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#150 ano XIII • jun/13 • R$ 11,00
CONTINENTE
TORCEDOR ANÔNIMO, APAIXONADO, FIEL, ELE ESTÁ JUNTO AO SEU TIME, PRO QUE DER E VIER
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NOVOS COLUNISTAS O ESCRITOR RONALDO CORREIA DE BRITO E O CINEASTA KLEBER MENDONÇA FILHO INTEGRAM O TIME DA REVISTA CAPA definitiva.indd 1
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divulgação
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aos leitores Esta é a segunda vez que a Continente se aventura pela seara esportiva. Sim, porque, sendo uma revista cultural, o assunto não é de nossa competência. Mas, quando o tema se agiganta, como ocorre agora, ficamos motivados a tratá-lo dentro do campo no qual jogamos. A motivação anterior tinha sido a Copa do Mundo de 2010, agora, temos a Copa das Confederações e a inauguração da Arena Pernambuco (acima), tudo aqui juntinho de nós, no Brasil e em Pernambuco. Talvez numa projeção de quem nós somos nesse contexto, ou daquilo que nos une, independentemente de sermos da área esportiva ou não, escolhemos falar do torcedor, esse “não especializado”, essa criatura cardíaca, incrivelmente devotada a um time, às suas cores, ao seu estádio, à sua equipe. Entende-se um torcedor? Há gente bem séria e compenetrada pensando nisso, especulando, estudando, explicando... Para trazer algumas dessas suposições à revista, convidamos três jornalistas e um fotógrafo que têm trabalhado em frentes diversas, mas estão sempre perto do futebol – inclusive profissionalmente – e que são torcedores declarados dos seus times (mas preferimos não declará-los aqui).
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Tentamos entender o “perfil psicológico” do torcedor, enquanto abordamos aqueles que não vão ao campo, “amando de longe” seus times, pela TV ou internet. Uma peça frágil nessa relação é a cobertura jornalística: a maioria dos torcedores não acredita que possa haver isenção profissional, que o jornalista vai puxar “a brasa para sua sardinha” ao avaliar o desempenho dos times. Será? Leia e opine. Há 50 edições, em abril de 2009, na número 100, lançamos o projeto editorial e gráfico que o leitor tem acompanhado desde então. Nesta 150, propomos algumas novidades, para as quais queremos chamar a atenção. A mais significativa é a chegada de dois colunistas, o escritor Ronaldo Correia de Brito e o crítico de cinema e cineasta Kleber Mendonça Filho. Ronaldo volta à casa, seis anos depois, e Kleber estará conosco também no site, com o Cinemascópio. Esses novos colaboradores significam, para nós, um privilégio, o de poder contar com pessoas que têm uma clara visão de mundo, uma aproximação amorosa com seus objetos de criação (a literatura e o cinema, respectivamente) e textos que trazem o prazer da leitura. Bem-vindos, pois.
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sumário Especial
Torcedores
6 Cartas
7 Expediente
8 Entrevista
62 Entremez
onaldo Correia de Brito R A que mundo nós pertencemos?
+ colaboradores
64 Leitura
George Orwell Conhecido como o autor da ficção 1984, de onde surgiu a expressão Big Brother, escritor inglês também foi grande ensaísta
Xico Sá e Cláudio Assis Cronista e cineasta falam sobre a parceria que estabeleceram para a realização do filme Big Jato
14 Conexão
Art Project Iniciativa do Google reúne, em um só endereço, mais de 30 mil obras de 151 museus do mundo todo
16 Portfólio
Custódio Coimbra Fotojornalista registra em campo não apenas os lances da partida, mas os variados sentimentos expressos pelos que assistem aos jogos
22 Balaio
Taça da Copa A CBF exibe a réplica do troféu, mas a original nunca mais foi vista, desde o seu roubo, há 30 anos
41 Perfil
Wellington Lima Produtor musical registra memórias e reflexões sobre seu trabalho, em meio à ditadura militar, no livro O show que não aconteceu
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Estão longe de ser os protagonistas de uma partida, mas, sem eles, um jogo perde muito de emoção. Em tempos de Copa, indagamos: o que significa ser um torcedor?
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Matéria Corrida José Cláudio Diário das frutas
74 Sonoras
Juliano Holanda Após duas décadas atuando nos bastidores, compositor e instrumentista lança disco solo A arte de ser invisível
78 Cinemascópio
Kleber Mendonça Filho Uma central de cultura
80 Claquete
Cinefoot Festival chega ao Recife e tem entre os destaques o documentário Rebeldes do futebol, sobre a atuação política de craques
88 Criaturas
Lula Palomanes Charles Miller
Linguagem
58 Cardápio
Conlangs
Coxinha Recheado com frango, carne de charque ou de siri, petisco é um dos mais queridos do país
O trabalho de criadores de línguas artificiais, nem sempre feito sob demanda, ganha popularidade pelo sucesso de séries como Jornada nas estrelas e Game of thrones
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Capa foto Rafael Ribeiro/CBF/Divulgação
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Viagem
Tradição
O poeta João Cabral de Melo Neto inspira esse passeio a pé pela cidade espanhola, com o qual se vivenciam seus detalhes arquitetônicos e suas sutilezas culturais
Peça do mobiliário religioso doméstico, popularizado no século 15, chegou ao Brasil com os portugueses e tinha a função inicial de evidenciar a adesão ao catolicismo
Visuais
Palco
No livro O sagrado, a pessoa e o orixá, Roberta Guimarães registra os rituais do candomblé pernambucano, com ênfase nos elementos que representam as divindades
Difusor da dança butô no Brasil, Tadashi Endo apresenta espetáculo no qual celebra, com gestos mínimos, os ancestrais e a obra da coreógrafa alemã Pina Bausch
Sevilha
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Documental
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Oratório
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Ikiru
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cartas Obras de arte em edifícios Como assinante e leitor da Continente, gostaria de fazer uma correção sobre matéria publicada em Peleja ( nº 148), segundo a qual a existência de obras de arte em edifícios do Recife somente teria se tornado obrigatória em dezembro de 1980, com o advento da Lei Municipal 14.239. Isso não corresponde à verdade. A ideia é de 1960 e foi efetivamente incluída pelo então Prefeito Miguel Arraes no Código de Urbanismo e Obras do Município do Recife, consubstanciado na Lei Municipal nº 7.427, de 19/10/1961, que estabelece a obrigatoriedade de complementação artística em determinados prédios, conforme seu Art. 950, que transcrevo abaixo: “Art. 950 - Em todo edifício que vier a ser construído no Município do Recife, deverão constar obras originais de valor artístico, as quais farão parte integrantes deles. § 1º - Os efeitos do artigo
anterior incidirão sobre: I - todos os prédios com área superior a 2.000 m² e bem assim os de grande concentração pública, tais como casas de Espetáculos, Hospitais, Casas de Saúde, Colégios ou Escolas Públicas, Estações de Passageiros, Estabelecimentos Bancários, Hotéis, Estádios, Clubes Esportivos, Sociais ou Recreativos que tenham área superior a 1.000 m². § 2º - Ficam isentos dos efeitos deste artigo as residências particulares. § 3º - Não será concedido à construção o competente Habite-se quando na mesma não constar a obra de arte exigida neste Código, cuja maquete deverá ser aprovada pela Prefeitura Municipal do Recife, com o visto do Autor do Projeto de Arquitetura, do Proprietário e assinatura do autor da Obra de Arte. § 4º - Somente poderão executar os serviços referidos
no parágrafo anterior os artistas previamente inscritos na Prefeitura Municipal do Recife” JOSÉ ANTONIO FEIJÓ DE MELO RECIFE–PE
Onde comprar a revista? Há algumas semanas, descobri, na casa de um colega, a Continente. Não conhecia nenhuma revista que fosse criada e produzida em Pernambuco. Desde então, procuro locais de venda em minha cidade, Jaboatão dos Guararapes, e não encontro. Gostaria de saber se haveria a possibilidade do envio de algumas edições, para que eu possa conhecer mais a revista e divulgá-la entre meus amigos. PEDRO HENRIQUE JABOATÃO DOS GUARARAPES–PE
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas.
Telefone (81) 3183 2780
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resposta da redação No link Onde Comprar do site da Continente, informamos todos os nossos pontos de venda.
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colaboradores
Álvaro Filho
inácio França
ivan Moraes Filho
Jarbas araújo Jr.
Jornalista, professor universitário e mestre em Comunicação
Jornalista, consultor de Comunicação das Nações Unidas e blogueiro
Jornalista, militante de direitos humanos e apresentador do programa Pé na Rua
Fotógrafo, sócio-fundador do Projeto Lambe Lambe de Fotografias
e Mais ana araújo, fotógrafa. andré dib, jornalista. andré teixeira, editor assistente de fotografia do jornal O Globo e correspondente no Rio de Janeiro da revista Photo Magazine. Gilson oliveira, jornalista e revisor do suplemento Pernambuco. ingrid Melo, jornalista. Luciana Veras, jornalista, produtora e especialista em Estudos Cinematográficos. Lula palomanes, ilustrador e colaborador de O Globo e Valor Econômico. Marcelo abreu, jornalista e autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu. pollyanna diniz, jornalista e organizadora do blog Satisfeita Yolanda. ricardo Viel, jornalista, atualmente radicado em Portugal, colabora com publicações brasileiras, entre entre as quais os jornais Valor Econômico e O Globo e as revistas Piauí e Bravo. téo pitella, fotógrafo. Yellow, designer, músico e professor.
GoVerno do estado de pernaMBUco
SUPeRIntenDente De eDIÇÃo
contInente onLIne
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Gianni Paula de Melo (jornalista)
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Bráulio Mendonça Menezes
Tiago Barros (fotógrafo)
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Ricardo Melo
Clarissa Macau, Gabriela Almeida, Marina
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Suassuna e Olivia de Souza (estagiários)
Eliseu Souza
Bráulio Mendonça Menezes
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aRte
PUBLIcIDaDe e maRKetIng
Antônio Portela
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e cIRcULaÇÃo
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Sebastião Corrêa (tratamento de imagem)
Armando Lemos
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diagramação e ilustração)
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conSeLHo eDItoRIaL:
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDaÇÃo, aDmInIStRaÇÃo e PaRQUe gRÁfIco Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
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XICO SÁ E CLÁUDIO ASSIS
“A gente é irmão na vida, na luta”
Cronista e cineasta, amigos na vida pessoal, realizam primeiro projeto juntos, que é o de transpor Big jato, livro mais recente de Xico, para a linguagem de cinema, com filmagens ainda em 2013 texto Luciana Veras
con ti nen te
Entrevista
Cláudio de Assis Ferreira e Francisco Reginaldo de Sá Menezes se conhecem desde que estavam “na casa dos 20 anos”. Hoje, embora lancem mão da pirraça para não revelar datas de nascença, sabe-se que habitam a moradia dos 50. O primeiro, mais velho e nascido em Caruaru, fez 53 em dezembro último, enquanto o segundo, nascido no Crato (CE), completa 51 no próximo outubro. Ou seja, o cineasta Cláudio Assis e o jornalista, cronista e escritor Xico Sá convivem há mais tempo do que estiveram distantes. “Quando Xico era ladrão de uns livros na Livro 7”, entrega a porção cinematográfica da dupla. Xico revida: “A primeira entrevista que ele deu como diretor foi para mim, quando eu era repórter d’O Rei da Notícia”, diz, referindo-se ao periódico independente que circulou no Recife nos anos 1980. Eles são uma tradução contemporânea dos vínculos forjados por elos sanguíneos ou palavras de honra nos sertões. São amigos, cúmplices de farras e tempestades criativas, compadres – Xico é padrinho de Francisco, filho caçula de Cláudio – e,
agora, parceiros na empreitada de verter para imagens as memórias fictícias, afetivas e levemente autobiográficas de Big jato, mais recente publicação assinada pelo escriba cearense. No livro, o personagem principal é um garoto que por anos acompanha seu pai, fã dos Beatles e amante da cachaça, descrito sucinta e carinhosamente como “o velho”, na boleia do caminhão que desentope fossas e limpa privadas no sertão do Cariri. Big jato, pois, é o nome da carroceria, da empresa, da rotina e da vida do protagonista. A narrativa explora a relação dele com o ofício paterno, com o irmão gêmeo do pai – um boa-vida sem nenhuma aptidão laboral, a mãe e a penca de irmãos e esmiúça seus diálogos com habitantes de um município escondido nos confins de um Brasil que se reinventava na década de 1970, entre jogos de Copa do Mundo, governos militares e mudança de costumes. Assim, o protagonista transita da infância até a adolescência, sempre ao lado do “velho” na mitigação dos odores e desconfortos causados por toneladas de fezes alheias.
“Escreva o que estou dizendo: é a primeira adaptação de uma obra literária a ser filmada como um longa-metragem em Pernambuco”, profetiza Cláudio Assis, não sem razão. Pioneiro, portanto, desde a gênese, Big jato encontra-se em fase de préprodução: foi aprovado no edital do audiovisual do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), em 2012, no valor de R$ 450 mil, na rubrica de produção. Também recebeu o aval e uma verba de R$ 1,2 milhão do concurso de baixo orçamento do Ministério da Cultura, porém, como resultado, encontra-se sub judice, “esse é um dinheiro com que a gente não pode contar”, diz o diretor. Juntos, Cláudio e Xico já trocaram ideias sobre o roteiro, urdido e lapidado por Ana Carolina Francisco, assistente de Hilton Lacerda, roteirista de Amarelo manga (2001), Baixio das bestas (2006) e Febre do rato (2011), sentaram inúmeras vezes com a equipe da Perdidas Ilusões – produtora de Cláudio e Camila Valença – e viajaram em busca de locações, desbravando estradas em um road movie preparatório.
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5 mil exemplares. A novidade é que vai ser adaptado também para o teatro, por um grupo do Rio de Janeiro. CONTINENTE Como surgiu a ideia de adaptálo para o cinema? XICO SÁ Um livro tem 300 filmes. Big jato foi muito influenciado pelas conversas que eu tinha com Cláudio e com Hilton (Lacerda). Já tinha escrito boa parte do livro, mas ficava protelando, não queria entregar. Na verdade, só entreguei quando me botaram a faca no pescoço. E Cláudio
fotos: aline arruda/divulgação
Em entrevista para a Continente, concedida em uma ensolarada tarde de segunda-feira, no 11º andar de um edifício na Avenida Dantas Barreto, centro nevrálgico do Recife, os dois discorreram sobre distinções e aproximações entre o Big jato que a Companhia das Letras publicou e o Big jato que a Perdidas Ilusões e a REC Produtores Associados filmarão em 2013, processos artísticos sem fronteiras ou complexos de autoria e também sobre o “casamento” firmado quando perambulavam pela faixa etária dos
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esteve próximo dos meus filmes. Aparece batendo punheta em Baixio das bestas, fez o argumento de Febre do rato comigo e Hilton e ajudou a pensar todo o universo do filme, até porque nós dois conhecíamos o Zizo original, o poeta marginal que vivia pela Livro 7 e que era comedor de velhas. E parceria você faz com quem está ali, do seu lado, com quem está junto de você. Não chama um inimigo. CONTINENTE E essa amizade de vocês, como aconteceu? CLÁUDIO ASSIS Conheço Xico desde
“Um livro tem 300 filmes. Big jato foi muito influenciado pelas conversas que eu tinha com Cláudio e com Hilton (Lacerda). E Cláudio conversava comigo sobre alguns personagens”
Entrevista “vinte e poucos” e estavam a descobrir que “viver é fugir do claro para o escuro e do escuro para o claro”, como diz o menino do romance. CONTINENTE Antes mesmo de tornar-se filme, Big jato já o levou a todos os cantos do Brasil, não é mesmo? XICO SÁ Andei mais do que o menino do caminhão, em tudo que é buraco deste Brasil. Para completar, fui até Manaus, num evento da Livraria da Vila, para um lançamento em pleno Rio Negro. O livro saiu com 5 mil exemplares na primeira edição, mas essa já está nos estertores. Em muitos lugares, não tem mais. Então, acho que vem uma segunda levada no começo de junho e a tendência é que se repita a mesma história, sair com novos
já conversava comigo sobre alguns personagens, mas sobre a safadeza deles, claro! Na verdade, vejo que o livro estava fadado a virar um filme e o filme, por tudo que a gente conversou, já influenciou o livro. Esse processo de sentar e conversar sobre o que estava escrevendo facilitou a organização do enredo. Eu contava como é que estava, Cláudio e Hilton perguntavam e sugeriam… Foi fundamental para o final do livro, pois eu estava inseguro em relação ao personagem. CLÁUDIO ASSIS Ele tem vários livros que dão filme. Mas chegou um momento em que disse: “Tá na hora da gente fazer algo junto”. “Junto” que eu digo desse jeito, uma parceria mesmo, porque ele sempre
que ele era ladrão da Livro 7, nós dois na casa dos 20 anos. Eu fazia Economia, na Federal (UFPE), queria fazer Ciência Política para compreender as questões sociais, e criei vários cineclubes, em que as organizações de esquerda gostavam de filmar os caras dentro do movimento. A gente se conhecia e andava junto pela Rua Sete de Setembro, nos bares, na universidade. XICO SÁ A primeira entrevista que ele deu como diretor foi para mim, quando eu era repórter d’O Rei da Notícia. E viramos amigos, estávamos sempre lado a lado. Quando ele começou a fazer cinema, eu já era doido para ser escritor, mas estava consumido pelo trabalho nas redações. Passei um tempo infeliz na minha vida.
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CONTINENTE Mas por que Big jato? CLÁUDIO ASSIS Porque o livro fala de onde as pessoas são iguais, que não é na morte, porque, se você tem grana, adia sua morte. Todo mundo é igual na merda. Todo mundo caga. Mas o ser humano é o único que esconde suas fezes. XICO SÁ Essa é uma metáfora que está presente nas histórias e é sugerida o tempo inteiro no livro. Na boleia do caminhão, o menino pergunta para seu pai: “Papai, e os Beatles também fazem? O papa também?”. Ele vai
o cabeção. Se eu fizer um filme igual ao livro, então não fiz nada. Se não ousar, não vai sair nada. A certeza é uma merda. E só existe filme pronto na projeção. Até na mixagem você o muda.
CLÁUDIO ASSIS Lógico. Vai ter o dedo dele, todos os dedos dele no filme.
XICO SÁ Vou ficar feliz, quanto mais livre for a adaptação. Quando você lê um livro, fica imaginando mil maneiras de retratar uma cena, uma determinada passagem. Para mim, vou ficar satisfeito, se o filme for inteiramente maluco, a partir do livro. Meu gozo, a partir de agora, vai
CLÁUDIO ASSIS Me sinto à vontade para fazer um universo paralelo, completamente diferente. Nada a favor do livro, e olhe que é o livro mais cinematográfico dele, com diálogos pra cacete. Mas não tenho a menor solenidade com a obra. A história que estamos fazendo é o filme.
XICO SÁ O que ele mais pede é pitaco…
“Percebo que cada vez mais as pessoas saem comprando os direitos autorais dos livros, antes mesmo de saber se vão querer adaptar, só para garantir, só para castrar a liberdade”
aprendendo, de uma forma ingênua, jogando com o cotidiano deles, que é o de sair limpando as fossas do Sertão. É uma fábula sobre a igualdade.
ser acompanhar o tipo de loucura que viverão os personagens, como o filme vai lidar com eles. Quanto mais diferente for, vou me sentir um melhor autor.
CONTINENTE O livro é rico na descrição dos detalhes. Cada capítulo, mesmo com narradores diferentes, ora o menino, ora o tio que não gosta de trabalhar e termina preso, passa a sensação de uma história que pode ser narrada por imagens. É quase como se já fosse um storyboard. CLÁUDIO ASSIS Odeio storyboard! Acho aquilo uma burrice, uma estupidez. Vou ao contrário do storyboard. Porque, como é que eu posso desenhar ali uma cena toda antes mesmo de ir para o set filmar? Se eu soubesse, não estava fazendo. Não preciso endoidar
CONTINENTE Você tem participado do processo de escritura do roteiro? XICO SÁ Sim, a gente vem conversando. A roteirista é Ana Carolina Francisco, uma menina muito bacana, assistente de Hilton. Ela já fez duas versões, sempre discutindo, sempre partindo de uma provocação em cima da obra. E Hilton, na verdade, conhece a história antes de sair o livro, sabe das acochambrações dos personagens.
XICO SÁ Não tem nada intocado. Engraçado é que recebi várias propostas para adaptar livros meus antes, o cara chegava, conversava comigo, dizia que queria comprar os direitos, mas não andava. Eu não queria. E percebo que cada vez mais as pessoas saem comprando os direitos dos livros antes mesmo de saber se vão querer adaptar, só para garantir, só para castrar a liberdade, num processo bem mesquinho. Mas com Big jato é bem diferente. Aceitei o desafio porque sei que Claudão não vai ter pudor com o livro, não vai ter zelo excessivo. Vai com liberdade total. É outra história.
CONTINENTE Então Xico vai ser uma pessoa presente em todas as etapas, no set, inclusive?
CONTINENTE Cláudio, se alguém observar os créditos dos seus filmes, verá que vários nomes se
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naquele sertão, tinha todo tipo de doido, todo tipo de maluquice. Tinha gente como o príncipe Ribamar da BeiraFresca, que queria porque queria comer a Princesa Isabel. E ele sabia fazer um telhado sem bater um único prego, só encaixando as ripas e os caibros. Tem uma cena em que ele conversa com o menino em cima de uma casa, falando sobre mulheres e a vida, enquanto faz essa ciência de encaixar pedaços de madeira e pondo as telhas em cima. Essa, eu acho que vai ser bem interessante de se ver.
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repetem. Quem vai trabalhar com você agora? CLÁUDIO ASSIS Quem puder, quem quiser, todos que trabalharam antes, a mesma equipe. Só não vai ter Jones Melo porque ele morreu. Mas as pessoas que permeiam o universo de Cláudio Assis vão poder se juntar. Para os personagens, são os nomes de Matheus Nachtergaele, Irandhir Santos, Júlio Andrade, Juliano Cazarré, Dira Paes, Leona Cavalli, Kika Araújo… Na fotografia, Walter Carvalho, Lula Carvalho, Mauro Pinheiro Jr., Beto Martins. Vamos filmar no Vale do Catimbau, no sertão do Cariri
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plantavam. Depois, tiveram um comércio. Nossas origens se parecem, somos os dois do interior. O livro evoca um contexto que tem a ver com a migração em massa para as grandes cidades, que, aos poucos, vão ficando inchadas com essas pessoas que vêm do interior, saindo de suas pequenas cidades para tentar a sorte no Recife, como o menino. CONTINENTE É como vocês dois. XICO SÁ Pois é, como nós dois, que nos conhecemos no Recife e hoje estamos
“Vamos filmar no Vale do Catimbau, no sertão do Cariri e no Recife. E agora, no segundo semestre, vamos fazer um teste para escolher quem vai representar o menino”
Entrevista e no Recife. E agora, no segundo semestre, isso é importante, vamos fazer um teste para escolher quem vai representar Francisco, o menino. CONTINENTE Tem alguma passagem do livro que lhe atiça mais a curiosidade para ver o resultado no cinema? XICO SÁ Sim, sim, tem uma passagem que, para mim, melhor expressa esse universo todo de Big jato. Sempre me perguntam se é um livro autobiográfico e tal, e eu respondo que a parte da família do menino é totalmente mentirosa, fictícia, tem coisas da minha infância, mas tudo reescrito com o verniz da ficção. Agora, a parte mais alterada e abilolada do livro é a mais fiel. É absolutamente verdadeira. Porque ali,
CONTINENTE Para vocês, o que torna Big jato tão interessante, a ponto de ser um livro que vai virar um filme? CLÁUDIO ASSIS O livro fala da vida, do que todo mundo quer saber: de onde veio aquele menino? De onde nós viemos, de onde vêm as pessoas que hoje estão nas cidades? Quem somos nós? Temos uma responsabilidade política de mostrar isso. CONTINENTE Os dois, por coincidência, são do interior. Como eram suas famílias? CLÁUDIO ASSIS Meu pai era diretor de uma usina de asfalto, minha mãe era professora primária. XICO SÁ Meus pais eram pequenos agricultores, tinham uma roça,
aí, juntos, já vivemos tanta coisa. Agora, vamos fazer um filme. Posso até dizer que é um casamento. CLÁUDIO ASSIS A gente é irmão na vida, na luta. XICO SÁ Irmãos com liberdade afetiva. O que eu quero é que as pessoas vejam o filme e não saibam diferenciar onde está aquela passagem que eu escrevi do que foi inventando por Cláudio. Porque, é como eu disse, o próprio livro foi influenciado pelo filme que ainda nem existia. Eu chegava nos cantos, encontrava as pessoas nas mesas dos bares e contava a história desse livro que estava escrevendo, a maioria dizia: “Isso é a cara dos filmes de Cláudio Assis”.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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MAIS FUTEBOL
GEORGE ORWELL
Como o assunto é futebol, no online, reunimos arquivos de interesse na área. Primeiro, a íntegra do perfil do jogador brigão Almir Pernambuquinho (publicado na nossa edição 147), que será um dos homenageados da mostra Cinefoot. Depois, um artigo que conta a história de São Lourenço da Mata, que já foi uma das maiores produtoras de açúcar da região e agora abriga a Arena Pernambuco. Também, o documentário Chico Buarque: futebol, que traz depoimentos do compositor carioca sobre como começou sua paixão pelo esporte, que o leva a assistir a qualquer jogo, não importa se envolve ou não o seu time, o Fluminense.
Afora sua produção ficcional, o autor de 1984 foi grande ensaísta. Leia o texto Porque eu escrevo, publicado por ele em 1947, e vivencie a erudição simples do inglês.
Conexão
CANDOMBLÉ Veja outras imagens do livro A pessoa, o sagrado e o orixá, em que a fotógrafa Roberta Guimarães esmiúça o cotidiano religioso dos terreiros.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
DIÁRIO PESSOAL
CIDADES
EDUCAÇÃO
FOTOGRAFIA
Histórias da garota de programa que escolheu ser Lola
Empresas criam espaço para discutir soluções coletivas
Material acadêmico sobre instituições políticas disponibilizado pelo Cepesp
Portfólio da turca Nilgün Kara oferece paisagens silenciosas
lolabenvenutti.blogspot.com.br
ciudadesemocionales.org
cepesp.fgv.br
nilgunkara.deviantart.com
Não tem como deixar de comparar a história de Bruna Surfistinha (Raquel Pacheco) à de Lola Benvenutti (Gabriela Natália da Silva). Bruna, hoje ex-garota de programa, manteve um blog com relatos das saídas com seus clientes e de sua vida pessoal. Lola segue o mesmo caminho. Alimenta seu blog com fotos e histórias picantes. A diferença é que, no meio disso tudo, você pode encontrar uma dica de leitura, de filme ou de um CD. Formada em Letras pela UFSCar, Lola, nome escolhido como referência à personagem do livro Lolita, de Vladimir Nabokov, diz sem medo que é garota de programa e também que o faz porque gosta.
