Continente #149 - Orquestras sinfônicas

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# 149

SHIKO BODÓDROMO FESTA DO DIVINO CINEMA ALEMÃO ARQUITETURA SUSTENTÁVEL

#149 ano XIII • mai/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

ORQU E SINFÔ STRAS N ICAS Nova gera

MAI 13

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ção da músic a erud ita

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apresentam:

Cine Pe 2013. O ClássiCO que atraiu multidões. Agradecemos a todos que fizeram parte da nossa seleção campeã em mais uma edição do Cine PE. Esperamos ver você em campo no ano que vem. Até 2014. patrocínio:

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leo caldas/titular

maio 2013

aos leitores Em Limoeiro, no Agreste de Pernambuco, existe a pequena Sociedade Musical 25 de Setembro, fundada lá pelos anos 1940, para abrigar a banda de música da cidade. Ali, naquela casinha – hoje, de uma fachada azul desbotada –, encontramse crianças e adolescentes em torno de instrumentos como flauta, clarinete, tuba, pratos e trompete, mas também cellos e violinos, para executar músicas do repertório erudito, não esquecendo, também, o cancioneiro “clássico” popular nordestino. Todos os recursos precários indicariam a falência desses encontros, desse aprendizado, mas a vontade de realizar impulsiona o maestro e os aprendizes adiante. Uma situação talvez melhor vivem os meninos e meninas que estudam música erudita no Coque, comunidade pobre do Recife em que se forma a Orquestra Criança Cidadã. Subvencionados por projeto criado por um juiz de Direito, eles recebem não apenas a educação musical, mas alguma assistência social, que os estimula a seguir aquele caminho. Na reportagem que publicamos sobre eles, um dos garotos conta que, quando fez a inscrição, pensava que ia tocar guitarra, mas veio o luthier com uns instrumentos dos quais nunca ouvira falar. Em 2011, já violinista da OCC, viajou à

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Áustria, onde teve a oportunidade de estudar na mesma escola de Mozart. Possivelmente, quando nos refiramos ao estudo da música erudita, sejamos logo remetidos ao Conservatório Pernambucano de Música. Embora seja o ambiente natural para o ingresso de estudantes de música, ele também desenvolve projetos específicos de fomento à formação entre aqueles que não têm acesso facilitado à instituição. Aqui, voltamos a Limoeiro, bem como a outras cidades interioranas sedentas por esse tipo de aporte. Com as propostas itinerantes Circuito Sinfônico e Pernambuco Sinfônico, o Conservatório tem ido a diversas pequenas cidades, tanto em apresentações quanto em oficinas e consultorias profissionais. Cellos e violinos, por exemplo, somente chegaram a Limoeiro por conta do convênio estabelecido entre o município e o CPM. Esses projetos – aparentemente tímidos, quase invisíveis – repercutem como pedras jogadas no lago, porque não beneficiam apenas uma ou duas crianças, mas vão se irradiando pela família, pela comunidade, por aquela cidade e ao seu redor. Por esse motivo, achamos que o assunto merecia uma cobertura mais ampla, e realizamos a matéria publicada com destaque este mês.

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sumário Portfólio Shiko

6 Cartas

7 Expediente

8 Entrevista

60 Leitura

Denis Laurence Dutton Filósofo americano defende que o gosto estético está ligado a fatores naturais

+ colaboradores Sebastião Milaré Jornalista e pesquisador fala sobre a relevância de Antunes Filho para o teatro brasileiro

12 Conexão

Arquivos do Dops Site do Arquivo Público de São Paulo disponibiliza documentos da ditadura

20 Balaio

Diana Vreeland A editora francesa inovou nas revistas de moda americanas

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Matéria Corrida

73 Palco

Ocupação Antonio Nóbrega Itaú Cultural organiza retrospectiva da obra do pernambucano

78 Claquete

Clássicos Festival de Berlim investe na mostra de filmes restaurados e cria selo para raridades

82 Sonoras

56 Cardápio

86 Artigo

Bodódromo Em Petrolina, um lugar reservado para a degustação da carne de caprinos

14

José Cláudio Coleção Odorico e eu

40 Perfil

Changuito Português cria a única livraria especializada em poesia no Brasil

Artista paraibano mostra como a formação visual entre a religiosidade e o erotismo pode resultar em obras instigantes, dentro do universo pop

Maurício Cavalcanti Compositor lança seu terceiro disco autoral, Simples e composto

Jarmeson de Lima Por um acervo permanente da música digital e analógica

88 Saída

Weydson Barros Leal Sugestões

Tradição

Festa do Divino Celebração católica, trazida ao Brasil no período colonial, é um dos mais importantes festejos da cultura popular maranhense, que mobiliza outras religiões

44 Capa ilustração Cargo/Image Zoo/Corbis

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Especial

Arquitetura

Projetos como o das orquestras sinfônicas jovens aprimoram o conhecimento e estimulam a formação de plateia para a música nos centros urbanos e no interior

São cada vez mais frequentes projetos construtivos que evitam o desperdício de materiais e o uso excessivo de energia, favorecendo o meio ambiente

Viagem

Visuais

A escolha do jesuíta Jose Mario Bergoglio como papa coloca novamente em destaque o conjunto de edificações ligado à ordem católica na Argentina

Registros domésticos, produzidos para consumo particular e desprovidos de pretensões estéticas, são negligenciados nos estudos e na história da fotografia

Música erudita

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La Manzana de las Luces

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Sustentável

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Mai’ 13

Fotografia

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roberta guimarães

cartas Fomos surpreendidos com vocês em nossos ranchos, sem a gente saber do que se tratava. Só agora com esta publicação online estamos entendendo o teor da visita desautorizada, uma verdadeira falta de respeito! Vários ciganos do RN não gostaram da invasão e nem sabiam para que essas fotos seriam utilizadas. No RN, temos várias lideranças, mas nas cidades de Tangará, Serra Caiada, Apodi, Santo Antônio do Salto da Onça, Macaíba e Mossoró, a liderança é Antônio Calon.

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140).

DIANA CALIN RORARANI

Ciganos I A partir dos encontros e desencontros da aproximação com os ciganos do Rio Grande do Norte, parti para uma perspectiva mais abrangente, de pensar o cigano como uma negativa. Dei-me conta de que o maior problema do povo cigano não é somente a discriminação étnica, mas, principalmente, a negativa: nega-se vergonhosamente o acesso do povo cigano às estruturas curriculares educativas do Brasil e, principalmente, às políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro. Quando entramos no universo dos significados que chamamos cultura cigana sempre corremos o risco das generalizações. E, nesse sentido, a Continente descortinou todas as estruturas culturais que se opõem “à modernidade, à racionalização e ao capitalismo”, de forma muito responsável e real: a realidade do povo cigano no Nordeste brasileiro – a mais importante reportagem/matéria já produzida coloca em pauta as discussões sobre preconceito/racismo/ exclusão e isolamento. Discussões que a última audiência pública em Brasília pontuou muito bem. É um discurso histórico recorrente no qual vive ainda grande parte do povo cigano na Região Nordeste. O estado do Rio Grande do Norte e os ciganos calons agradecem a iniciativa e principalmente a

visibilidade que a Continente lega às lutas ciganas dentro de uma perspectiva de ação política e de identidade. Muito obrigada. CARLA ALBERTA GONZALEZ Y GONZALEZ LEMOS HISTORIADORA, INTEGRANTE DO PROJETO DE PESQUISA DESENVOLVIMENTO CULTURAL ÉTNICO DO RIO GRANDE DO NORTE (PPDCE – RN)

Ciganos II Apesar de morar em Fortaleza, sou leitor assíduo da Continente e, quando não vou ao Recife, compro na Livraria Cultura de minha cidade. Gostei muito do material sobre os ciganos, pois esclarece alguns fatos sobre a cultura desse povo tão desconhecido e incompreendido. Tenho um blog no qual publiquei duas postagens sobre a cultura do povo cigano e achei que vocês poderiam gostar. Estou enviando os link do blog: olmirdeoliveira.blogspot.com.br.

RIO GRANDE DO NORTE

RESPOSTA DA REDAÇÃO Todas as visitas feitas aos ranchos citados na matéria foram previamente agendadas com as lideranças locais, inclusive, temos documentos autorizando a publicação de fotos e entrevistas. Ressaltamos que, em momento algum, os ciganos contatados nos municípios de Apodi e Serra Caiada, aos quais a senhora se refere, citaram Antônio Calon como líder do grupo.

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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OLMIR OLIVEIRA FORTALEZA – CE

Ciganos III Ao professor Renato Athias: parabéns pela contribuição! O senhor escreveu um excelente artigo. Acompanho os ciganos calon no RN. SILVIA MARIA DO CARMO UFRN (NATAL – RN)

Ciganos IV A matéria publicada na edição 147 nos causou muito desconforto.

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colaboradores

Leo caldas

Luciana Veras

Mariana camariti

Ronaldo Bressane

Fotógrafo, com trabalho publicado em vários jornais e revistas do país

Jornalista, produtora e especialista em Estudos Cinematográficos

Jornalista, residente em Buenos Aires, com trabalho voltado à cobertura cultural

Jornalista e escritor, publicou, entre outros, os livros Céu de Lúcifer e O impostor

e MAiS Amy Loren, jornalista. André Dib, jornalista e crítico de cinema. carlos eduardo Amaral, jornalista, crítico de música erudita e mestre em Comunicação. eduardo césar Maia, jornalista, mestre em Filosofia e doutor em Teoria da Literatura. Jarmeson de Lima, jornalista e produtor cultural. José Afonso Jr., fotógrafo, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da uFPE. Júlia Kacowicz, jornalista, especializada em meio ambiente. Márcio RM, fotógrafo. Marcos Michael, fotógrafo. Mariana camaroti, jornalista. Mattias & Ray, caricaturista e ilustrador. Pollyanna Diniz, jornalista e organizadora do blog Satisfeita Yolanda. Sérgio Barza, músico, regente e professor do Conservatório Pernambucano de Música. thiago côrrea, jornalista e mestre em Teoria da Literatura. tiago calazans, fotógrafo. Weydson Barros Leal, poeta e crítico de arte.

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SEBASTIÃO MILARÉ

“O teatro tem que imprimir algo na alma” Jornalista, crítico e pesquisador teatral fala sobre a obra e o método de formação de atores do diretor Antunes Filho e faz importantes considerações sobre a situação das artes cênicas hoje no Brasil texto Pollyanna Diniz

con ti nen te

Entrevista

Quem estava no palco era a atriz Cleyde Yáconis. Interpretava Yerma, personagem que dá título à peça de Federico García Lorca. A encenação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), sob direção de Antunes Filho, deixou um jovem de 16 anos impressionado. Ali, Sebastião Milaré começava a compor a sua compreensão sobre o teatro que, décadas depois, define como “encontro com o sagrado”. O hoje jornalista, crítico e pesquisador ainda iria se deparar muito com aquele diretor: uma figura de jeito peculiar, e um gênio do teatro no Brasil, criador de um método para atores e de encenações que marcaram época, como Macunaíma, de 1978. Sobre Antunes Filho, escreveria três livros: Antunes Filho e a dimensão utópica, Hierofania – o teatro segundo Antunes Filho e ainda Antunes Filho – poeta em cena, este último o mais recente, elaborado a partir dos registros fotográficos de Emidio Luisi. “Antunes sempre gostou do que eu escrevia, desde que comecei a fazer reportagens sobre o trabalho dele. Construímos um respeito mútuo”, diz. Se as obras de Milaré sobre Antunes Filho são fundamentais para

a história do teatro brasileiro, agora, o pesquisador tem nas mãos um material de dimensão inédita. Por conta da série Teatro e Circunstância, do Sesc TV, Milaré entrevistou mais de 100 grupos de Belém a Porto Alegre, delineando a produção teatral desde a década de 1970. No Recife, conversou com o Teatro de Amadores de Pernambuco, o Coletivo Angu de Teatro, o Mão Molenga Teatro Bonecos, a Companhia Teatro de Seraphim, o grupo Magiluth e ainda com os jornalistas e pesquisadores Leidson Ferraz e Luís Reis. Com todo esse arquivo, vai se dedicar a escrever um livro sobre o teatro brasileiro contemporâneo. CONTInENTE Quando você viu uma peça de Antunes Filho pela primeira vez? SEBASTIÃO MILARÉ Aos 16 anos, em 1962, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), vi Yerma, de García Lorca. Não conhecia Antunes, nem o texto. Ia ver muitas coisas, mas não conhecia as figuras do teatro. Quando vi aquela Yerma, o teatro começou a significar o extraordinário. No dia seguinte, comprei as obras completas de García Lorca, comecei a ler tudo e a acompanhar o

que Antunes fazia. Depois, em 1965, ele foi convidado para ser o professor de interpretação do 3º ano da EAD (Escola de Arte Dramática da USP), que era o responsável pela encenação do final do curso. E optou por fazer A falecida, de Nelson Rodrigues. Eu tinha vários amigos dentro da EAD, então acompanhei a montagem. E foi aí que tive os meus primeiros contatos com Antunes. Só bem mais tarde, quando já estava na revista Artes, comecei a fazer matérias sobre o seu teatro. Lembro Peer Gynt, de 1971. Era o grande espetáculo daquele ano e pedi uma entrevista. Quando cheguei ao teatro, Antunes me pegou pelo braço: “Vem cá, vem cá”, e me levou para uma sala. Para a minha surpresa, numa mesa estavam Maria Bonome, que era a figurinista, Laonte Klawa, cenógrafo, Stênio Garcia, que fazia Peer Gynt, Jonas Bloch, Ariclê Perez. E Antunes me disse: “A entrevista tem que ser com todos, porque todos são criadores do espetáculo”. Isso, em 1971, era uma visão bastante avançada do teatro de grupo. Antunes foi o primeiro que fez laboratório no teatro brasileiro, em 1964, com Vereda da salvação.

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já começou a admitir – que ele estava constituindo um método para ator, mas estava muito no início, embora já desse resultado em cena. E sabia que tinha que fazer um livro especificamente sobre o CPT e sobre o processo criativo do Antunes lá dentro. Já na introdução do primeiro livro, prometo o segundo, que avança no aspecto da sua obra a partir de Macunaíma, no CPT e dentro do grupo Macunaíma. Era um projeto desde aquela época, mas não sabia que iria demorar tanto! Eu só poderia dar por

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CONTInENTE E daí para o primeiro livro, Antunes Filho e a dimensão utópica, qual foi o caminho? SEBASTIÃO MILARÉ Escrevi muitos artigos sobre Antunes. Quando o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) já estava instituído dentro do Sesc, e ele tinha esse lugar que possibilitava a continuidade do trabalho, fiz um ensaio sobre o CPT. Percebi que Antunes estava trabalhando um método para ator, embora ele dissesse que não. Falei para Ulysses Cruz, que era assistente dele, que pensava em escrever um

con ti nen te

CONTInENTE O que fazer para ser um ator, segundo Antunes Filho? SEBASTIÃO MILARÉ O ator tem que lutar para terminar com todos os bloqueios, tanto no físico quanto no espírito. Para o corpo, há uma carga extraordinária de exercícios, até que ele fique destravado e obedeça a um comando qualquer que você dê. O corpo não pode ter tensões desnecessárias. Ombros duros acabam com a respiração. Quando o ator consegue chegar a um estado de relaxamento ativo, consegue ter domínio da respiração. E quando há domínio da

“Antunes (esq.) mostra que, para fazer teatro, você pode dispensar cenário, luz, figurino, texto. Mas sem ator não tem teatro. Ele fez no Brasil a mesma coisa que outros da geração dele, fora do Brasil, como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba”

Entrevista livro. Mas Ulysses disse que não falasse nada para ele, porque Antunes tinha medo: “Ele acha que escrever um livro sobre ele é anunciar a morte”. Mas eu não podia fazer uma biografia não autorizada! Fiz um projeto e mostrei a Antunes. E ele fechou comigo! Passei a acompanhar o CPT, a montagem toda de A hora e a vez de Augusto Matraga (1986). Para ir me assegurando de como era o trabalho dele. Os processos do Antunes são sempre demorados e o meu também foi. E fiz Antunes Filho e a dimensão utópica, que foi o primeiro livro, que trata dele até Macunaíma (1978). CONTInENTE Mas por que até Macunaíma? SEBASTIÃO MILARÉ Porque ficou cada vez mais claro – e aí o Antunes

terminado um livro sobre o método quando ele desse por concluída a sistematização que estava fazendo. Por isso foram quase 20 anos!

CONTInENTE Para Antunes, o ator é a peça fundamental. SEBASTIÃO MILARÉ Antunes deixa claro que, para fazer teatro, você pode dispensar cenário, luz, figurino, até o texto. Mas sem ator não tem teatro. Antunes fez no Brasil a mesma coisa que outros da geração dele, fora do Brasil, como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba. Antunes fazia um trabalho sintonizado com tudo isso. Sempre briguei muito com essa história: “Ah, o Antunes está fazendo Grotowski”. Não está fazendo Grotowski! Ele bebe nas mesmas fontes, porque é da mesma geração, tem a mesma inquietação, o mesmo espírito do tempo o está dominando.

respiração, ele consegue tudo. Porque, para Antunes, ator é respiração. E, por outro lado, a questão do intelecto, da psique, do espírito. O ator tem que ser desbloqueado. Temos muitas travas culturais, preconceitos. O ator não pode ser assim; é a mesma coisa de ter travas no corpo, a trava de um pensamento condicionado a certas manias. Acaba com a possibilidade de criação. Então, para isso, é preciso muita leitura, conversa e um permanente trabalho de autoconhecimento. O processo do Antunes está atrelado ao processo de individuação, como prega Jung. CONTInENTE Quais os paralelos entre Nelson Rodrigues e Antunes? Como foi a relação entre os dois? SEBASTIÃO MILARÉ Quando falamos em Nelson, estamos falando do maior poeta dramático de língua portuguesa desde Gil Vicente. Ele está à altura dos grandes clássicos, de Shakespeare,

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respeitada. Acho sacanagem contar a história do teatro moderno brasileiro sem apontar o Recife: ficar naquela história que só cita Os comediantes e depois o TBC. Acho que tem que entrar nesse processo o Grupo Gente Nossa, Valdemar de Oliveira e o Teatro de Amadores de Pernambuco, Hermilo Borba Filho. Hermilo não estava importando o que estava acontecendo em São Paulo, mas traz a consciência: temos que trabalhar e transformar nossa realidade em códigos artísticos dentro do teatro. Isso tudo faz parte do processo de modernização do

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de Ibsen. O que Shakespeare fez foi contar seu momento, e construir toda uma visão de mundo a partir disso. Nelson fez a mesma coisa e num nível poético de extraordinária beleza, força e vigor. A relação de Antunes com Nelson foi importante para os dois, e transformadora. Porque, quando Antunes fez, em 1981, Nelson Rodrigues – o eterno retorno, mudou a visão das pessoas em relação a Nelson Rodrigues. Infelizmente, Nelson não chegou a ver o espetáculo: morreu seis meses antes da estreia. Mas a assistente de Antunes

SEBASTIÃO MILARÉ O teatro é o ator, antes de tudo, mas sem a plateia ele não existe. Porém é complicado formar plateia. A periferia de São Paulo tem vários grupos de um nível extraordinário, de um trabalho estético de importância: Brava, Dolores Boca Aberta, Clariô. O trabalho estético deles nasce do convívio com a comunidade onde atuam. Não é a coisa paternalista: “Ah, coitadinhos, nunca viram teatro”, mas, sim: “Esta é uma realidade que nos interessa como matéria-prima para a nossa criação e não para fazer discursos panfletários.

“O que Shakespeare fez foi contar seu momento. Nelson fez a mesma coisa e num nível poético de beleza, força e vigor. Quando Antunes fez Nelson Rodrigues – o eterno retorno, mudou a visão das pessoas em relação a ele” na época, a Leonor Chaves, ia para o Rio e era recebida por Nelson, para consultá-lo sobre questões. Uma pena que ele tenha morrido antes da estreia. CONTINENTE O teatro é um processo histórico. Mas, mesmo sem o distanciamento exigido, você consegue delimitar em que momento estamos e que caminhos trilharemos? SEBASTIÃO MILARÉ Acho que o teatro brasileiro tem maturidade e vitalidade, de Norte a Sul. Não estou falando do eixo Rio-São Paulo. O que se percebe é que existem projetos artísticos audaciosos e uma preocupação e uma consciência dos criadores de que, para chegar a realizar aquela ideia, é preciso se preparar intelectualmente, pesquisar muito, a cabeça tem que estar aberta. CONTIENTE Como você enxerga o teatro feito no Recife? SEBASTIÃO MILARÉ O Recife tem uma tradição de teatro que tem que ser

teatro brasileiro e o Recife participou de maneira intensa, com figuras importantes. O que percebo é que esse vigor e essa herança dão frutos hoje. Isso passa pela Companhia Teatro de Seraphim até o Magiluth, que é um grupo de uma capacidade de percepção teatral muito grande. Quando o Magiluth faz Um torto e Aquilo que meu olhar guardou para você, enxergo experiências cênicas importantes. E, ao mesmo tempo, eles têm a coragem de fazer O canto de Gregório (texto já montado por Antunes), com aquela capacidade artesanal, mostrando que sabem realmente fazer teatro. No repertório, tem ainda Viúva, porém honesta; e fazem como se fosse uma extensão do próprio Nelson; têm as mesmas condições de Nelson Rodrigues, porque são da mesma terra, têm as mesmas heranças culturais. CONTInENTE Uma discussão recorrente: como formar plateia no Brasil?

Porque o drama humano está ali e isso é o que interessa”. Mas é preciso conhecer profundamente esse drama para conseguir transformá-lo em códigos artísticos em cena. Nesses grupos todos, quando vou para a periferia para ver um trabalho deles, percebo que a receptividade do público é extraordinária. Não lhes falta público jamais. São códigos que eles criaram. Não é uma coisa fácil, que você vê na televisão. É uma obra de arte! Mas tem um diálogo maravilhoso e aquele público está entregue. Isso é formação de plateia. Não é criar evento. Não é aquela plateia que vai ver espetáculo e depois come pizza. Essa plateia não me interessa. Como não me interessa quem faz teatro para isso. Acho que teatro é uma coisa muito mais séria. Aquelas “comediazinhas”...você ri, ri, depois vai comer pizza. E esquece, não leva nada daquilo. O teatro tem que imprimir algo na alma do espectador.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

ORQUESTRAS JOVENS

ARQUITETURA

O papel mais relevante que elas têm realizado é o de formação para a música. Se observarmos os ambientes inóspitos em que isso se dá, valorizaremos a iniciativa. Complementando a especial sobre orquestras sinfônicas jovens, oferecemos online documentários sobre a OSJ do Conservatório de Música e a Cidadã, do Coque. No contexto latino-americano, escolhemos um vídeo sobre o venezuelano Gustavo Dudamel, revelado como regente da orquestra jovem do seu país. Ainda, um texto sobre a execução, pelas OSJs, de obras de compositores contemporâneos.

Conheça alguns detalhes de cinco construções, espalhadas pelo mundo, que apostam na chamada arquitetura sustentável, como o London City Hall.

Conexão

VISUAIS Confira outras obras selecionadas para a exposição Cantos cuentos colombianos e os textos do prefácio e da apresentação do catálogo da mostra da Casa Daros (RJ).

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

MÚSICA

CINEMA

EDUCAÇÃO

VISUAIS

Educação musical para bebês conta com arranjos de autores pop e clássicos

Sai edição brasileira de revista que tematiza a produção de Bollywood

Vídeos e textos sobre o educador e filósofo Paulo Freire para download

Arista preocupa-se em integrar o espaço público à sua produção

www.rgsmusic.com.ar

bollywoodbrasil.com.br

acervo.paulofreire.org/xmlui

jr-art.net

Já imaginou canções de ninar gravadas com arranjos dos Beatles, de Michael Jackson, Bob Marley e Elvis Presley? O site argentino RGS Music tomou a iniciativa de adaptar várias canções de astros do rock internacional e da música pop para versões mais relaxantes. Instrumentais, foram gravadas pela Sweet Little Band e estão compiladas no acervo intitulado Babies Go, do próprio site, podendo ser ouvidas no Youtube. Bee Gees, Elton John, Pink Floyd, Led Zepellin, Madonna e Kiss são alguns nomes da extensa lista de artistas. Mozart e Bach também ganharam versões sonoras para os pequenos.

Apesar de bem-sucedida financeiramente, a indústria cinematográfica indiana, ou a Bollywood, como ficou conhecida, ainda é desconhecida do público brasileiro. Mesmo em festivais em que as curadorias optam por filmografias alternativas, raramente títulos dessa procedência são incluídos. Com o intuito de difundir a produção bollywoodiana, chega a Revista Bollywood, 1ª publicação do segmento em português. Gratuita, teve sua primeira edição em março deste ano. Junto à revista, foi criada a primeira distribuidora de filmes indianos no país, a Bollywood Filmes.

Responsável pela preservação e divulgação da produção intelectual do educador e filósofo Paulo Freire, o Centro de Referência Paulo Freire oferece, em acervo virtual, vídeos, manuscritos, teses, projetos e outros trabalhos do pernambucano. A iniciativa faz parte do Projeto Paulo Freire Memória e Presença – Preservação e Democratização do Acesso ao Patrimônio Cultural Brasileiro e está no ar desde 2011, quando Freire completaria 90 anos. Além da divulgação dos textos escritos por ele, o projeto também oferece mais de 2 mil páginas de trabalhos sobre o autor.

Além de usar o espaço público como galeria, JR se preocupa em construir uma arte que dialogue com os lugares e que possa, assim, retratá-los. A técnica que ele utiliza é a de fotografias impressas em imensos lambe-lambes, que são fixados nas edificações. Em sua passagem pelo Rio de Janeiro, em 2008, o artista “invadiu” o Morro da Providência, com a série de fotos Women are heroes. Com sua arte-denúncia, JR trata dos limites e da liberdade – ou da sua falta. No site, ele anuncia novos projetos e a repercussão dos já realizados. Por lá, também é possível comprar os livros do artista, pôsteres e litogravuras.

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blogs LOS ANGELES laimyours.com

O Los Angeles I’m Yours pode ser confundido com um guia para turistas. Mas, segundo Bobby Salomão, fundador do blog, trata-se de uma declaração de amor à cidade. Além de mostrar o que acontece por lá, o site abre espaço para novos artistas locais.

