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MERCADO DE ARTE EM CRISE POR QUE A CENA MINGUOU?
#152 ano XIII • ago/13 • R$ 11,00
CONTINENTE AGO 13
E MAIS CLÁUDIA ANDUJAR | BETE PAES | SICK-LIT | RICARDO RIBEIRO CANDOMBLÉ | YAYOI KUSAMA | DMINGUS | DEBORAH COLKER Capa Agosto_#152_V2.indd 1
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AUGUSTO GOMES/DIVULGAÇÃO
aos leitores No final dos anos 1990, uma pesquisa pretendia mapear a produção brasileira de arte contemporânea e, para isso, visitou 1.360 ateliês em 26 estados brasileiros, resultando na exposição e catálogo Antarctica Artes com a Folha. De Pernambuco? Ninguém. Era como se nada de importante estivesse sendo feito no estado, visto que essa pesquisa teve uma super-repercussão nacional. Foi o estopim da revolta. Artistas que estavam realizando trabalhos relevantes em arte contemporânea – como o Grupo Camelo – indignaram-se, mobilizaram-se, exigiram uma segunda visão. Embora ostentasse o título de “celeiro da arte”, parecia que o estado perdia o bonde da história, envelhecia para as novas exigências do sistema. Poucos anos depois, essa situação se reconfiguraria, com a crescente valorização do que estava sendo produzido em Pernambuco, não apenas com a conquista de visibilidade pelos artistas, mas pela confiabilidade das instituições, a eclosão de eventos, o adensamento crítico. Os anos 2000 foram como um namoro entre as figuras-chave do circuito artístico
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nacional e a nossa produção “periférica” local. Conceitos como descentralização e arte “glocal” sustentavam esse trânsito, muito mais fluido. Nesse contexto favorável, todos iam bem. Respirávamos aliviados: finalmente, haviam se dado conta da qualidade do nosso trabalho. Internamente, as relações de fomento também melhoravam, ainda que de modo muito tímido, aquém do necessário. Nestes três primeiros anos da nova década, estamos num novo momento de oclusão, com a ausência de mostras e eventos importantes do setor que pareciam consolidados – fechamento de galerias, redução de investimento nos equipamentos públicos existentes, desconexão com o circuito nacional. O que deu errado? Aquele quadro positivo era apenas uma “bolha”, uma miragem? O que foi feito dos agentes de então? Indagações desse tipo motivaram nossa matéria de capa desta edição, que procurou dar voz a alguns personagens centrais do sistema de arte local, ao mesmo tempo em que buscamos justificativas palpáveis, resultantes de pesquisas, prospecções. E o resultado não parece favorável, como o leitor poderá perceber pela leitura da reportagem a seguir.
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fpnc.org
Incentivar a cultura é tradição em Pernambuco. O Governo do Estado investe, cada vez mais, para valorizar a criatividade dos pernambucanos e a diversidade das nossas manifestações populares. Com o apoio do Festival Pernambuco Nação Cultural, shows, oficinas, espetáculos e mostras artísticas acontecem em todas as regiões, reunindo grandes atrações locais e nacionais, atraindo turistas, aquecendo a economia da capital e do interior e gerando novas oportunidades de emprego e renda. O Festival Pernambuco Nação Cultural é bom para a música, cinema, teatro, dança, circo, moda, gastronomia, artes visuais, literatura, fotografia, artesanato e oficinas de formação cultural. Bom para todos os pernambucanos, os que produzem cultura e os que aplaudem, também.
