Continente #148 - Cicloativismo

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BRASIL

# 148

VISÕES DO PAÍS PELOS ESTRANGEIROS OLIVEIRA LIMA

ACERVO ABRIGA 60 MIL PEÇAS, NOS EUA

#148 ano XIII • abr/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

] O M S I V I T A O L C I C [ S, O D O T É DE A U R EA OS U D Q R Ó S O P E NÃO ROS CAR

ABR 13

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E MAIS LYGIA FAGUNDES TELLES, 90 ANOS | BOOM DOS QUADRINHOS | IMAGENS DO PADRE CÍCERO | SACRE DU SACRE, POR MARLOS NOBRE | COMIDA DE MENTIRA 27/03/2013 10:09:41


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DIVULGAÇÃO

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aos leitores

Nessa cidade, o trânsito flui livremente. Pedestres usufruem calçadas bem cuidadas e não há nada no caminho que lhes atrapalhe a caminhada. Bicicletas e motos compartilham o asfalto com carros de vários portes, em pé de igualdade, com espaço para todos. Hoje, essa cidade é utópica, pelo menos, entre nós. Mas nada impede que se torne real. Não para os que são otimistas, e acreditam que aquilo que está ruim pode melhorar. Podemos dizer que o cicloativismo atua nessa faixa de utopia. Mas os que dele participam não devaneiam. Seu idealismo é de ação. Os cicloativistas estão ocupando as ruas, chamando a atenção para suas existências, buscando alternativas para uma situação de trânsito que, sim, está muito desigual e violenta, com o privilégio dos carros, que, ensimesmados, se esquecem de que são dirigidos por gente, tão gente quanto aquele que está logo ali, a pé. (O que nos diz que o problema não são os carros, mas as pessoas que estão dentro deles...) Temos falado muito em ciclovias, ciclofaixas, ciclistas. Talvez essa

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nunca tenha sido uma preocupação tão evidente quanto nestes dias, no Brasil. Alguns países já trilharam esse caminho, buscando soluções para seus problemas de deslocamento, que findam por repercutir no bem-estar em outros aspectos da vida nas grandes cidades. Nesta edição, procuramos tratar do assunto a partir dessas considerações: o cicloativismo no Brasil e as experiências positivas de inclusão da bicicleta como meio de transporte (e não apenas de lazer) em outras partes do mundo. Desse modo, podemos afirmar que compartilhamos do interesse desse movimento em transformar nossas cidades em espaços de convivência mais gentis e plurais, em que todos podem se movimentar com segurança e respeito. Ainda que poucos, há bons exemplos de urbanismo que incluem a bicicleta como transporte no Brasil. Em entrevista a Olívia de Souza, a jornalista Natália Garcia, que está à frente do projeto Cidades para pessoas, destaca as cidades de Maringá (PR) e Rio Branco (AC). Esta, poucos de nós sabemos, tem o maior planejamento cicloviário do país.

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sumário Portfólio

Roberta Guimarães 06

Cartas

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Expediente + colaboradores

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Entrevista

César Oiticica Filho Diretor fala sobre a realização do documentário sobre o seu tio Hélio Oiticica

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Conexão

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Balaio

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Matéria Corrida

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Palco

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Claquete

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Leitura

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Artigo

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Saída

Peleja

Há relevância na lei que obriga a existência de obras de arte em edifícios do Recife?

Sonoras

A sagração da Primavera Marlos Nobre compõe Sacre du sacre, peça que celebra o centenário da obra de Igor Stravinski

Dia da Mentira Às vezes, pensamos que estamos comendo um ingrediente, mas, na verdade, trata-se de outro

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Game Studies Site reúne publicações de estudos acadêmicos na área dos jogos

Banksy Leilão de muro onde estava grafite do inglês “anônimo” lança debate sobre a propriedade da arte de rua

Cardápio

Fotógrafa registra a onipresença de imagens de Padre Cícero em lugares inusitados, como açougues, sapatarias e lojas de bijuterias de Juazeiro do Norte

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José Cláudio Um forte

A filha do teatro Texto de Luís Augusto Reis volta aos palcos pelas mãos da Cênicas Companhia de Repertório

Distribuição A prevalência dos blockbusters sobre produções independentes Lygia Fagundes Telles Raimundo Carrero relembra sua relação com a autora paulista

Renata Pimentel Entre o prazer e a medusa: especulações sobre literatura e ensino

Hugo Monteiro Ferreira A vida e a leitura

Arte serial HQs

Projeção de brasileiros no mercado internacional e novo vigor na publicação de quadrinhos no país apontam para um momento fecundo do setor

44 CAPA ARTE RICARDO MELO

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Especial

Acervo

O uso da bicicleta como meio de transporte tem-se tornado paradigma de mudança social, por oferecer benefícios diversos e alto nível de socialização

Abrigada na universidade de Washington, biblioteca com coleção do historiador e diplomata pernambucano reúne mais de 60 mil volumes

História

Visuais

O protagonismo nacional na história mundial é observado tanto na Revolução Francesa quanto nos dias atuais, quando ganha relevo seu potencial econômico

O desenhista, gravurista e pintor tem sua obra reunida na mostra Bela Aurora do Recife , que traz, ainda, sua atuação como designer gráfico e ambientador

Cicloativismo

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Visões do Brasil

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Oliveira Lima

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Abr’ 13

Wilton de Souza

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cartas Ausência Onde está a presença da Universidade Federal da Paraíba no texto de vocês? JANINE MARIA COELHO PROFESSORA DA UFPB

Ciganos I

Ciganos III

Nós, ciganos da etnia calon de Pernambuco, agradecemos à revista Continente por mostrar a realidade da nossa cultura e nossas necessidades. Agradecemos e esperamos que esse seja o primeiro de vários trabalhos sobre o nosso povo.

A cultura do cigano no Brasil não só expressa as condições materiais desse povo, mas também, enquanto conjunto de valores e práticas, pode ser arma importante no seu processo de transformação social. Por isso precisa ser orientada para o questionamento dos seus interesses e as possibilidades de superação, a partir do esforço de quem está sinceramente empenhado em contribuir para que essa realidade tome novos rumos. Parabenizo a revista Continente pela maravilhosa matéria de capa tão elucidativa sobre a realidade dos calons do Rio Grande do Norte.

ENILDO KALON PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS CIGANOS DE PERNAMBUCO (ACIPE) RECIFE–PE

Ciganos II Vocês fizeram um trabalho impressionante! Conseguiram unir o local ao global, documentando a dura realidade de grupos que lutam para manter a identidade étnica. Divulguei no meu Facebook: “A revista Continente, publicada pela Cepe, traz na edição 147, março de 2013, matéria de capa sobre ciganos, com texto de Danielle Romani e fotografias de Roberta Guimarães. É uma reportagem rica de conteúdo, elegante na forma, abrangente na pesquisa, atual na temática. Recomendo a leitura”. Estou certo de que os esforços para documentar tão bem essa realidade servirá de matéria-prima para o trabalho que desenvolvemos.

A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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DAISY BARBOSA BUENOS AIRES – ARGENTINA

NO FACEBOOK Mais ciganos

E PROCURADOR FEDERAL ADJUNTO DOS DIREITOS DO CIDADÃO

SIMONE BRITO

BRASÍLIA – DF

RECIFE – PE

LUCIANO MARIZ MAIA

O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões.

CIGANA CALIN E PEDAGOGA

Ontem fiquei tão feliz quanto criança com uma leva de pipoca doce quando vi a minha Continente. A matéria sobre os ciganos ficou muito boa. Só achei que poderia ter mais, se bem que o mais agora é por minha conta! Parabéns à equipe... Já hoje fico pensando na parvoíce da Comissão dos Direitos (des)Humanos e na situação dos ciganos, a partir de agora, pela visão de quem vai presidir. Melhor calar-me por aqui.

SUBPROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA

RESPOSTA DA REDAÇÃO Professora Janine: a redação da revista Continente contatou-a em novembro de 2012, semanas antes da viagem de nossa equipe a Sousa. Como a senhora deve recordar, telefonamos-lhe várias vezes pedindo informações sobre seu trabalho. Enviamos-lhe dois e-mails – que não foram respondidos –, e marcamos um encontro em Sousa, ao qual a senhora, alegando motivos pessoais, não compareceu. Lembramos que toda publicação tem um prazo de finalização, que não pode ser desrespeitado. Todas as pessoas que se dispuseram a nos receber, no prazo estabelecido, foram entrevistadas e tiveram suas declarações publicadas na revista.

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE

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colaboradores

Anderson Freire

Fernando de Castro Lopes

Fernando Vasconcelos

Márcio Padrão

Fotógrafo e cicloativista do Bike Anjo Recife

Ilustrador e caricaturista. Trabalha no Correio Braziliense

Crítico de cinema, editor do site Kinemail e blogueiro

Jornalista e autor do blog de cultura pop Quadrisônico

E MAIS André Dib, jornalista. Anna Camanducaia, jornalista, e produtora da Rede Globo (NY). Carolina Leão, jornalista e doutora em Sociologia. Eduardo Sena, jornalista. Fernando Peres, artista plástico. Hugo Monteiro Ferreira, professor do Departamento de Educação da UFRPE e representante da Cátedra Unesco de Leitura em Pernambuco. Gilson Oliveira, jornalista e revisor do jornal literário Pernambuco. Jobson Figueiredo, escultor, restaurador e membro do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Josias Teófilo, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB. Paulo Floro, jornalista. Pollyanna Diniz, jornalista . Raimundo Carrero, jornalista e escritor. Renata Pimentel, professora adjunta de Literatura do curso de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Schneider Carpeggiani, jornalista, mestre e doutor em Teoria Literária e editor do jornal literário Pernambuco. Yellow, designer, músico e professor.

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CÉSAR OITICICA FILHO

“O celular é o super-8 de hoje, portátil e barato” Sobrinho de Hélio Oiticica comenta o processo de realização do documentário que dirigiu sobre seu tio, no qual utilizou recursos rudimentares e de baixo custo, inspirado nas estratégias de criação do artista que revolucionou a arte nacional TEXTO André Dib

CON TI NEN TE

Entrevista

Duplamente premiado no último Festival de Berlim, o documentário Hélio Oiticica é um painel não só do artista que dá nome ao filme, mas também da época em que ele desenvolveu suas obras. O pano de fundo, que não raro se torna tema principal, é dos mais interessantes: a contracultura do final dos anos 1960 ao início dos 1980. Sobrinho do artista, o diretor carioca César Oiticica Filho demonstra habilidade ao pesquisar documentos e costurá-los numa instigante narrativa em primeira pessoa (na voz de Hélio), dando unidade a um acervo de sons e imagens em super-8 deixados pelo tio, para quem vida e obra eram uma coisa só. “Passo a me conhecer através do que eu faço. Na realidade não sei o que sou. Se eu já soubesse o que seriam essas coisas, não seriam mais invenção”, disse, em uma das gravações que deixou para a posteridade. César vai além e produz imagens, ele mesmo, em diferentes formatos e suportes, analógicos e digitais. O resultado flui. Como escreve Júlio

Bressane, no livro Cinemancia, adaptar para o cinema é traduzir palavras em luz. Tendo como guia dezenas de horas de depoimentos deixados pelo artista, o filme absorve com propriedade sua verve anarquista e febril. Bressane, aliás, está presente em entrevista feita por Hélio enquanto morava em Nova York e também em cenas de seu filme Lágrima Pantera, a míssil, em que este atua. A trilha sonora é outro ponto forte do documentário. Dos sambas do carnaval carioca a pérolas do Tropicalismo, há espaço para o histórico concerto de Jimi Hendrix na Ilha de Wight e um belíssimo novo arranjo para You don’t know me, por Jards Macalé, produtor artístico da versão original, composta e cantada por Caetano Veloso. Assim como o personagem, o filme exala autoimportância e resvala na completa falta de modéstia, sem que isso seja um problema. Pelo contrário, ao alinhar uma crítica de Glauber ao Tropicalismo com pensamentos de Oiticica sobre o tema e a própria obra, surge em comum aos dois artistas a

consciência da própria genialidade e a necessidade de interpretar a própria obra, antes que outros o fizessem de maneira equivocada ou indesejável. Eleito melhor documentário do último Festival do Rio, Hélio Oiticica foi exibido quatro vezes na Berlinale, em sessões lotadas. Além disso, o festival alemão exibiu os filmes de Hélio em super-8 e as instalações Cosmococa foram montadas no Liquid Room, com a presença de Neville D’Almeida e Thomas Valentin, parceiros de Hélio na obra. No Cinema Arsenal (instituto que guarda mais de 8 mil títulos do cinema mundial e vai distribuir Hélio Oiticica na Alemanha), em entrevista concedida pouco antes do anúncio de que o filme ganharia o prêmio da crítica internacional (Fipresci) e o Caligari Film Prize, concedido a obras inovadoras, César Oiticica Filho falou à revista Continente. CONTINENTE O filme consegue atingir uma interessante unidade visual e sonora, um resultado bastante orgânico, que concilia as bitolas analógicas e digitais.

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Uma das propostas do filme foi não se fechar a nada, fazer essa brincadeira entre linguagens e formatos. CONTINENTE Isso soa coerente com a própria obra de Hélio Oiticica. Você deu ao filme o nome dele por conta disso, para que sua proposta se confunda com o personagem? CÉSAR OITICICA FILHO Ele já teve dois subtítulos. Um era Delirium ambulatorium, que é a prática dele, explicada no filme. Mas ficou melhor quando troquei para You don’t know me, música que coloquei no lugar de

FOTOS: DIVULGAÇÃO

CÉSAR OITICICA FILHO Foi difícil chegar nisso, principalmente por conta do som, que não ajudou muito. Ele funciona em camadas, tem o som direto, a trilha original e a pósprodução. Boa parte dele serviu de guia para as imagens. Procuramos usar bastante super-8, mas não fugimos do 35mm e digital. Não quis ficar no saudosismo. Consegui fazer com a câmera do celular coisas que não são feitas com uma profissional. O celular é o super-8 de hoje, portátil e barato. E cada ferramenta

CON TI NEN TE

CÉSAR OITICICA FILHO Procuramos não apenas reproduzir, mas desenvolver alguns conceitos dele, principalmente ligados ao cinema. Por um lado, apresentamos a sua obra, por outro, aonde ela vai hoje, aonde pode chegar. Não busquei o que ele poderia estar fazendo atualmente se estivesse vivo, pois isso é impossível de saber. Fiz o que todos poderiam fazer, mostrar para onde vai o seu trabalho, que é uma proposição. É a minha contribuição à obra dele, o meu delirium ambulatorium.

“Procuramos desenvolver alguns conceitos dele, principalmente ligados ao cinema. Por um lado, apresentamos a sua obra, por outro, aonde ela vai hoje, aonde pode chegar. É a minha contribuição à obra dele, o meu delirium ambulatorium”

Entrevista teve sua utilidade. Por exemplo, eu refiz com super-8 a sequência dos parangolés. O filme do Hélio, Devolver a terra à terra (1979), foi usado mesmo cheio de fungos e o resultado ficou muito interessante. De outro, só restaram seis slides, que fotografei 20 vezes cada, com uma lente macro de celular, e depois animei. Na sequência final, utilizo steadycam para adentrar um bólide (estrutura tridimensional projetada pelo artista). Foi um steadycam de telefone, equipamento que custa 150 dólares.

Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones. Tem tudo a ver com o personagem, pois, no máximo, 1% da população brasileira conhece Hélio Oiticica. É um absurdo, é como se a Holanda não conhecesse Van Gogh. Mas, para não correr o risco do subtítulo virar título, no filme ficou só o nome dele. Ele falava que o cinema é um instrumento, então que seja um instrumento para apresentá-lo ao Brasil. Para o mundo, mas principalmente para o Brasil, que precisa conhecer Hélio Oiticica. CONTINENTE Seu filme é, em parte, uma forma de ele estar presente hoje. Ao mesmo tempo é uma obra sua, uma aliança criativa, mistura talvez impossível de separar.

CONTINENTE Ao assistir ao documentário, é inevitável perceber um abismo cultural entre a realidade dos anos 1970 e a atual. Você acha que a ditadura militar teve influência na ousadia dos artistas daquele tempo? CÉSAR OITICICA FILHO Eles foram totalmente transgressivos numa época em que isso era bem mais difícil de ser feito. E hoje, que podemos fazer, o mundo da arte é a coisa mais careta do mundo. Se existe um trabalho com sexo e drogas, as pessoas não falam, mas você sente que é um problema. Antes de morrer, em 1980, Hélio, percebendo essa involução, disse que, segundo Glauber, nos últimos oito anos, as artes plásticas regrediram um século. Proporcionalmente, hoje seriam dois mil anos. Existem coisas

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R$ 14 milhões do dinheiro público para fazer um filme que fica um mês nos cinemas e vira minissérie da Globo. E enquanto estamos pagando essas minisséries, tem uma fila de artistas esperando para filmar. CONTINENTE Além de cineasta, você tem carreira como fotógrafo. Está mais para o cinema ou as artes visuais? CÉSAR OITICICA FILHO Estou muito feliz de estar no cinema. Hélio Oiticica foi feito por uma produtora pequena, com pouco

“Eles foram totalmente transgressivos numa época em que isso era bem mais difícil de ser feito. E hoje, que podemos fazer, o mundo da arte é a coisa mais careta do mundo. Se existe um trabalho com sexo e drogas, as pessoas não falam, mas você sente que é um problema.” bacanas, mas a lógica do consumo não permite que elas se desenvolvam. CONTINENTE Mesmo tendo passado por duas guerras, a Alemanha se mostra exemplar na preservação de arquivo cinematográfico. Como é a situação no Brasil? CÉSAR OITICICA FILHO A memória do audiovisual brasileiro está parcialmente preservada, mas muito já se perdeu ou está apodrecendo agora, enquanto conversamos. No Museu de Arte Moderna, nas cinematecas, arquivos nacionais, está tudo acabando. O acesso é outro problema. Na Cinemateca Brasileira, por exemplo, pesquisadores são barrados. Precisamos tomar uma posição.

CONTINENTE Você deixou de incluir algo no filme por conta disso? CÉSAR OITICICA FILHO Queria ter usado imagens de Mudança de Hendrix, de Rogério Sganzerla, que dizem estar em restauro na Cinemateca e a própria família disse que não consegue acessar. É um absurdo. A burocracia é outro problema. Quando você inscreve um documentário em edital, tem que entregar um roteiro, o que é uma loucura. Quem exige isso não sabe como se faz um documentário. Entre um edital e outro, o filme levou 10 anos para ficar pronto. Artista não é prefeitura para entrar em edital. Dizem que é para não ficar na subjetividade, mas, no final, é tudo um jogo de comadres, que liberam

dinheiro e sem distribuidor. Veja a seriedade do cinema: estamos apenas no terceiro festival e, se você faz algo bom, é reconhecido. Nas artes visuais, não é bem assim. Se você não tem galeria, não existe. Por isso, eu prefiro não existir. CONTINENTE Qual seu próximo projeto? CÉSAR OITICICA FILHO Quero fazer o meu próximo filme no sistema multiplataforma, crowdfunding, um projeto coletivo em que várias pessoas mandam imagens. O nome será O ataque. André Dib viajou com o apoio do Ministério de Relações Exteriores da República Federal da Alemanha/Consulado da Alemanha do Recife.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

CICLOATIVISMO

MARLOS NOBRE

A Continente deste mês traz reportagem especial sobre o uso de bicicletas como alternativa às cidades congestionadas, destacando as origens do cicloativismo e suas principais reivindicações. Confira no site um documentário sobre a instalação das ciclovias de Amsterdã e as animações Bicicletas em São Paulo e Canta Ty-etê!, produzidas pelo Núcleo Paulistano de Animação. Dirigidos pelo ilustrador Céu D’Ellia, com roteiro de Paulo Garfunkel, os curtasmetragens retratam um futuro possível para a cidade, mais colorida, alegre, sustentável e pronta para receber os ciclistas.

Leia a entrevista completa com o compositor, que escreveu obra a partir dA Sagração da Primavera, de Stravinski, assunto de Sonoras desta edição.

Conexão

NONAGENÁRIA Nos 90 anos de nascimento da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, disponibilizamos trechos de contos, romances e crônicas de sua autoria.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

NA ESTRADA

CINEMA

LITERATURA

FOTOGRAFIA

Diário de viagem de uma inusitada família americana pelo mundo

Site analisa presença feminina na filmografia nacional

Revista literária Cisma, criada por alunos da USP, mantém versão digital

Trabalho no Congo é exibido em texto e imagens por quebequense

bodeswell.org

mulheresdocinemabrasileiro.com.br

revistacismausp.wordpress.com

jpmarki.com

O site Bodeswell é o diário de bordo de Angela e Jason, com participação de Bodes, filho do casal. Tudo começou com a crise de meia-idade de Jason, que, em busca de aventuras, decide comprar uma kombi. O plano era simples: um ano de viagem. Três anos e sete meses depois de saírem de Alameda, na Califórnia, em janeiro de 2009, eles já passaram por mais de 18 países e, no momento, estão no Brasil. Além de registrar a viagem, o site também é usado para arrecadar verbas. Angela e Jason oferecem por lá camisetas, canecas e pequenos serviços em troca de dinheiro.

De Carmen Miranda a Cléo Pires. O site, criado e coordenado pelo jornalista Adilson Marcelino, analisa a carreira das mulheres do nosso cinema. Criado em 1991, hoje, conta com mais de 500 perfis publicados, aos quais se soma a filmografia das perfiladas. Além desse conteúdo, o autor também posta depoimentos de algumas dessas atrizes, bem como os de profissionais da área a respeito delas. Outro atrativo da página são as críticas assinadas por Marcelino, de quando trabalhou como colunista em jornais de Belo Horizonte.

Idealizada e alimentada pelos alunos de graduação do curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP), a revista Cisma é impressa mensalmente e utiliza o blog para manter periodicidade mais curta. Nele, além de notícias sobre a própria revista, são mantidas três seções: a tradução da semana, em que um poema, ou um trecho em prosa ou de teatro, ou até um ensaio é traduzido; um espaço para resenhas e outro para pequenos artigos de crítica. Apesar de ser voltada para os estudantes da universidade, a Cisma também publica, tanto na versão impressa quanto no blog, material de autores externos à instituição.

O blog do fotojornalista Jean Philippe Marquis, de Quebec, é resultado de uma viagem feita por ele ao Congo, para cobrir as eleições locais, documentar a mineração artesanal e ministrar aulas sobre produção em rádio e vídeo à população. Com o fim do projeto, Jean posta regularmente fotos e vídeos realizados no país africano. Os textos podem estar escritos em inglês ou francês. Mas o que dá melhor dimensão do interesse do site, no ar desde 2011, é o fato de ele possibilitar a um público amplo o acesso a informações sobre o país de um ponto de vista livre do oficialismo e da cobertura internacional das agências de notícia.

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blogs BIKE ANJO bikeanjo.com.br/

Quando o assunto é andar de bicicleta, nunca é tarde para aprender. Com esse pensamento, pessoas oferecem, gratuitamente, ajuda para futuros ciclistas. Basta entrar no site e ver onde encontrar um anjo na sua cidade.

ARTES VISUAIS yukari-art.jp/en/shintaro_ohata_en

QUANDO O GAME VIRA COISA SÉRIA Site reúne artigos científicos que tratam do universo dos jogos e abre espaço para discussões acadêmicas sobre o tema gamestudies.org/1202/

Shintaro Ohata, artista nascido em Hiroshima, no Japão, junta técnicas de pintura, escultura e fotografia para compor sua obra.

TIRINHAS peixeaquatico.net/

Por mais que as competições entre amigos para ver quem era o melhor no Mario Kart fossem rigorosas e cheias de regras, era quase impossível conseguir imaginar video game como algo realmente sério. Mesmo sabendo que algumas pessoas trabalharam duro para que aquele simples jogo de corrida da década de 1990 fosse concluído, difícil supor que alguém se desse ao trabalho de estudá-lo academicamente e que, por exemplo, um pesquisador se detivesse nas mudanças no leiaute da saga de Mario ou em analisar as variações da trilha sonora do Super Mario Bros. Agora, na era dos jogos cinematográficos e artísticos, isso já nos parece admissível. A popularização de cursos universitários na área e dos diferentes consoles – aparelhos do video game – impulsionaram essa mudança e, assim, estruturou-se um mercado expansivo. O Game Studies, um jornal científico online sem fins lucrativos, é um exemplo dessa nova realidade do universo dos games. Espaço aberto para publicação de estudos acadêmicos na área dos jogos, o site teve a primeira edição em julho de 2001 e já reúne uma vasta coletânea de artigos, dissertações e teses. GABRIELA ALMEIDA

O Peixe Aquático é o blog do “melhor fazedor de tirinhas”, Leonardo Amaral. Com humor afiado e um estilo meio “largadão”, ele trata dos mais diversos assuntos.

AMIGO GATO ondemeugatosenta.blogspot.com.br/

Trata-se de um blog de cartuns e tirinhas com publicação diária que, de forma bem-humorada, tenta explicar as dificuldades em concluir determinadas tarefas por aqueles que têm a companhia de um gatinho ou as possíveis peripécias que os felinos podem aprontar na sua ausência.

sites sobre

culinária ITALIANA

CINEMA E COMIDA

CASEIRA

italianfoodforever.com

degustandohitchcock.blogspot.com.br

segredosdatiaemilia.com.br

Deborah Mele é uma norte-americana apaixonada pela culinária italiana. No Italian Food Forever, disponibiliza receitas aprendidas com a família do seu marido.

A chef de cozinha Cris Maccarone, especialista em alimento no cinema, publica neste endereço uma analise das obras do diretor, da comida no filme e ainda divulga as receitas.

Neste site, você compartilha dicas culinárias que só uma mãe ensinaria à sua filha. Das mais complexas às mais simples, as receitas são postadas diariamente.

