Continente #146 - Capibaribe

Page 1

anunc-21x28.ai

1

29/01/13

17:11

www.revistacontinente.com.br

CAPIBARIBE

# 146

O RIO QUE INVENTOU O RECIFE

Foto: Banco de imagens MTur

É verão. É só chegar.

#146 ano XIII • fev/13 • R$ 11,00 Fernando de Noronha

Pernambuco está de braços abertos e cheio de novidades para os turistas. Além das famosas praias, que dispensam apresentações, o nosso Estado agora oferece também uma infraestrutura que torna a estada dos visitantes ainda mais rica e agradável. As artes e o artesanato são atrações únicas e estão mais acessíveis, com a chegada do Centro de Artesanato. Pernambuco é o destino certo para quem procura férias inesquecíveis. É só chegar.

CAPA rio.indd 1

Carnaval de Olinda

Foto: Chico Barros

FEV 13

facebook.com/curtapernambuco

Olinda

Foto: Banco de imagens MTur - Lulu Pinheiro

Foto: Banco de imagens MTur - Breno Laprovitera

Galo da Madrugada

CONTINENTE

Foto: Banco de imagens MTur - Breno Laprovitera

Porto de Galinhas

E MAIS CULTURA DA INTERNET | SATWA SANTIAGO CALATRAVA | CAMILO CAVALCANTE BURLE MARX | ENGENHOS DE AÇÚCAR

30/01/2013 08:48:32


CAPA rio.indd 2

30/01/2013 08:48:41


CHICO LUDERMIR

FEVEREIRO 2013

aos leitores As margens dos rios sempre foram procuradas pelos mais diversos povos para fixar suas moradas. Lá, eles encontravam água, comida e uma rota de fuga. Em algumas cidades, esses cursos d´água eram vistos apenas como provedores das necessidades básicas e tinham um papel coadjuvante no seu imaginário poético e cultural. Porém, em outras, o rio era um elemento central, referencial, um personagem ativo. O que seria do Recife sem o Capibaribe? Suas veias se espalham pelos quatro cantos da cidade, entrecortando suas terras, criando ilhas, garantindo à capital pernambucana o título de “cidade anfíbia”, e o clichê turístico de “Veneza brasileira”. Não se trata apenas de um espaço geográfico, o Rio Capibaribe faz circular imagens históricas, culturais e espirituais da cidade, registradas por escritores, poetas e pesquisadores que são unânimes ao concluir: não há Recife sem Capibaribe. Essa referencialidade, no entanto, não garantiu ao rio um tratamento especial. No curso da história, o crescimento da cidade e a industrialização fizeram com que as pessoas dessem as costas a ele e às suas águas. Nesse início de século 21, o Capibaribe está novamente convocando os recifenses a

Editorial FEV.indd 4

olharem para ele e a se darem a oportunidade de ver a cidade a partir dele. Foi o que fez a Continente, nesta edição, em matéria especial. O jornalista Paulo Carvalho expõe a relação íntima que a cidade estabeleceu com suas águas internas ao longo do tempo. Ele nos mostra o papel do Capibaribe no comércio da cana-de-açúcar, nos século 17 e 18; no escoamento do algodão e do couro de cabra por ingleses e cujo rastro urbanístico mais marcante seriam os casarões do Poço da Panela; a construção de suas pontes e o surgimento de suas primeiras palafitas; as cheias que marcaram o imaginário da população; e conclui o texto com esse novo ciclo de relacionamento com o rio que parece estar em consolidação. Contudo, existem aqueles que há muito mantêm uma relação especial com o “Capiba”: fazendo dele seu ambiente de trabalho, tirando dele seu sustento; outros utilizando suas águas para a prática de esportes; e alguns cultivando o desejo de voltar a ver águas cristalinas banhando suas margens. Fomos atrás dessas histórias para mostrar que devemos e podemos nos reapropriar do Rio Capibaribe, buscando uma convivência mais respeitosa com esse elemento essencial à compreensão do Recife, de sua história e cultura.

28/01/2013 15:43:58


2_3_ANUNCIO.indd 24

28/01/2013 15:44:33


2_3_ANUNCIO.indd 25

28/01/2013 15:44:33


sumário Portfólio

Santiago Calatrava

6 Cartas

7 Expediente

8 Entrevista

+ colaboradores Matheus Souza Cineasta brasiliense fala sobre a nova e independente geração de realizadores do cinema nacional

12 Conexão

Gratuita A revista publica ensaios sobre um tema e disponibiliza o material pela internet e no formato impresso

20 Balaio

Frevo Competição entre Luiz Bandeira e Antônio Maria gerou algumas das melhores composições do período momesco

36 História

Engenhos de açúcar Livro revela as dificuldades de manter a cadeia de produção e venda do produto no Brasil colonial

58

Matéria Corrida

60 Palco

Dança Helder Vasconcelos e Armando Menicacci preparam espetáculo utilizando recursos tecnológicos

Autor de mais de 200 obras, arquiteto espanhol assina projeto do Museu do Amanhã, a ser inaugurado no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2014

14

68 Sonoras

Satwa Há 40 anos, era lançado disco seminal que propagou o psicodelismo no rock pernambucano

74 Leitura

Orley Mesquita Cepe Editora lança coletânea do poeta, oferecendo um passeio por grandes temas da tradição lírica

80 Claquete

Camilo Cavalcante Premiado cineasta pernambucano vai ao Sertão para filmar seu primeiro longa

86 Artigo

Alfredo Cordiviola Ainda temos muito o que extrair do anarquismo

88 Saída

Cristhiano Aguiar Clarice, um suvenir virtual

José Cláudio A “bela natureza”

Pernambucanas Farol de Olinda

Construído na década de 1940, semáforo é uma espécie de personagem folclórico da cidade, cheio de histórias que fascinam gerações

50 Capa foto Chico Ludermir

continente fevereiro 2013 | 4

Sumario_FEV.indd 4

28/01/2013 15:47:11


Especial

Tecnologia

Principal rio pernambucano é uma das maiores marcas de nossa cultura ambiental, fixando sua presença na paisagem urbana, na arquitetura e no modo de vida do povo

Acesso aos computadores promove nova relação com a internet, popularizando opiniões e o humor através dos famigerados memes

Visuais

Cardápio

Exposição apresenta, pela primeira vez, 121 desenhos em várias técnicas daquele que é considerado o maior paisagista brasileiro

Animal típico do mangue é elemento central de receitas que são a cara da região litorânea e expõe a inata liberdade à mesa, da qual somos geralmente privados

Capibaribe

22

Burle Marx

54

Cultura da web

42

Fev 13

Caranguejo

62

co n t i n e n t e f e v e r e i r o 2 0 1 3 | 5

Sumario_FEV.indd 5

28/01/2013 15:47:14


cartas Concursos Gostaria muito de ver na Continente mais material sobre a poesia nordestina. Também sugeriria que a revista promovesse concursos literários. UBIRACY OLIMPIO recife – PE

Ano-novo Estou curtindo muito a revista, foi um presentão de Natal mesmo. E fico feliz em saber que ela é longeva (12 anos!) e que continuará por muito tempo, pois não há quem não fique seduzido pela sua qualidade editorial e gráfica. Desejo um bom anonovo para vocês, com muita sorte, alegrias e uma chuva de anunciantes. Fico honrado em colaborar com a Continente e, sem dúvida, no ano de 2013 quero participar com desenhos e textos. BRUNO LIBERATI RIO DE JANEIRO – RJ

RESPOSTA DA REDAÇÃO A Cepe Editora, responsável pela publicação da Continente, tem promovido concursos literários regularmente, bem como recebe originais para avaliação através do Conselho Editorial. Em breve sairá o resultado do III Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil. Recentemente, o governo do estado instituiu, numa parceria entre a Cepe, a Secult e a Fundarpe, o I Prêmio Pernambuco de Literatura, cujas inscrições estiveram abertas até o dia 30 de janeiro. DO FACEBOOK

Nova ortografia

Cordel! Parabéns ao jornalista Carlos Eduardo Amaral, ele conseguiu mostrar todos ângulos do problema com profundidade. Também merece palmas o trabalho do cordelista Marcelo Mário de Melo! Continente, como é bom aprender com vocês! . Synara Veras Araújo Salgueiro – PE

Tema de pesquisa Sou aluna de Publicidade e Propaganda da Faculdade Metropolitana e estou fazendo um trabalho sobre a revista de vocês, na cadeira de Mídia e Estética. Gostaria de saber o tipo de público que vocês buscam nesta revista. Aninha Almeida Olinda – PE

DO TWITTER

O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

Fax

Edição de janeiro

(81) 3183 2783

A entrevista com Ruy Castro na @revcontinente está linda linda!

Li a matéria sobre o Acordo Ortográfico e também o

Você faz a Continente com a gente

Paula Xavier reciFe – pe

Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

continente fevereiro 2013 | 6

Cartas_Colab_FEV.indd 6

28/01/2013 15:49:10


colaboradores

chico Ludermir

isabelle Barros

Fernando Fontanella

Renato Mota

Jornalista, fotógrafo freelancer e integrante da Rede Coque Vive

Jornalista freelancer e mestranda em Comunicação pela UFPE

Professor de Comunicação da Unicap, mestre e doutorando em Comunicação pela UFPE

Jornalista especializado em tecnologia, cultura pop, cibercultura e games

e MAiS Alfredo cordiviola, professor e doutor em Estudos hispânicos e latino-americanos pela Universidade de Nottingham. André Dib, jornalista. cau Gomes, caricaturista e ilustrador. carlos eduardo Amaral, jornalista, mestre em Comunicação. christianne Galdino, jornalista e mestre em Comunicação Rural. cristhiano Aguiar, escritor, crítico literário e professor. eduardo Sena, jornalista. Fábio Andrade, poeta, editor e professor da UFRPE. Fernando Monteiro, escritor e cineasta. Gustavo calazans, fotógrafo. Hallina Beltrão, mestre em design gráfico editorial pela Elisava – Barcelona. ingrid Melo, jornalista. Josias teófilo, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB. Marcelo Abreu, jornalista, professor e autor de livros-reportagem e de viagem. Márcio Padrão, jornalista. Paulo carvalho, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE. Rafael Medeiros, fotógrafo.

GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

gOVERNADOR

Adriana Dória Matos

Gianni Paula de Melo (jornalista)

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO

Juan Ropero (webdesigner)

Fone/fax: (81) 3183.2750

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Luiz Arrais

assinaturas@revistacontinente.com.br CONTATOS COM A REDAÇÃO

Francisco Tadeu Barbosa de Alencar coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco – cePe

REDAÇÃO

(81) 3183.2780

EDIÇÃO ELETRÔNICA

Danielle Romani, Débora Nascimento e

Fax: (81) 3183.2783

www.revistacontinente.com.br

Mariana Oliveira (jornalistas)

redacao@revistacontinente.com.br

DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO

Tiago Barros (fotógrafo)

Ricardo Melo

Maria Helena Pôrto (revisora)

PRODUÇÃO gRÁfICA

DIRETOR ADMINISTRATIVO E fINANCEIRO

André Valença, Gabriela Almeida, Marina

Júlio Gonçalves

Bráulio Mendonça Menezes

Suassuna e Olivia de Souza (estagiários)

Eliseu Souza

CONSELhO EDITORIAL:

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Sóstenes Fernandes Roberto Bandeira

Everardo Norões (presidente) Antônio Portela

ARTE

Lourival Holanda

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

PUBLICIDADE E MARKETINg

Nelly Medeiros de Carvalho

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

E CIRCULAÇÃO

Pedro Américo de Farias

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Armando Lemos

diagramação e ilustração)

Alexandre Monteiro Rosana Galvão Gilberto Silva Daniela Brayner

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE gRÁfICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

co n t i n e n t e f e v e r e i r o 2 0 1 3 | 7

Cartas_Colab_FEV.indd 7

28/01/2013 15:49:13


MATHEUS SOUZA

“Meus filmes são meio suicidas” Cineasta, que faz parte de uma nova geração de diretores brasileiros, fala da sua produção e do mercado do cinema nacional TEXto Márcio Padrão

con ti nen te

Entrevista

“O nosso amor é só nosso. É como o Número 1 sem picles”, diz o jovem Antônio para a futura ex-namorada Adriana. Esse diálogo veio de personagens criados por Matheus Souza, mas poderia ser de algum dos milhares de jovens universitários brasileiros alimentados pela McDonald’s. Até porque Souza deixou de ser mais um desses adolescentes há pouco tempo. Foi sua habilidade precoce para o cinema que o tornou, aos 24 anos, dono de um currículo com dois longas-metragens, uma série para a TV por assinatura, autor de uma nova montagem para a peça Confissões de adolescente, além de ter recebido elogios de “peixes grandes” do cinema, como Fernando Meirelles e Domingos de Oliveira. Matheus faz um tipo de cinema ainda pouco explorado no país: jovem, pop e com reflexões sobre relacionamentos. Nascido em Brasília e morador do Rio de Janeiro desde criança, viu nos filmes, livros, quadrinhos e games favoritos mais do que uma paixão, uma formação de vida. Foi com a ajuda dos amigos de faculdade que se revelou como diretor e roteirista de cinema e teatro, com três

prêmios obtidos em 2008, no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo. Seu segundo longa (o primeiro foi Apenas o fim), Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida, já passou por Gramado, pelos festivais do Rio e São Paulo e deve estrear nacionalmente no primeiro trimestre deste ano. Fechará uma trilogia com a animação Não deixe a Júlia ir embora, em produção. Para a Continente, o cineasta descreve como tem sido essa experiência de trabalho. CONTINENTE Como foram as primeiras recepções ao seu segundo filme, Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida? MATHEUS SOUZA Eu tinha muito medo de lançar o filme, pois o segundo é sempre para as pessoas falarem mal, quando o primeiro fez sucesso. Mas, por sorte, até que ninguém pegou muito pesado nas críticas. Um dos textos que falou mal do filme diz que eu tento ser o Woody Allen brasileiro, mas o máximo que consigo é emular os seus primeiros filmes. Isso já é bom demais para mim, pois também estou nos meus primeiros filmes.

Em Gramado, Fernando Meirelles disse que já “tenho uma cara”, o que é muito bacana para um cineasta no começo. Este filme é sobre decidir seu futuro quando você tem 20 anos, mas há toda uma apatia típica da minha geração. Fomos criados nos calabouços dos nossos quartos, de onde contatamos com o mundo inteiro pelos nossos computadores, mas, ao mesmo tempo, temos cada vez menos o contato físico e interpessoal. Crescemos num mundo em que estava tudo descoberto. Qualquer dúvida, é só digitar no Google. Todas as grandes batalhas e discussões políticas já haviam caído, então há um vazio de sentimento e de pensamento. O filme é sobre a menina Clara, personagem de Clarice Falcão, diante desse vazio, tentando fazer algo a respeito. CONTINENTE Você acha muito assustador escolher o futuro profissional nessa fase da vida? MATHEUS SOUZA Aos 18 anos, você está no auge da sua confusão pessoal, vive o primeiro amor de verdade, tem aquele boom de informações e sentimentos e tem que decidir o que fazer pelo resto

continente fevereiRo 2013 | 8

Entrevista_MATHEUS SOUZA_JAN.indd 8

28/01/2013 15:50:15


divulgação

co n t i n e n t e f e v e r e i R o 2 0 1 3 | 9

Entrevista_MATHEUS SOUZA_JAN.indd 9

22/01/2013 10:51:06


da vida. E se não decidir logo, vai chegar tarde demais ao mercado de trabalho, e a pressão do vestibular aumenta cada vez mais. A personagem começa a matar aula sem saber o porquê. Ela nem sabe se quer fazer o curso que escolheu. E, tudo bem, não saber.

CONTINENTE Você nasceu em Brasília e se mudou para o Rio aos sete anos. Como seus pais o influenciaram nesse gosto pelo cinema? MATHEUS SOUZA Lembro a primeira vez que entrei no cinema: foi para ver A bela e a fera. Eu tinha três anos e achei aquilo a coisa mais incrível do mundo. Meus pais são separados e meu pai é muito calado. Então ele me buscava para passar o final de semana na sua casa, e

fotos: divulgação

CONTINENTE Você se vê como parte de uma nova geração de diretores mais pop, que aborda temas diferentes dos usados em outras fases do nosso cinema? MATHEUS SOUZA Tem nomes interessantes um pouco mais velhos, como Esmir Filho e Ian SBF, que dialogam com esse universo pop, mas ainda é um movimento muito cambeta. Esse sistema atual do cinema brasileiro está estagnado. Ou você faz um filme

comédia de longo alcance com alguns pontos reflexivos, buscando comédias menos rasas no cinema brasileiro. Temos nomes de comédia brilhantes e de conteúdo como Jorge Furtado, Domingos de Oliveira, Guel Arraes, então por que esse caso precisa ser tão raro? Dá para se fazer um meio termo.

con ti nen te

Entrevista que vá bem de bilheteria, ou algo “cabeça” que vai bem em festival, ou um filme a que ninguém vai assistir, porque a distribuidora não vai investir. Meus filmes são meio suicidas porque não são populares o suficiente para fazer um milhão de reais de bilheteria, nem “cabeças” o bastante para ganhar o prêmio de melhor filme de festival que não seja o de júri popular. O fato de serem sobre o universo jovem já vem cercado de muito preconceito. Há pessoas que nem se aprofundam e veem se o filme quer passar uma reflexão maior. Tentei por muito tempo me infiltrar no mundo “cabeça”, sendo pop aos poucos, mas não se mostrou muito eficiente. Talvez o caminho contrário seja melhor, de fazer uma

a gente alugava uns 20 filmes, de Peter Pan ao Sétimo selo, sem o menor critério. Ficávamos o final de semana inteiro assistindo, sem conversar. Isso era o meu diálogo paterno. Quando já tinha uns 12 ou 13 anos, eu era muito bizarro no colégio. Era baixinho, gordinho, tinha espinha... Aí vi pela primeira vez um filme do Woody Allen, que era um cara mais velho e mais bizarro que eu, pegando a Julia Roberts (em Todos dizem eu te amo). Aí falei: é isso que eu quero fazer da vida. Quando me mudei para o Rio, todo mundo era descolado, ia à praia, mas sempre fiquei deslocado dentro desse universo. Conheci outros caras estranhos no universo das artes. Além de Woody Allen, conheci Nick Hornby, o Los

Hermanos, e, a partir dessas pessoas, fui recebendo outras influências. De Woody Allen segui para Bergman, Truffaut, Fellini e conheci todo mundo. CONTINENTE Além de cinema na PUC do Rio, você fez curso de teatro na companhia Tablado. Como é o seu envolvimento com as artes cênicas? MATHEUS SOUZA Se tem um lugar que foi fundamental para minha carreira foi o Tablado. Lá, eu conheci os meus melhores amigos, aprendi uma infinidade de coisas. Eu já tinha vontade de atuar, e tive a oportunidade de ver os meus textos sendo montados, recebi os meus primeiros aplausos. O palco é o único lugar no qual não fico tímido. O cinema é o amor da minha vida, mas acho mais difícil de se produzir.

“Apenas o fim custou R$ 8 mil. Uma parte a gente conseguiu com a PUC, e o restante com a rifa de uísque. Escrevi o roteiro em um mês, chamei os amigos, fizemos a préprodução e gravamos em 14 dias” No teatro, o lado técnico é menor, você depende menos da técnica. E vejo o artista de teatro estando muito mais disposto a fazer uma coisa sem ganhar muito. Fiz uma peça como ator, O apocalipse segundo Domingos de Oliveira, e uma montagem de Confissões de adolescente. Agora, estou buscando financiamento para dois textos meus. CONTINENTE É verdade que o Apenas o fim foi financiado com uma rifa de uísque? MATHEUS SOUZA Acho que o filme custou R$ 8 mil. Metade disso a gente conseguiu com apoio da vice-reitoria de desenvolvimento da PUC, e a outra metade foi dessa rifa de uísque. Escrevi o roteiro em um mês, durante as aulas, e aí fui chamando os meus

continente fevereiRo 2013 | 10

Entrevista_MATHEUS SOUZA_JAN.indd 10

22/01/2013 10:51:07


amigos para fazer parte da equipe. A gente teve um mês de pré-produção e gravamos em 14 dias. CONTINENTE Como conseguiu fazer um longa com tão pouco dinheiro? MATHEUS SOUZA Porque foi tudo pensado para caber nesse orçamento. Ninguém da equipe recebeu nada, todos eram amigos e estudantes. A câmera era emprestada da faculdade e o filme foi todo escrito para se passar dentro da PUC do Rio, porque tinha uma regra na qual a câmera não podia sair da faculdade. A produtora Mariza Leão dava aula na PUC, nos ajudou a conseguir apoio na finalização e a inscrever nos festivais. Ganhou Melhor Filme pelo Júri Popular e Menção Honrosa do Júri

seguir uma carreira paralela na TV? MATHEUS SOUZA Sou obcecado por seriados: Breaking bad, Mad men, Justified, Dexter. É uma coisa que tenho vontade de fazer, que tentei ali pela primeira vez – foi como uma pósgraduação para mim. No Apenas o fim, não sabia como se dirigia, aprendi como se fazia o básico, plano e o contraplano fazendo o Vendemos cadeiras. Agora, sou contratado da Rede Globo para desenvolver novos projetos de seriados. CONTINENTE Você é um dos poucos diretores de cinema brasileiros que assumem outras mídias da cultura pop como influências. O quão fortes são essas influências para você? MATHEUS SOUZA Gosto de todas as

momento, não tenho competência para dirigir um filme de ação, e, sim, uma comédia ou um drama. Mas sou muito nerd, estudioso, então é uma coisa em que pretendo me aprofundar aos poucos para, quem sabe, um dia fazer. CONTINENTE Fale sobre a influência de Domingos de Oliveira no seu trabalho. MATHEUS SOUZA Domingos assistiu a Apenas o fim, gostou muito e nós viramos amigos. Hoje, é como se fosse da minha família, é um outro pai. Tenho um baita orgulho de ele ter essa admiração por mim. Acho que é um dos maiores dramaturgos da história do país. Ele faz esse tipo de filme suicida do qual falei, que não é popular nem “cabeça” o suficiente para ir a Cannes. Domingos

“Um dos textos sobre Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida disse que eu tento ser o Woody Allen brasileiro, mas o máximo que consigo é emular os seus primeiros filmes. Isso já é bom demais para mim” Oficial do Festival do Rio de 2008, Melhor filme pelo Júri Popular da Mostra de São Paulo, Melhor Roteiro no Prêmio Contigo de Cinema, viajou para festivais como o de Roterdã e o de Miami. É incrível pensar que um filme que fiz sem pretensão deu tão certo. Se tivesse sido lançado seis meses depois, teria tido mais bilheteria. Pois o Marcelo Adnet tornou-se o maior nome da comédia do país, Nathália Dill virou protagonista de novela na Globo, o Twitter tinha se consolidado como ferramenta de comunicação jovem e de divulgação através dos trending topics. Teria sido uma história diferente. Faria ao menos R$ 100 mil de bilheteria – conseguiu por volta de R$ 30 mil. CONTINENTE Você, que fez aquela série do Multishow Vendemos cadeiras, pensa em

mídias pop. Meus amigos, minhas namoradas falam sobre essas coisas, é muito presente no nosso cotidiano. Sou muito o fruto dos filmes, jogos e livros de que gostei. Quando alguém fala mal de um filme de que gosto, levo para o lado pessoal, como se estivessem xingando minha mãe. Dia desses, briguei com a namorada de meu amigo porque ela falou mal de Brilho eterno de uma mente sem lembranças. CONTINENTE Você cogita incorporar ao seu estilo outros aspectos da cultura nerd, como filmes de ação, por exemplo? MATHEUS SOUZA Não tenho muita experiência ainda. Como sou eclético nesse ponto, por mim, faço tudo ao longo de minha carreira. No

é filosófico, fala sobre amor, morte, perdas... É um artista plural como poucos no cinema brasileiro. CONTINENTE O que você vê no cinema nacional nos próximos anos? Estamos abrindo mais espaço para novos limites e mercados? MATHEUS SOUZA Sou otimista. A produção brasileira está crescendo, temos pessoas muito talentosas, filmes muito bons sendo feitos... Tem um caminho sendo trilhado e quero fazer a minha parte nele. Nós temos talentos para isso, só precisamos, acima de tudo, dar valor para roteiro, porque é uma escola muito fraca no Brasil. O que falta é acertar nesse ponto, para que nossa produção cinematográfica chegue à excelência.

continente fevereiRo 2013 | 11

Entrevista_MATHEUS SOUZA_JAN.indd 11

22/01/2013 10:51:08


O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

RIO CAPIBARIBE

PáVEL FLORIêNSKI

A Continente deste mês destaca um dos elementos geográficos mais marcantes do Recife, responsável pela denominação de “cidade anfíbia”, dedicada à capital pernambucana. O rio, que corta vários bairros, se conecta aos moradores locais através da pesca, da navegação, da habitação, da arte e da poesia, como vemos na reportagem especial de Paulo Carvalho. No site, disponibilizamos o prefácio do livro Capibaribe mesmo rio: outra gente uma entrevista com as autoras e também uma galeria com as fotografias de Chico Ludermir.

Veja a íntegra da entrevista com Neide Jallageas, que foi a responsável pela primeira tradução do filósofo e teólogo russo para o português.

Conexão

PORTFÓLIO Conheça mais o trabalho do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, cujos projetos são guiados por valores cinético-dinâmicos.

Veja esses e outros links desta seção em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

GIFS ILUSTRADOS

independente

DIREITOS URBANOS

REVISTA

Animações com referências do mundo da moda

Mgrupo de jovens músicos pernambucanos unem-se para montar selo

Grupo se reúne para debater melhorias na cidade

Uma publicação latino-americana de jornalismo narrativo

taradougans.com/pages/about/

joinharecords.com.br/

direitosurbanos.wordpress.com

gatopardo.com

Pensar em gifs animados como arte poderia parecer ridículo nos idos anos 2000, quando tínhamos as animações do MSN como maior referência do gênero. Mas a ilustradora canadense Tara Dougans vem mudando essa perspectiva. Com ilustrações feitas à mão e finalizadas com tinta guache, Tara usa os elementos do mundo da moda como inspiração para os seus trabalhos. Com estampas supercoloridas, a ilustradora monta um universo bizarro em seu projeto mais recente, em que explora a interseção entre o artesanal e o tecnológico, entre as formas estáticas e as em movimento.

O Joinha Records é o selo independente de música criado por China, Chiquinho (Mombojó) e Homero Basílio (Orquestra Sinfônica do Recife). Há três anos, os músicos decidiram juntar suas parafernálias instrumentais e montar o Estúdio das Cavernas. A partir daí, começaram a gravar músicas próprias e de outras bandas. Hoje, o Joinha Records produz artistas como Catarina de Jah e Jr. Black, além de já ter gravado o CD Bamdarra (2011), de Tibério Azul, e realizar o Novas Joias, premiação para novos talentos que teve sua primeira edição no ano passado.

O Direitos Urbanos (Recife) surgiu nas redes sociais como um espaço de debate formado por pessoas das mais diversas áreas. Desgostosos com alguns posicionamentos dos governantes da cidade, o grupo decidiu dar formas reais às suas ideias e começou a combinar encontrosprotestos, como o Ocupe Estelita, que é contra a construção de torres empresarias e residências no Cais José Estelita, no centro da cidade. Em março do ano passado, eles montaram um blog para disponibilizar e organizar matérias importantes para a fomentação do debate sobre os direitos urbanos.

