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Te m p o r a d a
ano XIII • mar/13 • R$ 11,00
CONTINENTE
O SÓ TEM UMOJENIT HA DE DEIXAARINNDOARMELHOR: OS. Ç E R P S O O D N A IX BA
CIGANOS O cotidiano de comunidades nordestinas que vivem em pequenas cidades do interior
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em toda a ilha.
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MAR 13
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AS FOTOGRAFIAS DAQUELES QUE NÃO ENXERGAM
De abril a junho,
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ROBERTA GUIMARÃES
MARÇO 2013
aos leitores Eles são centenas, milhares e mantêm-se em presença muda, acuada. Formam pequenos bandos que, cada vez mais interiorizados, estabelecem regras próprias, que devem ser cumpridas com severidade. Ao mesmo tempo, enquanto se refugiam em torno de si mesmos, precisam estar no mundo, como os demais. Então, assumem os comportamentos da contemporaneidade, como a comunicação virtual e a formação acadêmica. Mas tudo aos poucos, e não sem concessões. Ao contrário da cultura dominante, valorizam a velhice, como lugar de reconhecimento e respeito. Para longe de estereotipias, usualmente dispensam as roupas extravagantes e a aura de mistério, sendo vistos em shorts e camisetas, à cata da sobrevivência comezinha, como os muitos brasileiros sem posses. Esses são os ciganos. Pelo menos, os ciganos que encontramos em grupos que residem em pequenas cidades interioranas de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Passamos – a jornalista Danielle Romani e a fotógrafa Roberta Guimarães – cinco meses em torno deles. E, como relata a repórter, chegamos, mas não fomos convidados à intimidade, apenas nos foi permitido conhecer. É assim que apresentamos a reportagem especial deste mês: quase com modéstia, apesar de ela ter tomado um tempo maior de produção que a maioria dos trabalhos que realizamos.
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Desde o início, o que nos mobilizava em torno desse grupo étnico – que parece provocar em igual medida a desconfiança e o fascínio dos não ciganos – era observálo hoje, em suas demandas cotidianas e sua relação conflituosa com a sociedade. Assim como se dá com outras minorias que se fecham para se proteger e preservar, há contradições e impasses nesse contato, desde que você se aproxime sob essa procura: a de “conhecer” o cigano. Uma coisa é certa: se não lhe for dito que esse ou aquele indivíduo é “um cigano”, poucas vezes você assim o identificará. Ele será “apenas” um sertanejo de poucas posses, que mora naquela pequena cidade, que pode ser um autônomo, um desempregado ou uma jovem que acaba de entrar na faculdade, mantém um perfil no Facebook e está prestes a se casar. Qual a diferença dessas pessoas para tantas outras que estão aí? O que muda quando sabemos tratar-se de “um cigano”? Que ideias nos assolam? E o que os distingue, de fato? Essas foram algumas de nossas premissas. Como se verá na reportagem, os próprios ciganos praticam esse jogo de ocultar e revelar, de acordo com a conveniência das máscaras e dos momentos, como fazem os demais. Mas o nosso encontro com alguns dos membros desse grupo sugere que muitas das (más) qualificações que lhes imputamos são frutos de anos e anos de ideologização.
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O CineCabeça é uma das ações inovadoras do Governo de Pernambuco para melhorar a educação no nosso Estado. Um projeto que utiliza o cinema como instrumento de transformação cultural e social, contribuindo para o surgimento de uma nova escola pernambucana. Em 2012, mais de 37 mil alunos e professores da rede estadual foram ao São Luiz para ver, na tela do cinema, as produções que eles mesmos realizaram. Na primeira mostra competitiva, 18 curtas-metragens concorreram nas categorias documentário, ficção e vídeo experimental. E os vencedores levaram equipamentos de filmagem e fotografia para suas escolas. Se no ano passado o CineCabeça foi sucesso de público e de crítica, imagine em 2013, com ainda mais investimentos para a futura geração de cineastas.
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sumário Portfólio
Pedro Lucena 6
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Mariângela Haddad Autora e ilustradora dos próprios livros, ela comenta sobre a importância da memória na criação
Conexão
Thomas Pynchon Site criado por fãs reúne resenhas, listas e um guia de leitura da obra do escritor norte-americano
20
Balaio
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Web
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História
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Geneton Moraes Neto Carreira do jornalista aponta para qualidades de um bom repórter: simplicidade e poder de escuta
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Claquete
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Matéria Corrida
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Palco
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Leitura
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Saída
Sob Hitchcock Teria sido Alma apenas a esposa submissa do cineasta ou uma grande mulher à sua sombra?
Perseguição Gênios da informática, como Aaron Swartz, muitas vezes não resistem às pressões da justiça
Almir Pernambuquinho Protagonista de brigas em campo, o jogador pertenceu a uma época em que o futebol era paixão
Perfil
Ilustrador alagoano relacionou a poesia de Manoel de Barros ao trabalho dos artesãos da Ilha do Ferro para criar a série de desenhos que destaca formas da natureza
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Cachês Em Hollywood, a era dos salários astronômicos para as superestrelas parece viver seu ocaso
José Cláudio Implante
Grupo Corpo Bailarinos mineiros, liderados pelos irmãos Pederneiras, seguem em turnê e em ascensão profissional Slavoj Žižek Filósofo pop que fará palestra no Recife é tudo, menos um personagem aborrecido
Joana D’Arc de Sousa Lima Usos da memória – Janete Costa
Cardápio
Celebração No mesmo período em que os cristãos comemoram a Páscoa, os judeus realizam o Pessach, em que os alimentos simbolizam a libertação da escravidão no Egito
60 CAPA FOTO Roberta Guimarães
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Especial
Viagem
Reportagem encontra comunidades ciganas localizadas em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte e observa a vida atual dessa etnia perseguida em todo o mundo
São Luís, Alcântara e Lençóis Maranhenses provocam interesse crescente entre viajantes, por agregar elementos arquitetônicos e históricos a um contato com o meio ambiente
Visuais
Sonoras
Fotógrafos com pouca ou nenhuma visão realizam trabalhos que apontam para a ideia de que nem tudo que registramos em imagens é fruto do que veem os nossos olhos
Refrões pegajosos, onomatopeias e melodias fáceis são elementos que fazem certas canções insistirem em permanecer no nosso cérebro
Ciganos
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Arte e cegueira
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Maranhão
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Mar’ 13
Músicas grudentas
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cartas 2013 Desejo a todos da Revista Continente, um ótimo 2013!!! Parabéns a todos pelo maravilhoso trabalho que realizam!!! MÁRCIA JUANNES NITERÓI – RJ
não somente pescados, mas poesia, arte e esporte. EDUARDO SENA RECIFE – PE
Impecável Venho parabenizá-los pelo excelente trabalho que fazem. Sua publicação é impecável em arte e edição. E apresenta conteúdo verdadeiramente relevante. Moro no Rio de Janeiro e trabalho como editor assistente em uma editora carioca. Como profissional da área, gostaria de colaborar com a revista. Colocome à disposição, inclusive, para fazer trabalhos voluntários. Como leitor, envio a todos um grande abraço.
acentuação gráfica. Os funcionários dos cartórios, responsáveis pelas certidões de nascimento, não obedecem às regras gramaticais. Daí, encontrarmos nomes como Lúcia, Álvaro Mário, Mônica sem a devida acentuação. Para mostrar, de forma concreta, o motivo de minha preocupação, envio alguns exemplos que encontramos na escola em que trabalho: Wilzanerkunlla, Felepe, Fylypy, Heligueiton, Gulyth, Zonzonheide, Lizabla. Será que não pode haver um limite para essa prática? Ou teremos que soletrar todas as vezes que tivermos que escrever o nome de alguém? CILENE MARIA BEZERRA DA SILVA CARUARU – PE
DÊNIS RUBRA RIO DE JANEIRO – RJ
Rio Capibaribe Delicada, reflexiva e, por isso mesmo, imperdível a matéria de capa da edição de fevereiro sobre a relação estreita e polissêmica entre o Recife e o seu principal rio – o Capibaribe. Belo registro vertido em letras dessa “cidade anfíbia” que sabe extrair das águas, para se desenvolver,
Gonzaga
Nomes Gostaria de ver na Continente uma matéria que tratasse dos nomes que estão sendo dados aos que nasceram dos anos 1990 para cá. Em meus 40 anos como professora, tenho visto verdadeiras aberrações. Outro fato que ocorre é em relação à
Estive, em dezembro, no evento Cem Anos de Luiz Gonzaga, no Parque Dona Lindu, e tive a chance de receber em mãos uma belíssima edição da Continente, contendo um DVD do Quinteto Violado. Parabéns. ELPÍDIO ALMEIDA RECIFE – PE
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
Homero Fonseca
Jarbas Domingos
Renato Athias
Roberta Guimarães
Jornalista, blogueiro e escritor. É autor, entre outros, de Roliúde e Pernambucânia
Ilustrador, quadrinista e designer. Atua no Diario de Pernambuco
Antropólogo e diretor do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade da UFPE
Fotógrafa, produtora cultural e autora de vários livros de fotografia
E MAIS Augusto pessoa, jornalista e fotógrafo. Aquiles Lopes, jornalista. Christianne Galdino, jornalista e mestre em Comunicação Rural pela UFRPE. Eduardo Duarte, jornalista, professor da UFPE, mestre em Antropologia e doutor em Ciências Sociais. Eduardo Sena, jornalista. Flora Pimentel, fotógrafa. Joana D’Arc de Sousa Lima, doutora em História pela UFPE, pesquisadora, professora e atualmente diretora da Galeria Janete Costa. Marcelo Abreu, jornalista e autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu. Rodrigo Carrero, jornalista, professor e crítico de cinema.
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MARIÂNGELA HADDAD
“Eu sou uma escritora ocasional” Autora e ilustradora de livros infantis fala sobre a trajetória que a levou ao mercado editorial e sobre os meandros do processo criativo TEXTO Gianni Paula de Melo
CON TI NEN TE
Entrevista
Ilustradora profissional e escritora
ocasional, é assim que a mineira Mariângela Haddad percebe sua atuação nestes dois campos artísticos. Embora tenha se formado em Arquitetura, exerceu a profissão por pouco tempo, e se aventurou não só nas áreas já citadas, nas quais é mais conhecida, mas também foi tradutora, desenvolveu brinquedos pedagógicos, fez roteiros e trabalhos com cenografia. Suas duas obras principais foram premiadas em concursos nacionais. A primeira, O sumiço da pantufa, venceu o tradicional Barco a Vapor, organizado pela Edições SM. Já a sua mais recente publicação, O mar de Fiote, foi campeã da categoria infantil, do II Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, promovido pela Companhia Editora de Pernambuco. Em conversa com a Continente, a escritora falou um pouco sobre essas duas publicações, seu processo criativo, sua carreira e o forte viés biográfico do livro O mar de Fiote.
CONTINENTE Como surgiu a ideia de escrever o livro O sumiço da pantufa? MARIÂNGELA HADDAD Queria escrever uma história, mas não era
escritora de carreira. Sou ilustradora e gostaria de trabalhar para uma editora específica, que não contrata, porque tem lá o seu time de ilustradores. Mas ela tem um concurso e eu pensei: “Vou entrar nesse concurso e, se ficar entre os finalistas, peço pra ilustrar a minha história”. Aí, um dia, decidi ir nadar e disse para mim mesma que só sairia da água quando tivesse uma história alinhavada. Fiquei duas horas nadando. Quando cheguei em casa, escrevi das sete da noite até sete da manhã, dormi um pouquinho, corrigi, xeroquei e mandei. Este foi o trabalho que rendeu o meu primeiro prêmio, o do Barco a Vapor. CONTINENTE Como é conciliar a rotina de trabalho com essas atividades de criação mais pessoal? MARIÂNGELA HADDAD O episódio que contei foi numa época em que eu tinha pouco trabalho, porque atuo de uma maneira muito sazonal. Tem hora que fico igual a uma louca, trabalho dia e noite, varo madrugadas e, depois, passo uma temporada sem quase nenhum trabalho. É quando desenvolvo meus
próprios projetos. Nesta fase do livro, estava numa calmaria e comecei a ler muito romance policial, aí pensei em fazer um policial para criança. Faltavam dois dias pra terminar o prazo de inscrição do prêmio, então fiz as cópias, mandei pelos Correios e depois enviei para uma amiga escritora. Lembro que ela me falou: “Espera um pouco, guarda o texto, coloca numa gaveta e daqui a seis meses você pega, porque os personagens vão ter amadurecido”. E eu pensei: “Danou-se! Já mandei!”. Fiquei sem nenhuma expectativa, sabe? Esqueci. Mas acabei ganhando. CONTINENTE Mas não foi o seu primeiro livro, não é? MARIÂNGELA HADDAD Foi o meu primeiro livro. Escrevi há muitos anos, no início da minha carreira de ilustradora, dois livros sob encomenda, para uma gráfica que precisava de dois lançamentos administrativos, mas depois disso não fiz mais nada. Porque não sou uma escritora constante, sou mesmo uma escritora ocasional, como deu para perceber na história com o Barco a Vapor. No
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caso do concurso da Cepe, eu já tinha um texto bem encaminhado e fiquei sabendo do edital na última hora. Na época em que tinha sido adiado o prazo de entrega, eu tinha acabado de entrar no Facebook e alguém postou sobre isso na rede social. Também enviei sem nenhuma expectativa.
CONTINENTE Você trabalha como ilustradora, mas se formou em Arquitetura. Como foi que se deu esse redirecionamento profissional? MARIÂNGELA HADDAD Formei-me na França e, quando voltei para o
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CONTINENTE Você poderia falar um pouco sobre sua obra mais recente, O mar de Fiote? MARIÂNGELA HADDAD O mar de Fiote é uma mistura, porque os personagens talvez tenham sido os da minha infância. Morei numa casa desse jeito que falo no livro, com um quintal pelado, sem árvore, que tinha galinha, uma gangorra e um morrinho. Nesse morro, fizemos uma caverna; nós éramos muitos irmãos
CONTINENTE Como é o processo de decisão da técnica de ilustração para uma obra? Quais você costuma utilizar mais? MARIÂNGELA HADDAD Quando ilustro, pego o texto e escolho logo a técnica, porque definir isso me ajuda muito. Bom, já não uso muito aquarela, por exemplo, mas uso xilogravura, uso ecoline, trabalho muito no computador, em programas que simulam estas técnicas. Também adoro carvão seco e uso muito lápis.
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CONTINENTE E, antes disso, você tinha ido pra França especificamente para estudar? MARIÂNGELA HADDAD Fui adolescente, na época da ditadura, e cursava Arquitetura em Belo Horizonte, quando o Médici assumiu, foi um tempo muito duro. Não fui perseguida política, nem nada disso,
“Assim como em O sumiço da pantufa, nO mar de Fiote (imagens) também achei que eu deveria ilustrar porque é uma história que me era muito cara, meio autobiográfica”
Entrevista e ficávamos lá. Na época, eu tinha um vizinho muito misterioso, ranzinza, que morava em um terreno enorme cheio de mangueiras. Então, o cenário do livro é super-real, o vizinho também é real, mas ele não era francês e nunca fizemos contato com ele. Era um cara neurótico, que não nos deixava pegar manga e atirava com espingarda de chumbinho. Já a tal casa do Fiote é a casa dos meus sonhos, da minha infância. Uma casa fantasiada que era muito velha e tinha sótão, tinha porão, tinha histórias malucas que minha mãe contava, tinha seus mistérios, uns quartos que ninguém usava. Era um lugar muito inspirador e tive uma infância muito rica nessa coisa da imaginação, logo, esses personagens ficaram.
para fazer livros didáticos. Nos 12 anos em que morei em São Paulo, trabalhei para praticamente todas as editoras da cidade, tanto na literatura quanto em didáticos. Também criava muitos brinquedos pedagógicos para uma fábrica chamada Toyster, bem no comecinho da história da marca. Fiz um pouco de tudo: roteiro de cinema, cenografia, moda.
Brasil, não tinha muito como trabalhar. Arquitetura é uma profissão na qual você precisa conhecer gente da área. No entanto, na França, tinha estudado na Faculdade de Belas Artes e convivia muito com esse mundo artístico. Quando cheguei ao Brasil, fui fazer um curso de história em quadrinhos e um professor disse para eu ir a uma editora. Naquela época, o mercado da literatura infantil estava crescendo, foi quando surgiram autores como a Ana Maria Machado e Ruth Rocha. Passei muito aperto, mas comecei a pegar trabalhos na editora Moderna. Só que ela teve um racha interno e um grupo saiu para montar a Scipione. Conhecia muito a pessoa que estava à frente da Scipione e ela me convidou
mas quis ir embora, sabe? Tava muito ruim aqui. Estava na metade do curso, quando viajei e tive que repetir um ano, sem contar que, na França, eram seis anos ao todo, então demorei bastante para me formar. Quando voltei, trabalhei com tradução, ainda trabalho com isso. Acabei de traduzir um livro de filosofia para a Autêntica, direcionado ao público infantil. CONTINENTE Qual a diferença de ilustrar uma obra própria e uma assinada por outro escritor? Não existe nenhum livro seu ilustrado por outra pessoa, certo? MARIÂNGELA HADDAD Não, acharia muito estranho ter meu livro ilustrado por outra pessoa. Os escritores, quando escrevem, têm uma ideia de
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como eles veem a história. Alguns tentam me dizer o que eles querem que eu faça, mas detesto isso. Porque tenho um jeito de ler a história, faço uma leitura particular, como acho que a criança também vai fazer a dela, diferente da do escritor e da minha. Todas as vezes em que tive contato com o autor deu alguma confusão. Teve uma autora que disse que eu era a “mão dela” e deixei logo claro que não era. Já sofro uma pressão justificada quando faço livro didático, porque se resolver desenhar uma célula como acho que é uma célula, então muda tudo na biologia. Penso que, na literatura, temos que ter a licença para fazer do nosso jeito, tentar contar uma historinha paralela.
CONTINENTE Você já escreve sabendo como os livros serão visualmente? MARIÂNGELA HADDAD Sim. O sumiço da pantufa é formado por depoimentos de oito personagens que participaram do sumiço de uma pantufa e, para ser bem lógico, quis dar o mesmo espaço para todos, os depoimentos têm o mesmo tamanho. Eu já imaginava que texto ia entrar em cada página, o que ia ilustrar em volta, e tinha o mistério de não poder revelar quem é o culpado. Se pusesse a cara do responsável de forma evidente, acabava o mistério, né? Eu ficava pensando que outro ilustrador não ia entender essa nuance. NO mar de Fiote também achei que tinha que ser eu porque era uma história muito cara para mim, meio autobiográfica.
CONTINENTE Quais escritores serviram de referência quando você começou? MARIÂNGELA HADDAD Sou muito ruim para guardar nomes e tenho uma confissão: não li Monteiro Lobato quando era pequena. Quando era criança, as coisas não chegavam no interior. Lá em Ponte Nova, por exemplo, não tinha fruta. Lembro que meu pai viajava e chegava com caixas e caixas de frutas diferentes. Fico achando que não tivemos acesso aos livros básicos que depois se tornaram os clássicos das crianças. Agora, tinha um tio que era representante de uma editora no Brasil. Ele visitava colégios no interior e, sempre que passava por nossa casa, levava um monte de livros. Mas eram os que ele
queria, não obras que escolhíamos. Lembro muito os livros de contos de fadas, dos Irmãos Grimm, uns contos dinamarqueses e noruegueses que nem sei quem eram os autores. Minha mãe dizia que eu era muito distraída, tinha vários irmãos e eles choravam muito, mas gostava tanto de ler, que nem escutava, só que não lembro muito bem o que é que eu lia. CONTINENTE Você se considera uma pessoa muito distraída? MARIÂNGELA HADDAD Todas as vezes que posso, só faço o que gosto. Escolhi essa profissão porque gosto, resolvi me separar porque não gostava mais, resolvi escrever porque gosto, recuso trabalho que não gosto. Acho
que já faz um tempo que tento fazer só as coisas que me dão prazer: danço, canto, nado, independentemente se isso vai me dar dinheiro ou não. No fundo, não sou distraída, sou concentrada naquilo que gosto de fazer. CONTINENTE E essa sua relação com o mar, que parece ser bem forte? Tem um poema da Ana Martins Marques, que também é mineira, no qual ela se questiona se perderia o mar, no caso de tê-lo por perto, como perde seus isqueiros e canetas, coisas baratas e fáceis de encontrar. Sua sensação é parecida com essa? MARIÂNGELA HADDAD Todo mundo que mora na praia tem o mar como referência, você sabe que anda, anda e acaba no mar, ele é o seu limite. No nosso caso, talvez tenhamos a montanha como limite. Só conheci o mar quando já estava com uns nove ou 10 anos e me lembro de que tinha um irmão de um ano de idade que ainda não sabia andar. Quando chegamos à praia, meu pai abriu o carro e todo mundo saiu correndo, jogando os chinelos, tirando a roupa. Na hora, minha mãe colocou o pequeno em pé na areia e ele também saiu andando atrás. Foi muito marcante, minha mãe ficou boba. É essa atração que o mar tem que, talvez, quem more perto da praia nem perceba. Mas, para nós, que não moramos, é muito fascinante. O mar de Fiote é esse encontro, um bom encontro, talvez a possibilidade de descoberta que ele tem com o vizinho. CONTINENTE A história do personagem começar a falar depois de receber um presente do vizinho que representava o mar tem relação com essa experiência do seu irmão? MARIÂNGELA HADDAD Nossa, nunca pensei nisso. Tenho um sobrinho superprotegido, uma criança muito esperada, que demorou muito para chegar, e ele quase não fala. É uma pessoa bem fechada, que só observa, porque tudo que quer a mãe já providenciou, ela oferece o que acha que ele tem que comer, não propõe o que ela acha que ele não tem que fazer. Eu me inspirei muito nesse tolhimento que ele sente por ter tudo adiantadamente. Agora, essa associação que você fez é bem curiosa. Mas acho que O mar de Fiote é a possibilidade do personagem ter alguma coisa dele mesmo, algo que descobriu por conta própria.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
CIGANOS
PORTFÓLIO
A Continente traz reportagem especial sobre os calons nordestinos, minoria étnica que vive praticamente à margem da sociedade. Na internet, o leitor terá acesso a uma entrevista com o fotógrafo Rogério Ferrari, que trabalha exclusivamente com povos em situação de tensão e opressão, e que produziu o belo livro Ciganos. Também estão online vídeos com três entrevistados: os poetas Fernando Souza Lima e Djalma Arruda e o músico Tiago Dantas, que, junto com seus familiares, canta composições próprias e clássicos da música sertaneja.
Veja mais imagens da exposição Ciscos, do ilustrador Pedro Lucena. A mostra foi inspirada em Manoel de Barros e nos artesãos da Ilha do Ferro (AL).
Conexão
ATIVISMO DIGITAL Confira o prefácio do livro Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet, lançamento da Boitempo Editorial, escrito pelo jornalista australiano Julian Assange.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
OUTRAS PALAVRAS
PETS
CIÊNCIA
CALENDÁRIO
Equipe pregressa do Le Monde Diplomatique cria portal colaborativo
Ferramenta facilita a busca por animais perdidos
Um reforço nas aulas de Física e Química em Manual do mundo
Dia a dia, imagens do que seria a felicidade aos 65
outraspalavras.net
procurasecachorro.com.br
manualdomundo.com.br
felicidario.encontrarse.pt
Organizado pela mesma equipe que fundou e editou, até março de 2009, o Le Monde Diplomatique Brasil, o Outras Palavras é um portal de notícia que inclui também uma biblioteca virtual do mensário, com arquivos desde 1999. O site defende que um jornalismo com mais profundidade e espirito crítico pode superar a mídia de massa e o controle social por ela exercido. Nesse sentido, defende o jornalismo colaborativo como a forma mais justa de produção noticiosa, já que ele exclui a difusão mercantil de informações e de outros bens culturais.
O Procura-se cachorro ajuda quem perdeu seu bichinho a encontrá-lo de forma mais rápida. Utilizando o sistema de mapas do Google, o site conseguiu montar um banco de dados no qual, por características físicas do animal e sua localização geográfica, você pode visualizar todos os cachorros cadastrados na página. Além de anunciar os animais perdidos e achados nas ruas, o site funciona como uma casa de adoção virtual. Depois de um determinado tempo, os cachorros não identificados passam para a adoção. O Procurase cachorro também tem perfil no Facebook e no Twitter.
O jornalista Iberê Thenório, um apaixonado pela Física e pela Química, criou no site do Manual do mundo uma nova maneira de olhar a ciência. Com o auxílio do vídeo, Iberê ilustra experiências, como a transformação do açúcar em cristais comestíveis ou a construção de um tubo antigravidade. No fim, ele explica como e por quais motivos cada reação acontece. Embora objetive ensinar os mais novos a gostarem de ciência, o site também é de interesse dos mais velhos. No começo deste ano, Iberê foi um dos palestrantes convidados para a Campus Party, maior reunião de nerds do país.
Um calendário que conta não só os dias, mas também traz maneiras diversas de interpretar a felicidade em ilustrações. Esse é o Felicidário, com apenas um detalhe diferenciador: o conceito trazido nas ilustrações foi criado sob a perspectiva de uma pessoa com mais de 65 anos. Resultado da parceria entre a Encontrar+se e a Lintas, ambas organizações portuguesas, o Felicidário teve início no dia 1º de janeiro deste ano e segue até o dia 31 de dezembro, com a participação de um ilustrador para cada mês.
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blogs NOVAS ÁFRICAS anotherafrica.tumblr.com
Em um misto do tradicional e do moderno, o tumblr Another África é um indicativo de como esse continente consegue harmonizar as tendências externas da moda em seu vestuário.
DESVIO DE CONDUTA playboy.abril.com.br/blogs/o-mundosegundo-tio-dino
Nem tudo que é publicado em mídias consideradas eróticas segue a regra. O blog do Tio Dino, alojado no site da revista Playboy, abraçado ao cinismo e à boa ironia, fala de política e assuntos inúteis, mas não menos importantes.
PARA LER THOMAS PYNCHON Site criado por fãs reúne informações, críticas e listagens sobre o escritor norte-americano, cuja obra caudalosa contrapõe-se à mentalidade tuiteira pynchonwiki.com
NÃO SAIO DAQUI
Propaga-se que vivemos um momento de superficialidade, no qual não há
naosaiodaquiporque.tumblr.com
tempo para leituras prolongadas e que, portanto, os 140 caracteres do Twitter seriam informação suficiente. Para nosso alívio, aparece de vez em quando quem prove o contrário. Além de criar obras gigantescas (como o romance Contra o dia, com suas 1.088 páginas), o escritor norte-americano Thomas Pynchon arquiteta universos quase indecifráveis. Autor de oito livros (sendo a coletânea de contos Slow learner a única não publicada no Brasil), Pynchon conquistou fãs pelo mundo todo. Foram esses que se uniram para montar o maior portal sobre o escritor. Arquitetado ao modo Wikipédia, em que qualquer usuário cadastrado pode acrescentar ou modificar informações, o site reúne desde observações e analogias feitas pelos leitores – e especialistas da área da literatura – a listas comentadas dos vários personagens pynchonianos. Para o grupo, essa é mais uma maneira de driblar as dificuldades para ler Pynchon, que, na opinião de James Wood, crítico da The New Yorker, é representante único do que ele chama de “realismo histérico”. GABRIELA ALMEIDA
Movimento iniciado no Rio de Janeiro, o Não saio daqui porque... chega ao Recife na comunidade do Coque. O propósito é muito simples: que as pessoas daquele bairro digam os benefícios de morar na região.