URBANISMO raquelrolnik.wordpress.com

DOcumentos da ditadura à disposição Arquivo público paulista cria seção na qual é possível pesquisar acervo do departamento que mantinha controle político durante o golpe militar arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica/index.php

É possível que muitos das novas gerações sequer saibam o que significa a palavra comício, pois estão sendo apresentados à política via debates de TV. Mas, certamente, esses mesmos indivíduos são fluentes na linguagem eletrônica. Embora longe de ser exclusiva a essa faixa etária, a criação da seção Memória Política e Resistência, dentro do site do Arquivo Público do Estado de São Paulo, constitui excelente ferramenta para aproximação do público com a memória recente da repressão política no Brasil, durante o golpe militar. E não apenas com essa época, pois os arquivos que estão sendo digitalizados são fichas e prontuários produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops-SP) desde a sua criação, em 1923, à sua extinção, em 1983. Durante a ditadura, o Dops paulista foi um dos mais atuantes na vigilância e repressão aos cidadãos. O usuário pode acessar links que informam as ações que estão sendo realizadas a partir da digitalização desse acervo. O link Pesquisa permite o acesso a digitalizações de boletins informativos, livros e portarias, fichas e prontuários, e documentos da anistia. Enquanto alguns dos itens disponíveis são visualizados diretamente, outros demandam indicação de palavrachave ou informações como data dos documentos de interesse, apontando pesquisa mais avançada. adRIANA DÓRIA MATOS

Professora de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik usa seu blog para apontar a necessidade de maior atenção para o uso do espaço, seja ele público ou privado.

ILUSTRAÇÃO edwardkinsella.tumblr.com

Com trabalhos publicados em revistas como The New Yorker e Rolling Stone, Edward Kinsella posta em seu blog desenhos de seus sketchbooks.

PLÁGIO naogostodeplagio.blogspot.com.br

Denise Bottmann, autora do blog Não Gosto de Plágio, trata especificamente do plágio em traduções de livros. Ela analisa diferentes versões de uma mesma obra e mostra como acontece esse fato em traduções.

sites sobre

skate VÍDEOS

NOTíCIAS

feminino

mostlyskateboarding.net

cemporcentoskate.oul.com.br

skatefemininobrasil.blogspot.com.br

O Mosty Skateboarding apresenta vídeos com manobras, além de publicar no seu tumblr fotos e frases relacionadas ao skate.

O Cem Por Cento Skate é um portal de notícias com calendários de competições, entrevistas com skatistas renomados e colunas fixas.

O Skate Femino Brasil funciona como outros portais do gênero, com a diferença de focar nos interesses das mulheres.

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Shiko

BASEADO NA CULTURA POP TEXTO Olivia de Souza

Quando criança, muito do que Francisco José de Souto Leite compreendia como arte vinha,

literalmente, de duas paredes bem distintas. Eram as imagens de santos da casa de seus avós e os pôsteres de mulheres peladas da oficina mecânica de seu pai. Seu trabalho resulta exatamente da junção desses dois mundos: a exuberância estética tanto das imagens sacras quanto das pin-ups, ambas ligadas a elementos da cultura pop presentes no cotidiano suburbano. Os livros do “velho safado”, Charles Bukowski, a revista Animal (publicação de quadrinhos lançada nos anos 1980), o cinema, o rock’n’roll. A estética urbana sempre se fez presente no imaginário de Shiko – como é reconhecido no meio artístico –, que nasceu em Patos, alto sertão da Paraíba, em 1976. Tais referências, apesar de conectadas a um mundo até então distante dele, transpuseram as barreiras geográficas e o fizeram um artista antenado com o seu tempo. “Cresci muito longe de escolas de arte e de museus, numa era pré-internet, um menino leitor de gibis e livros de bolso. Então, minhas influências sempre foram do ‘baixo clero da arte’. Capas de livro de espionagem e terror, shapes de skate e camisetas de bandas de rock, capas de discos de metal, gibis do Conan, cartazes de filmes de faroeste, tatuagens, entre outros”, comentou. Ilustrador, quadrinista, grafiteiro e animador de cinema. São muitos os adjetivos profissionais que se aplicam a Shiko – menos o de artista plástico, título que nega veementemente, apesar de dominar técnicas como aquarela, nanquim e acrílica.

Página anterior 1 temática

Universo underground interessa ao artista

Nesta página 2 releitura

oça com brinco M de pérola, de Vermeer, foi "atualizada" por Shiko

MULHERES 3 Corpos sensuais são recorrentes em seus trabalhos

4 frida khalo Obra em diálogo com iconografia religiosa

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Sua arte estampa capas de discos, livros, storyboards, flyers, cartazes, quadrinhos, anúncios publicitários. Seu trabalho também tem sido visto em exposições coletivas e individuais. Seu universo artístico, bastante autorreferente, contempla o erotismo, a melancolia e a solidão dos bares, música, religião, cinema. “Acho que é assim que funciona com todo mundo. A gente vê, ouve e lê um monte de coisa que, depois, decanta no fundo do juízo para bem mais tarde ser recolhido e transformado. Até hoje, os quadrinhos são a minha escola e são eles que me impõem os maiores desafios, não só estéticos, mas narrativos”, disse o paraibano, que faz parte do leque de artistas escolhidos para realizar releituras de personagens da Turma da Mônica. Atualmente, trabalha na HQ de Piteco, que deverá ser lançada ainda este ano.

Uma das marcas registradas de seu trabalho são as provocantes mulheres sensuais e hiperrealistas, como a da pintura Da mulher e suas circunstâncias, de uma releitura erótica da personagem Olivia Palito (da HQ Popeye), e de outra, da famosa pintura Moça com brinco de pérola, do holandês Johanes Vermeer, que ganhou dreadlocks e piercings no lugar do clássico adereço. “Por que desenhar tantas mulheres? Porque as meninas são bonitas e os caras são feios. E elas têm tantos tipos de roupas, de penteados, pulseiras, colares, meias, maquiagem... É uma estética muito mais rica. E acho que, sendo homem, é natural que eu tenha prestado muito mais atenção nas meninas durante a minha vida, de modo que posso abrir um caderno e desenhar uma moça, mas também uso muita foto e, algumas vezes, desenho com modelo”, afirmou. Recentemente, Shiko foi morar em Florença (Itália) para acompanhar a esposa, que faz doutorado na cidade. O acaso acabou lhe sendo bastante conveniente, visto que o país foi

01-5 retrato

Shiko cria com realismo figuras prosaicas

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erotismo

Chama atenção em seu trabalho a referência ao sexo

01-7-9 música

Muitos de seus desenhos são relacionados a esse campo

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Astronauta e Olívia Palito são personagens retrabalhados pelo paraibano noturno

Aquarela aponta para

domínio técnico de Shiko

berço de grandes artistas como Guido Crepax (Valentina), Tanino Liberatore e Stefano Tamburini (Ranxerox), referências diretas do quadrinista. Com planos futuros de voltar para João Pessoa, por enquanto, Shiko sossega e produz. A distância não é problema para ele, que envia seus trabalhos por e-mail. “Ter vindo morar aqui não mudou muita coisa na engenharia do trabalho. A grande diferença é que produzo muito mais, já que não tem tantos amigos me chamando para cervejinhas, prainhas e almoços.”

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50 anos de uma dúvidA

A elegância da mente Quando se fala em revolução na moda, o primeiro nome que vem à mente é o de Coco Chanel. Mas, em se tratando de atuação jornalística, seria injusto esquecer Diana Vreeland (1903-1989). Como editora de moda da Harper’s Bazaar e editora-chefe da Vogue, a parisiense radicada em Nova York promoveu algumas das inovações que até hoje podem ser percebidas nas publicações do setor. Ela foi a primeira a publicar fotos de mulheres de biquíni (e, depois, de topless); a valorizar modelos de vários continentes, como também moças que fugiam ao padrão de beleza da época; abriu espaço para reportagens sobre assuntos como música, cinema, artes plásticas. Despertou o olhar para a possibilidade de fotos artísticas nos ensaios de moda, levando, inclusive, top models, fotógrafos (como Richard Avedon) e equipe de produção para realizá-los em vários países. Diana tornou interessante e tratou como arte uma área de criação que antes era vista apenas como necessidade ou futilidade. Dinâmica, criativa e perspicaz, adorava soltar frases de impacto. Numa delas, afirmou que “a única elegância real está na mente; se você tem isso, o resto virá realmente daí”. Como se vê, uma rebeldia para alguém cujo propósito do trabalho era, na realidade, “vender” as maiores marcas do mundo . DÉBORA NASCIMENTO

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A FRASE

“Não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos.”

Parece que o mundo literário não está dando muita bola para a data redonda de um dos livros mais impressionantes do século 20: O jogo da amarelinha, obra-prima de Julio Cortázar que foi publicada em 1963. O romance conseguiu sobreviver ao perigoso prazo de validade das vanguardas por uma simples questão: é uma delícia de ser lido. A trama nos coloca num labirinto que avança e retrocede, oferecendo inúmeras possibilidades de leitura (você escolhe se quer acompanhar seus 56 capítulos na forma clássica ou, digamos, de uma maneira mais fluida). No entanto, ousadias à parte, o que nos seduz é mesmo a tal dúvida de “onde está Maga?”. (Schneider Carpeggiani)

Balaio o mal pela raiz

O mercado de entretenimento americano tem dessas coisas, de mexer no que está quieto, no que aparentemente já está consumado. No começo deste ano, dois seriados estrearam sob essa premissa, conhecida como “prequela” (que significa, resumidamente, criar uma obra cuja pretensão é a de explicar os antecedentes de uma outra, pré-existente). Um deles é Hannibal, produzido pelo canal NBC, com Mads Mikkelsen no papel-título, e que é centrado em eventos prévios aos do clássico O silêncio dos inocentes (que tinha Anthony Hopkins no papel do canibal). Já Bates Motel (A&E Television Networks) brinca com tesouro ainda mais precioso, ao retratar a vida de um Norman Bates adolescente, com Freddie Highmore (foto) encarnando o personagem vivido por Anthony Perkins, em Psicose. (André Valença)

Anaïs Nin

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criaturas

outro graciliano As datas redondas, ou efemérides, são ovos de ouro do jornalismo e da publicidade, já que servem para requentar o pão. Na melhor das hipóteses, são boas oportunidades para revisões e revelações. Mas, sejamos justos, não são apenas esses dois setores que se locupletam com as efemérides. Os 120 anos de nascimento e 60 de morte do alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) têm servido de pretexto para universidades, editoras e para o cinema. Entre as homenagens, insere-se o documentário O universo Graciliano, em que Sylvio Back busca, pela coleta de depoimentos, desconstruir a imagem de carrancudo e misantropo que marcava o autor de Vidas secas. O cineasta foi em busca do “lado pitoresco” do escritor. No doc, Graciliano é apresentado como um homem charmoso e conversador pela filha do escritor José Lins do Rego, enquanto que o historiador Ivan Barros conta causos de um Graciliano capaz de pular muros de Palmeira dos Índios (AL), para encontrar com amantes. Pobre Graça! Isso é lá homenagem que se faça ao criador de Baleia? (Adriana Dória Matos)

homenagem a ebert A morte do crítico de cinema Roger Ebert (foto) entristeceu muitos, e tomou de surpresa os que não sabiam de sua condição. Ebert lutava contra o câncer há muitos anos, e já havia perdido a capacidade de falar, embora não tenha deixado de publicar seus artigos até o fim. Uma das pessoas que não se surpreendeu com a notícia foi Robert Mankoff, o editor de cartuns da New Yorker. A revista faz um concurso semanal para escolher a melhor legenda para um cartum. Ebert era um ávido participante, desde que ganhou a competição na edição de número 281. Quando não recebeu a contribuição do crítico para o desafio do número 375, Mankoff soube que havia algo de muito grave acontecendo com ele. Como homenagem, publicou uma coletânea das melhores contribuições de Roger Ebert à seção no site da revista. (Yellow)

Jamelão, 100 anos Por Mattias & Ray

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FORMAÇÃO Erudita vai às pequenas cidades

Com sua Orquestra Sinfônica Jovem e programas de itinerância, o Conservatório Pernambucano de Música tem preparado integrantes para a execução de peças musicais em lugares onde tal programação é escassa texto Carlos Eduardo Amaral Fotos Léo Caldas

“Boa tarde, maestro!” A saudação

vinda daquele desconhecido que acabara de frear sua bicicleta para cumprimentá-lo, em outras circunstâncias, seria recebida com naturalidade, mas foi uma surpresa para o maestro José Renato Accioly. Aquele senhor simples reconheceu o regente porque havia ido ao concerto da Orquestra Sinfônica Jovem, um ano antes. Para municípios de vida pacata, a presença de um grupo numeroso de músicos, e principalmente quando ocorrida na igreja matriz, tem a repercussão de um grande evento. Esse é apenas um episódio que demonstra o quanto a OSJ do Conservatório Pernambucano de Música tem-se tornado popular no interior desde 2006, quando começou a turnê Circuito Sinfônico, patrocinada pela Chesf – além do projeto Pernambuco Sinfônico, em 2011, financiado pela Petrobras. Nessas viagens, a permanência do grupo em cada localidade quase nunca chega a 24 horas: pegam a estrada pela manhã, descansam no início da tarde, realizam o concerto-aula à tardinha e apresentamse com casa cheia à noite. No entanto, a

A OSJ fez concertos em 42 municípios diferentes, do Ceará ao Sergipe, incluindo a turnê Pernambuco Sinfônico vivência é intensa e nada monótona para os integrantes da caravana. Os concertos da OSJ já tiveram lugar em 42 municípios diferentes, do Ceará a Sergipe, incluindo os da turnê Pernambuco Sinfônico. Já nos últimos quatro anos, o Circuito Sinfônico concentrou-se exclusivamente em Pernambuco. “A gente escolhe as cidades de acordo com as atividades musicais que elas desenvolvem e também pedimos o auxílio das Gerências Regionais de Educação (Geres) para garantir a presença de alunos das escolas locais nos concertos-aula”, explica José Renato. Dada a quantidade de prefeitos que passaram a procurar o Conservatório Pernambucano de Música ou a Secretaria de Educação para pedir a presença da

OSJ, o critério de seleção de lugares a se visitar precisou ser definido cada vez mais por aqueles relativos à educação musical. São priorizadas as localidades onde há projetos musicais em andamento ou encaminhados. Um exemplo disso é Carnaíba, no Sertão do Pajeú, que, após a primeira passagem da orquestra, em 2008, construiu um cineteatro e um conservatório, e recebeu a visita da OSJ por mais duas vezes. Tendo em vista a preparação dos jovens músicos para a atuação em orquestras profissionais, a base do repertório da OSJ assenta-se em peças do repertório standard, isto é, clássico-romântico. Um dos concursos profissionais recentes abertos no país, por exemplo, o da Filarmônica de Goiás, exigiu conhecimento das partituras da Sinfonia italiana de Mendelssohn e da Quinta de Beethoven, duas obras já tocadas pela Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório. “A vivência de uma temporada inteira é diferente da de um festival, que dura poucos dias”, acrescenta o maestro José Renato, chamando a atenção para o fato de que, no Circuito Sinfônico, o

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2 Página anterior 01-1 aprendiz Marcelo Ribeiro, de Limoeiro,

pratica o cello e sonha integrar uma grande orquestra

Nesta página 01-2 ElencO Os cerca de 70 músicos

que formam a OSJ ensaiam peças do programa

repertório escolhido é trabalhado ao longo de um semestre inteiro. E nenhum músico tem vaga garantida na OSJ: testes para todas as cadeiras são abertos a cada início de ano, o que obriga os veteranos a se reciclarem para manter seus postos. Como orquestra juvenil, o Conservatório Pernambucano de Música estipula que os concorrentes devam ter entre 14 e 28 anos, sendo abertas exceções apenas para naipes em que haja carência de instrumentistas nessa faixa etária, como ocorre para contrabaixos, trombones, oboés e fagotes. O diretor do CPM, Sidor Hulak, comenta que essas exceções em relação aos limites de idade se devem mesmo à natureza dos instrumentos.

EXPERIÊNCIA

A violinista Rafaela Fonsêca, que toca no grupo desde 2004, elogia a orientação que adquiriu ao longo dos anos nos aspectos técnico e estético; o espaço aberto aos colegas, para que possam atuar como solistas; a

citada reavaliação anual, aplicada sem distinção a novatos e antigos; e a remuneração recebida pelas turnês, que ajuda na manutenção dos instrumentos. Por outro lado, ela reconhece que as viagens ao interior costumam ser cansativas: “Dorme-se muito tarde e acorda-se muito cedo. São várias horas de estrada e de ensaios. A turnê de 2012 foi bem melhor em relação a isso, comparada às temporadas anteriores. Tivemos mais tempo de descanso”. Paulo Arruda, do naipe dos contrabaixos, dimensiona o esforço para se corresponder às exigências dos programas: “Sempre é um desafio para nós, músicos, tocar alguns trechos de obras do repertório fundamental, trechos que em breve deveremos enfrentar num teste profissional. Lembro muito bem que, no meu primeiro ano na orquestra, interpretamos a Quinta de Beethoven, que tem algumas passagens bastante complexas. Não consegui tocar toda a obra no primeiro ano, apesar de ter estudado bastante, e posso dizer sinceramente que, a princípio, fiquei frustrado com isso, mas entendi que os problemas de repertório devem ser resolvidos aos poucos, vão amadurecendo com o tempo”. Quanto à parte logística, o CPM está buscando uma solução para o local de ensaios da OSJ, já que no auditório

da instituição mal cabem os próprios músicos. Outro aspecto em revisão pela diretoria é a prestação de remuneração contínua aos membros da orquestra, para que eles continuem ligados ao grupo. “Na Orquestra Sinfônica Jovem hoje, temos diretamente cinco profissionais envolvidos: maestro, assistente de maestro, ensaiador, dois coordenadores e o arquivista. Na orquestra, são 70 músicos, desse montante, cerca de 20% são profissionais atuantes”, informa Hulak. A violinista Rafaela Fonsêca descreve a importância da preocupação com a remuneração: “Começamos as atividades anuais por volta de março. A orquestra passa bastante tempo ensaiando, sem fornecer cachês. Isso faz com que estudantes de classes sociais mais baixas encontrem dificuldades para pagar passagens e comparecer aos ensaios. Alguns chegam até a desistir. Como apenas as apresentações são pagas, não os ensaios, os cachês começam a chegar por volta do mês de agosto, durante o Circuito Sinfônico, e daí então a situação financeira acaba se tornando mais favorável. Seria perfeito se a orquestra tivesse um tipo de bolsa mensal, que cobrisse os gastos de passagem e alimentação dos estudantes”. Colaborou Luciana Veras

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Entrevista

JOSÉ RENATO ACCIOLY “INVESTIMENTOS EM MÚSICA DE CONCERTO SÃO PONTUAIS” Montagem de óperas, passagem pelo Conservatoire Erik Satie e direção musical do Baile do Menino Deus são alguns dos destaques do currículo do maestro José Renato Accioly. Hoje, o trabalho mais associado ao seu nome é a direção da Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música (OSJ/ CPM), a qual ajudou a fundar. CONTINENTE Qual a contribuição da OSJ/ CPM para a música erudita em Pernambuco? JOSÉ RENATO ACCIOLY A OSJ/CPM desenvolve, desde o seu surgimento, uma missão em dois sentidos: 1) formação de plateia; 2) proporcionar aos músicos que integram a orquestra a experiência de vivenciar temporadas com data, hora, lugar e repertório planejados. Quando iniciamos o que chamamos de Circuito Sinfônico, divulgamos a agenda de concertos com o repertório que vai ser interpretado; esse planejamento proporciona a organização da plateia. CONTINENTE O que explica a popularidade da OSJ no interior? JOSÉ RENATO ACCIOLY Desde a primeira edição do Circuito Sinfônico, em 2006, procuramos interiorizar os primeiros concertos dela. Pouco a pouco, fomos recebendo convites para apresentações em diversas cidades, levando a música sinfônica a lugares em que as pessoas nunca tiveram acesso. Após sete temporadas, percorremos mais de 40 cidades do estado, além de capitais e cidades importantes do Nordeste. CONTINENTE Como você observa as iniciativas políticas para formação de público de concertos?

“Não basta formar músicos, temos que ser responsáveis pela ampliação da oferta de trabalho para esses jovens” JOSÉ RENATO ACCIOLY Acredito ser de fundamental importância o investimento forte e contínuo para que se possa perceber os efeitos benéficos. Proporcionar o prazer de apreciar música de concerto, incentivar a sociedade à sensação de tocar um instrumento e de tocá-lo em conjunto com outras pessoas é uma ação que humaniza, sensibiliza e sociabiliza. Apesar dos esforços, estamos ainda distantes dessa realidade. Os investimentos em música de concerto são pontuais, apesar do trabalho de instituições como o próprio Conservatório. CONTINENTE Como você vê o mercado para o jovem que se dedica à música erudita? JOSÉ RENATO ACCIOLY Pernambuco possui apenas um conjunto sinfônico com estrutura profissional: a Orquestra Sinfônica do Recife. Isso é pouco para um estado como o nosso.

Hoje, temos na capital e no interior ações que desenvolvem a formação de jovens em música de concerto, como o Orquestrando Pernambuco, o Criança Cidadã e o Pró-criança. Mas não basta formar, temos que ser responsáveis pela ampliação da oferta de trabalho. Tenho testemunhado, com tristeza, jovens que se profissionalizam na área de música de concerto, estudam de forma dedicada seu instrumento, desenvolvem nível artístico a um estágio profissional e, para continuar atuando na música, precisam deixar nosso estado por falta de oportunidade. CONTINENTE No caso dos novos compositores locais, o que poderia ser feito para estimular suas produções? JOSÉ RENATO ACCIOLY Estimular a criação de novas composições é outra questão muito importante no sentido do desenvolvimento da música em nosso estado. Mais uma vez, podemos relatar ações pontuais. A Sinfônica Jovem do CPM vem contribuindo dentro de suas possibilidades. Estamos buscando patrocínio para a gravação do CD Pernambuco sinfônico: nova safra, de composições inéditas que estreamos ao longo desses últimos sete anos. Gianni Paula de Melo

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BANDA Era uma vez em Limoeiro

Fundada há mais de 70 anos, a Sociedade Musical 25 de Setembro vem formando músicos eruditos no agreste pernambucano, na base da raça e da vontade texto Luciana Veras Fotos Léo Caldas

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Do mirante do Morro do Redentor, a cerca de 700m de altura, Limoeiro se espraia com o Capibaribe a delinear sua paisagem típica de cidade do interior: a igreja, fazendas desativadas de coronéis já falecidos, a prefeitura, as estações de rádio de outrora transformadas em espaços culturais, a praça. Um morador desse município do Agreste de Pernambuco, a 77km do Recife, é capaz de apontar outro prédio que desperta o carinho dos limoeirenses. De fachada azul, com três janelas superiores desgastadas e uma porta precedida por uma grade de ferro, a casa de número 189 da Rua Dr. José Cordeiro, no centro, é a sede da Sociedade Musical 25 de Setembro, a “instituição mais antiga de Limoeiro, só perdendo para a própria cidade”, avisa Marinalva de Souza Mateus, a Nalva, a tesoureira, gerente e administradora da banda que todos tratam por “25”. Seu marido é Pedro Mateus de Lucena, o maestro Pepê, regente e atual presidente da escola de música “mais querida de todo o interior”, como dizem os próprios alunos e outros que por lá já passaram.

A 25 de Setembro foi fundada em 1936 por dissidentes da Banda Independência. Pepê nasceu em 1962, filho de José Mateus, que foi seu professor e de quem herdou as afinidades musicais. Aos 12 anos, mudou-se para a capital pernambucana para estudar no Conservatório Pernambucano de Música – CPM. Quatro temporadas de “cara nos livros” de teoria e solfejo lhe renderam galhardia no trompete. Ele saiu pela estrada a tocar, dar aulas em Cumaru e João Alfredo, assumindo a tarefa de educar alunos com deficiência auditiva em uma escola de Limoeiro. Em 1996, quando a 25 de Setembro completava seis décadas de existência e uma década desativada, assumiu a banda. “Saímos do trabalho que fazíamos com 60 crianças, em um projeto da infância missionária no Alto José Bonifácio, e viemos cuidar da banda”, conta a esposa, Nalva. Por “cuidar” compreenda-se fazer tudo. “Aqui não teve pedreiro, fui eu quem botou reboco nessas paredes. Subi o telhado, ajeitei o piso, arranjei os instrumentos, tirando dinheiro não sei de onde… Na hora de trazer os meninos,

eu saía de bicicleta, tangendo 50 garotos, todos de bicicleta, para não perder a aula, que é gratuita”, evoca o maestro. Ressurgiu, assim, a 25 de Setembro em seu naipe completo: flauta transversa, flautim, requinta, clarinete, sax alto, sax tenor, sax barítono, trompa, trompete, trombone, bombardino, tuba, bombo, surdo, prato e caixa. Faltava algo, não para a constituição oficial desde a gênese da banda, e, sim, para as aspirações do maestro. “Sempre fui ligado às cordas, queria modernizar a banda, trazer os violinos, pensar em arranjos para os meninos tocarem com sopros e cordas”, pontua Pepê. Em 2009, o projeto Orquestrando Pernambuco, criado pelo Conservatório Pernambucano de Música, com o intuito de revelar e formar músicos de sinfônica, lançou-se para o interior a partir de Limoeiro e o maestro, enfim, pôde reinventar a 25. Durante três anos, a agenda da banda – cujas aulas vão de segunda a sexta, a partir das 19h; segundas e quartas, alunos novatos, terças e quintas, os veteranos – incorporou o sábado pela manhã para as aulas de violino

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e violoncelo. Os professores vinham do Recife e, na parceria firmada entre a instituição e o CPM, as refeições, o combustível e acomodação, quando preciso, eram de responsabilidade da 25 de Setembro. “Foi no dia 13 de junho de 2009 que começamos, lembro bem porque foi um dia histórico para todos nós”, Pepê fala, enquanto anda pelos 270m² da casa de telha brasilit sem forro, com cadeiras de plástico e utensílios característicos de um local de ensaios, que abriga os objetos, as fotografias e a memória da 25 de Setembro. “Pedi viola e contrabaixo também, mas não vieram”, recorda. Para garantir os instrumentos, além dos que vinham com a chancela do CPM, tudo era válido. Nalva recorreu a políticos e entidades comerciais, angariou doações da Orquestra Criança Cidadã, pediu ajuda a quem conhecia e a quem não conhecia. Já obtivera êxito ao inscrever projetos de aquisição de instrumentos de sopros em editais da Funarte e do Banco do Nordeste do Brasil. Logo, 20 violinos e cinco violoncelos estavam na sede da 25.

“Tem que criar um adjetivo para a 25”, propõe Aldemir Freire, 30, saxofonista que passou 10 anos na trupe e hoje dá aulas a jovens de 15 a 17 anos em situação de risco. “Quando eu era aluno, era muito menino para pouco instrumento, então tinha hora que todo mundo dividia sax, trompete, flauta e trombone. Vi o mesmo quando começaram as aulas com violinos e violoncelos, mas isso não impediu o maestro de seguir em frente e ainda bolar arranjos para sopros e cordas”, elogia o pupilo. Desde o início, Pepê colocou Beethoven e Ravel para duelar com Luiz Gonzaga, Roberto Carlos e Frank Sinatra, e incutiu no imaginário musical das crianças e adolescentes a sonoridade delicada dos violinos e cellos. Criou o embrião de algo maior.