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CON TI NEN TE

Portfólio

Roberta Guimarães

AI, MEU PADIM! TEXTO Danielle Romani

Em junho de 2012, antes de decolarmos do Aeroporto dos Guararapes rumo

à cidade de Juazeiro do Norte (CE), a repórter fotográfica Roberta Guimarães e eu fizemos uma espécie de pacto: durante a viagem de pouco mais de dois dias, comprometíamo-nos em não “cair em tentação”. Entenda-se: centraríamo-nos, exclusivamente, na matéria pela qual viajávamos centenas de quilômetros, e que abordaria a confecção das redes de dormir, assunto da próxima edição da revista. E só. A beleza da Chapada do Araripe e das atrações históricas e turísticas das cidades, por onde circulamos (Crato, Nova Olinda, Juazeiro...), convidavam à debandada do objetivo principal, mas o tempo curto e o assunto carente de apuração nos induziam à concisão. Assim, nosso tema voltava ao centro das atenções. Mas foi inevitável. Desde o momento em que pisamos no Crato, constatamos que era impossível ficar indiferentes, não perceber, não observar, não nos surpreender com aquela presença. Na revendedora de automóveis, na recepção do nosso hotel, no bar vizinho, na lanchonete, na barraca de pastel, no porta-luvas do táxi, nas paredes... lá estavam as variadas imagens de Cícero Romão Batista, com seu indefectível chapéu preto, sua batina e seu cajado. E seu olhar fixo e imponente. Num impulso, colocamo-nos em ação. Com a máquina a tiracolo e o bloco em punho, Roberta e eu comprovávamos que “Padim Padre Ciço” é mais do que um sacerdote reverenciado como santo pelos habitantes da região: ele é uma

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CON TI NEN TE

Portfólio

verdadeira “entidade”, um ser que transita na fronteira entre o divino, o familiar e... o comercial. Onipresente, íntimo, icônico, afetivo, bizarro... Essas e outras adjetivações vieram às nossas cabeças nessa viagem, em especial,

quando, ao visitarmos o mercado público de Juazeiro do Norte e as ruas que os circundam, nos deparamos reincidentemente com aquela imagem. Andávamos poucos metros e lá estava ele, em reproduções confeccionadas em barro, borracha, papel, gesso. Em tamanhos pequeno, médio, gigante, Cícero podia ser visto nos estabelecimentos comerciais da cidade. Quem mantinha as

imagens quase sempre dava a mesma resposta: com ele por perto, não tinha como os negócios desandarem. No açougue, na farmácia, na sapataria, nas vestes dos passantes, nos recantos das lojas, no meio delas, nos bares, o Padim estava sempre estampado, como que a dizer: impossível sair daqui sem me ver! Nas palavras de Bosco, motorista que nos conduziu pelas cidades e ruas do sertão do Cariri – e que, por sinal, tem fixado no painel de seu táxi uma imagem “dele” – é impossível passar por Juazeiro e pelo Crato e não ser atingido pela “força sagrada e simbólica que emana de Cícero. Ele protege os que pedem sua ajuda”, sintetizou o “crente”, que, como outros moradores locais, jura ter presenciado graças e milagres do padre. Nos espaços entre uma entrevista e outra sobre as redes de dormir, acabamos nos deliciando em flagrar a “coleção” de imagens do padre milagreiro espalhada pelas ruas das duas cidades. Uma prova de fé no beato que é o ícone maior do sertão do Cariri e de outros sertões nordestinos.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

IMPRESSORAS 3D Fica até difícil acreditar nas maravilhas preconizadas pelas recentes impressoras 3D. De um projeto desenhado num papel, elas materializam o objeto tal e qual. Já vêm sendo usadas há algum tempo, em muitas áreas, como a de design de automóveis, aviões, brinquedos e até da medicina. Dizem que, em breve, vamos imprimir as vacinas de que precisarmos, diretamente delas. E morar em casas criadas por elas. É o caso de se perguntar: do jeito que a tecnologia segue, vai que dessa vez a gente acaba de vez com a fome no mundo? Seria o milagre da multiplicação dos pães contado na Bíblia? Bastaria botar uma foto de um alimento na impressora e sair copiando? Será que o cartum abaixo, feito em 2000 pelo ucraniano Yuri Kosubukin – morto em janeiro deste ano e maior vencedor dos Salões de Humor de Piracicaba – já profetizava o poder absoluto das mais recentes gerigonças do setor de informática? (LA)

Obra de rua não tem dono? Banksy, o artista britânico “anônimo” de rua, conhecido pelo seu trabalho de estêncil nas paredes de Londres, deve ter ficado fulo da vida com o recente desaparecimento de um pedaço de muro meio encardido que continha um mural seu em homenagem ao Jubileu de Diamante da Rainha Elizabeth II e que foi aparecer do outro lado do Oceano Pacífico, na loja do site Fine Art Auctions, em Miami, à venda entre R$ 700 mil e 1,2 milhão. A obra mostra um menino agachado ao lado de uma máquina de costura fazendo bandeirolas britânicas. Ela desapareceu da lateral de uma loja Poundland, de varejo, em Wood Green, no norte de Londres. Os moradores das imediações ficaram indignados e pedem a volta do trabalho ao local original. Na internet, há quem diga que obra de arte de rua não tem dono, já que o espaço é público, mantido pelo poder público. Ou o dono seria o proprietário do local onde fica a parede. Nesse caso, a Poundland. Ou isso ou aquilo. O irônico de tudo é que obras de rua em Londres são consideradas vandalismo pela prefeitura e têm ordem de serem apagadas. De sua parte, o leiloeiro afirma ter toda documentação legalizada. Como? Só se Banksy arrancou o pedregulho e o levou para lá. Isso pode abrir um precedente perigoso: do nada, começarem a pipocar obras de arte roubadas de museus e galerias de arte pelo mundo, legalizando a profissão que, pelo menos aqui no Brasil, ainda dá cadeia: a de intrujão. LUIZ ARRAIS

CON TI NEN TE

A FRASE

Balaio BELEZA CLARA A imagem de Clara Nunes com cabelos desgrenhados, volumosos, vestido branco, diversos colares e pulseiras ficou marcada na memória coletiva. Mas nem sempre foi assim. No começo de sua carreira, a cantora que ficou conhecida pelos sambas e pelas músicas que exaltavam a umbanda, vestia-se bem de acordo com a moda de cada década, e exibia penteados bem-comportados. O estilo da artista mudou a partir de uma viagem que faria, em 1970, a Luanda, capital angolana. No ano seguinte, a capa de seu quarto disco traria, pela primeira vez, a intérprete mineira com permanente nas madeixas, agora pintadas de vermelho, e usando vestimenta e adereços que remetiam às religiões afro-brasileiras. Em qualquer estilo, bela. (Débora Nascimento)

“Quando se rouba de um autor, chamam plágio. De muitos, chamam pesquisa.” Wilson Meisner

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CRIATURAS

CALO CRÍTICO A crítica sempre foi o mais resistente calo na vida de qualquer artista – alguns, a exemplo de Woody Allen, chegam até a evitar ler resenhas sobre seus trabalhos para poder esquivar-se de possíveis contrariedades. Em 1992, o cineasta Robert Zemeckis (foto) teve uma curiosa experiência nessa área. Autor de sucessos de bilheteria, como De volta para o futuro, Uma cilada para Roger Rabbit e Forrest Gump, o realizador ficou surpreso ao lançar a comédia A morte lhe cai bem, cujos protagonistas eram Bruce Willis, Meryl Streep e Goldie Hawn. Após o fim da “sessão cabine” (primeira exibição para os críticos), na qual ouviu muitos dos jornalistas soltarem sonoras risadas, deixando-o bastante satisfeito. Até que, no outro dia, leu os jornais... Zemeckis, então, ficou na dúvida se os autores dos textos eram as mesmas pessoas que riram na cabine. (DN)

EM TORNO DE TZARA Quanto da mediocridade artística que toma conta do cenário cultural deve ao Movimento Dadá? Nada, responderia o romeno Tristan Tzara (morto há 50 anos). Enquanto assistimos a uma produção cultural impulsionada pela ideia de consumo rápido e palatável, o Dadaísmo trazia em seu nonsense a crítica feroz ao absurdo e ao aniquilamento daqueles anos de Primeira Guerra. Assim é que a receita de como fazer um poema, assinada por Tzara, ganha a força da insubordinação. “Pegue um jornal./ Pegue a tesoura./ Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema./ Recorte o artigo./ Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco./ Agite suavemente. /Tire em seguida cada pedaço um após o outro./ Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco./ O poema se parecerá com você./ E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público.” Compare isso ao copia e cola de agora... (Adriana Dória Matos)

Clara Nunes, 40 anos da morte Por FCLopes

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ANDERSON FREIRE

TENDÊNCIA MUNDIAL DE DESLOCAMENTO NAS METRÓPOLES CONGESTIONADAS, A BICICLETA AINDA CARECE DE ESPAÇO NO ASFALTO E DE LEIS QUE PROTEJAM A INTEGRIDADE FÍSICA DOS CICLISTAS TEXTO Olivia de Souza

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ESPECIAL

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] O M S I V I T A CONTINENTE ABRIL 2013 | 23

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CON ESPECIAL TI NEN TE ANDERSON FREIRE

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O cenário é caótico: trânsito pesado, motoristas tensos, em carros equipados com todo tipo de blindagem. Dentro dos veículos, os corpos estão prontos para reagir a qualquer movimento considerado hostil: buzinadas e xingamentos são o que há de mais corriqueiro. Na rua, o clima belicoso e suscetível prossegue. O pedestre tanto pode ser vítima quanto agente de transtornos, mas sempre precisa estar atento à ação dos motoristas, sobretudo de carros e motos. Sobre duas rodas, os ciclistas também buscam seu espaço, quase sempre espremidos entre veículos e o meio-fio. Nessas ruas, tantas vezes estreitas, tantas vezes esquecidas de leis e limites, também transitam os veículos rudimentares e movidos à energia

humana e animal: carroças, carrinhos de ambulantes. Isso tudo somado aos que estão estacionados, regular e irregularmente. Entre uma calçada e outra (claro, quando há calçadas livres e em bom estado, em que o transeunte ande com segurança), o transporte cada vez mais se desumaniza, torna-se uma agressão diária. Dentro desse contexto, questões como mobilidade urbana entram com urgência no debate público, e o uso da bicicleta vai se tornando símbolo de uma mudança de comportamento. Com atributos como baixo impacto ambiental, baixo custo, alto nível de socialização e benefícios para a saúde, ela, aos poucos, representa uma revolução pacífica que, paulatinamente,

se instaura na dinâmica da sociedade, mobilizando um movimento de cicloativistas em prol da criação de políticas urbanas favoráveis ao seu uso como meio de transporte, e não mero instrumento de lazer. Qual o lugar em que queremos viver? Um dos princípios que norteiam o livro Life between buildings (“A vida entre prédios”, ainda sem tradução para o português), do arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, é de que o ser humano sabe mais do habitat natural de todas as outras espécies, mas desconhece o dele mesmo. Nele, o autor desenvolve a noção de espaço público, apontando diversos fatores que contribuem para sua qualidade. Ele ainda discorre sobre

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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1 ATIVISMO População urbana se mobiliza pela valorização do ciclismo 2 COPENHAGUE Captial dinamarquesa é apontada como a melhor para se andar de bicicleta 3 PLANEJAMENTO URBANO Projetos de Jan Gehl (centro) influenciaram a secretária de transportes nova-iorquina Jannete Sadik-Khan (esq.)

a noção deturpada que resulta em políticas públicas desastrosas, focadas na valorização do automóvel em detrimento das pessoas. E aponta as ruas e praças como elementos básicos para a organização de uma cidade. Não à toa, Copenhague é hoje considerada um dos melhores locais do mundo para pedalar. Gehl tem papel importantíssimo nisso. Nas últimas cinco décadas, a administração pública da capital dinamarquesa tem focado na melhoria da qualidade de vida de pedestres e ciclistas, movimento que começou quando, em 1962, os automóveis foram impedidos de circular pela Stroget, principal via da cidade, e hoje um dos seus principais cartões-postais.

A parte da opinião pública que se mobiliza pelo uso da bicicleta critica a prevalência dos carros sobre as pessoas À frente do Gehl Architects, escritório de arquitetura com clientes em vários países, Gehl presta consultoria para diversas cidades, em projetos que visam humanizar os espaços, como a construção de ciclovias, trânsito compartilhado e revitalização de centros. Seu projeto para Nova York é um bom exemplo

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a ser seguido. Com a intervenção proposta, a Big Apple possui hoje um total de 800 quilômetros de malha cicloviária, transformou 13 ruas em praças para pedestres – além de outras 50 que estão em construção. Considerando a importância que as “magrelas” têm para o equilíbrio de Nova York, a secretária de transportes Janette Sadik-Khan (nomeada em 2007 pelo prefeito Michael Bloomberg) vem, há cinco anos, transformando a cidade num lugar possível para as bicicletas. Em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, ela afirmou que essa não é uma realidade tão distante e que cidades brasileiras com um percentual alto de motoristas, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, podem se adequar da mesma forma. De acordo com o arquiteto e urbanista nova-iorquino Jeff Risom, da Gehl Architects, é totalmente viável a presença de bicicletas como meio de transporte em qualquer cidade grande; o ponto-chave é saber integrá-las às outras formas de transporte público. De forma que,

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se todos pudessem usar a bicicleta, mesmo que para pequenos trechos, eliminaria o congestionamento para quem tivesse que realizar deslocamentos maiores de automóvel. Risom observa cinco lições de Copenhague que podem servir de exemplo para as cidades brasileiras: as pessoas devem ser prioridade das administrações públicas; deve-se pesquisar de que forma elas usam a cidade; testar algumas ideias baseadas em projetos pilotos; colocar os planos de maior escala em prática; estabelecer um senso de respeito entre as pessoas que usam a cidade, tornando-a um lugar convidativo a usuários de diferentes meios de transporte, crianças, jovens e idosos.

MASSA CRÍTICA

O Critical Mass (no Brasil, “Massa Crítica”, ou “Bicicletada”) é o principal exemplo do ativismo sobre duas rodas. O evento surgiu em 1992, na cidade de São Francisco (EUA), e acontece toda última sexta-feira do mês em diversos lugares do mundo, com cada vez mais participantes. Na ocasião, ciclistas, skatistas, patinadores e pedestres se reúnem num enorme passeio em combate à cultura do carro. Diferente de outros movimentos sociais, a “Bicicletada” caracteriza-se pela estrutura horizontal e ausência de hierarquias, sem líderes ou organizadores. Completando quatro anos de atividades no Recife, o movimento

é considerado um dos primeiros instrumentos de luta na cidade por maior espaço e respeito no trânsito. Durante o trajeto, seus participantes distribuem panfletos a pedestres e motoristas, com o objetivo de mostrar uma alternativa ao transporte de quatro rodas. “Ela surge no sentido de divulgar a cultura da bicicleta, e em locais onde ela não é um meio de transporte consolidado, como é o caso do Recife; acaba tomando ares de protesto, pela reivindicação de espaço e de respeito”, explicou o engenheiro e cicloativista Daniel Valença. Daniel participou de sua primeira “Bicicletada” em 2011, quando vendeu o carro, que não usava com tanta frequência, para utilizar a bicicleta como

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5 BICICLETADA As manifestações contra a cultura do carro têm como marco o ano de 1992, quando houve o primeiro Critical Mass, em São Francisco

MOMENTOS FUNDAMENTAIS PARA A MAGRELINHA 1490 – PRIMEIROS REGISTROS O primeiro projeto, de autoria de Leonardo DaVinci, só foi descoberto em 1966 por monges italianos. Estão lá os princípios básicos da bicicleta atual: duas rodas, sistema de direção e propulsão por corrente, e um selim. No entanto, o posicionamento do eixo da direção faria a bicicleta dobrar no meio, sendo quase impossível de se equilibrar em cima dela.

1780 – CELERÍFERO Brinquedo construído pelo Conde de Sivrac. Feito em madeira, constituído por duas rodas alinhadas, unidas por uma viga onde se podia sentar. Não possuía sistema de direção, mas uma barra transversal que servia de apoio. A brincadeira consistia em se deixar empurrar num declive, para então pegar velocidade e tentar se manter equilibrado por alguns metros.

1817 – DRAISIANA 6

Desenvolvida pelo Barão Karl von Drais, a “draisiana” era muito similar ao celerífero, porém, ao contrário do seu antecessor, foi desenvolvida nela um sistema de direção, que permitia a realização de curvas que mantinham o equilíbrio da bicicleta quando em movimento. Vinha com um rudimentar sistema de freio e ajuste na altura do selim.

1863 – VELOCÍPEDE Modelo criado e comercializado pelo francês Pierre Michaux, o velocípede foi desenvolvido com um sistema de propulsão diretamente ligado à roda dianteira. Junto com o filho Ernest, Michaux montou a primeira fábrica de bicicletas do mundo. O crescimento de entusiastas resultou na criação de infraestruturas voltadas para o novo veículo.

1870 – GRAND BI seu principal meio de locomoção. Isso, segundo ele, resultou numa verdadeira mudança de percepção de seu entorno. “Você passa a ver a cidade de uma forma diferente, mais atenta, coisa que não dá para fazer de dentro do carro. Fui percebendo toda a liberdade que ela proporcionava, e a sua dinâmica com a cidade, que era mais interessante”, afirmou. Ele é responsável pelo site colaborativo Cicloação, ferramenta de gerenciamento das atividades dos cicloativistas recifenses, criado com o intuito de reunir informações como documentos, eventos, vídeos e fotografias de ações, além de fazer usos de redes sociais como Facebook e Youtube para divulgá-las e facilitar o contato entre seus participantes.

Com uma grande roda dianteira de 2,5 m de diâmetro, a bicicleta Grand Bi era totalmente de ferro e trazia como novidade os raios das rodas formados por fortes arames. De estrutura completamente diferente dos outros modelos, era um veículo de difícil dirigibilidade, entretanto deixou como legado os arames, presentes até hoje nos novos modelos.

1890 – SAFETY BIKES Com estrutura similar às bicicletas atuais, as safety bikes resolvem o problema da insegurança para pedalar, característica dos modelos antecessores. Sua configuração traz como novidade as rodas de mesmo tamanho e o ciclista pedalando com equilíbrio. Com a simplificação dos processos de criação das bikes, começa a era da sua produção em massa.

INÍCIO DO SÉCULO 20 Começam a ser disputadas grandes provas em estradas, por etapas: Volta da França (1903), Volta da Espanha (1935). A Volta da Colômbia, primeira prova em estrada da América do Sul, é disputada em 1951.

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CON ESPECIAL TI NEN TE ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM

MODELOS ATUAIS ELÉTRICA Movida parcialmente, ou completamente, com a assistência de um motor elétrico, atinge velocidades médias de 25 km/h, podendo chegar até 40 km/h.

BMX Bicicletas menores feitas em aro 20, utilizadas para a prática do bicicross ou cross, esporte surgido nos anos 1960 que imitava o motocross, hoje presente nas Olimpíadas. Divide-se em duas modalidades principais: Racing e Freestyle (manobras).

FIXA Bicicletas simples, sem marcha, nem freio, nem câmbio, cuja corrente é presa à roda traseira. Dessa forma, ela gira junto com os pedais. Permite um maior controle para o ciclista, que pode pedalar para trás e se equilibrar nos pedais com a bicicleta parada.

SPEED Modelo utilizado nas provas de corrida, por serem feitas especialmente para a velocidade. São mais leves que os outros tipos de bicicletas, com uma arquitetura voltada para o formato aerodinâmico.

MOUNTAIN BIKE Utilizadas para a prática do mountain biking, modalidade do ciclismo em que se percorre terrenos bastante irregulares e obstáculos, sendo praticado em estradas de terra, trilhas de fazendas, de montanhas, em parques e cidades. Apesar disso, é o modelo mais visto nas ruas. Possui pneus mais largos, amortecedores, além de quadros reforçados e mais resistentes, sendo assim, mais pesada que as outras bicicletas.

DOBRÁVEL Bicicleta de estrutura mais compacta e menos estável que as bikes convencionais, com o tamanho do aro que varia de 16 a 20, a principal vantagem das bicicletas dobráveis é a portabilidade. O ciclista pode carregála, enquanto utiliza outros tipos de transporte, como metrô e ônibus.

A enorme quantidade de carros nas ruas e avenidas das grandes cidades, a pressa e o desrespeito dos motoristas tornam o ato de pedalar no trânsito uma atividade praticamente impossível, considerada por muitos até mesmo “suicida”. Em contrapartida, observa-se um número cada vez maior de ciclistas dispostos a encarar as ruas e conquistar seu espaço. Em Pernambuco, parte disso se deve ao trabalho de uma outra ramificação do ativismo sobre duas rodas. O Bike Anjo é um grupo voluntário de ciclistas dispostos a ajudar qualquer pessoa que queira adotar esse novo hábito, dando noções básicas de condução em vias urbanas, dicas de segurança, regras de sinalização e legislação de trânsito. Atendendo a toda a Região Metropolitana do Recife, o Bike Anjo acompanha o ciclista iniciante durante o trajeto escolhido, oferecendo rotas alternativas para que ele possa fugir ao máximo dos congestionamentos, e com segurança. “Não há como discutir mobilidade urbana em 2013 e não falar de bicicletas inseridas no cotidiano das pessoas. Desde que comecei a me envolver com o cicloativismo, em 2010, venho participando de reuniões, fóruns e debates, tanto na esfera estadual quanto municipal, sobre essa temática. Os avanços foram poucos, quando existiram. Mesmo assim, o número de ciclistas que utilizam a bicicleta dessa forma é crescente”, comenta o ciclista Enio Paipa, responsável por trazer o Bike Anjo para Pernambuco. Segundo ele, o desrespeito dos motoristas no trânsito é um dos principais fatores que afastam os ciclistas das ruas. Soma-se a isso a pequena estrutura cicloviária da cidade, de cerca de 30 quilômetros apenas. Além da melhoria da qualidade de vida, Enio aponta que o uso da bicicleta lhe trouxe uma visão bem mais humana do trânsito e da cidade. “Quase todas as pessoas que conheci durante esses três últimos anos utilizam a bicicleta como veículo. Somos fraternos, solidários e defendemos sua causa como veículo. Com relação à saúde, os números na balança falam um pouco sobre a melhora. Passar de 103 para os 87 quilos em dois anos,

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“Na bicicleta, você passa a ver a cidade de uma forma mais atenta, o que não dá para fazer de dentro do carro” Daniel Valença

sem regimes nem sofrimentos. Fora outros aspectos hormonais, que me fazem uma pessoa muito mais feliz do que eu era”, completa Enio. Durante o fechamento desta edição, acidentes trágicos envolvendo ciclistas chamaram a atenção da população, devido à forma brutal em que ocorreram, e o curto intervalo de tempo entre eles. Um ciclista em São Paulo teve o braço arrancado pelo força do impacto de um carro, enquanto um garoto de 16 anos morreu ao ser atropelado violentamente na travessia

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5 BICICLETADA As manifestações contra a cultura do carro têm como marco o ano de 1992, quando houve o primeiro Critical Mass, em São Francisco

de uma avenida no Bairro de Boa Viagem, no Recife. Notícias como essas ganham cada vez mais espaço na mídia, não por seu ineditismo – afinal, bicicletas (e acidentes) sempre estiveram aí –, mas por serem consequência de uma situação que se torna insustentável, a cada dia que passa, e o debate, então, amplia-se. Enio Paipa considera que a relação ciclista-motorista ainda não é a ideal, mas que melhora a cada dia, apesar de eventuais sustos no trânsito. “Um, por conta do crescente número de ciclistas nas ruas. Dois, o trânsito está cada vez mais parado e isso ajuda a vida do ciclista, já que os carros não conseguem desenvolver velocidades altas. Porém essa é uma relação que precisa ser 100% legal. Vejo uma melhora, mas todo dia ainda levo a famosa ‘fina educativa’ (quando o motorista passa bem rente ao ciclista), que não educa nada, só

traz insegurança”, comenta. Poucos condutores sabem, por exemplo, que durante o trajeto deve-se manter uma distância de 1,5m em relação à bicicleta. “Hoje, com minha experiência, me assusto menos, mas um deslize pode ser fatal.”

BIKESHARING

Foi na Holanda, durante a década da 1960, que surgiram os primeiros lampejos do ciclismo comunitário. Na ocasião, 10 bicicletas modelos old dutch pintadas de branco eram deixadas nas ruas de Amsterdam à disposição de quem quisesse utilizálas. A ideia do happening, batizado de White Bycicle Plan (“Plano das bicicletas brancas”), partiu do designer industrial e político Luud Schimmelpennink, que tinha o objetivo de criar uma opção de transporte comunitário na cidade. Todas acabaram confiscadas pela polícia.

Schimmelpennink ainda tentou institucionalizar o projeto junto à prefeitura, mas teve todos os pedidos negados e o principal argumento alegado era de que “o futuro era do automóvel, e não das bicicletas”. Os anos passam, os valores se invertem e, a despeito de tais justificativas, hoje, pelo menos cerca de 50% da população holandesa dispõe de uma bicicleta para realizar seus deslocamentos entre os mais de 20 mil quilômetros de ciclovias espalhadas pelo país. A partir dos anos 2000, a ideia de Schimmelpennink foi retomada em algumas cidades europeias e, com o tempo, foi virando tendência em diversas metrópoles ao redor do globo, como Londres, Washington e Paris (o maior de todos os sistemas existentes, com mais de 20 mil bicicletas disponíveis). Implantado no Brasil de maneira bem-sucedida no Rio de Janeiro, e mais recentemente em São Paulo, o bikesharing, ou compartilhamento de bicicletas, chegou ao Recife em janeiro deste ano, através do Porto Digital, em parceria com a Prefeitura do Recife. O projeto, chamado Porto Leve, engloba o Bairro do Recife, Santo Amaro e Santo Antônio. O sistema tem previsão de ser ampliado com a criação de mais estações no bairro da Boa Vista, na Agamenon Magalhães, em Boa Viagem e também em Piedade, totalizando 700 bicicletas. “Tem a vantagem de dinamizar e aumentar o número de ciclistas, e de deixar claro que a bicicleta é um meio de transporte. Dessa forma, pessoas, que normalmente usam carro, passam a eventualmente usar a bicicleta, o que implica sentirem um pouquinho na pele o que é pedalar, e, consequentemente, criarem também empatia pelo ciclista”, comenta Daniel Valença. “Não é uma questão só de moda, a bicicleta como solução para o deslocamento nas cidades é uma tendência. Ela entrou na pauta, falta entrar de vez na dinâmica da cidade. Ou a gente troca essa forma de se movimentar ou a cidade vai parar”, opina.