LITERATURA IMAGINADA livrosquevoceprecisaler.wordpress.com
O blog Os livros que você deveria ler apresenta resenhas de autores, histórias e tudo mais que compõe um livro: tudo inventado pelo jornalista Bernardo Brayner.
sites sobre
Idiomas TROCAS
PRONÚNCIA
BBC LANGUAGES
livemocha.com
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No Livemocha você aprende a língua que deseja com nativos e, em troca, tem que ensinar seu idioma para outras pessoas.
Também num sistema de troca, no Forvo você pode perguntar a falantes nativos de determinado idioma a pronúncia certa de qualquer palavra.
O site disponibiliza gratuitamente vídeos, áudios e textos de notícias para quem está aprendendo idiomas.
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Pedro Lucena
FINCADO EM SUAS RAÍZES TEXTO Mariana Oliveira
Foi o desafio proposto por uma colega que levou o alagoano Pedro Lucena a
desenvolver uma de suas mais recentes séries. “Por que você não junta elementos de Manoel de Barros às referências da produção artesanal da Ilha do Ferro?” Instigado pela proposta, o ilustrador elaborou obras que têm como inspiração esses dois universos. Ele já havia lido Manoel de Barros e visitado a alagoana Ilha do Ferro, mas para empreender o projeto foi preciso voltar ao lugar e ler as obras completas do escritor mato-grossense. Nesse estudo, percebeu que tanto Manoel de Barros quanto os artistas da Ilha do Ferro tinham a natureza como um tema de excelência. Parte dos resultados dessa investigação foram expostos em Maceió, até o fim de janeiro, na mostra Ciscos. Em agosto, as obras vão sair do papel e das paredes e dar vida a personagens no espetáculo de teatro de rua batizado de EmCiscos, cujo projeto foi contemplado com o prêmio do BNB. Em residência artística na Ilha do Ferro, Pedro pôde aproximar-se dos principais elementos daquele universo: homens e mulheres, serpentes, pássaros e lagartos, cadeiras, mesas, bancos e ex-votos. Em sua visão, seres antropomórficos e animais brotam de raízes, galhos e troncos que circundam o povoado. O modo intuitivo de produção dos artesãos também chamou a atenção do ilustrador, que, na série, chegou a trabalhar sem borracha, fazendo dos erros possibilidades reais de mudança de trajetos em seus desenhos. Não foi difícil para ele enxergar o elo entre esses elementos tão locais e próprios daquela região com a poesia de Manoel de Barros. “Na Ilha do Ferro, trabalha-se a representação
Página anterior 1 CORCUNDAS
Essas figuras são recorrentes nos trabalhos da exposição Ciscos
Nestas páginas 2 DOS QUE RASTEJAM E DOS QUE CANTAM
É uma das obras inspiradas em Manoel de Barros e nos artesãos da Ilha do Ferro (AL)
3-4 CONTOS O ilustrador tomou como referência Chapeuzinho Vermelho e Alice no país das maravilhas 5-6 PAPEL A maioria de seus trabalhos ganha vida neste suporte
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da natureza por meio da escultura, e o Manoel, através da poesia”, diz. Sua interpretação para essas duas vertentes são imagens de corcundas e galhos, cujas extensões se espalham pelo papel – figuras estranhas em comunhão com a natureza, remetendo o observador a um certo surrealismo ou mesmo ao realismo fantástico. Essa simbiose, aliada às cores e composições, confere um ar carregado, sombrio e sarcástico aos trabalhos. Daí, segundo Pedro, algumas pessoas afirmarem sentir apreensão diante deles.
A sua proposta, nessa série, é o reconhecimento, a compreensão do lugar de origem, a busca do “quem sou olhando para o chão”, numa referência aos trabalhos do poeta Manoel de Barros. “Alagoas é um lugar onde as pessoas não sabem direito quem elas são. Não valorizam o passado, vivem o presente, sem pensar no futuro. Esse mergulho nos símbolos da arte popular do estado reforça meu incentivo e minha procura por essa essência alagoana. Sou muito bem-recebido aqui, as pessoas gostam do meu trabalho, mas quero estimular uma reflexão que as faça olhar para tudo o que Alagoas tem a oferecer”, pontua.
Essa relação com o “chão de origem” fez com que Pedro mantivesse seu ateliê em Maceió, apesar de muitos defenderem que o melhor seria migrar para o Sudeste. A distância geográfica do centro econômico não tem impedido que o ilustrador desenvolva trabalhos para os mais diferentes suportes, sejam capas de livros, CDs, ilustrações para livros infantis, estampas, cartazes, periódicos. Segundo ele, mesmo quando são trabalhos feitos sob encomenda, seu traço e estilo ficam bastante claros. Como se já houvesse entre ele e seus clientes uma identificação. O início de sua carreira como desenhista profissional não se deu em Alagoas. Em 2006, Pedro Lucena atuava como professor e seguiu para a Amazônia com uma aluna estrangeira, para ajudá-la num projeto. Ao chegar lá, foi tocado pela riqueza natural do lugar e começou a desenhar. Seus esboços chamaram a atenção do coordenador de um projeto de preservação de quelônios, que o convidou para produzir uma cartilha. “Nessa hora, tive a percepção de que deveria investir no desenho. Uma pessoa que não me conhecia estava me contratando para trabalhar.” Foi aí que o garoto que desenhava para os amigos ganhou o mundo, mas sem esquecer suas raízes.
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7-8 ESPAÇOS O ilustrador gosta de trabalhar em toda a extensão da superfície, criando variadas texturas 9 COEXISTIR Alguns de seus desenhos exploram a simbiose entre os animais e a natureza
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A COISA ESTÁ RUSSA Tão assustador quanto a queda do meteoro na Rússia é saber o motivo da existência de vários vídeos de câmeras de automóveis registrando o fato. Os motoristas russos costumam ter os equipamentos nos seus carros para poder comprovar inocência em recorrentes casos de “atropelamento”. Há o costume de cidadãos se jogarem na frente dos veículos em busca de possíveis indenizações. Esse tipo de “armação” que, inclusive, é tema do filme argentino Abutres (2010), com o galã Ricardo Darín, nos faz lembrar aquela antiga gíria “a coisa está russa”. (DN)
BATISMO DE BANDAS
À sombra de Hitchcock A sentença “Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher” dá provas constantes de sua veracidade. A mais recente comprovação está no filme Hitchcock, concentrado nos bastidores da realização de Psicose. A história narra a importância que Alma, a esposa do diretor inglês, teve na feitura do clássico. Foi ela quem sugeriu o nome da atriz Janet Leigh para ser a protagonista, e ficou à frente da direção, quando o marido esteve doente por uma semana – os custos da produção, 800 mil dólares, saíram do bolso do próprio Hitch (que empenhara a residência do casal), pois o estúdio não acreditava no sucesso de uma história em que a personagem principal morreria na metade da trama e o “assassino era um travesti”. Alma também burilou o roteiro e ajudou na edição final da obra-prima. O mais interessante é que o filme Hitchcock apresenta a esposa do realizador como uma pessoa de personalidade forte, ao passo que em A garota, outro longa centrado nos bastidores de uma filmagem, desta vez de Os pássaros, Alma aparece como uma mulher submissa, que aceita o assédio sexual e moral do seu companheiro contra a atriz Tippi Hedren - o caso é extraído de Spellbound by beauty: Alfred Hitchcock and his leading ladies, livro que aborda a relação e a fixação do cineasta com suas protagonistas loiras. Qual das interpretações é a mais fiel à mulher à sombra do mestre? DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
O retorno da dupla Os Mulheres Negras, formada por André Abujamra e Maurício Pereira, aos palcos, fez com que uma entrevista dos artistas a Jô Soares, nos anos 1980, voltasse a ser assistida na web. Quando questionados sobre o porquê do nome do grupo, brincaram que foi uma alcunha gerada no computador e que eles trabalhavam inventando nomes para bandas. Maurício Pereira ainda informou o número de uma caixa postal para quem quisesse sugestões de nomes para seus conjuntos. A brincadeira foi levada a sério pelo público. Agora, com o vídeo no Youtube, a história se repetiu. (GPM)
Balaio LINCOLN, O FRASISTA
“Poucos homens são heróis diante do dentista.”
Recentemente homenageado em dois filmes – Lincoln, de Steven Spielberg, e o inusitado Abraham Lincoln: caçador de vampiros, dirigido por Timur Bekmambetov – , o 16º Presidente dos Estados Unidos ficou mais conhecido como um dos inspiradores da moderna democracia, entre outras coisas, devido à luta empreendida pelo fim da escravidão. Mas existe outra dimensão sua também bastante conhecida: a de autor de frases de efeito. Conta-se que, quando um adversário político o acusou de ser falso, de ter “duas caras”, saiu-se com essa: “Se eu tivesse duas caras, você acha que eu estaria usando justamente esta?” (Gilson Oliveira)
Agatha Christie
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TERRÍVEL RICARDITO Os quadrinhos comerciais, aqueles que trazem super-heróis de roupas colantes, com capa, superpoderes e discurso imperialista, sempre foram tachados de alienantes pelos puristas. Imagine o que diriam os detratores dos roteiros da DC e da Marvel, se acompanhassem histórias com heróis drogados, politicamente incorretos e pedófilos! O pior é que elas existiram e foram publicadas em décadas recentes. Em 1971, a revista que reunia o Lanterna Verde e o Arqueiro Verde publicou uma história assinada por Dennis O’Neil e Neal Adams que trazia Ricardito, o parceiro do Arqueiro, roubando cidadãos comuns e, o mais grave, utilizando-se das flechas “envenenadas” do companheiro. O motivo da brusca mudança de comportamento do jovem? Sustentar o vício de heroína! Após ser flagrado, Ricardito explica que tinha enveredado pela droga após ter se sentido traído pelas mentiras que a geração do seu mentor contara sobre a Guerra do Vietnã e a segregação racial. O jovem acaba a história, obviamente, largando a heroína, mas não antes de ver um amigo, membro de gangue de adolescentes marginais, morrendo de overdose. (Danielle Romani)
CRIATURAS
TABEFES DO BATMAN Além do Ricardito drogado, outras contravenções podem ser conferidas em edições publicadas a partir da Era de Ouro das HQs (1938-1958). Em 1942, a Mulher Maravilha fez sua primeira aparição e foi aceita na Sociedade da Liga da Justiça. Como superheroína? Lógico que não! Enquanto os heróis saíam para a batalha, a amazona atuava como... secretária! Em 1963, o morcegão Batman já combatia o crime em Gotham City ao lado do menino-prodígio, Robin. Sentindo-se ameaçado em relação ao parceiro, que conhecia sua identidade secreta, Batman dá uns tabefes em seu companheiro mirim, usa um aparelho hipnótico que lhe apaga a memória e interna-o num orfanato. Já o honrado professor Xavier, líder dos X-Men, em 1968, mostra traços de pedofilia, ao confessar-se apaixonado pela adolescente Jean Grey. Se fosse hoje, o chefe dos mutantes iria parar na cadeia. (DR)
Yoko Ono, 80 anos Por Jarbas Domingos
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Cigano POVO AINDA À MARGEM, MAS EM BUSCA DE LEGITIMAÇÃO TEXTO Danielle Romani FOTOS Roberta Guimarães
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Os ciganos têm a mesma origem, mas se dividem em grupos heterogêneos. O tempo e as rotas percorridas fizeram com que se fossem criando, durante os séculos, particularidades linguísticas, econômicas, culturais, religiosas e sociais, que os dotam de hábitos e costumes diferentes. Nem todos são pobres, nem todos morenos, nem todos analfabetos. Poucos são ricos, raros dançam em volta da fogueira ou usam roupas extravagantes, do tipo que se vê nas novelas e nos bailes à fantasia. Mas uma coisa eles têm em comum: uma extraordinária capacidade de assimilar o patrimônio cultural de onde vivem, a fim de amenizar o preconceito que enfrentam nos mais diversos países e sociedades. Foram três os grandes grupos que se desgarraram na diáspora iniciada há mais de um milênio: os calon, os rom e os sinti. Roma é o nome pelo qual gostam de ser chamados. Está diretamente ligado à língua “original” dos grupos, o romani. Cigano, vocábulo criado pelos europeus no século 15, não é um termo que lhes agrade, pois sempre foi sinônimo de indivíduo de segunda classe. Um estigma, um fardo.
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Indiana naturalizada brasileira, a calin Márcia Yáskara Guelpa é enfática ao afirmar que os gadjons (não ciganos) não entendem o seu grupo étnico. “Há um total desinteresse em relação à nossa realidade: muita invenção e exagero. Além de um imenso preconceito”, afirma a jornalista e publicitária. Feminista, Márcia trabalhou em publicações como a Vogue e IstoÉ, tem origens muçulmanas e há anos optou pelo engajamento na defesa do seu povo. Mas a lentidão na consolidação de políticas e, principalmente, a rigidez governamental para lidar com as particularidades dos grupos existentes fizeram com que Yáskara se tornasse impaciente com o que não apresente retorno rápido. “Estou cansada de promessas e conversas. Os governos, as instituições não sabem quem e quanto somos, do que precisamos, como nos ajudar a preservar nossas particularidades e valores culturais”, diz. Foi exatamente no final da pesquisa feita sobre os calons nordestinos, resultado de viagens por três estados – Rio Grande do Norte, Paraíba e
Pernambuco –, que a reportagem da Continente conheceu Yáskara e pôde acompanhar um casamento nos moldes da tradição cigana. Antes, conduzidos pelo líder cigano pernambucano Enildo Soares, por antropólogos da Universidade Federal de Pernambuco e pela historiadora Carla Alberta Gonzalez Lemos, atuante pesquisadora dos ciganos potiguares, percorremos comunidades nos três estados, e pudemos observar como vivem alguns grupos ali instalados.
PERTENCIMENTO
A primeira constatação é de que, apesar das evidentes mudanças culturais, incontornáveis para qualquer povo que viva no mundo globalizado, o pertencimento e o sentimento de ser cigano permanecem fortes nos grupos visitados. Independentemente de usarem roupas longas ou minissaias, de se comunicarem pelo Facebook ou por cartas, de serem iletrados ou graduados, os ciganos se afirmam como tal. “Os ciganos obviamente não são os mesmos. Nem os índios. Nem os negros. Nem os portugueses – ou por
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Página anterior 1 MATRIARCA
Aos 95 anos, Amélia Targino lidera os ciganos de Apudi (RN)
Nestas páginas 2 CALIN
A jornalista Márcia Yáskara Guelpa atua pela legalização do seu povo
3 VIDENTE Maria do Socorro, a Tânia, é cartomante e quiromante. “A gente não lê, a gente desvenda almas”, diz 4 CARTEADO A exclusão de empregos formais promove o ócio. O jogo de cartas é o principal passatempo
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acaso temos notícias de portugueses andando em caravelas e portando chapéus de plumas no século 21? Acontecem transformações sociais que possibilitam uma dinâmica de novas tradições. Os judeus, por exemplo, reproduzem as orações ritualísticas do Antigo Testamento, mas não fazem mais os sacrifícios de sangue. Portanto, apesar de a maioria dos ciganos não andar nas caravanas, em mulas, ou de saias compridas, continuam sendo autenticamente ciganos. Não perderam nada, como se costuma afirmar, erroneamente. Apenas se adaptaram às transformações sociais, mantendo a integridade de suas tradições”, explica Renato Athias, antropólogo e diretor do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (Nepe) da UFPE, órgão vinculado ao CNPq, que realiza estudos sobre ciganos, índios, negros, judeus e quilombolas. Apesar do sentimento de pertencimento e do orgulho em serem ciganos, eles se ocultam dos gadjons. Se forem abordados por estranhos, negam suas origens. Rompida a
Os ciganos não se cristalizaram no tempo. Assim como outros grupos, eles acompanharam as mudanças sociais barreira da desconfiança, percebemse peculiaridades desse grupo étnico que o distinguem: o apego à família, em especial às crianças e aos mais velhos; o idioma calé (no caso dos calons), o temor de perderem suas tradições e a convivência constante com a hostilidade. Percebe-se, também, embora veladamente, que mantém leis próprias – às quais os membros dos grupos se submetem e são julgados severamente, caso as descumpram. A existência de rivalidades e disputas entre lideranças foi outro fato percebido. Nesses casos, é natural que os grupos em desvantagem migrem de território, e se refugiem, sem pedir ajuda às autoridades
formais. Os ciganos preferem resolver suas contendas entre si. Um casamento cigano em Sousa (PB) foi considerado o ponto máximo da reportagem. A cerimônia se deu numa noite de lua cheia e ofereceu uma vasta simbologia da tradição: noiva vestida de vermelho, troca de punhais, pão, sal e vinho, quebra de taça de cristal, leques, lenços, moedas e dança típica, em que o casal não se toca fisicamente, apenas com o olhar. Os noivos eram Marcilânia Alcântara, 26 anos, e Pedro Bernardoni, 25. A escolha do local da festa, que se desenrolou com rituais executados por Márcia Yáskara Guelpa, não foi consensual. Enquanto a pesquisadora Carla Alberta Gonzalez Lemos afirmava nunca ter visto um casamento rico como aquele, o pai do noivo, Francisco Soares Figueiredo, criticava o lugar. “Onde já se viu cigano casar-se em um salão de eventos?”, indagava. “Por mim, era no rancho, que é onde deve ser feita a cerimônia na nossa tradição”, queixou-se. Antes, o casal havia se unido no civil e no religioso católico, com a noiva vestida de branco.
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CON ESPECIAL TI NEN TE 5 CASAMENTO Pedro e Marcilânia executam danças ciganas durante a cerimônia, realizada dentro da tradição 6 ENILDO SOARES Representante de comissões, presidente de associações, ele atua pelos direitos e reconhecimento do seu povo 7 POETA Fernando Calon está entre os ciganos que se dedicam à arte: é escritor e declamador
O casamento em Sousa revelou o protagonismo dos mais jovens na manutenção das tradições, uma atitude claramente afirmativa de identidade étnica. Por isso o “evento” público, com a presença de jornalistas e marcado por referências ao que se reconhece como ciganidade. Não por acaso, os noivos têm bom nível de escolaridade e mentalidade moderna: mostram a cara nas redes sociais, fazem apologia à sua cultura e se afirmam ciganos sem medo do preconceito. Marcilânia é pedagoga e dançarina de ritmos gitanos, o que ajudou a conferir qualidade extra à cerimônia. Pedro passou no vestibular de História, mas continua tentando o curso de Direito. A aliança entre os dois não foi acertada na infância, como ocorria no passado. Aconteceu naturalmente, para a felicidade das famílias, pois os pais de ambos (o já citado Francisco Soares Figueiredo e o pai de Marcilânia, Gradival Alcântara) se conhecem desde pequenos, quando arranchavam no Sertão. Na manhã do dia seguinte à festa, ao chegar à casa dos pais do noivo, encontramos o recém-casado fazendo “uma boquinha” na cozinha. Isso porque os ciganos têm uma unidade familiar pouco comum entre os não ciganos. “A gente é assim mesmo, vive sempre junto”, explicava-se Pedro, que mora a metros do pai. As famílias que habitam no Rancho de Cima (existem outras em Sousa, comandadas por chefes do chamado Rancho de Baixo) são lideradas pelo pai de Pedro, também chamado de Coronel, e mantêm entre si uma estreita relação de proximidade. “Tem dias em que faço a comida e quando vejo, acabou, porque toda hora entra e sai gente. Para nós, isso
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é normal. É nosso jeito”, conta Hilda Lacerda, segunda esposa do Coronel. No dois dias que se seguiram à noite de casamento, amigos, convidados e parentes dos noivos desdobravam-se em comemorações, embaladas por cantigas, sons de violão e bebidas. “Antes, a gente celebrava até mais; agora, as festas são menores”, explicou Hilda, que não tinha ideia de quando os festejos acabariam.
TRANSFORMAÇÕES
José Gonzaga Carnaúba, 47 anos, líder calon de Macau, Rio Grande do Norte, também se ocupa da manutenção dos costumes, mas não sofre pelas mudanças. Nem mesmo com o fato de sua filha Monaliza Dantas Carnaúba, de 23 anos, namorar um gadje. “O progresso traz coisas boas e desgraças. Você vive num mundo misturado com os outros. Não tem como a gente se fechar”, pondera o líder calon, que, ainda assim, sente saudades do passado. “Fui nômade. Deixamos de andar por volta de 1980. O progresso não tem como ser evitado, eu sei, e se a gente não for um cigano forte, a sociedade nos engole”, afirma Gonzaga, que vive do comércio a varejo, opção da maioria dos ciganos sertanejos. Gonzaga até se arrisca a fazer um prognóstico sobre o futuro.
“Até 1980, o grupo da gente trocava animais, vendia ouro. Hoje, negociamos o que é possível” José Kleber Soares “Os ‘meninos’ vão se casar cada vez mais com os não ciganos e se envolverem com estudos e mercado de trabalho.” Realidade já vivida por Monaliza, mas fora do alcance de Gonzaga e de seus parceiros de meia idade, que nunca frequentaram uma sala de aula. “Sei ler e escrever, mas nunca estudei”, diz o líder. Dona de casa e cartomante – com clientes que vêm de lugares remotos em busca de seu trabalho divinatório –, Maria do Socorro Dantas, ou Tânia, afirma que não quer nem estudar nem aprender a ler. “Gosto de ser assim”, argumenta a matriarca. A filha Monaliza tem planos opostos: quer se capacitar cada vez mais. “Minha realidade é entre dois mundos: os calons e os gadjons. Minha mãe acha que, se estudar, vai quebrar a tradição. Mas os nossos jovens vão acabar na escola. Isso nos ajudará a conquistar direitos. Com ou sem diploma, sou cigana.”
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“Ninguém me ensinou a ler carta, mão, nós nascemos sabendo. A gente não lê, a gente, na verdade, desvenda a alma”, afirma Tânia. Outra cigana que pratica leitura de cartas e quiromancia é Maria Soares, ou Judith, 72 anos, que vive na agrestina Serra Caiada. Ela é a líder de dezenas de mulheres que, ao nascer do sol, vestem as “roupas típicas” ciganas e vão às ruas das cidades vizinhas, em busca de clientes. “Faço reza, oração, cura, jogo, adivinho. Não sei ler, mas sei ver as necessidades dos que precisam de ajuda”, diz Judith. Casada com Marcos Soares, um dos líderes do rancho, Islaine da Silva, 24 anos, apesar de não ser cigana de origem, lê a sorte e joga cartas. No pequeno quarto que divide com marido e filha guarda um luxo que não condiz com a precariedade do aposento: uma mala repleta de vestidos compridos e bordados. É com eles que a morena aborda e impressiona os gadjons nas cidades e vilarejos onde trabalha. “A gente tem que sair pra ganhar dinheiro, lendo a mão. Depois disso, vamos atrás de comida e lenha. Os homens tentam fazer negócio, mas pra eles é ainda mais difícil. Acaba que é a gente que consegue trazer alguns trocados com nosso dom”, diz Islaine.
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CON ESPECIAL TI NEN TE 8 MÚSICO Tiago Dantas faz shows e apresentações nos arredores de Itambé
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O líder do seu grupo, José Kleber Soares, 43 anos, brinca com o fato. “O cigano é igual ao leão. A leoa é que vai à caça, a gente fica só esperando”, diz o chefe do rancho de 30 pessoas. E afirma que os homens só conseguem algum dinheiro vendendo o que lhes cai nas mãos. No mais, passam horas conversando, jogando baralho e resolvendo disputas entre os agregados. “Até 1980, o grupo da gente andava a cavalo, trocava animais, vendia ouro. Hoje, negociamos o que é possível. Mas é pouco trabalho pra muito homem, pois ninguém emprega cigano. Agora me sinto igual a um passarinho dentro de uma gaiola”, pontua José. Responsável por centenas de ciganos, alguns ao seu lado no rancho, outros instalados em cidades próximas, ele menciona, nostálgico, o período em que o Rio Grande do Norte teve um grande líder. “Há 10 anos, estou na liderança desse grupo. Mas nada comparado à época de José Garcia, um cigano lendário que comandava mais de duas mil pessoas. Ele era a força. Com sua morte, acho que se acabou a tradição”, lamenta.
BENS ESCASSOS
A importância de José Garcia também é cantada em Apodi, extremo sertão do Rio Grande do Norte, onde a família da nonagenária Amélia Targino, dona
“Desde que Zé Garcia morreu, os ciganos do Rio Grande do Norte se largaram cada um pra um lado” Toinha Carnaúba da Silva Dudu, vive há uma década. “Desde que Zé Garcia morreu, os ciganos do Rio Grande do Norte se largaram cada um pra um lado. A gente mora aqui há oito anos, mas não tem futuro: lê mão, joga baralho; quando dá, troca relógio, vende rádio, CD... Quando andava em acampamento, passava muita fome, mas se divertia. Era cigano de verdade”, diz Toinha Carnaúba da Silva, 52 anos, filha de Amélia. As dezenas de ciganos dessa família vivem em casas praticamente vazias – uma cadeira, uma televisão e mais nada –, algo comum nas residências visitadas. Duas explicações para a escassez de bens são a baixa renda e a “ciganidade” latente, pois a maioria dos calons fica constantemente na calçada, convivendo em grupo. “Pra que tanto troço, se a gente, de repente, tem que sair pra outro lugar?”, pergunta Toinha. Parcimoniosos nas posses, não economizam nos festejos.
Em Apodi, como na maioria das localidades visitadas, a maior festa cigana nordestina é o Natal. No caso deles, a comemoração começa na tarde do dia 23 e se estende até a madrugada do dia 24. A festa em Apodi tem uma “estrela”: o poeta Djalma Arruda, ou seu Ferreira, 76 anos. “Aprendi o bê-á-bá sozinho, bisbilhotando os estudos dos gadjons. Faço muitos versos e música”, comenta. A produção artística está presente entre vários ciganos encontrados. No Rancho de Cima e no de Baixo, em Sousa, grupos de músicos são comuns e reconhecidos como talentosos. Em Natal, o poeta e performer Fernando de Souza Lima é famoso pelo talento literário. Mas poucas comunidades superam o talento dos ciganos de Itambé, que nasceram para a música e dela vivem. Tiago Dantas, filho de Eliezer Dantas Soares (Antônio Seresteiro) e Severina Maria Cavalcanti (Sarah) é quase um “ídolo” local. “Dá pra montar uma banda só com a minha família. Em casa, quando a gente se junta, é só música”, diz Tiago, que, hoje, aos 22, é músico profissional. “Canto MPB, mas também sou compositor. Temos poucas oportunidades, mas acredito no futuro.”