BALÉ DA MÚSICA

“Quando você junta as cordas friccionadas à estrutura de uma banda filarmônica, tem o arcabouço instrumental da orquestra sinfônica”, ensina Sidor Hulak, gestor-geral do Conservatório Pernambucano de Música, formado em Música e

3 irmãos

Vanderson, 11, e Vanessa, 13, são alunos da sociedade e aguardam novo apoio do CPM

4 Sede da 25

Toda a estrutura educativa e administrativa é de responsabilidade do maestro Pepê e da esposa Nalva

Administração pela UFPE e com curso na Berklee College of Music, de Boston (EUA). O Orquestrando Pernambuco, acrescenta, despontou em 2007. No ano seguinte, veio o trabalho nos núcleos: Brasília Teimosa, Coelhos, Alto do Céu e Santo Amaro. O método adotado é o Suzuki, criado pelo violinista japonês Shinichi Suzuki, na década de 1940. “O Suzuki funciona como molamestra, mas não o usamos 100%, até porque, depois, o aprendizado é mais intenso e buscamos sempre o máximo. O desafio é o Conservatório dialogar com as comunidades. Já participei de algumas reuniões para conversar com pais e mães. Tem pai com preconceito com o filho que escolhe o violino, o ‘balé da música’. Mas depois eles entendem, vão às aulas e ficam escutando os filhos. A música entra num ambiente inóspito,

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dividido geralmente com alguma outra atividade, como liga de dominó ou distribuição de leite, e muda aquela realidade”, observa Sidor Hulak. Na 25 de Setembro, era assim também. Jocelina Silva percorria 2km, de bicicleta, de moto ou a pé, para trazer Vanessa, 13, e Vanderson, 11, para as aulas. Na primeira vez em que apareceu na casa azul, chovia muito, e Nalva, ao atender o chamado na porta, espantou-se com a cena: “Corre, Pedro, que a mulher está aqui toda molhada, com uma menina no braço e um outro chorando”. Valeska, hoje com seis, não tinha nem três anos, quando seu irmão, que adora ajudar os pais na roça e pastorear cabras, chegou em casa com a notícia de que queria aprender sax. Um amigo tinha lhe dito isso e ele, em atitude normal na infância, quis imitá-lo. A mãe veio ter com o maestro. “Mostrei os instrumentos para os meninos, fui mostrando como é que se tocava, como guardava”, relembra Pepê. Vanessa escolheu o violino e com ele se agarrou; Vanderson, ao receber a notícia de que seu amigo tinha esquecido o sax para ficar com o violino, fez o mesmo. Ficou com um de tamanho 1/4 – a gradação crescente é 1/16, 1/8, 1/4, 1/2, 3/4 e 4/4, sendo o último o tamanho ideal para qualquer instrumentista a partir dos 12 anos.

Os aprendizes dos instrumentos de cordas aguardam o retorno do projeto Orquestrando Pernambuco Meses depois, o amigo largou as aulas e os dois irmãos persistiram. “Meu sonho era tocar violino”, confessa Vanessa. “Acho que ela via nos comerciais na TV, porque lá em casa não entrava esse tipo de música”, diz a mãe. Vanessa passou seis meses na aula teórica e chegou a pensar em desistir, quando a prática lhe feriu as pontas dos dedos. Pegou o costume. Ansiava pelos encontros dos sábados, porque a aula seria completa. Ao longo da semana, com o maestro Pepê, eles passavam as lições dos professores do CPM. Mozart é o compositor de quem ela, que caça partituras na internet, mais gosta. Rivalidade com Vanderson? Não. Ela quer aprender violino e ser médica, ele quer tocar todas as músicas e ser veterinário. Já a mãe, durante os três anos de aulas, perdeu seus dois assistentes na barraca em que, de quarta a sábado, vende lanches na frente da

penitenciária Dr. Ênio Pessoa Guerra. Não achou ruim. “Cresci em cima de um cavalo e ajudando meu pai na roça. Vanderson é assim também, só quer saber de estar no meio das cabras, até um jumento arranjou para criar. Hoje, eu e meu marido achamos bonito ver os dois ensaiando em casa, tirando som do violino e se preocupando se os vizinhos vão ouvir. Fico pensando que eu tinha o sonho de estudar, fazer faculdade, mas já que não estudei, vou deixar eles escolherem”, afirma Jocelina. É por isso que ela lamenta a interrupção das aulas. Em 2012, por ocasião do fim do contrato com os professores temporários, o Orquestrando Pernambuco cessou sua ligação com a 25 de Setembro, prostrando Vanessa e Vanderson e deixando o maestro Pepê e a esposa Nalva reféns da própria impotência. “De todos os outros instrumentos ele pode dar a aula, mas desses não”, lamenta a administradora. “Já pedimos por tudo que mandassem outros professores para cá. Chega dá tristeza ver os meninos com os instrumentos parados em casa”, murmura o maestro.

FÃ DO CELLO

Marcelo Ribeiro, 11, mora numa modesta casa de dois quartos no Bairro Frei Estevão. Na sala, próximo à máquina

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5 AULAS

Nos encontros, o maestro Pepê ensina todos os procedimentos em torno da erudita

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25 de setembro

O ensaio de gala reúne, na sede da instituição, alunos dos mais variados instrumentos

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de costuras de sua mãe, Ednalva, o violoncelo recostado na parede. “Ele só fez seis meses de aula prática, depois de passar um ano na teoria. Aí ficou sem professor. O maestro já ofereceu o clarinete para Marcelo não ficar parado, mas quem disse que ele quer?”, comenta Ednalva. Introspectivo, Marcelo conta, em voz baixa, que gosta de Legião Urbana e outras bandas de rock por causa dos irmãos mais velhos, Rafael e Gabriel. Explica que existem dois tipos de violoncelo – 3/4 e 4/4 – de acordo com o tamanho de quem o manuseia (o seu já é um 4/4). A mãe e o maestro insistem que o cello é “melindroso”, requer cuidados mil, atenção exagerada. Marcelo não desiste e cobre o instrumento de afeto, mais até do que destina à cadela Nega. Tanto, que se desespera quando vai ensaiar em casa e o cello – “deve ser por causa da umidade”, informa Pepê – soa meio rouco, preguiçoso. Partituras xerocadas dão pista de que ele leva o assunto a sério. “Quero ser músico, tocar numa grande orquestra”, sussurra. Do seu celular, mostra a música que mais quer aprender: As quatro estações, de Vivaldi. “E aqueles forrós de que tu gostas?”, provoca Ednalva. “Tá doida, é?”, rebate o filho. Em vez das variações forrozísticas tão famosas no Nordeste, o aparelho de

Nos últimos três anos, cerca de R$ 2 milhões foram investidos nos programas de fomento à música erudita pelo CPM

DVD do quarto dela, onde Marcelo passa boa parte das tardes póscolégio, contém um disco do maestro e violinista holandês André Rieu. “O Orquestrando Pernambuco parou em Limoeiro porque os professores eram temporários. A parada foi necessária para fazer o novo concurso, e os que estão chegando devem entrar ainda agora em maio, para sustentar o projeto. Também queremos levar os outros instrumentos que ficaram só na demanda, mas isso esbarra em uma dificuldade grande, que é identificar, no próprio município, alguns músicos que possam replicar o conhecimento e seguir como monitores”, situa o gestor geral do Conservatório Pernambucano de Música, Sidor Hulak. Em tese, o Orquestrando teria quatro módulos in loco, com duração de cerca de dois anos (tempo que varia, segundo Sidor Hulak, conforme as especificidades de cada

comunidade atendida ou, no caso de Limoeiro, eventuais paradas). A segunda fase de estudos é o curso técnico. A terceira, o ingresso na Orquestra Sinfônica Jovem. Desde 2008, 39 alunos passaram pelo crivo do projeto: dois deles estão na OSJ; um, no curso técnico. Nos últimos três anos, cerca de R$ 2 milhões foram investidos na democratização do acesso à música erudita, incluindo a OSJ em si, a circulação da orquestra pelo interior e o Orquestrando Pernambuco. São gastos referentes a cachês, compra de instrumentos e equipamentos e custeio de pessoal. Maestro Pepê, Nalva e seus alunos espelham um novo desenho da música erudita em Pernambuco. Rodrigo Lopes, 19, o flautista que chega atrasado ao ensaio de gala na Sociedade Musical 25 de Setembro, estuda no Conservatório, depois de quase uma década vindo de Carpina a Limoeiro apenas para não estancar. “Dormia lá em casa para não perder a aula, foram nove anos nessa pisada”, conta Pepê. Seu caso não é mais uma insólita exceção, mas a consequência direta de investimentos, por parte do Estado, e, principalmente, de alunos e professores perseverantes, numa maior afluência entre contextos distintos de fruição e ensino musicais. “Nos últimos 10 anos, a música erudita tem encontrado seus caminhos, com o Conservatório, a Orquestra Sinfônica Jovem, o Virtuosi, a Orquestra Criança Cidadã, para quem faz e quem ouve. A democratização do acesso é levar às pessoas o som da música sinfônica, levar uma canção de Luiz Gonzaga orquestrada com violinos, ou seja, propor uma legenda para esse sabor estranho. O CPM tem buscado, ao formar músicos e plateia, que eles se apropriem da cultura erudita”, condensa Sidor Hulak. O Orquestrando Pernambuco, ele garante, “tem mais duas perspectivas já acordadas: Surubim, na Associação Capiba, e Carnaíba, no conservatório local”. Que seja presto, prestíssimo.

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con especial ti nen te

léo caldas

coque Educação afetiva

Orquestra Criança Cidadã contribui para que jovens de comunidade carente cresçam com referências musicais capazes de reverter-se também em profissionalização

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“Sabia que Brad Pitt vai ser o

ator principal do filme?”, pergunta Ítalo Alves, 12, ao interlocutor que compartilha a paixão pelo seriado norteamericano The walking dead, exibido no Brasil pela Rede Band. “Legal”, responde Luan Lucena de Souza, 9, meio-irmão de Ítalo. O diálogo traduz o vínculo fraternal forjado por produtos culturais consumidos em massa, realidade incontestável nos dias de hoje. Contudo, o que melhor define o elo entre os dois moradores do Coque, bairro pobre na região central do Recife, não é o mesmo pai, Gleikson Souza, tampouco a afeição aos caçadores de zumbis: é o aprendizado musical e a participação na Orquestra Criança Cidadã. A OCC nasceu em 2005, quando um juiz de Direito, que nunca tocou instrumento algum, esboçou um projeto para formar músicos e cidadãos. “O papel era muito claro e a finalidade era promover a inclusão social por meio da música”, relembra João José Targino, titular da 9ª Vara de Família e Registro Civil da Capital. “Quando tive a ideia, procurei o maestro Cussy de Almeida e as bases musicais foram introduzidas

por ele. Decidimos que iríamos trabalhar com 100 garotos, todos alunos da rede pública do Coque”, completa Targino, criador e coordenador da orquestra. O clã das cordas friccionadas, pois, foi o grupo selecionado por Cussy de Almeida (1936-2010) para iniciar, já em 2006, uma educação musical, afetiva e social. Desde então, o modus operandi da OCC, gerida pela Associação Criança Cidadã, presidida pelo desembargador Nildo Nery, não mudou. Há 160 alunos, entre os 6 e os 19 anos, que recebem três refeições, atendimento médico e odontológico, aulas de informática, idiomas e reforço escolar na sede da orquestra, no 7º Depósito de Suprimentos do Exército Brasileiro, no Cabanga, vizinho ao Coque. No início, havia um recrutamento nas escolas. Agora, as crianças são levadas por mães, tias e avós. O atual maestro é o argentino Gustavo de Paco, auxiliado, no dia a dia, por professores e regentes como Aline Lima e Márcio Pereira. Se, por um lado, é evidente que os benefícios oferecidos pela OCC já seriam atrativos suficientes para famílias interessadas num cotidiano menos árido

para suas crianças, por outro, é inegável que a iniciativa difundiu as composições eruditas e a possibilidade de aprendê-las e reproduzi-las em um ambiente no qual a percepção sobre o assunto era ínfima. “Hoje, eles tocam um grande repertório, mas tudo surgiu com a música clássica. Os estudantes vinham sem saber de nada”, diz o juiz João Targino. Entre os alunos que ensaiavam, numa recente manhã de sábado, a maioria nunca tinha ouvido falar em música erudita ou nos instrumentos em que se exercitam antes. Isaías Tavares, 20, seis anos de OCC. “Estou aqui desde o começo”, sintetiza o violista, que em junho de 2011 embarcou para a Áustria, onde teve experiências diversas, como estudar na mesma escola de Mozart, em Salzburgo. Ao ser convidado para o teste, ele pensou que optaria pela guitarra. “Achava que era para tocar guitarra, baixo, bateria. Aí veio o luthier com um monte de instrumentos na mão. ‘Que danado é isso?’”, falei. E ele disse: “Venha escolher o que você quer tocar”, recorda. Isaías elegeu uma viola. “Música clássica? Sabia lá o que era isso!”, admite. Thialyson Phelipe, 16, optou pelo

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Atualmente, a orquestra recebe 160 jovens do bairro, entre 6 e 19 anos

violino, mesmo sem ter visto um antes e acreditando que música clássica era “coisa de outro planeta”. Os dois, juntos com Yuri Tavares, 16, apresentam-se na OCC e também como um trio de cordas, em eventos. Orlando Araújo, 16, queria um violino também, mas optou pelo contrabaixo; Gabriel David, 16, pioneiro como Isaías, ficou com o violoncelo.

FRATERNAL

Todos são tratados com afeto e rigor pelos professores, inclusive o pequeno Luan, que, embora mais novo, circula pelos ensaios com a mesma desenvoltura. Sua história é semelhante a de vários outros membros das orquestras. “Um dia, eu estava em casa e vi os meninos passando com o estojo embaixo do braço. ‘Mainha, eu quero ir’, pedi. E ela me trouxe”, conta. Encantou-se pelo som do violino. Hoje, estuda na OCC e pratica em casa, com as partituras próprias ou em versão online. No ensaio, presta atenção no Concerto para 2 violinos em lá menor, do qual será um dos solistas. “Não tira o arco da corda, Luan”, alerta o mestre Márcio Pereira. O menino atende e capricha na

A maioria dos alunos nunca tinha ouvido falar em música erudita ou mesmo nos instrumentos que hoje conseguem tocar sequência de notas. Do lado de fora, sua mãe, Lúcia Maria Lucena manda chamar Luáurea, a filha mais velha, aluna de piano e outro orgulho seu. Seu marido introduziu a música no cotidiano familiar. Gleikson preparou Luáurea para entrar no CPM. A pianista, hoje com 13 anos, chegou à instituição com sete verões vividos. “Me acharam muito pequena. Meu pai disse: ‘Botem qualquer peça aí que ela toca’. E eu toquei e passei”, narra Luáurea. “A orquestra não tem um professor de piano, e, sim, de teclado”, diz Lúcia. A OCC a aceitou com o intuito de ajudar a menina, que não tinha um piano para treinar em casa. Ela praticava. E só. “Até que o maestro disse que iria me aproveitar mais, que iria procurar

mais concertos com piano. Hoje, sou a pianista da orquestra”, orgulha-se. Faz três anos, portanto, que ela e Luan vão à escola, seguem para a orquestra e ensaiam em casa. O meioirmão Ítalo está nos dois meses de testes para ingressar na primeira turma de sopro da OCC. “Queria tocar cello, mas a prioridade são os de sopro, agora. Escolhi a trompa, mas ainda estou na aula de teoria e na flauta doce, que é por onde todo novato começa”, diz. Ítalo não mora com os irmãos por parte de pai. Quis entrar, após observar que a vida deles rumava para outro patamar. Inúmeros alunos também foram parar ali porque enxergaram no outro uma possibilidade concreta de transformação. “É uma questão de status. Às vezes, dois garotos moram em casas vizinhas, mas só um deles pega um avião e toca para o presidente da República. Isso mexe”, reconhece o criador e coordenador da OCC, João Targino. A música erudita, associada a uma cultura “superior”, cumpre papel de abrir perspectivas, não para dificultar o acesso a esse prestígio almejado por centenas de jovens do Coque, mas para ampliá-lo – contribuindo para que essa geração cresça com referências musicais diversificadas. A atuação da OCC, patrocinada pela Caixa e pela Fiepe, sai por R$ 160 mil mensais. “Cada aluno vale R$ 1 mil por mês. Um preso em uma penitenciária federal custa R$ 4,8 mil. Essa reflexão é importante, porque esses garotos nunca fizeram dano à sociedade”, compara Targino. A contabilidade reflete a carência de aportes financeiros para se manter a iniciativa e a realidade com que os jovens músicos já se deparam. A diferença é que, hoje, eles podem se dissociar das estatísticas de violência e miséria atreladas ao bairro onde vivem e, instrumentos de cordas, sopros e percussão a tiracolo, vislumbrar um futuro mais suave e sem fronteiras entre erudito e popular. LUCIANA VERAS

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con religiosidade ti nen te

Artigo

SÉRGIO BARZA A MAIORIA DAS ORQUESTRAS JOVENS VIVE DE INCERTEZAS Tocar um instrumento exige seriedade e dedicação, e implica o domínio de uma linguagem sutil que transmite uma mensagem específica, geralmente associada à beleza. As possibilidades comunicativas da música ampliam-se com a diversidade de timbres à disposição dos bons compositores. O veículo ideal para a concretização sonora dessas ideias é, certamente, a orquestra sinfônica, o grupo mais completo, mais dinâmico e mais maleável, e a melhor opção de carreira, dependendo do instrumento escolhido. Para efeitos de cronologia, consideraremos aqui a orquestra a partir do século 18, como estabelecida pela Escola de Mannheim. As orquestras começaram como grupos ligados às cortes, e há registro de pequenos grupos em várias escolas e conservatórios. Na virada do século 18 para o 19, foram fundados os primeiros conjuntos autônomos, como a Orquestra Gewandhaus de Leipzig, iniciada em 1781, a mais antiga ainda em atividade. O repertório do Romantismo estabeleceu novos parâmetros para as orquestras, e a necessidade de preparar músicos para ingressar nesses conjuntos. No início, os novos músicos aprendiam o ofício nos ensaios e concertos, mas, para oferecer uma formação mais completa aos estudantes, foram criadas as primeiras orquestras jovens. Esses grupos têm como objetivos, além da futura profissionalização, o aperfeiçoamento técnico e musical, a troca de experiências e o aprendizado de valores éticos. As duas primeiras orquestras jovens do mundo são iniciativas regionais: a Hofstads Jeugdorkest (Haia, Holanda, 1923) e a Portland Youth Philharmonic (EUA, 1924). A primeira orquestra jovem nacional é a National Youth Orchestra of Wales (País de Gales, 1945). Alguns

grupos foram formados sob os auspícios de entidades como a Jeunesses Musicales (Juventude Musical), fundada em 1945, na Bélgica. Uma de suas atividades prioritárias é justamente a capacitação de orquestras e conjuntos.

NO BRASIL

Nos anos 1950, a maioria das cidades importantes do Brasil tinha uma seção da Juventude Musical. O Recife inaugurou a sua em 1955, tendo à frente nomes como a soprano Edinar Altino, o violinista Guido Mansuino (spalla da Orquestra Sinfônica do Recife) e sua esposa Silvia. Não havia uma orquestra jovem, apenas grupos ocasionais. Hoje, há apenas um projeto de orquestras no Brasil, filiado à Jeunesses Musicales

International, o Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia). O Neojiba segue o modelo de outro projeto também ligado a Jeunesses Musicales, o Sistema de Orquestras da Venezuela, ou simplesmente El Sistema, criado pelo economista e músico José Antonio Abreu, que redimensionou o papel da orquestra jovem como agente de mudança social, em 1975. Há orquestras completas para os vários estágios de desenvolvimento dos alunos, e a joia da coroa do projeto é também o conjunto mais famoso da atualidade, a Orquesta Sinfónica Simón Bolívar, que revelou Gustavo Dudamel, atual regente da Los Angeles Symphony Orchestra.

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O Sistema também serve de modelo no Brasil para a Orquestrando a Vida, uma organização não governamental, criada há 15 anos e atuante na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ). Curiosamente, um ano depois do começo do Sistema, começaria aqui no Brasil o Projeto Espiral, em cidades como Fortaleza (com direção de Vasquem Fernanien), São Paulo (Alberto Jaffé), Porto Alegre (Fredi Gerling) e Recife (Luis Soler). O projeto, que visava o ensino de instrumentos de cordas a jovens carentes, foi implantado pelo Instituto Nacional de Música (Funarte), então dirigido pelo compositor pernambucano Marlos Nobre, mas encerrado sem explicações por gestões posteriores.

O conjunto mais famoso da atualidade é a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, que revelou Gustavo Dudamel Outros bons exemplos, que vão além das questões musicais para incorporar valores de convivência e fraternidade, são a Orquestra Jovem da União Europeia (EUYO) e a West-Eastern Divan Orchestra. Com integrantes de todos os 27 países membros, a EUYO foi fundada em 1978, para representar os ideais de

uma comunidade, trabalhando pela paz e compreensão, ao mesmo tempo em que oferecia a jovens músicos um treinamento de alto nível. Esses, escolhidos anualmente em testes em vários locais da Europa, trabalham com os melhores regentes do mundo, como Abbado, Haitink e Ashkenazy. A West-Eastern Divan Orchestra tem também motivações humanitárias. Fundada pelo regente e pianista Daniel Barenboim e pelo intelectual Edward Said, a orquestra incentiva o trabalho conjunto e o respeito entre jovens árabes e israelenses. Essas orquestras seguem à risca um preceito defendido pelo regente brasileiro Eleazar de Carvalho: uma orquestra jovem deveria sempre ser conduzida pelos melhores profissionais disponíveis. A realidade das orquestras jovens no Brasil é diferente das suas irmãs internacionais. Se a maioria das orquestras profissionais passa por crises intermináveis, as orquestras jovens têm, em sua maioria, uma vida de incertezas. Várias delas contam com o apoio transitório de patrocinadores públicos e privados, e a maior parte lida com problemas concretos, como instrumentos de qualidade inferior, falta de locais de ensaios que tenham boa acústica e palcos com dimensões suficientes para grandes conjuntos. O número elevado de orquestras jovens existentes no Brasil é reflexo imediato do sucesso do projeto venezuelano. As exigências e o imediatismo dos patrocinadores, contudo, não levam em conta que esse êxito se deve a 38 anos de trabalho. Para terminar, lembramos que o Brasil sempre teve músicos que buscaram fazer um trabalho de orquestra consistente com estudantes, e é nos erros e acertos deles que podemos avaliar o quanto progredimos. Em Pernambuco, tivemos alguns desses unsung heroes, como os já citados Guido Mansuino, Luis Soler, e também Benny Wolkoff, Hugo Tagliavini e Cussy de Almeida. Está nos grupos e classes de orquestra desses antigos professores a raiz de conjuntos como a Orquestra Jovem do Conservatório Pernambucano de Música e a Orquestra Jovem de Pernambuco, e projetos como o Orquestrando Pernambuco e a Orquestra Criança Cidadã.

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SUSTENTÁVEL Em consideração ao meio ambiente Projetos arquitetônicos “verdes”, que evitam o desperdício de materiais e o uso excessivo de energia, são tendências urbanísticas que favorecem a qualidade de vida. Precisam sair do status de “moda” e ser massificados texto Júlia Kacowicz

Desde o início do ano, cinco novos

empreendimentos brasileiros já podem ser intitulados como “verdes”. Eles receberam o selo LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) da ONG Green Building Council (GBC) Brasil, que visa estimular projetos sustentáveis no país. Com esses, o Brasil soma 88 imóveis reconhecidamente ecológicos, entre casas, escritórios, hospitais, escolas, estádios e museus. O crescimento ao longo dos anos demonstra o fortalecimento da arquitetura que pensa no meio ambiente em todo o mundo. As referências internacionais começam a ser acumuladas e a criar tendências, como a sede do jornal The New York Times, em Nova York, o Parlamento Alemão, em Berlim, e o Hospital Dell’Angelo, na Itália. Entre as iniciativas adotadas para obtenção do selo LEED estão sete categorias: eficiência energética, uso racional de água, materiais e recursos, qualidade ambiental interna, espaço sustentável, inovações e tecnologias e créditos regionais. Todas são direcionadas à redução de consumo ou

uso eficiente do recurso – o que garante a qualidade de vida nesses ambientes e preservação dos recursos naturais. O diretor técnico e educacional do GBC Brasil, Marcos Casado, ressalta ainda que as soluções sustentáveis também resultam em economia, como a redução de 30% no consumo de energia, de até 50% no de água e de 80% dos resíduos sólidos. Em crescimento constante nos últimos três anos, o Brasil ocupa a 4ª posição no ranking de edificações sustentáveis, atrás apenas dos Estados Unidos, Emirados Árabes e China. Até o fim de 2013, a expectativa é de que 900 novos processos de certificação sejam iniciados e outros 120 sejam concluídos. “A região Sudeste é a mais avançada hoje, mas temos visto o Nordeste despontar no número de edificações que buscam os diferenciais da certificação LEED, com destaque para Pernambuco e Ceará”, explica Casado. O diretor educacional do GBC ressalta que alguns dos projetos mais sustentáveis do mundo apresentam sistemas de consumo eficientes e foram construídos com matérias-primas

renováveis. Esse é o caso do jornal The New York Times, o primeiro edifício dos Estados Unidos a adotar uma cortina de vidro (ultra-clear low-e) que maximiza a luz, e que ainda possui mais de 95% do aço de sua estrutura reciclado, entre diversas outras medidas. O Hospital Dell’Angelo, em Veneto (Itália), incorporou, desde a concepção do projeto arquitetônico, conceitos que valorizam a humanização e cura do paciente. O destaque são os jardins que unem os blocos e transformam o espaço em um ambiente agradável, favorecendo a calma e a tranquilidade. Já o exemplo do Parlamento Alemão, o antigo Reichstag, demonstra que também é possível adaptar ou reconstruir projetos para deixá-los mais sustentáveis. Com uma arquitetura diferenciada, a sua reconstrução possibilitou o uso intensivo de energias primárias renováveis, como o biodiesel, que é produzido no próprio edifício. Os elementos fotovoltaicos instalados na cobertura alimentam a rede interna e o calor excedente é usado para aquecer o edifício através do aquífero em frente ao prédio.

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con arquitetura ti nen te Fotos: divulgação

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NO BRASIL

O arquiteto e urbanista Jorge Wilheim (leia entrevista a seguir) dedicou grande parte dos seus mais de 60 anos de carreira a proporcionar mais qualidade de vida às cidades. Professor e gestor público, ele também fez diferença no cenário ao seu redor. A rua onde mora, na capital paulista, é uma das mais arborizadas do Bairro de Pinheiros. Mas não foi sempre assim. Quando Wilheim mudou-se com a família para a pequena rua sem saída, em 1957, a paisagem era desnuda e sem verde. Foi ele quem plantou sibipurinas e pausferro para embelezar o ambiente. No bairro recifense da Várzea, o desejo de morar num ambiente mais verde também foi responsável pelo diferencial da casa de Anna Karina Alencar e Werther Ferraz. Professores e arquitetos, eles aproveitaram o conhecimento técnico e a criatividade para implantar soluções inovadoras e mais sustentáveis. A casa deles é a única da rua que possui um sistema de esgotamento sanitário – realmente – ecológico, pois não despeja efluentes no terreno nem na drenagem da rua, como é comum na cidade. Além disso, eles têm uma cisterna para captar água da chuva e aproveitá-la para irrigação do jardim e outros usos domésticos.

