para todo mundo”, opina. O lado ativista do grupo também aparece no ilustrador e designer Igor Colares, que se prepara para lançar o livro infantil O bezerro escritor. “A obra foi financiada colaborativamente por meio do site Catarse. Ele trata do leite pelo ponto de vista de um bezerro desmamado”, explica. A meta era atingir R$ 5 mil para possibilitar a publicação, mas ele conseguiu arrecadar mais que o dobro. Em vez de 500 exemplares, vai imprimir 1 mil.

ESTILO DE VIDA

Na reta final de sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a antropóloga Luciana Lira estuda a simbologia e a moral alimentar entre vegetarianos, veganos e adeptos da alimentação viva. Ela acompanhou encontros dos grupos SVB e Ativeg e observou que os indivíduos eram motivados por razões diferentes, mas com algo em comum: a ideia de um cardápio irrepreensível, cada um do seu ponto de vista.

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Apesar da heterogeneidade, algumas ideias costumam se repetir. Uma delas é a ética que não faz distinção entre espécies comestíveis e não comestíveis. Não se deseja carregar o peso da morte de quaisquer animais. “Isso vai além da comida: é uma postura de vida”, afirma. Na observação participante e nas entrevistas, ela percebeu que o discurso científico tradicional existe junto a outros, que contrariam as afirmações a respeito da necessidade do organismo humano de consumir carne e ainda apontam alguns malefícios desse consumo. Também é interessante notar que, para alguns indivíduos, não consumir produtos de origem animal faz parte de uma busca por reconexão com a natureza – um posicionamento relativo a todos os seres que dividem o planeta com nossa espécie. Há também um lado de justiça social, pois a escolha pode ter impacto em uma distribuição global mais equitativa dos alimentos.

PESQUISAS

A heterogeneidade dos adeptos comprova que existem diferentes motivos para aderir ao vegetarianismo desintoxicar e aprender sobre o também chamado crudismo, neologismo criado para substituir o crudivorismo, termo que ela prefere evitar por lembrar carne crua. Ana começou a pesquisar sobre o assunto depois de realizar um jejum de 21 dias, apenas com sucos, em 2001. “Foi um processo muito transformador, um mergulho interior”, lembra. O centro nasceu da vontade de oferecer um espaço tranquilo e isolado para pessoas em busca de mudança alimentar. “Elas

chegam sentindo que o corpo precisa de uma qualidade de vida melhor, então vêm para cá dar uma resetada”. A base dessa alimentação é o suco verde, de folhas, de preferência brotos, como a grama de trigo. “O tipo de folha mais vivo que existe são os brotos ou as ervas que nascem sem cultivo”, acredita. Há várias receitas, mas a sua usa insumos desintoxicantes como pepino, gengibre e limão. A salada, com sementes e algas, é o prato principal. No jantar, sopa crua. Só leguminosas e quinoa passam por leve cozimento: depois da fervura, apaga-se o fogo e joga-se o alimento na água. A ideia é fazer as substituições naturalmente, com pratos saborosos, e reeducar o paladar. “Não acredito em sacrifício: na base da força de vontade não vai!”, opina. Ana não advoga uma vida 100% crudista, mas acredita em modificações positivas na dieta e na vida. Por isso defende que a alimentação viva seja gostosa e fácil de incorporar ao cotidiano. “A relação com o alimento tem que ser saudável, sem culpa, buscando sempre o caminho da alegria.”

MUDANÇA DE HÁBITO

A Unidade de Cuidados Integrais à Saúde (Ucis) Professor Guilherme Abath, da Prefeitura do Recife, oferece um curso de alimentação viva em seis módulos, com teoria e prática a cada encontro. Depois da introdução, a segunda aula aborda a germinação de brotos. A nutricionista Rafaela

IMAGENS: REPRODUÇÃO

Há diferentes argumentos para aderir ao vegetarianismo e isso se expressa pela heterogeneidade dos seus adeptos. Por exemplo, a antropóloga conta que pesquisas indicam que, nos EUA, esse tipo de dieta aumentou recentemente entre adolescentes e idosos – nos primeiros, por razões políticas e ambientais; nos segundos, por motivos de saúde. E ainda existem aqueles que relacionam o vegetarianismo à espiritualidade. Luciana se tornou

ovolactovegetariana nos últimos anos motivada pela pesquisa, para não ser incoerente. Mas, hoje em dia, não pretende voltar a comer carne por causa da questão animal. Recuperação mais rápida nas doenças e mais disposição nos planos físico, mental e emocional são alguns dos benefícios da alimentação viva, de acordo com a proprietária do Centro Verde Vida, Ana Oliveira. O local, no Vale do Catimbau, interior pernambucano, recebe pessoas interessadas em se

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Cardápio

6 MOQUECA DE CAJU Uma das receitas do curso de alimentação viva da Unidade de Cuidados Integrais à Saúde (Ucis) Professor Guilherme Abath 7 SEMENTES Sua rica variação tem grande valor nutricional 8 RAFAELA FERNANDES A nutricionista defende que é possível viver bem sem produtos animais

Fernandes, uma das responsáveis pelo curso, fala sobre saúde no terceiro encontro. A equipe apresenta sementes como chia e amaranto, que os alunos não costumam ver no dia a dia, aborda valores nutricionais e ensina combinações. A segurança alimentar e nutricional é o assunto seguinte. “Além da

higiene sanitária, a aula tem um teor de sustentabilidade: falamos sobre impacto ambiental, perigos dos agrotóxicos e benefícios dos orgânicos”, explica, lembrando que há em torno de 15 feiras orgânicas na cidade. O planejamento alimentar vem em seguida, com um cardápio montado pela turma. O último

encontro é uma confraternização, em que cada aluno traz um “prato vivo”. Espontaneamente, eles riscam da lista de compras alimentos que não são bons para a saúde. “A proposta é incluir produtos vivos no dia a dia, mas não de forma exclusiva”, explica. Segundo a professora, os grupos costumam ser bem misturados – de senhoras donas de casa a profissionais e estudantes de várias áreas – e terminam gerando também novas amizades. Antes das degustações, todos cantam uma música em tupiguarani em agradecimento à natureza. “A semente está despertando para a vida e quem a consome usufrui essa energia”, explica a nutricionista. O carro-chefe da alimentação viva é o

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DIVULGAÇÃO

Festival

ATIVISMO PUNK

Na alimentação viva, o alimento cru evita a desnaturação das enzimas e preserva a sua energia vital suco de clorofila, mas as receitas do curso incluem também moqueca de caju, leites vegetais (de amêndoas, semente de girassol, quinoa ou linhaça, por exemplo) e torta doce viva, com base de castanha-do-pará hidratada, passas e coco ralado e recheio de creme de frutas frescas. Rafaela aderiu ao vegetarianismo no ano passado, quando fez, como aluna, o curso do qual hoje é professora. Segundo ela, a formação em Nutrição ainda é resistente a essa corrente, mas ela descobriu que dá para viver muito bem sem produtos animais e que existem muitos estudos confirmando que uma alimentação vegetariana balanceada é saudável. A saúde foi sua motivação primeira,

mas depois vieram as questões ambientais e éticas. A médica acupunturista Régia Sofia de Azevedo, colega de Rafaela na Ucis, também teve que desfazer alguns mitos aprendidos na faculdade, para se tornar vegetariana. “Eu achava que a gente precisava da proteína animal para viver, mas podemos ter uma vida saudável na dieta vegetariana”, conta. Ela deixou de comer carne vermelha por questão de saúde, mas parou com as outras há dois anos, quando conheceu problemáticas envolvidas. A alimentação viva faz parte do seu cotidiano. Para Régia, quem opta pelos brotos e sementes germinados muda o foco para a vitalidade dos alimentos. O alimento é cru para evitar a desnaturação das enzimas e preservar a energia vital. No consultório, ela aproveita para orientar os pacientes a terem uma alimentação mais natural e fala sobre os problemas do consumo da carne. “O equilíbrio é importante para todo mundo”, diz Régia. “A gente acaba ressignificando as coisas. Hoje eu não vejo mais a carne como comida”, afirma Rafaela.

O que veganismo e estilos musicais como punk e hardcore têm a ver? Tudo, segundo explica Eurick Dimitri, um dos organizadores do festival Verdurada, que acontece anualmente no Recife e culmina em uma refeição sem produtos animais. “O straight edge é apenas uma postura de abstinência e moderação diante de um mundo, especialmente de um nicho cultural, o punk, marcado por excessos autodestrutivos”, explica. Caracterizado por posturas pacifistas, libertárias e não violentas, o movimento straight edge tomou para si o discurso da libertação animal nos anos 1980. O vegetarianismo e o veganismo passaram a fazer parte das letras das músicas e dos fanzines, paralelamente a boicotes a empresas ligadas à indústria da carne. Uma das bandas de hardcore mais conhecida do país, Ratos de Porão, tem membros adeptos. Nascida em São Paulo em 1996, a Verdurada é realizada em vários estados e inclui não apenas música, mas também palestras, oficinas e filmes. A próxima edição pernambucana está prevista para o dia 15 deste mês, com as bandas The Renegades of Punks e Robot Wars, de Aracaju. “As pessoas vêm notando cada vez mais o impacto de suas pequenas ações em seu entorno e se percebendo com parte integrante de um grande equilíbrio”, afirma. RENATA DO AMARAL

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HERBERT BENDER

Leitura PERDAS Menos cultores do pensamento refinado

Mortes de Millôr Fernandes e Daniel Piza remetem a intelectuais de gerações distintas que marcaram a produção jornalística e crítica nacional TEXTO Lucas Colombo

Se 2012 foi um ano de fatos políticos auspiciosos para o Brasil (pense no veredito do Mensalão), também teve na morte de grandes nomes da cultura e da imprensa alguns de seus eventos lamentáveis. É impossível não incorrer no clichê de que “ficamos menos inteligentes” com o falecimento de Millôr Fernandes, em março, e de Ivan Lessa, em junho, dois representantes de um tipo cada vez mais raro, por aqui, de jornalismo: o que lança um olhar refinado, mesmo sobre os temas mais triviais, e busca provocar perspectivas no leitor. Eles se foram, justamente, numa temporada em que se lembrava de dois outros incríveis jornalistas e escritores: Paulo Francis, por ocasião dos 15 anos de morte, e

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Nelson Rodrigues, pelo centenário de nascimento. E isso tudo somado à morte de Daniel Piza, no penúltimo dia de 2011, que era um desses hoje raros jornalistas densos e provocativos. Piza, aliás, foi amigo de Francis e muito influenciado por ele e Millôr. Apreciava a versatilidade e o humor de ambos e o fato de emitirem suas opiniões com vigor, coloquialismo e liberdade. Quanto a Nelson, considerava-o ótimo cronista esportivo e, de longe, nosso maior dramaturgo, criador de personagens e situações dos quais “brotam os dilemas morais de qualquer ser humano”, como escreveu. Por sinal, a cultura brasileira dos anos 1950, da qual Francis, Millôr e Nelson são expoentes, interessava-o muito.

Piza chegou a dizer que, um dia, ainda faria um livro sobre aquele período da vida intelectual nacional, “quando o Brasil, com o atraso costumeiro, viveu sua modernidade”. A época foi mesmo eufórica: construção de Brasília, surgimento da bossa nova e da poesia concreta, publicação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, presença de importantes revistas culturais e atuação de críticos como Otto Maria Carpeaux e José Lino Grünewald, gestação do Cinema Novo... e Francis, Millôr e Nelson a produzir muito. Três das maiores inteligências nacionais, porém, não só compartilharam uma época rica. Tiveram trabalhos e vidas que se aproximaram em vários aspectos. Nelson nasceu em 1912, no Recife; Millôr, em 1924, no Rio de Janeiro; e Francis, em 1930, também no Rio. Contam anos de diferença, porém, naqueles tempos de ebulição cultural/ intelectual, cujo epicentro era, naturalmente, o Rio, então capital, eles estavam lá, colaborando para tal ambiente, cada um à sua maneira. Nelson, após inovar o teatro nacional, nos anos 1940, continuava a escrever dramaturgia e tocava a coluna A vida como ela é, no jornal Última Hora, para fascínio e escândalo dos leitores. Francis redigia críticas eruditas e impiedosas de teatro e editava a Senhor, revista que, com uma mistura deliciosa de crítica cultural, reportagens, humor e inéditos literários, se tornaria um marco da imprensa cultural brasileira. Millôr, por sua vez, desenhava, elaborava suas primeiras peças (como se vê, ligações com o teatro, que vivia fase relevante na cultura, também unem o trio) e assinava, em O Cruzeiro, a moderna seção de humor Pif Paf. Na revista, foi colega de Nelson, de quem se tornou amigo. O livro Millôr definitivo – a bíblia do caos (L&PM, 2007), reunião de mais de cinco mil frases e comentários seus sobre todos os assuntos que se possam imaginar, traz uma nota do autor revelando “intervenções” em Meu destino é pecar, folhetim que Nelson criou em 1944, sob o pseudônimo Suzana Flag, para O Jornal, do mesmo grupo de O Cruzeiro. Diz Millôr que, na redação, “era brincadeira usual minha introduzir trechos enquanto

Nelson falava ao telefone. Quando ele voltava, lia o trecho introduzido, ria surdo – ah, ah! – e continuava dali mesmo”. Um ano antes, Millôr assistiu ao lado de Nelson à estreia de Vestido de noiva, que o amigo lhe dedicara. Ao fazer uma observação à peça, ouviu do dramaturgo a seu respeito: “É claro que você achou genial. E não me venha com pequenas restrições”.

