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# 151
ELES SÃO MÁGICOS!
E NÃO DESAPARECERAM, MAS INVENTAM TRUQUES QUE INTRIGAM NOVAS PLATEIAS
#151 ano XIII • jul/13 • R$ 11,00
CONTINENTE
E MAIS HÉLÈNE GRIMAUD SERRA DA CAPIVARA DIANE ARBUS 100 ANOS DO NOISE LIÊDO MARANHÃO
JUL 13
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O PERNAMBUCO “TATUOU” AS SUAS MELHORES CRÔNICAS
Schneider Carpeggiani ORGANIZADOR
DOCUMENTAIS
DOCUMENTAIS
Desencontros, lembranças e testemunhos
Talles Colatino • Xico Sá • Micheliny Verunschk • Thiago Soares • Raimundo Carrero • Flávia de Gusmão • Ronaldo Correia de Brito • Samarone Lima • Carol Almeida • Fabiana Moraes • Carolina Leão • Bernardo Brayner • Rogério Pereira • Julián Fuks • José Castello • Bruno Albertim • Carlos Henrique Schroeder • Paulo Sérgio Scarpa • Ivana Arruda Leite • Adelaide Ivánova • Miguel Sanches Neto • Luís Henrique Pellanda • Cristhiano Aguiar • Ricardo Lísias • Ricardo Domeneck • Fabrício Carpinejar • Cecilia Giannetti • Marcelino Freire • Anco Márcio Tenório Vieira • Joca Reiners Terron
DOCUMENTAIS Desencontros, lembranças e testemunhos Talles Colatino • Xico Sá • Micheliny Verunschk • Thiago Soares Raimundo Carrero • Flávia de Gusmão • Ronaldo Correia de Brito Samarone Lima • Carol Almeida • Fabiana Moraes • Carolina Leão Bernardo Brayner • Rogério Pereira • Julián Fuks • José Castello Bruno Albertim • Carlos Henrique Schroeder • Paulo Sérgio Scarpa Ivana Arruda Leite • Adelaide Ivánova • Miguel Sanches Neto Luís Henrique Pellanda • Cristhiano Aguiar • Ricardo Lísias Ricardo Domeneck • Fabrício Carpinejar • Cecilia Giannetti Marcelino Freire • Anco Márcio Tenório Vieira • Joca Reiners Terron Esta coletânea, formada por textos reunidos exemplarmente pelo jornalista e editor Schneider Carpeggiani, traz no seu bojo não só o que de melhor se produz, hoje, no Brasil, em termos de crônica (os tais desencontros, lembranças e testemunhos do título), como ressalta a importância de escritores que se dedicam a uma profunda reformulação do gênero, e, por extensão, da literatura brasileira. Observem que, mesmo em crônicas curtas, há uma grande variedade de estilos e de visões literárias. Variedade capaz de investigar o abismo humano, naquilo que ele tem de mais forte, de estranho, de eloquente e de belo. E não podemos deixar de observar: o melhor da crônica é justamente a liberdade que ela proporciona ao escritor no processo de criação. Trata-se de uma liberdade que é assegurada pela força de uma primeira pessoa confessional, que é autobiográfica até quando não é. Poderíamos, claramente, pinçar frases e parágrafos de cada um dos textos aqui reunidos, para mostrar a grandiosidade
A partir de julho nas livrarias 24/5/2013 15:19:19
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HELDER TAVARES
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aos leitores “O ilusionismo é uma arte baseada em ciências naturais, com uso da física mecânica, ótica, química, entre outras, que só podem trazer benefícios”, afirma Lorax, que também atende como médico, sob o nome de Paulo Garcia. O mentalismo e as mágicas de salão, que pratica há muitos anos, ele aprendeu com outro médico, José Laércio do Egito, que também pode ser encontrado sob a insígnia de Faraó Keops. Assim como outras identidades ocultas, a de um detetive, de um policial civil ou de um membro da maçonaria, por exemplo, o mágico pode nem ser reconhecido por seu nome de palco, mantendo-se cotidianamente sob profissões prosaicas, mas em cena ele realiza feitos que levam o público a crer – nem que seja por alguns minutos – que o que está diante dos seus olhos acontece “de verdade”. “O ilusionista não ilude, ele ilusiona seu público através de sua arte, transmitindo o que há de mais belo e encantador. Iludir é enganar. Ilusionar é criar uma nova realidade, levar o público a outra dimensão. Essa é a verdadeira mágica”, ensina o mestre dos mágicos Astor, que fundou, em 1965, o Clube Mágico do Recife.
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Esses mágicos da “velha guarda” e outros, que agora chegam, apontam a permanência de uma profissão que, supostamente, existe desde o antigo Egito e que esteve associada, em vários momentos da História, à feitiçaria e ao pacto com o Diabo. Hoje, ninguém acredita mais nisso, não apenas porque Mister M fez o favor de “despoetizar” a mágica, mostrando o passo a passo de cada truque famoso em canal aberto de TV, mas porque a era dos mágicosmecânicos, no século 19, tratou de evidenciar a relação dela com a maestria técnica. O ambiente encantador da mágica é tema central desta edição. Buscamos abordar o assunto a partir do contexto atual, dos profissionais que estão na ativa em todo o Brasil, conversando com eles sobre o que os levou para a mágica e como nela atuam. Que tipos de mágica existem e quais são as engenhocas que as viabilizam, que pessoas se “ocultam” sob nomes grandiosos, os vários “misters” existentes, as mulheres que trafegam por esse universo, para além da figuração, todos nos interessaram. Uma atuação prazerosa para quem a exerce e quem a assiste. Um mundo mágico, de verdade.
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HOMENAGEM A JANETE COSTA
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O Festival de Inverno de Gar anhuns é uma das maiores vitrines da política cultur al de Pernambuco. Também oferece aos seus milhares de visitantes uma mostr a da produção ar tística br asileir a, consolidando a economia da cultur a no Estado. É um gr ande evento, par a todos os públicos. Venha conhecer. Ou volte par a ver como está cada vez melhor.
MÚSICA • LITERATURA • TEATRO • CIRCO • DANÇA • CINEMA CULTURA POPULAR • ARTESANATO • ARTES VISUAIS • MODA FOTOGRAFIA • DESIGN • OFICINAS • PROGRAMAÇÃO INFANTIL
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sumário Portfólio
Iezu Kaeru 6
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Hélène Grimaud Pianista francesa fala sobre seus compositores prediletos e da espiritualidade na interpretação musical
Conexão
Recontando Jornalista transpõe notícias de jornais para linguagem acessível às crianças
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Cinemascópio
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Entremez
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Leitura
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Sonoras
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Criaturas
Cardápio
Destilados No século 15, bebidas ganharam uso recreativo, obtendo papel de destaque na história da civilização
Nomes de filmes No Brasil, longas estrangeiros recebem novos títulos que destoam da intenção de seus originais
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Balaio
Acervo Reacende debate sobre repatriação de tesouros nacionais que se encontram em renomados museus pelo mundo
Claquete
No ensaio fotográfico Memória da pedra, o artista se debruça sobre o desafio de captar o passar das horas em imagens; mas ele também se dedica ao documental
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Kleber Mendonça Filho Entre o digital e o analógico
Ronaldo Correia de Brito A boca de Deus
Liêdo Maranhão Cepe lança volume que compila três obras do pesquisador e “portavoz do povão” Noise Lançado em manifesto há 100 anos, estilo musical vem reunindo adeptos, como John Cage, Lou Reed e a banda Sonic Youth
Pablo Bernasconi Roberto Bolaño
Matéria Corrida José Cláudio Recife sem rival
Linguagem Tradução
O ato de traduzir, essencial para a disseminação do saber, desperta discussões, tais como os limites da autoria e a separação entre sentido e palavra
44 CAPA FOTO Hélder Tavares
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Especial
Viagem
Adeptos de um trabalho considerado em declínio, ilusionistas provam que a arte milenar de surpreender os sentidos do público está viva, e não só como hobby
Considerado um dos mais bem estruturados parques nacionais, é um portentoso museu natural com 214 km que une atrativos históricos, arqueológicos e culturais
Visuais
Palco
Obra da fotógrafa americana de origem judaica, mais de quatro décadas após sua morte, continua impactante ao exibir marginalizados, loucos e freaks
Ator e diretor, mais conhecido pelo papel de Cristo, prepara-se para estrear o espetáculo O massacre de Angico – a morte de Lampião, em Serra Talhada
Mágicos
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Diane Arbus
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Serra da Capivara
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José Pimentel
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cartas Torcedores Emocionado com a matéria da excelente @revcontinente sobre torcedores. Somos um grupo denso e complexo, porém fascinante. PEDRO CHILINGUE NITERÓI–RIO DE JANEIRO
José Claudio É sempre um regozijo, quando abro a revista e leio a Matéria Corrida, do artista plástico José Claudio. Antes de abrir esse tesouro, pergunto-me: o que ele, hoje, de braços cruzados, vai nos contar? Agradeço pela aula de arte, história, filosofia, linguagem, pelas pinturas lembradas e estampadas dos colegas, por tudo. JONADAB MANSUR RECIFE–PE
Revista Sempre direi: “É melhor conhecer do que julgar”. Mais uma edição belíssima da Continente. A
revista sempre surpreende com seus temas e abordagens.
muito boa, embora eu só o conheça via internet. Parabéns pela matéria.
MARIA CAROLINA
ALEXANDRE MARINO
RECIFE–PE
Orquestras
Agradecimento Recebemos e agradecemos a Continente , nº 145, ano XIII, jan./13. A mesma será incorporada à coleção de periódicos desta biblioteca. CYNTHIA CAMPOS COORDENADORA DA BIBLIOTECA CENTRAL BLANCHE KNOPF – FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO RECIFE-PE
DO FACEBOOK Changuito Foi um achado a matéria de Ronaldo Bressane com o Changuito, na Continente, nº 149, maio/2013. Estou acompanhando esse cara desde que ele abriu a livraria em Lisboa. A Poesia Incompleta já deu várias contribuições à minha biblioteca, e o Changuito é gente
Comprei a Continente de maio e tive uma grata surpresa ao ler a matéria sobre as orquestras tradicionais. Como sempre, com uma escrita elucidativa, crítica e com uma narrativa peculiar desta que é uma grande amiga e excelente jornalista. Parabéns, Luciana Veras, continue assim – enchendo-nos de belas histórias e de um jornalismo não apelativo. FABIO CAVALCANTE
DO TWITTER Edição de março
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas.
Telefone
Não sei qual a melhor matéria na @ revcontinente: Ciganos, Geneton ou Blanche. Simplesmente, amando todas, querendo a de abril, por favor! PAULA XAVIER
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RECIFE–PE
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colaboradores
Caetano Galindo
Christianne Galdino
Denise Bottmann
Helder Tavares
Doutor em Linquística pela USP, professor da UFPR e tradutor de James Joyce
Jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural pela UFRPE
Historiadora, tradutora e doutora em Filosofia da História pela Unicamp
Fotógrafo freelancer e videomaker, com graduação em Jornalismo
E MAIS Augusto Pessoa, fotógrafo e jornalista. Bruno Albertim, jornalista especializado em gastronomia. Chico Ludermir, jornalista e fotógrafo. Josias Teófilo, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB. Leidson Ferraz, jornalista, ator, produtor e pesquisador da área teatral. Pablo Bernasconi, ilustrador argentino, colabora com várias publicações internacionais. Wellington de Melo, escritor. Williams Sant’Anna, ator, palhaço, produtor cultural, encenador, historiador e arte-educador. Yellow, designer, músico e professor.
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HÉLÈNE GRIMAUD
“O Romantismo é um período fecundo”
Pianista francesa, que fez uma série de apresentações no Brasil recentemente, fala sobre a importância do conhecimento sobre o contexto em que se inserem os compositores que interpreta e de sua escolha de repertório erudito TEXTO Josias Teófilo
CON TI NEN TE
Entrevista
A pianista francesa Hélène Grimaud pertence a um grupo muito restrito de intérpretes eruditos cuja fama extrapola as salas de concertos. Hélène foi retratada em documentários televisivos, tem presença constante na TV, especialmente na França, e suas gravações – a maioria colocada por fãs, sem a autorização da gravadora – recebem centenas de milhares de visitas no Youtube. É artista exclusiva da Deutsche Grammophon, desde 2002, o mais importante selo de música de concerto no mundo, cuja origem se confunde com o nascimento da indústria fonográfica. Nela, gravou uma série invejável de CDs de compositores como Bach, Beethoven, Brahms, Chopin, Rachmaninov, cujos lançamentos são sempre acompanhados de teasers, em geral muito bem produzidos, divulgados na internet. Sua gravação do Concerto para piano nº 1 de Bach, com a Die Deutsche Kammerphilharmonie Bremen, no CD dedicado a esse compositor, é primorosa e comparável à versão
revolucionária feita por Glenn Gould. No CD Resonances, ela fez uma ousada escolha ao juntar compositores tão díspares quanto Mozart, Berg, Liszt e Bartók. O enfoque, na verdade, é geógrafico: trata-se da música inspirada ou produzida na Europa Central. Hélène gravou também dois dos mais belos concertos de Mozart, nº 19 e nº 23, e, em 2012, um CD com a violoncelista Sol Gabetta, considerado pela crítica especializada como o disco do ano. Além disso, Hélène Grimaud gravou o Concerto nº 5 de Beethoven, em que tentou “fugir da concepção habitual, em que o piano soa grandiloquente, como em oposição à massa orquestral” para “fazer o piano soar como se fizesse parte da orquestra”, como declarou em entrevista. Foi esse concerto – chamado posteriormente do Imperador, não se sabe se pelo caráter grandioso do primeiro movimento ou por ser, como afirmam muitos, o imperador dos concertos para piano – que a pianista trouxe em turnê pela América Latina em
maio, tocando no Brasil em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Na capital paulista, a pianista se apresentou com a Osesp, que vive um dos seus melhores momentos no cenário nacional e internacional. Ano passado, a orquestra fez turnê pela Europa, motivada pelo convite do grande festival de música de concerto do mundo, o BBC Proms, no qual foi ovacionada com o pianista mineiro Nelson Freire. Este ano, a orquestra se prepara para outra turnê, ainda mais ampla pela Europa, além de gravar a integral das sinfonias de Prokofiev e Villa-Lobos pelo selo Naxos. Hélène Grimaud recebeu a Continente no camarim da Sala São Paulo, logo após o ensaio com o maestro Stéphane Denève. Com seus vivos olhos azuis e a voz pausada e grave, ela falou sobre a interpretação musical, sobre o Romantismo e sobre a espiritualidade na música e na arte. CONTINENTE No depoimento ao encarte da sua gravação de Beethoven você diz que “a emoção, por si só, não leva muito longe”, pois “o emocional deve ser desenvolvido
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MAL HENNEK/DIVULGAÇÃO
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verdadeiramente lhe esclarecer. No fim das contas, é algo muito pessoal entre a obra e o intérprete. CONTINENTE Você se refere ao Concerto nº 5 de Beethoven como um animal selvagem. Interpretálo é como domar esse animal? HÉLÈNE GRIMAUD É preciso se apropriar da obra, que tem sua própria natureza, é preciso suficiente respeito. É necessário que a obra mostre seu segredo, e isso demanda muito trabalho. Mas não podemos
FOTOS: ALINE ARRUDA/DIVULGAÇÃO
através da lógica filosófica”. Qual o papel da emoção e da razão na interpretação musical? HÉLÈNE GRIMAUD Para mim, é preciso que os dois estejam presentes na mesma proporção. Isso é sempre o que eu procuro, é o ideal. Se há excesso de um ou do outro, falta algo. Mas, se eu tivesse que escolher, escolheria definitivamente a emoção. É isso que caracteriza a música universal, é por isso que ela tem o poder de... como dizer, affect people, no sentido forte do termo. Não é algo feito unicamente para a
CON TI NEN TE
“(A brasileira) É uma música muito evocativa, de cores, de coisas – é um universo! É uma música que cria algo de muito sensual também, que gera sensações de um nível mais corporal”
Entrevista razão, para a satisfação intelectual. É preciso te tocar! Para mim, há definitivamente uma hierarquia, se eu tivesse que escolher. Mas, o ideal é não ter que escolher, e que os dois dialoguem sempre. CONTINENTE É um hábito ler sobre o repertório, informações biográficas, históricas? Isso pode ajudar na interpretação? HÉLÈNE GRIMAUD Sim! Eu tenho duas opiniões sobre o tema: adoro fazer isso, acho que é importante saber o que se passou com os contemporâneos do compositor no momento em que a obra foi escrita, o que se passou evidentemente na vida dele e o contexto histórico, político etc. Porém, ao mesmo tempo, se a obra não o toca por si, a chave desse segredo – todas as informações biográficas, históricas, musicológicas – não vai
me agradou no Romantismo foi o período bem inicial e o fim, o último Beethoven, as últimas sonatas etc. E, depois, os poetas, escritores, romancistas, quando eles falam do fenômeno da universalidade. Em geral, quando se pensa no Romantismo, pensa-se em algo que fala do “eu”, da subjetividade. Mas, na verdade, é muito mais do que isso, Racine fala de uma “intuição global”, acho que essa é a verdadeira essência do movimento romântico. É um tema que me intriga.
predeterminar o momento em que isso vai acontecer, não é algo que você diga “vou trabalhar com essa obra por dois meses e a partir da terceira semana vai estar pronta”, é muito mais misterioso, por vezes se passa no último minuto, em outras se passa muito cedo no aprendizado da obra.Temos que deixar que esse processo – biológico, por assim dizer – seja superado. CONTINENTE Parece existir uma afinidade sua com a música do período romântico, aliás, desde bem cedo, seu primeiro concerto foi o nº 2 de Chopin e o primeiro recital a Sonata nº 2 de Rachmaninov. O Romantismo é uma especialidade no seu repertório? HÉLÈNE GRIMAUD Eu gostaria muito (risos). Acho que é um dos períodos artísticos mais fecundos que existiu, e com o espectro mais largo no seu desenvolvimento. O que sempre
CONTINENTE Roman Jacobson dizia “toda grande arte é romântica”. HÉLÈNE GRIMAUD Exatamente isso. Do mesmo modo, podemos dizer que a 6a Partita de Bach é também romântica. CONTINENTE Ou que Noite transfigurada, de Schoenberg, é romântica. HÉLÈNE GRIMAUD Sem dúvida! CONTINENTE Além dessa afinidade de repertório, parece-me que seu espírito – essa proximidade com os lobos, com a natureza – tem algo de profundamente romântico. HÉLÈNE GRIMAUD É verdade que a natureza é a inspiração última. Para todos os criadores, isso é normal – nós, intérpretes, não somos criadores, temos um papel bem mais insignificante – mas, mesmo para um intérprete, a natureza é a musa. Ela também fez parte da essência do romantismo alemão, sempre
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esteve presente. E não é somente um conceito, é a realidade para os compositores, para os poetas, para os escritores – é sempre na natureza que eles se reencontram. CONTINENTE Mas a interpretação tem algo de verdadeiramente criador, nós podemos falar do (maestro alemão) Carlos Kleiber… HÉLÈNE GRIMAUD Sim, ele transfigura as obras. É verdade que uma obra, uma vez que existe no papel, é revivida na interpretação,
HÉLÈNE GRIMAUD Durante muito tempo eu não quis tocá-lo, e finalmente, quase 20 anos depois de tocar o primeiro, eu disse “está na hora de fazer o segundo”. Noto que Brahms tem algo de purificador: eu não sei se é o classicismo de proporções, a arquitetura da obra. CONTINENTE Certa ocasião, li que Brahms não sabia fazer a união entre o amor carnal e o platônico, e que isso se reflete na sua música, especialmente na música de câmara.
obra no seu todo, é o discurso, algo que porta o elemento determinante. CONTINENTE Ser pianista e escritora são duas formas diferentes de se expressar ou elas são fruto de uma mesma interioridade? HÉLÈNE GRIMAUD São duas formas diferentes. Para mim, a escrita é muito mais falível. Não me considero escritora. Escrevo, mas isso não é essencial para viver, a música sim. Acho que a música é muito mais honesta, porque a linguagem é sempre mais artificial, descrever algo é sempre traí-lo. É
“Cada tonalidade musical me faz ver uma cor. Pouco importa se é Rameau ou Ravel. Para mim, o ré menor é azul, não importa se é um compositor moderno, barroco” é como uma recriação. Existe esse aspecto criador também. CONTINENTE O que você conhece da música brasileira de concerto? Você gosta? HÉLÈNE GRIMAUD Sim, eu a amo muito. Eu nunca a toquei, talvez numa próxima vinda ao Brasil. É uma música muito evocativa, de cores, de coisas – é um universo! É uma música que cria algo de muito sensual também, que gera sensações de um nível mais corporal. Eu espero voltar ao Brasil. CONTINENTE Qual concerto para piano lhe dá mais prazer em tocar? HÉLÈNE GRIMAUD O primeiro de Brahms! Especialmente o último movimento, é muito agradável – essa dimensão que é também de Bach, na sua música, é fantástica. CONTINENTE E o 2º Concerto de Brahms lhe agrada?
HÉLÈNE GRIMAUD É verdade, eu nunca tinha ouvido essa ideia, mas faz sentido. Talvez por isso ele não tenha sido tão ativo em nenhuma das duas, porque na verdade o amor é um só. CONTINENTE E qual o mais espiritual dos concertos? HÉLÈNE GRIMAUD Eu diria o nº 4 de Beethoven!
impossível descrever uma sensação através de palavras, mas, na música, existe algo que é muito mais direto, mais aberto, mais honesto. Existe também outra diferença: apesar de serem dois fortes meios de expressão, eles não são comparáveis. Naturalmente, é possível ser bastante afetado pela leitura de algo, porém a música tem algo de primário, que lhe transforma materialmente, é físico, biológico.
CONTINENTE Existe um livro muito belo de Paul Valéry, Eupalinos ou o arquiteto, em que ele diz “não há detalhes na execução”, referindo-se à arquitetura. O mesmo poderia ser dito da interpretação musical? HÉLÈNE GRIMAUD É sempre a arquitetura que, ao meu ver, determina tudo. Nós podemos, aqui e ali, consagrar muita atenção aos detalhes da interpretação musical, mas, para mim, o que importa é o sopro que perpassa a
CONTINENTE É verdade que você é sinestésica? HÉLÈNE GRIMAUD Sim, mas não é sistemático, todo o tempo. Entretanto, acontece com certa regularidade. Cada tonalidade musical me faz ver uma cor. O que é interessante é que pouco importa se é Rameau ou Ravel. Ré menor é azul, não importa se é um compositor moderno, barroco, impressionista. É algo que se manifesta naturalmente.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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MÁGICOS
DIANE ARBUS
Truques e ilusões têm fascinado públicos de vários tempos e idades, e isso continua a acontecer, com atualizações tecnológicas, claro. Acompanhando o material produzido para a revista, no site, vamos disponibilizar trechos do espetáculo Abracasabra, de Rapha Santacruz, que está circulando pelo Nordeste. O mágico também vai ensinar, num vídeo produzido, alguns truques simples, que podem ser feitos com materiais do dia a dia. Confira, ainda, a histórica apresentação de David Copperfield, na qual ele faz a estátua da Liberdade desaparecer.
Documentário da série Masters of photography foi produzido em 1972, reunindo imagens, depoimentos e a narração de declarações da própria fotógrafa sobre seu ofício.
Conexão
LIÊDO MARANHÃO Nos anos 1970, ambulantes propagavam produtos peculiares pelo centro do Recife. Liêdo colheu testemunhos deles. Leia alguns, extraídos do livro O mundo da camelotagem.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
BUSCAS
VIAGEM
PROTESTO
LITERATURA
Site ironiza ferramenta de criação de textos “poéticos” do Google
Dupla de designers monta roteiro de mochilão para a Ásia
Criadores de HQ se juntam à ONG para protestar nas eleições iranianas
Se falta leitura em voz alta, voluntários estão a postos na produção de audiolivros
poesiadogoogle.com
asiademochila.wordpress.com
vote4zahra.org
librivox.org
Se, um dia, o dicionário foi o “pai dos burros”, o Google pode ser classificado, hoje, como o “pai dos espertos”. Até poesia o portal vem fazendo. No site colaborativo Poesia do Google, você pode visualizar o resultado da empreitada. Se sentir vontade de também exercitar os dotes de um poeta virtual, basta colocar aleatoriamente uma frase no quadro de busca dele e esperar sugestões para sua poesia. Por exemplo, escreva “Essa noite” e o Google, poeticamente, completará com várias possibilidades, entre elas: “Essa noite somos um só” ou “essa noite eu tive um sonho”.
Os designers Ana e Rômulo estavam cansados da rotina de trabalho e do agito da cidade grande e, por isso, decidiram sair em longa viagem pela Ásia. Mas, depois de escolher o destino, encontraram um empecilho: a falta de guias voltados para mochileiros brasileiros. Em quatro meses de viagem, passando pela Tailândia, Laos, Camboja, Vietnã, Hong Kong, Macau e China, a dupla montou um roteiro de viagem em português com ilustrações e sugestões de hotéis que custam, no máximo, 10 dólares.
Amir Soltani e Khalil Bendib, autores da história em quadrinhos O Paraíso de Zahra, se juntaram à ONG Human Rights United for Iran para lançar a personagem Zahra como candidata virtual à presidência do Irã, na eleição que aconteceu em junho passado. Segundo os autores, essa foi a melhor forma de alertar os atuais políticos do país, considerados opressores, principalmente com mulheres, pobres e minorias. Lançada no Brasil em 2012, pela LeYa, a HQ conta a história de Zahra, uma mulher de 52 anos que teve o filho assassinado por autoridades em 2009, no protesto contra a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad.
Com as possibilidades do universo digital, o escritor Hugh McGuire fundou o Librivox, um site colaborativo que tem como objetivo montar uma biblioteca de audiolivros. Para participar, você se inscreve como voluntário e, a partir daí, pode sugerir alguma obra de domínio público para ser narrada, ou escolher ler em voz alta um capítulo de um livro sugerido por terceiros. Em seguida, é só fazer uma gravação em MP3 e enviar para o responsável por aquele livro, que juntará todas as suas partes num arquivo. Outro voluntário ficará responsável por enviá-lo para a biblioteca virtual. Assim, todos poderão ter contato com a leitura de várias obras.
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blogs ILUSTRAÇÃO charlesscottwilkin.com
O ilustrador Charles Wilkin constrói, através de colagens em fotografias, um retrato detalhado da sua visão do mundo – conturbado e frenético. Adepto do Surrealismo, Wilkin também explica no blog um pouco do seu processo criativo e da sua arte que, segundo ele, investiga a luta entre as causas e os efeitos, além de expor seus trabalhos passados.
NOTÍCIAS PARA OS PEQUENOS Jornalista reconstrói as principais informações publicadas em jornais numa linguagem acessível às crianças recontando.com
Aprendemos desde cedo que existem coisas para crianças e outras
para os adultos. Sem sombra de dúvidas, os jornais, sejam eles televisivos ou impressos, são associados aos mais velhos – talvez pela linguagem usada nas notícias ou por associação, já que não é tão comum ver uma criança comprando um jornal numa banca de revistas ou brigando pelo controle remoto da televisão para assistir a um telejornal. O certo é que essa delimitação impede, às vezes, que as crianças possam alimentar desde cedo o hábito de se informar diariamente. Pensando nisso, a jornalista Simone Ronzani, ao observar seu filho de quatro anos se perdendo diante do noticiário, decidiu traduzir as informações para os pequeninos. No site Recontando, Simone optou pela imagem e pelo som para atrair a atenção das crianças. Nos vídeos postados, temos a notícia narrada e acompanhada por imagens da forma como são elaboradas nos noticiários; em seguida, surge a animação de um menino que diz: “Não entendi, não. Pode falar tudo diferente?”. A partir daí, tudo vira cor e explicações. A notícia, seja ela relativa à política, economia, meio ambiente ou esportes, é traduzida de forma simples e compreensível para qualquer criança. GABRIELA ALMEIDA
FUTEBOL DE HERMANOS impedimento.org
Os apaixonados por futebol nunca se contentam em conhecer apenas os times locais. Para esses, o blog Impedimento é ideal. Ele trata do futebol sul-americano, fazendo avaliações sobre jogos e estratégias táticas dos grandes times da região. Também não faltam ironias para alfinetar alguns treinadores e jogadores, que recebem avaliações individuais.
BOICOTA SP boicotasp.com.br
Esse é bem paulistano, mas pode servir de exemplo para outras cidades. Quem mora em São Paulo e tem queixa sobre o atendimento de um restaurante, sobre uma comida ou algo que contraindique determinado lugar, pode divulgar sua queixa no Boicota SP, evitando que outras pessoas passem pelo mesmo problema.
sites sobre
cultura pop VERSÃO BRASILEIRA
VENENOSA
INDIE
oesquema.com.br/bateestaca
popjustice.com
pitchfork.com
Jornalista e Dj, Camilo Rocha atualiza o Bate Estaca, há 4 anos. Com comentários e análises do cenário musical, no blog, ele não esconde sua preferência: dance music.