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As medidas adotadas nesses casos representam a tendência global na busca por mais qualidade de vida. Já há algum tempo, o discurso da sustentabilidade virou moda. Agora, começa a entrar em prática nas mais diversas agendas, sendo a da arquitetura uma das mais centrais. A modernidade dos aglomerados de arranha-céus

e as vantagens das grandes cidades vêm perdendo espaço para ambientes mais planejados que, em alguns casos, resgatam a simplicidade de hábitos antigos e aproveitam o que o ambiente ao redor oferece. A transformação acontece aos poucos. Empreendimentos que são concebidos de maneira mais ecológica

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Página anterior 1 alemanha

Sede do Parlamento usa energia renovável

Nestas páginas 2 new york times

ortina de vidro C de prédio do jornal maximiza luz

3 austrália Melbourne Recital Center aproveita iluminação externa 4 dell’angelo Arquitetura de hospital italiano prevê bem-estar do paciente

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também estão em alta. “Tudo relacionado à sustentabilidade está na moda, e a arquitetura sustentável ganhou força. No momento, observo que muito tem se falado. Mas ainda há muito por fazer”, destaca Anna Karina. Ela e Werther ressaltam que nem sempre os padrões estéticos da atualidade seguem medidas mais ecológicas e, por muitos anos, a estética venceu essa batalha. Um exemplo disso pode ser visto nos edifícios de escritórios com fachadas de vidro. “O uso exagerado desse material permite a passagem excessiva dos raios solares, que se convertem em calor e exigem mais do ar condicionado. Hoje, até já temos vidros que reduzem essa transmissão de calor. Mas esse uso demonstra que nem sempre as escolhas atendem ao que é melhor para o clima”, ressalta Werther. Outra dificuldade, cita, é que o padrão dos sistemas de engenharia já regulamentado adota as soluções mais inteligentes, o que inibe a adoção de projetos mais eficientes e em maior quantidade. Os sistemas de esgotamento sanitário são um exemplo desse descompasso. Normalmente, uma mesma tubulação recebe a água utilizada no banho, na pia e no vaso sanitário e direciona todo o recurso

para a fossa séptica. Dessa maneira, uma quantidade muito grande de água que ainda poderia ser aproveitada é contaminada. Esse desperdício incomodava Anna, que buscou uma alternativa para separar essas águas e, assim, reutilizar o recurso não contaminado para irrigação do jardim. “Como também captamos a água da

Entre os projetos que buscam mais qualidade de vida, encontram-se os bairros planejados e sustentáveis chuva, nosso consumo da água que chega pelo abastecimento público é bastante reduzido”, destaca. Incluir outros elementos que tornem os hábitos da família cada vez mais sustentáveis faz parte dos planos do casal, em constante busca por soluções. “Estamos sempre refletindo, vendo o que poderíamos implementar. Adotar essa postura sustentável requer planejamento. Aos poucos, vamos fazendo mudanças, aprimorando os ciclos”, ressalta Werther. E, enquanto criam a casa dos sonhos, se satisfazem

com a contribuição a projetos de outros imóveis. “É sempre gratificante quando conseguimos incluir uma ou outra iniciativa no trabalho com nossos clientes”, comenta Anna. O arquiteto Yuri Moraes, representante do Fórum Estadual de Reforma Urbana, afirma que a sustentabilidade não é um conceito fechado. “Não é um lugar aonde se pretende chegar. Ela está no caminho, no dia a dia. Para alcançála, é necessário adotarmos uma visão mais generalista das coisas”, defende, citando a permacultura como uma metodologia que tem a contribuir com a criação de ambientes humanos sustentáveis, economicamente viáveis e ecologicamente corretos. No passo a passo da concepção de um projeto arquitetônico, esses elementos incluiriam a escolha do local, dos materiais utilizados, dos sistemas e tecnologias adotados e, por fim, do uso desse ambiente.

APELO VERDE

Em sintonia com a busca por mais qualidade de vida, surge a tendência de bairros planejados e sustentáveis. Em Pernambuco, mais de cinco grandes projetos estão em desenvolvimento no Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Goiana, São Lourenço da Mata e

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con arquitetura ti nen te fotos: tiago calazans

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Camaragibe. Guiados pelo pioneiro Bairro da Reserva do Paiva, eles apresentam uma combinação de elementos urbanísticos e arquitetônicos para assegurar a preservação dos recursos naturais. O diretor de incorporação da Odebrecht Realizações Imobiliárias, Luís Henrique Valverde, responsável pela Reserva do Paiva, destaca que todos os empreendimentos do bairro seguem o padrão de baixo adensamento e baixo gabarito, ventilação cruzada e soluções para uso racional de água e energia. “Nós acreditamos que essa é uma tendência irreversível. Inclusive porque também é a visão do cliente que, naturalmente, irá optar cada vez mais por empreendimentos verdes. As próximas gerações não aceitarão de outra forma”, defende. Valverde explica que toda a infraestrutura do bairro foi calculada a partir da previsão de população a longo prazo, a exemplo do sistema viário. “Nosso objetivo é que tudo tenha um sentido plural para que, no final, o bairro seja integralmente sustentável”, diz. Para isso, entre outras medidas, a Reserva do Paiva oferecerá um conjunto de serviços que possibilite o uso de bicicletas e caminhadas sem que o morador precise se locomover em grandes distâncias. Cada solução ecológica, segundo Valverde, foi implantada de maneira adequada ao empreendimento. No caso do Residencial Morada

5 reserva do paiva Empreendimentos seguem padrão sustentável 6 anna e werther Arquitetos utilizam conhecimentos sobre o tema na própria casa

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da Península, foi instalada energia solar para aquecimento de água, válvulas redutoras do consumo de água no banheiro, captação de água da chuva para irrigação do jardim e madeira certificada. Já em um empresarial, uma das prioridades é a qualidade térmica dos ambientes para reduzir o consumo de energia com refrigeração, e não o aquecimento de água. “Dessa forma, optamos por incluir vidros especiais, que retêm o calor externo, captação de água da chuva e reuso de água”, lista o diretor.

Luís Henrique ressalta que a busca pela sustentabilidade inicia-se na concepção dos projetos que envolvem profissionais com expertise sobre o assunto. “Nós ponderamos desde a posição nascente do empreendimento, para favorecer a temperatura, à adoção de sistemas que garantam um uso mais eficiente dos recursos, como sistema de iluminação automática”, descreve, lembrando que o mercado brasileiro tem se adaptado e passa a oferecer alternativas nacionais cada vez mais vantajosas.

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divulgação

Entrevista

JORGE WILHEIM “PARA MIM, NÃO É CLARO O QUE SE QUER DIZER COM ARQUITETURA SUSTENTÁVEL” Aos 85 anos, o italiano, naturalizado brasileiro, Jorge Wilheim é um dos principais arquitetos e urbanistas do país. Já teve atuação política como secretário de planejamento e meio ambiente de São Paulo, foi nomeado pela ONU para conduzir a Conferência Habitat II, na Turquia, é escritor e um ferrenho defensor do planejamento estratégico. Foi responsável pelo Projeto do Vale do Anhangabaú, pelo Complexo do Parque Anhembi e pelo Plano Diretor de São Paulo, aprovado em 2002, entre outras obras. Continente O que significa o conceito de arquitetura sustentável? JORGE WILHEIM Para mim, não é claro o que se quer dizer com “arquitetura sustentável”. Permitome retroceder no tempo: o termo sustentável surge na década de 1980, no título do Relatório Bruntland da ONU, o qual trata do desenvolvimento. Significava a característica, a qualidade que permitiria dar prosseguimento a um processo de desenvolvimento. Posteriormente, o adjetivo virou substantivo: sustentabilidade, e adquiriu tonalidade verde. Finalmente, esse substantivo virou sinônimo de “ambiente bem cuidado” e agora simples palavra em moda, imprescindível ao discurso politicamente correto. Continente Nesse sentido, o que seria um projeto sustentável ou soluções arquitetônicas sustentáveis? JORGE WILHEIM Como explicar uma arquitetura sustentável? Seria uma arquitetura que se mantém? Que não cai? Que envelhece bem? Pensa-se nela como sendo uma arquitetura que não desperdiça materiais, poupa energia, enfim, o que chamo de

arquitetura boa. A arquitetura pode ser boa ou má, pioneira ou redundante, adequada ao contexto ou equivocada. Costuma-se chamar de arquitetura sustentável um prédio que tem plantas em sua cobertura, esquecendo que esse mesmo prédio pode estar desafiando a poupança energética por substituir quebra-sóis por fachadas de vidro. Para que um desenvolvimento seja sustentável é preciso que diversas condições econômicas e sociais sejam atendidas, além das ambientais! Continente O avanço da tecnologia contribui para o desenvolvimento soluções mais sustentáveis? JORGE WILHEIM Soluções tecnológicas são avanços, porém são neutras quanto ao seu uso. A tecnologia para a matança de judeus nos campos era muito avançada e servia a seus perversos objetivos. High tech é, em tese, um avanço pelo seu uso para beneficiar um espaço dar mais conforto aos seus usuários. Ou, ao contrário, pode também ser um trambolho que os usuários do

espaço em questão não sabem usar, nem manter. O ambiente doméstico ou o de trabalho depende de muitos fatores: escala, luz, cor, som, relação com exterior, condições e conforto de uso. Não é tão importante a tecnologia que é empregada para otimizar esses fatores, embora seja natural que se empregue a melhor solução tecnológica. Continente O senhor se descreve como um otimista. Acredita que estamos no caminho certo? As pessoas estão mais conscientes e ativas? JORGE WILHEIM Sim, as pessoas estão mais conscientes e ativas. Existem centenas de grupos e ONGs desfraldando suas bandeiras, a sociedade brasileira está ficando mais exigente e sábia. Apesar de ainda persistirem vícios de formação, personalismos, pragmatismo e outros. Um bom exemplo do uso da inteligência direcionada à preservação da natureza é o etanol como combustível, é menos poluente.

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changuiTO Poesia ilimitada

No Rio de Janeiro, um português abriu a única livraria especializada em poesia do país. Conheça o intrépido livreiro que não diz uma frase sem citar um poema texto Ronaldo Bressane FOTOS Marcos Michael

Poucos sabem, mas Dom Quixote

vive em uma sala ensolarada num prédio feioso da Lapa carioca. Sim, aquele mesmo: o cavaleiro andante, que lutava com moinhos de vento na Península Ibérica, hoje batalha contra outros inimigos, tão poderosos quanto invisíveis — os leitores. Changuito, nome de guerra do lisboeta Mário Guerra, idade entre 20 e 40 anos (“Livreiro nunca declina a idade”, diz), é o dono da quixotesca livraria Poesia Incompleta. Quixotesca por muitas razões. Primeiro: é a única livraria especializada em poesia no Brasil — algo já raro em termos mundiais (Changuito ouviu dizer que só há congêneres em Paris, Seattle, Boston e Oslo). Em plena crise do livro, um negócio altamente arriscado. Segundo: por razões legais, Changuito não pode divulgar o endereço da livraria; no Rio, é proibido “estocar” livros acima do quarto andar de um prédio comercial. O livreiro só descobriu essa lei bizarra quando foi abrir o negócio na prefeitura — e já havia instalado na sala uma tonelada de ditirambos, sonetos, epopeias e versos livres: cinco mil volumes, em cerca de 30 idiomas diferentes. O clandestino espaço é um terço da livraria que Changuito tinha em Lisboa, onde suas três salas com livros em 50 línguas funcionaram durante três

anos — e, pasmem os que o taxam de cabeça-de-vento, com lucro anual de 20%. “Não se abre um negócio desses sem relação de amor com a poesia”, ensina ele, tossindo bastante enquanto acende o cachimbo (fumava quatro maços por dia, agora baixou para um). Faz 40 graus lá fora e aqui dentro o refresco vem puramente da janela, da cerveja oferecida pela namorada do livreiro e da trilha sonora, o flutuante piano do português Bernardo Sassetti. “A primeira coisa que me moveu para abrir a livraria foi a relação de intimidade com o leitor, que não acontece nessas megassuperlivrarias. Ali, o capitalismo é malfeito: estão a perder clientes de livros para CDs, computadores, filmes; podes ver pelo fechamento da Barnes & Noble. Creio na clivagem dos produtos de nicho: o tipo que adora ciências sociais vai em livraria só de livros de ciências sociais encontrar leitores de ciências sociais; um lugar onde tratam o leitor por tu”, explica o anarcocapitalista. Mas, enfim, se fazia sucesso em Portugal, para que aventurar-se no Rio? “Estou aqui há três meses e tem sido relativamente catastrófico”, confessa. De novo, o amor justifica o movimento do livreiro: ele se apaixonou pela bela poeta carioca Valeska de Aguirre (Atos de repetição, 7Letras). Não só o amor, também a guerra. “Respira-se mal em

Portugal; há gente assustadora no poder, analfabeta, tiriricas de fato e gravata com discurso neoliberalista que nem conjugar verbos sabem”, vitupera. No batismo da livraria, ficou entre homenagear Poesia toda, antologia de seu ídolo Herberto Helder, e Poesia incompleta, livro do também português Mario Dionisio: “Me pareceu mais justo, porque, por mais que se tenha de tudo, sempre falta algo”, lamenta. Coisa que o deixa irritadíssimo. Daí sua frustração em não poder divulgar o endereço da livraria: editoras e distribuidoras brasileiras desconfiam e não lhe entregam os livros pedidos. Portanto, por enquanto, seu faturamento é, como o nome sugere, incompleto. Apesar de haver poucos livros brasileiros, há tesouros para onde se olhe nas abarrotadíssimas estantes — um catálogo finamente selecionado, tentações por todo lado. Há que se lembrar ao leitor que qualquer compra assusta: como são livros europeus, os preços estão em euro. No entanto, não existe lugar no país onde se possa passar a tarde toda folheando exemplares de editoras e selos raros do mundo todo, tendo a fazer-lhes as honras um cultíssimo leitor. Antes de ser livreiro, que fazia o magro barbudinho? “Era gerente de um bar onde havia concertos, ou seja, comprava tomate, queijo, servia bebidas e programava os

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1-2 recordações

Nas paredes da pequena livraria, o proprietário fixou manuscritos, correspondências e ilustrações

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Perfil shows”, diz. E estudou o quê? “Estudei tráfico de escravos na Abissínia, estudei trapézio, estudei história científica do século 15, estudei todas as matérias que não valem para nada, e, além disso, os poemas de Manoel de Barros”, conta. “Tentei fazer faculdades de animação sociocultural e jornalismo e, assustadíssimo com o baixo nível, depois de sete meses, saí”, diz, falando pausada e apaixonadamente, quase sempre citando versos. Seus heróis são Herberto Helder, Mário Cesariny, Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha... E Pessoa? “Estão a editar tanta porcaria de Pessoa, que acho difícil dizer que gosto dele. Os argumentos de cinema, os textos sobre monarquia? Claro que ele é grande, mas estão a fazer render demais o peixe, o baú dele é uma sangria”, critica. Entre os brasileiros, Changuito elege as Galáxias, de Haroldo de Campos, Drummond, Bandeira, e, acima de todos, João Cabral, “o primeiro poeta brasileiro que ouvi; fiquei absolutamente doido com aquilo”. Dos contemporâneos, elogia os romances Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Pornopopeia, de Reinaldo Moreaes, e Ó, de Nuno Ramos.

CONTEMPORÂNEA

E poesia contemporânea? Aí Changuito prefere silenciar, para não polemizar. Conta, meio desgostoso, que, em Portugal, os poetas que não elogiava deixavam de ir à livraria; no Brasil, somente teve a visita de Paulo Henriques Britto. Será que os poetas frequentam mais saraus que livrarias? À provocação, o magriça atiça-se. “Onde a poesia se exibe como um espetáculo espetacular, não é poesia’, diz um poema de Ramos Rosa. Ouvi muita poesia dita por poetas e atores. Engraçado: no quinto

verso, vê-se os cinco livros que o tipo leu. Estamos em 2013 e estão a querer fazer o que o Ginsberg fez há 60 anos? Tu não és o Ginsberg, poxa, que leu os russos, os irlandeses, os franceses... aquilo não veio de nada. É muito raro um Rimbaud!”, tosse. Então, para Changuito, existe grande diferença entre escrever e publicar? “Há muitas pessoas se achando demais, tendo opiniões... ‘quem acha, vive se perdendo’, cantava o Noel Rosa. É como acontece na academia: fico chocado com o número de pessoas concluindo

pós-doutorados. Mas o que alguém pode concluir sobre o que quer que seja?! Concluir é assustadoramente difícil. Li a grande poesia portuguesa do século 15 e não concluo porra nenhuma! ‘Umas vezes me espanto, outras me envergonho’, diria o Sá de Miranda. Acho que, na poesia contemporânea, estamos muito distanciados do espanto e não nos envergonhamos o suficiente”, trocadilha o livreiro. Editam-se coisas demais? Como lidar com o dilúvio de informação? Navegar na rede é preciso? “Só uso o

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Facebook como plataforma de negócios. Nesse polvo das redes sociais, quando alguém põe um texto a rimar alma e calma e uma foto de pôr do sol, 17 imbecis fazem joinha... Não tenho tempo para isso, não acabei de ler o Dostoiévski”, justifica. Então, é difícil tirar as pessoas da zona de conforto. “Claro: ninguém quer ler Marcial, Plutarco, Píndaro, Checov; ninguém vai te agarrar na rua e dizer ‘Leia Shakespeare!’. No Rio, especificamente, há um amontoado de razões para as pessoas não lerem poesia. Tu não queres ficar pra baixo, refletindo, indispondo-se com a praia, não é?” Para Changuito, ler deve ser um exercício singular. “Entro na Livraria Cultura e fico entontecido com as escadas rolantes, as luzes, o espaço... parece que o livro é só mais uma coisa. Vivemos uma época de possibilidades. Há 750 mil APPs para iPhone, podem-se comprar viagens instantâneas na rede, ver todos os filmes, ouvir os melhores textos em audiolivros ditos pelos melhores atores. Mas compra-se, e não se lê. Lembrando Szymborska, ‘Alguns gostam de poesia/ alguns, quer dizer, dois em mil’. As pessoas gostam é das possibilidades: de ter milhares de coisas que jamais terão tempo físico para usar; da hipótese de gelados com 80 sabores, mas, nos próximos 20 anos, vão provar o

Da livraria de Changuito, localizada na Lapa carioca, constam livros em 50 idiomas; um terço do seu acervo total único sabor que de já gostavam antes. As pessoas nunca saem da zona de conforto para a zona de confronto”, discursa, desculpando-se por mais uma tossidela. Por essa razão é que o livreiro, ao buscar um lugar definitivo para a Poesia Incompleta — com dificuldade, por conta dos altíssimos preços de aluguéis no Rio —, evita associar-se a bar ou restaurante. “As pessoas vão com as mãos molhadas pegar num livro, e cada exemplar que se inutiliza, joga-se fora. Quando as pessoas veem 50 exemplares da biografia de Giannecchini ou do Padre Marcelo, ou da Jane Fonda, acham que, se este caiu, há outro, tudo bem. Só exponho um único exemplar de cada livro; em geral, não tenho outros”, explica. Mas, Changuito, apesar de suas diatribes contra a falta de leitura geral, nunca se publicou tanto livro como hoje. Compra-se muito e lê-se pouco, então? Livro virou fetiche? “No dizer de Mario

Cesariny, ‘há tanta maneira de compor uma estante’... Vi uma arquiteta, paga para desenhar uma casa, receber pra comprar livros, pois os donos não tinham. Gosta-se muito de acumular, ter muitas coisas, mostrar a casa cheia de quadros. É coisa de dentistas, médicos, mostrar diplomas, quadros; gente que nunca foi a museus — mas têm na mesa a Caras. A bibliofilia é só um desejo de colecionar: por acaso é livro, não é sapato, automóvel. Comprei muitas primeiras edições, mas isso nunca foi desligado do meu amor àquela obra”, desenvolve. E afinal, Changuito, poesia é mesmo uma coisa inútil? “Discordo totalmente”, tosse, acendendo de novo o cachimbo. “Como é o ponto mais alto da palavra, a poesia pode formar sujeitos mais preparados, que percebam o seu lugar e o do outro no mundo, que aprendam a falar de si, do outro. Não se pode fazer nada grande sem muita leitura. Por isso nunca senti necessidade de escrever. Só valeria a pena se fosse Camões ou Haroldo. Já se disse tanta coisa sobre tudo, que vou dizer?” E fim de papo. Quer dizer: antes, Changuito oferece mais cerveja e mostra mais quitutes de sua coleção. O repórter sai informado, porém mais suado, trôpego e pobre do que quando entrou. É um perigo esse Dom Quixote lusitano.

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Tradição

festa Em nome daquilo que é inefável

1 caixeiras Marlene Silva (esq.) se une a outras senhoras para tocar caixas e entoar cânticos 2 conjunto Instrumentos de sopro acompanham o cortejo percussivo

A celebração secular em homenagem ao Divino Espírito Santo, trazida ao Brasil pelos portugueses durante a colonização, arraigou-se na cultura e no coração dos devotos maranhenses texto Amy Loren Fotos Márcio RM

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Devoção! Nenhuma palavra poderia

descrever melhor a Festa do Divino Espírito Santo, ou apenas Festa do Divino, como é popularmente chamada. A tradição, que sobrevive há seculos, é dedicada à terceira pessoa da Santíssima Trindade. Festejada com banquetes coletivos, conta com um ritual repleto de detalhes, no qual devotos e pagantes de promessas acompanham a procissão ao longo de 13 dias, geralmente no mês de maio. A comemoração tem origem portuguesa e foi difundida na América pela colonização. Destaca-se, hoje, como um dos mais importantes festejos da cultura popular do Maranhão, e um dos mais tradicionais do

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Brasil, por conservar ainda características do período colonial. As caixeiras estão entre os elementos mais importantes da festa e toda a celebração gira em torno de um grupo de crianças que, durante o período dos festejos, são vestidas com trajes nobres, comportando-se como membros da realeza. O ritual conta com uma estrutura bastante complexa, com várias etapas, podendo apresentar variantes significativas em cada localidade. No Maranhão, essa festa está diretamente ligada às religiões afro-brasileiras. Na cidade de Alcântara, a festividade se tornou uma das mais tradicionais do país e apreciada por suas peculiaridades.

Diferentemente da prática em outros lugares do Brasil, em que a festa é um ritual do catolicismo popular, no Maranhão, embora vinculada à religião católica, o Divino possui dois detalhes fundamentais. Primeiro, a presença marcante de mulheres. As famosas caixeiras tocam instrumentos musicais que se assemelham a pequenos tambores, denominados “caixas do Divino”. A outra diferença, com exceção da cidade de Alcântara, é a festa estar comumente associada ao calendário religioso de “terreiros de tambor de mina”, como são denominadas as casas de culto afro-maranhenses. Quase todos os terreiros de mina organizam, uma vez ao ano, uma festa do Divino em

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3 realeza Celebração gira em torno de um grupo de crianças vestidas com trajes nobres 4-6 acessórios A indumentária conta com elementos como coroa, tiara, cetro e manto de veludo bordado imperador 7 Encarnando personagem, Rodrigo Costa foi tratado com todas as regalias durante os dias de festa

homenagem à entidade importante para a comunidade religiosa. O período para a realização se relaciona com o Dia de Pentecostes, variando entre maio e junho e podendo acontecer até o ano seguinte. Em Alcântara, começa na quinta-feira da Ascensão do Senhor e termina no Domingo de Pentecostes. Uma estimativa feita pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão, registra que são realizadas anualmente mais de uma centena de festas do Divino, somente em São Luís. Algumas pessoas também a organizam em suas casas. É comum que sejam também relacionadas com o tambor de mina e que, por algum motivo, fazem a festa fora do local de culto, mas sempre em homenagem a entidades cultuadas nos terreiros.

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O RITUAL

Em Alcântara, a Festa do Divino configura uma liturgia rica de personagens e significados constituintes de um cortejo que

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percorre toda a cidade. Fazem parte do império simbólico elementos como coroa, tiara, cetro, manto de veludo bordado e outros ícones reais utilizados pelo imperador e imperatriz, crianças que representam os festeiros (pessoas que promovem a festa naquele ano). Elas são tratadas com todas as regalias durante os dias da festa, quando são saudadas como nobres e sentam-se em tronos (cadeiras cobertas com tecidos finos e enfeites, colocadas na tribuna, espécie de altar, no qual seguram a pombinha e a coroa do Divino). A cada ano, um dos membros da realeza é personagem principal – um ano é do imperador e, o seguinte, da imperatriz. Em outros lugares, como São Luís, imperador e imperatriz marcam presença lado a lado na corte, com o mesmo grau de importância. Mais crianças assumem outras posições na procissão. O império se estrutura de acordo com uma hierarquia na qual, logo abaixo do topo (em que estão o imperador e a imperatriz), ficam os mordomos régios, que, por sua vez, estão acima dos mordomos baixos. Ao final da festa, imperador e imperatriz repassam

No Maranhão, o período da festa se relaciona com o Dia de Pentecostes, variando entre os meses de maio e junho seus cargos aos mordomos, que os ocuparão no ano seguinte, recomeçando o ciclo. Aias, vassalos, bandeireiro, bandeirinhas e anjos são outras figuras representadas durante o cortejo. Em Alcântara, além da procissão, a festa se desenrola em um salão chamado tribuna, na casa do imperador, que representa um palácio real e é especialmente decorado para esse fim. A abertura e o fechamento desse espaço determinam o começo e o fim do ciclo da festa, durante o qual se desenrolam as diversas etapas da tradição. O evento que marca o início dos festejos é o levantamento do mastro do imperador. Logo após, na chamada alvorada, que acontece durante o nascer no sol, o cortejo é feito

com caixeiras e músicos no mastro do império, seguida de uma missa em que ocorre a coroação do imperador. À tarde, a procissão sai em passeata pelas ruas da cidade, para efetuar a prisão dos mordomos pelo império. Nos dias seguintes, cumpre-se uma programação que inclui passeata e levantamento do mastro dos mordomos régios, ladainhas, visita do império aos mordomos e vice-versa, entrega de esmolas, missas – e finda com a entrega dos postos aos festeiros do ano seguinte. Inicia-se, então, o novo ciclo, no qual toda a organização e os preparativos da festa são assumidos por um grupo de pessoas que se comprometem, geralmente por pagamento de promessa, e recebem doações de devotos e colaboradores para que possam garantir mesas fartas no momento da visita do império à casa de cada um dos seus membros.