A Gatopardo, fundada na Colômbia por Miguel Silva e Rafael Molano, é uma revista mensal que aposta no jornalismo narrativo. Com sede na Cidade do México, ficou conhecida principalmente por suas crônicas. Hoje, circula pela Argentina, México, Colômbia, Panamá, Venezuela, Chile, Peru, Uruguai, Costa Rica, Porto Rico, Miami e Nova York, sempre tratando de assuntos de interesse dos latino-americanos.

continente fevereiro 2013 | 12

CONEXAO_fev.indd 12

22/01/2013 15:19:10


blogs ARTE TOSCA tosquista.tumblr.com/

A Galeria Tosquita, apesar de só ter obras de brasileiros, é uma homenagem à vovó espanhola que, em 2012, restaurou por conta própria uma obra do século 19 do pintor Elìas Carcía Martínez e acabou famosa nas redes sociais.

GUIA instagram.com/vailasp

EDITORA LANÇA REVISTA GRATUITA Periódico, disponibilizando gratuitamente tanto na versão impressa quanto online, reúne coletânea de ensaios temáticos chaodafeira.com/

Com dois livros inéditos publicados no país e dois anos em

atividade, a Editora Chão de Feira, fundada por Carolina Fenati e Cecília Rocha, deu início a mais um trabalho no final do ano passado. Explorando também o meio virtual, a editora lançou a revista Gratuita, que, como o nome sugere, é disponibilizada dessa forma (tanto sua versão impressa quanto a versão digital, disponível para download no site da Chão de Feira). A ideia é publicar pequenos ensaios sobre um tema definido pelo grupo organizador e disponibilizar esse material pela internet e no formato impresso. A primeira edição, lançada em dezembro de 2012, sob o título Cartas para todos e para ninguém, reúne 12 ensaios já publicados na seção Caderno de Leitura, no site da editora, e outros inéditos que trabalharam o tema cartas. Os escritores publicados são de diferentes nacionalidades, mas os brasileiros e os portugueses são os principais, já que a Chão de Feira fica em Belo Horizonte e mantém um intercâmbio com escritores em Portugal, onde a editora também lançou a Gratuita e seus dois livros. GABRIELA ALMEIDA

Alimentado pelos usuários do Instagram, o #vailásp é um guia da cidade de São Paulo idealizado pela jornalista Daniela Arrais e pela publicitária Luiza Voll. A ideia é expandir e montar um roteiro feito coletivamente para mais cidades.

ANIMAÇÃO jeffvictor.blogspot.com.br/

Com trabalhos vendidos para a Warner Animation Bros, Playstation 2 e HBO, o ilustrador americano Jeff Victor publica em seu blog pessoal alguns detalhes das suas criações.

NERDS TAMBÉM CASAM whengeekswed.com/blog/

Casamentos nerds se tornaram super-requisitados mundo afora. Por isso, Cassandra, uma norteamericana, decidiu montar o blog When Geeks Wed com dicas para esses futuros noivos .

sites de

d e coração Faça você mesmo

Especialistas

Casa dos sonhos

decoracao.com/

designsponge.com/

myidealhome.tumblr.com/

Além de palpites na decoração, o portal Decoração traz um pouco do faça você mesmo, mostrando passo a passo como montar ou transformar móveis.

No Design Sponge, além das dicas, você tem uma seção de colunas com especialistas de diversas áreas ligadas à decoração.

Quem nunca passou horas “decorando” sua possível casa? A autora desse tumblr reúne aqui todo tipo de sonho de decoração. Ótimo para buscar referências rápidas.

continente fevereiro 2013 | 13

CONEXAO_fev.indd 13

22/01/2013 15:19:10


1

Portfolio_FEV.indd 14

Port f 22/01/2013 10:59:29


t f贸lio Portfolio_FEV.indd 15

22/01/2013 10:59:30


con ti nen te

Portfólio

fotos: divulgação

2

Santiago Calatrava

Um plano urbanístico para o século 21 TEXTO Fernando Monteiro

Santiago Pevsner Calatrava Vall formou-se em Arquitetura em sua cidade natal, Valência, em 1974, ao

mesmo tempo em que frequentava os cursos de Urbanismo e Belas-Artes. Concluídos os cursos, o jovem arquiteto mudou-se da Espanha para a Suíça, a fim de estudar Engenharia Civil em Zurique, licenciandose em 1979 e concluindo o doutorado em 1981. Provavelmente, essa formação integral viria a capacitá-lo para uma gama de empreitadas, desde interiores até grandes infraestruturas como a Ponte de Alamillo, em Sevilha, um dos seus primeiros projetos estruturais, concluído em 1992. Talvez um dos seus projetos mais impactantes, roçando os limites da incredulidade, seja a Ciudad de las Artes y las Ciencias, erguida às margens do Rio Túria, em Valência. As formas do século 21 são aterrissadas com leveza, força e funcionalidade na mesma Espanha arrojada de Gaudí. A obra de ousadia indiscutível faz “virar” a página das inovações arquitetônicas catalãs e também atinge, no cerne daquelas formas, uma espécie de medula nova, artisticamente falando, pelo desdobramento da ligação com a natureza. Hoje, são mais de 200 trabalhos – entre estações, aeroportos e projetos de ordenação urbanística na Suíça, em Portugal, Itália, Suécia, Grécia, Argentina etc. – que levam a assinatura desse homem ainda jovem, com atenção extrema ao pormenor material e dotado de visão estrutural poderosa. Há, nas suas concepções maiores, a predominância de valores cinético-dinâmicos que conseguem “dar a volta” a um certo imobilismo quase inevitável em projetos que implicam grandes massas arquitetônicas. Ele é um “estruturista” vocacional, e gosta de conciliar solidez tecnológica com elementos figurativos que fogem de todo formalismo, talvez pela via das conotações organicistas sempre presentes no seu traço de artista.

continente fevereiro 2013 | 16

Portfolio_FEV.indd 16

22/01/2013 10:59:40


3 Página anterior 1 VaLÊNCIA

A Ciudad de las Artes y las Ciencias é uma de suas obras mais impactantes

Nestas páginas 2 estilo

Arquiteto utiliza configurações dinâmicas, frequentemente assimétricas

natureza 3 O Museu de Ciências Príncipe Felipe, que faz parte do complexo construído em Valência, lembra um casco de animal

4 Auditório O edifício se tornou cartão-postal da cidade espanhola de Tenerife

4

continente fevereiro 2013 | 17

Portfolio_FEV.indd 17

28/01/2013 15:53:52


5

continente fevereiro 2013 | 18

Portfolio_FEV.indd 18

28/01/2013 15:54:04


Fotos: divulgação

6

7

Pode parecer estranho trazer a palavra surrealismo para este terreno, porém essa seria uma das chaves de análise do “estilo calatraviano”, que também vai buscar inspiração nas lições da natureza, patentes nos seus equilíbrios de articulações-rótulas, tendões-cabos e outras harmonias antropomórficas aludidas em construções que não nos desconcertam. Aqui, no Brasil, Santiago Calatrava terá a sua primeira obra erguida no Píer Mauá, na área do Porto Maravilha, do Rio de Janeiro. Com inauguração prevista para o segundo semestre de 2014, trata-se do Museu do Amanhã, que faz parte dos projetos museológicos da Fundação Roberto Marinho, e constitui um complexo de 12,5 mil metros quadrados, orçado em R$ 130 milhões e para o qual o arquiteto espanhol foi uma escolha natural, segundo

os diretores da fundação carioca. Entrevistado na apresentação dos esboços, em 2011, Calatrava disse que o visitante do museu “não vai apenas apreciar um espaço museológico. Ele também vai ter a experiência da luz, da vida, da natureza, e poderá contemplar, entre outras paisagens, o Dedo de Deus”. Esse dedo passa pelas formas naturais aprendidas da Natureza, segundo o espanhol eleito, em 2005, pela revista americana Time, como “uma das 100 pessoas mais influentes do planeta”. Tanto que o museu adotará o uso da energia solar e está sendo construído com materiais recicláveis, de acordo com as especificações do arquiteto, que diz ter se inspirado inicialmente na bromélia, para os estudos prévios de concepção da forma desse museu de denominação um tanto vaga, convenhamos.

5 ponte de alamillo

m dos seus U primeiros projetos estruturais, concluído em 1992, em Sevilha

6 brasil Calatrava fez o projeto do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, que deve ser inaugurado em 2014 torre de 7 montjuïc

oi construída pelo F arquiteto para as Olimpíadas de 1992

continente fevereiro 2013 | 19

Portfolio_FEV.indd 19

28/01/2013 15:54:13


Fotos: divulgação

fim de mundo

O frevo de nosso Bandeira Nos anos 1950, quando era cantor do Copacabana Palace, então a principal sala de visita do Brasil, Luiz Bandeira (foto acima, à esquerda, ladeado por Claudionor Germano e Capiba) participou de original disputa com o conterrâneo Antônio Maria, que também residia e trabalhava no Rio de Janeiro: ver qual dos dois comporia os melhores frevos em homenagem ao Recife e ao seu Carnaval. Quem venceu a contenda? Pode-se dizer que a folia brasileira, sobretudo a pernambucana, que ganhou várias e belas composições, como o Frevo nº 1 do Recife, de Maria (“Ô ô ô ô ô saudade,\ saudade tão grande”) e Voltei Recife, de Bandeira, que, em outra música da época, Novamente, colocou na letra: “Vou lembrar a Capiba, Carnera e Nelson Ferreira\ que o frevo é nossa bandeira\ não vamos deixar ninguém rasgar”. Embora incursionasse por diversos gêneros – como demonstram Viola de Penedo, gravada por Clara Nunes, e Onde tu tá, Neném?, interpretada por Luiz Gonzaga –, Bandeira hoje é lembrado,também, pela sua paixão carnavalesca, manifestada em obras como o clássico É de fazer chorar, também conhecida como Quarta-feira ingrata (“É de fazer chorar\ quando o dia amanhece\ e eu vejo o frevo acabar”). Ironicamente, faleceu aos 75 anos, no dia 22 de fevereiro de 1998, um domingo de Carnaval. GILSON OLIVEIRA

con ti nen te

A FRASE

“Não há como extrair poesia do que é falso.” Ron Whitehead

Como as sátiras aos principais fatos do ano anterior costumam desfilar pelo Carnaval brasileiro, tradição que em Pernambuco é hoje E O MUNDO bem representada por grupos NÃO ACABOU como o Quanta Ladeira e as Virgens de Olinda, um dos temas que dificilmente não estará em letras de música e fantasias da folia de 2013 é o “fim do mundo”, que, de acordo com interpretações dadas a profecias maias, ocorreria em 21 de dezembro de 2012. Ainda em 1979, o compositor Capiba aproveitou um desses apocalipses, que terminaram não acontecendo, para demonstrar sua paixão pelo frevo, apresentando sua fórmula particular para que o ritmo (recentemente classificado pela Unesco como patrimônio universal) também se tornasse eterno. Diz a letra de Trombone de prata: “Ouvi dizer que o mundo vai-se acabar, / que tudo vai pra cucuia, / o sol não mais brilhará. / Mas se me derem / O MELHOR MESMO um bombo e uma mulata, / e É FREVAR! um trombone de prata, / O frevo bom viverá”. (GO)

Balaio rave medieval

Em 1518, uma rua de Estrasburgo foi o lugar escolhido por Frau Toffea para dançar ininterruptamente, por cerca de seis dias. O que seria um fenômeno atípico tomou outras proporções, quando, ao término dessa primeira semana, umas 30 pessoas tinham se juntado a ela. O evento, chamado de Epidemia da Dança, seguiu por todo o mês, chegando a reunir 400 “dançarinos”, o que gerou mortes por ataque cardíaco e derrame. Embora pareça lenda urbana, o episódio é respaldado por documentos no livro A time to dance, a time to die: the extraordinary story of the Dancing Plague of 1518, do historiador John Waller. Outros pesquisadores também apresentam hipóteses sobre se tratar do ritual de uma seita herética ou de ter havido ingestão de psicotrópicos. Waller, no entanto, acredita que o contexto de estresse coletivo, causado pela fome, doenças e pragas, gerou um quadro de “enfermidade psicogênica de massa”. Outra possibilidade seria considerar que foi a primeira rave da história. (Gianni Paula de Melo)

continente fevereiRO 2013 | 20

Balaio_FEV.indd 20

28/01/2013 15:57:56


criaturas

bateu, levou Quando tinha 16 anos e decidiu participar do programa de calouros comandado por Ary Barroso, Elza Soares já era mãe de uma criança que, assim como ela, sofria, muitas vezes, por não ter o que comer. Muito simples e malvestida, a carioca foi alvo da zombaria da plateia assim que se posicionou para o número. Não bastasse o seu drama privado e a risada do público, teve que lidar com as perguntas do apresentador, que disparou: “O que você veio fazer aqui?” E a garota prontamente respondeu: “Eu vim cantar, seu Ary”. O compositor, então, seguiu com ar de superioridade: “E quem disse que você canta?”, emendando com a infeliz pergunta: “De que planeta você veio?”. Elza, que até hoje conta essa história, com mágoa, respondeu à altura: “Eu vim do mesmo planeta do senhor, seu Ary, o planeta fome”. (GPM)

calor é psicológico Apesar de termos um dezembro ensolarado, criamos a fantasia de que o mês do natal é de tempo ameno. Mas, passadas as festividades de fim de ano, o clima muda radicalmente. Já no primeiro raio de sol de janeiro, notamos a diferença. É tempo de praia, de carnaval e de muito calor. Somos lembrados de tomar bastante água e suco de frutas para hidratar e não precisamos de lembretes para manter o ventilador ligado. Contra todo esse clima, há quem diga que calor é um mal psicológico. Com essa ideia, um anônimo montou o “experimento” de um ventilador online. O funcionamento de site é muito básico. Basta digitar ventiladoronline. com/ no seu navegador, observar as hélices de um ventilador girando e se deliciar com o refresco de um vento virtual. (Gabriela Almeida)

Naná Vasconcelos, homenageado do Carnaval 2013 Por Cau Gomez

continente fevereiRO 2013 | 21

Balaio_FEV.indd 21

28/01/2013 15:57:59


con ti nen te

especial

Recife, “cidade anfíbia” continente FEVEREIRO 2013 | 22

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 22

28/01/2013 16:00:14


A conexão referencial da capital pernambucana com seu principal rio, do qual explora pesca, esporte, habitação, transporte, arte e poesia texto Paulo Carvalho Fotos Chico Ludermir

continente FEVEREIRO 2013 | 23

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 23

28/01/2013 16:00:16


con ESPECIAL ti nen te

1

No seu Guia prático da cidade do Recife, Carlos Pena Filho sugere que a cidade seria “Metade roubada ao mar,/ metade à imaginação”. Mas talvez fosse ainda preciso dizer sobre a cidade de Manuel, João e Joaquim, como lembra mais adiante Carlos, em referência a três nomes que fizeram indissociáveis a nossa paisagem e a nossa poesia, que se trata de uma cidade roubada, além de tudo, ao rio. Recife, “cidade anfíbia”. Não se poderia, portanto, falar dela, dos recifenses ou dos muitos estrangeiros que a babelizaram à mais alta potência, sem mergulhar no Capibaribe. Sem ser apanhado pela brisa que circula graças às curvaturas que o curso do rio singra por entre casas e prédios, sobrados e mocambos. Sem ser encarado, enfim, pela pobreza e riqueza extremas, imiscuídas em visadas tão raras quanto bonitas, duplicadas pelo espelho d’água. Perguntamos, aqui, sobre a relação íntima, especular, ditosa e miserável, molhada e nem sempre catingosa e infecta que esta cidade estabeleceu com suas águas internas. Chega-nos de Josué de Castro a primeira tentativa de aproximação.

A economia baseada na cana-de-açúcar precisava de um transporte rápido e o Recife, com seu rio, fornecia essa solução “Planície constituída de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e pauis, envolvidos pelos braços d’água dos rios que, rompendo passagem através da cinta sedimentar das colinas, se espraiam remansosos pela planície inundável. Foi nesses bancos de solo ainda malconsolidados – mistura ainda incerta de terra e de água – que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro de água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros flutuando esquecidos à flor das águas.” Flutuante, o Recife estabeleceu uma conexão referencial com o Capibaribe. O Rio das capivaras,

segundo a famosa toponímia indígena, forneceu-lhe riquezas e amparoulhe a pobreza mais absoluta. Dele, o Recife explorou o negócio flutuável, a navegação fluvial, áreas alagadas para habitações miseráveis. O rio transfigurou o Recife e a cidade não menos transfigurou o rio. Nós o vimos e vemos, mas, como escreveu Joaquim Cardozo em poema dedicado a Burle Marx, também a “terra do mangue” tem olhos que viram e veem o “progresso”.

PORTO

Para entender como esse agenciamento do recifense com o Capibaribe se deu historicamente, é necessário lembrar que o Recife foi a segunda centralidade de Pernambuco. Na primeira, Olinda, desenvolveu-se um centro socioeconômico cultural, já no século 16, apoiado pelo Cais do Varadouro. “Como o Porto do Varadouro não tinha acesso direto ao mar, era dominado pela rede fluvial, no caso, formada pelo Beberibe e seus canais de afluentes”, explica Antenor Vieira de Melo, arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e

continente FEVEREIRO 2013 | 24

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 24

28/01/2013 16:00:18


imagem: reprodução

1 poesia Águas do Recife inspiraram poetas, como João Cabral vida social 2 Desenho retrata navegação no rio, no Bairro da Madalena antenor vieira de melo 3 Segundo arquiteto, o Porto do Recife transformou o estado no centro do país

Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco. O Varadouro foi o primeiro grande porto do país. Um cais fluvial, de água doce, por onde chegavam pequenas e médias embarcações. Com o passar do tempo, a atividade comercial de Pernambuco foi crescendo, a logística de transporte exigiu um porto maior. Foi quando o Recife despontou. “A economia baseada na cana-de-açúcar precisava de um transporte rápido e investimentos em infraestrutura. O Recife fornecia naturalmente, pelos arrecifes, um cais e, adentrando pelas terras, onde ficariam os engenhos, o Capibaribe”, explica Vieira de Melo. Os engenhos se formaram ao longo do rio, utilizando o Porto do Recife para escoar sua produção. Tratou-se de uma estratégia racional que transportava a mesma mercadoria por terra, rio e mar. “O Porto do Recife reuniu daí sua importância econômica, logística, transformando Pernambuco no centro do país”, observa o arquiteto. O Recife nasce orgânico, exercendo o rio (na verdade, os rios, já que além do Capibaribe e do Beberibe, temos o Tejipió) um papel indispensável na articulação de seus bairros. Como lembra Evaldo Cabral de Mello, esses bairros surgiram de maneira descontínua, ganglionar ao longo do rio, conforme os antigos donos de engenhos, em crise, iam se desfazendo de partes de suas terras. Na segunda metade do século 18, surgiram os povoamentos do Poço da Panela, da Caxangá e da Várzea, os “subúrbios coloridos” exaltados por Pena Filho. “Em poucos lugares do Brasil você tem os ângulos de abertura, de ventilação, de reflexão. Isso é fantástico. Muitas fotografias exploram esse aspecto duplo do Recife. Uma cidade que está amarrada no cais e outra que está no rio, parecendo que será

2

3

arrastada até o mar por ele”, sugere Vieira de Melo. A ocupação das ilhas e da bacia de manguezais deu-se a partir da chegada holandesa, em 1631, logo depois dos invasores terem incendiado Olinda. A Ilha de Antônio Vaz (área que, hoje, compreende os bairros de Santo Antônio, São José, Cabanga e Coque), a mais próxima do istmo do Recife , recebe uma grande leva dessa população. A geografia da cidade se aproximava do estilo de urbanização flamenga. A diferença na ocupação de Olinda e do Recife evidenciaria o litígio de duas racionalidades militares e duas concepções diferentes de cidade, sendo a holandesa de inspiração renascentista, monumental, geométrica.

“Quando os holandeses tomaram o Recife, indicaram a repartição das terras, dos lotes, esguios, finos e compridos, para maior ocupação, à semelhança do que havia em Amsterdã. Daí, surgiram os chamados sobrados magros do Recife”, registra o arquiteto. Um elemento a mais para a posterior coleção superlativa dos pernambucanos. A cidade do Recife é considerada a que tem os sobrados mais altos e mais esguios do Brasil. Na imagem de João Cabral de Melo Neto, uma lição de “(...) equilíbrio leve,/ na escrita, na arquitetura (...)”: “(...) Na cidade propriamente/ velhos sobrados esguios/ apertam ombros calcários/ de cada lado de um rio(...)”.

continente FEVEREIRO 2013 | 25

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 25

28/01/2013 16:00:22


con ESPECIAL ti nen te

4

Os holandeses foram invadindo mangues, aterrando, ganhando novos bairros (para acomodar o excedente populacional vindo de Olinda). A cidade se expandiu sobre um regime fluvial de mangues, córregos e canais do Capibaribe e do Beberibe. A primeira ocupação utilizou as margens dos rios como ponte entre os sobrados. Daí o surgimento das belas ruas com vistas para o Capibaribe, como a Rua da Aurora. “São vias extraordinárias pela possibilidade que nos dão de sentar em um cais e poder contemplar uma bela paisagem”, sugere ainda Vieira de Melo.

praia no rio

A proposta flamenga foi de enaltecer a vida com o rio. Esse sentimento permaneceu depois da expulsão pelos portugueses na metade do século 17, ainda que o traço urbanístico perdesse o rigor geométrico. Os rios eram limpos, dado que a mão de obra escrava propiciava a destinação final do esgoto. “Os negros levavam as tinas cheias de fezes e sacudiam no mar. Nunca no rio”, acrescenta o arquiteto. “Não havia esgotamento ou fossas. O mar,

5

“As sinhazinhas, os rapazolas, vinham em seus barcos e iam para as praias formadas pelas ilhas do rio” Antenor Vieira de Melo até o século 19 e durante quase todo ele, era infecto. Era onde se encontrava todo dejeto da cidade. Há, inclusive, relato de ingleses que se assustaram ao ver os negros em final de vida ou crianças com doenças, mas ainda vivos, jogados na praia para morrer.” A relação com o destino final do esgoto fez com que o rio fosse ultravalorizado pela qualidade das águas. “As sinhazinhas, os rapazolas, vinham em seus barcos e iam para as praias formadas pelas ilhas no Capibaribe. Eram verdadeiras festas de banho de rio. O Capibaribe era a vida da cidade. Na época, também havia o passeio, como em Veneza, em embarcações luxuosas. A aristocracia pernambucana se volta para o rio”, narra o arquiteto.

A esse respeito, Gilberto Freyre registra que “muita casa-grande de sítio, muito sobrado de azulejo, no Recife todo casario ilustre da Madalena – que hoje dá as costas para o rio – foi edificado com a frente para as águas”. A cultura do banho de rio conheceria seu auge no século 19. Com a abolição da escravatura, não havia mais quem recolhesse e transportasse os dejetos. As casas fizeram seus banheiros, criaram fossas nos seus terrenos e as ligaram aos rios. Estabeleceu-se, então, o panorama atual, a visão naturalizada de que “o rio é sujo e o mar é limpo”. Tubos imensos jogavam no Capibaribe esgotos sanitários. O rio é o novo mar, um macroesgoto a céu aberto. Mas ainda que o Capibaribe tivesse se tornado sujo e a fachada das casas, aos poucos, fossem voltando-se para ruas importantes, como a Rua Benfica, ainda era valorizada pela aristocracia a posse de um porto fluvial privado. Elemento de distinção, símbolo de status, esses portos, alguns preservados até hoje, eram utilizados pelas sinhazinhas para sair de casa com elegância.

continente FEVEREIRO 2013 | 26

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 26

28/01/2013 16:00:29


05 Revelit aliquat Veliquat, sustrud mod tionnum alis sequatue fquatum zzriure facilit ipiwugue duismoeu faciliquislDuis delfaciliquislIllan ex 05 Revelit aliquat Veliquat, sustrud mod tionnum alis sequatue fquatum zzriure facilit ipiwugue duismoeu faciliquislDuis delfaciliquislIllan ex

6

Antenor Vieira de Melo registra que tivemos, no Recife, um outro tipo de ocupação, que abandona o rio, proposta pelos ingleses no século 19. Se o português gostava, e fazia, como forma de defesa, os casarões colados uns nos outros, assim como costumavam morar em cima dos próprios comércios, o inglês queria morar numa casa afastada do local de trabalho e separada dos vizinhos por um jardim em que pudessem cultivar suas flores. “Botaram olho no Poço da Panela. O inglês renegava o Capibaribe. Não fazia parte da cultura deles, apesar do Tâmisa. Eles foram criando sítios em que construíam casarões. É o que temos lá. Sobradões nórdicos, sem conversa com a água.”

AS PONTES

As pontes simbolizaram a necessidade de transporte racional e ao mesmo tempo poetizaram a paisagem do rio. Para usar uma imagem de Joaquim Cardozo, chamado por João Cabral de Melo Neto de o “Poeta do Capibaribe”, o “Recife romântico dos crepúsculos das pontes/ E da beleza católica do rio” flutua espelhado na lâmina d’água.

Natureza dupla, pitoresca e fotogênica, como demonstram os abundantes registros iconográficos da cidade. “Só existia, no começo do século 17, uma ponte em Pernambuco, localizada na Ladeira da Boa Hora, em Olinda. Quando Maurício de Nassau ocupa a Ilha de Antônio Vaz, aquela passagem que se fazia com uma balsa presa a uma corda não atende mais à necessidade de desenvolvimento dos novos bairros. É quando ele projeta e executa a Ponte do Recife, seguida por uma outra, obtusa, que constrói do seu palácio, aproximadamente de onde está hoje o Mirante do Carmo, até o aterro da Boa Vista”, explica o arquiteto e urbanista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, José Luiz Mota Menezes. É dessa época a campanha de arrecadação de fundos com base na alegoria do Boi Voador. A Ponte do Recife foi modificada ao longo do tempo, tendo dois portais e lojas de um lado e outro de seu curso. Chegou a possuir também uma estrutura de ferro. Seguiu-se a essas duas primeiras ligações, a Ponte Nova da Boa Vista, hoje de ferro, mas

4 urbanismo

As pontes simbolizaram a necessidade de circulação entre as ilhas e poetizaram a paisagem do rio

5 status Mercado imobiliário atual reproduz antigo valor da habitação à beira do rio 6 sobrevivência Embarcações comprovam a resistência dos trabalhadores da pesca

antes de madeira. A seguir, a Ponte Provisória, hoje a Buarque de Macedo, e, finalmente, a Santa Isabel, compondo o primeiro núcleo de pontes do centro. Quando se estabelece a rede de trens, faz-se uma ligação, em ferro, saindo por trás do Liceu de Artes de Ofício até a Avenida Conde da Boa Vista. Dessa ponte, saíam os trens da Maxambomba. A Ponte de Afogados e outras pontes em torno do Recife, bem como a do Derby, da Madalena e da Torre, acompanham a expansão da rede ferroviária. Entre 1913 e 1918, começam as obras de saneamento do Recife e Saturnino de Brito constrói a Ponte Velha. Hoje, três pontes ligam o Bairro do Recife ao de Santo Antônio: a 12 de Setembro (Giratória), a Maurício

continente FEVEREIRO 2013 | 27

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 27

28/01/2013 16:00:31


con ESPECIAL ti nen te de Nassau, a Buarque de Macedo. Quatro ligam o bairro de Santo Antônio à Boa Vista: a Santa Isabel, a Duarte Coelho, a da Boa Vista (Ponte de Ferro) e a Ponte Velha.