Secretaria de Cultura
O FUTURO A GENTE FAZ AGORA
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sumário Portfólio Bete Paes 7
Expediente + colaboradores
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Entrevista
Claúdia Andujar Fotógrafa fala de sua trajetória e da relação com os índios brasileiros, em especial os ianomâmis
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Conexão
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Balaio
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Contraespionagem The Pirate Bay cria aplicativo para proteger celulares
Crítica literária O jornalista caruaruense Álvaro Lins dá exemplo de sinceridade opinativa
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Entremez
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Leitura
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Claquete
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Cinemascópio
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Sonoras
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Matéria Corrida
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Artigo
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Criaturas
Perfil
Ricardo Ribeiro Jovem português tem se destacado por seu estilo de interpretar o fado
Pernambucanas
Vitória de Santo Antão Instituto Histórico e Geográfico guarda acervo em que se destacam peças do ciclo do açúcar
Mercado editorial Sick-lit Fenômeno editorial infantojuvenil aposta em enredos voltados às doenças e aos abusos
Ronaldo Correia de Brito As palavras que brotam
Graphic novel Publicação narra as aventuras de Frei Caneca
Arquiteta de formação, artista tem trajetória que passa das pinturas às estampas, experiência lhe abriu caminho para trabalhos que unem arte e design
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Eduardo Montes-Bradley Documentarista argentino volta as lentes para escritores brasileiros Kleber Mendonça Filho Trens
DMingus Músico pernambucano lança o álbum Fricção
José Cláudio A bolinha vermelha
José Afonso da Silva Junior Os jornais precisam de fotógrafos?
Rodrigo Gafa Sebastião Salgado
Cardápio Formação
Ex-cortador de cana, ex-auxiliar de escritório e ex-pedreiro estão entre os cozinheiros forjados na prática, em restaurante tarimbado do Recife
70 CAPA FOTO IRENE LAXMI/CORBIS
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Especial
Tradição
Depois de um período profícuo, cena artística pernambucana sofre retração que incita indagações sobre a atuação de museus, galerias, curadores e artistas
Belos, os colares usados por praticantes do candomblé transcendem qualquer função estética, representando a ligação sagrada com seus orixás de proteção
Palco
Visuais
Para marcar as comemorações dos seus 20 anos, companhia carioca faz turnê nacional e chega ao Recife este mês, com os espetáculos Velox, Nó e Thatyana
Artista japonesa tem a primeira mostra retrospectiva em circulação pela América Latina. No Brasil, as exposições acontecem em Brasília, Rio e São Paulo
Mercado de arte
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Deborah Colker
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Fios de contas
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Ago’ 13
Yayoi Kusama
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cartas SÃO PAULO-SP
Mágicos I Achei excelente a reportagem de capa da edição de julho. Ela abordou vários aspectos da mágica, mostrando essa arte por todos os lados. Gostei porque vocês não mostraram o mágico nem como um enganador nem como um ser superior, mas como um cara normal que aprecia o impossível. Com certeza, essa revista fará parte do meu acervo de consultas. Parabéns pela reportagem e que ela traga muitos frutos, para nós mágicos, e para a Continente.
DO FACEBOOK Minha mulher assinou a revista. Estou gostando muito. Sou ator e venho morar no Recife em 2014. Gostaria de estar sempre em conexão com eventos culturais, com os eixos de produção de teatro e cinema na cidade, escolas, cursos. MARCELLO TRIGO FLORIANÓPOLIS – SC
DO TWITTER O bom da @revcontinente é que ela é superatemporal. Dá para ler qualquer matéria, de qualquer edição, a qualquer hora e ela ainda é “nova”.
LEONARDO GLASS
MARIAH
SANTA ROSA-RS
RECIFE–PE
Mágicos II Parabéns pela matéria. É sempre muito bom ver nossa arte tratada com tanto carinho e respeito. Adorei! RAFAEL BALTRESCA
Sempre que leio sobre o cinema pernambucano pela @revcontinente fico extremamente instigada. PAULA XAVIER RECIFE–PE
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife–PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas.