NELSON E FRANCIS

Crítica é o principal elo entre Nelson e Francis. Este, foi muito amigo de Millôr e dizia ter conhecido bem Nelson, mas não teve com ele relação forte. Eram de gerações e posições políticas diferentes. Quando foi crítico teatral, Francis atravessava seu período “de esquerda”, enquanto que Nelson, politicamente, sempre foi conservador. Na biografia Paulo Francis: Brasil na cabeça (Relume Dumará, 2004), Daniel Piza conta que, ao tratar de Perdoa-me por me traíres, em 1957, Francis reprovou o hábito de Nelson de reagir às vaias do público, ao final do espetáculo. Ao que o dramaturgo rebateu, no mesmo ano, criando o personagem Dorothy Dalton, gay e covarde, que encarnava o “crítico da nova geração”, em Viúva, porém honesta. Francis, conforme Piza, não se sentiu pessoalmente satirizado. Piza ressalta ainda, no livro, que Francis foi um crítico teatral arguto, mas que, claro, cometeu erros, como ao avaliar a obra de Nelson. Ele admirava seu diálogo coloquial, fácil de falar, e o “impacto cênico” de suas situações humanas. Todavia pensava que o autor “ainda tinha o que acrescentar” e o queria mais politizado e intelectualizado – mais ou menos o que expôs em Nelson nunca foi um intelectual, texto redigido após a morte desse, em dezembro de 1980, e presente na coletânea Diário da corte (Três Estrelas, org. Nelson de Sá), lançada em abril último. Francis só foi reconhecer plenamente o valor do teatro rodriguiano bem depois. Numa coluna de 1990, afirmou que Doroteia, Álbum de família e Senhora dos afogados são “pura poesia teatral”, que Nelson sabe “do que é sexualmente inconsciente e irresistível” e, “se escrevesse numa língua mais divulgada”, teria morrido rico e famoso e “faria parte dos repertórios das grandes companhias”.

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1 DANIEL PIZA Tinha apreço pela década de 1950, da qual Francis, Millôr e Nelson são expoentes

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A obra de Nelson trouxe uma lufada de ar fresco ao teatro, e Francis e Millôr, no fim da década de 1960, à imprensa. Então n’O Pasquim, que ajudaram a criar, os dois levaram ao ápice o viés modernizante de suas experiências profissionais anteriores (linguagem mais direta e coloquial, olhar mais internacionalizado) e, assim, renovaram o jornalismo do Bananão – para citar termo de Ivan Lessa, colega deles no semanário. A informalidade d’O Pasquim permitia mostras de admiração e amizade (até muito) frequentes. Em 1970, Millôr tascou: “O Paulo Francis é um bípede implume insuportavelmente sapiens”. Um ano depois, Francis mudou-se para os EUA, mas os laços seguiram. Numa coluna de 1990, assinalou que Millôr “não era para todos os gostos. É picante, amargo, requer cabeça para entendêlo”; e, em outra, dirigiu-lhe quase o mesmo comentário dirigido a Nelson: “Millôr, se não escrevesse numa língua de periferia, seria considerado um dos melhores humoristas do mundo”. Quando Francis morreu, em fevereiro de 1997, um dos melhores

A franqueza de opiniões era marcante em Nelson, Millôr e Francis. Eles eram hábeis em contrariar o senso comum obituários foi de Millôr. Escreveu que, por trás da postura esnobe do amigo, havia uma alma afável e até carente. E que reagia à sua veemência como crítico com of course, Shakespeare, de quem foi um dos maiores tradutores brasileiros: “Diante de alguns de seus acessos – comigo jamais demasiados –, eu zombava, parodiando, comicamente, o Horácio final do Hamlet: ‘Dá-lhe, sweet prince!’”. Ainda naquele mês, Millôr, em entrevista, voltou a destacar a contundência de Francis, alguém “capaz de expressar suas opiniões sem medo e, às vezes, até exageradamente”. Tal franqueza de opiniões é traço marcante dos três, não só de Francis. Nem é preciso enfatizar suas capacidades polêmicas, já tão

reconhecidas. Francis, Millôr e Nelson eram hábeis em contrariar o senso comum. O primeiro foi trotskista, quando a maioria era “de direita”, e virou “neoliberal”, quando a moda era ser “de esquerda”. Nessa fase, cunhou frases que deixavam (ainda deixam) os “politicamente corretos” furibundos, como “Quando ouço falar em ecologia, saco logo meu talão de cheques”, ou “A melhor propaganda anticomunista é deixar os comunistas falarem”. Nelson, é claro, não ficava atrás em acidez: “As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”. Millôr manteve-se, a vida toda, crítico de ideologias de qualquer ordem. “Pensamento deve ser livre, e ideologia bitola o pensamento. Quem se diz um ‘pensador marxista’ não é pensador”, afirmou numa entrevista. Com os jovens, o trio também era reticente. Francis: “A juventude de hoje pensa que inventou alguma coisa. E inventou. Alardear o que faz. Só”. O comentário é de 1988, mas serve à geração Facebook. Para esta, que julga “velho” tudo que tem mais de 30 anos, Millôr igualmente teria um recado: “Sou jovem há muito mais tempo do que qualquer desses rapazinhos que andam por aí”. Mais sucinto foi Nelson, solicitado a dizer algo aos moços: “Envelheçam!”. A agudeza desses gênios faz falta. Pena que o livro sobre os anos 1950, no qual certamente abordaria os trabalhos deles, é uma das coisas sem que Daniel Piza nos deixou. Ficamos também sem sua coluna dominical, que lembrava o Diário da corte de Francis, e as citações certeiras de Millôr e Nelson que sempre fazia. Neste 2012, teria escrito mais uma vez sobre o amigo Francis e lastimado muito as mortes de Millôr e de Ivan, até porque saberia que não há reposições à altura. O próprio Francis, nos últimos anos de vida, criticava muito o “nivelamento por baixo” da imprensa, que não ousava mais “desagradar o leitor”. Millôr também era cético quanto ao jornalismo atual: “Outro dia, uma repórter me ligou para saber o que eu andava lendo. Almanaque Capivarol, respondi. Ela pediu para soletrar!”. Com essas ausências, fica mais difícil de suportar uma época assim.

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LIVRO-IMAGEM Nem tudo que se lê nos livros são letras

Em A trilogia da margem, Suzy Lee comenta os “erros” intencionais que comete em suas obras, criando “ruídos” para estimular a imaginação dos pequenos leitores TEXTO Gianni Paula de Melo

Há uma regra editorial implícita

que desaconselha ilustrações no centro das páginas duplas, para evitar perturbações na leitura. No entanto, a artista coreana Suzy Lee questiona esse impedimento no livro A trilogia da margem, propondo a seguinte reflexão: e se a linha visível da encadernação não fosse censurada, mas, sim, aceita? Esse é o ponto de partida do ensaio da autora que expõe o seu processo criativo e descortina detalhes de sua obra de forma pedagógica, com o intuito de sensibilizar o público para

as nuances e as potencialidades do livro-imagem, gênero ao qual se dedica. O episódio com um dono de livraria do Reino Unido dá uma boa pista da qualidade de “confusão” proposta pela desenhista. Após receber os exemplares de Onda, ele lhe mandou a seguinte mensagem: “Estamos um pouco confusos com as páginas duplas, parecem faltar algumas partes da criança e das gaivotas. É assim mesmo? (...) Será que não entendemos o sentido ou o impressor se equivocou? Foi um erro de impressão?”.

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No Brasil, a ilustradora ficou conhecida, justamente, pelas publicações Espelho (2003), Onda (2008) e Sombra (2010), que formam o conjunto analisado em A trilogia da margem, cujo viés é teórico. Nela, descobre-se que o seu projeto estético começou, de forma mais consciente, num trabalho que antecede os livros citados. Quando criou as imagens para uma edição de Alice no país das maravilhas (2002), Suzy Lee usou o conceito de “sonho dentro do sonho”, explorando camadas de sentidos nos seus desenhos. Essa experiência trouxe o repertório necessário para a idealização de Espelho, que foi desenvolvido em apenas uma semana. Em A trilogia da margem, as etapas da sua carreira são apresentadas de forma crítica e lúdica, sem tendência acadêmica ou cacoetes técnicos. Fica perceptível a preocupação em sensibilizar os educadores, sejam os professores ou os próprios pais, para uma mediação eficaz entre o livroimagem e as crianças. Aliás, segundo a coreana, são elas que tornam o gênero possível. Com passagens didáticas, Suzy Lee estimula o olhar cuidadoso daqueles

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

Página anterior 1 SOMBRA

A autora intensifica a movimento das ilustrações de uma página para a outra

Nesta página 2 ONDA

Nas obras da trilogia, nota-se que a dobra física do papel distingue fantasia e realidade

Leitura que se propuserem a experimentar o tipo de narrativa que constrói, na qual o objeto livro é pensado desde a capa, as guardas iniciais e a folha de rosto. Os “erros” intencionais, apontados pelo proprietário da livraria britânica, também são elementos que demandam atenção, porque criam “ruídos” que não se pretendem gratuitos. As páginas vazias, por exemplo, são usadas como um conceito da artista e surgem para dar efeito dramático, seja no desaparecimento da personagem, seja no momento em que ela apaga a luz. Nas obras da trilogia, percebe-se que a dobra física central cumpre um papel de divisor entre fantasia e realidade, e que o diálogo estabelecido entre esses dois lados foi se tornando mais complexo a cada lançamento. Se Espelho brinca com a impossibilidade de se identificar o que é real e o que é reflexo, tendo apenas uma personagem para sustentar a dinâmica do jogo, Onda acrescenta as gaivotas que acompanham a protagonista no enfrentamento do desconhecido, que está do outro lado da fronteira – da divisória –, além de anteciparem nas

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Os livros sem texto ainda são vistos como produtos menores por alguns adultos, mas podem estimular a imaginação infantil suas reações alguns desdobramentos da narrativa. Sombra, por sua vez, intensifica o movimento das ilustrações de uma página para outra, no entrelace entre os objetos e as imagens projetadas por eles, transmutadas em criaturas.

SENSORIAL

Alinhada a uma maneira específica de elaboração de histórias, a coreana defende a motivação criativa que vem da forma estrutural do próprio livro e não somente de temas literários. Seu interesse está mais atrelado à experiência imagético-sensorial, por isso ela chega a confessar: “Em alguns momentos, penso que contar histórias pode ser uma desculpa para espalhar imagens”. Mas, apesar do zelo da

autora, o gênero ainda é valorizado por um público restrito, sendo o próprio mercado editorial, muitas vezes, insensível à sua proposta. Um exemplo peculiar dessa incompreensão foi vivenciado por Suzy Lee na Feira do Livro Infantil da Bolonha, quando ela apresentou um protótipo de livro-imagem e certo editor “interessado” declarou: “Os pais não comprarão, se não houver palavras. Por que você não acrescenta algumas?”. Embora o comentário revele o pragmatismo do profissional, há um sentido na sua preocupação, se estiver em questão a popularidade do lançamento e seu retorno financeiro. Os livros sem texto verbal ainda são vistos como produtos menores por muitos adultos, mas podem ser os detonadores da imaginação para os pequenos. No seu ensaio, a coreana evidencia peculiaridades na fruição de diferentes gerações. Os leitores mais velhos – mesmo aqueles que se interessam pelo gênero – tendem a “apreciar a estética e a estrutura dos livros ilustrados”, enquanto as crianças não estão focadas nessas formalidades. Para elas, interessa transitar entre ilusão e realidade, o que não significa incapacidade de distinguilas. “As crianças não confundem realidade com fantasia. Com certeza, elas sabem o que não é real, mas brincam de faz de conta com muita seriedade”, avalia Suzy Lee. Experiências em sala de aula confirmam a percepção da ilustradora. Como ficamos sabendo em A trilogia da margem, quando ela recupera depoimentos de professores que debateram as suas obras e pediram, por exemplo, para que os estudantes criassem suas próprias histórias a partir do que apreendiam da narrativa visual. O livro ainda traz recriações dos trabalhos da coreana, remontados com o traço ainda pouco coordenado dos seus apreciadores, os pequenos leitores.