URBANIZAÇÃO

Para Antenor Vieira de Melo, o Recife tem um clima extraordinário, em função das aberturas sinuosas que o rio faz. “A cidade respira para tudo que é lado. Isso é impressionante. Mesmo no verão, se você ficar embaixo de uma marquise, de uma sombra, o vento pega. Veja que as avenidas mais valorizadas são as perpendiculares aos rios, em que toda ventilação que vem do mar toma o rio e chega a elas.” O território citadino é demarcado pelo Capibaribe, entrecortado por águas que chegam à cidade pela Várzea, banhando os bairros da Caxangá, Iputinga, Cordeiro, Torre, Jaqueira, Parnamirim, Graças, Madalena, bifurcando na Ilha do Retiro: em direção aos Coelhos, e a Afogados. Como ressalta Carlos Bezerra Cavalcanti, geógrafo do Instituto

O clima do Recife torna-se mais ameno, com a circulação de ventos, devido às aberturas sinuosas que o rio faz na cidade Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, as águas nomeiam diversos bairros e locais do Recife, alguns desses nomes de origem indígena. Bongi (rio que faz curva), Água Fria, Dois Unidos (dois riachos que se fundem, afluentes do Beberibe), Beberibe, Cabanga (pau torto, referência aos manguezais), Afogados, Parnamirim (rio pequeno), Ibura (água que explode ou fonte d’água), Ilha do Leite, Ilha do Retiro, Iputinga (lugar de barro branco que alaga), Manguinho, Peixinhos, Poço da Panela, Porto da Madeira, Tejipió, Várzea. Somando-se a esses bairros, temos ainda o Cais da Alfândega, do Abacaxi, José Mariano, do Colégio, de Santa Rita e do Porto.

7

8

9

A proximidade com as águas, o crescimento urbano desordenado avançando sobre as áreas de vazão e intervenções na foz do rio também colocariam o Capibaribe no nosso imaginário de terror. “Um livro escrito por um engenheiro, na década de 1930, denuncia as obras que seriam feitas na foz pela Marinha e que poderiam provocar cheias”, ressalta Antenor Vieira de Melo. Em 1970, quando uma grande precipitação pluviométrica apanhou o Recife, o rio não teve para onde escoar.

“Ficou represo e sacudiu tudo de volta. A Conde da Boa Vista virou um lago. A Imbiribeira tinha mais água que o próprio rio. A cidade ficou debaixo d’água. As fotografias são pavorosas.” Dos idílicos banhos de sol para “o chão movediço do rio de água e lama, e que passa em revista o Recife e seus podres, kafkianamente metamorfoseados num cão”. Como descreve o crítico Armando Freitas Filho, a poética de João Cabral agenciase às transformações na paisagem do Capibaribe, infecto, agora também um

continente FEVEREIRO 2013 | 28

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 28

28/01/2013 16:00:33


7-12 capibaribe Rio demarca o território da cidade, entrecortando os bairros pelas águas

10

11

pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo (...). São 100 mil indivíduos, 100 mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez”. Em 1937, instaura-se a ditadura Vargas. Agamenon Magalhães é nomeado interventor de Pernambuco. Magalhães reprime o movimento sindical, persegue os cultos afrobrasileiros, e opositores políticos como Ulisses Pernambucano, e investe na erradicação dos mocambos, respaldado pelo anticomunismo da Ação Católica, que não admitia a perspectiva da luta de classes na crítica social. Em 1939, cria a Liga Social Contra os Mocambos. O programa não deu o resultado que o interventor esperava, mas transferiu muitas famílias das margens dos rios para o Morro da Conceição, o Alto do Mandu e bairros como o da Caxangá. “Na China, há cidades imensas dentro da água. Alguns desses locais, hoje, são tombados para mostrar as ínfimas condições de vida das pessoas nas palafitas. Um espaço a ganhar dentro do rio que não custava nada. Mas por que tombar e conservar? Ora, como pedagogia de ensino. Como forma de dizer: isso nunca mais voltará a acontecer na nossa sociedade”, explica o arquiteto Antenor Vieira de Melo.

estudos

12

bicho vivo incomodando a memória da cidade, feito de lodo e ferrugem, como um “cão sem plumas”, um “(...) rio indigente, sangue-lama que circula/ entre cimento e esclerose/ com sua marcha quase nula(...)”. No rio “espesso” de João Cabral, nas margens do “companheiro melhor” (“mortalha macia e líquida”, “caixão macio de lama”), estavam os mocambos, as palafitas. Como dramaticamente registra Josué de Castro, habitações do ciclo trágico em que homens se alimentavam de

caranguejos engordados pelas próprias fezes e urinas que lançavam sobre o rio: “Tudo aí é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive o homem e a lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive nela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geleia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de

Talvez estejamos entrando em um novo ciclo de relacionamento com o Capibaribe, com a cidade e as formas de ocupar o espaço público, é o que aponta o consultor Cláudio Marinho, engenheiro civil e mestre em desenvolvimento urbano pela UFPE. Um dos pais do Porto Digital, Marinho já foi secretário das pastas de Ciência e Tecnologia e de Meio Ambiente. Também foi o engenheiro responsável pelo primeiro estudo de viabilidade econômica do Projeto Capibaribe, realizado em 1982 pela Empresa de Urbanização do Recife (URB), cujo plano era criar ao longo

continente FEVEREIRO 2013 | 29

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 29

28/01/2013 16:00:39


con ESPECIAL ti nen te

13

13 MANGUE

Raízes do ecossistema funcionam como um filtro para as águas

do Capibaribe, desde a BR 101 até o Bairro da Torre, projetos habitacionais de classe média e parques. Os estudos buscavam benefícios cruzados entre a margem rica (Casa Forte) e a pobre (Caiara, Cordeiro, Iputinga). A ideia era comprar terras que valorizassem o lado rico e usar os recursos obtidos para urbanizar a margem pobre. Segundo Marinho, as ações de urbanização devem procurar a convivência e o equilíbrio entre o histórico e o ambiental. O consultor exemplifica essa dificuldade com a questão da podação do mangue. “Nós deveríamos podar o mangue? Eu acho que sim. Na década de 1980, rearborizamos o centro, inclusive as margens do Rio Capibaribe, cujos manguezais eram poucos. Plantamos mudas de mangue na Casa da Cultura. Hoje temos uma mata, nada característica da paisagem do centro nem dos manguezais,

muito em função do caldo nutritivo que vem com a poluição.” De acordo com o engenheiro, há uma nova sensibilidade urbana em nascimento, e o Capibaribe é um dos protagonistas nessa ressignificação. “Estamos nos reapropriando da linguagem dos postais via Facebook e Instagram. Imagens compartilhadas nas redes sociais ajudam a criar um olhar deslocado das visões cotidianas do rio, geralmente de cima das pontes. A sugestão é: desce lá, fica a um metro da água, aí você vai ver um outro Recife. Essa apropriação da paisagem faz parte da história de Pernambuco. Somos o único estado brasileiro que possui, em todos os séculos, desde a colonização, pelo menos um conjunto de registro iconográfico de destaque. As fotos compartilhadas nas redes sociais dizem sempre: esse lugar é meu, ele é bonito.” “Reapropriar-se dos lugares, espaços com paisagem, textura e afeto”, acrescenta Marinho, “é uma maneira de escapar da armadilha que está sendo criada pelo capital imobiliário. Trata-se de construir

uma cidade mais humana, isto é, na escala humana, na escala que um dia existiu na convivência com o Rio Capibaribe. Para combater o não lugar, é preciso realizar um reapropriação afetiva, coletiva por definição, o que significa buscar uma ressignificação do rio através dos elementos pictóricos, literários, arquitetônicos”. De acordo com o consultor, a navegabilidade do Capibaribe é inevitável. “Os estudos falam de limitação de frequência, especialmente pela profundidade, por problemas nas pontes, com a conexão desses barcos com o restante do sistema de transporte. Já vi números diferentes, mas estima-se que 60 mil pessoas possam usar o serviço por dia. É muito? Não, é pouco diante da demanda. Mas a discussão indo nessa direção é distorcida. Não estamos buscando um substituto para o ônibus ou metrô. É necessário se reapropriar do rio, ir para o rio, começar a ver a cidade de outra perspectiva. Navegar o Capibaribe é mais um exercício de cidadania do que uma solução de sistema de transporte”, conclui Marinho.

continente FEVEREIRO 2013 | 30

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 30

28/01/2013 16:00:41


Foto: reprodução

VIAGEM A simbiose entre a poética cabralina e o riO Num período de cinco anos, João Cabral de Melo Neto publicaria seus três mais importantes poemas sobre o Capibaribe: O cão sem plumas (1950), O rio ou relação de viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1953) e Morte e vida severina (1955). Neles, como afirma o crítico Alexandre Shiguehara em Ao longo do rio (Hedra, 2010), estudo dedicado à tríade cabralina, as águas e os “homens de lama” entram em “identidade simbiótica”. Também neles, especialmente nos dois últimos poemas, temos relatos de viagens, em que se sobressai o “registro severo” de Cabral, como bem define o filósofo e crítico literário Benedito Nunes, citado por Shiguehara. Esse indissociável agenciamento entre João Cabral e o Capibaribe continua incitando olhares críticos e motivando novas edições com a poesia do pernambucano. No final de 2012, por exemplo, a Alfaguara, em parceria com a Saraiva, lançou O rio, livro organizado por Inez Cabral, filha do poeta, e prefaciado pelo português António Lobo Antunes. O título reapresenta as três obras e mais 11 poemas sobre o Capibaribe (a mesma editora havia lançado, em 2007, O cão sem plumas, com o poema que lhe dá título, além de suas quatro primeiras obras, Pedra do sono, Os três mal-amados, O engenheiro e Psicologia da composição). Ainda na esteira da simbiose entre a poética cabralina e a paisagem do rio, a Companhia Editora de Pernambuco lançará, em breve, Capibaribe – mesmo rio: outra gente, fruto de reportagem das jornalistas Fabíola Perez Corrêa e Elaine Ortiz. As autoras refizeram a epopeia de Severino, levando em consideração a postura adotada por Cabral de modesto “escrivão”. Se era verdade que ele produziu imagens secas “pela ausência de idealização da realidade”, para citar Benedito Nunes mais uma vez, então seria possível reconstituir o roteiro real do personagem mais conhecido de Cabral. Segundo as jornalistas, o trajeto do livro foi definido a partir de análise crítica da obra Morte e vida severina; do levantamento de dados junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); de um estudo sobre a geografia e a história de Pernambuco e, por fim, do cotejo entre o mapa rodoviário e o mapa da bacia do rio. Algumas passagens do texto de Cabral revelaram quais os possíveis

municípios percorridos pelo personagem a partir do indício mais evidente que o autor explicita: Severino segue, em sua epopeia, a trilha do Rio Capibaribe. No entanto, como a bacia é responsável por banhar uma área de 7.454,88 km² (7,58% da área do estado) abrangendo 42 municípios de Pernambuco (28 no Agreste; 10 na Zona da Mata; 4 na Região Metropolitana) e, como na narrativa de João Cabral, os nomes das cidades pelas quais Severino passa não são revelados – exceto Toritama e o Recife –, as autoras contam que se fez necessária a releitura do texto com esse enfoque. Foram considerados apenas os municípios que são banhados diretamente pelo Capibaribe, guia de Severino, e não por afluentes. Dessa forma, Poção, Jataúba, Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Salgadinho, Limoeiro, Carpina, Lagoa de Itaenga, São Lourenço da Mata, Camaragibe e o Recife seriam as 11 prováveis cidades em que o personagem esteve e, por isso, foram elas as visitadas no ano de 2008. As referências diretas ao poema de João Cabral surgem textualmente no prefácio e em pequenas epígrafes antes de cada capítulo, segundo as jornalistas “para que o leitor tenha em mente a inspiração, mas que mergulhe com as narradoras na nova realidade experimentada”.

“A obra de João Cabral foi o ponto de partida para a nossa reportagem. Antes de ir a campo, fizemos uma leitura minuciosa de Morte e vida severina e estudamos os principais momentos da vida do autor. Durante a viagem, a referência de João Cabral serviu para nortear geograficamente nossa trajetória e como parâmetro de comparação entre épocas completamente distintas do ponto de vista econômico e social. Em nossas estadas nas cidades, muitas passagens nos remeteram à história ficcional do Severino substantivo. Quando chegamos à Toritama, por exemplo, não demoramos a perceber um pequeno grupo de pessoas conduzidas a um velório. Na realidade, assim como na ficção, a morte se fez presente”, afirma Fabíola Perez à Continente. Mas, para a jornalista, o importante mesmo foi poder registrar as transformações da região representada por Cabral. “Enquanto a obra ficcional relatava as condições enfrentadas pelos nordestinos para sobreviver à fome e a falta de empregos, procuramos transcrever a realidade que saltava aos olhos: cidades marcadas por um histórico de pobreza, mas que encontraram um meio de desenvolver sua economia”, conclui Perez. PAULO CARVALHO

continente FEVEREIRO 2013 | 31

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 31

28/01/2013 16:43:14


con ESPECIAL ti nen te

1

14

SOCIAL O rio como espaço a ser ocupado

Entusiastas do Capibaribe mantêm as suas águas frequentadas, com a prática do remo, as travessias e a realização de projeto de consciência ambiental texto Olivia de Souza

Era praticamente impossível

enxergar a boneca gigante em meio àquele entulho de lixo que boiava lentamente, margeando o Capibar a uma distância considerável. Apenas duas pernas compridas apontando para fora da água indicavam o tamanho da criatura. “Ali, mulher! Tá vendo?”, insistia Socorro, sem esconder a empolgação. “Essa daí já passou não sei quantas vezes aqui na frente e eu nunca consigo pegar. Deixa eu ver se agora vai”, comentou, antes de descer as escadas correndo

continente FEVEREIRO 2013 | 32

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 32

28/01/2013 16:00:54


15

para agarrar, o mais depressa possível, o gancho de ferro preso a um tubo gigante de PVC, gambiarra utilizada para retirar objetos descartados no rio, que passam por ali eventualmente. Resgate tenso e complicado, tendo em vista o fato de o objeto continuar em movimento, e o risco de se cair dentro da d’água. Com paciência, perseverança, precisão, Socorro finalmente conseguiu prender a ponta de ferro no antes tão delicado vestido rosa da bonequinha, e puxá-la, feliz e satisfeita, para o chão seco do bar.

Moradora do local há 32 anos, Maria do Socorro Cantanhede já se habituou a realizar esse tipo de salvamento. A boneca é mais um ganho que fará parte da decoração do Capibar, recanto localizado na Zeis (Zona Especial de Interesse Social) Vila Esperança/ Cabocó, às margens do rio Capibaribe, no Bairro de Monteiro, Zona Norte do Recife. Além de servir ao seu propósito, o lugar também é a sede do Projeto Recapibaribe, idealizado por ela e o marido, André Cantanhede. A iniciativa partiu da insatisfação do casal com as condições péssimas do rio. O espaço, já com 19 anos de existência, é totalmente decorado por objetos como garrafas PET, pneus e latinhas, e também conta com um enorme “orelhão”, aparelhos de televisão, máquinas de costura, capacetes de motociclistas (mais de 100, no total), entre outros utensílios, todos retirados do rio. A iniciativa surgiu depois da proprietária trabalhar por nove anos como barraqueira de praia, quando então partia de casa para a Zona Sul da cidade, observando o grande fluxo de pessoas que usufruíam aquele bem natural, em detrimento de um rio que permanecia esquecido, e cada vez mais sujo. “O Capibar é o espaço em que transformamos o lixo do rio numa arte crítica, um lugar no qual as pessoas podem se sentir mais humanas em relação ao meio ambiente.” Filha de pescador de areia, e moradora desde os 10 anos de idade das comunidades ribeirinhas, tanto da margem esquerda,

14 travessia Seu Mita mantém a tradição familiar e faz o transporte de passageiros entre a Torre e a Jaqueira 15 retirada de lixo Socorro Catanhede, dona do Capibar, mantém projeto ambiental

quanto da direita, Socorro desenvolveu uma relação bastante íntima com o Capibaribe, desde cedo, dedicando sua vida profissional também a ele. “Tomei muito banho aqui. Gostaria de um dia poder voltar a enxergar meus pés dentro da água, essa é uma das coisas de que tenho mais saudade. Eu entrava com ela mais ou menos até o joelho e podia enxergar meus pés em cima da areia ou de algumas pedrinhas que existiam no rio na minha adolescência”, confessa. Conseguindo unir os três pilares da sustentabilidade – o social, o ambiental e o empresarial –, ela realiza um trabalho de “pesca” da consciência ambiental junto à comunidade: recebe grupos de estudantes, oferece palestras, entre outras ações feitas com o intuito de sensibilizar a população. Uma das mais importantes é a campanha realizada anualmente no dia 24 de novembro, Dia do Rio, quando pescadores de colônias de diversos pontos do Recife como Brasília Teimosa, Pina, Olinda, e Ilha do Maruim, se reúnem numa gincana de coleta de lixo. Em 2012, foram 42 participantes, totalizando três toneladas de lixo coletado. “A questão de transformar a nossa área numa Zeis foi fruto de um trabalho totalmente direcionado em respeito ao Capibaribe, pelo fato de

continente FEVEREIRO 2013 | 33

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 33

28/01/2013 16:00:55


con ESPECIAL ti nen te 16 barqueiro

Fotos: reprodução

Família de Seu Mita (no centro, sem camisa), durante a construção da casa na beira do rio

17 MARCOS SOUZA Remador viu qualidade da água mudar nos últimos 40 anos

vivermos numa comunidade de área ribeirinha. Começamos então a fazer um trabalho de limpeza com a Emlurb, e implantamos a coleta seletiva. Hoje, praticamente ninguém joga lixo no rio por aqui”, declara. Numa cidade totalmente entrecortada por rios, e que cresceu e se desenvolveu em função do Capibaribe, cabe perfeitamente a ele o posto de coração da cidade. “O descaso permite uma política de verticalização às margens do rio, sem nenhuma educação ambiental, nem consciência. Os responsáveis pelos projetos habitacionais permitem o despejo de toda a carga de esgoto dentro do rio. Estamos de passagem aqui por esse mundo, e ele vai permanecer, por isso nós é que devemos nos adaptar ao Capibaribe, e não o contrário. Se ele morrer, o Recife morre junto.”

REMADAS

Um dos esportes mais tradicionais da cidade, o remo vem, paulatinamente, perdendo o glamour de tempos passados, prejudicado pelo alto grau de poluição do Rio Capibaribe, que causa mau cheiro e desestímulo aos praticantes e simpatizantes. Ex-atleta e atual coordenador do departamento de Remo do Sport Club do Recife, Marcos Souza tem o rio como parte de sua rotina diária – são mais de 40 anos dedicados ao esporte –, tendo testemunhado diversas mudanças durante esse período. “A qualidade da água não era tão boa, mas muito melhor do que é hoje. Já cheguei a avistar botos nadando próximo à gente. A diferença grande é que, da época que remei (década de 1970), até 20 anos atrás, quase não se via o mangue às margens do Capibaribe. Foi feito um trabalho de replantio, e ele floresceu bastante, mudando a qualidade da água impressionantemente”, aponta. As raízes desse ecossistema funcionam como um filtro de retenção de sedimentos, e somado à sua alta concentração

16

nas margens do rio, influi positiva e negativamente na cidade, segundo ele. “Melhora muito a visibilidade do rio, deixando-o mais bonito, no entanto, esconde muita sujeira, pois acumula todo o lixo nas margens. Quem está do lado de fora não vê”, revela. Com apenas três equipes na cidade – Sport, Náutico e a Liga Pernambucana de Remo e Canoagem –, o remo tem perdido seus atletas para outros esportes que não necessitam do contato com o rio. “Com certeza, o alto grau de poluição afugenta os praticantes. Tem pessoas que chegam e se deslumbram com a beleza do nosso esporte, mas ao se depararem com animais mortos passando, dejetos e o mau cheiro, desistem. E fatalmente o atleta tem que ter contato diário com o rio. É um elemento complicador, embora nunca tenhamos documentado alguém doente por conta da qualidade da água.” No entanto, apesar dos problemas apontados, o esporte proporciona um contato inigualável com a natureza, oferecendo aos seus praticantes o privilégio de poder sentir a cidade através do olhar de quem passa e observa, lenta e atentamente, suas

diversas nuances, camadas, mazelas, e (por que não?) belezas. “O Recife é muito bonito de se ver de dentro do Capibaribe. Vivo dentro do rio há praticamente 40 anos, e mesmo com toda a sujeira, ainda me surpreendo com o raiar do dia. Com maré cheia, então, fica mais bonito ainda”, confessa Souza.

TRAVESSIAS

Quem passar rapidamente pelo calçadão da Avenida Rui Barbosa – na altura do Parque da Jaqueira –, sem reparar na imensidão das águas do Capibaribe, não vai perceber o pequeno barquinho azul localizado do outro lado da margem, no Bairro da Torre. Também não vai saber que, entre pontes e viadutos, se encontra ali um dos atalhos mais agradáveis para os moradores dos edifícios e casas do entorno, que facilitam a vida de quem quer pegar um caminho mais rápido para o centro da cidade, a um custo baixíssimo. Zomilton Tomé Porangaba, mais conhecido como Seu Mita, de 63 anos, é o dono do pequeno “sítio”, que começou há 80 anos com seu avô, chamado de Manoel da Bal, na região.

continente FEVEREIRO 2013 | 34

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 34

28/01/2013 16:00:58


17

São dois barcos a remo, “Samaritana” e “Sayonara” (ambos registrados na Capitania dos Portos), revezando-se na travessia que já entrou para a história da cidade. Enquanto muitos barqueiros da cidade se aposentaram ou trocaram de profissão, desestimulados pela criação de pontes e linhas de ônibus que diminuíram severamente o número de passageiros, a família de Seu Mita continuou o negócio, hoje dividido com o filho mais velho, Antônio Marcos, o Marquinhos. O serviço funciona de 5h30 às 20h, fazendo cerca de 60 viagens por dia a R$ 1 cada. Criado ali nas margens do rio, na pequena “prainha”, localizada entre a antiga fábrica da Torre (hoje Conjunto Residencial Privê Bosque da Torre) e o Hospital Evangélico, Zomilton foi testemunha do rápido processo de urbanização do Recife, e da consequente degradação de seu maior cartão-postal. “Já tomei muitos banhos nesse rio, mergulhava para tirar areia dele, pegar camarão, peixe. Peixe ainda dá, o que mais vem é o camurim, mas os que

Com as obras de dragagem do rio, iniciadas em janeiro, espera-se a criação de sete estações de transporte hidroviário pego hoje em dia vêm com gosto de cloro, detergente, por conta do despejo do lixo no rio”, comenta. Ele acredita que as obras de dragagem do rio Capibaribe, iniciadas em janeiro, podem melhorar um pouco a situação. O projeto do governo do estado prevê a criação de sete estações de transporte hidroviário. A primeira etapa consiste na recuperação de 17 quilômetros do rio, desde a BR-101, até o limite entre o Recife e Olinda, para a circulação de 12 embarcações que farão o transporte da população entre os bairros de Santana, Torre, Derby, área central do Recife, e Tacaruna. “Já houve muitas promessas para limparem o rio, mas agora parece que estou um

pouco mais perto de ver realizado esse sonho”, comenta o barqueiro, que, por conta disso, ainda não sabe como ficará a situação do seu negócio. “Não posso entregar isso aqui de mão beijada, depois de 80 anos por aqui. Além do mais, não estou ilegal, meus barcos são registrados pela Marinha, deve haver algum acordo”, afirma. A pequena casa de alvenaria, onde já morou, hoje serve como ponto de apoio. Seu Mita, que praticamente nasceu dentro dos barcos, pois a mãe, mesmo grávida dele e dos irmãos, rendia o pai durante os almoços, sempre se emociona quando fala do Capibaribe. “Esse rio, pra mim, é a minha vida. A gente chamava essa área do mangue que fica por trás do hospital de ‘Copacabana’, porque a areia era bem branca e a água bem limpinha. Corríamos atrás dos botos que nadavam aqui na frente”, afirmou o barqueiro, que, para complementar sua renda, realiza passeios um pouco mais longos com passageiros interessados em conhecer outros trechos do rio, da foz até a Várzea. Outros serviços semelhantes são realizados por barqueiros e por companhias maiores. Na altura da Companhia Industrial de Vidros, na Várzea, uma pequena balsa presa por uma corda de um lado a outro do rio faz a travessia. Já a Marola Travessias, empresa de propriedade de Felipe Santos, atravessa do Marco Zero até o Parque das Esculturas em duas embarcações de madeira (baiteiras), com capacidade para quatro pessoas, a R$ 15. Duas empresas maiores oferecem passeios longos em catamarãs de fibra de vidro. A Veneza, capitaneada por Lydia Kelly, embarca 40 pessoas, começando no Marco Zero. A viagem é acompanhada por uma apresentação musical ao vivo. A Catamaran Tours, atuando no mercado desde 2000, possui dois barcos, com capacidade para até 120 pessoas, com embarque no Cais das Cinco Pontas. A proprietária, Solange Britto, confirma que a maior parte do público é de moradores locais. “São recifenses trazendo pessoas de fora e são as pessoas daqui que mais valorizam o passeio. Ficam comovidos, surpresos, passam a ver a cidade com outros olhos.”

continente FEVEREIRO 2013 | 35

especial_rio_capibaribe_JAN.indd 35

28/01/2013 16:00:59


imagens: reprodução

con ti nen te

História

AÇÚCAR Um comércio meio amargo

Obra revela, a partir de documentos, os bastidores da cadeia de produção e venda do produto que é peça fundamental para se compreender o Nordeste TEXto Isabelle Barros

continente fevereiro 2013 | 36

Historia_FEV.indd 36

28/01/2013 16:46:57


1 colônia A casa-grande dos primeiros engenhos copia as casas de fazenda e de produção de trigo de Portugal

1

Em Formação do Brasil contemporâneo,

uma das obras mais influentes da historiografia nacional, Caio Prado Júnior cravou uma frase que sintetiza o início da colonização portuguesa nas Américas: “O Brasil é um dom do açúcar”. O sociólogo Gilberto Freyre, por sua vez, chegou a afirmar, em seu livro Açúcar, que, sem a especiaria, “não se compreende o homem do Nordeste”. Afinal, o doce foi um dos grandes responsáveis por forjar a ocupação do território nacional, a partir do sucesso do cultivo da cana, principalmente nos atuais estados da Bahia e de Pernambuco. Pela própria importância do período colonial, como momento crítico da formação econômica e social do país,

foram muitos os autores, além de Freyre e Prado Júnior, que escreveram a respeito do que se convencionou chamar de “civilização do açúcar”. Essa seara é explorada, com um enfoque próprio, no recém-lançado O comércio do açúcar – Brasil, Portugal e Países Baixos (15951630), do pesquisador brasileiro Daniel Strum, mestre e doutor em História pela Universidade Hebraica de Jerusalém. O projeto que deu origem ao livro foi o vencedor do 8º Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica Clarival do Prado Valladares e consumiu um ano e meio de trabalho, além de pesquisas em arquivos e coleções particulares de 17 países. A intenção da obra é revelar, a partir de documentos notariais, contábeis, governamentais e inquisitoriais,

quais dificuldades havia em manter a cadeia de produção e venda do açúcar e que estratégias eram usadas para superar esses obstáculos. Afinal, era uma mercadoria frágil, embarcada de um lugar remoto, como era o Brasil, e transportada pelo Oceano Atlântico infestado de piratas, envolvendo também terras inimigas e comerciantes de diferentes religiões – católicos, judeus e protestantes. Na época coberta pelo livro, havia um ponto importante a ser considerado: a União Ibérica. Entre 1580 e 1640, Portugal e Espanha, por meio de laços de sangue entre suas famílias reais, foram governados de forma conjunta. Da mesma forma, a Holanda fazia parte dos domínios espanhóis e desejava mais autonomia, o que adicionava tensões cada vez maiores ao comércio intercontinental de açúcar. O conteúdo da publicação está dividido em quatro blocos: enquanto o primeiro deles mostra o contexto político-militar da época, a produção e o consumo do açúcar, o segundo versa sobre a navegação e o transporte marítimo do produto. O terceiro, a seu turno, diz respeito ao aspecto financeiro do comércio e o último enfoca as relações de confiança entre os mercadores. Segundo o autor, foi em um período curto, de 35 anos, que a compra e a venda de açúcar se consolidaram como operações financeiras verdadeiramente mundiais, séculos antes que o conceito de globalização ganhasse corpo. A partir de 1595, a cidade de Amsterdã, na Holanda, teria substituído Antuérpia, na Bélgica, como a principal distribuidora do “ouro branco” no Norte da Europa, posto mantido ao menos até 1630, quando a conquista de Pernambuco pelos holandeses transformaria dramaticamente a estrutura desse comércio.