AS CAIXEIRAS

Sejam relacionadas ao tambor de mina ou não, no Maranhão, as caixeiras constituem elemento imprescindível e típico da festa. As senhoras idosas

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8-11 ciclo O roteiro da festa inclui cortejo pela cidade, missas, montagem de altares domésticos, preparação e distribuição de quitutes

possuem o encargo de tocar caixas e entoar cânticos, repetidos de cor ou improvisados, em louvor ao Divino Espírito Santo. O mais comum é que façam isso por promessa ao longo da vida e vinculem-se a um grupo entre seis, 10 ou mais pessoas que, anualmente, tocam em diversas casas, sob a liderança da caixeira-régia e ajudadas pela caixeira-mor. As caixeiras não recebem remuneração, mas são muito valorizadas. Recebem alimento, algum dinheiro para transporte, vestimentas iguais em algumas festas e são agradadas com presentes e mantimentos. Além de tocar e cantar, elas dançam com as bandeireiras diante do trono e do mastro. O canto, ora em uníssono ora em duas vozes, pode apresentar variações na melodia principal, como ocorre normalmente nas práticas da tradição oral. É de responsabilidade das caixeiras conhecer todo o ritual e o repertório relacionado, que é vasto e variado, e ainda precisam ter a habilidade do improviso para responderem a situações imprevistas no decorrer das etapas. Para Marlene Silva, caixeira em Alcântara e devota desde os 14 anos, para ser caixeira é necessário mais do que saber os versos e passos, é preciso amor. “Isso é para ter muita coragem, muita responsabilidade e gostar. É uma coisa que vem de dentro da gente. Tem quer ter respeito, tem que ter amor por aquilo que quer”, explica. Marlene diz que, apesar de ser uma festa tão tradicional, hoje existe grande dificuldade em atrair a participação dos jovens, encontrada até para formar o grupo de bandeirinhas – garotas que carregam bandeiras para o Espírito Santo

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durante os cortejos. Elas acompanham as caixeiras nas obrigações, ajudando a cantar as ladainhas e dançando nas festas organizadas na Casa do Divino. A função acaba sendo uma porta de entrada para tornar-se caixeira – é como a maioria delas começou. “Hoje, as bandeirinhas não querem mais nem cantar junto com a gente, é assim mesmo”, comenta Marlene.

A ORIGEM

Em Portugal, no Brasil ou em qualquer lugar que a tradição tenha alcançado os séculos, fiéis devotos e pagantes de promessas carregaram o ritual até os dias atuais. Os relatos sobre a origem da comemoração possuem diferentes versões. Uma das mais comuns é a de que o festejo começou com a promessa feita pela imperatriz Dona Isabel de Aragão. Por volta do ano de 1320, ela teria pedido ao Divino Espírito Santo que o filho D. Afonso, herdeiro legítimo do trono imperial, fizesse as pazes com o pai D. Dinis. A imperatriz não se conformava com o confronto entre pai e filho devido à herança do trono imperial, pois era desejo do imperador

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A celebração profano-religiosa era praticada pela nobreza e, depois, foi apropriada pela população mais pobre que a coroa portuguesa passasse, após sua morte, para um filho bastardo. A intervenção teria evitado o conflito armado entre pai e filho denominado Batalha de Alvalade. Entretanto, para Carlos de Lima, pesquisador maranhense que contribuiu para os estudos acerca da festividade no Maranhão, a Festa do Divino também pode ter sido originada numa instituição criada por Oto IV, duque da Baviera, para socorrer os pobres de seu império, arrasado pela fome, no século 13, daí se espalhando pela Europa, para chegar a Portugal em 1296 e, posteriormente, ao Brasil. A celebração profano-religiosa era praticada, a priori, pela nobreza e, mais tarde, teve seu rito apropriado pela população mais pobre.

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divulgaÇÃO

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Viagem

ARGENTINA Presença jesuíta na terra de Francisco

1 misiones As ruínas da província foram declaradas Patrimônio Histórico Mundial pela Unesco, em 1984

La Manzana de las Luces, conjunto de edificações ligado à ordem católica, abriga os muros mais antigos de Buenos Aires, agora celebrizada por ser a “casa” do novo papa texto Mariana Camaroti, de Buenos Aires

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Andava pelas tradicionais ruas do centro de Buenos Aires, observando monumentos e fachadas europeizadas, quando me deparei com um solar que destoava de tudo o que havia ao redor. Uma construção austera, antiga, de paredes brancas, nada rebuscada. Desavisada e levada pela curiosidade, resolvi entrar naquele edifício aberto ao público. Mal sabia que, ao cruzar uma porta de madeira antiga, aberta ao meio em duas folhas, faria uma viagem no tempo e chegaria à época em que esta metrópole era uma colônia espanhola e lutava para se proteger de invasores e se tornar independente da coroa.

Estava em La Manzana de las Luces (O Quarteirão das Luzes), conjunto de edificações que ocupa uma quadra inteira e que abriga os muros mais antigos da capital argentina. Algumas das muitas construções erguidas pelos jesuítas no país. As informações de um folheto entregue na porta advertiam que a presença dessa ordem católica na Argentina se mistura com a história nacional. E que tanto esse emblemático quarteirão quanto as ruínas das missões jesuíticas no interior do país formam um verdadeiro roteiro turísticohistórico-religioso. Momento oportuno para conhecer um pouco mais a respeito, já que a escolha do jesuíta argentino Jose Mario Bergoglio como papa volta a lançar holofotes sobre esses sacerdotes que, no passado, assentavam índios, catequizando e ensinando ofícios. “Aqui, embaixo de La Manzana de las Luces, ainda existem túneis que ligam este quarteirão a vários pontos estratégicos da cidade. Tudo indica que foram usados na defesa da então colônia, assim como no contrabando de mercadorias”, escuto dizer, com um certo suspense, Karina Balice, responsável pela visita guiada do local, já iniciada para um grupo de turistas ao qual me reúno. Interrompo a explanação e pergunto por que o nome La Manzana de las Luces? A guia sorri e discorre: “Porque aqui, por este quarteirão, passaram – e nele se formaram – muitos estudiosos. Daqui emanaram muitas ideias, na época do Iluminismo. Um jornalista se referiu a este conjunto edilício assim, dando nome ao lugar”.

COMPANHIA DE JESUS

Corria, então, o século 17, mais precisamente 1661. Os jesuítas que ocupavam um terreno próximo ao forte de Buenos Aires – onde atualmente é a Casa Rosada, sede do governo nacional – são transferidos, por questões militares, para outro local. Tinha início a construção provisória e precária do novo templo da Companhia de Jesus, a Igreja de Santo Inácio de Loyola.

A igreja, ainda hoje em pleno funcionamento, seria a primeira das construções daquele quarteirão. Vinte e cinco anos depois, principiam as obras que completariam a quadra: a fachada e o o átrio do solar, as bases das torres e o campanário sul. O Colégio de Santo Inácio já havia sido transferido para o local, ocupando um prédio provisório, mas, só em 1729, o claustro do educandário seria concluído. A planta tinha características austeras, como tudo ali, de cal e tijolos, com térreo e primeiro andar. Os pilares, pilastras e arcos evidenciavam sua qualidade arquitetônica. Ainda hoje existe a ala norte do educandário, anexada à igreja. “Desde 1662 até 1767, o Colégio de Santo Inácio foi o grande centro cultural e intelectual da cidade de Buenos Aires. Desde a sua origem, destacou-se pela música, canto, drama e até em danças artísticas”, escreveu o historiador Guillermo Furlong (1889-1974), estudioso da presença dos jesuítas no país. Levados pela guia turística, chegamos a um pátio interno amplo, de onde avistamos a parte posterior da Igreja de Santo Inácio e a parte do colégio que resistiu ao tempo. “Este pátio e tudo o que vocês estão vendo ao redor fazem parte da antiga Procuradoria das Missões”, diz ela. Observo aquele edifício também de térreo e primeiro andar, com arcos de tijolos aparentes que cercam o pátio e escuto suas explicações. Não é difícil me transportar para o século 18 e ver como era aquele lugar no passado, com sacerdotes, índios guaranis catequizados nas missões, trabalhadores, estudiosos, moradores, enfim, da então colônia, circulando por ali. Na Procuradoria, morava o chefe da ordem jesuítica e se administrava e capitalizava o comércio das missões. Era quase uma pequena cidade, com escola, escritório, depósitos, pomar. “Aqui funcionava um mercado. Imaginem as carroças passando por um enorme portal e deixando as mercadorias”, sugere Balice. Ela continua: “Atrás dessas três portas que ainda vemos aqui funcionava uma botica onde havia

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FOTOS: divulgaÇÃO

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Viagem inúmeras caixinhas diminutas de madeira com ervas que serviam para preparar medicamentos na hora”. O lucro apurado com as atividades era destinado a ajudar na manutenção das missões e do Colégio de Santo Inácio. Chega o momento do tour anunciado no início e pelo qual eu mais esperava: conhecer os misteriosos túneis de La Manzana de las Luces. Através de uma estreita escada caracol, descemos 6m no subterrâneo do quarteirão e ficamos no meio de uma encruzilhada, de onde partem três túneis em diferentes direções. Com a queda de temperatura, a guia explica que ali existe um sistema de

Os túneis que ligavam La Manzana de las Luces a outros edifícios importantes da área foram descobertos em 1917 refrigeração e umidificação do ar para manter a construção. Descobertos em 1917, aqueles enigmáticos caminhos ligavam igrejas, edifícios públicos, o forte, a então sede do governo (o Cabildo de Buenos Aires, ainda hoje erguido na Praça de Maio), o Rio da Prata, que costeia a cidade, e até a casa da viúva do vice-rei do Pino, administrador da colônia indicado pela coroa espanhola. Devido ao progresso de Buenos Aires, redes de esgoto, energia,

gás e metrô destruíram parte dessa intrigante rede subterrânea. “O que hoje vemos aqui é tudo o que pudemos encontrar e foi restaurado para que os visitantes pudessem conhecêla”, explica a guia, acrescentando que apenas 20% dos tijolos aparentes vistos ali são originais. Mas, afinal, para que serviam? Não se sabe, mas a porcelana inglesa e moedas de ouro de invasores encontradas nos túneis mostram que o contrabando era uma das suas funções. Conta-se que, na segunda invasão inglesa a Buenos Aires, no início dos anos de 1800, soldados estrangeiros foram surpreendidos na casa da viúva do vice-rei pelo exército que saía de um dos túneis.

EXPULSÃO

Os jesuítas foram expulsos de Buenos Aires em 1767, por determinação do rei espanhol Carlos III. Os bens da ordem

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foram confiscados e La Manzana de las Luces passa a ser administrada pela Junta das Temporalidades. Diante da informação da guia, supus que a importância histórica da congregação terminaria ali, mas estava completamente enganada. “Nas bases do colégio da Companhia de Jesus começa a funcionar o Colégio de São Carlos (mais tarde rebatizado de Colégio Convictorio Carolino), por onde passaram vários dos heróis da independência argentina. Além disso, nesse quarteirão, teve início a medicina nacional e foi rodado o primeiro jornal argentino, na gráfica dos jesuítas, deixada para trás quando eles foram expulsos”, explica Balice. La Manzana albergou, ainda, a primeira biblioteca pública, o Museu de História Natural, a Escola de Desenho e o arquivo público. Na antiga Procuradoria, foi

fundada a Universidade de Buenos Aires, em 1821, onde mais tarde se formariam dois prêmios Nobel. Na sequência de importantes instituições intelectuais e educacionais, que funcionariam no quarteirão, vieram a Legislatura da Província de Buenos Aires e o Banco da Província. O jornal La Prensa funciona no prédio e dali é feita, em 1878, a primeira ligação telefônica do país. Naqueles idos, surgem várias educandários e, finalmente, o Colégio Nacional de Buenos Aires, num imponente edifício de estilo francês, erguido ao lado da igreja. Na excursão pelo emblemático quarteirão portenho, descubro que a passagem de dois séculos não demoliu, mas conservou a Sala de Representantes, na qual funcionaram o Congresso Geral Constituinte e o Congresso Nacional. Um anfiteatro com capacidade para 300 pessoas,

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la manzana de las luces

O conjunto de edificações ocupa uma quadra inteira e abriga os muros mais antigos de Buenos Aires

em que juraram governadores da província e presidentes argentinos no século 19. Mais tarde, aquela seria a sala principal da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires (UBA). Já no século 20, em 1925, La Manzana de las Luces recebeu Albert Einstein para uma aula na UBA. Minha viagem no tempo chega ao final, quando ouço a guia contar que a universidade foi inteiramente transferida para o campus. La Manzana começaria então a ser recuperada e se transformaria num centro cultural e ponto turístico, embora pouco difundido, da cidade. Para mim, ela

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divulgaÇÃO

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Viagem

seria também uma fabulosa e secreta passagem em direção ao passado.

RUÍNAS

Ao contrário do que aconteceu em Buenos Aires, as construções jesuítas na então denominada Província das Missões – nos territórios do que hoje são Argentina, Paraguai e Brasil – não resistiram à expulsão da ordem em 1767. As 30 missões erguidas nos séculos 16 e 17, na Bacia do Rio da Prata, sucumbiram em ruínas. O que foi quase um império, segundo o livro Misiones jesuitas & guaraníes, una experiencia única (ed. Golden Universe), com 140 mil habitantes em 1732, ficou escondido em meio à frondosa selva da região e à mercê de saques e incêndios. Pela sua importância histórica e cultural, as ruínas das missões das cidades de San Ignacio, Loreto, Santa María e Santa Ana, na província de

Misiones, todas restauradas, e outras três na província de Corrientes, foram declaradas, em 1984, Patrimônio Histórico Mundial pela Unesco. Os resquícios ainda hoje dão conta de uma estrutura organizada e grandiosa – umas mais do que outras –, formada por moradias, templo, pátio, igreja, cemitério, praça, plantações, fundição, gráfica e unidades de produção variadas. Uma sábia e controvertida forma desenvolvida pela Companhia de Jesus de catequizar e proteger a população guarani da escravidão espanhola e portuguesa, ao mesmo tempo em que ocupava o território. “O ostracismo das ruínas foi tanto, que moradores da cidade de Concepción de la Sierra construíram casas usando como base as ruínas de alguma missão que existiu no local, sem saber”, conta a coordenadora de turismo da província de Missões,

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igreja que leva o nome A do religioso foi a primeira construção do quarteirão, ocupado pelos jesuítas

Cintia Marin. “Hoje, elas são um destino muito importante, que faz parte de um circuito religioso que inclui igrejas da região. O turista não visita apenas as Cataratas do Iguaçu.” As ruínas na província de Misiones são as mais reconhecidas e estão em um raio de até 60 quilômetros da capital, Posadas, e a 240 quilômetros de Puerto Iguazu. Delas, as de San Ignacio Miní, na cidade de San Ignacio, de características barroco-guarani, são as mais grandiosas. Além de ver ruínas restauradas e visitar o museu, o turista assiste a uma projeção de imagens sobre elas que recria o que se viveu ali no passado.

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Cardรกpio

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CAPRINA Carne predileta na mesa nordestina

Pela especial adaptação dos rebanhos ao clima semiárido do Sertão, pratos à base de bode tornaram-se típicos da culinária regional texto Carlos Eduardo Amaral Fotos Leo Caldas

Qualquer sertanejo sabe que o bode,

por sua resistência inata, adapta-se melhor que os demais tipos de gado às condições adversas do semiárido nordestino: ele suporta mais a escassez de pasto e o calor e secura intensos; é mais acessível aos pequenos criadores, pelo preço de sua cabeça ser menor do que a do gado bovino; e requer poucos cuidados para a manutenção do rebanho. Esse fatores são apenas alguns dos que esclarecem como a carne caprina se disseminou por todo o Nordeste, incluindo as capitais, e passou a fazer parte da cozinha regional. Mas já se foi o tempo em que ela só era comida sob a forma de buchada, assado ou guisado, ao menos em cidades como Petrolina, onde a prefeitura municipal destinou uma área do tamanho de um campo de futebol para restaurantes especializados em culinária caprina. Localizado a cerca de 10 minutos do centro da cidade, numa viagem de táxi que não custa mais do que R$ 15,00, o Bodódromo tornou-se, de imediato, um ponto de atração para turistas e moradores petrolinenses, e alberga 10 restaurantes, área para shows e barracas de artesanato. A procura pela carne de bode, desde então, cresceu ao ponto de não poder mais ser atendida pelos criadores. Daí foi preciso apelar para os carneiros,

A 10 minutos do centro de Petrolina, o Bodódromo reúne 10 restaurantes especializados na culinária caprina que se mostraram ótimos suplentes. “Antes se comia realmente bode, porque a demanda era pequena. Depois, acabamos até vendo que o carneiro era melhor para churrasco”, explica Isaías Mororó, dono do Bode Assado do Isaías e presidente da associação que congrega os comerciantes do Bodódromo, inaugurado em 2000. O piauiense radicado em Petrolina desde 1987, que trabalhou como cobrador de ônibus e funcionário de supermercado antes de entrar no setor gastronômico, detalha que a maior parte da carne fornecida aos restaurantes do Bodódromo vem de Dormentes – cidade vizinha a Petrolina e detentora do maior rebanho ovino de Pernambuco – e que 90% do consumo no centro de alimentação passou a ser de carneiro. As diferenças entre bodes e carneiros, dentro e fora da panela, não são poucas, por mais que ambos sejam apreciados indistintamente e possam ser preparados

de maneira similar. Isaías enumera algumas: “O bode para churrasco tem de ser novo, de uns oito meses, enquanto o carneiro pode ser mais velho. Mas quando é para preparar guisados, o bode é melhor que o carneiro, sai mais cheiroso. Outra coisa: o carneiro dá duas crias por ano, enquanto as cabras só estão dando uma, e bode é ruim de ser criado em cercado, como se faz com o carneiro. Ele só presta em lugar solto”. Antes, nos restaurantes do Bodódromo, só se servia carne assada ou guisada com as guarnições; depois, outras opções de preparo foram sendo inventadas ou incrementadas. No Bode Assado do Isaías, já existem 28 pratos diferentes à base de carneiro ou de bode, que incluem risoto, fondue, pizza e estrogonofe, por exemplo. Alguns, como o medalhão de carneiro com bacon, servido com batatas sauté e arroz, incorporam em seu molho vinhos e uvas da própria região do São Francisco, vendidos também no local. Dentre os cuidados necessários à conservação dos cortes de bode, Isaías Mororó explica que ela não pode ser congelada, apenas resfriada: “Se congelar, perde a qualidade”, diz. Assim, após a desossagem, o bode é colocado na salmoura; transferido para a estufa, depois de duas ou três horas; e, finalmente, posto num freezer com

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legenda à esquerda o nome da rosa

Cardápio 1

temperatura entre cinco e 10 graus. Vale lembrar, por fim, que outra das grandes virtudes da carne caprina está em seu baixíssimo teor de gordura. Ou seja, podemos comê-la até nos esbaldarmos (a não ser que ela sirva de tira-gosto a uma boa cerveja). O mesmo se aplica ao leite de cabra, o qual possui menos colesterol que o de vaca e agrega mais fósforo, potássio e cálcio que o outro. O leite caprino, ao contrário do bovino, não precisa ser homogeneizado (isto é, misturado nele mesmo para a gordura ser melhor distribuída) e é digerido mais rapidamente. Nos países árabes e entre os alérgicos ao leite de vaca, ele é o predileto.

BANQUETES MAÇÔNICOS

Uma das curiosidades que envolvem o consumo da carne de bode no Nordeste é a de ela ser especialmente preferida por maçons, nos costumeiros banquetes que

Insuspeita é a predileção pela carne de bode nos banquetes maçônicos. A doutrina também tem o animal em sua simbologia organizam para se confraternizar ou com a participação de suas famílias. Como a maioria das lojas maçônicas se reúne nos dias úteis à noite, é de se admitir que um jantar à base de bode guisado e guarnição completa (junto com galeto assado, às vezes, como constatamos) pode parecer um tanto pesado para o estômago, mas o simbolismo que envolve essa prática a justifica. Estatuetas e adesivos de carro de bodes vestidos com as insígnias maçônicas reforçam o tratamento que os maçons usam entre si, a

exemplo de quando chamam os aprendizes, membros mais novos da instituição, de “bode novo”. Ou de quando brincam ao falarem que, nas cerimônias de iniciação, existem provas a serem cumpridas e uma delas seria domar e montar um bode trancado numa sala fechada. Tudo lenda para confundir os ouvidos curiosos. Esse tratamento, porém, só é empregado no Brasil; em conversa com maçons que moraram em outros países, eles afirmaram não encontrar ninguém que chamasse o outro por goat ou bouc (enquanto, em contrapartida, sabemos que poucos vocativos soam tão nordestinos quanto “cabra safado”). Descobrir a origem do simbolismo do bode na maçonaria brasileira, por outro lado, revelou-se um embaraço para os maçons com quem conversamos; não pela discrição por que são conhecidos ao tocar nos assuntos internos perante o público, mas pela diversidade

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1 gourmet Hoje é possível comer carne caprina em pratos mais elaborados Isaías Mororó 2 Dono do Bode Assado do Isaías é presidente da associação que congrega os comerciantes do Bodódromo churrasco 3 Para esse tipo de preparo, o ideal é utilizar carne de carneiro ou de bode novo, com, no máximo, oito meses

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de explicações contraditórias. Eles declararam, primeiramente, que esse simbolismo deriva de Baphomet, representação simbólica descrita pelo ocultista Eliphas Lévi (1810-1875) como possuidora de corpo humano e cabeça de bode. Baphomet é mencionado no processo que a Igreja Católica moveu contra os Cavaleiros Templários, no século 14, ordem militar a serviço de Roma cujos princípios influenciaram a filosofia de alguns dos altos graus da maçonaria, a qual surgiu oficialmente em 1717, evoluída das corporações de pedreiros da Idade Média. Outra versão citada pelos maçons entrevistados associa o apelido à figura do bode expiatório, tradição bíblica entre os judeus em que um bode e um touro eram oferecidos em sacrifício e um segundo bode era poupado e enviado para o deserto, após um rabino confessar em seus ouvidos os pecados do povo de

Israel. O caprino ficou conhecido, conforme enfatizam os maçons, graças aos segredos que guardava. Esse hábito de confidenciar-se com um bode parece ter persistido durante a Idade Média e entre as pessoas em geral, segundo outros maçons que consultamos, de modo que qualquer pessoa que fosse inquirida por autoridades anticonspiratórias e não revelasse as informações desejadas era tida como bode, “pois nada se arrancava dela”. Mesmo assim, é de se desconfiar se aquele hábito confessional procede: falar com animais domésticos e plantas é uma coisa; já descarregar as culpas num animal de criação... Acontece que todas essas referências estão disponíveis em artigos na internet, porém esse material não responde a contento às perguntas: como a alcunha se originou no meio maçônico e por que não se fixou fora do Brasil? A explicação mais

plausível é a de que panfletos e livros antimaçônicos tenham espalhado o boato de que, nas iniciações da maçonaria, devia-se cavalgar em um caprino raivoso (o que algumas fraternidades universitárias norteamericanas, do século 19 para cá, assimilaram a título de trote, todavia usando uma armação de ferro e não um bode de verdade). Com isso, não se ouve entre maçons estrangeiros o vocativo de bode, mas vem de fora a expressão to ride the goat, que os pedreiros-livres anglo-saxônicos não rechaçaram para poder se divertir com o mistério que sempre os cercou. Seja como for, dentre os muitos “bodes” de lojas maçônicas que praticam “canibalismo” depois das reuniões, estão os de Petrolina, que se juntam à multidão presente ao Bodódromo, sem que ninguém os perceba como tais, para comer cabrito (aliás, carneiro) assado ou guisado até bem depois da meia-noite.

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Leitura IdeiaS Por uma explicação naturalista da arte

1 paisagem Para o filósofo, nosso gosto por fotos ou pinturas de natureza remonta à vida pré-histórica

O filósofo Denis Laurence Dutton defende que os critérios para as preferências estéticas não podem ser vistos apenas como frutos de “construções sociais” TEXto Eduardo Cesar Maia

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Considerar que uma determinada

perspectiva teórica é tão completa e objetiva que pode prescindir de todas as demais talvez seja a presunção intelectual mais perniciosa às investigações nos campos da teoria da arte e da estética. No complexo e confuso âmbito das ciências humanas, no qual tais disciplinas se inserem, é comum o aparecimento intermitente de vozes apregoando alguma nova forma de monismo teórico como panaceia capaz de elevar o conhecimento humanista ao status de verdadeira “ciência”, nos moldes das exatas e naturais. Um dos méritos do filósofo norte-americano Denis Laurence Dutton (1944-2010), autor de The art

instinct, é justamente o de não cair em disjunções absolutas ou reducionismos facilitadores, no momento de analisar um tema tão complexo. O filósofo aceita de antemão que sua perspectiva – fruto da simbiose entre seus estudos sobre filosofia da arte e seus conhecimentos da ciência evolutiva de base darwiniana – fornece boas explicações para alguns fenômenos ligados ao mundo da arte e da estética, mas não é capaz de esgotar o tema e muito menos suas implicações em outras áreas da vida humana. Em um ponto, no entanto, o autor é taxativo: “Nenhuma filosofia da arte pode prosperar, se ignora as fontes naturais da arte ou seu caráter cultural”. Para Dutton, a origem de certas preferências estéticas e artísticas

pode ser localizada em nossa história evolutiva, em traços que foram se conformando através da seleção natural e que passaram a ser inatos ao homem. A própria necessidade criativa de realização de obras de caráter artístico já seria, em si, um “universal humano” que, apesar de manifestar-se de forma variada em lugares, épocas e civilizações diferentes, aparece, de alguma maneira, em todas as culturas humanas, pois a arte, assim como a linguagem, é resultado de uma estrutura psicológica – modelada pelo processo evolutivo – comum a todos os seres humanos. Após as polêmicas suscitadas pela publicação de A origem das espécies, o próprio Charles Darwin já havia passado a refletir sobre outras implicações que sua teoria poderia ter na concepção do ser humano, não só como parte do reino natural. Nessa obra, o cientista ampliou o alcance de suas ideias, a partir da afirmação de que a evolução não só interferiu na estrutura biológica do homem, mas também em certas características de ordem mais psicológica e cultural, como no desenvolvimento da comunicação, dos valores morais e, inclusive, das formas de arte. De fato, as teses darwinianas já foram ampla e fecundamente aplicadas por outros investigadores mais recentes a áreas como a Linguística (aparecimento e desenvolvimento da linguagem), a filosofia da mente, a moral, a religião etc. Mas, somente agora, através obra de Denis Dutton, a tentativa darwiniana de uma explicação naturalista da arte é retomada, confrontada, matizada com outras áreas do conhecimento. Assim, desde o ponto de vista defendido em The art instinct, a fruição artística e os critérios para as preferências estéticas não podem ser explicados simplesmente como frutos de “construções sociais” ou opções meramente ideológicas, como vem defendendo boa parte dos teóricos e críticos acadêmicos desde o século passado até hoje. O filósofo norte-americano propõe que abandonemos o terreno inerte das “guerras culturais” e busquemos recuperar o lugar central que a beleza, o prazer estético e a perícia técnica já tiveram como baliza dos valores artísticos. Para ele, a valorização do

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imagens: divulgação

2 Denis Dutton Em seus estudos, o norte-americano une filosofia da arte e ciência evolutiva de base darwiniana

Leitura 2

“belo” é uma herança natural comum a todas as culturas, e muitas outras de nossas preferências artísticas também possuem esse caráter universal. No primeiro capítulo da obra, por exemplo, o autor analisa a fascinação de pessoas de diferentes culturas e regiões do planeta pela representação pictórica ou fotográfica de paisagens que conjugam harmonicamente os tons azuis da água e do céu claro com árvores ao fundo (imagem de calendário encontrada no mundo todo), pois isso evocaria a vivência ancestral – pré-histórica – do ambiente das savanas, a partir do qual evoluímos como espécie.