O site PopJustice sabe muito bem como soltar seu veneno, quando o assunto é cultura pop, principalmente se o nome de alguma diva estiver envolvido no caso.
Criado em 1996, o Pitchfork é considerado a “bíblia” da música indie. Além de encontrar resenhas e críticas, também é um bom lugar para descobrir os novos nomes do gênero.
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Iezu Kaeru
AFETO E TRANSITORIEDADE TEXTO Clarissa Macau
Parar o deus Tempo é missão para fotógrafos. O artista pernambucano Iezu Kaeru se debruça no desafio de estampá-lo em fotos carregadas de poesia. “A carne da minha fotografia é negra e brancos são os dentes da poesia que mordem sonhos de toda cor”, escreve. A relação com a oitava arte começou na infância, capturando momentos afetivos numa máquina Polaroid. Revelou-se fotógrafo na faculdade. De um exercício esporádico, surgiu o ensaio O tempo e o lugar das coisas, com fotos que captavam o passar quente das horas no Centro do Recife. Motivado pelos fatores afeto e transitoriedade, hoje, Iezu passeia pelo humano e pelo mistério, pelo som e pelo silêncio, trazendo lirismo para a crítica social. Em Memória da pedra, projeto iniciado em 2006, Iezu traz imagens de uma personagem milenar. A musa é a pedra, “a pele do tempo”, como define. A obra transmite silêncio, seja de um bloco de rocha bruto, ou de gelo que se dissolve. Ou, ainda, como diz o fotógrafo, “das roupas da cidade que são trocadas de tempos em tempos”: as facetas dos muros. Procurandose entre os escombros, visitou bairros do Recife, além de locais como a Praia de Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, e o Vale do Catimbau, no município agrestino de Buíque. Construiu autorretratos nos quais sua identidade se torna o próprio objeto reverenciado. A luz torneia seu corpo como continuidade de um rochedo, como testemunha da terra. Esculturas de pedregulhos empilhados são fotografadas, contrastando com uma cidade de prédios. A partir dos registros, tangencia o abstrato e, sutilmente, abre espaço para discussões urbanísticas. Muros espalhados pela cidade, decadentes pelo passar dos anos, tornam-se,
1-3 FEIRA DA QUINTA No ensaio, Iezu registrou comerciantes e seus produtos, no Recife e em Garanhuns 4-7 MEMÓRIA DA PEDRA Num ensaio performático, o artista usou muros, rochas e cenários para discutir o tempo
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no recorte do olhar, belas imagens abstratas. Alguns são apropriados pelo artista, que interfere ora descascando, ora fazendo colagens nas paredes. Numa delas, colocou uma foto rasgada, restando um par de olhos. Voltou após três meses e registrou: o muro havia incorporado a colagem. A imagem foi selecionada para o catálogo do 47º Salão Jauense Internacional de Arte Fotográfica e, curiosamente, anexado na seção de obras manipuladas. Ou seja, deduziram que Iezu construíra a fotografia com ajuda virtual de softwares. Menos meditativo, mas igualmente sensível, Iezu Kaeru criou, em 2011, uma série de retratos das feiras livres ao redor de Pernambuco. Entre composições coloridas e em preto e branco, a série Feira da quinta “foi um momento de buscar o encontro com o outro”, em ritmo de crônica, contando a história do burburinho cotidiano de pequenos comerciantes.
As protagonistas do ensaio, as feiras livres do quinto dia da semana, em Garanhuns, e de Beberibe, no Recife, hoje estão extintas e recebem do artista a denominação de “feiras mortas”. As imagens carimbam a interação entre fotógrafo e fotografados, personagens chamados pelos nomes de Seu João, Marcelo De La Poica, Zeca do Peixe, entre outros. Frutas, verduras e aparelhos eletrônicos são coprotagonistas dos retratados, para quem a feira, durante todo o dia, sob neblina, chuva ou sol, é a vida. Com outros trabalhos realizados, como os ensaios O sonhador (2011) e Outro Rio (2012), este, uma leitura pessoal do Rio de Janeiro, Iezu Kaeru utiliza em seu trabalho máquinas analógicas e digitais. As fotos passam por eventuais tratamentos de imagem, que intensificam sua dramaticidade. Ele diz que o desfoque involuntário é bem-vindo. Câmeras velhas, filmes antigos e lentes com fungos são suas aliadas. A qualidade que importa a esse artista é a da memória afetiva em todo o seu ritual.
8 RETRATO Nas fotos que tem tornado públicas, Iezu aponta interesse pelo gênero 9 PRETO E BRANCO Boa parte do registro em feiras públicas foi feito sem uso de cor
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VIVER DE LITERATURA É raríssimo ser Paulo Coelho. Escritores queixam-se de não conseguirem viver do dinheiro que ganham com os seus livros e, bem sabemos, não se trata de uma mera questão de qualidade. Consagrados e premiados se viram obrigados a ter suas seis, oito horas de proletariado. De Machado de Assis a Cristovão Tezza, quase todos dividem a maior parte da vida com o serviço público, com a docência ou com trabalhos jornalísticos. Muitos dariam qualquer coisa para viver apenas da própria obra literária, mas não Ana Martins Marques. A escritora mineira, mais recente vencedora do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Fundação Biblioteca Nacional, enxerga aí uma grande armadilha e é categórica sobre o assunto: “a poesia é um patrão muito caprichoso”. (Gianni Paula de Melo)
Devolvam meus ossos Essa história é antiga, mas, de vez em quando, assoma. Trata-se das apropriações de “tesouros nacionais” por “grandes exploradores”, na verdade, saques arqueológicos empreendidos pelos colonizadores, no século 19, e que dão consistência a acervos de grandes museus europeus. O mais recente episódio em torno desse polêmico espólio foi a repatriação, pelo Museu de História Médica (Berlim), de 33 crânios e esqueletos a membros de tribos das ilhas do Estreito de Torres, entre o norte da Austrália e Papua-Nova Guiné. As relações entre as instituições e os grupos que solicitam as repatriações se tornam mais tensas quando se trata de restos mortais de povos dominados. Por conta disso, a Associação de Museus da Alemanha tem recomendado que as instituições investiguem a proveniência dos acervos e devolvam o que foi obtido sob violência. Em alguns países, essas negociações já vêm sendo feitas. O diretor do Museu de História Médica, Thomas Schnalke, comentou que devolver restos mortais “provoca mal-estar entre os museus, receosos de que essa repatriação possa intensificar também as reivindicações de devolução de objetos de arte saqueados”. Basta visualizar como vão ficar os salões do Louvre parisiense sem os seus milhares de exemplares de arte grega e egípcia, quando o museu tiver que devolver as obras a quem estas, por direito, pertencem. ADRIANA DÓRIA MATOS
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A FRASE
“A maior riqueza do homem é a sua incompletude.”
Balaio “A” CAMERATA NÃO VEIO?
O choro está repleto de designações estranhas, sejam em títulos de músicas, nomes de instrumentistas e de grupos. Estes últimos são os mais pródigos nas denominações bizarras e nonsense, a exemplo do Nó em Pingo D’Água, Suvaco de Cobra, Rabo de Lagartixa... Embora tivesse um nome bastante trivial, o Camerata Carioca costumava ser chamado Camarata, Camarada, Camareta, Camereta... Certa vez, os integrantes ouviram do coordenador local do Projeto Pixinguinha uma insistente pergunta: E a Camerata? O homem achava que eles seriam apenas os acompanhantes de uma cantora. Vale lembrar que o conjunto, criado em 1979, agregou alguns dos maiores músicos do país, como Raphael Rabello (abaixo). (Débora Nascimento)
Manoel de Barros, poeta
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MEDO DE SPOILER? O evento conhecido pelos fãs de Game of thrones como red wedding, que aconteceu no penúltimo episódio da terceira temporada da série de TV, foi uma das cenas mais brutais da história da teledramaturgia. O assassinato, com toques de crueldade, de protagonistas da trama, nos quais os telespectadores haviam feito anos de investimento emocional, chocou muita gente, e criou uma avalanche de comentários nas redes sociais. Mais de 70 mil menções em um dia. Entre os corações partidos, estava o escritor George R.R. Martin (foto), autor da série de livros que deu origem ao seriado. Em um artigo para o site The Onion, ele confessou que esquecera do que acontecia na cena que ele mesmo escreveu: “Um soco no estômago! (...) É claro que, como produtorexecutivo do programa, eles me mandam todos os roteiros, mas eu nunca leio. Essas coisas estão cheias de spoilers.” (Yellow)
HENRIQUE, O IMPOTENTE A história oficial é generosa com reis, rainhas e príncipes, sempre enaltecendo suas grandezas e conquistas. Mas, por trás dos fossos e muralhas dos reinos, os monarcas também eram expostos às fofocas e ao ridículo. Exemplo disso se deu com o espanhol Henrique, irmão de Isabel, que viria a ser soberana de Aragão e Castela. Fraco, inseguro, refém dos muitos nobres que ameaçavam o frágil poder do seu reinado, ele era também conhecido como o “impotente” e o “corno”. Cronistas da época registraram que, embora fosse casado com a rainha Joana de Portugal há 15 anos, e “tivesse se comunicado com outras mulheres no período, nunca teve sucesso em nenhuma função masculina.” Relatórios feitos por equipes médicas se referem ao tamanho do órgão genital (considerado ínfimo) e à condição fraca do sêmen. E a rainha, mesmo sem ter relações sexuais com o marido, em 1462 ficou grávida e deu à luz a uma menina, Joana, chamada de La Beltraneja (em alusão ao seu verdadeiro pai, Beltran de la Cueva). Para tentar forjar semelhanças físicas entre o rei e a “filha”, que não se pareciam, membros do círculo íntimo de Henrique quebraram o nariz da criança. Mesmo assim, a paternidade nunca foi totalmente aceita, o que habilitou Isabel a fugir para casar com Fernando de Aragão e reivindicar para si, quando Henrique morreu, o direito sanguíneo ao reino de Castela. (Danielle Romani)
A São Paulo de Hildegard Nascida na Suíça, mas registrada na Alemanha, Hildegard Rosenthal (1913– 1990) teria uma carreira como fotógrafa na Europa, onde vinha se preparando para isso, mas o nazismo empurrou-a para o Brasil, onde se radicou em 1937, em São Paulo. Rapidamente, ela faria carreira como fotojornalista no país, colaborando para publicações nacionais e internacionais. Um conjunto expressivo da sua produção integra o acervo do Instituto Moreira Salles e se refere sobretudo aos anos 1940, como podemos ver no livro Metrópole (IMS, 2009). Nessas fotos, entendemos o que a expressão “raça de gigantes” – com a qual se pretendeu marcar a ideia de São Paulo como uma cidade que “crescia na adversidade”, com seu parque industrial em desenvolvimento – quis dizer. Não que Hildegard fizesse fotos de propaganda política. Mas o próprio conceito de modernização urbana em conflito com um cenário rural que rareava, muito presente em suas imagens, nos leva a isso. Ruas calçadas, repletas de gente, veículos em movimento, vendedores de todo tipo, propagandas, letreiros, impressos: a cidade em seus múltiplos signos modernos se debulha, animada, aos nossos olhos. Tendo feito também retratos de artistas, as fotos noturnas e de chuva da fotógrafa são especialmente belas, por sua atmosfera algo desolada, algo fantástica. (ADM)
JARDS MALUCO Jards Macalé tem uma relação não muito clara, pelo menos para a imprensa, com a cantora e ex-ministra da Cultura Ana de Holanda. No começo do que seria o namoro dos dois, 15 anos atrás, o compositor ligou para Cristina, a futura cunhada, para saber se seria bem-recebido pelo clã Buarque de Holanda. Ele perguntou se haveria lugar para mais um crioulo na família – Carlinhos Brown, então, começara a relação com Helena, filha de Chico. Cristina: “Pra crioulo tem, mas pra maluco já está lotado”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em fevereiro de 2011, Macalé deu a seguinte resposta à pergunta “Vocês são casados?”: “Você pode dizer ‘Macaleia, a primeira-dama’”. Em setembro de 2012, o status do cantor já não seria mais esse, até porque Ana deixaria a pasta, sob críticas. (DN)
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MÁGICA
UM MUNDO DE ILUSÃO
Quando o espetáculo começa, seja num palco de teatro ou num tabuleiro no meio da rua, é estabelecido o pacto entre o apresentador e o público: aquilo que se presenciará pode ser “verdade”. Assim tem sido, desde quando os objetos usados eram simples moedas, lenços e barbantes. Hoje, os profissionais do setor contam com aparatos tecnológicos e realizam quimeras com signos do momento, como celulares e computadores TEXTO Christianne Galdino
Difícil não ficar espantado com
tamanha agilidade. Criando ilusões, os mágicos causam uma bagunça no nosso campo visual, distorcendo até a mais treinada percepção e desestruturando a nossa lógica. Mas como conseguem nos enganar dessa maneira? Objetos que somem ou aparecem do nada, pessoas que voam, trocas de roupa em poucos segundos, adivinhação de pensamento. Efeitos que levam até os mais descrentes a um estado de encantamento. De passe em passe, a mágica foi escrevendo sua história milenar, e mesmo que esse universo possa parecer distante da vida real, está cada vez mais próximo. A pós-modernidade trouxe o ilusionismo para o dia a dia, mas esqueça o fraque, a cartola e o coelho, por enquanto. Não que a figura do mágico tradicional tenha desaparecido por completo ou perdido o valor, é que hoje eles usam outros tantos artifícios e apresentam a ilusão nos mais variados formatos e estilos. De caixas, cestos e baús imensos a baralhos, copos, moedas e inofensivas canetas esferográficas, tudo vira mágica. Nas
mãos desses artistas, o impossível se torna real. Ainda podemos encontrálos sob a lona, em picadeiros de circos tradicionais, como o Portugal, o Le Cirque e o Tihany Spetacular, que, pelo fato de ter sido fundado por um ilusionista, o húngaro Franz Czeisler, e ser comandado até hoje por seus descendentes e discípulos, dá ênfase à mágica em todos os seus espetáculos. Outros invadiram as telas de televisão, com quadros fixos e participações especiais ou atuando como consultores para personagens mágicos da teledramaturgia. Nesse segmento, a presença mais marcante no Brasil é a do paulista Mario Kamia, que foi consultor da Rede Globo nas novelas O astro e Gabriela. O nome, as habilidades mágicas e o gosto pelo desafio, ele herdou do pai, que seguia os passos do seu avô japonês. Atualmente, Kamia, que já ensinou os primeiros truques ao filho Mike, de apenas cinco anos, produz shows de grandes ilusões e desenvolve também números com tablets e smartphones e outros aparatos tecnológicos para clientes do meio empresarial.
Kamia chegou a criar um equipamento específico para essas apresentações: a “mesa multimídia”. Integralmente dedicado à arte mágica, ele costuma protagonizar números de escapismo com alto nível de complexidade, projetos que exigem anos de preparação. “Estou envolvido, agora, em uma nova iniciativa, um desafio de criogenia, em que vou passar 32 horas congelado”, anuncia o mágico, que tem como inspiração David Copperfield, ídolo de gerações inteiras de mágicos em todo o Brasil. A notória variedade de linhas de trabalho revela o potencial e mostra o panorama de ascensão da arte mágica na atualidade. Em Pernambuco, a maioria se concentra, ainda, nas festas infantis e eventos sociais, mas, aos poucos, vai conquistando também o público adulto, os turistas e o mercado empresarial, além da produção de espetáculos teatrais de mágica. Assim, crescem a cada dia as possibilidades de atuação dos que decidiram abraçar a ilusão como ofício. A paixão pela mágica surge quase sempre na infância, como uma
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brincadeira que, futuramente, pode ser um hobby, e, para muitos, uma segunda profissão. Mas, como se pertencessem a uma sociedade secreta, os mágicos permanecem anônimos, camuflados numa outra identidade profissional. Por isso fica difícil identificá-los na rotina apressada da contemporaneidade. “Quando tinha 17 anos, apesar de já ter feito até curso de mágica com a Estercita Fernandes, e ser apaixonado pelo ilusionismo desde, pelo menos, os 10 anos de idade, eu não pensava em mágica como uma possibilidade de carreira. A pressão social e familiar me fez optar por uma profissão convencional e decidi, então, cursar engenharia eletrônica”, conta o paulista Rafael Baltresca, um dos principais palestrantes-ilusionistas do Brasil, que, atualmente, concentra 100% da sua atuação no mercado corporativo. Curioso e inquieto, ele encontrou, nas palestras, um jeito de unir suas habilidades mágicas aos conhecimentos de hipnose e PNL – Programação Neurolinguística, e
ainda ao carisma e demais atributos de professor, desenvolvidos em 10 anos de aula em cursinhos de pré-vestibular. O caso de Baltresca não é um fato isolado, a história da mágica está repleta de personagens que tiveram que manter outra atividade profissional para garantir o sustento, pelo menos no início de suas trajetórias. São poucos os que se dedicam e sobrevivem exclusivamente da mágica e, por isso, ainda há muito o que se explorar, mesmo porque, como afirma o veterano mágico Lorax, “o ilusionismo é uma arte baseada em ciências naturais, com uso da física mecânica, ótica, química, entre outras, que só podem trazer benefícios”.
FORMAÇÃO
O trabalho do mágico é uma mistura simultânea de referências e experiências técnicas, científicas e artísticas, o que demanda o desenvolvimento de múltiplas habilidades. Mas como se tornar um mágico de verdade? Já que
não há escolas regulares ou faculdades no Brasil, “a formação autodidata foi a saída encontrada por quase todos os profissionais”, afirma Baltresca, que investiu também em cursos no exterior. Uns tiveram seus primeiros contatos com mágica através de artistas de rua, que usavam os truques para atrair clientes ou conseguir alguns trocados do público passante. Outros assistiram à apresentação de um ilusionista na escola, em uma festa ou no circo. Para muitos, foi a televisão a responsável por conectá-los ao mundo da ilusão. Em todos os casos, o deslumbre inicial vem acompanhado da ânsia de conhecimento. “Acredito que 90% dos meus amigos começaram na mágica comprando ou ganhando aqueles kits de truques básicos, que são vendidos até em lojas de brinquedo”, diz Mario, que teve as primeiras lições em casa, pois faz parte da 3ª geração de artistas da família Kamia. Hoje, a internet é uma grande aliada. Livros e vídeos ensinando
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Página anterior 1 MR. DENIS O mágico, que também cria engenhocas para suas apresentações, trabalhou como eletricista de teatro Nestas páginas 2 CIRCO TIHANY Criado por um ilusionista, dá ênfase à mágica em suas apresentações
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truques também estão disponíveis em quiosques de artigos de mágica, em algumas livrarias e em festivais do segmento. Existe um circuito internacional, competitivo e articulado em rede, que, na sua programação, sempre inclui apresentações, conferências, workshops, feiras e leilões de produtos profissionais de ilusionismo. Expoente máximo desse tipo de encontro, o Congresso da Federação Internacional de Sociedades Mágicas (Fism) é bienal e tem caráter itinerante. Em 1988, Vik e Fabrini tornaramse os primeiros (e únicos, até hoje) brasileiros a vencer o Fism, em edição realizada em Haia, Holanda e, com isso, construíram uma sólida carreira internacional. No correspondente latino-americano, Festival LatinoAmericano de Sociedades Mágicas (Flasoma), que este ano aconteceu em Santiago, no Chile, os brasileiros sempre se destacam, alcançando prêmios em várias categorias. O Magic in Rio, realizado anualmente no Rio de Janeiro, e o Festival Nordeste de Mágicos (Fenoma), que acontece
“A execução de um truque não exige habilidade específica e está ao alcance de qualquer interessado” Ozcar Zancopé em Fortaleza, e este ano chega à 10ª edição, são duas importantes versões brasileiras dessa rede. Mas, apesar das atividades formativas contribuírem com o aperfeiçoamento dos mágicos, o tempo é curto para uma aprendizagem consistente. “O bom dos festivais é conhecer outros mágicos e ampliar a possibilidade de troca de experiências. Ver o que está sendo produzido e quais são as novidades, para se manter atualizado”, opina Baltresca, vencedor do Flasoma 2009, na categoria invenção, e conferencista em vários eventos internacionais de mágica. Ao aspirante à ilusionista, recomenda-se a orientação de
MARIO KAMIA Além de realizar truques que utilizam aparatos tecnológicos, ele atua como consultor mágico de programas de TV
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alguém mais experiente, que poderá ser um bom caminho para uma formação plena. “Na maioria das vezes, a execução de um truque não exige habilidades ou conhecimentos específicos e está ao alcance de qualquer interessado que, de uma forma ou de outra, tem acesso a ele. O sucesso é imediato! Mas, quem faz o sucesso? Quem apresenta um truque ou o próprio truque?”, questiona Ozcar Zancopé, que oferece serviço de consultoria especializada para mágicos, desde 2002. “Ser mágico é mais que fazer truques. Para fazer mágicas, é preciso estudar constantemente”, complementa o mestre.
SEGREDOS REVELADOS
Quando Mister M estreou um quadro no programa Fantástico, da Rede Globo, em 1999, protestos surgiram de toda parte do Brasil. Com o rosto encoberto por uma máscara, o mágico norte-americano revelava os segredos por trás dos mais sofisticados truques de ilusionismo, explicando em detalhes como eles
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4 VIK E FABRINI Os irmãos atuam em dupla e são os únicos brasileiros premiados pela Federação Internacional de Sociedades Mágicas 5 RAFAEL BALTRESCA Tem como foco de atuação eventos corporativos, sendo conhecido como palestrante-ilusionista 6 MISTER M Conquistou a ira da categoria por revelar os truques do ilusionismo ao grande público
eram elaborados e executados. A ideia não agradou nem um pouco os profissionais do ramo, que fizeram de tudo para impedir que os seus truques fossem desvendados. Em vão. Rapidamente, o enigmático Mister M caiu nas graças do telespectador e ganhou fama no país inteiro. “Eu sempre fui contra, mas a verdade é que ele conseguiu deixar a mágica em evidência e isso reverteu no aumento do volume de trabalho para a nossa área, ou seja, acabou nos ajudando”, lembra Mario Kamia. Isso era só o começo de uma questão delicada e controversa que até hoje divide opiniões no meio mágico. “Eu considero antiético, mas não tem jeito. Em outros países, os efeitos por si só já são suficientes para satisfazer o público, mas os brasileiros têm essa cultura, querem saber como é feito, o que está por trás”, opina Baltresca. O legado de Mister M difundese nos dias de hoje através da internet, na qual tantos números são revelados, e também por meio de alguns mágicos que se submetem à exigência das emissoras de televisão, mostrando em rede nacional o passo a passo dos seus truques. Zancopé protesta: “Ora, se todos preservam os segredos dos seus negócios, imaginem a responsabilidade de cada um de nós, profissional ou amador, para que a arte da mágica seja preservada e continue encantando através dos seus efeitos, que só encantam pelo desconhecimento do público da sua essência, ou seja, do segredo. Sem segredo, não há mágica!”. Sobrevivendo às polêmicas e muitas vezes se alimentando delas, o ilusionismo evoluiu, fazendo do Brasil um cenário perfeito para a mágica acontecer.
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KARINA FREITAS
A família das mágicas O ilusionismo é um extenso cardápio em que o impossível se apresenta nas mais variadas formas. Mas, para conseguir entrar no “portal mágico”, é necessário entender o significado dos principais vocábulos dessa língua cheia de mistérios. Poucos são os livros que tratam do assunto, porém, com o passar dos anos, algumas expressões e conceitos utilizados pelos mágicos foram se consolidando. E, assim, surgiu uma definição específica para cada categoria de ilusionismo, ainda que a maioria dos profissionais do segmento costume mesclar variadas técnicas mágicas.
CARTOMAGIA
GRANDES ILUSÕES
MENTALISMO
Mágicas de grande porte, em que caixas, baús ou estruturas próprias fazem uma pessoa desaparecer, aparecer, levitar, ser cortada ao meio ou perfurada. Há alguns
números de grande porte que têm uma versão menor para a execução de efeitos similares, só que utilizando pombas, coelhos ou objetos, ao invés de pessoas.
CLOSE-UP Números feitos geralmente em mesas, com o ilusionista parado próximo à plateia ou circulando entre os espectadores. Também é comum ouvirmos o termo
Na cartomagia, são realizados números com predição, adivinhação, coincidência, trocas de cores, enfim, vários truques podem ser feitos com cartas de baralho. Utilizados pelos jogadores de pôquer,
Com técnicas de hipnose, lógica, sugestão e outros princípios do ilusionismo, o mentalista apresenta números de adivinhação,
os da marca Bicycle são os preferidos dos cartomagos. Independentemente da categoria à qual se dedique, todo mágico sabe apresentar pelo menos alguns números básicos com cartas de baralho.
telepatia e outras variações, como se possuísse poderes sobrenaturais, aproximandose do perfil de um vidente, profeta ou médium espírita.
MANIPULAÇÃO OU PRESTIDIGITAÇÃO mágica de salão, que pode abarcar performances próprias do palco e as de close-up, em que o mágico fala com o público durante a apresentação dos números.
Esta é considerada a essência da arte do ilusionismo, pois depende da destreza, das habilidades manuais do mágico. O manipulador move
objetos e equipamentos com agilidade, usando técnicas de interpretação, para criar efeitos de aparição, desaparição e transformação de objetos.
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MÁGICO O dom de iludir
Geração recente de profissionais, formada inclusive por mulheres, renova as apresentações não apenas com tecnologias, mas com referências ao cotidiano TEXTO Danielle Romani O fascínio exercido pela mágica não se limita aos espectadores que assistem às apresentações, admirados, apesar de saberem que estão diante de truques. Os profissionais que a exercem também são devotos dessa arte que exige, além de habilidade, capacidade extrema de guardar segredo, envolver, seduzir. E que, em pleno século 21 da tecnologia e dos grandes espetáculos, continua arregimentando profissionais e entretendo um público que não se cansa – paga para ser “ludibriado”. “A mágica é como um vício, é quase uma magia: nós, profissionais, ficamos cada vez mais envolvidos, treinando sem descanso, obcecados,
querendo nos superar e surpreender. E o público, mesmo diante de truques, às vezes milenares, deve enxergar no nosso trabalho uma grande beleza, um lirismo, um mistério. Porque, mesmo sabendo que tudo ali é falso, deleita-se e se diverte com a nossa capacidade de iludir. Acredito que nada pode quebrar essa sintonia entre o mágico e os espectadores. É quase um encantamento”, diz Rapha Santacruz, que, aos 24 anos, contabiliza mais de uma década de trabalhos prestados à atividade. O caminho atualmente escolhido por Rapha é semelhante ao de alguns “antepassados”. Ele optou por mesclar
mágica e teatro, fórmula comum às feiras do tempo da Revolução Francesa, e que hoje é bem-aceita, principalmente quando a montagem se aproxima do cotidiano. “No meu espetáculo Abracasabra, tento colocar um toque de mágica no atribulado cotidiano das grandes metrópoles. A nossa proposta é interativa, temperando as situações corriqueiras com pitadas de humor e magia. Durante o espetáculo, arrumo a casa, rego as flores, encho o aquário. As pessoas gostam de se ver ali retratadas”, explica Rapha. Como outros profissionais, a ideia de ser mágico o persegue desde a infância. “Meu pai me deu de presente duas mágicas, quando eu tinha uns 7 ou 8 anos, e ainda morávamos em Caruaru, onde nasci. Nunca mais parei: desde então, só faço estudar e me aperfeiçoar. Fui atrás de mágicos mais experientes para aprender os truques, li e vi tudo que poderia ser estudado, fui morar em São Paulo, onde me apresentei no Parque do Ibirapuera e até no programa de Sílvio Santos. Enfim, quanto mais conheço, mais me envolvo, mais me apaixono.