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EUROPA Eterna sensação de ser “intruso”
Desde a Idade Média até os dias atuais, esses grupos étnicos sofrem barbáries e humilhações, após terem saído da Índia, seu país de origem
Eternos “intrusos” nos países onde
vivem, apesar de neles terem nascido e neles estarem há séculos, os calons, roms, sintis parecem carregar um estigma: o de nunca serem aceitos onde estão e por aqueles que os rodeiam. “A sociedade nos rejeita. Somos sempre olhados com desconfiança. A gente tenta entender o porquê, mas é difícil”, afirma
Roberto Cavalcanti Soares, 46 anos, líder do grupo calon de Itambé. Nômades por séculos e hoje obrigados a exercer uma mobilidade circunstancial – em especial na Europa, onde têm sido jogados de um país para outro –, os ciganos são perseguidos e discriminados desde sempre. Os motivos? Nem mesmo antropólogos,
pesquisadores e historiadores conseguem apontar, satisfatoriamente, as razões dessa intolerância. No livro Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil, o antropólogo Frans Moonen explana sobre as perseguições aplicadas contra os ciganos entre os séculos 15 e 20, no continente europeu. Moonen cogita que a discriminação teve motivações políticas e econômicas. O medo de dividir as terras e os empregos fez com que os europeus desejassem que os grupos fossem banidos rapidamente. “Os primeiros bandos que apareceram na Europa eram liderados por ‘condes e duques’ (autodenominavam-se assim, através de documentos). Acontece que esses nobres ciganos não tinham terras próprias e, embora afirmassem estarem em peregrinação, tudo indicava que vieram para ficar na Europa”, aponta Moonen. As habilidades profissionais dos ciganos foram outro entrave. Segundo o
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antropólogo, “exerciam atividades que concorriam com as profissões urbanas, como as de ferreiro, caldeireiro e artesão, de um modo geral”. Ciganos podiam ser artistas, músicos, dançarinos e acrobatas, ou apenas mendigos. “Constituíam uma ameaça de concorrência econômica também para os artistas e até para os mendigos” Acrescente-se a isso, pondera o antropólogo, a “cor escura de sua pele, seu aspecto sujo, sua língua incompreensível, sua origem desconhecida, o fato de, aparentemente, não terem religião, os poderes mágicos das mulheres que sabiam prever o futuro e jogar pragas”. Esse conjunto de características provocou receio, depois, ódio na sociedade europeia da época. Diante disso, logo foram criadas histórias envolvendo-os: roubavam crianças, eram canibais, ladrões, traziam má sorte e doenças, e, principalmente, não eram cristãos, o que foi capitalizado pela Igreja, dando motivos para que muitos fossem mortos e perseguidos pela Inquisição. Uma das “acusações” foi a de que seriam filhos de Caim e teriam fabricado os pregos que crucificaram Cristo. Moonen explica que isso não passa de invenção, em especial no que diz respeito à época da crucificação, período em que os ciganos sequer haviam saído da Índia. Na tese Da barraca ao túmulo: cigana Sebinca Christo e as construções de uma devoção, apresentada à Universidade Federal do Paraná, o doutor em História, Lourival Andrade Júnior, registra outros argumentos. “Há relatos de que não deram abrigo a José e Maria e que convenceram Judas a trair Jesus.” Lourival resgatou um documento datado do século 17, enviado pelo teólogo Sancho de Moncada ao rei da Espanha, em que solicita severa repressão aos ciganos, classificando-os de “uma ralé muito perniciosa, espiões e traidores da coroa, um povo vagabundo e preguiçoso, ladrões de crianças, cavalos e gado, encantadores, feiticeiros, adivinhos mágicos, quiromantes, heréticos, idólatras, ateístas”. O mesmo religioso conclui seu argumento com extremo “pragmatismo”: “Por que não há lei que nos obrigue a criar filhotes de lobo...”
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ORIGEM E PERSEGUIÇÃO
Ágrafos, os ciganos não produziram documentos que possam comprovar suas origens e história. Mas estudos linguísticos de seus dialetos, realizados no século 18 – que apontaram semelhanças marcantes com o sânscrito –, e recentes exames biológicos, promovidos pelo Instituto de Biologia Evolutiva da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, permitiram algumas revelações. Após um exame do genoma de milhares de indivíduos, a instituição concluiu que, aproximadamente, 11 milhões de ciganos que vivem atualmente na Europa têm a mesma origem, o norte da Índia. Os estudos também indicam que eles saíram do país há 1.500 anos, de uma só vez, chegando à Europa a partir dos Balcãs, no século 14. Os rom mantiveram maior pureza dos genes, ao realizarem mais casamentos endogâmicos. Os calons, por sua vez, demonstram maior nível de miscigenação. Nesse percurso da Índia à Europa, atravessaram a Ásia Central, o Oriente Médio e a Grécia, onde permaneceram
Ciganos também foram alvos dos nazistas. Estima-se que foram mortos entre 220 e 500 mil deles na Segunda Guerra Mundial por um bom tempo. O nome cigano, entretanto, surgiu de um mal-entendido: aos serem indagados sobre suas origens pelos europeus, afirmavam ser provenientes do pequeno Egito, região grega, e não o país. Daí cogitar-se que suas origens fossem egípcias, o que redundou nas denominações gypsies, zingari, zigeuners, tsiganes, gitanos, ciganos. As primeiras informações confiáveis datam de 1417, quando vários registros atestam que visitaram a Alemanha. No começo do século 16, já estavam em todo o continente, inclusive na Inglaterra. Após a recepção, por pouco tempo calorosa, as perseguições começaram. Em 1430, na cidade de Konstanz, um cronista culpa os ciganos por praticarem magia, roubo, de serem
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responsáveis pela fome que assolava a cidade e por uma epidemia de peste. Em 1526, foi vetada a entrada deles em Portugal. Nada menos que 133 legislações anticiganas foram editadas na Alemanha, entre 1551 e 1774. Em 1734, na Prússia, podiam ser aprisionados ou caçados. E mortos, obviamente.
SÉCULO 20
A discriminação e o desprezo só aumentariam. Juntamente com os judeus, os ciganos foram os alvos preferenciais dos nazistas. Em 1927, antes mesmo da criação de leis antijudaicas, os ciganos alemães eram obrigados a andar com um documento de identificação. Algum tempo depois, foi criado o Serviço Central de Combate à Praga Cigana. Em 1937, no Centro de Pesquisa para Higiene Central e Biologia Populacional, em Berlim, investigava-se a suposta relação entre hereditariedade e criminalidade, elaborando complicadas árvores genealógicas de ciganos. Em dezembro de 1942, Heinrich Himmler, comandante da SS, ordenou o envio de todos os ciganos alemães para o campo de Auschwitz–Birkenau. Estima-se que
foram mortos entre 220 mil e 500 mil ciganos na Segunda Guerra Mundial. Em 2012, 67 anos após o massacre, um memorial para os ciganos vitimados pelo Holocausto foi inaugurado, em Berlim, pela chanceler Angela Merkel. O monumento não deixa de ser um reconhecimento do governo alemão. Mas, contraditoriamente, não retrata a realidade: reconhecese a injustiça contra a etnia, mas o fato não sensibilizou as autoridades alemãs a revogar as políticas de deportação no país. Na França, a situação não é diversa. Apesar das promessas, o governo socialista de François Hollande manteve a política segregacionista de Nicolas Sarkozy: em agosto de 2012, alegando medidas sanitárias, desmontou vários acampamentos ciganos no país, deportando-os para a Romênia. A discriminação que sofrem foi observada muito de perto pela professora, antropóloga e socióloga pernambucana Vânia Fialho, que, durante o ano de 2010, esteve em regiões italianas situadas no norte industrial. Inicialmente preparada para estudar os migrantes de uma forma geral, ela se assustou com a intensa discriminação contra os ciganos locais, que acabaram virando objeto de estudo. “Uma das expressões mais utilizadas em relação às comunidades e indivíduos é schifo e schifosi, que equivalem a nojo e nojentos em português”, conta Vânia. Em Milão, um acampamento de 10 anos de existência (portanto
Página anterior 9 DESLOCAMENTOS
Os ciganos europeus sofrem, hoje, forte rejeição
Nestas páginas 10 HOLOCAUSTO
Em Berlim, memorial homenageia ciganos mortos pelos nazistas
11 BANDEIRA A roda, que representa a carroça e o movimento contínuo dos grupos, tornouse emblema dos roma
legitimado) passou dias sendo vigiado pela polícia e foi desmontado. “Os jornais denunciavam que o governo estava permitindo a criação de uma zingarópolis (cidade de ciganos), cobrando medidas mais efetivas contra eles”, lembra Vânia. Em Roma, verdadeiros “campos de concentração” estão sendo cogitados para os ciganos. Na Espanha, medidas semelhantes vêm sendo estudadas. “Com a crise econômica continental, acredito que os desdobramentos serão ainda mais difíceis e dramáticos”, diz. Em entrevista à Isabel Fonseca, autora de impecável livro sobre os ciganos europeus, o rom búlgaro Manush Romanov demonstrou toda sua dor, cansaço e frustração pelas lutas e humilhações vivenciadas nas últimas décadas, com a seguinte frase: “Enterrem-me em pé. Passei de joelhos toda a minha vida”. Enterrem-me em pé – a longa viagem dos ciganos foi, portanto, o título dado ao livro por Isabel Fonseca, que registrou outra fala de Romanov: “Nossos problemas são tantos quanto as folhas da floresta”. Não há exagero em sua frase. DANIELLE ROMANI
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Artigo
RENATO ATHIAS OS CIGANOS E O “DARWINISMO SOCIAL” Meu primeiro contato com os
ciganos foi na infância, com as estórias da babá. Ela sempre falava de uma cigana que lia as mãos. Depois, na adolescência, lendo Memórias de um sargento de milícias. Acho que minha geração, no norte do país, conhecia os ciganos através das estórias e contos. Em seu romance de 1854, Manuel Antônio de Almeida descreve os ciganos: “Com os emigrados de Portugal, veio também para o Brasil a praga dos ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia, seus costumes e suas crenças, de que muito se fala, deixaram na outra banda do oceano: para cá, só trouxeram os maus hábitos, esperteza e velhacaria (...)
Viviam em quase completa ociosidade; não tinham noite sem festa”. É a partir desse imaginário que os ciganos aparecem para os brasileiros urbanos e que serão construídas as relações sociais e as políticas públicas brasileiras. A descrição do escritor não difere em nada da definição divulgada da Encyclopédie de Diderot, que propaga ao mundo das letras que os ciganos são “vagabundos que praticam a profecia pela leitura de mãos. O seu talento é cantar, dançar e roubar”. Isso vai influenciar o “darwinismo social”, que, como doutrina, contribuiu para o acirramento das perseguições aos ciganos e às outras minorias étnicas. É indiscutível que, degradantes ou românticas, cercadas de generalizações e estereótipos, todas essas impressões sobre os ciganos tiveram um lugar garantido em nossa “bagagem de heranças europeias”. Valem ser lembrados outros autores que descrevem com mais simpatia a vida dos ciganos, entre os quais, Bartolomeu Campos de Queirós, com destaque para o seu premiado livro: Os ciganos. Esse autor apresenta muito bem a temática, mostrando em sua narrativa a ambiguidade de sentimentos que os
ciganos despertam. Nessa história, ele mostra um menino, Mário, que, com medo, sonhava em ser roubado pelos ciganos que acampavam em sua cidade. Mário pensava, na realidade, ganhar liberdade e conhecer um novo mundo com o qual sonhava, e, ao mesmo tempo, despertar o amor do seu ocupado pai, que partiria para resgatá-lo. Até hoje, essa ambiguidade está presente entre muitas pessoas. Mais tarde, durante minha formação como antropólogo, sobretudo vivendo na Europa por vários anos, tive um contato maior com os ciganos. Ali, aprendi a vê-los como uma categoria social, com história e cultura bem específicas, distribuídos em diversos grupos étnicos, com etnônimos próprios, cujos principais são os rom, os calon e os sinti. No Brasil, acredito que o preconceito ainda é o mesmo existente em relação aos judeus. Em diferentes momentos históricos, os ciganos estão presentes fortemente no imaginário dos brasileiros.
ORIGENS
A origem dos povos ciganos, como grupos nômades, é a Índia. Eles migraram de lá, de maneira ostensiva,
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do século 16, quando muitas leis e regulamentos tentam erradicar os ciganos de Portugal ou obrigá-los a se integrarem na sociedade. Pesquisas demonstram que os ciganos chegaram ao Brasil ainda no período colonial, mas não existe um consenso quanto à data exata. Essas informações remetem ao degredo de indivíduos ou famílias ciganas, por determinação da Coroa Portuguesa. As deportações de ciganos de Portugal para o Brasil se estenderam até o final do século 18. Fui ter mais contato com os ciganos quando iniciei uma pesquisa, em 1997, entre os índios pancararus. Acredito
Estudos em ciganologia aparecem em 1888, na Inglaterra, quando foi lançada a revista Gipsy Lore Society durante os séculos 8 e 9, passando a circular de maneira efetiva por inúmeros países em diferentes continentes. Angus Fraser, talvez a maior autoridade britânica sobre a história dos ciganos, traça um quadro histórico da expansão deles na Europa, desde o século 15, bem como as diversas reações que essas mobilizações impactaram, por mais de quatro séculos consecutivos. Através dessas leituras, conseguimos identificar uma maior unidade étnica e cultural entre os antepassados, assim como alguns aspectos culturais presentes nos dias atuais. As informações mais seguras indicam que as primeiras grandes famílias ciganas que chegaram ao Brasil vieram de Portugal, sendo que esses ocuparam a Península Ibérica entre os séculos 14 e 15. Os documentos conhecidos que tratam da presença de ciganos na Península Ibérica datam de 1415 e 1425, ambos emitidos por D. Afonso V, que autorizavam a circulação temporária de ciganos em Aragão, solicitando que os mesmos fossem bem tratados e acolhidos por um período de três meses, sem pagarem taxas ou tributos. Esse teor já não é o mesmo nos documentos
que ainda exista uma rota de ciganos que passa pelo território desses índios, no sertão pernambucano. E, de acordo com os pancararus, o trajeto é muito antigo, pois eles têm notícias de grupos de ciganos através da tradição oral. Historiadores, entre os quais Geraldo Pieroni, destacam o século 17 como o momento em que se generalizou o degredo de “bandos” de ciganos para o Brasil, principalmente após a resolução real de 1686, baseada nas orientações de Filipe II (1610), que determinava o degredo de ciganos para a África, e, depois, para o território brasileiro. Esse decreto representou um dos principais instrumentos utilizados pela coroa portuguesa para “despejar” seus “elementos indesejáveis”. O degredo funcionava como um ritual de purificação, ligado a questões religiosas, sob o comando do Santo Ofício. Porém, antes desse período, têm-se notícias de chegadas de ciganos no Brasil tal como nos informam outros autores. Rodrigo Corrêa Teixeira analisa as cartas do secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo Castro, cujo conteúdo indica o envio anual de
cerca de 400 ciganos para o Brasil, entre 1780 e 1786. Ele também identifica que muitos desses vieram para o território de Minas Gerais através do Rio São Francisco.
OLHAR “ESTRANGEIRO”
Existe um desconhecimento mútuo e uma intolerância nas relações entre os ciganos e não ciganos. Podemos verificar isso há séculos, nas relações entre o Estado e esses grupos, não só no Brasil, e buscar os registros dessa relação, que têm sido feitos de maneira unilateral, sob o olhar “estrangeiro”, algumas vezes implacável e outras, paternalista, dos estudiosos não ciganos sobre o tema, que buscam enumerar, e descrever os costumes e tradições dos ciganos, como um jornalista em busca de um furo de reportagem. O resultado é geralmente cercado de leituras equivocadas, generalizantes e preconceituosas, acentuando a dificuldade de entendimento entre esses dois mundos, involuntariamente, mas obrigatoriamente interligados. Os estudos sobre a temática cigana têm sido caracterizados como ciganologia, relacionada diretamente à Antropologia Cultural, mas tendo a História e a Linguística como disciplinas auxiliares. Como área específica de conhecimento, assim como da terminologia que a compõe, aparece a partir de 1888, na Inglaterra, quando foi lançada a revista Gipsy Lore Society, a primeira revista europeia, responsável pela generalização recorrente de se denominar como “ciganos” grupos de “populações flutuantes”. Existem muitos ciganólogos nas diversas universidades brasileiras que lidam com esses estudos. Mas o que me interessa, como antropólogo, é poder compreender o processo de etnicidade cigana nos diversos contextos brasileiros. Venho trabalhando com essa vertente nas pesquisas que desenvolvemos no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade do Programa de PósGraduação em Antropologia da UFPE. Talvez, uma das questões principais desses estudo é entender a mobilidade cigana ou como se dá hoje a noção de nomadismo. O que significa essa “perambulação” fortemente associada às identidades ciganas.
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BRASIL Mestiçagem também cigana
A propalada miscigenação nacional ignora ou suprime essa etnia que, assim como outras, foi trazida maciçamente ao país em fluxos migratórios
“Desde a colonização, os ciganos
estiveram nos quatro cantos do Brasil. Por isso, bem se pode afirmar que, para compreender a cultura brasileira em sua totalidade, é preciso investigar as contribuições dos ciganos para as artes, a toponímia, os hábitos, enfim, para a vida tradicional do país.” A afirmação, feita pela pesquisadora Cristina da Costa Pereira (Os ciganos
ainda estão na estrada), reflete a presença cigana na formação da identidade nacional: nas guerras travadas no início da colonização, na língua e nos folguedos, mas desconhecida dos brasileiros e ignorada pela historiografia oficial. A presença cigana no Brasil data, oficialmente, de 1574. Nesse ano, João Torres foi condenado ao
degredo no Maranhão apenas pelo fato de ser cigano. Apesar da ordem de despacho, não existem registros posteriores da sua presença no Brasil. Mas, nesse período, já se registrava a chegada de ciganos ao país. Na dissertação Sou cigano sim! Identidade e representação: uma etnografia sobre os ciganos na Região Metropolitana do Recife, apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia da UFPE, Erisvelton Sávio Silva de Melo pesquisou a presença desse povo em território pernambucano. Encontrou evidências de que membros da etnia calon se encontravam aqui no final do século 16. “Em abril de 1594, o cigano Diogo Sanches, residente em Igarassu, é citado no livro Denunciações de Pernambuco, como ‘mercador de lógea de mercearia, sedentário e rico’, denotando uma afronta ao pensamento vigente sobre quem seriam os ciganos, geralmente associados ao nomadismo, à pobreza e ao roubo”, aponta a dissertação.
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Para reforçar a tese de que os ciganos já estavam no Brasil, Sávio mostra que, em 1603, a Câmara Municipal de São Paulo de Piratininga concedeu licença para a abertura de uma casa comercial na cidade, recebendo a alcunha de Cigana Francisca Roiz. “Foi o primeiro comerciante de todo estado de São Paulo, reforçando o protagonismo da mulher cigana no grupo.”
DENTRO DOS QUILOMBOS
A calin Márcia Yáskara Guelpa pesquisa a história do seu povo. Ela afirma que os ciganos viveram com os negros em quilombos e que participaram de várias guerras e revoltas coloniais, a exemplo da expulsão dos franceses, no Maranhão. Foram usados pelos portugueses, também, para combater os índios que resistiam à colonização. Se havia ciganos aliados aos quilombolas, havia, também, os que traficavam e vendiam escravos, atividade que se desenvolveu a partir
do século 17 e se estendeu até o fim da escravidão. O viajante francês V. Gendrim, que morou no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821, referiu-se, em cartas, às ciganas “vendedoras ambulantes de escravos africanos, as quais percorriam as ruas da cidade”. No trabalho Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil, o antropólogo Frans Moonen descreve a diáspora cigana pelo país. Segundo ele, a deportação “maciça” começou a partir de 1686, quando a expulsão para o Novo Mundo passou a ser uma estratégia para “livrar-se” dos grupos que insistiam em permanecer nos territórios portugueses. Nesse período, os ciganos eram deportados, principalmente, para o Maranhão, Pernambuco e Bahia. Atraídos pelo ciclo do ouro, os ciganos já se encontravam em Minas Gerais desde o início do século 18. A partir da sua chegada, tudo lhes era atribuído. O preconceito era tão grande na região, que várias correspondências da época citam Tiradentes, o herói nacional, como um autêntico caçador e matador de ciganos. A perseguição aos calons no Brasil colonial, portanto, era intensa e indiscriminada. Assim como acontecia na Europa, em vários períodos houve ordem expressa de expulsão, morte e confiscamento de bens de vários grupos.
FAMÍLIA REAL
Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, mais ciganos aportaram no Rio de Janeiro. Dessa vez, com status diferente dos que haviam desembarcado nos séculos anteriores. “Tudo indica que se encontravam também ciganos e que, pelo menos vários deles, foram contemplados com o cargo vitalício e hereditário de oficial de justiça.” Documentos do início do século 19 também fazem referências a artistas ciganos que participavam de eventos reais. Em 1818, quando do casamento de Dom Pedro I com a princesa Leopoldina, mais uma vez os ciganos foram convidados para animar a festa. “Os dançarinos são vistoriados: flores, fitas, aplausos, eles conquistam pela magia plangente de seus instrumentos, pela graça de suas danças.”
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CLÃ Reunião de quatro gerações da família de Amélia Targino (sentada, ao centro), em frente de casa, em Apodi
Os calons estiveram aqui desde o início, os outros só chegaram depois. Existem teses de que as primeiras levas de grupos rom (do Leste Europeu) só chegaram a partir de 1865, após o fim da escravidão cigana na atual Romênia. No livro Os ciganos no Brasil, uma breve história, o pesquisador Rodrigo Corrêa Teixeira contesta essa versão. Ele afirma que, em 1830, chegou a Minas Gerais o primeiro rom, vindo da Boêmia (pertencente ao antigo império austrohúngaro). Sua alcunha era João Alemão, mas seu nome era Jan Nepomuscky Kubitschek. Ou seja, o primeiro representante rom mineiro era o bisavô do presidente Juscelino Kubitschek. Outros descendentes de ciganos famosos foram Castro Alves e Cecília Meireles. A poetisa mineira teria escrito uma estrofe em que cita sua etnia. “O meu povo não quer ir nem vir. O meu povo quer passar”.
ROM
Somente a partir da segunda metade do Século 19 foi que os roms vieram em grupo para o Brasil. Eles se dividem em cinco subgrupos, concentrados no Sul e Sudeste. Os kaldeirash são caldeireiros e circenses, e muitos ascenderam economicamente. Vieram principalmente da Itália, Alemanha, Grécia e Rússia. Os macwaia, sedentários, vieram, especialmente, da Iugoslávia. Os rudari, vindos sobretudo da Romênia, têm bom nível econômico e se fixaram no Rio e em São Paulo. Os horahané, oriundos da Turquia e da Grécia, são renomados vendedores ambulantes e os lovara, em franco recesso cultural, recorrentemente fazem-se passar por imigrantes italianos. A vinda de ciganos sinti, provenientes da Itália, Alemanha e França, muito deles vítimas do holocausto nazista, também é comprovada. Embora não existam indícios de grandes comunidades em território nacional, a presença de pequenos grupos foi relatada e confirmada em vários estados. Há poucos anos, uma família habitava a Região Metropolitana do Recife, segundo informações de pesquisadores da UFPE . DANIELLE ROMANI
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“Em cima, o céu; embaixo, a terra;
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SAGRADO Deus, a natureza e os antepassados
Sem uma religião específica, os calons, sintis e roms geralmente se aproximam das crenças das comunidades em que estão inseridos
no meio, os ciganos.” O velho ditado reflete bem a essência dos calons, sintis e roms. Independentemente da religião ou da fé que professam, na maioria das vezes assimilada junto à comunidade com a qual se relacionam, existe neles algo que nos escapa, e que lhes é intrínseco, peculiar. Talvez porque a relação secular com a natureza dotouos de uma religiosidade latente, que não foi construída em templos, igrejas ou mesquitas, mas nas caminhadas nômades, nos acampamentos e paisagens abertas, sertões e caatingas, pelo verde das florestas e das montanhas; pela força do sol, chuva, rios, ventos e estrelas. “A gente não precisa das coisas como vocês (não ciganos). Do que adianta ter tanto objeto, se a gente vai embora e não leva nada? Deus está no coração, nos amigos, na natureza, só tenho saudades do tempo que andava pelo mundo. Ali, eu estava realmente perto de Deus ”, ponderou Raimundo Ferreira Dantas, Chico, 54 anos, como que prevendo seu próprio destino: antes mesmo desta matéria ser editada, ele faleceu. Na ocasião, vivia em situação lastimável, num acampamento sem a mínima infraestrutura básica, em Tangará, no Rio Grande do Norte. O falecimento de Chico foi um baque para os ciganos que o conheciam. A morte de um calon deve ser tratada com grande seriedade: se ele morasse em uma casa – o que não era o caso, pois habitava numa barraca –, após prantear o morto, os parentes mudariam de lugar, tirariam as fotografias da vista, não pronunciariam seu nome durante meses e guardariam luto por grande período, em que deixam de dançar, cantar, festejar. “Quando meu pai, Enildo Soares, morreu, a gente morava em Afogados (bairro recifense). Mudamos para Paulista, passamos longo tempo em luto e evitávamos fotos ou falar o nome dele. Faz parte da tradição”, conta Enildo Soares Filho, líder dos ciganos pernambucanos. Nos primórdios, entre os ciganos, havia apenas o conceito de Devel (Deus) e Beng, a incorporação do demônio ou da energia negativa, contra a qual se cercavam de simpatias, ritos e rezas. A cartomancia e a quiromancia lhes têm sido inerentes. Mas não existem informações de quando e como
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13 SARA KALI A santa negra é amplamente reverenciada na Europa 14 COMANDANTE Pedro Maia é devoto de Padre Cícero de Juazeiro do Norte 15 UMBANDA No templo Pai Oxoce, Mãe Celeste (C) incorpora a cigana Milena
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muito contato com ele. O homem era um profeta, um santo, um sábio”, acredita Gonzaga, de Macau. São Francisco é adorado por sua ligação com a natureza. “A gente, que sempre viveu no mato, tem muito a ver com seu estilo de vida e sua história”, diz José Kleber Soares, chefe dos calons de Serra Caiada, e que disse à Continente, em calé: Kilduve guirli kutuns (Que Deus vá com você).
UMBANDA
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aprenderam esses métodos divinatórios. No livro O rosto de Deus na cultura milenar dos ciganos, o padre Murialdo Gasparet pondera: “A maioria dos ciganos acredita em um só Deus e valoriza bastante os antepassados. Há ciganos católicos, espíritas, protestantes e ortodoxos. E, sobretudo, valorizam o destino como um fator determinante em sua vida”.