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INDICAÇÕES ROMANCE

R. K. NARAYAN Um tigre para Malgudi Guarda-Chuva

Na literatura, é comum vermos animais em papéis coadjuvantes, limitados pelo olhar condescendente dos humanos, ou encarnando qualidades e defeitos de nossa espécie. Em Raja, tigre que habita a fictícia Malgudi, temos a chance de nos aproximar de uma perspectiva animal autêntica e complexa, que vai de seus instintos à condição de ser espiritual.

DEBATE

ALEXANDRE DUGIN E OLAVO DE CARVALHO Os EUA e a Nova Ordem Mundial Vide Editorial

Embora não haja consenso de opiniões , as exposições, réplicas e conclusões que os dois pensadores apresentaram trazem análises históricas e multidisciplinares sobre a ontologia da Nova Ordem Mundial e a real participação dos Estados Unidos no jogo político que envolve ainda as nações islâmicas, a China e a Rússia.

INFANTIL

HABIB ZAHRA E VALERIA REY SOTO O burro errante Cubzac

Um burro educado para a intolerância, quando fica mais velho, ganha o mundo. Nele, dá-se conta de que suas crenças são falsas e experimenta a dissolução da identidade. Espantado, percebe que não se trata de ser “um nada”, mas de ser “tudo”, o somatório de si e dos outros. Livrinho iniciático.

ENTREVISTA

CARLOS GALILEA Violão Ibérico Trem Mineiro

O crítico de música popular espanhol Carlos Galilea traça um perfil histórico do mais difundido instrumento de cordas no Ocidente, com ênfase nos três países onde ele se ligou mais intimamente aos gêneros musicais que os representam no nível mundial: o flamenco, na Espanha; o fado, em Portugal e o choro, no Brasil. O livro traz entrevistas com 30 músicos.

Teatro

PARA CONHECER O DRAMATURGO ROMENO MATÉI VISNIEC

Numa peça curta, dá-se o encontro entre o escritor e seu personagem. Este queixa-se de não ter jamais entrado em cena e exige do dramaturgo sua inclusão no texto. O escritor é Beckett, o personagem, Godot. A peça, O último Godot, do dramaturgo romeno Matéi Visniec, que acaba de ser lançada no Brasil. Agora, quem entra em cena é Tchékhov, cuja presença é, às

vezes, compartilhada, outras, intercalada pela de alguns de seus personagens teatrais. Encontramos, em A máquina Tchékhov, o escritormédico já doente e aconselhando os mais jovens sobre o ofício: “Se quiser ser escritor, escritor no sentido profundo da palavra, mantenha sua independência a qualquer preço. Seu dever é colocar questões, não respondê-las”. Essa é parte de uma de suas “falas” iniciais, quando contracena com Treplev, um moço ferido e desesperançoso. Além de Beckett e Tchékhov, Matéi Visniec também coloca em cena o romeno Emil Cioran, em Os desvãos Cioran ou Mansarda em Paris com vista para a morte. Escolha que poderia soar estranha

para alguns – “As reflexões de um pessimista no palco? Como encená-las” –, mas que é bem- defendida pelo diretor teatral Gilles Losseroy: “O teatro é povoado de personagens que proferiram palavras filosóficas. Ninguém se espanta, portanto, de ver um filósofo chegar ao patamar de personagem”. As três peças citadas – que estabelecem o diálogo entre um dramaturgo e suas influências – integram um conjunto de 15 obras de Visniec publicadas pela Editora É. “Que fôlego! Que coragem!”, pensamos nós, já que se trata de um empreendimento ousado, por dois motivos. Por não sermos, nós brasileiros, um público devotado à leitura de textos teatrais, e por ser Matéi Visniec um quase desconhecido aqui, mesmo entre os cultores da arte teatral. Registram-se apenas duas montagens de textos seus no país: Um trabalhinho

para velhos palhaços e Teatro decomposto ou O homem-lixo (também publicados neste “lote”). Se você tiver notícia de mais alguma montagem, leitor, diga aí. Mas, mesmo os que não são afeitos à leitura de textos teatrais, encontrarão em Matéi Visniec uma grata surpresa. Trata-se de um exilado (ele vive na França desde o final dos anos 1980), um autor francamente engajado, político, crítico; postura cada vez mais rara e “desnecessária” à sociedade eufórica. Ainda que sua ambiência e sua temática estejam centradas nos problemas europeus, compartilhamos suas ideias, sua percepção do absurdo (tratam-no por “novo Ionesco”), sua urgência em manter-se combativo. A tragédia da perda é belamente traduzida por esse autor, na peça A palavra progresso na boca de minha mãe soava terrivelmente falsa. Uma obra-prima, à qual vale a pena acorrer. ADRIANA DÓRIA MATOS

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DIVULGAÇÃO

Palco 1

MARCOS Duas companhias em tempos de celebração

Vias da Dança e o Grupo Grial comemoram, respectivamente, 20 e 15 anos de existência, apostando no trabalho em grupo e na formação de bailarinos

1 IN VITRO Montagem do Vias da Dança questiona os padrões de beleza 2 ENTRE NÓS Ivaldo Mendonça foi coreógrafo desse espetáculo da Via da Dança

TEXTO Christianne Galdino

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ROGÉRIO ALVES/DIVULGAÇÃO

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Já se disse que a conjugação tempo-espaço é matéria-prima das coreografias. E não demora muito para esses fatores roubarem a cena quando se fala em dança. As datas redondas ou efemérides, por exemplo, nos levam a pensar sobre o assunto. Qual o tempo necessário para se formar um bailarino, montar um espetáculo ou consolidar a carreira de uma companhia? Questões que podem ter respostas distintas, mas que revelam caminhos em comum aos artistas e profissionais da dança. As duas personagens que serão apresentadas aqui estão na contramão da tendência atual, em que prevalecem projetos pontuais, de curta duração, e trabalhos solo. Heloísa Duque mantém, há 20 anos, a Cia. Vias

da Dança. Maria Paula Costa Rêgo comemora o 15º aniversário do seu Grupo Grial. Pode soar clichê, mas os fatos mostram que essas duas bailarinas são verdadeiras guerreiras. Ainda que lutando “com armas diferentes”, elas descobriram um jeito de manter seus projetos e grupos em funcionamento, construir uma trajetória baseada no coletivo e ainda oferecer à cidade possibilidades de formação em dança, fomentando o mercado local. Continuando as observações sobre o tempo, é preciso recuar nele para entender melhor os percursos que levaram à edificação desses trabalhos. Então, vamos à época em que Heloísa e Maria Paula escolheram os caminhos da dança. Naqueles anos 1980, o

processo de profissionalização passava sempre por migrações, ao menos, por períodos fora de Pernambuco. “Durante os três anos e meio em que morei em São Paulo, especializeime em jazz e dança moderna, especificamente na técnica da Marta Graham. Fazendo o máximo de aulas que conseguia na Escola da Renée Gumiel, com grandes mestres da área, como a professora Penha de Souza”, recorda a diretora da Vias da Dança. Já Maria Paula, depois do início como discípula das técnicas de improvisação de Enila Rezende e María Fux, atuou no elenco do Balé Popular do Recife e passou 11 anos morando e estudando dança na França. Porém, mesmo antes disso, ela já

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Palco

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experimentava sua vocação criadora, dirigindo e coreografando o grupo Apsaras (Deusas que dançam), formado inicialmente por alunas do Colégio Contato, no Recife. Sobre essa fase, Maria Paula conta que “com a saída do elenco da sede do colégio, a falta de um espaço fixo para aulas e ensaios fez com que o Apsaras virasse um grupo de performances, solicitado para apresentações e intervenções por Jomard Muniz de Brito, que, à época, era um dos gestores de cultura da Prefeitura do Recife”. Também chegaram a desenvolver alguns trabalhos em parceria com o artista Paulo Bruscky. Depois de idas e vindas em busca de sólida formação em

A ausência de cursos de dança fez com que as companhias se tornassem o local de formação de bailarinos dança e de profissionalização, chegou para a bailarina Heloísa Duque o momento de ampliar os propósitos individuais e dar um passo adiante. Aprofundando seus estudos de jazz e tendo uma legião de alunos em escolas e academias do Recife, recém-saída do elenco fundador da pioneira Cia. dos

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Homens, ela decidiu juntar as melhores alunas e formar a própria companhia. “Procurando um nome apropriado, pensei que a nossa dança poderia nos levar por vários caminhos. Por isso, escolhi Vias da Dança”, explica a diretora.

AULAS DE JAZZ

Vinte anos depois, Duque continua dando aulas de jazz e buscando bailarinos para composição de elenco. Comprovou, na prática, que essa técnica de dança – que viveu seus dias de glória na década de 1980 e até meados dos anos 1990, sendo considerada ultrapassada nos dias de hoje – pode ser uma boa matriz para a formação de bailarinos.

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3 HELOÍSA DUQUE Em suas aulas de jazz, bailarina busca novos talentos 4 MARIA PAULA Coreógrafa do Grial adota um processo colaborativo para a escolha dos seus elencos

Foram muitos os talentos descobertos nas turmas de jazz da “professora Helô”. Morando em Belo Horizonte desde 2000, Andréa Anhaia, hoje uma das intérpretes diretoras do coletivo Movasse, é exemplo disso. “Sou bailarina e profissional da dança pela experiência que tive ali. Conheci pessoas importantes que me fizeram trilhar esse caminho. A Vias, na figura de Helô, foi decisiva na escolha que fiz na vida. A companhia, na minha opinião, é uma referência em Pernambuco, principalmente para a formação de bailarinos. Não só tecnicamente, mas também pela forma otimista e esperançosa com que Helô a dirige. Ela acredita! Quem não precisa disso?”

Segundo Duque, seu modo otimista de lidar com o trabalho – descrito por Anhaia – soma-se às técnicas e aos conhecimentos adquiridos na graduação em Psicologia, que contribuem para que aprimore as relações profissionais na companhia, regadas a afeto: “Eu era rigorosa e até intolerante com relação à disciplina, aos horários, mas sempre coloquei no colo. Cuidei e cuido deles como uma mãe mesmo. Muita gente critica, mas acredito que foi por isso que consegui construir essa história e estabelecer uma relação de respeito de que me orgulho muito”. A ausência de cursos regulares de dança (nas academias existiam e existem apenas cursos livres, sem

duração definida) fez com que as companhias se tornassem o local, por excelência, da formação de bailarinos. Se, por um lado, isso pode ser positivo à manutenção de grupos, por outro, pode tornar o processo criativo limitado, pelo fato de o professor assumir também a função de coreógrafo e diretor, sendo referência única para os alunos. Para fugir dessas restrições, desde os anos iniciais da Vias da Dança, Heloísa Duque convida coreógrafos para montar seus espetáculos. Mário Nascimento, Marcelo Pereira, Henrique Lima, Jorge Garcia, Giordani Gorki e Ivaldo Mendonça são alguns dos nomes que já assinaram as coreografias da companhia.

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Palco

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BRINCANTES

No Grial, foram outros os caminhos e escolhas. Maria Paula sempre assumiu a função de coreógrafa, porém adotou um processo colaborativo e critérios bem definidos para a escolha dos seus elencos. Alguns dos bailarinos são o que ela chama de “brincantes de linhagem”, aqueles que pertencem à tradição, que aprenderam os passos da cultura popular com seus antepassados, trabalhando com mestres de cavalomarinho e maracatu rural, em alguns dos seus espetáculos. Os outros bailarinos são o que ela denomina “brincadores de fora”, que frequentam ou participam de alguma maneira dos grupos de cultura popular, mas agregam

A busca por uma sede fixa é um dos desejos das duas companhias para continuar desenvolvendo seus trabalhos na cidade também formação em alguma outra técnica de dança. “Na verdade, selecionar bailarinos que tenham o perfil de que preciso é muito difícil. Porque não é adequado que sejam iniciantes, sem nenhuma experiência; e também não funcionam aqueles bailarinos que têm uma técnica muito cristalizada. E como

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a formação, em Pernambuco, se dá quase que exclusivamente nos grupos e companhias, os intérpretes ficam com a linguagem do coreógrafo muito presente, e, consequentemente, menos disponíveis para novos repertórios. Porém o que mais me interessa é a consciência corporal do bailarino, para que ele possa apreender, sem muita dificuldade, a linguagem do Grial”, detalha a coreógrafa, que continua atuando também como bailarina no grupo. Popular e erudito: dessa mistura é feito o corpo do Grial, que se intitula um grupo de dança armorial. Foi criado em 1997, a partir de uma proposição do próprio mentor do movimento, Ariano Suassuna. A

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5 HEMISFÉRIO SOL Espetáculo do Grupo Grial utiliza elementos circenses e acrobacias 6 INFLUÊNCIAS O trabalho do Grial traz muitos elementos da cultura popular

trajetória profissional de Maria Paula é tão ligada a do escritor, que, além do Grial, ela integra, desde 2007, a equipe de artistas que acompanha Ariano Suassuna na criação e apresentação das suas aulas-espetáculo.