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FOTOS: HELDER TAVARES
Meu sonho é promover um festival de mágica em Pernambuco”, conta. Igualmente apaixonado pelo universo lúdico com que lida diariamente, Ryan Rodrigues, 36 anos (muitos deles de “estrada”), desdobra-se para viver exclusivamente da profissão, que começou a aprender aos 11 anos e que paga suas contas desde os 14. “No início, fazia tudo escondido da minha mãe, que chegou a rasgar e a queimar qualquer artefato de mágica que encontrasse”, diz Ryan. Menino pobre, ele acredita que a mãe desejava vê-lo enveredando por uma área mais “nobre”, de preferência que lhe conferisse “diploma de doutor”. “Mas era uma coisa decidida, e de nada adiantou. A mágica me deu dignidade, possibilita pagar as contas e viver como gosto. Hoje, ela chora de felicidade e de orgulho, quando me vê trabalhando”, destaca o recifense. Versátil, o mágico afirma que pode criar ilusões em qualquer situação. “Apesar de dominar e gostar da categoria mais respeitada pelos mágicos (a manipulação), não gosto de me classificar apenas como um
manipulador, pois faço grandes ilusões, mágica de salão, infantil, close-ups, cartomagia, mentalismo, pick pocket. Nesses 22 anos de estrada, descobri que o mais importante para mim é ser reconhecido como artista, pois todo mágico, na essência, é um artista com uma grande capacidade de ludibriar”, explica o profissional, que assina o espetáculo mágico-circense A cidade mágica, em que dança, atua, faz mímica e recita poesia. “Gosto de fugir do estilo clássico – fraque, cartola, pombos –, mas não me oponho a usá-lo.” Enquanto Rapha e Ryan atuam sozinhos, os recifenses Roberto Montanha, 30 anos, e Ricardo Crispim, 38, descobriram que dividir o palco é a melhor forma de trabalhar com mágica, e também de ajudar os que precisam de um pouco de atenção e de alegria. “Desenvolvemos o projeto Magicando solidário, no qual levamos a arte mágica para quem não pode pagar, e para quem precisa de terapia: visitamos hospitais, creches, orfanatos, escolas públicas e, uma vez por ano, fazemos um evento de teatro para arrecadar alimentos para as vítimas da seca”,
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RAPHA SANTACRUZ O jovem mágico pernambucano mescla mágica e teatro em suas apresentações
conta Ricardo, que, assim como o companheiro de trabalho, tem cinco anos de atuação profissional. Quando está no palco, Montanha atua como interlocutor, como o elemento que distrai o espectador para a que os truques possam ser encenados. É o mestre de cerimônia do show, apresentando as mágicas, narrando e executando os números. Crispim, por sua vez, atua mais como manipulador, realizando números mais complexos, valendo-se de um humor simples e sem apelação. “Nos completamos”, simplifica Roberto. Nas apresentações, eles lançam mão de várias técnicas: palco, mentalismo, escapismo, manipulação, salão e close-up. “Além dos shows beneficentes, atuamos em apresentações pagas, montadas para o público adulto e infantil, e em eventos corporativos, que incluem os close-ups e palestras motivacionais”, diz Roberto.
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CON ESPECIAL TI NEN TE IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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CIRCO
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RYAN
Éflem Nogueira foi atraído ao universo mágico através dos shows de picadeiro Com 22 anos de experiência, ele gosta de ser visto como artista
10 ESTERCITA
Hoje com 80 anos, é conhecida como uma das mais habilidosas manipuladoras brasileiras
11 DINY
A ilusionista começou a carreira como assistente e hoje, além de se apresentar, presta consultoria a artistas e teledramaturgos
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CIRCO
Grande polo de mágica, o Ceará é, atualmente, o mercado mais promissor para os nordestinos que trabalham na área. Lá é realizado o Fenoma, que agora completa 10 anos e já é considerado um dos maiores do Brasil, funcionando como espaço para troca de experiências e aprendizado. No festival, também se encontram profissionais apaixonados e dedicados, a exemplo de Francisco Alves Galdino, o Goldini, 43 anos, e Éflem Gonçalves Nogueira, o Éflem, 46, que aprenderam a gostar dos truques da mágica vivendo o lirismo dos espetáculos de circo. “A minha experiência veio do circo, pois na época em que comecei a me interessar por mágica não dispúnhamos dos recursos de hoje, como televisão, internet e festivais. Aprendi tudo que sei com os mágicos circenses. Vivia atrás deles e, a partir das mágicas que aprendia, comecei a me exibir para familiares e amigos”, conta Goldini, que se apresenta pelo Brasil, seja em espetáculos próprios, seja em concursos e festivais. “Sei atuar em todos os gêneros. Mas diria que não é o número, em si, que faz a diferença, mas a capacidade de interpretar dos mágicos, de saber controlar a própria emoção e a do espectador. Temos que conduzir
O Ceará é um polo da mágica, mostrandose o mercado mais promissor para os nordestinos que atuam na área o despistamento de maneira sutil. Claro que um bom material cênico é indispensável, mas os números são apenas o mecanismo que o mágico usa para produzir a ilusão”, explica o cearense, que se prepara para uma nova etapa da sua carreira: percorrer o Nordeste com o espetáculo Sonhos. Na mágica desde a adolescência, Éflem também aposta no encantamento pessoal do mágico para atrair o público. Ele acredita que a mágica brasileira nunca esteve tão bem quanto na atualidade. “Tenho uma agenda intensa, seja em shows, aniversários, eventos corporativos, clubes e escolas. Viajo muito, para apresentações em festivais e eventos em todo o país. Sou um apaixonado por essa arte que causa surpresa nos que a assistem, como se aquele truque, aquele número, estivesse sendo encenado pela primeira vez. É uma profissão que nos dá muito prazer.”
MULHERES
Elas ainda são minoria. Em alguns círculos, são tratadas com um preconceito velado, como se fossem profissionais “menores”. Mas não estão nem aí para o que os homens dizem, e, com um jeitinho feminino todo especial, vão deixando suas marcas e seus nomes gravados entre os grandes mestres da mágica nacional. Aos 80 anos, a gaúcha Estercita, ou Ester Fernandes Salcedo, é uma lenda, respeitada e citada pelos colegas como uma das mais habilidosas manipuladoras brasileiras. “Minha família é toda de mágicos. Meu pai, o grande Dossell, foi quem detectou que eu tinha habilidade especial com as mãos e me estimulou a seguir na profissão. Desde os 13 anos, comecei a ser chamada de a Primeira Mulher Manipuladora da América Latina, ou a Rainha da Manipulação”, conta Estercita, que se diverte com os títulos que lhe foram conferidos. Muito bonita quando jovem, sofreu preconceito dobrado, pois os concorrentes diziam que eram as suas pernas, e não suas habilidades, que atraiam o público. “Os homens tinham muita inveja, pois exerço um segmento da mágica que é o mais difícil, o mais verdadeiro e o mais valorizado. Quem faz grandes ilusões
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trabalha com instrumentos, não tem o dom que eu tenho. Portanto, nunca dei importância nem deixei de fazer nada diante do fato de ser mulher. Não dava ouvidos”, conta a profissional. Estercita teve a sorte de casar com o cômico Bady, que entendia e respeitava o seu trabalho, e com quem criou a Cia. de Variedades, que se notabilizava por espetáculos de magia, música e humor, e que atuou por todo o país nas décadas de 1950 e 1960. Atualmente morando em São Vicente, gaba-se de continuar tendo mãos firmes, que lhe permitem permanecer no palco e encantar multidões. A vocação e a paixão pela mágica foram transmitidas ao filho, que, em homenagem ao avô materno – aquele que detectou o talento de Ester –, adotou o nome de Dossell. “Sou uma pioneira, uma mágica talentosa e uma mulher de sorte: há mais de seis décadas vivo do que gosto, faço meu trabalho com alegria e continuo tendo força e precisão nos meus números”, enumera. Bonita, habilidosa, a mágica Edineia Oliveira Rodrigues, a Diny Ilusionista, tem 35 anos e está apenas começando a se firmar. Quem assistiu ao remake da novela O astro, deve tê-la visto no palco, com o ator Rodrigo Lombardi, a quem auxiliou e treinou para as cenas de mágica. Diny também já foi convidada
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As mulheres são minoria no mundo da mágica, e chegam a sofrer preconceito em alguns grupos mais tradicionais pelos principais programas dominicais de televisão, em que fez exibições. A fama fez com que, entre suas principais atividades, assessore artistas, a exemplo de Luan Santana, que contratou Diny e seu marido, o mágico Mario Kamia, para ajudá-lo na montagem de um clipe no qual utilizará recursos de ilusionismo. “Comecei trabalhando como auxiliar do Mario, mas, nessa época, já fazia alguns números, diferentemente de outras moças que fazem só figuração. Hoje, somos uma dupla completa, temos um espetáculo em que atuamos juntos. Faço grandes ilusões, metamorfose, zip-zap e close-up. Manipulação não é uma técnica que eu domine, mas cada um tem sua especialidade”, pondera Diny, que, além de assessorar artistas e participar de shows, faz eventos festivos e corporativos. “Ultimamente, com dois filhos, um deles bebê, tive que deixar de participar de eventos e de festivais
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de mágica. Mas, em breve, estarei novamente livre para aceitar qualquer parada”, diz a profissional, que é a única brasileira a fazer um número conhecido como quick-change (troca rápida de roupa). “Chego a trocar 13 vestuários em três minutos”, gaba-se. Mais nova e menos experiente, mas nem por isso menos talentosa, a natalense Aline Satler, 23 anos, também se dedica à mágica desde menina, quando praticava e encenava truques para os amigos e familiares. “Meu repertório não segue um estilo único, é bem diversificado, trazendo uma mistura de suspense, humor, manipulação e interação com o público. Faço um número especial, que poucas pessoas fazem: um mentalismo em que utilizo sete sacos de papel que ficam emborcados em uma mesa. O espectador escolhe no qual baterei com a mão. No final, quando tiro os sacos, o público pode ver que sob seis deles haviam facas com a ponta para cima, e só em um, exatamente o que o espectador escolheu, havia uma maçã. É um truque que, de fato, exige muito treino, pois qualquer erro resultará na minha mão perfurada. Pelo perigo que envolve, não é uma exibição que atraia muitas mulheres. Isso me diferencia e impede que os homens digam que não temos coragem”, observa.
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CON ESPECIAL TI NEN TE
HISTÓRIA E tudo começou ali: Egito, Índia, China
REPRODUÇÃO
Há várias hipóteses sobre os primórdios da arte mágica, mas não faltaram associações entre ela e rituais satânicos e feitiçaria
IDADE MODERNA
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Há evidências de que a
mágica é praticada desde os primórdios da civilização. Mas, apesar do fascínio que sempre exerceu sobre a humanidade, suas origens são imprecisas e os seus rastros iniciais foram “apagados”. Os pesquisadores pouco sabem sobre os primeiros mágicos,
faraó Keóps. Relatos sobre suas habilidades estariam registrados em um papiro datado de 2000 a.C. Há indícios de que, em países da Antiguidade, como Grécia, Índia e China, truques de manipulação nos quais o profissional usa três copos e uma bolinha para impressionar a plateia eram amplamente praticados. A partir do final do século 15, quando a Inquisição começou a perseguir tudo que se assemelhasse à bruxaria, a mágica podia ser uma atividade perigosa. Ignorante e influenciada pela Igreja, a população acreditava que uma pessoa capaz de fazer uma moeda desaparecer tinha um pacto com o Diabo. Diante disso, muitos mágicos foram considerados bruxos ou feiticeiros, sendo presos ou queimados nas fogueiras. Várias foram as tentativas de provar que a mágica não tinha nada a ver com bruxaria, que era apenas uma ciência de ilusão e habilidade conjugadas. O fazendeiro Reginaldo Scott, morador do condado inglês de Kent, chegou a escrever um livro provando que a mágica se pautava em truques. The discovery os witchcraft (A descoberta da bruxaria) era repleto de boas intenções, mas foi pessimamente recebido. James VI ordenou que todos os exemplares fossem queimados, pois considerou a obra profana.
truques e manifestações dessa arte da ilusão. As narrativas sobre personagens e episódios remotos existem, mas não são confiáveis. É o caso da história em torno de Dedi, o primeiro ilusionista sobre quem se tem conhecimento, e que teria atuado no Egito, na corte do
Apesar do temor que a mágica provocava, o aparecimento da imprensa ajudou a diminuir o preconceito. A partir do século 17, apresentações dos mágicos parisienses começaram a ser divulgados. Surgiram as primeiras companhias teatrais de mágica. Com a Revolução
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HARRY HOUDINI Especialista em truques de escapismo, ele morreu ao ser desafiado por um espectador
Francesa, no século 18, o assunto passou a ser tratado abertamente. Nesse período, tratados sobre mágica começaram a ser produzidos em larga escala. Em 1856, Luís Napoleão chegou a apelar para o mágico Robert-Houdin a fim de resolver uma rebelião na África: o profissional foi enviado à Argélia para convencer líderes muçulmanos locais – que incitavam uma revolta junto às tribos do país – de que a França possuía sacerdotes dotados de poderes miraculosos. E que poderia, portanto, fulminá-los. Outro mágico francês, George Méliès, foi responsável pela criação de truques que se tornaram efeitos especiais no cinema. Mas a mágica, como a conhecemos hoje, com todo o glamour e números mirabolantes, só começou a ser exercida com o surgimento de Harry Houdini. Batizado oficialmente como Ehrich Weiss, o homem que é conhecido como o maior mágico de todos os tempos nasceu na Hungria, em 1874, mas foi criado nos EUA. Sua fama começou a se consolidar na virada do século 20, quando as apresentações envolvendo espíritos (decorrentes do surgimento do Espiritismo) estavam no auge. Nos anos seguintes, os shows de Houdini se tornariam ainda mais espetaculares. Em todo o mundo, seu nome se tornou sinônimo de espetáculo e ousadia. Depois dele, os mágicos desenvolveram engenhocas fantásticas e os números se tornaram cada vez mais espetaculares. DANIELLE ROMANI
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KARINA FREITAS
A FANTÁSTICA LARANJEIRA Jean Eugène Robert-Houdin foi um dos expoentes da chamada era dos mágicos-mecânicos. Uma de suas criações foi o autômato A fantástica laranjeira. No número, ele pedia um lenço e um anel ao público e fazia ambos desaparecerem. Em uma mesa, havia uma laranjeira. O mágico colocava fogo em uma
loção e enquanto os vapores subiam, a árvore florescia, dava frutos. Houdin pegava algumas laranjas e oferecia ao público, deixando apenas uma. A laranja que ficara na árvore se abria e, do seu interior, duas borboletas saiam batendo asas, trazendo amarrados em seu corpo o lenço e o anel emprestados.
O FRAQUE E A CARTOLA Antes de Robert-Houdin, os mágicos eram vistos atuando apenas em mercados, feiras e praças ao ar livre. Foi este francês quem levou o ilusionismo para os teatros e para as grandes ocasiões sociais e festas particulares, apresentando-se com as
mesmas roupas formais que o público usava na época. O estereótipo do mágico de fraque e cartola vem daí. Alguns ainda usam um relógio de bolso, preso a uma corrente, que também fazia parte do vestuário típico da Europa no começo do século 19.
METAMORPHOSIS
A engenharia mágica Habilidades manuais, destreza, presença cênica são itens muito importantes na formação de um ilusionista. Porém, apesar de o mágico poder fazer de qualquer objeto matéria-prima para sua ilusão, existem aparelhos criados exclusivamente para tal propósito. Por isso, o quesito “invenção” protagoniza tantos capítulos da história da mágica, o que fica evidente em filmes como O grande truque e O iiusionista. Para a criação ou reprodução de um aparelho, é preciso contar com o trabalho de marceneiros, serralheiros, artesãos, torneiros mecânicos, entre outros técnicos. Na maioria dos casos, o ilusionista contrata esses serviços ou encomenda os aparelhos a um profissional especializado. No Brasil, são poucos os fabricantes. Talvez por essa razão, e também pelo alto custo das engenhocas, alguns mágicos conhecedores dos segredos decidiram se aventurar na fabricação dos próprios truques, dos mais simples aos de grande porte. Em outros tempos, era impossível dissociar o ilusionista dos seus inventos, por isso as famosas engenhocas do mundo da mágica ganharam inevitavelmente o sobrenome dos seus criadores. A primeira metade do século 19 ficou conhecida como a era dos mágicos-mecânicos, pela intensa criação dos chamados autômatos, aparelhos que criavam ilusões, utilizando mecanismos de relojoaria e de fabricação de brinquedos.
Um dos mais famosos mágicos de todos os tempos Harry Houdini (nome artístico de Ehrich Weiss, em homenagem a RobertHoudin) ficou conhecido pelos arriscados números de escapismo que realizava. Entre os truques que ele apresentava o que mais se associa ao seu nome até hoje é a Metamorphosis. O mágico era amarrado e colocado dentro de um saco de tecido, que também
era amarrado e, em seguida, inserido dentro de um baú fechado por correntes e cadeados. Na sequência, um assistente do mágico sobe em cima do baú, levanta uma cortina e conta até três. Após a contagem, a cortina abaixa e o mágico aparece no lugar do assistente, que está agora dentro do baú. Acredita-se que Houdini executou esse número mais de 10 mil vezes.
DAVID COPPERFIELD Renomado ilusionista dos EUA, começou a atuar aos 13 anos e se tornou membro da Sociedade dos Mágicos Americanos. Copperfield desenvolveu releituras de vários truques clássicos, com ênfase nas grandes ilusões e técnicas de escapismo. Seus feitos mais famosos foram
fazer desaparecer a Estátua da Liberdade, levitar sobre o Grand Canyon e passar através da Muralha da China. Referência internacional, Copperfield continua atuando em programas de televisão, e recebendo fãs de todo o mundo nos cerca de 500 shows que realiza por ano.
PORTABLE ASRAH Um dos principais nomes da área, o mágico argentino Julio Lipán, naturalizado brasileiro, dedica-se à criação e ao aperfeiçoamento de vários aparelhos. Num dos seus produtos mais famosos, a Portable Asrah, uma assistente está em pé ao lado do mágico, coberta por um pano. Em poucos segundos, ela começa a flutuar, primeiro na
vertical e depois na horizontal. As mãos do artista soltam o pano e a mulher continua flutuando. De repente, ela desaparece no ar. A versão Asrah tradicional requer aparelho volumoso, equipamentos pendurados à grade do teatro e vários assistentes. Com a Asrah portátil de Lipán, o efeito é o mesmo.
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CON ESPECIAL TI NEN TE
HELDER TAVARES
MEMÓRIAS O pioneirismo de Astor Criador do Clube Mágico do Recife começou sua carreira ainda na infância, de forma clandestina
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A primeira varinha mágica foi
ele mesmo quem confeccionou com papelão e cola, fazendo jus à dedicação e à persistência que são traços marcantes de sua personalidade. Enfrentando a confessada timidez, Astor Antonio de Moraes Rêgo encontrou público para suas primeiras apresentações nos colegas do extinto Ginásio do Recife. O encontro com o ilusionismo se deu na infância, quando assistiu a um mágico na escola, ainda na década de 1930. Depois, no livro infantil Quebra-cabeça, mágica e passatempo, aprendeu alguns truques básicos. “Minha mãe era muito rigorosa e não gostava nem um pouco do meu interesse por ilusionismo, pois pensava que eu estava me envolvendo com magia, feitiçaria. Ela achava que mágica e magia eram a mesma coisa”, recorda Astor, filho único de Odon e Agar, que, para driblar a vigilância materna, escondia dentro dos livros e cadernos escolares suas anotações sobre mágica. Foi assim, na clandestinidade, que ele deu os primeiros passos no seu ofício paralelo e grande paixão: a mágica. Astor queria levar a sério a brincadeira, e continuou sua busca na juventude, enquanto estudava Arquitetura na Universidade Federal de Pernambuco. Foi em uma livraria, na esquina da Rua da Aurora com a Imperatriz, no centro do Recife, que ele encontrou o caminho para o conhecimento que tanto procurava. Explicando a importância dessa descoberta na sua carreira, Astor diz que “além dos tantos ensinamentos práticos”, os livros do precursor da arte mágica no Brasil, J. Peixoto, traziam listas de publicações sobre a técnica, em português. “Com essas informações, cheguei ao Dr. Martins Oliveira, que era filiado ao Institut International des Récréation Scientifiques (IIRS) e, mais adiante, fundou a Associação Portuguesa de Ilusionismo (API), que existe até hoje. Comecei a me corresponder com ele.” Depois de alguns desacertos e muita troca de cartas, Martins Oliveira decidiu nomear Astor como delegado regional da instituição. A partir daí, o ilusionista teve acesso a inúmeras publicações, e começou também a
importar aparelhos de mágica: de baralhos a truques mais elaborados, passando – é claro – pelas varinhas. Como funcionário da Prefeitura do Recife, lotado no Teatro de Santa Isabel, pôde assistir à temporada do famoso mágico panamenho Chang (nome artístico de Juan Jose Pablo), que excursionava pelo Brasil: “Sombras chinesas, caça de pombos, troca de roupas. Muitas e grandes ilusões. Tudo apresentado com alto nível de excelência. Fiquei maravilhado com aquele universo. Queria atingir aquela perfeição. Então, fiz o curso de mágica por correspondência do paranaense radicado em São Paulo, Morgan, enquanto começava a me reunir com um grupo de amigos para estudar mágica”. Um dia, leu no Boletim Mágico, de Morgan, uma notícia sobre o ilusionista pernambucano Antônio Paulo do Rêgo Pereira, que havia
Seu primeiro codinome foi Rotsa, pois, à época, era moda usar o nome próprio ao contrário como nome artístico participado de um Congresso Nacional de Mágica. E ficou surpreso por não conhecer aquele ilusionista. “Ainda mais eu sendo um delegado regional do IIRS. Era inadmissível.” Inconformado, pegou a lista telefônica do Recife e começou a telefonar para todos os “Rêgo Pereira”, até encontrar o mágico que se tornaria um grande amigo e sócio.
O CLUBE
Com incentivo de um famoso mágico de rua daquela época, chamado Najar, Antônio Paulo e Astor fundaram o Clube Mágico do Recife, que ganhou sede própria em 8 de maio de 1965. No sobrado da Rua Ulhôa Cintra, no Bairro de Santo Antônio, centro do Recife, onde permaneceram por mais de 20 anos, eles construíram com as próprias mãos um espaço para estudo, treinamento e apresentações beneficentes,“que tinha até palco
com alçapão, sistema de iluminação e som”, recorda. Mantido a partir da contribuição mensal dos mágicos associados e, principalmente, do investimento dos seus fundadores, o clube ajudou a formar muitos profissionais. E o mais importante: tornou-se um ponto de encontro e uma referência nacional, fazendo de Pernambuco o maior polo do ilusionismo do Nordeste. Naquele tablado, muitos mágicos estrearam e adquiriram experiência, inclusive Astor, que começou adotando o codinome de Rotsa, “porque era moda naquele tempo usar, como nome artístico, seu nome próprio escrito ao contrário”. A esposa Amyrthes e as três filhas não só incentivavam, como subiam ao palco, fazendo as vezes de partners nas apresentações. Coroando essa trajetória de sucesso, no final dos anos 1980, já assinando como Mágico Astor, o fundador do Clube organizou, junto aos demais associados, um grande festival no Teatro Beberibe, do Centro de Convenções de Pernambuco. Porém, na década de 1990, a inadimplência por parte dos sócios acabou por inviabilizar a continuidade da agremiação. O sobrado da Ulhôa Cintra já não existe, mas o Clube Mágico do Recife permanece vivo nas memórias e intenções do seu fundador. “Um ilusionista não vai muito longe sem formação, sem cultura geral. É preciso estudar para apresentar um trabalho que seja digno dessa arte. Estudar muito!”, diz o mestre, que ainda recebe em sua casa alguns jovens mágicos, em busca das suas preciosas lições. Da varinha de papelão, feita na adolescência, à coleção de varinhas, cuidadosamente arrumada e devidamente catalogada na sua casa, em Olinda, muita coisa mudou, mas o amor pela arte mágica manteve-se e evoluiu. Aos possíveis herdeiros e tantos amantes do ilusionismo, ele ensina: “O ilusionista não ilude, ele ilusiona seu público através de sua arte, transmitindo o que há de mais belo e encantador. Iludir é enganar. Ilusionar é criar uma nova realidade, levar o público a outra dimensão. Essa é a verdadeira mágica”. CHRISTIANNE GALDINO
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PERFIS Confraria dos truques
Médicos, funcionários públicos, arquitetos, pedreiros, motoristas e vendedores têm feito da mágica mais que um hobby – uma paixão nas suas vidas
Entre as décadas de 1960 e 1990, eles se encontravam semanalmente no Clube Mágico do Recife, para aperfeiçoar as técnicas e lapidar o talento, através de troca de experiências e das apresentações que promoviam. Médicos, funcionários públicos, arquitetos, pedreiros, motoristas, vendedores. Não importavam as condições socioeconômicas, a profissão, a
origem, ali todos eram ilusionistas. “É a melhor atividade do mundo, porque a gente se diverte, divertindo os outros”, proclama o pioneiro dessa confraria mágica, Astor, hoje com 82 anos. Remexendo as memórias de alguns desses personagens lendários do mundo da ilusão, descobrimos muito mais que segredos. Além dos truques e efeitos, encontramos, “no fundo da cartola”, histórias incríveis
de perseverança e amor à mágica, que tornam esses pernambucanos comuns, heróis. Severino, José, Paulo, Renildo e Luiz transformaram-se em Denis, Sales, Lorax, Alan John e Lugom, e decidiram viver a serviço do encantamento. Aposentadoria? Nem pensar! A mágica é o sentido, o oxigênio e a paixão da vida desses guerreiros, que continuam fazendo o impossível acontecer. CG
HELDER TAVARES
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MR. DENIS
MR.SALES
Os olhos azuis brilham, quando ele lembra a carta que escreveu para Morgan, no dia 1º de janeiro de 1965, dizendo que queria ser mágico. Um pouco antes, tinha visto um ilusionista chinês se apresentando na televisão. Morgan, na época morando em Ponta Grossa (PR), dava aulas de ilusionismo por correspondência. Sua vocação era mesmo a mágica, ele aprendeu não só a executar os números, como a fabricar os aparelhos. “Eu era eletricista dos teatros municipais e foi assim que aprendi técnicas de marcenaria. Vi que podia utilizar esse conhecimento para produzir meus próprios truques”, recorda o veterano, que ainda hoje tem uma fábrica artesanal. Mulher serrada ao meio, mala moscovita, caixa de espadas: Denis não sossegava enquanto não conseguia “matar o segredo”. Fã confesso do ilusionista Tihany, aproveitou todas as temporadas do circo dele no Recife para ver repetidas vezes o show, até descobrir o funcionamento de cada aparelho. Denis passou a recriar, aperfeiçoar mecanismos e arranjar soluções para melhorar os efeitos das mágicas, conquistando a admiração de muitos jovens ilusionistas, que se tornaram clientes e discípulos dos seus sábios ensinamentos.
Autointitulado “o mágico dos dedos de marfim”, ele teve seu primeiro encontro com o mundo da ilusão ainda na adolescência. “Quando vim de Gravatá para o Recife, frequentava muito o Mercado de São José. Lá, aprendi os primeiros truques, observando alguns camelôs. Comecei a trabalhar, formando as rodas para eles atuarem”, explica Mr. Sales. O menino franzino e ágil ganhou a simpatia dos mais populares comerciantes e artistas de rua das redondezas, dentre eles o embolador Preto Limão, o vendedor de remédios Garganta de Aço, e o mágico Alegria. Um dia, ele assistiu à apresentação dos principais nomes do Clube Mágico e decidiu integrar o grupo. Motorista de ônibus da empresa Itapemirim, Sales conseguiu articular, em 1977, uma viagem a São Paulo, onde participou do Quanto vale o show?, programa de calouros de Sílvio Santos. “Apresentei um número com um pato vivo e uma espécie de caixa de madeira. Foi um sucesso tão grande, que a direção me sugeriu arranjar uma transferência da empresa para São Paulo, e ficar me apresentando semanalmente no programa”, conta Mr. Sales, que, por causa da família, decidiu permanecer no Recife.
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LUGOM O começo dessa história é, no mínimo, curioso. Há cerca de 70 anos, lá para as bandas da zona rural de Garanhuns, era difícil de avistar até o vizinho mais próximo, tal a distância entre os sítios. Eis que, um dia, naquele lugar esmo, aparece um mágico! O menino Luiz, curioso que era, tratou de juntar gente e doações para o artista poder apresentar seus números. “Me ofereci para ajudar nas mágicas e até hoje me lembro dele mostrando o truque do funil”, recorda Lugom, que, se pudesse, teria aceito o convite do mágico e seguido estrada com ele. Anos depois, ele reencontrou a mágica no Recife, através dos espetáculos de Alegria, um artista popular que se apresentava na Pracinha do Diario e tinha um circo armado no Bairro de Afogados. Com a turma do Grêmio Literário do colégio, ele promovia um sarau mensal no teatro da Igreja da Torre. Certo dia, teve uma surpresa: “Meu colega José Passos avisou que, no final da apresentação, ele ia mostrar uma novidade. Era um número de mágica. Esperei ansiosamente o fim do show para saber onde e como ele tinha aprendido aquele truque. Então, ele me deu o endereço da Escola Brasileira de Arte e Cultura (EBAC), instituição paranaense que ministrava um curso de mágica por correspondência”. Também foi José Passos quem levou Lugom ao Clube Mágico do Recife, no qual aprendeu muito com a experiência de Astor, Lorax, Maraza, Leumas e do próprio colega, que agora era o mágico Nagrom (o nome, Morgan escrito ao contrário, foi uma homenagem ao professor da EBAC). Anos mais tarde, Lugom foi nomeado presidente do clube e organizou, junto aos membros, alguns festivais de mágica. No currículo, “o mágico da garotada” acumula atuações com o Teatro Lobatinho, o palhaço Chocolate e inúmeras viagens. Aos 78 anos de idade, e fazendo questão de manter o figurino tradicional, os pombos e o coelhinho, Lugom apresenta seu repertório clássico com invejável vigor físico. Ele revela o segredo: “Pratico caminhada diariamente e faço uma sequência de 90 exercícios para as mãos. Na minha idade, é preciso treinar todo dia. E eu não quero parar nunca”.