SARA KALI
A crença em Santa Sara Kali é forte entre os ciganos europeus e os das regiões mais ao sul do Brasil, onde se fixaram os roms. Sara, ou a santa negra, foi escrava egípcia de uma das três marias (Madalena, Jacobé ou Salomé) e, juntamente com elas, foi atirada pelos judeus numa barca sem
remos ou alimentos. Enquanto a santa negra é cultuada pelos fiéis de outras regiões, no Nordeste, os calons são devotos dos santos regionais. “Comandante dos ciganos de Souza”, Pedro Maia, 86 anos (também conhecido como Boca Rica, devido ao fato de ter os dentes todos capeados com ouro e platina), é devoto de Padre Cícero do Juazeiro. Na sua casa, em Sousa (PB), em meio às relíquias pessoais, destaca-se uma imagem de Padre Cícero, trazida do santuário do Horto, no Juazeiro. “Meu padrinho é um homem de Deus. Se as pessoas soubessem dos poderes dele, conseguiam muitas dádivas”, diz o antigo líder dos calons. No Rio Grande do Norte, a devoção a Frei Damião é grande “A gente teve
O sincretismo religioso brasileiro fez com que os ciganos chegassem à umbanda, incorporando entidades da chamada linha oriental. No Recife, no Templo Espiritualista Pai Oxoce, no Ipsep, Maria Celeste Santos Silva comanda sessões em que entidades ciganas se encontram com pretos velhos, caboclos, boiadeiros e afins. As sessões conduzidas pela cigana Milena, incorporada por Celeste, atraem centenas de pessoas. A aceitação do templo talvez se dê pelo “inusitado” em torno da sua criação: foi erguido num local onde havia sido montado um acampamento cigano. “Era agosto de 1957, uma amiga chegou e me chamou: ‘Celeste, tem uns ciganos aqui perto, vamos lá!’ Fui só de curiosidade. De repente, uma cigana me olhou e disse: ‘Quero falar contigo. Estás pisando no solo sagrado: aqui vai construir seu templo’. Tirou do bolso um lacinho e falou: ‘Guarde, meu nome é Rosa’.” Celeste foi iniciada no candomblé e abriu um centro. Depois de décadas, soube que havia um terreno à venda. No momento que ia sair para visitá-lo, uma bolsa caiu no seu colo e o lacinho pulou dela. Não tardou para descobrir que o terreno era o mesmo da cigana. Ao comprá-lo, teve uma visão: Rosa na porta, sorrindo.“Entendi tudo na hora”, diz Celeste, que desde 1988, promove reuniões com os ciganos. Ela afirma: “Os ciganos tornaram minha vida uma bênção”. DANIELLE ROMANI
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DIREITOS Desconhecimento leva à invisibilidade
Diferentemente de outros povos minoritários brasileiros, os ciganos ainda não foram reconhecidos na Constituição Federal nem nos recenseamentos
É como se os ciganos fossem
“invisíveis”. Não possuem direitos adquiridos como minoria étnica nem política específica para suas comunidades. Não são citados em artigos da Constituição Federal de 1988, ou das anteriores, nem constam em censos até hoje realizados, pois inexiste, na pesquisa promovida pelo
IBGE, a opção do cidadão se declarar cigano, calon, rom ou sinti. O censo reconhece, apenas, a existência de acampamentos em 290 municípios, número impreciso, visto que não houve pesquisa in loco, mas uso de dados fornecidos pelos governos municipais. Políticas para reconhecimento da identidade dessa etnia estão
sendo discutidas em ministérios, comissões e grupos governamentais. Em especial, pelo Conselho de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, que realizou uma audiência pública para definir a elaboração de um Estatuto dos Povos Ciganos, a ser regido pela Lei Esmeralda, ainda não homologada. Além dessa iniciativa, houve a instauração do Decreto 6.040/2007, que criou a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que engloba ciganos, quilombolas, índios e afins. “Os índios e quilombolas já consolidaram alguns direitos e garantias. Em relação aos ciganos, até hoje nada foi concretizado. É importante que o Estado comece a incorporar esses grupos como parte do Brasil. O primeiro a fazer é tirálos da invisibilidade e documentar sua presença: quantos são, onde estão, a que grupos étnicos pertencem. Reconhecer-
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lhes o direito ao seu modo de ser, viver, estar e se expressar, o que significa reconhecer seu nomadismo e o viver em barracas e acampamentos, carroças ou trailers, atribuindo-lhes, inclusive, áreas de acampamentos”, afirma o subprocurador geral da República e procurador federal adjunto dos direitos do cidadão, Luciano Mariz Maia. Em Pernambuco, a Fundarpe realiza, desde 2012, levantamento dos ciganos locais. “Já temos contato com os quilombolas e índios, sabemos onde estão, o que fazem. Sobre os ciganos, sabemos que têm tradição cultural forte, com organização social diferente de outros grupos. Identificamos que mantêm relação expressiva com a música sertaneja, mas encontramos resistência para chegarmos perto. Estamos na fase de aproximação e mapeamento”, explica Inglaucia Almeida, articuladora regional da Coordenação de Povos Tradicionais e Populações Rurais. O Prêmio Bienal de Cultura Cigana, promovido pelo Ministério da Cultura, e cuja última edição se deu em 2010, também vem apresentando problemas. Deveria ter sido editado no final do ano passado, não foi e, provavelmente, também não o será em 2013, porque o Orçamento Geral da União não prevê verbas para sua execução.
DIA DO CIGANO
Desde 2006, 24 de maio é considerado Dia do Cigano, ocasião em que se reverencia Sara Kali. Criada por decreto presidencial, a data é questionada por grupos ciganos, em especial, por protestantes e muçulmanos. Mesmo entre os católicos, a santa não é unanimidade. Na Europa, leva multidões à cidade de Saintes Maries de la Mer, mas, no Brasil, sobretudo no Nordeste, é pouco conhecida. A data, portanto, não deixa de atestar o desconhecimento sobre a heterogeneidade e diversidade existentes entre as comunidades ciganas brasileiras. No sertão do Rio Grande do Norte, na casa de Amélia Targino, dona Dudu, calin de 95 anos, residente em Apodi, observa-se a pouca familiaridade com Santa Sara Kali. O que realmente comove a matriarca nonagenária são os “santos regionais”, como São Francisco das Chagas de Canindé, Frei Damião e as
Meninas das Covinhas .“Sou apegada a todos os santos, mas só vim gostar mais de Santa Sara há pouco tempo”, explica. Líder dos calons pernambucanos, Enildo Soares também classifica a data promulgada pelo governo federal como “decorativa”. “Tudo que foi feito se resume a esse dia ou à criação de comissões, conselhos e grupos de estudo. Mas não existe nada efetivo em termos de políticas públicas. Temos carências enormes nas áreas de habitação, saúde, educação e sobretudo de emprego. O fato de ser cigano tira possibilidades de muitos ingressarem no mercado de trabalho”, afirma Enildo, que é presidente da Associação dos Ciganos de Pernambuco, consultor do Comitê Estadual de Promoção da Igualdade Estadual (Cepir), conselheiro do Conselho de Direitos Humanos estadual e único tradutor habilitado pela União Romani Internacional no Brasil.
EDUCAÇÃO
A educação é da uma das pautas mais polêmicas e urgentes, tendo em vista que ela envolve duas questões fundamentais. Primeiro, a capacitação e a qualificação da mão de obra, para uma consequente inserção no mercado de trabalho. Depois, a sobrevivência cultural dos ciganos, que implica a alfabetização dos mais jovens nos dialetos dos grupos: romani, sintó e caló. Nesse caso, o problema não consiste apenas em ter uma escola no sentido tradicional. Para os ciganos, é inadmissível que suas línguas, consideradas secretas e inacessíveis, sejam repassadas para outros ciganos por um mestre não pertencente aos grupos. Para que as línguas ciganas se perpetuem, algumas adaptações terão que ser adotadas pelas instâncias governamentais. A principal delas é o treinamento e a contratação de professores calons e romas (no Sul e Sudeste) para repassar a língua aos estudantes da etnia, em salas de aula onde a demanda seja genuinamente de ciganos. Ou a criação de escolas específicas apenas para os integrantes da comunidade. Ágrafos por tradição, até poucas décadas, os grupos não encontravam dificuldades em percorrer os interiores nordestinos com suas caravanas. Pelo
contrário: o senso comum ditava que não era preciso aprender a ler e escrever nos seus idiomas para que fosse possível manter a cultura e as tradições ocultadas da sociedade dos gadjons. O que era preciso era preservá-las dos não ciganos. Muitos se alfabetizaram e aprenderam a fazer contas sem necessidade de frequentar uma escola. Hoje, com o desaparecimento das profissões tradicionais ciganas e a sedentarização, os jovens, obrigatoriamente, têm que aprender outros conteúdos para se inserir na sociedade. E têm que reforçar o treinamento dos dialetos de seus povos, pois o contato com a comunidade externa faz com que percam o hábito de falá-los com a fluência com que as antigas gerações costumavam fazê-lo. Enquanto autoridades e ciganos discutem a aplicação de um modelo de educação específica para os jovens da etnia, a pesquisadora, professora e historiadora potiguar, Carla Alberta
A educação formal é considerada uma das pautas mais urgentes. Para eles, o ensino deve ser feito de cigano para cigano Gonzalez Lemos criou uma fórmula que vem servindo de referência para as duas questões. Em parceria com o projeto Mova Brasil, grupo que trabalha com alfabetização de jovens e adultos, a partir do método Paulo Freire, em 2010, Carla formou a primeira turma exclusivamente cigana na Escola José Garcia, na capital potiguar. Em 2012, em Macau, fundou a Gonzaga Carnaúba, que atende apenas a calons da comunidade. Uma das prioridades que envolvem a parceria do Projeto de Pesquisa e Desenvolvimento Cultural e Étnico do Rio Grande do Norte com o Mova Brasil é a aquisição de professores ciganos para aulas também no caló. Entre 2010 e 2012, os professores da comunidade foram escolhidos pelo grupo. Este ano, Carla Alberta espera criar mais quatro escolas ciganas: uma nova sala no Rio Grande do Norte e uma em Sousa (PB). A terceira, em Paulista (PE), e a quarta, em Alagoas. DANIELLE ROMANI
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REPRODUÇÃO
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INFORMÁTICA
WEB A maldição de Alan Turing Aos 100 anos do “pai do cérebro eletrônico”, os rebeldes do mundo virtual ainda padecem com a ausência de leis claras, específicas e justas voltadas para essa área TEXTO André Valença
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aquilo tinha sido um suicídio. Num artigo para The Guardian, de novembro de 2011, Alan Garner (escritor de livros infantis) comenta a fascinação do seu amigo Turing pela passagem do filme Branca de Neve, da Disney, em que a bruxa má mergulha uma maçã numa poção fatal. A obsessão advinha de a fruta, antes de ser envenenada, ter a aparência metade vermelha, metade verde – na tradição folclórica, a maçã assim, dualmente dividida, marca a convivência do bem e do mal. Surge, a partir daí, a tese de que o cianeto na maçã evaporara com o tempo. Envenenada ou não, a presença da fruta ali não parece ocasional. Mas o “mistério” é outro, já que muitos não atribuem a morte a Turing, mesmo que tenha sido a sua mão que tenha executado o trabalho. Dois anos antes do fato, em 1952, Turing teve sua residência roubada e, ao tentar prestar uma queixa, comentou
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O corpo inerme na cama, o braço
estendido sobre o chão parecia querer alcançar a maçã mordida que acabara de soltar. No post-mortem, a polícia constatou que havia cianeto naquele corpo, certamente a causa de morte. Mas o pomo largado, o que seria muito possivelmente o instrumento do óbito, permanecia imaculado – à exceção, é claro, da marca dentária. Talvez o único criptógrafo (que é detetive por excelência) capaz de ler os números, de decifrar os códigos e encontrar lógica nos eventos que culminaram naquela cena dramática de filme noir jazia impotente sobre o leito, o matemático, chamado “pai da computação”, Alan Turing. Alguns afirmam que a morte foi acidental, fruto dos experimentos químicos que o cientista conduzia em casa, e que a maçã não continha veneno, aparecendo como dado desorientador. Mas o quadro mordaz, perfeitamente montado, indicava que
Aaron Swartz, assim como Turing, foi um cibergênio que teve problemas com a lei de seu país e também cometeu suicídio com a polícia que tinha passado a noite com um homem. Após essa revelação, a queixa foi esquecida e Turing, processado por atentado violento ao pudor. Até 1967, homossexualidade era uma ofensa criminal na Inglaterra. A justiça do país, então, mandou-o escolher: cadeia ou um tratamento chamado “organoterapia” (o mesmo que castração hormonal). Turing escolheu a segunda opção. Em 1954, colocado no ostracismo pelo mundo acadêmico, sofrendo os efeitos colaterais dos medicamentos (como o crescimento de seios) e proibido de viajar para alguns países, foi encontrado, morto em sua cama, o homem responsável por idealizar o “cérebro eletrônico” (esses bichinhos de estimação que hoje chamamos de “computador”) e que quebrou os códigos, cridos indecifráveis, dos submarinos nazistas que afundavam a frota inglesa durante a Segunda Guerra
Mundial. Descia sobre ele a espada impiedosa da justiça.
FORAS DA LEI
O curioso é que, involuntariamente, Turing deixou um legado de tragédia – fôssemos mais supersticiosos, poderíamos chamar de maldição, praga ou esconjuro – para seus “filhos”, os programadores de computação (que reprisariam em suas próprias jornadas adversidades comparáveis às do seu precursor ao longo desses anos). Mas também, de certa forma, designou-lhes uma posição de destemor e desafio às coisas estabelecidas. Em janeiro deste ano, sete meses depois do centenário de nascimento de Turing (junho de 1912), o programador, hacker e ativista de internet norteamericano Aaron Swartz suicidouse por enforcamento. O jovem de 26 anos era conhecido por ter sido cocriador do site de novidades sociais Reddit, por desenvolver o sistema de alimentação de informações RSS e por colaborar para o Creative Commons, organização não governamental que elabora licenças menos restritivas que as do copyright, permitindo que autores liberem parte dos direitos de suas obras para serem usadas livremente por outros colaboradores. Um cibergênio que, assim como Turing, teve problemas com as leis de seu país. A diferença é que, enquanto Turing foi implicado por conta de sua vida privada, Swartz protagonizou uma briga pública, desafiando grandes corporações, como ativista. O desfecho, no entanto, foi o mesmo para os dois: a execução pelas mãos de um “capataz” da via legal. Diferentemente daqueles que muitos chamam de “ativistas de sofá”, Swartz era versado em linguagem de programação e, comandando invasões, saques e outras operações eticamente questionáveis, desencadeou situações no mundo real por meio de ações virtuais. O ponto culminante do ativismo de Swartz deu-se em 2010, quando o programador teria acessado ilegalmente a rede do MIT (Massachusetts Institute of Technology), para baixar quase 5 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, conteúdo que ele teria considerado de “conhecimento do mundo” e que, supostamente, pretendia
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disseminar. “Precisamos pegar a informação onde estiver armazenada, fazer nossas cópias e divulgá-las”, escreveu Swartz no seu blog, em 2008, num texto intitulado Guerilla open access manifesto, no qual argumenta contra a privatização do saber público. Os membros da JSTOR não prestaram queixas, mas condenaram o ato. O MIT, no entanto, levou o caso à justiça americana. Em julho de 2012, Carmen Ortiz, a advogada e procuradora do distrito de Massachusetts, encarregada do caso, declarou a possibilidade de aplicar até 35 anos de prisão para Swartz (e uma multa de 1 milhão de dólares), comentando que “roubar é roubar, mesmo que seja através do uso de um computador (…), sejam aquilo que foi roubado documentos, dados ou dólares”. Há uma desproporção na condenação ao ato de Swartz. Em 12 de janeiro, o fundador da Creative Commons e mentor de Swartz, Lawrence Lessig, escreveu em seu blog uma nota de indignação: “a ‘propriedade’ que Aaron ‘roubou’, disseram-nos, valia ‘milhões de dólares’ – com a insinuação, e a sugestão, de que seu alvo era o lucro. Mas qualquer um que diz que há dinheiro a ser feito no acúmulo de artigos acadêmicos é ou um idiota ou um mentiroso”. A declaração de David Segal, diretor do site Demand Progress, do qual Swartz era consultor, foi ainda mais irônica. Como o JSTOR é um serviço sem fins lucrativos, Segal apontou: “É como tentar botar alguém na cadeia por supostamente consultar livros demais na biblioteca”. E, dessa maneira, Swartz foi o cordeiro levado ao sacrifício numa luta institucional contra a internet.
CIBERLEIS
A “brigada” contra a livre distribuição da informação via web só é possível por conta da discrepância na concepção das leis virtuais – normalmente, tentativas de adequação dos crimes cibernéticos às leis físicas, ao invés da separação conceitual dos dois espaços, podendo provocar perseguições e condenações desmedidas . Outro problema é o da jurisdição. Sendo um espaço “sem fronteiras”, a internet torna complexa a ação legal sobre os crimes cometidos, já que as chamadas cyberlaws (ou ciberleis) diferem de acordo com cada país. Por conta dessa discrepância de interpretação dos crimes e suas
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As regras relativas à internet diferem em cada país, mesmo sendo a web um espaço global e sem fronteiras
punições, as ciberleis ainda não atingiram o jornalista e hacker australiano Julian Assange, fundador do WikiLeaks, site criado com a finalidade de vazar documentos sigilosos, denunciando condutas reprováveis de governos e grandes corporações mundiais. Enquanto vivia em prisão domiciliar na Inglaterra, refugiado de acusações de agressão sexual na Suécia, tinha sua cabeça pedida pela CIA, por ter exposto em sua página crimes escondidos pelo governo americano. Mais recentemente, Assange conseguiu
se abrigar na embaixada equatoriana na Inglaterra. O país latino-americano pede a sua liberdade e extradição por não interpretar seus atos como crime. “Os crimes que Assange supostamente cometeu contra os Estados Unidos estão compreendidos na antiga lei de espionagem (Espionage Act of 1917), e não por atividade hacker”, comenta o jurista Erickson Oliveira, que estuda O princípio da neutralidade e o Marco Civil na Internet. “Mas o WikiLeaks e o próprio Assange afirmam que o governo americano, através do Departamento de Justiça e outros órgãos federais de investigação, estariam estudando a possibilidade de processá-los criminalmente. Como nenhuma acusação foi formalmente feita, o dispositivo legal proibitivo da atividade que ele desempenha é o Espionage Act. É um caso complicado. De um lado, a primeira emenda à Constituição Americana
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Página anterior 1 ALAN TURING
Criptógrafo cometeu suicídio, cedendo à pressão por conta de sua opção sexual
Nesta página 2 JOHN MCAFEE
Vida do criador do antivírus vai ser tema de filme, assim como a de Steve Jobs
3 JULIAN ASSANGE Jornalista do WikiLeaks está refugiado na embaixada equatoriana, em Londres 4 AARON SWARTZ Ativista e gênio da informática suicidou-se em janeiro
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estabelece a liberdade de expressão e de imprensa, o que é um argumento fortíssimo em favor de Assange. Por outro lado, se diz que as atividades do WikiLeaks colocam vidas americanas em perigo”, completa Oliveira. Outro que viveu a paranoia da perseguição foi John McAfee. Criador do primeiro antivírus comercializável do mundo (em 1987, por sua empresa McAfee Associates), o exempreendedor vendeu seu negócio para a Intel Corp., nos anos 1990, e saiu pelo mundo para virar um “caçador de aventuras”. Num artigo intitulado The M Files, publicado em 2012 pela revista Mensa Bulletin, ele comenta que seu pioneirismo no mundo do antivírus lhe fez o alvo preferido de penetras. “Hackers veem o fato de invadir meu computador como uma medalha de honra”, escreveu. Segundo McAfee, esse conflito e a chatice da vida corporativa foram os motivos para que se evadisse.
Desde A rede social (2010), Hollywood tem investido em filmes que registram a vida de grandes nomes da internet Com a crise no mercado mundial, em 2008, McAfee, que de certa forma estava do outro lado da moeda em relação a Assange e Swartz, no contraataque às investidas hackers, jogou tudo para o alto e foi viver no país centroamericano de Belize, onde arrumou uma série de confusões com a polícia local, sendo acusado de porte ilegal de armas e drogas ilícitas (segundo ele, uma conspiração para impedilo de realizar suas ações de caráter humanístico no país). Em novembro de 2012, seu vizinho, o compatriota
Gregory Faull, foi descoberto morto e a polícia apontou McAfee como principal suspeito. O programador atravessou a fronteira da Guatemala, numa fuga sob a alegação de que estava sendo politicamente perseguido pelo governo de Belize. Finalmente, em dezembro, foi deportado para os Estados Unidos. McAfee já vendeu os direitos de sua história para uma produtora de cinema, a canadense Impact Future Media. Não é surpresa. A vida conturbada de grandes nomes da internet virou assunto de interesse em Hollywood desde A rede social (David Fincher, 2010), que descreve um melancólico Mark Zuckerberg (Facebook). Também estão engatilhados filmes sobre as vidas de Assange e Steve Jobs (cuja fatalidade se deu por um raro tipo de câncer, de difícil diagnóstico). Esses prodígios do mundo virtual podem até ser divididos entre empresários e ativistas. E aqui cabe registrar a discrepância entre a perseguição aos rebeldes do mundo virtual e a idolatria aos milionários da área, como Bill Gates (Microsoft), Jobs (Apple) e o citado Zuckerberg. No entanto, eles estão no mesmo palco de uma disputa pelo controle da informação. São figuras essenciais às mudanças históricas pelas quais passamos. São também “espetacularizáveis”, porque reúnem características de um grande personagem: da discrição, às vezes frágil, no mundo físico, à atitude inovadora – se não transgressora, no mundo virtual; do isolamento social e a obsessão com a máquina aos efeitos eloquentes que suas invenções produzem.
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MARANHÃO Riqueza natural e arquitetônica São Luís, Alcântara e Lençóis Maranhenses oferecem ao viajante a fruição de passeios ricos em diversidade patrimonial e paisagens incomuns TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
Caminhar pela Rua Portugal, a mais
azulejada da América Latina, descer e subir as escadarias de pedras que ligam centenários becos e ladeiras, ou simplesmente parar para apreciar o gigante braço de mar que parece envolver a cidade são programas obrigatórios para quem chega a São Luís, uma das três capitais brasileiras construídas em ilhas e bem na porta de entrada para a Amazônia. Fundada por franceses, invadida por holandeses e colonizada por portugueses, a capital do Maranhão revela um preservado conjunto de influências que resiste ao tempo e que pode ser conferido nas centenas de prédios e monumentos encontrados no centro histórico. Reconhecida pela Unesco como
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Patrimônio da Humanidade, a cidade que outrora chegou a ser chamada de “Atenas brasileira”, devido à qualidade de seus poetas e escritores, hoje recebe outro tipo de invasão, a turística. Destino de visitantes que chegam de várias partes do mundo para conhecer os encantos da “Ilha do Amor”, como é chamada, São Luís é uma cidade atípica. Fundada em 1612, sua história compõese de guerras, invasões e revoltas. Os portugueses expulsaram os franceses, que, em seguida, viram a invasão dos holandeses; houve os ataques dos corsários ingleses, as expedições de captura dos índios e as revoltas dos colonos contra os padres jesuítas. Foi nessa fase conturbada que São Luís protagonizou a primeira manifestação
nativista do país, a Revolta do Bequimão, que, quase um século depois, resultaria na Inconfidência Mineira. Hoje, caminhar pelos becos estreitos, apreciar seus casarões coloniais, sua igrejas, palácios, calçadas altas e largos, é fazer uma viagem pela história da mais portuguesa das cidades brasileiras. Um dia inteiro andando por suas ruas de pedras não é suficiente para se ter uma ideia da real dimensão desse patrimônio. As principais atrações estão na Praia Grande, um bairro quase que totalmente restaurado pelo projeto Reviver e que funciona como uma espécie de coração cultural local. O passeio começa no Cais da Consagração, uma grande muralha, datada de 1841 e que constitui o mais antigo porto de São Luís. Dali, já é possível avistar o Palácio dos Leões, edificado onde antes estava o Forte de Saint Louis, construído pelos franceses em 1612, e o Palácio La Ravardière, datado de 1689 e antiga sede da Câmara e Cadeia. Em seguida, chegamos à bela Catedral da Sé, erguida em 1626 numa homenagem à Nossa Senhora da Vitória, padroeira de São Luís. Com o altar-mor em estilo barroco, a nave é tombada como patrimônio da humanidade; em seu interior, estão sepultados bispos e importantes maranhenses.
Além de decorar as fachadas, os azulejos vindos de Portugal, França, Bélgica e Alemanha protegem os casarões contra a ação das chuvas e dos ventos carregados de salinidade. Com cores e desenhos que vão de figuras geométricas a flores e animais, as peças cerâmicas deram à capital o título de “Cidade dos Azulejos”. Além de revestimentos, os azulejos são usados em placas de identificação de ruas e becos, igrejas, conventos e fontes, das quais partem galerias subterrâneas que serviram para escoar as águas das chuvas e alimentam até hoje o imaginário popular com lendas de serpentes encantadas e estórias de amor proibido. A Fonte das Pedras é uma das mais visitadas. Em 1615, a nascente foi local de acampamento de Jerônimo de Albuquerque e suas tropas, quando da expulsão dos franceses. Com muitas árvores e um clima de mistério, o lugar é um dos pontos altos do circuito pelo centro histórico, unindo a memória arquitetônica dos acontecimentos históricos ao bucolismo. Ao lado do patrimônio material, presente nos casarões e prédios religiosos, São Luís também é marcante em suas manifestações populares. A miscigenação racial (brancos,
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negros e índios) está na origem da brincadeira mais presente na cidade, o bumba meu boi. Embora ocorra em outras regiões do Brasil, com semelhante conformação étnica, apenas no Maranhão a festa possui três estilos, ou “sotaques”, diferentes. As distinções aparecem nos instrumentos, na indumentária e nas formas de expressão. Apesar de ser apresentado com mais frequência durante o período junino, o bumba meu boi é parte integrante da cultura local, sendo encontrado na decoração das casas, nas lojas de artesanato, nos museus e principalmente no imaginário do povo maranhense. Outra característica marcante da cultura de São Luís é a tradição dos tambores. De
origem africana, eles marcam presença o ano inteiro, podendo ser apreciados em centros culturais, terreiros ou mesmo nas ruas do centro histórico, especialmente nas imediações do mercado público da cidade, uma espécie de relicário vivo das tradições maranhenses.
ALCÂNTARA
Partindo do histórico Cais da Consagração, na Baía de São Marcos, saem diariamente os barcos que levam os visitantes até Alcântara, patrimônio de extrema beleza arquitetônica e que possui ruínas que fazem do roteiro um encontro com a arqueologia. Erguida no alto de um morro de onde é possível avistar – nos dias de céu claro – a Ilha de São Luís, a 22 km, Alcântara
é famosa pelo clima de sossego e pela qualidade de suas construções coloniais. Sua localização geográfica fez com que o Ministério da Aeronáutica instalasse ali, na década de 1980, uma base espacial para lançamentos de foguetes. Primeira capital do Maranhão, Alcântara é exemplo de harmonia entre a valorização do passado e o desenvolvimento sustentado. Em suas ruas quase não circulam carros e suas riquezas naturais, visivelmente preservadas, são um capítulo à parte num passeio pela região. A travessia de São Luís até Alcântara dura em média uma hora. Os barcos partem no início da manhã e retornam ao final da tarde. Durante o trajeto, a dica é abrir mão do conforto de viajar
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Variedade de cerâmicas no centro histórico rendeu título a São Luís
Nestas páginas 3 MAR AGITADO
Travessia da capital a Alcântara pode marear os embarcados
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na cabine com ar-condicionado e apreciar o vaivém das embarcações que parecem lutar para vencer o agitado mar aberto da baía. Na chegada ao Porto de Alcântara, chama a atenção o brilho que resplandece das pedras da Ladeira do Jacaré, principal via de acesso ao centro histórico da cidade e suas atrações. O nome da ladeira, toda em pedra de cantaria, é uma referência ao Querosene Jacaré, famoso produto que era vendido em latas de 20 litros na década de 1950 e que era fonte de energia para geladeiras da época. Havia uma crença entre a população do Maranhão e também do Piauí de que somente funcionava bem a geladeira que usava o querosene da marca Jacaré, conhecido popularmente como “jacaré do rabo seco”.
Heranças culturais africanas ainda podem ser percebidas na população predominantemente negra de Alcântara Fundada em 1648, Alcântara faz parte do Patrimônio Histórico Nacional desde 1948 e teve seu apogeu econômico no período colonial, com a produção açucareira, a extração de sal e o trabalho árduo de mais de oito mil escravos negros e índios. Com a abolição da escravatura no final do século 19, o então modelo econômico
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CAIS DA CONSAGRAÇÃO
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FONTE DAS PEDRAS
Situado na Baía de São Marcos, de onde saem os barcos para Alcântara A nascente está no local que serviu de acampamento na expulsão dos franceses
entrou em decadência e a cidade perdeu relevância. Heranças daquele momento histórico estão presentes, no entanto, na população predominantemente negra, que preserva importantes aspectos da cultura africana. A exploração dos negros e dos índios, habitantes nativos do lugar, durou mais de três séculos e deu a Alcântara o título de capital da aristocracia rural do Maranhão, além de suntuosos prédios públicos e religiosos que impressionam pela dimensão e qualidade artística. O conjunto mais importante está no Largo do Pelourinho, onde é possível encontrar as ruínas de uma grande igreja e os principais prédios públicos da Alcântara dos barões de açúcar. No centro da praça, está o Pelourinho, uma coluna cilíndrica em pedras, com aproximadamente 5 m de altura, que no alto exibe o brasão das armas portuguesas. O monumento era insígnia municipal e símbolo da autoridade e autonomia da Câmara, usada para os castigos infligidos aos escravos que eram ali amarrados e açoitados. No dia 13 de maio de 1888, data da abolição da escravatura, o pelourinho foi derrubado e jogado ao chão, em frente da Casa de Câmara e Cadeia. Sessenta anos depois, em 1948, foi reerguido e posicionado no local de origem. No Brasil, há uma concentração de pelourinhos nas cidades mineiras de Caeté, Ouro Preto, Mariana e São João del-Rei. A coluna de Alcântara, no entanto, é provavelmente a única do país que pode ser vista ainda com as suas características em ambiente original.