BASES PARA ASSENTAR

Mas as duas guerreiras dessa história de dança já pensaram em parar, desistir. E quase foram vencidas pelo cansaço que costuma afetar os que decidem encarar a árdua luta contra a falta de estrutura e a ausência de políticas públicas na área cultural. Apesar disso, a energia e a dedicação oferecidas a elas pelos bailarinos que as acompanham foram mais fortes, então seguiram adiante, fazendo dos seus grupos

oportunidades para o desenvolvimento da dança de Pernambuco. Relatos como o da bailarina Andréa Salcedo, única do elenco fundador da Vias da Dança que continua na companhia, provam que a batalha não foi em vão. “No grupo, aprendi a me reinventar como bailarina. Descobri outras formas de dançar e sinto prazer nisso. Por que, então, tenho que abrir mão de minha escolha? É fundamental que os grupos continuem desempenhando seu papel. Deve haver espaço para vários tipos de dança, pois nem todos são criadores ou querem ser. O Vias não é só responsável pela minha formação como bailarina, mas também como ser humano.”

Ter uma sede é prioridade máxima para o Vias da Dança. Só assim Heloísa Duque afirma ter base para continuar forjando talentos. “A palavra que define a fase atual do Grial é amadurecimento. Chegamos à linguagem de dança que pretendíamos. Porém precisamos de uma sede, e que as instâncias governamentais reconheçam o valor do que realizamos durante essa trajetória de 15 anos, criando políticas que garantam uma infraestrutura condizente com o trabalho do nosso grupo”, afirma Maria Paula. A realidade mostra que, tanto para o Vias como para o Grial, o tempo agora é de conquistar um espaço para continuar escrevendo histórias de sucesso na dança pernambucana.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

Sonoras 1

NATALINAS Hoje a noite é bela, juntos, eu e ela...

Além de embalar o consumismo, a música pop produzida para o Natal expressa o imaginário da temporada de festas que nos foi legado, sobretudo por artistas norte-americanos

1 JINGLE BELLS Canção popular foi originalmente composta em 1857 2 INTÉRPRETES Elvis Presley, Doris Day e Nat King Cole também tiveram seus sucessos de fim de ano

TEXTO Marcelo Abreu

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Quando alguém entra numa loja,

perto do fim do ano, e escuta pela milionésima vez os acordes de harpa de Luiz Bordón tocando Jingle bells, pode não saber, ou não lembrar, que está experimentando apenas a ponta do iceberg de um movimento gigantesco na música popular de vários países, conhecido como música de Natal. Tendo obtido notoriedade nos Estados Unidos por volta dos anos 1940, com compositores como Irving Berlin e cantores como Nat King Cole, a música natalina continua expressiva, com dezenas de lançamentos todos os anos, nos mais variados estilos. De Bing Crosby a Lady Gaga, quase todo mundo já se aventurou nesse território. As festas de fim de ano têm gerado, ao longo dos séculos, expressões musicais que vão do folclórico ao erudito – como o oratório O messias, do alemão Georg Friedrich Händel, de 1742, inspirada nos Evangelhos. Mas foi na música popular norte-americana que se consolidou a estética natalina. Ela tem a capacidade de refletir, de forma não religiosa, os valores que povoam o imaginário ocidental na temporada de festas: o encontro com famílias e amigos, o clima de balanço de fim de ano, a esperança para o Ano-Novo, a nostalgia da infância, os presentes, a árvore de Natal, as luzes coloridas das cidades, os pinheiros, Papai Noel com seus trenós e renas, a presença do frio e da neve. Entre os exemplos clássicos do gênero estão White Christmas, de Irving Berlin, sucesso na voz de Bing Crosby a partir de 1941 (50 milhões de cópias vendidas do compacto, recorde mundial), e The Christmas song (Chestnuts roasting on an open fire), composta por

Mel Tormé e Bob Wells, cujo maior sucesso foi na voz aveludada de Nat King Cole, em 1946. Outras que ajudaram a estabelecer o padrão da música natalina foram Winter wonderland, de 1934 (Felix Bernard e Richard Smith), cantada por Perry Como (entre cerca de outras 150 versões); Santa Claus is coming to town, também de 1934 (J. Fred Coots e Haven Gillespie), que foi gravada por muitos, inclusive pelo Jackson Five, já nos anos 1970; Let it snow! Let is snow! Let it snow!, de 1945 (Sammy Cahn e Jule Styne), que tem uma versão famosa com Doris Day; Rudolph, the red-nosed reindeer (Rodolfo, a rena de nariz vermelho), composta por Johnny Marks, originalmente sucesso com

Essas são melodias e letras que evocam o clima familiar de encontro, celebração e projeções para o ano que está por chegar Gene Autry, em 1949, e que teve uma versão com The Temptations, em 1968; e Frosty, the snowman (de Walter Rolling e Steve Nelson), que também foi gravada por Gene Autry, em 1950. Em todas elas, há uma forte atmosfera de livros infantis, salas semiescuras cheias de presentes, uma lareira crepitando, comidas gostosas sobre a mesa e a neve caindo lá fora. Os motivos que fazem habitantes dos trópicos (como os brasileiros) e de outros países do hemisfério sul (como os australianos,

que comemoram o Natal na praia, de bermudas) se identificarem com esse tipo de imaginário de neve e pinheiros são outros quinhentos. O fato é que a fórmula consagrada pelos compositores norte-americanos e europeus retrata com eficiência o ideário do clima das festas de fim de ano através de melodias bem-trabalhadas, instrumental rico e variado, sinos melodiosos na percussão, tudo emoldurado pela maestria vocal dos grandes do gênero, no início Frank Sinatra, Bing Crosby e Nat King Cole, e mais recentemente, Paul McCartney, Ray Charles, The Carpenters, Diana Krall, e Mariah Carey, entre tantos outros. Apesar do desgaste natural de serem conhecidas há décadas, essas canções se incorporaram perfeitamente aos standards norteamericanos. Foi basicamente nessa música popular suave, prérock’n’roll, que a tradição natalina ganhou força (com a ajuda do cinema e da publicidade). Mas mesmo a revolução dos costumes surgida com a música jovem nos anos 1950 e 1960 não deixou de lado o Natal. Pelo contrário. Elvis Presley lançou, já em 1957, seu primeiro disco inteiro sobre a festa, intitulado simplesmente Elvis’ Christmas album. Os próprios Beatles tinham o costume de, todos os anos, lançar um compacto de Natal com mensagens para os fãs, brincadeiras e alguma música relativa ao fim de ano. Ao longo das últimas décadas, as canções natalinas têm aparecido numa série de gêneros populares como jazz, pop-rock, soul, dance, rock, rhythm’n blues e country.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

Sonoras

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3 REPERTÓRIOS Acervo visual do período é repleto de imagens que, mesmo herdadas de outras culturas, se amalgamam ao contexto nacional 4 POLY Natalinas ao som de guitarra havaiana “made in Brazil”

ao Live Aid, dois grandes concertos beneficentes, e mais uma música igualmente coletiva, gravada por cantores norte-americanos.

NO CORAÇÃO

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De 1950 até agora, praticamente todos os grandes nomes lançaram algum trabalho nesse campo: Jackson Five, Queen, John Lennon e Yoko Ono (Merry Xmas – War is over), Elton John. E também os roqueiros glam do Slade (Merry Xmas Everybody) e o pós-punk britânico The Pogues (Fairytale of New York). Uma banda de rock progressivo como Emerson, Lake & Palmer lançou I believe in Father Christmas, em 1977. Eagles, Lynyrd Skynyrd, Bruce Springsteen, Ringo Starr e John Travolta também investiram no gênero. Sting, por exemplo, gravou o sofisticado If on a winter’s night, em que reúne música e poesia de nomes como Robert Louis Stevenson.

Parte do sucesso das músicas do segmento deve-se à execução massiva em rádios, que tocam canções de Natal desde novembro Em 1984, um lançamento de Natal gerou todo um novo movimento humanitário. Do they know it’s Christmas, composta por Bob Geldof e Midge Ure e cantada por um grupo de astros, sobretudo ingleses, foi um grande sucesso e teve sua renda destinada a ajudar os famintos da Etiópia. O projeto deu, no ano seguinte, origem

Curiosamente, boa parte dos grandes compositores e cantores do estilo são judeus norte-americanos. É o caso de Irving Berlin, que compôs a música mais gravada de todos os tempos, White Christmas, que tem mais de 500 versões no mundo todo. Entre as 25 músicas de Natal mais vendidas, metade foi composta por judeus. Seguindo essa tradição, e sua própria trajetória cheia de contradições, Bob Dylan, o lendário compositor da contracultura, lançou em 2009 o álbum Christmas in the heart, todo com canções sobre o tema. Os cantores Neil Sedaka, Neil Diamond, Barry Manilow e Barbra Streisand, todos de origem judaica, também são conhecidos pelos lançamentos de Natal. “Essas canções são parte da minha vida do mesmo jeito que as canções folk”, afirmou o também judeu Dylan, numa rara entrevista sobre o assunto, dada a um repórter da MTV. Parte do sucesso desse segmento musical tem sido estimulada por

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INDICAÇÕES emissoras de rádio norteamericanas que tocam a música de Natal entre os meses de novembro e dezembro. Algumas chegam a dedicar toda a programação à chamada “temporada da nostalgia”. A paradoxal relação entre festa cristã e consumismo é evidente também no campo musical. Nos bons tempos da indústria fonográfica, o último trimestre do ano era responsável por 40% das vendas de discos e os lançamentos se beneficiavam disso. Além do mais, dizem os críticos, a execução dessa trilha sonora nas lojas coloca as pessoas no clima de consumo de que o comércio necessita para faturar. Seja como for, memoráveis obras do gênero foram criadas ao longo do tempo, como é o caso do disco A Christmas gift for you (1990), produzido pelo genial Phil Spector, para artistas como Darlene Love, The Ronettes, The Crystals, considerado um dos melhores no segmento.

HARPA PARAGUAIA

No Brasil, a música de Natal nunca teve a mesma força. O disco mais conhecido é A harpa e a cristandade, de Luiz Bordón, um paraguaio que fez muito sucesso como harpista entre os anos 1950 e 1980. Bordón (1926-2006) fez boa parte de sua carreira no Brasil. Nesse seu disco mais conhecido, lançado em 1964 pela gravadora Chantecler, e até hoje em catálogo, ele definiu, para muitas gerações de brasileiros, o verdadeiro som do Natal, ao fazer versões de marchinhas, valsas e canções embaladas pela harpa paraguaia. Entre elas estão Fim de ano (de

Francisco Alves e David Nasser) e Natal das crianças (de Blecaute). Entre os clássicos estrangeiros, o harpista fez versões para Noite silenciosa (de 1818, composta pelos austríacos Joseph Mohr e Franz Grüber) e Jingle bells (do norte-americano James Lord Pierpont, composta em 1857). É certamente, no Brasil, um dos discos mais ouvidos – e um dos menos reconhecidos pela crítica, possivelmente por ter sido banalizado ao se tornar repertório obrigatório do mundo da publicidade e do comércio. Outro disco que se mantém até hoje é o de Poly e sua guitarra havaiana. Poly era, na verdade, o paulista Ângelo Apolônio (1920-1985), um virtuoso das cordas (tocava violão, viola, cavaquinho, bandolim e banjo, entre outros) que fez muito sucesso nos anos 1950 e 1960, chegando a influenciar até músicos como Sérgio Batista, dos Mutantes. Nos anos 1960, Poly gravou o disco Natal em família, com marchas e valsas de compositores brasileiros como Assis Valente e Herivelto Martins, também pela Chantecler. As canções, marcadas pelo doce som da guitarra havaiana, traduzem o clima meio melancólico do Natal e são exemplares de uma época mais ingênua e menos consumista. Nos últimos tempos, têm havido gravações de Simone, Roupa Nova, Ivan Lins e alguns sertanejos. Mas, com a exceção de alguns poucos como o paraguaio-brasileiro Luiz Bordón e Poly com sua guitarra havaiana, a música brasileira de qualidade não descobriu a força do Natal.

CANTO CORAL

CALÍOPE Villa-Lobos A Casa

O grupo Calíope, participante da última edição da Mimo, inaugura o projeto Vozes do Brasil, em que planeja gravar a obra coral de compositores nacionais desde o século 18. Neste CD de estreia do projeto, dedicado a Heitor VillaLobos, o repertório traz arranjos de temas da Coleção do orfeão dos professores e composições originais para coro à capela, como as Duas lendas ameríndias, a Bachianas brasileiras n° 9 e José, sobre o poema E agora José? de Drummond de Andrade. A regência é de Júlio Moretzsohn.