ALAN JOHN
LORAX
Ainda morando em Barreiros, ele viu na televisão do vizinho a apresentação de um ilusionista e decidiu: “Quero ser mágico”. Pouco tempo depois, Renildo estaria no Recife, trabalhando como ascensorista em um edifício da Rua Frei Caneca. Naquela década de 1970, a Praça Joaquim Nabuco, no centro do Recife, era o lugar dos mágicos e artistas de rua. E Renildo aproveitava todos os intervalos para ir “bater ponto” na praça. Lá, ele aprendeu, vendo os truques de Gaúcho e Preguinho. Anos depois, quando perdeu a vaga de ascensorista, aprontou seu tabuleiro, nomeou-se Mágico Renner e voltou à Praça Joaquim Nabuco para vender seus truques. “Muitos trabalhavam lá. Tinha o Professor Petro, o Carlos Sapatão, Nilton, Max D’ha”, lembra Renildo, que logo passou a frequentar as reuniões do Clube Mágico. Apaixonado pela manipulação, ficou fã do mágico Eric e de Mr. Sales, com quem mantém amizade até hoje. Funcionário público da Funase, há 26 anos, ele deixou o tabuleiro de lado, mas continua se dedicando ao ilusionismo. Agora, com o nome de Alan John, ele afirma categórico: “Tudo que tenho devo à mágica”.
Paulo Garcia formou-se em Medicina em 1965 e foi trabalhar no interior. Na Casa de Saúde Manuel Messias, em Escada, conheceu o colega médico José Laércio do Egito (Faraó Keops), que o iniciou na especialidade à qual dedicaria a sua vida: a arte mágica. “Nos momentos mais tranquilos dos plantões, ele me ensinava truques com baralho”, recorda. Chegou ao clube e aproveitou todas as oportunidades para aprofundar conhecimentos e adquirir um precioso acervo de aparelhos de mágica. “Depois de estudar algumas técnicas, decidi me dedicar ao mentalismo e às mágicas de salão”, conta o médico, que se tornou referência no ilusionismo em Pernambuco. Já batizado de Mágico Lorax (que é o nome de um ansiolítico, e ele escolheu por gostar da sonoridade), esteve presente em importantes eventos do circuito internacional como o FISM de Paris, em 1973, e o de Viena, três anos depois. Também na década de 1970, editou e distribuiu o boletim informativo mensal Maginotas, e mantém até hoje um blog, segundo ele, para facilitar a comunicação com os amigos mágicos de todo o Brasil, principalmente depois que decidiu ir morar em Porto de Galinhas.
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SERRA DA CAPIVARA Testemunha de um tempo distante Parque nacional, localizado no sudeste do Piauí, une atrativos históricos, arqueológicos, culturais e naturais, despontando como uma excelente opção de ecoturismo no sertão nordestino TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
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Ao som do canto de pássaros típicos
da caatinga e sob iluminação especial direcionada para o imenso paredão de arenito, os visitantes prendem a respiração antes de penetrar o Boqueirão da Pedra Furada, um sítio arqueológico único no mundo, que reúne em um só lugar mais de mil conjuntos de pinturas rupestres. Despontando como uma interessante opção de ecoturismo em pleno sertão, o Parque Nacional da Serra da Capivara, no sudeste do Piauí, é a prova de que a atividade turística no Nordeste brasileiro não se limita às suas belas praias. O oceano, a propósito, que hoje está localizado a centenas de quilômetros – mas que um dia já inundou essas paisagens –, também deixou as suas marcas. Impossível não se impressionar com as grutas repletas de seixos ou com os imponentes cânions, abertos pela força da água por milhares de anos. Mas são os incríveis vestígios artísticos
O Parque Nacional da Serra da Capivara passou a fazer parte da seleta lista do Patrimônio Mundial da Unesco em 1991 deixados pelos índios, e espalhados em mais de 800 sítios arqueológicos, que chamam a atenção do visitante e colocam o sertão piauiense no centro da arqueologia mundial. Considerado um dos mais bemestruturados parques nacionais brasileiros, o da Serra da Capivara é um portentoso museu natural com 214 km de perímetro, no qual é possível voltar ao tempo em que o sertão era povoado por animais gigantes, florestas tropicais e dezenas de tribos indígenas. As marcas desse período podem ser apreciadas em
fósseis e ferramentas encontradas nas escavações arqueológicas e, sobretudo, nos conjuntos de pinturas rupestres produzidas há milhares de anos e que relatam com detalhes o cotidiano dos nossos mais antigos parentes. Chama a atenção a qualidade de preservação das pinturas, naturalmente esquecidas entre os cânions durante os milênios e que, depois de um minucioso processo de pesquisa, estão abertas à visitação. Cenas de caça, sexo e até mesmo de um beijo podem ser apreciadas. Administrado pela Fundação Museu do Homem Americano, instituição que desde a década de 1970 gerencia os trabalhos científicos na região, o parque oferece uma estrutura que inclui passarelas construídas no alto dos paredões – e que permitem o acesso de pessoas portadoras de deficiências –, estradas bemcuidadas, áreas de repouso, camping, albergues, sinalização bilíngue, guias
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SÍTIO ARQUEOLÓGICO
Iluminação especial destaca o grande paredão de arenito
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MUSEU NATURAL
O parque possui mais de 35 mil conjuntos de pinturas rupestres
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especializados, iluminação noturna e centros de visitantes com auditório, loja, lanchonetes e banheiros. Isso sem falar no imperdível Museu do Homem Americano, localizado na cidade de São Raimundo Nonato, que guarda as mais importantes peças encontradas em três décadas de pesquisa.
CONTROVÉRSIA
Coordenados pela equipe da arqueóloga Niéde Guidon – brasileira naturalizada francesa –, os estudos interdisciplinares que revelaram o tesouro da Serra da Capivara constituem hoje um substancial conjunto de documentos que vem contestando as teorias acerca da presença humana no continente americano. Segundo essas pesquisas, há cerca de 50 mil anos o homem já perambulava pela caatinga nordestina, pelo menos 200 séculos antes do que defende a teoria oficial de povoamento do continente. Graças ao trabalho persistente dos pesquisadores, hoje é possível apreciar de perto esse patrimônio e conhecer um pouco da história dos brasileiros que habitavam essas paisagens muitos milênios antes da chegada das caravelas portuguesas. Localizada numa região selvagem do interior nordestino, onde ainda é possível encontrar onças e outros
animais silvestres, a Serra da Capivara tem o mérito de oferecer conforto e segurança, através de uma excelente rede de serviços e possibilitar que pessoas das mais variadas faixas etárias possam conhecer as suas atrações. No circuito da Serra Vermelha, por exemplo, trilhas que beiram os cânions descortinam mirantes naturais de tirar o fôlego e levam o visitante por lugares que seriam impossíveis de serem alcançados, caso não fosse a eficiente estrutura montada pela fundação. A inclusão do Parque Nacional da Serra da Capivara na seleta lista do Patrimônio Mundial da Unesco, em 1991, é facilmente explicada quando se visita algumas das tocas decoradas pelos antiquíssimos artistas da região. Durante vários milênios, as paredes foram pintadas no que hoje é considerado um complexo código de comunicação. Além do caráter documental verificado nas cenas cotidianas, que contam muito da vida em épocas remotas, outro aspecto que chama a atenção é a qualidade artística dos desenhos. Ao lado do patrimônio cultural e científico, representado pelos milhares de conjuntos rupestres e pelos importantes sítios arqueológicos escavados na região, a Serra da Capivara resguarda ainda um tesouro natural incomum no Nordeste brasileiro.
MEIO AMBIENTE
A caatinga, muitas vezes vista como um território árido e sem vida, na área do Parque Nacional mostra toda a sua beleza. Centenas de espécies da flora e da fauna nativas da região vivem nos cânions que abrigam vegetação abundante. Algumas dessas espécies, como as dos jacarés amazônicos que ainda são encontrados nas vizinhanças do parque, são a prova do tempo em que grandes florestas cobriam a região e serviam de abrigo para tigres-dentes-desabre, mastodontes e preguiças gigantes. Muitos outros animais, no entanto, não tiveram a mesma sorte dos jacarés. As pesquisas baseadas nos desenhos deixados nas paredes mostram que, cerca de seis mil anos atrás, animais como capivaras e veados com chifres iguais aos do cervo-do-pantanal foram extintos na região, devido à escassez de água. Dezenas de répteis podem ser vistos com facilidade, com destaque para o camaleão, ou iguana, que é o maior lagarto encontrado na área do parque e um dos mais bonitos do Nordeste. Durante cerca de 12 mil anos, os grupos humanos que habitaram essa região do Piauí evoluíram culturalmente e registraram essas transformações em seus painéis. Através do estudo das pinturas, os pesquisadores puderam descobrir as variações temáticas e
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BOQUEIRÃO DA PEDRA FURADA
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OCEANO
Escultura feita pelo vento batiza o sítio arqueológico
As águas que já tomaram conta do espaço abriram cânios e grutas
5-7 FAUNA E FLORA
O parque possui uma vasta área de preservação da caatinga
os estilos que foram surgindo e se misturando com o tempo, formando um surpreendente mosaico gráfico. A Tradição Nordeste, caracterizada por cenas que retratam figuras humanas, de animais e de plantas, domina a maior área do parque. Em alguns painéis, cenas inteiras relatam acontecimentos e dão o testemunho de uma época em que a arte gráfica era vista como algo sagrado, um sofisticado código de comunicação eternizado em paredes de arenito. Depois de visitar o sítio arqueológico do Boqueirão da Pedra Furada, a pedida é apreciar o pôr do sol na rocha que dá nome ao lugar. Pacientemente esculpida pelo vento, a majestosa pedra furada, destacada ali, no coração da caatinga sertaneja, leva-nos à percepção da genuína qualidade artística das pedras junto à natureza intocada.
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WALTER VASCONCELOS
TRADUÇÃO A difícil tarefa de ser outro Embora seja uma forma de coautoria, a atividade não iguala o tradutor ao autor, colocando-o na delicada função de ser uma ponte entre idiomas e culturas TEXTO Gianni Paula de Melo
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LINGUAGEM
“O jovem russo, hoje, lê Tolstoi com
a mesma facilidade que eu consigo ler a tradução do escritor para o português?” Essa foi a última pergunta feita a Rubens Figueiredo, quando ele veio ao Recife, no ano passado, para participar de um debate no festival A letra e a voz. O escritor havia sido responsável, em 2012, por verter Guerra e paz do original para a língua portuguesa. Na ocasião da conversa, respondeu que não, a facilidade não é a mesma. Tolstoi não é lido com a mesma fluidez pelo jovem do seu país, assim como Shakespeare não é tão fácil para o leitor inglês do nosso tempo, como, provavelmente, Machado de Assis é mais desafiador para nós que para o leitor de uma versão estrangeira recente. Essa impressão de “facilidade” não estaria associada à (falta de) qualidade do texto traduzido – levemos em conta, aqui, apenas os trabalhos bemrealizados. Segundo Rubens Figueiredo, a questão é que a tradução dá uma
nova vida à obra e, sem comprometer o original, traz marcas sutis do contemporâneo. Algo que poderia ser sintetizado com uma consideração do tradutor e professor da Universidade de Campinas Márcio Seligmann-Silva: “a marca ou estigma da tradução em geral é o fato de ela ser uma passagem: de um texto para outro, de um espaço para outro, de um tempo para outro”. Alguns teóricos desse campo defendem que escrever é praticar a tradução das informações dadas pelo mundo, pela experiência, e o movimento de um idioma a outro “seria uma tradução da tradução; ou ainda, platonicamente falando: representação da representação, cópia da cópia”, explica Márcio, no ensaio Haroldo de Campos: tradução como formação e “abandono” da identidade. Paulo Henriques Britto propõe cautela, quando o assunto é a relativização entre “autor” e “tradutor” ou “original” e “tradução”, no embate que visa
torná-los equivalentes. “A meu ver, traduzir é uma modalidade de escrever que tem especificidades próprias, ainda que requeira muitas das habilidades que se exigem de um escritor. Traduzir uma obra literária é uma forma de coautoria, mas não coloca o tradutor em pé de igualdade com o autor”, explica o poeta e tradutor. Mamede Jarouche, premiado especialista em língua árabe, concorda com o Paulo Henriques: “É claro que os bons textos literários ou, pelo menos, de conteúdo humanístico, operam, por assim dizer, numa espécie de fronteira, tendendo sempre a ‘esgarçar’ os limites sintáticos e semânticos de sua língua. Nesse sentido, o tradutor de tais textos deve, sim, ser dotado de alguma criatividade para poder fazer equivaler o que está traduzindo ao texto trabalhado. Mas isso, fique claro, não equivale a criar, ao menos não no sentido da liberdade desfrutada por aquele que se propõe a traduzir um texto ‘seu’”.
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Não à toa, quando o autor do livro ainda está vivo, ele é comumente consultado para esclarecer dúvidas e ambiguidades, com o intuito de manter a proximidade com o original. Foi o que fez Simona Aillenii, tradutora da obra Bernarda Soledade, de Raimundo Carrero, para o romeno. Enviou-lhe um e-mail com a questão capciosa: “O que é exatamente este sertão de que você fala?” Quando ele me contou a história, eu, cá com meus botões, pensei: ‘Deus mesmo, quando vier, que venha armado’. Mas esse já era outro sertão”.
LITERÁRIA E SEMÂNTICA
O senso comum tende a pensar a tradução como um processo de relações inequívocas entre palavras de diferentes idiomas (carro/ car/ voiture/ coche), ou seja, restritamente no nível semântico. No entanto, até nessa superfície, é fácil perceber que as línguas se desencontram, elas não se equivalem plenamente nem mesmo no tocante ao vocabulário.
Também é dispensável ser poliglota para saber que seus sistemas não são rigorosamente homólogos. Afora isso, existem as diferenças de cultura no substrato das línguas: como traduzir o sertão de Carrero para os romenos? No campo da tradução especificamente literária, sobretudo da poesia, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos foram fundamentais para reverberar essas questões. “Eles ensinaram, acima de tudo, a dar tanta importância aos elementos formais quanto aos semânticos”, pontua Paulo Henriques Britto. Em Da tradução como criação e como crítica, Haroldo parte da ideia do ensaísta Albercht Fabri de que há um equívoco irrefutável no ato de traduzir, por se supor possível separar sentido e palavra. Soma-se a isso a perspectiva do filósofo Max Bense, para quem “a informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista”. Ora,
o concretista se mune de referentes teóricos que apontam a impossibilidade da tradução literária para arrematar com a seguinte conclusão: esse exercício seria um momento de recriação e não de reprodução. Tradução tal qual uma arte, diria Paulo Rónai, no livro Escola de tradutores: “O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível”. Talvez, algumas vezes, seja esse o sentimento do profissional em seu ofício, quando as saídas não parecem tão óbvias. Enquanto esteve debruçado sobre a tradução dos manuscritos da obra As mil e uma noites, Mamede Jarouche se viu algumas vezes encurralado: “Vastos trechos das narrativas continham, tanto na semântica como na sintaxe, dialetalismos antigos e não dicionarizados, o que me fez
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1 RUBENS FIGUEIREDO Para ele, traduzir é dar nova vida à obra sem comprometer o original 2 MAMEDE JAROUCHE Especialista em línguas árabes aponta o baixo volume de autores dessa matriz vertidos ao português 3 PAULO HENRIQUES BRITTO
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Também escritor, ele destaca a importância da criatividade ao se traduzir textos literários
4 HAROLDO DE CAMPOS
Junto ao irmão Augusto, o poeta “ensinou” o valor de se agregar aspectos formais e semânticos no ato de traduzir
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quebrar a cabeça e, às vezes, praticar adivinhação”, relembra. Nesse processo, optar pela tradução direta é uma maneira de reduzir os danos da leitura, os possíveis ruídos. “A literatura é um discurso no qual os aspectos estéticos da língua são trabalhados. Muitas vezes, a boa solução encontrada pelo tradutor em espanhol, em francês ou em inglês não é boa em português, o que leva a perdas. Ademais, a tradução é também um diálogo entre duas línguas e, nesse caso, é melhor que não haja intermediários”, defende Mamede, que, no entanto, também ressalta não se tratar de pôr em xeque a qualidade das traduções existentes. Paulo Henriques Britto pensa de forma similar, mas lembra que “existem ótimas traduções feitas por poetas-tradutores que não dominavam o original, como o Kaváfis de José Paulo Paes”.
NO BRASIL
Baixa remuneração, prazos apertados e plágios dificilmente apurados são alguns dos problemas enfrentados por tradutores na rotina do mercado editorial. Ainda
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assim, suas condições de trabalho evoluíram e, por tabela, cresceu a produção de boa qualidade no país. “O que me parece, de maneira geral, é que o nível de exigência tem aumentado, o que força a melhora do nível geral das traduções. Por exemplo, outro dia mesmo eu estava lendo, extasiado, um excelente romance do escritor espanhol Javier Cercas, Velocidade da luz, e de repente me dei conta de que a qualidade do que eu lia também era devida ao trabalho de um grande tradutor, Sérgio Molina”, avalia Mamede Jarouche. Embora falar em “boa tradução” soe quase como uma abstração, Paulo Henriques Britto, também formador de novos tradutores, sabe que existem pontos objetivos que caracterizam um trabalho bem-executado: “Uma boa tradução é aquela que circula no meio cultural da língua-meta substituindo a obra traduzida, provocando nos novos leitores efeitos análogos aos produzidos pela obra original”. Se ambos os entrevistados percebem um cenário de qualidade satisfatória, o mesmo não pode ser dito
da variedade de obras traduzidas, e cada um pontuou escritores ou livros de suas áreas de conhecimento mais específicas que fazem falta às nossas prateleiras. “Falta traduzir muita coisa, sim. Para ficar no campo da poesia de língua inglesa contemporânea, faltam antologias brasileiras de autores como Philip Larkin e James Merrill, para não falar em poetas ainda vivos como John Ashbery e Paul Muldoon”, lista Paulo Henriques. No tocante à produção oriental, a escassez é ainda mais evidente: “Vou me limitar à minha área, o árabe, muito embora existam lacunas absurdas perceptíveis por qualquer um: por exemplo, uma obra-prima como o Decameron, de Bocaccio, tem apenas uma tradução completa, e ruim, em português. Um absurdo. Mas, no que se refere à literatura árabe, dos modernos falta quase tudo: poetas, romancistas e contistas libaneses, marroquinos, egípcios, sírios, iraquianos, tunisianos... No que se refere à literatura antiga, a lacuna é tão obscenamente larga, que é melhor nem falar. Falta praticamente tudo”, lamenta Mamede.
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DEPOIMENTO Tradutores são leitores sem álibis TEXTO Caetano Galindo
Particularmente, não gosto das ideias que orientam o único livro de Umberto Eco especificamente devotado à questão da tradução. Desde o título, Quase a mesma coisa, parece-me dar uma ênfase indevida às perdas. Quase uma versão menos ingênua da famosa afirmação de Robert Frost de que “poesia é o que se perde na tradução”. Para mim, é sempre mais interessante, conceitualmente, em termos literários, pensar no que as traduções de um texto literário tem de “a mesma coisa” do original. Não se trata, claro, de negar “perdas”. Ora, eu traduzi Joyce. Venha me falar de “perdas”... Sei muito bem. Senti cada uma na carne, e doeu bem mais em mim que em você.
Não se trata também de oferecer qualquer hipótese de centralidade para os “ganhos” havidos em qualquer processo de tradução. E eles estão lá. Quase sempre, se você pensar em termos de detalhes e belezas fortuitas, e sempre, se pensar em termos filosóficos, do diálogo entre obras e culturas, da continuidade da empresa literária do romance X na nova língua Z. A questão, para mim, que me leva a achar meio azedinha a formulação de Eco é só a de eu valorizar demais um óbvio tão cantante, que, por vezes, pode passar despercebido. Um óbvio aplicadamente defendido, por exemplo, por Paulo Henriques Britto no recente A tradução literária, e na verdade nada ignorado pelo mesmo Eco, que tanto
naquele livro quanto em outros aborda o assunto convincentemente: o fato de que, a não ser em casos de desfiguração criminosa (que não podem servir de base à epistemologia alguma), o leitor de um texto traduzido pode, e deve, afirmar com todas as letras e fonemas, na sua língua, na do original ou em qualquer outra, que leu o original. O fato óbvio de que o nosso Guerra e paz é totalmente diferente do livro que Tolstói escreveu (não é nem de longe a mesma coisa), mas é reconhecido como o mesmo livro. A mesma coisa. Não um subterfúgio, não um sucedâneo parcial. O mesmo fato cultural-literário, na medida, claro, em que esses fatoseventos sejam reiteráveis, mesmo na cultura e no idioma originais. Para mim, o meu Ulysses não é um quase-Ulysses. Nem o meu, nem qualquer outra tradução respeitável. Como já disse em mais de um lugar, romances podem se assemelhar mais a sonatas do que a quadros. Eles não são ‘reprodutíveis’, como queria Walter Benjamin, considerando a ‘reprodução’ como simultâneos barateamento e oferta de acesso. Eles são ‘executáveis’, dependentes de novas versões para ganhar vida, para poder chegar ao seu público. E só ganhando com isso. E ninguém há de dizer que a interpretação de Evgeny Kissin da Suggestion diabolique, de Prokofiev, é quase a peça que o seu autor criou. Tenho dito. Agora, no mais novo Confissões de um jovem romancista, Eco acaba voltando ao tema de forma mais pragmática e, para mim, aqui, mais interessante. O trecho que eu cito a seguir é longo, mas vale a citação (cito pela edição brasileira, Confissões de um jovem romancista, Cosac & Naify, 2013, tradução de Marcelo Pen). Por vezes acontece de um dos meus tradutores fazer a seguinte pergunta: “Estou em dúvida sobre como verter essa passagem, porque ela é ambígua. Pode ser lida de duas maneiras diferentes. Qual foi a sua intenção?” Dependendo do caso, tenho três respostas possíveis. 1. É verdade. Escolhi a expressão errada. Por favor, elimine qualquer mal-entendido possível. É o que farei na próxima edição italiana. 2. Tive de fato a intenção de que essa passagem fosse ambígua. Se ler com atenção, verá que a ambiguidade exerce influência no modo como se compreende
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o texto. Por favor, faça o possível para manter a ambiguidade em sua versão. 3. Não percebi a ambiguidade e, honestamente, não quis fazer isso. Mas, como leitor, considero-a muito intrigante e proveitosa para o desdobramento do texto. Por favor, faça o possível para conservar esse efeito em sua tradução. Agora, se eu tivesse morrido há alguns anos (uma condição contrafactual com muitas probabilidades de se tornar verdadeira antes do fim deste século), meu tradutor – atuando como um leitor normal e intérprete de meu texto – poderia ter chegado por si próprio a uma das seguintes conclusões; na realidade, idênticas às minhas possíveis respostas: 1. A ambiguidade não tem nenhum sentido e complica a compreensão do texto pelo leitor. O autor provavelmente não se deu conta disso, de modo que o melhor é eliminá-la. “Quandoque bonus dormitat Homerus” – “De vez em quando até o bom Homero cochila.” 2. Parece que o autor foi intencionalmente ambíguo e seria bom respeitar a decisão dele. 3. É possível que o autor não tenha percebido a ambiguidade. Mas, do ponto de vista do texto, esse efeito de incerteza é rico em conotações e nuances que muito contribuem para a estratégia textual do conjunto. O tradutor está sempre sozinho. Traduzir um romance grande, e difícil, pode custar centenas de horas de um trabalho intenso que, para poder existir, demanda efetivo isolamento, silêncio, reclusão mesmo... É uma operação íntima, de mexer e remexer no trabalho alheio, feita em quase todos os momentos numa situação em que um contrato de confiança foi estabelecido sem cláusulas de exceção. É claro que outras pessoas lerão o texto “final” antes de ele chegar ao leitor, e é claro que nessas instâncias se configura um trabalho realmente colaborativo, dialogado, para o bem do livro, para o bem de todos. Mas nada contorna o fato de que mesmo esse trabalho se institui sobre o texto gerado pela tradução inicial, depois dela. Aquele pacto de confiança, que se verá reinstanciado no momento da leitura, regeu o estabelecimento das condições de operabilidade posteriores. O tradutor, sozinho, decidiu, optou, apresentou um texto. O que a possibilidade do contato com o autor oferece ao tradutor que lida com obras contemporâneas é um horizonte de minoração dessa
5 UMBERTO ECO Em Confissões de um romancista, escritor volta ao tema da tradução 6 JAMES JOYCE Depois que publicava um livro, o irlandês praticamente se desinteressava pela obra
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solidão. Tudo bem. E isso você sente enquanto trabalha, mesmo antes de se decidir a escrever para o autor com qualquer dúvida pontual. Que você está como que dialogando com alguém que pode responder. E a possibilidade da resposta no diálogo altera toda e qualquer enunciação. Bem se sabe. O curioso, no entanto, é que essa nova situação de “só-e-bemacompanhado” é uma bênção que também tem lá suas pegadinhas. E elas acabam advindo, quase todas, precisamente dessa diminuição de “responsabilidade”. A tradução é, fundamentalmente, uma operação de responsabilidade. Um lugar de onde não há fuga. Uma caverna que não apresenta esconderijos. (É essa talvez a principal razão de eu não gostar muito das conversas que presumem uma excessiva “humildade” na posição do tradutor. Se ele escamoteia demais essa responsabilidade, acaba me parecendo pouco confiável.) Agora, se eu posso, num momento de incompreensão, de dúvida,
simplesmente destacar o texto em belo amarelo e anotar um “falar com o autor”, eu simplesmente pulo uma fase do processo. É como olhar a solução das palavrascruzadas no fim da revista. É claro que isso acontece. E é claro que muitas vezes é louvável, mas só quero lembrar aqui o outro gume. Porque sempre são dois.
RELAÇÃO COM O AUTOR
Um outro fator curioso é que se pode também superestimar a disposição, a boa vontade, e o reconhecimento da falibilidade pessoal dos autores. Nem todos terão a (famosa, mesmo) atitude simpática, curiosa e tolerante de Eco com seus tradutores (ou leitores). E pelos mais variados motivos. Joyce, assim que publicou o Ulysses, praticamente não se interessava mais pelo livro. A cabeça dele já estava em outro lugar. Ele soube até ser leviano com certas questões da tradução francesa do livro, que a princípio revisou. Mesmo que estivesse vivo, não teria sido de grande ajuda para mim.
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David Foster Wallace, mesmo vivo, era quase escrupulosamente recolhido quanto à fortuna crítica dos seus livros. Duvido que se manifestasse muito diretamente. Outros autores, simplesmente, parecem ficar putos quando você menciona problemas nos seus livros. E não só as ambiguidades a que Eco se refere. Anacronismos, inconsistências internas, falhas de enredo... Tradutores, nunca é demais repetir, são os únicos leitores sem álibis. Nenhuma palavra do livro pode ser meio entendida. Nada pode ser saltado. Nada pode ficar sem uma interpretação. E, assim, eles acabam vendo coisas que, por vezes, passaram pelos olhos de autores-editores-revisores etc. Não são nada raros os casos, o que Eco também cita em outros momentos, em que segundas e terceiras edições de um livro vieram de fato a incorporar sugestões e correções que surgiram nas traduções da obra. José Roberto O’Shea, por exemplo, com uma atenção a detalhes simplesmente incansável, é a garantia de que os livros de Harold Bloom saem
Nem todo autor, como Umberto Eco, recebe bem as observações feitas por tradutores. Eles podem ficar indignados sempre no Brasil com menos erros de datas, nomes e fatos. Mas tem gente que não gosta, sabe? De se ver corrigida...? E aí você aponta o problema, sugere a correção, e se vê condenado a reproduzi-lo inalterado, porque o autor quer. E, cacilda, é ele que manda! Vou ser o último a questionar! E, de repente, mesmo com o autor a um e-mail de distância, você pode continuar sozinho. Ou, pior, pode se ver pior que sozinho, sem a autoridade de emendar silenciosamente, como diziam os filólogos, porque agora cometeu a bobagem de passar pelo beija-mãos e a autorização lhe foi negada. Tudo isso, óbvio, é completamente diferente no caso do autor morto,
há cinco ou 500 anos. Aqui, as responsabilidades estão todas nas costas do tradutor, com tudo que isso possa ter de assustador, mas também de encantador. Em cada caso. Porque, não se engane, um autor morto há cinco anos é um autor vivo que está morto. Ele, para todos os efeitos, é tratado como aquilo, mas de fato é isto. Normalmente, ele, inclusive, terá lugares-tenentes, espólios ou editores, que podem responder mais ou menos com a mesma autoridade. Já um fulano falecido há 500 anos não só está bem comportadamente mortinho, como, além de tudo, se continua sendo traduzido, traz consigo a responsabilidade do cânone, do clássico, do tabu. Nunca haverá uma situação simples. Traduza Shakespeare e você tem todo o peso de lidar com o monstro sagrado, e vai se sentir devidamente limitado por essa responsabilidade. Traduza Ian McEwan e é a presença do autor que serve como limitador. Traduza David Foster Wallace e você, em certo sentido, tem o pior dos dois mundos. Parece aqui que eu estou quase dizendo que os autores são um problema para os tradutores? Não me leve tão a sério, ou tão a mal. Eu não existo sem eles. Nem sonho com o contrário. Mas, mais uma vez, me vejo na obrigação de meramente apontar as complicações existentes por trás do que parece ser uma situação singela. É todo o esqueleto do ofício do tradutor (o cara por trás dos panos, por baixo da mesa) que se arvora a deblaterar em público. Assim como, diga-se de passagem, é do ofício do tradutor se pôr inteiro, corajosa e humilhavelmente, na frente desse autor, para só assim poder estar à altura de responder a ele, de representá-lo, interpretá-lo. O pianista demasiado humilde é desinteressante. Fidelidade? É bem mais complicado do que os leitores supõem. Responsabilidade? Pode ser o contrário do que os leitores supõem. Que legal poder trocar figurinhas com o autor? Claro. Além de obviamente ser um puta privilégio. Felicidade, mesmo. Mas há mais aí do que supõe nossa vã filosofinha...