LENÇÓIS MARANHENSES
Embora considerado um dos mais belos trechos do litoral brasileiro, o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (criado em 1981) esteve, durante muitos anos, longe do alcance
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dos amantes da natureza. Com 300 km2 e localizado numa região selvagem da costa sul do Maranhão, o imenso deserto de dunas é, hoje, um disputado destino de aventureiros que chegam diariamente à região para apreciar as piscinas naturais que se escondem entre grandes muralhas de areia. O parque, que começa nas águas doces do Delta do Parnaíba, na divisa com o Piauí, avança sobre o litoral do Maranhão formando um cenário em constante movimento. A paisagem, que lembra lençóis expostos para secar – daí o nome que lhe foi atribuído – é o tipo de cenário de difícil descrição, constituindose num lugar para ser visto. Chamado por alguns de “Saara brasileiro”, o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses está repleto de oásis. Com um índice pluviométrico de 1.600 milímetros, trezentas vezes maior que o do deserto africano, os lençóis escondem milhares de lagoas de águas cristalinas. Durante o período das chuvas, entre janeiro e julho, elas fazem a festa dos turistas que se movimentam por ali em carros 4x4.
Com 300 km2, o imenso deserto de dunas dos Lencóis Maranhenses é um disputado destino para aventureiros A aventura começa em Barreirinhas, onde é preciso atravessar o Rio Preguiças em balsas e seguir por uma trilha de areia até a entrada do parque. São cerca de 45 minutos até o local onde os carros ficam estacionados. Por ordem do Ibama, dali em diante, só mesmo a pé. O passeio deve ser feito com guias especializados, devido ao grande risco de forasteiros se perderem pelos labirintos de areia que atraem e confundem os olhos. As dunas branquíssimas (óculos escuros são imprescindíveis, aqui) mudam constantemente de forma, altura e lugar. Revolvido pelos ventos que sopram do mar, o cenário torna-se mais enigmático com o profundo silêncio que reina por ali. Só se ouve o som do vento,
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TAMBOR DE CRIOULA
Manifestação cultural é uma das tradições do Maranhão
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LADEIRA DO JACARÉ
Lugar ganhou o nome devido ao Querosene Jacaré
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PELOURINHO
Monumento, derrubado em 1888, foi reerguido em 1948 LENÇÓIS MARANHENSES
Parque Nacional exibe dunas e águas cristalinas
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assoviando e redesenhando os contornos no horizonte. As dunas se estendem por uma área de 155 mil hectares e ocultam incontáveis lagoas verdes e azuis que simplesmente evaporam durante o período da estiagem. Ninguém ainda estudou profundamente o fenômeno, mas acredita-se que o vento trouxe a areia do fundo do mar e a fez avançar continente adentro por mais de 50 km. Para alguns estudiosos, a região foi uma floresta tropical em épocas remotas. Caminhar pelos lençóis, subindo e descendo as dunas que facilmente ultrapassam 30 m de altura, é como pisar em um território virgem. A cada duna que se vence, outra maior se apresenta. Durante o trekking, sob o forte calor potencializado pelas dunas brancas que funcionam como uma espécie de rebatedor natural para a luz do sol, a recompensa são os muitos mergulhos nas piscinas naturais. Na Lagoa do Peixe, uma das poucas perenes da região, o verde escuro das águas em contraste com o branco das dunas é um espetáculo à parte. Mas apenas do alto é possível ter uma dimensão abrangente dos Lençóis Maranhenses. De Barreirinhas, vários aviões decolam todos os dias para sobrevoos pelas dunas. Depois de subir e descer as ladeiras da histórica São Luís e apreciar os monumentos coloniais de Alcântara, visualizar os Lençóis Maranhenses do alto é a forma mais fácil de entender por que o Maranhão é considerado um dos mais belos e surpreendentes estados do Brasil.
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História
CRAQUE Pernambuquinho: futebol e fúria Em 1973, era assassinado o mais amado e odiado jogador brasileiro, ídolo numa época em que o esporte ainda não estava tomado pelo marketing e, sim, pela paixão TEXTO Aquiles Lopes
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1 PANCADARIA Na disputa entre Bangu e Flamengo, Almir armou uma de suas maiores confusões
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“Agredi jogadores de outros times, briguei com tantos, que até perdi a conta. Por certo, poucos jogadores participaram de tantos episódios violentos como eu. Daí a fama que peguei: marginal, violento, celerado, bandido.” A visceral sinceridade na declaração é de Almir Morais de Albuquerque, o Almir Pernambuquinho. Uma lenda dentro e fora dos gramados. Um misto de alegria e fúria, assassinado há exatos 40 anos, durante uma briga de bar na Galeria Alaska, em Copacabana, Rio de Janeiro. O truculento Almir foi morto ao defender os performáticos bailarinos da trupe teatral Dzi Croquettes contra a humilhação de um grupo de portugueses.
Almir pertenceu a um período anterior às chuteiras coloridas, cortes de cabelos personalizados e coreografias sertanejas. Ele foi de uma geração em que cada clássico era de uma complexidade shakesperiana, como afirmou Nelson Rodrigues. O atacante, criado na Estrada dos Remédios (Recife), iniciou a vida no Sport, já conquistando o título estadual de 1956. No ano seguinte, com apenas 20 anos, estreava no poderoso Vasco da Gama, para levantar o título carioca. Bastaram alguns jogos para que a malta identificasse que ali estava um artilheiro diferente. Capaz de entrar em todas as divididas e disposto a sair no braço com quem fosse preciso. Armando Nogueira, que gostava de cravar apelidos nos jogadores, rapidamente o batizou
“Celerado”. Almir detestou a alcunha. “Para as torcidas adversárias e para uma parte da crônica esportiva, eu era apenas isso: um marginal. Alguns cronistas, como Armando Nogueira, do Jornal do Brasil, contribuíram para que esse conceito se firmasse. Armando, a quem nem sequer conhecia e de quem nunca tive raiva, disse mais de uma vez em sua coluna, muito lida e respeitada, que eu não passava de um criminoso. Para muitos que não me viram jogando, persiste a impressão de que eu não passei disso: um bandido...”, afirmou Almir, na antológica entrevista à revista Placar, transformada em Eu e o futebol, livro infelizmente fora de catálogo e raríssimo até nos sebos. Mas, afinal, Almir virou ídolo pelos sopapos ou pelo tanto que jogava? Segundo o jornalista Juca Kfouri, que conversou com a Continente, as duas respostas são verdadeiras. “Ele combinava raça com categoria. Era valente e refinado.” Mesmo com a fama de garoto-problema, Almir teve chances de ir à Copa de 1958, mas desistiu de uma convocação para excursionar com o Vasco por um punhado de cruzeiros. O fato, hoje tão comum e encarado como um compromisso profissional entre o empregado e a empresa, na época, era escandaloso e o atacante foi para a geladeira. Marcado pela imprensa, desistiu do Rio de Janeiro e, em 1960, foi defender o Corinthians. Logo ao chegar, foi apelidado de ‘Pelé Branco’”. Não se deu bem no alvinegro paulistano e foi para Buenos Aires, onde vestiu a camisa do Boca Juniors. Como pode imaginar qualquer pessoa que já tenha visto pelo menos 15 minutos do futebol portenho, Almir caiu nas graças da geral. Durante o empate por 1x1 com o inexpressivo Chacarita, Almir estava sendo impiedosamente vaiado pela torcida. Após arrumar uma confusão com dois jogadores rivais, foi expulso de campo. Mais vaias. Quando descia para o vestiário, um adversário o xingou. Almir voltou do túnel e respondeu com um soco. Outros jogadores vieram defender o companheiro e Almir partiu para cima de todos. A briga foi geral. Resultado: dois expulsos pelo Chacarita, o Boca vence o jogo e Almir vira herói subitamente. Anos mais tarde, João Saldanha, o João Sem Medo, afirmou que foi graças ao pernambucano
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FOTOS: REPRODUÇÃO
2 SANTISTA O jogador, que iniciou sua carreira no Sport, passou pelo clube da Vila Belmiro em 1963 3 PONTAPÉ Na final do Mundial Interclubes, o atacante entrou para ser atingido por Maldini e garantir um pênalti
de dor. O jogo seguiu como uma batalha campal, debaixo de uma tempestade. Numa dividida, Almir desferiu um violento chute na cabeça do goleiro Balzarini, fazendo correr um veio de sangue pela grama ensopada. Aos 35 do primeiro tempo, o lance que decidiu o Mundial: “Lima fez um cruzamento pelo alto, eu estava mais ou menos ali pela marca do pênalti. Ia chegar um pouco atrasado na bola, mas tinha de tentar, tinha de acreditar em mim. Vi quando Maldini, desesperado, levantou o pé, tentando cortar o lançamento. Eu tinha de dar tudo ali, naquele lance: meter a cabeça para levar um pontapé de Maldini, correr o risco de uma contusão grave, ficar cego, até mesmo morrer, porque o italiano vinha com vontade. Agora era ele ou eu. Meti a cabeça, Maldini enfiou o pé, eu rolei de dor pelo chão. O argentino Juan Brozzi não conversou, pênalti”. Dalmo cobrou e fez o gol da vitória santista. O Pernambuquinho, que também apanhou muito naquela noite, saiu de campo desfigurado. Os 120 mil torcedores no estádio gritavam o nome dele. Almir, coroado no lugar do Rei, garantia o bicho.
CON TI NEN TE
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História
que os jogadores brasileiros deixaram de ser chamados de frouxos pelos vizinhos. Depois foi para o Fiorentina e Genova, na Itália. Em 1963, foi contratado pelo clube mais poderoso do mundo, o Santos de Pelé. Com a mítica camisa branca, foi campeão da Libertadores. Veio então a final do Mundial Interclubes contra o Milan. Pelé, machucado, não atuou em nenhuma das duas partidas decisivas realizadas no Maracanã. O último jogo aconteceu no dia 16 de novembro de 1963. No vestiário, Almir ganhou uma “bolinha”, como os comprimidos de dopping eram chamados – nesse tempo não havia exames antidopping.
“Entrei em campo muito doido. Por que eu não ia querer? O bicho pela conquista do campeonato era 2.000 cruzeiros: dava para comprar um Volkswagen zerinho. Nós entramos em campo vendo o automóvel ao alcance da mão. Do outro lado, estavam os caras que podiam impedir isso”, contou Almir, em Eu e o futebol. Inspirado pelo aditivo, Almir pisou no gramado com uma ideia fixa: partir ao meio o brasileiro Amarildo (O Possesso), que havia dito uma semana antes: “O Pelé já era”. “Não admitia que falassem aquilo do negão”, esbravejou Pernambuquinho. Com um minuto de jogo, O Possesso recebe a bola e corre pela direita. Almir afasta os próprios companheiros de defesa e chega primeiro em Amarildo, que leva um rochoso toco. Amarildo cai, berrando
CONTRA O BANGU
Dois anos mais tarde, assinou contrato com o Flamengo. No clube do povão, ele já chegou ídolo e terminou o ano de 1965 como campeão estadual. Foi com a camisa rubro-negra que Almir protagonizou a maior confusão do futebol brasileiro de todos os tempos. No dia 18 de dezembro de 1966, o clube da Gávea encarou o Bangu pela final do Carioca, diante de um Maracanã com mais de 140 mil pessoas. Naquela época, o Bangu tinha um patrono, o bicheiro Castor de Andrade, que financiou um timaço com Paulo Borges, Aladim, Cabralzinho e Ladeira, na linha de frente. O Flamengo também era uma boa equipe, mas bem inferior ao clube do subúrbio. Mas, além disso, Almir desconfiava que alguns companheiros haviam sido “comprados” pela contravenção, o que ele não admitia.
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O fato é que, ao final do primeiro tempo, o placar marcava 2x0 para o Bangu. Aos três minutos da segunda etapa, Borges assinalou mais um e a partida caminhava para um goleada histórica. Almir não queria ver, de jeito nenhum, os adversários dando a volta olímpica no Maracanã – que ele considerava a casa do Fla. Decidiu, então, terminar, literalmente, com o jogo. Esperou uma oportunidade, que veio aos 26 minutos, quando Ladeira discutiu com o zagueiro rubro-negro Paulo Henrique. Almir entrou no bate-boca e armou uma confusão. Foi expulso de campo. Era exatamente o que queria para montar um ringue. “O Bangu disparou e foi aumentando a vantagem. Naquele embalo, a gente ia levar de enfiada. Resolvi acabar com aquele carnaval. Quem passou pela minha frente apanhou. Ainda hoje o Ladeira está correndo. Dei pernada, pontapé, soco e cabeçada. Fora os desaforos que disse a todo mundo”, revelou o Pernambuquinho. As imagens da pancadaria impressionam, com jogadores, comissões técnicas, cartolas, radialistas
Aos 30 anos, e já bastante debilitado, Almir foi para o América-RJ, no qual encerraria a carreira, em 1968 e torcedores no centro do gramado trocando sopapos. A cena de Almir, com os punhos cerrados e endiabrado atrás dos banguenses, volta e meia ainda é mostrada na TV. O assustado juiz expulsou cinco do Flamengo, quatro do Bangu e a partida precisou ser encerrada. O Bangu não ergueu a taça, não deu a volta, e a torcida rubro-negra foi para casa gritando o nome de Almir dentro dos trens. “Ele armava, mesmo, confusões de caso pensado, como foi esta. Mas também era explosivo e perdia a paciência facilmente”, lembra Kfouri. Aos 30 anos, e já bastante debilitado pela explosiva combinação de álcool, dopping e bofetões, Almir foi para o América-RJ, onde encerraria a carreira em 1968. O ex-atacante passou a
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sobreviver do dinheiro que recebia pelo aluguel de alguns imóveis que havia conseguido comprar na capital carioca. Sem jogar bola, Almir gastava o dia na praia, bebendo nos bares de Copacabana, o lugar que mais amava. Na noite de 6 de fevereiro de 1973, Almir foi ao bar Rio-Jerez, na Galeria Alaska, um lugar frequentado por prostitutas, travestis e boêmios. Ao lado, estavam alguns atores do grupo teatral Dzi Croquettes, ainda maquiados e com as andróginas roupas de cena. Uns portugueses que estavam perto começaram a perturbar os Dzi Croquettes. Almir reclamou e saiu em defesa dos atores, que conhecia apenas de vista. Começa então a discussão e um dos portugueses saca a arma. Um amigo de Almir que estava no Rio-Jerez puxou outro revólver e houve tiroteio. Quando a polícia chegou, Almir estava morto na calçada, com uma bala na testa. Terminava, ali, com contornos rodriguianos, a vida do menino-explosão. No entanto, até hoje, sempre que um time humilha outro num clássico, é possível escutar alguém dizendo “Ah, se Almir estivesse em campo...”.
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ELIZABETH PASSI/DIVULGAÇÃO
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Perfil GENETON MORAES O homem que sabe perguntar Com 40 anos de profissão, o jornalista pernambucano, que passou pela mídia impressa e televisiva, dedica-se à História, afirmando que "fazer jornalismo é produzir memória" TEXTO Homero Fonseca
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Perfil 1
A redação do Diario de Pernambuco, nos começos dos anos 1970, parecia uma velha repartição pública: entre as paredes de cor ocre com barras de 1,5 m de um marrom a óleo tenebroso, espalhavam-se caoticamente altos armários de madeira escura descascada e trôpegas escrivaninhas de aço sobre as quais pousavam robustas máquinas Olivetti. O clima geral condizia com o ambiente físico: sob o guante da censura (e sua filha dileta, a autocensura), a maior parte dos jornalistas compactuando gostosamente com o ideário da ditadura vigente, um punhado de renitentes tentava praticar o jornalismo possível naqueles anos de chumbo. Corria o ano de 1972. Uma tarde, o marasmo cotidiano foi quebrado pelo crítico de cinema Fernando Spencer. Dirigindo-se ao chefe de reportagem Ricardo Carvalho, a mim, então editor da 1ª página, e outros companheiros, Spencer mostrava o tabloide Junior, com incomum entusiasmo: “Vocês prestaram atenção nesse menino que escreve todo sábado para o suplemento infantil? É um arretado!”.
Em 1972, o crítico Fernando Spencer chamou a atenção dos colegas para o garoto que escrevia no suplemento infantil Com efeito, os textos do garoto eram surpreendentemente bons. Mandaram chamá-lo. Aparece um adolescente guenzo, cara de palestino, sorriso encabulado. Chamava-se Geneton, tinha 16 anos, ainda não ingressara na universidade, mas topava ser jornalista. Uma das primeiras matérias de que foi incumbido seria uma reportagem sobre o Hospital da Tamarineira, o depósito de loucos do estado. Tontonzinho, como o chamávamos, infiltrou-se no inferno e saiu de lá formado em jornalismo. Viu cenas degradantes e ouviu lamúrias desconexas dos internos. Depois, apresentou-se como repórter à direção do hospício e lhe deram uma versão cor-de-rosa da
situação. Nascia ali um dos grandes repórteres da imprensa brasileira. Décadas depois, Geneton Moraes Neto ouviu de um jornalista inglês, Louis Heren, o conselho dado por um editor: “Sempre que você estiver entrevistando um ministro ou um líder sindical, um empresário ou um astro de rock, seja quem for, pergunte sempre a si próprio: Por que será que esse bastardo está mentindo para mim?” Era a mais perfeita tradução da primeira experiência que o jovem foca tinha vivido no Recife naquele seu batismo de fogo na reportagem. Poucos anos depois daquela estreia fulgurante, o magricela, já com uns fiapos de barba, ingressou no curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Aí, aflorou uma paixão que duraria toda a vida: o cinema. Ele, Amin Steple, Paulo Cunha e Camilo Brolo formavam uma turma unida que, além do cinema, amava os Beatles & os Rolling Stones, Gláuber Rocha, os tropicalistas e, pelo menos no caso de Geneton, o futebol de botão. Com
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COM CAETANO
O tropicalismo era uma das paixões musicais do repórter DITADURA MILITAR
Geisel (à frente), em evento que teve cobertura do jornalista (ao fundo)
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uma câmera super-8 na mão e muitas ideias na cabeça, fizeram filmes que causaram algum estardalhaço na cena cultural do Recife. Essa experiência seria um ingrediente importante no caldo de cultura de sua formação, que desembocaria na síntese atual: o brilhante repórter televisivo que, na maturidade, alcançou o status de documentarista. É um dos poucos profissionais desse meio que produz matérias rigorosamente autorais. Ele se pauta, pesquisa, cai em campo, faz entrevistas e edita seus próprios programas.
JORNALISMO DE GUERRILHA
Pouco tempo depois de sua chegada ao sesquicentenário DP – que foi como que uma lufada de vento fresco a levantar a poeira do marasmo da velha repartição –, Geneton transferiu-se para a sucursal do Recife do Estadão, na qual estávamos eu e Ricardo Carvalho, mais Paulo Cunha, Paulo Moraes e o fotógrafo Josenildo Tenório, sob o comando sereno de Carlos Garcia.
Era o auge da ditadura militar. O jornalão dos Mesquita assumiu uma corajosa postura de oposição e por isso era açoitado impiedosamente pela censura. No lugar das matérias vetadas, começou a publicar receitas de bolo, inclusive na primeira página. E, depois, os versos de Camões (desconfio que todo Os Lusíadas foi desfiado). Era uma maneira de fazer os leitores entenderem a situação, uma forma tão sutil e ardilosa de denunciar a censura, que os próprios censores não tinham como impedir. Meninos, vocês que vieram depois não sabem como viver (e trabalhar em jornal) era perigoso naquela era. Carlos Garcia foi preso e torturado pelo coronel Cúrcio Neto, sua casa vasculhada e sua família ameaçada pelos esbirros da repressão. Aprendemos todos a fazer uma espécie de jornalismo de guerrilha: ocupar os espaços possíveis para denunciar o totalitarismo e fazer eco às aspirações democráticas de políticos oposicionistas, profissionais liberais, intelectuais, estudantes, sindicalistas, parte do clero. Invariavelmente, ao fim do expediente, quase sempre tenso,
formava-se na sucursal uma roda de dominó, esse “esporte nacional” do Recife. Geneton era dos mais assíduos. Aquilo funcionava como espécie de catarse. No Estadão, pela reduzida equipe, a convivência era inevitavelmente intensa. Então, pude observar de perto o cara que ainda não completara 20 anos no seu afazer jornalístico. Em primeiro lugar, não era um deslumbrado, apesar dos constantes elogios – dos chefes, dos colegas, dos leitores – ao seu trabalho. Em segundo lugar, era um leitor voraz e, portanto, bem formado e informado. Em terceiro lugar, nunca caía em campo sem antes pesquisar e estudar minimamente o assunto (esse minimamente é por conta das vicissitudes da profissão, os prazos curtíssimos para elaborar as matérias). E isso, garotada, é mais incomum do que pensa nossa vã filosofia (é cruel ver a enxurrada de repórteres tontos que, no dia a dia de uma redação, saem às ruas para entrevistar alguém ou cobrir um assunto sobre os quais não têm a menor ideia). Por fim, mas não menos importante, uma característica de GMN é a total ausência de arrogância no trato com as fontes ou com quem quer que seja. No nosso meio, onde a fatal combinação de ego inflado com insegurança produz toneladas de prepotência, chega a ser espantoso. Mas isso não é só fruto do caráter amável do camarada. É também a consciência do seu papel de transmissor de informação ao público. (Quão patéticos são jornalistas que competem com seus entrevistados ou que se valem do texto para arrotar erudição! Desconfiem de entrevistadores que, comumente, fazem perguntas mais compridas do que as respostas dos entrevistados!)
CARRAPATO
Mas, voltando ao nosso personagem, aquela velha paixão pela arte da imagem em movimento levou-o à televisão, onde está desde 1985. Foi repórter, correspondente em Londres, editor do Jornal da Globo e do Fantástico. E nessa armadilha que pode ser mortal para quem se forma no jornalismo impresso (ou escrito, como
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DOCUMENTÁRIO
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POLÍTICA
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NORMAN MAILLER
Joel Silveira é tema de Garrafas ao mar, dirigido por Geneton
Repórter entrevista ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter Escritor norteamericano foi um dos seus entrevistados
6 GAY TALESE
Geneton posa ao lado do mestre do jornalismo literário
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ele observou outro dia, face às novas mídias digitais), seu texto se manteve incólume – criativo e refinado, levemente superlativo. Nessa labuta televisiva, revelou-se outro traço considerável do sujeito: a persistência. Pense num repórter carrapato! Para fazer uma boa matéria ou uma entrevista exclusiva, liga ou bate à porta da “vítima” 10, 12, inúmeras vezes. Leva muito “não”, mas consegue façanhas. A célebre entrevista com Carlos Drummond de Andrade, feita por telefone, menos de um mês antes da morte do poeta (e que rendeu um livro notável), é exemplar. Geneton descobriu que o vate mineiro, avesso a entrevistas, tinha mania por conversar ao telefone. E foi utilizando esse aparelhinho neutro que conseguiu fazer 75 perguntas, obtendo revelações até da vida íntima do arisco poeta. Nesses 40 anos de profissão, passaram pelo crivo de Geneton, só para citar os mais cintilantes: Jorge Amado, Millor Fernandes, Jarbas Passarinho, Roberto Carlos, Leonel Brizola, Geraldo Vandré, Mário Quintana, Nelson Rodrigues, Pelé, Luiz Inácio Lula da Silva, Ariano Suassuna, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, Francisco Julião, João Saldanha, Oscar Niemeyer, Chico Buarque, o ex-presidente americano Jimmy Carter, o Nobel José Saramago, o cardeal sul-africano Desmond Tutu, os escritores Carlos Fuentes, Cabrera Infante, Norman Mailler, Anthony Burguess, o cineasta Woody Allen, o jornalista Gay Talese, a atriz Janet (Psicose) Leigh, o astronauta Eugene Cernan (o homem que bateu o recorde de permanência na Lua), Theodore Van Kirk (o navegador do avião que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima), Eva Schloss (sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz). Publicou mais de uma dezena de livros de reportagens, entre os quais Hitler/Stalin: o pacto maldito e Nitroglicerina pura (ambos em parceria com Joel Silveira), Dossiê 50: os onze jogadores revelam os segredos da maior tragédia do futebol brasileiro, Dossiê Moscou e Dossiê Brasília: os segredos dos presidentes. Ano passado, recebeu a Medalha João Ribeiro, da Academia
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FRASES CERTEIRAS “Pertenço ao PPB: Partido dos Perguntadores do Brasil. Sem pretensões risíveis, sem delírios megalomaníacos (tão comuns em jornalistas...), penso que posso, como jornalista, dar uma contribuição mínima ao meu país: fazer do jornalismo que pratico uma fonte de produção de memória.” “Sou repórter, não sou militante. Como personagem jornalístico, George Walker Bush me interessa tanto quanto – por exemplo – Vladimir Ílitch Uliánov, o popular Lênin.” “Não existe nada tão triste quanto a figura do velho jornalista, pretensamente ‘sábio’, que passa o tempo todo jogando no lixo as matérias (e o entusiasmo) dos repórteres. Eles fazem mal à saúde da profissão, porque sofrem de uma doença que cataloguei como Síndrome da Frigidez Editorial (SFE). É um mal que acomete os ‘derrubadores de matérias’ ”. “Quem eu gostaria de entrevistar? Deus, é claro. Apontaria para o planeta Terra e perguntaria: ’Seja sincero: era isso o que o Senhor queria?’. ” 6
Brasileira de Letras, por proposta do acadêmico Ledo Ivo, na qual comentou, modestamente, o poeta “comete exageros – a meu favor”. Se pesquisarmos no Google, seu nome obtém 86.100 resultados. No seu perfil, no Facebook, na seção em que as pessoas escrevem sua autobiografia, registra apenas: repórter.
DOCS
Aos 56 anos, casado com a cenógrafa Elizabeth Garsón, três filhos (Clara, jornalista; Joana, pintora; e Daniel, estudante), quatro netos, o recifense tem se preocupado com a História (“Fazer jornalismo é produzir memória”, afirma, convicto). Deu um passo decisivo em sua carreira, ao largar a edição do Fantástico para fazer matérias especiais e editálas no canal GloboNews, onde já produziu documentários de fôlego como Canções do exílio (com Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner) e o mais recente Garrafas ao mar: a víbora manda lembranças, sobre Joel Silveira, que ele reputa o maior repórter brasileiro de todos os tempos, de quem se tornou amigo, parceiro e filho espiritual, digamos assim, e com quem gravou horas de entrevistas, um valioso documento sobre a imprensa brasileira. Nessa linha de reportagens históricas, um exemplo são as conversas com os quatro expresidentes do Brasil pós-ditadura (Collor, Itamar, FHC e Lula), em que arrancou revelações sobre as entranhas do poder, e as entrevistas com personagens centrais dos “anos de chumbo”, dos dois lados do espectro ideológico, como os generais Leônidas Pires Gonçalves e Newton Cruz e o ex-guerrilheiro Carlos Eugênio Paz, comandante militar da Ação Libertadora Nacional (ANL).