O Cidades Emocionais é um observatório de cidades em busca de soluções inteligentes para problemas diários. Formado por oito empresas, o foco do grupo é entender a evolução dos municípios e a forma como interagimos com eles. Para tanto, são etiquetados como assuntos de interesse: Habitat, Espaço Público, Sustentabilidade, Redes, Participação, Estilos de vida, Trabalho e Gente. Além disso, o grupo pode e deve ser usado como uma rede social, para troca de informações e para a construção de um debate sobre as cidades.
“Articulação intrapartidária e desempenho eleitoral no Brasil” pode ser um assunto de seu interesse. Se for, um artigo assim intitulado está disponível na homepage do Centro de Política e Economia do Setor Público. Criado em 2006, o Cepesp é o primeiro centro interescolar da Fundação Getúlio Vargas (SP). Com o objetivo de fomentar material acadêmico sobre instituições políticas, finanças públicas, economia regional e urbana e transporte inteligente, o centro conta com pesquisadores principais e associados. Além de artigos linkados nos textos para discussão, a página também conta com blog, banco de dados e links de interesse.
Hospedado no site colaborativo de arte DeviantART está o trabalho da turca Nilgün Kara, uma jovem de 27 anos que se apresenta como “fotógrafa experimental”. O que chama a atenção nas imagens que dispolinibiza é o bem equilibrado preto e branco, com destaque para as fotografias de paisagem. O portfólio de Nilgün nos remete aos melhores exemplares do gênero. Mas, ao contrário de mestres da lansdcape, cujas fotos nos levam à grandiloquência dos vastos espaços, Nilgün aponta a predisposição para atmosferas mais intimistas, solitárias. Ao invés do épico, climático. Visite também as fotos de Xavier Rey.
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blogs JARDIM jardimdevaranda.wordpress.com
Para quem mora em apartamento, parece impossível manter um pequeno jardim, ou mesmo uma hortinha. Mas a falta de espaço pode ser contornada quando se aprende a usar melhor os espaços. O Jardim de Varanda trata justamente dessa solução, oferecendo desde dicas de jarros a formas de dispor e tratar seu jardim.
151 MUSEUS EM UM SÓ LUGAR
HOMENS NO DÉCOR
Com a mesma tecnologia do Street View, o Art Project torna cômodo para aficionados de arte transitar por instituições de todo mundo, sem sair de casa
O blog Homens da Casa, criado pelo publicitário Eduardo Mendes, tem o propósito de mostrar que os homens também se importam com decoração, mas sem excluir possíveis leitoras. Com tutoriais e pequenos truques, você pode descobrir como gastar menos na reforma, decorar apartamento alugado ou construir seu próprio lustre, por exemplo.
homensdacasa.net
googleartproject.com
Pode parecer pouco atrativo visitar um museu de forma virtual. Também
pode levar à reação: “Ah! Isso não é novo!”. De fato, alguns museus já expõem parte de suas coleções em sites institucionais e até disponibilizam reproduções fotográficas de salas e obras. Mas nada disso é parecido com o Art Project, lançado pelo Google em 2011. Em parceria com 151 instituições, reúne mais de 30 mil obras de grandes museus em um só lugar. Usando a tecnologia trolley (a mesma usada no Street View) é possível andar pelas galerias do MoMa, em Nova York, e, em seguida, no Museu Van Gogh, em Amsterdã. Além disso, foram escolhidas obras para serem exibidas em gigapixel, através do qual é possível enxergar detalhes impossíveis a olho nu. Também existe uma área reservada para quem trabalha com arte-educação. Vídeos e textos de apoio ajudam professores a guiar seus alunos pelo site de forma proveitosa. Entre os museus brasileiros participantes estão a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte Moderna (MAM/SP) e uma seção especial com arte de rua da capital paulista (que foi censurada no Street View, por causa de direitos autorais). Mais do que qualquer coisa, o Art Project é um ótimo gesto pela propagação da arte. GABRIELA ALMEIDA
NOVOS REACIONÁRIOS soureacamastonamoda.tumblr.com
Já se foi o tempo em que ser reacionário era algo visto como negativo. Agora que a patrulha ideológica parece ter dado trégua, muita gente se orgulha em ostentar o título. No tumbler Sou reaça, mas tô na moda, você pode conhecer os novos rostos dessa “cena”.
sites sobre
Ve g e t a r ia n is mo RECEITAS
PORTAL
PROJETO
vegetarianaeagora.wordpress.com
vista-se.com
segundasemcarne.com.br
Além de espaço para compartilhar experiências sobre o estilo de vida vegetariano, o blog mostra receitas simples e práticas para o dia a dia.
De curiosidades a dicas de lugares para comer, o Vista-se é um portal sobre vegetarianismo e Direitos dos Animais com atualizações diárias.
O Segunda sem carne expõe os benefícios da vida sem tal porção comestível, propondo aos pretendentes ao vegetarianismo que excluam-na nas segundas-feiras.
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Custódio Coimbra
UM OLHAR SOBRE A turma da geral TEXTO André Teixeira
Muito se fala, analisa-se, discute-se sobre o que acontece dentro das quatro linhas de um campo de futebol, mas pouco – ou talvez menos do que se deveria – se comenta sobre o que acontece ao seu redor, nas arquibancadas. É ali, na frieza do concreto ou no conforto das poltronas das modernas "arenas", que se desenrola o verdadeiro embate entre alegrias e tristezas, ódios mortais e amores eternos, sorrisos e lágrimas fugazes ou duradouras. Um simulacro da vida, emoções e sentimentos espremidos em 90 minutos – e sempre com a chance da redenção ou a possibilidade da queda no domingo seguinte. É sobre esse universo que Custódio Coimbra lançou seu olhar arguto, afiado em mais de três décadas de batalha diária nos principais jornais cariocas. Ao longo de dois meses, passou por estádios em São Paulo, Porto Alegre, e, claro, pelo Maracanã, para produzir este ensaio. Como um bom torcedor, encarou chuvas torrenciais e calores senegalescos, espremeu-se entre multidões ou esparramou-se em cadeiras vazias, ouviu gritos e cantos, elogios e ofensas, dúvidas e certezas – um jogo à parte, em que a bola é mero detalhe. De costas para o campo, defrontou-se com uma multidão de personagens anônimos que contam, pela simples expressão do olhar ou pela firmeza do gesto, o que acontece naquele momento. Mãos servem para saudar, desenhar uma coreografia, ofender o adversário ou simplesmente esconder o choro. Nos rostos, a angústia com o jogo que não acaba nunca e a decepção pelo que não deveria ter acabado daquela forma estão claros, assim como o desespero com o ataque inimigo e o alívio do gol salvador. continente junho 2013 | 18
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Proeza de um fotógrafo acostumado, no dia a dia, a resumir sentimento e informação num único fotograma. Sempre com beleza e olhar crítico, desenvolvidos desde os 11 anos, quando passou a frequentar um clube de fotografia no Bairro de Quintino, no subúrbio carioca, e aprimorados ao longo dos anos; primeiro, na imprensa alternativa e sindical, depois, em jornais como Última Hora, Jornal do Brasil e O Globo, onde fotografa basicamente para as matérias especiais, publicadas aos domingos. Suas inspiradas imagens já lhe renderam prêmios, livros e exposições, além de estar presentes em galerias de arte.
Desnecessário falar de linhas, grafismos, enquadramentos. Sim, é tudo bem composto, equilibrado, elegante, mas poderíamos, dele, esperar o contrário? Vale, porém, destacar a capacidade de entrar, literal ou metaforicamente, na torcida. Seja do campo, armado de uma potente teleobjetiva, ou da própria arquibancada, com uma discreta lente curta, Custódio se insere na plateia sem interferir em suas ações ou reações, e as captura não apenas como um espelho do que rola no gramado – o que já não seria pouco –, mas como retratos do drama humano. Jogada de craque.
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AFEGÃS NO SKATE Há seis anos, o skatista Oliver Percovich desembarcava em Kabul, capital do Afeganistão, com o intuito de desenvolver projeto educativo, com jovens de 5 a 18 anos, de qualquer etnia ou religião. Em fevereiro de 2007, criou o Skateistan, no qual oferece oficinas e cursos variados, todos de caráter independente e apolítico. As aulas de skate tornaram-se a atividade favorita dos adolescentes matriculados, 50% deles moradores de rua. A curiosidade - e supresa para Oliver - é que 40% da garotada que participa do programa são meninas. A proposta do skatista e a adesão feminina podem parecer triviais, mas não em um país conservador e marcado pela desigualdade de gênero. (Gianni Paula de Melo)
Que tal parar de comer? A proposta de parar de comer não se trata do slogan de uma nova dieta mirabolante, desenvolvida para que se atinja uma perda de peso rápida. Na verdade, ela é seguida ao pé da letra pelo desenvolvedor de software norte-americano Rob Rhinehart, de 24 anos. Rob acreditou que seria possível viver de forma saudável o resto da vida, sem nunca mais ter de consumir nenhum tipo de alimento. Comer - para muitos, um grande prazer da vida - é, para Rob, nada mais que o simples consumo dos nutrientes essenciais para o funcionamento do corpo. Depois de muita pesquisa na internet e em livros de biologia, ele desenvolveu um coquetel asséptico, bege e sem cheiro, contendo todos os componentes nutritivos para uma dieta balanceada – e com apenas um terço de gordura – chamado soylent. É similar aos conhecidos shakes, porém, deve ser administrado em substituição a todas as refeições do dia, ao invés de apenas uma. Ironicamente, o nome do composto é o mesmo de uma bolacha produzida com carne humana que alimentava a população faminta do thriller sci-fi No mundo de 2020 (1973) (foto), de Richard Fleischer. Otimista ao considerar que sua invenção pode ajudar a combater a fome no mundo (pois pode ser produzida a partir de produtos de agriculturas locais, em grande escala), Rob garante que o seu soylent não possui nenhum ingrediente humano. OLIVIA DE SOUZA
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A FRASE
Balaio abaixo o sinal vermelho
Dá pra imaginar o trânsito recifense sem sinal vermelho? As congestionadas Conde da Boa Vista, Caxangá e Avenida Norte entregues à disciplina e ao espírito de integração de nossos altaneiros motoristas? Pois é o que preconiza, pelo Velho Mundo, o movimento Red Light Removal, que pede o fim do uso de semáforos e vem ganhando cada vez mais adeptos, exportando suas ideias para os EUA. Isso, pelo histórico de obediência e respeito aos sinais, faixas e leis de trânsito que foram se incorporando ao dia a dia dos europeus. (Luiz Arrais)
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“Há pessoas que são cegas para o contraste como há pessoas sem ouvido musical.”
Em história publicada recentemente, o professor de Ciência Política em Yale (EUA), James Scott, conta um caso que ilustra tal disciplina europeia. Na década de 1990, ao fazer um curso numa fazenda comunitária alemã, ele costumava dar passeios nas noites de sábado. Tinha que atravessar a pé uma longa estrada com pouco tráfego, porém sinalizada. Certa noite, ele esperava o sinal fechar junto a pessoas que ali se amontoavam e, como demorava, decidiu “furar” o sinal. A multidão lhe deu uma sonora vaia, seguida de xingamentos. Será que no Brasil a coisa seria do mesmo modo? Ou a multidão que espera é que levaria a vaia maior? (LA)
Ansel Adams, fotógrafo
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arquivo
ARTE NA CAPA do disco Muitos anos antes da MTV, a relação entre design e música já era destacada, graças, em grande parte, à empresa de design Hipgnosis, fundada por Storm Thorgerson, falecido no último 18 de abril, aos 69 anos. Amigo de juventude do guitarrista David Gilmour, Storm viria a realizar sua mais importante produção nas capas dos discos do Pink Floyd. Após a vaca de Atom heart mother, e o lóbulo cabeludo de Meddle, a banda pediu “algo mais elegante” para seu próximo disco, e assim nasceu uma das mais famosas capas de disco, a deThe dark side of the moon (acima). Ele também produziu boa parte dos filmes projetados durante as apresentações da banda, e dirigiu videoclipes. René Magritte foi a maior influência do designer, que se esforçou para firmar a expressão artística acima dos interesses comerciais - muitas de suas capas sequer contém o nome do artista ou grupo. Peter Gabriel, Led Zeppelin, T. Rex e até bandas mais recentes, como Muse, The Mars Volta e Biffy Clyro também foram agraciados com sua marcante colaboração. (Yellow)
CHICO xingado A paixão de Chico Buarque por futebol vem de criança. No período em que morou nos arredores do estádio do Pacaembu (SP), costumava assistir aos jogos e treinos das equipes. Após um desses, correu para acompanhar a saída do ônibus dos jogadores para ver se conseguiria, ao menos, um aceno. De uma janela do veículo, um jogador botou a cabeça pra fora e gritou para o pequeno torcedor fluminense: “Ei, babaca!”. O futuro compositor não entendeu o xingamento gratuito do craque, conhecido por seu comportamento desregrado dentro e fora do campo: Almir Pernambuquinho. Algumas décadas depois, o artista comporia Vai trabalhar vagabundo, na qual afirma “Deus permite a todo mundo uma loucura”. Para o boleiro e encrenqueiro pernambucano, que começou a carreira no Sport e, depois, ganhou fama no sudeste, foram permitidas várias delas. (Débora Nascimento)
A taça do mundo é nossa? Para quem está beirando ou passou dos 50 e não recebeu ainda a visita do “alemão”, a frase do locutor Ivan Lima, do Escrete de Ouro da Rádio Clube de Pernambuco, ao fim das jornadas esportivas dos domingos, ainda soa familiar: “Torcedor, não esqueça, a Jules Rimet é nossa pra sempre!”. Infelizmente, a realidade é outra, e muito lamentável. A taça, criada para premiar quem vencesse a Copa do Mundo de Futebol, seria entregue à seleção que ganhasse o campeonato três vezes. E o Brasil, apesar do fiasco de 1950, em pleno Maracanã, quando entregou a Copa aos uruguaios de maneira vergonhosa, recuperou-se e, em 1958, 1962 e 1970, com jornadas inesquecíveis, botou o caneco debaixo do sovaco e o trouxe para o país. Tempos depois, aconteceu o inesperado. Em 1983, roubaram o rico troféu, que estava exposto em uma sala na CBF. Quer dizer, surrupiaram o original, porque a réplica estava segurinha, dentro do cofre! A redoma de vidro à prova de balas que protegia a taça original era presa a uma parede de tijolos vulnerável a bandidos. Bastou um pé de cabra, porque com negligência e malandro brasileiro não há quem possa. Os ladrões foram presos, mas a taça sumiu. Dizem que foi derretida e virou barras de ouro. Resta-nos a réplica. Na Copa de 1966, na Inglaterra, a taça foi também roubada, só que achada em um jardim, por um cachorro chamado Flicts. LUIZ ARRAIS
fEia, eu?! Após terem sido publicadas imagens da performance de Beyoncé no último campeonato Super Bowl, nas quais aparece fazendo caretas e em poses engraçadas, a cantora vetou a presença de fotógrafos em sua atual turnê. O único material do tipo permitido são fotos feitas por sua equipe, que, após cada show, disponibiliza takes em que a musa está bela, sexy, perfeita. Já em 2011, a cantora Lady Gaga tinha dado mau exemplo, exigindo que os fotógrafos assinassem documento cedendo os direitos de suas imagens. No ano passado, Bob Dylan, cuja relação arisca com a imprensa é antiga, não liberou credenciais para fotógrafos em seus shows. Esses são casos que apontam para o veto às boas imagens de palco, como as memoráveis de Bob Gruen. (DN)
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Por trás de um grito de “gol!”, o ato de torcer por uma equipe de futebol esconde um comportamento de significado muito mais complexo do que apenas “acompanhar o time do coração” TEXto Álvaro Filho FOtOS Jarbas Araújo Jr.
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con esPecial ti nen te IMAGeNS: reprodUção
É sempre assim, desde o longínquo 21 de dezembro do ano da graça do Senhor de 1971: precisamente às 19h9, os torcedores do time argentino do Rosário Central param o que estão fazendo e, independentemente de onde estejam – emperrados no trânsito, relaxados no cinema, num descontraído happy hour, ou pior, em pleno serão no escritório –, levantamse e, solitários ou em grupo, gritam: “gol!”. Não há um estádio por perto, muito menos uma partida, tampouco algum jogador de futebol ou uma mísera bola. Aparentemente, é um urro descontextualizado, quase um surto psicótico, mas que, além das aparências, traduz em poucas letras e altos decibéis a força de uma paixão que dura a vida 1 na cHina Conta-se que o futebol surgiu no século 3 a.C. 2 na ingLaterra As regras do esporte só foram universalizadas em 1848
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inteira e é repassada de gerações em gerações até todo sempre, amém. A cena – que se repete, religiosamente, há mais de 40 verões e ganhou o status de o gol mais longo da história – é uma homenagem ao atacante Aldo Pedro Poy que, nos referidos dia e hora, usou a cabeça para que o Rosário, da província de Santa Fé, derrotasse o eterno rival Newell’s Old Boys e avançasse rumo à final do Campeonato Argentino, conquistando, em seguida, o primeiro título de sua história. É apenas mais um dos fatos que compõem os muitos episódios que evidenciam a paixão dos argentinos pelo futebol, como a criação da Igreja Maradoniana, dedicada ao ídolo-mor do esporte no país, Diego Armando Maradona, e que acolhe seus novos fiéis numa cerimônia de batismo que revive o gol de mão de El Pibe contra a Inglaterra, na Copa do México, em 1986, gesto que foi eternizado como la mano de Dios. Mas a paixão do torcedor pelo futebol não é exclusividade de uma nação, povo, credo ou cor. É talvez o sentimento mais universal do planeta, percebido da mesma forma e intensidade por gregos, troianos e brasileiros, a partir do exato momento em que a bola começa a girar com um jogador correndo atrás dela. Tão arraigado e natural, que se leva a crer que é atávico ao homem, um registro ancestral em nosso DNA, desde os tempos em que os chineses bateram a primeira protopeladinha de que se tem notícia, dois mil anos antes de Cristo. Mas não é. O pesquisador catarinense Arlei Damo, doutor em Antropologia do Esporte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lembra que o ato de torcer, como nós o conhecemos, é muito, mas muito mais novo. Não tem nem 100 anos. “O torcedor é uma invenção do século 20, um termo cunhado para definir aquele que acompanhava o futebol”, explica Arlei Damo. “Aqui, no Brasil, esse personagem só foi aparecer dos anos 1930 em diante, no Estado Novo, com Getúlio Vargas.” Não é de se estranhar, afinal, o futebol competitivo (e com ele, a
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possibilidade de seu time ganhar ou perder), historicamente, é também um recém-nascido. As regras só foram universalizadas em 1848, na Inglaterra, apoiadas pelos avanços tecnológicos que surgiram com a Revolução Industrial, que permitiram a demarcação do campo de jogo com precisão métrica, a contagem do tempo graças ao cronômetro e até a aferição do peso da bola, patrocinado pela descoberta da vulcanização por Charles Goodyear, em 1872. O prosaico apito só seria usado pelos árbitros oito anos depois.
corrente Hereditária
A nomeação do ato de torcer pode até ser nova, mas é em outros sentimentos mais antigos que ele procura abrigo. E de abrigo o arquiteto pernambucano Cristiano Borba entende. Doutorando em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco, ele estuda a relação dos torcedores com os equipamentos esportivos, os estádios de futebol, em bom português. Para ele, torcer é fazer parte de uma corrente hereditária, na maioria das vezes, com vínculos familiares. “Torcer por um time é manter esse laço, quase sempre estabelecido em nossa sociedade machista com o pai ou outro parente do sexo masculino”, explica, bebendo numa teoria evidenciada pelo já citado
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3 máscara Um dos ritos do torcedor é vestirse completamente com as cores do seu time, incorporando-o 4 educação no campo Crianças são levadas aos estádios desde cedo, gesto que explicita o desejo dos pais de formar adeptos um só corpo 5 Na arquibancada, público forma um sólido bloco de vibração pelo seu time de coração
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Arlei Damo, que classificou esse culto ao ancestral como uma forma de “totemismo moderno”. Cristiano vai mais longe. Segundo ele, a identificação de um torcedor com um time se estende para o estádio. “É para lá que ele ruma em todas partidas, que se sente em casa. A torcida estabelece laços de afetividade com o lugar, sabe como se localizar nesse espaço e como se comportar durante a dinâmica do jogo, na hora da entrada do time, quando sai o gol e até para reclamar do juiz”, explica. Puxando pela memória, ele não consegue estabelecer outro tipo
Antropólogo divide os torcedores em dois grupos não excludentes: os nacionalistas e os clubistas de relação com a mesma intensidade. “Talvez, do fiel com a paróquia, mas acho que, no caso do futebol, vai mais além, pois o torcedor não se sentiria à vontade em qualquer outra ‘igreja’”, explica. O antropólogo Arlei Damo divide os torcedores, basicamente, em dois grupos, não necessariamente excludentes: os nacionalistas e os clubistas. No primeiro, estão os que torcem pela seleção do país, aproveitando-se de sentimentos preexistentes, como o conceito de pátria. “O segundo não, obedece a vínculos parentais, geralmente. E essa amálgama sentimental explica um pouco o porquê de dificilmente um torcedor trocar de time, afinal não existe um ex-pai, ex-irmão ou ex-avô”, argumenta, referindo-se ao “vira-
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6 Hooligans Torcedores ingleses são conhecidos pela violência nos estádios
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casaca”, personagem tratado no universo futebolístico com um certo desprezo por ter deixado, como afirma o gremista Damo, o “barco da família à deriva”. Nacionais, clubistas, fiéis ou traidores, todos os torcedores carregam em si, como elemento primordial e comum, o sentimento de estarem numa disputa. Uma sensação que entrou em campo quando o futebol abandonou o caráter meramente lúdico e passou a ser encarado como uma competição, na virada do século 19 para o 20, repetindo dentro das quatro linhas os valores caros ao capitalismo, como a necessidade de burocratização (criação das regras e de uma instituição de controle, no caso, a Fifa), divisão de tarefas (cada jogador tem uma função no time) e a valorização do funcionário mais eficiente (ou seja, o craque), entre outros. “Há muita coisa em jogo”, adverte o antropólogo alemão Martin Curi, radicado no Brasil. Doutor pela Universidade Federal Fluminense, esse torcedor do Bayern de Munique acredita que o estádio é uma espécie de palco onde o jogo das relações entre as pessoas na sociedade continua a ser jogado. “Cada time carrega uma identidade com valores extracampo e os torcedores que se associam a ele costumam, mesmo de forma não consciente, comungar desses ideais e
lutam por ele”, observa, lembrando os casos clássicos de rivalidades políticas na Espanha – como os catalães do Barcelona e os bascos do Atlético de Bilbao –, e religiosas, no embate sangrento entre os católicos do Celtic e os protestantes do Rangers, na Escócia.
VIOLÊNCIA
Para Arlei Damo, a violência é inevitável. “Uma partida de futebol parte da igualdade para a desigualdade, gerada por uma diferença de performance, e essa cisão provoca um grau de tensão”, afirma, lembrando que nem sempre os gestos de violência são físicos. No caso do futebol, eles podem ser traduzidos em insultos e gestos. Martin Curi diz que até mesmo os torcedores “pacíficos” costumam delegar aos violentos o trabalho sujo, em outras palavras, apoiando veladamente a ação de componentes mais violentos, como os hooligans ingleses ou as torcidas organizadas brasileiras. Curi lembra, porém, que nem toda manifestação aparentemente violenta nas arquibancadas é um sinal de violência. “Há torcedores que gostam de ficar sentados nas cadeiras, confortáveis e com a sensação de segurança; e outros que preferem ficar em pé, atrás do gol, pulando e gritando, sem necessariamente brigar.
E as duas formas de torcer são válidas”, explica, lembrando que o modelo de arenas adotado pelo Brasil para serem construídas, visando à Copa do Mundo de 2014, pode acabar extinguindo o segundo grupo de aficionados. “Costuma-se dizer que é um padrão europeu, mas não é verdade. Na Alemanha, há uma área, geralmente atrás das traves, para quem quer torcer em pé, no meio da bagunça”, diz. O antropólogo alemão crê que o Brasil “comprou” mesmo foi o modelo inglês que, apavorado com o hooliganismo, aboliu as classes populares dos estádios, em nome de arenas modernas, seguras e, consequentemente, proibitivas, quando o assunto é o preço do ingresso. “E quem faz o futebol brasileiro caminha também para seguir a mesma linha e excluir um tipo de torcedor que erroneamente é tido como violento, mas que, em sua maioria, é apenas feliz”, teoriza. O arquiteto Cristiano Borba assina embaixo. Para ele, as arenas, ao contrário dos estádios tradicionais, são impessoais. “Construídas para serem familiares a qualquer torcida, mas não a sua”, justifica ele, torcedor do Náutico e que, desde março deste ano, trocou o estádio dos Aflitos pela Arena da Copa, em São Lourenço da Mata, novo “lar” alvirrubro. Neste junho, seis capitais do Brasil – Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasília, Salvador, Recife e Fortaleza – começam a sentir o gostinho de Copa do Mundo, com a realização da Copa das Confederações, que reúne, além da anfitriã, as melhores seleções dos cinco continentes e a atual campeã do mundo, a Espanha. Mais do que um aperitivo para o Mundial, é uma oportunidade para que os organizadores testem os sistemas de receptivo turístico, mobilidade e segurança urbana, além de toda a logística que envolve as novíssimas arenas. Uma chance também para perceber se o torcedor do terceiro milênio é realmente diferente daquele do século passado e se os gritos que se ouvirão na arquibancada terão menos paixão e decibéis que o eterno e inexplicável “gol!” berrado pelos fanáticos hinchas do Rosário Central.
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crenças A fé move montanhas… e bolas de futebol TEXto Álvaro Filho fotos Jarbas Araújo Jr.