MASSAPÊ

Na Bahia e em Pernambuco, as condições ideais para o cultivo da cana converteram uma região, antes inexplorada, em tesouro da Coroa ibérica. O clima úmido e a fertilidade do solo massapê, aliados à atração de investimentos externos e ao povoamento do litoral brasileiro fizeram dessas duas regiões as mais pródigas em engenhos. De acordo com o historiador norte-

continente fevereiro 2013 | 37

Historia_FEV.indd 37

28/01/2013 16:46:59


imagens: reprodução

con ti nen te

História

2

americano Stuart Schwartz, citado no livro de Daniel Strum, havia, em 1629, 346 engenhos no Brasil. Desses, 150 estavam em terras pernambucanas e 80, sob domínio baiano. Inicialmente, a casa-grande dos primeiros engenhos copia as casas de fazenda e as casas de produção de trigo de Portugal. “Mas há uma mudança importante: ao redor das construções, foi criado um grande terraço, que servia para equilibrar a temperatura acentuada da parte externa com a parte interna, feita de paredes grossas”, explica o arquiteto José Luiz Mota Menezes, que participou da produção do livro de Strum, fornecendo os cartogramas, ou mapas, relacionados a Pernambuco e à Bahia da virada do século 16 para o 17.

As duas localidades tinham condições de produção muito semelhantes, utilizando extensas porções de terra e submetendo contingentes cada vez maiores de mão de obra indígena e negra, a ponto de um ditado corrente naquele tempo assinalar que “sem Angola não há escravos, sem escravos não há açúcar, e sem açúcar não há Brasil”. No entanto, a logística de envio à Europa era um pouco diferente. Os engenhos baianos estavam concentrados no Recôncavo Baiano, próximos ao mar e à beira de rios, e enviavam o açúcar diretamente pela Baía de Todos os Santos, à parte baixa de Salvador, onde se localizava o porto da primeira capital do Brasil.

3

continente fevereiro 2013 | 38

Historia_FEV.indd 38

28/01/2013 16:47:03


O clima, o solo, os investimentos e o povoamento do litoral fizeram da Bahia e de Pernambuco os mais pródigos em engenhos

2 recôncavo Os engenhos baianos estavam próximos ao mar e à beira de rios, facilitando o comércio 3 produção Instrumentos utilizados nos engenhos de açúcar 4 daniel strum Autor pesquisou em arquivos e coleções particulares de 17 países

Em Pernambuco, porém, a situação era um pouco mais complexa. Strum assinala que “Pernambuco não tinha a divisão tão simples entre Cidade Alta e Baixa, como Salvador. A primeira corresponderia ao cimo da vila de Olinda, enquanto a segunda era dividida entre o Recife e o Bairro da Ribeira, em Olinda”. O autor acrescenta que as ladeiras eram um desafio “e, geralmente, o açúcar, trazido por via aquática, ficava na parte baixa ou, em alguns casos, quiçá, embarcado diretamente. Já os produtos importados e os comercializados localmente iam à Cidade Alta em Salvador e à Ribeira, em Olinda”. A relação entre essas praças mais importantes, no entanto, não era exatamente harmoniosa, aponta o pesquisador. “Salvador era a capital administrativa, eclesiástica e judicial. A criação de uma corte de apelação, o Tribunal da Relação, em Salvador, gerou tensões. Os pernambucanos preferiam

4

se submeter diretamente a Lisboa. No entanto, as outras capitanias próximas a Pernambuco, como a Paraíba, também se viam eclipsadas pela vizinha. Na prática, estavam dentro da área de influência da praça de Olinda.”

DO BRASIL À EUROPA

Uma vez no Oceano Atlântico, os navios ainda tinham que passar por outros percalços. Strum ressalva que “o transporte de cabotagem sofria mais com as ‘monções’, ou estações do ano, que a navegação oceânica”. Mas, quanto mais próximo da Europa, maior era o risco do aparecimento de corsários, fossem eles muçulmanos do Norte da África, ingleses, holandeses e calvinistas franceses, ou huguenotes. Para diminuir os riscos, eram contratados seguros, ou a carga era distribuída em várias embarcações. Para contornar o clima belicoso entre a União Ibérica e a Holanda, cargas eram embarcadas em navios de bandeiras neutras, ou por embarcações holandesas que camuflavam suas atividades ao usar bandeiras de outros países, mesmo com o risco de serem pegos. O que o livro aponta de novidade na análise dessa rota é o papel da cidade do Porto, no norte português, como praça intermediária entre o comércio com a Holanda, em vez de Lisboa, a

continente fevereiro 2013 | 39

Historia_FEV.indd 39

28/01/2013 16:47:08


imagens: reprodução

con ti nen te

5 ornamento Detalhe de decoração de engenho no Recôncavo Baiano

História

DOCE NEGÓCIO

5

capital. Uma das razões é geográfica: a região ficava a um terço do caminho de Amsterdã e a dois terços do caminho do Brasil. Os tripulantes dos navios poderiam, assim, reabastecer suas embarcações com água e comida frescas. A localidade também tinha uma demanda de produtos norteeuropeus, manufaturados, muito maior que a colônia, mas havia muito pouco a oferecer em troca, pois apresentava solo montanhoso e pedregoso, dificultando a produção de cereais. Para atrair mercadorias estrangeiras, seus comerciantes aceitavam uma lucratividade menor no comércio do açúcar, mas ao menos tinham a garantia de um item valorizado para revender. Ao mesmo

tempo em que vários carregamentos de açúcar eram encaminhados para o norte, parte da carga vinda da colônia também poderia ser redistribuída para os mercados do sul da Europa. Embora a cana fosse originária do sudeste asiático e o açúcar, consumido na Europa desde o Império Romano, mesmo em pequenas quantidades, foi apenas com o ganho de escala conseguido pelo produto brasileiro que pratos doces saíram da exclusividade das mesas reais. O produto saiu das mãos de confeiteiros renomados para os tabuleiros de humildes doceiras, de onde foi parar em confeitos e conservas de frutas, formando uma nova classe profissional.

A princípio, qualquer um poderia se aventurar no comércio do açúcar, como efetivamente aconteceu a pessoas de capital, reputação e experiências diversas. “Podia-se atuar como mercador residente, ou viajante, por conta própria ou como agente de outrem, ou uma combinação dessas alternativas”, afirma Strum. Contudo, os grandes mercadores residentes tinham maior patrimônio e credibilidade que os comerciantes e agentes itinerantes. “No entanto, a concorrência tornava o mercado competitivo, reduzindo as margens de lucro.” A sociedade mercantil desse tempo já utilizava operações financeiras de maior sofisticação, como letras de câmbio, mas ainda havia um mercado ativo de troca de mercadorias, e o açúcar foi envolvido nessas transações como meio de pagamento. Foi uma solução encontrada pelos mercadores para não ficar no prejuízo em uma época na qual havia restrições religiosas, morais e legais à cobrança de juros e a pagamentos que não fossem à vista. O comércio dessa especiaria também foi a forma que os judeus portugueses e cristãos-novos encontraram para prosperar em Portugal. “Essa parcela da sociedade também vivia em estado de alerta, pois era permanentemente vista com suspeita perante a Inquisição, e estava sujeita à prisão e ao sequestro de seus bens.” Sua ascensão social por meio do ingresso à alta burocracia e à baixa nobreza era limitada por uma série de normas, os Estatutos de pureza de sangue, nos quais se adequavam apenas os cristãos-velhos, católicos há pelo menos quatro gerações. O açúcar, assim, marcou a história de quatro continentes: a Ásia, de onde surgiu; a África, de onde foi arrancada a maior parte da mão de obra empregada em sua produção; a América, onde foi cultivado em dimensões nunca antes vistas e, por fim, a Europa, onde adoçou a vida de todas as classes sociais.

continente fevereiro 2013 | 40

Historia_FEV.indd 40

28/01/2013 16:47:13


continente fevereiro 2013 | 41

Historia_FEV.indd 41

28/01/2013 16:47:14


HALLINA BELTRÃO

con ti nen te

tecnologia

internet Memes, virais e webcelebridades Trinta anos depois da sua manifestação legítima de humor, com o emotion, usuários criam novas representações na cultura da web, utilizando criatividade aliada à diversidade de ferramentas texto Renato Mota

continente FEVEREIRO 2013 | 42

Webcelebridadades1_FEV.indd 42

28/01/2013 16:15:09


para trabalhar. Só faz sentido se oferecer um recurso a partir do qual possam ser criadas coisas novas com as quais as pessoas se identifiquem no cotidiano. São sempre coisas fáceis, divertidas”, define Fontanella.

ORIGENS

Já ficou bem claro que a internet é um universo à parte. Tem suas próprias regras, conduta, geografia e cultura. A grande diferença entre a cultura da web e a tradicional é que na rede todos somos produtores, curadores e distribuidores de conteúdo. “Quando a internet começou, era uma rede elitizada, utilizada por acadêmicos e técnicos. A partir do momento em que essa ferramenta foi aberta ao público, este não seguiu a mesma linha de pensamento. A web deu poder para que o usuário criasse e publicasse o que quisesse”, explica o pesquisador de cultura digital Fernando Fontanella. Essa cultura da internet acaba se manifestando de várias formas, como os vídeos virais, os memes, o linguajar típico das redes e até as chamadas webcelebridades. “As pessoas ganharam expressão. O usuário tinha o mesmo espaço de um Bill Gates, um Steve Jobs, e isso foi o que formou a base do

que viria depois”, afirma Bia Granja, curadora do YouPIX, o maior festival de cultura de internet do Brasil. “No país, isso aconteceu de uma forma mais forte ainda. O brasileiro estava precisando de um canal de expressão como a internet, já que durante muitos anos a imprensa foi controlada pela ditadura e, depois disso, por poucas famílias poderosas. Como a rede é uma ferramenta muito democrática, o Brasil pôde se colocar online, como verdadeiramente é, através dos usuários. A diversidade da nossa cultura de internet é genial e muito peculiar. Reflete bem nosso espírito de se apropriar coletivamente do que é dos outros, zoar e depois perverter”, afirma Bia. Usar e reutilizar certos elementos da cultura, sempre de forma anônima, para agregar mais conteúdo à mensagem, é uma característica inerente ao que é produzido na internet. “O usuário precisa de uma plataforma criativa

A primeira manifestação cultural legítima da internet completou, em setembro de 2012, 30 anos de existência. O ano era 1982 e, em meio à troca de mensagens entre acadêmicos dos Estados Unidos, alguns dos professores gostavam de enviar piadas uns para os outros. O problema é que esses proto-emails se misturavam com as informações mais sérias dos estudos científicos. Até que, em 19 de setembro, o professor Scott Fahlman sugeriu a seguinte mudança: “Eu proponho a seguinte sequência de caracteres para marcar piadas -> :-). Na verdade, seria provavelmente mais econômico marcar o que NÃO é piada, considerando as tendências atuais. Para isso, use -> :-(”. Nascia aí o emotion. Em três décadas, a linguagem evoluiu bastante, tomando formas cada vez mais complexas e disseminandose, inclusive, para fora da web. Entretanto, em termos de comunicação escrita, a internet brasileira possui seu próprio fenômeno. Sabe quando você vai ler algum recado ou comentário online, e não entende nada do que está escrito ali? Coisas como comofas, fácio e jemt podem parecer erros ortográficos à primeira vista (e talvez até sejam), mas podem ser também a legítima manifestação do tiopês, cuja melhor definição foi feita pelo pessoal do site Teletube: “Uma linguagem caricatural, crítica e bem-humorada a respeito do analfabetismo funcional brasileiro, que é um dos maiores do mundo”. A regra da brincadeira não é só escrever errado deliberadamente, e, sim, da forma mais ininteligível possível. O próprio nome vem da palavra tipo, que na linguagem é escrita como tiop. Da sua origem, em 2005, até hoje, o vocabulário de tiopês só cresce, com verbetes como corrão, fikdik e reequeza. Como em tudo na internet, a brincadeira só aumenta por causa da criatividade dos próprios internautas. “Ninguém cria essas coisas. O autor

continente FEVEREIRO 2013 | 43

Webcelebridadades1_FEV.indd 43

28/01/2013 16:15:10


con TECNOLOGIA ti nen te FOTOS: DIVULGAÇÃO

O que muita gente entende por meme, hoje, são aqueles desenhos malfeitos que se espalham como praga na web, também conhecidos como rage faces. “São coisas fáceis, divertidas e com que a pessoa se identifica. Os conteúdos dessas tirinhas ou de sites como o Como eu me sinto quando são vistos no dia a dia das pessoas, por isso que a ideia pega com tanta força”, afirma Fontenella. Os memes deixaram de ser piadas internas e atualmente se espalham pela cultura offline através de produtos culturais como estampas de camisetas, bótons, cadernos e uma infinidade de mercadorias. “Além de diferentes memes que se espalham pelos diferentes canais, é possível também constatar o surgimento de gêneros entre os memes”, diz Fontenella.

VIRALIZAÇÃO

1

não importa. A partir do momento em que é compartilhado por toda rede, aquilo vira uma criação coletiva, e só tem graça quando todo mundo contribui um pouco”, explica o criador do site Não Salvo, Maurício Cid. A consagração do tiopês veio em outro formato nascido na internet, as tirinhas do Cersibon, criadas em 2008 por Rafael Madeira. Para leitores de gênios, como Quino, Bill Watterson e Laerte, deparar-se com quadrinhos do Cersibon pode ser um choque, já que a qualidade dos desenhos é risível e o texto indecifrável. Mas está na sua simplicidade todo o charme do humor da internet. O que nos leva a outro marco da cultura virtual...

O MEME

Não dá para começar a falar de memes sem antes citar o biólogo britânico Richard Dawkins, criador da expressão. Em seu livro O gene egoísta,

de 1976, Dawkins define meme como uma unidade de evolução cultural, da mesma forma que o gene atua no DNA. “São pequenas partículas de ideia que se reproduzem na sociedade. No começo do século 21, muita gente na internet se apropriou do termo para falar dos virais que estavam surgindo”, explica Bia Granja. Um exemplo de meme bem pernambucano: todo mundo sabe que a Avenida Caxangá é “a maior em linha reta da América Latina”, seja isso verdade ou não. De tanto ser repetido no nosso inconsciente coletivo, toda vez que os recifenses dizem que qualquer coisa é a “maior em linha reta da América Latina”, reproduzem o meme. “O meme pode ser qualquer conceito que se replica a partir da construção coletiva, mas só faz sentido se todo mundo colabora. Nem toda gíria é um meme”, completa Bia.

A principal característica de replicação dos memes é através da “viralização”. Como os genes do DNA biológico, os memes se replicam e se espalham sem controle na rede. Entretanto, quando se fala em viral na web, principalmente no Brasil, a primeira coisa que vem à mente são vídeos como Jeremias muito louco, Cacete de agulha, Tapa na pantera, Luiza no Canadá e Ruth Lemos – sanduíche-íche. Basicamente, o viral se diferencia do meme por ter uma origem definida e não se modifica a partir dos compartilhamentos. “Um dos maiores mistérios do mercado publicitário é que não existe uma fórmula para a criação de um viral”, explica o empresário e curador da Campus Party Brasil, Edney Souza, o Interney. Em exemplo: o vídeo original de Luiza no Canadá, mesmo que pensado como um informe publicitário, quando chegou na web, tornou-se um viral. A partir disso, tudo que foi feito utilizando a ideia original – inclusive o segundo comercial feito pela mesma empresa – é um meme. “Por isso essa comparação com vírus. Um é mutação do outro e acaba dando origem a outra coisa completamente diferente. E tudo nasce e morre muito rápido”, afirma Interney. Como não existe lei para determinar o que será “viralizado” ou não, os virais acabam sendo “eleitos”

continente FEVEREIRO 2013 | 44

Webcelebridadades1_FEV.indd 44

28/01/2013 16:15:11


1-2 virais Os vídeos Luiza no Canadá eTapa na pantera são exemplos famosos no Brasil

2

pela própria comunidade, e se tornam um retrato daquela cultura. O grupo chileno Woki Toki, que, em quatro anos de trabalho, já conseguiu emplacar vários virais na rede, faz periodicamente um apanhado dos vídeos mais populares de determinados países. O projeto, chamado The World in 2 minutes, já retratou o Brasil, os Estados Unidos, a Alemanha, a Rússia, o Japão, a Jamaica e muitos outros. Da mesma forma que geram memes e piadas, os virais também fornecem à cultura da internet outro personagem central: a webcelebridade. Essas criaturas podem ter duas origens: pessoas que possuem um trabalho muito forte na internet – e acabam sendo conhecidas somente por lá – ou que, por terem tido algum vídeo/foto sua publicada na rede (geralmente de forma embaraçosa), fica conhecida na web e até fora dela. No segundo caso, estão incluídas as já mencionadas figuras como a nutricionista Ruth Lemos, o caruaruense Jeremias do Nascimento, o jornalista Lasier Martins (aquele que levou um choque nas uvas) e a paraibana Luiza Rabello. Nos Estados Unidos, berço da cultura internética, ficaram famosas personalidades como a cantora Rebecca Black (friday!

O viral se diferencia do meme por ter uma origem definida, e não se modifica a partir dos compartilhamentos friday!), Antoine Dodson (cujo vídeo ganhou uma versão musical nas mãos do grupo Gregory Brothers) e o garoto do vídeo David after dentist. No rol dos que fazem da internet sua plataforma de trabalho, estão os personagens desta matéria (Interney, Maurício Cid e Bia Granja), mas também pessoas como os vloggers Felipe Neto, Pecê Siqueira e os nerds Alexandre Ottoni e Dave “Azaghal” Pazos, do portal Jovem Nerd. “O mais difícil num universo em que qualquer pessoa pode virar uma ‘celebridade’ é manter-se no topo. Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, continuar conectado com o seu público e gerar engajamento por parte dele é o verdadeiro desafio”, avalia Bia Granja. No site do Youpix, Bia e sua equipe ocupam-se em registrar, comentar e catalogar todos esses fenômenos culturais da internet, como uma

forma de celebração da cultura da web. “O projeto nasceu em 2006 como uma revista impressa com as coisas maneiras que rolavam na blogosfera. Não existia, então, uma publicação que entendesse o que estava acontecendo e que explicasse tudo que era resultado da interação entre pessoas e pixels”, lembra. Em 2009, o Youpix tornou-se um festival e conseguiu romper a barreira do virtual para o real, assim como algumas das webcelebridades estão conseguindo fazer hoje. “É engraçado que, por mais poderosa que seja a internet, as pessoas só sentem que aquele conteúdo é válido se recebem um endosso dos meios de comunicação mainstream. Ainda atualmente, a cultura da internet é vista como coisa de gente jovem, desocupada. ‘É o novo rock ‘n roll’”, brinca Bia. Para Interney, a influência do que acontece na web sobre o mundo real é cada vez mais notável. “O Fantástico, da Globo, puxa grande parte das suas pautas pelo que é assunto no Twitter. Muitas matérias de telejornais já começam com ‘essa semana na rede mundial de computadores’. Até puxar fotos dos sites para dizer o que é real e o que é montagem virou quadro de vários programas”, lembra.

continente FEVEREIRO 2013 | 45

Webcelebridadades1_FEV.indd 45

28/01/2013 16:15:17


cOn tEcnOLOGIA tI nEn tE

DeSViOS Domesticando a comunicação em rede

Na sua “segunda era”, percebe-se que a internet, inicialmente promovida para a eficiência, pode ter seu uso desvirtuado pelos usuários texto Fernando Fontanella

continente FEVEREIRO 2013 | 46

Webcelebridadades1_FEV.indd 46

28/01/2013 16:15:22


É sintomático que os memes tenham

ganhado a atenção da mídia nos últimos anos. Além da febre “memética” que explode nas redes sociais, trata-se de fenômeno que evidencia a consolidação de uma cultura digital mais aberta e menos elitizada: o momento em que a internet definitivamente deixa de ser uma novidade alienígena, e assume sua condição de tecnologia incorporada à vida cotidiana. Na academia, é crescente o número de pensadores que hoje questionam o conceito – antes valorizado – de cibercultura. Segundo essa corrente, a cultura digital deixou de ser uma subcultura, restrita aos geeks e nerds, e passou a ser frequentada por todo o tipo de gente, acabando assim a necessidade de uma distinção que separe o real do digital. No entanto, é interessante observar que as práticas vernaculares dos usuários da rede ainda parecem uma novidade que se choca com as formas tradicionais de comunicação e entretenimento. É importante esclarecer que a sensação de “explosão da frivolidade” na internet nos últimos anos, associada à popularização dos memes, é, em grande parte, produzida por um recente reconhecimento de um fenômeno que se desenvolve há muito tempo nas redes digitais. Já nas primeiras comunidades virtuais, surgidas a partir de redes experimentais na década de 1970, nos Estados Unidos, foram registrados casos em que usuários passavam a produzir e compartilhar textos e imagens editados, com fins de entretenimento despretensioso, criando piadas internas que eram sistematicamente transformadas e reinventadas por outros membros da comunidade. Pode-se traçar a origem dos memes, por exemplo, até as “fotorrespostas”, ou o costume dos usuários de fóruns online de responder a um tópico com alguma imagem especialmente selecionada e editada para expressar visualmente uma reação emocional. A popularização recente de mídias sociais como o YouTube, o Orkut e o Facebook serviu como catalisadora para essas práticas que surgem quase que naturalmente, quando indivíduos comuns passam a usar computadores para expressar as suas experiência compartilhadas, e articular de forma

criativa a banalidade do dia a dia. Nesse sentido, os memes atuais são o resultado avançado de um processo crucial na história da informática: a domesticação das tecnologias de comunicação em rede.

gÊnioS cRiaDoReS

A história dos computadores tem dois lados interdependentes, mas distintos. O primeiro é o do design da tecnologia, ou seja, o da sua concepção e desenvolvimento de aplicações. Frequentemente, a sua narrativa toma a forma do “mito do herói”, em que os protagonistas são os profissionais – inventores, cientistas, engenheiros, frequentemente descritos como visionários – e as instituições que estão por trás do “aparecimento” de uma determinada ferramenta ou descoberta como as empresas e universidades que financiam as pesquisas necessárias. Essa perspectiva é alimentada por relatos sobre como dificuldades técnicas e

na década de 1970, alguns usuários compartilhavam textos e imagens com fins de entretenimento econômicas foram superadas para criar soluções para problemas que afligem a humanidade. Uma vez realizadas, essas inovações são compartilhadas com a sociedade: os usuários, consumidores cujo papel se limita ao de endossar o gênio da ciência através da adoção das suas benfeitorias. Mas há um outro lado para essa história, que insiste em se apresentar: o processo tortuoso e fundamental pelo qual uma determinada tecnologia aplicada é tornada doméstica, por sua introdução no lar – ou no ambiente de trabalho –, passando a ser compreendida, desejada e adquirida pelos usuários. Nesse processo, o consumidor final não se mostra tão passivo; pelo contrário, ele pode ignorar ou rejeitar determinada inovação, ou oferecer feedback relevante o suficiente para levar ao desenvolvimento de novas tecnologias.

continente FEVEREIRO 2013 | 47

Webcelebridadades1_FEV.indd 47

28/01/2013 16:15:23


con TECNOLOGIA ti nen te FOTOS: DIVULGAÇÃO

3 Jonathan Zittrain Afirma que o computador é uma ferramenta que favorece novas aplicações, originalmente não previstas 4 henry jenkins Dedicou-se a estudar as narrativas alternativas produzidas pelos fãs (fan fiction)

3

Quando surge um novo campo de inovação tecnológica, especialmente quando apresenta evidente impacto nas nossas vidas – como a informática –, a cultura popular costuma condensar as expectativas difusas que são criadas sobre os efeitos dessa tecnologia na sociedade. Em um momento inicial, é preciso lidar com o estranhamento: uma tecnologia difícil de compreender, desenvolvida por cientistas que operam em um ciclo hermético de conhecimento, produzindo geringonças que, potencialmente, colocam em risco estilos de vida estabelecidos – e, algumas vezes, toda a forma de vida na Terra. Surge a demanda por narrativas que realizem uma assimilação das potencialidades e riscos envolvidos, e sua forma mais evidente se dá na ficção científica que, através da literatura, do cinema, e hoje dos video games, produz um imaginário que representa tanto as esperanças utópicas quanto os medos distópicos. É também natural que a angústia do desconhecido produza nas pessoas alguma resistência, e então passa a ser necessário “explicar” a tecnologia para o grande público.