Essas três últimas entrevistas são especialmente reveladoras do “método” GMN: nas duas primeiras, afável, mas incisivo, fez algumas perguntas que foram “devolvidas” com certa agressividade pelos dois militares. Impassível, continuou a inquiri-los. (“Nem sempre respondi, porque meu papel, ali, não era o de fazer ‘discurso’, mas o de ouvilos, para levar ao público o que duas figuras importantes do regime militar tinham a dizer”, pontuou.) Na conversa televisiva com Carlos Eugênio Paz foi direto a um ponto muito delicado: os rumores de que teria participado da execução de um companheiro de luta. O ex-guerrilheiro confirmou o fato e explicou por que não tinha confessado antes: “Os jornalistas nunca me perguntaram diretamente sobre o assunto”. Repórter, demonstra Geneton, é essencialmente um ser que pergunta.
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PESSACH Comida à mesa em memória da libertação
1 SEDER Os símbolos da refeição são ervas amargas, ovo cozido, pasta de maçã com nozes, pão ázimo, água salgada e vinho
Do final de março ao princípio de abril, os judeus comemoram a sua Páscoa, permeada de simbolismos alimentares TEXTO Eduardo Sena FOTOS Flora Pimentel
Todo ano, quando a lua cheia se impõe pela primeira vez após 21 de março, data que marca o equinócio e o começo da primavera no Hemisfério Norte, além dos aspectos geográficos, várias simbologias vêm à tona. Para os judeus, é o começo do Pessach, léxico hebraico com raiz no verbo “pular” ou “passar adiante”. Para essa tradição religiosa, significa mais do que um movimento para frente. Corresponde ao período da Páscoa, celebrada este ano entre 25 de março e 2 de abril, de acordo com o calendário lunar. Diferentemente da liturgia cristã, que rememora a ressurreição de Cristo, o Pessach relembra a libertação do povo judeu da escravidão no Egito, em 1200 a.C., bem como o início da identidade histórico-judaica. Na perspectiva agrícola, representa também a época da colheita da cevada e do fim das chuvas. “Enquanto, no cristianismo, comemora-se a Páscoa no domingo depois da primeira lua cheia de primavera, no Hemisfério Norte (no Hemisfério Sul, inicia-se o outono), no judaísmo, a comemoração se dá na primeira noite de lua cheia da primavera, que é o dia 14 do mês de Abib do calendário judeu”, explica o professor de Teologia da Universidade Católica de Pernambuco, Cláudio Vianez. Uma vez que, no âmbito religioso, comida não é matéria para nutrir o corpo, mas instrumento para alimentar a alma, o Pessach carrega uma série de simbolismos e rituais ligados à alimentação. No judaísmo,
No judaísmo, como em outras religiões, o alimento estabelece o diálogo entre os homens e as divindades
em diante, várias refeições e narrativas são intercaladas, como forma de reforçar o significado da celebração. Cada um dos alimentos empregados relembra a experiência que o povo judaico teve quando viveu no cativeiro do Egito, as 10 pragas impostas e os milagres divinos que os retiraram daquela situação.
assim como em outras religiões, alimentos funcionam como porta de passagem para ritos das mais diversas origens, aproximando, por meio do comestível, os humanos às divindades. A comida, ou a ausência dela, é um dos canais mais fortes para o diálogo íntimo entre o fiel e as representações imateriais da sua crença. “A liturgia se inicia quando se coloca a casa em ordem, que deve estar limpa e arrumada para receber o Pessach. À mesa, todo um conjunto específico de talheres é utilizado para a celebração”, afirma a pesquisadora e presidente do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, Tânia Kaufman. E o ritual é extenso. Durante os oito dias do Pessach, qualquer tipo de alimento fermentado tem seu consumo proibido. “Por esse motivo, a comida principal é o pão ázimo, também conhecido como matzá.” Sem fermento nem farinha branca em sua receita, tem textura de bolacha tipo cream cracker. No dia que antecede as comemorações, a família deve jejuar em homenagem aos primogênitos que não foram atingidos pela última das maldições egípcias. Daí
Depois da casa arrumada e da mesa posta, inicia-se o seder, ceia familiar na qual é feita a leitura da narrativa sobre a libertação dos judeus da escravidão do Egito e o êxodo pelo deserto. “A ordem de arrumação inclui símbolos alimentares que rememoram toda a história do Pessach. Estão nessa mesa o osso com carne tostada, ovo duro, ervas amargas, pasta de maçã com nozes, batata-inglesa, alface, salsa, pão ázimo, água salgada e vinho”, lista Kaufman. Cada um desses alimentos tem um significado relacionado às etapas daquele momento histórico. A mistura de nozes picadas, tâmaras, maçãs e vinho, por exemplo, simboliza a argila usada para se fazer os tijolos durante a escravidão. A taça de vinho, que se serve, mas não se bebe, remonta ao conflito talmúdico sobre a quantidade de copos que se deve ingerir durante o seder. O ovo, por sua vez, representa a destruição do templo de Jerusalém, e o zeroá (osso com carne tostada), o sacrifício do povo judeu. Encerrado o seder, dá-se início à ceia. Rigorosamente, todas as comidas típicas devem ser preparadas com o pão ázimo, ou com a farinha
SIMBOLISMOS
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GUEFILTE FISH
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de Rosa Schvartz, imigrante da Romênia Ingredientes 1 kg de peixe moído (preferencialmente camurim) 1 cabeça de peixe 4 a 5 ovos 1 colher de sopa de farinha de matzá (caso for fazer sem ser no Pessach, pode-se usar farinha de rosca) 1/2 kg de cebola picada Óleo Uma pitada de açúcar Uma pitada de bicarbonato de sódio Sal a gosto Pimenta-do-reino a gosto 2 litros de água fervente 1 kg de batatas cortadas em rodelas, não muito finas, para acompanhar Preparo Ponha um pouco de óleo na caçarola onde os bolinhos serão cozidos, deixe aquecer e coloque a cebola picada, o bicarbonato de sódio, sal, pimenta-doreino e um pouco da água fervente. Deixe a cebola ir dourando, colocando água aos poucos, até se transformar numa pasta de tom marrom claro. Acrescente a cabeça de peixe para dar sabor. Em seguida, a mistura irá se transformar numa pasta. Quando pronta, ponha duas colheres de sopa desta pasta e junte ao peixe moído, adicionando a farinha de rosca ou matzá (conforme o caso) até formar uma massa homogênea. Acrescente os ovos inteiros, ligeiramente batidos, um a um. Pronta a massa, coloque a água, com sal a gosto, na caçarola onde foi frita a cebola e espere ferver. Faça bolinhos com as mãos e cozinhe-os. Junto, coloque as batatas e quando elas estiverem cozidas, os bolinhos também estarão. Sirva frio com batatas.
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dele. Entre os quitutes salgados, os tradicionais bolinhos de peixe (guefilte fish), guarnecidos de pasta de erva amarga; canja de galinha; bolinhos fritos de farinha matzá com ovos; bolinhos cozidos em caldo de galinha ou água e sal; enrolados de pão ázimo com recheio de batatas espremidas e misturadas com cebolas fritas; bolo de batata ralada feito com ovos e farinha de ázimo. “As sobremesas incluem frutas naturais em compota e, em especial, uma torta feita de castanha-de-caju moída com farinha e doce de goiaba derretido,
arrumados em camadas alternadas. Outro quitute bastante típico é o pão de ló de Pessach feito com farinha de ázimo e ameixas amassadas”, detalha a pesquisadora, que também é antropóloga com doutorado em história dos judeus no Brasil e coordenadora do Museu Sinagoga Kahal Zur Israel, no Bairro do Recife.
RESTRIÇÕES
Tânia Kaufman faz questão de ressaltar a importância da alimentação nos demais dias do ano, que também recebe um conjunto de regras e privações baseadas
nos textos sagrados. Aqui, todo tipo de comida que pode ser ingerida é chamada de kosher (de kasher, “bom” e “próprio”, em hebraico). Entre as particularidades kosher está a proibição do consumo de animais como camelo, coelho, lebre, porco e aves predatórias. Também é rejeitada a combinação entre leite e carne no mesmo prato. Um cheesebúrguer e um estrogonofe, por exemplo, são receitas repelidas pelo povo judeu. “O repúdio se dá porque o leite que aparece na fêmea na hora do parto significa vida e a carne representa a
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2-3 TRADICIONAIS Os bolinhos de peixe (guefilte fish) e os enrolados de pão ázimo não podem faltar na celebração 4 TÂNIA KAUFMAN Antropóloga observa que o primeiro passo do Pessach é colocar a casa em ordem
ANO-NOVO
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morte, pois com ela se tira a vida do animal. Nas famílias tradicionais, até a louça usada para servir carne não pode ser a mesma da utilizada para derivados do leite. Pias e geladeiras também devem ser distintas para os dois alimentos”, explica. Mas se há algo que marca verdadeiramente a cozinha judaica como ritual religioso é a comida doce. Uma vez que, nesse contexto, o dulçor dos alimentos significa uma vida plenamente doce para o judeu. Doces aparecem de forma abundante nas principais cerimônias religiosas
judaicas (além do Pessach): no batismo, na circuncisão, na cerimônia de atribuir um nome, na maioridade religiosa dos meninos e no casamento. Nessas ocasiões, sempre são servidos o chalá (pão trançado), o bolo de mel e o flúden (massa folhada recheada de frutas secas). “No dia da cerimônia de casamento, os noivos devem jejuar, e, ao final dela, recolhem-se a um recinto próximo do local, onde fazem a primeira refeição de casados, composta por maçã açucarada e chalá. Em seguida, podem retornar para a festa”, narra.
Na festividade que se refere ao AnoNovo judaico, que ocorre entre os meses de setembro e outubro, costumamse servir bolinhos de peixe (animal que só se move para frente), romãs e um pescado servido inteiro com a cabeça, simbolizando liderança e fertilidade. No caso do guefilte fish do Pessach, utiliza-se sua carne branca moída na composição dos bolinhos. O guefilte fish origina-se nos antigos vilarejos judaicos em Israel, onde a maioria da população era pobre e, portanto, sem condições para comprar o peixe para a primeira refeição tradicional do dia do descanso semanal, o Shabat. O Talmude, livro da religião judaica que contém a lei oral, a doutrina, a moral e as tradições desse povo, indica que todas as famílias, mesmo as mais pobres, têm o direito de comer o pescado nas celebrações. Por esse motivo, os judeus mais ricos compravam, além dos tipos de primeira qualidade para consumo próprio, mais três tipos, faziam a receita e distribuíam para os pobres. O prato é emblemático para os judeus, mas pode agradar outros paladares, não necessariamente religiosos. Agradecimento ao restaurante Café Porteño e sua chef executiva Sofia Mota, que, gentilmente reproduziram as receitas judaicas para as fotos desta edição.
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
Claquete
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HOLLYWOOD Salário minguado para as estrelas
Crise financeira mundial começa a afetar um dos maiores símbolos de poder da indústria cinematográfica americana, os cachês milionários dos atores TEXTO Rodrigo Carreiro
A crise que se abate sobre o mundo desde 2008 não tem reflexo apenas sobre mercados financeiros e bolsas de valores. O cinema também vem sofrendo os efeitos da retração econômica global, especialmente em Hollywood, onde a produção de filmes que envolvem bilhões de dólares está atrelada às ações de investidores internacionais. Ano a ano, os grandes estúdios têm menos dinheiro para investir em longas-metragens, o que tem lançado nuvens negras sobre um dos itens mais glamorosos dessa indústria: os salários astronômicos das estrelas, frequentemente superando a cifra dos US$ 20 milhões. O alerta foi lançado há alguns meses por um dos galãs de Hollywood. Brad Pitt, que também atua como produtor, afirmou sem rodeios que a era dos grandes salários havia acabado, e fez uma previsão sombria. Para o ator, diante da
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atual realidade nos bastidores das produções de filmes, Hollywood não pode pagar cifras tão altas, nem mesmo a seus rostos famosos, capazes de levar multidões ao cinema. Especialistas no tema concordam com ele. Nos últimos 20 anos, o negócio de produzir filmes mudou drasticamente. No que se refere a salários, a tendência de pagar somas astronômicas a grandes estrelas começou para valer somente nos anos 1960. Durante as primeiras duas décadas do século 20, poucos atores conseguiam viver exclusivamente do cinema. Mary Pickford, uma das atrizes mais famosas do cinema mudo (e provavelmente a que tinha maior tino comercial), começou a carreira em 1909, ganhando um salário de 10 dólares por dia (o equivalente hoje a 230 dólares – levando em consideração a inflação do período). Esse era o valor padrão dos contratos da época, e 98% dos atores de Hollywood não ganhavam mais do que isso. Menos de 10 anos depois, porém, Pickford assinou um contrato muito mais lucrativo: 675 mil dólares por três filmes (11,3 milhões, nos dias de hoje), tendo direito a levar 50% dos lucros dessas produções. Pickford, Charles Chaplin e David W. Griffith (diretor do influente O nascimento de uma nação) estavam entre os raros que faturavam alto em Hollywood, tornando-se milionários. Fundaram juntos, em 1919, o estúdio United Artists, que, por seu gigantismo, foi importante agente na construção das normas que estabeleceram o star system, sistema de produção diretamente responsável pela fama de Hollywood como fábrica de sonhos. Esse sistema se desenvolveu no começo da década de 1930, durou pouco mais de 20 anos e era centrado na figura do ator como celebridade. A cultura das celebridades que vivemos hoje nasceu dessa maneira. No entanto, os atores da época usufruíam mais da fama do que do dinheiro. Além de serem modestamente pagos, eram raros os atores que recebiam salários mensais em Hollywood, até os anos 1950. Eles assinavam contratos anuais com os estúdios, eram pagos semanalmente e faziam até quatro filmes por ano,
1 JACK NICHOLSON Ao atrelar seu contrato ao lucro de Batman, ator bateu recorde de cachê 2 MARY PICKFORD Estrela do cinema mudo ganhava o equivalente, hoje, a 230 dólares por dia
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No início do século 20, poucos atores conseguiam viver apenas de cinema; a mudança aconteceu a partir dos anos 1960
recebendo o mesmo pagamento, fossem os filmes fracassos ou sucessos. Ingrid Bergman, a estrela sueca que brilhou como ícone de beleza e talento nos anos 1940, recebeu apenas 25 mil dólares para fazer Casablanca, filme legendário de Hollywood. Hoje, esse valor corresponderia a cerca de 400 mil dólares. Humphrey Bogart, par romântico da atriz no mesmo filme e considerado um ator bem pago da época, recebeu igual valor. O star system era generoso com seus astros
apenas em glamour. A parte dos lucros obtidos pelos estúdios ia para o bolso de executivos, especialmente aqueles que lideravam a parte criativa da produção, como David Selznick e Louis B. Mayer (da MGM).
DIVA MILIONÁRIA
Essa tradição começou a mudar no princípio dos anos 1960. Na época, Hollywood começava a viver uma intensa crise criativa. A geração de pioneiros que havia criado tantas obras-primas e erguido todo um sistema de produção bem-sucedido começava a se aposentar. Fora dos Estados Unidos, um cinema jovem, irreverente e disposto a correr riscos para produzir algo diferente estava sendo produzido, em particular na França de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Ao mesmo tempo, a ascensão de uma nova geração norte-americana de talentos marcou o
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3 BRAD PITT Galã anteviu o fim dos grandes cachês em Hollywood 4 CLEÓPATRA Filme com Liz Taylor estabeleceu novo patamar de salário para atores
Claquete surgimento de outra maneira de fazer filmes e uma distribuição de renda que valorizava mais o ator. Começava aí a era dos salários astronômicos. Em 1963, pela primeira vez, uma atriz – Elizabeth Taylor – rompia uma barreira simbólica fundamental, ao receber 1 milhão de dólares por um único filme: Cleópatra. Contabilizada a inflação, se aceitasse o mesmo acordo em 2013, Liz Taylor sairia dos sets de filmagem 7,5 milhões de dólares mais rica. Reza a lenda, que a cifra resultou de uma mera brincadeira feita pela diva, que teria chutado um valor alto ao receber a proposta para protagonizar o filme. Taylor teria tomado um choque ao ver a proposta prontamente aceita pelos produtores da Fox. Já nos anos 1970, com a consolidação da cultura do blockbuster, a partir de filmes como Tubarão (1975) e Guerra nas estrelas (1977), os atorescelebridades passaram a receber salários cada vez mais vultosos. Clint Eastwood, por exemplo, recebia 1 milhão de dólares por filme (5,4 milhões em valores de hoje), regularmente. Nas duas décadas seguintes, os cachês continuaram aumentando: Sean Connery foi o primeiro ator a romper a barreira dos 10 milhões de dólares (18,2 milhões em 2013) por um só trabalho, a aventura Caçada ao Outubro Vermelho (1990). Seis anos depois, Jim Carrey levou o dobro (hoje seriam 29,9 milhões) pela comédia O pentelho (1996). O valor de 20 milhões acabou se tornando um número cabalístico, mágico – prérequisito de acesso ao primeiro time das supercelebridades. Um ator só seria realmente grande quando fizesse um filme ganhando esse montante. Algumas das principais estrelas se acostumaram a atingir regularmente
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Com a consolidação dos blockbusters, nos anos 1970, os atores passaram a ganhar salários cada vez mais vultosos
esse patamar – Tom Cruise, Denzel Washington e Tom Hanks são exemplos desse clube exclusivo. Também é preciso lembrar que salários substanciosos só costumam ser exigidos pelos atores de prestígio quando a produção em questão tem alta expectativa de faturamento, fato que nem sempre vem acompanhado da mesma expectativa quanto à qualidade do texto. É por isso que os astros que cobram milhões para protagonizar aventuras e filmes carregados de efeitos especiais costumam trabalhar, por valores meramente simbólicos, com diretores de grande prestígio crítico. Dessa forma, cineastas como Woody Allen e Robert Altman reuniram grandes estrelas, incluindo atores como
Leonardo Di Caprio e Julia Roberts em filmes com orçamentos inteiros menores do que os salários recebidos por eles nas grandes produções. Em 2013, contudo, mesmo esses nomes estelares têm dificuldade para assinar contratos superfaturados. Há diversas razões para isso. Em primeiro lugar, os executivos dos estúdios perceberam que não haveria modo de estancar a inflação dos salários, se não começassem a praticar outro tipo de acordo com os atores. A partir de meados dos anos 1990, tornaramse comuns os contratos de risco. Funcionava – e ainda funciona – assim: o astro fecha contrato por um valor fixo baixo, e garante para si um percentual dos lucros. Seus ganhos financeiros só serão grandes se aquele filme fizer sucesso. Foi dessa maneira que Jack Nicholson bateu o recorde de valor mais alto recebido por um único trabalho: seus ganhos em Batman (1991) chegaram a 60 milhões de dólares, o equivalente hoje a 103 milhões. Atores como Tom Cruise e Brad Pitt costumam assinar seus filmes também como produtores executivos, assumindo
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INDICAÇÕES DRAMA
COMÉDIA
Direção de Céline Sciámma Com Zoé Héran, Malonn Lévana, Jeanne Disson Pandora Filmes
Direção de Wes Anderson Com Bruce Willis, Edward Norton, Tilda Swinton Universal
TOMBOY
MOONRISE KINGDOM
Laure é uma garota de 10 anos que acaba de se mudar com sua família para um novo apartamento durante as férias de verão. Ela parece um garoto, usa os cabelos muito curtos e as roupas masculinas, e se apresenta com o pseudônimo de Mikael para seus novos colegas, despertando o interesse de Lisa. Em tempos onde temas como a homofobia são pauta para discussões em diversas instâncias, Tomboy oferece uma visão cuidadosa e delicada sobre identidade, sexualidade e aceitação.
O filme narra a fuga de um jovem e desajustado casal de adolescentes, mobilizando toda uma cidade na busca pelos dois. Um típico filme de Anderson, mesmo diretor d’Os excêntricos Tenenbaums: universo ligeiramente bizarro, permeado por personagens nonsense, que escancaram facetas ainda encobertas por convenções sociais. Destaque para a direção de arte: é como se a obra saltasse da realidade para se tornar um conto de fadas.
ANIMAÇÃO
DOCUMENTÁRIO
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a responsabilidade por um sucesso ou um fracasso – e é assim que continuam, quando bemsucedidos, garantindo ganhos astronômicos sem ter salários tão altos. A outra razão para que os salários estejam baixando é mais complexa. Acontece que, desde o começo da década de 1990, quando a quantidade de capital circulante nas bolsas de valores cresceu de modo acelerado, as fontes de financiamento de filmes em Hollywood tornaramse mais diversificadas. Ao contrário do que muita gente pensa, o dinheiro para custear os filmes mais caros (esses que ultrapassam os 100 ou 200 milhões de dólares de orçamento) não sai diretamente dos cofres dos estúdios, mas de investidores independentes. Desse modo, a maior parte
do dinheiro para filmes tem vindo de bilionários e fundos financeiros que, muitas vezes, estão fora dos Estados Unidos (frequentemente, países do Oriente Médio e da Ásia). Quando a crise bate às portas desses investidores, as fontes de financiamento somem. Diante do quadro sombrio por que passa a economia internacional, é fato que os estúdios de Hollywood estão atraindo menos investidores – afinal, fazer filmes é um negócio arriscado. Com menos dinheiro, os orçamentos das grandes produções sofrem cortes, e os salários dos atores estão entre as áreas mais atingidas por essas operações de reorganização financeira. É por isso que as perspectivas para os próximos anos, como disse Brad Pitt, não são nada animadoras.
FRANKENWEENIE
Direção de Tim Burton Com Winona Ryder, Catherine O’Hara, Christopher Lee Disney
A nova animação em stop-motion de Tim Burton é uma adaptação do curta de 1984 de mesmo nome, rejeitado pela Disney, à época, por considerá-lo muito sombrio. O filme conta a história do garoto Victor Frankenstein, que, abalado pela morte do seu cachorro Sparky, decide trazê-lo de volta à vida usando o poder da ciência. Utilizando a mesma ambientação expressionista dos primeiros filmes com som, Frankenweenie é uma homenagem às películas de horror.
THE PIRATE BAY: AWAY FROM KEYBOARD Direção de Simon Klose Com Gottfrid Svartholm, Peter Sunde e Fredrik Neij Nonami Film
O filme acompanha o julgamento dos suecos Gottfrid Svartholm, Peter Sunde e Fredrik Neij, cofundadores de um dos maiores sites bittorrent do mundo, o Pirate Bay. Retrata o embate entre a velha indústria cultural e sua forma de produzir e distribuir conteúdos, e os novos hábitos de consumo. Lançado na internet simultaneamente à exibição no Berlinale 2013, encontra-se disponível no Youtube, e para download no www.tpbafk.tv.
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REPRODUÇÃO
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IMAGENS Como atirar flechas no escuro
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BENJAMIN PAIGE Fotógrafo produziu a Murder scene a partir da técnica de light painting
Fotógrafos com pouca ou nenhuma visão indicam, com seus trabalhos, que aquilo que registramos não está necessariamente ligado aos olhos TEXTO André Valença
Em Dirigindo no escuro (Hollywood ending), filme de uma safra de Woody Allen realizada entre os anos 1990 e início dos anos 2000, o diretor de cinema Val Waxman entra em crise às vésperas das gravações do seu próximo projeto, sendo diagnosticado por seu psiquiatra com um caso de cegueira histérica. Com a visão temporariamente ausente, por conta do surto, o personagem tem que rodar o longa, senão pode ficar malvisto em Hollywood. Waxman chega a concluir o filme, mas é tão ruim, que só os franceses gostam, pelo fato de os enquadramentos serem bastante “conceituais”. Como premissa, abre espaço para situações inusitadas e discussões filosóficas sobre um mundo mediado por imagens, ou até regido por elas. A piada de Allen pode até fazer sentido no filme, mas ignora a possibilidade do cego como um artista versado em cultura visual. No contexto do filme, o cego tem que ser um “analfabeto visual” para gerar um fator de comicidade. Na vida real, entretanto, a ideia de inacessibilidade da fotografia para o deficiente visual já foi desbancada, como demonstra o caso de Evgen Bavcar. Conhecido como “o” fotógrafo cego, o esloveno tinha 12 anos, quando sofreu dois acidentes distintos e consecutivos que lhe custaram os olhos (o esquerdo
foi perfurado por um galho de árvore, e o direito foi lesado pela explosão de uma mina). Anos depois, clicou um retrato da moça por quem estava apaixonado e sentiu prazer em roubar e fixar na película algo que não lhe pertencia. Bavcar, hoje consagrado como um grande artista, é a maior inspiração para fotógrafos com deficiência visual. E não há necessidade de ir muito longe para encontrá-los. O funcionário da Unicap, Milton Carvalho, conta que decidiu aprender a fotografar depois de ter sido exibido, numa aula do curso de Jornalismo, o documentário Janela da alma, de Walter Carvalho, no qual Bavcar é entrevistado. “Confesso que estava temeroso ao me matricular na disciplina. Quando assisti ao filme, notei que a fotografia não é só feita com os olhos, embora o produto seja um material visual”, comenta. Portador de glaucoma crônico (cego de nascença, portanto), Milton não tem nenhuma percepção em termos de imagens, apesar de dispor de um resíduo visual que lhe permite distinguir diferentes luminosidades. Para que possa bater as poses, ele usa uma série de estratégias. “Com relação ao foco, fizemos uma marcação no anel da câmera que o regula com fitas adesivas, para que eu girasse. A distância, meço com os passos (largos, mais ou menos
1m) e depois ajusto o anel. Outras funções, eu deixo no automático”, explica. “Uma vez, quis fotografar o mar. Com ajuda do monitor da disciplina, escolhi um arrecife e cliquei quando escutei a onda arrebentar nas pedras. Também fiz o retrato de uma amiga através do tato. Outra vez, senti o calor no rosto e minha percepção me disse que o pôr do sol estava bonito; então fiz a foto”, relembra. O fotógrafo profissional Teco Barbero, de Sorocaba (SP), também chegou à profissão pelo Jornalismo. Deficiente visual desde o nascimento, apresenta um problema no vítreo e na retina que impede a chegada da luz com qualidade. Como a lesão não é total, Teco tem baixa visão. “Dá até para assistir minha tevê de 20 polegadas, se eu chegar a uns dois palmos do aparelho. Quando passa de dois ou três metros, já fica difícil para reconhecer uma pessoa. Nesse caso, para eu saber quem você é, pego pontos de referência, como altura e estilo do cabelo. Depois, vou compondo mentalmente.” Um dos trabalhos de Teco foi uma campanha junto à revista IstoÉ, na qual produziu fotos de cinco dos maiores medalhistas para-atletas brasileiros. Nas imagens desse que deve ser um dos ensaios artísticos mais inclusivos do país, os esportistas aparecem em
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
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PETE ECKERT Electro man foi feita por artista americano que sofre de retinite pigmentosa
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TECO BARBERO Fotógrafo que possui persistência de vitreo registrou aluna cega de seu curso de fotografia
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MILTON CARVALHO Foto integra ensaio realizado na Praia de Boa Viagem por funcionário da Unicap que tem glaucoma
maioria das instituições trata os cegos como crianças”, explana.