O atacante do seu time se benze, o goleiro adversário abaixa a cabeça numa oração solitária, enquanto o juiz faz o sinal da cruz. Ao seu lado, na arquibancada, um torcedor se ajoelha para uma promessa que, provavelmente, não conseguirá cumprir. Mesmo de longe, você vê o técnico, lá embaixo, cruzando os
dedos numa figa. O massagista beija uma medalhinha com a efígie de uma santa. No camarote da presidência, o dirigente pega o celular, liga para o babalorixá de confiança e faz um pedido que envolve sacrifício animal. Vale tudo. É decisão de campeonato. Quarenta e cinco do segundo tempo. A bola está na cal, na marca do pênalti. A
fé move montanhas, mas será capaz de empurrá-la para dentro ou fora do gol? É a pergunta que vale um milhão de dólares. O jornalista e ex-técnico da Seleção Brasileira, João Saldanha, disse certa vez que, se macumba ganhasse jogo, o Campeonato Baiano terminava empatado. Mas isso não evitou que o Náutico, durante a campanha do histórico hexacampeonato, em meados da década de 1960, contratasse um pai de santo para fazer frente ao número excessivo de baianos no elenco do rival Sport. O título veio e o trabalho de Pai Edu foi reconhecido pelos cartolas com “bicho” pela conquista, faixa de campeão, volta olímpica e foto oficial. Cinco décadas depois, no início de 2013, o Santa Cruz, além de nutricionistas, fisiologistas, massagistas, médicos e preparadores físicos, requisitou também os serviços de um padre, durante sua prétemporada, no pequeno município de Sairé, no interior de Pernambuco, que benzeu o elenco e os materiais esportivos. Dois dias depois, o religioso trocou a batina pela camisa tricolor e assistiu, da arquibancada, ao Santinha vencer o amistoso contra o Porto de Caruaru. Mas, se a ajuda divina vai ser suficiente para o time sair do “inferno” da Terceira Divisão, só o tempo dirá. Certo, mesmo, é que os católicos levam vantagem nas disputas pela taça, ou Santo Graal, da Copa do Mundo. Com os títulos somados do Brasil, da Itália, Argentina, França, Espanha e do Uruguai, ganham de goleada contra os protestantes Alemanha e Inglaterra: 15x4. Se bem que o status de ser católico nunca ajudou o Vaticano, “lar” do papa e berço da Santa Sé, a ter, inclusive, uma seleção para disputar uma vaga num Mundial. Em matéria de influência divina, por sinal, o islã também passou em branco, apesar dos mais de 1,3 bilhões de seguidores. E o que dizer da Índia? E da China? Quase dois bilhões de adeptos do hinduísmo, xintoísmo e budismo e nada mais do que a parte de baixo do ranking de seleções da Fifa. A falta de uma prova concreta de que a religião é capaz de promover o milagre da multiplicação de gols e títulos não impede, porém, que os torcedores se comportem como verdadeiros fanáticos religiosos. O
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7-9 mandinga e reza Cada torcedor se agarra à religião a que pertence pela vitória de seu time
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caso mais emblemático acontece na Escócia, com a bipolarização entre os católicos do Celtic e os protestantes do Rangers, ambos de Glasgow. O dia em que acontece o clássico entre os dois, o Old Firm, costuma ser o mais violento do ano no país. No livro Como o futebol explica o mundo, o jornalista Franklin Foer registra que a procura pelos hospitais em Glasgow é cerca de nove vezes maior em dias de Old Firm e, não raro, os incidentes terminam em morte. Para se ter uma ideia, ele cita o caso de um torcedor do Celtic que morreu, ao ser atingido por uma flecha no peito, após um clássico. E não foi na Idade Média, mas em 1999. Apesar do acirramento entre as partes, o lado protestante costuma ter jogadores católicos no elenco, e vice-versa. Esse tipo de comportamento que mistura o meio-campo entre futebol e fé vem intrigando os pesquisadores. O professor de História Social da
O estádio segue como uma espécie de altar dedicado ao deus do futebol, a quem se promete até sacrifícios em troca da vitória Universidade de São Paulo, Hilário Franco Júnior, dedicou boa parte de sua pesquisa ao assunto, no livro de sugestivo título A dança dos deuses, uma verdadeira bíblia para quem quer entender um pouco mais sobre os vários aspectos que envolvem o futebol. Nele, Hilário sugere que a industrialização e o tecnicismo rebaixaram um pouco a importância das religiões tradicionais, mas, como sempre é preciso crer em algo para preencher o “vazio espiritual”, há quem tenha substituído as antigas divindades por times de futebol.
Ainda segundo Hilário, isso explica, em parte, todo o repertório religioso que envolve o universo futebolístico, com defesas que, de tão difíceis, são milagrosas, gols improváveis, ao ponto de serem espíritas, camisas e uniformes tratados como mantos sagrados, e estádios que, de tão místicos para os torcedores, se transformam em templos ou catedrais. Sem falar nas estátuas erguidas em homenagem aos jogadores que fizeram história no clube, não por acaso elevados ao patamar de ídolos que, assim como os deuses mitológicos gregos, vivem eternamente no panteão... da bola. Fanatismo ou não, parece estar longe o tempo em que a religião vai tirar o time de campo. Se isso acontecer um dia, claro. Enquanto isso, o estádio segue como um verdadeiro altar dedicado ao deus do futebol, a embalar fiéis seguidores em cânticos e orações, exigindo, às vezes, até o sacrifício humano (na maioria delas, o humano com a camisa da equipe adversária) na promessa do paraíso de ser campeão. Até porque, quem nunca apelou para os céus na hora de o time do coração marcar ou defender um pênalti, numa final de campeonato, que atire a primeira pedra.
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CLEMILSON CAMPOS / JC IMAGEM
a DISTÂNCIA Os jogos pelo controle remoto
Cada vez mais, torcedores preferem assistir às partidas pela TV, tendo a internet como veículo para manter-se a par das informações sobre seus times texto Ivan Moraes Filho
É de Vinicius de Moraes a frase: “Amar é querer estar perto, se longe; e mais perto, se perto”. O Poetinha é um dos que melhor trouxeram para a arte as ilusões e desilusões do amor romântico, da proximidade, do toque. A necessidade de dividir o mesmo espaço com o ser amado classifica essa forma de relação. Botafoguense, Vinicius não era um
fanático torcedor, nem presença nas arquibancadas ao alvinegro. Era de maneira constante – e remota – que se relacionava com seu time do coração. Num país – e num estado – em que o futebol desperta paixões mesmo em quem não se interessa por esporte, nada mais natural que a maioria dos aficionados não frequente as
arquibancadas e adote outras formas de, digamos, amar. Uma pesquisa da Pluri Consultoria, realizada em 2012, afirma que, juntos, Sport (2, 2 milhões), Santa Cruz (1,4 mi) e Náutico (0,8 mi) têm 4,4 milhões de torcedores. Números do IBGE, divulgados no mesmo ano, são convergentes: a maior parte de quem escolheu um time de futebol para chamar de seu não pode ser vista levando baculejo da polícia nos campos. Tem gente que não frequenta o estádio porque mora fora da cidade – ou do país. Há quem tenha sido afastada deles por conta da violência, do aperto, da má qualidade do futebol ou da lei seca que proíbe a cervejinha no intervalo da pelada. Ou mesmo os torcedores de paixão duvidosa, que simplesmente acreditam que têm programas melhores para fazer no domingo à tarde. “Sou tão apaixonado quanto qualquer torcedor. Acompanho as notícias, procuro saber os resultados.
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divulgação
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Apenas não curto ir a campo”, afirma Leo Crivellare. Torcedor do Sport, o diretor de audiovisual nem lembra a última vez em que pôs os pés na Ilha do Retiro. “Não me sinto à vontade na multidão, sempre acho que pode acontecer alguma coisa errada. Além do mais, prefiro mesmo assistir às partidas pela televisão. Há mais câmeras, replay, essas coisas. Na arquibancada, às vezes, você vai conversar e acaba perdendo o melhor momento do jogo.” “A vantagem de ficar em casa é de sentar-se com o conforto que os estádios não têm, e tomar uma cerveja sossegado”, argumenta o jornalista Eduardo Guerra, doente pelo Santa Cruz que, desde 2005, não põe os pés no Arrudão. “Como é que vou levar meus filhos a uma partida de futebol e passar todo o tempo na tensão, pensando na segurança deles, sem prestar atenção ao jogo?” questiona. Há quem alegue motivos emocionais para continuar amando a distância, como é o caso da cineasta Andrea Ferraz, ex-ferrenha integrante das fileiras tricolores. “Deixei de ir porque senti que ficava com o humor muito alterado. Não estava me fazendo bem. Ia a campo porque amava estar no meio da torcida, sentindo o calor e, sobretudo, os picos de emoção. Da alegria à tristeza, em minutos. Isso me
Há quem tenha se afastado dos estádios por conta da violência, do aperto, da má qualidade do futebol ou da lei seca alimentava. Com o tempo, esse estado começou a me perturbar mais do que alimentar. Parei, há uns seis anos”. Andrea permanece defendendo sua equipe, sofrendo junto, fazendo cara feia para quem disser que sua torcida não é a maior de Pernambuco. Mas não compra mais ingresso. “Torcer a distância deve ser como amar a distância. A gente acompanha o outro de longe, alegrandose e sofrendo com os destinos traçados. A gente se mobiliza, cria esperanças, sonha e fantasia, mas se protege também. A distância é uma proteção.”
FORA DO BRASIL
“Na verdade, a paixão aumentou com a distância”. Quem diz isso é o vendedor Lynésio Augusto, há 12 anos morando entre Portugal e Espanha. Frequentador de sites sobre futebol e fóruns virtuais, em que se discute assuntos relacionados ao Sport, o expatriado recebe de bom grado as novas tecnologias.
“Logo que me mudei do Recife, a coisa era muito difícil. Aos poucos, fomos conseguindo ouvir rádios pela web e, agora, muitos jogos já são transmitidos por canais internacionais de TV por assinatura. Não perco um”, garante o torcedor. Dono de uma vasta memorabilia rubro-negra (com toalhas, DVDs, camisas e moletons), o aficionado só voltou ao Recife duas vezes em todos esses anos. Na Ilha, só conseguiu estar uma vez. “Assisti Sport 0x0 Salgueiro. Um jogo horrível, verdadeira pelada. Mas valeu a pena.” Desde 2007 morando em Montreal, no Canadá, o administrador João Paulo Leitão também confia na internet para ficar por perto do seu Náutico. “Dá para ler à vontade sobre o time, debater com outros torcedores, opinar em sites, blogs”. A maior dificuldade é para assistir a jogos ao vivo, quando a única alternativa é recorrer a sites que pegam “emprestadas” imagens da tevê e transmitem por streaming. “É difícil achar sites para ver os jogos com qualidade de imagem razoável. Tenho uns sete sites nos favoritos, para sempre ter certeza de que vou achar o jogo. Pior é quando trava a imagem, e você perde lances da partida.” Torcedores no “exílio”, como Lynésio e João Paulo, acabam também servindo
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10 leo crivellare Videasta evita ir ao campo por conta da multidão. Acompanha as partidas pela TV 11 j oão paulo leitão Radicado no Canadá, ele conta que usa a internet para assistir a jogos e ler notícias 12 a ndrea ferraz Tordedora deixou de ir a campo porque ficava com o humor muito alterado
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como “embaixadores informais” de seus clubes no exterior. “Ando sempre com a camisa do glorioso. Os gringos daqui sempre perguntam que time é e, hoje, toda a vizinhança conhece o Timbu por minha causa”, diz Leitão. Lynésio não se contenta em desfilar e tirar fotos com o uniforme do Leão. “Dou muitas camisas de presente aos meus amigos. Por minhas mãos, já tem gente divulgando o Sport em Portugal e até em Moçambique”, orgulha-se. Nem todo mundo lida com a distância tranquilamente. Atuando há cerca de nove meses como juiz trabalhista, em São Paulo, Leonardo Burgos não esconde sua tristeza em estar longe do Santinha. “Sempre procuro marcar minhas vindas ao Recife levando em conta os finais de semana de jogo no Arruda.” O tricolor é daqueles que pegam ônibus de madrugada para ir ver o time jogar em Mossoró, pela série C e, agora, conta os dias para poder acompanhar, em Campinas, o embate contra o Guarani, no segundo semestre. “Vou, com certeza. Assim como fui, também, com alguns amigos, assistir ao jogo entre Santa e São Raimundo pela Copa São Paulo de Futebol Junior, em Sumaré, a 115 quilômetros da capital.” Burgos tem mais de 15 camisas do Santa, mas não pode vestir no trabalho, nem costuma usar nos dias em que
Torcedores no “exílio” acabam também servindo como “embaixadores informais” de seus clubes no exterior o time não joga. “Sou um torcedor discreto”. Se o Santa está em campo e a partida não for transmitida pela TV, a discrição transforma-se em agonia. “Não tenho coração para acompanhar pelo rádio, nem pelo celular.” A tensão é tanta, que, em 2012, enquanto seu clube goleava o Águia de Marabá por 6x1, pela série C do Brasileirão, isolou-se do mundo. “Desliguei o celular e fui ao cinema sozinho.”
EM BUSCA DE GENTE
Diferentemente do relacionamento amoroso, em que os encontros a dois são os mais ansiados, a paixão pelo futebol normalmente requer muita companhia. Exclusividade no relacionamento é a última coisa que deseja quem costuma gabar-se de ter a maior torcida – nem que seja a do quarteirão. “Num jogo contra o Brasiliense, em 2010, o Náutico precisava vencer para permanecer na segunda divisão. Eu
estava nervoso, gritava sozinho na frente do computador, foi um sufoco, mas ganhamos”, lembra João Paulo Leitão, que, naquele momento, não teve com quem comemorar. “A única vantagem de torcer fora do Recife é que, quando a gente perde, não tem ninguém pra tirar onda. Em compensação, quando ganhamos, é chato comemorar sozinho”, diz Burgos. Talvez, por isso, quem tem a oportunidade de ir a um jogo de seu time fora de casa, não desperdiça a chance. No tempo em que morou em São Paulo, o executivo rubro-negro Leonardo Mamede (que hoje vive na Suíça) perdeu a conta de quantos jogos frequentou, tanto na capital quanto no interior paulista. “Tive a oportunidade de ir a Jundiaí, Itu, Campinas, Santo André, São Caetano, Bragança Paulista, Santa Bárbara do Oeste, Mogi Mirim... O interessante é que você reencontra várias figuras do Recife nesses jogos e começa a formar uma torcida de ‘expatriados’”. Em comum, os “torcedores remotos” têm a internet não só para se manter a par das informações sobre seus times, mas também para se sentirem juntos de outros torcedores e zoar os adversários. Longe da tensão e dos estádios, também parecem alheios às confusões causadas por grupos intolerantes que protagonizam cenas de violência acontecidas nas suas proximidades. Viajando a trabalho pelo interior da Paraíba, Leo Crivellare teve uma companhia insólita para acompanhar a final do Pernambucano de 2012, quando o seu Sport perdeu para o Santa Cruz. “Estava de folga, passeando no município do Congo, quando vi um cara com a camisa tricolor, ouvindo o jogo pelo rádio. Cheguei perto e me apresentei, disse que era rubro-negro, que queria saber da partida, que estava em paz. Ficamos juntos na torcida, um contra o outro, na maior tranquilidade. No final, ele saiu feliz e eu triste. Mas ficamos amigos.”
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COBERTURA Entre torcer e trabalhar
Como os jornalistas e cronistas esportivos cultivam a tão discutida imparcialidade, escondendo ou declarando para que time torcem TEXto Inácio França
Em qualquer outra área do
jornalismo, repórteres e editores reagem automaticamente, quando questionados se conseguem manter a imparcialidade a despeito de suas convicções políticas, interesses pessoais ou afetivos. A maioria dos jornalistas invoca a objetividade como critério para identificar o que é notícia ou o que deixa
de ser, mesmo que sejam desmentidos diariamente pelos seus próprios textos. Hoje, em Pernambuco, a neutralidade da cobertura de futebol parece ser prérequisito para garantir os ossos no lugar. As palavras de Rodrigo Raposo, repórter da Rede Globo e narrador do canal Sportv Premiere, dão a dimensão do quanto é importante não transparecer
simpatia por qualquer um dos três rivais pernambucanos: “Por dinheiro nenhum do mundo, digo por qual time eu torço. Na rua, não canso de escutar a pergunta ‘qual seu time?’. Para quem expõe a própria imagem, lidar com torcedor de futebol é muito arriscado”. Antes de trabalhar na televisão, Raposo passou por cinco emissoras de rádio, mas só depois que chegou às telas passou a sentir a fúria dos torcedores. “Certa vez, nos Aflitos, um homem nas sociais me xingava tanto, que me vi obrigado a interromper uma gravação e fui lá encará-lo. Perguntei se ele queria resolver o problema comigo. Sei que errei, corri um sério risco, mas os gritos do sujeito estavam me atrapalhando.” José Gustavo Silva nunca bateu boca com torcedor, mas se orgulha de ter brigado com dirigentes dos três clubes da capital. No Santa Cruz, o ex-presidente Romerito Jatobá ameaçou impedir sua entrada no Arruda, insatisfeito com
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Rodrigo Lobo/JC Imagem
13 dia de jogo Fotógrafos e repórteres possuem áreas especifícas para trabalhar no campo
Pernambuco, Carlos Lopes dá uma pista para os torcedores mais curiosos: “Os jornalistas esportivos revelam involuntariamente por qual time torcem na hora da crítica e não do elogio. Se a crítica for mais ácida do que o habitual, pode ficar certo de que ele torce por aquele time que está mal das pernas; então, ele critica porque não pode ficar xingando o técnico ou o cartola pelo microfone. Eu mesmo, admito, sou tão duro na hora de criticar meu time, que os leitores mais assíduos do blog já perceberam que sou tricolor”. Lopes foi o único dos entrevistados a revelar seu time. Mesmo assim, ele garante que não é tão difícil relatar honestamente aquilo que viu nos jogos e escutou de jogadores, treinadores e da própria torcida. “Quando comecei na profissão, entendi imediatamente que, ou fazia meu trabalho para receber o salário no final do mês, ou ficava torcendo na arquibancada.” Profissional de rádio há 33 anos, o narrador da Rádio Clube, Bartolomeu Fernando, nunca ficou angustiado ou constrangido em gritar gol do Náutico, Santa Cruz e Sport. Ele torce pelo Fluminense. “Lá em Venturosa, não pegavam as rádios do Recife, só a Rádio Globo e a Nacional, do Rio de Janeiro.”
DISTÂNCIA APARENTE uma série de textos publicados no Diario de Pernambuco, sobre os erros cometidos durante o Brasileirão 2006, que resultou no rebaixamento para a série B. “Quando entendeu que o jornal iria triplicar as matérias negativas, se insistisse na proibição, ele liberou minha entrada, dizendo que ‘não aconteceria nada comigo’. Vê se pode!” Editor-assistente do mesmo jornal e comentarista da Rádio Clube, José Gustavo defende que a relação com o público seria mais honesta, caso os profissionais da imprensa esportiva revelassem seus times de coração. “Quando qualquer diretor pergunta qual é meu time, eu digo na hora, respondo sem medo. O que vai fazer você ser respeitado é a qualidade do trabalho.” Apesar de suas convicções, ele evita revelar o time publicamente, por temer a violência das torcidas organizadas. Editor do Blog de Primeira, site integrante do portal da Folha de
Longe do cotidiano da cobertura esportiva, a professora de Comunicação da UFPE, Yvana Fechine, afirma que a neutralidade é um objetivo impossível em qualquer área do jornalismo. “Qualquer olhar é interessado ou situado a partir de classe social, do gênero ou repertório cultural de quem olha. A prática jornalística gera efeitos de objetividade, quando se aplicam estratégias de linguagem – ao não se usar o ‘eu’ e ‘nós’ nos textos, por exemplo – que garantem uma aparência de distanciamento. Mas são estratégias de linguagem, o olhar é sempre interessado”, explica Fechine. Quando Gabriel Accetti nasceu, há 31 anos, Claudemir Gomes já cobria futebol, há quase uma década, na equipe comandada por Adonias Moura no Diario de Pernambuco. Representantes de gerações diferentes, ambos discordam da professora Yvana e garantem que, no jornalismo esportivo, a paixão pode ser mantida à margem. O motivo é
surpreendente: o ambiente do futebol profissional é tão corrupto, tão cheio de intrigas, que as paixões clubísticas não duram muito tempo. “Você vê tanta sacanagem, que acaba percebendo que não adianta nada torcer. No futebol, só existe um inocente. Sabe quem é? O torcedor”, assegura Claudemir, a meio caminho entre a amargura e a resignação. Com a experiência de quem já foi repórter, editor e atualmente apresenta o programa Esportes no canal 11, da TV Universitária, e é colunista da Folha de Pernambuco, ele conta que, independentemente da corrupção, aprendeu os truques para garantir longa vida na profissão com seu primeiro chefe, Adonias Moura. Segundo ele, Moura perguntava aos candidatos à vaga de repórter por qual time torcia. Se o jovem afirmasse não torcer por time nenhum, perdia a chance de conquistar o emprego. “Ele dizia
Jornalistas esportivos podem revelar, sem querer, seus times, quando criticam mais do que elogiam os desempenhos deles que a gente só faz bem aquilo de que gosta. O segredo dele era fazer rodízios entre os repórteres: tricolores cobriam o Sport, rubro-negros passavam um ano acompanhando o Náutico, alvirrubros iam direto para o Santa Cruz. Depois, mudava tudo. Quando o torcedor do Sport chegava à Ilha do Retiro, já tinha feito amigos no Arruda e nos Aflitos.” Na opinião de Accetti, que já trabalhou na atualização da homepage do Sport, a experiência ajudou-o a manter-se neutro na rivalidade entre os três clubes recifenses. Repórter da Folha, ele compartilha o mesmo sentimento do veterano Claudemir. “Muitas vezes, o ambiente num clube de futebol é tão pesado, que não há como uma pessoa manter o amor por ele. Para mim, é fácil ser imparcial, porque já não há paixão. Vou lhe dizer qual é meu único vínculo emocional com o futebol: torço contra os times mantidos por bilionários russos e árabes. E só.”
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SEVILHA Uma cidade com cheiro de pomar O lugar que o poeta João Cabral de Melo Neto considerava sua casa é ideal para ser percorrido a pé, com atenção aos seus detalhes que atiçam sentidos texto Ricardo Viel fotos Téo Pitella
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Viagem
Quem não viu Sevilha não viu maravilha, diz um ditado popular andaluz. João Cabral de Melo Neto não só a viu, como por ela se apaixonou. O poeta pernambucano morou na capital da Andaluzia em duas oportunidades – nos anos 1950 e 1960 – e dedicou o livro Sevilha andando, além de outros muitos poemas, à cidade e sua gente. Chegou a dizer que, se não tivesse nascido no Recife, queria ter nascido lá. “A paisagem espanhola, o homem espanhol, a literatura espanhola, todas as manifestações culturais da Espanha me abalam profundamente”, afirmou o poeta, que também viveu em Madri e Barcelona. Mas foi na cidade do sul da Espanha onde ele se encontrou. Ali fez morada, e a levou consigo até o final da vida (“Tenho Sevilha em minha casa (...) É Sevilha em mim, minha sala/ Sevilha e tudo o que ela afia”). Mas o que foi que encantou tanto um homem tão viajado, que durante
décadas trabalhou como diplomata e conheceu os quatro cantos do mundo? Na tentativa de responder essa pergunta, viajei a Sevilha, com a ideia de percorrer os lugares por onde passou o escritor, falecido em 1999. Descobri não apenas que é fácil se maravilhar com a cidade, como é possível criar uma para si, como fez Cabral. Para isso é imprescindível andar, muito. Andar para se perder e assim encontrar (-se). O grande poeta sevilhano Antonio Machado (1875 – 1939) dizia que o caminho se faz ao andar (“caminante no hay camino/ se hace el camino al andar”). Pois andar sem mapa, guiado pelo instinto, pelos sons e pela intuição, é uma boa maneira de percorrer a cidade, de construir caminhos para no futuro tê-los como recordação (“Diversas coisas se alinham na memória/ numa prateleira com o rótulo: Sevilha”, escreveu o poeta pernambucano).
Em Sevilha, é preciso estar com os sentidos em riste, dizia Cabral (“Sentidos que nem se sabia/ antes de andá-la, que existiam”). Quem seguir o conselho perceberá que a cidade tem um cheiro próprio. As laranjeiras, que dão enormes e amargos frutos, estão espalhadas por toda a cidade, e a perfumam. Perfume que instigou João Cabral a apelidá-la de “a cidade cítrica”. Na terra andaluza, é fundamental andar com porte de toureiro, cabeça alta para descobrir os detalhes das construções centenárias, da arquitetura
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mourisca, fruto dos muitos séculos em que os árabes dominaram a região. As sacadas coloridas decoram as ruas estreitas, feitas à medida do sevilhano, como poetizou Cabral. E a imponente Giralda, a torre do campanário da gigantesca catedral, serve de bússola para o viajante, porque pode ser vista e admirada de qualquer lugar. Sevilha tem vários sons. O som de água das fontes árabes que decoram as dezenas de praças e pátios. Do trote dos cavalos que puxam as charretes turísticas. O som dos guitarristas
flamencos tocando sua arte por algumas moedas. Vi, às três da tarde, um cantador exibir-se a palo seco (sem guitarra). Ia de um lado ao outro da calçada, caminhando, batendo palmas e cantando, dignamente, seu lamento. Expunha-se. E quem é de Sevilha diz que, se bem procurado, encontra-se, perdido em uma da estreitas ruas, o silêncio. A cidade está cortada por um rio, o Guadalquivir. A cidade mais antiga e interessante está num raio que contempla três pontes. Com um
compasso mental, o visitante traça o meio círculo com a ponta seca na Ponte San Telmo, e extremos na Isabel II e na De Los Remedios. Dentro da área criada está a Sevilha a ser explorada. O próximo passo é andar, tendo sempre como referência o rio, mas sem preocupar-se muito com rota. Perder-se até chegar à impressionante Plaza de España, construída para a Exposição Ibero-americana de 1929; para encontrar o palácio Real de Alcázar, uma construção com mais de mil anos de história, perfeitamente conservada, e
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cujos jardins e muralhas são uma preciosidade. E, logo ao lado, descobrir o Arquivo das Índias, edifício levantado no século 16 e que hoje guarda os principais documentos referentes à conquista espanhola da América. Navegar pelas ruas estreitas (“a cidade mais bem cortada/ que veste o homem sob medida”) para sair em plazoletas, pátios, jardins e becos. Lugares cheios de histórias, mistérios e lendas (como as de Don Juan, nascida em uma dessas ruelas). Vagar até deparar-se com a praça de touros da Maestranza, onde Manolete (“o toureiro mais deserto/ mais agudo/mais visceral e desperto”) teve
tardes memoráveis. Nos arredores, estão os bares em que os aficionados (os fãs das touradas) passam horas discutindo sobre o assunto. Cabral, em sua época sevilhana, era um deles. E chegar à Plaza de la Encarnación, que sofreu uma remodelação na década passada e ganhou uma imponente construção apelidada de Parasol (guarda-sol) – de lá do alto há uma vista privilegiada. No fim de tarde, entre as pessoas que se exercitam ou as que simplesmente relaxam na beira do Guadalquivir, vale a pena sentar-se e deixar o tempo passar; e assistir à cidade mudar de cor. E, de noite, do outro lado do rio, na
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1 calle sierpes A casa de João Cabral ficava nessa rua, fechada para carros, na parte antiga de Sevilha 2 Real Alcázar De arquitetura mourisca, palácio testemunha domínio árabe na região 3 ruelas Dos becos, o andante pode avistar os monumentos locais e observar detalhes das fachadas 4 tapa Tira-gosto tradicional é geralmente pedido para acompanhar bebidas Próxima página 5 Corrales Moradias populares são caracterizadas pela estrutura fechada em torno de pátio central
Rua Betis, conhecer as discotecas e os lugares de flamenco. A noite sevilhana é tão famosa quanto suas laranjeiras.