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CON ESPECIAL TI NEN TE

DAVID BYRNE O mundo sobre duas rodas

Há três décadas, o ex-líder do Talking Heads circula de bicicleta por Nova York e pelas cidades que visita, tornando-se o nome mais cool do cicloativismo TEXTO Yellow

Certa manhã, numa visita a Nova

York, no verão de 1995, quando sua banda tomou o palco do Central Park em apresentação histórica ao lado de Gilberto Gil, Chico Science recebeu uma chamada telefônica em seu quarto de hotel. David Byrne cumprimentava-o do outro lado da linha, dizia que gostaria de conhecê-lo pessoalmente, e perguntava se Chico poderia encontrálo alguns minutos depois, na calçada em frente ao hotel. Como combinado, o malungo desceu ao lobby para conhecer o veterano, ficou observando a entrada, e surpreendeu-se ao ver surgir, em meio ao trânsito frenético da Big Apple, o conhecido rosto do ex-Talking Heads, que vinha em sua direção pedalando elegantemente uma bicicleta. A chegada triunfal de Byrne pareceu tão excêntrica ao olindense, que ganhou destaque em seus relatos de viagem aos amigos da Manguetown. Hoje em dia, falar sobre bicicletas como meio de transporte em Nova York não é mais uma coisa estranha, e isso se deve, em grande parte, ao próprio Byrne. Nascido na Escócia, mas criado nos Estados Unidos, ele é mais conhecido como o líder da banda Talking Heads, que nasceu da cena punk nova-iorquina, mas gradualmente incorporou elementos de música étnica, principalmente ritmos africanos e latinos, criando o que

mais tarde viria a ser chamado de world music. Após ter estudado arte e design, Byrne trouxe às apresentações e peças gráficas da banda elementos da vanguarda artística, e colaborou com artistas plásticos e cineastas emergentes, como Jonathan Demme. Após a separação dos Talking Heads, começou uma errática carreira solo, entrecortada por diversas outras atividades. O selo musical que fundou em 1998, Luaka Bop, apresentou ao primeiro mundo artistas africanos e latinoamericanos, incluindo os brasileiros Os Mutantes, Forró in the Dark e Tim Maia. Byrne é o principal responsável pela redescoberta de Tom Zé, e seu retorno aos palcos nos anos 1990. Entre os últimos projetos de artes plásticas em que se envolveu, estão Envisioning emotional epistemological information, um livro/manifesto em defesa do PowerPoint como nova mídia de expressão artística; Play the building, uma instalação em que é possível gerar ruídos em todo um prédio através do teclado de um órgão; How music works, um livro multimídia que reflete sobre a natureza da expressão musical, e Here lies love, um musical em homenagem à ex-primeira dama das Filipinas, Imelda Marcos, feito em parceria com Fatboy Slim e 20 cantoras, a ser encenado em uma pista de discoteca,

para que os espectadores possam dançar durante a apresentação. Byrne começou a usar a bicicleta como principal meio de transporte há cerca de 30 anos, muito antes do termo sustentabilidade fazer parte do consciente coletivo. A motivação foi estritamente prática – ele percebeu que sua atuação cotidiana na cidade era restrita a uma pequena área de alguns bairros, e passou a pedalar para cima e para baixo, atendendo a compromissos profissionais e de lazer. Segundo ele, os carros não eram o principal obstáculo, mas, sim, o preconceito das outras pessoas, que, ao perceberem que não se tratava de mais um de seus happenings, chamavam-no de nerd, geek, freak. Hoje em dia, ele possui várias bicicletas, e quase sempre viaja portando uma bicicleta montável. Segundo ele, mesmo que seja obrigado a pagar pelo excesso de bagagem, a multa sempre é de valor inferior ao que seria obrigado a gastar com táxis no destino. Byrne não se vê como ativista, embora mantenha uma coluna sobre ciclismo no New York Times, e tenha falado em diversos eventos sobre o assunto. Recentemente, chegou a projetar mastros para a fixação de bicicletas instalados em sua cidade. A contribuição de Byrne ao cicloativismo é a de transformar o ciclismo em uma coisa cool. Ele permaneceu

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sempre na vanguarda estética, em sua expressão artística, e sua chancela à causa do ciclismo urbano leva muitas pessoas a aceitarem a possibilidade de mudarem seus hábitos, ao seguirem o exemplo de quem está sempre antenado com o que há de bom. As dicas de David Byrne para usar bicicletas são: seguir o fluxo do trânsito; não andar sobre as calçadas e respeitar sinais vermelhos, placas de “pare” (afinal de contas, a bicicleta é um veículo, e os motoristas dos automóveis terão mais respeito pelo ciclista, se ele se portar de maneira previsível) e o pedestre. É importante também não ser muito vaidoso ao escolher modelos de bicicleta. Roubos de bicicleta são comuns em todas as cidades do mundo, e quanto menos “bandeira” o ciclista der, melhor. Se o objetivo é apenas transportar-se pacificamente e sem muita velocidade, qualquer mountain bike genérica é capaz de dar conta do serviço, não é preciso sair por aí exibindo bicicletas importadas e de marcas famosas. Quanto ao capacete, ele só usa quando está em uma situação muito crítica. Se está em uma ciclovia sinalizada, sem carros, ele não vê necessidade de trocar segurança por calvície – mas é bom ressaltar que essas não são recomendações, ele está apenas dizendo o que faz. “Não gosto da ideia de dizer às outras pessoas o que elas devem fazer das suas vidas. Eu me sinto mais confortável contando às pessoas o que fiz da minha, como as coisas funcionaram ou não para mim, o que vi e aprendi” disse, em recente entrevista à revista brasileira Trip. Algumas das aventuras de Byrne em duas rodas estão no livro Diários de bicicleta. Ler que Byrne esteve entre nós várias vezes, e saber suas impressões sobre Salvador e Curitiba nos dá a impressão de que estamos deixando de conhecer nossas próprias cidades. Outras aventuras podem ser acompanhadas em seu blog (journal. davidbyrne.com), em posts que fazem os textos de Caetano Veloso parecerem haikais, segundo o próprio brasileiro. Por esses dias, Byrne está viajando o mundo, divulgando seu último disco, Love this giant, em parceria com a cantora St. Vincent. Haja fôlego para um homem de 60 anos. Deve ser a bicicleta.

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CON ESPECIAL TI NEN TE FOTO: REPRODUÇÃO

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ALLEYCATS Os rebeldes do asfalto

Criada no Canadá, em 1989, a corrida de bicicleta não oficial, que é uma das muitas subculturas do ciclismo urbano, radicaliza uso do veículo TEXTO André Valença

Quando Euclides estabeleceu as bases da geometria plana, criou um verdadeiro sofisma, o de que a menor distância entre dois pontos é uma linha reta. Quem mora em cidade grande sabe que esse axioma, na prática, não tem muita serventia. Quem quer se locomover com eficiência em meio ao trânsito de centros urbanos, como o do Recife (qualquer que seja a forma de transporte), tem que saber por onde cortar, cruzar, curvar, virar, voltar e arrodear para evitar os vagarosos caminhos dianteiros. Mesmo assim, há ainda quem tente se aproximar da lógica do matemático grego e, correndo riscos, se arrisque em seguir o caminho mais vertical

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para as empresas em que trabalham. Para a corrida, pontos de inspeção (checkpoints) são fixados em localidades distintas e os alleycats devem passar por todos, na ordem, antes de cruzar a linha de chegada. Normalmente, a disputa se dá durante a hora do rush, e a rota fica a cargo do competidor, que escolhe o caminho considerado mais eficaz, podendo desprezar todo tipo de regra – ou restrições éticas – num valetudo para chegar em primeiro. Os participantes trafegam nas calçadas, pegam contramãos e atravessam sinais vermelhos, tudo por um caminho mais curto, mais retilíneo e mais rápido para completar seus objetivos. O perigo é tanto, que, em

Os praticantes da modalidade contradizem as regras de uso da bicicleta e sua boa convivência com o trânsito

possível para chegar à próxima destinação – não importando os eventuais estorvos que aparecerão pela frente. Esse é mais ou menos o caso dos integrantes do Alleycat, um tipo de corrida de bicicleta não oficial (em alguns lugares, até fora da lei) e uma das muitas subculturas do ciclismo urbano que vem se popularizando. Criado por bike-messengers (espécie de motoboys não motorizados) em 1989, no Canadá (Toronto), o Alleycat é uma espécie de “caça ao tesouro” e simula, de maneira extrema, um dia de trabalho desses profissionais, que devem pular de canto a canto da cidade entregando encomendas e colhendo assinaturas

2008, no Tour de Chicago (EUA), um jovem ciclista chamado Matt MangerLynch morreu atropelado por uma SUV numa interseção viária enquanto furava um semáforo. O circuito normalmente é longo. Não há precisão, já que os competidores escolhem o trajeto, mas a média prevista pelos organizadores da corrida nos Estados Unidos é que o ciclista percorra cerca de 20 milhas (32 km). Certas competições chegam a ter um percurso previsto de até 80 km. Eles não podem checar mapas, e a relação dos pontos de inspeção é entregue minutos antes da largada. Numa das modalidades, ao chegar nos checkpoints, o participante tem que completar tarefas, tais quais beber doses de bebidas alcoólicas, subir escadas com a bicicleta, ou responder a perguntas relacionadas à profissão de bike-messenger. Em outra, chamada Monstertrack, são usadas exclusivamente bikes fixas, que não têm câmbio, freio ou marcha, e permitem ao ciclista chegar a altíssimas velocidades. Em compensação, são difíceis

6 DISPUTAS

Os “alleycats” escolhem justamente as horas mais congestionadas para iniciar suas competições

de desacelerar e, portanto, potencialmente perigosas. No Recife, um grupo já organizou uma discreta corrida Alleycat, em dezembro de 2012. Doze participantes pedalaram cerca de 20 km, a maioria completando em tempos inferiores a uma hora. A largada aconteceu às 18h30 de um dia de semana. “A gente via muito os vídeos das competições em Nova York e meio que ‘importou’ a ideia, só que de maneira menos exagerada”, comenta um dos integrantes, que não quis ser identificado por conta das implicações legais que a organização de uma corrida perigosa assim pode lhe infligir. “Conduzir no trânsito de forma que ponha a sua segurança em risco é ilegal. O ciclista tem que circular dentro dos padrões. Mas a gente passava chutado entre os carros, andava na contramão, furava sinal, invadia calçadas”, relata. Para muitos, a atitude é questionável e pode ser daninha para os avanços que vêm sendo adquiridos no que concerne ao respeito às bicicletas. Já o integrante argumenta o contrário: “Não acho que contribui nem atrapalha o cicloativismo. É uma brincadeira, uma atividade desportiva. Tem gente que diz por aí ‘ah, piora a imagem do ciclista’, mas nós somos só algumas pessoas. Ninguém levanta bandeira”. Para ele, a atividade cria uma espécie de paradoxo também, já que coloca na balança dois pesos que podem se equalizar. “A corrida só existe porque o trânsito existe. É um produto do caos urbano. Se a cidade fosse planejada de forma adequada, não existiria. Vê se existe Alleycat na Holanda? Não. Nem cicloativismo tem. Ao mesmo tempo, mostramos que dá para se locomover com muita velocidade no Recife, na hora do rush, algo impossível para qualquer outro modal”, comenta.

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CON ESPECIAL TI NEN TE

Entrevista

NATÁLIA GARCIA “NÓS QUEREMOS CRIAR REPERTÓRIO, EM PRIMEIRO LUGAR” Jornalista freelancer, especializada em planejamento urbano, uma das principais ferramentas de trabalho da paulista Natália Garcia é uma bicicleta de modelo dobrável. Inspirada no trabalho do urbanista dinamarquês Jan Gehl, em 2009, Natália criou o projeto Cidades para pessoas, um garimpo de ideias e práticas que visam melhorar a vida em diferentes locais do mundo. Financiado por meio de crowdfunding, o projeto já passou por 12 cidades – Copenhague, Amsterdam, Londres, Paris, Estrasburgo, Friburgo, Lyon, São Francisco, Portland, Cidade do México, Nova York e Barcelona. O material apurado durante as viagens é publicado em reportagens, em textos e vídeos no site cidadesparapessoas.com e em blog do Planeta Sustentável. CONTINENTE Como surgiu a ideia do Cidades para pessoas, de que forma esse projeto foi estruturado? NATÁLIA GARCIA Entrevistei o urbanista Jan Gehl, que, já na década de 1950, propunha medidas como a mudança de uma avenida para uma via de pedestres, indo na contramão do que estava acontecendo no mundo, onde as cidades estavam sendo construídas prioritariamente para os carros. Então, pensei num projeto que viajaria o mundo em busca de práticas que tivessem melhorado as cidades para as pessoas. Jan Gehl foi o norte do nosso projeto. O critério de escolha das cidades era as que ele tinha trabalhado como consultor ou como planejador. Jan tem uma formação clássica em planejamento urbano, e trabalha em cidades que têm um contexto político, cultural e econômico muito diferente da América Latina. A ideia do projeto é basicamente essa: a primeira fase foi focada em planejamento urbano e em soluções clássicas. Na segunda fase, visitamos cidades mais recentes, pensando em soluções tecnológicas mais inovadoras. Na terceira fase,

buscaremos soluções que tenham a ver com informalidade. Visitaremos cidades com gente morando e se transportando em lugares que não estão oficialmente contemplados pelo poder público. Essa, imagino, será a fase mais interessante. CONTINENTE Como é sua rotina de trabalho, a partir do momento em que você chega numa cidade? Encontra alguma dificuldade? NATÁLIA GARCIA Na primeira fase, fiquei um mês morando em cada cidade. Na segunda – que passei a fazer com Juliana Russo, ilustradora e minha parceira no projeto –, nós nos programamos para fazer as coisas mais rápido; então, a pré-produção foi importante. Sempre tentamos fazer os contatos antes de chegar às

“Passamos por 12 cidades. Cada uma escolheu um caminho diferente para dar acessibilidade aos ciclistas” cidades para já deixar algumas coisas engatilhadas. Chegamos já com uma ou duas entrevistas pré-marcadas, dando prioridade a um arquiteto, urbanista, ou um amigo que esteja inteirado. Daí, pegamos um apanhado de dicas de lugares para visitar, gente para conversar. Sempre tentávamos falar com fontes “oficiais”, pessoas que fizessem parte do poder público, mas essas foram as que menos entrevistamos. Depois, procurávamos os acadêmicos, estudiosos e pesquisadores ligados às universidades, o que também não rendeu muito material. Por último, íamos atrás de movimentos de engajamento cívico, de pessoas que se organizavam para fazer coisas práticas, que às vezes eram acolhidas pelo poder público, às vezes, não. Isso foi o que mais rendeu no projeto, esses movimentos que vinham de organizações de pessoas comuns. Os primeiros dias eram tirados para explorar a cidade. Íamos de bicicleta, pedalando pelos bairros, entendendo como o trânsito era organizado, qual era o espaço da bicicleta, do transporte público e dos carros.

CONTINENTE O que levou os projetos das cidades em que o arquiteto Jan Gehl atuou como planejador urbano a serem bem-sucedidos, e em que aspectos elas se diferenciam das brasileiras? NATÁLIA GARCIA Ele tem até um projeto para São Paulo, que nunca foi executado, o de revitalização do Vale do Anhangabaú, no centro da cidade –, um projeto perfeitamente executável e superbacana. A primeira diferença entre as cidades europeias que tinham projetos de Jan Gehl das brasileiras é que, naquelas cidades, grande parte deles foi paga pelo poder público. As prefeituras brasileiras geralmente tem orçamento mal-administrado. Então, diria que a diferença primordial é o estado como empreendedor, como investidor na cidade. No Brasil, dependemos da iniciativa privada para fazer algumas coisas acontecerem, e geralmente ela só se interessa em fazer grandes obras. A iniciativa privada torna-se um determinante para que as obras públicas aconteçam. Isso é um problema, porque ficam condicionadas a interesses dessas empresas que, muitas vezes, são empresas de cimento que querem derrubar um monte de concreto na rua, ou são empresas automobilísticas, ou do mercado imobiliário, que fazem enormes operações urbanas e mudam bairros inteiros que ficam verticalizados, expulsando de lá as pessoas que são mais pobres. CONTINENTE Consegue apontar alguma cidade brasileira como um bom exemplo de gestão urbana? NATÁLIA GARCIA Várias. A primeira que me vem à mente é Maringá, uma cidade no Paraná que teve um prefeito espetacular, talvez a gestão mais transparente da história do Brasil. Transparente, participativa, com planos interessantíssimos. Foi uma das primeiras cidades do Brasil a ter um plano de preservação da Mata Atlântica. E o estado, para garantir essa preservação, comprou as áreas onde estão os parques da cidade, para que eles não fossem derrubados para a construção de prédios, são áreas públicas garantidas pela prefeitura. É um exemplo de transparência, de planejamento a longo prazo, com um bom legado para a população. Outra cidade que eu destacaria é Rio Branco, no Acre, que tem o maior planejamento cicloviário do

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Brasil, e que foi feito de maneira muito simples, orgânica. Tem um planejador urbano brasileiro chamado Ricardo Correia que é o maior especialista em fazer planos cicloviários no Brasil, e ele fez um plano, em Rio Branco, que a tornou a melhor cidade brasileira para se pedalar. Pouca gente sabe disso. E é uma cidade que é assim porque ela tem todas as condições para isso. Não tem a presença de grandes empresas, corporações. Curitiba e São José dos Campos também são ótimos exemplos. A primeira foi pioneira em planejamento de longo prazo no Brasil. Criou o IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), sendo logo seguida por São José, que criou o Iplan (Instituto de Pesquisa, Administração e Planejamento). Ambas possuem um corpo de técnicos que fizeram um plano gestor para a cidade, e que trabalham lado a lado com a prefeitura, garantindo sua manutenção. CONTINENTE Estão sendo desenvolvidos projetos para estimular o uso das bicicletas, como por exemplo os bikesharing. Em contrapartida, ainda não foram criadas as condições necessárias

para que os ciclistas se locomovam. Você acredita que é um pontapé inicial necessário, ou acha que se deve, primeiramente, investir na infraestrutura e na educação dos motoristas e ciclistas? NATÁLIA GARCIA Desde o início do projeto, passamos por 12 cidades ao todo. Diria que uma é diferente da outra, cada uma escolheu um caminho diferente para pensar em acessibilidade para os ciclistas. Tem cidade que constrói infraestrutura onde só se anda de bicicleta em vias segregadas. Já em Londres, por exemplo, se faz um treinamento massivo com os motoristas de ônibus para compartilharem suas vias com os ciclistas. E funciona. Tem cidade, como Barcelona, que constrói uma infraestrutura onde pedaços dos canteiros centrais vão sendo adaptados para os ciclistas, e aí a bicicleta fica sendo vista quase como sendo um intermediário, você não é pedestre, mas também não é considerado veículo. Tem cidades que primeiro trazem um sistema de compartilhamento de bicicletas, e pouco a pouco vão criando condições para os ciclistas. Uma coisa é certa: quanto mais ciclistas nas ruas, mais segurança se tem para

pedalar, mesmo sem infraestrutura. É claro que ainda fica restrito a uma parcela da população, muita gente vai continuar com medo. Mas acho que é um processo. E, nesse sentido, sou otimista. Acho que estamos descobrindo o jeito brasileiro de se fazer planejamento urbano. CONTINENTE Vocês pretendem trazer as ideias captadas no projeto para a pauta política? NATÁLIA GARCIA Queremos criar repertório, em primeiro lugar. Queremos escrever sobre essas ideias, em diversos formatos: em vídeo, ilustração, texto, mapa, diagrama. Queremos criar informações qualificadas sobre o que é uma boa cidade para se viver. Mais do que isso, queremos criar repertório sobre ferramentas de participação política das pessoas. Elas precisam participar do processo político de mudança do planejamento da cidade. E sinto que a gente tem tido cada vez mais abertura para fazer isso e que estamos num processo de transformação. Em suma, é isso que queremos fazer, trazer ideias e criar repertório. OLIVIA DE SOUZA

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JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE#44

Peleja

Há relevância na lei que obriga a existência de obras de arte em edifícios do Recife? Em dezembro de 1980, foi sancionada a Lei Municipal de Obras de Arte em Edificações do Recife, que foi ampliada aos municípios pernambucanos com população superior a 20 mil habitantes, alguns anos depois. Agora, num cenário artístico diferente e num momento de grande especulação imobiliária, parece pertinente voltar a discuti-la. Para isso chamamos dois artistas com opiniões divergentes sobre a lei: Jobson Figueiredo e Fernando Peres. CONTINENTE ABRIL 2013 | 36

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Jobson Figueiredo

Fernando Peres

A Lei Municipal de Obras de Arte em

Edificações do Recife vem de longa data. A ideia partiu do escultor Abelardo da Hora, em 1960, que a sugeriu ao prefeito Miguel Arraes. Entretanto, somente em dezembro de 1980, foi sancionada a Lei nº 14.239, pelo prefeito Gustavo Krause. Em 1989, então Presidente da Associação dos Artistas Plástico Profissionais de Escultor e Pernambuco, participei, em conjunto restaurador com Marcelo Mário Melo, do MUCP (Movimento Unificado Constituinte Popular), através do qual conseguimos que a Lei de Obra de Arte em Edificações passasse a valer para todo o Estado: “Os municípios com população superior a 20 mil habitantes, quando da elaboração do Plano Diretor Urbano, deverão observar a obrigatoriedade de constar em todos os edifícios ou praças públicas com área igual ou superior a mil metros quadrados, obra de arte, escultura, mural ou relevo escultórico de autor pernambucano ou radicado no estado há, pelo menos, dois anos”. Hoje, são dezenas de cidades que seguiram o exemplo do Recife/Pernambuco e criaram suas leis de obras de arte públicas: a Lei Municipal nº 3.255 de 1998, em Florianópolis; Lei Municipal nº 1.759, de Foz do Iguaçu; em 20 de junho de 2011, a Lei nº 10.036 de Obras de Arte, em Porto Alegre. A necessidade de humanização das cidades sufocadas, desumanas e imobilizadas é permanente e urgente. A preservação da condição humana começa no seu habitat, no seu prédio. O espaço de lazer tem que ser respeitado. As crianças precisam de espaço, não podem brincar no meio dos carros nos estacionamentos. Todos necessitam preservar a sua condição humana. Os apartamentos não são gavetas de dormir ou de se esconder, mas, sim, lugar de se viver. Viver com arte e com sentimento. Os espaços institucionais estão sendo reavaliados. Os artistas buscaram novos lugares para se expressar. O espaço asséptico da galeria “cubo branco” foi substituída pelo impuro da vida real. Surgem os lugares alternativos para a arte: as ruas, praças, entradas dos prédios etc. A condição plural da arte contemporânea sai do seu suporte tradicional e caminha ao encontro do urbano e humano. É a reaproximação do sujeito com o mundo. A arte pública tem papel fundamental nesse processo de inserção homem/cidade – hoje, o cidadão é espectador e participante da arte. A arte exposta no espaço público é determinante na qualidade de vida das pessoas e de seu ambiente.

Os apartamentos não são gavetas de dormir ou de se esconder, mas, sim, lugar de se viver. Viver com arte e com sentimento

“Todo o edifício ou praça pública

com área igual ou superior a mil metros quadrados, que vier a ser construído no Município do Recife, deverá conter em lugar de destaque e fazendo parte integrante dos mesmos obra de arte, escultura, pintura, mural ou relevo escultórico de autor preferencialmente brasileiro.” Conheci a lei que obriga a Artista plástico e existência de obras de arte em edifícios agitador cultural durante minhas primeiras visitas ao Recife, no início dos anos 1980. Minha mãe, Rogélia, foi uma das projetistas do Shopping Center Recife. Pela lei, o shopping deveria ter uma escultura e acabou tendo várias, inclusive no espaço interno, o que era bem legal. Na época de ouro dessas esculturas obrigatórias, nos anos 1980, até os edifícios eram mais bonitos. Essa conversa do Recife ser “o maior museu a céu aberto” (do mundo?) acho boboca, como chamar a cidade de “Veneza brasileira”, a “melhor do Norte/Nordeste”, essas coisas. Por toda a cidade, várias obras de Francisco Brennand, Cavani Rosas, Marianne Peretti, Abelardo da Hora, Jobson Figueiredo e Corbiniano Lins na frente de edifícios são muito bonitas, quase um cartel do bem. Outras são pura ficção científica e/ou horrorosas e vencem pela personalidade exótica. Parece que já são mais de duas mil delas, um exército maluco. Diversas, certamente, são o resultado de alguma falcatrua de arquitetos e engenheiros dos prédios em construção, que se transformam em artistas pouco inspirados; construtoras que burlam a legislação com obras que habitam (conseguindo assim o “habite-se”) t e m p o ra r i a mente diferentes prédios, ou obras que nunca existirão como tal no mundo real das artes. Mas é isso, somos uma cidade bem especial, comemoramos a presença holandesa e a expulsão dos holandeses. Recife... o Forte das Cinco Pontas que só tem quatro... Também vivo essa dualidade, acho a lei das obras de arte nas construções bem pateta e ao mesmo tempo a adoro. Quanta coisa linda/ boa/ ruim/ não artística/ cópia involuntária de Richard Serra/ feia junta! As mulheres nuas de Abelardo da Hora, a réplica do Monumento aos Descobrimentos (de Lisboa) no Edifício Portugal, aquele sujeito de resina esmagado por uma coluna de concreto, os alienígenas assustadores, o homem nascendo de um falo de Cavani na Avenida Boa Viagem, os abstratos mais loucos, o mosaico sobre Pelé, de Brennand... como esquecê-los? Prédios muito feios. Se existisse uma lei proibindo isso, seria incrível!

A maior parte dessas obras espalhadas na cidade é mais um circo de horrores que uma “galeria de arte a céu aberto”

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CON TI NEN TE

ACERVO

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OLIVEIRA LIMA Tesouro da história brasileira nos EUA Os mais de 60 mil volumes – entre livros, manuscritos, panfletos, jornais – que formam a maior brasiliana fora do Brasil, estão reunidos na biblioteca que leva o nome do jornalista, historiador e diplomata pernambucano, em Washington TEXTO Anna Camanducaia, de Nova York

Dentro da principal biblioteca

da Universidade Católica da América, em Washington, existe uma outra biblioteca: a Oliveira Lima. Independente, como exigiu o diplomata, historiador e jornalista pernambucano Manoel de Oliveira Lima, antes de doar sua extensa coleção, em 1916. Os mais de 60 mil volumes – entre livros, manuscritos, panfletos, jornais – formam a maior brasiliana fora do Brasil. O acervo tem também pinturas, esculturas, fotografias e cartões-postais. Tudo dentro de uma linha cronológica que vai do descobrimento do Brasil, em 1500, até o fim da Primeira República, em 1930. O que essa biblioteca tem de grandiosa, tem de discreta. Ela vive no subsolo, mas espera-se que não por muito tempo. Antes de seguir conosco para onde está guardada a coleção, o atual diretor da biblioteca, Thomas Cohen, apresenta o futuro desse acervo. É no segundo andar, onde hoje está uma sala de leitura. “O espaço já me foi garantido. Agora, preciso conseguir os recursos para a reforma”, afirma. O projeto inicial deve

ficar pronto nos próximos meses e, a partir daí, a campanha para encontrar doadores será reforçada. Cohen calcula que sejam necessários 10 milhões de dólares para colocar o plano de pé. Ele tem conversado com americanos e brasileiros e deve voltar a Pernambuco ainda neste primeiro semestre. “Nós vamos dar à coleção a casa de que ela sempre precisou”, diz. Enquanto isso não acontece, o diretor e a curadora-assistente Maria Angela Leal organizam e preservam a coleção num conjunto de quatro salas. Maria é mais do que o título sugere. É a alma do lugar. Respira o legado de Oliveira Lima 10 horas por dia. A familiaridade é tanta, que ela cita obra por obra e, sem hesitar, vai direto ao exato ponto onde cada uma delas está guardada. Pergunto como, no meio de tanta coisa, ela sabe onde está cada livro. Ela ri e fala: “Estou aqui há muito tempo. Nos primeiros anos, não era assim. Mas agora posso dizer que sei onde estão as joias da coleção”. E mostra o livro mais antigo, de 1507. É a primeira narração impressa sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil.

A biblioteca guarda o primeiro livro impresso no Brasil, ilegalmente, em 1747 – a impressão e publicação de obras só foram permitidas pela Coroa portuguesa em 1808, com a criação da Imprensa Régia. E também o primeiro impresso em Pernambuco, em 1817, que trata da Revolução Pernambucana, último movimento revolucionário antes da Independência do Brasil em 1822.

RARIDADES

Dos livros da biblioteca, 10 mil são considerados raros. E fascinantes são as histórias por trás deles. “Este me dá até arrepio de tão fantástica que é a história”, comenta Maria. É um livro de 1722, que teria sido encontrado pelo general brasileiro Couto de Magalhães na bagagem do marechal Solano Lopez na guerra do Paraguai, em que ele foi morto. Em 1907, a obra foi parar nas mãos de Oliveira Lima – um presente dado pelo sobrinho do marechal. “O general pegou o livro do homem morto. Por anos, perguntei-me por que o marechal andava com aquele livro no meio de uma batalha. Depois descobri que, como era em guarani,

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CON ACERVO TI NEN TE LIVROS, MANUSCRITOS, CARTAS... MAS TAMBÉM IMAGENS

SÉCULO 18

RETRATO

Rio Marañón

Euclides da Cunha

Lâmina pertence a uma série de aquarelas de paisagens do rio que nasce nos Andes peruanos e que, no Brasil, junta-se ao Rio Ucayali, aqui chamado de Amazonas

Escritor de Os sertões envia fotografia com dedicatória ao amigo

CARTÃO-POSTAL

CARICATURA

Rio de Janeiro

Oliveira Lima

Escritor Machado de Assis envia correspondência cordial ao amigo Oliveira Lima, datada de 1906, com imagem da Avenida Beira-Mar da praia de Botafogo

Imagem do historiador, desenhada em 1905, no Rio de Janeiro

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FOTOS: THE CATHOLIC UNIVERSITY OF AMERICA, OLIVEIRA LIMA LIBRARY, WASHINGTON DC.