DESVIOS

Além disso, a domesticação dos computadores e, posteriormente, da internet, exigiu um processo de mediação cultural que aproximasse a tecnologia dos interesses dos usuários. A cobertura da imprensa teve para isso um papel fundamental, assim como a publicidade de fabricantes de hardware e software e de provedores de acesso, que promoveram as redes digitais aos consumidores através de discursos idealizadores, e que frequentemente faziam referências às perspectivas mais positivas da ficção: as redes digitais nos colocariam em contato com o mundo inteiro “sem sair de casa”; facilitariam a realização de pesquisas para o estudo e o trabalho; ofereceriam ferramentas para profissionais que nos fariam ganhar tempo no emprego; permitiriam a realização de compras online; e melhorariam a comunicação com parentes e amigos distantes. Embora buscassem uma aproximação com o contexto cotidiano dos consumidores, essas promessas enfatizavam uma perspectiva econômica ao celebrar a

internet como uma ferramenta cujo benefício mais visível era a eficiência trazida para atividades diárias. Hoje, o computador – e suas derivações, como tablets, smartphones etc. – deixou de ser um objeto alienígena, que assusta, e se banalizou a ponto de muitos apresentarem dificuldade para imaginar a vida sem ele. Mas o que podemos perceber com essa “segunda era” da internet é que a ferramenta inicialmente promovida para a eficiência pode ser e é, com muita frequência, desviada pelos usuários. Podemos perceber isso ao verificar como muitas empresas e instituições de ensino restringem, de alguma forma, o acesso à internet em seus computadores – proibindo o acesso a websites de pornografia, entretenimento ou mesmo às principais redes sociais, que desviam a atenção dos usuários. Da mesma forma, no ambiente familiar, muitos pais preocupam-se com o tempo que os filhos gastam em frente às telas de seus computadores. Nos mesmos lugares onde foi introduzido para melhorar a produção e o convívio familar, o computador parece tornar-se uma ameaça a esses valores. Como ocorreu essa subversão de propósitos? O que quero destacar aqui é como os usuários são capazes de “desviar” uma ferramenta para novas aplicações, não originalmente previstas no seu design. Grande parte dos usos hoje difundidos dos computadores – “máquinas de computar” – surgiram a partir desses desvios. Para citar apenas um exemplo, a web foi proposta para facilitar a publicação de artigos científicos, mas posteriormente foi adaptada por usuários que a utilizaram para criar páginas pessoais, redes de pessoas com interesses comuns e blogs tratando dos assuntos mais diversos – e não científicos. A facilidade para publicar acabou dando ao cidadão

continente FEVEREIRO 2013 | 48

Webcelebridadades1_FEV.indd 48

28/01/2013 16:15:24


4

comum a capacidade de burlar os filtros (tanto de custo financeiro quanto de conteúdo) tradicionais para a publicação de suas ideias, e uma nova dinâmica de relevância apareceu a partir de interesses das diversas comunidades virtuais que se organizaram em interesses comuns, até os mais frívolos ou bizarros. Daí uma sensação frequente que acompanhou a história da internet: a de que ela é um ambiente em que as regras da normalidade, da seriedade e do bom gosto são frequentemente desafiadas. O americano Jonathan Zittrain, no livro O futuro da internet, identifica uma característica especialmente importante das tecnologias digitais que favorece esse fenômeno de apropriação: a generatividade, descrita como a capacidade que uma ferramenta tem para favorecer novas aplicações, originalmente não previstas, propostas por qualquer usuário sem o controle dos designers da tecnologia. É fácil perceber como um computador comum tem alto grau de generatividade, pois qualquer usuário minimamente habilitado em programação pode criar um aplicativo simples, ou mesmo alterar um determinado código para produzir novos usos em um programa. No entanto, diariamente, somos apresentados com desvios mais despretensiosos e mais distribuídos, que mostram a escala de

A web surgiu para facilitar a publicação de artigos científicos, mas foi adaptada por usuários para criar páginas pessoais familiarização com a informática por pessoas sem esse domínio da técnica. Um exemplo evidente está no uso de programas profissionais de edição de som, imagem e vídeo, transformados em brinquedos por usuários para produzir mashups com imagens retiradas da cultura pop ou aleatoriamente adquiridas na própria rede. Nesse contexto, os memes são dispositivos culturais que facilitam a apropriação vernacular da tecnologia, articulada por repertórios com os quais o usuário comum está familiarizado. Não só eles permitem dar um sentido à experiência de uso da rede, mas materializam as interpretações que o público faz dos produtos da indústria cultural, impulsionando o papel participativo dos consumidores no contexto da convergência midiática. Há pouco mais de três décadas, o pensador francês Michel de Certeau chamou a atenção para a opacidade

de práticas culturais populares até então majoritariamente ignoradas: a apropriação tática de materiais da cultura midiática para produzir interpretações próprias. O consumidor comum das mídias, subtraído da real capacidade de participar ativa e livremente da sua produção e difusão, passava a manifestar sua agência cultural nos modos de usar: elementos pré-existentes são assim apropriados e transformados em uma forma subterrânea e cotidiana de expressão, como nas paródias musicais obscenas, as especulações maliciosas sobre a vida de personagens de novelas, ou piadas protagonizadas por celebridades. Mais recentemente, Henry Jenkins apontou em um estudo seminal como durante décadas se sustentaram subculturas voltadas para a extensão de universos ficionais da indústria cultural através de narrativas alternativas produzidas pelos fãs (ou fan fiction). No caso dos memes, esse fenômeno ganha escala e capilaridade. Muitos memes oferecem uma imagem ou texto-base, uma plataforma facilmente apropriável, através da qual qualquer pessoa, com pouquíssima habilidade técnica, pode participar de uma brincadeira colaborativa. A maioria das produções resultantes é absolutamente ignóbil e, como tal, passa desapercebida. Mas, quando milhões de pessoas estão trabalhando criativamente em uma mesma ideia, sempre existe a chance de algo genial aparecer e ganhar as graças dos usuários, passando a ser compartilhadas em massa. Para os operadores das mídias tradicionais, essa é uma situação intrigante, e frequentemente arriscada. Na competição pela atenção do público, até bem pouco tempo não havia concorrência para os produtos culturais produzidos pela criatividade de profissionais treinados e muito bem pagos pela indústria de informação e entretenimento. Além disso, os filtros organizados pelas corporações de mídia garantiam uma disputa limitada entre elas. No entanto, a internet permitiu a articulação de uma capacidade criativa que, distribuída, tem um potencial enorme e, por outro lado, dificilmente pode ser comprada ou controlada.

continente FEVEREIRO 2013 | 49

Webcelebridadades1_FEV.indd 49

28/01/2013 16:15:26


Pernambucanas 1

continente fevereiro 2013 | 50

Pernambucanas_FEV.indd 50

28/01/2013 16:18:03


FAROL Traçando o céu em branco e preto Construído na década de 1940, situado a 130 m do nível do mar, o guia orienta os navios que chegam ao Porto do Recife e desperta a admiração de jovens e adultos texto Ingrid Melo Fotos Tiago Calazans

Nas pinturas de Bajado, surge

alvinegro, pareando com a cobrinha coral, um dos símbolos máximos de Olinda: o farol localizado no Morro do Sarapião, Bairro de Amaro Branco, entre as folhagens e o mar verde. Ele foi lembrado nas xilogravuras de J. Borges, no frevo de André Rio, nas agremiações do Carnaval, nos frevos do Bloco da Saudade. Batiza um dos pratos do restaurante Estação Maxambomba; faz partes das letras e memória de Maciel Salú; de contos e lendas urbanas. O Farol de Olinda pode ser admirado de quase todos os lugares da cidade, nos mais variados ângulos, em meio a casarios e igrejas, traçando de branco e preto o céu da Cidade Alta ou iluminando o horizonte, mesmo nos dias de nuvens carregadas, guiando navios e atraindo a atenção dos boêmios. Tamanha onipresença fez da torre de concreto armado uma personagem folclórica. Cravado no topo do Morro do Sarapião, a 42 m do solo e a 130 do nível do mar, o Farol de Olinda foi inaugurado em 7 de setembro de 1941. Seu feixe de luz pode ser visto a uma distância de até 46 km. Junto com faroletes e boias, integra o conjunto de sinalização marítima do Porto do Recife. A torre de oito andares ocupou o lugar de outro farol, erguido em ferro forjado no Fortim São Francisco de Olinda, no

ano de 1872, e constantemente ameaçado pelo avanço do mar. Foi instalado no Farol de Amaro Branco um elevador de acesso à lanterna – o primeiro ascensor em um farol no Brasil e, atualmente, o único em pleno funcionamento.

manutenção

Apesar de estar na área tombada pela Unesco como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, o Farol não sofre intervenção da prefeitura. Quem o mantém funcionando e o administra é a Marinha do Brasil, por meio da Capitania dos Portos. É esse órgão que controla o acesso à torre, incluindo o de turistas. Isso tem gerado reclamações por parte da população, já que, por segurança, o farol não está aberto a visitações. A equipe que trabalha nele é restrita. Três homens se revezam a cada 24 horas e são responsáveis por guardá-lo, fazêlo operar e cuidar da sua manutenção. Esses profissionais são chamados de faroleiros e são militares que fizeram carreira na Marinha e se especializaram em faróis náuticos. Eles residem com suas famílias em casas no próprio terreno onde fica a torre. É inviável e perigoso que faroleiros desviem a atenção de seus afazeres para receber os visitantes. O farol é crucial para a segurança e orientação de embarcações que cruzam o litoral

continente fevereiro 2013 | 51

Pernambucanas_FEV.indd 51

28/01/2013 16:18:05


2

Pernambucanas do estado. De acordo com a Marinha, somente um convênio com a prefeitura, fornecendo guias e auxiliando na segurança do local, tornaria o Farol de Olinda apto para o turismo. Mas nem sempre foi assim. O universitário Daniel Orange costumava visitar assiduamente o monumento náutico, quando estudante do Colégio de São Bento, nos anos 2000. Segundo ele, o destino era o preferido, junto com seus amigos, quando resolviam fugir de alguma aula. Um pouco antes de anoitecer, precisavam ir embora para não comprometer o trabalho do marinheiro, mas, até lá, era sol, vento e liberdade. “Era perfeito porque dava para sair por trás do mosteiro, passar pelo Mercado da Ribeira e comprar vinho. Lá, conversávamos com o faroleiro e ele liberava a entrada. Nessa época, a coisa não era rigorosa como é hoje. Trago dessas tardes no farol algumas das melhores lembranças da minha adolescência”, conta. Felizmente, não era tudo tão burocrático assim ou, talvez, o músico Maciel Salú nunca tivesse feito a música Farol de Olinda, uma das mais bonitas do seu terceiro CD solo, Mundo, lançado em 2011. O farol atiçava a curiosidade do cantor desde criança, ao colorir de branco e preto

O elevador de acesso à lanterna foi o primeiro ascensor em um farol no Brasil e, atualmente, é o único em pleno funcionamento o céu da cidade. Porém, foi somente quando se tornou adulto que ele foi ver de perto como a minúscula luz da lanterna conseguia alcançar sua casa em Bairro Novo. “Eu ficava encantado com aquela luz girando até alta madrugada. Imaginava várias coisas na minha cabeça de menino, de naves extraterrestres até sinais para super-heróis. Até que um dia me disseram que se tratava de um farol. Queria conhecer, mas meus pais nunca me levaram. Acabei esquecendo. Já adulto, fui fazer um trabalho lá em Amaro Branco e lembrei a minha admiração de menino. Larguei tudo e fui ao farol”, afirma. Ele passou horas admirando cada peça e alheio à vista que embasbaca. Sabia que de outros pontos da Cidade Alta conseguiria uma paisagem parecida, mas dificilmente se depararia em outro lugar com a lente olho de cavalo que projeta a iluminação. “Achei o farol

3

uma verdadeira obra de arte e aquilo me inspirou. Fui pesquisar sobre sua história e escrevi a música, que é cheia de misticismo, como a figura de Iemanjá. Farol tem que ter mistério”, explica.

FAROLEIROS

Conhecer o farol por dentro, contudo, é despir-se da sua poesia. Nada de um lampião gigante, aceso por um velhinho com trejeitos de marinheiro, tatuagem de âncora e pele queimada do sol, e que sobe centenas de degraus estreitos para colocar querosene em uma lanterna e bombear o ar, à espera de que a luz ilumine na direção de sua amada. Os degraus até que existem, mais de 300 nos fazem subir os oito andares. O resto é puro sonho. Em 1937, a eletricidade substituiu o gás acetileno, ainda no antigo farol. O velhinho é mais uma lenda, como a do menino que nomeou o bloco carnavalesco com seu boneco gigante

continente fevereiro 2013 | 52

Pernambucanas_FEV.indd 52

28/01/2013 16:18:10


Página anterior 1 cartão-postal

imponente farol O pode ser visto de quase todos os pontos da cidade

Nestas páginas 2 topo

preciso subir mais É de 300 degraus para chegar à lanterna que orienta os navios

vista 3 Do alto da torre, é possível admirar uma bela paisagem

de roupa quadriculada em branco e preto. Quando chegamos, o sargento que deveria nos receber estava lavando o carro, e, não, olhando profundamente para o horizonte. Em seguida, explicou a sua rotina, que nada tinha a ver com a descrita anteriormente. Às 17h, o faroleiro de plantão sobe à torre para iniciar a operação da máquina de rotação e acender a lanterna por meio de um sistema elétrico. Durante a noite, faz vistorias a cada quatro horas. Ao amanhecer, desliga o farol e fecha as cortinas da lanterna. De dia, faz a manutenção das máquinas e a limpeza das lentes. Esse hábito é conhecido pelo marinheiro aposentado Gelson Figueroa Lima, de 83 anos. Há 60, ele trabalhava no farol da Ilha de Abrolhos, na Bahia. As histórias da solidão foram contadas para seus filhos e netos. Muitas vezes, iluminadas pelo próprio Farol de Olinda, já que Gelson mora até hoje

no Bairro de Amaro Branco e, quando se mudou para o Recife, chegou a residir em uma das casas do farol. “Lembro que sentia que morando ali eu tinha uma visão privilegiada. É possível ver o mar verde, limpo, a vegetação. Tudo tem uma beleza incrível. Gostava de viver lá porque conversava com os faroleiros e me lembrava dos anos em Abrolhos. Um deles, Fernando Kennedy de Albuquerque Pimentel, foi meu amigo até o fim de seus dias. Aposentou-se como faroleiro e morreu há quatro anos”, recorda. Se provoca reminiscências em um idoso, o Farol de Olinda também desperta saudades em um menino. Theo Acioli Michiles tem sete anos e todas as vezes em que vê o farol girando da varanda de sua casa tem vontade de ir para Salvador, cidade que visitou e pela qual nutre uma “saudade danada”. A mãe, a jornalista e artista plástica Dani Acioli, conta no blog que fez para o filho

(Pés de Catavento) que trata de dissuadi-lo da ideia, mas também se põe a pensar. Faz sentido o farol ser a ponte entre as duas cidades, quando Theo o observa se balançando na rede da varanda. E, mesmo conhecendo todo o mecanismo da torre, fica difícil afastar-se do encanto. Embora já não seja aberto ao público, o Farol de Olinda mantém um livro de visitantes. Não se pode saber ao certo se é a inspiração advinda da bela paisagem, se o ar poético do imaginário coletivo; acontece que, raramente, os que assinaram o livro deixaram só o seu nome e a cidade da qual vieram. Há centenas de poemas, epifanias e depoimentos. Como um motorista que agradeceu por seu trabalho permitir que se deparasse com aquela vista e uma pessoa que citou, em 2011, o trecho do Poema de sete faces, de Drummond: “mundo, mundo, vasto mundo/ mais vasto é o meu coração”. Esse farol, essas histórias botam a gente comovido como o diabo.

continente fevereiro 2013 | 53

Pernambucanas_FEV.indd 53

28/01/2013 16:18:14


imagens: reprodução

Visuais

1

BURLE MARX A face desconhecida do mestre do verde

Roberto Burle Marx: a figura humana na obra em desenho De 6/2 a 28/4 Centro Cultural Correios

Centro Cultural Correios abre exposição com 121 desenhos figurativos, ainda inéditos, realizados pelo maior paisagista brasileiro TEXto Danielle Romani

continente fevereiro 2013 | 54

Visuais_FEV.indd 54

28/01/2013 16:19:55


cenas de bar 1 Essa foi uma das temáticas exploradas pelo paisagista em seus desenhos

Quando se fala em Roberto

Burle Marx, a primeira imagem que vem à mente são as dos seus projetos paisagísticos, reconhecidos mundialmente, e que podem ser vistos por todo o país: na exuberância dos jardins tropicais da Praça de Casa Forte, no Recife; nos espaços amplos e monumentais do Aterro do Flamengo, no Rio; e nas humanizadas e grandiosas superquadras brasilienses. Exemplos explícitos de como o uso adequado das espécies vegetais pode tornar a vida mais bela e agradável. Burle Marx, entretanto, foi um homem de múltiplas faces. Uma delas, praticamente desconhecida, chegará à capital pernambucana no dia 6, com uma exposição montada no Centro Cultural Correios, no Bairro do Recife. Lá, o público poderá conferir, até o dia 28 de abril, a mostra Roberto Burle Marx: a figura humana na obra em desenho, que reunirá 121 trabalhos produzidos pelo artista entre 1919, quando ele tinha apenas 10 anos de idade, e a década de 1940, quando era um artista reconhecido e já começava a se firmar como um dos expoentes do modernismo brasileiro na área do paisagismo. “Escolhemos um conjunto de obras que descortinam um Burle Marx desconhecido do grande público, como aprendiz e como artista que procura a sua autonomia e identidade. Uma espécie de face oculta”, explica a curadora Yanara Costa Haas, arquiteta do Sítio Roberto Burle Marx e mestra em Patrimônio Histórico, que enfatiza: a exposição é itinerante, vem percorrendo, desde agosto de 2012, diversas capitais onde o artista tem obras expressivas, a exemplo de Brasília e do Rio de Janeiro. “São trabalhos iniciais da sua carreira, feitos sobre papel, com carvão, grafite, nanquim, lápis de cor, creiom, giz de cera, hidrocor e guache, produzidos desde a sua infância, passando pela época acadêmica até a idade madura”, reforça Yanara. Toda a produção contém a figura humana como temática central. A inspiração dos desenhos é nitidamente calcada na convivência do paisagista com seus professores Leo Putz e Portinari.

burle marx 2 Veio morar no Recife em 1934, e projetou sua primeira praça na cidade, a de Casa Forte, um ano depois

2

No Recife, ganham destaque 15 obras produzidas em técnica pastel sobre a figura humana na paisagem pernambucana

O material a ser apresentado ao público recifense é inédito – jamais havia sido exposto – e faz parte do acervo exclusivo de 1.589 desenhos pertencentes ao Sítio Roberto Burle Marx/IPHAN/MinC. Os desenhos reunidos nessa espécie de “fundação” englobam o período de 1919 até a data de sua morte, em 1994, e vão da fase figurativa ao total abstracionismo. No caso específico do Recife, onde Burle Marx morou e trabalhou na década de 1930 como diretor do Setor de Parques e Jardins da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo do Governo do Estado de Pernambuco – e onde construiu sua primeira praça, a de Casa Forte, em 1935 –, a mostra reúne desenhos que flagram a cidade. “Para a exposição recifense, serão destacadas 15 obras produzidas em técnica pastel sobre a figura humana na paisagem pernambucana, em bairros e localidades da cidade, no

ano de 1932. Nessa série, ele criou desenhos em aquarelas sobre as figuras do povo em ambientes locais, como Casa Amarela e Peixinhos”, detalha Yanara, que selecionou essas peças especialmente para a temporada no Recife. A exposição também traz um conjunto de imagens de bar, com cenas entre homens e mulheres boêmios, contendo mesas e copos em primeiro plano. “São as chamadas cenas de bar”, explica a especialista. No dia 16 de março, às 16h, um plus para os que desejam conhecer mais essa faceta pouco conhecida da obra de Burle Marx: nessa data, haverá lançamento do catálogo e visita guiada pela curadora, que explicará ao público os detalhes dos 121 trabalhos mostrados na cidade.

EXPOENTE

Principal expoente do paisagismo brasileiro, Roberto Burle Marx nasceu em 4 de agosto de 1909. Ele foi o que se pode chamar de um homem plural: alem do paisagismo e das artes plásticas, trabalhou também como cantor, criador de joias, ceramista, escultor, pesquisador e tapeceiro. Paulista de nascimento, em 1913, ainda criança, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde produziu alguns dos seus principais trabalhos e

continente fevereiro 2013 | 55

Visuais_FEV.indd 55

28/01/2013 16:19:56


3 técnicas As obras foram produzidas utilizando aquarela, creiom e guache, entre outros materiais

Visuais

3

projetos. No final da década de 1920, estudou pintura na Alemanha, e lá descobriu a flora brasileira cultivada em estufas, após frequentar assiduamente o Jardim Botânico de Berlim. Em 1932, depois do primeiro projeto paisagístico criado para uma obra arquitetônica de Lúcio Costa e Gregori Warchavchik, passou a se dedicar à área, juntamente com a pintura e o desenho. Em 1934, veio morar no Recife, trabalhando sob a coordenação do arquiteto carioca Luiz Nunes. Aqui, projetou quatro praças públicas: a de Casa Forte, a Euclides da Cunha, na Madalena, a Dezessete, em São José, e a Artur Oscar, em frente à Torre Malakoff, hoje totalmente desvirtuada. Burle Marx fez, ainda, pequenas intervenções em praças construídas no século 19 e no início do 20, como as do Derby, da República, da Maciel Pinheiro e da Chora Menino. Também são dele as modificações realizadas nos jardins internos do Palácio do Campo das Princesas, sede oficial do governo pernambucano. Seu

trabalho se pautava em três eixos: o ecológico, o educativo e o artístico. O convite para que viesse morar em Pernambuco foi feito pelo governador Carlos de Lima Cavalcanti, que pretendia mudar a paisagem recifense, dotando-a de ares modernos. Sua saída se deveu a motivos políticos, a partir da instauração do Estado Novo, que via com suspeição os artistas modernistas. Mas a ligação com a cidade continuaria. Em 1950, seria convidado a construir mais duas praças: a que fica em frente ao Aeroporto dos Guararapes e a do Jardim Zoobotânico de Dois Irmãos. Suas últimas obras recifenses foram realizadas na década de 1980, quando construiu a Praça Burle Marx, instalada e aberta à visitação na Oficina Francisco Brennand; o Cemitério Parque das Flores, no Sancho; e o Parque Memorial Arcoverde, na divisa entre o Recife e Olinda, que não chegou a ser totalmente concretizado. Depois da passagem pela capital pernambucana, sua fama ganhou o mundo. Em 1955, o paisagista

fundou a Burle Marx & Cia. Ltda. e passou a elaborar projetos de paisagismo, realizando a execução e manutenção de jardins residenciais e públicos em todo país. Entre suas obras de destaque, estão os jardins do Itamaraty e o paisagismo do Eixo Monumental, em Brasília e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e os jardins do Aeroporto Carlos Drummond de Andrade, em Belo Horizonte. No exterior, assinou o paisagismo da Embaixada do Brasil em Washington, nos Estados Unidos. Em 1949, Burle Marx adquiriu um sítio de 365 mil m², em Barra de Guaratiba, no Rio de Janeiro, onde organizou uma grande coleção de plantas, muitas delas fontes de inspiração para seus trabalhos. Esse sítio foi doado, em 1985, à Fundação Nacional Pró-Memória (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN). Aos 84 anos, após ter projetado mais de 2 mil jardins, Roberto faleceu no dia 4 de junho de 1994, no Rio de Janeiro. Um homem, sem dúvida, que deixou o Brasil mais verde e mais bonito.

continente fevereiro 2013 | 56

Visuais_FEV.indd 56

28/01/2013 16:20:00


Visuais_FEV.indd 57

22/01/2013 11:02:16


a “bela natureza”

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

O quadro tem seu querer , suas

ideias próprias, sua atmosfera que não a mesma que se encontra na natureza. A própria natureza, esteticamente, é o reflexo do que nos vai n’alma, a maneira de ver de cada um. Daí, creio eu, a “bela natureza” de que fala o abade Charles Batteux (1713-1780, comemorando-se pois o tri-centenário de nascimento) no seu livro As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio. Ultimamente eu tenho lido umas obras de alto nível, acredite se quiser, e este é um dentre muitos volumes, todos magníficos, que me foram presenteados pela amiga ilustre Cecília Scharlach, editados pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. O quadro tem uma segunda natureza que vem da hora do pintor mais do que a do relógio e o pintor é um enquanto pinta e outro quando espectador de sua própria pintura.

Gauguin disse: “Olha a natureza; mas fecha a cortina e pinta teu quadro”. Mesmo com a fotografia na mão – e desde Courbet os pintores pintam por fotografia bem antes da fotografia em cores, Delacroix chegando a montar cenários e personagens à imitação dos seus quadros – ou diante do modelo paisagem, gente, bicho, naturezamorta, o que os olhos vêem o coração sente diferentemente, se é que a mão consegue segui-lo. O olho. Certa vez Carybé disse que queria viver mesmo que fosse somente um olho pendurado num prego na parede ali da sala (estávamos, eu e ele somente, na sala da frente do sobrado do espanhol Jesus – sobrado de dois andares além do térreo, Carybé morando no primeiro e Jesus no segundo, sendo a entrada para o primeiro independente, pelo Largo de Sant’Ana, no Rio Vermelho, Salvador, perdoai-me o

devaneio, e das seis janelas da frente e outras tantas de lado se via o mar e a igrejinha meio troncha no meio da praça – e na verdade o que ele disse mesmo foi “nem que fosse um olho pendurado ali naquele prego”, disse apontando para um prego na parede). Mesmo aquele olho, sem pé, sem braço e sem mão nem cérebro nem coração, veria, ou melhor selecionaria do que via, determinados objetos, os objetos do desejo: uns, objetos, se o olho fosse de Carybé; outros, se o olho fosse de outra pessoa. Todo mundo sabe que se botarem dez pintores diante da mesma paisagem ou uma cena qualquer sairão dez quadros diferentes, como feito aqui no Recife, pintores daqui, levados para pintar Fernando de Noronha, quadros que lembro sempre pois ornam as paredes da CEPE, Companhia Editora de Pernambuco, que edita esta Revista Continente: ai que saudades de José de

continente fevereirO 2013 | 58

Mat_Corrida_FEV.indd 58

22/01/2013 11:03:36


reprodução

1

Todo mundo sabe que se botarem dez pintores diante da mesma paisagem ou uma cena qualquer sairão dez quadros diferentes Barros, extraordinário pintor, e que morreu tão moço! Houve época em que a referência era a natureza? Mas qual natureza? As ruas com seus sinais de tráfego, as listas no asfalto e mil outras sinalizações, fios e edifícios como nos quadros de Maurício Arraes sem esquecer embora a figura humana no meio desses artefatos, ou os dendezeiros de Telles Júnior, os coqueiros de Mário Nunes, os quadros das batalhas no coro da Conceição dos Militares, do Museu do Estado, do

Instituto Arqueológico, ou uma quartinha pintada por Vicente do Rego Monteiro ou uma bage de ingá pintada por qualquer um de nós, ou os ex-votos do Museu de Igarassu, ou os quadros de Matisse, Picasso, as colagens de Kurt Schwitters? Se ninguém aprende pintura olhando pela janela mas com os pintores, os pintores locais ou nacionais cada vez perdem mais terreno para os que invadem o nosso olho vindos do mundo todo. Outro dia, aqui no Recife, numa loja de materiais de pintura, uma senhora comprava telas. De bom tamanho. Perguntei se era pintora, ela disse que sim. E também ensinava. “Quais os temas mais

vendáveis?” Respondeu: “Abstrato. Antes, me pediam muito vistas do Recife, Rua da Aurora, Pátio de São Pedro, praia com coqueiro. Mas isso cansou.” Segundo o apresentador Marco Aurélio Werle do livro As belas-artes..., Diderot no Tratado sobre o belo, de 1752, diz que “o senhor Abade Batteux lembra todos os princípios das belas-artes à imitação da bela natureza; mas não nos ensina de nenhum modo o que é a bela natureza”. Talvez fosse isso que eu queria saber quando me dirigi à senhora que comprava telas na loja de materiais de pintura. E está cada dia mais difícil, amigo Diderot.