A RUA DO POETA
João Cabral escolheu uma rua para ser sua. A Calle Sierpes, que segue pela parte antiga da cidade – toda ela fechada para os carros –, era onde o poeta, em suas palavras, navegava. De uma ponta a outra são 500 metros, serpenteando (por isso o nome da rua) a zona antiga. O Bar La Campana, fundado em 1885, segue na esquina. Lá, João Cabral tomava sua caña (um chope), ou café, e cruzava até o outro extremo, onde estacionava para uma nova rodada. Los Corales, o ponto final da rota cabralina, já não existe como tal. Nesse bar, vestido com seu impecável terno branco de linho, o poeta participava das tertúlias com toureiros. Falava-se dos touros e das sevilhanas. Foi ali que conheceu Juan
Mesmo depois de perder a visão, João Cabral dizia que era capaz de percorrer Sevilha, tão vivas eram suas lembranças Belmonte, um dos maiores matadores de touros da história, a quem dedicou um poema (“Por amor de moça mocinha/ que o recusara e às suas quintas/ mostrou que enfim era o mais forte/ suicidou-se, mandou na morte (...) convocou-a, mas quando quis”). Entre os dois extremos da Sierpes, está o Círculo de Labradores, um clube da elite sevilhana, frequentado por fazendeiros e, por tradição, pelos cônsules. Ali, o poeta se sentava para ler o jornal e ver o movimento. O porteiro, que há 37 anos trabalha no lugar, conta
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que muita coisa mudou desde a época do cônsul Cabral de Melo Neto. Já não é mais obrigatório o uso de gravata no clube, já quase ninguém usa chapéu e os pequenos comércios da rua, em que se vendiam e compravam sacas e animais, deram lugar às lojas de grife. Mas o gentio continua a passar pela rua, e as belas mozas seguem chamando a atenção dos señoritos. Como João Cabral, o visitante pode escolher uma calle e navegar por ela, descobri-la, conquistá-la. Estacionar num bar para tomar uma caña de pé no balcão e comer uma tapa (petisco). Para saber onde aportar, a dica é simples: evite os lugares com muitos turistas, os garçons na calçada que convidam a entrar, e aposte nos locais pequenos, meio escondidos, que estejam cheios de espanhóis – quanto mais alta for a conversa, melhor. Assim, cheguei ao Las Columnas, um típico bar de tapas espanhol,
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com ótima tortilla de camarón e onde o mesero, depois de atender, escreve com giz no balcão o valor da conta. Seguindo o barulho e guiado pela sorte, acabei no Casa Matias, um bar de flamenco nada turístico, onde quem canta são amadores amantes da música. Entre capas e roupas de toureiros, imagens religiosas, um violão assinado por Paco de Lucía e uma cabeça de touro presa na parede, sevilhanos de todas as idades se espremem para beber, dançar e cantar. No final de sua vida, João Cabral perdeu a visão e a vontade de viver. Mesmo assim guardava na memória as imagens da cidade “mais encantadora da Espanha” e dizia que, mesmo cego, era capaz de percorrêla, tão vivas eram suas lembranças. Sevilha foi sua casa, seu barco e seu porto. A “cidade feminina”, aconchego de mulher, marcou tanto o poeta, que o levou a deixar gravado em verso seu desejo de que o mundo fosse “sevilhizado”, de que a terra se tornasse uma enorme Sevilha. Quem visita a cidade consegue entendê-lo.
uma sevilha para poucos Há a Semana Santa, e há as Feiras de Abril, mas é possível que o mais típico de Sevilha seja algo bem menos turístico: os corrales de vecinos. São construções populares onde viviam milhares de famílias e que tinham como principal característica o fato de terem uma enorme fonte e um poço coletivo no centro. Ao redor deles, construíam-se as casas, iguais, para que todas as portas e janelas dessem para o pátio central. Esse tipo de moradia teve início no século 16 e, nas últimas décadas, com a modernização da cidade, foi desaparecendo. João Cabral dedicou um poema aos corrales, e nele descreve a convivência entre os músicos decadentes, os assistentes de toureiros aposentados (e cheios de cicatrizes), as comadres fofoqueiras e os meninos que sonham em ser matador. Conta os bate-bocas e brigas, que depois terminam em abraços, a religiosidade dos moradores, e o cotidiano. Dos poucos corrales que restaram, alguns foram recuperados pela prefeitura,
após serem declarados bem de interesse cultural. Hoje, quem vive em um coletivo desses já não é necessariamente a camada mais baixa da população e nem famílias numerosas. São artistas, estudantes estrangeiros e jovens descolados que buscam esse tipo de moradia pequena, mas agradável. A obrigatória proximidade faz com que todos se conheçam e cria um ambiente pouco comum nos dias atuais, propício a festas e à amizade. E, no verão, quando é impossível dormir de tanto calor, o pátio comum, com suas enormes fontes e árvores, é lugar de refresco e conversas. Embora não sejam “visitáveis” por turistas, existe a opção de se hospedar em um corral. Custam o preço de um hotel simples e são mais charmosos. Há anúncios na internet para estância de curta temporada. A pedagoga Paloma Cano, 35, é de Granada e mora em Sevilha desde 2009. Há pouco mais de um ano, mudou-se para o Corral del Conde, um dos mais míticos da cidade. Não pretende sair tão logo. “Cada vez que eu abro o portão e me deparo com o pátio, agradeço e digo para mim mesma: bem-vinda à república independente da sua casa. Aqui, é impossível não ser feliz”, diz, com um sorriso no rosto. (RV)
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WELLINGTON LIMA Woodstock também foi aqui, sob ditadura No livro de memórias O show que não aconteceu, produtor musical registra peripécias contra a repressão, em que se destacam os lendários festivais de verão em Fazenda Nova texto Gilson Oliveira
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IMAGENS: REPRODUÇÃO/ARQUIVO PESSOAL DE WELLINGTON LIMA
1 couleurs brésil Wellington produziu A noite nordestina, dentro do festival realizado na França, em 1986 2 equipe Plínio Pacheco (E) e Hermilo Borba Filho (D), nos anos 1970, quando desenvolveram os primeiros projetos culturais para Nova Jerusalém
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“Se Chico Buarque botar os pés aqui, será preso!” A frase, dita pelo comandante do grupo de policiais que o havia detido, naquele 28 de novembro de 1974, fez o produtor musical Wellington Lima sentir na própria pele que os “anos de chumbo” tinham, realmente, desabado sobre a cultura brasileira, sobretudo no lombo dos que teimavam em transformar as manifestações artísticas em arma contra o obscurantismo instalado pelo golpe militar. Por isso, também estavam “convidados” a não darem o ar da graça em Pernambuco, sob pena de ficarem hospedados numa cadeia, Milton Nascimento, Nara Leão, Elizeth Cardoso, Paulinho da Viola, o grupo Época de Ouro e Jacob do Bandolim. O show de Chico, Tempo e contratempo, já vinha, num inevitável trocadilho, há muito tempo sofrendo contratempo. Tanto na temporada no Teatro Glória como na realizada no Teatro Casagrande, ambos no Rio de Janeiro, as apresentações contaram com a participação de um grupo nem um pouco afinado com as músicas do espetáculo, o Comando de Caça
aos Comunistas (CCC). O show de Chico em Pernambuco faria parte de um único evento, o II Festival de Verão de Nova Jerusalém, programado para iniciar-se na tarde de 30 de novembro de 1974 e se estender até a manhã do dia seguinte, em Fazenda Nova, distrito de Brejo da Madre de Deus, Agreste do estado. À época, a localidade, para a qual migraram profissionais oriundos do Teatro Popular do Nordeste (TPN) e do Movimento de Cultura Popular (MCP), vivia intenso fluxo cultural, abrigando um “laboratório de ideias”, que concorreria para fortalecer, modernizar e profissionalizar a arte pernambucana. O próprio Festival de Verão – inspirado no de Woodstock – era exemplo de uma visão que, ao mesmo tempo em que preservava, através de vários projetos, os valores culturais da região, sintonizava-se com os novos tempos, inclusive tecnologicamente. Só que, naquele período, os militares não simpatizavam com a capacidade que os artistas da MPB tinham de atrair multidões e de transmitir ao público “mensagens subversivas”.
Esses e outros fatos, informações e reflexões estão no livro O show que não aconteceu, que Wellington Lima está escrevendo, em parceria com o jornalista Pedro Henrique de Melo. Vivendo atualmente numa espécie de comissão pessoal da verdade, o produtor está mergulhado em centenas de fotos, documentos e anotações reunidos ao longo dos anos e que retratam “um tempo, página infeliz da nossa história”, como escreveu Chico Buarque. Um tempo em que os órgãos de repressão pareciam atuar inspirados numa frase de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler (“Não consigo ouvir a palavra ‘cultura’ sem querer levar a mão ao revólver”), disparando, principalmente, contra os autores e intérpretes da “canção de protesto”, a qual, na visão dos agentes do regime, era produzida por “comunistas”, cujas letras obedeciam a táticas de “guerra psicológica” contra o governo. A preocupação dos militares aumentou com a explosão dos festivais de música, como os da TV Record, iniciados em 1966, ano em que também se intensificou a agitação estudantil. A grande questão é que esses eventos, além de superlotar auditórios e atingir um público televisivo de milhões de pessoas, estimulavam debates políticos. Outro calo da ditadura tornaram-se os circuitos universitários de música, porque, conforme os órgãos de investigação, era junto aos estudantes que as forças subversivas vinham reforçando o recrutamento para a luta armada. Relatório produzido à época pelo exército, e hoje disponível na internet, chega a apontar a TV Record como “foco de ação psicológica sobre o público, desenvolvida por um grupo de cantores e compositores de orientação filocomunista (sic)”. Entre os “simpatizantes do comunismo”, listados nesse e noutros relatórios – feitos por agentes infiltrados entre o público –, figuram Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento e Geraldo Vandré. Se a prisão de Wellington, no Recife, teve seu lado dramático, a do jornalista e idealizador de Nova Jerusalém, Plínio Pacheco – também em 28 de novembro de 1974 –, adquiriu contornos de filme de guerra hollywoodiano. Nesse dia, o teatro, em que Plínio se encontrava e é conhecido por exibir o “maior espetáculo
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a céu aberto do mundo”, a Paixão de Cristo, tornou-se palco de um evento também de grandes proporções, com soldados do exército invadindo o local com um helicóptero e tanques ocupando as entradas e saídas de Fazenda Nova. Isso porque o lugar era visto como uma “célula comunista”, por abrigar figuras que haviam atuado no TPN – como o próprio Wellington, Hermilo Borba Filho, Paulo de Castro, Jones Melo, Germano Haiut e Rubens Teixeira – e vários artistas direta ou indiretamente ligados ao MCP e suas teses de valorização da cultura regional e da arte como instrumento de politização e libertárias experimentações. A exemplo de Alceu Valença, do ator José Pimentel e do pintor José Cláudio, que, uns mais, outros menos, participavam de um grupo de trabalho voltado para a criação e execução de projetos que fizeram do lugar um polo de produção cultural, concorrendo para a interiorização de importantes ações na área artística. As implicações do regime com as subversões estéticas aumentaram com a realização, em 1973, do I Festival de Verão de Nova Jerusalém, do qual participaram
Quando a "barra pesou" sobre a produção musical no Brasil, Wellington passou a promover shows internacionais
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“figuras suspeitas”, como Vinicius e Toquinho, Gal Costa, Luiz Melodia e Jorge Mautner. Pelo próprio visual, as atrações locais também pareciam não rezar pela cartilha do regime. Caso de Lula Côrtes, Zé Ramalho, Marconi Notaro (lançando o psicodélico No sub-reino dos metazoários) e da banda Tamarineira Village (futura Ave Sangria). Para piorar, circulou o boato de que alguém teria jogado ácido em um dos tonéis com água usados para saciar a sede do público. O aparato militar mobilizado para prender Plínio teve o efeito de uma potente bomba, matando o importante ciclo cultural, econômico e social vivido por Fazenda Nova. No caso de Wellington, terminou promovendo a nacionalização, e até internacionalização,
de suas atividades. Foi quando começou a trabalhar com o empresário Benil Santos, cujo cast era formado por algumas das maiores estrelas da MPB. Aos nomes anteriormente citados, acrescentemse os de Jorge Ben, Maria Bethânia, Gonzaguinha, Ivan Lins, Tim Maia, Clara Nunes, João Nogueira, Martinho da Vila e MPB-4. Na esfera internacional, uma das maiores produções foi A noite nordestina, em 1986, na França, dentro de festival Couleurs Brésil. Uma das atrações, Luiz Gonzaga, conheceu no evento a jornalista Dominique Dreyfus, que se tornaria uma de suas principais biógrafas. Para o sucesso nessa nova fase, colaboraram as vivências em Nova Jerusalém e no TPN, no qual o produtor ingressou no início dos anos 1960, depois de atuar como ator no teatro da Associação de Imprensa de Pernambuco (AIP) e na TV Jornal do Commercio. No TPN, casa liderada por Hermilo Borba Filho, ele enriqueceu suas aptidões e, além de ator, foi iluminador e contrarregra. Com o tempo, o teatro tornou-se também um polo musical e o futuro produtor Wellington Lima(espécie de faz-tudo na área de eventos e gravações) passou a trabalhar em shows de vários artistas. A partir dessas experiências, a música aumentou o volume na vida dele, que, antes de ir para Nova Jerusalém, foi um dos que tentaram salvar o TPN, o qual, a partir da edição do AI-5, passou a sofrer sistemática perseguição do regime e terminou fechando as portas em 1970. Wellington voltaria a sentir as garras da repressão em 1981, quando produziu o show 1º Maio, no Rio de Janeiro. Foi durante o evento que aconteceu o famoso “Atentado do Rio Centro”, em que militares da ala mais radical do regime tentaram jogar uma bomba no local, a qual terminou explodindo antes, nos seus portadores. Atualmente produzindo, em parceria com Paulo de Castro, a série Clássicos da MPB, através da qual trouxe recentemente para Pernambuco shows de Milton Nascimento e Erasmo Carlos, Wellington mantém-se uma testemunha dos ciclos históricos da música brasileira. Se um dia quiser escrever exclusivamente sobre esse tema, um dos títulos do livro, parodiando uma obra do escritor e político Paulo Cavalcanti, bem que poderia ser: MPB, o caso eu conto como o caso foi.
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ORATÓRIO Proteção para a casa e contra a Inquisição
Peça do mobiliário religioso doméstico, que chegou ao Brasil junto com os portugueses, tinha a função inicial de evidenciar a adesão ao catolicismo, mas, com o tempo, ganhou o apreço dos devotos texto Danielle Romani Fotos Ana Araújo
Mobiliário atualmente em desuso,
restrito a colecionadores, museus, casasgrandes e ermidas de antigos engenhos, os oratórios eram peças de destaque na maioria das residências brasileiras. Símbolos de proteção e reverência aos santos católicos, consistiam-se em elemento obrigatório nas moradias do Brasil colonial e imperial. “A partir do final do século 15, toda casa cristã que se prezasse tinha que ter o seu”, afirma Reinaldo Carneiro Leão, pesquisador em História e Patrimônio. A presença do mobiliário, entretanto, não se devia à mera devoção, mas à necessidade de ostentar obediência ao catolicismo. “Uma fé ‘extremada’, provocada pelo temor de represálias por parte dos inquisidores espanhóis e portugueses”, diz Reinaldo. A criação dos oratórios data da Idade Média, quando essa produção era usufruto apenas de reis e nobres, embora seu uso tenha se intensificado e se popularizado no final do século 15, com o recrudescimento da Inquisição na Península Ibérica. Em 1496, por ordem do rei D. Manuel, todos os judeus e mouros que não se converteram ao catolicismo foram obrigados a deixar Portugal. O monarca português agiu pressionado pelos reis espanhóis, radicais católicos, que lhe cobraram medidas repressivas aos “hereges”.
Nesse período, diante do rigor e das penalidades da Santa Sé, os fiéis começaram, por uma questão de segurança pessoal, a ter que ostentar sua religiosidade e sua adesão ao catolicismo. Além de frequentar a igreja, tinham também que ter um exercício religioso no âmbito privado, portanto, nada melhor do que um oratório em casa. Dessa forma podiam demonstrar o quanto eram devotos. “Foi um período em que os cidadãos professavam suas religiosidades com um forte, e necessário, cunho de exibicionismo”, observa Reinaldo. O que nasceu como uma imposição, com o tempo, virou um hábito religioso, mas também decorativo. Os oratórios se transformaram em acessórios imprescindíveis em qualquer residência, tanto nas abastadas quanto nas populares. Em Portugal, décadas depois, todas as casas possuíam o mobiliário que, dependendo da posição social do dono, podiam ser simples ou bem-elaborados.
MANEIRISMO
Com o descobrimento do Brasil e a necessidade de colonizar o território, a partir de 1530, alguns portugueses se deslocaram com suas famílias para o país recém-conquistado. “Quase 100% dos portugueses que migraram para
Pernambuco no século 16 vieram por necessidade, e tinham como origem o Minho, Trás-os-Montes, Porto e as vizinhanças do Douro. Regiões essencialmente agrárias, elas perderam seu poder político depois que os mouros as atacaram, obrigando o deslocamento da então capital Guimarães para Lisboa, à beira-mar. Com a decadência do Norte luso, o Brasil mostrava-se como uma tábua de salvação para essas famílias, que haviam perdido quase tudo, e precisavam recomeçar a vida”, afirma Reinaldo. A maioria dos imigrantes era formada por homens. Mas, entre as levas de varões que aportavam em terras brasileiras, diversas mulheres – esposas, irmãs, mães – vinham junto para cuidar das tarefas caseiras e viver no novo continente, uma vez que não teriam como subsistir em Portugal. “A mulher, especialmente, trazia seu oratoriozinho, que seria instalado na nova casa. Por isso, pode-se dizer que, até o século 17, quase todo oratório encontrado no Brasil era produzido e trazido de terras lusitanas, uma vez que inexistia quem os preparasse por aqui”, aponta o pesquisador. Os exemplares dessa época, segundo Reinaldo, tinham feições maneiristas ou jesuíticas, retilíneas, no mesmo estilo adotado na construção dos ornamentos das igrejas do período.
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“Boas mostras disso estão na Igreja de São João Batista dos Militares de Olinda e na Capela do antigo Seminário de Olinda, esta última construída pelo irmão jesuíta Francisco Dias.” Os jesuítas, portanto, foram responsáveis pela feitura ou pela ordem de construção das primeiras peças e monumentos sacros em Pernambuco Nesse período, o uso dos oratórios já estava arraigado e se tornara um hábito cultural caro às famílias, que passaram a se apegar ao mobiliário, a idolatrar uma divindade católica, eleita padroeira e protetora de todos os membros da casa. As virgens, em especial, eram muito cultuadas. Para os desbravadores de uma terra desconhecida e inóspita, a proteção
de Nossa Senhora da Misericórdia, que acudia quem tinha ferimentos ou estava mal; ou de nossa Senhora da Soledade, para os que se encontravam sozinhos, eram mais do que apreciadas e recomendadas. Eram consolo e esperança numa terra vasta e a milhares de quilômetros da civilização.
BARRoco e RococÓ
No final do século 17, início do 18, a primeira geração de artífices locais já estava formada. “Nesse período, a confecção de oratórios era, normalmente, em madeiras tipo o cedro, mais fáceis de trabalhar, mais leves e que não atraiam bichos. Podiam ser transportadas facilmente. Inclusive, porque – por serem de fácil manuseio
– permitiam a confecção dos oratórios de viagens, visto que muitos precisavam se deslocar pelos interiores e sertões adentro, e desejavam ter a proteção do seu santo ou da Virgem”, explica Reinaldo. Ele observa que, antes desse período, tanto os santos quanto as peças sacras brasileiras ou portuguesas, em sua grande maioria, eram produzidas em argila ou barro. Na primeira metade do século 18, uma mudança no formato e feitio das peças foi verificada. Com o advento do Barroco, os oratórios ganharam maior rebuscamento, com pinturas a têmpera, revestimento em jacarandá e adereços sofisticados e elaborados, típicos do estilo. “Passou-se, também, a utilizar bastante ouro e douramento nas peças,
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a peça em estilo dom João v, com entalhes e douramento, tem alta cotação no antiquariato
Nestas páginas 2 PoLicRoMiA
Com características do início do Barroco, oratório destaca-se pelo rico entalhe e variação cromática
3-4 tRAnSPoRtÁVeiS Pequenos e ideais para serem carregados em deslocamentos, os oratórios mineiro (acima) e pernambucano (abaixo), ambos do século 18, eram usados pelos viajantes
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real ao Brasil. O estilo seguinte, o D. João VI, é ainda mais simples e reflete a disseminação do neoclássico na arquitetura e na decoração. Chama a atenção, principalmente na segunda metade dos anos 1800, a confecção do mobiliário em um novo formato: chamados por alguns de santuário, eles passam a ostentar, ao invés de portas de madeiras, vitrines e estilo menos rebuscado. Nítida influência da vidraçaria inglesa em território nacional.
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pois havia grande facilidade de obter o minério no período.” A partir da segunda metade do século 18, com o Rococó, o rebuscamento chegou ao ponto máximo. “O exagero era total, as peças tinham muitos detalhamentos, bastante douramento e pintura a óleo”, ensina Reinaldo. O museólogo Fernando Ponce de Leon, especialista em História da Arte – e assessor do restauro de várias peças sacras pernambucanas –, conta que, para confeccionar essas obras-primas da marcenaria e do entalhe, era necessário contar com vários profissionais. “O marceneiro de móveis podia fazer a caixa dos oratórios, mas um entalhador também seria necessário para a realização dos ornatos e
um terceiro profissional, o pintordourador, poderia ser o responsável pelo douramento das peças mais elaboradas e comuns no período Barroco e, principalmente, no Rococó”, explica Ponce de Leon. Ele lembra que a habilidade desses profissionais não se resumiu aos oratórios. “As sacristias das igrejas recifenses e olindenses são verdadeiros museus de marcenaria e do mobiliário religioso.” As peças desses dois períodos são denominadas, respectivamente, estilo D. João V e D. José e são as mais valiosas do mercado. O estilo dona Maria (a “Rainha Louca”) marcou o retorno à simplicidade, o início do Arcadismo, mas só vigorou no início do século 19, com a chegada da família
A pintura vista nas peças é outro aspecto fundamental para entendêlas. “Geralmente, ela vai ter uma relação com a iconografia da imagem central. É como se você entrasse numa igreja carmelita, que contará a história de Nossa Senhora do Carmo; ou franciscana, que tratará da vida de São Francisco nos seus afrescos, azulejos, pinturas, entalhes. Portanto, quando os oratórios mostram desenhos da via-sacra, referemse ao crucificado; o resplendor diz respeito ao Cristo e as flores, normalmente, estão relacionadas às várias versões de Maria”, diz Pérfide Omena, restauradora responsável pela execução de dezenas de templos recifenses e olindenses. Nos oratórios populares, afirma Pérfide, isso é menos claro; às vezes, eles estão vinculados apenas aos elementos estéticos de um determinado período. “Nesses casos, podem ser vistos desenhos que refletem um estilo, ou um tipo de construção, ou símbolos
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5 coLecionADoR José dos Santos, o Zé Santeiro, reuniu, ao longo das últimas décadas, mais de 300 oratórios de vários estilos e séculos 6 SiMPLiciDADe No século 19, as peças ganharam linhas mais retas e vidros, novidade importada dos ingleses 7 MADeiRA Peça do século 18 diferencia-se pela exuberância dos relevos e entalhes 8 MinAS GeRAiS o Museu do oratório, em ouro Preto, reúne a mais valiosa coleção nacional, com 163 peças raras
considerados relíquias familiares, passavam de mão em mão, e se adaptavam bem ao tamanho das casas. Hoje, com residências diminutas, poucos puderam mantê-los. Até porque eram usados de forma suntuosa, condizente com os vastos aposentos. Eram colocados em cima de uma cômoda, que muitas vezes suportava uma papeleira, que por sua vez, apoiava o oratório. O conjunto todo demandava espaço. Quem o tem hoje?”, questiona Fernando, explicando um motivo de poucas residências na atualidade manterem oratórios.
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recorrentes do período. Mas, nos eruditos, é certo que há um ligação com a iconografia”, ressalta. Nas casas de engenhos, nos sobrados e residências recifenses e olindenses, os oratórios tinham lugar reservado: eram guardados nos quartos de dormir ou em salas próprias, usadas para meditação, oração, realização de novenas e terços. Eram espaços de reflexão das famílias e de seus convidados. Eles consistiam em móveis de uso popular doméstico, eram utilizados
por todos os grupos sociais com residências fixas, mas não ficavam expostos. Estavam na esfera da religiosidade privada, diferente da pública, uma espécie de esfera do sagrado, que recomenda reserva e recato. Portanto, não eram “revelados” e vistos de imediato por quem chegasse na casa”, diz Ponce de Leon. Tradicionalmente produzidas em grandes dimensões – os tamanhos médios estão em torno de 100cm de comprimento x 50cm de largura –, essas peças tornaram-se inadequadas às residências atuais, em geral, apartamentos que não possuem espaço para abrigá-las. “Os oratórios eram muito comuns até a década de 1950, quando eram
A redução do espaço de casas e apartamentos favoreceu o antiquário José dos Santos, que, com a dispensa de várias dessas peças, se tornou um dos maiores colecionadores de exemplares do país. Na sua residência, no bairro recifense das Graças, há centenas de oratórios de vários períodos e estilos. “Acho que esta é a maior coleção individual do país, com 300 peças”, contabiliza o antiquário, que, hoje aos 83 anos, é mais conhecido como Zé Santeiro. “Maior até do que a do Museu dos Oratórios de Ouro Preto, talvez não em valor, mas em quantidade”, diz ele, que guarda os oratórios junto a outras relíquias: imagens sacras valiosas, pinturas, mobiliário e artefatos recolhidos em antigos engenhos de açúcar. Instalado em Ouro Preto, Minas Gerais, o Museu do Oratório a que se refere Santeiro foi criado em 1998 e possui 163 peças datadas dos séculos 17, 18 e 19. Todas possuem alto valor histórico e artístico e foram doadas pela colecionadora Ângela Gutierrez.