LIGHT PAINTING
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ação, desempenhando suas habilidades. “Esse foi um ensaio planejado. Tinha bastante movimento, o que seria um dado complicador, mas era movimento programado. Então, eu já sabia o que queria fazer e foi questão de acertar o momento”, relata. Para Teco, o desajuste da retina pode ser exatamente aquilo que ajusta o obturador. “O importante é mostrar às pessoas a forma como estou enxergando aquilo. Entenda ‘enxergar’ como a função de qualquer que seja o sentido do corpo.” Existem, na realidade, variadas técnicas de se fotografar sem ver. O nova-iorquino Seeing With Photography Collective, especializado em fotógrafos com deficiência visual, por exemplo, encontrou na técnica de light painting
Os que perderam a visão mantêm a memória visual das coisas, portanto, imaginam e pensam visualmente (pintura com luz) a fórmula ideal para produzir suas imagens. “Na verdade, somos um grupo misto, com cegos e não cegos”, diz Mark Andres, fundador do coletivo. “Normalmente, nosso trabalho é colaborativo. Você não vai realmente distinguir qual foto é de quem apenas olhando para ela. Resolvemos criar o SWPC porque sempre achei que a
A técnica desenvolvida pelo coletivo é a mesma praticada por Bavcar. Funciona mais ou menos assim: os integrantes imaginam uma cena e criam um cenário numa sala escura. Um ajudante que enxerga ajuda-os a arrumar o tripé e direcionar a câmera. Eles explicam o enquadramento (um tanto de espaço acima da cabeça da pessoa, um tanto abaixo etc.), descrevendo com as mãos, para serem mais exatos. Em seguida, ajusta-se o tempo de exposição – o obturador fica aberto, recebendo luz por um período que pode variar de um minuto a uma hora. O fotógrafo, então, usa lanternas pequenas, que vão criando pontos luminosos dentro do quadro, funcionando com um “pincel”. No momento em que o obturador fecha, uma imagem foi impressa com essas “pinceladas”, e o resultado só é possível de se detectar no fim, quando a imagem foi inteiramente captada. “Quando você desenha com a luz, não consegue ver a imagem enquanto a produz”, fala Andres, “tem que concebê-la previamente na cabeça, ao invés de vê-la. Pessoas que perderam a visão ao longo da vida ainda têm a concepção visual das coisas, imaginam visualmente, pensam visualmente o tempo todo. Sonham como a gente. Elas não têm muito como descrever isso, no entanto. A gente não tem ideia de como a percepção imagética de mundo deles muda ao longo do tempo. Mas o que as fotografias fazem é revelar o tipo de coisas em que a gente pensa, não que a gente vê. São as nossas memórias, os nossos sonhos”, observa.
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Andres, que enxerga normalmente, conta o caso de dois estudantes seus que têm uma doença chamada retinite pigmentosa. “Nessa condição, você perde primeiro sua visão periférica, que vai se restringindo até que pareça como se você estivesse vendo por um canudo. Então, eles só podem perceber uma pequena mancha de luz no mundo. E, a partir desses pedaços, eles tentam reconstruir com a memória o que viram. De certa forma, é análogo à nossa experiência. Nós contemplamos o mundo em pedaços e reconstruímos uma noção dele a partir desses fragmentos. A diferença é que a gente faz isso inconscientemente; eles, não. Daí, surge um problema, que é igual ao
nosso: quando visitamos um lugar, saímos dele e, se voltarmos, ele pode estar diferente. Quando eles terminam de ‘escanear’ uma imagem e voltam para o primeiro lugar, já há outra configuração”, discorre.
VIABILIDADES
Outro artista que vem usando a light painting como principal técnica para fotografar é o americano Pete Eckert, que também sofre de retinite pigmentosa. Uma vez diagnosticado com um problema que faria sua visão ficar ainda mais estreita, Eckert, que já trabalhava com xilogravura, viu-se na necessidade de aprimorar suas habilidades táteis. Um dia, já cego, achou uma câmera velha – uma
Kodak de 1950 – da sua falecida madrasta e, fascinado por aparatos mecânicos, começou a futricála. “Depois, acabei deixando a xilogravura”, conta Eckert, “era um processo lento. Talhava imagens grandes para poder senti-las. Era um tanto confuso. Quando encontrei a câmera, pensei que poderia ser muito mais rápido. O ‘evento’ de tirar fotos é melhor, você tem apenas que memorizar os sons e controlar a câmera. Xilografia demora muito. Escultura é uma outra alternativa viável”, comenta. As fotos de Eckert descrevem cenas etéreas, fantásticas, às vezes assemelhadas a uma ficção científica. “Pintura com luz não é o único método que faço. Se bem que a maioria envolve fotografia de baixa velocidade. Eu uso mais a light painting, porque me dá a chance de alterar a imagem. Photoshop não é acessível para os cegos”, afirma. Quanto às estratégias de fotografia, revela: “Dirijo meus modelos no escuro. Uso minha voz para localizá-los através do eco, como um morcego. Minha fala também os deixa saber como estou construindo uma imagem na cabeça e os acalma se estão nervosos. O problema é que alguns modelos não gostam de posar no escuro”. O consenso parece ser o de que a fotografia é produzida a partir de uma congregação de fatores que envolvem a mente e os variados sentidos (sejam estes quais forem e que força tenham). Se a foto é vista como o resultado de um processo não técnico, mas artístico, os limites para quem lhe possa ter domínio se esvanecem. No site oficial de Bavcar, há uma declaração sumária neste sentido: “Eu sinto uma enorme proximidade daqueles que não consideram fotografia um ‘pedaço’ de realidade, mas uma estrutura conceitual, uma forma sintética de linguagem pictórica, até uma imagem suprematista como o quadrado negro de Malevich. A direção que eu tomei é mais próxima de um fotógrafo como Man Ray, do que formas como a reportagem, que é como atirar uma flecha em direção a um momento fixo”.
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BLANCHE O impressionista tardio ressurge
Pintor subestimado pela História da Arte ganha exposição e primeira publicação de estudo de sua obra TEXTO Eduardo Duarte
As delicadas dobras do vestido de
musselina branca se acendem, quando um feixe de luz atravessa a janela do toucador de Lucie Esnault. O olhar acompanha o pincel, que dispõe sua modelo quase de costas, desenhando-a em S no meio da tela. Lucie Esnault devolve um olhar perdido, algo distante e triste. Um olhar que a lança fora do
tempo, para além do quarto de vestir, fora da moldura da tela de JacquesÉmile Blanche (1861-1942). O olhar de Lucie é um discreto sinal de que o último impressionista não entraria para a história. Um olhar que a abstrai do presente e a lança a um tempo imemorial. Lugar onde Blanche habita, para além dos fatos do seu tempo.
Jacques-Émile Blanche é um artista a cujas obras muitos já tiveram acesso, tendo sido tocados por suas telas, mas que se mantém estranhamente desconhecido, como se aqueles fossem quadros sem dono. Como ele mesmo profetizou em 1921: “Daqui a 50 anos, serão vistos nos museus os retratos que eu terei pintado, de tantos escritores, meus amigos; e sobre o autor desses retratos não haverá um traço sequer em qualquer livro dessa época. Eu sou, talvez, o único artista da minha geração que não tem ao menos uma monografia sobre a obra”. Uma obra tardiamente impressionista, vinda de um autor completamente esquecido, não celebrizado pela história, pairando fora do tempo, como o olhar de Lucie Esnault, em seu toucador de tom azul macio, rodeada de vazias poltronas Luís 16. Por sua beleza melancólica e profundamente expressiva, ele nutria um forte fascínio, vindo a retratá-la ainda outras cinco
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MODELO Lucie Esnault foi retratada pelo pintor em cinco fases de sua vida
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MARCEL PROUST Pródigo retratista, Blanche pintou vários de seus contemporâneos, como o escritor francês
parisienses e londrinos. Mas como escrever também lhe parecia pouco, para quem foi retratista e amigo de Debussy e Stravinsky, a música soprou-lhe a disposição de tornar-se um pianista de nível profissional.
RETRATISTA vezes, em fases distintas de sua infância e adolescência. Lucie, sempre solitária, contemplava espelhos escuros, esquecida nos vãos pouco luminosos da mansão da família Esnault. Jacques-Émile Blanche pintou dezenas de senhoras e cavalheiros da aristocracia francesa e inglesa, entre as décadas de 1880 e 1942. Personagens postos em elegantes vestidos e ternos, nos salões das famílias europeias. Filho de família abastada, Blanche sempre conviveu em ambientes culturais sofisticados e, aos 16 anos, decidiu que seria pintor. Mas como pintor era pouco, para quem era amigo e retratista de Stéphane Mallarmé, Henri Bergson, Marcel Proust, Henri James, Thomas Hardy, James Joyce, André Gide, Max Jacob e Paul Valéry. Foi também contaminado pelo desejo da escrita e, durante sua carreira, sobretudo no entre guerras, publicou mais de 40 livros, além de críticas culturais nos jornais
Entretanto, como pintor gostaria de ter sido lembrado. Um exímio retratista que emocionou seu mestre Edgar Degas, num retrato ao final de sua vida. Degas costumava guardar o quadro em seu quarto, ao lado de sua cama, entre um Delacroix e um Gauguin. A grande herança dos mestres do Impressionismo se fez na luz de Jacque-Émile Blanche, que reconstruiu os cenários da belle époque completamente alheio às duas grandes guerras que destruíram a Europa e às vanguardas artísticas do início do século 20. Blanche sentia-se testemunha de uma outra dimensão do mundo e passava tardes discutindo volume e formas, na escultura e na pintura, com Auguste Rodin, a quem retratou posteriormente. Um pintor de costumes e temas clássicos que dedicava horas de suas composições a retratar naturezas-mortas em recantos vazios de salões, detalhes de toucadores, quartos espelhados, vasos com flores, mesas após a refeição, jantares em família, encontros de amigos. Quando levava seu cavalete às
ruas, plasmava imagens de cruzamentos barulhentos, portos e ruas movimentadas de diversas cidades europeias em plena era moderna; partidas de tênis no sábado à tarde; passeios de barcos de senhoritas. Retratos... muitos retratos de centenas de rostos e costumes do final do século 19, até a metade do século 20. Jacques-Émile Blanche foi um artista que testemunhou grandes mudanças e modernizações, mantendo-se suspenso num tempo e aura específicos, numa atmosfera aromatizada pelos charutos ingleses, ao som do farfalhar de longos vestidos arrastados nos salões. O artista de múltiplas habilidades também não cedeu à novidade da fotografia. Para ele, a fotografia era uma mera ferramenta que o ajudava nos seus estudos de composição e iluminação, com resultados impressionantes, como na corrida de cavalos da tela Le Derby d’Epson, que foi pintada a partir de uma foto. Ou nos retratos que fez de Jean Cocteau, Gilda Darthy e Vaslav Nijinsky. Artistas fotografados em seu estúdio e jardim, e em seguida transpostos para a tela em cenários distintos aos da fotografia, numa livre reinterpretação do autor. Depois de quase 90 anos, o pintor teve a primeira monografia dedicada à sua obra: Jacques-Émile Blanche, de Jane Roberts, pela editora francesa Gourcuff Gradenigo. A autora conseguiu catalogar 1.500 telas produzidas por Blanche. Em homenagem, e concomitante ao lançamento dessa monografia, a Fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent montou a exposição Jacques-Émile Blanche, un salon à la belle époque, no início deste ano, em Paris. Uma lembrança sempre justa, mas que infelizmente não chega a introduzir seu nome no panteão dos grandes nomes da música, do teatro, da literatura e pintura da belle époque. Um espaço já romanceado na construção do imaginário e da memória do século 20. Entretanto, o Blanche redescoberto é como entrar devagar no toucador de Lucie, sem ser percebido. Contemplar o leve azul das paredes e poltronas tocados pela força dourada da luz de fim de tarde e ser dragado pela força mística, quase hipnótica, do olhar de uma moça sentada entre cadeiras vazias. O mundo fez-se outro, mas, de alguma forma, Lucie continua lá, à espera de ser descoberta.
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IMPLANTE
MATÉRIA CORRIDA José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
Meus oitenta anos têm sido
mais comemorados do que os cem de Luiz Gonzaga. Os dele, pelos outros. Eu, felizmente, ainda como minha farinha, de preferência com linguiça matuta. Bem curtida. E torrada. “Essa é mais saborosa”, me disse a vendedora no Mercado da Encruzilhada, “mas precisa ter dente”. “Quero ela”, eu disse à mulher. Quando menino, eu morria de inveja de menino que faltava dente. Principalmente da frente e de cima, pela capacidade de cuspir pela falha. De debaixo também. Nada sabia de cárie, de aparência, de posição social. Invejava o velho Balbino, “velho” porque velho-de-pastoril, negro grandalhão, calunga-de-caminhão do caminhão de Seu Barreto que carregava açúcar da usina. Também saía vestido de mulher no Carnaval, a saia comprida de chitão arrastando no chão, um dentão único de debaixo,
da frente, que enfiava no buraco da venta, engolindo o beiço de cima, os olhos arregalados parecendo o cão. Em Ipojuca tinha muito menino banguelo, menino só não, os dentes apodrecendo e ficando os cacos ou as raízes pretas aparecendo nas gengivas. Velho, nem se fala. “Eu tenho um caco de dente/que já comeu coisa boa.” Era considerado normal. No Benin ninguém sabe o que é uma cárie. Perguntei a um pintor de lá, da cidade de Uidá onde eu estava, se não havia dentista no Benin. “Tem na capital, Cotonu, para os estrangeiros”, me respondeu. Lá, no caso dos muito velhos, os dentes caem inteiros, feito de criança, da primeira dentição. Fui até o Abomei, mais para o interior, e não vi um banguelo nem novo nem velho. Outra coisa interessante é que, em certos tipos de velhas, os peitos, em vez de caírem vão enrijecendo para cima, meio engelhados, feito
chifre de bode. Isso eu mesmo vi, já que homens e mulheres de todas as idades lá andam nus da cintura para cima na rua e em todos os lugares. Mas voltando a Ipojuca, não tinha dentista nem médico. Quem podia, vinha arrancar dente no Recife. Com anestesia. Mas meus dentes sempre tinham sido bons, assim como os de minhas irmãs, que bons continuam até hoje, a que eu saiba. Nunca me imaginara totalmente banguelo na velhice, também porque, como a maioria, não calculei chegar a essa idade. Tinha a ilusão de não perder, pelo menos, os dentes da frente, como aconteceu com minha mãe, que morreu com os dela, com quem me achavam parecido, e que viveu mais de noventa anos, agora comum. De uns tempos para cá, os meus foram se estragando rapidamente. Uma infecção me obrigou a extrair metade da boca de uma vez. Ficou um
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único da frente da parte de cima. Me lembrava que uma mulher perguntou a Voltaire se falava inglês. Voltaire repondeu: “Minha senhora, para falar inglês é preciso ter dentes. E eu não tenho”. Também me lembrava de Cervantes, que diz no seu autorretrato no prólogo das Novelas exemplares que tinha “poucos e desencontrados”. Mas o consolo de poder imitar o velho Balbino me foi negado, porque o meu único dente era de cima. Amigos começaram a falar em implante. Eu simpatizava com a ideia, embora prevenissem do preço. “Prepara o bolso.” E eu pensava: para que tanto luxo, eu já desta idade? Antes, quando ainda restavam alguns dentes, cheguei a usar uma prótese,
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Nunca me imaginara totalmente banguelo na velhice, também porque, como a maioria, não calculei chegar a essa idade dessas que chamam “perereca”, para manter as aparências. Embora ninguém se preocupasse muito com a funcionalidade, a má aparência causava nojo. Era desleixo. Ou outro defeito pior: pobreza, sinônimo de decadência moral e física, ou física como consequência da moral. Para fixar a perereca, usava uma cola de
SORRISOS
Esta é a foto que serviu para fazer minha dentadura: eu abraçando o pintor Gilvan Samico
difícil remoção do céu da boca quando tirava a intrusa para comer ou para dormir. Foi um alívio um dos dentes em que a peça era enganchada se quebrar e me livrei dela. Devido à sobrecarga de mastigação num único dente, na certa avariado, tudo que batia doía, até caroço de feijão ou arroz: Léo, minha mulher, tinha de passá-los no liquidificador. Depois de exames, acertamos o preço. Dividido. Levei uma foto minha, rindo, abraçado com Samico, para verem como era minha dentadura original. Fiz de uma vez toda a parte de cima, de canto a canto, uma manhã inteira de boca aberta. Durante meses fiquei com os pinos enfiados no osso, cobertos por uma tampinha. Os inferiores, também todos de uma vez algum tempo depois. Uma alegria inédita essa de ter dentes. Porque os naturais só se fazem notar quando doem. Adeus broca, adeus fazer canal. Renova-se a alegria de viver. Dizem até que fiquei mais moço. Deve ser safadeza. Per-Ingvar Brånemark, muito obrigado.
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JOSÉ LUIZ PEDERNEIRAS/DIVULGAÇÃO
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GRUPO CORPO Em movimento de renovação
Em atual turnê nos EUA e na Europa, companhia mineira de dança surgida nos anos 1970 destaca-se pelo contínho amadurecimento profissional TEXTO Christianne Galdino
Quando você estiver lendo essa matéria, eles devem estar desembarcando em Minneapolis, nos Estados Unidos, ou apresentando um dos seus espetáculos na Winspear Opera House, em Dallas. Depois, o grupo parte para a Europa, onde cumpre uma extensa temporada nos principais teatros
da Alemanha, Suíça, França, Itália, Espanha e na Eslovênia. “Hoje somos a única companhia que faz três semanas de temporada na Maison de La Dance, em Lyon, França, e os ingressos esgotam com cinco meses de antecedência. Isso sem apelar para uma estética exótica ou um trabalho mais comercial. Entramos
pela porta da frente nos principais palcos da dança do mundo. Não gosto de levantar bandeira, e não me preocupo em olhar para trás, o que passou, passou. O que interessa é o futuro, olhar para a frente. É claro que hoje as portas se abrem com mais facilidade”, afirma o coreógrafo Rodrigo Pederneiras, um dos pilares do Grupo Corpo. Podemos aprender com esses sujeitos que inventaram um jeito de ser artista profissional no Brasil. E quando o assunto é dança, o Grupo Corpo é a principal referência. Fundada em Belo Horizonte, em 1975, num contexto desfavorável, pelas imposições e limites da ditadura militar e pelo fato de não estar localizada no que era (e ainda é, em muitos aspectos) considerado o centro produtivo de cultura do país, a companhia contrariou as previsões e escreveu uma trajetória vitoriosa. Na alma “sempre coletiva” desse Corpo está a família Pederneiras, seis
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irmãos e suas extensões – namoradas e amigos – movidos pelo desejo de dançar. “E como, naquela época, não havia nenhuma companhia profissional de dança em Belo Horizonte, resolvemos criar a nossa, onde nós tivéssemos o poder de decisão”, lembra Rodrigo, o irmão que é coreógrafo residente do grupo desde 1981. Misturando ousadia a uma postura visionária e atitude empreendedora, os 12 amigos, liderados pelo irmão diretor, Paulo, conheceram o sucesso desde os primeiros capítulos da história, com a enorme repercussão do espetáculo de estreia Maria, Maria (1976), que tinha roteiro de Fernando Brant e trilha original de Milton Nascimento. “De uma hora para outra, aquela companhia recém-formada por amigos sonhadores da capital mineira foi convidada para ir à Argentina, depois ao Chile e ao Uruguai. De lá para a Europa, Estados Unidos e mundo afora”, lembra Rodrigo.
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TRÊS FASES
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Rodrigo Pederneiras costuma dividir a trajetória da companhia em três fases. Nos anos inicias, a equipe de criação era externa e predominava a base clássica, inclusive nas escolhas musicais. Os roteiros eram teatralizados com personagens e narrativas lineares, com começo, meio e fim bem definidos. O coreógrafo convidado para a estreia da companhia, o argentino Oscar Arraiz, trazia com ele iluminador, cenógrafo, figurinista. Na segunda fase, Rodrigo já assinava as coreografias e Paulo, além de continuar na direção, começou a criar iluminação e cenografia dos espetáculos. O marco inicial dessa etapa é Prelúdios (1985), considerado pela crítica especializada como primeira obra-prima de base clássica da dança brasileira. Naquela época, o coreógrafo começou a investir numa linguagem mais abstrata, porém utilizando quase sempre música clássica como trilha. “Só aí, deixamos de ser a companhia que dançava Maria, Maria e fomos reconhecidos como Grupo Corpo, criando uma identidade própria”, pontua o coreógrafo. Segundo ele, desde 1992, uma nova fase se inaugurou, caracterizada pelo uso de trilhas sonoras originais e o aprofundamento da busca de uma linguagem brasileira de dança. Das motivações para criar esse vocabulário de movimento genuíno, ele diz que “estava cansado de ver bailarinos brasileiros tão bons tentando imitar estéticas/ técnicas estrangeiras, como a dança moderna de Martha Graham. A gente
TÉCNICA Com uma base clássica, o Corpo desenvolve um intensa pesquisa sobre uma linguagem brasileira para a dança
2-3 PEDERNEIRAS
Os irmãos Paulo (direção) e Rodrigo (coreógrafo) estão à frente do grupo
tem que parar de ficar olhando para fora e seguir tendências europeias, como se fossem verdades únicas, absolutas. Se eles fazem dessa forma, que bom! Mas nós podemos fazer outras coisas bem diferentes, e de igual valor. Eu sempre trabalhei com base clássica, então, na minha busca, pensava no que podia fazer para quebrar com isso. Tudo estava tão claro e eu não conseguia enxergar”. Observando o jeito do brasileiro se mexer, e suas danças populares, Pederneiras percebeu que a essência do que buscava estava no movimento da bacia. “Investigando, nos próprios ensaios do Corpo, e baseados no que víamos e vivíamos nas culturas populares, criamos essa assinatura. Acho que nós, brasileiros, ainda fazemos muito ‘salamaleque’ para o que fala o New York Times, valorizando tudo que vem de fora. Somos muito bons e precisamos acreditar nisso.” Capitaneados por Paulo Pederneiras, os bailarinos partiram dessa crença e trilharam um caminho marcado pelo sucesso.
ESTRATÉGIAS
Conhecido por um genuíno sentido de união, Paulo batizou o grupo de Corpo para conceituar a companhia, pois a pretensão era que tudo fosse decidido
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queriam comprar apresentações de Maria, Maria, eles passaram a fazer propostas dois em um, e assim conseguiram se livrar do estigma de companhia de um espetáculo só. Produzir CDs com as trilhas originais dos espetáculos foi outra estratégia bem-sucedida. Nos relatos, fica nítida a importância da música no processo criativo do Corpo, o que Rodrigo confessa ser uma influência direta dele: “Na verdade, eu queria ser músico. Cheguei a fazer aulas de violão clássico, mas sou preguiçoso demais para essa função. Tenho muitos amigos músicos e sempre fui fã de música clássica. Porém, a ideia de convidar compositores também foi do Paulo. E nós dois fazemos sempre questão de acompanhar de perto o processo de criação da trilha. E só a partir daí é que começo a desenvolver a coreografia”.
PERFIL DO BAILARINO
e realizado coletivamente e de forma autoral. A ousadia, outra marca do diretor, também está presente em nas páginas dessa história. Quando montaram Maria, Maria, ele reservou o melhor teatro de Belo Horizonte para a temporada de estreia, o Palácio das Artes. Para a equipe de criação, Paulo convidou os melhores profissionais que conhecia. Ganharam dinheiro com aquele espetáculo e decidiram reinvestir na companhia a maior parte da receita, estabelecendo salários baixos para cada um, mas fazendo questão de assinar a carteira e profissionalizar a relação desde o início. Outra ideia de Paulo foi a venda de pacotes de espetáculos. Já que todos os contratantes e patrocinadores só
Passados os anos, a busca da linguagem autoral começa a dar resultados visíveis, e o Grupo Corpo se torna referência nacional e sonho de consumo dos bailarinos brasileiros. Nem a fama de exigente do coreógrafo nem a carga horária diária de seis horas desanimavam os candidatos que vinham de todos os cantos do país para as audições da companhia. “Era um processo muito sacrificante. Da última vez, foram 480 candidatos para duas vagas. É uma sacanagem com os bailarinos. Então, passamos a utilizar pessoas que já fazem aulas conosco ou que são indicados por outros bailarinos do elenco, quando precisamos contratar. Mas não é comum, pois temos os mesmos profissionais há bastante tempo na companhia. As pessoas não costumam sair, a não ser quando se aposentam. Acho que porque, além de um bom salário, garantias trabalhistas, e oportunidades de viagens, o Grupo Corpo alia o profissionalismo com uma relação afetiva, familiar. A equipe de criação trabalha junta há quase 40 anos, isso gera um ambiente de cumplicidade, de total confiança”, explica Rodrigo. Mesmo sabendo que o Corpo não faz audições há muito tempo, os que desejam ser intérpretes da companhia dão um jeito de se aproximar. Para os que estão nesse caminho, Rodrigo avisa que, apesar do molejo tipicamente
4 PARABELO (1997) É uma das montagens da turnê nos EUA e na Europa 5 MARIA, MARIA Com trilha de Milton Nascimento, o espetáculo garantiu o sucesso na estreia do grupo, em 1976
brasileiro que vemos no palco, o bailarino do Corpo “tem que ter domínio da técnica clássica, pois essa é a base da nossa linguagem. Quando não estamos viajando, o elenco cumpre uma carga horária de trabalho, de segunda a sextafeira, com aulas de balé clássico todos os dias. A aula não muda. A pesquisa de linguagem é desenvolvida nos ensaios. O bailarino deve ter afinidade com a movimentação do Corpo, que exige coordenação motora apurada”. Mesmo não existindo uma fórmula universal para o sucesso profissional, as escolhas e estratégias dos Pederneiras, ao longo desses 38 anos, são lições úteis para todos os que decidiram fazer da arte o seu ofício. Então, é bom prestar atenção em mais essa dica do coreógrafo residente do Corpo: “Continuidade é a palavra-chave, é o que falta. Sem ela, ninguém consegue desenvolver um trabalho sólido, principalmente, um trabalho que acontece no corpo e precisa de tempo, senão fica impossível qualquer assimilação”. E por falar nisso, o principal projeto da companhia para este ano é dar continuidade às suas tantas iniciativas, como a Corpo Escola de Dança, e a Ong Corpo Cidadão, que atende 600 crianças e adolescentes nas periferias de Belo Horizonte, além do trabalho da companhia, claro. O próximo espetáculo, ainda sem título, estreia em São Paulo, em agosto. Eles convidaram Lenine, novamente, para compor a trilha, e, dessa vez, ele está trabalhando em parceria com o filho Bruno. “A ideia é usar somente instrumentos de corda, do violino ao berimbau. E está ficando muito bom”, adianta Rodrigo. Com a espontaneidade apaixonada de um iniciante e a sabedoria de um mestre, ele ensina: “As pessoas costumam dizer que a gente chegou lá. Mas lá, onde? Não tem aonde chegar. Se chegar, acaba. O Grupo Corpo não chegou a lugar nenhum. Pelo contrário, nossa preocupação é manter o frescor, é estarmos sempre nos renovando, reinventando-nos”.
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GRUDENTAS Ai, se elas te pegarem...