1 josé de barros J osé de Barros

Andrade Lima (Recife, 1943-94), Dois Irmãos (Fernando de Noronha), acrílico sobre eucatex, 85 x 170 cm, 1992

continente fevereirO 2013 | 59

Mat_Corrida_FEV.indd 59

22/01/2013 11:03:39


divulgação

Palco

1

DANÇA Tecnologia para falar de amor

Helder Vasconcelos e Armando Menicacci preparam espetáculo, ainda sem título, utilizando um software que transforma as expressões faciais e movimentos em sons texto Christianne Galdino

continente fevereiro 2013 | 60

PALCO_FEV.indd 60

22/01/2013 11:06:08


parceria 1 A nova montagem será o segundo trabalho em conjunto de Armando Menicacci e Helder Vasconcelos

Um é natural de Garanhuns,

foi criado em Caruaru e teve sua formação artística na “escola do cavalo-marinho e do maracatu rural da Zona da Mata Norte de Pernambuco”. O outro é musicólogo e pianista italiano, especializado em ópera, e vive em Paris desde os anos 1990. Será possível uma ligação entre dois artistas-pesquisadores de universos tão diferentes? A parceria entre Helder Vasconcelos e Armando Menicacci mostra que sim, revelando que há mais interseções do que imaginamos entre realidades culturais aparentemente tão distantes. O encontro entre os dois gerou os primeiros frutos em 2007, com a criação do espetáculo Por si só, a partir do financiamento do programa Rumos Dança, do Itaú Cultural. Ali se inaugurava um processo criativo em dupla e uma amizade entre os dois, que, ignorando as distâncias geográficas, se mantêm ligados e cada vez mais coesos. “Logo após a estreia de Por si só, veio o impulso para uma nova criação, pois sentíamos que ainda tinha muito a ser explorado, a ser dito. Pensei em um novo espetáculo, para completar essa trilogia de solos, iniciada em Espiral brinquedo meu”, lembra Vasconcelos. Ator, músico e dançarino, com sólida atuação nas três áreas, o artista escolheu uma linguagem para protagonizar cada trabalho, mantendo sempre o hibridismo que o caracteriza. Dessa vez, o fio condutor é a música, apesar de ser um projeto de “artes cênicas e não um show”. Eles trazem a tecnologia como elemento-chave tanto para o processo criativo como para os produtos cênicos, apostando na fértil relação entre o corpo e os aparatos tecnológicos. Uma investigação que já vem desde Por si só, e que faz parte do cotidiano profissional de Menicacci, pois, apesar de formado em música, ele integra o corpo docente

de dança da Universidade Paris 8, e lá desenvolve pesquisas com novas mídias no Laboratório Médiadanse, além de colaborar com coreógrafos como Alain Buffard, e Rachid Ouramdame. E ainda cria o que ele chama de instalações interativas, colocando teoria e prática literalmente em cena, com elementos das artes plásticas, da música, do teatro, do cinema e da dança. A mais recente e inclassificável performance dele (ainda inédita por aqui) tem o curioso título de Monalisa, sexo, perfume, cerveja, Carmem e eu, que traduz bem o espírito e a essência desse intérprete criador.

INTRUMENTOS MUSICAIS

Mas o que podemos esperar desse retorno à música no próximo trabalho de Helder Vasconcelos e Armando Menicacci? Aonde será que esses trilhos tecnológicos criados por eles podem nos levar? A invenção da vez são os instrumentos musicais. A dupla

As interfaces e aparelhos são instrumentos de criação e não o objetivo final do novo espetáculo da dupla está criando novos instrumentos a partir da ideia da dança tocar a música: “Estamos utilizando um software que transforma as expressões faciais em sons. Através de um microfone de contato especial, todos os movimentos corporais de Helder viram música”, detalha Menicacci. Ele conta que, nos dias atuais, muitos desses programas e aparelhos são facilmente encontrados na internet, por um preço acessível e alguns até são gratuitos. Mas as novas interfaces e aparelhos são instrumentos de criação e não o objetivo final do espetáculo. “O que importa é a poesia. É o discurso da obra”, defende. Menicacci diz que existem sempre novas técnicas e tecnologias que podem servir aos interesses artísticos de um criador, basta procurar e experimentar. “Uma técnica é um procedimento para construção de um artefato específico, ao passo que uma tecnologia é uma técnica que leva a

uma mudança de percepção, a uma nova relação com o mundo. E, nesse caso, com o corpo, o movimento e os sons”, define o pesquisador. Depois de fazer um levantamento técnico-tecnológico dos recursos necessários, e experimentá-los, os dois artistas vão contar com a colaboração de outra dupla de peso, os atores Fernando Yamamoto e Marco França, do grupo Clowns de Shakespeare, de Natal, Rio Grande do Norte. Helder explica que eles foram escolhidos “pela forma integrada como pensam a música e o teatro. Gosto do jeito que eles trabalham, da forma como a música está presente nos espetáculos que eles dirigem. E quero trazer essa experiência para o meu processo, até mesmo pelo protagonismo que a música vai ter nesse projeto”. Ainda sem título definido, o novo solo de Helder Vasconcelos deve ter seu primeiro experimento cênico apresentado na Mostra Rumos Dança no final deste semestre, pois ele foi um dos contemplados da edição 2012/2013 do programa. Quando perguntamos se há um tema, um objeto de estudo específico nessa pesquisa criativa, a identidade híbrida dos criadores volta à ribalta. “Sabemos que há uma matriz tradicional popular na minha movimentação. Sabemos também que a música é o fio condutor das cenas, e que temos a tecnologia como aliada no processo. Mas o roteiro mesmo está sendo construído”, conta Vasconcelos. “Estamos buscando o que é imprescindível. Esse é o assunto, podemos dizer assim, que queremos levar à cena. A dança, por exemplo, é o nosso imprescindível. E o amor é o imprescindível da vida. Até a violência é uma busca pelo amor. Então, é sobre isso que vamos falar”, completa Menicacci. Falar de amor em um espetáculo não é nenhuma novidade. Fazer isso com suportes tecnológicos, sem ser piegas, superficial e óbvio, é, além de um desafio enorme, um feito inusitado, que requer ousadia e muita dedicação. Mas essa é uma matéria-prima abundante no histórico profissional de Helder Vasconcelos e Armando Menicacci. Agora, é esperar para ver a dança – sempre popular-contemporânea – que esses dois vão inventar.

continente fevereiro 2013 | 61

PALCO_FEV.indd 61

22/01/2013 11:06:08


Cardápio 1

caranguejo Da lama do mangue para a mesa

Motivador e protagonista do quase atávico hábito de quebrar e chupar patinhas, crustáceo é o sinal gustativo de que somos livres texto Eduardo Sena Fotos Rafael Medeiros

continente FEVEREIRO 2013 | 62

Cardapio_FEV Caranguejo.indd 62

22/01/2013 11:09:06


continente FEVEREIRO 2013 | 63

Cardapio_FEV Caranguejo.indd 63

22/01/2013 11:09:08


Cardápio 1

Estudioso dos efeitos geográficos

sobre o homem nordestino, o sociólogo pernambucano Josué de Castro, no livro Homens e caranguejos (Editora Civilização Brasileira, 2001), em dado momento da obra, constata que “os mangues do Recife são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí é, foi, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela”. O escritor fazia supor justamente essa perfeita simbiose entre o ser humano e esse crustáceo de 10 pernas, dotado de carapaça larga e dura com shape assimétrico, que, além de servir de mote para pesquisa sociológica, foi motivo de inspiração para as artes por meio do movimento manguebeat. Mas vamos parar de pensar demais. Cozinha e comida têm isso de bom. Um dia se teoriza, “antropologiza”, “sociologiza”, copia e critica. No outro, você se esquece de tudo, menos do alimento em si, sem reflexão mesmo. O caranguejo está nessa estante.

Sua carne é rica em proteínas, vitaminas e sais minerais, trazendo fibras que se desfazem em lascas depois do cozimento Se, sob o prisma da Sociologia, ele é um dos principais símbolos da civilização pernambucana, brotando do mangue para matar a fome de quem cata para não morrer, o crustáceo também sacia a alma; de preferência, debaixo do sol escaldante, à beira da praia, acompanhado por goles de cerveja gelada. Aliás, é nessa combinação de tempo e espaço que a iguaria, bastante festejada pelos pernambucanos, revela sua mais contundente identidade. Com tons que flutuam entre o laranja e o vermelho, apresentam-se adornados por porções generosas de tomate, coentro e cebola picadinhos. Caranguejo é irresistível, irrecusável e irrepreensível.

Pouco importam as diretrizes de conduta ética à mesa, institucionalizadas por Danuza Leão, Glória Kalil ou Carmen Peixoto. Desmembrar o bicho para comer é manobra orgânica que consiste em quebrar e partir a pata com as mãos, depois levá-la à boca para sugar a carne, como num gesto de urgente sobrevivência, e sentir o caldo da cocção escorrer da boca até alcançar os cotovelos. A arte é para poucos, pouquíssimos, diria. Um exímio exercício de liberdade e de desapego da vaidade. Até porque, além de saciar o espírito, o crustáceo também é nutritivo. Sua carne branca e macia é rica em proteínas, vitaminas e sais minerais, trazendo fibras que se desfazem em lascas depois do cozimento. A partir daí, pode se transformar em ensopados e recheios para várias finalidades. “Com alguma paciência e cuidados no armazenamento, a carne se revela muito versátil. Além de cremes e gratinados, pode ser matéria-prima de quiche a um hambúrguer. E, ao tempo

continente FEVEREIRO 2013 | 64

Cardapio_FEV Caranguejo.indd 64

22/01/2013 11:09:09


1 casquinho A receita é uma das mais pedidas por quem quer comer caranguejo sem grande esforço ritual 2 Após o cozimento, é só quebrar as patas do animal e sugar a carne

que tem um quê rústico, é bastante refinado”, afiança o chef André Saburó, que mantém os restaurantes Quina do Futuro e Sumô, especializados em ingredientes de procedência aquática.

FAMILIAR

O cozinheiro lembra que a carne, nesse estilo suvenir (uma vez que se vai a carapaça e fica apenas uma lembrança), é sofisticada justamente por ainda não ser explorada numa escala industrial. “Ao contrário da carne de siri, que se consegue comprar em grande escala, via empresas especializadas, a do caranguejo depende de uma agropecuária familiar de pequenos produtores e catadores. O abastecimento é todo pelas mãos deles”, identifica Saburó, que faz questão de frisar que o kani-kama, processado de pescado branco com albumina, amido, água, sal, açúcar, proteína de soja, glutamato de sódio, corantes, sorbitol e espessante, só tem aroma de caranguejo. E olhe lá. E se o kani não substitui à altura, é preciso ir atrás das famosas cordas de caranguejo, pego com as mãos dentro da lama. O bichinho só não pode ser catado em algumas semanas, entre os meses de janeiro e março, quando sua pesca fica proibida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para que eles possam se reproduzir. A portaria que estabelece as datas da proibição (de 12 a 17 de janeiro; 28 de janeiro a 2 de fevereiro; 11 a 16 de fevereiro e de 26 de fevereiro a 3 de março), até o fechamento desta edição, não foi sancionada, muito embora os fiscais do órgão já atuem nessa perspectiva. Falando em reprodução, como são férteis as fêmeas da espécie! Por cópula bem-sucedida, carregam entre 80 e 250 mil ovos. Desse montante,

2

de 30 a 50 mil têm chances de chegar à vida adulta, prontos para serem catados. Quando, é claro, atingirem seis centímetros, estágio em que podem ir para as panelas. “Os principais produtores do crustáceo na região Nordeste são Maranhão, Piauí, Paraíba, Ceará e Sergipe”, elenca o engenheiro de pesca da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Vanildo Souza. A despeito da maior área de manguezal urbano do mundo, com 270 km², de acordo com o artigo O valor da preservação do

Parque dos Manguezais em Recife-PE, dos pesquisadores Guilherme Nunes Martins e Andrea Sales Soares de Azevedo Melo, Pernambuco não aparece nessa lista.

OS DIAS DELE

Se não tem em abundância por aqui, o negócio é mandar buscar. É o que fazem os empresários Ramon Muller e Larissa Trindade, que comandam o bar Bodega do Barão, em Casa Amarela, na Zona Norte da Cidade. A dupla traz a iguaria de Fortaleza (CE), para

continente FEVEREIRO 2013 | 65

Cardapio_FEV Caranguejo.indd 65

22/01/2013 11:09:11


3 à moda de bissau Na receita, entram

pimentões, cebolas, pimentas variadas, óleo de palma, curry, cerveja, leite de coco, coentro e cebolinha

4 carmem virgínia A yabassé segue à risca a tradição africana e coloca a panela de barro escavada no chão

3

Cardápio movimentar a Terça do Caranguejo no recinto gastrô-etílico. “Para garantir que eles cheguem nas melhores condições, isso significa grandes e gordos, escolhemos um dia da semana para não dependermos das variações do fornecedor”, conta Larissa. O público, nesses dias, segundo ela, se apresenta diferenciado até na indumentária. “Como não é um

dia em que as pessoas vêm ao bar para paquerar, por exemplo, já que é inviável flertar com alguém comendo caranguejo, os clientes chegam com roupas mais despojadas e confortáveis, dispostas a se sujar, com outro espírito. É engraçado”, observa. A cada noite dessas, são vendidas cerca de 300 unidades, acompanhadas por pirão. Essa tradicional instituição do “Dia do caranguejo”, aliás, foi importada de Fortaleza e de Aracaju (SE), capitais que dedicam um

dia na semana para a brincadeira comestível. Por lá, acontece sempre às quintas-feiras, nos bares especializados. No Recife, com quase 20 anos no mercado, o Guaiamundo, em Casa Forte, que, como o próprio nome faz supor, tem como carrochefe do cardápio os crustáceos, também é uma das casas que decretaram espaço no calendário semanal para a farra das patas. À exemplo das capitais de Sergipe e do Ceará, o recinto promove às quintas-feiras o clone de caranguejo. No melhor estilo “pediu um, leva outro gratuitamente”. O que é exigido é o malabarismo para a sucção e, para os, digamos que, mais pudicos, golpes certeiros de martelo, para ser apreciado. Por mês, são comercializados cerca de 2,5 mil bichinhos, que podem chegar à mesa inteiros ou em casquinhos, ensopados e patolas empanadas. Segundo um dos sóciosproprietários da casa, Cristiano Nascimento, a produção pernambucana não dá conta da demanda atual, sendo preciso trazer mais da metade do ingrediente de João Pessoa (PB) e de Fortaleza. Entre as outras dificuldades encontradas em meio aos comerciantes, está o fato de o caranguejo não se alimentar, não podendo ser cevado como o seu primo guaiamum.

À MODA AFRICANA

Quando o assunto é essa não alimentação dos caranguejos fora do seu hábitat natural, existem algumas controvérsias. A primeira delas nasce na Guiné-Bissau, país da costa africana. Foi lá que, durante uma

continente FEVEREIRO 2013 | 66

Cardapio_FEV Caranguejo.indd 66

22/01/2013 11:09:54


4

temporada de pesquisa de culinária de raiz afro, a yabassé (cozinheira dos orixás) pernambucana Carmem Virgínia aprendeu os macetes de preparo da caranguejada africana com um comerciante local. “Passei o dia inteiro na frente da barraca dele. Vez por outra, quando enchia de pessoas em busca da sua famosa caranguejada, eu ia lá e o ajudava, carreguei até lata d’água. Venci pelo cansaço, até ele me dar a tal receita”, lembra. Segundo a chef, o que mais a impressionou em todo o processo de preparo foi a forma como ele tratava os caranguejos antes de morrer. “No primeiro dia, era dieta zero, só água, para limpar os caranguejos do gosto de lama que eles assumem por viver nos manguezais. No segundo dia, milho e água de coco; no terceiro, frutas (caju, manga, abacaxi e coco verde), no quarto, um cacho de dendê e bagaço de coco seco; por fim, no quinto dia, cerveja. Apenas no sexto dia acontece o preparo em si, a limpeza e a cocção”, explica. No cozimento, entram como temperos pimentões coloridos,

A produção pernambucana não dá conta da demanda, sendo preciso trazer caranguejos de João Pessoa e Fortaleza cebolas, pimentas variadas, óleo de palma, curry, cerveja, leite de coco, coentro e cebolinha. “O pirão é feito com uma chuva de farinha bem quebradinha e torrada. Incluí nessa receita raspas de dandá da costa, óleo de urucum e carne de caranguejo para deixar o pirão mais saboroso”, revela. Outro segredo diz respeito à técnica para matar os caranguejos. “Não se deve cometer o erro primário de, simplesmente, jogá-los vivos em panela de água fervente, pois isso provoca a queda das patas”, aconselha. Para matar, o ideal é colocá-los, ainda vivos, em um saco plástico por duas horas no freezer. E só depois realizar a limpeza, com eles em estado de letargia; em

seguida, finalmente matá-los da forma clássica, com a ponta da faca. Fora esses cuidados, para manter a tradição africana, é preciso colocar a panela de barro escavada no chão. Daí vem o nome caranguejada à moda de Bissau, que faz o sucesso do delivery do Acaçá – Cozinha Encantada, serviço de entrega em domicílio de comida afro, criado por Carmen Virgínia – enquanto não concretiza o sonho de abrir o próprio restaurante.

onde encontrar Restaurantes que servem caranguejo

Acaçá (Carmem Virgínia) Informações e encomendas: (81) 8705.0399 e (81) 3449.0425

Bodega do Barão Rua Raimundo Freixeiras, 68, Casa Forte. Informações: (81) 3034.6882

Guaiamundo Estrada do Encanamento, 1580, Casa Forte. Informações: (81) 3269.0787

continente FEVEREIRO 2013 | 67

Cardapio_FEV Caranguejo.indd 67

22/01/2013 11:09:56


imagens: reprodução

Sonoras

1

satwA O estopim para uma nova era

Há 40 anos, era lançado o disco que desencadearia um dos mais criativos movimentos musicais do Recife, capitaneado por Lula Côrtes e Lailson de Holanda texto Marcelo Abreu

Quando o músico e cartunista Lailson de Holanda Cavalcanti, então com 19 anos, conheceu o também multiartista Lula Côrtes, de 23 anos, na Feira Experimental de Música de Nova Jerusalém, no final de 1972, a identificação musical entre os dois foi imediata. Além da amizade, o resultado do encontro seria concretizado alguns meses depois com o lançamento do disco Satwa, em fevereiro de 1973. Composto, gravado e prensado no Recife, de forma independente, Satwa tornouse, há exatos 40 anos, o precursor de um movimento musical gerado na cidade, que acabou resultando em alguns dos discos mais importantes da música brasileira dos anos 1970,

continente fevereiro 2013 | 68

Sonoras_FEV.indd 68

22/01/2013 14:44:42


Gravado em duas semanas nos estúdios da Rozenblit, no Bairro de Afogados, Satwa foi feito de forma independente e tem um clima viajandão, de improviso sem limites. “Cada vez que a gente tocava era uma variante, a mesma canção, mas não do mesmo jeito, porque a proposta era muito essa coisa fluida do zen”, lembra o cartunista.

UNDERGROUND

2

1-2 lula côrtes Compositor, com o seu tricórdio, instrumento que marcou o Satwa

com trabalhos de nomes como Zé Ramalho, Marconi Notaro, Flaviola e da banda Ave Sangria. Os álbuns, gravados entre 1972 e 1974, tornaram-se, ao longo dos anos, itens de colecionador, raridades para uns poucos conhecedores da cena local. Recentemente, porém, alguns deles voltaram às prateleiras das lojas, nos formatos de CD e vinil, com capas originais, através de um selo inglês chamado Mr. Bongo, que comprou o catálogo da antiga gravadora pernambucana Rozenblit, na qual foram feitas as gravações. Com o tempo, a música do período, rotulada hoje no exterior como “folk psicodélico brasileiro”, passou a atrair a atenção de um público alternativo, interessado em curiosidades musicais, nos Estados Unidos e na Europa, fenômeno que vem incluindo, nos últimos 15 anos, bandas como Os Mutantes e até gente da bossa nova como Marcos Valle e Joyce.

Nos anos 1970, foi Satwa que desencadeou o processo. Na época, Lula Côrtes havia voltado de uma viagem ao Marrocos, onde comprara um instrumento exótico de três cordas, do qual não sabia nem o nome. Ele e Lailson passaram a chamálo de tricórdio ou cítara marroquina. Começaram a improvisar juntos, na casa de Lula, no Bairro do Monteiro. Lailson descobriu por lá um violão folk de 12 cordas, e passou a usá-lo para acompanhar Lula no tricórdio. Foram surgindo as primeiras composições influenciadas pelo rock da época, pelas raízes nordestinas e por elementos da contracultura que iam do psicodelismo ao misticismo oriental. A palavra satwa, por exemplo, em sânscrito, significa o terceiro aspecto da realidade, em que o divino se encontra com a matéria, de forma harmônica. Os títulos das músicas dizem muito sobre o clima do disco. Blues do cachorro muito louco, Allegro piradíssimo e Valsa dos cogumelos são algumas delas. Originalmente, algumas canções tinham letras, mas, para evitar problemas com a censura, decidiram gravar somente a parte instrumental. “O disco em si é uma porra-louquice muito grande. Ele só ficou compreensível muitos anos depois, quando aconteceram coisas como a world music”, diz hoje Lailson.

Costuma-se afirmar que o trabalho de Lailson e Lula teria sido o primeiro disco independente gravado no Brasil. A primazia é contestada por alguns e difícil de ser estabelecida com segurança, mas isso pouco importa. O fato é que ele se insere perfeitamente dentro da cultura alternativa dos anos 1970 como um típico produto da época. É aquele tipo de trabalho musical feito num estúdio por alguns músicos cabeludos cheios de idealismo, que pegaram as mil cópias do LP pronto, colocaram debaixo do braço e saíram vendendo a amigos em casas, bares e em algumas poucas lojas. Tudo fora do esquema das grandes gravadoras que dominavam o mercado. Logo depois de Satwa, foram gravados no Recife, já com a chancela da Rozenblit, o disco de Marconi Notaro, que se chamou No sub-reino dos metazoários e o de Flaviola, intitulado Flaviola e o Bando do Sol. Lula Côrtes esteve envolvido em quase todos os trabalhos da turma, produzindo e tocando o seu tricórdio. Ele costumava especular que a semelhança entre o som do instrumento e a viola nordestina se devia à influência dos mouros na Península Ibérica e depois no Nordeste brasileiro. O guitarrista Ivson Wanderdey, o Ivinho do Ave Sangria – e que viria a gravar um disco solo ao vivo no Festival de Montreux, na Suíça, em 1978 – também fez suas participações nos discos dos amigos. Juntos, eles formam a chamada geração do Beco do Barato, espaço de shows alternativos que funcionava na Avenida Conde da Boa Vista e reunia a moçada hippie. Mas foi com Paêbirú – caminho da montanha do sol, lançado em 1975 numa parceria de Lula Côrtes com o paraibano Zé Ramalho, que o movimento atingiu seu momento

continente fevereiro 2013 | 69

Sonoras_FEV.indd 69

22/01/2013 14:28:03


Foto: arquivo pessoal lailson

contrato com a gravadora Continental. Os rapazes da Vila dos Comerciários, na zona norte do Recife, foram gravar no Rio de Janeiro e hoje são reverenciados por muitos pelo disco homônimo, conhecido por músicas como Seu Waldir e Lá fora. Sem nunca ter sido lançado oficialmente em CD, (apenas houve um relançamento em LP no fim dos anos 1980), o disco também virou cult. O jornalista Marco Polo Guimarães, então cantor e líder da banda, diz que se espantou ao ver a moçada cantando as músicas do Ave, num show recente que fez em São Paulo. “Foi de arrepiar”, conta.

FORA DO BRASIL

Sonoras 3

mais marcante. Inspirado nas lendas indígenas da Pedra do Ingá, na Paraíba, o disco conceitual de Lula e Ramalho é típico da música underground da primeira metade dos anos 1970. Suas canções trazem letras que exploram o misticismo pagão da pré-história brasileira, acompanhadas por instrumentos como flautas, percussão, cordas e efeitos sonoros, criando um clima experimental. Além de Ramalho e Lula, o disco reúne dezenas de nomes promissores da música da Paraíba e de Pernambuco na época. Os quatro lados do LP duplo levam os nomes dos elementos básicos da natureza: terra, ar, fogo e água. As imagens sonoras são fortemente influenciadas pela contemplação das inscrições misteriosas na pedra e pelo consumo de maconha e cogumelos. Do ponto de vista conceitual, o universo explorado em Paêbirú se assemelha à tendência do rock internacional, na época, de pesquisar fusões com músicas regionais e explorar, na temática, correntes místicas alternativas. Portanto, nada de muito novo, mesmo naquele tempo. Talvez seja a história atribulada do disco um dos fatores que possam explicar o prestígio que ele tem

O relançamento de Satwa e No sub-reino dos metazoários têm agora mais alcance no mercado internacional hoje em dia. Das 1.300 cópias feitas, cerca de mil se perderam na própria gravadora, duramente atingida pela grande enchente de 1975. Com as águas, foi encerrado precocemente o ciclo pop na Rozenblit, apesar de continuarem existindo bandas na cidade. As cópias que sobraram ajudaram a criar a aura em torno do disco. Ele entrou para a história até mesmo por ter sido renegado, posteriormente, por Zé Ramalho, que se recusa a falar sobre o trabalho. Lula Côrtes partiu para outros projetos, na música e nas artes plásticas e Paêbirú ficou esquecido, até que virou item de colecionador, chegando a ser o disco brasileiro mais caro no mercado de raridades. Com os lançamentos da Rozenblit, o meio musical começou a perceber que algo interessante estava acontecendo no Recife. Foi quando a banda Ave Sangria conseguiu um

Nos anos 1990, começou na Europa o interesse por música pop de países periféricos como o Brasil. Satwa e No reino dos metazoários foram relançados pela pequena gravadora Time-lag, do Maine, nos Estados Unidos, em 2004, em edição limitada. Mas, agora, os relançamentos da inglesa Mr. Bongo têm mais alcance e são vendidos também no Brasil. O inglês David Buttle, dono do selo especializado no resgate de filmes e discos cult, morou nove meses na Bahia. Ele conta que descobriu o acervo da Rozenblit quando ouviu, por acaso, uma versão pirata de Paêbirú, lançada na Alemanha. Buttle comprou todo o catálogo da gravadora, que inclui discos como Grande liquidação, de Tom Zé, e Rosa de sangue, do próprio Lula Côrtes. O selo pretende continuar colocando preciosidades locais no mercado. Um de seus primeiros lançamentos foi a coletânea Psychedelic Pernambuco, álbum duplo que reúne as figuras mais badaladas do movimento e também nomes que surgiram no período, como Geraldo Azevedo e Alceu Valença. “A coletânea abriu os olhos de muitos estrangeiros que não conheciam o som de Pernambuco”, diz David Buttle. Os LPs têm sido relançados em vinil de 180 g, o que dá mais fidelidade ao som. Um cuidado especial foi tomado com as capas dos discos, que reproduzem as embalagens originais e os encartes, o que se torna um atrativo a mais para aqueles que compram as versões em vinil.

continente fevereiro 2013 | 70

Sonoras_FEV.indd 70

22/01/2013 14:28:04


fotos: divulgação

porto digital

3 lailson Parceiro de Lula Côrtes no Satwa 4 a 6 psicodelismo Clássicos do rock pernambucano voltam ao mercado david buttle 7 Produtor promove relançamentos no exterior

4

5

6

PSICODELIA

Sobre o rótulo de música psicodélica, tomado emprestado da contracultura norte-americana para descrever o som feito no Recife, Marco Polo, do Ave Sangria, lembra que, na época, ninguém usava essa definição, termo mais apropriado para nomes como Jimi Hendrix e Pink Floyd. Mas também não se incomoda. “Não aceito nem rejeito o rótulo”, diz. Já Lailson afirma que o termo se adapta bem porque retrata toda uma cultura de expansão da mente que vigorava entre os músicos.