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CON LINGUAGEM TI NEN TE
Artigo
DENISE BOTTMANN A TRADUÇÃO COMO TRAÇO DA MEMÓRIA CULTURAL Quantos de nossos mais famosos autores não traduziram obras estrangeiras para o português! Machado de Assis, por exemplo? Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, em circulação até hoje. Monteiro Lobato, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Rachel de Queiroz? E Lúcio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo, Mário Quintana, Millôr Fernandes? Todos eles e muitos mais colocaram a nosso alcance, em português, as obras de Shakespeare, Proust, Rilke, Lewis Carroll, Jane Austen, Dostoiévski, André Gide, Kipling, Jack London, Aldous Huxley... Não é um ofício fácil, a tradução. Supõe conhecimento linguístico e literário, exige paciência e dedicação, demanda tempo. Lentamente, ao longo de 100, 150 anos, nossas bibliotecas podem ir se preenchendo com as obras do cânone ocidental em português acessível a todos nós, graças ao trabalho de tradução. Em se tratando de uma obra estrangeira, para que o livro traduzido em português chegue ao leitor, é preciso, evidentemente, que uma editora o publique. Por vicissitudes várias da história do Brasil, apenas no século 20 é que o setor editorial tem um arranque em nosso país e passa a se desenvolver com solidez. E assim como há um arranque editorial, há também no entremeio algumas iniciativas oportunistas e inescrupulosas. A mais dolorosa e mais vergonhosa delas é o roubo de traduções já feitas e publicadas em alguma outra editora, brasileira ou portuguesa. E como isso acontece? É simples, em sua desfaçatez: pega-se uma tradução já publicada, muitas vezes até esgotada, elimina-se o nome do tradutor e da editora inicial e publica-se a tradução, seja anonimamente, seja sob outro nome, fictício ou verdadeiro. Simples, não? Não é preciso pedir licença, nem dar nenhuma satisfação moral
WALTER VASCONCELOS
ou material à editora inicial, às vezes extinta, nem ao tradutor, às vezes já falecido. Quanto ao leitor, o que é que tem? Estando a obra em português, o que mais ele há de querer? Não é uma prática nova. Já em 1903, vemos a editora H. Garnier, no Rio de Janeiro, publicar o primeiro livro de contos de Edgar Allan Poe no Brasil, sem dar o nome do tradutor, mas ostentando na página de rosto os dizeres “Traducção brasileira”. Ah, sim? Pois um leitor curioso não teria a menor dificuldade em reconhecer imediatamente a tradução feita pela romancista portuguesa Mécia Mousinho de Albuquerque, em 1889! Ou nos anos 1940, quando a editora Pongetti não tinha pejo em se apropriar de traduções feitas por Elias Davidovitch para a editora Guanabara e estampá-las sem qualquer licença ou autorização como “tradução revista por Marques Rebelo”. E não eram apenas a H. Garnier ou a Pongetti a proceder assim: o Clube do Livro, desde os anos 1940 até finais dos anos 1980; a W. M. Jackson, também nos anos 1940 a 1960; a Cultrix e a Edigraf, nos anos 1950; a Hemus, nos anos 1970... Mas é nos anos 1990 que essa prática adquire dimensões assustadoras, em quantidade de obras e em número de exemplares. Se, antes, a prática existia em alguns títulos esparsos do catálogo daquelas editoras, a partir de 1995, o Círculo do Livro e a Nova Cultural passam a encher as bancas de jornais e as vendas domiciliares com traduções espúrias de literatura e filosofia. E, a partir de 1999, a editora Martin Claret passa a publicar um número significativo de obras com fraudes de tradução. No caso das edições do Círculo do Livro e da Nova Cultural, em particular na coleção Obras-primas de 2002 e 2003, trata-se de tiragens altíssimas, cada uma delas de 70 a 120 mil exemplares em cada edição. No caso da Martin Claret, mesmo em tiragens mais modestas, tal problema afetou muitas dezenas, até centenas de traduções alheias publicadas sob nomes espúrios, em diversas reedições ao longo dos anos. Como tais fraudes grassavam e prosperavam livremente, vemos, a partir de 2004, uma meia dúzia de outras pequenas editoras enveredar por esses descaminhos. Felizmente, a partir sobretudo de 2008, milhares de leitores,
tradutores e docentes começaram a protestar por meio de manifestos e abaixo-assinados, houve denúncias ao Ministério Público, investigações e inquéritos, até que essa onda de aproveitamento espúrio de traduções antigas começou a ceder.
ALVO DAS FRAUDES
As obras mais afetadas nesse tipo de falsificação editorial costumam ser livros de saída certa e mercado garantido: na grande literatura universal, desde Homero a Shakespeare, Jane Austen e Oscar Wilde, e na história do pensamento, desde Aristóteles e Santo Agostinho a Schopenhauer, Nietzsche e Weber, tanto para o público em geral quanto para os cursos universitários de
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nosso patrimônio cultural, mas também até para entender melhor aquele tipo de texto, aquele tipo de construção e uso da língua portuguesa, dentro de um quadro histórico muito específico e determinado. Uma tradução feita em 1870, ou em 1930, ou em 1940 carrega traços de sua época, o que ajuda o leitor a compor um quadro mais geral da cultura correspondente, em vez de supor que todas essas traduções teriam sido feitas em 2001, 2002 ou 2003. Para concluir, vale a ressalva: uma tradução legítima não significa necessariamente que ela seja de boa qualidade. Porém, uma tradução espúria é sempre e necessariamente uma fraude. Como as pessoas, em geral, não gostam de ser enganadas, há maneira de se precaver contra essas práticas inescrupulosas? Não há receita certa, mas alguns conselhos podem ser úteis: ao comprar um livro, é importante que o leitor verifique quem o traduziu. É recomendável sempre recusar toda e qualquer obra traduzida que não traga o nome do tradutor. E sempre fugir de traduções em nome de fantasmas como “Enrico Corvisieri”, “Pietro Nassetti”, “Jean Melville”, “Alex Marins”,
Já houve vários casos, em momentos diferentes, em que editores agiram de má fé, ocultando o crédito dos tradutores Ciências Humanas, Filosofia e Letras. E qual o problema para o leitor? Para além da abominação ética e da má prática empresarial, muitas vezes acontece, a partir dos anos 1990, que o texto das traduções vem a ser adulterado, como maneira de procurar disfarçar a cópia. É fato que algumas das fraudes são meras reproduções ipsis litteris da tradução legítima e, nesse sentido, o texto da tradução em si prossegue inalterado. Em muitas das fraudes, porém, há tentativas de mascarar o uso ilícito, trocando palavras aqui e ali, adulterando o conteúdo e, em alguns casos, mesmo a coerência e inteligibilidade do texto. Há também casos de alterações ainda mais grotescas, resultando em
passagens que não fazem o menor sentido, e outras ainda podem afetar conceitos centrais de um autor. Contem-se também os casos de montagem de duas traduções diferentes, para compor uma terceira espúria, resultando numa obra de texto irregular, descontínuo e, às vezes, se não contraditório, um tanto disparatado. Outro aspecto relevante para o leitor, quanto à identidade correta do autor da tradução, é um pouco mais sutil, mas nem por isso menos importante: mesmo para o leitor mais imediatista, faz diferença saber que tal tradução foi feita por Manuel Odorico Mendes ou por Monteiro Lobato ou por Lúcia MiguelPereira, sem dúvida – não só pelo valor das contribuições dessas pessoas ao
“Leopoldo Holzbach”, “Peter Klaus Ivanov”, “Pedro H. Berwick”, entre outros – são sinais certos de fraude. Por fim, como várias dessas obras pilhadas e saqueadas são traduções antigas e esgotadas, o melhor seria que um dispositivo previsto na legislação brasileira referente aos direitos autorais realmente entrasse em vigor: que essas obras de tradução órfãs e abandonadas passassem a ser de domínio público. O acesso a elas seria livre, qualquer editora interessada poderia publicálas sem falcatruas. Dando os devidos créditos e nomes verdadeiros, os leitores não seriam ludibriados e a memória de nossa história cultural – que tanto passa pelo trabalho de tradução – seria mais bem-preservada.
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Cardápio
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DESTILADOS Uma ressaca histórica
Do uísque à cachaça, a trajetória das bebidas alcoólicas no mundo confunde-se com a da civilização e seus grandes eventos TEXTO Bruno Albertim
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Sem os destilados, provavelmente, o mundo não teria se globalizado tão velozmente durante o que a história chamaria de a Era das Grandes Navegações. “Os destilados representavam uma forma durável e compacta de álcool para transporte a bordo de navios e encontraram uma série de outros usos. Essas bebidas transformaram-se em mercadorias de tal importância econômica, que sua taxação e seu controle tornaramse assuntos de grande relevância política e ajudaram a determinar o
curso da história”, sintetiza o jornalista inglês Tom Standage, editor da The Economist e autor de História do mundo em seis copos (Jorge Zahar Editor). Ele não foi o único: em diversos momentos, autores investigaram a presença e a relevância do álcool na história. Confirmando a premissa: com ou sem ressaca, o mundo, para se tornar o que se tornou, precisou de um porre histórico. Ou de vários. Se, antes, os destilados eram apenas bebidas medicinais desenvolvidas pelos árabes, no século 15, o que se
chamava de forma generalista de aqua vitae começou a ganhar largo e franco uso recreativo. “O surgimento dessas novas bebidas destiladas ocorreu exatamente quando os exploradores europeus estavam começando a abrir os caminhos marítimos no mundo, fazendo a travessia pelo extremo sul da África, na direção oriental e atravessando o Atlântico para estabelecer os primeiros contatos com o Novo Mundo na direção ocidental”, segue o autor, lembrando que as ilhas atlânticas da Madeira, dos Açores e Canárias se mostraram excepcionais para a produção de açúcar – outra, aliás, invenção árabe. Como a manufatura do açúcar exigia água e muita mão de obra, estava instalado o círculo vicioso e randômico: era preciso gente para produzir açúcar e os subprodutos da cana – e eram também mais que necessários esses artigos para se conseguir mais trabalhadores. “Durante a década de 1440, os portugueses começaram a embarcar escravos negros de seus postos comerciais na costa ocidental da África. Inicialmente, esses escravos eram raptados, mas logo os portugueses acertaram com negociantes africanos sua troca por mercadorias europeias”, diz ele, lembrando o que nós, brasileiros sempre mestiços, sabemos: “O uso de escravos expandiu-se drasticamente após a descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo em 1492”. Os brasileiros, lembrou Câmara Cascudo no seu clássico História da alimentação no Brasil, são filhos diletos da cachaça. Tão logo a versão brasileiríssima e potente do rum, nascida nos engenhos, chegou engarrafada à África, virou instrumento de cobiça. “Aguardente da terra, a futura cachaça, era indispensável para a compra do negro africano e, ao lado do tabaco em rolo, uma verdadeira moeda de extensa circulação”, observou Cascudo num livro em que visitou mais especificamente o tema: Prelúdio da cachaça, feito sob o patrocínio do Instituto do Açúcar e do Álcool, em 1967. Nas muitas guerras de independência e gestos de tensão com o governo colonial, a cachaça brasileira tomou o lugar do vinho português como símbolo de afirmação política e identitária nacionais. “A
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1-6 POSTAIS ANTIGOS A sequência mostra, jocosamente, o processo de embriaguez pelo consumo de absinto, bebida de forte teor alcoólico
Cardápio cachaça passou a ser citada por padres, viajantes, políticos, escritores. Virou sinônimo de ‘mal que tudo cura’, e ficou cada vez mais popular”, seguiu Cascudo. Em Sobrados e mocambos, Gilberto Freyre, confirmando que “não há Wanderley que não beba”, diz que os brasileiros são grandes bebedores de água: a exceção seria o Pernambuco dos canaviais e as áreas da mineração do século 18. No tráfico internacional de escravos, a cachaça confirmava o fluxo dos destilados. “Os traficantes que supriam os europeus com escravos aceitavam uma lista de produtos em troca. De longe, os produtos mais solicitados eram as fortes bebidas alcoólicas”, confirma Tom Standage, lembrando que o homem africano, alcoolicamente educado com vinho de palma, hidromel e cervejas artesanais, viu no consumo dos destilados trazidos por europeus um forte e incontrolável traço de
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distinção social. E, se sabemos como o desejo (mais que a necessidade) move o mundo, logo os traficantes africanos estavam comercializando conterrâneos por um trago.
as importações, exigindo que se comprasse apenas o melaço produzido nas ilhas britânicas. Como a produção das colônias inglesas não era suficiente para abastecer a indústria de rum nos estados que ainda não eram unidos, os produtores ignoraram a lei do melaço por completo, contrabandeando o artigo das colônias francesas. “A taxação do rum e do melaço, que dera início à hostilidade entre a Grã-Bretanha e suas colônias norteamericanas, tinha conferido ao rum um sabor distintamente revolucionário. Muitos anos depois da rendição britânica em 1781 e da independência dos Estados Unidos, John Adams – já então como um dos fundadores do país – descreveu para um amigo: ‘Não sei por que deveríamos ter vergonha de confessar que o melaço foi um ingrediente essencial na independência norte-americana. Muitos grandes acontecimentos resultaram de causas muito menores’”, escreve Tom Standage.
RUM REVOLUCIONÁRIO
Mais para cima do Equador, o rum, igualmente extraído da cana-deaçúcar, ajudou a fazer os Estados Unidos da América. “Além da venda para consumo local, os destilados da Nova Inglaterra encontraram um mercado pronto em meio aos comerciantes de escravos para os quais o rum tinha se tornado a forma preferida de moeda alcoólica com a qual podiam negociar na costa ocidental da África”, segue o autor, lembrando que os destiladores chegaram a produzir versões ainda mais potentes da bebida, confirmando a lógica geral dos destilados: quanto mais álcool comprimido, maior a quantidade de riqueza engarrafada. Mas o rum que patrocinava a compra de escravos, para que os ingleses mantivessem suas grandes colônias americanas, terminou também por embriagar demais o colonizador: ajudou a precipitar a independência americana. Para impedir que os produtores da Nova Inglaterra comprassem melaço das colônias sob o domínio da França concorrente, a Inglaterra sobretaxou
ANESTÉSICO SOCIAL
A popularização das aguardentes estimulou a reflexão sociológica. Camarada da primeira e de todas as horas de Karl Marx, o Frederich Engels que ajudou a urdir o Manifesto comunista se preocupava com as consequências sociais do consumo de álcool. Para
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ele, havia uma relação sociológica e diretamente proporcional entre a exploração do trabalho operário e o abuso de bebidas: o copo como consolo mais fácil e tranquilizante à mais-valia capitalista: “A aguardente é para os trabalhadores quase a única fonte de gozos e tudo conspira para que se feche o círculo ao seu redor”. Engels, no entanto, abonava o vinho e a cerveja que gostava de bebericar. Mas demonizava a aguardente, para ele uma fonte irrestrita de apatia entre os trabalhadores, um verdadeiro anestésico social. No seu ensaio A situação da classe operária na Inglaterra, de 1845, Engels diz que o baixo preço da aguardente teria produzido grande indiferença entre os trabalhadores nas lutas classistas de 1830. “No movimento operário europeu do final 19, o debate sobre o uso do álcool pela classe trabalhadora foi um divisor de águas entre dois polos no interior da Segunda Internacional Comunista: dos defensores da proibição, que viam na embriaguez uma forma de degeneração e uma neutralização do potencial de mobilização política e sindical; e dos que se posicionavam contra qualquer medida proibicionista, por identificarem na bebida não só suas formas de consumo compulsivo e alienante, mas também formas
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moderadas e construtoras de laços de sociabilidade”, explica Henrique Carneiro, professor de História Moderna da Universidade de São Paulo e autor de Bebida, abstinência e temperança – na história antiga e moderna (Ed.Senac). Um dos pais da sociologia moderna, Durkheim tratava o álcool e o alcoolismo como fatos sociais. Curiosamente, não via qualquer relação entre o consumo exagerado de bebidas e altas taxas de suicídio. Ponto alto de sua trajetória, o sociólogo classificou o suicídio, seja ele qual for, como um gesto social. Em situações de crise, por exemplo, as ocorrências aumentariam mais nos países ricos que nos pobres – já que os menos favorecidos teriam mais escopo psíquico para lidar com problemas cotidianos. Durkheim, como que fortuitamente, percebeu apenas que as taxas de suicídio seriam menores em regiões com mais tradição no consumo de vinhos que de destilados.
A história das civilizações começa, desde seus princípios, molhada de álcool. Quando, há cerca de 12 mil anos, os homens do chamado Oriente Próximo trocaram o estilo nômade de vida e a coleta pela agricultura e o sedentarismo, as primeiras fixações humanas se viabilizaram com os dois principais produtos feitos dos cereais domesticados. “Com a mudança de estilo de vida de caça e coleta para um mais sedentário, os homens vieram a contar com uma nova bebida derivada de cevada e trigo, as primeiras plantas intencionalmente cultivadas. Esta tornou-se o núcleo central da vida social, religiosa, econômica, e foi a principal bebida das primeiras civilizações. Foi a primeira a ajudar a humanidade ao longo do caminho para o mundo moderno: a cerveja”, lembra, de novo, Tom Standage. Usada também como moeda de troca, a cerveja era o lado líquido de uma moeda que tinha na sua outra face o pão. “Um mingau grosso podia ser cozido ao sol ou numa pedra quente para fazer um tipo de pão; um mingau fino podia ser deixado para fermentar e virar cerveja”, diz ele, confirmando que um chopinho é mais que um exercício de sociabilidade depois do expediente. É uma das matrizes da civilização.
Para Engels, havia uma relação proporcional entre a exploração do trabalho operário e o abuso de bebidas
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
Visuais
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DIANE ARBUS Mundo estranho e fascinante
Fotógrafa norte-americana, cuja obra é pouco conhecida no Brasil, fez opção pelo lado B da sociedade
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GRUPO Numa casa para pessoas com deficiência intelectual, a fotógrafa realizou um de seus últimos trabalhos
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VÊNUS GLBTS Arbus registrou travestis numa época em que que as minorias sexuais tinham menos visibilidade
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ENSAIO Em campo nudista, casais têm suas sexualidades naturalizadas
TEXTO Chico Ludermirr
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O que estaria fotografando Diane
Arbus? Se estivesse viva, aos 90 anos, que personagens fariam com que uma das fotógrafas mais importantes do século 20 se aventurasse? Que cenário underground seria revelado por ela? Onde se reconheceria? Olhar a obra da americana de origem judaica, mais de quatro décadas depois de sua morte, continua impactante. A fotógrafa dos marginalizados, excluídos, loucos e freaks nos joga cara a cara com seus temas e instiga reflexões clássicas e atuais. Diane nasceu em 1913, numa família rica e tradicional, em Nova York. Em relatos autobiográficos, queixava-se de nunca ter passado por nenhuma adversidade na infância, ao mesmo tempo em que descrevia como odiava tocar piano – e até os cheiros e sons das aulas de pintura lhe incomodavam. Perto dos 30 anos, Diane rompeu com uma estrutura que a oprimia. Separou-se do marido e, à proporção que se distanciava das fotos comerciais, crescia em seu trabalho autoral. Tutorada pela fotógrafa Lisette Model, desenvolveu seu estilo surrealista, saindo em busca de objets trouvés (nomenclatura cara ao Surrealismo, traduzida como “objetos encontrados”). Na década de 1960, Diane consegue bolsa de estudos do Museu Gunggenhein e apresenta resultados em mostra no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Além de anomalias e estranhezas, Diane se encontra consigo mesma em suas fotos. Um tanto como se olhar no espelho: os freaks “são” Diane. Observando pelo olho da câmera, ela se volta para dentro de si. Encontra os próprios monstros. Encara-os. Revela-os. E os acolhe. Em um documentário filmado em 1972, apenas um ano após a morte de Diane, uma de suas duas filhas, Doon, afirma que a mãe tratava a fotografia como um segredo. Não porque escondesse as fotos, ou as saídas noturnas com sua Rolleiflex de dupla objetiva e um flash, mas, sim, porque existia algo na experiência que era secreto. Doon acreditava que se devia ao caráter transgressor que a fotografia representava para a mãe. O que se sobressai na obra de Arbus é que, ao invés de clicar
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EM CAMPO Em foto de Garry Winogrand, o olhar agudo de Diane Arbus diante de uma personagem
5-8 TIPOS
Conhecida como fotógrafa de aberrações, a norte-americana escolheu como tema aqueles que estavam ocultos ou à margem
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os escanteados – e nesse grupo estão transexuais, anões, gigantes, tatuados, artistas de circo – em situações penosas; capturava-os tão garbosos quanto fazia com seus antigos modelos, remetendo à época em que produzia fotos de moda para revistas como a Vogue. Se a obra de Arbus possui potência para quem olha, para a própria artista representou uma descoberta. Podemos compará-la (claro, ressalvando as diferenças) a Nan Goldin, que, décadas depois, retrataria o submundo com a propriedade de quem escolhe viver nele. Em ambos os casos, há relatos de que a paixão pelo outro, por retratar e conhecer o diferente, extrapolava o campo fotográfico. Arbus teria tido relações íntimas com muitos dos estranhos de quem se aproximou. “O que mais gosto de fazer é ir aonde eu nunca fui. É como um encontro às cegas. Algo esplêndido acontece! Sem a câmera, seria difícil entrar nas casas das pessoas. A câmera é uma licença”, disse em um de seus cursos, pouco antes de morrer. E completou: “Não tenho interesse em fotografar temas conhecidos”. E Arbus manteve-se fiel, permanentemente, ao seu tema. Seu trabalho autoral é uno. Um grande ensaio. Repleto de esquisitices em
Depois de atuar como fotógrafa de moda, Diane Arbus usou a subvenção de bolsas de estudos em trabalhos autorais preto e branco, em médio formato, que nos fitam ao posar. Nas fotografias de Arbus, paradoxalmente, a pose estática tem um efeito inverso: o da naturalidade, da espontaneidade.
FREAKS
Preocupada em fotografar todos os tipos de pessoas, Arbus chegou à sua máxima: quanto mais específico, mais geral. Dentro do específico, claramente, fez uma opção: “Freaks foi o que fotografei mais e ficava muita animada nesse trabalho. Eles me dão uma sensação mista de vergonha e satisfação. Existe algo lendário neles. Você sabe que eles sabem algo que você não sabe. Eles já nasceram com seu drama. Passaram pelos seus testes na vida desde cedo. São aristocratas”, ficou registrado em gravação feita em 1970. “As pessoas geralmente gostam, quando vou fotografá-las. Eu sou muito legal nesses momentos”, completou.
Aproveitando o lema proposto por ela, olhar atentamente para apenas duas fotos possibilita uma análise de sua obra. Na primeira, uma travesti posa nua, escondendo seu sexo numa pose que se assemelha à de Vênus de Boticcelii. Explicita-se nessa imagem a predileção pelos temas tabus (ainda mais marginalizados na década de 1950). A personagem a encara de frente, como é habitual nas fotos da nova-iorquina. Percebemos mais: a intimidade entre ela e o tema, escancarado pela nudez, demonstra que Diane não temia uma aproximação. Alguns de seus “assuntos” tornaram-se amigos dela. Talvez, por essa razão, a travesti demonstre inocência. Apesar do estatismo da modelo, ela é despida de rigidez. Dois pontos merecem destaque: o olhar da fotógrafa, atravessado por uma câmera Rolleiflex, que a obriga a abaixar seu rosto em reverência, com lentes normais (35mm ou 50mm fixas), que forçam uma aproximação, e, em consequência, o olhar com que os fotografados retribuem. São cúmplices, e isso fica claro nas poses e momentos. Não são flagrantes, não há o instante decisivo preconizado por Henri Cartier-
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Bresson. Todos os momentos têm a mesma importância, são retratos consentidos; serenos, imóveis. A fotógrafa não buscava uma naturalidade fingida. O que se vê são seres que, ao posar, já se tornam imagens de si mesmos. Ela usava sua técnica para destacar ainda mais qualquer elemento que aparentasse estranheza. A foto frontal e o flash, usado também durante o dia (ela foi precursora nesse uso), corroboravam para evidenciar quaisquer estranhezas. Podemos dizer que, em sua obra, Diane transformou em imagem a poesia de Walt Whitman. “Não tenho
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dúvida de que a majestade do mundo e a beleza do mundo estão latentes em qualquer migalha do mundo. Não tenho dúvidas de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anões, em ervas, no refugo e na escória do que eu supunha”, escreveu Whitman. E assim fez Diane. Um dos melhores convites que a obra dessa norte-americana nos faz é – como nos lembra Susan Sontag, em Sobre fotografia – o de discutir a beleza na arte e, mais especificamente, na fotografia. As questões dessa arte visual são comumente povoadas
por belos modelos e paisagens. Em especial, nas primeiras décadas história da fotografia, o que se esperava dos fotógrafos eram retratos idealizados (o que ainda é verdade na fotografia amadora, comprovado em visitas ao Instagram). Arbus abandona o tema lírico e propõe a revisão do que é ou não fotografável/belo. E nos questiona por quê. Ao invés da abolição da beleza, sua generalização. Embora pudesse provocar esse sentimento, pelo tema em que se concentra, a obra de Arbus não traduz sofrimento. Mesmo nos asilos e sanatórios, Arbus olha no olho,
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EDIÇÃO Ao se observar o copião, com a sequência de retratos do menino com granada de brinquedo, evidencia-se a escolha da fotógrafa pelo estranho
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instigando sorrisos e cenários leves. Nas suas fotos, a dor se presentifica nos rostos dos “normais”, e esse é um gesto deliberado da fotógrafa, observado na fotografia de um garoto brincando no Central Park, segunda imagem em que nos detemos aqui. O menino que segura uma granada de brinquedo mostra-se mais assustador que a travesti no quarto sujo. “Você vê uma pessoa na rua e, essencialmente, o que percebe nela é o defeito”, dizia Arbus. Assim ela escolhe, enquadra e revela o bizarro, mesmo onde ele não existe. Ou onde não parecia existir. Há também, mesmo que sutilmente, uma crítica à sociedade americana da época. Um país que impunha guetos ao “anormal” enquanto naturalizava guerras (as décadas de 1950 e 1960 foram fortemente marcadas pela Guerra Fria e pela Guerra do Vietnã). Nesse contexto, Diane retratou também soldados, patriotas e imigrantes. A granada de brinquedo na mão de uma criança normal, porém disforme, traz em si uma potência analítica que ela repete quando retrata um jovem completamente alinhado e bem-vestido para ir lutar contra os vietcongues. É possível perceber a intencionalidade crítica nos seus retratos de aberrações. Ainda em relação ao menino com a granada, basta observar o copião das imagens feitas por ela da cena, para constatar que a foto selecionada da sequência é a única em que o garoto entorta estranhamente rosto e mãos. Quando se suicidou, tomando uma dose alta de remédios e cortando os pulsos, em 1971, Diane evidenciou que toda a sua obra vinha de sofrimento genuíno. E carregou a sua arte de um semblante trágico e verdadeiro. Ao mesmo tempo, a morte também impulsionou a obra da autora a alçar voos maiores. Logo no ano seguinte, obras suas foram expostas na Bienal de Veneza. Em 2006, foi realizada a cinebiografia A pele, protagonizada por Nicole Kidman. Aqueles que ela encarou sempre de frente estão eternizados. Ela os manteve vivos e prontos para encarar novos espectadores. Prontos para perguntar: que outros mundos existem e que ignoramos?