ROCK

CLÁSSICA

SERGIO ROBERTO DE OLIVEIRA Quinze A Casa

Para celebrar seu 15° ano de carreira, o compositor e produtor carioca Sergio Roberto de Oliveira, indicado ao Grammy Latino em 2011 e 2012, lança um box com quatro álbuns dedicados à sua música de câmara. Os discos são intitulados com nomes de peças suas que remetem aos elementos da natureza e reúnem obras para cordas (Ao mar, água), duos e trios com piano (Espelhos, ar), canções (Oitis, terra) e grupos de câmara diversos (Luz e sombra, fogo).

ROCK

TAME IMPALA Lonerism

NEIL YOUNG Psychedelic Pill

Em 2010, a banda australiana, liderada pelo guitarrista Kevin Parker, que assina todas as músicas, lançou um dos melhores discos daquele ano. Agora, repete a dose. Ele investe no rock psicodélico, tendo novamente como produtor musical David Fridmann, importante personagem por trás de premiados discos de grupos como o MGMT e Flaming Lips. Dentre as 12 faixas, os destaques são Be above it, Endors toi, Apocalipse dreams, Music to walk home by e Feels like we only go backwards.

Depois de um fraco disco de covers de standards do rock (Americana, 2012) e de um supertrabalho experimental (Le noise, 2010), Neil Young volta aos bons tempos com sua banda de rock, a Crazy Horse, com a qual fez alguns de seus títulos aclamados. Psychedelic Pill tem apenas nove faixas, mas foi lançado em CD duplo e em LP triplo, por conta da longa duração das músicas. Se pegarmos seus últimos 10 anos de carreira, podemos dizer que este CD está para a fração rock de Neil Young assim como Prairie wind está para a sua metade folk.

Modular Records

Reprise

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IDAS E VINDAS

MATÉRIA CORRIDA José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

No meu dia-a-dia de pintor, apreciando arte por gosto e obrigação, apreciando a mim e aos outros, desde nossos ancestrais egípcios, assírios e babilônicos, bizantinos, afrescos pré-colombianos de Bonampak ou iugoslavos medievais ou da arte românica catalã, pinturas japonesas búdicas ou indianas das cavernas de Ajanta, primitivos africanos ou italianos ou neozelandeses, renascentistas e pré-renascentistas, belgas e alemães, chineses e coreanos, gregos e etruscos, os ícones russos, a arte do homem da caverna ou do homem do século 20, que da primeira década do 21 talvez somente possamos avaliar depois, daqui e de outros lugares desse mundo cada vez mais interligado, tudo isso nos obnubila o discernimento de modo a nem sempre parecerem compreensíveis essas lucubrações que aqui arrisco, ou as deixe incompletas por essa delicadeza de sentimentos

que se abate sobre alguns caracteres na idade provecta, e vamos parar antes que nem aquela tia velha inventada por Elio Gaspari consiga destrinchar: tudo isso, nem mais nem menos, para dizer que bati o olho e vibrei com um quadro de José Carlos Viana do Livro pernambucano de arquitetura e decoração. Foi um alerta. Senti até necessidade de rever minha trajetória, como de vez em quando me acontece quando me deparo com uma bela pintura: e não é pouca coisa, pois vivo de pintura, e tal acontecimento mexe com minha vida diária, inclusive meu ganho, porque pintar é meu ganha-pão. De vez em quando, um grande pintor, desses com quem temos uma dívida eterna, como Picasso ou Matisse ou Diego Rivera e nem sempre estamos lembrado disso, nos grita para voltar às bancas escolares e estudá-los, praticálos, reaprendê-los, não nos afastarmos deles. Advertência contra possíveis

descaminhos. Ouvi claro esse grito na sala cheia de gente no lançamento do livro no térreo do edifício Isaac Newton, 10/10/12, 19h, eu procurando ser simpático, as pessoas sorrindo por educação, eu falando dos cabelos de Lenora, filha do meu mestre Abelardo da Hora, cabelos que voltaram de Paris alaranjados, mas era para disfarçar o choque que levei vendo o quadro de José Carlos Viana, belamente gráfico, aquelas felizes alusões, de uma graça infinita, a nus femininos que perpassam gesticulando pelo meio do quadro, pura maravilha. É, garotos, vivo na tempestade, embora faça tudo para parecer sereno: “Debaixo desse louro, a como val’a canada?” Me acudam Velázquez, Rouault, James Ensor. Daqui a pouco vai fazer 40 anos que me dedico à pintura por encomenda. Com todas as implicações da pintura por encomenda. Não creio ter abdicado, porém, da minha estética, isto é, da

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ROGÉRIO MARANHÃO/DIVULGAÇÃO

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noção do excelente em pintura, por ter me submetido à estética do cliente, à estética do encomendador do quadro. De fato, quando me encomendam uma pintura, já têm em mente o que escolheram de um elenco que lhes ofereci uma vida inteira. Mas aproveito para experimentar uma nota nova dentro das minhas possibilidades e do aceitável pelo cliente. Além disso, entre uma e outra encomendas, dou-me ao luxo de pintar à doida, sem compromisso nem comigo mesmo, com frequência retomando um mesmo quadro diversas vezes, dando uma de concertista de jazz. Aliás já fiz duas exposições inteiras com esses exercícios, releituras do mesmo quadro, uma delas com Gil Vicente,

Entre uma e outra encomendas, doume ao luxo de pintar à doida, sem compromisso nem comigo mesmo no Museu do Estado, organizada por Tereza Dourado, quadro que ela mesma escolheu, Saudades, de Almeida Júnior, e anteriormente sobre o Descanso do modelo, do mesmo pintor, em São Paulo, organizada por Renato Magalhães Gouvêa. Por coincidência, no referido Livro pernambucano de arquitetura e decoração tem estampada versão de

JOSÉ CARLOS VIANA

Mulheres, acrílico sobre tela, 120 x 90 cm, 2012

minha autoria de O importuno, também de Almeida Júnior. Que tal, Gil, aquecermos a musculatura de novo? Picasso sempre voltava para se reabastecer. Voltava à “pintura com os olhos”. Como quando diz: “Devemos voltar a pintar paisagem com os olhos. Para ver uma coisa é necessário ver todas as coisas. Paisagem deve ser pintada com os olhos, e não com as ideias preconcebidas que estão nas nossas cabeças” (comentário sobre o quadro Nuvens de fumaça em Vallauris, 1951, óleo sobre tela, 60x73cm, no livro Picasso, de Mario de Micheli, 1967). Em 1958, em Bolonha, Morandi disse a Darel que o que estava faltando à arte era a confiança na natureza. Mui atual.

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REPRODUÇÃO

ALCIR LACERDA Exercício de documento, memória e identidade

Livro que compila 50 anos de trabalho do fotógrafo enfoca três dos temas recorrentes em seu acervo: o Recife, o litoral, o sertão – seus hábitos e gentes TEXTO José Afonso da Silva Junior

Visuais O que faz um livro de fotografia se

destacar em meio a tantos outros é, de certo modo, um pequeno mistério. De modo geral, livros que são lembrados como referências orientam caminhos de produção, ao passo que recuperam percursos de temas ou do próprio fotógrafo e estabelecem com o leitor uma relação de significado singularizada. Causa espanto, portanto, como certas lacunas se formam. Durante mais de meio século, Alcir Lins Carneiro Lacerda, conhecido no meio da fotografia como Alcir Lacerda, e carinhosamente chamado de “Seu Alcir” pelos amigos e colegas de trabalho, fez da arte de fotografar o seu ofício. Numa época em que a fotografia especializada em torno de temas específicos ainda não tinha bases tão demarcadas como hoje, Alcir Lacerda devotou o seu tempo, o olhar e profissão ao registro documental, urbano, da natureza, publicitário, social e científico, não necessariamente nessa ordem. Em entrevista de 2009, ao grupo de estudos de fotografia da UFPE, ele sintetizou: “Em fotografia eu fiz tudo, menos aquele trabalho de vigiar a mulher dos outros. Tinha fotógrafo que fazia, mas eu nunca fiz não...”. Confirmava sua polivalência, ao passo que dava, ao mesmo tempo, um fio de ética condutor do seu trabalho.

Esse leque de especialidades foi, em parte, recuperado pelo lançamento de Alcir Lacerda – fotografia, pela Cepe Editora, em outubro último. Fazendo justiça a um percurso, que foi, antes de qualquer coisa, de fotógrafo. Quis a natureza, no entanto, que Alcir deixasse este mundo em setembro deste ano, um pouco antes do seu aniversário de 85 anos e do lançamento do livro, do qual chegou a ver uma prova de impressão e disse: “Isso está bonito!”. É verdade que um livro de fotografia pode ser um passeio. Por tempos e lugares. É possível olhar para o livro de Alcir Lacerda acompanhando o discurso proposto pelos editores e curadores da obra, que, com precisão, souberam identificar os três núcleos mais fortes do seu trabalho. O litoral, com destaque para a praia de Tamandaré – lugar de referência emocional de Alcir; a cidade do Recife, ainda com subúrbios de casas, não tomada por edifícios de 40 andares, sem trânsito infernal e sem shopping centers de 400 lojas; e o interior, retratado como uma síntese entre a natureza e o homem, onde um forja o outro, expondo identidades, contradições e imutabilidades. Se é óbvio que a fotografia atua no mundo como um signo de testemunho, o fardo documental não é a única função de que ela dá conta. Assim, é possível

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olhar o mesmo livro como em exercício triplo: de documento, memória e identidade. Ao se empreender uma segunda leitura do trabalho de Alcir Lacerda, temos um conjunto de imagens em que há preocupação em traduzir a paisagem e o homem que vive nela de modo centrífugo, partindo do particular existente no pescador, no artesão, no vaqueiro e nos vendedores de rua, para o geral, para um mundo mais amplo, que seja capaz de problematizar os tempos e lugares de modo menos estereotipado

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e mais universal. É assim que o rigor das composições descritivas e, ao mesmo tempo, plásticas, presentes no livro, sobrevivem e se adequam ao que documentam. Nada mais diferente e antagônico ao comportamento centrípeto das câmeras fotográficas atuais, cada vez mais apontadas para o eu, voltadas para a autoimagem. A maior parte das fotografias do livro são registros realizados entre as décadas de 1950 e 1970. Fica claro, numa interpretação mais atenta, um entretempo capaz de detectar cenários

em processo de transformação. Um Recife que abandonava, parcialmente, vestígios de um passado articulado com a tradição, coexistindo com os traços de uma modernidade nascente. Fotografias de praias que obedecem menos à lógica do instante e mais à da contemplação, de uma ética do tempo capaz de fazer-nos perceber o vento nas folhas de coqueiro. De encontrar, em pleno século 20, no interior e no Sertão, relações infra-humanas, que gritam. Alcir ensinava: o fotógrafo tem que aprender a ver, antes de fotografar.

REVISÃO

Para além do papel de documentação fotográfica, mas não o negando, o livro realiza um preciso movimento de revisão. Esta, talvez, a função mais nobre da memória, ao passo que se recupera o documento, atualizando-o para a contemporaneidade. Esse exercício é capaz de trazer de modo muito nítido as dinâmicas de transformações nos lugares e modos de vida memorizados na fotografia de Alcir. Em outras palavras: onde foi parar

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FOTOS: REPRODUÇÃO

Visuais 2

o Recife presente no glorioso preto e branco de Alcir Lacerda? É verdade que entre o que foi perdido e o que deve ser mudado, há opções, escolhas e perspectivas de toda espécie. O que não muda, como dado visual para subsidiar essas discussões, é a presença de uma fotografia capaz de alcançar a dimensão do que retrata e tensionar o problema de modo que ele sobreviva ao tempo. Qualquer processo de construção de identidade, seja nos sujeitos, na história ou nas fotografias, ata o que se foi e o tornar-se, estabelecendo um pertencimento tanto ao presente quanto ao futuro e passado. A fotografia, ao constituir-se a partir de algo preexistente, problematiza os processos como vindos de algum lugar, ou tempo. Desse modo, ao contrário de ser fixa e essencialista, como um monumento, ela está em constante transformação, permitindo ser revisada e atualizada permanentemente. Vivemos um momento, no entanto, em que as fotografias de Alcir Lacerda voltam à luz e se encontram com um mundo atravessado por identidades múltiplas, transitórias e feitas para serem consumidas e descartadas rapidamente. Ao contrário de soar anacrônica,

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a fotografia “de como a vida era e estava” parece nos conduzir para um lugar e tempo, um país. O país da fotografia, só possível nas imagens. A passagem para tal lugar ocorre apenas com uma revisão da memória como algo vibrante. Seria um lugar onde a História e a Geografia seriam ensinadas em imagens, em que o homem, a atividade e o lugar se mostrariam de modo inter-relacionado, em que os processos de mudanças, as tragédias e singularidades teriam sua representação através de uma lente olho de peixe, numa foto aérea, ou numa objetiva normal. Onde o sol, sempre, bate forte sobre construções e ruínas.