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Tecnicamente, é considerada a mais valiosa coleção nacional. “Minha coleção vai do século 17 ao 20”, pontua o colecionador, que somente gostaria de repassar o acervo em lote único, para um comprador que a salvaguardasse. Há anos tenta vender o conjunto (que não está no catálogo do seu antiquário, no Bairro da Madalena) para uma instituição pública ou privada, a fim de que seja exibido em museu. Em relação ao acervo, diz que quase tudo foi adquirido de pessoas que queriam se desfazer dos móveis herdados, que estavam em apuros financeiros ou que não tinham mais espaço para guardar peças de grandes proporções. “A maioria foi adquirida de parentes de pessoas idosas que morreram. Uma lástima, pois esse pessoal mais jovem não tem mais noção da importância histórica das peças, não tem mais sentimento, não dá valor a obras-primas que contam nossa história sacra, artística e social”, lamenta Santeiro, que trabalha em parceria com a mulher, Nadja Pena. Entre suas peças, a mais valiosa é um oratório de madeira policromada e
Nos engenhos, sobrados e residências urbanas, os oratórios eram colocados em lugares reservados, acessíveis aos da casa dourada, com desenhos de passagens da via-sacra nas portas, contendo um esplendor e um riquíssimo crucificado. Datada do século 18, e produzida em Pernambuco no estilo D. João V, a peça foi mostrada a especialistas, que a classificaram como uma das mais belas entre as relíquias do período. Ponce de Leon a descreve da seguinte forma: “É um oratório no estilo rocaille (rococó), com destaque para o frontão, recorte e entalhe ricamente trabalhados. A pintura elaborada e o douramento demonstram tratar-se de uma peça erudita, cujas origens remontam ao século 18”. Na coleção de Zé Santeiro, várias pinturas de origem popular, ou primitivas, chamam a atenção. A mais
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antiga é um oratório em formato de ermida (espécie de capela encontrada nos engenhos), que tem as laterais retas e lisas (propícias ao encaixe nos cômodos). Trabalhada em cedro, bem no estilo dos oratórios produzidos pelos primeiros artífices brasileiros, data do final do século 17. “Deve ter sido uma das primeiras produzidas por aqui”, supõe o antiquário. O motivo que o levou a reunir o mobiliário deveu-se à paixão que nutre pelos objetos do passado. E, principalmente, pela expressividade dessas peças, que se reportam ao sagrado, à fé, à devoção de tantos brasileiros. “Os oratórios me agradam por vários motivos. Primeiro, porque são peças em que eram guardadas as imagens sagradas. Segundo, porque são prova da criatividade e diversidade artística. Terceiro, porque eram locais onde as pessoas rezavam, depositavam esperança e fé. Eles simbolizam a devoção. Como católico, fascineime pela sua simbologia, beleza e religiosidade. Espero que um dia estejam expostas, a fim de que sua história possa ser mantida e reconhecida.”
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Por diversão, para se comunicar secretamente ou em busca de uma comunicação perfeita, profissionais e amadores impulsionam a criação de línguas artificiais TEXto Yellow
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Cada novo capítulo da série Game
of thrones tem cerca de 4 milhões de espectadores, somente nos Estados Unidos, e o programa de TV é, atualmente, o mais pirateado da internet – calcula-se que cada episódio seja baixado 2 milhões de vezes. Diferentemente de cenários e peças de vestuário, que podem ser produzidas digitalmente, ou usando materiais simples, a invenção de uma língua é uma das tarefas mais difíceis, na criação de um mundo artificial. Ao assistir à série em casa, ninguém nota que espadas são feitas de plástico. Por outro lado, se alguém tentar aprender a língua dos dothraki, perceberá inconsistências gramaticais ou lexicais que venham a surgir. Linguistas têm criado línguas artificiais desde, pelo menos, o século 12. Por diversão, para comunicar-se secretamente, ou em busca de uma língua perfeita, sanada das imperfeições das naturais. Conlangs (constructed languages) têm crescido em popularidade recentemente, graças a filmes e séries de TV, como Avatar (cujos personagens falam em na’vi), O senhor dos anéis e
Game of thrones. Existem, hoje, conlangers profissionais, dedicados a inventar línguas para uso em obras de ficção, mas ainda há os amadores, que são motivados ora pelo desafio intelectual ora por idealismo. A mais conhecida das conlangs feitas para a ficção é a klingon, da série Jornada nas estrelas. Hoje, ela é amplamente estudada, e é quase tão conhecida quanto o esperanto. Sites populares, como a Wikipedia e o TED, têm versões em klingon. Várias pessoas são capazes de conversar usando-a, e pelo menos duas montagens teatrais (um auto de Natal, de 2009, e uma ópera, ‘u’, de 2010) são inteiramente faladas nela. Existem publicações em klingon de clássicos como A epopeia de Gilgamesh, Hamlet, Muito barulho por nada, e o Tao te ching. Ela conta ainda, desde 1992, com um Instituto de Língua Klingon, localizado na cidade de Flourtown, Pensilvânia. Um detalhe que não costuma ocorrer aos fluentes em klingon é que, assim como outros elementos que são criados para obras ficcionais, a propriedade intelectual dela pertence à Paramount Pictures/CBS Studios. Dicionários
e outras obras canônicas de línguas artificiais estão sujeitas ao direito autoral. Criar, portanto, uma cultura sustentada numa das que pertencem a uma empresa parece o exemplo perfeito de um cabluite, expressão que acabo de inventar na língua que denominarei yellowês, e que quer dizer “fazer reforma em casa alugada”.
FANTASIAS
O autor J. R. R. Tolkien, professor de Filologia em Oxford e criador da série de livros Senhor dos anéis, teve como principal motivação para escrever as milhares de páginas da saga a criação de um mundo onde pudessem ser usadas as línguas que criou. São 15 delas e dialetos para elfos de diferentes eras, três para homens, e outras para anões, ents, orcs, e mais um punhado, usado para conjurar magia. As línguas de Tolkien são elementos importantes da narrativa. Em determinado momento, no tenso encontro entre elfos e anões, antes da formação da Irmandade do Anel, um anão ofende terrivelmente um elfo, ao referir-se a ele através de um pronome vulgar, já que a língua dos anões
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Foram necessários quatro anos para criar as regras gramaticais da língua dos dothraki Nestas páginas
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No filme, alguns dos personagens se comunicam através de uma língua chamada na’vi
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Senhor dos anéis
Autor da saga teve como motivação para escrevê-la a criação de um mundo em que se falassem línguas criadas por ele
desconhece os pronomes de tratamento necessários aos nobres elfos. Em uma correspondência de 1956, Tolkien escreveu que línguas construídas como “Volapük, esperanto, ido, novial (...) estão mortas, bem mais mortas que línguas antigas que não são mais usadas, porque seus autores nunca inventaram lendas em esperanto”. David Peterson, presidente da Sociedade de Criação de Línguas (conlang. org) e mestre em Linguística pela UC San Diego, é um dos conlangers que trabalham desenvolvendo, sob encomenda, línguas artificiais para obras ficcionais. Para a série de TV Game of thrones, ele criou algumas destinadas aos povos que habitam os Sete Reinos da série de livros As crônicas de gelo e fogo. A dos dothraki, um povo nômade e adorador de cavalos, levou quatro anos de desenvolvimento das regras gramaticais e feitura de um dicionário de cerca de 3.400 palavras. Para inventar uma nova língua, pode-se tomar um dicionário, digamos de português, e inventar palavras para substituir cada um dos verbetes. Porém, ao fazer isso, estaríamos apenas criando uma versão piorada do português,
A mais conhecida e popular das conlangs feitas para ficção é a língua klingon, da série Jornada nas estrelas pois ela ainda iria conter muito da original – sua gramática, suposições que cada palavra carrega. A criação de uma palavra como “livro”, por exemplo, parece ser uma tarefa simples, mas traz para o idioma uma série de suposições acerca da cultura de seus falantes. Entendese que a sociedade tem uma forma escrita para a fala que tem algo a registrar, como história ou literatura, que dão valor ao letramento, que a noção de letramento existe, que inventaram algum tipo de impressão, ou ao menos de papel, de tinta, de canetas. Um mundo de suposições em uma só palavra. A comunicação é um turbilhão. Assim como, sobre toda a superfície terrestre, existe água, todos
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os povos falam, mesmo que nem todos escrevam. Mas, como a água do Nilo é completamente diferente da água da Praia de Boa Viagem, as línguas diferem umas das outras. As naturais surgem, normalmente, a partir de modificações feitas em outras línguas. O mesmo latim que originou o português é a base para o francês, e ambas diferem do ponto da inteligibilidade. Como o principal propósito das línguas é construir representações da realidade, é natural que as mesmas sofram modificações constantes no decorrer do tempo, adequando-se a novas formas de interação social, e fazendo com que as gramáticas estejam sempre desatualizadas na documentação de seu funcionamento. Os solecismos são a força criadora das línguas naturais. Sem os solavancos que fazem com que “acalguete” transforme-se em “cabueteiro”, as palavras estariam fadadas à estagnação. Grande parte do processo de tornar as conlangs mais verossímeis consiste em tentar imitar os equívocos e idiossincrasias que surgem nas línguas naturais.
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4 david peterson
Antes de criar a língua dos dothraki, ele conversou com o autor para saber as origens imaginárias desse povo
5 J. R. R. Tolkien As línguas que inventou fundamentam a narrativa de O senhor dos anéis
Para Peterson, um bom conlanger precisa ter a combinação de uma mente muito técnica, que seja boa em resolver quebra-cabeças ou códigos, e uma vocação literária, que leia muito e adore histórias. Para o desenvolvimento da dothraki, Peterson tentou imaginar como as pessoas falavam um milênio antes. Criando uma protolinguagem, ele pôde simular um processo orgânico de modificação da língua, mudando aos poucos a fonética, a gramática e a semântica, até chegar à usada em Game of thrones. Isso exige grande competência criativa, capaz de imaginar o passado em um mundo ficcional que, na verdade, pertence à imaginação de outra pessoa, no caso, George R. R. Martin, autor da série de livros que deu origem ao programa de TV.
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Alguns aspectos da história do povo dothraki estão à disposição de Peterson. Ele sabe, por exemplo, que Martin baseou os dothraki, principalmente, nos mongóis da era da Rota da Seda, e adicionou algumas características de povos indígenas norte-americanos. Então, ele usou a língua mongol como base para sua criação. Ao descobrir que os mongóis tinham duas palavras diferentes para designar fezes animais, uma para as úmidas e outra para as secas (que eram usadas durante o inverno como combustível), ele incluiu essa distinção na língua dothraki.
FALAnTES
As línguas nada são sem seus falantes. Inicialmente, Peterson não tinha interesse em construir culturas, mas percebeu que, se não há uma ideia clara de quem são os usuários de uma língua, esta automaticamente carregará consigo os pressupostos culturais do conlanger. Onde não existe contexto, um conlanger deve criá-lo, como no caso do termo, em dothraki, que designa “sonhar.” Peterson queria capturar a essência do sonho, que para ele
significava sentir enquanto se dorme, que não existe outra vida ou mundo. Peterson começou com a palavra para madeira, e mudou-a para sua forma adjetivada, emadeirado, ou ido. Uma vez que em dothraki “madeira” é usado para descrever espadas falsas, “emadeirado” tornou-se sinônimo de “falso”. Um sonho, então, torna-se uma vida de madeira, uma vida falsa, ou thirat atthiraride, literalmente “vivenciar uma vida de madeira”. Por que se dar a todo esse trabalho, ao invés de simplesmente ligar para George R.R. Martin e perguntar? De acordo com Peterson, Martin se contenta com a existência da língua, mas não tem interesse em desenvolvê-la. De fato, é Martin quem liga eventualmente para Peterson, pedindo uma tradução, que é alegremente fornecida. Peterson mantém um blog (dothraki. com) em que discute o desenvolvimento da língua dothraki e outras, usadas em Game of thrones. Ele também discute o emprego de sua criação no dia seguinte à exibição de cada episódio, e comenta a trama, como milhões de fãs ao redor do mundo.
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Por que existem pessoas que se dedicam a estudar, ler e se expressar em línguas artificiais? Provavelmente, porque o uso de diferentes línguas permite que a mente funcione de maneira diferente.
UTOPIA
A maioria das conlangs não é criada para fins fictícios. É natural que muitos conlangers sejam atraídos pelos desafios lógicos da criação de línguas, e este hobby é similar ao de criar palíndromos, ou o de jogar xadrez. De fato, um grande número de conlangs nasce de restrições autoimpostas, como, por exemplo solresol, uma língua criada, a partir de 1827, pelo músico francês Jean-François Sudre, que era formada apenas por sete sílabas, que podiam ser representadas sonoramente pelas sete notas da escala musical, ou, graficamente, pelas sete cores do arco-íris. Outro exemplo é kēlen, criada pela conlanger Sylvia Sotomayor, que não possui verbos. Porém, existem também motivações políticas e utópicas para a criação de novas linguagens.
Desde o século 17, filósofos como Francis Bacon, René Descartes e Gottfried Leibniz discutem como as línguas naturais enevoam o pensamento humano, e imaginam se um substituto artificial poderia capturar de maneira mais precisa a essência das coisas. Os relatos de missionários jesuítas, no século anterior, acerca do idioma chinês,
Desde o século 17, filósofos discutem se as línguas naturais não enevoam o pensamento, e propõem as artificiais ampliaram os conceitos que muitos filósofos tinham sobre a linguagem, trazendo a noção de que seus caracteres significavam conceitos, ao invés de sons, e que um mesmo ideograma poderia ter o mesmo significado para pessoas vivendo ao longo do leste asiático, apesar de soarem diferentes, dependendo da região. Seria possível
construir uma língua escrita universal, que pudesse ser entendida por todos, assim como os algarismos arábicos fizeram com a matemática? O esperanto, que foi criado na década de 1880, por L. L. Zamenhof, foi o mais bem-sucedido dentre cerca de uma centena de idiomas universais criados no século 19. Em seu ápice, existiram mais de dois milhões de falantes, que produziram uma rica literatura de mais de 15 mil livros. Mesmo hoje, quando é considerado um fracasso, estima-se que possua cerca de seis mil falantes. Na década de 1930, os linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf desenvolveram a hipótese da relatividade linguística, de que pessoas de diferentes culturas estão sujeitas a viver e pensar em um estado mental expresso, e talvez determinado, pelas línguas que usam. Apesar de ter sido refutada a partir da década de 1940, pela corrente cognitivista, a hipótese persiste, possuindo seguidores até hoje. Seria possível construir uma língua perfeita, que eliminasse as imperfeições das naturais e transformasse seus usuários em seres superiores?
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con linguagem ti nen te DIVULGAÇÃO
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ITHKUIL O mínimo de ambiguidade
O californiano John Quijada desenvolveu a habilidade e o interesse por línguas construídas ainda quando criança, ao criar uma linguagem para se comunicar com seu gêmeo idêntico (um fenômeno surpreendentemente comum, chamado criptofasia). Aos 18 anos, entrou na universidade, planejando formar-se em linguística antropológica, mas precisou abandonar o curso antes de se formar, perseguindo seus interesses linguísticos como amador. Ele trabalhou como funcionário público
no departamento de trânsito da Califórnia por 30 anos. Estudando, Quijada percebeu que cada língua possuía, individualmente, pelo menos um aspecto superior às outras. A língua dos aborígenes australianos guugu yimithirr, por exemplo, não usa coordenadas espaciais egocêntricas como “direita”, “esquerda”, ou “em frente de”. Seus usuários usam apenas direções cardinais. Assim, eles não têm um pé direito e um esquerdo – têm um pé ao Norte e outro ao
Sul, dependendo de sua posição, quando proferem a sentença. Entre os índios wakashan, do Noroeste Pacífico, uma sentença não é considerada gramaticalmente correta a menos que contenha uma inflexão verbal de “evidencialidade”, indicando se o que está sendo dito vem de experiência direta do falante, inferência, conjectura ou “de ouvir dizer”. Quijada tentou, então, forjar uma língua que contivesse o maior número possível desses elementos positivos encontrados em diferentes línguas. Durante mais de 20 anos, em seu tempo livre, Quijada criou a língua ithkuil, que tem como objetivo codificar o máximo de informação no menor espaço possível, com o mínimo de ambiguidade. Para quem fala português, existem muitas maneiras de ver o mundo. Podemos olhar, observar, assistir, espiar, vislumbrar. Cada
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6 encontro A Language Creation Society reúne colangers de todo o mundo
palavra traz consigo um significado diferente do outo. Espiar sugere furtividade, vislumbrar sugere deleite, ou descoberta, observar implica escrutínio, e daí por diante. As interações humanas são governadas por um sistema de códigos implícitos que podem, por vezes, parecer frustrantemente opacos, e cuja má interpretação pode rapidamente levar a gafes, ou consequências mais sérias. Recursos prosódicos, ironia, metáfora e ambiguidade estão entre os engenhosos instrumentos que nos permitem dizer mais do que o que estamos falando. Mas, em ithkuil, a ambiguidade é esmagada, para que se torne explícito tudo o que seria implícito. Uma declaração irônica deve ser marcada com o afixo verbal ‘kçç. Hiperbolismos são sinalizados pela letra ‘m. A língua ithkuil provê um conjunto preciso de coordenadas, destinado a dar acesso a quaisquer noções, ideias,
crenças e afirmações contidas em nosso pensamento. A conlang possui 22 categorias gramaticais para verbos, comparadas às cinco existentes na língua portuguesa – modo, tempo, pessoa, número e voz. 1.800 sufixos refinam ainda mais a intenção do falante. Através de um processo laborioso de conjugação, o ithkuil requer que o falante compreenda perfeitamente a ideia exata que quer expressar, removendo qualquer possibilidade de imprecisão, e as ideias são expressas em poucas palavras, nas quais cada fonema tem um significado diferente, sem redundâncias. Em 2004, quando já conhecia e fazia parte da comunidade dos conlangers, Quijada começou a publicar, sem alarde, em seu site, as primeiras versões de sua língua. No prefácio para a publicação da ithkuil, o autor escreve que seu principal objetivo foi tentar criar o que seres humanos nunca conseguiriam, criar naturalmente, mas apenas através de um esforço intelectual consciente, uma língua idealizada que visa ao mais alto nível possível de lógica, eficiência, detalhe e precisão na expressão cognitiva, por meio da fala humana, enquanto busca minimizar ambiguidade, vagueza, redundância, polissemia e arbitrariedades em geral, que parecem ser ubíquas às línguas naturais humanas. A primeira menção ao ithkuil apareceu em 2004, na revista russa de divulgação científica Computerra. Um artigo intitulado A velocidade do pensamento notava similaridades entre o ithkuil e a linguagem imaginária criada pelo escritor de ficção científica Robert Heinlen para seu romance Gulf, de 1949. A história descrevia uma sociedade secreta de gênios, que usava uma linguagem rápida e precisa, chamada speedtalk, que era capaz de condensar frases inteiras em palavras únicas. Usando sua língua eficiente, planejavam tomar o mundo e eliminar os homens comuns. Pouco depois da publicação do artigo russo, Quijada passou a receber constantemente e-mails vindos da Rússia, sempre interessados em esclarecer minúcias, e requerendo mudanças na língua para facilitar sua pronúncia. Em 2010, ele foi procurado
por um acadêmico ucraniano, de nome Oleg Bakhtiyarov, que se apresentou como diretor de uma instituição de educação superior recém-formada em Kiev, chamada Universidade de Desenvolvimento Efetivo, que defende um movimento filosófico chamado psiconética. Além da Universidade, existem centros de estudo psiconéticos na Carcóvia, Odessa, Zaporizhzhya, Minsk, Elista, São Petersburgo, AlmaAta, Krasnoyarsk, e Moscou, nos quais estudantes tentam desenvolver métodos para acessar camadas mais profundas da consciência. O e-mail o convidava a participar de uma conferência intitulada Tecnologia criativa: perspectivas e meios de desenvolvimento, a ser realizada em Elista, capital da República de Calmúquia, um pequeno estado semiautônomo na Federação Russa. Através da viagem, John Quijada tomou conhecimento de que sua conlang estava sendo ensinada a jovens do outro lado do mundo, que o veneravam como o gênio acadêmico que ele teria se tornado, se não houvesse abandonado os estudos em sua juventude. Os estudantes compreendiam o ithkuil da maneira como John havia intencionado. Da mesma forma que a tabela periódica de Mendeleyev havia mostrado lacunas onde deveriam haver elementos químicos que ainda não haviam sido descobertos, o ithkuil poderia ser o instrumento ideal para revelar estados de consciência inexplorados. Viagens subsequentes acabaram por mostrar que as intenções dos fundadores da psiconética são similares aos da sociedade secreta descrita no romance de Heinlen. O ithkuil estava sendo ensinado e estudado como ferramenta para o desenvolvimento de uma geração superior, um übermensch, que sobrepujaria o resto da humanidade. Por conta disso, Quijada optou por cortar laços com a Universidade de Desenvolvimento Efetivo. A própria palavra ithkuil, significa, literalmente “representação hipotética de linguagem”, e reflete o fato de que seu criador nunca teve a intenção de que ela fosse falada casualmente. Tarde demais para traduzir, então. YELLOW
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coxinha O pitéu mais querido do país
O salgadinho, cuja origem remete ao século 19, aparece em terceiro lugar, depois do feijão com arroz e do churrasco, quando o assunto é saudade da comida nacional texto Ingrid Melo
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Recife, abril de 2013. Jogaram uma coxinha na banda de punk rock nova-iorquina Television, e isso só poderia ter acontecido no Brasil. Não que nosso povo não seja tão civilizado quanto os dos outros países que já receberam o grupo. No lendário CBGC, em Manhattan, por exemplo – clube que a Television inaugurou para depois abrir espaço para nomes como Ramones, Patti Smith e Misfits –, provavelmente a banda já foi alvo de bebidas, garrafas, bitucas de cigarro e até de hot dogs. Em Barcelona, no ano passado, bombardearam Lady Gaga com salsichas de porco. Mas coxinha, por certo, somente aqui. O salgado é tão brasileiro, que basta procurar em qualquer enquete
na internet e ele aparece no top 3, quando o assunto é saudade da comida nacional (antecedido do feijão com arroz e do churrasco). Há centenas de blogs com postagens destinadas a acalentar o estômago de intercambistas tupiniquins de todos os destinos, revelando minas escondidas em ruelas onde é possível encontrar versões da iguaria, ainda que medíocres e caríssimas. Entre os relatos, dezenas dão conta de que comprar o salgado é o primeiro passo a se dar quando se retorna à pátria amada, ainda no saguão do aeroporto. Compreende-se, portanto, o motivo do jogador de futebol Vagner Love responder “coxinha” – e não
“clima”, “praia” ou “mulheres” – quando questionado pelos jornalistas do que ele mais sentira falta nos cinco anos que passou na Rússia, defendendo o CKSA de Moscou (time para o qual retornou este ano, depois de uma temporada no Palmeiras e no Flamengo). De igual maneira, é possível entender por que Lovefoxxx, vocalista do grupo Cansei de Ser Sexy, chorou quando o namorado Simon Taylor-Davis, guitarrista do Klaxons, descobriu a receita do salgado para presenteála durante uma turnê no exterior. Coxinha é uma comida afetiva. Ela está ligada ao happy hour no boteco da esquina, aos intervalos na época da escola, aos domingos na casa da avó
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e aos aniversários – especialmente os de criança – em que pode faltar até o bolo, mas não dá para esquecer o salgado. São para nós, brasileiros, o que as madeleines (bolinhos típicos da culinária francesa) foram para Marcel Proust, em seu Em busca do tempo perdido. O cheiro do óleo misturado ao coentro da galinha e ao sabor do catupiry (na solicitadíssima coxinha com catupiry) nos traz reminiscências involuntárias. As mesmas, especula-se, que fizeram o empresário Washington Olivetto solicitar o quitute para reconfortá-lo após 53 dias em um cativeiro. Difícil acreditar que a coxinha não nasceu aqui.
ORIGEM
Antigas padarias, bares, lanchonetes e confeitarias disputam até hoje sua invenção. A clássica Confeitaria Colombo, instalada no centro do Rio de Janeiro, prepara o pitéu desde sua inauguração, há 119 anos. Contudo a origem da coxinha remete a tempos ainda mais remotos. No livro Histórias e receitas – sabor, tradição, arte, vida e magia (2000), a pesquisadora Maria Nadir Galante Cavazin relata que o empanado foi criado no século 19, na Fazenda Morro Azul, no interior de São Paulo. No local, morava um dos filhos da princesa Isabel e do conde D’Eu, uma criança portadora de necessidades especiais que vivia escondida da Corte.
Ocorre que o menino era enjoado à mesa e, quando gostava de um alimento, exigia-o repetidas vezes. Certa época, ele só comia coxas de galinha fritas, afirmando bem sua linhagem – há registros de que o rei Dom João VI, por exemplo, devorava seis frangos por dia. Num almoço, dispondo apenas de uma peça da ave, a cozinheira resolveu transformar uma galinha inteira em coxas. Por intuição, desfiou-lhe a carne, dividiu em porções, envolveu em massa, moldou no formato de coxa (ou pera) e depois fritou. O garoto aprovou imediatamente o prato. Segundo Nadir, quando a imperatriz Tereza Cristina visitou Limeira – oficialmente há dois
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registros de sua vinda, em agosto de 1876 e outubro de 1886 –, hospedouse na Fazenda Morro Azul. Ao ver o neto devorar as iguarias, ficou ansiosa para degustá-las. “Provou, gostou e solicitou que o modo de preparo fosse fornecido ao mestre da cozinha imperial. Assim, a humilde receita teve seu tempo de nobreza pelo acesso à corte, e altos salões, graças à especial indicação de sua majestade, a imperatriz Tereza Cristina”, conta a pesquisadora. A história se espalhou. Todavia não passa de uma lenda que Maria Nadir escutou da sogra que, por sua vez, tomara conhecimento por meio de outros familiares. Ao que tudo indica, a receita da coxinha chegou ao Brasil em 1808, quando a trisavó de Isabel, a rainha Maria I, e seu bisavô, o príncipe regente Dom João, escapando das tropas de Napoleão
que invadiram Lisboa, instalaram o governo no Rio de Janeiro. Em Portugal, já era comum encontrar o salgado nos bailes da corte. Provavelmente, foi introduzido no país pelo francês Lucas Rigaud, cozinheiro da rainha Maria. No ano de 1780, Rigaud lançou, em Lisboa, o livro Cozinheiro moderno ou nova arte de cozinha, reeditado em 1999 pela Colares Editora, de Sintra, Portugal. Nas páginas 107 e 108 da última edição, há uma receita de “coxas de frangas ou galinhas novas”, bastante semelhante à que conhecemos hoje. Desossam-se 10 ou 12 aves, conservando a pele, e se recheia com um “picado fino”. Mergulha-se no bechamel (molho branco) ligado com gemas. Fechase com barbante, passa-se em ovos batidos, pão ralado fino e frita-se em banha. A típica comida brasileira, portanto, foi inventada na França.