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colaboradores
Paulo Carvalho
Rafael Medeiros
Thiago Corrêa
Verônica Fraidenraich
Jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE
Fotógrafo, especializado em gastronomia e publicidade
Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE
Jornalista e ex-bailarina do Grupo Vias da Dança
E MAIS Ana Araújo, fotógrafa. Augusto Pessoa, fotógrafo e jornalista. Cristiana Tejo, jornalista, mestre em Comunicação e doutoranda em Sociologia na UFPE. Eduardo Sena, jornalista. Ermelinda Ferreira, professora do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. Flávio Pessoa, ilustrador e designer. George E.M. Kornis, economista, pesquisador universitário, professor da Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro/Parque Lage, colecionador e curador de arte. Germano Rabello, jornalista. Hélder Tavares, fotógrafo. José Afonso da Silva Jr., fotógrafo, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da UFPE. Leidson Ferraz, jornalista, ator, produtor e pesquisador da área teatral. Mariana Camaroti, jornalista, residente em Buenos Aires. Renato Alarcão, ilustrador e designer. Ricardo Nunes Viel, jornalista, atualmente residente na Europa, onde cursa mestrado e colabora com diversas publicações brasileiras entre as quais o Valor Econômico, O Globo, a Piauí e a Bravo. Roberta Guimarães, fotógrafa. Rodrigo Gafa, designer e ilustrador.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
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CLAUDIA ANDUJAR
“Sou uma espécie de pesquisadora da alma” Fotógrafa de origem húngara, que teve sua trajetória profissional associada à cultura indígena, sobretudo ianomâmi, fala sobre sua relação com a fotografia, com os povos autóctones do Brasil e das memórias da família no Holocausto TEXTO Paulo Carvalho
CON TI NEN TE
Entrevista
Os índios ianomâmis, nas imagens de
Claudia Andujar reunidas na exposição Marcados, estão identificados por placas numéricas que sinalizam a desonra, a degradação social, as doenças arrasando corpos virgens de qualquer defesa. Mas, denominadoras universais da sujeição, essas placas também trairiam o controle que propunham porque, quando em visita às aldeias ianomâmis em missões médicas realizadas entre 1981 e 1984, Claudia transcendeu a necessidade de simples retratos para uma ficha médica: registrou rostos irredutíveis ao dispositivo que os tentou capturar. Marcados para morrer, num silencioso e perene genocídio brasileiro, mas também para viver e resistir. Andujar reverteu com retratos à eficácia simbólica de uma dupla anulação. Não apenas o desaparecimento cultural de um lado e o material do outro. Fez da foto de prontuário um dos mais impactantes trabalhos de fotografia contemporânea no Brasil, cuja ambivalência morte-vida opera ao lado da ambivalência arte-política. A fotógrafa, hoje com 82 anos, esteve no Recife em maio, para inaugurar
a exposição Marcados, na Fundação Joaquim Nabuco. Na sua fala, lembrou a conexão daquelas imagens – exibidas pela primeira vez na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, e feitas por ela para o controle médico-burocrático dos indígenas – com a memória dos números e símbolos que tatuaram corpos eliminados no Holocausto. Durante a Segunda Guerra, toda a família paterna de Claudia, de origem húngara, foi exterminada. No Recife, ela associou manifestamente seu trabalho junto aos índios à impossibilidade encenada pelo sobrevivente. Qual Primo Levi, a fotógrafa lembrou-nos de que a barbaridade cria em suas testemunhas a dolorosa sensação de que a vida seria em si prova de omissão e conivência. Não sobreviventes, mas cúmplices. “Vou confessar algo que nunca falei em público. Essa história me deixou com um trauma enorme. De uma certa maneira, com o sentido de não ter podido ir ao campo de concentração com eles e os salvado. Tenho uma culpa da qual nunca me liberei. Nunca. Sem dúvida, isso tem a ver com essa minha história com os ianomâmis, de querer salvá-los”.
Complexa sob qualquer ângulo que nos aproximemos, Andujar é uma das mais celebradas fotógrafas brasileiras. Seu trabalho é comissionado pela Galeria Vermelho, com a qual tem um acordo pouco comum: “qualquer obra que seja vendida, um terço fica com a galeria, um terço para mim e um terço para os ianomâmis”. O Instituto Inhotim, em Minas Gerais, prepara um pavilhão onde ficarão em exposição permanente mais de 500 imagens de seu acervo. “Meu trabalho sempre foi uma busca de entender o outro que eu fotografava e, ao mesmo tempo, me buscar.” Sobre suas (quase) seis décadas de atividade como fotógrafa, Andujar conversou com a Continente. CONTINENTE A senhora gostaria de falar um pouco sobre a sua chegada ao Brasil? O crítico Pietro Maria Bardi escreveu sobre suas pinturas: “(...) numa certa tela, Impressão da noite, composta de traços de espátula e pingos de cores, estendeu quase um mau humor, um desabafar de nervosismo, uma espécie de ardor melancólico, que celebra um cobiçado ponto de chegada; mas um resultado sem saída”. A senhora concorda com essa impressão inicial de Pietro Maria Bardi?