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
CHICO LUDERMIR/DIVULGAÇÃO
Salvador Dalí
UMA LEITURA DE DANTE
Depoimentos
A CIDADE DOS ARTISTAS Em 2010, Raul Córdula (acima) fez a curadoria do Olinda Arte em Toda Parte. Naquela ocasião, batizou a edição de A cidade dos artistas, promovendo exposições daqueles que se instalaram na cidade, na década de 1950, e de seus descendentes, que fazem da Marim dos Caetés seu ateliê, até hoje. Nesse momento, começava a ser idealizado o livro Utopia do olhar, que será lançado este mês e tem como foco a vocação artística da cidade. As memórias de Tânia Carneiro Leão, viúva do poeta Carlos Pena Filho, foram fundamentais para estimular o autor nessa empreitada. “A história do pai dela, Eufrásio Barbosa, e de sua família deram-me a perfeita impressão de que germinou, movida por ações e desejos do clã, essa utopia olindense: que tem em Carlos Pena um de seus criadores e em Eufrásio Barbosa seu primeiro construtor – um construtor de utopias”, escreve Córdula. No primeiro capítulo, entendemos como se deu a tomada de Olinda pelos artistas, na década de 1950, apoiados pelo prefeito Eufrásio Barbosa. Foi ele quem trouxe para a cidade o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e colocou nas mãos de Adão Barbosa e Vicente do Rego Monteiro a Secretaria de Cultura, o que garantiu a disponibilização do Mercado da Ribeira para o grupo. Na sequência, o autor vai narrando fatos, resgatando a história de alguns dos criadores que passaram pela cidade, das correntes e movimentos que ali prosperaram. O texto é escrito em primeira pessoa, colocando o próprio Córdula como personagem. Ele reuniu, no volume, informações e memórias. Porém, falta edição. Os temas vêm e vão de forma desordenada. Excetuando os textos que tratam dos artistas, é difícil encontrar tópicos específicos. Esse seria um ponto que mereceria ser revisto, já que não se trata de uma narrativa corrida. Independentemente disso, o livro tem o mérito de nos fazer compreender como e por que Olinda tornou-se esse polo artístico. Conta com diagramação e projeto gráfico interessantes, com muitas referências iconográficas. MARIANA OLIVEIRA
A divina comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), é representada e recriada graficamente pelo surrealista Salvador Dalí. São cerca de 100 aquarelas, que podem ser vistas até 14 de julho, na Caixa Cultural Recife, na mostra Dalí – A divina comédia. Os trabalhos foram resultado de encomenda do governo italiano ao pintor espanhol, quando da comemoração dos 700 anos da obra. Dalí contou com a ajuda dos gravadores Raymond Jacquet e Jean Taricco, que fizeram 35 placas com 3.500 blocos xilográficos para traduzir as aquarelas, peça por peça. O resultado é uma sequência de gravuras que seguem as etapas do livro. Os personagens Dante (o homem), Beatriz (a fé) e Virgílio (a razão) passeiam pelos estágios do poema narrativo: Inferno, Purgatório e Paraíso. Nesse trajeto, o próprio Dalí revisita sua obra.
Individuais simultâneas
VILELA E LENHARDT Bruno Vilela estreia na Galeria Amparo 60 com a série inédita Voodoo drama (acima). Depois de três anos sem expor no Recife, o artista apresenta seis peças, sendo quatro em grandes dimensões. Nas telas, ele investiga fronteiras entre o homem e a natureza, através de personagens, espíritos, objetos e luzes misteriosas. Os painéis exigem que o espectador se aproxime para perceber nuances das obras, realizadas com grandes massas de tinta, mudanças de luz e palheta reduzida de cores. No primeiro andar da galeria, está em exibição a série Planalto, de Cristiano Lenhardt, realizada em sua residência artística em Gasworks (Londres). O artista elegeu formas geométricas e unidades gráficas simples para encontrar medidas de espaço, tempo e corpo. As mostras seguem em cartaz na Amparo 60 (Av. Domingos Ferreira, 92A, Boa Viagem), até 10 de agosto.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
RECIFE SEM RIVAL
O Recife. Deve ser sempre escrito
com exclamação. O Recife! Não há lugar mais bonito de se chegar. A piada fácil seria perguntar se só de chegar e respondo que também de viver. Há muitos anos que sei que quero morrer por aqui. E não me chamem para sair daqui nem um dia. Quando digo “morrer” significa viver até o último dia. Minha formação no Recife: de quem mesmo? Gilberto Amado. Sergipano. É esse o maior título a que pude aspirar e não concebo outro maior, o de ter tido minha formação no Recife. Sou de perto, de Ipojuca, região metropolitana, e talvez visse o Recife melhor do que quem já nasceu aqui justamente porque eu tinha esse privilégio de chegar no Recife. Não me lembro ou não me toca tão belo chegar como quando se entra pela bacia do Pina mas me contentaria com a chegada no Pátio do Mercado e logo outros pátios, de São Pedro, do Carmo, do Terço, do Livramento, de Santa Cruz, onde morei na rua de mesmo nome. Morei antes na Rua Nova, numa pensão em cima do Cinema Royal, pegado com a Conceição dos Militares. Outra
chegada linda era pela Rua Imperial, quem vinha do litoral sul, o bonde, as casas de azulejos, o tamborilar das ferraduras dos cascos dos cavalos no calçamento. Barcaças do Cais de Santa Rita. A Ponte Giratória, que girava, deixando as barcaças passarem. Por isso, repito, não há lugar mais bonito de se chegar. E olhe que já cheguei em Veneza uma meia dúzia de vezes. Aliás, em Veneza sempre se chega, mesmo já estando nela, como eu chegava todo dia, quando ia da Giudecca a São Jorge ou São Marcos. Pois é. Já cheguei em muitos lugares bonitos: Viena, Nápoles, Roma, Paris, Madri, sem falar do Brasil, Bahia, Rio de Janeiro. Mas você vê que o Recife é única quando visita uma exposição como a organizada por Leonardo Dantas no Instituto Ricardo Brennand Velhas imagens do Recife (19 de março a 11 de abril). Sei que quem mora em Bruges ou Armsterdã poderá dizer o mesmo mas o que acontece é que nada pode superar para mim a emoção de ver o Recife nascendo da água nessa gravura de Frans Post de 1645 Povoado do Recife e da Cidade Maurícia vistos dos arrecifes. Será que existe outra
imagem do Brasil ou quem sabe até do continente dessa data? A impressão que se tem é de flagrar o exato momento do parto do Novo Mundo, pouco mais que uma lista que se vislumbra, quase miragem no horizonte infinito. Se não minto, em termos de pintura, é esse o momento da descoberta do Brasil e não somente da nossa cidade. Daí, desse registro espetacular do despontar da nossa primeira dentição rasgando as gengivas da história (gostou, Arthur Carvalho?), pulamos para o Pernambuco atual ou quase, do século 19, esse ontem que se confunde com hoje, que ainda podemos palmilhar, prédios que continuam intactos como por milagre, Teatro Santa Isabel e Palácio do Governo (Emil Bauch, 1852), a encantadora vista a partir de dentro do salão do mesmo teatro, vendo-se o piso, a balaustrada, duas sinhazinhas de saias-balão ladeando um rapaz de casaca (Luís Schlappriz, 1863), o sítio de João José Rodrigues Mendes, hoje Academia Pernambucana de Letras (idem), Ponte Santa Isabel, Assembleia e Ginásio Pernambucano e, noutra gravura, a
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propriedade do Dr. Augusto Frederico de Oliveira, hoje Museu do Estado (L. Krauss, 1878) além de igrejas, cais, pontes e também locais que continuam reconhecíveis como a vista do Recife a partir da Igreja da Misericórdia em Olinda (W. Bässler, 1847) ou a atual Praça Maciel Pinheiro, antiga Praça da Boa Vista (Schlappriz) ainda sem a fonte, ou a Detenção vista do outro lado do rio, que nos dão a sensação de estar hoje pisando no mesmo chão. E o Rio Capibaribe, que é o nosso maior protagonista, que aparece e reaparece, como ainda hoje quando se anda pela cidade. E gentes, e burros carregados e lugares que permanecem iguais, como o Pátio do Terço (Krauss). Muitas vezes é como se estivéssemos na janela de um prédio, neste Recife do século 21, contemplando o mesmo Recife de séculos passados, isto é, vendo, com o olho. E também igualmente o tamanho do estupro sistemático de um Recife varrido do mapa violentado por demolições para nada e arranha-céus. Porque, mesmo sem querer, temos guardado um Recife que nos é caro, que existe dentro de nós como bem
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Porque, mesmo sem querer, temos guardado um Recife que nos é caro, que existe dentro de nós como bem inalienável inalienável, como parte nobre de nós próprios e que ninguém nem o tempo, tem direito de amputar: isso mesmo, estupro, amputação, amputação sem consulta ainda mais, sem aviso e sem necessidade de ninguém ainda por cima. É esse Recife que essas vistas nos recuperam e também denunciam quando nos deparamos hoje com o vazio e as substituições absurdas. Muitas vezes ali, nessas vistas, nos reconhecemos, nos encontramos, os chegados aos oitenta, para quem a história do Recife não poucas ocasiões nos parece a história de sua destruição. Muitas vezes, no centro do Recife, me surpreendo à procura dos prédios e ruas que não existem mais, dos cais que foram aterrados, do Colégio Marista
FELIX FARFAN
Praça do Corpo Santo (baseado na obra de Luis Schlappriz), acrílica e técnica mista sobre tela, 120 x 170 cm, 2012. Coleção do Palácio do Campo das Princesas, Governo do Estado
onde fiquei interno cinco anos e que foi decepado, e outro Recife mais antigo, quando meu pai me trazia com quatro ou cinco anos de idade, e procuro antigos espaços como à procura da luz de uma estrela extinta e que só eu vi e se apagou e eu mesmo penso que estou delirando, Recife dos anos 30. Será que morri? Mas essas gravuras me restituem a mim próprio, me mostram que não estou doido nem virei zumbi, restabelecendo o recifense que sou. Agora, falando sobre pintura atual, essas antigas vistas de Pernambuco que permanecem no inconsciente de nossa paisagem, no sangue da minha geração, raramente vêm à tona retomadas ou recriadas pelos nossos pintores. Surgem às vezes nos quadros de José Barbosa. Lembrome da belíssima exposição de Aloísio Magalhães em São Paulo, década de 1950, A aventura da linha evocando essas perspectivas e depois, do mesmo autor, um álbum de litografias. A propósito, ilustro esta crônica com quadro do sempre muito bom pintor recifense atual, nascido no Acre por engano, Felix Farfan.
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TÍTULOS Apertem os cintos, o sentido sumiu
Versões brasileiras para nomes estrangeiros de obras cinematográficas primam pela incoerência, bizarrice e pelos spoilers, que revelam o que acontece na história TEXTO Débora Nascimento
Atordoados , três caras acordam num quarto de hotel em Las Vegas, na manhã seguinte à despedida de solteiro de um amigo. Ainda ressacados, descobrem que “perderam” o tal noivo; e agora têm como missão encontrá-lo antes da hora do casamento, que vai acontecer naquele mesmo dia. Para
conseguir achá-lo, precisam, em meio ao lapso de memória provocado pela bebedeira, lembrar tudo o que aconteceu na noite anterior, desvendar e seguir as pistas do tal sumiço. Esse é o mote de uma das mais bem-sucedidas comédias dos últimos tempos, Se beber, não case, cujo título brasileiro foi inspirado no slogan da
famosa campanha Se beber, não dirija. Em 2009, a nomeação em português fazia todo o sentido (no original é The hangover, a ressaca), pois realmente havia na história muita bebida e casamento. Com o sucesso nas bilheterias, veio, em 2011, uma “parte 2”, e, depois, uma continuação, lançada em maio deste ano. E o que os distribuidores brasileiros fizeram para facilitar a vida de todo mundo? Tascaram um “3”. No entanto, ao contrário dos dois primeiros, neste terceiro não há casamento algum! E, assim, o título tornou-se mais um exemplo de batismo estapafúrdio de filme estrangeiro no Brasil. A comédia americana foi mais uma vítima das distribuidoras nacionais, que tentam, a todo custo, dar uma abrasileirada nos títulos de obras estrangeiras, independentemente de significado, coerência e até bom gosto – senão, o que dizer de The cable guy, que virou O pentelho?
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1 SE BEBER, NÃO CASE Terceiro filme não tem casamento no roteiro 2 COMÉDIA Compare o original à versão brasileira
Um péssimo título não chega a destruir totalmente a reputação de um longa-metragem, afinal, o que importa mesmo é o conteúdo deste, mas é algo inconveniente, porque é o seu primeiro atrativo, principalmente para uma plateia não muito acostumada a acompanhar crítica cinematográfica. A maioria dos espectadores opta por assistir a filmes, seja nas salas de exibição ou em casa, devido estritamente ao que informam suas chamadas. E é exatamente por conta da necessidade de atrair esse perfil de público que surgem os equívocos, os excessos e as bizarrices nessa área. Um dos exemplos gritantes é a obra que rendeu, até agora, o único Oscar de Melhor Filme a Woody Allen, Annie Hall, cujo original refere-se ao nome da personagem interpretada por Diane Keaton, que, por tabela, recebeu a estatueta de Melhor Atriz por sua magnífica atuação nessa
comédia sobre o começo e o fim de um relacionamento amoroso. O título em português ganhou um ar de “sessão da tarde” desmiolada, Noivo neurótico, noiva nervosa, nada condizente com os diálogos extremamente perspicazes e sensíveis do roteiro. Assim como prova o clássico de Allen, as comédias geralmente são as maiores vítimas de títulos despirocados, pois os tradutores costumam apelar para a chacota, o escracho e o clichê. Houve uma época em que a palavra trapalhão (e não estamos falando das dezenas de filmes dos Trapalhões) era sempre lembrada, Vigilante trapalhão (1960), O trapalhão (1964), Um convidado bem trapalhão (1968), protagonizado por Peter Sellers e dirigido por Blake Edwards, Um viúvo trapalhão (1968), Um assaltante bem trapalhão (filme de 1969 de Woody Allen), cujo original é Take the money and run (Pegue o
dinheiro e corra). A lista é imensa, como é também a dos que possuem “louco” na tradução brasileira. Assim como a “tradução” da franquia Se beber não case, que caiu na própria arapuca, outra lambança aconteceu com Meet the parents, que, em português, seria Conheça os pais, mas, no país, transformou-se em Entrando numa fria. Ok, mas o problema é que vieram as continuações. Então, em vez de utilizarem o recurso óbvio do 1, 2, 3, que aliás, vem batizando as sequências de Duro de matar (parou no “4”; o 5º, em vez do “5”, ganhou o subtítulo estranho de Um bom dia para morrer) e Sexta-feira 13 (parou no “9”, mas a franquia continuou sem os numerais), quiseram retrabalhar o título original. Dessa forma, o segundo filme protagonizado por Ben Stiller virou Entrando numa fria maior ainda e, em 2012, o terceiro foi batizado de Entrando numa fria maior ainda com a família. Como se vê, um fiasco, até porque, apesar de imenso, o título não quer dizer absolutamente nada – pode se referir à qualquer situação, uma viagem malsucedida, por exemplo. E a história, pelo menos a do primeiro, é sobre um cara que vai conhecer a família da noiva, cujo pai é bastante esquisito.
REVELAR O FIM
A criatividade dos tradutores brasileiros claramente tenta dar uma “melhorada” nos títulos originais. O clássico dos anos 1980, Ferris Bueller’s day off ganhou fama no Brasil como Curtindo a vida adoidado. Já a comédia Airplane teve uma incrementada no título quando chegou por aqui, transformando-se
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3 ANNIE HALL No país virou Noivo neurótico, noiva nervosa 4 O SOBREVIVENTE Título no Brasil conta o final do filme 5 MEU PRIMEIRO AMOR Sequência recebeu, no nome, um absurdo “2”
em Apertem os cintos, o piloto sumiu, que, na realidade, é um pequeno spoiler. A propósito, contar parte do filme é o que boa parte das “traduções” de títulos fazem, como aconteceu com The graduate, mais conhecido no país como A primeira noite de um homem. Outro caso absurdo é o da obra de Werner Herzog, de 2006, O sobrevivente (Rescue dawn). Ou seja, o título simplesmente conta o final da história! E já que revelaram o desfecho, podemos falar da trama, não é? Um helicóptero cai no Vietnã, durante a guerra, e os tripulantes americanos ficam reféns dos vietcongues, recebendo dos algozes tratamento especial à base de pouco arroz e ínfima água. Um dos soldados é interpretado por Christian Bale. Com isso, o espectador já sabe quem será “o sobrevivente”. Outro exemplo clássico de spoiler é o de Vertigo (Vertigem), de Alfred Hitchcock, que aqui virou Um corpo que cai. Há os casos de traduções ainda mais desconexas do sentido original. Essas versões ganharam tons poéticos e pomposos como Meu ódio será sua herança, clássico faroeste de Sam Peckinpah. O problema é que não existe, para justificar o nome, relação entre pai e filho, muito menos uma herança. O original é The wild bunch, que seria algo como “o bando selvagem”. Já o western de William Wyler The big country se tornou Da terra nascem os homens. Um outro exemplar da mesma época, dessa vez do diretor Elia Kazan, Giant, com James Dean e Elizabeth Taylor, conquistou sua fama aqui como Assim caminha a humanidade, que até música de Lulu Santos virou. Mais um título épico é o de Os brutos também amam. O original é Shane. A propósito, os tradutores brasileiros parecem ter um problema
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INDICAÇÕES VERSÕES HILÁRIAS
BRASIL
PORTUGAL
Contra o tempo Por um fio O chamado Amor à segunda vista Recém-casados Kids Um corpo que cai Toy story Mad Max Dois parceiros em apuros Casamento grego Um tira da pesada Doce lar Uma noite alucinante True lies Revelação Aliens - o resgate Aliens - o regresso Corra que a polícia vem aí E o vento levou Eu, eu mesmo e Irene Arquivo X, o filme Ghost - do outro lado da vida O planeta dos macacos A vida de David Gale Tudo que uma garota quer Piratas do Caribe
Nascer para morrer Cabine telefônica The Ring - o aviso Amor sem aviso Casados de fresco Miúdos A mulher que viveu duas vezes Os rivais As motos da morte Mais olhos que barriga Viram-se gregos para casar O caça-policiais A diva da moda A morte chega de madrugada A verdade da mentira A verdade escondida Aliens - o reencontro final Alien - a ressurreição Aonde é que pára a polícia E tudo o vento levou Eu, ela e o outro Ficheiros secretos: o filme Ghost - o espírito do amor O homem que veio do futuro Inocente ou culpado? O que uma rapariga quer Piratas das Caraíbas
com títulos originais que tragam nomes próprios – estes logo se transformam em outra coisa, como All about Eve, mais conhecido no Brasil como A malvada. O pior é que a capa do DVD, que traz o rosto de Bette Davis com aquele ar soberbo e meio enjoado, faz com o que o público leigo pense que o adjetivo do título refere-se a ela. E aí, pelo menos, surpreende-se com o desenrolar do enredo. O já citado Woody Allen geralmente não é tão importunado pelas traduções. Dos seus 70 filmes, pouquíssimos sofreram com novos batismos. Por isso, o diretor não teria muito do que reclamar. Afinal, o maior título da história e mais louco do cinema pertence a ele e foi traduzido literalmente, no Brasil,
DRAMA
COMÉDIA
Direção de Joe Wright Com Keira Knightley, Jude Law, Aaron Taylor-Johnson
Direção de Marcelo Galvão Com Ariel Goldenberg, Rita Pokk e Breno Viola
ANNA KARENINA
como Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar. Mesmo assim, o prolífico cineasta tem um contrato de direito sobre seus títulos. Por isso sua obra de maior sucesso de bilheteria, Midnight in Paris, virou Meia-noite em Paris mesmo. Para concluir, não podemos esquecer aquele que talvez seja o mais bizarro caso de título estapafúrdio no Brasil – e não é o de Se beber não case 3 lá do começo do texto. Estamos falando de My girl, aquele em que o então badalado ator mirim Macaulay Culkin se apaixona por uma menina bem legal, mas daí ele morre e fim. Na sequência, a tal “girl” encontra um novo pretendente em sua vida. Como ficou em português? Meu Primeiro Amor 2. Sem mais.
COLEGAS
A aristocrata da Rússia czarista, Anna Karenina, é bela, rica e casada com Alexei Karenin. Mas sente-se vazia, até a paixão proibida pelo oficial Conde Vronski se transformar no sentido da sua existência. A narrativa ainda questiona o significado da justiça na sociedade. Em função do pequeno orçamento em torno da adaptação da obra literária de Tolstói, Wright resolveu fazer uma abordagem experimental que mistura cinema e teatro, intercalando cenas exteriores com palcos e cortinas.
Com sensibilidade e senso de humor, Colegas conta a história de três amigos portadores de Síndrome de Down, entediados pela vida regrada de um orfanato. Levando inúmeras referências cinematográficas consigo, o trio escapa numa viagem à procura do prazer pela vida. Destaque para a naturalidade surpreendente do elenco principal e a narrativa deste road movie brasileiro que defende, dentro do gênero comédia, a visão crítica e inclusiva sobre o ser humano.
DOCUMENTÁRIO
DRAMA
Direção de Allan King
Direção de Vicente Amorim Com Tsuyoshi Ihara, Takako Tokiwa e Eiji Okuda
ORSON WELLES – A ENTREVISTA DE PARIS Esta obra é uma preciosidade originada a partir de entrevista entre o cineasta americano Orson Welles e o repórter canadense Bernard Braden, realizada em 1960, num quarto de hotel parisiense. Numa postura despreocupada, o ator e diretor reflete sobre sua produção mais famosa, Cidadão Kane, porém não se limita aos interesses do jornalista, comentando suas produções teatrais e a ambição de deixar um legado à arte. O encontro de 53 minutos é um manjar para cinéfilos.
CORAÇÕES SUJOS
Baseado no livro de não ficção de Fernando Morais e ambientado na Segunda Guerra, o longa aborda a repercussão da derrota japonesa para as forças aliadas na colônia de imigrantes de São Paulo. Temendo que a tradição oriental seja “contaminada” por outras culturas, os nacionalistas japoneses refutam a ideia e travam guerra contra os que aceitam o fracasso, os chamados “corações sujos”. A obra é inspirada na estética do cinema japonês e abre espaço para refletir a existência do radicalismo político.
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Kleber Mendonça Filho CRÍTICO E CINEASTA
CINEMASCÓPIO
ENTRE O DIGITAL E O ANALÓGICO Eu trabalho numa sala de cinema
em que a cabine de projeção acaba de passar por mudanças históricas. De um lado, permanece o projetor 35mm, 15 anos de uso, tecnologia mecânica e ótica inventada, com alterações ao longo do caminho, em 1896. Essa tecnologia foi a identidade do cinema como o conhecemos, e hoje está sendo descartada. Do outro lado da cabine, recém instalados, os novos equipamentos escolhidos pelo mercado: um projetor digital de alta definição, um servidor de conteúdo digital. A cabine modernizou-se, a palavrachave é digital. Fica claro o choque entre tempos diferentes ali dentro. A união das duas tecnologias na cabine é sensacional, o melhor de dois mundos, embora a indústria pense diferente. “Como é que funciona, podji moisxtrar?”, perguntou Diogo sobre o projetor 35mm, o técnico carioca responsável pela instalação do equipamento digital. A relação de Diogo com o 35mm é a de um visitante num museu. Diogo é jovem e especializado em novas tecnologias.
“Com o novo, o velho vai ser encoisxxtado?”, perguntou, numa cabine apertada com tanto equipamento. Lembrei a história dos degraus num prédio de centro de cidade que, depois de ser pisado por milhões de pessoas durante décadas, foi coberto com um capacho borrachudo para esconder a deformação do mármore, polido e reformado por tantos sapatos. Tentando responder à primeira pergunta de Diogo: um rolo de filme é liberado pela parte mecânica de um projetor. O filme passa na frente da luz forte, filtrada por uma lente, projetando na tela uma imagem em movimento que sugere alguma bruxaria. Esse era o jeito de ser do cinema. O processo, na verdade, é evidente para quem ficar ao lado do projetor, vendo-o trabalhar. É fascinante. Na tela, o quadro é impuro, a cópia pode apresentar imperfeições, a imagem pisca suavemente. Há uma beleza em ver que cada imagem (são 24 por cada segundo) é, a princípio, diferente da outra, por causa do grão que se mexe, de riscos ou flutuação de movimento. A cópia de um filme vem
em rolos, montados na cabine, pesam mais de 20 quilos, o transporte é caro. No último Festival de Cannes, em maio, eu não vi mais um único filme projetado em película 35mm. Foi a primeira vez que isso ocorreu em Cannes. Qual a diferença entre filme e digital, na tela? O digital é constante e espetacularmente limpo, e claro. Ficar ao lado do projetor para observá-lo trabalhando não resulta em nada. É um bloco de plástico e metal com uma lente na frente, e seja lá que bruxaria ocorre ali dentro, ela é secreta, insondável, uma tempestade de chips silenciosos. É mais provável ver uma projeção excelente em digital do que em 35mm. A imagem não pisca, não há imperfeições, a cópia não se degrada. Na verdade, é questionável a mera certeza de que existe uma “cópia”. O digital parece uma superimitação do que o cinema-cinema sempre foi. Às vezes, de fato, temos a sensação de que estamos diante de algo novo, impressão tida em filmes modernos, rodados e projetados em digital.
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REPRODUÇÃO
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Como programador de filmes, quero poder escolher, e não fazer o que mandam, embora daqui para a frente, isso talvez seja uma utopia. A copia digital é um arquivo, trazido num HD externo que não pesa mais do que um quilo. Em breve, a “cópia” chegará pela internet, via conexões de fibra ótica. Milhões estão sendo economizados, sem o processo de copiar toneladas de filmes 35mm, e no transporte. Infelizmente, a economia não foi repassada para uma redução no preço do ingresso, pois a troca de tecnologia também é cara. Muitas oportunidades de negócio. Dois filmes que vi, há pouco, combinam com isso tudo. Um chama-se Side by side, de Christopher Kenneally, registro desse momento de mudança. Keanu Reeves, que também é produtor, entrevista cineastas importantes e usa sua
experiência como ator para conversar sobre como filmamos e vemos filmes nesses novos tempos. Side by side resulta num tiroteio de impressões dadas por artistas, muitas vezes usando a analogia do pintor, da tinta a óleo (35mm) e dos crayons (digital). David Lynch afirma que nunca mais voltará a filmar, enquanto Christopher Nolan diz: “Eu sempre tenho que me defender ao querer filmar, mas não vejo ninguém se defendendo ao querer rodar em digital”. Os próprios termos usados no cinema parecem confusos nessa revolução: “filmar” e “rodar” dariam espaço para “gravar” e “digitalizar?” “Gravar” pegou no Brasil via programa promocional Vídeo Show da Globo, um termo usado para novelas. Hoje, jornalistas me perguntam sobre “as gravações” do meu filme, rodado em 35mm. O outro filme que vi é curto, 25 minutos, ainda inédito, A que deve a
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TECNOLOGIA Antigos projetores estão virando peças de museu
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CÓPIAS Rolos de filmes em 35mm vêm dando lugar a HDs externos
honra da ilustre visita este simples marquês, feito em Curitiba por Rafael Urban e Terence Keller. Me fez pensar sobre o tema aterrorizante da revolução digital no cinema atualmente, a questão da guarda de imagens, numa tecnologia que ainda não foi testada pelo tempo. Esse filme (digital) é o registro sobre um arquivo. O personagem chama-se Max, um colecionador de livros, pinturas, cartazes e revistas. É um amante compulsivo das ideias documentadas em gráfica. Fala com igual paixão de uma dedicatória rabiscada que conseguiu em 1976, num vernissage, e de sua coleção de revistas Playboy. Max é o apresentador do seu próprio arquivo. E, para cada peça guardada em estantes, ele tem uma história, uma associação, a lembrança de outras pessoas que já morreram. Cada objeto é um catalisador de memórias. Talvez exista uma geração (como a minha) presa entre o analógico e o digital, aos valores de ter um objeto e de ter um arquivo transferido em algum espaço livre de disco. O arquivo de Max cabe todo em alguns bons HDs. De qualquer forma, fomos e somos seduzidos a ter coisas, algo que vai além do puro consumismo. Numa tarde, há pouco tempo, deu vontade de ouvir música alta, com caixas de som. As minhas caixas têm 34 anos de idade. Fiz uma seleção com discos de vinil, CDs e arquivos MP3 vindos do celular. Na sequência caseira de DJ, naquela tarde, descobri que um CD de 1999, comprado novinho em loja, não toca mais, descascou e fica enganchando, mas que um disco de vinil de 1972 ainda soa poderoso, sem enganchar. Os MP3 novinhos tocaram bem. Estou na faixa dos 40. Os sons daquelas músicas ouvidas à tarde, em vinil, CD ou MP3 geravam uma presença física na sala. A vibração da percussão e do baixo nas caixas de som não era virtual. Era físico, o som se chocava com a estrutura da casa, e fazia a parede vibrar.