Página 38 1 RESIDÊNCIA Em 1916, Oliveira Lima e sua esposa Flora decidiram morar nos EUA, onde permaneceram até a morte dele, em 1928 Nesta página 2 WASHINGTON Lima (4º à esquerda, 1ª fileira) e Gilberto Freyre (5º à esquerda, na 2ª fileira), no Congresso Panamericano de Jornalistas

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servia de dicionário, de referência para que ele conseguisse se comunicar.” Raridades também aparecem entre as obras de arte, como as 10 aquarelas pintadas pelo engenheiro militar espanhol Francisco Requena, na Amazônia, por volta de 1780. Não se sabe ao certo quantas teriam sido feitas, mas essa dezena sobreviveu ao tempo. Segundo Maria, já serviram de base para diversos estudos. Muita gente vem atrás delas para que façam parte de exposições ao redor do mundo – sejam as originais, que já viajaram para Lisboa e São Paulo, ou reproduções, como as que estão prestes a completar uma exibição em Leticia, na Colômbia. O busto de Dom Pedro I, feito em bronze pelo escultor francês Marc Ferrez, é um dos cinco espalhados pelo mundo. E traz uma curiosidade descoberta há menos de 10 anos, quando o Instituto Smithsonian queria a peça emprestada para uma exposição que percorreria algumas cidades americanas. “Depois de uma análise detalhada, chegaram à conclusão de que seria arriscado transportá-la, já que o busto não estava centralizado na base.” Um defeito de fabricação presente em todas as cópias. As descobertas não param por aí. Uma paisagem do Largo do Machado, no Rio de Janeiro, inicialmente atribuída a um artista amador, acabou se revelando

um autêntico Taunay – referência ao pintor francês Nicolas Antoine Taunay. O espaço dedicado à biblioteca, hoje, está longe de ser ideal para garantir o bem-estar das obras de arte. Três panoramas do Recife de 1860, feitos pelo artista alemão Friedrich Hagedorn, que viveu no Brasil por quase 20 anos, formam, juntos, uma única paisagem. Mas ela não está completa. Um dos quadros foi retirado da parede por causa da umidade e ainda não tem data certa para voltar. Para evitar danos a um dos mais importantes representantes do acervo, a paisagem de Pernambuco do pintor holandês Frans Post, datada de 1669, foi emprestada para a Galeria Nacional de Arte em Washington, DC., no final dos anos 1990. Antes de ser colocada à mostra, foi restaurada e teve a moldura consertada. O curador do museu Arthur Wheelock diz que existem pouquíssimas obras de Frans Post em espaços públicos nos EUA e que ter uma delas na Galeria Nacional é um verdadeiro tesouro. “Aqui, o quadro pode ser visto por milhões de pessoas.” Em 2012, o museu recebeu 4,2 milhões de visitantes. Foi com o intuito de garantir uma moradia melhor para todas as obras que o Itamaraty tentou negociar a ida da coleção para o Brasil em, pelo menos, duas ocasiões. A última no

início dos anos 2000. Não teve sucesso em nenhuma delas. O desejo de Oliveira Lima, de que sua herança literária ficasse aos cuidados da Universidade Católica da América, vem sendo respeitado. “Eu entendo que esse seja um grande pedaço de patrimônio brasileiro, mas é também um patrimônio mundial”, lembra Maria.

O COLECIONADOR

Quem foi, afinal, o incansável colecionador que deixou tantas preciosidades, principalmente sobre a trajetória do Brasil e de Portugal, mas também algumas contribuições sobre África e Ásia? Oliveira Lima nasceu no Recife no dia 25 de dezembro de 1867. Filho de pai português e mãe pernambucana, passou a maior parte da infância e adolescência em Portugal, mas tinha uma verdadeira admiração pelo Brasil. Tanto que, quando terminou a faculdade de Letras em Lisboa, decidiu fazer carreira no Itamaraty. Como diplomata, viajou o mundo ao lado da mulher Flora. Morou em Lisboa, Londres, Berlim, Caracas, Tóquio, Bruxelas e Estocolmo. O interesse pela escrita começou cedo. Aos 14 anos, lançou a revista mensal Correio do Brazil. Foi a largada para os muitos artigos em jornais, como o Diario de Pernambuco, e livros que publicou pela vida afora.

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CON ACERVO TI NEN TE CORTESIA NATIONAL GALLERY OF ART

3 FRANS POST Pintura do acervo, está emprestada à Galeria Nacional de Washington

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Oliveira Lima escrevia ainda 15 cartas por dia. Ou melhor, ditava 15 cartas por dia para Flora escrever. A caligrafia dele era muito ruim e as pessoas reclamavam de ter que decifrar palavra por palavra. A rede de missivistas era enorme: 1.400 pessoas. Nessa relação, estavam Machado de Assis, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, José Veríssimo, Joaquim Nabuco e outros escritores da América Latina, dos Estados Unidos e da Europa. Pelo correio, também chegavam livros. Centenas, milhares deles. “Acho que as pessoas pensavam que, com ele, o livro estaria imortalizado”, diz Maria. Estavam certas. Oliveira Lima sabia muito bem o que queria, quando começou a acumular esse patrimônio cultural. “Além dos livros, ele guardava manuscritos, cardápios, passagens de trem e navio, cartões-postais, tudo que poderia ser do interesse das gerações futuras”, afirma Cohen. Foi um longo caminho até que tudo isso desembarcasse na universidade. Primeiro, veio a decepção com o Itamaraty. Em 1913, queria se aposentar, a saúde já não ia bem. Ele achava que merecia uma promoção. Até recebeu um convite para ser embaixador em Londres, mas o Senado não aprovou a indicação. Depois de ter escrito sobre a sua simpatia por Dom Luiz de Orleans e Bragança, acusaram-no de monarquista.

Oliveira Lima foi um missivista prolífico. Correspondia-se com 1.400 pessoas, muitas delas intelectuais do seu tempo O homem corpulento, portador de um vasto bigode e de uma língua solta, fez inimigos por ser muito franco. Criticava as políticas do Barão do Rio Branco e o Itamaraty em geral. Pacifista, era contra a Primeira Guerra Mundial e a favor da neutralidade do Brasil no conflito. Em 1915, Oliveira Lima atravessou o Atlântico para dar aula na universidade de Harvard por um semestre. Foi o primeiro curso de História do Brasil nos Estados Unidos. Seus desafetos fizeram chegar à Inglaterra o que ele havia escrito sobre a guerra e insinuaram que ele era próAlemanha. Considerado persona non grata, não podia mais pisar em Londres – justo lá que era sua base, onde ele mantinha a maior parte da sua coleção. Em 1916, Oliveira Lima e Flora decidiram que seguiriam de vez para os Estados Unidos. Foi o amigo e vicepresidente da Universidade de Stanford, John Casper Branner, quem sugeriu

que ele procurasse a Universidade Católica. “Ele mesmo havia elogiado a instituição no livro Nos Estados Unidos: impressões políticas e sociais”, lembra Maria. “Ofereceu sua coleção, pedindo em troca que a universidade fizesse o traslado das obras, divididas entre Londres, Bruxelas e Lisboa, e o nomeasse primeiro bibliotecário da Oliveira Lima.” A chegada em Washington foi em 1920 e o que se pensava ser uma coleção de 16 mil livros, revelou-se muito maior. “Numa carta a Gilberto Freyre, disse que estava exausto só de desempacotar os livros. Um ou dois anos antes de morrer, em 1928, deuse conta de que tinha reunido cerca de 40 mil títulos.” Essa coleção não para de surpreender até mesmo quem tem a biblioteca como sua segunda casa. Dentro de Nos Estados Unidos está anexada uma carta a Machado de Assis. Nela, o diplomata perguntava se podia mencionar que era da Academia Brasileira de Letras, mesmo sem ter tomado posse. Apesar de ter sido eleito para ocupar a cadeira de número 39, em 1897, só foi empossado em 1903. O então presidente da ABL autorizou. O mundo de Oliveira Lima parece não ter fim. É para ser descoberto e explorado por muitas gerações. Quem tiver a chance de ir a Washington, não pode deixar de bater na porta e entrar.

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ARTE SERIAL

MERCADO Fábrica nacional de quadrinhos 1

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CASANOVA Quadrinhos da Icon Comics têm roteiro de Matt Fraction e arte dos gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon

Roteiristas, desenhistas, coloristas e diagramadores que integram nova geração de profissionais das HQs brasileiras vislumbram cenário alternativo e promissor para a nona arte no país, hoje TEXTO Márcio Padrão

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AMERICAN VAMPIRE HQ de Rafael Albuquerque ganhou o Eisner de Melhor Série Nova, em 2011

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PANDEMÔNIO Ilustração de Vitor Cafaggi para coletivo de quadrinistas mineiros

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GUSTAVO DUARTE Autor de Monstros já recebeu três prêmios HQ Mix

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VALENTE Tira de Vitor Cafaggi é publicada no jornal O Globo e já rendeu duas coletâneas

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Até 2007, os irmãos gêmeos paulistanos Gabriel Bá e Fábio Moon já tinham uma carreira respeitável no mercado brasileiro de quadrinhos. Eram donos de vários Ângelo Agostini e HQ Mix – os prêmios máximos do setor – por conta de trabalhos como a série de livros 10 pãezinhos, adaptados de um fanzine criado pela dupla em 1999. Aquele ano representou uma guinada para eles, com o convite para desenhar Umbrella Academy, série da editora norteamericana Image Comics criada por Gerard Way, roteirista e músico da banda My Chemical Romance. Até então, Moon e Bá dividiam suas atividades profissionais com ilustrações em jornais, revistas e storyboards. O trabalho para a Image, porém, demandava mais tempo e compensava o investimento. Portanto, só a partir dele passaram a ser quadrinistas em tempo integral.

O exemplo dos gêmeos nos norteia quanto à atual geração de brasileiros que vivem da nona arte. Capitaneados por talentos como Moon e Bá, são representativos dessa safra artistas como Rafael Grampá, Danilo Beyruth, Rafael Albuquerque, Rafael Coutinho, Gustavo Duarte e os irmãos Vitor e Lu Cafaggi. Em comum, possuem uma combinação de qualidade narrativa, bagagem cultural e interesse crescente em publicar seus trabalhos no Brasil, mas também no exterior. Veem na internet uma ferramenta fundamental para sua divulgação e realizarção de contatos, além de visarem cada vez menos as bancas de revistas e mais as livrarias. As prateleiras exclusivas para quadrinhos se tornaram espaços disputados, nos quais os autores conseguem a atenção de todos os públicos, mas com foco no adulto.

A perseverança e a evolução dos brasileiros, aliadas ao know-how de editoras como Companhia das Letras, Zarabatana e Panini, têm rendido não apenas a sonhada publicação, mas prêmios aqui e no exterior. Danilo Beyruth conquistou, em 2011, três prêmios HQ Mix pelo álbum Bando de dois, baseado no período do cangaço nordestino, e Birds, de Gustavo Duarte, recebeu prêmio de Publicação Independente de Autor no HQ Mix do ano passado, só para ficarmos em dois exemplos no território nacional. Lá fora, Moon e Bá já ganharam quatro Eisner (em 2008 e 2011) e três Harvey Awards (em 2008, 2009 e 2011). A colorista gaúcha Cris Peter também foi indicada ao Eisner em 2012, por seu trabalho em Casanova, da Icon Comics, com roteiros de Matt Fraction e arte dos gêmeos paulistanos. Rafael Albuquerque, desenhista da

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série American vampire, da DC, teve reconhecimento por meio do Eisner de Melhor Série Nova, obtido em 2011. “Desde que trabalho nessa área, há mais de 20 anos, vejo este como o melhor momento do quadrinho brasileiro”, atesta Sidney Gusman, editor do site especializado Universo HQ e responsável pelo planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções. Gusman lembra que a Ebal, editora pioneira de quadrinhos no país, em sua fase áurea nos anos 1950 e 1960, também publicou muitos trabalhos de brasileiros. “Não tenho acesso aos números da Ebal para comparar comercialmente, mas, em termos de criatividade, reconhecimento e qualidade de material, o momento atual dos nossos quadrinhos vem sendo o melhor. Por anos se falava que não tínhamos bons roteiristas, por exemplo. Uma bobagem. Com o MSP 50 deu para ver o tanto de gente que está fazendo quadrinho bom nesse país.” Gusman refere-se ao projeto MSP 50, que começou em 2009, como uma homenagem às cinco décadas de carreira de Mauricio de Sousa (leia a matéria a seguir).

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DIVIDIDOS

Por mais que a maré esteja a favor dos artistas nacionais, eles ainda enfrentam problemas antigos, como a distribuição insuficiente, as carências do mercado editorial brasileiro e a dificuldade em atrair o interesse de quem não lê ou deixou de ler HQs. Nesse aspecto, Moon e Bá são espécimes raros, pois poucos quadrinistas brasileiros conseguiram a independência financeira trabalhando apenas com esse ramo. Geralmente, dividem o tempo entre projetos em publicidade, ilustração e afins. Vitor Cafaggi, autor de Puny Parker, Duo:tone, Pequenos heróis e Valente, dá aula de desenho em duas escolas para completar a renda. No caso dele, não é um problema, porque gosta tanto das aulas quanto de produzir quadrinhos. “Aprendo muito dando aula e me mantenho mais atualizado e esperto”, afirma o desenhista mineiro, cuja tira Valente sai pelo jornal O Globo e já rendeu dois álbuns de coletâneas. Os prêmios de Danilo Beyruth ainda não foram suficientes para que ele deixasse seu outro emprego. “Como o trabalho em quadrinhos no Brasil não dá retorno suficiente para sobreviver dele,

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o maior problema é achar o tempo para dividir com outra atividade profissional. Atualmente, trabalho numa agência de propaganda. Faço HQ na hora do almoço e à noite”. Gustavo Duarte, por sua vez, trabalhou por 12 anos fazendo cartuns e ilustrações para o jornal esportivo Lance e hoje faz trabalhos freelancers para jornais como a Folha de S.Paulo. Rafael Coutinho, que seguiu a carreira do pai, Laerte, e cujo trabalho mais conhecido é Cachalote (2010), em parceria com o escritor Daniel Galera, tem uma opinião otimista sobre esse panorama. “Trabalho com diferentes coisas, mais por prazer de fazê-las do que por necessidade. Minha condição é mais pautada pelo fato de ser autônomo do que de ser quadrinista,

ilustrador ou pintor. É possível viver de quadrinhos no Brasil, a questão não é essa. Os quadrinistas brasileiros não estão interessados em trabalhar com franquias, querem fazer seus trabalhos autorais, e querem coisas muito diferentes uns dos outros. Há a questão óbvia do mercado diminuto no país, mas quadrinistas europeus também ‘frilam’ para viver, americanos idem. São artistas com um perfil autoral, que não ganham por página feita, e, sim, por adiantamento de royalty. Ninguém paga as contas com isso; é preciso ‘frilar’, e isso no mundo todo.” O xará de Coutinho, Rafael Albuquerque, vai na direção oposta. “Nunca entrei no nicho de HQs do Brasil. Publiquei coisas que, em geral, foram feitas para fora, exceto por uma ou outra

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PREMIADOS Gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon hoje trabalham com HQ em tempo integral

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CRIS PETER Colorista gaúcha foi indicada ao Eisner, em 2012, por seu trabalho em Casanova

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GUSTAVO DUARTE Trabalhou por 12 anos fazendo cartuns e ilustrações para o jornal esportivo Lance

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EXTERIOR Rafael Albuquerque faz trabalhos diretamente para o mercado internacional

“Eu, que estou nessa área há mais de 20 anos, vejo este como o melhor momento do quadrinho brasileiro” 9

coisinha independente. Me arrisco a dizer que o Brasil ainda nem tem um mercado, propriamente dito. Uma cena, promissora, me parece mais adequado.” Já Fábio Moon diz que a meta dele e de seu irmão é tentar oscilar entre propostas externas e nacionais, embora tenham pendido para o primeiro lado na maior parte de suas carreiras. “Quando a gente começou, praticamente não havia um núcleo nacional de quadrinhos, só Mônica e super-heróis. As editoras voltaram a publicar trabalhos nacionais em meados de 2000, em preto e branco, e só em 2005 vieram os coloridos. O mercado brasileiro tem um limite que, hoje em dia, é maior. Para esse mercado crescer, é preciso que o artista tenha paciência,

o cinema da sua obra Mesmo delivery. A outra característica destacada por Gusman é que os artistas leem mais e trazem influências de outras áreas. Gustavo Duarte é um exemplo: entre seus mestres, estão não apenas Will Eisner e Sérgio Aragonés, mas Jim Henson, criador dos Muppets. O resultado disso é que a geração 2010 da HQ brasileira é capaz de atingir todos os gêneros e públicos, e está ajudando a afastar o clichê de que o quadrinho nacional só tem força no humor. Moon e Bá focam em histórias com forte carga emocional; os irmãos Cafaggi tem um estilo mais “fofo” e com temática adolescente; Danilo Beyruth vem transitando entre a aventura, a ficção científica e o horror. Com o cenário pronto, o que falta é conseguir mais leitores. Os entrevistados se dividem: uns defendem que o caminho é voltar a lançar trabalhos nas bancas, outros estão satisfeitos com o espaço nas livrarias. Distribuição à parte, todos são unânimes ao afirmar que é fundamental ter boas histórias. Para a colorista Cris Peter, nenhum desses artistas atuais possui um estilo de

pois às vezes a publicação não depende só dele.” Satisfeitos com a repercussão de seu último álbum autoral, Daytripper, hoje os gêmeos estão comprometidos com uma minissérie do universo de Hellboy, de Mike Mignola, e a adaptação do livro Dois irmãos, de Milton Hatoum. Na opinião de Sidney Gusman, há dois aspectos que diferenciam essa geração dos quadrinistas brasileiros surgidos em outras décadas. A primeira é a capacidade “multimídia”. “Hoje, eles aparecem mais em entrevistas na TV, fazem roteiros para cinema, adaptações para teatro”, explica. São os casos do curitibano José Aguiar, que teve suas obras Folheteen e Vigor mortis comics levadas para os palcos; e Rafael Grampá, que tem garantida uma adaptação para

Sidney Gusman arte que as editoras escolhem usualmente como padrão de suas histórias, por isso eles tiveram de fazer os próprios caminhos, investindo tempo e dinheiro para conseguir publicar suas criações. “Eles realmente são o time completo dentro de um corpo. Todos são roteiristas, desenhistas, coloristas e diagramadores. Cada um é uma fábrica de quadrinhos inteirinha. Graças ao trabalho deles, os fãs de quadrinhos estão enxergando que o talento está aqui mesmo”, defende Peter. Sidney Gusman também dá uma dica: “Aos que já leem a produção nacional, sugiro que deem um quadrinho de presente a quem não lê, para que passe a conhecer e gostar. Esse é o desafio dessa geração: disseminar em todo mundo o vício de leitura dos bons quadrinhos”.

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MÔNICA Uma menina (enfezada) de ouro

Mais famosa cria das HQs nacionais chega aos 50 anos como motor do maior império erguido por um desenhista brasileiro TEXTO Paulo Floro

Com adjetivos nada

lisonjeiros de gordinha, baixinha e dentuça, Mônica, 50 anos, ficou conhecida por milhões de leitores brasileiros, desde que surgiu numa tira de Cebolinha, publicada na Folha de S.Paulo no dia 3 de março de 1963. A personagem iria trilhar um caminho de sucesso ainda inédito no mercado editorial brasileiro – e até hoje não ultrapassado.

Seu criador, o cartunista e empresário Mauricio de Sousa, 77 anos, conseguiu construir um universo que se renovou através de gerações e sobreviveu a intempéries, graças à estratégia de acompanhar os interesses de seu público-alvo. Mônica continua a ser a menina enfezada que distribui coelhadas. Mas também existe como a garota do título Turma da Mônica Jovem, hoje,

a única HQ que ultrapassa 1 milhão de exemplares vendidos no Brasil. Conhecida como personagem do universo infantil, Mônica ganhou versão adolescente com traços inspirados no mangá, beijou seu grande amor desde a infância, Cebolinha, e até se casou. Todo esse desenvolvimento de uma personagem tão famosa teve repercussão na mídia. “Quando criei os personagens não imaginei essa situação”, disse Mauricio de Sousa. “Era uma turminha de seus sete anos de idade, em média. Há alguns anos, percebemos que as crianças de 10, 12 anos para cima deixavam de ler a turminha clássica, por acharem coisa de criança. Então, migravam para o mangá. Por isso, vimos que era a hora de fazer algo para não perder esses leitores. O sucesso

da Turma da Mônica Jovem comprova que acertamos.” A Turma da Mônica Jovem aproveita não só o traço do mangá, mas o estilo de histórias seriadas, criando um apelo colecionista típico dos leitores desse gênero de HQ. Com aventuras mais sofisticadas, traz uma releitura de todos os personagens do universo da turma, desde Anjinho até Chico Bento, em versões teens cheias de referências ao universo contemporâneo dos jovens. Hoje, o título é o mais vendido no Ocidente, com média de 600 mil cópias por edição, ultrapassando até mesmo gigantes como Marvel e DC Comics. Nos EUA, um gibi do Homem-Aranha não chega a 200 mil. Segundo dados da Mauricio de Sousa Produções, as revistas das diversas linhas com os diferentes personagens

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RENOVAÇÃO Piteco, por Shiko, e Astronauta Magnetar, por Danilo Beyruth, são algumas das graphic novels lançadas pela Mauricio de Souza Produções ESTREIA Primeira publicação de Mônica foi na edição de 11 de fevereiro de 1963 da FSP

vendem 30 milhões de exemplares por ano. Outro cálculo estima que 1 bilhão de revistinhas foram comercializadas desde 1970, quando a primeira revista da Mônica foi às bancas. Falar a um público tão amplo gera a responsabilidade de se manter atualizado frente às demandas dos leitores. “Nossa preocupação é sempre estar antenados com o leitor. Atualizados com a linguagem e os sonhos de crianças e jovens num mundo que realmente muda a cada instante. O que nos ajuda muito é essa interatividade que a internet nos proporciona e também a percepção dos assuntos mais comentados”, diz Mauricio.

RELEITURA

Foi essa mentalidade de Maurício de Sousa que proporcionou mudanças editoriais ousadas para a Turma da Mônica nos últimos anos. Em 2009, com o mote do aniversário de 50 anos de carreira, a editora Panini e a Mauricio de Sousa Produções lançaram uma obra comemorativa que convidou 50 novos quadrinistas para criar versões autorais dos personagens das HQs. O livro MSP 50 - Mauricio de Sousa por 50 artistas fez sucesso e acabou dando origem a uma trilogia, com MSP + 50, em 2010 e MSP Novos 50, no ano seguinte. Além de artistas que são promessas no cenário de quadrinhos, como Gustavo Duarte, Raphael Salimena

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e Vitor Cafaggi, os livros trouxeram convidados renomados como Ziraldo, Laerte, Mozart Couto, Angeli e Fábio Moon. Os pernambucanos Laílson Cavalcanti e Mascaro participaram da homenagem. Mais do que chamar atenção para as personagens, os livros mostraram que Mauricio segue como autor relevante para diversas gerações de artistas. “Ter 150 desenhistas cuidando com carinho dos meus personagens é algo que comove”, comenta. Ao lado da Turma da Mônica Jovem, essa trilogia de livros-homenagem

foi um marco para definir o papel importante que Mauricio de Sousa tem hoje para os quadrinhos nacionais. “Todo mundo leu Mônica em algum momento da vida. Esses personagens são parte da nossa cultura”, diz Sidney Gusman, diretor editorial da Mauricio de Sousa Produções e um dos arquitetos desse novo panorama da editora. Foi ele quem teve a ideia dos MSPs. “Antes desses projetos que recriaram os personagens da Turma da Mônica, o mercado atual enxergava Mauricio de Sousa como uma pessoa distante, um

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empresário bem-sucedido que vivia do conforto do sucesso alcançado”, explica Gusman. “A distância acabou. Acredito que hoje ele seja um nome cult.” Pelo impacto que tem na cultura popular e pelo alcance de várias gerações, o pai de Mônica é comparado aos cartunistas Will Eisner e Osamu Tezuka, pela influência que suas obras tiveram para os EUA e Japão, respectivamente. Os livros do MSPs acabaram se tornando catálogos da atual produção de quadrinhos no Brasil. Revelaram nomes e levaram o trabalho de veteranos para um público amplo. Por conta da boa acolhida, em 2012, foi dado início ao projeto das graphic novels assinados por artistas. O primeiro, Astronauta - Magnetar, de Danilo Beyruth, foi a HQ nacional mais vendida do ano e esgotou com apenas uma semana em bancas. A trama aborda questões filosóficas como a solidão, ao mesmo tempo em que faz referência aos quadrinhos infantis da Turma. O paraibano Shiko foi outro artista convidado a ter um álbum autoral. “Eles enxergaram meu estilo de desenho, bastante apropriado ao personagem Piteco, que se passa na pré-história. Estou muito empolgado e devo passar todo o primeiro semestre me dedicando a finalizar esse projeto”, disse. O livro está programado para novembro. Antes, sairá o Turma da Mônica: ciclos, assinado pelos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, considerados revelações dos quadrinhos nos últimos dois anos. Para comemorar o aniversário de 50 anos de Mônica foram pensados relançamentos históricos, duas exposições, peças de teatro, um novo site, selo dos Correios, série de TV, além de novos licenciamentos, que incluem até mesmo uma rede de fast-food e uma doceria (tino comercial sempre foi o forte do quadrinista). Pai ciente do sucesso da cria, Mauricio de Sousa investiu R$ 5 milhões para promover o cinquentenário em 2013. Depois de atingir a puberdade e renascer como ícone cult em HQs autorais, Mônica se prepara para chegar à maioridade. O autor revelou que planeja uma versão adulta para 2016. Será um passo importante para a dentuça de vestido vermelho, que nasceu como coadjuvante de Cebolinha e alcançou sucesso como poucos personagens no país.