EM FORMA DE PERAS
A obra L’art de la cuisine française au XIXème siécle – traité des entrées chaudes (Dentu, Librairie, Palais-Royal, Galerie d”Orléans, Paris, 1844), do parisiense Antonin Carême, traz nas páginas 268, 269 e 270 a receita do croquette de poulet (croquete de frango) e já aconselha moldá-la en forme de poires (em forma de peras). No Brasil, contudo, ela sofreu modificações, sendo acrescida do nosso tempero e envolta em massa de batata ou macaxeira e trigo, para depois ser frita no óleo. Isso se deu, especialmente, no século 20, durante o período da industrialização de São Paulo, quando a coxinha foi resgatada para alimentar os empregados das fábricas. Hoje, existem basicamente três tipos do salgado: a creme, a comum e a villeroy. A primeira é a mais tradicional, mantém-se a coxa inteira, com
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A mais tradicional das coxinhas mantém a coxa inteira, inclusive o osso
Nesta página 2 adaptações
A iguaria pode ser degustada com os mais variados recheios, como a carne de charque
villeroy 3 Servida espetada num palito, funciona como entrada ou petisco
A receita da coxinha chegou ao Brasil em 1808, quando o príncipe regente Dom João instalou o governo no Rio direito a ossinho. A comum traz a carne desfiada ou picada recheando a massa. A villeroy é servida espetada num palito e, ao contrário das outras duas, não constitui uma refeição – é entrada ou petisco. Dentre esses tipos, porém, há subtipos. Os recheios há muito que ultrapassaram o frango e chegaram a variantes como camarão e carne de charque (ou seca), além de opções veganas, que vão de soja e palmito até jaca desfiada. Nenhuma versão, porém, anda tão em voga quanto a goumert – que, por pouco, não descansa em estufas nas casas de alta gastronomia. Nos restaurantes grã-finos, o salgado dos dorme-sujos retorna às origens monárquicas e ganha status de chique – já que elegante é o que é feito com apreço, não o que é caro. De modo que nada de tamanhos absurdos e catupiry à base de maisena, acumulado no final.
É impossível não notar o requinte de uma receita feita com “frango marinado, temperado com capimlimão e cozido em baixíssima temperatura por horas até a carne ficar no ponto. A seguir, adicionase uma colher de queijo cremoso de boa qualidade. A mistura, então, é envolvida em uma massa cremosa, cuja técnica francesa de preparo chama-se pâte à choux, similar à usada para fazer profiteroles”. Assim é descrita a coxinha do restaurante Irajá, no Rio. Em São Paulo, o Las Chicas combina massa de mandioca a queijo roquefort; o Rothko usa confit de pato na preparação. No Recife, o quitute também ganhou ares refinados. No Real Botequim, em Casa Forte, 500 coxinhas são servidas por mês, em versão creme, com diversos recheios. O Bazza, no Parnamirim, conta com coxinha de massa de batata
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temperada, recheada com frango defumado desfiado e cream cheese, em tamanho normal e villeroy. No Bistrô & Boteco, em Boa Viagem, ela é caseira, frita em imersão. No cardápio do estabelecimento, o destaque vai para a coxinha de massa de jerimum e recheio de charque. Ainda na Zona Sul, o Boteco Maxime oferece coxinha de caranguejo, com recheio do filé do crustáceo desfiado e apresentação com a pata do animal no lugar do osso da galinha. De volta à Zona Norte, em Casa Amarela, o Boteco do Barão traz o petisco cheio de personalidade, com queijo do reino. A coxinha lançada na Television não era assim tão elegante. Felizmente, contudo, não chegava a ser daquelas tamanho família, que se encontram no centro da cidade, concorrentes fortes a desbancar do posto a coxinha feita em Rolândia (PR) e dona do título de maior do mundo, com seus 3,5kg. Era, porém, uma típica coxinha brasileira, com seu tom dourado e farinha de rosca dignos de um verão bronzeando-se ao sol de Porto de Galinhas (com perdão pelo trocadilho). Talvez por isso o vocalista, Tom Verlaine, tenha devolvido o acepipe tão delicadamente ao público. Em identidade nacional e memória afetiva não se mexe. Tratemos com carinho nossas madeleines tropicais.
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Ronaldo Correia de Brito médico e escritor
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a que mundo nós pertencemos? Há um esforço louvável de várias instituições brasileiras para colocar nossa literatura no mundo. Em 2012, o Brasil foi o país homenageado na Feira de Bogotá e teve uma participação especial em Guadalajara. Neste ano, será a vez da Feira de Frankfurt, o maior evento de livros do planeta. E já se trabalha de olho em Bolonha 2014 e Paris 2015. Mudou alguma coisa para as pessoas se interessarem pelo que escrevemos? Será que deixamos de ser o país do futebol, agora que ocupamos o insignificante 19º lugar no ranking da Fifa? Viramos uma nação de leitores, quando nos outros países as pesquisas indicam uma queda vertiginosa na venda de livros? Já não olham para nós como exportadores de imigrantes ilegais e prostitutas? Controlamos a violência urbana? Duas antologias brasileiras serão lançadas em Frankfurt: uma de jovens escritores – um gosto tão na moda – e outra sobre futebol. Diversos autores escreveram narrativas cujo tema é a bola, e revelaram os times de suas preferências.
Fala-se numa outra antologia em que o assunto é – adivinhem? – a violência urbana. Previsível, não? Em conversa com editores, agentes e livreiros da Alemanha e França, percebe-se a construção de um novo imaginário de Brasil, uma estampa nebulosa como as terras avistadas por Cabral, quando olhou de longe nossa costa. Nessa fabulação, existem resquícios do exotismo de Jorge Amado, fantasias eróticas com mulheres fogosas e o ingrediente explosivo da violência urbana. Não ficou claro para mim que Brasil é esse, nem que literatura eles desejam. A premissa indispensável é vender os livros. Traduções de brasileiros são pequenas em número e vendagem, com exceção, é claro, de Paulo Coelho. O mercado espanhol e o português estão em crise, o de língua inglesa edita tímidos 2% de autores que não sejam anglófilos, o francês – que generosamente lança cerca de 47% de estrangeiros – anda em baixa. Os olhos estão arregalados para a Alemanha. Compreenda-
se: vender na França, Inglaterra e Alemanha significa ganhar o “mundo”, isso que os agentes de escritores brasileiros tanto desejam. É inevitável a lembrança de um ensaio da escritora sul-africana Nadine Gordimer, no seu livro Tempos de reflexão (Editora Globo, 2013), O texto de 1997 – O status do escritor no tempo atual – vem seguido de duas perguntas como subtítulos: Que mundo? De quem? Numa conferência em Harvard, ela havia se queixado de que ao egípcio Naguib Mahfouz não era dado o lugar que lhe cabia na literatura mundial contemporânea, que nunca era citado na companhia de nomes famosos como Umberto Eco, Günter Grass etc., e que certamente não era lido nem mesmo por aqueles considerados cultos. Em resposta aos comentários de Gordimer, o escritor palestino Edward Said rebateu com as perguntas: Mahfouz, negligenciado? Mahfouz, não reconhecido por sua grandeza na literatura mundial? Em relação a que mundo Nadine o definia, a que mundo seu raio de
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karina freitas
visão se limitava na sua avaliação? E batia mais forte, afirmando que, na literatura de cultura árabe, no mundo da língua árabe, Mahfouz está plenamente estabelecido no cânone da grandeza, e que no cânone populista da fama – embora controverso – é lido por muita gente. O puxão de orelha de Edward Said abriu os olhos de Nadine Gordimer. O que ela concebia como “literatura mundial” na sua palestra era a dos europeus norte-americanos, na qual se admitiam bem poucos estrangeiros. No mundo da literatura árabe, tão alheio a nós, como muitos outros, Naguib Mahfouz é reconhecido como um grande escritor. E a conclusão do ensaio é a de que, no sentindo abrangente do termo mundo, qualquer uma de nossas literaturas pode ser declarada como mundial, pois se trata de mundos dentro de mundos. Numa mesa na Feira de Bogotá, em que participavam poetas de vários locais da América Latina e um único brasileiro, Ledo Ivo, percebiam-se as afinidades entre Peru, México, Argentina, Nicarágua, Venezuela e
Percebe-se a construção de um novo imaginário de Brasil, uma estampa nebulosa como as terras avistadas por Cabral os outros países de língua espanhola, e certo estranhamento em relação à poesia brasileira. Mais tarde, encontrei os poetas em volta de copos de cerveja e perguntei a razão da impermeabilidade à nossa literatura. Falei de um tempo, nas décadas de 1960, 1970 e até mesmo 1980, em que era moda ler escritores da América Latina aqui no Brasil, mas que não percebíamos um interesse igual nos vizinhos de fronteiras. Todos reconheceram ser verdade, achavam que o português não era fácil de ler e falar, que havia certo orgulho pelo idioma espanhol comum a muitos países – mesmo alguns achando que não se fala da mesma maneira na Venezuela e no
Chile –, citaram nomes conhecidos do Brasil, porém confessaram ignorar os autores contemporâneos. Havia certa inveja ou desdém pelo crescimento econômico do Brasil, a “quinta potência do mundo”, uma conversa que se repetiu em vários países. O escritor mexicano Fernando Vallejo, que encontrei em Buenos Aires, conhecia a literatura brasileira e tinha uma visão otimista desse bloco de 200 milhões de leitores, todos falando e escrevendo da mesma maneira, sem diferenças regionais, o que não acontece nos países de língua espanhola. O que Vallejo não mencionou, com sua delicada generosidade, é que são bem poucos os que leem, nesse número milionário. Que temos graves problemas de educação e não resolvemos a praga do analfabetismo. Que buscamos credibilidade para nossa literatura lá fora, quando não formamos leitores aqui dentro. Que alguns sonham com o “mundo” europeu norte-americano e ainda nem foram lidos no “mundo” brasileiro.
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George orwell Ensaísta de mão-cheia
Notabilizado como autor de dois clássicos contra o totalitarismo, escritor inglês, nascido há 110 anos, também legou crônica, crítica e jornalismo literário TEXto Marcelo Abreu
Nos seus 46 anos de vida, o jornalista e escritor inglês George Orwell (1903-1950) vivenciou duas guerras mundiais, a Revolução Russa e a consolidação da União Soviética, o surgimento do nazismo e do fascismo na Europa, a Guerra Civil Espanhola, a derrocada do Império Britânico, a popularização de meios de comunicação de massa como o rádio e o cinema. Assuntos palpitantes não faltaram na primeira metade do século 20 para quem, como Orwell, tinha muito a dizer e sabia usar a palavra escrita de forma simples e elegante. Neste mês de junho, comemoram-se os 110 anos de nascimento do escritor. Eric Arthur Blair, seu nome verdadeiro, nasceu em Motihari, na Índia britânica, em 1903, filho de ingleses. Seu pai trabalhava na administração pública da Índia colonial. No ano seguinte, Eric Blair foi com a mãe morar na Inglaterra. Aos 19 anos, mudou-se para a Birmânia, também colônia britânica, onde trabalhou como policial. No fim dos anos 1920, já decidido a se tornar escritor, circulou pela Europa como indigente, recolhendo material para o futuro livro Na pior em Paris e Londres. Viveu entre trabalhadores no norte da Inglaterra e aderiu às ideias socialistas. Aos 29, decidiu adotar o pseudônimo para evitar constranger a família com seus relatos sobre a vida como vagabundo. Conhecido como o autor de A revolução dos bichos, uma fábula política, publicada em 1945, e do clássico 1984, publicado em 1949, George Orwell
se notabilizou também pela farta produção de textos para a imprensa. Uma das facetas mais requintadas da obra de Orwell são os ensaios. Escritos de forma direta, com linguagem simples e poucas referências a outros autores, os textos ainda são considerados modelos de raciocínio expresso de forma clara. Entre 1929, quando começou a colaborar com o jornal New Aldephi, e sua morte precoce, em 1950 (vítima de tuberculose), ele escreveu centenas de artigos. Essa produção encontra-se hoje reunida em antologias que destacam
Fazendo piada sobre os próprios posicionamentos políticos, Orwell dizia ser um anarquista conservador vários dos seus melhores momentos. No Brasil, a editora Companhia das Letras mantém em catálogo os livros Dentro da baleia e outros ensaios e Como morrem os pobres e outros ensaios, ambos reunindo parte dos textos escritos para jornais e revistas.
SEM RANÇOS
A princípio, muitos assuntos interessavam a Orwell. Há ensaios variados sobre esportes, o hábito de beber chá ou as especificidades da língua inglesa. Porém o que mais o fascinava eram os temas ligados a livros,
escritores, a crítica ao colonialismo e a defesa do socialismo. Em termos de estilo, praticava uma erudição sem ranços acadêmicos e baseava sua argumentação na experiência direta com os fatos. Num ensaio intitulado A política e a língua inglesa, de 1946, Orwell definiu regras para escrever que hoje são comuns em manuais de redação: nunca utilizar uma metáfora ou figura de linguagem já desgastada; nunca usar uma palavra longa onde uma curta for suficiente; nunca usar uma expressão estrangeira, científica, ou um jargão, quando houver um equivalente coloquial. Foi o lado político o que mais marcou sua obra. Orwell se dizia socialista, mas percebeu, já nos anos 1930, o caráter totalitário da Revolução Russa e se tornou um adversário ferrenho do comunismo soviético liderado por Josef Stalin. Apesar de ter seus argumentos usados pelos conservadores de direita para fustigar a esquerda, Orwell se dizia um “socialista democrático”. Arriscando-se a perder amigos, mas não perdendo a piada, classificou-se como um tory anarchist, um anarquista conservador. Ele ressaltava que seu objetivo era denunciar os desvios do socialismo soviético, fazendo uma crítica pela ótica da esquerda. É curioso que o romance 1984 tenha sido escrito em 1948, oito anos antes do discurso de Nikita Khruchov que denunciou o regime de Stalin. Foi inevitável que a imagem de Orwell ficasse atrelada aos seus dois maiores sucessos: o livro A revolução
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dos bichos, no qual ironiza os desvios do socialismo soviético, e o romance 1984 – uma assustadora denúncia sobre o totalitarismo. Nesta obra, já traduzida para mais de 60 línguas e atualíssima por motivos diferentes dos imaginados pelo autor na década de 1940, foram introduzidas expressões como big brother (grande irmão) e newspeak (novilíngua). A novilíngua imaginada pelo autor, por sua vez, trazia um reduzido vocabulário com termos usados no totalitarismo que ainda hoje é motivo de análises linguísticas. Lá estão neologismos como doublethink (duplipensar), unperson (impessoa) e thoughtcrime (crimideia). Atribui-se ao autor o uso pioneiro da expressão cold war (guerra fria). Anos antes do lançamento dos dois romances, porém, os artigos de George Orwell já vinham indicando suas posições políticas. Foi no norte da Inglaterra, observando a condição da classe trabalhadora nos anos 1930, que ele aderiu ao socialismo – processo retratado em O caminho para Wigan Pier. O momento de definição política acabou sendo durante a Guerra Civil Espanhola, na qual Orwell lutou, em 1937, quase foi morto por fascistas, e acabou perseguido por comunistas ortodoxos: “O que eu vi na Espanha e o que tenho visto nas maquinações dos partidos políticos de esquerda me deram horror à política. Eu sou, com toda certeza, de esquerda, mas acredito que um escritor só pode permanecer honesto mantendo-se longe de rótulos políticos”, escreveu. Orwell deixou seis romances, três livros baseados em experiências reais, poemas e um vasto acervo de artigos, ensaios e resenhas. Depois dele, a prosa culta e inteligente na imprensa não seria mais a mesma. Ele mesmo resumiu: “O que eu mais desejava era transformar o texto sobre política numa forma de arte”. Em 1947, em um ensaio sobre o russo Liev Tolstoi, Orwell escreveu que não há argumentos para defender a qualidade de um poema. “Ele (o poema) se defende sozinho ao sobreviver, ou então é indefensável”, afirmou. O mesmo poderia ser dito para avaliar a obra de Orwell, hoje, que vem sobrevivendo muito bem à passagem do tempo.
NONA ARTE Nonsense em traço preciso
Álbum Strips!, do britânico Brian Bolland, diverte o leitor pelo caráter absurdo, enquanto envolve pelo virtuosismo técnico que lembra mestres do gênero texto Danielle Romani reprodução
Leitura
Os anos 1980 foram cruciais para as histórias em quadrinhos. Foi nessa década que o público pôde acompanhar uma transformação no comportamento e personalidade dos, até então, caretas super-heróis, a partir do lançamento da graphic novel Batman, o Cavaleiro das Trevas, do norte-americano Frank Miller. A série não apenas trazia um
Batman embrutecido, fascistoíde e raivoso – uma antítese do mocinho de décadas atrás – como mostrava a preocupação das editoras em produzir álbuns elaborados e investir em novos profissionais de diversas nacionalidades. Nesse período, os vilões também se tornaram protagonistas, roubando a cena, a exemplo do Coringa,
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INDICAÇÕES personagem principal da Piada mortal, graphic assinada por Alan Moore e Brian Bolland. Foi exatamente nessa fase, pegando carona em títulos da DC e da Marvel, que os autores e desenhistas ingleses invadiram o mercado, mostrando que podiam ser tão bons ou melhores que os congêneres americanos. Os britânicos Neil Gaiman, Alan Moore, Dave Mckean e Brian Bolland são produtos dessa safra premiada. E se, inicialmente, ativeram-se ao cast de superpoderosos e mascarados da indústria de quadrinhos americana, rapidamente puderam mostrar ao grande público a maestria e originalidade dos seus trabalhos autorais. A maioria deles, acima de média. Verdadeiros deleites para os aficionados da “nona arte”. Entre os ingleses, Brian Bolland foi o que menos se destacou por essas paragens. Só agora, com o lançamento do álbum Strips!, publicado com o selo da Nemo, pode mostrar a grandeza do seu trabalho, que conjuga desenho primoroso e roteiro preciso. Strips! é dividido em duas partes. A primeira traz a série de histórias – geniais, diga-se de passagem – conhecidas como A atriz e o bispo, que mostram uma atriz sensual, e usando pouca roupa, convivendo com um bispo trajado com os paramentos tradicionais do cargo. Ao contrário do que se pode pensar, não há pornografia, nem cenas de sexo, nem frases chulas, nem críticas abertas à Igreja. Apenas uma narrativa que beira o surreal e o nonsense, bem ao estilo do igualmente britânico Lewis Carrol. O desenho utilizado por Bolland também é inusitado,
pelo menos para os que estão acostumados a acompanhálo nas tramas de superheróis. Nesse caso, observase preciosismo e domínio técnico excepcionais: cada quadrinho é desenvolvido com tamanhos detalhes, que, em alguns momentos, lembram os traços de autores clássicos, como Will Eisner. Prova de que Briand Bolland domina o desenho e é capaz de transitar por vários estilos. O conjunto – argumento e traço – transforma as histórias dessa improvável dupla num dos trabalhos mais fascinantes da geração de ingleses. Com ele, Bolland não tem nada a dever a Alan Moore ou Gaiman. A segunda fase do livro é mais conhecida e tem o traço mais sujo e rápido, típico do cartum e da crítica: nela se poderá rever as desventuras do sr. Mamoulian, um homem de meia idade às voltas com diversas questões existenciais. Muitos afirmam que as histórias são autobiográficas. Elas também refletem o humor melancólico e inteligente dos britânicos. Mestres da elegância e do nonsense.
ESTUDO
IZABELA DOMINGUES Terrorismo de marca Confraria do Vento
Novas situações surgem para as áreas da comunicação, no ambiente virtual, o que inclui a publicidade. A autora observa as mudanças de comportamento dentro das redes sociais, apropriando-se de um novo vocabulário, que inclui termos como “consumerismo político”, “prossumidor” e “netizens”. Seu método de trabalho é a análise de discurso.
BRIAN BOLLAND Nemo Título explora improvável encontro entre uma atriz sensual e um bispo paramentado
GRUPO LITERÁRIO DOM CARRERO Bartleby, um espelho possível Edição dos Autores
Treze alunos da oficina literária ministrada pelo escritor Raimundo Carrero juntaram-se para ler o inquietante conto de Herman Melville. Não deu outra: inquietos, resolveram colocar no papel os comentários que fizeram a respeito da obra, a maioria de caráter pessoal e epifânico.
FOTOGRAFIA
ROMANCE
Edição do Autor
Estação Liberdade
GUI MOHALLEM Welcome home
Strips!
COMENTÁRIO
A cada ano, no início da primavera, grupos se reúnem para celebrar a estação, num ritual pagão de origem celta chamado Beltane. O fotógrafo brasileiro esteve numa fazenda norte-americana acompanhando um desses festivais. O livro de fotografias, inusualmente, explora pouco o espaço das páginas. Pena, porque o impacto que elas produzem é claramente minimizado.
ÉMILE ZOLA Germinal Publicado em 1885, esse marco do realismo literário francês trata da revolta de um grupo de mineiros contra suas péssimas condições de trabalho. A vida deles começa a mudar com a chegada de Étienne Lantier, que organiza ações em busca de dias melhores. Germinal foi tido como um dos romances que melhor representava as relações humanas no universo do trabalho.
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José Cláudio
artista plástico
matéria corrida
diário das frutas
Sempre que medito na vida, paixão, morte não, ou morte sim de uma primeira Tereza que ainda alcancei, mais ressalta a presença da zona do Recife, no tempo em que ocupava todo o Bairro do Recife, genericamente chamado de Rio Branco, zona que a pintora conhecia através dos relatos de seus irmãos, das farras que praticavam, daquela fronteira da liberdade que ela, adolescente, nunca mais pôde esquecer. Tanto que a essa mesma zona já dedicou uma inteira exposição, quando deu o depoimento a que me refiro. E acredito que, não somente na arte, na vida pessoal, no rompimento com essa Tereza anterior, senhora da sociedade, na decisão de “cair na vida”, tenha pesado a autenticidade e destemor daquelas mulheres, que não tinham nada, nenhum apoio de ninguém, nem material nem moral, lançando-se ao mundo com a cara e a coragem. Ela, que tinha tudo, precisava de coragem ainda maior. Sumamente gratificante a exposição recente, 12 de março a 26
de maio, no Centro Cultural Correios, ter sido feita exatamente “lá dentro” no front olhando para o Chanteclair, em plena Avenida Marquês de Olinda, uma das artérias daquela cidade fantástica, Rua do Bom Jesus, Rua da Guia, Vigário Tenório, fantástica mesmo em si e não somente nas fantasias de Tereza: Jorge Amado disse não haver nada igual na época, década de 1950, a não ser parecido, a zona de Hong Kong. Não foi só uma exposição da pintora Tereza Costa Rego mas um marco comemorativo, um canto épico ao heroismo das mulheres que ali viveram, ‘derramaram o seu sangue’, como sugerido no quadro A manga. A decoração transformou as salas num ambiente intimista. Substituindo as sedas, a aspereza e obscuridade dos corredores entre caixotes de frutas acenam para alguma brutalidade ou animalidade quem sabe inerente ao ato carnal, em contraste com a delicadeza dos nus. Também transparece a ideia religiosa do pecado, do fruto proibido, do perigo, da árvore do bem e do mal, através da serpente,
ou das serpentes, não sei se às vezes ou sempre mais de uma em cada quadro, a expulsão do Paraíso que o materialismo dialético não conseguiu vencer. Uma aristocracia, um pudor, um recato. Diferente do “como beber um copo d’água”, no dizer dos revolucionários russos da primeira hora, 1917 (vide Estudantes, amor, tscheka e morte de Alia Rachmanova). Há um quadro de corpos, inúmeros corpos entrelaçados, nus, que lembra os quadros de Juízo Final, no tempo da Inquisição, quando, para pintar nus, o pintor precisava justificá-los como representação das almas dos condenados sendo engolidos pelo fogo do Inferno: Tereza, no lugar do fogo, opta pelo recorte de uma grande maçã em vermelho. Se ontem os pecados, o da luxúria entre eles, podiam nos levar às chamas da lenha da fogueira, ainda hoje corre-se o risco de ser queimado pelas chamas da hipocrisia, que a pintora felizmente não teme. Tereza cada dia mais pura, mais conscientemente pura, livre, tanto a pureza estética, do aprimoramento de sua capacidade de pintar, cada vez
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reprodução
1 tereza costa rego manga. Acrílica A sobre madeira, 0,8 x 2,2m, 2012
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mais segura, fluente, sem titubeio, como, e do que o mais é reflexo, a pureza moral, seu direito de índia livre do pecado original, seu direito de ser fêmea e de ser bonita e de ser quem ela quiser, e não somente ela, um direito extensivo a todas as mulheres, a ela principalmente, que se bota a si própria como exemplo, porque toda pintura é confessional, sendo toda mulher que ela pinta ela própria em corpo, alma e divindade, digo, bravura. É incrível que esse que deveria ser o primeiro dos nossos direitos, o direito que todos os animais possuem, o homem não: o direito ao próprio corpo e suas funções naturais. Mesmo na Grécia antiga, na época do paganismo, ao contrário do que se pensa, o nu da mulher era aceito apenas no terreno da arte e não no da realidade. Em público, do corpo das mulheres só se viam os calcanhares (vide O nu, Sir Kenneth Clark). Esse ser erótico, Tereza Costa Rego, nunca devia morrer. Digo em carne e osso. E de fato não morrerá. Porque a essência, o frescor juvenil, no ponto mais alto, está na sua pintura. Seu
A essência, o frescor juvenil, no ponto mais alto, está na sua pintura. Seu ânimo. Ninguém merece tanto uma biografia ânimo. E olhe o que ela já passou! Ninguém merece tanto uma biografia. Biografia, digo pleonasticamente, escrita. Salve Tereza, que não perde, e faz com que não percamos, não reneguemos, a mocidade, nem inventemos subterfúgios para mascarar sua perda. PS. Escrito este texto, recebi uma visita de surpresa uma tarde: Tereza Costa Rego. A visita era de Lúcia Vieira de Melo, com quem me dou desde a Artespaço. Vieram de quebra Tereza e o cirurgião plástico Eduardo Carvalho, que tem quadro meu. Li, para eles ouvirem, a matéria. Cara a cara, o artiguete me pareceu de uma banalidade total. Felizmente a Continente precisou, por questão
de mudança na diagramação, acrescentar um parágrafo. Procurei apurar, nessa acareação, até que ponto a política influíra na decisão de largar o marido de boa família para se unir ao prócer comunista Diógenes Arruda. Respondeu, corajosamente, que tinha sido uma questão de atração física, “de cheiros”, como nunca tinha sentido. Perguntei se já lera o Manifesto Comunista de Marx e Engels. “Claro que li.” Lamentou que num documento recente o PCB, lembrando os grandes do partido, tenha omitido Diógenes. Disse que, em Paris, aproveitando a época da clandestinidade, estudara sociologia na Sorbonne. Escolheu, como tema da tese de conclusão do curso, em vez de movimento dos pintores de Olinda, por exemplo, a situação do proletariado no Brasil. Quando me gabei da minha terceira dentição, dos implantes, declarou nunca ter extraído um dente. Bem que Oswald de Andrade dizia que o problema do homem não é ontológico mas odontológico.