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RICARDO LABASTIER/JC IMAGEM
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uma linguagem minha. Em uma visita a Nova York, mostrei meu trabalho com os carajás para algumas revistas. Abriu-se a possibilidade de publicação e de trabalhar como fotojornalista. Contribuiu para esse interesse o fato de o governo brasileiro estar, na época, construindo um local de turismo próximo à essa aldeia. CONTINENTE A senhora realizaria reportagens importantes para a Realidade, como a dos jagunços, no Nordeste. Como foram esses trabalhos?
nascimento de uma criança. A Realidade colocou a foto da criança saindo da barriga na capa. A Igreja, e isso descobri depois, movimentou-se para retirar a revista de circulação. E conseguiu. CONTINENTE A senhora viajou aos Estados Unidos para cobrir os levantes dos movimentos de afirmação negra. Gostaria de falar um pouco sobre essa experiência? CLAUDIA ANDUJAR Na época, estava casada com um norte-americano, fotógrafo, George Love. Ele era negro, da Carolina do Norte. Eu o conheci
CLAUDIA ANDUJAR/DIVULGAÇÃO
CLAUDIA ANDUJAR Desde o início, tive curiosidade de conhecer o país. Comecei a viajar sozinha, primeiramente pelo litoral paulista. Não sabia português e me comunicava com o que fosse possível. Eu não tinha a intenção de virar uma fotógrafa, mas desejava me comunicar com as pessoas, registrar minhas impressões. Assim, comecei a fotografar. Mais tarde é que pensei, bom, talvez realmente valesse fotografar de uma maneira mais profissional. Isso que o professor Bardi falou é verdade. Ele se interessou por minha pintura e minha
CON TI NEN TE
Entrevista história. Não era só uma questão de ele ter visto algumas poucas pinturas minhas. Talvez tenha percebido isso depois de algumas conversas que tivemos. Cheguei ao Brasil em 1955 e só viria a trabalhar no fotojornalismo local em 1966. Mas já tinha feito alguns trabalhos para a imprensa americana. Tive uma abertura lá, que, de fato, demorou a acontecer aqui. Como eu tinha vontade de conhecer o Brasil, acabei viajando bastante pelo país. Conheci o Darcy Ribeiro e ele sugeriu que eu visitasse uma aldeia indígena. Aceitei. Eram os índios carajás, da Ilha do Bananal, Rio Araguaia (Tocantins). Fui, sozinha. Fiquei dois meses para conhecê-los e fotografá-los. Comecei a tomar a fotografia como
CLAUDIA ANDUJAR Para a Realidade, fiz trabalhos de 1966 a 1970. O com os jagunços foi uma sugestão deles. A proposta era entrevistar, ou melhor, conhecer fotograficamente esses jagunços. Contar suas histórias. Na revista, eu tinha a reputação de ser uma pessoa que ia aos lugares mais difíceis, às situações mais estranhas. O fato é que me dou bem em qualquer lugar. E não costumava viajar junto com o repórter. Geralmente, chegava depois de ele fazer as entrevistas. Eu preferia ir sozinha, sem alguém para me dizer: faz isso, faz aquilo. Enfim, sempre gostei de procurar os elementos importantes da reportagem, sozinha. Realizei um trabalho fotográfico com parteiras no Rio Grande do Sul. Essa reportagem ficou famosa. Fotografei o
por ser fotógrafo e por ter publicado algumas reportagens, em especial uma sobre o Rio de Janeiro, que saiu pela revista Life. Procurava entrosar-me e acabei conhecendo o George. Em 1966, quando a Realidade começou a funcionar, trabalhamos os dois para a revista. Um editor quis fotografar a situação dos negros nos EUA. Pediram que o George fosse fazer e viajei com ele. Era a época dos levantes em Washington. George não se sentiu à vontade para fotografar e acabei indo no lugar dele. Foi complicado. Tentei entrar nos guetos, mas fui retirada de lá pela polícia negra. Pensaram que eu queria denunciar alguma coisa: registrar de maneira negativa o movimento deles. Tentei explicar que não, pois,