O livro traz, também, um questionamento: como lidamos com a parcela de esquecimento que existe nos processos e cenários que vivemos e construímos, sem, contudo, termos controle sobre os seus desdobramentos? É incorreto dizer que se trata de um trabalho saudosista. É exatamente o contrário. Ao nos expor ao processo de revisão, o conjunto de fotografias de Alcir Lacerda nos entrega com tranquilidade uma possibilidade de avaliação situada nesse país da fotografia sobreposto à dimensão dos problemas contemporâneos. Talvez venha dessa tradução entre dois mundos uma parcela da aura de mestre que se forma em torno do nome de Alcir Lacerda e que

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Página anterior 1 NOTURNO

Foto da Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970

Nestas páginas 2 O FOTÓGRAFO

Alcir Lacerda posa com câmera de grande formato

3 HOMENS DO MAR Concentração de embarcações para procissão de São Pedro no Rio Capibaribe 4 AÉREA Vista do porto do Recife exibe sofisticada composição e rico preto e branco

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só é possível com a decantação do tempo. As outras parcelas, muitas, para quem o conheceu, foram construídas dentro de uma contínua relação de desapego, de amparo aos novos fotógrafos, de generosidade e paciência na conversa, qualidades, claro, necessárias a um embaixador do país da fotografia. É improvável e incompleto entender o seu trabalho como algo separado da sua pessoa. Numa época na qual o processo de formação em fotografia era majoritariamente autodidata, permeado por largas parcelas de erro, muitos dos fotógrafos recifenses só puderam frequentar duas “universidades” de fotografia. Uma se chamava Firmo Neto, ministrando,

Diante das fotos, a maioria realizada entre os anos 1950-70, podemos perguntar sobre os destinos daqueles lugares por décadas, os cursos introdutórios à fotografia, no seu ateliê na Casa da Cultura. A outra era Alcir Lacerda, com as portas abertas da Acê Filmes, no 12º andar do Edifício Inalmar, no centro do Recife, com janelas emoldurando o Bairro de São José. Hoje, o cenário, os materiais e os horizontes para a formação profissional

em fotografia são muito mais amplos na quantidade e qualidade do que eram numa cidade de contexto bem mais periférico. É interessante perceber, ainda, que muitos dos temas presentes nas abordagens de fotógrafos contemporâneos sobre a realidade local, não raro, voltamse em grande parte para o litoral, as problemáticas urbanas e o sertão/ interior como eixos de referência. Justamente os elementos mais inspiradores deixados pelo mestre para serem trilhados, reproblematizados. Temos outros mestres. Mas, de um modo ou de outro, somos todos tributários de “Seu Alcir”. Se ele era uma universidade, o seu livro é o primeiro item da bibliografia.

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REPRODUÇÃO: TIAGO BARROS

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BAJADO Aquele que um dia se disse “artista de Olinda”

No centenário de seu nascimento, pintor primitivo recebe homenagens, sobretudo de carnavalescos, que serão feitas durante o Carnaval de 2013 TEXTO Gilson Oliveira

Inspiração recorrente nas telas de Bajado, o Carnaval de Olinda, em 2013, inverterá essa relação, colocando entre seus temas a figura do pintor, cuja obra será lembrada por várias agremiações, como a Troça Carnavalesca Mista Ofídica, Erótica & Etílica Minha Cobra. Formada por aficionados do Santa Cruz Futebol Clube, ela desfilará com camisetas inspiradas em trabalhos do artista, que tinha no time uma de suas paixões,

chegando a desenhar, em muitos quadros, personagens vestidos com a camisa tricolor. “Bajado completaria 100 anos agora em dezembro, o Santa faz 99 anos em 3 de fevereiro e o Carnaval começa logo no dia 9... Então, decidimos juntar tudo numa festa só”, explica, com sua lógica de folião e torcedor, Claudemir Pereira, um dos coordenadores da troça. As outras agremiações também possuem motivos, e de sobra, para

homenagear o pintor, pois sempre moraram no seu coração e em suas telas, a exemplo de Pitombeira, Elefante e O Homem da Meianoite, cujos ensaios e desfiles foram retratados em cores e perspectivas que permitem até “ouvir” o frevo rasgado. Umbilicalmente ligado ao povão, o universo bajadiano é um eterno desfilar da cultura, tradição, costumes e tipos populares pernambucanos, sobretudo olindenses. Nascido em 9 de dezembro de 1912 e falecido em 1996, Bajado recebe em seu centenário uma demonstração de que sua arte – embora tenha andado um pouco distante dos “holofotes” – ainda é uma chama acesa na alma dos seus conterrâneos. Homenagens surgem não apenas entre carnavalescos, mas também nos setores oficiais. No início deste ano, o Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC), por exemplo, organizou a exposição Salve meu Carnaval, com 40 telas do artista. Já a Prefeitura Municipal de Olinda (em cuja sede encontra-se acervo do pintor, com cerca de 40 obras,

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1 FIGURATIVO Entre os temas recorrentes em sua pintura, estão as festas populares e o futebol

visitado por turistas e estudantes do município) lançará, neste dezembro, uma cartilha voltada para a educação patrimonial, com a imagem de Bajado na capa e a reprodução de famosas telas suas em todas as páginas. “A iniciativa comemora o centenário de nascimento do artista e os 30 anos da conquista, por Olinda, do título de Patrimônio da Humanidade. Mas visa, principalmente, orientar as crianças sobre a importância da preservação dos nossos bens artísticos e culturais”, informa Débora Nunes, professora do Laboratório de Restauro da PMO.

OLINDENSE DE MARAIAL

Conhecido como “Bajado, um artista de Olinda” – cognome por ele mesmo criado –, Euclides Francisco Amâncio nasceu, na verdade, em Maraial, cidade da Mata Sul pernambucana. “O apelido, ele ganhou na infância, quando, ao jogar no bicho, disse uma frase da qual nem ele mesmo sabia o sentido: ‘Dez mil réis, Bajado!’”, diz Deda de Bajado, também pintora, com um estilo bastante influenciado pelo pai.

Maior acervo público da obra de Bajado, composto de 40 obras, encontrase na sede da Prefeitura de Olinda Caso de amor à primeira vista, que acabou se tornando eterno, a relação do artista com Olinda começou por acaso, quando, nos anos 1930, visitou amigos residentes na cidade. Um emprego no Cine Olinda, no qual atuou como letreirista de cartazes e operador de máquina, permitiu-lhe fixar-se na Marim dos Caetés, onde passou, entre outras coisas, a pintar painéis nas fachadas e interiores de bares e outros estabelecimentos, além de desenhar estandartes para agremiações. Um dos últimos foi o da troça Bicho Maluco Beleza, criada por Alceu Valença, fato registrado no frevo homônimo do cantor: “Teu estandarte tão raro Bajado criou”.

Considerado um representante da pintura primitiva – gênero artístico que, pela liberdade de expressão, possui grande identidade com a arte moderna –, Bajado, a partir da década de 1970, começa a chamar a atenção de personalidades ligadas às vanguardas estéticas, como o pintor e marchand Giuseppe Baccaro. Este se torna grande divulgador de sua obra e viabiliza exposições nas principais cidades brasileiras e em vários países, como Itália, Espanha e Holanda, comprovando que a obra do “artista de Olinda” situava-se além das fronteiras geográficas e artísticas. O artista Paulo Bruscky também se tornou admirador do pintor. Entrevista realizada por ele com Bajado, publicada em 1996 no Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco, teve grande repercussão, por revelar um dado até então inédito: Bajado, junto com o desenhista Gato Félix, foi parceiro de Péricles na criação de O Amigo da Onça, um dos mais famosos personagens do humor gráfico brasileiro.

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REPRODUÇÃO

MOSCOUZINHO Pequeno trabalho de invenção

Em seu primeiro livro, Gilvan Barreto parte da memória para realizar um belo conjunto de imagens ficcionais TEXTO Adriana Dória Matos

Visuais Nas trocas de emails com as

pessoas que escreveriam textos para seu livro, Moscouzinho (editora Tempo d’Imagem), Gilvan Barreto apontava o que chamava de “fronteiras”, que se estabeleciam naquele processo de criação e que podemos entender como “zonas de conflito ou tensão”. Primeira fronteira: entre os fatos do passado e a interpretação que deles fazemos. Segunda: entre documentos históricos e as ficções que criamos sobre eles. Terceira: os limites entre a fotografia clássica e os caminhos que ele mesmo trilhava, buscando densidade, textura, imperfeição, ou, dito de outra forma, procurando dar à fotografia a marca humana e não da tecnologia. Essas fronteiras estavam sendo vivenciadas pelo fotógrafo, que foi derrubando os próprios pressupostos do início dessa “viagem” em torno de si e da memória. Quando pensou em Moscouzinho, Gilvan tinha em mente um trabalho documental, no estilo tradicional da fotografia “sem autor”, que busca no mundo seus temas e deles extrai uma objetividade que sublima o indivíduo, suas marcas.

Para que fique clara sua proposta, falemos um pouco sobre o tema do trabalho. “Moscouzinho” é um apelido da cidade de Jaboatão dos Guararapes, assim chamada por ter sido a primeira a ter um prefeito comunista no Brasil, isso lá pelos idos dos anos 1940. A esse elemento “externo”, agregava-se outro, da história pessoal do fotógrafo. Seu pai, de quem herda o nome entre outros bens imateriais e profundos, havia atuado na política de esquerda em Jaboatão, onde a família vivia, e sido perseguido pela ditadura militar por conta disso. Gilvan estava impregnado dessas memórias e, enquanto trabalhava no projeto, perdeu sucessivamente o pai e a mãe. Moscouzinho passava a ser uma homenagem póstuma. Diante dos episódios aqui apresentados – que extinguem fronteiras entre passado e futuro, o que está fora e dentro de nós, o que é verdade e o que é invenção –, não tinha como Gilvan manter-se na linha da objetividade documental pretendida. Inquietavamno, ainda por cima, as regras da fotografia documental, problematizadas, por exemplo, pelas experiências da arte contemporânea. Tomem-se essas

“zonas de conflito” como aquilo que fundamenta Moscouzinho. Assim, não pretenda “a verdade fotográfica” diante desse livro de imagens. Veja-o como um mergulho fundo de alguém na própria história, para o qual todos os recursos possíveis fora mobilizados: leituras, viagens, pesquisa em campo, reprodução de documentos, artesania, encenação de memórias da infância, uso de diferentes equipamentos e técnicas fotográficas. Para contar sua Moscouzinho, Gilvan se expôs e não temeu enfrentamentos. “O ‘personagem’ desta história”, conceitua ele, “enfrenta o luto, sofre, cria embates com a religião, com a ditadura, com a saudade. Tenta se libertar de todas as amarras.” A respeito do seu aspecto físico, o livro, de pequeno formato, recebeu um atencioso tratamento editorial, com o cuidado da impressão e bom uso de cores e papel. As fotografias estão impressas sem margens nas páginas, detalhe importante, porque, no que elas “sangram” pelas bordas, transcendem o espaço delimitado da página como se elas mesmas extrapolassem quaisquer ideias de fronteiras.