AUTOR O REPÓRTER POLICIAL QUE CRIOU A MENINA DENTUÇA Mauricio de Sousa era um repórter policial de 27 anos, quando pediu uma chance de mostrar uma proposta de tira de humor para a redação do jornal em que trabalhava, a Folha de S.Paulo. Cebolinha teve sua estreia no dia 3 de março de 1963 e foi uma aposta do periódico, contando inclusive com anúncio na primeira página, em fevereiro do mesmo ano, antecipando a novidade. Em seu primeiro quadrinho de vida, Mônica, arretada da vida, desfere uma potente coelhada na cabeça do dono da tira. Segundo o criador, o sucesso da menina dentuça com o público foi tão grande, que chegaram muitos pedidos para que ela ganhasse mais espaço. Maurício se inspirou em sua filha, Mônica Spada e Sousa, então com três anos de idade. Ele se apropriou dos traços mais marcantes, como a estatura baixa, os dentes grandes e as gordurinhas, além do fato da menina carregar um coelho de pelúcia velho e surrado. Hoje, a Mônica real trabalha junto com o pai como diretora comercial e tem dois filhos, uma

moça de 30 anos e um rapaz de 27. Depois de ficar conhecida nas tiras de Cebolinha, a personagem ganharia sua primeira revista em 1970. Outros filhos – são 10 ao todo, de quatro casamentos – também ganharam versões de papel. Magali, Marina, Nimbus (inspirado em Mauro), as gêmeas Vanda e Valéria, Dr. Spam (Mauricio Spada) e Do Contra (Mauricio Takeda). Mauricio, que morava em São Paulo nos anos 1960, foi ao Rio apresentar sua criação às grandes editoras da época, como a Ebal, que alegou não ter interesse por ser um material “muito paulista”. Na Rio Gráfica, futura Globo, falaram: “Deixa aí que, quando tiver espaço em alguma revista do Mandrake ou Fantasma, a gente usa”. Chegou a trabalhar com Ziraldo na revista O Cruzeiro, mas voltou para São Paulo. Em 1970, conseguiu juntar uma equipe para lançar a Mônica pela editora Abril. O primeiro número foi lançado com tiragem de 200 mil exemplares e tornou-se um sucesso. A personagem e sua turma foram levados para o cinema em 1982 e ganharam um parque temático em 1992. Nesses 50 anos, o traço mudou, o temperamento forte ficou mais brando e a heroína abordou temas como inclusão social, preconceito, direitos da infância e adolescência, pobreza. Caso raro de protagonista feminina, ela conseguiu atravessar séculos com um empoderamento ainda pleiteado por muitas mulheres. PAULO FLORO

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História

BRASIL Eternamente redescoberto

1 MONSTROS O fantástico medieval relacionado a seres que habitavam os mares foi imputado ao Novo Mundo

Descobrimento do país concorreu para influenciar novas ideias, que se reverberaram num dos mais cruciais episódios políticos mundiais, como aponta O índio brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso Arinos TEXTO Gilson Oliveira

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Zumbi, em cuja data de morte, 20

de novembro, se comemora o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares; a feijoada, tida como um dos mais típicos pratos da culinária brasileira, é, na verdade, de origem europeia, até porque, como diz o folclorista Luiz da Câmara Cascudo, os escravos – aos quais se atribui sua invenção – não gostavam de misturar feijão com carnes... Essas são apenas algumas das muitas e polêmicas afirmações contidas no livro Guia politicamente incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, publicado pela editora Leya e um dos mais bem-sucedidos exemplos recentes do chamado “revisionismo histórico”, que tem como objetivo reinterpretar aspectos da chamada “história oficial”. A qual, segundo essa corrente, é caracterizada pela parcialidade e mistificação dos fatos. “A História é uma história”, já dizia Millôr Fernandes. Um estudo que pode ser considerado dos mais antigos, originais e ousados projetos revisionistas já empreendidos no Brasil é O índio brasileiro e a Revolução Francesa – as origens brasileiras da teoria da bondade natural, de Afonso Arinos de Melo Franco, lançado em 1937 e reeditado em 1976 e 2000 – essa última edição pela Topbooks, ensejada pelas comemorações dos 500 anos do Descobrimento (termo condenado pelos revisionistas, por expressar uma visão exclusivamente europeia e desconsiderar que, há séculos, a terra era habitada por vários povos indígenas). Hoje um pouco esquecido como escritor, mas lembrado como o senador que transformou a discriminação racial em crime – através da “Lei Afonso Arinos” –, o autor, como diz o próprio título da obra, se propõe a fazer um

revisionismo em escala universal, creditando aos nossos indígenas grande influência naquele episódio que, com o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, mudou radicalmente o curso histórico da humanidade em suas dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais. Livro de história ou de ficção? Historiadores eminentes, José Murilo de Carvalho e Alberto Venancio Filho não têm a mínima dúvida: para o primeiro, a obra “é erudita, original e brilhante análise do impacto da imagem do índio

O lema “liberdade, igualdade e fraternidade” deve algo à forma de agrupamento social dos índios do Brasil brasileiro no imaginário, na literatura e no pensamento europeu dos séculos XVI, XVII e XVIII. (...) Índio fazendo europeu se repensar”; já o segundo afirma que o livro é uma “contribuição singular da cultura brasileira para a história universal das ideias”.

MONSTROS & CIA

Embora não seja ficcional, a obra começa falando dos monstros que habitavam o Brasil no início do século 16. Homens sem cabeça e com os olhos nos ombros, seres que tinham os pés voltados para trás e dotados de oito dedos, gigantes ferozes... “Sejam quais forem as causas do fenômeno, inegável é que para o Brasil convergiram os mitos dos homens monstruosos”, observa Afonso Arinos, acrescentando: “A mitologia, tão ao sabor do espírito imaginativo, ingênuo e misterioso da Idade Média, encontrava, enfim, a sua pátria de eleição. (...) saíam (os

monstros) das páginas dos ‘bestiários’ da Idade Média e vinham compor a zoologia fantástica do Brasil”. De todos os mitos importados, o que exerceu mais influência em terras brasileiras foi o das Amazonas, mulheres guerreiras originárias da mitologia da Grécia Antiga, que terminaram batizando um rio e uma região do norte do país. Essas figuras belicosas, cujo nome, em grego, significa “sem seio” – porque retirariam uma dessas partes do corpo para melhor usarem o arco e a flecha – chegaram tão fortemente ao Brasil que, como muitos outros exploradores, o espanhol Francisco de Orellana disse ter lutado com elas na hoje Floresta Amazônica. Os principais responsáveis por essas imagens do país entre os europeus foram os primeiros viajantes e cronistas que o visitaram e se tornaram autores de relatos fantásticos, provocando profundo eco entre os habitantes do Velho Mundo. Alguns livros viraram verdadeiros best-sellers internacionais, com edições e traduções para diversas línguas. Uma obra célebre inspirada nesses diários dos viajantes é Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. Na verdade, filhos da mesma época e ambiente cultural, muitos navegantes acreditavam que o que escreviam era fruto de experiências concretas. “O ilustre português Dom Francisco Manuel de Melo” – diz Arinos – “dá bem a medida desse estado de espírito dos navegantes lusos, quando relata o descobrimento da Ilha da Madeira, na África, em meados do século 15, durante a qual os portugueses estavam tão preparados para se defrontarem com duendes e fantasmas, que, ao virem a terra, viram também, por entre a bruma, ‘gigantes armados, de temerosíssima grandeza’”. Só bem depois perceberam tratar-se de grandes rochas que avançavam pelo mar.

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2 COLONIZADOS Xilogravura de Jean de Léry, cuja obra influenciou de Thomas Morus a Jean-Jacques Rousseau 3 ROUSSEAU Tese do “bom selvagem” está na essência das obras do filósofo 4 MONTAIGNE Após assistir a uma exibição de índios brasileiros, passou a exaltar o espírito de igualdade deles

CON TI NEN TE

História

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O BOM SELVAGEM

Da mesma forma que importou monstrengos para todos os gostos, o Descobrimento trouxe para morar no Brasil seres por demais felizes, que viviam numa espécie de Idade do Ouro, período em que, segundo a mitologia grega e também as tradições religiosas do Oriente, a humanidade estava no início de sua existência e, por viver conforme as leis da natureza, levava uma vida de características utópicas, desfrutando de total paz, harmonia e prosperidade. Quem eram

esses seres? Ora, os nossos índios... Foi assim que os europeus, ainda no século 16, passaram a vê-los. A “culpa”, mais uma vez, era dos cronistas-viajantes, entre os quais devem ser incluídos Pero Vaz de Caminha e Américo Vespúcio, que transformaram o índio num eloquente exemplo de que o “bom selvagem” ainda existia, e nas terras recémdescobertas. “A questão para os viajantes não era tanto de descrever com exatidão os hábitos e costumes dos selvagens, mas de observar o

quanto esses hábitos e costumes eram diferentes dos europeus e o quanto eles eram mais sábios e mais venturosos”. Com os anos, essa visão empolgaria até figuras como Michel Montaigne e Jean-Jacques Rousseau, dois dos mais influentes pensadores modernos. O pano de fundo ideológico dessa imagem idealizada dos índios brasileiros, ressalta Arinos, é o Renascimento, “que desencadeou uma luta pela afirmação do homem, pela emancipação do indivíduo da tutela temporal do Estado e espiritual da Igreja. (...) Não é, portanto, de se admirar que a imaginação dos homens daquele tempo, sujeitos a essas contingências e restrições eternas, se escaldasse ao pensar que havia homens libertos de semelhantes freios. Não tardou, assim, que uma falsa concepção de estado natural se apoderasse da Europa”. Nesse contexto, a tese do “bom selvagem” era estrategicamente importante, até por servir de contraponto às ideias de Thomas Hobbes, um dos ideólogos do absolutismo monárquico, regime que concentrava todos os poderes nas mãos do rei. Para o autor de Leviatã, o ser humano é naturalmente mau e, por isso, para que seja viável a vida em sociedade, é necessário um sistema de forças que controlem o seu instinto perverso. “O homem é o lobo do homem”, diz ele em uma de suas mais famosas frases, inspirada num trecho da Bíblia. Na contramão dessas teorias, fortaleceu-se a da “bondade natural” – fermentada pela sedutora ideia de comunismo primitivo. O cronista português Pero de Magalhães Gândavo foi um dos que chamaram atenção para a inexistência de propriedade privada entre nossos indígenas: “Em cada casa, eles vivem juntos, em harmonia. São de tal modo amigos uns dos outros, que

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aquilo que pertence a um pertence a todos”. Profunda seria a repercussão de depoimentos como esse junto aos europeus, à época mergulhados em guerras religiosas responsáveis pelo assassinato de milhares de pessoas. Mas, por que os olhos europeus se encantaram mais com os índios brasileiros, se em outros lugares da América havia povos bem mais evoluídos, como os maias, os astecas, os incas e os indígenas norte-americanos? Exatamente por isso: os nativos daqui eram totalmente primitivos, possuindo ainda um charme todo especial, que era o de, tanto homens quanto mulheres, viverem nus, estimulados pelo clima tropical. Essa nudez logo chegaria à poesia francesa, inspirando nomes como Pierre de Ronsard, que, em versos, disse: “nu de vestes tanto quanto é de malícia”.

MADE IN BRAZIL

Levados para a Europa desde antes de 1500 – “Colombo foi quem iniciou esse estranho turismo”, comenta Arinos –, como prova de

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Os europeus se encantaram com os índios do Brasil por serem mais primitivos do que os encontrados em outras regiões que efetivamente existiam, como escravos e, no caso das mulheres, para atender a ardentes caprichos sexuais, os índios começaram a ser exportados, sobretudo para satisfazer a grande curiosidade europeia. Chegaram a superar, em termos de prestígio, até mesmo os macacos e papagaios, que também desfrutaram do maior ibope na Europa, sendo ostentados, inclusive, em salões reais. Os índios brasileiros conseguiram se inserir até na arquitetura da França, como demonstra a Igreja de San Jacques, em Dieppe, na qual um friso os representa em diversas atividades; na língua (e não só na francesa), tendo o historiador Paul Gaffarel registrado a incorporação de palavras como tapioca

e caju; e até na moda de um país que, séculos depois, começaria a ditar as tendências nessa área. Nesse sentido, existe um depoimento do padre e cronista Jean de Léry, do século 16, de que um penteado denominado raquette teria sido copiado, pelas mulheres francesas, das índias brasileiras. Dado importante sobre Léry é que ele, baseado nas vivências que teve no Rio de Janeiro – onde chegou integrando a expedição de Villegagnon, fundador da França Antártica –, escreveu um dos mais famosos relatos da época imediatamente posterior ao Descobrimento, História de uma viagem feita à terra do Brasil, que, segundo as pesquisas de Arinos, teria, de forma direta e indireta, influenciado uma série de autores, de Thomas Morus a Rousseau – muitos dos quais teriam até transcrito trechos da obra. Mas, voltando aos nossos índios, um dos momentos de maior glória que eles tiveram se deu em 1550, na francesa cidade de Rouen, quando protagonizaram um megaespetáculo montado para o rei Henrique II e sua comitiva. Para isso, instalou-

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se um cenário em que pudessem ser representadas cenas da vida do indígena, com as árvores existentes no local ornamentadas com frutos artificiais que lembrassem os brasileiros, saguis, papagaios e outros animais espalhados por vários pontos, tabas indígenas e, claro, índios e índias nus por tudo o quanto é lado (alguns, representados por atores franceses). Exibindo como ponto alto um combate simulado entre tribos rivais, o show repercutiu tanto na França, que, quando os índios chegaram a Paris, a população ficou tão enlouquecida, que o rei teve de mandar tropa armada para acalmar a multidão. Mas o principal efeito da apresentação em Rouen talvez tenha se dado no espírito de Montaigne, uma das pessoas que a assistiram. Tempos depois, o autor de Ensaios, demonstrando que a ideia de bom selvagem começava a ganhar perfil de doutrina política, passa a louvar os indígenas, por serem um povo que não faz uso da “servidão humana, da riqueza ou da pobreza”. Chega a afirmar que, em Rouen, uma das coisas que mais o marcaram foi saber que um

índio, ao ser indagado sobre o que mais o impressionara na França, respondeu que fora ver algumas pessoas com muitos bens e outras sem nada. O selvagem ainda teria dito que, em situações assim, os miseráveis deveriam pegar os ricos pelo pescoço e botar fogo em suas casas. Para muitos, o escritor estava colocando palavras suas na boca do indígena...

UTOPIAS NORTEIAM

“Apaixonados leitores dos livros de viagens, e o confessam em suas obras.” É assim que Arinos define os grandes autores do século 16, como o próprio Montaigne, Erasmo de Rotterdan, Thomas Morus e François Rabelais, que, impossibilitados de criticar abertamente as injustiças do seu tempo, por causa da severa vigilância da Igreja e do Estado, “começaram a fazer insidiosas descrições de comunidades ideais, que viviam num verdadeiro reino de venturas, exatamente porque adotavam e praticavam instituições que eram opostas às vigentes nos países civilizados da Europa”. Um dos mais famosos exemplos desse tipo de obra é Utopia, de Morus, que concorreria até para o surgimento de um gênero literário – a literatura utópica. Considerado por Arinos um dos “mais terríveis

A TEMPESTADE Na peça, Shakespeare contesta a tese do “bom selvagem” na figura de Calibã

libelos revolucionários do século 16, influenciando até na formação da mentalidade que precedeu à Revolução Francesa” (como demonstra o “prefácio subversivo” de uma edição publicada em 1789, ano do episódio), o livro teria sido influenciado, na parte geográfica, pelas cartas de Américo Vespúcio. Comparando uma série de informações, Arinos chega a uma surpreendente conclusão: a ilha onde Morus instalou seu mundo utópico foi inspirada em Fernando de Noronha(!). Claro que também surgiram potentes vozes totalmente contrárias à tese do “bom selvagem”, como William Shakespeare, que aproveita a peça A tempestade – ambientada em uma ilha onde foram parar vários náufragos – para propagar que os selvagens eram maus por natureza. Visando dar “sustança” à sua opinião, Shakespeare coloca na obra a figura de Calibã, que seria uma variação de Canibal, espécie de demônio que habita a ilha (por coincidência ou não, no século 16, o Brasil foi chamado também de “Terra dos Canibais”). Outro grande adversário da tese era Voltaire, autor de Cândido ou o otimismo (obra na qual Arinos identifica várias paisagens, plantas e animais típicos das terras brasileiras), que usou sua cáustica irreverência para desancá-la, talvez por constituir uma das bases teóricas do seu grande rival, Rousseau. Analisando os livros do “filósofo de Genebra”, Voltaire saiu-se com tiradas do tipo: “Ninguém pôs tanto engenho em querer nos converter em animais. Ao ler suas obras, dá vontade de andar sobre quatro patas”. A despeito das gargalhadas voltairianas, livros como O contrato social e Discurso sobre a desigualdade se incorporaram às mensagens dos revolucionários. Incontestável demonstração histórica é que, vitoriosa a Revolução Francesa, o corpo de Rousseau – falecido em 1778,onze anos antes da eclosão dos combates – foi trasladado para o Panthéon, monumento no qual estão guardados os restos mortais de alguns dos maiores heróis da França e da humanidade.

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KARINA FREITAS

BRASIL O jeitinho americano de ver o “país do futebol”

Jornalista investiga a imagem nacional nos EUA, num momento marcado pela sua estabilidade econômica frente às atuais crises internacionais TEXTO Carolina Leão

Quem viveu sua juventude nos anos 1970 e 1980 certamente se lembra do melancólico slogan “O Brasil é o país do futuro”. A frase, que hoje pode até não ter o mesmo impacto nas novas gerações, é, na verdade, uma publicidade espontânea, disseminada com a obra do vienense Stefan Zweig. Um clássico sobre a nação brasileira, editado nos anos 1940, cuja fama foi alcançada na década seguinte, transformando-se numa espécie de codinome/mito ao longo da história. O título do livro condensava um

sentimento cultural compartilhado pela elite e classe média brasileira, que, 70 anos após o lançamento de Brasil, um país do futuro, pôde abandonar a melancolia e comemorar o feito. O Brasil deixou de ser promessa e virou milagre. É o que mostra o jornalista Daniel Buarque, em Brazil – um país do presente: a imagem internacional do “país do futuro” (Editora Alameda). O clima atual é, sem dúvida, de euforia. A economia é demarcada como turning point dessa nova realidade, alcançada após décadas de inflação e

medidas emergenciais. Buarque expõe, através de depoimentos de experts em economia internacional, como e por que o Brasil se transformou num dos principais destaques da mídia americana, visto com empolgação por líderes políticos e empresários, e comemorado como esperança global. Com um corpus de investigação objetivo, formado por índices estatísticos e pela análise do jornalismo especializado norte-americano, o livro traz uma releitura da obra de Zweig, à luz de uma interpretação contemporânea, influenciada pelo clima otimista do momento. A tarefa não é fácil. Pela própria contingência dos temas atuais, é sempre mais delicado lançar-se numa interpretação sobre o que vivenciamos e experimentamos. Além disso, o Brasil tem uma vasta e expressiva literatura analítica sobre a sua formação e origem, que se caracteriza pelos aspectos negativos: os entraves ao nosso desenvolvimento social. Obras interpretativas com as quais intelectuais procuraram desvendar as nossas mazelas sociais e ajudaram a construir a própria identidade nacional,

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KARINA FREITAS

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caso, por exemplo, de Gilberto Freyre ou Roberto DaMatta, só para citar alguns que são utilizados em obras similares a de Daniel Buarque. O seu livro, porém, não parte de um recorte teórico tradicional. Ele obtém sua materialidade nas fontes midiáticas atuais, e na própria atuação do jornalista em seu campo de trabalho. Para compor a pesquisa, realizada em dois anos, ele viajou por 10 estados americanos, entre eles, a cosmopolita Nova York e conservadoras cidades do sul. O que traz um olhar diferenciado do campo acadêmico, no qual os temas mais espinhosos sobressaem-se. Como referência, o autor utiliza a maior potência econômica do mundo: os EUA. A escolha, explica, veio do fato de os Estados Unidos também pautarem a forma de pensar do Ocidente. Os EUA são verdadeiros antagonistas do Brasil na história da colonização das Américas. Por lá, fez-se valer a lei do Destino Manifesto, pela qual se acreditava que a colônia e seus colonos tinham sido escolhidos por Deus para triunfar na nova terra, expandindo sua visão de mundo e religião pelo território. Max Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo, demonstra com precisão o êxito dessa empreitada. No Brasil, ao contrário, a ocupação se deu em meio ao espírito aventureiro, bem explica Sergio Buarque de Holanda, de milhares de portugueses que deixaram o velho continente para tentar enriquecer em terras brasileiras, extraindo vorazmente seus recursos

naturais. Além disso, também coloca Buarque de Holanda, o trabalho, tido como graça divina pelos protestantes, por muito tempo foi visto como um fardo no Brasil; afinal, para a aristocracia europeia, a riqueza era uma herança genética e não um esforço de trabalho.

RECURSOS NATURAIS

No entanto, ironicamente, o Brasil, ao contrário dos EUA e de outras potências econômicas mundiais, goza de prestígio internacional por sua natureza generosa e cordialidade. Longe de grandes

Na América Latina, o Brasil é observado com suspeita, como uma nova versão de “imperialismo regional” epidemias e catástrofes, livre de conflitos bélicos. “A interpretação externa é de que a natureza é parte integral do país e precisa ser levada em consideração neste momento em que o Brasil surfa numa perspectiva de crescimento e de consolidação da sua força global”, comenta o autor. “Os recursos naturais faziam parte da ideia de ‘país do futuro’ apresentada por Zweig, sim, assim como a estrutura social que encontrou no país durante a guerra, a ‘cordialidade’ de um povo que não

tinha um perfil bélico; a questão racial, muito do que ainda faz parte da interpretação internacional a respeito do Brasil”, completa. Apesar de centralizar sua discussão na forma como a América do Norte vê o Brasil e ajuda a fomentar o mito que o cerca, Daniel não encontra diferenças significativas em como os EUA e a Europa observam e interpretam esse novo Brasil. Ele cita, por exemplo, recente pesquisa do King’s College, em Londres, cujo resultando aponta que os velhos estereótipos acerca do “país do Carnaval, samba e futebol” ainda ocupam o imaginário estrangeiro, mesmo que tenham perdido espaço para temáticas mais sérias, como a estabilidade econômica e política. “Quando as economias dos países desenvolvidos entraram em colapso e o Brasil conseguiu manter-se ‘de pé’ em meio ao turbilhão internacional, ficou claro para o Ocidente que o país merecia mais atenção”, coloca. O que pode ser também uma abordagem interessante, lembra Daniel, é a opinião dos países menos desenvolvidos sobre o Brasil. “Ao contrário da euforia que percebo em grande parte do mundo desenvolvido, países menos desenvolvidos aparentam ter uma visão diferente. Já li artigos publicados em lugares como o Paraguai e a Bolívia em que o Brasil é observado com suspeita, como sendo uma nova versão de ‘imperialismo regional’.”

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Sonoras STRAVINSKI Justa homenagem a uma peça irrequieta

Marlos Nobre compõe obra que celebra o centenário de lançamento de A sagração da primavera, marco da música moderna, composta para ser dançada TEXTO Josias Teófilo

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A temporada de 2013 da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo comemora os 100 anos de A sagração da primavera, de Igor Stravinski, obra-chave da modernidade na música. O título da temporada, concebida pelo diretor artístico da Osesp, Arthur Nestrovski, é Sagrações da Primavera e se relaciona à obra do compositor russo de formas distintas, inclusive com a própria composição tocada na versão para dois pianos e na sua original. Uma delas é a encomenda de uma homenagem musical à Sagração, feita ao compositor pernambucano Marlos Nobre. A Sacre du sacre opus 118, peça de 16 minutos para orquestra sinfônica, cuja estreia se deu no último dia 7 de março, na Sala São Paulo, casa da orquestra.

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A encomenda da Osesp – uma das principais orquestras da América Latina – a Marlos Nobre demonstra, antes de tudo, a vitalidade desse compositor de 74 anos, que chega à 118ª obra, esta Sacre du sacre opus 118, “compondo como nunca”, como ele diz. A encomenda revela, também, a afinidade entre a obra do pernambucano e a do russo Igor Stravinski. Para entender essa afinidade é preciso, antes, entender A sagração da primavera como peçachave da música do século 20.

A SAGRAÇÃO

O famoso escândalo da estreia da peça de Stravinski se deu no dia 29 de maio de 1913, no Théâtre des ChampsElysées, em Paris. A sagração da primavera (Le sacre du printemps) foi o terceiro balé encomendado pela companhia Ballet Russe, de Serguéi Diáguilev, a Igor Stravinski, logo depois de O pássaro de fogo (1910) e Petrúschka (1911), e ambas tiveram grande sucesso. Como descreve a Robert Craft (Conversas com Igor Stravinski), as respostas ruidosas da plateia à montagem começaram no início da peça. Quando das reações mais fortes, Stravinski saiu da plateia e foi aos bastidores ficar ao lado de Nijinski, o coreógrafo. “Ainda me parece quase incrível que tenha podido, efetivamente, levar

A interpretação de Nobre para a peça de Stravinski traz as dissonâncias e polirritmias da composição original a orquestra até o fim”, disse Stravinski, referindo-se ao maestro Pierre Monteux, que regeu naquela noite. O público ficou chocado com a pontuação fortemente rítmica, o cenário primitivo, as danças violentas representando ritos de fertilidade, e reagiu brutalmente. Além disso, a música apresentava dissonâncias, polirritmias e uso bastante original dos metais e dos sopros, especialmente o fagote, cujo solo toca a melodia mais característica. Depois do ocorrido, sentiram-se todos, inclusive Stravinski, “excitados, zangados, desgostosos e… felizes”. O escândalo deu tremenda publicidade à obra, a ponto de Diáguilev dizer: “Era exatamente o que eu queria”. Curiosamente, a obra mais famosa de Igor Stravinski é programática, sendo boa parte da sua produção posterior radicalmente antiprogramática, ou seja, dissociada de ideias e imagens extramusicais. Com efeito, a música

de Stravinski se opõe fortemente ao romantismo na música, especialmente a Richard Wagner. Depois dA Sagração, o compositor passou por várias fases: escreveu música chamada de “neoclássica”, como Jeu de cartes, interessou-se pelo serialismo e, motivado pela sua descoberta da religião católica em 1925, compôs música sacra, parte importante do seu repertório – como a Sinfonia dos Salmos, a Missa, o Canctum sacrum, os Threni. Ainda na entrevista a Craft, perguntado se seria preciso ser crente para compor formas musicais sacras, ele respondeu: “Evidentemente. E não um crente apenas em ‘figuras simbólicas’, mas na pessoa da Senhor, na pessoa do Diabo, e nos milagres da Igreja”. Entretanto, A sagração da primavera, obra profundamente pagã, permaneceu sendo sua composição mais influente e conhecida do século 20, exatamente pelo uso tão original de dissonâncias, da polirritmia, do predomínio do ritmo sobre a melodia e a harmonia.