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DOCUMENTAL Dinâmicas de terreiro Em O sagrado, a pessoa e o orixá, Roberta Guimarães registra rituais do candomblé, trazendo ao leitor importante acervo religioso texto Adriana Dória Matos
Quando diante de um livro de
fotografias de caráter documental, tendemos a receber o discurso visual proposto sob a premissa de que as imagens “são o real”. E o são, de certo modo, pois esse é o contrato que se estabelece entre o fotógrafo e seu tema, no documentarismo. Apesar disso, devemos nos indagar sobre a interpretação do mundo por parte do fotógrafo, para além dos elementos intrínsecos à técnica e à linguagem fotográfica que ele domina, e do projeto de documentação a que ele se propôs. Como aquele indivíduo enfrenta e dialoga com o universo que pretende registrar? O que ele sabe e sente a respeito dele? Quanto tempo a ele se dedicou? Que considerações fez no momento de escolher as fotografias que seriam publicadas, em detrimento de outras? Porque, se não levarmos em conta a subjetividade de quem fotografa, estaremos ignorando uma parte essencial dessa dinâmica, que é a relação estabelecida entre o fotógrafo e seu tema. Pensar nas imagens tiradas do mundo, a partir dessas considerações, amplia nossa capacidade de percepção do fotografado, na medida em que incluímos quem fotografou, sabendo que ambos foram, naquele processo, transformados. Transformação foi certamente a situação vivida por Roberta Guimarães, na produção de O sagrado, a pessoa e o orixá. Esse trabalho de documentação, que teve a duração de um ano, é
decorrente dos interesses que têm mobilizado a fotógrafa desde a sua formação em fotojornalismo, nas redações de jornais e revistas, claramente orientados para os registros da cultura popular e das tradições, sobretudo pertinentes ao estado em que vive, Pernambuco. No que diz respeito a esse enfoque, poderíamos mencionar aqui os ensaios que ela realizou para o projeto Brincantes da Mata (2010), especificamente as fotografias de Martelo, que atua como Mateus em cavalo-marinho, e do mestre de maracatu rural Zé Duda. Observando esses dois ensaios (o segundo, em parceria com as fotógrafas Rose Gondim e Tuca Siqueira), somos levados a O sagrado, a pessoa e o orixá. Antes de seguirmos na análise desse trabalho de Roberta Guimarães, é oportuno considerar as restrições com que se deparam os que pretendem pesquisar ou fotografar manifestações tradicionais de cultura. Como afirma Sylvain Maresca, ao examinar a longa documentação empreendida por Jorma Puranen junto a uma pequena comunidade de lapões, é difícil fugir dos passos da antropologia, quando nos voltamos para temas muito “etnologizados”, como geralmente são os de matriz popular e tradicional. Soma-se ao olhar “etnologizado”, outro, esse mais conhecido do grande público, o da “espetacularização”, muito frequente em coberturas jornalísticas
que visam o “extraordinário ordinário” dessas manifestações. O desafio, nesse caso, para pesquisadores e fotógrafos, é o de levar em consideração os registros anteriormente feitos – conhecendo previamente o tema que se abordará, para ser capaz de trazer aos seus estudos novas contribuições – e evitar o olhar meramente curioso, superficial, deslumbrado, que não raro redunda em clichês e estereótipos. Sobre o assunto religiosidade de matriz africana e o “povo de terreiro”, a que se propôs Roberta Guimarães, pesam ainda por parte desse grupo a desconfiança nos outros (decorrente de preconceitos e perseguições sociais que usualmente sofrem) e as interdições ou segredos comuns a esses cultos. Isso posto, podemos voltar às questões colocadas no início deste texto, relativas ao entrosamento entre a fotógrafa e seu tema.
CAPTAÇÃO
Roberta Guimarães conta que teve a ideia desse livro em 2010, quando levou alunos de uma oficina que ministrava para fotografar uma caminhada de terreiros. Ali, um filho de Oxum lhe chamou a atenção, não apenas pelas roupas e paramentos, mas, sobretudo, pelo porte, pelo que ela identificou como “o orgulho de fazer parte do candomblé”. Meses depois, esse rapaz posaria para suas lentes, vestindo as roupas femininas e douradas de seu orixá protetor, numa incorporação comum nos terreiros, em que as questões de gênero se apequenam diante das filiações espirituais, apontadas pelo ifá. A partir dali, ela começou a desfiar o novelo de contatos que a levariam à definição dos terreiros a serem visitados e fotografados, bem como as leituras e pesquisas que lhe dariam suporte teórico sobre o assunto. Quem já viu Roberta em campo, sabe de sua tenacidade e envolvimento. Ainda assim, lembremos, não se tratava de uma iniciada, mas de uma profissional que tinha interesse por um tema com o qual buscava contato mais profundo que a cobertura jornalística. Embora não tenha vivido aquilo que a etnografia chama de “observação
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participante”, permanecendo como um “outro-que-observa”, no tempo que dedicou ao trabalho, Roberta foi tocada pelo tema que escolheu, ainda que isso tenha se dado de modo desigual (mais ou menos intenso, de acordo com as trocas estabelecidas). “Em relação à proximidade com o tema, devo dizer que, após um ano, frequentando os boris (assentamentos de santos) e os xirês (cerimônias) dos terreiros, minha visão do candomblé mudou bastante. Talvez porque a ideia que temos da religião se restrinja às festas públicas, em que os orixás, incorporados nos iniciados, têm contato com o público. Mas fazer parte da comunidade de terreiro requer bem mais do que normalmente é mostrado: a reclusão da iniciação, as privações dadas pelas obrigações, o comparecimento às comemorações que se desenrolam por mais de três horas, os boris, os amassis, as restrições ao uso de certas cores, a ingestão de certas comidas, dependendo do orixá do(a) filho(a) de santo”, relata. Afora o entendimento trazido pelo contato mais próximo, houve o entrosamento com as pessoas que a receberam nas comunidades, deram-lhe acesso e informações importantes para a realização do ensaio documental. E o entrosamento
O trabalho de documentação feito por Roberta teve duração de um ano, em terreiros de Pernambuco leva ao comprometimento, que se reflete naquilo que a fotógrafa pode oferecer em troca do tempo que lhe foi dedicado, bem como da exposição daqueles indivíduos diante das câmeras: as imagens captadas. Roberta tem boas histórias para contar dessas trocas, ainda de quando estava no processo de captação, quando muitas vezes foi orientada pelos fotografados sobre como deveria fazê-lo, a despeito do seu domínio técnico. Pois, ali, tratava-se de uma neófita em assuntos de terreiro. Ali, pouco importava sua expertise, mas sua capacidade de ser fiel ao que estava sendo documentado. Assim é que, enquanto, para ela, vários elementos estavam em jogo (aqueles próprios da linguagem fotográfica – luz, cor, enquadramentos, angulações, movimentos – e os signos religiosos apresentados), para o “povo de
terreiro” o que interessavam eram as representações, seus agentes e suas etapas.
EDIÇÃO
Chegamos ao momento da edição das imagens, quando a fotógrafa deve decidir que história enredará e que encadeamento encontrará para isso, contando exclusivamente com imagens como elementos da narrativa. Essa é uma fase do processo em que entram em consideração a ética e a estética, a ordem e a entropia, necessárias para que a “leitura” das imagens seja tão justa quanto bela, tão inteligível quanto intrigante. Há em O sagrado, a pessoa e o orixá um raciocínio editorial semelhante ao de Martelo, do citado projeto Brincantes da Mata, sobretudo no movimento de dentro para fora, construído pelas imagens. Uma sequência inicial de paisagens e geografias, objetos e ambientes sugerem o que virá, num gesto de achegamento a indícios evidenciados aos poucos. Se não houvesse se mantido fiel à proposta apresentada às instituições de fomento, provavelmente, esse trabalho documental tivesse encontrado um foco nas “mães d’água”, Oxum e Iemanjá, orixás de grande popularidade nas cidades
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Página anterior 1 purificação A fotógrafa conta que sua visão do candomblé mudou, depois de participar de cerimônias privadas da religião Nestas páginas 2 xangô
Nas festas de terreiro, o culto ao orixá masculino foi registrado
3 iemanjá
Popular, a mãe d’água é vastamente cultuada em Pernambuco
4 oxum
Completa a documentação a realização de retratos de iniciados em estúdio montado nos terreiros
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litorâneas de Pernambuco. Mas, compromisso mantido, o livro registra o sagrado no candomblé, expresso nas pessoas que vivenciam o variado panteão de divindades nos seus numerosos e meticulosos rituais. Junto à documentação das dinâmicas próprias dos terreiros, tanto as de caráter privado quanto público, Roberta Guimarães também realizou a interpretação pessoal do tema, através do retrato. Nesse caso, a encenação da incorporação do orixá pelo devoto, no gesto de “vestir o santo”, semelhante ao ensaio que havia feito anteriormente com o filho de Oxum, avistado na caminhada de terreiros. “Tento ligar o objeto a algo mais que a própria realidade, quando é possível. No caso dos orixás, por exemplo, isso aconteceu quando pude ficcionalizar a passagem da pessoa para o orixá, no momento do vestir. Fiz esse processo com alguns iniciados e a relação de intimidade, considerando que é uma série de retratos, deu-se melhor com uns do que com outros. E vejo que isso tem a ver com o dar-se para a atividade. Não é só o fotógrafo que deve colocar toda a sua possibilidade de ‘sedução’, mas o fotografado também precisa entrar no processo”, observa. O sagrado, a pessoa e o orixá, portanto, é um livro de encontros. Ele não inaugura nem encerra o nosso encontro com esse tema que, embora esteja entre aqueles “etnologizados” e “espetacularizados”, ainda demanda estudos e documentações que o tirem da margem e da incompreensão. Basta que, para isso, assim como fez Roberta Guimarães, encontremos um lugar de aproximação com ele.
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beto figueroa/divulgação
Sonoras
juliano holanda Agora, em primeiro plano Em seu disco solo A arte de ser invisível, compositor e instrumentista pernambucano reúne diversos artistas para celebrar a canção texto Débora Nascimento
Embora George Martin tenha sido exaltado pelo seu trabalho como produtor dos discos dos Beatles, com exceção de Let it be (produzido por Phil Spector), seu nome, mesmo assim, ainda hoje é desconhecido por muita gente que gosta do quarteto inglês. Se isso acontece com o Quinto Beatle, o homem que formatou o som da melhor e mais famosa banda da história, imagine a visibilidade que têm músicos, engenheiros de som e produtores de discos de grupos e artistas bem menos badalados. Essa é lógica que podemos tecer por trás do sentido do título A arte de ser invisível, primeiro disco solo de Juliano Holanda. Se você não sabe quem é Juliano Holanda, provavelmente não leu os créditos dos encartes de mais de 80 discos lançados ultimamente em Pernambuco. Ele é figura recorrente tanto como músico quanto como autor (já são mais de 150 composições) e produtor (mais de 20 discos). Se você
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disco uma canção chamada A arte de ser invisível, depois retirada. Ao mesmo tempo em que projeta seu nome como artista, Juliano se preserva na retaguarda, ao colocar outros intérpretes para cantarem suas músicas. Uma decisão que tem a ver com uma insegurança inicial, mas tem relação direta com a vontade de ver essas mesmas pessoas cantando suas canções. E foram exatamente esses convidados os que acabaram por formar o repertório. O músico selecionou duas ou três composições e enviou para cada um deles escolher qual queria cantar – opção que influiu na atmosfera leve do disco. “Chamei as pessoas com as quais queria trabalhar. Muita gente ficou de fora. Muitos outros poderiam ter entrado, gente com quem eu tinha trabalhado ou gostaria de ver cantando minhas músicas. Com relação ao canto, não estava tão seguro de me colocar como cantor. Pra mim, tem
O músico não somente explorou o melhor de suas composições, como mostrou a sensibilidade de um produtor experiente tiver algum desses CDs e procurar ouvir novamente, pelo menos, um deles, vai perceber que Juliano é parte importante no resultado final do trabalho em que está envolvido. Após duas décadas atuando como criador “invisível”, Juliano finalmente resolveu se lançar como artista solo, disposto a se tornar visível. “Tem uma questão que é essa, que eu sempre me coloquei como um músico de background; nunca tinha pensando em fazer um trabalho solo, necessidade que foi surgindo com o tempo. Mas também tem a questão do formato do disco, que traz um intérprete diferente para cada faixa. Na realidade, todo mundo é invisível. Essa coisa de palco grande, por exemplo, se você tocar pra muita gente é o mesmo que não tocar pra ninguém. É o mesmo conceito de cidade, quanto menos gente é mais difícil acontecer essa invisibilidade”, avalia o compositor, informando que havia na setlist inicial do
sido um processo de autocompreensão, porque sempre me coloquei como instrumentista”, revela Juliano, que acabou, sem querer, fazendo um disco bem à moda do Gorillaz, projeto de Damon Albarn (Blur), repleto de convidados e estilos diferentes.
FORMAÇÃO
E assim como a do inglês, a formação do ouvido musical do pernambucano é bem diversificada: começou com a audição da Rádio Tupã, de Goiana, onde ele nasceu. Lá, menino, escutou Luiz Gonzaga, Moreira da Silva, Dilermando Reis e recebeu influências da música da Mata Norte. Ainda na infância, foi morar em Olinda, onde passou a ouvir discos dos anos 1970, como os de Marconi Notaro, Ave Sangria, Cátia de França. Já na adolescência, Juliano começou a gostar e a tocar em bandas de rock. Fora isso, havia o próprio ambiente familiar, com os pais tocando
violão em casa. Essas influências podem ser percebidas em A arte de ser invisível, no qual o artista quis extrapolar os limites musicais dos gêneros. “Sou um compositor de canções, minha preocupação é preservar a integridade delas, independentemente do que o meu lado instrumentista estiver pedindo. A paixão pela canção é mais forte, a preocupação com a poesia, isto é centro do meu trabalho”, afirma o músico, que nas gravações tocou guitarra, violão, viola de 10 cordas, baixo elétrico, teclados rhodes. Esse cuidado fica bem evidente em faixas como Ouriço (interpretada por Jam da Silva e Marion Lamonier, instrumentista e produtora francesa), Farol (com participações de Geraldo Maia e Rob Curto), Antes e depois (Jr Black), Domingo no sítio (com voz de Tatiana Parra e piano de Benjamin Taubkin). Com a intenção de destacar o acabamento das canções, o músico não somente explorou o melhor de suas composições, como mostrou a sensibilidade e o talento de um produtor experiente – o que pode ser percebido em Altas madrugadas, na qual há apenas vozes fazendo as vezes dos instrumentos (você vai jurar que ouviu uma guitarra, um baixo, mas é apenas a voz de Marcelo Pretto...). O disco tem também participações de Siba (voz em Horizontal), Areia (baixo), Carlos Ferrera (Ímãs de geladeira), Laya Lopes (Morada) e Ceumar (Na primeira cadeira, a única das 10 faixas que não é inédita). Mas, claro, ao final, sentimos falta de ouvir mais a voz do “dono do disco”, que o inicia com Karma Sutra, a mesma que permite a nossa entrada num território tratado com muito zelo. Apesar de ter feito curso de Música da UFPE e estudado violão popular no Conservatório Pernambucano de Música, a escola de Juliano Holanda como produtor foi mesmo a prática. A sua disposição é tanta, que ele já está com novos trabalhos engatilhados como produtor. Inclusive, o segundo disco solo encontra-se gravado (a música A arte de ser invisível estará presente dessa vez), o qual pretende lançar no próximo semestre e mostrar um pouco mais de seu lado rocker, com formação apenas de baixo (Areia), bateria (Tom Rocha), guitarra e voz – ele cantará em todas as faixas, desta vez. Pelo visto, não quer ser “apenas” um George Martin.
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DIVULGAÇÃO
Sonoras DUNAS DO BARATO Pique de baile tropicalista Banda pernambucana lança EP com ritmos tipicamente brasileiros, como frevo e chorinho, mas sem abrir mão do rock’n’roll texto Marina Suassuna
Há bandas que surgem de maneira
despojada, sem a preocupação de assumir grau de profissionalismo. Esse foi o princípio que permeou os pernambucanos da Dunas do Barato, quando se apresentaram pela primeira vez em 2008, no festival independente Desbunde Elétrico, no Recife. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Novos Baianos constavam na setlist de estreia, embora, na época, já existissem músicas autorais da banda. “Foi uma apresentação despretensiosa, mas tivemos uma boa resposta do público e
não demorou pra sermos chamados para outros shows. A banda se formou sem a ideia de tocar nos palcos da cidade, mas acabou sendo criada justamente nos palcos”, conta a vocalista da Dunas, Natália Meira. Entre um show e outro, as canções autorais foram surgindo naturalmente e adicionadas ao repertório, culminando no primeiro trabalho do grupo. Recém-lançado, o EP homônimo, que teve produção totalmente independente, está sendo disponibilizado virtualmente para streaming e download no soundcloud.
Ainda este mês, o projeto sairá no formato físico, com arte de capa assinada pelo artista plástico Victor Zalma. Gravado e mixado no estúdio Casona, em Candeias, o EP apresenta cinco composições, cuja sonoridade evoca a atmosfera psicodélica das décadas de 1960 e 1970, sobretudo do Movimento Udigrúdi, expressão da contracultura em Pernambuco. O trabalho traz ritmos brasileiros, como frevo, marchinhas, samba, chorinho, música rural, além de levadas mais latinas, a exemplo do mambo e da salsa. O resultado transporta o ouvinte a um baile tropicalista e a todo o frescor da época em que o Brasil se tornara terreno fértil para a liberdade musical. A Dunas mostra propriedade ao traduzir o espírito dos anos de desbunde, impulsionada por uma linha de criação que busca atualizar, com uma linguagem contemporânea, os ritmos produzidos naquela época, ao invés de, simplesmente, reproduzi-los. “A gente gosta de mexer nos ritmos tipicamente brasileiros, mas sem largar o osso do rock’n’roll”, atesta Natália. Por trás dos arranjos, estão os músicos Juvenil Silva (baixo e vocais), Rodrigo Padrão (guitarra, violão e craviola), Diego Firmino (guitarra), Gilvandro Barros (bateria) e Leo Vila Nova (percussão). O disco conta com a participação de Glauco César II, que incorporou seu piano a duas faixas. “Glauco é um músico danado de bom que todos nós já conhecíamos. A princípio, ele participaria só de Amante do Kaos. Achamos que um piano daria um molho diferente para a música. Aí vimos que Meteorango ganharia ainda mais leveza e lirismo com o piano dele” explica Leo Vila Nova. “Não teve ensaio pra isso. A coisa foi na hora. Ele chegou ao estúdio, nós conversamos sobre as músicas, ele as ouviu, pensamos em como fazer, e ele fez.” Para quem começou de forma casual, a jovem banda vem solidificando um espaço significativo no cenário local. Em 2010, apresentou-se na Mostra Play the Movie, que integra a programação do festival No Ar Coquetel Molotov. Também figurou na grade de atrações dos festivais Grito Rock Jaboatão, Pernambuco Nação Cultural e Rock Cordel Recife, todos em 2012. Recentemente, a Dunas lançou o EP com show no APR Club, programação paralela do Abril pro Rock.
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GLAUCE OLIVEIRA/DIVULGAÇÃO
INDICAÇÕES RAP
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Selo Vice/Gravadora Deckdisc
Som Livre
KAROL CONKÁ Batuk Freak
Diablo Motor
ROCK SEM CONCESSÕES
MOMBOJÓ 11 aniversário
Considerada pelo produtor Daniel Ganjaman a melhor surpresa do rap nos últimos anos, a curitibana Karol Conká traz, em seu disco de estreia, um repertório de 12 faixas calcado na potência dos beats, totalmente voltado para a pista de dança. As bases sampleadas são uma marca do álbum, combinando elementos ainda não explorados pelo gênero. Faixas como Gandaia, Vô lá e Boa-noite expressam uma brasilidade que dialoga com elementos da música americana dos anos 1990. A produção é assinada pelo catarinense Nave.
O quarto disco do grupo pernambucano funciona como uma retrospectiva dos seus 11 anos de carreira, trazendo composições dos três últimos álbuns, mas, em novas versões. A emblemática Faaca, do primeiro disco (Nadadenovo), ganha uma nova versão, assim como Vazio e Momento (de Homemespuma, 2006). O novo projeto conta com a participação de nomes que, de alguma forma, estiveram presentes na trajetória do grupo, como o quase mombojó China, Cannibal, líder da Devotos do Ódio, e o jovem pianista Vitor Araújo.
MPB
MPB
Selo Delira Música
Selo Delira Música
DIVULGAÇÃO
Há uma leva de bandas pós-Mangue que, mesmo respeitando a forte influência da cultura popular no trabalho de muitos artistas locais e o que isto significa em termos de visibilidade e apoio, optam por fazer rock’n’roll puro, sem concessões. Este é o caso da Diablo Motor, quarteto que toca basicamente hard rock, inspirado em grupos como AC/DC e Queens of the Stone Age. O DM foi formado em 2008 e hoje conta com Rafael Sales (voz), Filipe Cabral (guitarra e vocais), Bruno Patrício (baixo) e Thiago Sabino (bateria). Em Diablo Motor, os integrantes exibem o talento para segurar a pegada que o gênero musical exige, tudo envolto numa produção de primeira. O disco de estreia prova que a música pernambucana está cada vez mais se profissionalizando. (DN)
CHICO SARAIVA E SUSANA TRAVASSOS Tejo Tietê
Vampire Weekend
LONGE DO HYPE Mesmo com seus dois primeiros CDs em listas dos melhores do ano e, agora, com o terceiro (Modern vampires of the city) sendo um forte candidato a entrar nesse rol, o quarteto nova-iorquino ainda é vítima do termo hype. Esse preconceito vem impedindo que se (re)conheça o trabalho de uma banda, que, sob influências de Paul Simon, Talking Heads e The Clash, conseguiu construir um estilo que não repete os clichês sonoros de muitas contemporâneas. À frente da produção e criação melódico-harmônica das 12 faixas está o multi-instrumentista Rostam Batmanglij; ele divide com o vocalista Erza Koenig a concepção das letras, repletas de referências culturais. O Vampire Weekend vem alcançando algo difícil no indie rock: manter a autenticidade e a qualidade. Seguidamente. (DN)
Fruto de quatro anos de convivência entre a cantora portuguesa Susana Travassos e o compositor e violonista brasileiro Chico Saraiva, Tejo Tietê é um encontro poético entre as culturas dos dois países. No repertório, releituras de obras de Elomar, Villa-Lobos e Carlos Paredes dividem espaço com músicas compostas por Saraiva e letradas por poetas brasileiros e portugueses como Luiz Tatit, Clóvis Beznos, Brisa Marques e Tiago Torres da Silva. Destaque para a faixa-título, além de Melodia Sentimental e Anos Verdes.
DIANA HORTA POPOFF Algum lugar A estreia da mineira Diana Horta Popoff vem cheia de parcerias importantes para a cantora, compositora e pianista, a começar pelo seu tio, Toninho Horta, guitarrista em várias faixas como Música e cinema e Véu do oceano. Seu pai, Iuri Popoff, está presente assumindo o contrabaixo em quase todas as canções. Fernando Brant, Paloma Espíndola e Luciano Garcez assinam composições com Diana. A produção é de Márcio Lomiranda, que já trabalhou com Zé Ramalho e Ed Motta.
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Kleber Mendonça Filho crítico e cineasta
cinemascópio
uma central de cultura Não há aqui a intenção de ser nostálgico miserabilista, mas o tema é o cinema e o passado. Há a sensação de entender as mudanças naturais das coisas, e o cinema geralmente age como uma pasta de documentos. Se esses documentos serão vistos no futuro, ou destruídos, não sei. Esse documento escrito me faz lembrar Silva. Há um prédio no Bairro do Recife, construído nos anos 1940, quem sabe nos anos 1920. Ainda hoje, na frente desse prédio, há trilhos de bonde que ainda estão no chão. Nas ruas vizinhas, os paralelepípedos e outros segmentos dos mesmos trilhos foram cobertos por massas recentes de asfalto. Nessa rua, a Barbosa Lima, os trilhos chegam a um fim repentino, pois começa a capa de piche da Avenida Rio Branco. Para falar desse prédio específico, melhor começar pela sua lixeira, que era localizada nos fundos, numa minirrua que parecia indecisa entre ser espaço público ou privado. De qualquer forma, ali ficavam latas de lixo invariavelmente abarrotadas de dejetos cinematográficos. Não adiantava ir pela manhã catar o lixo,
à tarde era sempre melhor. Muito desse material era coletado por caminhões, mas algo dele terminava no sebo do seu Paulo, que, no final dos anos 1980 e início dos 1990, acontecia na calçada do extinto Cine Trianon, na Avenida Guararapes. Na lixeira, pequenos tesouros. Cartazes dobrados, enrolados ou picotados. Rolos de filme 16mm e 35mm com as marcas da Warner, Gaumont, Fox, Paramount, Metro Goldwyn & Mayer, Universal Pictures, Pathé e Embrafilme. Latas de trailers, fotos de cena de alta qualidade (Litho in USA), em cores e em preto e branco, stills de pornochanchadas com estrelinhas cobrindo os biquinhos dos seios das atrizes nuas. Documentos de cinema descartados por aquele prédio, no Bairro do Recife. Que prédio era esse? Esse prédio abrigava a central regional da distribuição cinematográfica para a Região Norte-Nordeste. Durante décadas, todos os filmes e seus materiais de divulgação, estrangeiros e nacionais, milhares de bobinas de filmes, entravam e saíam dali. Uma
central de cultura e entretenimento para milhões de brasileiros da Bahia para cima, a partir de filiais comerciais do grande business cinematográfico. Esse business tinha, para além desse endereço, elementos de fascínio na própria matéria-prima do cinema. Tinha também rostos que davam nome a todo esse business. Gusmão, da Aquarius, não apenas distribuidor da Fox e Paris Filmes, mas à frente de um acervo de cópias guardadas de 16mm e 35mm na sala atrás, uma filmoteca informal, com épicos (El Cid), karatês e banguebangues que, mesmo nos anos 1980, já não encontravam mais espaço na década que viu a popularização do VHS. Tinha também Josué, já falecido, ex-Universal e Paramount (“Psicose foi um fracasso no Recife, quando o lancei em 1960”). Quando o conheci, representava a Embrafilme, até o momento em que Collor extinguiu a estatal brasileira, em 1990. Tinha Edmilson, o caçula de uma turma de veteranos, à frente da Warner. E tinha Silva, o mais veterano de todos esses cavalheiros.