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WELLINGTON DANTAS/DIVULGAÇÃO
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JOSÉ PIMENTEL Das academias para o palco
Ator e diretor, que desistiu de ser halterofilista para se dedicar ao teatro, prepara-se para estrear, em Serra Talhada, o espetáculo O massacre de Angico – a morte de Lampião TEXTO Leidson Ferraz
Em fevereiro de 1955, um rapaz que
sonhava ser halterofilista e considerava teatro “coisa de viado”, quebrou seus preconceitos ao participar da peça Lampião, no Teatro de Santa Isabel. Vivendo Ezequiel, um dos irmãos de Virgulino Ferreira, José Pimentel reconheceu-se como ator. Cinquenta e oito anos depois, ele volta a mergulhar no tema do cangaço, dessa vez, na pele de Zé Ferreira, pai de Lampião. Um papel de nordestino velho que chega num momento especial, quando o consagrado intérprete está prestes a completar, no próximo mês, 79 anos bem-vividos. “Essa preocupação excessiva das pessoas com a idade sempre me irritou. Agora, não ligo mais”, diz, lembrando a máxima de que, em cena, um ator
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ARQUIVO PROJETO MEMÓRIAS DA CENA PERNAMBUCANA/ACERVO PESSOAL JOSÉ PIMENTEL.
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pode ter a idade que quiser. Além de estrear uma nova personagem, Pimentel está dirigindo o espetáculo O massacre de Angico – a morte de Lampião, em temporada de 24 a 28 de julho, em Serra Talhada, a convite da Fundação Cultural Cabras de Lampião. Esse outro mergulho no universo dos cangaceiros, personagens que o acompanharam em diversos trabalhos, tanto no teatro quanto no cinema, serve como retorno às suas origens, não só de palco. “Lampião me faz recordar meu pai, Virgínio Albino Pimentel, que costumava me contar a história de que encontrou o cangaceiro duas vezes, antes de eu nascer. Ele comprava porcos nos sítios para revender nos matadouros e, numa dessas viagens, deparou-se com o bando de Lampião. Mas fizeram amizade e até um banquete foi promovido. Tinha uma foto lá em casa, com meu pai vestido de cangaceiro e usando os dois punhais que ganhou de presente! Por isso, desde pequeno, eu ouvia falar de Lampião como herói”, lembra. É o genitor do cangaceiro que vem aumentar sua enorme galeria de personagens. “Um homem cansado, velho, que, para evitar uma tragédia, foge com a família para Alagoas, mas ainda assim é assassinado. A revolta leva seus filhos para o cangaço”, explica o ator. A montagem segue os mesmos moldes de outras produções teatrais ao ar livre sob sua direção, como O calvário de Frei Caneca, Paixão de Cristo do Recife e Batalha dos Guararapes. Com texto dublado e participação de 80 atores e figurantes
José Pimentel não pretende deixar de interpretar Cristo, pelo menos até as comemorações dos seus 80 anos pernambucanos, toda a encenação acontece em meio à caatinga natural, na antiga Estação Ferroviária, com entrada franca (início às 20h). Essa é a primeira vez que José Pimentel dirige um texto que não é seu, para teatro ao ar livre; mas não encontrou maiores dificuldades. “A minha direção de teatro dublado é feita com o olho no computador. De tanto editar vozes, cortar ou inserir pausas, mexer nos volumes, colocar músicas, percebi que o ritmo é o que mais me interessa. E há um outro aspecto nessa direção do teatro ao ar livre, da manipulação dos atores. Tanto que eles tomam um susto, quando a peça fica pronta”, diz, lembrando que nunca fez curso algum de artes cênicas.
MÚSCULOS
Quando jovem, Pimentel gostava mesmo era de pegar “maromba de cimento”, no quintal de casa. Até que conheceu Octávio Catanho, o Tibi, que, além de fisiculturista premiado, já era ator e diretor teatral. Tibi o levou para o palco. “Dou para isso, não”, costumava dizer, escondendo duas tentativas frustradas
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PERSONAGEM O ator faz o papel de Cristo há 35 anos
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RIACHO DE SANGUE Em seu primeiro filme, fez o papel de cangaceiro; agora, no espetáculo O massacre de Angico, interpretará o pai de Lampião
enquanto criança, ambas na escola. A primeira, numa festa de São João, quando esqueceu a frase que deveria dizer e danou-se a chorar. A segunda, interpretando um caçador de ursos que, por conta da tremedeira verdadeira, não soube usar a arma de espoleta que trazia. Tibi o convenceu a integrar o elenco amador do Grupo Dramático Paroquial de Água Fria, fazendo Pilatos, na Paixão de Cristo do bairro. Pouco depois, atuou na peça Lampião, num palco de salão de igreja. Mas a ousadia maior aconteceu com o pedido de pauta no Teatro de Santa Isabel. “Seriam cinco dias de temporada, mas o público só apareceu no primeiro. Foi terrível”, recorda. Em julho de 1955, Pimentel e Tibi inauguraram o Ginásio Poder Muscular, “o mais moderno do Recife naquela época”. E quando o sonho de atuar parecia ter ficado para trás, em 1956, Pimentel foi levado pelo mesmo amigo para o elenco do Drama do calvário, nas ruas de Fazenda Nova. “Fui um dos soldados romanos, só para exibir meu físico e namorar”, lembra. No ano seguinte, veio a oportunidade de assumir personagens com fala, o Demônio Lusbel e o centurião Caio. Mas, antes, ainda em 1956, José Pimentel participou de um marco na história do teatro brasileiro, o lançamento da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, pelo Teatro Adolescente do Recife. Sob direção de Clênio Wanderley, artista por ele até hoje elogiado, fez dois papéis, o do major Antônio Moraes e o do Encourado, em peça que, criticada em sua terra natal, conquistou a medalha de ouro no I Festival de Amadores Nacionais, na capital carioca. “Viajei ao Rio pela primeira vez e foi aquele sucesso todo, com o público aplaudindo de pé e os jornais tecendo mil elogios; me pegou. Aí eu já não tinha mais como sair do teatro.” Conquistado pela arte, foi com o Teatro Adolescente do Recife que o
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ARQUIVO PROJETO MEMÓRIAS DA CENA PERNAMBUCANA/ACERVO PESSOAL JOSÉ PIMENTEL.
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PILATOS No início de sua carreira, em 1968, Pimentel interpretou o personagem na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém
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ator emendou três novas produções, Terra queimada, de Aristóteles Soares (numa de suas piores interpretações, segundo ele); A via-sacra, de Ghéon; e O casamento suspeitoso, de Suassuna. Nessa última, viveu o irrequieto Cancão, com elogios do próprio autor. Paralelamente, Pimentel continuou a atuar nas ruas de Fazenda Nova, assumindo também o papel de Pilatos. Em 1959, lançou-se como diretor em A grade solene, de Aldomar Conrado, que transplantava o mito de Édipo para um engenho da Zona da Mata. “Dirigi, mas muito mal. Tanto que, quando fomos selecionados para o II Festival Nacional de Teatro de Estudantes, em Santos, Clênio Wanderley assumiu a montagem.” Em 1960, três convites o levaram a figurar entre as grandes estrelas cênicas da capital pernambucana. O primeiro foi na estreia do Teatro Popular do Nordeste, liderado por Hermilo Borba Filho, com o lançamento da peça A pena e a lei, de Ariano Suassuna, na qual viveu o negro Benedito. Em seguida, sua inclusão na equipe de atores profissionais contratados pelo Teatro de Arena, no qual fez diversas montagens dirigidas
por Alfredo de Oliveira e Hermilo Borba Filho – como Três anjos sem asas, de Husson; Eles não usam black-tie, de Guarnieri e Farsa da boa preguiça, mais um lançamento de Suassuna. Por fim, sua participação em teleteatros da recéminaugurada televisão. Na TV Jornal do Commercio, por exemplo, foi galã na primeira telenovela gravada no Estado, A moça do sobrado grande, sob direção de Jorge José, em 1967. Bem antes, em 1961, a pedido do diretor Clênio Wanderley, Pimentel arriscou-se na dramaturgia, ao escrever o texto Jesus, mártir do calvário, para ser encenado, ainda em três dias de sequência, nas ruas de Fazenda Nova. Após a temporada de 1962, devido ao público crescente, o produtor Plínio Pacheco resolveu construir Nova Jerusalém. O espetáculo só retornou em 1968, agora apresentado em único dia, com Pimentel nos papéis de Pilatos e do Demônio. No ano seguinte, por conta de uma viagem de Clênio Wanderley à Europa, ele foi convidado a dirigir a peça e, em 1978, assumiu o Cristo, ou seja, lá se vão 35 anos ininterruptos
na mesma personagem, sendo, desde 1997, na sua Paixão de Cristo do Recife.
CRISTO
Sobre continuar interpretando o Jesus de 33 anos, Pimentel é enfático: “Vou fazer enquanto aguentar”, mas acaba revelando um segredo contido, o de comemorar 80 anos fazendo o Cristo. “Depois, posso até deixar...” Curiosamente, ao longo de sua carreira, tão cheia de prêmios e críticas favoráveis (“com algumas merdas aqui e ali”, diz brincando), José Pimentel foi, quase sempre, além de diretor, protagonista dos seus espetáculos, algo que nem todo artista arrisca. “O ator ganha o aplauso e o diretor as pessoas nem sabem quem é. Essa minha opção de dirigir e atuar ao mesmo tempo foi para aparecer. Uma de minhas vaidades”, revela sem modéstia. Calígula, de Camus, e o bicheiro Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, estão entre suas personagens preferidas, ambas em peças que ele também dirigiu. João Grilo foi outro destaque, em montagem comandada por Luiz Mendonça. Das que não atuou, Besame mucho e A aurora da minha vida são inesquecíveis para ele. No cinema, os cangaceiros, estilizados ou não, foram papéis presentes em filmes como Riacho de sangue, Faustão e A noite do espantalho, além do clássico Batalha dos Guararapes, em que interpretou André Vidal de Negreiros. Tantas figuras já vividas estimulam Pimentel a realizar um sonho: “Fazer um monólogo reunindo trechos de personagens que já interpretei e outros que tenho vontade de fazer, como Rei Lear e Macbeth”. Esse é um desejo antigo, mas ainda pensa em escrever livros sobre sua vida e o teatro ao ar livre. Por enquanto, pela temporada de O massacre de Angico – a morte de Lampião, está com a cabeça no cangaço, mas já planeja encenar dois autos de Natal nas cidades de Orobó e Serra Talhada, escrever e dirigir uma Paixão de Cristo completa em Olinda e atuar em outro filme de cangaceiros, O canto do acauã, com produção caruaruense. Ficar doente é o seu grande medo. “Duvido que alguém da minha idade consiga fazer a Paixão como eu”, provoca. Mas, pelo visto, o ator e diretor não pensa nem tão cedo em parar, ainda que assuma personagens na idade que for...
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LAURO BORGES/DIVULGAÇÃO
Festival de Teatro para Crianças Até 28 jul Info: www. teatroparacrianca. com.br
INFANTIL Para uma plateia exigente e sincera
Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco reúne montagens recentes de grupos nacionais e homenageia o roteirista e diretor João Falcão TEXTO Williams Sant’Anna
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Encarar o exigente público
infantil sempre foi um desafio para os mais experientes atores. Os pequenos espectadores têm fama de não perdoar, quando não gostam ou quando não conseguem estabelecer uma relação com a cena, demonstrando instantaneamente seu desinteresse. A angustiante sensação de falar para o vazio, enquanto se está no palco (e o público infantil corre, brinca, conversa ou simplesmente vira as costas), é inesquecível na vida de qualquer artista de teatro. A estética e os temas que podem ser abordados são outras questões que permeiam o universo de realizadores e pensadores do teatro feito para esse público. Alguns
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RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO
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apostam num teatro para todas as idades, outros insistem na presença de cores e músicas como vetores; há quem ache nas fábulas uma fonte a ser explorada, existem os que não dispensam a música como elemento de interação, e outros que forjam seus espetáculos a partir de experimentos e pesquisas teatrais. Não existe, portanto, uma fórmula definida, mas erros que podem induzir o artista e produtor a um resultado que não desperta prazer nem interesse. Um dos principais problemas é resultado da subestimação da capacidade de entendimento da criança, tratando-a como um projeto de adulto. Como em outros gêneros, neste, é necessário que se estabeleça
Há várias formas de se realizar obras para esse público. Apenas não se deve subestimar o seu entendimento uma relação ampla, profunda e processual com a construção cênica. O saudoso artista e professor de gerações Marco Camarotti (1947 – 2004) era um defensor da qualidade do teatro feito para o público infantil, e apostava na preparação dos artistas pautada nas especificidades dessa modalidade teatral. Esse seu
interesse o aproximou da Metron Produções na formulação do Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco, que chega, neste mês de julho, à sua 10ª edição, homenageando o dramaturgo, roteirista e diretor de teatro e TV João Falcão. A ver estrelas, Caxuxa e O pequenino grão de areia são obras escritas e encenadas pelo recifense, que continuam encantando plateias pelo Brasil afora, por sua forma lúdica, poética e musical de tratar conteúdos diferenciados. O musical Caxuxa, com direção de Cláudio Ferrario e produção do grupo Duas Companhias, fará a abertura do festival. Contando a história de quatro crianças e um homem cego, que vivem na rua e buscam transformar
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espetáculos, envolvendo todos os profissionais na construção da cena. Na capital paranaense, a Cia do Abração mantém sede com três salas destinadas a apresentações e atividades formativas, e disponibiliza ao público uma biblioteca com aproximadamente 2 mil livros, uma videoteca com registro de todos os espetáculos, eventos e mostras realizadas, além de curtas, médias e longas-metragens de artistas locais e nacionais. A companhia realiza também o Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades, um festival com o objetivo de mostrar e discutir o teatro de grupos e artistas do Brasil, chegando à sua 5ª versão, em 2013. sua realidade, dando espaço e voz aos seus desejos, o texto convida o público a olhar a vida de outra forma, a partir dos sonhos que toda pessoa tem. É um exemplo prático de que questões sociais contemporâneas podem ser tratadas em espetáculos para o público infantil de forma lúdica, poética e consequente. Compondo a programação desta 10ª edição, a Cia do Abração é um dos grupos esperados pelo público recifense, tendo em vista a ótima recepção de sua primeira participação na mostra. Em atividade desde 2001, o grupo curitibano ganhou o respeito da crítica brasileira por alicerçar seu trabalho na arte-educação e na construção coletiva de seus
FÉRIAS
Desde as suas primeiras edições, o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco tem reunido espetáculos de várias partes do país, promovendo oficinas e debates, de forma descentralizada. Sem apoio público ou privado sistemático, o evento tem sua programação organizada a partir dos recursos disponíveis. O festival já prestou homenagem ao ator e diretor de arte Uziel Lima, ao encenador e produtor Leandro Filho, ao professor e encenador José Francisco Filho, ao espetáculo Princesa Rosa Linda (escrito e encenado por Valdemar de Oliveira, em 1939), à atriz e produtora Socorro Raposo, à Papagaios
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CIA DO ABRAÇÃO Nesta edição, grupo curitibano vai apresentar a peça Sobrevoar
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CAXUXA O espetáculo do grupo Duas Companhias vai abrir o festival
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JOÃO FALCÃO O roteirista, dramaturgo e diretor é o homenageado deste ano do festival
Produções, ao encenador e ator José Manoel e ao citado Camarotti. Muito do prestígio conquistado pela cena teatral pernambucana devese a obras nesse segmento. Alguns grupos, produtores e artistas locais se dedicam, quase que exclusivamente, à pesquisa e realização de um teatro feito para ou especialmente dedicado às crianças. O Núcleo Sesc de Teatro para Infância e Juventude, com sede no Teatro Marco Camarotti (Sesc de Santo Amaro), denota o vigor dessa expressão cênica. Aberto no final de junho, no Teatro Luiz Mendonça (Parque Dona Lindu, Recife), o 10º Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco segue até o dia 28 deste mês, em diversos teatros da cidade. É uma oportunidade para conferir a produção pernambucana e de outros estados, garantindo informação e diversão para a garotada de todas as idades nas férias de julho.
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Ronaldo Correia de Brito MÉDICO E ESCRITOR
ENTREMEZ
A BOCA DE DEUS
Qual é o papel da arte literária na conformação da narrativa bíblica? Um papel crucial, garante o professor de literatura hebraica e comparada da Universidade da Califórnia em Berkeley, Robert Alter (A arte da narrativa bíblica, Companhia das Letras, 2007). Um papel finamente modulado a cada momento, quase sempre determinante na escolha exata de palavras e detalhes, no ritmo da narração, nos pequenos movimentos dos diálogos e em toda uma teia de relações que se ramificam pelo texto. Alter propõe a leitura da Bíblia como um livro de narrativas de forte poder estético e imaginativo – obra de vários autores escrita em tempos diferentes –, sem reduzi-la a um amontoado de textos da tradição oral, compilados ao longo da história do povo hebreu. Segundo ele, a poesia, o uso exato dos verbos, as dramatizações e os diálogos precisos resultam claramente não de um mecanismo automático de intercalação de materiais tradicionais, mas da cuidadosa combinação de fontes à mão de um escritor brilhante. Ao se conceder a um poeta ou escritor a autoria de cada um dos livros da Bíblia
hebraica, mesmo reconhecendo-se as inúmeras alterações sofridas ao longo dos anos, surge a questão sobre o papel de Deus nessa empresa. Em todas as ortodoxias judaico-cristãs, acreditou-se num livro de inspiração divina, ou até mesmo soprado do alto e impresso a fogo como as tábuas dos mandamentos. Fazendo-se a leitura da Bíblia pelo caminho da arte narrativa, poetas e escritores adquirem status de videntes e profetas, um papel que quase sempre lhes foi atribuído ao longo da história. Segundo Alter, o laconismo hermético da narrativa bíblica é uma expressão profunda de arte e não de primitivismo. Seriam as profecias sobre a queda de Israel, o advento do Messias e o cativeiro da Babilônia especulações de poetas? O dom artístico se confundiria com o dom divinatório? Esses homens que se autodenominavam “a boca de Deus” fizeram profecias obscuras e cheias de mistérios, expostas através de símbolos audazes e alta poesia, que resultaram na mais potente e magnífica arte. Talvez o sofrimento e as humilhações tenham moldado poetas videntes como
Isaías, Ezequiel, Daniel e Jeremias. Guardiões da palavra, eles interpretavam os castigos infligidos ao povo hebreu como consequência do pecado por terem se afastado de Deus e de suas leis. O exílio, a guerra, a ruína e as lembranças de um passado glorioso são o tema dos seus cantos, quase sempre lamentações e exortações. “Entretanto, esse povo foi despojado e saqueado;/ todos eles estão presos em cavernas,/ estão retidos em calabouços./ Foram submetidos ao saque, e não há quem os liberte;/ foram levados como despojo,/ e não há quem reclame a sua devolução” (Isaías, 42-22). “Como o vento do Oriente eu os dispersarei/ diante do inimigo./ Eu lhes mostrarei as costas e não a face,/ no dia de sua ruína” (Jeremias, 18-17).
ANUNCIAR O FUTURO
A tragédia Medeia, escrita por Sêneca, o Filósofo, baseada na peça homônima de Eurípides, contém a famosa profecia sobre o descobrimento das Américas, nos versos 374 e seguintes: “Daqui a alguns séculos, chegará um
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KARINA FREITAS
momento em que o oceano abrirá as barreiras do mundo: abrir-se-á uma terra imensa, Tétis descobrirá um novo mundo e Tule não será mais o mais longínquo ponto da terra”. Fora do contexto das escrituras sagradas, o poeta filósofo intui, iluminase e faz uso de seus dons premonitórios. Sêneca viveu de 4 a.C. a 65 d.C., seus versos poderiam ter impressionado Cristóvão Colombo, impulsionando-o para as navegações e descobertas. Com certeza, reverberou no cubano Alejo Carpentier, que escreveu A harpa e a sombra, romance sobre o descobridor da América em que se inverte a relação entre arte literária e história. Carpentier abandona a função meramente profética e assume o demiurgo, sua escrita romanesca invade a linguagem documental, contaminando-a. Transforma discurso em romance e a história reescreve a história. Aos poetas coube ler os sinais dos tempos e anunciar o futuro, mesmo que esse futuro se revelasse um equívoco ou catástrofe. O filósofo e poeta Waldo Emerson, com sua Teoria do destino manifesto, planta a semente
Aos poetas coube ler os sinais dos tempos e anunciar o futuro, mesmo que esse se revelasse um equívoco ou catástrofe de uma poética norte-americana, que Walt Whitman irá propalar como um profeta visionário, nacionalista e democrata, antevendo a expansão do grande império: os americanos de todas as nações em qualquer era sobre a terra, provavelmente, têm a natureza poética mais completa. Os Estados Unidos são essencialmente o maior de todos os poemas. De agora em diante, na história da terra, os maiores e mais agitados poemas vão parecer domesticados e bemcomportados diante da sua grandeza e agitação ainda maiores... Enfim, aqui não só uma nação, mas uma nação proliferativa de nações. Mesmo que se recuse um sentido profético à obra de Franz Kafka, a
incomunicabilidade e o absurdo burocrático parecem o palpite de tempos futuros ruins, que se prolongarão eternamente, pairando sobre sociedades que aboliram o sagrado, nas quais o homem se encontra sozinho: “Era tarde da noite quando K chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio”. A mensagem não terá de ser necessariamente hermética. Pode adquirir o tom de ficção científica como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell, ou Crônicas marcianas, de Ray Bradbury, ou ainda a estranhíssima antevisão do Armageddon, relatada no romance Um cântico para Leibowitz, por Walter M. Miller. Existiram profetas maiores e menores, segundo a tradição hebraica. Ainda proliferam bons e maus profetas nos tempos de hoje. É preciso estar atento ao que eles falam e escrevem.
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BRENO LAPROVITERA
Leitura 1
LIÊDO MARANHÃO Safadeza e galhofa como matérias-primas Ao dedicar-se à anotação de falas de poetas populares, ambulantes e prostitutas, ele colheu acervo imponderável da oralidade TEXTO Adriana Dória Matos
“Mas doutor, eu nem lhe conto: Eu cheguei em casa e a mulher estava lendo o livro do senhor. Eu fiz cara feia e disse: ‘Madalena, vem cá!’ Eu pensei que ela ia largar o livro. Ela veio com o dedo dentro da página que estava lendo. Aí eu disse: ‘Cuidado com o livro, que esse hôme é um grande espírita’. Ela disse: ‘Espírita, isso é um cabra safado!’. Depois ela disse: ‘Guarde bem-guardado, por causa dos meninos’. Ela estava com o dedo mesmo naquelas carteirinhas (Identidades de Sacanagem). Eu tenho uma bolsa 007 que eu guardo meus documentos e disse a mulher: ‘Pronto, aqui só quem mexe sou eu.” Esse foi o depoimento de leitor dado por Baiano, auxiliar do sebista Brandão, a Liêdo Maranhão, com relação ao seu O
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1
MEMORIAL No quintal de sua casa, Liêdo construiu espaço para manter seu acervo, composto, sobretudo, de peças gráficas
povo, o sexo e a miséria, ou o homem é sacana (1980), publicado no livro A fala do povão: o Recife cagado-e-cuspido (2011). Mas bem que Baiano poderia estar se referindo a Conselhos, comidas e remédios para levantar as forças do homem (1982) ou Rolando papo de sexo: memórias de um sacanólogo (2005), também títulos na linha picante, pornográfica, que lhe é cara. Não que Liêdo só escreva sobre sexo. Mas a sacanagem, de uma forma geral, interessa deveras a esse homem que agora beira os 90 anos (nasceu em 1925) e que tem se dedicado – de maneira assídua, aplicada – à cultura popular, desde os anos 1960. Aqui, permita-se um comentário externo aos interesses imediatos deste texto. Quando usamos os termos
“cultura popular”, “metodologia” e “pesquisador”, eles remetem a pretensões e práticas que desvirtuam completamente a aproximação que Liêdo Maranhão estabeleceu com seus temas. Porque o que este dentista produziu não foi uma “pesquisa” a que se dedicou para obter esse ou aquele título, uma bolsa de estudos, mérito. Nada disso. Ele ficou ali, enfronhado no meio do povo, porque quis, porque era o que o apaixonava. E vamos dizer que ele escolheu determinados lugares – todos no Centro do Recife ou ao redor de locais onde ele atendeu como dentista, na periferia – porque era ali o seu território, não vinha de “prospecção”. A gente pergunta como ele conciliava o tempo, como fazia para trabalhar e “vadiar”, e ele responde que “se deixou ficar”. Então, que fique claro: Liêdo não se leva tão a sério, e é com essa leveza que devemos observar os seus “trabalhos”, pouco rigorosos, altamente espontâneos. O depoimento de Maria Doida, prostituta que atendia nas imediações do Mercado de São José, faz jus aos interesses de Liêdo Maranhão. Como ele lhe dedicasse muita atenção, Maria Doida observou: “Eu gosto do senhor porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra safado”. Parece que a gente está vendo: Liêdo conta isso, solta uma gargalhada sapeca e comenta: “Não é uma beleza?”. Alguém disse sobre ele que iria ser longevo, porque vivia divertidamente. Verdade. Atualmente, Liêdo Maranhão não sai a campo. O Recife onde ele bateu perna e se deixou ficar, deslocando-se de ônibus (“para não se individualizar”, ele diz), mudou bastante e se mostra hostil para um senhor tão empático. O ponto de parada dele era o Mercado de São José e seu entorno, o tempo era o fim dos anos 1960, toda a década de 1970 e começo dos 1980. Ali, naquelas imediações, misturavase uma pândega de vendedores ambulantes que juntava gente. Uma sociedade mais ingênua e gentil? Não devemos ser traídos pela nostalgia, mas certamente ali se encenavam negócios que foram enxotados para bem longe, ou para o nunca mais. Os livros de Liêdo Maranhão nos permitem o contato com esse outro tempo. A maioria dessas obras saiu em baixa tiragem e logo se esgotou. Assim foi com
os 13 títulos que o dentista antropólogo colocou na praça, entre eles, Classificação popular da literatura de cordel (seu primeiro lançamento, de 1976), Que só (1993) e Marketing dos camelôs de remédio ou o mundo da camelotagem (2004), editados agora em volume único pela Cepe Editora. Os títulos resumem aquilo que está nos seus diários de campo (seriam 31): anotações de tudo que ouviu e presenciou. Classificação popular da literatura de cordel traz um importante diferencial em relação a estudos nessa área, ao organizar os folhetos e romances a partir das categorias criadas pelos próprios cordelistas e distribuidores, e não pela crítica literária. Naqueles anos 1970, era um trabalho pioneiro, porque ainda se estudava pouco a literatura popular. Liêdo realizou essa compilação pelo contato com cordelistas que atuavam no Recife e nas feiras e mercados das capitais nordestinas, para onde viajou com esse intuito durante três anos. Que
O material que tem resultado em vários livros foi coletado por Liêdo Maranhão nos anos 1960, 1970 e começo dos anos 1980 só é um título enigmático. Antes de lêlo, pensamos tratar-se de um arroubo poético. Que nada. Trata-se de uma coletânea de ditados populares: “Bom que só bênção de mãe”, “Enfeitado que só cruz de estrada”, “Ligeiro que só gozo de padre”, “Contente que só pinto na merda”. E por aí vai. Marketing dos camelôs de remédio ou o mundo da camelotagem é aquele que podemos dizer o mais denso e curioso título do volume. Liêdo fez amizade com os ambulantes que atuavam no entorno do mercado e “decorou” o que eles diziam, de tanto escutar. De outros, tomava notas diretas. De modo que, ao ler os depoimentos, o leitor perceberá a reincidência de alguns personagens, a camaradagem, a concorrência e mesmo a hostilidade entre eles. Livros anteriores já haviam tocado no tema: Marketing dos camelôs do Recife, 1996, que reúne pregões; e O mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste:
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REPRODUÇÃO/ACERVO PESSOAL LIÊDO MARANHÃO
2-5 POVO DO MERCADO Cordelistas, adestradores de animais, prostitutas e “professores” estão entre os tipos entrevistados por Liêdo
homenagem ao centenário do Mercado de São José 1875-1975, editado em 1977, pela prefeitura do Recife, este, um volume fundamental, composto também por fotografias feitas pelo autor, que merecia uma boa reedição. Mas o que distingue o Marketing dos camelôs é a densidade. São, na maioria, depoimentos longos e muito peculiares, que documentam não apenas o universo retratado no que diz respeito aos produtos e discursos usados para vendê-los, mas às mentalidades, às relações sociais tensas sob um amontoado de narrativas engraçadas. Na planura dos discursos, os tipos documentados expõem um país diferente deste de quatro décadas depois. Ao mesmo tempo, com hábitos arraigados, como o disfarce e a burla, o improviso e a violência sublimada. Embora não tenha tido ambições literárias, Liêdo Maranhão também realiza neste livro um excelente trabalho de cronista, trazendo para o texto histórias saborosas do cotidiano das ruas. E para encerrar, voltando à sacanagem: neste quesito, Liêdo tem um projeto muito sedutor. Aqui não se comentou o aspecto colecionista de sua persona. Além de um colecionador de relatos, ele foi também atraído por uma infinidade de objetos e peças gráficas. Estes compõem o seu acervo, agora intitulado Memorial da Cultura Popular e mantido em sua casa. Dentre essas peças, há uma coleção de fotografias de bordéis do Recife que adquiriu na Praça do Sebo. Junto com as imagens, Liêdo, o sacanólogo, tem anotados depoimentos de vários frequentadores e de prostitutas. O título é O porto e a zona do Recife, open city dos marines e já tem estrutura montada. Isso bem-editado, hein? Não dá um livro incrível? Deixa qualquer “tom de cinza” no chulé.