TRANSCULTURAL

Traçando um panorama do pensamento estético, que vai de Platão e Aristóteles até Hume e Kant, e passando por cientistas contemporâneos como Steven Pinker e Joseph Carroll, Dutton tenta resgatar a ideia de que é possível reconhecer uma natureza humana transcultural, definida por características e habilidades naturais da mente, encontradas, pois, em qualquer ser humano. É a partir dessa natureza comum que ele propõe uma concepção também transcultural de arte. Para chegar a essa definição geral, a

Para Dutton, a valorização do “belo” é comum a todas as culturas, assim como são universais certas preferências artísticas estratégia do pensador é a de valorizar as formas de manifestações artísticas mais recorrentes, e não os exemplos marginais (os experimentalismos vanguardistas, por exemplo). Ele reconhece que existem diferenças importantes entre os conceitos de arte dos mais diversos povos, mas defende argutamente que seríamos incapazes de falar que “outros” têm um conceito de arte diferente do nosso, se não compartilhássemos algo desse conceito, ainda que de forma analógica: “Todas as culturas humanas exibem algum modo de conduta expressiva que as tradições europeias identificariam como artística, ainda que isto não signifique que todas as sociedades possuam todas as formas de arte”. Dessa forma, ele se coloca na trincheira oposta à do relativismo cultural e, de maneira sem dúvida curiosa, invoca agora o darwinismo,

com a colaboração da filosofia da arte, para propor uma nova versão do universalismo humanista. Por outra parte, a afirmação de que a arte tem um valor e um caráter adaptativo – e a explicação de seu surgimento e desenvolvimento a partir disso – parecerá imprópria para aqueles que endossam a natureza não utilitária do trabalho artístico como um de seus predicados essenciais. Afinal, a proposição kantiana de que a contemplação artística é algo “puro e desinteressado” não pode coexistir pacificamente com a noção de que, desde suas origens, a arte respondeu a impulsos adaptativos de nossa espécie e possuía, portanto, um valor claramente instrumental e pragmático. A indagação que persiste, portanto, é a seguinte: será que a aceitação do argumento de Dutton, de que a arte é um produto derivado do processo de evolução da espécie humana, é uma forma de degradá-la como prática cultural? Polêmicas à parte, The art instinct é uma obra que merece ser lida e debatida dentro e fora da academia, porque propõe um caminho alternativo e profícuo para as investigações contemporâneas no campo da estética e da teoria da arte, ainda quando discordamos de algumas de suas argumentações.

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INDICAÇÕES CRÔNICA

CONTOS

JOSÉ CASTELLO Sábados inquietos

MARIO BENEDETTI Histórias de Paris

O escritor se considera um “crítico sentimental”, o que reverbera no seu texto leve, em que o conhecimento literário se aproxima do público leitor como qualquer assunto íntimo ou cotidiano. Castello escreve, desde 2007, para o suplemento Prosa, do jornal O Globo, sobre o universo da literatura. Neste livro, recém-lançado, foram selecionados 100 textos que o autor produziu para sua coluna.

Quatro contos de obras diversas do autor uruguaio foram reunidos nesta publicação, que tem como eixo temático o exílio e o encontro de sul-americanos. Tendo sido proibido de permanecer no próprio país durante a ditadura militar (19731985), Benedetti conhece bem o assunto de que trata. Nesta edição, as histórias ganham ilustrações do pintor argentino Antonio Seguí.

Leya

Biblioteca azul

Tangolomango

ENTRE A RECLUSÃO E A FOLIA Ao fim de Tangolomango – ritual das paixões deste mundo, Raimundo Carrero informa o leitor que, com esse volume, encerra a trilogia “Comigo a natureza enlouqueceu”, que se completa com Seria uma sombria noite secreta e O amor não tem bons sentimentos. Histórias familiares marcadas pelo “incesto” e “devassidão”. Mas as reincidências, intra e intertextualidades criadas por Carrero não se resumem a esses três títulos. Devemos levar em conta o que ele afirma sobre o próprio trabalho: “Minha obra é uma experiência única, um só bloco, que se desenvolve através de temas, histórias, personagens e textos, entrecruzando-se”. Ainda assim, podemos ler esses e outros dos seus livros sem um conhecimento prévio de suas associações. Podemos fazer uma leitura rizomática. Supondo que o leitor vai chegar a Carrero por seu mais recente romance, Tangolomango (Record), vamos imaginar que este é o seu marco zero. Ele tem como protagonista uma mulher de meia-idade, talvez mais velha, pois seus olhos verdes já se acinzentam. Essa criatura, tia Guilhermina, habita uma sobrado suburbano e está sendo sacolejada pela volúpia, sobretudo pela memória do desejo que nutriu e – de certo modo – reprimiu em relação ao sobrinho, Matheus. O que torna o romance uma leitura instigante não é tanto o seu enredo, mas a sua cadência. As alternâncias entre euforia e depressão da personagem são regidas pela música, neste caso, pelas músicas carnavalescas que cadenciam as marcações do texto. As palavras, frases, imagens e o tempo não cronológico da narrativa são outras de suas qualidades. Há trechos realmente marcantes, como Silêncio para as folias da cama, Os cachorros do domingo e O inegável ciúme das palavras, sobretudo quando o autor compara a vida no prostíbulo com a no monastério, e os interditos da prostituta. Embora seja o romance de uma mulher, este também é um romance do Carnaval do Recife, em tempos vários. ADRIANA DÓRIA MATOS

INFANTIL

DORIS DÖRRIE Carlota quer ser princesa Estação Liberdade

Carlota é uma menina cheia de personalidade e um tanto birrenta. Nesta obra de estreia da autora, a menina reluta em levantar da cama e, depois, insiste em ir à escola vestida de princesa. Sua persistência termina convencendo a mãe. Saiu também Carlota e os monstros, que trabalha uma situação corriqueira: os seres que teimam em habitar os quartos infantis no apagar das luzes.

POESIA

TAINAN COSTA CANÁRIO A bulha galinácea e os escritos galiformes Imprensa Oficial Graciliano Ramos

O texto de Canário – em prosa poética – divide espaço com as ilustrações de Pedro Lucena, que deveria assinar como coautor, tal a proeminência de sua colaboração. São aforismos, em geral, desabafos e pequenas revelações pessoais sem brilhantismo. Um exercício jocoso de quem parece pretender fazer poesia.

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coleção odorico e eu

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Sonhei que vivia sessenta anos atrás

sem ser Pai João mas ainda rapaz na Bahia assim que entrei na exposição da coleção do pernambucano, de Timbaúba, Odorico Tavares, no Instituto Ricardo Brennand, organizado pelo meu amigo Emanoel Araújo. Parecia-me conversar com o pintor José Pancetti no Café das Meninas, esquina no centro de Salvador, onde ele me disse uma tarde que um amigo, cuja mulher dava aulas de acordeón, queria pintar alguma coisa alusiva na parede da escola. “Falei com o Mário, ele te indicou.” Será que ainda existe algum vestígio dessa garatuja na parede dessa escola num primeiro andar da Avenida Sete? Era justamente Dia da Independência e Abelardo da Hora, de passagem por Salvador, viera me procurar no atelier do escultor Mário Cravo Júnior, onde eu morava, e agora ali me fazia companhia: da

varanda assistimos à parada do Sete de Setembro, Abelardo de cueca samba-canção para não melar a roupa de tinta, feita com ovo, têmpera de ovo, eu esquecera de trazer o ovo, deixei Abelardo lá assistindo à parada e saí para procurar ovo no feriado, tarefa difícil. Me lembrei também da casinha em Itapuã, naquela época um deserto, onde morava o pintor: a pequena prancheta de desenho onde, debaixo, ia acumulando as telas que despregava do suporte e jogava ali naquela tulha. Ele tinha terminado um quadro, escreveu atrás de maneira rápida “Pancetti” e o ano. Jogou debaixo da prancheta e viemos embora. A casinha era humilde mas de taco bem lustroso. Falava-se que a mulher dele, depois de lustrar o taco, forrava o piso com as telas formando uma passarela para as visitas pisarem em cima sem sujá-lo. Perguntem a José Roberto Teixeira

Leite. Nessa hora não havia ninguém em casa. Não sei se a mulher já tinha deixado ele, o que, dizem, motivou o samba Pois é, “Pois é/falaram tanto/ que dessa vez/a morena foi embora/ Disseram que ela era a maioral/e eu é que não soube acreditar/ Endeusaram a morena tanto tanto/ que ela resolveu me abandonar//A maldade nessa gente é uma arte/ Tanto fizeram que houve a separação/ Mulher a gente encontra em toda parte/Só não encontra é a mulher que a gente tem no coração”, feito pelo seu amigo Ataulfo Alves, gravado por Carmem Costa. Ou estou misturando. Carmem Costa foi quem gravou a resposta, de autoria de Mirabeau, compositor carioca, não confundir com o escultor baiano Mirabeau Sampaio: “quem sabe a quentura da panela/é a colher/é a colher/chega o que você já sofreu/ ele vocês já conhecem/e a morena sou eu”.

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reprodução

1 seu di abisco feito por R

José Cláudio, durante visita à exposição do quadrinho de Di Cavalcanti comentado nesta crônica, cuja reprodução não consta no catálogo

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Às vezes dávamos, eu e Carybé, uma parada num café embaixo do prédio d’A Tarde na Praça Castro Alves, e Carybé batia papo com Odorico, antes de seguirmos para a Caixa d’Água, Centro Carneiro Ribeiro, criado por Anísio Teixeira, que uma vez eu vi, miudinho, andar ligeiro, visitando os murais de autoria de Carybé, Mário Cravo Júnior e Jenner Augusto: trabalhei com os três (ver no meu livreco Viagem de um jovem pintor à Bahia, 1965, se é que existe algum, cap. “Garçons de andaime”). Eu ficava de parte, para não ser intrometido. Di Cavalcanti. Tem na coleção um quadrinho de “Seu Di”, como aprendi com a empregada a chamá-lo quando trabalhei com ele no Edifício Três Leões, Av. São João, São Paulo, que é uma maravilha. Dificilmente ele se dá ao luxo de se perder completamente no meio do quadro, principalmente no centro do quadro, onde Corot disse:

Uma cabeça em pedra sabão me transportou violentamente para o atelier de Mário Cravo, 1953, onde eu vivia, comia e dormia “Todo quadro tem que ter no centro um ponto claro”. Pois justamente aí que o quadrinho é mais confuso, figurativamente falando, obscuro, quanto à cor e sem nitidez, mas de uma riqueza pictórica que dá a medida de sua capacidade de lidar com tintas e formas, seus inesgotáveis recursos, coragem, infinita capacidade de seguir sem rumo na aventura do quadro até à exaustão, lembrando eu aqui o pintor Francisco Brennand em entrevista recente na Revista da Cultura citando Cézanne: “Não existe quadro acabado,

existe quadro abandonado”. Parece que estou vendo ele dizer, eu estava ali ao seu lado junto do cavalete: “Para que me enganar? Eu não sei como terminar o quadro”. E assinou. Esses são os seus quadros geniais. E assim ia seguindo as paredes da exposição, me lembrando mais de mim do que dos quadros ou esculturas, ou das obras e seus autores, mais em relação a mim, ou porque nos quadros, qualquer quadro, nos vemos a nós próprios. Uma cabeça em pedra sabão me transportou violentamente para o atelier de Mário Cravo, 1953, onde eu vivia, comia e dormia, quase como um orgasmo, uma síncope no tempo. Ouvi as risadas de Agnaldo me chamando “Pernambuco”, o chiado da solda de Mário Cravo soldando, segurando a máscara, até o matagal em volta, Avenida Garibaldi, onde passava o Rio Vermelho de cima.

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Yêda Bezerra de Melo/reprodução

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VERNACULAR Imagens feitas para usufruto doméstico

Embora se constitua num imenso acervo, que chega a sustentar o mercado, esse tipo de produção é ignorado pela história da fotografia

1 álbum de família Yêda Bezerra de Melo realiza intervenções em cópias antigas intimidade 2 Com o Instagram, Priscila Buhr fotografa detalhes de sua casa

TEXto José Afonso Jr.

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Priscila Buhr/reprodução

A história da fotografia, como todas

as outras, é resultado de um processo de escolhas e também de silêncios e pontos ignorados. É estranho, contudo, perceber como aquela produzida domesticamente não reverbera nessa história. É ao redor dessa produção do dia a dia, de câmeras amadoras, que se sustenta a fotografia comercial. Daí provêm 95% dos ganhos da indústria do setor. Em adição, para a grande maioria das pessoas, é a prática cultural de imagens mais acessível, direta e vinculada ao percurso de cada um, da família indo às férias, das reuniões com amigos, dos casamentos, batismos, festas, nascimentos de filhos. É o que o teórico australiano Geoffrey Batchen problematiza como fotografia vernacular. Desprovida de pretensões estéticas, direta, como a fala da rua, produzida para um consumo doméstico e que habita álbuns de família, acumula-se em caixas e, contemporaneamente, nos computadores e sistemas de internet, como as galerias virtuais. Obviamente, por uma tradição disciplinar, se impõe uma busca de eventos históricos capazes de explicar o percurso da fotografia como uma grande narrativa. Ao seu modo, isso canibaliza o seu lado vernacular, marcando-a como uma fotografia de “borda”, periférica, supostamente sem profundidade e densidade, igual em todos lugares, como se nisso residisse uma fraqueza. Para entender como se formou a ignorância acerca dessa obviedade, é necessário compreender as delimitações impostas. Com raras exceções, a opção dos livros de “história da fotografia” reside numa estrutura episódica, linear e cronológica que mapeia fotógrafos de destaque, movimentos estéticos, técnicas e efeitos sociais resultantes. Portanto, há problemas que jogam para o silêncio toda fotografia que seja produzida fora desse esquema elaborado por filtros metodológicos apoiados em perspectivas culturais, ideológicas, políticas e estéticas com pretensões hegemônicas. Afinal, se há uma história centralizadora da fotografia, as eventuais áreas de produção não alinhadas ficam sujeitas a um grau de visibilidade improvável. De modo que, mesmo existindo uma produção vernacular, ela só seria validada numa relação submetida aos valores dispostos na tutela. Isso cria um conhecimento sobre o campo que, se

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não distorcido, é incompleto. Descarta o enorme repertório de imagens anônimas, por optar por uma fotografia de autor; silencia sobre uma fotografia ingênua, naïve, por escolher correntes estéticas bem definidas; ignora a construção das mitologias particulares do álbum de família, por concentrar-se nas fotografias de grande impacto social. A fotografia vernacular paga um alto preço no hall das práticas fotográficas, pelo fato de não ser lida para além da sua suposta superficialidade. Ao se colocar como uma fotografia de “borda”,

a ausência de uma preocupação crítica ou de análise sobre o seu repertório se alinha à posição marginal que ela ocupa, como se não tivesse nada a declarar. Seria mais ou menos como se as molduras, pedestais, arranjos no entorno da obra artística não tivessem nada a dizer sobre a obra em si. Faz parte, mas não é o alvo, o foco da atenção. É essa situação que negligencia o repertório de imagens domésticas, esquecendo de maneira óbvia que os modelos de representação desse visualvernacular acumulados no correr do

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FLORA PIMENTEL/reprodução

3 afetos Encontros com os avós são registrados por Flora Pimentel

Visuais

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Desde a popularização de equipamentos, no fim do século 19, tem sido crescente o registro cotidiano de hábitos sociais

tempo é um fragmento possível para se entender o próprio fotográfico, não como um suceder de fatos cronológicos, crônica de evolução das técnicas e usos, e, sim, como uma das suas possibilidades. Desde 1839, quando da patente da fotografia por Daguerre, tanto a vernacular como aquela mais normativa, seja de cunho mais documental, jornalístico, propagandístico, artísticas começava a surgir como recurso de ou experimental, atuam em via dupla, retroalimentando-se. Tanto representam construção de narrativas pessoais, familiares, amadoras. Pessoas como o cotidiano como agem sobre ele. eu, o vizinho e você. Ao expandir essa NARRATIVAS PESSOAIS relação em mais de 100 anos de práticas, Tomando como exemplo a popularização encontramos no modelo atual, digital, exercida pela Kodak, colocando conectado e em rede (aperte o botão e câmeras de uso simplificado nas mãos faça você mesmo) um prolongamento e das pessoas, no fim do século 19, até o potencialização sem precedentes desse atual Instagram, temos um vastíssimo modo de narrar o banal do dia a dia. depósito de imagens que é capaz de dar O desafio, portanto, cabe em conta dos hábitos, costumes e percursos transcodificar, de certo modo, e de quem fala com o olho da fotografia. atualizar para essas imagens o que os George Eastmann, na sua esperteza conceitos tradicionais são para a história capitalista, elaborou um sistema (“você da fotografia. Ao invés da autoria, o aperta o botão e nós fazemos o resto”) anonimato; ao invés da originalidade, que inventava o fotógrafo doméstico o compartilhamento e repetição do em escala massificada, e entregava, mesmo; ao oposto da intenção, a a reboque, um tipo de fotografia que espontaneidade, a despretensão, a

inocência; ao invés de uma cronologia, uma extemporaneidade. Talvez com esses pressupostos pudéssemos encorajar de modo mais promissor um olhar sobre a fotografia vernacular que fosse mais afetivo que efetivo. O que temos, de modo claro, é que se trata de uma forma visual narrativa, contínua e interdependente, que é complementada em pequenos nacos, a cada dia, sem um projeto definido, como é, aliás, o acúmulo das nossas conversas no cotidiano. Olhar para uma linha do tempo do Instagram, por exemplo, é estabelecer uma conversa que fala, simultaneamente, através do olho e da percepção, de um regime de visão autobiográfico que perpassa a produção fotográfica contemporânea. Pequenas imagens, pequenas narrativas, outras histórias. Como revisar e abrigar uma produção que, apesar de ser esmagadoramente maioritária, assume posição marginal na construção da fotografia como prática social e cultural? No esforço de focar as fotografias de borda, é André Ruillé quem fornece um sopro de alento sobre a questão. No seu livro A

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REPRODUÇÃO

fotografia entre o documento e arte contemporânea (2009), enxerga com delicadeza a distância mínima entre quem fotografa e quem é fotografado, elemento característico do vernacular, seja ele conversacional ou fotográfico, como uma pureza de diálogo visual, um acolhimento entre partes, um pacto de compartilhamento do íntimo construído através da câmera. Através do vernacular fotográfico, percebemos uma crítica possível: a história convencional da fotografia é mais propriamente uma arqueologia, pois se volta mais para os eixos episódicos e essencialistas do que para dar atenção ao que flui no espaço entre o dentro e fora de quadro. Em câmeras digitais de filme, ou mesmo em celulares, o que está em jogo é tanto o desejo de rememorar como o prazer mesmo de fotografar. Ítalo Calvino, muito antes da fotografia digital, no conto A aventura de um fotógrafo, detecta essa relação, por vezes possessiva, com a imagem. No caso, o personagem Antonino Paraggi, um aficionado da fotografia de fins de semana, começa a perceber que entre seus amigos cresce uma ansiedade pelos resultados das fotos e, como consequência, passam a viver o mais fotograficamente possível. Através da literatura, Calvino antecipa a incorporação de um hábito muito presente na atualidade: associar a fruição do vivido ao seu respectivo registro visual. Por vezes, até priorizando este último, abrindo mão da experiência direta, para se concentrar em um enquadramento mais eficiente. Trata-se de um processo de aquisição através de uma onipresença das imagens que

permite adquirir algo como informação e representação, e não somente como experiência. É Susan Sontag que, ainda nos anos 1970, reforça esse aspecto de posse que a fotografia fornece. Segundo a autora, a foto devolve o caráter próprio dos objetos e pessoas, quando passamos a ter uma relação tanto com o vivenciado como pelo que é vivido através da fotografia. Essa é justamente a importância da fotografia vernacular como meio de comunicação: assujeitar a presença de eventos, coisas e pessoas, separados pela descontinuidade e dissociação, que são reorganizados de modo justaposto pelo percurso no mundo visual. É certo, contudo, que os problemas de constituição desse percurso se reposicionam entre a era analógica e a digital, em que se fotografa mais do que se vê, em que arquivos se perdem e a fotografia está sujeita a uma série de instabilidades no que se refere à sua conservação. Comportamentos e desdobramentos, aliás, bastante semelhantes à impermanência das conversas coloquiais. No entanto, olhar com atenção e afeto a fotografia feita por pessoas comuns envolve perceber o pertencimento entre pessoas e imagens domésticas. Assim, trata-se de compreender por que, quando de desastres naturais, muitas vezes, a primeira atitude das pessoas ao voltarem para o cenário recente das tragédias é tentar achar em meio a escombros, as fotografias de família. Na verdade, buscam parcelas dos percursos e mitologias pessoais construídos ao longo da vida. Buscam a si mesmos.

Reynaldo Fonseca

FIEL A SI MESMO O que implica sermos fiéis a nós mesmos, quando somos artistas? Várias podem ser as implicações, sobretudo em relação a respostas, ao público. Mas, certamente, sermos fiéis a nós mesmos significa não nos violarmos, fazermos aquilo de que gostamos, e em que acreditamos. Porque, muitas vezes, cedemos, por interesse, medo ou acomodação. E, vejam, ser fiel – aqui – é diferente de ser inflexível. Podemos dizer que esta tem sido a posição tomada por Reynaldo Fonseca, um artista que parece ter sido forjado contemporâneo de si, sendo isso o suficiente. Há poucos dias, foi lançado o livro-catálogo Reynaldo Fonseca, em que se reúnem cerca de 230 obras desse artista recifense, nascido em 1925, e que – com a obra construída até aqui – pode ser facilmente entendido como um autor atemporal e regular, no sentido de ter mantido sua produção em continuidade, sem sobressaltos ou dissonâncias, mas com temperança e virtuosismo. Sua atemporalidade, sem dúvida, se deve ao fato de podermos aproximá-lo, esteticamente, aos clássicos, aos renascentistas, mas isso é um gesto voluntarioso, claro, porque ele está produzindo sua obra em pleno transcorrer dos séculos 20 e 21, junto a todas as mudanças e provocações artísticas nesse tempo realizadas. Mas não há tumulto artístico que abale essa obra de claustro, em que o tempo se dá em suspenso. O que tem mobilizado esse homem de 88 anos, que foi professor na Escola de Belas Artes, é a busca do que chama de “perfeição”. Em depoimento transcrito no livro, é ele quem afirma: “Sempre trabalhei muito e com prazer, o desafio da tela branca sempre foi para mim o motivo para fazer o melhor em cada um dos meus trabalhos. Vivo em busca da perfeição, de cada obra que pinto, cada detalhe, procuro fazer o melhor, porque isto é minha vida acima de tudo, vim para este mundo para ser pintor”. E não há quem discorde de que Reynado Fonseca tem sido bem-sucedido em sua busca. ADRIANA DÓRIA MATOS

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FERNANDO GALLESE/REPRODUÇÃO

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CASA DAROS Um recorte da arte latino-americana

Instituição abre sede no Rio de Janeiro, depois de seis anos de preparação, e apresenta ao público a exposição Cantos cuentos colombianos texto Mariana Oliveira

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1 simulacro Nadín Ospina funde cópias da arte pré-colombiana a iconografias da cultura pop norte-americana 2 Musa Paradisiaca José Alejandro Restrepo utiliza a banana para discutir imperialismos

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Imaginem viver num país que

trava uma guerra civil desde o início da década de 1960, quando foram criadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Desde então, o cotidiano da Colômbia é diretamente influenciado pelo conflito, vinculado também ao tráfico internacional de drogas. Que tipo de impacto uma situação-limite como essa tem na produção artística? É justamento o reflexo disso que o público poderá perceber na exposição Cantos cuentos colombianos, que inaugura a Casa Daros, no Rio de Janeiro, e fica em cartaz até 8 de setembro. São trabalhos de 10 artistas (Doris Salcedo, Fernando Arias, José Alejandro Restrepo, Juan Manuel Echavarría, María Fernanda Cardoso, Miguel Ángel Rojas, Nadín Ospina, Oscar Muñoz, Oswaldo Macià e Rosemberg Sandoval), que afiançam a qualidade e a vivacidade da produção contemporânea realizada na Colômbia. Segundo o curador Hans-Michael Herzog, trata-se de uma mostra de cunho nacional, mas, ao mesmo tempo, temático, uma vez que reflete a situação social e política do país.

“De modo algum buscamos um debate político estereotipado sobre a arte contemporânea colombiana, mas apenas o percebemos como fator dominante, e isso está refletido tanto na coleção Daros Latino Americana, como nesta exposição.” Essa opção por obras engajadas está presente, de antemão, na própria coleção, da qual fazem parte as obras da mostra. Cantos cuentos colombianos foi exibida anteriormente em Zurique, em 2004/2005. Entre os artistas selecionados, chama a atenção a força do trabalho de alguns deles. Juan Manuel Echavarría tem uma história bem particular. Escritor, apaixonado pelas artes visuais, esperou completar 50 anos e, aflito com o tempo, decidiu trabalhar com outros suportes que não as letras. Entrou nas artes plásticas tendo a videoarte e a fotografia como ferramentas mais usuais. Segundo o artista, a beleza estética de seus trabalhos é o meio pelo qual atrai o espectador para uma observação mais próxima, pela qual busca instigar reflexões. Fica fácil perceber esse artifício nas fotografias Corte de floreo,

série de lâminas que se assemelham a belíssimos desenhos botânicos – vistos a distância. Ao se aproximar, o espectador perceberá que se trata de ossos humanos. O vídeo Guerra y pá, por sua vez, faz referência direta ao conflito de mais de 50 anos na Colômbia, período durante o qual foram firmados diversos acordos de paz que não tiveram qualquer resultado concreto. “As palavras guerra e paz foram repetidas incansáveis vezes, tanto que elas ficaram desgastadas e perderam a transcendência de seu significado”, diz. Pensando em mostrar o quão banal esses termos haviam se tornado, Echavarría resolveu pedir a um amigo que treinasse dois papagaios. Um deveria aprender a falar “guerra” e, o outro, “paz”. Depois de oito meses, quando voltou para pegar seus animais, percebeu um pequeno problema: como seu amigo vivia no Caribe colombiano e lá as pessoas não pronunciam o som do “s” em palavras como paz, ele tinha um dos animais falando apenas “pá”. “Durante o complicado processo de edição, preferi manter a pronúncia do

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REPRODUÇÃO

3 lego Brinquedo é matériaprima para Fernado Arias discutir a infância num país marcado pelo tráfico de drogas

Visuais início do século 20, que expressavam o imperialismo do período. Pensando sobre esse passado recente, sobre as disputas atuais e sobre a imagem de uma república das bananas, o artista compôs sua instalação.