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KARINA FREITAS
Para chegar ao escritório de Silva, eu passava pela entrada do edifício. O capacho de entrada ficava a metros dos trilhos de bonde ali na frente, e o chão era ladrilhado. No alto, na testa interna do térreo, havia uma pintura da cidade de Nassau também recebendo os visitantes. Os dois elevadores eram do lado direito de quem entra, e cada elevador tinha um ascensorista, sentado, resignado, num banco de madeira, geralmente mal-humorados e abafados. Eles trabalhavam uma peculiar maçaneta vermelha, totalmente gasta. A maçaneta dava ao elevador um ar de bonde vertical. O prédio fervilhava durante a semana, com os escritórios de engenhos de açúcar, firmas de advocacia e contabilidade, e representantes de bombas hidráulicas alemãs. De qualquer forma, o que realmente me chamava a atenção naquele lugar era o aspecto cinematográfico das suas atividades. Silva ficava no primeiro andar. Um luminoso de acrílico anunciava a representação da Columbia Pictures-
Ligar para Silva no seu escritório era a garantia de que sempre ouviria do outro lado um modulado e elegante... “Sil...va...” Tri Star Pictures na entrada da Sétima Arte, o nome da sua empresa. Silva representava a Columbia desde os anos 1950. Na sua sala, cartazes de A um passo da eternidade, Gilda e Lawrence da Arábia. Na sua mesa, eu vi durante anos um peso de papel de Contatos imediatos do terceiro grau. No formato de uma meia lua de vidro, era eu quem não tirava o olho desse peso de papel, ou era o peso de papel que não tirava o olho de mim? As conversas bissextas com Silva, ao longo de pouco mais de 20 anos, tentavam esconder discretamente o interesse ávido de um jovem cinéfilo pela carga de história que Seu Silva tinha sobre o cinema, as salas de cinema, os costumes
de décadas atreladas ao ato de ir ver um filme. Ele era um arquivo vivo, e sua voz modulada, muito boa de ouvir. Ligar para Silva no seu escritório era a garantia de que sempre ouviria do outro lado um modulado e elegante... “Sil...va...”. Não era fácil esquecer, ao olhar para Silva durante uma conversa, que o seu interlocutor esteve como pracinha em Monte Castelo, que esteve na noite de inauguração do Trianon, em 1940 (“caiu um reboco do teto, deu má fama à sala durante anos”), que lançou a Ponte do Rio Kwai, em 1957, no Cinema São Luiz, e Homem Aranha 3, em 2007, em todas as salas de multiplex do Norte-Nordeste. Silva viveu uma série de mudanças históricas ao longo do seu trabalho, a chegada da TV, o fim dos cinemas de bairro, a popularização dos cinemas de shopping, chegando à atual revolução digital, que também explica o fechamento dos escritórios regionais de cinema na Barbosa Lima, atividade hoje centralizada no Rio, em São Paulo e Los Angeles. Silva faleceu nesse mês de maio, aos 89 anos.
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imagens: reprodução
Apropriada por rockers dos anos
Claquete
personagens Bons jogadores também fora de campo
Festival Cinefoot, que chega ao Recife pela primeira vez este mês, terá entre os destaques de sua programação o filme Rebeldes do futebol crédito André Dib
1950, a camisa com gola levantada voltou ao imaginário popular, décadas depois, pelo futebol. Nada a ver com o esvaziamento de seu significado promovido recentemente pelo nosso Neymar. O responsável pelo resgate, Eric Cantona, conta como aconteceu. “Não planejei. Um dia estava frio e levantei a gola. Ganhamos, então virou um hábito jogar com a gola levantada.” O visual se tornou uma das marcas do jogador francês, que, depois de se aposentar do campo, passou a investir na carreira artística, no cinema, primeiro como ator e, agora, no documentário que produz: Rebeldes do futebol. Nele, tomado por pretensões poéticas tête-à-tête com a câmera, Cantona apresenta ídolos do futebol que usaram a fama para promover mudanças em seus países. Ainda que os subutilizemos nesse sentido, o cinema e o futebol são formas de arte e entretenimento que, de acordo com o grau de consciência de seus idealizadores, podem alterar a realidade política e social. Há quatro anos, pautados por essa busca, Gilles Rof e Gilles Perez, diretores do documentário, elencaram histórias de jogadores ao redor do mundo. O resultado seria uma série para TV. “Para o longa, escolhemos o casos mais emblemáticos”, disse Gilles Rof, no Festival 11-mm, o maior do mundo dedicado a filmes sobre futebol, realizado em março passado, em Berlim. “Este é o futebol que eu gosto, que quero promover. E não somente eu. Acho que muitas pessoas querem trazer de volta esse futebol que está na raiz.” No mesmo festival, ao lado de Rof, estava o ex-jogador Predrag Pasic, que, nos anos 1990, em plena guerra na Bósnia, fundou uma escola de futebol para crianças vítimas do massacre de Sarajevo. Aí está a força de Rebeldes do futebol: em seus personagens. Além de Pasic (Bósnia), Carlos Caszely (Chile), Didier Drogba (Costa do Marfim), Rachid Mekhloufi (Argélia) e Sócrates (Brasil). Isso mesmo, o Doutor Sócrates encerra o documentário com os louros de ter fundado um sistema de gestão mais igualitário para seu clube (o Democracia Corinthiana) e, logo depois, em 1984, de ter se comprometido publicamente a permanecer no Brasil (ele tinha uma proposta para jogar na Itália), caso houvesse eleição direta para
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1 sócrates Jogador brasileiro está entre os personagens do filme, por ter se comprometido em permanecer no Brasil , caso ocorressem eleições diretas para presidente
Cinefoot Tour 2013 - Recife 17-20 jun, das 19h30 às 22h30 Cinema São Luiz www.cinefoot.org
presidente. “Que jogador hoje iria condicionar a sua saída do país a uma emenda constitucional?”, pergunta Juca Kfouri, um dos entrevistados. As histórias dos demais jogadores não são menos interessantes, e convergem para a mensagem de que, apesar de seu mainstream ser regido por interesses financeiros, o futebol pode ser muito melhor que isso. Na seleção ideal de Cantona, jogadores são heróis do povo. “Ser ídolo não deve te tornar incapaz de ver a realidade. Que importa, se você é admirado, se seu país está com problemas?”, pergunta Cantona, enquanto narra como Didier Drogba convenceu seus compatriotas a largar as armas diante da possibilidade da Costa do Marfim participar da Copa do Mundo de 2006. Apesar de a linguagem visual do filme beber na estética soviética e do vermelho saturado prevalecer nas sequências com Cantona, a sua intenção política de viés socialista nunca é maior do que o carisma pessoal dos jogadores. Entre esses, prevalece o de Cantona, cuja vaidade canastrona o levou a protagonizar o belo longa de Ken Loach, À procura de Eric. O próprio diretor inglês participa do documentário, no qual comenta que, ao produzir astros alienados e pautados por valores
Documentário perfila ídolos do futebol que tomaram partido da fama para promover boas mudanças sociais em seus países consumistas, a indústria da bola destrói a ideia de ação coletiva. As ditaduras latino-americanas souberam tomar partido do esporte, quando serviram-se dele na manutenção de seus regimes (o longa uruguaio Mundialito é bem didático a respeito disso). No Chile de 1974, Pinochet usou um dos estádios que receberiam a Copa do Mundo como campo de concentração para 12 mil presos políticos. Meses depois, em condições controversas, a seleção chilena foi qualificada para o campeonato, ao jogar no mesmo local, sem oponente, pois a União Soviética havia se recusado a participar da disputa. Pinochet cumprimentou os jogadores um a um, mas Carlos Caszely, então um dos melhores do mundo, não estendeu a mão ao general e pagou caro por isso. Nos anos seguintes, foi ameaçado de morte e teve sua mãe cruelmente (e sexualmente) torturada.
1
A anódina gola levantada de Neymar se torna ainda mais ofensiva, se comparada à história de Rachid Mekhloufi, atacante nascido na Argélia, então colônia da França. Em 1958, aos 21 anos, ele e mais nove jogadores desertaram de seus times e foram para a Tunísia, onde formaram uma equipe pela libertação de seu país. A campanha surtiu efeito. Até 1962, quando a Argélia conquistou a independência, a seleção havia vencido 65 de 91 partidas em torno do mundo. Rebeldes do futebol será um dos principais títulos do Festival Cinefoot, que há quatro anos nasceu no Rio de Janeiro, expandiu-se para São Paulo e chega neste junho ao Recife, Salvador, Fortaleza, Brasília e Belo Horizonte, cidades-sede da Copa das Confederações. Antes da sessão no Recife, haverá uma homenagem a mais um rebelde, o jogador Almir Pernambuquinho, assassinado há 40 anos num bar do Rio de Janeiro. Em fevereiro de 1973, ele se meteu numa briga de bar, ao defender dançarinos do grupo Dzi Croquetes, atacados verbalmente por três estrangeiros. Outro homenageado ilustre do Cinefoot será Jota Soares que, além de ser pioneiro do cinema pernambucano, teve carreira como comentarista esportivo em jornais do Recife.
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INDICAÇÕES DOCUMENTÁRIO
BERGMAN & MAGNANI – A GUERRA DOS VULCÕES Direção de Francesco Patierno
Sobre o pano de fundo da história da Itália e do seu cinema, a vida amorosa e artística do cineasta Roberto Rossellini junto à atriz Anna Magnani é contada de forma atemporal e intensa, tendo como cenário as paradisíacas ilhas de Vulcano, no norte da Sícilia. Utilizando-se apenas de arquivos, Patierno monta o caso de amor, traição e vingança entre os dois: o famoso cineasta a abandonou pela também atriz Ingrid Bergman. Um belo estudo sobre as personalidades fortes desses artistas.
COMÉDIA DRAMA
HOLY MOTORS Direção de Leos Caráx Com Denis Levant, Edith Scob, Eva Mendes
Melhor filme de 2012, segundo a revista Cahiers du Cinéma, aborda a vida excêntrica de um homem que se alterna entre o alter ego de mendigo, assassino, pai de família, industrial e monstro. Servindo-se de uma limusine como camarim, ele trafega pelas ruas escuras de Paris, desafiando a vida real em busca de sentidos. Denis Levant está brilhante em cena, num filme em que a carga dramática está essencialmente nas ações.
SETE PSICOPATAS E UM SHIH TZU Com Sam Rockwell, Colin Farrel e Woody Harrelson
Marty é um roteirista decadente em busca de inspiração para escrever uma história de homens que matam sem culpa. Para criar setes personagens do mundo do crime, junta-se a Billy, um sequestrador de cachorros. Os dois acabam colocando-se em risco, após roubar o shih tzu de um psicopata. O diretor e roteirista Martin Mcdonagh, através de metalinguagem afiada, desarma clichês dos filmes de gangster hollywoodianos e questiona a responsabilidade de criadores de filmes do gênero.
DOCUMENTÁRIO
64 – UM GOLPE CONTRA O BRASIL Direção de Alípio Freire
Com a ânsia de explicar às novas gerações o que foi o golpe militar (1964–1984), o artista plástico Alípio Freire, em seu primeiro longa, reúne fotos, imagens e entrevistas com 22 personagens da história (entre os arquivos, depoimentos do ex-presidente João Goulart). O projeto, que tem distribuição gratuita na internet, coloca-se na função quase “didática” e também polêmica de explicar um episódio importante da história brasileira, ainda imerso em mistérios e interditos.
Elena imagens: divulgação
DOCUMENTÁRIO PROVOCA CAMPANHA POR EXIBIÇÃO
Claquete Elena é um documentário raro. Primeiro, pela quase unânime reação positiva ao trabalho de Petra Costa, em exibição nacional desde o dia 10 de maio, em algumas cidades do país. A atriz e irmã da diretora que deu nome ao filme tem sua trajetória contada entre leituras do seu diário de tino literário, registros
em videocassetes, depoimentos e narração. Em busca de uma carreira em Nova York, Elena vive a arte intesamente, mas sucumbe a uma desilusão, o que afeta a mãe e a irmã. A relação entre as três é o mote delicado para tratar do mundo feminino com imagens que desvelam, de modo doloroso, a alma
dessas pessoas. Há quem diga que o filme é açucarado, mas dificilmente o detratará. A segunda razão do interesse pelo filme é sua forma de divulgação. Quando lançado, alcançou apenas algumas cidades, isso, por conta de ser um gênero de pouco apelo de público. Mas houve praças que fizeram campanha
por sua exibição. No Recife, por exemplo, onde o filme não chegaria aos cinemas, houve reivindicação no Facebook: Queremos Elena, o que fez com que o filme fosse exibido no final de maio (dia 28), numa sala de multiplex. “Na maioria das vezes, as distribuidoras fazem a praxe: cabines para a imprensa, divulgação em portais e, depois, aguardam os pedidos dos exibidores. Elena inovou, partindo para criar primeiro o interesse no público, com teasers contendo recomendações de artistas e interação nas redes sociais”, explica o responsável pela exibição, Roberto Nunes. Ainda assim, documentários não são considerados preferência do “público médio”. Como se vê, são necessários votos e pressão para que filmes do gênero conquistem espaço, seja no circuito alternativo ou comercial. CLARISSA MACAU
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Palco
Ikiru – Réquiem para Pina Bausch 26 a 29 de junho, 20h Caixa Cultural Recife
IKIRU Dança com os mortos
Importante difusor da dança butô no Brasil, Tadashi Endo apresenta performance em que homenageia ancestrais e a obra de Pina Bausch TEXto Marina Suassuna
1
Com movimentos corporais lentos, o bailarino de butô estabelece uma relação espiritual com o corpo e a dança. O que se busca é a intensidade das emoções e sensações por meio da economia e leveza dos movimentos, o que exige um equilíbrio interno que só pode ser adquirido através da alma. Ela é que determina as sequências gestualísticas, sem que haja preocupação com a estética dos movimentos. Segundo o jornalista e bailarino João Butoh, em texto publicado no jornal Dança Brasil, essa modalidade, que tem origem nas tradições japonesas,
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imagens: joão millet meirelles/divulgação
Palco
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retoma a ideia, por vezes esquecida, de que o dançarino não dança para si, mas para reviver algo maior. Combinadas com técnicas de dança-teatro, as referências do butô são a espinha dorsal da performance solo Ikiru – Réquiem para Pina Bausch, do bailarino japonês Tadashi Endo – um dos principais responsáveis pela difusão do butô no Brasil. Ele chega ao Recife, pela primeira vez, no final deste mês para quatro apresentações na Caixa Cultural. Criada em 2009, ano da morte de Pina Bausch, a performance estreou em sua versão completa em Campinas (SP). Ela foi apresentada parcialmente em Berlim e Barcelona. Passou por várias cidades brasileiras e alemãs, entre elas, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Frankfurt e Hannover. Como todo bailarino de butô, Tadashi quase não usa vestimenta em cena. A maquiagem de aspecto melancólico e o corpo pintado de branco fazem com que as formas expressivas e os músculos estejam em evidência. “Minha preparação para o espetáculo se inicia no momento em que começo a me maquiar. O processo de pintar todo o meu corpo de branco é como se fosse um momento de cruzar um portal entre a minha vida normal e a minha dança, na qual me encontro com meus descendentes, com meus mestres e meus mortos. Essa preparação para o encontro gera em mim uma expectativa que me enche de adrenalina necessária para fazer e lhes dedicar o espetáculo”, explica o bailarino, que também assina a coreografia e a direção da performance. Em Ikiru, que significa “vida”, Endo faz uma homenagem aos seus mestres mortos através de uma perspectiva que elimina a aparente contradição entre o nome e a mensagem do espetáculo. Para ele, vida e morte estão separadas por uma linha tênue, uma vez que o nascimento é o primeiro passo para a morte. “Minhas performances sempre são uma forma de homenagem para pessoas mortas: meu pai, meu irmão mais novo, Kazuo Ohno, Pina Bausch”, explica. “Pina Bausch morreu, Michael Jackson morreu, Kazuo Ohno morreu. Isso é amedrontador – a morte está se aproximando. É triste perceber que os artistas que influenciaram meu trabalho, de repente, se foram – para sempre. Porém isso também me faz forte.”
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Página anterior 1 maquiagem
No espetáculo, Tadashi Endo pinta todo seu corpo de branco, criando um aspecto melancólico
Nestas páginas 2 corpo nu
A ausência de vestimentas deixa os músculos em evidência
butô 3 Os movimentos lentos e leves são característicos desta técnica
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Criador do butô no Japão, juntamente com Tatsumi Hijikata, Kazuo Ohno conheceu Tadashi Endo em 1989. Desde então, os dois mantiveram uma relação de parceria e colaboração que resultou na base criativa da dança de Endo. Já a influência do cantor e dançarino norteamericano veio quando o bailarino assistia a uma apresentação do astro na Alemanha. “Michael Jackson me fascina tanto, que, uma vez, durante um show dele em Hannover, em 1987, fiquei tão hipnotizado, que não percebi que o meu filho tinha desaparecido. Desde então, ele influencia a minha dança indiretamente. Aliás, quando me dei por mim, ao final do show, saí procurando meu filho e descobri que ele tinha sido resgatado por um segurança e visto o show no palco, ao lado de Michael Jackson”, conta o dançarino.
CAFÉ MÜLLER
No entanto, a maior inspiração de Endo para conceber Ikiru foi a obra da coreógrafa alemã Pina Bausch, que ficou conhecendo através do mestre Kazuo Ohno e do amigo músico Peter Kowald. “Eu tenho muito respeito
As técnicas de dançateatro somadas às referências do butô são a espinha dorsal da performance solo de Tadashi Endo pelo trabalho que ela desenvolveu com o Wuppertal (Opera Ballet) e a dança-teatro. Mas eu a amo ainda mais como ser humano. Através deste espetáculo, quero dizer a ela: obrigado, obrigado, obrigado, eu te amo.” A primeira catarse com o trabalho de Pina aconteceu quando assistiu Café Müller (1978), principal obra do repertório de dança-teatro da alemã. No espetáculo, bailarinos silenciosos e totalmente entregues dançam tropeçando em mesas e cadeiras distribuídas no palco, evitando encontros. “Quando vi Pina cega e incerta, fraca, mas forte, para ultrapassar todas as barreiras (cadeiras) com o desejo imperturbável de alcançar sua meta, fiquei muito impressionado. Nunca me esqueço dessa cena. Nesse
momento, tenho que me tornar mais forte do que antes. Tenho a sensação que devo trabalhar muito mais. Ir mais fundo”. Não à toa, Endo surge de camisola branca em um dos momentos do espetáculo, o que remete claramente aos bailarinos de Café Müller. Em cena, o único objeto com o qual interage é uma chapa de metal, que funciona como uma lápide e, ao mesmo tempo, um espelho, simbolizando o dentro e o fora. “Esse espelho é como Pina refletida em mim e eu refletido nela.” O equilíbrio presente em sua dança também se relaciona às dualidades ying e yang, masculino e feminino, e o movimento eterno entre eles, o que remete novamente à obra de Bausch, que explorou a interação homemmulher. No palco, Endo não só enfatiza a brevidade da vida, como protesta contra a morte sob outra perspectiva, quando ela é fruto da ação humana.“Em Ikiru, eu danço também a minha indignação contra a destruição da natureza através do homem, como, por exemplo, no acidente atômico de Fukushima, causada por um erro humano.”
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AS CONFRARIAS Jornada de uma mãe pelo sepultamento do filho Escrita pelo dramaturgo Jorge Andrade, em 1969, e até então inédita nos palcos, peça cumpre temporada com encenação da Companhia Teatro de Seraphim TEXto Pollyanna Diniz
O decreto de Creonte era claro: dizia que o corpo de Polinice não deveria ser pranteado ou enterrado. Assim como Antígona não deixou o irmão insepulto, na tragédia grega escrita por Sófocles, no teatro moderno de Jorge Andrade (19221984), a personagem Marta também venceria qualquer obstáculo para
conferir dignidade ao filho José, depois da morte. O drama dessa mãe é contado em As confrarias, texto que – apesar de escrito em 1969 – só estreia nacionalmente agora, em encenação pernambucana assinada por Antonio Cadengue. A montagem marca a retomada das atividades da Companhia Teatro de Seraphim, cuja
última produção foi A filha do teatro, há seis anos. A peça entra em cartaz no dia 9 de junho, cumprindo temporada até o fim do mês, de quinta-feira a domingo (20h), no Teatro Barreto Júnior. Em 1977, Jorge Andrade concedeu entrevista à Folha de S.Paulo em que sentenciou: “Não há censura que acabe com o homem brasileiro. Ninguém pode apagar a história. Uma hora ou outra ela vem à tona. A minha obrigação é escrever, registrando o homem no tempo e no espaço. Se a peça vai ser encenada agora, ou não, isso é outro problema. Um dia ela será”. A declaração evidenciava a noção do dramaturgo quanto à dificuldade de se montar As confrarias à época, oito anos depois de escrita. Aquele era um tempo de censura ferrenha – o primeiro ano de vigor do Ato Institucional nº 5, no governo do general Costa e Silva. Talvez por isso aspectos práticos, como o número de
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As confrarias De 9 a 30 de jun Quinta a domingo, 20h Teatro Barreto Júnior
Jorge Andrade usa um pano de fundo histórico: ambienta a ação em Vila Rica, hoje Ouro Preto, à época da Inconfidência Mineira, no século 18. Marta carrega o corpo do filho, na difícil missão de enterrá-lo, já que não havia cemitérios públicos. Para ser sepultado, o morto deveria pertencer a uma confraria, só que o filho exercia uma profissão profana: ator de teatro. Então, a mãe percorre quatro confrarias: a Irmandade do Carmo (confraria dos brancos), a Irmandade do Rosário (dos negros puros), a Irmandade de São José (dos pardos, que aceita artistas, pintores, escultores, trabalhadores) e a Ordem Terceira das Mercês (mistura de negros, brancos e mulatos). Essa jornada materna evidencia questões sociais, políticas e econômicas – a desigualdade social, os preconceitos, as injustiças. O autor vasculhou a história, mas para referirse ao seu tempo, ao regime militar.
A peça utiliza a metalinguagem e questiona as funções do ator e do dramaturgo, da arte e do teatro personagens do enredo, não importaram ao autor: são 43, se considerarmos todas as indicações. O desafio de transpor ao palco uma dramaturgia com tantos personagens não assustou a Seraphim, que, em 1995, empreendeu outra estreia nacional – Os biombos, de Jean Genet – com mais de 100 deles. “Como não houve montagem, Andrade não teve chance de ouvir o texto, de revê-lo através do palco, como aconteceu com outras obras, principalmente com aquelas encenadas pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), como Pedreira das almas, A escada, Os ossos do barão e Vereda da salvação”, explica o diretor que, ao lado da atriz Lúcia Machado e de Igor de Almeida Silva, doutorando em Artes Cênicas, adaptaram a dramaturgia. Foram cerca de 15 versões testadas à exaustão durante os ensaios – 14 atores se revezam na interpretação dos personagens.
Parece o mesmo intuito da montagem, agora, ao lançar discussões, por exemplo, sobre a intolerância.
TEATRO POLÍTICO
A peça utiliza ainda o recurso da metalinguagem e questiona as funções do ator e do dramaturgo, da arte e do teatro na contemporaneidade, principalmente no que diz respeito ao caráter de contestação que podem assumir. Ao rememorar o passado, Marta resgata a figura do filho representando, por exemplo, a tragédia Catão, de Almeida Garret, que tratava dos abusos de poder na Roma Antiga. “Tenho algumas mães na minha carreira, como a de Bodas de sangue, de Federico Garcia Lorca, mas faltava Marta. É muito forte perceber que ela praticamente leva o filho à morte, porque o incitou a lutar através dos personagens que ele fazia”, diz Lúcia Machado.
Desde 2007, a atriz estava longe dos palcos, exercendo funções relacionadas à gestão cultural, como a coordenação do Centro Apolo-Hermilo, ligado à Prefeitura do Recife. O elenco conta com mais duas mulheres: Nilza Lisboa, que faz a Marta jovem; e Brenda Lígia, interpretando Quitéria, amante de José. Completam o time de atores Rudimar Constâncio, Alexsandro Marcos, Gilson Paz, Ivo Barreto, Marinho Falcão, Mauro Monezi, Ricardo Angeiras, Taveira Júnior, Carlos Lira, Marcelino Dias e Roberto Brandão. Os três últimos estavam em Vestígios, montagem mais recente assinada por Cadengue. “As confrarias é uma peça em que a teatralidade está muito baseada na imagem, uma característica, aliás, dos trabalhos do diretor”, comenta o ator Rudimar Constâncio. Na encenação, Cadengue explora o “estranhamento brechtiano” – elementos que tiram por alguns instantes o espectador da fábula e podem ser até bizarros. “Inicialmente, para resolver um problema da encenação, imaginei a figura de um anjo, que vai aparecer em alguns momentos da peça. Como Jorge Andrade, gosto da metalinguagem e trago elementos intertextuais para a cena. Esse anjo tanto é uma homenagem a Nelson Rodrigues e ao seu Anjo negro quanto às referências interétnicas da obra do fotógrafo americano Robert Mapplethorpe e a própria Seraphim, cujo ícone é um anjo de fogo”, afirma Cadengue. Outras influências para a cena também foram trazidas pelo diretor, como a do filme Terra em transe, de Glauber Rocha. A ficha técnica da produção, que conta com o apoio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), inclui a cenógrafa Doris Rollemberg, parceira da companhia desde Os biombos; figurinos, adereços e maquiagem de Aníbal Santiago e Manuel Carlos; luz de Luciana Raposo; e trilha sonora de Eli-Eri Moura. Para o diretor, ainda que tenha um traço trágico, a peça carrega em si o valor da esperança. Numa das falas, Marta diz que gosta de plantar. “É uma montagem que trata deste país. De como ele é complexo, difícil, mas como pode ser lido através da poesia, pela lente do teatro.”
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