1 MICHEL TELÓ Seu hit Ai, se eu te pego garantiu sucesso internacional
Vários artistas munem-se de refrões fáceis e exaustivas repetições de onomatopeias para tomar o cérebro dos ouvintes com canções pegajosas
SHORPY.COM/REPRODUÇÃO
TEXTO Débora Nascimento
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Era um dia comum de jogo do
campeonato espanhol. O Real Madrid jogava contra o Málaga. O craque Kaká não estava num dia bom, mas, em compensação, Cristiano Ronaldo marcou três dos quatro gols contra o adversário. No segundo deles, comemorou o lance dançando a coreografia da música sertaneja Ai, se eu te pego. A performance do jogador chegou ao YouTube, e os vídeos postados foram vistos por mais de 10 milhões de pessoas. Isso foi o suficiente para catapultar o hit, que já começava a ultrapassar as fronteiras do Brasil, e levar o seu autor e intérprete Michel Teló a realizar a maior turnê internacional de um artista brasileiro nos últimos anos. O cantor se apresentou para milhares de pessoas na Europa e Estados Unidos e ficou em primeiro lugar nas vendas da loja virtual iTunes em Portugal, na Itália, Espanha, Argentina, Colômbia, no Chile, Peru e em outros cinco países latino-americanos. Dois mil e doze foi o ano de Teló, ou melhor, do Ai, se eu te pego. Para uma música simples como essa conseguir realmente “pegar”, é preciso que tenha, pelo menos, uma característica: trechos repetidos à exaustão. Traduzindo: aquele tipo de música que basta ouvir uma vez e ela ficará ecoando em nossa cabeça como um mantra, muitas vezes, sem ser bem-vinda. Conseguir esse feito e efeito de tomar o cérebro das pessoas não foi mérito apenas do hit de Teló. A indústria fonográfica, nesses tempos de crise no mercado, está nos dando provas de que cada vez mais vai apelar para o fácil. O ano passado, por exemplo, também foi invadido pela Danza Kuduro, do francês Lucenzo (tema de abertura da novela Avenida Brasil), cujos Oi-oi-oi-oi são repetidos além de 30 vezes na música. Alguns meses depois da performance de Cristiano Ronaldo, o craque do Santos, Neymar, resolveu comemorar o seu centésimo gol pelo time da Vila Belmiro, em março de 2012, dançando a coreografia de Eu quero tchu, eu quero tcha, da dupla sertaneja Lucas e João Marcelo, cujas onomatopeias são repetidas 224 (!) vezes – algo que nem mesmo o Cumpadi Washington ousou fazer no megasucesso dos anos 1990, Tchan, que possui “apenas” 98 repetições. Resultado: o vídeo de Neymar teve mais de 4 milhões de acessos (os outros vídeos relativos à música contabilizam hoje 10 milhões de
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Os craques Cristiano Ronaldo e Neymar protagonizaram, em campo, coreografias com músicas repetitivas
cliques) e o hit permaneceu por cinco meses no top ten das rádios brasileiras, segundo o site Hot 100 Brasil. Mas essas músicas que grudam nos ouvidos (e nas paradas de sucesso) não são mérito apenas de brasileiros. Com refrão repetido por 36 vezes e baseado numa dance music repleta de clichês do estilo, o sul-coreano Psy fez do clipe de Gangnam style um dos maiores êxitos da história do YouTube. São 5 milhões de likes e de 870 milhões de visualizações. No embalo das músicas-chicletes, este ano, os artistas e gravadoras já se preparam para uma nova invasão. A dupla sertaneja João Lucas e Marcelo, a do Tchu e Tcha, regravou o funk Louca, louquinha, do MC K9. Michel Teló também ataca novamente. Em parceria com o grupo de pagode Sorriso Maroto, lançou É nóis fazê parapapá, que está na novela da Globo Salve Jorge. O uso de repetições de onomatopeias, lalalás, nananás e papapás é recorrente na história da música; veio como uma forma de completar e potencializar o refrão – conjunto de versos originário nas antigas cantigas populares, anterior ao advento das
gravações musicais. Com o registro das músicas em disco e o surgimento da música pop, o estribilho passou a ser supervalorizado, entendido como a maneira fácil de fazer uma canção “grudar” . O “grande” refrão passou a ser a obsessão desse tipo de música – algo que um artista que deseja firmar-se nesta área deve encontrar logo, logo.
VERME DE OUVIDO
O refrão é o principal pilar do que se denominou bubblegum. Segundo Roy Shuker, no Vocabulário de música pop: “Rótulo depreciativo, aplicado a um gênero de música pop extremamente comercial, surgido no final de década de 1960, produzido para o público pré-adolescente e refletindo seu emergente poder aquisitivo. O termo deriva dos jingles das propagandas de chicletes influenciados pelo rock. Foi um fenômeno basicamente norteamericano, associado ao selo Buddah e a grupos como The Lemon Pipers, The Archies (cujo single Sugar Sugar foi o campeão de vendas de 1969) e Ohio Express (Yummy Yummy Yummy). As gravações bubblegum usavam muitos músicos de estúdio”. O estilo bubblegum gerou um punhado de grupos e artistas bem-sucedidos comercialmente, como The Monkees, Tommy Roe e Tommy James and the Shondells. Como definiu o mítico crítico musical americano Lester Bangs, era o “lixo pop caído do céu”. Posteriormente, o termo foi ampliado e passou a ser aplicado para a música
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
2 OLIVER SACKS Escritor e neurologista acredita que até uma música sem letra pode ser irresistível 3 SUGAR SUGAR O single do grupo The Archies é um dos símbolos do bubblegum
Sonoras 2
popular considerada comercial e destinada ao sucesso. Sua fórmula conta com melodias e ritmos marcantes, com refrões cativantes que “ficam martelando na cabeça e não saem”. O refrão e as onomatopeias são os principais veículos que produzem aquele estado em que uma pessoa é apoderada por uma música grudenta (sticky music) – o que se chama de stuck-song syndrome (ou síndrome da canção empacada), cognitive itch (coceira cognitiva), brainworm (verme de cérebro) ou earworm (verme de ouvido). Esse último termo foi usado pela primeira vez na década de 1980 (como uma tradução literal do alemão ohrwurm), mas seu conceito surgiu na década de 1920, com o compositor e musicólogo Nicholas Slonimsky, que estava deliberadamente inventando formas ou frases musicais que pudessem forçar a mente à repetição. Já em 1876, o escritor Mark Twain escreveu o conto A literary nightmare, depois reintitulado Punch brothers puch, no qual o narrador se vê indefeso frente a “rimas cadenciadas”. No entanto, a praga da sticky music veio mesmo com o surgimento e a popularização da gravação de discos e do rádio. Antes, só se ouvia música nos concertos, nos saraus e nas igrejas. A partir do começo do século 20, as gravações invadiram os lares e hoje estão por toda parte: no trabalho,
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Foi a partir do começo do século 20, quando as gravações de discos se popularizaram, que a “praga” da sticky music ganhou força na escola, na rua, nas lojas, nos restaurantes, nos consultórios e ainda podemos levá-la para onde quisermos, em telefones, iPods ou em qualquer xingue-lingue que toque MP3.
FATORES GRUDENTOS
A pesquisadora inglesa Vicky Williamson, especializada em psicologia da música, estudou o fenômeno das músicas grudentas, a partir de mais de 2,5 mil relatos. “Quando analisei mais de mil canções pegajosas, percebi que apenas meia dúzia havia sido citada mais de uma vez – o que mostra quão heterogênea foi a resposta das pessoas. É um fenômeno individual”, defende. A estudiosa afirma que alguns fatores promovem a permanência de uma música na cabeça: exposição recente e/ ou repetida; palavras que desencadeiam a memória de uma canção; pessoas que associamos a uma música; situações que remetem a ela;
estresse; surpresa; sonhos e devaneios. Williamson afirma que isso pode ser parte de um fenômeno mais amplo, chamado “memória involuntária”, como quando alguém tem vontade de comer algo por se lembrar de um alimento. O especialista em neurociência da música, Daniel Levitin, da Universidade McGill, de Montreal, sugere que o fenômeno pode ser explicado pela evolução humana. “Por um longo período, nós precisávamos lembrar informações do tipo: onde fica o poço mais próximo, que tipos de comidas são venenosas e como tratar feridas para evitar infecções. Como a escrita só foi inventada há cinco mil anos, enquanto os humanos existem há 200 mil anos, a música foi usada como técnica de memorização. Essa prática continua até hoje, sobretudo em culturas com forte tradição oral. A combinação de ritmos, rimas e melodia faz com que músicas sejam mais fáceis de se memorizar do que apenas palavras.” Para quem quiser tirar uma música pegajosa da cabeça, Levitin sugere: “Pense em outra música, que talvez possa expulsar a canção da sua cabeça”. Esse é exatamente o propósito dos sites Unhear it e Desescute. Neles, a vítima da sticky music encontra sugestões de outras canções que possam ocupar o lugar da que está atazanando o seu cérebro – trata-se de uma solução paliativa, obviamente. “É muito curioso que todos nós, em vários graus, tenhamos música na cabeça”, afirma o escritor e neurologista
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INDICAÇÕES Oliver Sacks, mais conhecido como autor do livro que originou o filme Tempo de despertar (1990). Para ele, não faz diferença se essas músicas tenazes possuem palavras ou não. “Os temas sem letra de Missão impossível e da Quinta sinfonia de Beethoven podem ser tão irresistíveis quanto um jingle publicitário no qual a letra é quase inseparável da música.”
COMO UMA SÍNDROME
No livro Alucinações musicais, Sacks afirma que o fenômeno dos brainworms assemelha-se ao modo como os portadores da síndrome de Tourette (caracterizada por tiques motores e vocais) ou de transtorno obsessivocompulsivo podem ser fisgados por um som, uma palavra ou um ruído e repetilo, ecoá-lo em voz alta ou para si mesmos por semanas a fio. “Mas enquanto a repetição involuntária de movimentos, sons ou palavras tende a ocorrer em portadores de síndrome de Tourette, de distúrbio obsessivo-compulsivo ou de lesão nos lobos frontais do cérebro, a repetição interna automática ou compulsiva de frases musicais é quase universal – o mais claro sinal da avassaladora e, às vezes, irresistível sensibilidade do nosso cérebro à música.” O estudioso, que é também músico, faz uma comparação da forma distinta de como o cérebro trata a música e a visão. “Há uma necessidade de construir um mundo visual para nós, daí resultando que um caráter seletivo e pessoal impregna nossas memórias visuais desde o início. As músicas, em contraste, já recebemos construídas. Uma cena visual ou social pode ser construída ou reconstruída
de inúmeros modos, mas a recordação de uma música tem de assemelhar-se ao original. É claro que ouvimos seletivamente com diferentes interpretações e emoções, mas as características musicais básicas de um composição – o tempo, o ritmo, os contornos melódicos, e até mesmo o timbre e o tom – tendem a ser preservados com notável exatidão”, observa. Para o psicólogo da música Daniel Mullensiefen, da Goldsmiths University of London, todo sucesso musical surge da combinação entre matemática, ciência, engenharia e tecnologia. “Eles usam desde frequências de som, que determinam altura e harmonia, até processadores hi-tech, que podem adicionar efeitos para fazer uma música mais ‘grudenta’”. Um estudo feito por pesquisadores ingleses da universidade, ao observar grupos de pessoas voluntariamente, chegou a uma lista das canções mais pegajosas. O segundo lugar da pesquisa ficou com Y.M.C.A., do Village People, a terceira posição foi ocupada por Fat lip, do Sum 41. E a mais grudenta seria We are the champions, do Queen. No entanto, outro estudo recente da mesma instituição apontou Lady Gaga nas duas primeiras posições com Bad romance e Alejandro. Será que esse pessoal conheceu Ai, se eu te pego? A vingança dos afetados pelas músicas grudentas é que a convivência forçada com elas ocorre por um período determinado, seja um dia, sejam semanas, meses até, mas seus autores e cantores estão condenados a suportá-las para o resto da vida. Viu, Michel Teló?
POP ROCK
MPB
Selo Oi Música
Gravadora Joia Moderna
HERBERT VIANNA Victoria Carregado de alma feminina, o quarto álbum solo do líder dos Paralamas do Sucesso é uma homenagem à sua mulher, falecida em 2001 e cujo primeiro nome batizou o disco. Um total de 20 faixas, de autoria de Herbert, e com sonoridades de voz e violão basicamente, dá corpo ao disco. Canções que ficaram conhecidas na voz de cantoras brasileiras, como Paula Toller, Ivete Sangalo e Marina Lima. Destaque para a faixa Penso em você, primeira composição da vida de Herbert.
MPB
VÁRIAS INTÉRPRETES Mulheres de Péricles As canções do compositor Péricles Cavalcanti ganharam um brilho a mais nas vozes de Céu, Anelis Assumpção, Tulipa Ruiz, Bárbara Eugênia, Mallu Magalhães, Karina Buhr, Nina Becker, Tiê e outras cantoras da nova geração brasileira. Idealizado pelo DJ Zé Pedro e produzido pela filha de Péricles, Nina Cavalcanti, o disco abrange todas as fases da discografia do compositor, que teve suas letras eternizadas por artistas como Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e Gal Costa.
MPB
GEREBA BARRETO E CONVIDADOS Luas do Gonzaga
TIO SAMBA Mais pra cá do que pra lá
Fundamentado nas memórias do músico baiano Gereba Barreto, que conviveu com o Rei do Baião e testemunhou episódios importantes de sua vida artística, Luas do Gonzaga é um daqueles registros raros da música brasileira. O disco revela um repertório inédito de valsas, choros e maracatus, gravado pelo Mestre Lua nas décadas de 1940 e 1950, antes mesmo deste ser coroado como o Rei do Baião. A interpretação ficou a cargo de nomes como Lenine, Lirinha e Zeca Baleiro, entre outros.
Quando surgiu em 1998, em Niterói, o Tio Samba mesclava canções de autoria dos próprios integrantes do grupo com as de autores como Noel Rosa, Ataulfo Alves, Cartola, Ary Barroso, Baden Powell, Chico Buarque e outros grandes nomes do samba brasileiro. Em Mais pra cá do que pra lá, terceiro álbum do grupo, o repertório é 100% inédito e autoral. Ainda que a sonoridade predominante seja o samba, xote, coco e marcha carnavalesca também ganham espaço.
Distribuidora Tratore
Selo Delira Música
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REPRODUÇÃO
Leitura
ERUDIÇÃO POP Filosofia como espetáculo
O polêmico Slavoj Žižek, que virá ao Recife pela primeira vez este mês para uma palestra, escreve para poucos e lança provocações à plateia TEXTO Marcelo Abreu
Ao se deparar com um livro de 900 páginas, escrito por um pensador da Eslovênia contemporânea, sobre o sistema filosófico do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), o leitor em potencial pode se assustar e achar que a obra é inalcançável ou ilegível. Mais ainda, se souber que o filósofo esloveno faz uma leitura
de Hegel à luz do alemão Karl Marx (1818-1883) e do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), todos autores considerados difíceis. No entanto, Slavoj Žižek, o pensador em questão, é tudo, menos um personagem aborrecido, pelo menos quando fala em público sobre seu trabalho. Žižek tornou-se, nos últimos 15 anos, uma
figura indispensável no panorama acadêmico e político internacional, quase um filósofo-espetáculo que, adotado por setores de esquerda, visita protestos de rua, aparece na mídia com frequência e até, segundo especulam, paquera celebridades como Lady Gaga. É essa figura popular que estará no Recife pela primeira vez, no dia 15 de março, para fazer uma palestra organizada pela revista ArtFliporto, que inaugura a série de eventos mensais intitulados ArtFliporto Apresenta. Žižek chega para lançar seu livro Menos que nada – Hegel e a sombra do materialismo dialético, pela Editora Boitempo, o tal calhamaço de 900 páginas no qual defende uma volta a Hegel “para repetir e exceder seus triunfos, superar suas limitações e ser mais hegeliano que o mestre em si”. O que esperar de uma palestra desse esloveno de 63 anos que se veste com roupas surradas, usa um cabelo grande, grisalho e fala pelos cotovelos, num
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modelo claro de resistência, passa ao largo de muitas evidências, mas, como diz a velha tirada, se os fatos nem sempre confirmam as teorias, pior para os fatos. Em 2011, a base para a sua palestra era o então recém-lançado livro Vivendo no fim dos tempos, que trata do que chama de “quatro cavaleiros do apocalipse”: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do sistema capitalista e o crescimento das divisões sociais. Em 2012, lançou O ano em que sonhamos perigosamente, que aborda os protestos mundiais contra a elite financeira e regimes políticos (a ocupação de Wall Street e a chamada Primavera Árabe que, para o autor, é primavera, verão, outono e inverno árabe, tudo junto).
ANTIGA IUGOSLÁVIA
misto de tiradas engraçadas e erudição filosófica. Há dois anos, por exemplo, Žižek fez uma palestra no palco do tradicional Cinema Odeon, no centro do Rio de Janeiro. O público era composto de estudantes universitários e gente de esquerda. Ele chegou ao local atrasado e suado. Vestia uma calça jeans e uma camiseta escura, como tem sido seu estilo. Ao contrário do protocolo de agradecimentos que cerca essas reuniões acadêmicas, iniciou com um seco “boanoite” e foi direto ao assunto. “O negócio é o seguinte: o capitalismo...”. E aí avançou na sua habitual, prolixa e quase convulsiva crítica dos tempos atuais dominados pelo liberalismo econômico. Na sua erudição pop, Žižek faz referência a tudo e a todos. Acompanha o noticiário para oferecer interpretações inovadoras dos fatos cotidianos à luz da psicanálise, filosofia, sociologia e crítica cultural. Não oferece nenhum
Slavoj Žižek nasceu em 1949 em Liubliana, capital da pequena República Popular da Eslovênia, então parte da federação iugoslava. Portanto, cresceu dentro de um regime proclamado como marxista. Na prática cotidiana, foi influenciado pelo comunismo, mas elaborou uma crítica ao marxismo já nos seus primeiros trabalhos acadêmicos. Estudou Filosofia e Sociologia em Liubliana e Psicanálise em Paris. Traduziu para o esloveno textos de Jacques Lacan, Jacques Derrida, Sigmund Freud e Louis Althusser. Em 1973, perdeu o emprego na Eslovênia porque sua dissertação de mestrado foi considerada como não marxista. Tornou-se uma espécie de dissidente tolerado. Em 1988, decidiu sair do Partido Comunista da Iugoslávia, em protesto pela condenação de quatro pessoas acusadas de divulgarem segredos do Exército do Povo. Dois anos depois, candidatou-se a presidente da recém–independente República da Eslovênia, pelo Partido Liberal Democrático, mas não foi eleito. Seu primeiro livro em inglês, O sublime objeto da ideologia, saiu em 1989 e, a partir daí, sua fama foi se espalhando. Já tem mais de 70 livros lançados e traduzidos em muitas línguas. No Brasil, são pelo menos 17 títulos publicados. Participou de 10 documentários, um deles intitulado simplesmente Žižek, dirigido pela canadense Astra Taylor, totalmente dedicado à sua trajetória. Em Examined
life, outro documentário de Taylor, que aborda a filosofia, o esloveno fala de estética ao lado de um depósito de lixo, bem ao gosto do seu estilo performático. Tem sido convidado a ensinar em muitas universidades norteamericanas e virou figura carimbada nos movimentos contestatórios tipo Occupy Wall Street. Onde, aliás, fez um discurso na rua para os manifestantes, sem microfone, tendo sua mensagem reproduzida como uma onda através da voz dos militantes mais próximos, como nos tempos de 1968. Seu sobrenome, com dois pequenos sinais diacríticos em formato de “v”, sobre a letra “z”, próprio da escrita eslovena (o que torna a pronúncia equivalente a Jíjek), virou marca registrada no circuito internacional de palestras e páginas de opinião dos grandes jornais. Polêmico, tem estado nas manchetes com afirmações provocadoras. “O problema de Hitler é que ele não foi violento o suficiente. Gandhi foi mais violento do que Hitler”, afirmou. Em seguida, defendeu-se das reações apresentando novas definições para velhos conceitos. “A verdadeira violência é a violência da mudança social.” Segundo ele, as atitudes de Gandhi foram, no fim das contas, mais radicais e efetivas, conseguindo liberar a Índia do colonialismo, do que os tanques de Hitler, que acabaram perdendo a guerra. Aliás, Žižek sempre demonstra uma fascinação pela violência e chegou até a afirmar que “o amor é um ato muito violento”. Ele critica o multiculturalismo e o politicamente correto. É contraditório em relação ao stalinismo (talvez mais como charme e provocação do que como opinião sincera). Gosta de fazer referências ao cristianismo e, certa vez, afirmou ser um “materialista cristão”. Já descreveu sua obra também como uma “teologia materialista”.
QUESTÕES DE ESTILO
A despeito da verve, da produtividade estonteante e do sucesso editorial, seguir um texto do esloveno pode, pelo menos nos livros, deixar uma pessoa desnorteada. As frases são longas, o estilo é denso e cheio de referências, que
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INDICAÇÕES
Leitura remetem a outros pensadores contemporâneos e exigem também um conhecimento profundo da História da Filosofia. Žižek aparenta ter lido tudo. Além de filosofia e psicanálise, utiliza-se de conceitos da física, biologia, história, literatura e do cinema para criticar tudo e todos. Apesar do verniz incendiário, suas ideias têm um componente paradoxal, que torna possível interpretálas até mesmo como conservadoras ou de direita. No fim, o leitor sai confuso, sem saber se entendeu corretamente, mas com uma sensação de divertimento, um prazer difuso em perceber que as coisas não precisam ser como são. As críticas ao seu estilo não são poucas. Escrevendo no periódico Film-Philosophy, o ensaísta Edward O’Neal assim define o estilo de escrita de Žižek: “um estonteante arsenal de estratégias retóricas enlouquecedoras e divertidas é apresentado com o objetivo de seduzir, intimidar, emudecer, deslumbrar, confundir, enganar, oprimir e, de forma geral, subjugar o leitor para que ele aceite (os argumentos)”. O acadêmico norteamericano Geoffrey Galt Harpham diz que o estilo de Žižek é “um fluxo de unidades não consecutivas, arranjadas em sequências arbitrárias que solicitam uma atenção esporádica e descontínua”. No World Socialist Web Site, portal trotskista norteamericano, Bill van Auken e Adam Haig o acusaram de ser um “charlatão intelectual mascarado de
esquerdista”, cujo marxismo é “contaminado pelo stalinismo e maoísmo”. O próprio capitalismo produz esse tipo de personagem, um fenômeno mundial que percorre universidades e auditórios, denunciando o sistema, redefinindo conceitos e defendendo um regime comunista puro. No fim das contas, nada acontece, muita gente se diverte e a sociedade baseada no consumismo avança. Enquanto isso, a fama de Žižek só aumenta. Em breve, suas ideias servirão de argumento para um espetáculo de ópera a ser encenado pela companhia da Royal Opera House, de Londres. Suas intervenções públicas estão em vídeos no YouTube. Há até uma publicação somente dedicada ao seu pensamento, o International Journal of Žižek Studies. Esse papel do intelectual público, globalizado, provocador, com um quê de palhaço, é abordado pelo filósofo inglês John Gray, em artigo publicado em The New York Review of Books, em 2012. Ele afirma que “o radicalismo sem forma de Žižek se adapta muito bem a uma cultura paralisada pelo espetáculo de sua própria fragilidade”. Para Gray, o papel de intelectual público mundial que o esloveno desempenha “surgiu juntamente com um aparato de mídia e uma cultura da celebridade que são parte do modelo atual de expansão capitalista”. E acrescenta que “Žižek criou uma crítica que afirma repudiar praticamente tudo o que existe, mas que, ao mesmo tempo, reproduz o dinamismo compulsivo, sem propósito, que ele vê nas atividades do capitalismo”.
ENSAIO
CÉSAR AIRA Nouvelles impressions du Petit Maroc Cultura e Barbárie
ENSAIO
ÂNGELO MONTEIRO Outras vozes Editora Universitária
Em sua residência, na Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs (FR), César Aira desenvolveu esses pequenos ensaios. Publicados originalmente em edição bilíngue (castelhano e francês), em 1991, esta primeira edição é recebida na América Latina. São reflexões sobre o ato de escrever e suas implicações.
Apanhado de ensaios e artigos sobre poesia do professor Ângelo Monteiro, Outras vozes tem o intuito de preservar a memória de grandes nomes da poesia brasileira, como Marcus Accioly, Nelson Saldanha e José Chagas. Destacam-se os notáveis estudos sobre as obras de Nauro Machado e César Leal e um ensaio sobre A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.
FILOSOFIA
CONTO
Passagens
Expressão Popular
DOMINGO HERNÁNDEZ SÁNCHEZ A comédia do sublime Ambíguo desde seu título, o livro remete a uma dicotomia que aponta para a conversão em comédia de muitas das sublimidades contemporâneas, ou na banalidade de algumas das pretensões cômicas. Dividida em quatro partes, a obra comenta a dualidade entre originalidade e farsa, entre outros aspectos.
LEONARDO SAKAMOTO Pequenos contos para começar o dia Esses microcontos reunidos foram originalmente publicados em redes sociais. Os enredos são baseados em histórias reais, com as quais o autor entrou em contato como jornalista especializado em Direitos Humanos. Sakamoto cobriu conflitos armados em Angola, no Timor Leste e Paquistão. Atualmente, é blogueiro do UOL.
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Joana D’Arc de Sousa Lima
USOS DA MEMÓRIA – JANETE COSTA
Joana D’Arc de Sousa Lima é
doutora em História e atualmente diretora da Galeria Janete Costa
LUIZ SANTOS/DIVULGAÇÃO
A trajetória de vida de Janete Costa, pernambucana nascida em Garanhuns (1932), radicada por alguns anos em Niterói/RJ, depois, no Recife, e finalmente em Olinda, onde faleceu (2008), é como um oceano vasto, revelador de geografias brasileiras e mundo afora, fruto de uma vida rica em criatividade, inovação, solidariedade e justiça. Seu olhar generoso a fez reconhecer as distintas maneiras de praticar a arte brasileira, seja em viés popular, modernista ou contemporâneo. Para Janete Costa, toda classificação hermética produzia cegueira e impossibilitava trocas entre os artistas e seus apreciadores. Apostava na circulação dos artistas, dos trabalhos, das culturas. Como curadora, teceu narrativas em que o diálogo dos fazeres artísticos popular, erudito e contemporâneo se plasmavam em horizontalidade, revelando tradições, vocações, valores e características próprias de artistas e lugares. Dessa maneira, legitimou os mestres e os artesãos dos mais recônditos “sertões”. Foi com essa aposta certeira que Janete Costa realizou projetos éticos e estéticos nas mais amplas redes do sistema da arte, do design, da arquitetura e da cultura popular. Janete concretizou projetos arquitetônicos, de ambientação e museográficos em bibliotecas, cinemas, auditórios, edifícios públicos, galerias, hotéis, praças, teatros e museus. Tornou-se, ao longo de sua carreira, uma das principais colecionadoras brasileiras de arte popular. Nesses últimos anos, e ainda em vida, Janete Costa recebeu homenagens das mais variadas instituições públicas e privadas, em reconhecimento ao seu trabalho. A construção de sua memória está em pleno processo e em disputa. No Recife há, por exemplo, a Sala Janete Costa, no Instituto Ricardo Brennand, que acolhe parte de sua coleção de vidros de farmácia e objetos René Lalique e Charles Shneider; a Galeria, no Parque Dona Lindu, que leva o nome da arquiteta; e o Museu do Homem do Nordeste reserva um espaço comercial de arte popular denominado Espaço Cultural Janete Costa. O exemplo mais recente dessa construção se materializou no projeto do Museu Janete Costa de Arte Popular, na cidade de Niterói, inaugurado em dezembro de 2012, de autoria de seu filho, o arquiteto Mário Costa Santos, também curador da primeira exposição. Segundo ele, a maioria das obras expostas faz parte da coleção reunida ao longo de anos por Vilma Eid, proprietária da Galeria Estação, em São Paulo, além de peças cedidas pelo Museu Histórico e de Arte do Estado do Rio de Janeiro, Coleção Janete Costa, e algumas de sua coleção pessoal. Dadas as iniciativas citadas, oxalá possamos desdobrar camadas da multifacetada experiência de vida de Janete Costa e, assim, aprofundar as pesquisas nos mais variados aspectos de sua trajetória, buscando no tempo presente construir outros sentidos e usos de sua memória.
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