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ANÚNCIO

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REPRODUÇÃO

ETS Contatos imediatos nas salas de cinema

Há 110 anos, os extraterrestres estreavam nas telas, expondo na ficção o nosso medo da possibilidade desse encontro interplanetário TEXTO Débora Nascimento

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Era 1902 e George Méliès exibia mais

um de seus curtas-metragens. Em Viagem à Lua, um grupo de cientistas vai ao satélite natural da Terra. A chegada da espaçonave ao lugar é desastrosa e ela cai de bico no solo. Do nosso planeta, observa-se o episódio como um balaço enfiado num rosto gigante. O ilusionista e diretor francês não supunha, mas essa cena marcaria seu nome para sempre na história do cinema. Além de transformar Méliès no precursor de um rentável gênero cinematográfico, a ficção científica, seria o primeiro filme a abordar o tema “extraterrestres”. Na trama, há um embate entre terráqueos e selenitas. Inspirado nos livros Da Terra à Lua (1865), de Julio Verne, e Os primeiros homens na Lua (1901), de H.G. Wells, Viagem à Lua foi um dos títulos que escaparam da destruição que Méliès promoveu queimando centenas de seus curtas-metragens, após sua carreira entrar em declínio, com dívidas, falta de orçamento para produção e desinteresse crescente do público. Em 1993, foi descoberta uma espécie de Santo Graal do cinema: a cópia colorida à mão desse curta. A versão restaurada foi apresentada no Festival de Cannes de 2011 e exibida no Cinema São Luiz, no último mês de setembro. O público pôde se divertir nos 14 minutos de duração do filme, principalmente com a cena final, na qual os astronautas, de volta à Terra, são recebidos com festa, inclusive, trazendo consigo alguns ETs, que acabam entrando no clima da celebração. Quando Viagem à Lua fez sua estreia, nem de longe existia o conceito de blockbuster e de superprodução ou lançamento mundial simultâneo, crítica especializada, departamento de marketing, elenco de estrelas... Dessa forma, a obra só teria seu valor artístico e histórico reconhecido algumas décadas depois. Com a quebra de sua produtora, Méliès passou a trabalhar como vendedor de brinquedos num quiosque na estação de trem de Montparnasse, em Paris. Essa fantástica e dramática trajetória do diretor francês foi resgatada, em 2012, no filme Hugo, do cineasta americano Martin Scorsese. É curioso lembrar que, neste mesmo ano, comemoram-se os 30 anos de lançamento de outra obra importante

que retrata seres alienígenas: ET – o extraterrestre, que vem a ser o filme mais adorado e premiado sobre o tema. Foi a maior bilheteria do cinema até então (cerca de U$ 800 milhões), ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme, na categoria drama, e consta em diversas listas dos “100 melhores filmes da História”. O crítico de cinema Roger Ebert, único a ganhar um Pulitzer, escreveu sobre o longa: “O filme inteiro é baseado no que os cineastas conhecem por ponto de vista. Quase todas as tomadas mais importantes são vistas como se o ET estivesse vendo, ou como Elliot (o garoto de 10 anos). E as coisas são entendidas como eles as entenderiam. Não há um momento crucial onde a câmera se afaste e pareça filmar do ponto de vista de um adulto. Nós estamos vendo as coisas através dos olhos de uma criança – ou de um alienígena. Quando Elliot e ET se veem pela primeira vez, ambos dão um pulo para trás, dominados pela surpresa,

Em 2012, são lembrados os 110 anos de Viagem à Lua, e os 30 de ET, dois filmes marcantes sobre alienígenas acompanhada de gritos. Vemos cada um deles do ponto de vista do outro”. Cinco anos antes de dirigir a história do “extraterrestrezinho” que, por acidente, é esquecido na Terra, Steven Spielberg realizou outro respeitável filme sobre alienígenas, Contatos imediatos de terceiro grau (1977). Para mostrar que não estava para brincadeira com relação à sua produção, inseriu no elenco ninguém menos que o cineasta francês François Truffaut. No enredo, ETs enviam mensagens cifradas até estabelecerem um encontro com os terráqueos para “devolver” pessoas abduzidas. Numa das imagens mais marcantes do cinema, a cena final mostra a comunicação entre terrestres e extraterrestres estabelecida através de linguagem musical, com o uso da emblemática sequência de cinco notas musicais (sol, lá, fá, fá uma oitava abaixo e dó), que, depois, é acrescida de outras notas até se transformar num dueto musical – composição de John Williams.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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2 Página anterior 1 ET -– O EXTRATERRESTRE

Em 1982, filme tornou-se a maior bilheteria da história do cinema

Nestas páginas 2 CONTATOS IMEDIATOS DE 3º GRAU

Primeiro sucesso de Steven Spielberg sobre extraterrestres

3 VIAGEM À LUA Curta de Méliès é precursor da abordagem ao tema 4 O DIA EM QUE A TERRA PAROU Clássico dos anos 1950 expôs o clima de tensão da Guerra Fria

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Ao contrário dos cordiais ETs de Contatos, o filme seguinte de Spielberg, Night skies, teria alienígenas como vilões. O cineasta passou meses desenvolvendo o projeto. Com o roteiro, design e bonecos prontos, mudou de ideia. Decidiu que dirigiria uma aventura familiar sobre um ET perdido na Terra, tentando voltar para casa,

enquanto é perseguido por autoridades. A ideia do grupo de criaturas aterrorizando uma família acabou virando Poltergeist, o fenômeno (1982), com a troca de ETs por fantasmas. A equipe que trabalhou no projeto de Night skies ficou revoltada, alguns profissionais abandonaram a empreitada. Mas Spielberg, com o

sucesso de Tubarão (1975), já tinha cacife suficiente para uma excentricidade desse porte e provou que estava certo. ET - o extraterrestre conquistou o público, consagrou o cineasta na indústria, tornou-se a maior arrecadação de bilheteria até então e rendeu indicações ao Oscar (melhor diretor e filme). Mas as estatuetas ficaram mesmo com Gandhi, de Richard Attenborough. Depois do sucesso de ET, da Universal Pictures, alguns estúdios passaram a investir no tema, obtendo lucro com o filão, e o filme acabou sendo superado em bilheteria, pouco mais de um década, por Independence day (1996), com 817 milhões (20th Century Fox),

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Sobre ETS FILMES

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ficando, atualmente, em 34º lugar na lista das 100 maiores bilheterias da história (no Brasil, ET ficou em 8º lugar na lista das 10 maiores bilheterias, com quase 10 milhões de espectadores). Mas o primeiro lugar deste ranking mundial ainda pertence a uma produção que envolve seres extraterrestres. Estamos falando de Avatar (2009), de James Cameron, cuja arrecadação chegou a quase U$ 3 bilhões.

FRANQUIAS

A boa recepção aos ETs nos cinemas fez com que fossem criadas duas bemsucedidas franquias, Alien, em 1979, e Homens de preto, em 1997. O primeiro estabelece um novo conceito estético para os alienígenas, a forma de inseto no lugar do humanoide; o segundo é baseado na teoria de que o governo mantém um grupo de investigadores, sempre de ternos pretos, que visitam pessoas que passaram por supostos contatos alienígenas, com o intuito de convencê-las do contrário. Antes dos três filmes de Spielberg sobre extraterrestres (contando com Guerra dos mundos, de 2005), os

alienígenas já haviam recebido, em 1951, tratamento especial em Hollywood, com O dia em que a terra parou. Dirigido por Robert Wise (Amor, sublime amor e Noviça rebelde), o enredo mistura drama, suspense, horror e ficção científica, e apresenta, logo nas primeiras cenas, a chegada de um disco voador em Washington. O ET Klaatu (Michael Rennie) tem como missão alertar os governantes mundiais sobre os perigos do uso de armas atômicas, que interfeririam no Universo, caso fossem lançadas em outros planetas, ameaçando destruir também a Terra. Mesmo em missão de paz, o ET sofre preconceito, perseguição e violência por parte dos terráqueos. O clima da Guerra Fria é sentido de forma sutil no filme, cuja trilha sonora de Bernard Hermann inclui um sinistro teremim nos arranjos, que passou a vincular para sempre o som do instrumento eletrônico ao tema “extraterrestres”. O interesse por ETs não é só coisa do cinema. Alguns seriados apostam no assunto, como o humorístico Alf, o eteimoso e Mork and Mindy. Mas o mais festejado deles, sem dúvida, foi Arquivo X.

Viagem à Lua (1902) O dia em que a Terra parou (1951) Guerra dos mundos (1953) The rocky horror picture show (1975) Contatos imediatos do terceiro grau (1977) Alien, o oitavo passageiro (1979) ET (1982) Starman – o homem das estrelas (1984) Alien (1986) Alien 3 (1992) Coneheads (1993) Marte ataca! (1995) Independence day (1997) Contato (1997) Alien, ressurreição (1997) Homens de preto (1997) Arquivo X – O filme (1998) Evolução (2001) Homens de preto 2 (2002) Sinais (2002) Guerra dos mundos (remake, 2005) O dia em que a Terra parou (remake, 2008) Distrito 9 (2009) Contatos de quarto grau (2009) Super oito (2011) Cowboys x Aliens (2011) Homens de preto 3 (2012) Prometheus (2012)

SÉRIES Mork and Mindy (1978-82) Alf – o eteimoso (1986-90) Arquivo X (1993-2002)

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

5 HOMENS DE PRETO Trama é baseada na teoria da existência desses agentes 6 AVATAR Filme tornou-se o mais visto na história do cinema 7 ALIEN Suspense de ficção científica traz ETs em forma de insetos

Claquete Há 20 anos, a produção estreava com um enredo repleto de teorias conspiratórias sobre vida extraterrestre, defendidas pelo investigador Fox Mulder (David Duchovny) e criticadas por sua parceira Dana Scully (Gillian Anderson). Há episódios baseados em acontecimentos e outros são ficcionais.

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FRACASSOS

Embora com trajetória de sucesso, o gênero também teve seus maus dias. O mais recente fracasso foi o John Carter, primeiro filme fora do gênero animação de Andrew Stanton, nome por trás de Procurando Nemo e WALL-E. A má recepção da aventura foi tanta, que provocou até a demissão do chairman da Walt Disney, Rich Ross, em abril deste ano, substituído por Alan Horn, que veio da Warner Brothers Entertainment. É possível que, a partir desse fato, a empresa tenha mais cautela ao investir no assunto, pois já havia sofrido, em 2011, outro golpe de bilheteira com Marte precisa de mães. Com produção de Robert Zemeckis, a animação teve um orçamento de US$ 150 milhões, mas só arrecadou US$ 39 milhões. A temática marciana já tinha sido uma decepção para Disney anteriormente com Missão: Marte (2000) e Meu marciano favorito (1999), que ficaram muito abaixo da expectativa de retorno financeiro. A Warner também amargou insucessos. Em 2000, Planeta vermelho, um thriller sobre astronautas protagonizado por Val Kilmer, contou com orçamento de US$ 80 milhões, mas só obteve US$ 33 milhões nas bilheterias. Em 1996, Marte ataca!, comédia dirigida por Tim Burton, contou com um elenco estelar (Jack Nicholson, Glenn Close e Pierce Brosnan) e custou US$ 70 milhões

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A temática extraterrestre gerou duas franquias bem sucedidas, Alien, nos anos 1970, e Homens de preto, nos 1990

à empresa, quase o dobro de sua arrecadação nos EUA, US$ 37 milhões. O prejuízo só não foi maior porque o longa reverteu a situação com boa performance internacional, que elevou seu faturamento a US$ 101 milhões. Assinado por John Carpenter (Halloween e O enigma de outro mundo), o terror Fantasmas de Marte (2001) obteve

apenas US$ 14 milhões em bilheteria, a metade do valor de sua produção, e Doom – a porta do inferno, adaptação de um jogo de video game do mesmo nome, também pode ser apontado como outro fracasso marciano.

MISTÉRIO

O nosso atávico pavor à ideia de contato com alienígenas foi demonstrado numa reação pública a um programa de rádio. Na véspera do Halloween de 1938, no dia 30 de outubro, o jovem ator Orson Welles (1915-1985) produziu ao vivo, na rádio CBS, uma adaptação do livro A guerra dos mundos, de H.G. Wells. Para deixar o programa com tom mais realista, o futuro diretor de cinema inseriu diversas entrevistas

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INDICAÇÕES DRAMA

ELEFANTE BRANCO Direção de Pablo Trapero Com Ricardo Darín, Martina Gusman, Jérémie Renier, Paris Filmes

O padre Nicolas (Darín) é convidado a trabalhar numa comunidade carente, surgida no entorno de uma edificação gigantesca inacabada. A favela é dominada por duas facções rivais que duelam pelo domínio do território. Dessa forma, o longa do argentino Pablo Trapero apresenta os dilemas éticos e as dúvidas que permeiam o dia a dia dos protagonistas. O filme é uma verdadeira homenagem às pessoas que dedicam (e arriscam) a vida para ajudar seus semelhantes.

NACIONAL

EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DOS SEUS LINDOS LÁBIOS Direção de Beto Brant e Renato Ciasca Com Gustavo Machado, Camila Pitanga, Gero Camilo Sony

Ambientado numa cidade fictícia do interior do Pará, o filme evidencia, em fotografia de qualidade, a beleza e o calor da região como pano de fundo para apresentar o triângulo amoroso entre os protagonistas Lavínia, Cauby e Ernani. São personagens densos e bem-construídos, que trazem à tona aspectos dos relacionamentos amorosos.

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fictícias, incluindo a de um professor da Universidade de Princeton, interpretado pelo próprio Welles, que relatava explosões causadas por uma nave espacial em Nova York e a morte de 7 mil homens do exército no combate com os ETs. O caos instalou-se. A polícia recebeu chamados desesperados, grupos armados saíram pelas ruas à caça dos alienígenas e houve até suicídios. Quem ouviu a transmissão desde o início sabia que se tratava de uma encenação, o que não ocorreu com aqueles que sintonizaram o programa em curso. Estima-se que a audiência tenha chegado a dois milhões de ouvintes. Esse pânico pode ser explicado pelo chamado medo do desconhecido. Afinal, apenas alguns mistérios que cercavam a humanidade foram solucionados, como a origem das estrelas (explosões de gases no espaço), o formato da Terra, a possibilidade de existência de 200 bilhões de galáxias. No entanto, outros enigmas ainda se mantêm: De onde viemos? Para onde vamos? Somos os únicos a habitar este vasto Universo?