7

A cena local, nos anos 1970, projetou nomes como Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Zé Ramalho para todo o país. Também da época são os guitarristas Robertinho do Recife e Paulo Rafael e o instrumentista e produtor Zé da Flauta. Mas muitos talentos não tiveram a mesma continuidade na música. Lailson enveredou pelas artes gráficas, tornando-se um dos melhores chargistas da história de Pernambuco e só retomando a música nos anos 1990, nas horas vagas. Marconi Notaro, que acabou se dedicando mais à poesia, morreu em 2000. Flávio Lira, o Flaviola, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalha com produção musical. O Ave Sangria teve problemas com a censura e se desfez após um primeiro disco muito promissor. Lula Côrtes seguiu pintando, escrevendo poesia e fazendo música até sua morte, em 2011. Mas teve uma divulgação precária para muitos de seus trabalhos. Perguntado sobre o motivo da parceria com Lula em Satwa não ter gerado outros frutos, Lailson atribui o fato aos muitos outros projetos do amigo: “Lula era um talento gigantesco que

nunca foi reconhecido na sua grande dimensão, mas também porque ele era feito macaco louco, pulava de um galho para o outro, fazia muita coisa”. Há poucos anos, lendo uma resenha sobre Satwa, publicada na Grécia, Lailson finalmente descobriu o nome do tricórdio marroquino de Lula Côrtes, que se tornou um dos símbolos do movimento. Trata-se de um gimbri (também chamado de sentir ou hadjouj), instrumento usado na música do norte da África. “Não sei se Lula usava a afinação certa, mas isso não tem a menor importância. Com ele, criamos um som diferente, um encontro entre duas culturas.” Sobre a volta, agora, de discos lançados de forma despretensiosa há quatro décadas, Laílson utiliza uma metáfora bem no clima da contracultura: “É como os círculos formados por uma pedra que cai na água. A pedra vai ampliando o círculo até que ele volta para a praia. Satwa, para mim, é isso, de vez em quando chega mais um círculo. É gratificante ter feito uma coisa pela qual as pessoas se interessam até hoje”

continente fevereiro 2013 | 71

Sonoras_FEV.indd 71

22/01/2013 14:28:07


Foto: DIVULGAÇÃO

Sonoras PUBLIUS Uma fonte sonora que nunca seca

Após anos trabalhando como instrumentista e compositor, artista lança Solo, primeiro CD individual que comprova a força da música pernambucana texto Débora Nascimento

Publius faz parte de uma nova

geração de (ótimos) músicos pernambucanos que, apesar de jovens, estão desbravando seus caminhos há um bom tempo, seja como compositores escondidos em faixas de artistas mais conhecidos ou como instrumentistas ofuscados pelo coletivo de uma banda. Após

ter colaborado com os cantores Geraldo Maia, Gonzaga Leal, Tonino Arcoverde e Mônica Feijó, e integrado grupos como o Rabecado, Fim de Feira, Azabumba, Mula Manca e a Triste Figura, Baião Polinário, Publius lança agora seu primeiro disco individual, Solo, com apoio do Funcultura.

Nele, o compositor de 37 anos apresenta, em generosas 14 faixas, todo o conhecimento que adquiriu ao longo dessas duas últimas décadas dedicadas à música, principalmente voltadas a tocar instrumentos de cordas, como violão, violão de 12 cordas, bandolim e guitarra base, os quais empunha agora no disco. A sonoridade de Solo é repleta de influências do rock pernambucano dos anos 1970 (Ave Sangria, Lula Côrtes, Alceu Valença), do Pink Floyd (principalmente da fase com Syd Barrett), do Clube da Esquina e um pouco de choro e jazz. Tudo isso envolto em citações e timbres sutis que não deixam espaço para pastiches. As músicas tiveram como embalagem arranjos bem intrincados, realizados de forma coletiva e tendo como diretor musical Pierre Leite, que também tocou teclados e monotron. O disco foi gravado entre janeiro de 2009 e março de 2012, tendo a participação de um exército de músicos locais, como Júnior Areia (baixo), Mozart Ramos (flautas transversais), Will Bantus (saxofone), Júlio Lima, Breno Lira e Alex Mono (guitarras), Hidemburgo (trompete), Christiano Lemgruber (bateria), Hugo Linns (baixolão), Bruno Vinezof (caxixis), Júlio César (acordeom), Tomaz Alves, Lara Klaus, Tomás Melo, Rachel Bourbon e Eric Gabínio (voz e backing vocals). Dentre os destaques de Solo, cuja masterização foi realizada pelo aclamado Carlos Freitas, no estúdio Classic Master (SP), estão as belíssimas Saudade, Destino, Lembrar de si e a faixa-título – a propósito, além de compositor, Publius se revela um intérprete perfeito para suas canções. Ele assina boa parte delas sozinho, com exceção de Aqui, O tempo e Pirâmides, essas com Juliano Holanda – que tocou guitarra no disco e é também um dos importantes nomes dessa nova geração de instrumentistas, junto com Joaquim Izidro, coautor de Medo. O lançamento de Solo é uma prova de que a música pernambucana não para de surpreender. É uma fonte que, para nossa sorte, promete nunca secar.

continente fevereiro 2013 | 72

Sonoras_FEV.indd 72

22/01/2013 14:28:09


INDICAÇÕES REGIONAL

DONA GLORINHA DO COCO Dona Glorinha do Coco Independente

Integrante do Coco do Amaro Branco e uma das mestras mais velhas da comunidade, Dona Glorinha traz, em seu primeiro trabalho solo, 13 canções, de sua autoria e de domínio público. O disco é dedicado à mãe da coquista, Maria Belém, uma das fundadoras do folguedo Acorda Povo e à sua avó, uma ex-escrava do século 19. Equivalente a um documento, o CD simboliza os valores que motivam o trabalho de Dona Glorinha como herdeira e memória viva da tradição do coco de roda cantado na beira da praia.

MPB

LUÍSA MAITA Lero-Lero Selo Oi Música

Vencedora do Prêmio da Música Brasileira 2011 na categoria Artista Revelação, Luísa Maita bebeu da fonte de ritmos genuinamente brasileiros, em seu disco de estreia. Com um canto de sereia, a também compositora e intérprete paulistana passeia pelo samba, coco, bossa nova e baião entre tantas outras influências, de forma contagiante e despojada. Destaque para a faixa que dá nome ao disco, além de Desencabulada, Alento e Fulaninha, esta última com Siba na rabeca.

MPB

R&B

Selo Passadisco

voltou a circular na mídia por conta de sua participação no superdisco Plastic beach, do Gorillaz. Agora, o líder deste projeto musical, Damon Albarn, foi responsável por incentivar Womack a lançar seu 27o disco de inéditas, após um jejum de 13 anos. No CD, o cantor de 68 anos mostra por que ainda é uma das maiores vozes da música americana. Dez das 11 faixas foram compostas em parceria com Harold Payne, Richard Russell e Albarn, que assinou os arranjos e a produção.

ANASTÁCIA Bobby Womack RODRIGUES, SÔNIA The bravest man SINIMBÚ, CLÁUDIA in the universe XL BEIJA E ANGELA LUZ Quando a canção acabar Em 2010, o nome de Bobby Womack Concebido pelo cantor Gonzaga Leal, Quando a canção acabar é um mosaico interpretativo das vozes femininas do Recife. As cantoras assumem um repertório assinado por nomes como Noel Rosa, Robertinho do Recife, Marco Polo, entre outros. Quatro vozes de timbres, influências e extensões distintas interpretam três músicas cada uma e se juntam na última faixa que nomeia o álbum.

New Netherlands Orchestra divulgação

música do brasil na terra de nassau

Criada em 2011 pelo maestro carioca Laércio Diniz, a New Netherlands Orchestra, que reúne instrumentistas da Orquestra Filarmônica da Rádio Netherlands, tem como bandeira o intercâmbio musical entre Brasil e Holanda. Filho de pai

pernambucano e ex-violinista, Diniz iniciou a carreira de regente em 2005 e, por meio de sua privilegiada condição de artista exclusivo de uma empresa, algo raro em nosso país, o maestro tem seu cachê e suas despesas logísticas pagas por

uma companhia de seguros, mediante o convite de qualquer orquestra interessada. Já na Holanda, onde ativou a NNO em dezembro de 2011, o patrocínio rendeu a gravação do primeiro DVD do grupo, cujo repertório consta de quatro peças: No reino da pedra verde, primeiro movimento das Três peças nordestinas de Clóvis Pereira; a Introdução da 4ª Bachianas brasileiras de Villa-Lobos (sem o da capo que a partitura indica); o Concerto para oboé e cordas em ré menor, op. 9 do italiano Tommaso Albinoni, com a participação do solista Martin Dekker; e a Serenata para cordas de Antonín Dvorák, que ocupa mais da metade do concerto. O lançamento do DVD, em novembro passado, marcou a inauguração do Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura do Shopping RioMar,

e contou com a Orquestra Filarmônica do Brasil no lugar do conjunto holandês, embora um projeto futuro seja o de trazê-lo ao Recife. O programa da apresentação foi substancialmente diferente daquele da gravação, mas serviu para mostrar os compositores que estão sendo trabalhados no momento pelo maestro, como Elgar, Respighi, os brasileiros Luís Soler e Álvaro Matos Vieira, e Vivaldi, cujo Concerto para flautim em dó maior teve James Strauss como solista – flautista pernambucano que participou, em 2012, da Mimo e da gravação de um CD em que Diniz rege a Orquestra Sinfônica Nacional da Lituânia, ainda inédito. Toda a renda do DVD da NNO será revertida para o Lar Fabiano de Cristo. CARLOS EDUARDO AMARAL

continente fevereiro 2013 | 73

Sonoras_FEV.indd 73

22/01/2013 14:28:14


ORLEY MESQUITA Longos percursos em torno do sol da poesia

Cepe lança coletânea, organizada pelo professor Anco Márcio Tenório, que oferece um quadro amplo e historicamente situado da obra do poeta TEXto Fábio Andrade

Leitura A Companhia Editora de Pernambuco

acaba de lançar Poesia e prosa, volume de poemas de Orley Mesquita, organizado, prefaciado e comentado pelo professor Anco Márcio Tenório Vieira. Poeta que correu sempre por fora, num circuito admirado mais pelos amigos – que tinham acesso aos seus versos e poemas – do que por um público amplo, Orley aparece nessa coletânea como um poeta que tentou construir sua própria voz sem se esquivar, porém, do diálogo com os caminhos que a poesia em geral foi tomando ao longo da segunda metade do século 20. Uma das qualidades dessa edição é a organização temporal da obra. Os poemas estão dispostos cronologicamente, dentro dos conjuntos que compõem seus livros. Informações nas notas de rodapé, por exemplo, indicam mudanças efetuadas pelo próprio poeta nas versões diferentes que publicou de muitos de seus poemas. Isso tudo oferece um quadro amplo e historicamente situado ao leitor. A edição nos traz, inicialmente, poemas que foram publicados na revista Clave: caderno de poesia. Nela, em 1965, dividiu a publicação, que tinha o subtítulo de 3 poetas do Recife – e ilustrações de Reynaldo Fonseca, João Câmara e Anchises Azevedo – com outros dois poetas seus amigos:

Everardo Norões e Esman Dias. Após essa coletânea, seguiram-se os livros Orley (1967), O vocábulo das horas (1979) e Poemas em preto e branco (1981). A isso se resume a obra de Orley Mesquita publicada em vida: uma coletânea e três livros de poemas, além de um ou outro texto em jornais e revistas.

LÍRICO

Os poemas de Orley Mesquita são passeios por grandes temas da tradição lírica – o amor, a morte, a solidão e a efemeridade da vida – tratados com sobriedade e plasmados por uma sensibilidade rigorosa. Tão rigorosa, que foram escasseando e o poeta publicou cada vez menos, o que pode explicar inclusive seu caráter quase bissexto. O clichê é a armadilha de todo poeta que se assume essencialmente como um lírico. De todo poeta que busca implodir o lugar-comum da reflexão existencialista e do sentimento. Proponho um trocadilho para entender onde a poesia de Orley Mesquita pode nos parecer datada: houve pouca prosa na poesia e pouca poesia na prosa. Na parte composta pelos livros inéditos, na qual encontramos Os passos da morte (relatos), temos poemas em prosa que não alcançam, na maioria, a mesma qualidade poética dos versos. Os brinquedos, por exemplo, é um dos

“relatos”, como os chama o poeta, totalmente dispensável. Orley aspirou a produzir poemas de força telúrica em que uma imagem transcendental de poesia, enraizada no cotidiano, articulou-se como a experiência não de um, mas de todos. Um espelho em que, nos seus melhores momentos, nós nos vemos também nele refletidos: “Esta visão de ti / que o dia aceita, / à noite, em meu olhar; / mal se sustenta. // Fica um resto de dor/ por sobre a mesa / onde a sombra do mito / se alimenta. // O vinho que se junta / ao lume da fadiga / nem sequer embriaga. / Mas deixa nesta mesa / um tom em névoa / que, disperso, se apaga”. A condição não ideal do amor, que muitas vezes se distancia de nossa experiência do amor, mas o que nele se dissipa, quando o amor nos abandona. Os amores todos de que nos fala sua lírica são amores passageiros, e que acabam permanecendo pelas mãos da poesia que os retrata. Esse mesmo transcendentalismo pode, vez ou outra, cair nas malhas de um peso inexpressivo – ou da gordura, para usar um termo do poeta americano Ezra Pound – como é o caso de Espelho: “O que tens de melhor foge do teu olhar para o estranho espelhado em que te transfiguras: sol moreno de gozo, luz pejada de aromas, mel dulcíssimo de divinas entranhas”. Nada de novo se

c o n t i n e n t e F E V E R E I R o 2 0 1 3 | 74

Leitura_FEV.indd 74

22/01/2013 11:13:07


reprodução

1 orley mesquita Sua obra circulou entre um grupo mais restrito, ficando distante do grande público

1

revela nessas linhas pesadas de ritmo convencional e imagens quase kitsch: sol moreno e luz pejada de aromas. Mas esses momentos, felizmente, são raros na poesia de Orley. O traço de metapoesia que se insinua em seus textos é notável: “Se não me engano, / poesia é fogo-fátuo. / Se me enganas, / é fogo-morto. / Se a escrevo, / é sofrimento, gozo / Orgasmo”. Além disso, quando sua poesia assume radicalmente a corporeidade do amor, adquire um tom de poesia latina clássica em sua forma epigramática,

como é o caso de Videotape: “Uns caçam. / Outros, consomem. / No vídeo, o produto é barato e convincente. / Concentro-me no visgo descartável / do lenho duro a vã semente”. Um aspecto importante da coletânea é apresentar o trajeto particular do poeta dentro de um movimento maior que foi o da poesia no século 20. O seu início nos anos 1960, com um caráter transcendental forte, numa dicção comum a muitos poetas da nossa chamada geração 65. Nos anos 1980, assistimos à sua poesia investir-

se de uma dicção menos “clássica”, digamos assim, aderindo mais ao ritmo dos anos que ficaram marcados pela chamada poesia marginal. Há, então, nesses poemas uma leve prosaicização de sua voz, como se lê em Não adianta: “Não adianta maquilar o poema. / Para tanto ele não se presta. / Nem adianta apelar para / coração, amor, inspiração. // De nada serve esmurrar a parede, / fazer acrobacias, ter enfarte; / Há os que dizem: a arte tudo imita etc... etc... / E o poema? / Algumas vezes mineral; / outras, alcalina; / gelo; chuvisco; / pedra que irrompe e floresce; / ou, quem sabe, nada disso”. E, nos anos 1990, e parte dos anos 2000, uma espécie de retorno do transcendente em dicção econômica, elíptica, parece sinalizar traços do hermetismo poético comum à parte da poesia brasileira dessa época. A impressão que fica ao ler essa nova coletânea de Orley Mesquita é que os poetas orbitam sempre as questões que nos tiram o sono: o desaparecimento de quem está do nosso lado, o medo de amar miragens que se dissipam no movimento da vida e de descobrir-se também “névoa”. Mas a cada um cabe um movimento longo, amplo e rico; ou um movimento acanhado e sem expansão. Ele pertence ao primeiro grupo, juntamente com Mauro Mota, Joaquim Cardozo e alguns outros poetas de longos percursos em torno do sol da poesia. Ampliando a maneira como os leitores veem e sentem a si mesmos.

Poesia e prosa ORLEY MESQUITA Cepe Coletânea, organizada cronologicamente, apresenta o trajeto do autor dentro da poesia do século 20.

continente FEVEREIRo 2013 | 75

Leitura_FEV.indd 75

22/01/2013 11:13:10


PÁVEL FLORIÊNSKI Uma janela para a compreensão da arte

1 pável floriênski Autor russo pintado por Mikhail Nesterov

É lançada no Brasil A perspectiva inversa, primeira tradução para o português de uma obra do filósofo e teólogo russo, na qual analisa as representações sob o aspecto histórico texto Josias Teófilo

Leitura No filme Nossa música, Jean-Luc

Godard – interpretando a si mesmo – conta a história de Bernadette, jovem pobre e fisicamente frágil de Lourdes, cidade da região montanhosa da França, que, aos 14 anos, diz ter visto as aparições da Virgem Maria numa gruta. Depois de entrar para o convento, a madre superiora e o bispo perguntam como ela é, ao que Bernadette diz não saber descrever. Eles lhe mostram, então, reproduções de grandes pinturas religiosas, as Madonas de Rafael, Murilo etc., e Bernadette diz: “Não, não é ela”. Até que aparece a Virgem de Cambrai, um ícone. Ela se ajoelha e diz: “É essa, Monsenhor”. Godard conclui, sobre o ícone: “Sem movimento, sem profundidade, nenhuma ilusão. O sagrado.” A história, verídica, apropriada por Godard do relato de André Malraux a Picasso, registrada no livro La tête d’obsidienne, mostra o poder transcendente dessa antiquíssima de representação religiosa, o ícone. É exatamente tal forma de arte e suas dinâmicas internas que Pável Floriênski trata no livro A perspectiva inversa, lançado pela primeira vez em português, numa tradução direta do russo, feita por Anastassia Bystsenko e Neide Jallageas – esta última autora

Autor russo parte do uso da perspectiva linear para compreender uma postura do homem a partir da modernidade também da apresentação e da nota biográfica do livro (vide entrevista). O livro é, também, a primeira tradução para o português de uma obra do matemático, teólogo, físico, geólogo, historiador da arte e padre ortodoxo russo Pável Floriênski, morto num campo de concentração soviético aos 55 anos. Essa multiplicidade de saberes dá a Floriênski uma visão privilegiada do seu tema, a saber, a representação do espaço na perspectiva inversa e na perspectiva linear, e a visão de mundo, por assim dizer, que essas duas formas de representação acarretam. Floriênski descreve como aquele que vê um ícone pela primeira vez pode se espantar com as peripécias das construções ali representadas. A forma como a realidade é representada se opõe tão fortemente à perspectiva linear – já conhecida desde a antiguidade, na cenografia

teatral especialmente –, que não pode ser considerada somente uma ignorância do desenho. Não só isso: aqueles ícones que, de alguma forma, apresentam certa semelhança com a perspectiva linear são os menos belos e os menos interessantes. Ele pergunta: “Será verdade que a perspectiva (linear) expressa a natureza das coisas, como pretendem seus adeptos, e por isso deve sempre e em qualquer lugar ser considerada a premissa incondicional da veracidade artística?”. Para responder à pergunta, Floriênski recorre à História: ele quer entender até que ponto, historicamente, representação e perspectiva linear são inseparáveis. A explicação para a introdução da perspectiva linear na arte moderna, surgida a partir do Renascimento, pode ser resumida nesse trecho: “Quando a estabilidade religiosa se desintegra da concepção do mundo e a metafísica sagrada da consciência comum é corroída pelo ponto de vista particular do juízo individual, e, mais do que isso, de um ponto de vista particular de um determinado momento histórico, é que surge uma perspectiva característica para essa consciência individual isolada”. É possível notar que a abordagem de Floriênski é verdadeiramente

continente FEVEREIRo 2013 | 76

Leitura_FEV.indd 76

22/01/2013 11:13:10


reprodução

da verdadeira Cultura”, cujas origens estão na verdadeira Antiguidade.

HERANÇA

1

ampla, e parte do uso da perspectiva linear para compreender uma postura do homem a partir da modernidade. Isso fica ainda mais claro no trecho que se segue: “O páthos do novo homem reside em desprenderse de qualquer realidade, para que o ‘eu quero’ dite as leis sobre uma realidade recém-construída, fantasmagórica, embora encerrada em traços quadriculados”. Ou seja, a critica de Floriênski se dirige a todo um caminho que tomou a cultura ocidental europeia,

caminho que levou o homem a deixar de representar a realidade como um símbolo, aquilo que faz o ícone, e passar a representá-la de maneira esquemática, com a perspectiva. Ele contrapõe o homem antigo e medieval ao homem moderno, que busca, segundo ele, “apagar da alma humana as escritas da história” e, como resultado, “acaba rompendo a própria alma”. Nesse contexto, é natural uma revalorização da Idade Média por Floriênski. Segundo ele, nesse período, “flui um rio caudaloso

Num outro ensaio de Floriênski, sobre o Mosteiro da Trindade, ainda não traduzido para o português, ele atribui um papel grandioso para a cultura russa, que é o de herdeira legítima da Grécia antiga, tendo Bizâncio como intermediário. Ele contrapõe essa herança legítima da cultura russa, caracterizada pela harmonia helenística, à herança ilegítima do renascimento italiano, caracterizado pela imitação exterior. O texto se chama O mosteiro da Trindade de São Sérgio e a Rússia, e trata da importância desse monumento, que Floriênski considera a enteléquia da Rússia, ou seja, a sua realização final. “Todo o resto, ele diz, são confins e província, no Mosteiro da Trindade sente-se a Rússia como um todo.” Lá no mosteiro, foi pintada a célebre Trindade, ícone mais famoso da tradição russa, de Andrei Rublióv – que ilustra a capa do livro recém-lançado no Brasil. É Andrei Rublióv o ponto de convergência entre Floriênski e outro importante russo do século 20, Andrei Tarkóvski, que em 2012 faria 80 anos. O cineasta fez seu segundo e mais importante filme sobre o pintor de ícones do século 15. Naturalmente, a obra de Pável Floriênski foi referência fundamental, que ele cita diversas vezes – só nos seus Diários, por exemplo, foram três citações. De fato, Tarkóvski atualiza, no cinema, aquele tipo de arte de que fala Floriênski, pura e metafísica, ou, nas palavras do próprio cineasta, a arte como um hieróglifo da verdade. O livro A perspectiva inversa é importante para compreender não só a arte medieval e as origens da arte russa, como a obra fílmica de um dos maiores autores do cinema.

A perspectiva inversa Pável Floriênski Editora 34 Livro propõe um olhar sobre os ícones e suas dinâmicas internas.

continente FEVEREIRo 2013 | 77

Leitura_FEV.indd 77

22/01/2013 11:13:12


Paulo Angerami /divulgação

Leitura

Entrevista

NEIDE JALLAGEAS “Tarkóvski me levou a Floriênski” Neide Jallageas acaba de lançar pela Editora 34 a primeira tradução para o português de uma obra do filósofo e teólogo russo Pável Floriênski, realizada em parceria com Anastassia Bytsenko. A tradução de A perspectiva inversa, diretamente do russo, aparece num momento em que o mercado editorial brasileiro recebe um grande número de publicações de autores russos, não só na literatura, mas também no cinema, especialmente do cineasta Andrei Tarkóvski. Floriênski foi um dos autores que mais influenciaram Tarkóvski. Sobre essa relação, a tese de doutorado de Neide Jallageas é referência, e trata da perspectiva inversa como procedimento na construção do cinema de Tarkóvski. CONTINENTE De onde partiu a ideia de traduzir A perspectiva inversa? NEIDE JALLAGEAS Da necessidade de checar se o que eu havia traduzido, cotejando do italiano, do espanhol e do inglês, correspondia ao texto russo. Utilizei o texto integral em minha tese de doutorado. Quando traduzia a partir

dessas outras versões, notei algumas diferenças, como trechos inexistentes em uma e existentes em outras. Hoje, sei que a diferença pode ter surgido da escolha do texto original. CONTINENTE A que se deveram essas diferenças na original? NEIDE JALLAGEAS Se você tomar o texto editado pela Escola de TartuMoscou (Lotman e Cia), por exemplo, notará que há uma supressão. Cito isso na apresentação do livro. Essa foi a primeira edição publicada na Rússia (é de 1967, e o texto do Floriênski foi escrito em 1919...). Creio que haja diferenças em outras versões, até chegarmos na que pesquisadores mais recentes declaram ser a “final”. No que diz respeito a textos russos desse período, tudo estava “sob suspeita” e nunca temos certeza de qual é, de fato, o “final”. Com os textos de Eisenstein ocorre o mesmo. CONTINENTE O que a levou a estudar Floriênski para entender Tarkóvski? NEIDE JALLAGEAS Eu cheguei a Floriênski através de Tarkóvski e não o contrário. Ocorre que eu havia observado que alguns procedimentos utilizados pelo cineasta se aproximavam daqueles empregados por um pintor de ícones do período medieval. Explorei várias caminhos teóricos, vários autores, todos já conhecidos e bastante utilizados no campo do cinema. Posso dizer que

foi a persistência que me levou a Floriênski, mas, na prática, dois eventos definiram meu percurso. O primeiro foi o lançamento das “caixas” com os DVDs de Tarkóvski, principalmente com documentários preciosíssimos sobre o seu cinema. O segundo foi a mostra que ocorreu na OCA: 500 Anos de Arte Russa. Foi magnífico deparar-me com o contrarrelevo de Tátlin, no qual o espaço é explorado de forma tão excêntrica, e que fui descobrir da mesma forma que os ícones exploravam... Foi também Kandinski, outro grande mestre russo da pintura que me conduziu aos ícones e, por vias indiretas, a Floriênski. O ícone, enfim, representa o cosmos. Maliévitch entendia isso com seu quadrado negro. O cinema de Tarkóvski também. E o mesmo Tarkóvski fez um filme sobre Rublióv, outro grande mestre, e daí, em seu livro Esculpir o tempo, Tarkóvski cita Floriênski. Quis saber o que havia movido os maiores artistas do século 20 e que estava ancorado na arte medieval. Fui atrás. CONTINENTE Tarkóvski usa a perspectiva inversa como procedimento no cinema? NEIDE JALLAGEAS Pode-se dizer que sim, essa é a conclusão de minha tese, embora não só. Apenas a utilização da perspectiva inversa como procedimento no seu cinema seria impossível, pois a própria câmera é um objeto concebido, codificado e pronto para gerar imagens segundo a perspectiva linear. O mais incrível é a violação da perspectiva linear, o que ela representa. E como ele associa as perspectivas. E aí é que Tarkóvski, um russo, sagaz, sensibilíssimo e conhecedor extremo das tradições de seu país, e ainda da cultura universal, consegue atravessar para o outro lado. E, note-se, Tarkóvski pertence a uma geração que poderia ser considerada aquela do Homus soviéticus no sentido mais estrito do termo: nasceu em 1932, ano da implantação do realismo socialista e viveu sua infância, adolescência e juventude sob a cartilha de Stalin. Melhor exemplo de violação de um sistema não pode haver! JOSIAS TEÓFILO

continente FEVEREIRo 2013 | 78

Leitura_FEV.indd 78

22/01/2013 11:13:13


INDICAÇÕES CONTOS

EVERARDO NORÕES O fabricante de histórias Edições Muiraquitã

Já conhecido por suas incursões na poesia, Everardo Norões lança esse livro de contos, fruto do Prêmio Literário Cidade de Manaus. Apesar de muitas vezes se ambientar concretamente na cidade do Recife, a atmosfera dos textos nos situa num campo onírico, a exemplo do conto Na varanda, sobre o bulevar, também presente na Granta 10.