CASA DAROS

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papagaio, pois achei que ela poderia representar como a paz é um processo incompleto”, detalha. Os reflexos da guerra ficam claros nos trabalhos de colombianos que já não vivem no país. É o caso de Fernando Arias, com obras que expressam sua preocupação com o narcotráfico. Em Lego coffin, ele monta um caixão nas cores da bandeira nacional com peças de Lego, propondo uma reflexão sobre infância e droga na Colômbia. Na exibição da Casa Daros, a obra é apresentada no hall, antecipando ao público, de alguma forma, o tom daquilo que vai encontrar internamente. O Lego também é matéria-prima para Nadín Ospina. Porém, agora, numa investigação mais arqueológica e antropológica. O artista observou que, numa série do brinquedo, chamada Lego Adventure (em que se cria peças identificadas com determinados cenários regionais), quando se trata da América Latina, há muitos elementos estereotipados e preconceituosos. Ele se apropriou desses elementos e os tornou ainda mais fortes.

Nadín busca inspiração ainda na arte pré-colombiana, bastante simbólica para a identidade nacional. O artista compra peças falsas do período e aplica nelas a cabeça de Mickey, Pateta, dos Simpsons, tentando mostrar que esse vínculo identitário com o passado é permeado por outros, talvez mais próximos hoje. “A classe alta colombiana quer ser francesa, a média, norte-americana; as pessoas da classe popular querem ser mexicanas, mas ninguém quer ser colombiano. Todos queremos simular um outro”, resume Nadín. Os questionamentos lançados pelo artista José Alejandro Restrepo também têm como base a história de seu país. A sua Musa paradisiaca consegue sintetizar parte dos aspectos que lhe interessam. Em suas pesquisas, Restrepo deparouse com uma gravura, com título homônimo à sua obra, em que aparece uma mulata sentada sob uma bananeira. A musa do título é uma referência às bananas, que foram classificadas pelo naturalista sueco Lineu com o nome de musa paradisiaca. A fruta foi o pivô de muitas disputas na Colômbia, no

No início dos anos 2000, a arte contemporânea latino-americana ainda era pouco conhecida nos principais circuitos artísticos mundiais. Com o intuito de revelar a força dessa produção, o curador Hans-Michael Herzog se juntou a Ruth Schmidheiny, financiadora do projeto, para criar a Coleção Daros Latino-americana. Ele viajou por vários países, em busca de artistas que pudessem compor esse acervo, que hoje possui mais de 1.100 obras de mais de 100 artistas, e já deu origem a várias mostras. “Embora tenhamos planejado a coleção de forma sistemática, não buscamos uma completude enciclopédica. Para nós, é importante que ela seja composta por obras que não representem simplesmente a arte pela arte, mas que possam ser vistas em vários níveis; obras que não tenham somente relevância estética, mas também social”, explica o curador. Além de formar a coleção, desde o início, havia a pretensão de ter um espaço na América Latina que pudesse abrigar as mostras e ampliar o diálogo dentro do próprio continente. O lugar escolhido foi o Rio de Janeiro, especificadamente um palacete do século 19, no Bairro de Botafogo. Depois de mais de seis anos em reforma, o espaço começou a funcionar no fim de março, contando com um interessante projeto educativo, capitaneado pelo cubano Eugenio Valdés Figueroa, biblioteca, auditório e restaurante. Segundo Isabella Nunes Rosado, diretora da instituição, a própria escolha do termo casa para batizar o espaço já deixa claro o objetivo de fazer desse ambiente um lugar habitado e de diálogo.

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Richner Allan/divulgação

Palco OCUPAÇÃO Todo Antonio Nóbrega

Retrospectiva do Itaú Cultural paulistano apresenta trajetória do artista, a partir de composição de cenário, exibição de documentários e performances ao vivo TEXto Thiago Corrêa

Enquanto veículos e pedestres aceleram para ganhar alguns minutos num típico dia útil na cidade de São Paulo, um senhor de cabelos grisalhos destoa da paisagem da Avenida Paulista, ao andar com a calma do dever cumprido. Ao invés da corrida contra o tempo que move os habitantes da capital paulista, o pernambucano Antonio Nóbrega prefere contemplar o passado. Diante dos seus olhos estão lembranças de quatro décadas de carreira artística, reunidas na exposição Ocupação Antonio Nóbrega, em cartaz até o dia 19 deste mês, no Itaú Cultural da Paulista. Conhecido por sua versatilidade como ator, bailarino e músico, Antonio Nóbrega tem sua trajetória contada através de uma perspectiva incomum

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walter carvalho/divulgação

Palco

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para descrever o seu projeto artístico. “Com a exposição, percebi que esses 40 anos de carreira foram ricos em construção simbólica. A exposição é uma tradução visual do meu trabalho com a cultura popular”, observa o artista. Nesse conjunto, recordações se misturam a objetos de cena, imagens, figurinos e instrumentos musicais que foram usados em, pelo menos, 10 espetáculos já encenados pelo artista, reunindo peças criadas por artistas plásticos como Dantas Suassuna, Romero de Andrade Lima e do luthier Saulo Dantas-Barreto. Elementos como a burrinha, as gravuras do Mateus e os folhetos de cordel ressaltam a ligação da obra de Nóbrega com a cultura popular, revelando a fonte de inspiração que tem se convertido em arte através da união entre a sua formação erudita e o olhar atento aos folguedos populares. Filho de uma família de classe média, Nóbrega logo mostrou talento para a

Nóbrega acredita que, ao propor um diálogo entre a cultura popular e a erudita, ajudou a derrubar muitos preconceitos música, passando a estudar violino na Escola de Belas Artes do Recife, aos 12 anos. O interesse pela música, contudo, não foi suficiente para que rompesse os limites impostos aos diferentes extratos da sociedade pernambucana dos anos 1960. “Quando tinha 18 anos, meu carnaval se resumia a bailes em clubes e ao mela-mela dos desfiles de corso. À noite, tinha os desfiles de caboclinhos e dos maracatus, mas era coisa que eu não frequentava. Naquela época, havia uma barreira econômica e cultural que nos separava da cultura popular”, recorda.

A guinada se deu no fim da década de 1960. Na época, Nóbrega participava da Orquestra de Câmara da Paraíba e da Orquestra Sinfônica do Recife, quando foi convocado pelo escritor Ariano Suassuna para integrar o Quinteto Armorial. “Ariano me revelou um universo que, até então, me era desconhecido. Por trás daquela porta, havia um universo que me acalantou e deu sentido ao meu projeto artístico”, explica. Um cenário que, ao longo dos últimos 40 anos, Nóbrega muito contribuiu para transformar, propondo um diálogo entre os dois universos. Mesmo morando em São Paulo, há três décadas, ele se mantém fiel ao projeto aprendido no Quinteto Armorial e se enche de orgulho ao ver que ajudou de alguma forma no processo de demolir as barreiras que antes segregavam a cultura brasileira. “Hoje, não é só em Pernambuco que tem esse tipo de coisa, na Vila Madalena

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thiago corrêa

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acervo antonio nóbrega

1 naturalmente

O DVD do espetáculo está sendo exibido durante a ocupação

2 burrinha O uso desse e de outros ícones regionais reforçam a ligação de Nóbrega com a cultura popular nordestina 3 Mateus tonheta Personagem marcou a carreira do ator, músico e bailarino

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(bairro paulistano) já se encontra gente batucando alfaia. Movimentos como o Armorial e o Manguebeat ajudaram a mudar isso. Embora existissem neles propostas diferentes na maneira de fazer fusões, ambos tiveram como base os ritmos populares”, observa.

PAINEL JUSTO

Apenas com um texto de apresentação, sem ordem cronológica ou legendas explicativas, os adereços cênicos expostos na Ocupação Antonio Nóbrega funcionam como aperitivos, alimentando a curiosidade dos visitantes sobre o uso dos objetos nos espetáculos. O desejo por mais informações é saciado no fim do corredor, quando o público entra numa espécie de praça circular e é convidado a sentar num dos banquinhos para ver as roupas e os violinos – até então imóveis e silenciosos nas paredes – ganharem movimento com Nóbrega em ação.

Isso se dá, primeiro, com a exibição, em dias alternados, dos DVDs Lunário perpétuo (2002), Nove de frevereiro (2005) e Naturalmente (2009); todos dirigidos pelo fotógrafo e cineasta Walter Carvalho, também responsável pela curadoria da exposição e pela direção do filme Brincante (longa-metragem que será um misto de documentário e ficção baseado na obra de Antonio Nóbrega, com previsão de lançamento para este ano). Depois, com a participação efetiva do próprio Nóbrega, em performances. “Como o maior veículo da minha arte sou eu mesmo, propus essas intromissões”, explica. Na sua presença, seja nos encontros com o público, às quartas-feiras, nas rodas de dança – às quais os visitantes são convidados para uma ciranda –, ou na apresentação de três espetáculos (que foram ajustados para a exposição), Nóbrega tem oferecido um painel diversificado sobre a amplitude do seu talento. No show

Meu cancioneiro, o foco é a música. Na aula-espetáculo Mátria: uma outra linha de tempo cultural, ele compartilha seu lado pesquisador. E, no espetáculo Tonheta e companhia, reunião de esquetes do seu personagem mais famoso, observamos o Nóbrega ator. Para o encerramento da exposição, ele prepara o terreno para ressaltar mais um dos seus talentos – o de coreógrafo. De 17 a 19 deste mês, ele apresenta o espetáculo Húmus, que marca a estreia da Antonio Nóbrega Companhia de Dança. “A música tem um papel muito grande no meu trabalho, mas sempre abri espaço para a dança nos meus espetáculos. Com o tempo, senti necessidade de expandir minha relação com a dança para um grupo maior”, analisa o artista, que, pela primeira vez em 40 anos de carreira, atuará apenas nos bastidores, deixando o palco do auditório Ibirapuera para os 12 bailarinos que integram a companhia. Dividido em três partes, o espetáculo aponta que o passado, ali exposto nas paredes do Itaú Cultural, ainda reverbera no presente, dando continuidade ao projeto artístico encampado por Nóbrega desde os anos do Quinteto Armorial. “É um espetáculo conceitual, no qual procuro discutir a importância da incorporação das matrizes da cultura popular. Daí o nome Húmus, esse lodo fértil que transforma lixo em planta, em frutos”, adianta.

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DIVULGAÇÃO

Palco ENGENHO DE TEATRO A poesia do abandono e a simplicidade cênica

Grupo estreia espetáculo Mariano, irmão meu, que trata de dois irmãos cuja mãe está ausente, num texto que discute as relações sociais e afetivas TEXto Pollyanna Diniz

Da poesia de Manoe l de Barros vem uma das lições caras ao grupo pernambucano Engenho de Teatro: “com as palavras se podem multiplicar os silêncios”. Cada vez que vai ao cais esperar pela mãe e pergunta ao irmão porque ela demora tanto para voltar, Mariano, personagem principal da nova montagem do Engenho, não

encontra respostas. Língua falada ou escrita, tanto faz, se transformam em vazio. Como lidar com o abandono, com as dificuldades banais como a falta de dinheiro, com a crueldade da sociedade que não aceita diferenças? Mariano reflete a busca constante, a incompletude, o sentimento de que há algo errado – em si mesmo e

no mundo. O texto da peça Mariano, irmão meu, que estreia este mês no Recife, dentro da programação do festival Palco Giratório e depois entra em temporada no Teatro Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro), é do dramaturgo e ator Alexsandro Souto Maior; a direção, de Eron Villar. “A peça nos faz pensar sobre as relações sociais, familiares, afetivas. Para compor a encenação, mergulhamos em várias referências. Uma delas, a literatura de Guimarães Rosa, tema de estudo desde o primeiro espetáculo do grupo, estreado em 2002. Outra é a poesia de Manoel de Barros, com sua complexidade de sentidos, mas, ao mesmo tempo, sutileza e simplicidade na escrita”, explica Eron Villar. O texto refere-se a dois irmãos obrigados a conviver com a ausência da mãe. O mais velho tomou a responsabilidade de cuidar do

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menor, que possui alguma deficiência mental, não especificada. Na tentativa de poupar o irmão do sofrimento, Damião recorre ao Apocalipse, último livro da Bíblia: conta a Mariano que, logo depois do parto, a mãe fugiu para escapar de um dragão cor de fogo, com sete cabeças e 10 chifres. Tia Augusta, a terceira personagem – há ainda algumas outras, que aparecem rapidamente – simboliza a voz da razão, aquela que indica como resolver os problemas, mesmo que os caminhos sejam espinhosos demais. “O texto tem um lirismo muito pungente, mas traz também a característica da fragmentação, do discurso sintético. Para o ator, há o desafio de lidar com a contenção, tanto na palavra como no gestual. O espetáculo é resultado da continuação da pesquisa do grupo, que existe desde 1999, quando nos reunimos para fazer um espetáculo baseado no conto A

terceira margem do rio, de Guimarães Rosa”, explica Alexsandro Souto Maior, que, na peça, interpreta Damião. “A nossa pesquisa passa pela ressignificação dos gestos, pela essencialidade, pela simplicidade. Queremos contar uma história ao pé do ouvido e, para isso, a palavra se une a outros elementos. No palco teremos um ator-narrador, no limiar entre a interpretação e a contação de histórias”, avalia o diretor da peça. O grupo já montou outros quatro espetáculos, todos com dramaturgia própria: O terceiro dia (2002), Nero (2004), Luzia no caminho das águas (2006) e Meninas de engenho (2009) Em Mariano, irmão meu, a música tem a intenção de traduzir as imagens presentes no texto. A trilha foi criada por Kleber Santana e será executada ao vivo, pelos próprios atores e pelo músico Leandro Almeida. Outro recurso que deve estar presente em cena são as formas animadas. “As fábulas do texto me trouxeram referências, fizeram com que resgatasse a minha própria história. Vim do Mamulengo Só Riso (companhia de bonecos com sede em Olinda), passei sete anos no grupo. Impossível pensar no dragão a que se refere o personagem Damião e não relacionar com bonecos, formas animadas, sombras”, conta Villar, que também assina a iluminação do espetáculo. A ficha técnica traz ainda Java Araújo na direção de arte.

COMPOSIÇÃO DE PERSONAGEM Para Tatto Medinni, convidado pelo diretor para interpretar Mariano, o texto se mostrou um desafio. “Como compor esse personagem sem escorregar pelo óbvio, pela alegoria, pelo clichê? Aceitei o papel pela possibilidade de superação, por tudo que Mariano pode me enriquecer como ator”, explica Medinni. Ele esteve em cartaz recentemente com o Coletivo Angu de Teatro em Ópera, texto de Newton Moreno, e com a Trupe Ensaia Aqui e Acolá, na peça O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, que circulou o país ano passado, através do Palco Giratório, projeto do Sesc que promove festivais e a circulação de espetáculos em todos os estados.

A terceira atriz que compõe o elenco é Ana Cláudia Wanguestel. “O processo de trabalho de Eron Villar tem muita sensibilidade. A pesquisa que estamos fazendo, as referências trazidas, a preparação do ator, a forma como ele lida com a dramaturgia”, explica a atriz. “Vivenciamos um processo pleno de liberdade, sempre com a orientação do diretor, mas de forma coletiva e com autonomia para a criação do ator”, complementa Tatto Medinni. “A peça fala de amor: toca em questões importantes, mas sempre com uma delicadeza profunda. E Tia Augusta carrega uma dicotomia muito real: apesar de amorosa com o sobrinho, ela não se exime quando precisa ser dura, transforma-se no elo que os dois irmãos têm com a realidade”, analisa Ana Cláudia. Embora essa não seja a temática central do espetáculo, o problema mental de Mariano ainda faz refletir sobre assuntos que muitas vezes são negados, escondidos, encobertos pelo preconceito que teima em ser maior do que o esclarecimento. Não há lições, moral da história, resultados prontos. Cada um tire as próprias conclusões, depois do que vir no palco. Mas não será um jogo no escuro: no elementar, no minimalismo e na subjetividade trazidos à tona por Mariano, irmão meu, o público logo deve se reconhecer. No palco, alguns símbolos se desdobram e assumem múltiplas funcionalidades. A mala representa a espera, o desejo de ir embora, a ânsia pelo novo, pelo momento do reencontro. As portas trazem possibilidades que vão desde a fuga até a volta para casa. “São elementoschave na encenação: as malas, as portas, os mapas. A luz segue a proposta da direção de arte e ambienta a poesia que já está presente no texto”, explica o diretor e iluminador. O grupo tenta seguir o que diz Manoel de Barros, que fala de poesia, mas bem poderia ser de teatro também: “Para entender, nós temos dois caminhos: o da sensibilidade, que é o entendimento do corpo; e o da inteligência, que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar”.

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CLÁSSICOS Melhor do que a primeira vez

1 cópia restaurada O estudante de Praga (1913) foi apresentado em evento de gala, com música ao vivo

Festival de Berlim investe na exibição de obras raras restauradas. Algumas delas serão exibidas no Brasil, dentro da programação do Ano Brasil – Alemanha TEXto André Dib

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(Walter Ruttman, 1927), ambos com orquestra ao vivo. Ainda este ano, o Recife deve receber uma mostra da animadora de silhuetas Lotte Reiniger. Nascida em Berlim, Reiniger é pioneira do cinema de animação, tendo se dedicado à narração de fábulas e lendas. Em filmes como O Príncipe Achmed (1926) e Dr. Doolittle e seus animais (1923), ela demonstra habilidade ao dar naturalidade a movimentos de seres vivos e construção de cenários e ornamentos, feitos de papel recortado. Reiniger foi colaboradora de Jean Renoir e Bertold Brecht, além de ter influenciado gente como Michel Ocelot e antecipado técnicas utilizadas uma década depois pelos estúdios Disney, sem receber royalties ou créditos. Isso está contado no documentário A dança das sombras, exibido no último Festival de Berlim. O filme é resultado de uma pesquisa de estudantes e professores da Universidade de Tübingen, cidade do sul da Alemanha onde Reiniger passou os últimos anos de vida e à qual confiou sua obra, disponível ao público em exposição permanente.

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A influência do cinema alemão nas

demais cinematografias vai além dos filmes da fase expressionista. Se os ícones O vampiro de Dusseldorf, Nosferatu e Metropolis ocupam lugar no panteão de clássicos, mestres do melodrama da fase moderna como Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder merecem igual destaque. Este último, informa um representante da Fundação Fassbinder, pode ter uma retrospectiva no Brasil ainda este ano, promovida pela Mostra de Cinema de São Paulo. Em junho, começa o Ano Brasil – Alemanha e uma grande programação cultural será realizada nos dois países. No Brasil, haverá exibição dos clássicos O nibelungo (Fritz Lang, 1923) e Berlim, sinfonia da grande cidade

O restauro de obras e sua digitalização permite ao público acesso a obras centenárias em excelente estado Este ano, o Festival de Berlim exibiu um bom número de clássicos restaurados digitalmente, permitindo que obras de 50 ou 100 anos sejam apresentadas em excelentes condições. A ideia é expandir, tanto que foi criado um selo, o Berlinale Classics, para abrigar a programação, assinada pela Deutsche Kinemathek, em parceria com o canal de televisão Arte e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa). Este ano, foram exibidos Cabaré (Bob Fosse, 1972), Sindicato de ladrões (Elia Kazan, 1954), Era uma vez em Tóquio (Yasujiro Ozu, 1953), Disque M para matar (Alfred Hitchcock, 1954) e O estudante de Praga (Hans Heinz Ewers, 1913). Este último foi exibido em evento de gala no Volksbuhne, o mitológico palco do

teatro socialista, acompanhado por orquestra ao vivo. Dentro desse espírito, em 2014, será a vez de O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, exibido pela primeira vez na Berlim de 1920.

primerias edições

Na primeira edição da Berlinale, em 1951, o principal destaque foi outro clássico de Hitchcock, Rebecca, a mulher inesquecível. Em 2013, ele voltou a ser um dos pontos altos do festival, com a versão restaurada em 3D de Disque M para matar. Luzes, sombras e o senso de humor mórbido do cinema expressionista alemão decididamente marcaram o trabalho de Alfred Hitchcock. No início de carreira, ele trabalhou nos estúdios Babelsberg (Potsdam) e UFA (Berlim), além de ter dirigido seus primeiros filmes em Munique. Décadas depois, ele mesmo confessou, na clássica entrevista concedida a François Truffaut, a forte admiração que nutria por Destino, de Fritz Lang. A première europeia de Disque M para matar foi apresentada pelo diretor da Warner, Nicholas Varley. Ele disse que somente agora, 60 anos depois, esse clássico foi revelado em todo o seu esplendor. A restauração em digital 4K trouxe de volta as cores originais, nunca alcançadas nos negativos em película. E que, com o 3D, o filme tem condições de ser visto como o idealizado pelo diretor. O recurso, além de tornar Grace Kelly ainda mais linda, restitui o que Hitchcock chamou de visão natural estereoscópica. Nada mal imaginar uma sessão de M no Cinema São Luiz, o palácio do cinema pernambucano que, em breve, estará equipado com projetor digital 3D. Sessões do tipo vem acontecendo uma vez ao ano, em programação de clássicos promovida pelo festival Janela Internacional de Cinema do Recife, que já exibiu Sérgio Leone, Stanley Kubrick e o próprio Hitchcock (Psicose) em versões restauradas. “Filmes apresentados digitalmente em 2K ou 4K são cópias interessantes e felizes dos filmes originais, apresentados dentro de uma nova estética, que é o digital”, diz Kleber Mendonça Filho, diretor artístico do Janela e um dos responsáveis pela implantação da futura Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco.

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torne possível desfrutar novamente do filme como uma obra de arte.”

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WEIMAR

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“Não há mais como evitar ou ignorar os processos digitais em cinema, seja qual for o estágio de produção, pós-produção e exibição”, diz Kleber. “Se eu tiver escolha, levarei em conta o filme e a sessão para decidir se exibo em 35mm ou DCP. Infelizmente, a escolha está sumindo a cada ano, e cada vez mais a única opção é DCP. Isso me desagrada um pouco. Mesmo assim, há muito mais a festejar do que reclamar.” Dajendra Roy, curador-chefe do MoMa, também lamenta o ocaso do

suporte película. “O 35mm é o melhor formato para preservação de arquivo. No entanto, a Fuji anunciou o fim da produção de celuloide”, disse, durante palestra no Festival de Berlim. Diretor do arquivo da Deutsche Kinemathek (que este ano completa 50 anos), Martin Koerber diz que a restauração de filmes tem a função de resgatar a experiência cinematográfica na tela. “Ali é que acontece o cinema. Assim, não importa se o filme está sendo projetado digital ou mecanicamente. É preciso reaver um estado no qual se

Para a sessão retrospectiva O toque de Weimar, parte da Berlinale Classics, oito títulos foram restaurados digitalmente. O programa selecionou 31 filmes influenciados pelo cinema alemão do período 1918-33 (como Casablanca, Como era verde o meu vale, A marca da maldade e Quanto mais quente melhor) ou realizados por artistas alemães exilados na Inglaterra e nos Estados Unidos, expulsos pelo nazismo. É o caso do diretor húngaro André De Toth, que, em 1942, radicou-se em Los Angeles, onde realizou o drama de guerra None shall escape, de 1944, em que oficiais nazistas são julgados por uma espécie de tribuna dos povos livres. O filme tem várias cenas fortes, sendo a maior a de um rabino que convoca os judeus, dentro do trem da morte, a se rebelar. E antecipa as atividades do Tribunal de Nuremberg, que ocorreu entre 1945-46. Realizado na Hungria e Áustria, logo após o fim da República de Weimar, o musical Peter (1934) traz uma garota em roupas de rapaz que usa a nova identidade para arranjar um emprego e sustentar seu avô. Lição de otimismo durante a recessão do pós-guerra,

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INDICAÇÕES 2 animação de silhueta Trabalho pioneiro de Lotte Reiniger deverá ser apresentado no Recife 3 em 2014 Na Berlinale Classics do ano que vem, será exibida cópia restaurada de O gabinete do Dr. Caligari

Peter reflete a esperança do diretor Hermann Kosterlitz em voltar para a Alemanha. No entanto, a primeira exibição pública do filme em solo alemão se deu em 2013. O diretor se mudou para Hollywood e passou a se chamar Henry Koster. Alocado em programa especial, O estudante de Praga retorna completamente restaurado. Rodado em 1913, no formato deutsche bioscop (adequado para a exibição volante), o trabalho de reconstrução mobilizou acervos de três países: Alemanha, Japão e Estados Unidos. Nenhuma cópia estava em condições de ser assistida integralmente. Até então, contava-se com uma versão alemã, restaurada no fim dos anos 1980. A sessão de lançamento teve acompanhamento musical da Orquestra Jakobsplatz de Munique, que interpretou a peça originalmente composta por Josef Weiss, discípulo de Lizst, que, com a peça, compôs uma das primeiras músicas originais para cinema. Realizado durante o período da Alemanha Imperial (Reino da Prússia), O estudante de Praga trouxe a primeira representação visual para um poderoso mito local, o Doppelganger. Antes mesmo do Golem, cujo primeiro filme foi feito em 1915, tendo como protagonista Paul Wegener, o mesmo ator que interpreta Balduin em O estudante de Praga. Disposto a tudo para entrar na alta sociedade local, Balduin vende seu reflexo para um negociante. A cena

em que seu duplo sai do espelho para a sala, e da sala para a rua, é impressionante. Além de efeitos e truques óticos, encontrados em outros filmes da época, O estudante de Praga utiliza recursos narrativos incomuns até então. Após a exibição, em conversa com a imprensa, responsáveis pela restauração apontaram o filme de Hann Heinz Ewers como um dos precursores do cinema moderno, por utilizar recursos narrativos como a ação em diferentes pontos do mesmo quadro, o uso de perspectiva, além da criação de um tema musical para cada personagem. A ideia, diz Stefan Drössler, diretor do Museu do Filme de Munique e coordenador da restauração do filme, era alçar o cinema a algo mais do que um entretenimento submisso ao teatro, a dança ou ao circo, para se tornar uma arte independente. “Ele é como o avô dos filmes modernos”, diz Drössler, que ainda ressalta que a produção teve a sorte de contar com Guido Seeber, fotógrafo inventor do bioscópio e posteriormente colaborador de Pabst e Murnau. “Havia a consciência de que algo novo estava sendo feito, no sentido de explorar possibilidades que só o cinema poderia alcançar. Os truques não eram novidade, naquela época, Méliès já era o grande mágico do cinema. Mas a complexidade psicológica (o doppelganger motiv), aliada a recursos técnicos, nos dá a sensação de assistir a um filme como O Golem ou Nosferatu que viriam anos depois”. O repórter viajou com o apoio do Ministério de Relações Exteriores da República Federal da Alemanha/ Consulado da Alemanha no Recife.