Muitos acreditam que não somos, como o escritor suíço Erich von Däniken, autor de Eram os deuses astronautas?, lançado em 1968, um ano antes de o homem colocar os pés na Lua. O livro virou um best-seller e foi traduzido para 36 línguas. Sua suposição é de que descendemos de seres extraterrestres que nos visitaram no passado, o que comprovaria a engenhosidade de construções arqueológicas que datam de milhares de anos e trazem desenhos de supostos encontros com alienígenas. Já o escritor Leo Mark, autor de Jesus extraterrestre, elabora a teoria de que Jesus é, na verdade, um ser de outro mundo e que os fenômenos sobrenaturais descritos na Bíblia são contatos imediatos de terceiro grau. O medo de ETs é ainda alimentado por ocorrências pouco explicadas, como o Caso Roswell, que teria acontecido em 1947, quando um suposto disco voador caiu na cidade de Roswell, no Novo México. O ocorido teria sido acobertado pelos militares norte-americanos. A história, como era de se esperar, virou filme.

DRAMA

ROAD MOVIE

Direção de David Cronenberg Com Michael Fassbender, Viggo Mortensen, Keira Knightley, Imagem Filmes

Direção de Walter Salles Com Kristen Stewart, Amy Adams, Viggo Mortensen PlayArte

UM MÉTODO PERIGOSO

Fãs de Cronenberg, em filmes como Gêmeos – mórbida semelhança, podem estranhar essa produção cinematográfica: um filme de época que aborda as origens da psicanálise. O longa mostra as inseguranças e confusões sexuais de Sigmund Freud e seu discípulo, Carl Jung, e o relacionamento deste último com a paciente Sabina Spielrein. Centrado na complexidade dos personagens, o filme explora a psiquê humana e suas peculiaridades.

NA ESTRADA

Nesta adaptação do On the road, de Jack Kerouac (1957), Walter Salles, na direção de mais um road movie , imergiu nos elementos que compuseram a Geração Beatnik na América do fim dos anos 1940 e início dos anos 1950. O filme conta a história de Sal Paradise, alter-ego do escritor, e sua amizade com o ex-presidiário Dean Moriarty, atravessando sem rumo os EUA ao lado da jovem Marylou.

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Artigo

DIVULGAÇÃO

MARIANA BALTAR OS PODERES DO EXCESSO NO MELODRAMA Ouvi, um dia, de um companheiro de

melodramas, o seguinte depoimento. Durante a retrospectiva do gênero, em sua versão mexicana, no Festival do Rio de 2002, um fiel frequentador da mostra, olhos brilhando em antecipação, comenta com meu amigo sobre o prazer de reencontrar Dolores del Rio, divina em seu vestido azul, descendo a escadaria do salão em Las abandonadas. A cena se dá no momento crucial desse clássico do diretor Emilio Fernandez, belamente fotografado por Gabriel Figueroa. Meu amigo compartilha da ansiedade desse espectador, pois, também ele, espera o reencontro com a obra. Mas, ainda assim, não se furta de estranhar o comentário sobre a cor do vestido da personagem. Afinal, sabe ele que o filme é em preto e branco. De onde viria aquele azul?, pergunta-se. A cor, penso eu, vem da paixão. Paixão pelo melodrama, com seu regime de excesso a convidar-nos, espectadores, a tal engajamento em que as cores (ausentes da película) se tornam presentes na experiência, avivadas pelo que tenho chamado, em minhas pesquisas, de um engajamento afetivo/ sensório/sentimental. A magia do cinema não é exclusividade da matriz melodramática, mas seus efeitos passionais de fascínio e sedução são condicionantes desse gênero narrativo, pois sua lógica se fia na condução de sensações e sentimentos numa estrutura pautada no excesso. Entretanto, o melodrama não é o único gênero que se pauta por isso. Juntam-se a ele outros mobilizadores de paixões corporais, como o horror, a pornografia, o musical. Imagens e sons organizados em conhecidos formatos narrativos que nos fazem gritar, chorar, cantar. Os modelos das cenas se repetem – trilha sonora musical que se intensifica em momentos-chave, pontuados por close-ups, reiterados por uma luz mais densa, um saber compartilhado

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entre discurso fílmico e espectador. Pronto, o laço está atado e nos vemos (a despeito de já sabermos o desfecho, das simbolizações de óbvio reconhecimento) reagindo visceralmente à tela. Um dos mais belos momentos desse tipo de engajamento mobilizado pelo excesso se dá em Carta de uma desconhecida (Max Olphus, 1948). O filme começa com um já velho Stefan (Louis Jourdan) pondo-se a ler uma mensagem que lhe foi enviada. A carta vai sendo lida em off por sua remetente, Lisa (Joan Fontaine). “If only you could recognize what was always yours, could have found what was never lost. If only…”: são as últimas palavras da missiva inacabada, escrita por uma personagem enferma. Sabemos dessa situação desde o começo do filme, uma vez que ele é narrado em flashback. Assim, é com um certo nó no

peito que acompanhamos os encontros e desencontros de Lisa e Stefan. Na verdade, acompanhamos Stefan encontrar-se com Lisa em diversos momentos ao longo da vida e, neles, apaixonar-se por ela, sem saber que – em todas as ocasiões – se tratava da mesma mulher. Nós sabemos, Stefan, não. Sabemos desde sempre, ele, nunca, até a carta chegar-lhe tardiamente, quando a amada já está morta. Nosso saber reforça o engajamento. Somos compelidos a querer gritar: “É ela, é sempre ela”. E, quando, no filme, vemos esse grito ser atendido – a carta e a voz em off de Lisa dizem “era eu, era sempre eu” –, já é tarde demais. Sabemos desde o começo que será tarde demais para os dois e esse conhecimento prévio faz recair sobre as belas cenas do casal uma sombra

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1 CARTA DE UMA

DESCONHECIDA

O filme tem um dos mais belos momentos desse tipo de engajamento mobilizado pelo excesso

denomina de gêneros do corpo, pois o convite sensório-sentimental estabelecido pela narrativa se dá a partir do corpo em ação, corpo dado a ver como espetáculo e como ancoragem de uma experiência do êxtase, como atração, em movimentos que performam e expressam estados sensoriais e sentimentais que, audiovisualmente, inspiram no espectador, se não os mesmos estados, algo bem próximo. Convidam, afinal, a fluir e fruir sensorial e sentimentalmente. Os corpos se movem e mobilizam. Na minha apropriação das reflexões de Williams, argumento que tal compartilhamento responde a uma demanda do projeto de modernidade, primordial à própria construção da ideia de sujeito moderno: as necessidades de personalizar as práticas de consumo em projeções empáticas de identificação. Assim, o excesso se apresenta como as específicas articulações da narrativa numa reiteração constante, como se cada elemento da encenação – desde a música, a atuação, os textos,

Apesar da reiteração e da saturação, o excesso não nos deixa de fora da narrativa e sua força e eficácia residem nesse movimento de tristeza. Tal estrutura é um convite quase irrecusável à comoção, e, em alguns casos, até mesmo às lágrimas. O excesso está aqui na obviedade da estrutura narrativa, nos símbolos que embalam os encontros (o piano de Stefan, os lírios brancos, o mesmo close no rosto de Lisa). Apesar da reiteração e da saturação, o excesso não nos deixa de fora da narrativa e sua força e eficácia residem justamente nesse movimento.

GÊNEROS DO CORPO

Não é fácil precisar o excesso como elemento estilístico e um primeiro caminho tem sido delineá-lo a partir dos gêneros (seu uso mais contundente, sistemático, mas não exclusivo). Assim, o termo foi pensado como a marca comum do que a pesquisadora de cinema Linda Williams (2004)

a visualidade, as performances – estivesse direcionado para uma mesma função; ou seja, como se todas as instâncias dissessem, expressassem o mesmo, a serviço de uma obviedade estratégica que toma corpo de maneira exuberante e espetacular. A noção de obviedade não deve ser entendida aqui como um elemento pejorativo, mas como um regime de expressividade que marca a economia reiterativa do excesso e com ela a “facilitação”, diria imediatismo, do engajamento entre obra e público. Engajar-se à narrativa pressupõe colocar-se em estado de “suspensão” sentimental e sensorialmente vinculado a ela. Para catalisar esse convite à adesão, o apelo ao visual (ao narrar a partir de imagens que se estruturam como símbolos) é elemento fundamental,

conduzindo ao que Peter Brooks (1995) chama de “superdramatização” da realidade através de uma estética do astonishment (que podemos traduzir como arrebatamento). O excesso reitera e satura, promove um fluxo de imagens e sons que a um só tempo esclarece e afoga, intensifica a força espetacular dos símbolos (exacerbadamente elencados na tessitura fílmica) e adensa a força disruptiva e excitante do êxtase (como vetor da ação e como convite à semelhante reação do espectador) – o corpo fora de si (beside itself). Procedimentos imagéticos e sonoros (mobilizando a sensorialidade através dos ruídos) reiteram e saturam o uso de elementos audiovisuais para além da função de narração (storytelling), propondo um superenvolvimento em sensações e emoções. No seu uso mais comum nas tradições dos gêneros do corpo, o excesso conduz a vínculos empáticos configurados com muita frequência, mas não exclusivamente, em temáticas que envolvem instâncias moralizantes, que serão articuladas de maneira exacerbada e caracterizadas pelo predomínio da visibilidade (reiterando imagens de fácil apreensão) que se articula em um sistema de simbolização intensa. Argumento, a partir da reflexão de Williams, que tal uso indicaria a dimensão espetacular do excesso que, cotejando com as ideias de Umberto Eco, em seu livro A vertigem das listas, apontariam uma estratégia e um desejo reiterativo. Mas há ainda outra dimensão (que não passa totalmente desapercebida por Williams, embora não seja o foco de seu artigo) que ocorre de modo mais próximo das atrações, em que o excesso aparece como insert de choque e saturação. Tais inserts de atrações se dão sobretudo fora das tradições dos filmes de gênero, mas analogamente mobilizam – seja por um regime de alusões, seja por associação de êxtase, saturada e vertiginosa de imagens e sons – as paixões, afetos e sensações. Falar de excesso em um texto tão curto é uma contradição em si, mas, por outro lado, é um convite passional para o leitor engajar-se nesse universo de choros, gritos, cantos e gozos.

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Fernando Vasconcelos A NOVA CINEFILIA

A já centenária arte para as massas, o cinema, passa por

Fernando Vasconcelos

designer gráfico, escreve sobre cinema no www.kinemail.com.br DIVULGAÇÃO

constantes mudanças desde que, em meados dos anos 1970, a célebre crítica Pauline Kael (1919-2001) declarou um profético “o cinema acabou”, diante do sucesso de filmes como Guerra nas estrelas (Star wars, 1977), que iniciavam a era dos blockbusters. Bem, o cinema ainda não acabou. Mas está diferente. A cinefilia, hábito apaixonado de ver e amar filmes e cineastas, formatou-se no pós-guerra, com a sétima arte em sintonia com as transformações sociais e políticas surgidas nos anos 1960, da contracultura americana à nouvelle vague. Estas refletiam uma geração que não apenas via os filmes, mas escrevia, pensava e discutia sobre cinema, assistindo a obras fora do circuito, em cineclubes e na então boa programação das madrugadas nos canais de TV. Nos anos 1980, aconteceu a grande revolução que redefiniu e renovou a cinefilia: a chegada do videocassete, quando os filmes passaram a ser alugados, copiados e colecionados. A revolução completou-se com a era digital, do suporte físico (DVD e blu-ray) à internet. Os meios digitais criaram uma nova geração de amantes dessa arte, que passa a conhecer e consumir com facilidade cineastas de qualquer época e suas obras completas. Tudo ao mesmo tempo, e não mais numa sala de exibição. Assistir a um filme perde a aura sagrada da ida ao templo (mesmo que uma sala de multiplex), da experiência coletiva. O jovem cinéfilo atual descobre obras como Rocco e seus irmãos (1960), de Luchino Visconti, comendo pizza durante as quase três horas de duração da obra, provavelmente sozinho, talvez de cuecas, diante do monitor de seu computador. No mínimo, essa era da superinformação já alterou as percepções. A memória afetiva de quem acompanhou os lançamentos dos filmes de Stanley Kubrick nos cinemas, através dos anos, não deve ser comparada à de alguém que viu todos eles num curto espaço de tempo, talvez ainda antes da idade adulta. No mundo globalizado, padronizado, superinformado em que hoje vivemos, os processos de produção, exibição, distribuição e até da crítica de cinema já se encontram tão radicalmente reconfigurados, que nem mais parecem com o que um dia já foi conhecido como “fazer cinema”. As facilidades das ferramentas digitais de produção e exibição são uma realidade, com o suporte celuloide em processo acelerado de aposentadoria. Nunca se produziram tantos filmes como agora, nunca houve tantos festivais e mostras de cinema, embora paradoxalmente cada vez mais pessoas assistam aos mesmos poucos filmes, numa agressiva padronização ditada pelo mercado. Mas a cinefilia, o amor ao cinema, persiste, transformada. O cinema não está morto.

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