Leitura 2
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Classificação popular de literatura de cordel e outros LIÊDO MARANHÃO
A Coleção Acervo Pernambuco tem como objetivo editar livros inéditos, raros ou fora de catálogo, que tenham importância fundamental para o Estado, o Nordeste e o País. Seja no campo literário, artístico, científico ou técnico, estas obras passam por revisão e atualização ortográfica, trazendo prefácios contextualizadores encomendados a especialistas da área, numa ação que reafirma a missão social e cultural da Companhia Editora de Pernambuco – Cepe.
CLASSIFICAÇÃO POPULAR DA LITERATURA DE CORDEL / QUE SÓ / MARKETING DOS CAMELÔS
LIÊDO MARANHÃO
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Terra pernambucana
LIÊDO MARANHÃO
CLASSIFICAÇÃO POPULAR DA LITERATURA DE CORDEL QUE SÓ
Cepe Editora
MARKETING DOS CAMELÔS DE REMÉDIO OU O MUNDO DA CAMELOTAGEM
Edição reúne três obras importantes do pesquisador.
ISBN 978-85-7858-135-0
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
1 DOCUMENTAIS Samarone Lima, Luís Henrique Pellanda, Ricardo Lísias e Julián Fuks integram coletânea
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CRÔNICA Em primeira pessoa, mas sob o lastro do “real”
Documentais: desencontros, lembranças e testemunhos reúne 30 textos que passeiam pelo gênero, com nuances que vão do memorialismo à narrativa leve e coloquial Pode ser até que não faça mais sentido distinguir os gêneros literários, depois de processos de desconstrução, hibridização, quebra de padrões... Depois da dissolução de amarras criativas e críticas, preocupar-se com isso seria um trabalho para os burocratas da literatura. Mas, convenhamos, pode ser que se libertar de padrões signifique também querer fazer uso deles, ler a obra a partir das premissas teóricas que têm ocupado o tempo e a inteligência da crítica.
Inquietação desse tipo moveu o jornalista Schneider Carpeggiani, que, junto com o escritor Raimundo Carrero, edita o jornal literário Pernambuco (Cepe). Ele acha discutível a reunião de contos e crônicas numa mesma categoria, adotada em boa parte dos concursos literários nacionais, já que entende que são coisas diferentes, sobretudo porque a crônica teria “o real” como lastro mínimo, o que não é premissa do conto. “Ambas narrativas curtas?”, indaga, quanto ao motivo
alegado para uni-los. “Este não seria argumento suficiente”, rebate. Então, Schneider deu seu depoimento contra esse critério dos concursos como pôde: reuniu os 30 textos que considerou as melhores crônicas publicadas no Pernambuco, desde 2007 até abril deste ano, e lançou-os no livro Documentais: desencontros, lembranças e testemunhos, que sai agora, também pela Cepe Editora. Além do “real como lastro”, outro critério adotado nesta seleção foi a baliza na primeira pessoa, num narrador supostamente não ficcional, portanto, um texto muito aproximado do depoimento, do testemunho, da memória. Sim, essas são premissas da crônica, embora haja outras. E, como em demais coletâneas do gênero, o leitor perceberá algumas de suas características neste Documentais. Há, por exemplo, aquilo que se convencionou chamar de “típica crônica brasileira”, um tom coloquial, de texto que flui com tamanha leveza, que parece não ter exigido qualquer esforço do autor. Isso acontece neste volume com os textos de Xico Sá, Samarone Lima, Thiago Soares, Flávia de Gusmão, Julián Fuks, Carlos Henrique Schroeder, todos egressos do jornalismo. Há textos memorialistas, meditativos, nostálgicos; e neste segmento se alinham os de Talles Colantino, Micheliny Verunschk, Rogério Pereira, Paulo Sérgio Scarpa, Anco Márcio Tenório Vieira. Crônicas que se aproximam do conto não são incomuns, e muitas vezes, com resultados maravilhosos. Exemplos são os textos de Ronaldo Correia de Brito, Carol Almeida, Adelaide Ivánova, Ricardo Domenck e Marcelino Freire. Como toda leitura é um espelhamento do leitor, há os inevitáveis “preferidos”, que lhe tocam de maneira especial. No caso desta leitora, neste “gênero”, estariam os textos de Fabiana Moraes, Ricardo Lísias e Luís Henrique Pellanda. Podemos “brigar” horas para encaixar textos em categorias canônicas, podemos discutir pertinências e impertinências nessas definições. Mas, com relação à crônica, há um aspecto que – junto com a subjetividade saudável, não ególatra – faz dela um texto cativante, necessário: a simplicidade. ADRIANA DÓRIA MATOS
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Leitura CANCÃO Uma bíblia poética
Coletânea reúne as obras completas do poeta, ainda desconhecido por parte da academia e do público TEXTO Wellington de Melo
O poeta e apologista sertanejo Ésio Rafael costuma dizer que João Batista de Siqueira, mais conhecido como Cancão, é o deus da poesia do Pajeú. A herética afirmação talvez incomodasse o próprio poeta, devoto de Maria e dotado de uma religiosidade extrema. Mas qual seria o motivo para o epíteto divino?
A nova edição da coleção Letra Pernambucana, editada pela Cepe, com revisão do próprio Ésio e de Marcos Passos, esclarece a questão. Cancão nasceu no Sítio Queimadas, em São José do Egito, em 1912. Embora tivesse participado de cantorias de viola na juventude, uma manifestação que prima pela poesia
do improviso, desde a década de 1950 dedicou-se exclusivamente à escrita. A exemplo de outros poetas sertanejos iluminados, Cancão frequentou pouco a escola. Isso deveria tornar sua obra ainda mais surpreendente a nossos olhos, condicionados ao papel da educação formal, dadas as constantes referências à história e à mitologia clássicas. O fato fez com que alguns apologistas, talvez de maneira equivocada, atribuíssem essa erudição a alguma inspiração sobrenatural. Isso, no entanto, reflete mais um certo preconceito metropolitano com respeito ao Pernambuco profundo. É que, se existe ainda hoje alguma ignorância do público em geral da multiplicidade de vozes literárias do interior, certa classe de escritores e alguns acadêmicos agregam ao caldo azedo algum desdém pela dita “poesia popular”. O conceito, tão difuso e ambíguo, é um rótulo que vozes como a de Cancão colocam em xeque. A despeito de a Academia cada vez mais debruçar-se sobre a poética sertaneja, a verdade é que a maioria dos estudiosos olha de soslaio para essa tradição. Lembro uma reunião com um acadêmico, cujo nome não quero recordar, em que anunciei que estaríamos em 2012 celebrando o centenário de Cancão, dentro da programação da Secretaria de Cultura de Pernambuco. O distinto acadêmico respondeu com um “quem?”, acompanhado de uma cara de “nojinho”. Mas não são todos que cultivam a ignorância, é certo. O professor Josivaldo Custódio, da Universidade de Pernambuco, escreveu um interessante trabalho cotejando as obras de Cancão e de Augusto dos Anjos que, a despeito de apresentar algumas posições questionáveis, traz a obra do poeta do Pajeú para o centro de uma análise comparativa de alto nível. O professor Aroldo Ferreira Leão, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, analisa os sonetos canconianos e observa a subversão que faz o poeta da forma clássica, já inserida na tradição da poesia popular. Digno de nota também é o prefácio de Musa sertaneja (1967), escrito pelo membro da
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INDICAÇÕES Academia Pernambucana de Letras, Ulysses Lins de Albuquerque.
INFLUÊNCIAS
Acervo Pernambuco tem como objetiivros inéditos, raros ou fora de catálonham importância fundamental para o Nordeste e o País. Seja no campo litetico, científico ou técnico, estas obras or revisão e atualização ortográfica, prefácios contextualizadores encomenpecialistas da área, numa ação que remissão social e cultural da Companhia Pernambuco – Cepe.
MUSA SERTANEJA / FLORES DO PAJEÚ / MEU LUGAREJO / POEMAS INÉDITOS
CANCÃO
Sabemos que, a despeito do que se ensina no Ensino Médio, as ditas escolas literárias não se intercalam de maneira linear com a publicação de tal ou qual livro. Na verdade, influências de diferentes dicções se sobrepõem e fazem com que cada poeta represente uma gama de inter-relações que o tornam único, mais ou menos ancorado a seu tempo e a outras vozes do seu entorno. Para além da influência da poesia da Serra do Teixeira e da oralidade poetizada nos pés de parede, Cancão era certamente um leitor dos clássicos da poesia brasileira. Seria ingênuo afirmar que a presença constante em sua obra de temas como a natureza ou a religiosidade, além do
Letra pernambucana
CANCÃO
JOÃO BATISTA DE SIQUEIRA
MUSA SERTANEJA FLORES DO PAJEÚ MEU LUGAREJO POEMAS INÉDITOS
ISBN 978-85-7858-134-3
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Musa sertaneja, Flores do Pajeú, Meu lugarejo e poemas inéditos JOÃO BATISTA DE SIQUEIRA (CANCÃO) Cepe Editora Reunião das obras completas do poeta do sertão do Pajeú, com revisão de Ésio Rafael e Marcos Passos.
tom lúgubre de poemas como Seis horas no cemitério não recebeu influência de sua leitura dos românticos, como recorda Ulysses Lins, que reconhece ecos de Fagundes Varela e Casimiro de Abreu em sua poesia. Por outro lado, sua amplitude vocabular, ora pomposa, não nos faz ignorar alguma ressonância parnasiana, embora não pareça Cancão cultuar obsessivamente a forma, o que reforça sua inclinação para a expressividade romântica. O trabalho de maior fôlego sobre o poeta egipciense é do professor Lindoaldo Campos, cujo fruto foi a publicação do livro Palavras ao plenilúnio (2007), edição esgotada da obra reunida de Cancão. Diferentemente da edição da Cepe, a obra trazia notas explicativas sobre as variadas versões dos poemas publicados em livro, encontrados em manuscritos ou gravações. A presente edição, a nosso ver de maneira acertada, privilegia a obra completa do autor, ao apresentá-la conforme a ordem dos poemas e os prefácios das primeiras edições, o que parece mais interessante tanto ao público que ainda não conhece Cancão como para aqueles que não tiveram acesso a essas obras, há muito esgotadas. Além disso, a edição da coleção Letra Pernambucana traz poemas inéditos catalogados por Lindoaldo, após a publicação de Palavras ao plenilúnio, o que faz da presente edição essencial para conhecer Cancão. Que me perdoe o pássaro poeta pela heresia, mas essa edição é uma verdadeira bíblia da poesia sertaneja.
ENTREVISTAS
CRISTIANO DINIZ (ORG.) Fico besta quando me entendem Globo Livros
POESIA
CACO ISHAK Não precisa dizer eu também 7Letras
Hilda Hilst enfrentou críticas que se restringiam a enquadrá-la como arredia, controversa e, por vezes, obscena. Tal compilação evidencia a sua consciência sobre o processo de construção da própria obra. Ela conversa com nomes como José Castello e Caio Fernando Abreu.
O escritor mantém coerente diálogo com sua geração. Marcado pelo humor, o poeta traduz a instabilidade e certa incredulidade no contemporâneo. As referências vão desde as Spice Girls até Susan Miller e, embora tente escapar do sentimentalismo, seus poemas, por vezes, abordam o amor.
CARTAS
BIOGRAFIA E ROMANCE
MARCO LUCCHESI Nove cartas sobre a Divina comédia Casa da Palavra
O desejo de fazer uma declaração de amor à Divina comédia levou o autor a optar pelo gênero epistolar. As observações de Lucchesi acerca do livro são um incentivo aos que ainda não se dedicaram aos cantos do poeta, sem deixarem de ser reveladores aos que já os leram. Inclui compilação iconográfica da Divina comédia.
TADEU ROCHA E ADALBERON CAVALCANTI LINS Delmiro Gouveia – O pioneiro de Paulo Afonso e O ninho da águia – Saga Delmiro Gouveia
Imprensa Oficial Graciliano Ramos
Esta caixa composta de dois volumes, uma biografia e um romance, marca os 150 anos de nascimento do empreendedor cearense Delmiro Gouveia.
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NOISE Um barulho que se propagou
Há 100 anos, o pintor Luigi Russolo
Lançado em manifesto há 100 anos, gênero musical ganhou adeptos emblemáticos, como os compositores John Cage, Lou Reed e a banda Sonic Youth TEXTO Yellow
(1883-1947) escrevia o manifesto futurista L’arte dei rumori (A arte dos ruídos), considerado um dos mais importantes e influentes textos para a estética musical do século passado. Inspirado na poesia onomatopeica de Marinetti, Russolo argumentava que o ouvido humano havia se acostumado à velocidade, à energia e ao barulho da paisagem sonora urbana industrial, e que essa nova paleta sonora requeria uma abordagem diferente da instrumentação e composição musicais existentes. Ele propunha que a eletrônica e outras tecnologias permitiriam aos músicos futuristas “substitutos para a limitada variedade de timbres que a orquestra possui hoje”, estimulando a produção musical cacofônica, e a adoção
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
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SONIC YOUTH Grupo americano é o mais radical e bemsucedido no uso das premissas do noise
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RUSSOLO Pintor italiano escreveu, em 1913, o manifesto A arte dos ruídos
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LOU REED A ligação do compositor (na foto, o 3º da dir. para esq.) com o estilo musical começou no nova-iorquino Velvet Underground
de técnicas que começavam a ser usadas nas artes plásticas, como o ready-made e o fluxo da consciência dadaístas. A música produzida por Russolo, que causou tumulto em sua primeira apresentação, era feita através de instrumentos que o artista construiu com seu irmão (osciladores elétricos que alguns defendem serem os primeiros sintetizadores), apresentando explorações rudimentares do mundo dos barulhos. Uma delas, por exemplo, replica instrumentalmente os sons de veículos automotores; outra fazia referência aos de uma máquina de escrever. O artista alertava, entretanto, que a arte dos ruídos não deveria ser limitada à imitação. Um século depois, a influência do manifesto pode ser ouvida na música popular, e não serve apenas a círculos de acadêmicos que trocam tapinhas nas costas uns dos outros a cada nova estridência atonal que criam. A música que emprega o ruído como recurso principal é conhecida hoje pelo amplo termo noise music, e inclui uma grande variedade de estilos e práticas sonoras criativas. Teóricos debruçaram-se sobre o tema, criando uma vasta literatura. Notadamente o compositor John Cage (1912-1992), que fez experimentos com música concreta, criou propostas de notação musical e compôs peças para instrumentos quebrados, ou que incluíam a destruição de instrumentos. A abordagem artística do barulho viria a ser apropriada, na segunda metade do século 20, por artistas do movimento Fluxus, como Yoko Ono, que conseguiu infiltrar sua arte em nada menos que a maior banda de rock de todos os tempos. Revolution 9, do chamado Álbum branco dos Beatles, explicitava um tipo de exploração musical inédita na música comercial. A influência vanguardista do noise possibilitou experimentos como Household objects e Alan’s psychedelic breakfast, da então jovem banda inglesa Pink Floyd.
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Ao final da década de 1960, vários músicos começaram a incorporar a microfonia aos seus solos de guitarra. Jimi Hendrix, com seu estilo único, inovou no uso do instrumento, os efeitos fuzz e wah-wah, e praticamente inventou a tradição da parede de amplificadores Marshall, que garantia atrozes microfonias harmônicas, as quais o guitarrista domava com técnica e sensibilidade jamais repetidas. A figura de Hendrix e sua popularidade abriram ainda mais os ouvidos do grande público para os novos e estranhos sons. O encontro entre vanguardas das artes plásticas com a música dos jovens aconteceria novamente ao final da década de 1960, quando Andy Warhol resolveu dar respaldo à banda nova-
iorquina Velvet Underground, criada pelo compositor Lou Reed, que viria a ser um dos melhores letristas do rock, e pelo músico de vanguarda britânico John Cale, que já experimentava composições de dissonantes drones (a repetição de uma mesma nota ou acorde, presente na música indiana clássica e na medieval do Ocidente). Encantado com a mistura de temas sombrios das letras de Reed às caóticas sessões de barulho e microfonia que a banda produzia, Warhol os apresentou como acompanhamento musical de seu espetáculo multimidiático Exploding plastic inevitable, além de produzir e desenhar a mítica capa do primeiro disco do VU, a da banana. Diz-se que poucos ouviram esse álbum,
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Sonoras
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quando foi lançado, mas todos os que ouviram começaram uma banda. A sonoridade crua e o tom sincero com que eram abordados assuntos como drogas e sadomasoquismo viriam a inspirar o nascimento do punk, nos anos seguintes. Anos depois, Lou Reed criaria uma das mais absurdas obras da história do rock. Metal machine music foi um álbum duplo, com quatro lados de microfonia de guitarras, gravadas na sala do seu apartamento, e lançado em 1975, quando o músico desfrutava do auge de sua popularidade. O disco pode ser entendido como um trabalho conceitual, ou como o maior desacato que um artista já perpetrou à sua gravadora e seu público. Reed
defende com unhas e dentes a sua criação, e insiste que tentou convencer a RCA a lançar o LP sob o selo de música clássica da empresa.
PUNK E NO WAVE
Por volta dessa época, surgiu o movimento punk. Idealmente, o gênero musical deveria ser caracterizado por revolta contra os padrões vigentes, e foi extremamente bem-sucedido ao divulgar a ideia do faça-você-mesmo contra as regras pré-estabelecidas do sistema. O fanzine homônimo que deu origem ao levante artístico, editado por Legs McNeil, chegou ao cúmulo de publicar um diagrama mostrando posições de três dedos no braço de uma guitarra, sobre a seguinte legenda: “Aqui
JOHN CAGE Músico foi pioneiro no uso de instrumentos não convencionais
está um acorde, aqui estão mais dois, agora vá formar sua banda”. Porém a música punk produzida pelos Ramones e Sex Pistols ainda era essencialmente derivativa do rhythm and blues e rock’n’roll das décadas anteriores. Na década de 1970, mais especificamente no ano de 1978, surgiu (e, de certo modo, também entrou em colapso) a cena nova-iorquina no wave, como uma resposta à música punk produzida até então. O movimento foi tão breve, que existe praticamente um disco apenas como registro (fora outros de menor importância, lançados anos depois), a coletânea No New York, produzida por Brian Eno. As bandas do gênero tinham como objetivo limpar de vez a paleta sonora e varrer os últimos resquícios de blues e rock’n’roll que os punks haviam deixado. Algumas das bandas, como James Chance and the Contortions, não foram bemsucedidas na tarefa, e suas performances e composições ainda eram bastante influenciadas pelo rockabilly. A mais experimental e efetiva banda do no wave foi DNA, liderada por Arto Lindsey. Arto, que viria a se tornar o produtor de alguns dos melhores discos da MPB das últimas décadas (sua guitarra está infiltrada em Estrangeiro, de Caetano Veloso, e Mais, de Marisa Monte), nasceu nos Estados Unidos, e passou grande parte de sua infância em Garanhuns (PE), acompanhando seus pais missionários. De volta a Nova York, ele envolveu-se em coletivos artísticos e musicais. A banda DNA desconstruía harmonia, ritmo, performance, criando um som primitivo e de vanguarda. O no wave foi determinante para diversos nomes que surgiram na década de 1980. A atonalidade serviu de matéria-prima para a expressão do inconformismo em grupos de hardcore, como Big Black e Shellac, do produtor Steve Albini, e Black Flag, uma das mais influentes bandas californianas. O underground americano ainda serviu de berço para muitos artistas, que pontuavam melodias pop com barulho, como Dinosaur Jr. e Yo La Tengo. Do outro lado do Atlântico, o barulho representou uma reação ao pop
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INDICAÇÕES eletrônico, nos anos 1980. The Jesus and Mary Chain sobrepujava todos com sussurros e guitarras simples, porém em alto volume e distorcidas ao extremo. Os roqueiros ingleses da virada das décadas de 1980 e 1990 ficaram conhecidos como shoegazers – jovens curvados, com o cabelo sobre o rosto, falando baixo e ouvindo música ensurdecedora. A exploração das guitarras chegou ao extremo com a genial banda My Bloody Valentine, que cria delicadas melodias e harmonias através de tanto barulho, que chega a distribuir protetores de ouvidos em seus shows. Uma grande influência da My Bloody Valentine e do Metal machine music está no estilo de bandas de drone metal, como Sunn e Boris. Adentrando mais no continente europeu, na Alemanha, o guitarrista Blixa Bargeld fazia barulho na banda Einstürzende Neubauten, que ainda existe. Entre 1983 e 2003, integrou a Nick Cave and the Bad Seeds.
NOISE ROCK
Acima de todas as bandas de noise rock, está Sonic Youth. Os guitarristas Thurston Moore e Lee Ranaldo conheceram-se, no final dos anos 1970, como participantes da orquestra de guitarras de Glenn Branca, na qual aprenderam a explorar afinações não convencionais do instrumento. Eles admitem ter roubado de lá suas primeiras guitarras, e formaram o grupo ainda durante o movimento no wave, com a namorada de Thurston, Kim Gordon. Com o passar dos anos, o SY afastou-se cada vez mais da mera atonalidade das primeiras composições, e passou a ficar cada vez mais melódico, sem abandonar
o experimentalismo e a exploração de novas afinações e técnicas de extrair sons de suas guitarras. Após décadas tocando e aprendendo juntos, os músicos conseguiram formar um combo irrepetível, que constrói paisagens sonoras simultaneamente radicais e palatáveis. É fácil fazer um grupo de improvisação livre de barulho. É difícil fazer uma música dissonante chegar a paradas de sucesso, como o Sonic Youth fez com 100%. Embora o noise continuasse sendo feito com guitarras por grupos como No Age, LIARS e HEALTH (de influência do hardcore), surgiram apenas nos anos 2000 as primeiras manifestações realmente interessantes de noise eletrônico. Puristas podem alegar que o noise e o experimentalismo eletrônicos sempre existiram, mas raramente com a vitalidade de bandas como Animal Collective, Die Antwoord e Death Grips. Existem raros registros sonoros e audiovisuais, mas, em meados dos anos 1990, em plena era do manguebeat, várias bandas pernambucanas de noise surgiram. A pioneira foi a olindense Heads Bacon, à qual se seguiram Garapa Nervosa, O Crivo e Suellen, sempre reunindo músicos autodidatas. Ex-integrantes dessas formam hoje a banda de hardcore Black Soda e a de eletroacústica AnnaLovesThompson. Paper House, Embuás, Geladeira Metal, Monstro Amor e Estranhas Ocupações são alguns dos coletivos de improvisação musical e noise que estão em atividade no Recife. Russolo ficaria orgulho em saber até aonde o seu barulho chegou.
ROCK
BÁRBARA EUGÊNIA É o que temos Selo Oi Música
Depois da ótima estreia com Journal de BAD (2010), Bárbara Eugênia traz, em seu segundo álbum de estúdio, 11 canções sedutoras. Todas são autorais, com exceção da releitura de Porque brigamos, sucesso de 1972 de Diana. Produzido por Edgar Scandurra e Clayton Martin, o disco traz ecos da música brasileira produzida entre as décadas de 1950 e 1970. É um trabalho que reafirma a identidade de Eugênia, adepta de influências distintas, mas sempre sintonizada com a estética retrô sem soar artificial. Ação e Ugabuga feelings merecem atenção à parte.
REGIONAL
OS SERTÕES A idade dos metais
REGGAE
ORQUESTRA BRASILEIRA DE MÚSICA JAMAICANA Volume II – O baile continua Independente
O segundo álbum da OBMJ segue a mesma inspiração do primeiro: traduzir clássicos da música brasileira para a linguagem reggae e suas demais vertentes. As canções incluem preciosidades como Primavera, de Tim Maia, Sítio do Pica Pau Amarelo, de Gil, e País tropical, de Jorge Ben. O repertório ainda traz composições próprias e misturas inesperadas, como a versão de Dancing days, das Frenéticas.
MPB
VITOR RAMIL Foi no mês que vem
Independente
Selo Satolep Music
Liderado pelo violonista e ex-Cordel do Fogo Encantado, Clayton Barros, o quarteto pernambuco traz para as 11 faixas que compõem seu disco de estreia O sangue do Sertão, seu lugar de origem. Todo o repertório é autoral, com exceção de Galope rasante, de Zé Ramalho, e a instrumental Wheels, de Les Baxter. Evocando o som propagado pelos metais, a musicalidade do grupo brinca com elementos do brega, reggae, psicodelia e ritmos locais, sem renunciar ao rock. Destaque para Silêncio e Em algum lugar.
Planejado para ser um disco solo, com voz e violão, Foi no mês que vem tornou-se um álbum duplo, com 32 canções que marcam o encontro de Vitor Ramil com músicos brasileiros, uruguaios e argentinos que já passaram pela sua carreira. Entre eles, Milton Nascimento e Ney Matogrosso, que emprestam suas vozes para Não é céu e Que horas não são?, respectivamente. Este é o 9º disco gravado pelo gaúcho, que também traz contribuições de Marcus Suzano, Kátia B e Kleiton e Kledir.
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CON TI NEN TE
Criaturas
Roberto Bolaño por Pablo Bernasconi
Roberto Bolaño (1953-2003) gostava de aparecer fumando nas suas fotos de divulgação. O cigarro era também o companheiro ideal nas mesas de um restaurante de frutos do mar do balneário espanhol de Blanes, onde aparecia todas as manhãs para tomar uma infusão e pensar na trama de obras como 2666 e Estrela distante.
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O PERNAMBUCO “TATUOU” AS SUAS MELHORES CRÔNICAS
Schneider Carpeggiani ORGANIZADOR
DOCUMENTAIS
DOCUMENTAIS
Desencontros, lembranças e testemunhos
Talles Colatino • Xico Sá • Micheliny Verunschk • Thiago Soares • Raimundo Carrero • Flávia de Gusmão • Ronaldo Correia de Brito • Samarone Lima • Carol Almeida • Fabiana Moraes • Carolina Leão • Bernardo Brayner • Rogério Pereira • Julián Fuks • José Castello • Bruno Albertim • Carlos Henrique Schroeder • Paulo Sérgio Scarpa • Ivana Arruda Leite • Adelaide Ivánova • Miguel Sanches Neto • Luís Henrique Pellanda • Cristhiano Aguiar • Ricardo Lísias • Ricardo Domeneck • Fabrício Carpinejar • Cecilia Giannetti • Marcelino Freire • Anco Márcio Tenório Vieira • Joca Reiners Terron
DOCUMENTAIS Desencontros, lembranças e testemunhos Talles Colatino • Xico Sá • Micheliny Verunschk • Thiago Soares Raimundo Carrero • Flávia de Gusmão • Ronaldo Correia de Brito Samarone Lima • Carol Almeida • Fabiana Moraes • Carolina Leão Bernardo Brayner • Rogério Pereira • Julián Fuks • José Castello Bruno Albertim • Carlos Henrique Schroeder • Paulo Sérgio Scarpa Ivana Arruda Leite • Adelaide Ivánova • Miguel Sanches Neto Luís Henrique Pellanda • Cristhiano Aguiar • Ricardo Lísias Ricardo Domeneck • Fabrício Carpinejar • Cecilia Giannetti Marcelino Freire • Anco Márcio Tenório Vieira • Joca Reiners Terron Esta coletânea, formada por textos reunidos exemplarmente pelo jornalista e editor Schneider Carpeggiani, traz no seu bojo não só o que de melhor se produz, hoje, no Brasil, em termos de crônica (os tais desencontros, lembranças e testemunhos do título), como ressalta a importância de escritores que se dedicam a uma profunda reformulação do gênero, e, por extensão, da literatura brasileira. Observem que, mesmo em crônicas curtas, há uma grande variedade de estilos e de visões literárias. Variedade capaz de investigar o abismo humano, naquilo que ele tem de mais forte, de estranho, de eloquente e de belo. E não podemos deixar de observar: o melhor da crônica é justamente a liberdade que ela proporciona ao escritor no processo de criação. Trata-se de uma liberdade que é assegurada pela força de uma primeira pessoa confessional, que é autobiográfica até quando não é. Poderíamos, claramente, pinçar frases e parágrafos de cada um dos textos aqui reunidos, para mostrar a grandiosidade
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