DRAMA

DRAMA

Direção de David Cronenberg Com Robert Pattinson, Paul Giamatti, Juliette Binoche Imagem Filmes

Direção de Ang Lee Com Irrfan Khan, Gérard Depardieu, Suraj Sharma Fox Film

COSMÓPOLIS

AS AVENTURAS DE PI

Eric Packer é um jovem e egocêntrico milionário que, um dia, acorda com a obsessão de cortar o cabelo num barbeiro localizado no outro lado da cidade. Dentro de uma limusine, ele atravessa uma caótica Nova York, que está prestes a entrar num colapso financeiro sem precedentes. Com o típico estranhamento e ambiguidade de Cronenberg, o filme traz forte carga crítica à sociedade moderna regida pelo controle da informação e pela volatilidade do mercado financeiro.

Pi é um jovem hindu bastante religioso que, após um naufrágio, fica à deriva no Oceano Pacífico na companhia de um tigre de bengala. Baseado no livro de 2001, escrito pelo canadense Yann Martel (a história foi considerada um plágio do brasileiro Moacyr Scliar), o filme é apontado como uma das experiências visuais mais espetaculares dos últimos tempos, apresentando reflexões sobre o lugar do homem em relação a Deus e à natureza.

DOCUMENTÁRIO

DOCUMENTÁRIO

Direção de David France Com Larry Kramer, Iris Long, Bob Rafsky

Direção de Alexandre Alencar

COMO SOBREVIVER A UMA PRAGA

Ao fim dos anos 1980, a Aids já era considerada uma epidemia, no entanto, ainda era tratada com descaso e preconceito pelas autoridades. Na luta por melhores políticas anti-HIV, o grupo ativista Act Up surgiu para trabalhar na conscientização sobre a doença. Indicado ao Oscar 2013 de Melhor Documentário, o filme é uma edição de imagens da época, acompanhando os passos dos ativistas que encabeçaram uma série de ações e protestos.

OS SILENCIADOS NÃO MUDAM O MUNDO Com roteiro e direção de Alexandre Alencar, o documentário retrata o pensamento do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997). Produzido com incentivo do Governo do Estado, a partir do Funcultura, o filme traz como eixo articulador o áudio de uma entrevista inédita, na qual Freire fala sobre amor, rebeldia e autoritarismo. Paralelamente, apresenta a vida de dois jovens personagens, um do sertão pernambucano e outro das ruas do Recife.

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Sonoras

MPB O instinto agregador de Maurício Cavalcanti

Compositor pernambucano soma talentos de amigos e familiares para criar o conceito de seu terceiro disco autoral, Simples e composto texto Marina Suassuna

Quando gravou seu primeiro projeto autoral, em 1998, o recifense Maurício Cavalcanti estava num momento de experimentação. Sem arranjos prévios ou qualquer pré-produção, o disco intitulado Nós – que passeia por diversos gêneros como frevo, baião, ciranda e maracatu – foi concebido 100% dentro do estúdio e produzido

coletivamente, com participações de Claudionor Germano, Nonô Germano, Dalva Torres e diversos compositores amigos. Em 2006, o compositor e músico instrumentista voltou aos estúdios e lançou seu segundo CD, Além das fronteiras do universo, disco comemorativo aos 18 anos de parceria musical com

o poeta Marcelo Varella, com produção de Zé da Flauta e direção musical de Nenéu Liberalquino. A parceria com Zé da Flauta repetiuse no segundo semestre de 2012, quando Maurício entrou no estúdio Udigrudi, do amigo, para gravar, de forma independente, mais um trabalho. Chamado provisoriamente de Feito em casa, o disco, encartado nesta edição da Continente, foi rebatizado de Simples e composto para melhor sintetizar o espírito com que foi elaborado. “Em cada canção, soa o trabalho simples da composição e o desafio que ser simples representa para qualquer compositor que se preze”, afirma Conrado Falbo, primo do músico e responsável pela texto de apresentação do disco. A sugestão do título foi de Cláudio Negrão, o “faz tudo” do projeto. Amigos desde o final dos anos 1990, quando o produtor tocava no Coral Edgar Moraes, para quem Maurício escrevia canções,

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os dois mantiveram grande sintonia em todo o trabalho de produção. Durante o processo, Negrão, ex-integrante do Bonsucesso Samba Clube e Zé Cafofinho e suas Correntes, tendo produzido os dois CDs do último grupo, dividiu-se entre as funções de técnico de gravação, produtor, diretor musical, arranjador, editor, além da mixagem. “O nome do disco ia ser Feito em casa, porque Maurício queria gravar na sala da casa dele. Aí eu disse que ia haver muita intervenção. Depois, ele deu a ideia de gravarmos num bar, e achei pior ainda, por causa do barulho. No estúdio, ele me perguntou como colocaria o nome do disco. Perguntei por que não se chamava Simples e composto, pois ele é simples em sua concepção e composto por causa dos arranjos, principalmente porque o disco foi ficando bastante elaborado. O que era simples virou composto”, explicou Negrão. “Para mim foi uma experiência fantástica, porque Maurício me deu a possibilidade de mostrar o meu trabalho em todas as situações. Como a gente teve muito tempo para pensar no disco, ele acabou ficando leve e orgânico. Não teve aquela coisa de chegar no estúdio e gravar de uma vez, o disco foi crescendo devagar.”

CANÇÃO POPULAR

Depois de uma pré-produção de quase um ano, Simples e composto acabou reunindo 11 composições, das quais nove são autorais. Na faixa Metade, Maurício presta uma homenagem ao seu tio Zito, autor da canção. Homenageia, ainda, seu irmão, já falecido, Hélio Ricardo, e o primo Júlio Falbo, em You’ve gotta go. “Eles compuseram essa música na década de 1970 e, por isso, o som do disco tem alguma coisa que remete a essa época”, explicou Maurício. Observando a sonoridade do álbum, identifica-se o domínio da canção popular e seus elementos de tradição, como a voz e o violão, passeando por vários ritmos, e influências de nomes como Alceu Valença, Zé Ramalho, Jackson do Pandeiro, Geraldo Azevedo, Luiz Gonzaga, todos presentes na formação musical de Maurício. “Neste terceiro disco, eu quis retomar a coisa da diversidade com os parceiros, o que remete ao primeiro, o Nós”. O

trabalho conjunto reforça o conceito composto do álbum, que contou com a sensibilidade de compositores como Maciel Melo, Abel Menezes, Marcelo Varella e Romero Amorim. Para completar, um profícuo time de músicos se apropriou dos arranjos, elaborados por Negrão de forma arrojada. São eles: Vinícius Sarmento (violão de sete cordas), Leo Guita (guitarras), Lucas dos Prazeres (percussão), Lito Santos (teclados), Jerimum de Olinda (percussão), Júlio Falbo (Guitarra, Marcio Silva (bateria), Fred Andrade (guitarras), Júlio César (acordeom), Deneil Laranjeira (teclados), Nilsinho Amarante (trombone), Renato Nogueira (percussão), Valdemir Silva (flauta), Bruno Cavalcanti (cavaquinho), Thiago Duarte (bateria) e Cláudio Negrão (baixo). “Essas parcerias ocorreram da seguinte forma: eles fizeram a letra e

Na sonoridade do álbum predominam a canção popular e seus elementos de tradição, como a voz e o violão eu musiquei. Não houve uma parceria conjunta, em que dialogamos para fazer música e letra. Eles escrevem, eu recebo e me debruço sobre a letra, até extrair a melodia”. Há músicas como Molhando o ar e Enseada de Antunes, cujas composição e melodia são de autoria apenas de Maurício. Poeta Gentileza e Bolero jazz foram enviadas por Abel Menezes, de São Paulo, onde esteve fazendo doutorado. Parceiro de Maurício desde o primeiro disco, o compositor também tem um dedo na letra de Borboleta, que Maurício extraiu do livro Delírica dança, lançado por Abel em 1988. “Fiquei surpreso porque Simples e composto é um disco muito bem resolvido musicalmente. Em relação ao Nós, é mais maduro em todos os sentidos, no que diz respeito aos arranjos e à voz de Maurício, que ganhou maturidade de cantor. No primeiro disco, isso não era claro, o

que era normal, porque fazia parte do início. Quando ouvi o resultado, fiquei muito emocionado, principalmente porque todas as minhas letras estão sempre dialogando com a música popular brasileira”, observou Abel. Segundo Maciel Melo, o trabalho de Maurício Cavalcanti tem sido crescente. “É um disco que você não pula de faixa para ouvir, ele vai deslizando no ouvido da gente. Isso se deve ao zelo de Maurício durante todo o processo, desde a concepção até a encadernação”, comentou o parceiro, autor de A paga e o preço e Das Dores, esta última selecionada para concorrer no Festival de Música e Arte de Garanhuns, em 2009, e interpretada na ocasião por Geraldo Maia, que também emprestou sua voz para a versão gravada no disco. “Eu me surpreendi muito com os arranjos das minhas canções. O pessoal acha que sou forrozeiro e, por isso, põe logo uma pegada de xote nas minhas canções. Mas, na verdade, faço letra para qualquer gênero. E Maurício costuma trazer uma coisa nova para minha palavra. É sempre uma surpresa quando ele cria uma melodia para uma letra minha, porque me faz fugir do convencional, do que eu faço todo dia”, elogiou Maciel. As participações não se esgotam por aí. Mariana e Joana Cavalcanti, filhas mais velhas de Maurício, estão no disco cantando. “É uma parceria muitíssimo especial porque elas não são cantoras. Uma é bióloga e, a outra, economista. Mas, como a gente sempre gostou de cantar juntos, eu as convidei para gravarem uma música que preferissem.” Mariana optou por Molhando o ar, música vencedora do Festival Universitária FM, Recife, representando o estado de Pernambuco na etapa nacional, durante o 4º Festival de Música das Emissoras de Rádio Públicas Brasileiras – ARPUB. A canção ganhou um refrão em italiano na voz de Mariana em dueto com Maurício. Joana preferiu Bolero jazz. O projeto gráfico do disco é de outra filha, Maria de Queiroga, que tem fotografias de Mari e da caçula Clara Falcão, com exceção da de capa, de autoria do próprio Maurício. “Fui pegando o talento de cada um para somar nesse Simples e composto”, atesta o músico.

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DIVULGAÇÃO

Sonoras DAVID BOWIE A esperada volta do herói inglês

Cantor e compositor lança, após 10 anos longe dos estúdios, The next day, disco que está entre os melhores lançamentos do ano texto Débora Nascimento

Na última vez que David Bowie lançou um disco de inéditas, a indústria fonográfica estava tentando se recuperar da crise pós-Napster. Naquela época, achava-se que era apenas uma crise e não uma mudança drástica nesse mercado. De lá para cá, muita coisa mudou, e não somente na forma de atuação das gravadoras e dos artistas, mas na maneira como as pessoas consomem música. O álbum completo, redondo, inteiro, não é mais a grande busca do ouvinte. O público passou a ouvir discos de forma fragmentada.

Agora, com o lançamento de The next day, CD que marca sua volta às gravações após longos 10 anos – o maior tempo que um artista de seu porte passou longe do estúdio (ele já realizou o bastante para poder fazer isso e não ser esquecido) –, David Bowie parece querer se adaptar à nova realidade. O seu tão aguardado retorno foi propagado à maneira dos nossos dias: tomando conta das redes sociais. Semanas antes do lançamento oficial do álbum, o cantor soltou dois clipes no YouTube. Um deles, o da música The stars

(are out tonight), foi bastante compartilhado e comentado, pois contava com a participação de Tilda Swinton, que já fora alvo de montagens de fotos na internet por uma suposta semelhança de seu rosto com o do inglês. Ter convidado a atriz inglesa pareceu uma forma de Bowie querer entrar na brincadeira. Outra forma de se adaptar à era dos “compartilhamentos” foi a capa do disco, cujo box branco sobre a capa original do álbum Heroes, de 1977, denuncia ter sido pensada para virar um meme, devido à facilidade de parodiá-la – e, claro, foi exatamente o que aconteceu. No entanto, assim como ocorre com outros virais das redes sociais – quando um assunto pode ocupar, num dia, o topo dos trend topics do Twitter e, no seguinte, não ser mais lembrado – o alarde em torno do “novo disco de Bowie” parece ter ofuscado o próprio disco. Depois do lançamento, ninguém parece ter dado mais bola para o trabalho e, assim, mais uma injustiça é cometida nesta era de ode ao efêmero. Não custa lembrar que os últimos (e fantásticos) do Gorillaz e do Radiohead passaram praticamente batidos. Assim como os anteriores Heathen e Reality, produzidos por Bowie e seu antigo colaborador Tony Visconti (inclusive produtor de Heroes), The Next day traz um bom punhado de ótimas composições entre suas 17 faixas, como a frank blackiana Valentine’s Day, a tom waitsiana Dirty boys, Where are we now? e I’d rather be high – na qual se pode notar que sua voz marcante ainda se mantém em boa forma, apesar do peso da idade (66 anos). Ou seja, mais uma vez, David Bowie confirma que, se não está à frente do seu tempo, também não está atrás. E por isto continua a encher seus fãs de orgulho. No entanto, ele não pode esquecer que, de acordo com o novo momento da indústria fonográfica, um artista não lucra mais tanto com a vendagem de discos e, sim, com a realização de espetáculos. E aí é que entra a questão: o cantor voltará às turnês? A dúvida paira no ar, porque desde que teve um enfarte na reta final da Reality Tour, ficou com stage fright (pavor de palco). Pessoas ligadas a ele, desde sua esposa Íman até músicos que tocaram em The next day, dão versões diferentes sobre essa possibilidade de shows. Vamos esperar pela decisão do herói inglês.

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GLAUCE OLIVEIRA/DIVULGAÇÃO

INDICAÇÕES REGIONAL

MPB

Selo Candeeiro Records

Independente

TIAGO ARARIPE Baião de nós Com produção e participação especial de Zeca Baleiro, Baião de nós reúne 11 composições inéditas de Tiago Araripe. O músico e compositor cearense, que ficou conhecido pelo LP Cabelos de Sansão, lançado pelo selo Lira Paulistana em 1982, traz uma fusão de gêneros como rock, baião, reggae e maracatu, sob a influência dos ritmos populares do Crato, sua cidade natal, ao mesmo tempo em que dialoga com elementos da música pop. Destaque para Feito Beatles e Gregório.

Voz e violão

FORÇA MUSICAL IBÉRICA

GUI AMABIS Trabalhos carnívoros

Depois da elogiada estreia com o álbum Memórias luso/africanas, Gui Amabis lança seu segundo disco de estúdio carregado de lirismo. Produtor musical e compositor de trilhas sonoras para o cinema, o paulista, desta vez, posiciona-se como cantor, função que deixou para Céu, Criolo e Lucas Santtana em seu primeiro disco. A produção é assinada pelo próprio Amabis, em parceria com Régis Damasceno, do Cidadão Instigado. Entre as 10 faixas, Pena mais que perfeita e Crepúsculo merecem atenção à parte.

DIVULGAÇÃO

Geraldo Maia passou nove anos trabalhando como cantor em Portugal. Para a terra do além-mar, levou no “matulão” a música brasileira. Mais de uma década após sua volta, chegou a hora de mostrar as influências ibéricas que sofreu. Elas estão no disco de intérprete Voz e violão, que realizou em dueto com o instrumentista Vinícius Sarmento, uma das revelações da nova geração de músicos brasileiros. O violonista tece as bases intricadas de acordes para Geraldo passear com sua voz suave por nove das belas músicas do cancioneiro de Chico Buarque – no fim, há o registro de Os argonautas, de Caetano Veloso. O show de lançamento do CD acontece no dia 16 deste mês, no Teatro Santa Isabel, às 20h. Os ingressos custam R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia). (DN).

INSTRUMENTAL

ANDREIA DIAS Pelos Trópicos

O terceiro álbum do violonista, guitarrista e arranjador Tato Mahfuz é um mergulho nas sonoridades brasileiras, com inspirações que passam por Milton Nascimento e Moacir Santos, como na faixa Mil tons, além de João Bosco, Tom Jobim, Edu Lobo e Toninho Horta. Vencedor do Prêmio Sharp de Revelação Instrumental, em 1991, pelo seu primeiro disco Rumo norte, o músico optou por enfatizar o violão no novo trabalho, ao invés da guitarra. São 10 canções instrumentais, todas autorais.

Gravado de forma itinerante, o terceiro CD solo da cantora e compositora paulistana Andreia Dias, ex-integrante da banda DonaZica, é um mosaico da nova cena pop contemporânea do Brasil. O disco traz 12 canções escritas por Andreia em parceria com colegas de 10 capitais brasileiras, por onde circulou em sua viagem musical . No Recife, ela foi recebida por Zé Cafofinho, com quem gravou o xote Luva pele. A viagem ainda rendeu gravações com a banda Do amor, Thalma de Freitas, Felipe Cordeiro, entre outros.

Distribuidora Tratore

The Strokes

FUGINDO DAS FÓRMULAS Há bandas que fazem uma linha divisória no tempo. O Strokes é uma delas. Aplicou, em 2001, uma injeção de ânimo no rock, com o CD Is this it?. Por conta da mega repercussão que teve, a cada novo trabalho, passou a ser alvo de atenção redobrada. Já foram lançados quatro discos e nenhum chegou à altura do primeiro, mas, pelo menos, uma coisa não se pode negar: o quinteto vem tentando não repetir a fórmula do sucesso. Agora, com Comedown machine, deu um passo à frente no conceito do anterior, Angles, no qual tentou atualizar a estética sonora dos anos 1980. Parece que o Strokes não quer ser “só” uma banda de rock, quer tocar também na pista de dança. Para resumir, o novo disco é tão bom quanto o segundo, Room on fire, lançado há 10 anos. Isto é um elogio. (DN)

POP

TATO MAHFUZ Cá entre nós

Independente

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Artigo

KARINA FREITAS

JARMESON DE LIMA POR UM ACERVO PERMANENTE DA MÚSICA DIGITAL E ANALÓGICA É inegável que o suporte digital facilitou – e muito – a vida da gente. Por conta da praticidade dos mecanismos portáteis, temos agora uma infinidade de registros, sejam eles textos, fotos, vídeos ou músicas. A música, por sinal, por ser uma manifestação artística imaterial e não palpável, precisa ser capturada em materiais palpáveis. Diferente de outras formas de arte, ela não dispõe de um aparato físico e concreto que podemos ver ou tocar. É possível reproduzir ou esboçar uma pintura através de desenhos ou de uma fotografia, e, então, poder apreciá-la indefinidamente. No caso da música, isso é mais complicado. Você pode pegar num violino, mas ele por si só não toca música alguma. Graças à criação e à evolução do fonógrafo de Thomas Edison, dispomos de tantos mecanismos de gravação e reprodução sonora. A maior parte desses mecanismos está condicionada, entretanto, a aparelhos físicos para reproduzir a música que queremos, mesmo sendo ela códigos binários processados por computador. No entanto, em algum momento, esse acervo que está sendo migrado lentamente para a “nuvem”, pode correr o risco de não ser mais acessado. Temos essa rede digital com bilhões de dados correndo soltos por wi-fi, cabo e satélite, mas que pode não valer nada daqui a um tempo. Quando a Nasa nos alertou sobre o risco de uma tempestade solar e a perda temporária de comunicações, isso mostrou o quão frágil pode ser a conservação de dados digitais. E o mais grave é que isso pode acontecer sem que a gente veja de fato o que ocorreu. Afinal, a radiação é invisível aos nossos olhos e tais ocorrências podem se dar a qualquer instante.

Por mais que os artistas lancem filmes e discos digitalmente, quem garante que esse acervo ficará disponível no futuro? Vale lembrar que os aparelhos de raio X presentes nos aeroportos foram responsáveis por estragar o trabalho de muitos profissionais ao danificar cartões de memória e HDs. A confiança exclusiva no digital tem esse risco. Por outro lado, a praticidade de possuir mais de 10 mil arquivos de música, fotos e filmes em um só pen

drive, no lugar de 10 estantes de CDs, discos e DVDs, compensa, se você mora nos imóveis atuais, com menos de 70m². O problema é que os produtores e compositores da nova geração artística estão perdendo a vontade ou o costume de reproduzir sua música em formato “analógico”. A prensagem de CDs em tiragem industrial ainda é cara e tem um retorno incerto. Mas é importante fazer? Sim! Mesmo em escala reduzida, é necessário ter um registro físico da música desta época e em boa qualidade. Senão o breve episódio da história da música recente corre o risco de se perder. Por mais que os artistas lancem discos diretamente na iTunes Store ou cineastas façam filmes com lançamento

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digital, quem garante que esse acervo ficará disponível daqui a três, oito ou 20 anos? Se o futuro das mídias e dos equipamentos que reproduzem música é incerto, quem garantirá a perenidade dos formatos MP4, MP3 ou WMA?

A TRAMA

O fato é que nossa crença no futuro – que demora a chegar – nos torna despreocupados com o legado artístico e a manutenção de um acervo que deveria ser obrigatório. Até o fim de março, a Trama Virtual era o maior repositório de músicas da cena independente do país, principalmente de bandas nascidas entre 2000 e 2010. Muitas delas nem chegaram a gravar um disco oficial,

mas fizeram carreira e um relativo sucesso apenas com arquivos em MP3. Eram 78.731 artistas e 205.381 músicas cadastradas no portal, embora não detivesse o maior acervo musical de artistas brasileiros. Outros sites e serviços, como o Palco MP3, possuem tecnologia e um número similar de artistas, mas não agregavam conteúdo ou divulgavam seus produtos como fazia a Trama, que ainda dispunha de jornalistas para produzir notícias e um programa de TV que chegou a passar algumas temporadas no canal Multishow e na TV Cultura. Como se não bastasse esse esquema de autopromoção, o portal também criou um novo modelo de negócios que parecia ser o futuro

para o problema de pagamento de artistas na internet. Através do sistema de “download remunerado”, os grupos que tivessem mais músicas baixadas poderiam ganhar dinheiro. Ou ter direito a isso, uma vez que sua remuneração mensal viria de um cálculo entre o valor total do patrocínio do portal e de outras empresas com relação aos mais acessados de acordo com o número total de downloads de maneira proporcional. No entanto, com o passar dos meses, a verba disponível foi diminuindo e, com isso, o interesse das bandas em permanecer ali. Obviamente, quem já estava por lá deixou suas músicas, mas quem tinha chegado recentemente não se empolgou em disponibilizar suas obras. Agora, com o fim do portal, para onde foram esses registros? Se formos otimistas, podemos crer que todas as bandas que largaram suas músicas por lá mantiveram ainda seus backups e, em breve, vão disponibilizar suas obras novamente na internet, em sites semelhantes. Se formos pessimistas, teremos que catar um a um, em diferentes acervos particulares, os principais nomes dessa biblioteca virtual. Em meio a tal contexto de incertezas, temos que louvar a iniciativa de pessoas como os norteamericanos Bob George e David Wheeler (já falecido), que criaram um museu da música contemporânea, em 1985. O ARChive of Contemporary Music (arcmusic.org) é uma coleção de fonogramas mantida de forma independente e construída através de doações do mundo inteiro, contendo atualmente mais de cinco milhões de itens, entre LPs, compactos, CDs e outros formatos de música gravados a partir de 1940. Sua sede, em Nova York, contém todas as raridades previstas na história da música contemporânea. A ação merecia ser copiada também no Brasil, para além dos registros que existem na Biblioteca Nacional. E, num país onde a memória é precária e a preservação do patrimônio ainda pior, uma iniciativa como a Trama Virtual deveria ser tombada e guardada como um retrato do passado recente que corre o risco de se perder em meio à efemeridade da internet.

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Weydson Barros Leal SUGESTÕES

Weydson Barros Leal

é poeta e crítico de arte

Cristiano sant’ana/divulgação

No último telefonema, F. pediu o nome de um livro de poesia. A indicação anterior, antes dos romances sugeridos, foi Poemas de Wislawa Szymborska (Cia das Letras, 2011). Em poucos dias, o livrinho fez a alegria de F. Acho que naquela semana sugeri o mesmo título para M. e para A. São mulheres tão inteligentes quanto Szymborska, e, por isso, alcançaram a polonesa. Os bons livros sabem que a qualquer momento irei indicá-los para adoção. A sugestão dessa vez foi uma outra antologia, Adonis (Cia das Letras, 2012). Eu disse a F. que, se tivéssemos nas livrarias brasileiras uma oferta maior de livros importados, as possibilidades triplicariam, considerando que ela lê bem em espanhol e em inglês. Assim eu teria indicado Kavafis íntegro (Tajamar Editores), obra completa do poeta grego traduzido e editado pela casa chilena. Nos últimos meses, a alegria de A. foi diferente. Duas indicações do acaso. O primeiro foi O senhor Ventura (Nova Fronteira, 1999), de Miguel Torga. Gosto do riso de A., e por esse motivo ainda indiquei o O tenente Quetange (CosacNaify, 2002), de Iúri Tyniánov, algo tão engraçado, que o senso comum não atribuiria a um russo. Aliás, no campo das fábulas graciosas, eu lhe disse, não deixe de ler A história maravilhosa de Peter Schlemihl (Estação Liberdade, 2003), de Adelbert Chamisso. Conversei sobre os russos com A. e ela conhece o assunto. De Dostoievski, temos Crime e castigo como obra-prima estrutural e O idiota como livro preferido do autor das Memórias do subsolo. Suas melhores traduções brasileiras estão sob a Editora 34. Aliás, compreende-se melhor Dostoievski depois que se lê Turguêniev e Gógol. Do primeiro, principalmente Pais e filhos (CosacNaify, 2004), e do segundo Almas mortas (Perspectiva, 2011). Claro que não se pode passar pelos russos sem se demorar atentamente sobre Tolstoi, eu disse a A., e se ela pudesse, lesse e relesse A sonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilitch. Tolstoi está na moda, F. me disse, embora a nova versão cinematográfica de Anna Kariênina não esteja agradando a alguns. Eu disse a F. que citar essa personagem é lembrar Flaubert e sua Bovary. A nova tradução de Bovary, de Mário Laranjeira (Penguin Companhia, 2011), recebeu o Prêmio Jabuti 2012 para tradutores. M., no último telefonema, pediu sugestões de romances franceses. Ainda não havia lido Proust, um pecado corrigível em poucos meses. Antes, eu disse, se puder, leia Balzac. Proust está em Balzac, as histórias que se entrelaçam, os personagens que ressurgem. Comece pelo Pai Goriot (L&PM Pocket, 2006). A comédia humana é a “recherche” balzaquiana. M. ainda esboçou um outro pedido, mas eu não tinha mais tempo.

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