MARLOS NOBRE

Nascido no Bairro de São José, numa terça-feira de Carnaval, em 1939, Marlos Nobre é, na atualidade, o compositor brasileiro de música de concerto mais premiado internacionalmente. Ganhou, por exemplo, o VI Prêmio

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Página anterior 1-2 ESTREIA Apresentação da Sacre du sacre aconteceu na Sala São Paulo, com interpretação da Osesp para a obra de Marlos Nobre (de pé, na foto superior) Nestas páginas 3-4 MONTAGENS Criada em 1913, sob encomenda para o Ballet Russe, A sagração da primavera tem sido interpretada por companhias mundiais

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Tomás Luís de Victoria, na Espanha, um dos mais importantes do mundo da música de concerto. No ato da entrega da premiação, o júri destacou “a transcendência e projeção internacional de sua obra, assim como a originalidade do seu pensamento estético”. A Continente entrevistou Marlos Nobre no Hotel Tivoli, em São Paulo, dois dias antes da estreia da sua obra pela Osesp. A primeira pergunta era, naturalmente, sobre sua relação com A sagração. “A descoberta de Petrushka, O pássaro de fogo e A Sagração da primavera foi o maior impacto musical que recebi e praticamente me fizeram decidir pela composição. Tenho certeza de que, ao descobrir Stravinski e sua música, descobri a mim mesmo.” Com uma robusta cabeleira branca que lembra os compositores do passado, Nobre sentou-se à mesa espelhada do hall do hotel, circulado por um exuberante jardim que remetia, curiosamente, à primavera. Como foi a descoberta da vanguarda da música no Recife parecia também uma questão importante de sua formação. “Naquela época (estou falando de 1956/57), no Recife, a Orquestra Sinfônica do Recife não podia apresentar essas peças. Mas, por um feliz acaso, tornei-me amigo de um violinista da orquestra, Cabral de Lima, que tinha

a mais completa discoteca de música moderna do Brasil! Na sua casa, ouvi pela primeira vez, fascinado, Debussy, Ravel, Prokofiev, Bartok, Hindemith, Stravinski, Schoenberg, Berg, Webern, Messiaen, Stockhausen. O homem tinha tudo!”, recordou Marlos. Além disso, Cabral de Lima se correspondia com ninguém menos que Olivier Messiaen, autor do Quatour pour la fin du temps. O mais curioso do relato de Marlos Nobre ainda estava por vir: “Os dois principais elementos que tanto chocaram o público parisiense naquela época, a polirritmia, ou seja, a confluência de diferentes métricas no ritmo, e o uso tão saliente dos metais, eu já conhecia do maracatu e do frevo, desde criança”. De modo que foi a percussão que o levou a Stravinski. Esses dois interesses, a música popular e a de concerto universal, fundiram-se na obra de Marlos Nobre. Inquirido sobre se o mito está no Sacre du sacre assim como na obra de Stravinski, que a compôs a partir da mitologia eslava, pagã, o compositor afirmou: “O mito existe, sim, também neste meu Sacre du sacre e esse mito pagão, popular, forte, essencial, que vem do maracatu, transformei em minha mente tal como Stravinski fez com a mitologia russo-eslava. As origens populares do Brasil e da Rússia são, a

meu ver, muito similares. Tal como a Rússia, o Brasil é um país imenso, onde há diversas formas de manifestações populares. A riqueza da Rússia e do Brasil na música vem, portanto, da assimilação dessas formas profundas do povo russo, misturados com a lição da música do Ocidente”.

CONCERTO

A Sala São Paulo faz parte da Estação Júlio Prestes, centro de São Paulo, e guarda a dignidade eclética do prédio que a envolve. O seu interior, de acústica impecável, tem um tom amarelo-alaranjado – destacam-se as imensas pilastras coríntias e o teto, com placas que se movem de acordo com a necessidade acústica da apresentação. O concerto foi regido pela maestro associado da orquestra, Celso Antunes. Antes da apresentação, era possível ver, no palco, os experientes músicos do naipe de percussão da orquestra ensaiando suas respectivas partes, indicando repertório difícil pela frente – e ensaiavam exatamente o Sacre du sacre. O repertório parecia incorporar a fala de Marlos Nobre sobre a riqueza das formas populares do Brasil e da Rússia. A apresentação começa com o Sacre du sacre. Em seguida, o Choro para piano e orquestra, de Camargo Guarnieri, inspirado nos Choros de Villa-Lobos; depois passa ao Concerto Nº 2 para piano, de Dimitri Shostakovich e, por fim, a Sinfonia Nº 2, de Alexander Borodin. A primeira obra do concerto foi também a mais impactante: o Sacre du sacre fez, de fato, a Sala São Paulo tremer – assim como se descrevem shows de rock. Marlos Nobre utiliza todos – ou quase todos – os instrumentos de percussão disponíveis a uma orquestra, inclusive o sino. Cita métricas, ritmos e o famoso solo de fagote dA sagração. Como não poderia deixar de ser, toma partido de dissonâncias e radicaliza a polirritmia usada por Stravinski. Sim, é possível ouvir no Sacre du sacre a força rítmica do maracatu, não por qualquer referência musical direta, mas por algo que vem de dentro e cuja força perpassa toda a obra. A escrita sinfônica do Sacre du sacre é admirável e chocante, capaz de produzir, como produziu, uma funda impressão no público – de fato, só uma obra visceral poderia homenagear dignamente A sagração da primavera.

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JOSIAS TEÓFILO

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Entrevista

MARLOS NOBRE “A SAGRAÇÃO FOI O MAIOR IMPACTO MUSICAL DE MINHA ADOLESCÊNCIA” CONTINENTE Como surgiu o convite para a homenagem aos 100 anos dA Sagração? MARLOS NOBRE Surgiu, no ano passado, do diretor artístico da Osesp, Arthur Nestrovski. Minha relação com a Osesp é longa, pois, além de outra encomenda importante em 2009 (quando escrevi o meu Concerto nº 2 para percussão e orquestra), tive praticamente todas as minhas obras orquestrais tocadas por ela. Portanto, a orquestra está ligada a mim e conhece o meu estilo de longa data. CONTINENTE No meio musical recifense da época da sua formação como compositor, havia espaço para a vanguarda da música?

MARLOS NOBRE Nessa época, não havia espaço nem no Conservatório, nem junto aos meus professores de piano e de teoria, apesar da abertura de espírito do Padre Jaime Diniz. Ele me dizia ter informações, mas não tinha aprofundado ainda esse tema. Assim, o espaço surgiu de colegas músicos e intelectuais que eram amigos no Recife na época, e, como disse, a casa do Cabral de Lima, em Casa Forte, para a qual convergiam todos nós, jovens. Tinha um colega, chamado Wener Tiburtius, filho de alemães, que somente admitia música moderna, de vanguarda. Com ele, eu lia as partituras que chegavam às nossas mãos, sobretudo Hindemith (Ludus tonalis, por exemplo), Messiaen, Ravel, Prokofiev. E esse nosso grupo pressionava, por exemplo, Vicente Fittipaldi, diretor da Orquestra do Recife, a programar música moderna. Era uma época fascinante de descobertas e, nesse nosso mundo, não havia espaço para música do passado, como chamávamos, com a petulância e a autossuficiência próprias

da juventude. Mas isso era bom, era um sopro de renovação no ambiente muito provinciano do Recife musical daquela época, que somente se interessava pelos recitais de piano, com o mesmo repertório surrado de sempre. CONTINENTE Além de Stravinski, existe Pernambuco no Sacre du sacre? MARLOS NOBRE É claro que, sendo minhas raízes profundas do Recife, há um amálgama das influências de Stravinski e de minhas raízes ligadas à música popular recifense. E não é por menos que eu adorava perdidamente o frevo, pois há uma imensa conotação stravinskiana nos metais e na percussão do frevo de rua. E estou seguro de que uma das razões por que Stravinski me fascinou vem seguramente do fato de ter vivido como menino da Rua São João, no centro da cidade, a experiência do Carnaval do Recife passando na porta de minha casa. Eu ouvia fascinado, desde criança, como já disse tantas vezes, os metais dos frevos, a percussão profunda e mística dos maracatus, a

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INDICAÇÕES brincadeira dos caboclinhos, que são uma espécie de scherzo mágico e profundo de nossa música popular. Ao ouvir Stravinski, portanto, eu o assimilei através de minha própria experiência com os ritmos poderosos dos maracatus. A polifonia rítmica dos maracatus está presentes, sim, nesta minha obra Sacre du sacre, sobretudo na parte final, em que crio uma verdadeira polifonia rítmica e métrica. CONTINENTE A Osesp já tocou toda a sua obra. A orquestra de sua cidade natal, entretanto, nos últimos anos, não tocou nenhuma obra sua. Por quê? MARLOS NOBRE Até 1986, minhas obras sempre foram tocadas pela Orquestra Sinfônica do Recife. Apesar de algumas limitações derivadas do isolamento dos músicos e sua situação financeira deficiente como membros de uma orquestra que pagava mal, eles tinham o ideal e a responsabilidade profissional. Sempre que vinha ao Recife reger, dirigia obras minhas difíceis, isto é, obras que são modernas, em linguagem muito avançada, mas que, com um regente experimentado diante deles, os músicos e a orquestra tocavam perfeitamente bem. Eu dirigia essas obras, fazendo com que pudessem entender as novas técnicas e as novas linguagens e nunca tive qualquer problema com os integrantes da OSR. A última vez em que estive como regente à frente dessa orquestra foi a convite dos Irmãos Maristas (e não da prefeitura local), para celebrar o centenário deles no Brasil, para o qual escrevi um balé encomendado, Saga Marista, em outubro de 1997, no Teatro Guararapes.

Com imenso êxito, casa lotada, uma grande ovação. Depois desse ano, nunca mais fui convidado a dirigir um concerto com a OSR. Os motivos? Pergunte a quem passou a dirigir essa orquestra nos últimos anos... CONTINENTE Como você vê a atual situação da Orquestra Sinfônica do Recife? MARLOS NOBRE O regente titular da OSR está regendo o quê? Qual é a programação regular, anual de concertos? O que justifica então a existência dessa orquestra? O que significa a presença desse senhor no Recife? A orquestra está em péssima fase, não conheço nada igual no mundo inteiro. São perguntas que todos fazem. O passado glorioso dessa orquestra está sendo destruído, dilapidado, os músicos estão desestimulados e a Orquestra do Recife não tem uma programação digna desse nome. Isso para mim denota um grau de indiferença com a orquestra, o que é preocupante por parte dos dirigentes políticos. Hoje, temos no Brasil, impulsionados pelo nível da Osesp, excelentes orquestras e programações dignas em Sergipe, Pará, Manaus, João Pessoa, Salvador. CONTINENTE Qual a próxima estreia de uma obra sua? MARLOS NOBRE O meu Nonetto, encomendado pela Funarte, estreia na próxima Bienal de Música Contemporânea, no Rio. Outra é pela Orquestra Simón Bolivar da Venezuela, um Concerto para orquestra também neste ano, possivelmente dirigido por Gustavo Dudamel. JOSIAS TEÓFILO

FORRÓ

AFROBEAT

Selo Passadisco

Independente

DOMINGUINHOS E XICO BEZERRA Luar agreste no céu do Cariri

ABAYOMY AFROBEAT ORQUESTRA Abayomy Afrobeat Orquestra

Décimo disco da série Forroboxote, iniciada por Xico Bezerra em 2000, Luar agreste no céu do Cariri contempla 12 canções com melodias de Dominguinhos, que as entregou para Xico letrar. Nas gravações, nomes como Elba Ramalho, Maciel Melo, André Rio, Waldonys e o próprio Dominguinhos, entre outros, assumem a interpretação. Xote, baião, choro e valsa compõem o repertório. Digna de atenção Estrelas que se cantam, interpretada por Elba Ramalho.

Em 2009, 13 amigos se juntaram para homenagear o nigeriano Fela Kuti na primeira edição do Fela Day, no Rio de Janeiro. A ideia contagiou os rapazes ao ponto de formarem a primeira orquestra de afrobeat do Brasil. No primeiro trabalho, um EP homônimo com seis canções autorais, produzido por André Abujamra, a orquestra assume um alto grau de compromisso com o gênero e, ao mesmo tempo, mescla ritmos como o funk, candomblé e coco.

REGGAE

MPB

JERIVÁ Jerivá

Independente

Os pernambucanos da Jerivá fundem elementos do reggae e suas demais vertentes, como ska, dub e rock steady. Gravado no Maluguin Studio, o disco de estreia da banda contém 12 faixas, sendo 10 autorais e uma regravação do clássico A lenda do beijo, de Reveriano Soutullo e Juan Vert, adaptada pelo grupo para o ska. O disco merece ser ouvido por expressar, de maneira autêntica, as particularidades do gênero jamaicano, além da singularidade dos arranjos. Destaque para Razão do saber, Black star line e Eleve-se.

FILHOS DE PLATÃO E AMIGOS Dias de Blumer Independente

O encontro dos músicos Mônica Blumer e Edu A., dos Filhos de Platão, é o motor de Dias de Blumer, disco que, segundo o compositor Bráulio Tavares, “documenta uma história de amor entre duas pessoas e a amizade entre dezenas delas”. Autor e coautor de todas as canções, Edu recebeu um mutirão de amigos de várias influências musicais para gravar as faixas. Muitos deles são nordestinos que chegaram ao Rio e gravaram o LP Baque solto, em 1983, como Lenine, que empresta sua voz para Toada do mar.

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WAGNER RAMOS/CORTESIA

SIMULACRO Parece... mas não é!

Ardis culinários são capazes de fazer-nos acreditar que estamos comendo determinados ingredientes, mas isso pode ser só truque TEXTO Eduardo Sena

Cardápio 1

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Pode fazer o teste, perguntando. Nem todo brasileiro sabe, por exemplo, o motivo do feriado nacional de 15 de novembro. Sabe que é dia de folga e isso parece ser o suficiente – pouco importa a Proclamação da República. Mas basta alguém fazer menção ao 1º de abril para que o Dia da Mentira seja lembrado. Bom, há várias versões para a data ter-se transformado em mote para inverdades. A mais difundida delas aponta que a brincadeira surgiu na França, no começo do século 16. Como, à época, o Ano Novo iniciava

no dia 25 de março e terminava uma semana depois – portanto, em 1º de abril –, o rei Carlos IX, após adotar o calendário gregoriano, definiu que a celebração da virada do calendário seria em 1º de janeiro. Houve resistência à mudança e os franceses mantiveram-se seguindo o calendário antigo. Esses teimosos passaram a ser ridicularizados, recebendo convites para festas que não existiam. Nascia, assim, o Dia da Mentira. No Brasil, começou a ser difundido em Minas Gerais,

quando um jornal divulgou a morte de Dom Pedro, em 1º de abril de 1928, desmentida logo no outro dia. Neste mês de abril, sob esse pretexto, rememoramos a farsa, a fantasia, aquilo que parece, mas não é, também no que diz respeito à alimentação. A data nos lembra como a gastronomia é fértil na arte de achar genéricos para alguns dos seus ícones. Seja em nome de uma vida mais saudável, seja para tornar os custos de produção mais baratos ou simplesmente para fazer adequações

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CAMARÃO SINTÉTICO Empadas e canudinhos recheados com mix de legumes e leite de coco simulam o crustáceo

tornando uma opção mais saudável em relação ao sorvete tradicional, já que conta com 70% a menos de gordura que o original. Nesse caso, estamos falando da cópia da cópia. Segundo uma pesquisa da Unicamp, liderada pela nutricionista Adriane Moraes, o iogurte usado no preparo dessa sobremesa, na maioria das vezes, é desidratado (sendo apenas dissolvido no leite e refrigerado), o que representa uma perda nutritiva. “O iogurte tem culturas de bactérias que deixam o leite mais digestivo. Quando é desidratado, parte dessas culturas se perde”, pontua a profissional.

OUTROS TRUQUES

no preparo de uma receita, o fato é que comida também mente. Levante a mão quem nunca comeu chuchu pensando que fosse cereja! Bom, na verdade, você pode só estar descobrindo isso agora. Mas, grande parte das “cerejas” em calda, vendidas nos supermercados, são produzidas por meio do legume. E muitas padarias e confeitarias recorrem à réplica bastarda para driblar a sazonalidade e o preço da legítima. “Além da textura adequada, o chuchu não tem personalidade: o sabor

que você der, ele aceita”, afirma a chef Sofia Mota. Segundo ela, o preparo da conserva fake é bem simples. “Basta cozinhar o chuchu até ficar al dente e fazer bolinhas com um utensílio chamado boleador. Em seguida, despeje as bolinhas em calda quente de groselha, deixe no fogo baixo. Assim que descerem, retire-as da calda. Quando a calda esfriar, ponha licor tipo marasquino”. Cereja: de chuchu. Também nessa linha do simulacro está o frozen yogurt (gelado à base de iogurte natural), que vem se

O que não se perde é a herança culinária de décadas passadas, como o conhecido camarão sintético. Recheio falso do crustáceo, que já enganou muitos paladares, empada e canudinho adentro. Curioso pensar que a pasta em questão não leva na receita uma unidade sequer de camarão. Quanto ao sabor, passa despercebido aos menos atentos. “O que proporciona o gosto típico de camarão, na verdade, é a presença do leite de coco no preparo, que remete aos ensopados tão praticados no nosso litoral”, revela a banqueteira Bethânia Araújo, que guarda a receita de sua mãe, mesmo sem utilizá-la. Nada mais do que a mistura de cebola, tomate, pimentão e coentro picados mais leite de coco, farinha de trigo, ovos e manteiga. A quituteira também destaca outros ingredientes que podem ser mascarados, sobretudo se forem encorpados a um molho, ou quando utilizados como recheio. É o caso da proteína de soja, que faz as vezes da carne moída. “Atende bem aos avessos à carne vermelha que querem comer receitas que têm como principal base o ingrediente bovino”, pontua. O segredo, segundo ela, está na hora de hidratar o grão. “Não pode ser com água, tem que ser com caldo de carne aquecido; o de tablete mesmo.”

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WAGNER RAMOS/ CORTESIA

Cardápio

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Esse é o ponto de partida do preparo do sanduíche vegetariano da hamburgueria gourmet Kangaroo, em Casa Forte (Recife), o Adelaide Veggie Burguer. O sanduba traz disco de proteína de soja, cebolinha frita, molho barbecue e queijo provolone. Mistura estrategicamente pensada para disfarçar a ausência do gosto particular da carne. “Como o provolone é um queijo cujo sabor é proeminente e o barbecue proporciona um toque de defumado, o comensal acaba não sentindo falta da carne vermelha. Além de ser uma opção mais leve”, defende Eduardo Borba, proprietário da casa. Com a mesma proteína de soja, podem ser feitos cachorros-quentes, kibes e almôndegas. Essa última pode ser facilmente mascarada, depois de mergulhada em molho de tomate. “É fundamental dar uma fritada nas bolinhas, para que

Nem todo truque culinário é de boa-fé. Às vezes, engana o freguês, com uso de produtos mais baratos que os anunciados o sabor defumado, característico da carne, seja liberado”, ensina Bethânia. Igualmente pensada para a turma vegetariana é a berinjela à parmigiana, que sacia o desejo de quem quer comer a clássica e suculenta receita italiana, abrindo mão da carne vermelha. “Pode-se dizer que é um clássico da casa, e há quem jure de pés juntos que é o mesmo sabor do prato original”, conta André Rosemberg, do Bar Central, casa boêmia que aposta forte no segmento de comida vegetariana no menu.

Truque mesmo, literal e negativamente falando, é o que fazem alguns cozinheiros na hora de confeccionar o tiramisu, sobremesa ícone da Itália à base de queijo mascarpone e pão-de-ló. Para ganhar tempo e (mais) dinheiro, há restaurantes que fazem o doce com cream cheese e substituem a massa de bolo por biscoito tipo champagne molhado. Para ninguém perceber, aumentam a dosagem de café na receita, mascarando o sabor típico do mascarpone. Estampar mostarda dijon no cardápio e substituir, na prática, pela tradicional amarela com creme de leite condimentado com molho inglês e ralar queijo muçarela para se passar por parmesão fresco estão na mesma cartilha de golpes. Ilusão também para quem costuma pedir filé ao molho madeira: quase nunca é filé mignon, tampouco o molho é madeira.

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LEO MOTTA/DIVULGAÇÃO

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“Usam bastante um pó industrializado e dissolvem com vinho. Parece uma redução de dias de um demi-glacé original”, conta Sofia Mota, que também já viu muito “bacalhau” que era um peixe merluza – bem mais em conta – desfiado e salgado.

HISTÓRIAS MASCARADAS

A história da alimentação também é permeada por algumas farsas, mesmo que sem esse objetivo de fraude. Na verdade, tradições aparentemente históricas são muito recentes e pairam no imaginário popular, e nos livros, como se “desde sempre” fossem dessa forma. Dá para pensar na culinária italiana sem a dupla macarrão com molho de tomate? Parece que não. Mas, na verdade, o prato não está nos primórdios da cozinha milenar daquele país, uma vez que o tomate, fruto americano, só chegou por lá com Colombo, no período das

Grandes Navegações (nos séculos 15 e 16). E, antes de virar molho, decorou muito jardim principesco. Quem também viajou à Europa nesse período foi a batata, igualmente originária da América do Sul. Ela chegou séculos depois ao Brasil, com o sobrenome gentílico de inglesa, por conta de sua importância na Revolução Industrial – mas essa é outra história. O primeiro registro da presença da batata na Europa é uma nota dizendo que ela foi servida em um hospital de Sevilha, na Espanha, em 1573. Em contrapartida, especiarias, temperos, mamíferos, aves e canade-açúcar vieram em outra mão. Tomemos o coqueiro e seu fruto, o coco, como exemplo. É a maior “farsa vegetal” de que se tem notícia. Originário da Ásia e transportado para cá pelos colonizadores portugueses, é uma planta que se impôs. Naturalizouse como se nativo fosse e, com cara da tropicalidade brasileira, alastrouse até virar sinônimo de litoral no Nordeste. Para isso, expulsou os antigos moradores. Quem ainda encontra uma praia mais ou menos deserta, em meio ao surto imobiliário à beira-mar, pode vislumbrar. Entre os coqueiros, eles vão estar lá: o cajueiro e a mangabeira, estes, verdadeiramente nativos. E o que falar da feijoada, que os livros didáticos rezam que nasceu na senzala? A origem defendida é que os “senhores de engenho ficavam com os cortes nobres do porco, a exemplo do pernil, na casa-

2 ALMÔNDEGAS Feitas com proteína de soja, parecem à base de carne 3 HAMBÚRGUER De soja, para os vegetarianos

grande, e desprezavam o restante das partes, como orelha, costela e pé, oferecendo-as aos escravos”. Mas, se lembrarmos que, por motivos de escassez de alimentos decorrentes de constantes confrontos bélicos, os europeus sempre incorporaram à sua culinária ingredientes pouco nobres, essa história vai perdendo o sentido... Pratos comuns por aqui, como o sarapatel (feito com miúdos de porco), têm ascendência lusitana. Em Portugal, é chamado de sarrabulho. Segundo a pesquisadora da alimentação no Brasil Maria Lectícia Cavalcanti, “nem índios nem negros tinham o costume de misturar feijão com carnes. A técnica é mais antiga: vem do Império Romano”, afiança. Segundo ela, os romanos costumavam cozinhar carne com legumes, entre eles, o feijão branco. Essa seria a origem de pratos como o cassoulet francês – um ensopado de feijão branco com linguiça de porco e carne de pato. “Na região das Astúrias, norte da Espanha, também há uma iguaria desse tipo: a tradicional fabada, que mistura feijão branco com carnes pouco nobres, como orelha e rabo de porco.” Quer dizer: muito daquilo que pensamos ser, parece, mas não é. E isso não se restringe ao Dia da Mentira. Não é verdade?

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RETROSPECTIVA As múltiplas faces de Wilton de Souza

A exposição Bela Aurora do Recife traz ao público um breve recorte da obra do artista, composta por pinturas, desenhos, projetos gráficos e esculturas

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GRAVURAS As cenas urbanas e a inspiração nas coisas da rua são características do seu trabalho

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WILTON DE SOUZA O artista atua na adminstração do Mamam, desde a sua fundação, no início da década de 1980

TEXTO Mariana Oliveira REPRODUÇÃO

Certo dia, uma professora da extinta Escola Maurício de Nassau, situada na Rua Velha, no centro do Recife, chegou à sala de aula e viu nas mãos de um dos seus alunos, Wilton de Souza, um caderno de desenhos. Admirada, ela perguntou ao estudante se aqueles trabalhos eram dele, ao que ele respondeu positivamente. A professora pediu, então, que ele desenhasse, durante a aula, a escultura que lhe apresentava. Wilton enrolou e, no final do encontro, disse-lhe que terminaria o desenho em casa e traria no outro dia. Ao chegar em casa, o garoto voltou-se para seu irmão mais velho, Welington Virgulino, verdadeiro dono do caderno, e pediu que ele fizesse o desenho solicitado pela professora. O irmão se negou a entrar na farsa. Wilton insistiu, mas não conseguiu convencê-lo. A sua única alternativa era tentar soltar a mão e ver o que conseguiria criar. O resultado não foi satisfatório e, no dia seguinte, teve que explicar tudo na escola. Mas a mentira terminou aproximando Wilton de Souza das artes. Mesmo sem apoio familiar, ele e o irmão Welington trilharam caminhos dentro desse universo, num momento bastante especial, quando os artistas locais agregavam a seus trabalhos princípios da arte moderna e o Recife passava por um grande processo de urbanização. A relação de Wilton com a cidade é bastante destacada pela curadora da mostra Bela Aurora do Recife, Betânia Corrêa de Araújo. “Os trabalhos dele estão em sintonia com o processo de mudança que a cidade vivia à época. Artífice de um tempo, Wilton de

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MAÍRA GAMARRA/DIVULGAÇÃO

Souza confunde-se com a história cultural do Recife da segunda metade do século 20”, afirma. A exposição, em cartaz até o fim de maio, no Centro Cultural Correios, faz um pequeno recorte da produção de Wilton de Souza como pintor, desenhista, capista, gravurista, escultor, cenógrafo e designer. Chama atenção a variedade de suportes utilizados por ele, ao longo dos mais de 60 anos de atividade. Entretanto, parece haver entre todos os projetos elementos condutores que os unem. “Em meados do século passado, ele era um homem disposto a defender a estética moderna ainda em conflito no Recife”, resume a curadora. A rua está presente nos trabalhos de Wilton, sejam pinturas, desenhos ou capas de livros e discos. O artista recorda que, ainda menino, como não alcançava a janela de sua casa na Rua Velha, seu pai comproulhe um banquinho, de onde tinha uma vista particular do entorno, com a estação de trem e a antiga Casa de Detenção na paisagem. “Aprendi a ver o mundo a partir da janela da Rua Velha”, diz ele.

AQUELES MODERNOS

No citado ambiente de mudança e urbanização da cidade, uma nova geração de artistas começou a se articular, trabalhar juntos e trocar ideias, defendendo uma estética moderna, diferente daquela preconizada pela Escola de Belas Artes. Wilton integrava esse grupo e, por isso, não chegou a fazer o curso formal de artes. Optou pelos encontros do Atelier Coletivo, fundado em 1952, pela Sociedade de Arte Moderna. Ali, ele se unia a um grupo formado, entre outros, por Ionaldo, Abelardo da Hora, Gilvan Samico, José Cláudio, Ladjane Bandeira, Corbiniano Lins. “Os modernos da Rua Velha”, como eram conhecidos, já que o ateliê se instalava ali, abandonaram as grandes dimensões e as paisagens bucólicas que inspiravam os alunos da Escola de Belas Artes. Voltaram a atenção para as cenas e os espaços urbanos, e as manifestações da cultura popular, apostando no realismo social. O resultado dessa

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Wilton de Souza foi pioneiro ao atuar como ambientador, criando dentro de loja de móveis uma galeria de arte

mudança de foco foi a reação negativa do público, e a polarização da crítica, entre o aplauso e o rechaço. “Lembro-me do Salão Oficial de Pintura de 1952, quando nosso grupo levou a maioria dos prêmios, pois fugíamos daquela coisa da natureza-morta, da paisagem convencional. Como quem subvencionava o prêmio era a Escola de Belas Artes, eles não quiseram pagar”, recorda. Diferentemente de hoje, naquele período era preciso viajar para saber o que estava sendo produzido na Europa, o que não era acessível a todos. O Atelier Coletivo surgia, assim, como um espaço de troca de conhecimento entre os artistas, onde foram oferecidos os primeiros cursos livres de pintura, desenho, gravura e escultura do Recife. Dessa experiência no Atelier, há na mostra Bela Aurora do Recife alguns pequenos desenhos feitos por

Wilton, no esquema de “pose rápida”. Um dos integrantes posava durante alguns segundos para que os outros o retratassem. Um simples exercício que gerava trabalhos interessantes, feitos com um traço rápido, elegante e preciso. Embora houvesse uma disputa clara entre tradicionais e modernos, artistas como Mário Nunes chegaram a conviver com os modernos naquele espaço. Wilton lembra que, mesmo entre os membros do Atelier Coletivo, havia discordâncias que podiam levar as discussões às ultimas consequências.