CRÔNICAS

CONTOS

Editora Universitária

Edith

CARNEIRO VILELLA Cartas sem arte Carneiro Vilella (1846-1913) não poupava uma alma sequer nas suas crônicas publicadas no Diario de Pernambuco e no antigo jornal A Província. Seu tom ácido provocava desconforto nos âmbitos da política, sociedade civil e igreja. O autor se alimentava da desaprovação alheia, que acabava virando tema para a produção do dia seguinte.

BIOGRAFIA

FELIPE ARRUDA Efeitos A princípio, para fins de catalogação, categorizado como um livro de contos curtíssimos, a obra do estreante Felipe Arruda talvez não tenha gênero tão definido assim. Composta de textos irônicos, metalinguísticos, com um distanciamento do real e forte apelo visual, o autor preferiu defini-los apenas como “efeitos”.

FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO Entre anjos e cangaceiros Escrituras

Fotógrafo autorizado de Lampião e secretário particular do Padre Cícero, o sírio Benjamin Abrahão foi o maior documentarista do cotidiano do cangaço. Neste trabalho, fontes inéditas são exploradas, contestando muitos conceitos sobre esses bandos que cruzavam o Nordeste nos anos 1930.

Gastronomia

A FARINHA DE MANDIOCA NO BRASIL HOLANDÊS Há um potencial sincrético, na farinha de mandioca, de reunir seus adjacentes em torno de algo em comum. Ela não existe por si só e apenas faz sentido no pote, dando consistência a alimentos dispersos, amorfos ou liquefeitos. Funciona como um alicerce, cumprindo – a princípio – uma necessidade orgânica de “sustento”, sem ser necessariamente objeto de fruição gastronômica. Alimento ou comida, essa é a distinção relativizada no livro Mexendo o pirão – importância sociocultural da farinha de mandioca no Brasil Holandês, de Adriano Marcena. O historiador explica como, antes da chegada dos europeus, a farinha típica já fazia parte do cardápio ameríndio; passando, em seguida, a constar na mesa dos colonos pobres; e como veio, enfim, a ser um dos produtos mais cobiçados da América Portuguesa, aparecendo nas refeições das elites que outrora a desprezaram. “A alimentação é um dos fatores determinantes nas sociedades em quaisquer tempo e espaço”, escreve Marcena, aludindo ao fato de que a alimentação, por ser a necessidade orgânica primordial do homem, é um elemento essencial para que possamos entender a dinâmica da História. ANDRÉ VALENÇA

continente FEVEREIRo 2013 | 79

Leitura_FEV.indd 79

22/01/2013 11:13:26


divulgação

Claquete

1

continente FEVEREIRo 2013 | 80

CLAQUETE_FEV.indd 80

22/01/2013 11:16:48


CAMILO CAVALCANTE O Sert茫o como territ贸rio da alma Reportagem da Continente visita o set de filmagem do primeiro longa-metragem do diretor pernambucano, A hist贸ria da eternidade TEXto Andr茅 Dib

continente FEVEREIRo 2013 | 81

CLAQUETE_FEV.indd 81

22/01/2013 11:16:51


Fotos: divulgação

Claquete

2

Santa Fé (PE) – Torrencial, a chuva

cai na noite escura do Sertão. De uma das casas, sai um homem transtornado, a passos firmes. Ele cruza a pequena vila em direção a um casebre, de onde arranca sua filha adolescente, desnuda, pelos cabelos. Ela implora por misericórdia. Do casebre, sai o tio, também sem roupas. Ele tenta amenizar a situação, mas termina por se tornar alvo de ódio e violência. O pai é Cláudio Jaborandy; a filha, Débora Ingrid; e o tio, Irandhir Santos. Estamos no set de A história da eternidade, primeiro longametragem de Camilo Cavalcante. O cenário se desenha sobre o chão arenoso, entre animais do semiárido e árvores de galhos secos. Sob a luz dourada de um fim de tarde, entre a equipe que se movimenta para começar mais um dia de trabalho, surge Camilo. Em seu rosto, o sorriso de satisfação por estar de volta ao universo que, na última década, o diretor pernambucano vem desenvolvendo, de maneira quase religiosa – o sertão como território da alma. O argumento de A história da eternidade nasceu há 10 anos, quando o diretor

No cinema de Camilo Cavalcante, pessoas são arquétipos, e ambientes se confundem com estados emocionais havia terminado o curta homônimo, rodado na Região Agreste do estado. Sem pressa, ele continuou a rodar seus curtas, pavimentando uma premiada carreira de 17 anos, que rendeu filmes como O presidente dos Estados Unidos (2007) e Ave-maria ou mãe dos sertanejos (2009). Em 2011, com R$ 1,7 milhões aprovados em editais do Ministério da Cultura e da Secretaria Estadual de Cultura, teve início a sua maior empreitada. “Os curtas me ajudaram muito. Não vejo o longa com um maior grau de importância. É uma outra etapa e a oportunidade de trabalhar com mais estrutura, equipe e técnicos para fazer a história acontecer”, diz o diretor. Camilo explica semelhanças e diferenças entre as duas “eternidades”.

“São dois trabalhos sinestésicos, mas diferentes entre si. O curta é todo feito com a câmera em movimento (em falso plano-sequência), enquanto o longa é composto por muitos planos fixos.” Outro ponto de contraste, diz o diretor, é que o curta tem mais experimentações, e o longa é linear, com uma narrativa em torno de “três improváveis histórias de amor que se cruzam no mesmo espaço, à beira do desespero”. Além de Irandhir, um dos atores brasileiros mais talentosos da atualidade, Jaborandy, que já trabalhou com Camilo em Rapsódia para um homem comum (2000), e Débora, revelada no curta cearense Doce de coco (2011), o elenco conta com Zezita Matos, Leo França e a paraibana Marcélia Cartaxo, a Macabéa de A hora da estrela (1985). A música original é composta por Dominguinhos. A montagem é de Vânia Debs. Rodado entre setembro e outubro de 2012, A história da eternidade pode ser considerada a primeira superprodução de Camilo Cavalcante, que, até então, primou por trabalhos artesanais. Para cumprir a meta de cinco semanas

continente FEVEREIRo 2013 | 82

CLAQUETE_FEV.indd 82

22/01/2013 11:16:53


3

1-3 mudança

O ator Irandhir Santos, durante o registro da cena que quebra os planos fixos da abertura do filme

2 NOTURNa A gravação do planosequencia descrito no início da reportagem foi uma das mais complexas

de gravação, foi necessário convocar uma equipe de profissionais cariocas que trabalhou em filmes como Tropa de elite e Faroeste caboclo (também gravado em Petrolina). O vento, relâmpagos e chuva artificiais foram produzidos por uma equipe paulista, responsável por efeitos semelhantes em filmes como Carandiru, Xingu e Os mercenários. Não raro, membros da equipe vestidos de roupa militar eram seguidos por cabras esfomeadas, gerando cenas, no mínimo, curiosas. “No nosso cinema, usamos o industrial para fazer o artesanal. Há o tempo da produção, mas a equipe também entra no tempo do local. Nada pode ser maior do que a emoção, que é o essencial”, conta Camilo. Os momentos mais complexos surgiram nas gravações noturnas, como a do plano-sequência descrito no início da matéria. A orquestração foi repetida uma dezena de vezes, câmera na mão do fotógrafo Beto Martins, até que, por volta das 2h da madrugada, se chegasse ao resultado pretendido. “Às vezes, para fazer uma única cena, é preciso administrar o caos”, comenta

o cearense Halder Gomes, diretor de cinema especializado em lutas, trazido por Camilo para coreografar a luta entre os irmãos. Ou a do ataque epiléptico de Joãozinho, entre relâmpagos provocados pelo veterano João Sagatio, que aplicou um maçarico sob placa de metal. Outro momento especial ocorreu uma semana antes, quando um trilho circular foi montado para girar em torno de Irandhir, um verdadeiro trabalho de engenharia, que representa o momento da mudança de sentimentos, após 50 minutos de planos fixos que abrem o filme. O mundo se move, por amor ou desejo. Ou gira ao contrário, em dor, a caminho da morte.

CÍRCULO DA VIDA

A pouco mais de uma hora ao norte de Petrolina, a locação em Santa Fé tem muito de especial. Nela, paira uma igreja, um cemitério, um bar e seis casas. A impressão é a de um local suspenso no tempo e no espaço, uma cidadela forjada em torno da simplicidade das coisas duras e belas. É a educação pela pedra, poema de João Cabral que foi inscrito no início do roteiro de A história da eternidade. Para que o cenário se feche em círculo, ao lado das casas, que já existiam no local, foram construídos três casebres de barro, levantados pela diretora de arte francesa Julia Tiemann. No centro da vila, foi construída a praça da TV. “Tem mais gente morta do que viva”, brinca Camilo, que aponta para as casas ao redor e explica quem mora onde.

Na casa maior, moram Nataniel (Jaborandy) e sua filha Alfonsina (Débora); ao lado esquerdo, mora Querência (Cartaxo), mulher amargurada, abandonada pelo marido após duas gravidezes malsucedidas; em frente, vive o sanfoneiro cego Aderaldo (Leo França), que pacientemente se aproxima de Querência através da música; ao lado direito, mora Joãozinho (Irandhir), irmão de Nataniel, o artista isolado e incompreendido pelos demais; e na frente da igreja vive a religiosa Das Dores (Zezita) e seu neto Geraldo (Maxwell Nascimento), por quem se apaixona. Imerso em sua “casa”, Irandhir fala sobre Joãozinho. “Encontrei o caminho para o personagem como um artista plástico que recolhe lixo da região e o transforma em objetos com os quais ensaia performances em casa, e apresenta do lado de fora. Outra característica é a de ser alvo do desejo da sobrinha, o que o leva do encantamento à debilidade física. Para isso pesquisei a vida de artistas epilépticos, como Machado de Assis e Vincent Van Gogh. Assim, Joãozinho busca na arte uma forma de lidar com a doença.” Em busca do tempo do filme, os técnicos de som Nicolas Hallet e Simone Dourado abriram mão do conforto do hotel em Petrolina para alugar uma casa em Pau Ferro, sem cobertura de telefonia móvel ou internet, na metade do caminho para Santa Fé. A dimensão do som, diz Nicolas, é dada pelo sanfoneiro, que

continente FEVEREIRo 2013 | 83

CLAQUETE_FEV.indd 83

22/01/2013 15:07:42


Fotos: divulgação

4 colaboração

Camilo Cavalcante dirigiu o ator Cláudio Jaborandy no filme Rapsódia para um homem comum (2000)

5 aproximação No filme, o sanfoneiro cego Aderaldo (Leo França) se liga a Querência (Marcélia Cartaxo) através da música 6 Relações familiares Alfonsina (Débora Ingrid) vive um romance com seu tio, o incompreendido Joãozinho (Irandhir Santos)

Claquete conduz a emoção do filme. “O Sertão tem um vento muito forte e isso vai aparecer bastante. A impressão é a de que o povoado é uma ilha isolada, no meio de um oceano de pedra.” Filho de sertanejos, o fotógrafo Beto Martins se criou na caatinga baiana, região bem próxima de onde agora assina seu primeiro trabalho em longametragem. Magro, de barbas longas e cajado na mão, para amenizar uma dor na coluna vertebral, ele incorporou o andarilho sertanejo, completamente integrado à caatinga. Em vez de usar o carro da produção, ele percorre a pé os três quilômetros até o restaurante improvisado, de dia, sem temer o Sol, e à noite, caminhando sob as estrelas. Ele conta que a luz definida com Camilo tem referências a pinturas da Idade Média, principalmente à de Caravaggio, mas também remonta às suas vivências. “Tivemos muitas discussões sobre a estetização da luz brasileira e nordestina, quis fugir disso. Quis imprimir a realidade daquilo que sempre vi, não fugir da sombra, usar lâmpadas domésticas, sem refletores. Nessa relação entre o claro e o escuro está a beleza e a tragédia que Camilo busca.” Mesmo sem querer, Beto corresponde ao conceito de A história da eternidade – o oroborus, a cobra que morde o próprio rabo. Mas ele não foi o único a retornar às origens. Diretora de produção, Stella Zimmerman foi criada em Petrolina. Ela vê mudanças na estrutura para receber produções cinematográficas na cidade onde cresceu. “Antes, era preciso trazer apoio logístico do Recife e de Salvador. De um tempo para cá, existem mais condições de transporte e mão de obra especializada, como figurino, maquiagem e até produção de objetos.”

4

5

continente FEVEREIRo 2013 | 84

CLAQUETE_FEV.indd 84

22/01/2013 11:16:59


INDICAÇÕES DRAMA

DOCUMENTÁRIO

Direção de Olivier Nakache e Eric Toledano Com François Cluzet, Omar Sy, Anne Le Ny Califórnia Filmes

Direção de Matthew Akers Com Marina Abramovic, Ulay, Klaus Biesenbach HBO

INTOCÁVEIS

MARINA ABRAMOVIC: ARTISTA PRESENTE

Felicidade, compaixão, limitações e amor são alguns temas explorados nesse longa da dupla Olivier Nakache e Eric Toledano. Segunda maior bilheteria do cinema francês de todos os tempos, Intocáveis é inspirado em fatos reais e conta a história de Phillippe, um aristocrata rico e tetraplégico que contrata os serviços do jovem senegalês Driss. O filme levantou um enorme debate político, ao tocar em assuntos como a situação dos imigrantes africanos nas periferias francesas.

Em seu primeiro longa, Matthew Akers explora a essência da obra de Marina Abramovic, uma das artistas performáticas mais prestigiadas do mundo. Apesar de contar com depoimentos de pessoas ligadas à personagem, o filme foge da estrutura tradicional de documentário, acompanhando de perto a intimidade da artista em um dos momentos mais importantes de sua vida, a realização de uma retrospectiva de sua carreira no MoMA, em Nova York.

DRAMA

COMÉDIA

Direção de Maïwenn Le Besco Com Joey Starr, Maïwenn Le Besco, Nicolas Duvauchelle Vinny Filmes

Direção de Jonathan Dayton e Valerie Faris Com Paul Dano, Antonio Banderas, Annette Bening Fox Film

6

O retorno do mestre maquinista João Sagatio talvez tenha sido o mais emocionante. Após quase meia década, ele voltou para a região onde trabalhou em Lampião, o rei do cangaço (1964), de Carlos Coimbra, quando foi figurante, membro da volante que cegou o bandido. De lá para cá, Sagatio trabalhou em centenas de produções, tornando-se testemunha viva do cinema brasileiro.

SERTÃO BARROCO

Desde os seus primórdios, cinema e fé andam juntos. Gilles Deleuze vê nele uma catolicidade inerente, um culto que substitui as catedrais. “O fato é que já não acreditamos neste mundo. Nem mesmo nos acontecimentos, no amor, na morte, como se nos dissessem respeito apenas pela metade. É preciso restituir as palavras ao corpo, à carne”, escreve o filósofo, no livro A imagemtempo. “É que a imagem cinematográfica mostra-nos a vinculação do homem com o mundo. O homem está no mundo como uma situação ótica e sonora pura. A reação da qual o homem

está privado só pode ser substituída pela crença.” Em seu cinema, Camilo recria de um tempo próprio, que cruza um espaço mais existencial do que geográfico. Seus filmes reconstroem o mundo pela simplicidade, pela redução de elementos. Pessoas são arquétipos e ambientes se confundem com estados emocionais. A verdade é representada em um plano alegórico, filosófico, onírico. “No Sertão, as relações são mais honestas, não têm subterfúgios”, diz Camilo. “Não têm meia palavra, só inteira, a retidão de caráter, enquanto no território urbano, as relações estão desgastadas, perderam o viço, são escamoteadas, sem respeito, banalizadas. Por isso, no universo sertanejo, as relações de amor ganham proporção muito maior. A natureza se confunde com o homem, que sente melhor o tempo. Ao contrário da alienação da cidade, é uma rotina intimamente ligada com a natureza. Há o tempo parado, onde nada acontece. E quando acontece, vem com força.”

POLISSIA

O longa-metragem da francesa Maïwenn Le Besco é uma olhar sobre o trabalho cotidiano da Brigada de Proteção de Menores (BPM) da polícia de Paris. Denunciando temas como pedofilia, maus-tratos às crianças e o abuso de menores, o filme inverte a lógica do cinema documental: Maïwenn acompanhou de perto o trabalho da BPM, e reproduziu essa experiência no seu trabalho.

RUBY SPARKS

A história do escritor com bloqueio criativo já foi explorada à exaustão no cinema e se repete no novo longa da dupla Jonathan Dayton e Valerie Faris. No entanto, o roteiro consegue um respiro de renovação. O solitário Calvin Weir-Fields é um escritor- prodígio que dá vida a uma de suas personagens, quando se apaixona e descobre que pode moldá-la ao seu bem-entender. A premissa levanta questões importantes sobre relacionamentos, amor, dependência e aceitação.

continente FEVEREIRo 2013 | 85

CLAQUETE_FEV.indd 85

22/01/2013 11:17:01


Artigo

divulgação

ALFREDO CORDIVIOLA AINDA TEMOS MUITO O QUE EXTRAIR DO ANARQUISMO No filme Amor e anarquia (1973), de

Lina Wertmüller, um desavisado camponês chega à cidade grande com uma missão secreta: assassinar Mussolini. Oculto em um bordel, sob a proteção de uma prostituta anarquista, vai tecendo um plano de ação que, fatalmente, seria incapaz de cumprir. Amor e anarquia é também o título de um conhecido texto do ativista italiano Errico Malatesta (1853-1932), homem de vida aventureira e permanentemente compromissada com os ideais libertários, que soube interpretar com lucidez os dilemas das conturbadas décadas que uniam os séculos 19 e 20. Como o filme da cineasta e o escrito do militante demonstram, a seu modo, a concatenação de ambos os substantivos, instaura um vínculo necessariamente conflituoso, que aponta a interpelação das bases afetivas que perpetuavam as profundas desigualdades da sociedade. Desigualdades que, longe de estar ancoradas apenas na esfera da exploração laboral, nas hierarquias de classe ou na naturalização da violência e dos privilégios por parte dos poderes estatais e econômicos, atravessavam o cerne mesmo da composição familiar e a trama das relações amorosas. Intervir na trama dessas desigualdades era o grande objetivo do pensamento de cunho emancipatório que se multiplica pelo Ocidente nesse período marcado pelas migrações massivas, pela explosão demográfica das cidades, a expansão do imperialismo e a concentração do capital. O anarquismo não era uma doutrina fechada, deve ser pensado, de fato, como um campo de debate que reunia um conjunto bastante heterogêneo e, às vezes, contraditório, de experimentações e estratégias. Propunha abolir a autoridade, não para destruir todo tecido social, o que seria negativo para implantar as transformações desejadas, mas para

1

O anarquismo deve ser pensado como um campo de debate que reunia um conjunto bastante heterogêneo de experimentações

criar novas formas de coletividade baseadas no mandato da cooperação livre e voluntária. Como escreve Malatesta, “abolir a autoridade significa abolir o monopólio da força e da influência; abolir a autoridade significa abolir este estado de coisas em que a força social, ou seja, a força de todos, é o instrumento do pensamento,

da vontade e dos interesses de um pequeno número de indivíduos que mediante a força suprimem, em proveito próprio e das suas particulares ideias, a liberdade de cada um”. Em um mundo que se encaminhava para a hecatombe da guerra e do totalitarismo, aspiravam a negar privilégios e a multiplicar os vínculos solidários. Agiam contra o rei, contra o bispo e contra o patrão, mas também contra os micropoderes que tendiam a perpetuar a opressão e o status quo.

ZONA DE GUERRA

É evidente que o anarquismo não pretendia atingir um ideal absoluto de perfeição, que em si mesmo seria impossível, mas propor caminhos

continente fevereiro 2013 | 86

Artigo_FEV.indd 86

22/01/2013 11:18:02


1 amor e anarquia No filme, um camponês se esconde num bordel para planejar o assassinato de Mussolini

para que os seres humanos pudessem usufruir mais cabalmente as suas potencialidades. Urgia debater outras versões das políticas dos poderes, das pátrias e dos corpos. Mas os propagandistas da nova ordem não eram ingênuos sonhadores, e sabiam que entre as vontades da classe ou do sujeito e a noção de bem comum se estende uma zona de guerra formada por interesses, antagonismos e conflitos de todo tipo. Sabiam que quanto maior e mais diversa fosse a comunidade a ser transformada, mais difícil seria que todos seus membros conseguissem manterse permanentemente dentro das convenções ditadas pelo altruísmo e a continência. Como fazer então

para que os poderosos abandonassem seus modos de dominação? Como redefinir a noção de liberdade em sociedades que instauraram o credo do arbítrio, do mérito e da astúcia do eu como garantias de estabilidade e de progresso? No campo dos afetos e da sexualidade, como criar vínculos mais justos, que não estivessem regidos pelas mesmas (ou similares) práticas de exploração que multiplicam as exclusões e impõem os mais diversos modos de subalternidade entre aqueles que deveriam ser iguais? Dilemas complexos como esses estavam no centro das reflexões e táticas dos movimentos libertários. Ao reivindicar o desejo e a união livre

entre os indivíduos, os postulados anarquistas colidiam com as verdades instituídas pelo discurso médico, que define as diferenças em termos de patologia, e contra os dogmas dos discursos religiosos e jurídicos que disciplinam o matrimônio, a posse e a maternidade. Com proclamas e com ilusões, com periódicos, bombas, greves e comunidades experimentais, os anarquistas procuravam criar modos de convivência mais equilibrados e justos, tanto na constelação social mais ampla quanto no marco familiar, dando novos sentidos à palavra liberdade e instituindo a fraternidade como princípio ordenador do mundo. O mundo reservou ostracismo, prisão, exílio e morte para muitos daqueles exaltados ativistas, mas seria injusto dizer que a causa do anarquismo fracassou e se dissolveu nas brumas do passado. E é precisamente na dimensão dos afetos, nas relações amorosas (e nos debates atuais que atravessam essas esferas) em que as ideias anarquistas ecoam hoje com renovada força. Ao longo do último século, a progressiva separação da Igreja e do Estado, as batalhas dos feminismos, as lutas pelo reconhecimento da diversidade sexual e pela possibilidade de dispor do próprio corpo permitiram conquistar certos consensos que, contudo, continuam sendo ameaçados e resistidos por várias frentes de reação. Não há dúvida de que os padrões de comportamento mudaram enormemente, e, portanto, outras são hoje as causas em disputa. Mas em tempos nos quais, em vários países da América Latina, se debate e se legisla sobre casamento igualitário, descriminalização do aborto, violência doméstica e igualdade de gênero, é sempre oportuno lembrar que a discussão de todos esses problemas obedece a uma longa história no Ocidente, história para a qual as ideias anarquistas contribuíram significativamente. Em matéria de desejos, afetividades e laços intersubjetivos, temos muito ainda que aprender com as propostas, as esperanças (e também com os paradoxos e as impossibilidades) do anarquismo.

continente fevereiro 2013 | 87

Artigo_FEV.indd 87

22/01/2013 11:18:03


Cristhiano Aguiar

Clarice, um suvenir virtual Entre as centenas de coisas flutuando à deriva no Facebook,

uma das que mais me fascinam é Clarice Lispector. Podemos encontrar diversas Clarices Lispector por aí, multiplicadas em todos os ângulos e formatos. No caso dela e de outros escritores, como Caio Fernando Abreu, por exemplo, a internet nos abastece com todo tipo de recortes e adaptações não apenas de seus escritos e falas, mas também dos seus corpos. Há as mãos de Clarice; o rosto imenso de Clarice; os olhos fechados de Clarice. Há Clarice deitada; Clarice fumando; Clarice de perfil; Clarice de corpo inteiro; Clarice do busto para cima. Em uma conta do Twitter, ao lado da imagem de Clarice, leio: “Você é mais forte do que pensa e será mais feliz do que imagina”. Será que ela realmente escreveu isso? Na dúvida, passo adiante. Ano passado, tive um reencontro com a criadora de Macabéa. Há anos, talvez em parte por certa angústia da influência, não lia a autora de Perto do coração selvagem. E me surpreendi por ter reencontrado nela certa acidez e certa agressividade que eu tinha esquecido, talvez porque eu estivesse soterrado por uma Clarice domesticada. “Pois a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende.” Dá vontade de apertar o botão de “curtir”, não é? Mas esse trecho de A hora da estrela está em um contexto específico, no qual se critica o quanto, na vida moderna, principalmente de proletários como Macabéa, a própria experiência de viver é espremida, rarefeita. No mesmo livro, há outra frase digna dos livros de autoajuda: “Sim, quem espera sempre alcança”. Mas, logo em seguida, o narrador escreve: “É?”. Não se trata de uma maneira “errada” de entrar em contato com a obra de Clarice, necessariamente. Também não é uma “desonestidade” recortar uma frase bonita de sua obra, ou retirá-la de contexto e emoldurá-la na parede do seu perfil virtual. Vejo com certa simpatia que Clarice esteja nesse dia a dia das boas intenções; gosto de saber que há em nosso país um escritor que pode ser amado assim. O problema, porém, é que essa é uma Claricesuvenir, não muito diferente das miniaturas da Golden Gate, do Cristo Redentor ou das galinhas pintadas de Porto de Galinhas. Em um livro bastante interessante, On longing, a poeta Susan Stewart nos lembra que o suvenir não chama atenção para uma experiência com a diferença; pelo contrário, o suvenir exalta o seu possuidor. “Olhem para meu dono”, diz, servil, a Clarice-suvenir: um objeto que se recusa a ser interpretado. Um objeto que recusa o estranhamento. Mas a pergunta que uma grande obra literária, como a de Clarice, nos lança é o oposto disso: “Olhe para si; olhe para a linguagem; olhe para a sociedade”. Vale a pena lembrar que curtir e passar adiante citações de Clarice na internet é uma minúscula parte de uma conversa longa, profunda e necessariamente incômoda. Afinal, é só na leitura do texto original que a obra de um escritor será resgatada do estado no qual naturalmente se encontra: o estado das ruínas.

Cristhiano Aguiar

é escritor, crítico literário e professor

con ti nen te

continente fevereiro 2013 | 88

Saida_FEV.indd 88

Saída 22/01/2013 15:06:09


CAPA rio.indd 2

30/01/2013 08:48:41


anunc-21x28.ai

1

29/01/13

17:11

www.revistacontinente.com.br

CAPIBARIBE

# 146

O RIO QUE INVENTOU O RECIFE

Foto: Banco de imagens MTur

É verão. É só chegar.

#146 ano XIII • fev/13 • R$ 11,00 Fernando de Noronha

Pernambuco está de braços abertos e cheio de novidades para os turistas. Além das famosas praias, que dispensam apresentações, o nosso Estado agora oferece também uma infraestrutura que torna a estada dos visitantes ainda mais rica e agradável. As artes e o artesanato são atrações únicas e estão mais acessíveis, com a chegada do Centro de Artesanato. Pernambuco é o destino certo para quem procura férias inesquecíveis. É só chegar.

CAPA rio.indd 1

Carnaval de Olinda

Foto: Chico Barros

FEV 13

facebook.com/curtapernambuco

Olinda

Foto: Banco de imagens MTur - Lulu Pinheiro

Foto: Banco de imagens MTur - Breno Laprovitera

Galo da Madrugada

CONTINENTE

Foto: Banco de imagens MTur - Breno Laprovitera

Porto de Galinhas

E MAIS CULTURA DA INTERNET | SATWA SANTIAGO CALATRAVA | CAMILO CAVALCANTE BURLE MARX | ENGENHOS DE AÇÚCAR

30/01/2013 08:48:32


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.