O ARTICULADOR

Wilton de Souza acabou assumindo uma função importante na divulgação do trabalho dos artistas que faziam parte de sua geração. Seu papel como gestor de espaços destinados à arte tornou real a possibilidade de levar a produção dos artistas até o público. Desde cedo, sofreu a pressão pela autossuficiência. Ele queria ser artista, mas seus pais eram contra e, para se sustentar, aceitou um emprego numa agência de publicidade. De alguma forma, esse trabalho o aproximou mais da cidade. Wilton chegou a pintar propagandas do refrigerante Fratelli Vita nos paredões que circundavam as margens do Capibaribe.

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

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Não demorou para ser fisgado para outro emprego, dessa vez, na fábrica de discos Rozenblit, onde ficaria responsável pelo desenvolvimento das capas. Nem bem começou a trabalhar, foi promovido a gerente da gráfica, ainda que tenha argumentado quanto à sua ignorância

sobre o funcionamento de máquinas ofset (a primeira a funcionar no Recife foi a da Rozenblit). Seu talento e senso estético fizeram com que a fábrica o convidasse para atuar também numa loja de móveis que mantinha no centro da cidade. A proposta era de que Wilton

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DESIGNER Entre seus trabalhos, nesta área, estão as capas de livros

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DESENHO De acordo com Wilton de Souza, essa é a técnica na qual ele se sente mais à vontade

montasse ambientações com os produtos do estabelecimento, para torná-los mais atrativos aos compradores, algo bastante comum, hoje, em qualquer loja de mobiliário, mas inédito naquele tempo. “Criei um showroom onde dispunha os móveis vendidos na loja, tapetes, objetos e quadros, montando uma decoração.” Como bom gestor, ele propôs ao patrão a criação da Galeria de Arte Rozenblit, cuja concepção seria unir trabalhos de jovens artistas (muitos deles vindos do Atelier Coletivo) com os móveis comercializados na loja. “Assim, agregando arte e ambientação, conseguimos trazer um outro público para dentro do estabelecimento”, sublinha. Uma das primeiras mostras exibiu obras de Montez Magno. Seu pioneirismo como decorador foi logo reconhecido, o que lhe garantiu colunas semanais sobre arte e ambientação em

dois dos grandes jornais da cidade, o Jornal do Commercio e o Diario de Pernambuco. Mesmo sem formação em Arquitetura, era procurado por alunos, que queriam estagiar com ele, já que a faculdade não oferecia disciplinas ligadas ao design de interiores. O próprio Wilton viajou a São Paulo para fazer um curso na área. “Eu desenhava planta baixa. Pensava nos móveis, nos tapetes, em tudo, para criar um ambiente agradável e estético”, lembra. A proposta deu tão certo, que, mesmo depois de se desligar da Rozenblit, Wilton implantou um trabalho semelhante na Galeria Bela Aurora, nome que inspira o título da atual mostra, e mais tarde na Galeria Três Moedas. O artista também segue colaborando com instituições públicas, como o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, que viu nascer com o nome de Galeria Metropolitana do Recife, no início da década de 1980, da qual, inclusive já foi diretor geral e diretor administrativo. Atuando e convivendo nesse espaço, cujo foco, nesses primeiros anos do século 21, voltou-se para a arte contemporânea, Wilton demonstra que sua habilidade e seu respeito pela experimentação permanecem vivos.

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Diário das frutas

JUNTOS, PROSA E POESIA

Lançamento

O VICENTE DO REGO MONTEIRO DOS ANOS 1960 Assim como o lançamento, em 2004, do livro Vicente do Rego Monteiro – poeta, tipógrafo, pintor (org. Paulo Bruscky, ed. Cepe) foi importante para dar conhecimento e leitura de recorte pouco conhecido, entre nós, da obra desse artista que viveu entre o Brasil e a França, a atual publicação de Vicente do Rego Monteiro – olhar sobre a década de 1960 constitui-se um belo registro de sua produção, na sua última década de vida. Nessa época, Vicente havia voltado a morar no Recife (onde nasceu, em 1899, e faleceu, em 1970), depois de várias idas e vindas de Paris, onde residiu de 1911 a 1957, e mantinha ateliê em Boa Viagem. Andava isolado e cético, sem expor há tempos. Dele se aproximou, em 1969, o marchand Carlos Ranulpho, que lhe propôs representá-lo em sua galeria. Desse contato, surgiu uma produção sôfrega e uma série de exposições no Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Salvador. O lançamento pretende evidenciar o encontro entre o artista e o marchand, sendo uma edição comemorativa aos 45 anos da Ranulpho Galeria de Arte. Publicado sob incentivo da Lei Rouanet, tem formato de catálogo e uma ótima impressão de projeto gráfico de Gisela Abad. As reproduções são acompanhadas por textos do crítico Jacob Klintowitz (que assina a publicação), de Carlos Ranulpho e de Fernando Barreto. Há depoimento da companheira de Vicente, Crisolita Pontual e uma cronologia feita pelo historiador Leonardo Dantas Silva. É justo que o tradicional crítico assine a obra, visto que o livro é estruturado por sua análise, não apenas no que diz respeito aos textos, mas ao agrupamento temático das 190 obras reproduzidas de coleções particulares, museus e instituições do Brasil. Klintowitz entende essa fase da produção do artista sob os recortes de sua relação com o catolicismo, com a mitologia grega, com as tradições e a cultura popular e com o abstracionismo. A última pintura de Vicente, um São Francisco, fecha o capítulo de reproduções de sua obra. ADRIANA DÓRIA MATOS

“O sensual, o erótico, o hormonal são sempre articulados por nós dois, como uma forma de ajudar na leitura do mundo.” Assim descreve o jornalista Bruno Albertim as afinidades entre ele e artista plástica Tereza Costa Rêgo. De gerações e atividades distintas, eles estão juntos no Diário das frutas, em que são postos em diálogo crônicas dele e pinturas dela. O tema, como indica o título da mostra, são frutas de um pomar luxuriante. A pretexto de observá-las, descrevêlas ou de transformar o prosaísmo de suas existências em elegia, eles realizaram obras em parceria, numa dinâmica quase sempre estabelecida pela produção de uma crônica por Bruno e a execução posterior de uma pintura por Tereza. A mostra permanece em cartaz no Centro Cultural Correios (Bairro do Recife) até 26 de maio.

Memórias

DERLON ALÉM DOS MUROS A apropriação de um clichê soa adequada à trajetória de Derlon Almeida: “Pernambuco falando para o mundo”. Sendo que, nesse caso, se trata de um artista que saiu dos muros do Recife para os de cidades afora. Ele sintetiza bem o que tem ocorrido com bons grafiteiros do Brasil: seus trabalhos têm se espalhado, com reconhecimento. Do ponto de vista do estilo, Derlon demarca território pela transposição da linguagem da xilogravura para a arte mural, que, em síntese, é do que se trata o grafite. Agora, já assenhoreado do campo, ele experimenta em outros suportes. E disso é feita sua individual Memórias, na galeria Dumaresq (Boa Viagem, Recife), na qual reúne pinturas bidimensionais e tridimensionais, mas dentro da temática figurativa que o vem caracterizando.

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UM FORTE

MATÉRIA CORRIDA José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

Nunca fui muito macho. Na hora do confronto, eu abria. Não propriamente por medo físico, e sendo, porque não queria ser assassinado antes de fazer o que queria: chegar a ser pintor. Era esse o “heroísmo” que me interessava. Uma vez um colega, não sei se de faculdade, Rildo Souto Maior, foi me buscar para fazer piquete ou distribuir panfleto numa fábrica. Eu pulei fora. Não seria melhor, eu disse a ele, que eu me transformasse num pintor, como Portinari, por exemplo, para melhor servir ao Partido? Ele contestou. Deu como exemplo Mao Tsé Tung, que era poeta e abandonou a poesia para servir à causa. O sertanejo é antes de tudo um forte, um macho. Estou mais para boêmio do litoral. Minha mãe dizia, e não vai isso aqui por pilhéria, primeiro: os homens da família dela não tinha um que prestasse; segundo: homem de beira de praia não vale nada. Segundo

ela, na nossa família, só as mulheres mereciam confiança. Homem, tinha de ser do sertão, embora meu pai, com quem era casada, nascido nuns mangues pro lado do Cabo, tenha sido homem de bem, exemplar. Não sei de onde lhe veio essa ideia euclidiana do sertanejo, desde que nunca teve notícia de “Os Sertões”. Me lembrei muito desse estigma dos homens de minha família quando abandonei os estudos, já dentro da faculdade, sendo que, naquela época, por vários motivos, pouca gente chegava lá. Para ser pintor. Leia-se “vagabundo”. E tinha fama de inteligente. Tanto que Pedrinho, pedreiro, amigo de meu pai, disse: “Zezé foi que nem garapa de mé: apurou, apurou, e sumiu”. Eu até já falei disso, de eu me sentir “a garapa que sumiu”, de eu ter me volatilizado. Sempre computei isso como uma grande vitória, o meu único ato de

coragem, essa queda, essa quebra de decoro. Mas daí a me considerar um macho, um forte, qualidades atribuídas ao sertanejo, tenho minhas dúvidas. Do sertão eu não sabia nada. Em São Paulo, naquela época, década de 50, bastava dizer que era de Pernambuco ipso facto pensavam que eu era sertanejo. Logo, muito macho. Ficavam com raiva quando eu dizia que não conhecia croa-de-frade, um cacto em moda para ter num caco dentro de casa. Tinha artista nordestino que só faltava andar de gibão e chapéu de couro. Eu nunca tinha visto mandacaru quando fulora na seca nem seca nem nada disso. Para minha desgraça ainda era gorducho e, por mais que disfarçasse, não totalmente analfabeto. Ter ouvido falar de Rembrandt era demais. Não combinava. Até perguntei a Aldemir Martins que danado era croa-de-frade. Ele disse: “Você sabe. É porque não se lembra”.

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REPRODUÇÃO

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Outro azar é que não era menino de engenho. Eu entrava no canavial com um caixeiro da loja de meu pai, ele armado de uma quiçé, para chupar cana. Ou para apanhar caboje na época do plantio. Também não era de praia, tendo ido a Cupe, Porto de Galinhas, em piqueniques na carroceria de caminhão. Essa vista do mar entre os coqueiros conservo na retina até hoje, tomada da carroceria do caminhão. Nascido e criado em Ipojuca, filho de dono de loja, eu era totalmente urbano, se é que se pode falar em “urbano” numa cidadezinha como Ipojuca naquela época, sem água encanada, sem uma rua calçada e luz do motor de cinco da tarde às dez da noite.

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Em São Paulo, década de 50, bastava dizer que era de Pernambuco ipso facto pensavam que eu era sertanejo. Logo, muito macho De onde terá surgido essa ideia de que pernambucano é macho? Da guerra holandesa, da batalha dos Guararapes? Das revoluções libertárias? De Luiz Pajeú? De Lampião? Me ocorreram essas ideias ao ler a crônica de José Mário Rodrigues Pequenos aquários, Jornal do Commercio, Recife, 14/02/13:

POETA

Retrato do poeta José Mário Rodrigues, pincel e nanquim sobre papel, 28 x 21 cm, de autoria de José Cláudio, 1990

“venho de um lugar que não tem nada a ver comigo (Flores-PE). Seria muito falso dizer que amo o lugar que nasci, pois, não gosto de mato seco, caatinga, mandacaru, algaroba e leito de rio temporário (o Pajeú) que mais parece um deserto. Meu espírito não é, verdadeiramente, de sertanejo. Gosto de viver no Nordeste do litoral, onde a todo o momento, pelo reflexo da luz, o mar muda de cor. Gosto da sombra dos coqueiros, de água de coco, do som das ondas, dos arrecifes nos dando de presente uma imensidão de pequenos aquários, onde mergulho e renasço com o sol e o sal, num constante batismo de prazer. Não há muito o que contar. É assim que sou. É assim que vou.” Amigo velho, este é um dos teus melhores poemas, inserido na despretensão de uma crônica no meio da semana. Sei não. Ganhaste aquele teu quinhão de eternidade.

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ANDRÉ BARRETO/DIVULGAÇÃO

A FILHA DO TEATRO Nos limites da representação Texto de Luís Augusto Reis, marcado pela metalinguagem, entra em cartaz em montagem da Cênicas Cia. de Repertório TEXTO Pollyanna Diniz

Palco O teatro estava lotado na estreia da peça da diretora badalada, aquela que sempre transpunha a violência do mundo real ao palco. Uma das cenas leva um senhor da plateia a baixar a cabeça e fechar os olhos. Era um casal de atores de shows pornô fazendo sexo explícito. E havia um detalhe: a

mulher estava grávida. Essa é uma das passagens do texto A filha do teatro, do dramaturgo, jornalista e professor Luís Augusto Reis, que realiza aquilo que é propagado por uma de suas personagens, a tal diretora badalada: investigar os limites da representação teatral. No caso de Reis, ele cumpre isso, ao construir uma obra que se

utiliza da metalinguagem como recurso principal, mas consegue falar do exercício teatral sem se tornar autorreferente e esquecer o público. É uma história contada por três mulheres (há uma quarta, citada, mas não representada), que trata de amor, compaixão, possessividade, relacionamentos, com elementos

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1 ELENCO Bruna Castiel divide o palco com Manuela Costa e Sônia Carvalho, sob direção de Antonio Rodrigues A FILHA DO TEATRO Até 27 de abril Teatro Arraial, Rua da Aurora – Recife Informações: (81) 3184-3057

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de drama e suspense – um tiro é disparado e isso marca a narrativa dessas personagens. Aos poucos, o público vai desenhando um cenário: um casal de mulheres leva para casa uma mãe e o bebê recém-nascido e começam a tratar essa criança como filha. Até que uma delas é assassinada.

O texto A filha do teatro foi montado por diretores como Antonio Edson Cadengue, em 2007, e Antonio Guedes, um ano depois. Agora, volta aos palcos pelas mãos da Cênicas Companhia de Repertório, grupo pernambucano que tem duas décadas de atuação, sob direção de Antônio Rodrigues. A peça fez pré-estreia no festival Janeiro de Grandes Espetáculos e está em cartaz até o final do mês no Teatro Arraial. Ironia e sarcasmo são elementos do texto de Reis, principalmente quando se refere ao próprio teatro: fala do pedantismo dos diretores, da refinada plateia, do seu papel social. E ainda faz homenagens, mesmo que não explicitamente: coloca, por exemplo, uma citação a uma atriz que, aos 70 anos, continuava interpretando Yerma, de Federico Garcia Lorca. E todos ainda viam nela a mulher querendo engravidar. Impossível não lembrar a atriz Geninha da Rosa Borges e sua personagem mais marcante no teatro pernambucano. Ela mesma dirigiu e protagonizou a versão do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) para o texto do dramaturgo andaluz, em 1978. Até hoje, aos 90 anos, com algumas falhas de memória, em todas as entrevistas que concede, Geninha sempre dá um jeito de dizer os solilóquios de Yerma. O perigo que corria o texto de Luís Reis era que, ao trazer tantas referências ao teatro, caísse ele próprio nas armadilhas do pedantismo que ironiza e deixasse de lado o principal: contar a história. Mas isso não acontece. O autor opta pela narrativa e pela estrutura de depoimentos, trazendo o espectador para perto da memória das suas personagens. Falando das relações entre mãe e filha, do ciúme, da sobrevivência.

REFERÊNCIAS A LORCA

Ao mesmo tempo, é um texto aberto em possibilidades ao encenador, principalmente se esse quiser investir nos recursos do teatro contemporâneo, como a tecnologia, por exemplo. A Cênicas Cia. de Repertório decidiu não trilhar esse caminho. A prioridade

para o grupo é o texto; e, diante dessa prerrogativa, as atrizes são as responsáveis por alavancar a montagem. Bruna Castiel, Manuela Costa e Sônia Carvalho se revezam entre as personagens e mostram maturidade e domínio das possibilidades interpretativas em cena. Não estão em papéis confortáveis. O texto se desenvolve a partir de nove pequenos monólogos e não há uma interação, pelo menos em relação aos diálogos, entre as atrizes. Se elas são, obviamente, um trio em cena, e trocam energia o tempo inteiro, também estão sós, com aquela história, com o público sentado logo adiante. O palco, em cada momento da encenação, tem a sua dona. Bruna Castiel, em especial, é uma daquelas atrizes que podemos chamar de promessa da sua geração. Tem o magnetismo das grandes intérpretes, a presença no palco, o domínio da técnica, da expressão, da voz.

Embora estejam juntas em cena, as atrizes vivenciam a solidão, pela experiência do monólogo que marca o texto O diretor Antonio Rodrigues não se permite experimentações ou divagações. Trilhou o caminho do simples, mas isso de forma alguma desmerece a montagem. Há uma referência bastante explícita, trazida pelo próprio texto, ao universo de Garcia Lorca. Essas mulheres de dores profundas usam xales e saias sobrepostas e a encenação tem muitas vezes a cor vermelha terracota e a força da prece. No palco, são montados três pequenos camarins, que podem ser deslocados durante a encenação, também em cor escura. Na penumbra, as memórias vão se transformando em palavras, e a narrativa ganha corpo, proporções. Há o conteúdo concreto das palavras, mas há também o puro fato de falar, que pode ser libertador. Quando as palavras não conseguem mais expressar, é a vez dos silêncios e das pausas, que também são linguagem e possibilidade criativa para a Cênicas Cia. de Repertório.

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DALTON VALÉRIO/DIVULGAÇÃO

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FESTIVAL Teatro para todas as plateias

Conhecido pela pluralidade nas produções, Palco Giratório anuncia programação nacional, que inclui cinco grupos do Nordeste TEXTO Gianni Paula de Melo

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PROGRAMAÇÃO Entre os espetáculos selecionados, está O filho eterno, uma adaptação da obra de Cristovão Tezza, feita pela pela Cia. Atores de Laura (RJ)

peças Caetana e Divinas, ambas conhecidas do público do estado. O primeiro aborda a experiência da morte, trabalhando elementos da linguagem poética e da cultura popular, enquanto o segundo traz as personagens Uruba, Bandeira e Zanoia, palhaças contadoras de histórias. Na itinerância, o grupo também vai ministrar a oficina Despertando qualidades, na qual Fabiana Pirro e Lívia Falcão, fundadoras do Duas Companhias, partilharão suas experiências e abordarão a tradição nordestina.

FORMAÇÃO Dezoito grupos. Vinte e quatro espetáculos. Cento e trinta e três cidades a serem percorridas. R$ 8,5 milhões em gastos diretos – cachês, viagens, hospedagens. Um ano inteiro de planejamento. Estes são os números da nova edição do Palco Giratório, promovido pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) e considerado o maior festival de teatro itinerante da América Latina, que só chega ao Recife no mês de maio, mas ainda em abril traz apresentações para o interior de Pernambuco. Conhecido pela vocação de formador de plateia e opinião, o projeto mantém seus critérios norteadores como a pluralidade das produções – adulto, infantil, circense, dança, bonecos – e o interesse em grupos de repertório, aqueles que se dedicam às artes cênicas também como campo de estudo, em detrimento dos espetáculos de apelo popular. Apesar da proposta fundamental do circuito continuar a mesma, há algumas novidades preparadas para 2013. Este ano, a curadoria ampliou o diálogo com as formas híbridas de arte e destacou um espaço para as intervenções urbanas, ocupado, desta vez, pelo Coletivo Construções Compartilhadas (BA), com a ação {pingos & pigmentos}. Ela consiste em pontilhar o espaço público com guarda-chuvas de cor vibrante, que se somam aos tons da paisagem e geram um impacto plástico e poético. Além disso, o Palco Giratório dá início a um circuito especial de homenagens,

reverenciando, nesta edição, o diretor Ilo Krugli e o seu grupo teatral Ventoforte, que percorre o país com o espetáculo infanto-juvenil Histórias de lenços e ventos. No programa principal do evento, chama a atenção a forte presença dos monólogos, sendo cinco apresentações nesse formato. O fantástico circo-teatro de um homem só, da Cia. Rústica (RS), traz o ator Heinz Limaverde vivendo vários tipos do universo circense; O miolo da estória, da Santa Ignorância Cia.de Atores (MA), conta o drama de João Miolo, encenado por Lauande Aires, um operário da construção civil e brincante de bumba meu boi; La perseguida, estrelado por Gabriela Amado, do Vagamundo (RS), se encaixa na categoria teatro de rua e, apesar da personagem ser um palhaço, tem forte inclinação melancólica; Boi, do SerTão Teatro Infinito Cia. (GO), narra a vida de Zé Argemiro, vivido por Guido Campos Correa, e seu bicho de estimação; e, finalmente, O filho eterno, adaptação da obra de Cristovão Tezza, montada pela Cia. Atores de Laura (RJ), que rendeu o Prêmio Shell de melhor ator para Charles Fricks no ano passado. O Nordeste marca presença nesse Palco Giratório com cinco companhias, mas é de estranhar a ausência de representantes da região Norte, considerando o discurso de diversidade ostentado pela instituição organizadora. Dos grupos pernambucanos atuais, o Duas Companhias foi o único contemplado e viajará o país com as

As atividades formativas continuam sendo um fator importante para o Palco Giratório e, assim como a trupe pernambucana, todas as companhias preparam uma proposta de convivência educativa com estudantes, atores profissionais ou interessados. Jogos teatrais, reflexões sobre linguagens narrativas, trabalhos de composição e interpretação são alguns motes sobre os quais se estruturam as oficinas oferecidas pelos coletivos, que variam entre experiências mais teóricas ou de diálogo até exercícios práticos, como o aprendizado da técnica da perna-de-pau. Em sua passagem pelo Recife, de 3 a 31 de maio, o Palco Giratório ainda vai ganhar o reforço das parcerias desenvolvidas especificamente pelo Sesc local. Além do programa nacional – todas as peças passarão pelos palcos da capital –, estão previstas a Conexão Rio Grande do Sul e a Conexão Alagoas, que devem trazer companhias extras dos dois estados; a Cena Bacante, voltada para a cultura popular de Pernambuco; e também os grupos convidados. Antes disso, o espetáculo de dança Objeto gritante, da companhia paulista Maurício de Oliveira & Siameses, apresenta-se no interior do estado, levando suas questões sobre o ofício do artista do campo das artes cênicas e a relação que estabelecem entre corpo e máscaras sociais. O grupo sobe aos palcos de Petrolina (21/04) – onde também ministra oficina sobre improvisação e composição –, Arcoverde (24/04), Garanhuns (26/04) e Caruaru (27/04).

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REPRODUÇÃO

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DISTRIBUIÇÃO Continua em cartaz: blockbuster x filme de arte

Disputa entre grandes estúdios cinematográficos e produções independentes evidencia desproporção crescente na ocupação de salas de exibição TEXTO Fernando Vasconcelos

Em 1989, um pequeno filme

americano, escrito, dirigido e realizado por um jovem e desconhecido diretor de 26 anos, Steven Soderbergh, com pouco dinheiro, conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O longametragem era sexo, mentiras e videoteipe (assim mesmo, em minúsculas, como uma homenagem do diretor ao poeta e. e. cummings, que assim assinava). A indústria cinematográfica americana não considerou o longa tão relevante – recebeu apenas uma indicação ao Oscar de melhor roteiro original. Mas logo seria

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1 QUERELLE A francesa Gaumont teve importante atuação, trazendo para o Brasil obras de cineastas europeus, como Fassbinder

reconhecido como um marco do novo cinema independente, distribuído com sucesso pela Miramax, empresa dos irmãos Robert e Harvey Weinstein, que ficariam famosos na década seguinte como produtores de filmes como Cães de aluguel (1992), O piano (1993) e Pulp fiction – tempos de violência (1994), os dois últimos também vencedores da Palma de Ouro em Cannes. Paralelamente ao cinema dos grandes estúdios, novas pequenas produtoras disputavam espaço nos multiplexes com filmes “difíceis”

para o grande público, numa época de incrível vitalidade comercial num circuito mais diversificado, marcado também pelo boom das videolocadoras, que ampliavam o interesse do mercado pelas pequenas produções. No Brasil – que viu o fechamento da Embrafilme na era Collor –, no governo seguinte, foi criada a Lei do Audiovisual e esse cenário refletiu-se na chamada Retomada do Cinema Brasileiro, tendo como referência inicial o sucesso da comédia Carlota Joaquina – princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati. Em Pernambuco, Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, também iniciava uma surpreendente retomada da produção local, com sucessos como Amarelo manga (2003), de Cláudio Assis, e Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes. Desde os anos 1990, os grandes estúdios americanos compraram as pequenas produtoras, certos de que obtinham lucrativo nicho. A Miramax era de propriedade da Disney, que foi diminuindo os investimentos e, enfim, anunciou o fechamento daquela subsidiada em 2010. Os irmãos Weinstein já haviam saído da empresa e fundado a The Weinstein Company, ainda forte hoje, com campanhas agressivas para as produções independentes no Oscar, como as que, por exemplo, conquistaram a vitória de O artista, em 2012. A New Line Cinema trabalhava independente desde os anos 1970 e produziu sucessos como Uma noite alucinante (1881), de Sam Raimi, A hora do pesadelo (1984), de Wes Craven, e filmes prestigiados como Garotos de programa (1991), de Gus Van Sant, Boogie nights (1997) e Magnólia (1999), ambos de Paul Thomas Anderson. Ela foi comprada pela Time Warner, em 1996, e produziu, em fusão com Warner Bros, a trilogia blockbuster O Senhor dos anéis (2001-2003). A Polygram Films, produtora independente da companhia fonográfica homônima, foi fundada em 1980 na Inglaterra, onde produziu sucessos como Quatro casamentos e um funeral (1994), Trainspotting (1996) e Fargo (1996), este, dos diretores norte-americanos Joel e Ethan Coen. Comprada pela Universal Pictures em 1998, encerrou suas atividades no ano seguinte. O tradicional estúdio francês Gaumont criou um braço brasileiro, nos anos 1970, quando

bancou a reforma do famoso espaço Belas Artes de São Paulo (que fechou as portas em 2011) e lançava no Brasil filmes como A mulher do lado (1981), de François Truffaut, e Querelle (1982), de R. W. Fassbinder. A Gaumont do Brasil encerrou suas atividades nos anos 1990 e, hoje, a produtora opera globalmente a partir da França em parcerias com outros grandes estúdios, como a Sony Pictures e a Paramount. Passando por dificuldades financeiras recentemente, teve uma excelente recuperação com o sucesso internacional de Intocáveis (2012), que é o filme francês mais visto no mundo até hoje. Na França, um terço da população assistiu ao longa nos cinemas.

ENTOCADOS

No Brasil, nunca foram feitos tantos filmes pouco assistidos como hoje. Obras como O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, uma das produções brasileiras mais aclamadas e comentadas internacionalmente nas últimas décadas, distribuído pela pequena Vitrine Filmes, conseguiu apenas um público em torno de 100 mil espectadores, lançado num circuito restrito desde o início do ano. Um sucesso, considerando as poucas cópias e salas, mas um número irrelevante considerando que uma comédia comercial como De pernas pro ar 2 foi vista por quase 4 milhões de

A desigualdade no Brasil se dá com muitos filmes vistos por poucos e produções comerciais monopolizando salas espectadores, lançada com estrutura esmagadora em 700 salas de exibição. Mais de 30 anos separam sexo, mentiras e videoteipe e O som ao redor, filmes irmãos em termos de produção e distribuição, considerando as diferenças dos mercados norteamericano e brasileiro. Nessas três décadas, aumentou o número de salas, o número de filmes produzidos, e a revolução digital facilitou os meios de produção e distribuição. Tudo apontava para uma relação mais saudável na briga do cinema blockbuster

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

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SAFRA 2012 Dos filmes realizados no Recife, Era uma vez eu, Verônica, está entre os que poderiam ter tido melhor distribuição

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INTOCÁVEIS Produção francesa se manteve em cartaz por semanas, no circuito alternativo

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DAVID LYNCH Autor de obras “difícieis”, ele declarou sua aposentadoria da direção, desmotivado pelo mercado

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Claquete 3

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x filme de arte nas salas de exibição e, no entanto, consolidou-se justamente o contrário. O cinema independente encolheu nos últimos anos, no Brasil e no mundo, e nunca foi tão difícil fazer uma pequena produção ser descoberta pelo público. O que aconteceu? Vários fatores podem ser considerados. Lá fora, a crise financeira internacional, que abala o primeiro mundo desde 2008, teve forte impacto na indústria cinematográfica, com queda alarmante nos números das bilheterias dos

grandes estúdios e efeitos devastadores no cinema independente. Diminuiu o número de salas para filmes de pequeno porte, mais destinados ao público adulto, tanto nos EUA como na Europa. Com o cinema popular direcionado para o público mais jovem, as produtoras de TV encontraram um nicho de espectadores fiéis para séries e filmes mais adultos e ousados, e uma boa parte do público adulto prefere hoje o conforto do lar a sair de casa para ver blockbusters de super-heróis, fadas e gnomos.

Por outro lado, há uma constante e nociva concentração de mercado, com controle massivo das grandes empresas produtoras e distribuidoras que, de forma paradoxal, diminuem cada vez mais a variedade de títulos nos cinemas, privilegiando os grandes lançamentos com uma quantidade cada vez maior de cópias, com incontáveis salas exibindo os mesmos filmes. Isso, facilitado pela exibição digital, que elimina a complexa logística de reprodução de cópias em suporte material (celuloide). Uma ironia, já que era previsto que a exibição digital abriria as portas para um ambiente mais plural. Aqui, no Brasil, esse domínio de mercado hoje tem seu melhor exemplo na Globo Filmes, que padronizou uma linha de montagem de cinebiografias populares e comédias de estética televisiva que, apoiada por marketing e propaganda da própria rede de TV, arrastam grandes plateias não para assistir, mas para consumir filmes semelhantes em forma e conteúdo durante o ano inteiro, já adaptados a concorrer de igual para igual com a outra parcela de filmes, também padronizados, que dominam o grande circuito comercial, os americanos. Alguns dos melhores filmes brasileiros recentes simplesmente não encontraram seu público, vítimas dessa segregação. Os novos filmes dos pernambucanos Cláudio Assis e Marcelo Gomes, A febre do rato e Era uma vez eu, Verônica, embora com bom destaque na mídia, receberam distribuição e público menor que os filmes dos citados diretores pernambucanos, lançados uma década atrás.

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INDICAÇÕES REAÇÕES, DISSIDÊNCIAS

Ainda há sinais animadores no setor, existe uma geração que assumiu um estimulante espírito de “novo cinema de guerrilha”, para tentar furar o cerco aos independentes. O Som ao redor é um ótimo exemplo. Dentro do limite financeiro para sua distribuição e divulgação, o filme consegue ser visto nos cinemas, trabalhando com divulgação nas redes sociais, em especial no Facebook, onde tem fan page, e é também um sucesso no formato digital iTunes, oferecido agora pela internet para download ou exibição online em qualquer lugar do mundo, enquanto continua em exibição em salas das capitais brasileiras e em várias cidades pelo mundo. Mas, de uma forma geral, há bastante pessimismo quanto ao cerco cada vez mais forte à chegada do cinema independente ao público. A nova cinefilia migrou para o mercado oficial e pirata de filmes digitalizados e baixados da internet. Em 2009, o cineasta alemão Wim Wenders comentou que um trabalho como Asas do desejo (1987), realizado fora do padrão industrial, a partir de um roteiro livre e improvisado, talvez não conseguisse ser financiado e produzido. E questionava: mesmo se conseguisse filmar Asas do desejo agora, haveria público para assisti-lo? David Lynch, diretor de obras aclamadas, mas pouco comerciais, como O homem elefante (1980), Veludo azul (1986) e Cidade dos sonhos (2001), todos indicados ao Oscar de melhor direção, e Coração selvagem (1990), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, realizou obras

cada vez mais “difíceis” e não encontra mais público nem quem produza seus filmes. Aos 62 anos, em 2008, declarou encerrada sua carreira nos cinemas e hoje escreve livros e corre o mundo dando palestras e seminários sobre cinema, meditação e outros temas. Steven Soderbergh, que, involuntariamente, começou essa onda de sucesso do cinema independente na virada dos anos 1990, seguiu carreira profícua de diretor e produtor, realizando sucessos e fracassos, indo de filmes mais comerciais (Erin Brockovich, Traffic, a trilogia Onze homens e um segredo, Magic Mike) a projetos quase experimentais aos quais pouca gente assistiu (Kafka, Full frontal, Bubble) e, aos 50 anos, também anuncia sua aposentadoria em filmes para cinema, pretendendo dedicar-se ao teatro e às artes plásticas, além de um projeto de um livro sobre cinema. Coincidência ou não, a saída de cena desses grandes nomes do cinema independente aponta para o final de um ciclo desse mercado, esmagado pela padronização global atual que reduziu drasticamente o espaço no circuito exibidor para filmes “fora da curva”. Em 2008, 10% do circuito nacional era formado por salas com programação alternativa. Esse número hoje está em torno de 5%, e os chamados “filmes de arte” dividem pequenas salas, com poucas sessões, muitas vezes com apenas uma exibição diária. É um cenário desanimador para os espectadores cinéfilos. E ainda não se vislumbram sinais de mudanças positivas para os próximos anos.

DRAMA

DRAMA

Direção de Michael Haneke Com Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert Imovision

Direção de Paolo e Vittorio Taviani Com Cosimo Rega, Salvatore Striano, Giovanni Arcuri Europa Filmes

AMOR

CÉSAR DEVE MORRER

O casal octagenário Georges e Anne, professores de música erudita aposentados, vive uma rotina pacata até o dia em que Anne, por um problema de saúde, entra num acelerado processo de degeneração, física e mental, levando Georges a dedicar-se a ela por tempo integral. Vencedor do Oscar 2012 de Melhor Filme Estrangeiro, o filme lança uma abordagem cuidadosa e sutil sobre o cotidiano de um enfermo, o tempo, e a vulnerabilidade dos laços diante da certeza da perda.

A obra de Shakespeare, Júlio César, ganhou releitura pelos irmãos Taviani. A dupla registrou a encenação da peça por detentos do presídio de Rebibbia, que possui um projeto social tocado por Fabio Cavalli, há mais de 10 anos ensinando teatro no local. Misturando realidade e ficção (com os detentos interpretando a si mesmos), o longa é um registro sobre como a arte pode mudar a vida das pessoas. Graças ao projeto, alguns dos participantes conseguiram liberdade.

DRAMA

CINEBIOGRAFIA

Direção de Miguel Gomes Com Teresa Madruga, Laura Soveral, Ana Moreira Espaço Filmes

Direção de Sacha Gervasi Com Anthony Hopkins, Helen Mirren, Scarlett Johansson Fox Film

TABU

Releitura do clássico homônimo de 1931, de F.W. Murnau e Robert Flaherty, Tabu conta a história de uma senhora temperamental, de sua empregada cabo-verdiana e de uma vizinha empenhada em causas sociais que moram no mesmo prédio, em Lisboa. O longa do português Miguel Gomes é dividido em duas partes, com destaque para a primorosa edição de som da segunda etapa do filme, do enquadramento pouco usual (em 4:3), e da fotografia em p&b.

HITCHCOCK

Baseado no livro de Stephen Rebello, Alfred Hitchcock and the Making of Psycho, o filme mostra os bastidores da obra-prima de Hitchcock, Psicose, e o relacionamento com sua esposa Alma Reville durante as filmagens, em 1959. Revela ao público a enorme importância que teve Alma – que também era assistente de direção, roteirista e editora – para a realização do filme, além de mostrar o obsessão do cineasta em produzi-lo, sem o apoio dos estúdios e obrigado a bancar tudo do próprio bolso.

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ADRIANA VICHI/DIVULGAÇÃO

ENCONTROS Uma senhora escritora!

Romancista conta como conheceu Lygia Fagundes Telles e as impressões que lhe deixaram a bela autora de As horas nuas TEXTO Raimundo Carrero

Leitura Ainda menino, no internato do Colégio Salesiano, aí entre 12/13 anos, fui apresentado a Lygia Fagundes Telles. Não a senhora de 90 anos, quieta e saudável, vivendo entre biscoitos amanteigados e vinho português, em solitário, mas em confortável, apartamento de São Paulo. Mas a jovem escritora, ainda romântica, que escrevia poemas sobre mães e famílias, embora rebelde e subversiva, perseguida pela polícia da maior cidade do Brasil. Assim, conheci-a por onde um poeta deve ser conhecido: pela obra, pelo poema, ainda que frágil e tímido. Naquele livrinho, ainda estava outra notável escritora paulista, Lupe Cotrim Garaude, cujo nome guardei pela sonoridade e pelo mistério – autora de Monólogos do afeto e Entre a flor e o tempo. Ela estava ali belamente embrulhada num singelo livrinho publicado pela Nestlé, em poema no qual exaltava as qualidades da mãe, em meio a outros consagrados poetas nacionais, entre eles Olavo Bilac, aquele em que a mãe desfolha pétala por pétala o coração por amor ao filho. Lamento não ter decorado o poema, que foi avidamente declamado pelos colegas no teatro onde nos reuníamos sempre às noites de domingo, para uma “hora de arte”, conforme diziam

os padres. Naquele tempo, eu ainda não sabia que me tornaria escritor, sem ter trocado uma palavra com Lygia, Fagundes Telles, que formaria, ainda, com Lupe Cotrim Garaude e Hilda Hilst, o trio das escritoras mais belas e mais sedutoras da literatura brasileira. Pena que Lupe tenha morrido tão cedo, mas Hilda viveu para escrever uma obra tão desafiadora. E Lygia triunfou pela qualidade poética e, naturalmente, pela beleza. Por uma dessas armadilhas do destino, guardei o nome de Lygia, que conheci, tanto tempo depois, subindo as escadas da Biblioteca Nacional, onde receberíamos prêmios por nossos livros – ganhei o Machado de Assis, por Somos pedras que se consomem, e ela por A noite escura e mais eu – precisou do meu apoio, porque já andava com alguma dificuldade. Lembro-me, porém, de que, entre o momento infantil e este da velhice que pretende subir degraus com algum esforço, existiu outro instante em que estivemos juntos. Foi em São Paulo, em 1977, pouco depois de publicar o meu primeiro romance, A história de Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão. Naquele ano, realizou-se em São Paulo – mais exatamente no 20º andar do extinto

Hotel San Raphael, no centro da cidade – um encontro internacional de escritores, tradutores e agentes literários, por iniciativa da Secretaria de Cultura do Governo de São Paulo, para integrar o Brasil no então chamado boom da literatura latino-americana, marginalizada na Europa e nos Estados Unidos,

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que falava apenas em argentinos, chilenos, paraguaios, uruguaios. Embora me mantivesse à distância, num encontro que tinha Jorge Amado, Rubem Fonseca, Nélida Pinon, Mário Chemie, Marcos Rey e outros tantos, vi a humilde Lygia arrumar a mesa, escolhendo copos, pratos e talheres para tradutores, editores, agentes

e até editores europeus e norteamericanos. Depois, recebia-os com um sorriso feiticeiro para almoços e jantares, num gesto de absoluto despojamento material que, aliás, transmitiu em sua numerosa obra literária. Solícita, jamais perdeu a respeitabilidade. Feminina, revelava o afeto natural nas mulheres.

Na verdade, a obra de Lygia é muito diversificada, sobretudo em temas e questionamentos, que vão do romântico, sobretudo no início da carreira, ao político. A ponte pode ser ligada desde o romance de colegiais, em Ciranda de pedra e As meninas. Ambas as obras tratando das questões sociais, através de pontos de vista femininos.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

Leitura 1

Talvez por isso, Lygia tem declarado, sistematicamente, que sua preocupação central é ser “uma escritora do seu tempo”. O que quer dizer que estará sempre atenta aos nossos conflitos, aos nossos problemas, para torná-los visíveis, numa obra que, desde o início, só amadurece e engrandece a literatura brasileira. Sem pertencer a nenhuma escola literária específica, a escritora paulista revelou sempre as características ficcionais da Geração 45, com abertura para muitos temas e a investigação da psicologia dos personagens, sobretudo os femininos, que resultam no amplo painel da sociedade brasileira, como em As meninas, que mostrou uma Lygia mais vigorosa e contundente, a coroar uma obra consagrada através de Lorena, Lia e Ana. Sem esquecer o romance As horas nuas, que traz uma escritora amadurecida, com o perfeito domínio da narrativa, já consolidado em muitos livros de contos. Agora, aos 90 anos de idade, Lygia mantém o vigor, o mesmo que a tornou militante política em

1-2 ANOS 1950 Escritora clicada ao lado do poeta Carlos Drummond de Andrade, que fez dela o retrato ao lado

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plena ditadura, e escritora decisiva, admirada pela feminilidade e paixão. De quem se pode esperar bons lançamentos, sobretudo porque mantém um público fiel, que garante as sucessivas edições, sempre disputadas por grandes editoras nacionais. Lembrando, principalmente, a repercussão internacional de sua trabalho. Em Iowa, onde estive em 1990 para participar do International Writting Program, encontrei uma universitária, Mildred, que defendia mestrado na obra de Lygia Fagundes Telles.

Uma confissão: nas minhas férias do internato do Colégio Salesiano, de calças curtas, com caderno e caneta em punho, trancava-me na sala de visitas da nossa casa em Salgueiro para imitar os contos de Lygia, copiando as frases longas, às vezes pontuadas, num ritmo preciso, com pouca ou quase nenhuma adjetivação, com um toque de ternura sem perder a gravidade, investigando, em geral, o inconsciente dos personagens, quase sempre das personagens. Queria sentir melhor aquele estilo, que envolvia a vida e o encanto das histórias, até que percebi que devia ser mais austero. Foi quando substituí Lygia por Adonias Filho, o baiano que criava personagens e histórias vigorosos. Mas não posso esquecer o tempo em que Lygia conduziu os meus primeiros passos literários, ali na casa austera e forte de Salgueiro.

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INDICAÇÕES CONTOS

TEATRO

Biblioteca Paraná

Editora 34

JOSÉ ROBERTO TORERO Papis et circenses

VLADÍMIR MAIAKÓVSKI Mistério-bufo

Vencedor da categoria do Prêmio Paraná de Literatura, o escritor e jornalista José Roberto Torero lança mão de breves narrativas, nas quais ironiza a Igreja Católica. De Pedro a Bento XVI, todo papa tem sua história contada e, virando um conto, “sua vida aumenta um ponto”, como sugere o comentário de Caetano Galindo, jurado do concurso.

Comédia, crítica social e crônica paródica, a peça pode ser lida como alegoria da Rússia revolucionária. Combinando alusões à Bíblia com rimas inusitadas – marcas de oralidade dos teatros de feira e dos circos –, o autor traça um retrato bemhumorado de uma época de mudanças radicais.

HISTÓRIA

ENSAIO

Contos

NARRATIVAS DE UM CORAÇÃO ARDENTE Ao lado de um grupo de amigos, uma garota começa a se sentir acuada diante da sua solidão, que ela considera degradante, e decide inventar que tem um namorado. Sim, um namorado bonito, médico, que dirige um carro importado. Os amigos desconfiam da sua capacidade de se envolver com um parceiro com tamanhas “qualidades”. Ela, humilhada diante do fracasso da sua farsa, está prestes a desmentir tudo. Mas, na hora, cai uma tempestade. E a campainha toca. Ninguém está sendo esperado. Seria o tal do namorado, que tem o nome de Emanuel (palavra que significa “aquele que surge”)? O final do conto Emanuel, de Lygia Fagundes Telles, é de arrepiar o leitor, que é envolvido desde o primeiro parágrafo pela dor fina e pelo incômodo traiçoeiro que essa autora, que é uma das maiores do país, imprime à narrativa. Lygia mistura elementos clássicos do gênero de terror a uma perplexidade diante da frágil condição humana. O conto faz parte da coleção de narrativas curtas Um coração ardente, lançado agora pela Companhia das Letras, que tem relançado, em edições caprichadas, a obra da autora. Os textos aqui reunidos, selecionados pela própria Lygia, foram escritos entre as décadas de 1950 e 1980. “Trata-se, pois, de um conjunto de relatos, cuja marca mais saliente é dada pelo caráter confessional. Neles, desponta, quase sempre, a subjetividade hipertrofiada de um eu narrativo que se comporta também como eu lírico, tamanha é a voltagem poética envolvida com seus registros e percepções”, afirma o crítico Ivan Marques, no posfácio. Já que a Companhia das Letras está relançando o legado de Lygia, seria uma ótima ideia trazer de volta às livrarias a coletânea Mistérios, organizada pela Editora Rocco, nos anos 1980. Nessa obra, fica evidente o quanto essa imortal da Academia Brasileira das Letras é também a nossa grande dama do fantástico. SCHNEIDER CARPEGGIANI

RUBEM SANTOS LEÃO DE AQUINO Pernambuco em chamas Editora Massangana

Publicado pela primeira vez em 2009, o compêndio tem agora segunda edição. Reúne importantes episódios (como a Revolução de 1817 e as Ligas Camponesas) que descrevem os pernambucanos como um povo libertário e sedento de justiça, desmitificando a concepção amplamente difundida do brasileiro pacífico e acomodado politicamente.

MANUEL DIÉGUES JÚNIOR Ciclos temáticos na literatura de cordel

Imprensa Oficial Graciliano Ramos

O autor classifica os cordéis de acordo os ciclos temáticos: tradicional (romances e novelas, contos fantásticos), fatos circunstanciais (de natureza física, do cotidiano) e cantorias e pelejas. E explica como essa manifestação literária ainda resiste, concorrendo com rádio, cinema e tevê.

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CREATIVE COMMONS

Artigo

RENATA PIMENTEL ENTRE O PRAZER E A MEDUSA: SOBRE LITERATURA E ENSINO O silêncio mais eloquente, a cumplicidade fincada na intimidade, em milhas de linhas que se vão percorrendo e tecendo o ser mais lá de dentro da criatura, o serleitor... O silêncio destes versos: “Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, não quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...”. Radical amante é este leitor que nos apresenta Quintana: ele quer o poema e o silêncio, para amar o livro, a leitura e conviver com o poeta, mediado pela palavra. Esse leitor rejeita crítica e outros “usos” do poema, até mesmo artísticos, que dirá interpretações! Não quer teóricos, críticos. Quer experimentar o texto e reconhecê-lo como textura artesanalmente tecida pelo autor com prazer, também sentido e recuperado pelo leitor, na aventura da leitura/fruição. Qualquer abordagem ao literário que não tenha raiz na própria escritura incorre no procedimento esterilizante comum: fazer do estudo do texto algo externo à escritura e alheio ao prazer de leitor; simplesmente, o fator que deveria ser bastante para o encontro entre professor (suposto leitor com “mais quilometragem”) e os aprendizes. A literatura é uma prática social específica e constituída por um complexo jogo de relações que se compõem num sistema literário, mas, antes de tudo, é uma construção do afeto, da educação dos sentidos, da humanização desse sujeito-leitor. Antonio Candido, em O direito à literatura, ressalta a importância de um panorama social e histórico nos estudos da literatura, já que essa “aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos”. Assim, todo homem está

imerso de alguma forma no mundo ficcional, de fabulação ou devaneio, como uma necessidade universal. Ainda no pensamento de Candido, a literatura “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente”. A literatura possui, então, uma função humanizadora que lhe permite ser um poderoso instrumento de autoconhecimento, educação e instrução. Essa afirmação justifica o fato de a literatura ser, em certos momentos, controlada por uma elite que detém o poder, pois ela, como toda expressão artística, invoca um papel político que contribui para a formação de um leitor crítico e provoca reflexão

e questionamento do discurso ideologicamente dominante. Em uma imagem: literatura, arte são vírus, para os quais não há vacina: são fortemente contagiosos e mutantes, para que não se encarcerem facilmente nem se esgotem em fórmulas.

PRAZER DE LER

Invoca-se aqui, então, o prazer, como escudo de combate à abordagem literária com discursos externos e cristalizados. Por isso, referência à Medusa: na mitologia grega, monstro capaz de petrificar aqueles que a olhassem diretamente. Mas o herói Perseu consegue decapitá-la, usando um espelho para enfrentar a inimiga sem mirá-la diretamente. Com essa imagem, pretende-se defender o

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literatura durante “primário e ginásio”. O desfecho: “sem hesitação”, ao final do ensino médio, escolhe estudar Letras. Sua profissão seria “falar de livros”. Advoga-se, aqui, a favor de certa utopia necessária, com pés no charco do poético, da imaginação que só a arte permite devidamente alimentar. Claro que em áreas técnicas (e no campo do estudo da literatura há também especificidades e requisições de dedicação, para que se chegue a um conhecimento sólido) existem exigências disciplinares, mas o semeador contaminado pela poesia vence as agruras e os obstáculos da aprendizagem, movido pelo afeto, pelo encanto. Construir o olhar dissonante e arguto no aprendiz é garantir um substrato humano de melhor qualidade, humanizado e capaz de (re)inventarse e propor soluções aos desafios da vida profissional e pessoal. Na literatura está o legado do homem, o germe capaz de despertar consciência crítica e fazê-lo exorcizar demônios e pulsões, pois ensina a sonhar, imaginar, conhecer o sublime e o abjeto. Na arte

O professor deve ser vetor de contaminação do vírus literário entre seus alunos, um leitor apaixonado literário como fonte de prazer, de saber e, nunca, de um conhecimento petrificado e petrificante... O professor deve ser vetor de contaminação do vírus literário entre seus alunos, leitor apaixonado que seduz os estudantes a se aventurarem na leitura, na experiência de aceitar o desafio de páginas, às vezes, estranhas e incômodas nos primeiros momentos. Toda arte traz em si o germe da desestabilização, do experimento: como um terreno de leis próprias, às quais é preciso se habituar pelo tato; pelo risco de adentrar um labirinto do qual não se sabe o mapa. Só no processo de envolvimento efetivo e afetivo do estudante com o desejo de saber é que se produz o conhecimento e a capacidade de questionar verdades estabelecidas.

O prazer e o gozo da leitura vem do embate com a dicção própria de cada escritor; com a compreensão da lógica interna de cada obra; com a aceitação da multiplicidade de aproximações e percepções possíveis àquele “objeto fluido” de linguagem, que, ao nos iludir, nos lança numa queda dentro de nós mesmos, como cúmplices do autor, como voyeurs. Mergulhando na fantasia, nas areias movediças, nas perversões do autor, o leitor vai se desnudando frente ao espelho. Em cena, o professor búlgaro Tzvetan Todorov, em seu livro A literatura em perigo: “Por mais longe que remontem minhas lembranças, sempre me vejo cercado de livros”. E a narrativa segue com o testemunho de que, tão logo aprende a ler, passa a devorar textos e a venerar a

se faz o que se deseja e não se pode fazer na vida: a catarse a que tanto aludiam os gregos... O literário é ferramenta para uma construção de sociedade com estudantes que aprendem além e para além das salas de aula. Que as aulas de literatura sejam educação da sensibilidade, do olhar, da leitura de mundo. Que se experimente o diálogo entre leitores apaixonados “desanestesiados das emoções prêtà-porter da cultura fast-food”. Que se estabeleça, nas aulas de literatura, a primazia ao próprio texto literário, e não o deixemos ser reduzido aos discursos teóricos, historiográficos ou críticos. A literatura sopra ao leitor atento e apaixonado os caminhos de acesso à decifração de seus enigmas (os do próprio texto e os do próprio leitor).

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Hugo Monteiro Ferreira A VIDA E A LEITURA

Hugo Monteiro Ferreira

é professor do Departamento de Educação da UFRPE e representante da Cátedra Unesco de Leitura em Pernambuco DIVULGAÇÃO

Não existe vida cultural fora da leitura. Os leitores criam e recriam a vida constantemente. O que implica dizer que são eles os que ligam e desligam os motores que movimentam as coisas e suas nuances. Logo, são os sujeitos da linguagem articulada aqueles que podem mudar e podem ser mudados pelo ato de instituir sentidos no universo social e histórico em que vivem. Todos nós somos leitores, pois construímos e desconstruímos significados desde o momento em que nos damos conta de que existimos. Somos nós, no instante em que acreditamos e não acreditamos, tencionamos e não tencionamos, dizemos e não dizemos. Somos leitores, mesmo se não formos alfabetizados, mas sendo alfabetizados, somos leitores mais amplos: é que somos capazes de dialogar com redes significativas verbais grafadas, redes combinatórias de grafemas e fonemas, de letras e sons, de palavras e sentidos. Logo quem lê, sendo alfabetizado, tem mais chances de mudar a vida instituída a partir do verbo escrito, de alterar propostas e promover proposições novas. O leitor é um propositor. Eu diria que ele é um provocador. A leitura pode fazer provocadores de vida. Estes são, no nosso entendimento, as pessoas críticas, criativas e cuidadosas. Críticas, porque não são necessariamente alienadas, não aceitam o real de modo quieto e adequado, de forma acomodada e pouco incomodada. Criativas, porque amam o novo, são neófilos, são pessoas que recusam o “já dito” e buscam incessantemente a inovação. Cuidadosas, porque conseguem uma espécie de empatia com o outro, evitando excluir, rejeitar, e recusar o diálogo saudável com as diferenças e as identidades transitórias. Lendo, desde todo o sempre, fizemos a história de nossas culturas, de nossos tempos, de nossas reflexões. Lendo, revemos o que vemos e vemos o que revemos, num processo alimentador e retroalimentador constante sobre o que dissemos ontem, hoje, e o que diremos amanhã. Lendo, inventamos, e repudiamos os absurdos, acolhemos as proposições e não aderimos aos que nos desagradam. Lendo, colocamo-nos. Não importa se livro, se filme, se música, se imagem, se pouco, se muito, se só, se acompanhado; sempre que lemos, estamos numa dinâmica complexa, provocativa e reflexiva. É essencial que nos reconheçamos leitores, com vistas a reconhecermo-nos incompletos e capazes, capazes de alterar a existência e de fazer dela aquilo que queremos, que podemos, que possivelmente pensamos passível de realizações. A leitura muda a vida e ela é mudada porque lemos: é isso.

CON TI NEN TE

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