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trabalhando para a imprensa do Brasil, eu tinha todo interesse naquela mobilização, que aquilo também era algo importante para cá. Mas era realmente um momento muito complicado. CONTINENTE A aproximação com o ser humano excluído sempre foi uma preocupação? CLAUDIA ANDUJAR Meu interesse por fotografia sempre foi ligado a uma coisa interna, a uma razão minha, sem a finalidade de trabalhar para jornais ou revistas. Claro, no início era um meio totalmente novo. E procurei maneiras de me expressar que refletissem aquilo que sentia diante das coisas, das pessoas e das situações. Sempre tive essa disposição, esse desejo. Mas não possuía a técnica. O George Love era um fotógrafo formado nos EUA e tinha muito mais conhecimentos do que eu. Ele me abriu portas, nesse sentido. Portas para expressar melhor o que queria através de uma técnica mais avançada do que a que eu possuía. Ele era um fotógrafo excelente. Com ele aprendi sobre os filtros, sobre a revelação de filmes. Mas o fotógrafo que mais admirei nesse período de aprendizado foi o W. Eugene Smith. A fotografia dele, a sua maneira de se aproximar das pessoas estava mais perto daquilo que eu procurava. Com isso, não quero dizer que o George não me ajudou e, sim, que o nosso interesse, nosso approach era diferente. Eugene Smith tinha uma fotografia muito ligada ao humanismo, aquilo que sempre procurei. A última reportagem que fiz para a Realidade teve como tema a Amazônia. Foi a capa. Vários fotógrafos colaboraram, inclusive o George. Nós não trabalhávamos juntos, como eu já disse. Mas é interessante saber que, para esse número da revista, eu fotografei tudo do chão, enquanto o George fotografou tudo do ar, do avião. Sempre procurei o contato com as pessoas, ele, as paisagens. CONTINENTE A partir daí, acontece sua aproximação definitiva com os índios? CLAUDIA ANDUJAR Em 1970, deixei a editora Abril e decidi dedicar-me a um trabalho exclusivamente meu, entre os índios ianomâmis, que conheci nessa última reportagem. O primeiro contato aconteceu numa localidade chamada Maturacá (AM). Encantei-me e procurei uma maneira de chegar a eles. Tive a sorte de conseguir duas bolsas, que
CLAUDIA ANDUJAR Marcados veio mais tarde. Durante a minha estada lá, foi construída a Rodovia Perimetral Norte. Foi uma invasão do território ianomâmi, com desmatamento e construção da estrada. Os índios sofreram muito. Entraram em contato com doenças desconhecidas. Aldeias inteiras sumiram. Fiquei muito tocada, tanto que, em 1977, quando fui expulsa da área pelo governo, fiquei desesperada. Juntei-me a uma organização em São CONTINENTE Penso que a sua abordagem do Paulo, chamada Fundação Pró-Índio, xamanismo demonstra a complexidade do desafio formada por antropólogos, cientistas, índios e pessoas que lutavam por suas causas. Eles me perguntaram se eu concordava com a criação de uma ONG que pudesse lutar pela defesa da terra, da vida e da cultura dos ianomâmis. Dediquei-me a esse trabalho, que resultou no reconhecimento da terra indígena, em 1992. Eu ia menos às aldeias, mas utilizava o trabalho fotográfico para falar dos ianomâmis, para publicar quando foi possível e fazer uma campanha internacional. Nós nos voltamos para questões de saúde. Com dois médicos, começamos esse trabalho. Para fazê-lo, precisávamos conhecer os indivíduos. No começo, acompanhava os médicos e fotograva as pessoas que eram atendidas. As fotos foram utilizadas em fichas, elaboradas a partir de exame médico. Agora, a ideia de usar isso numa exposição aconteceu muito mais tarde, na 27ª Bienal. ajudaram a me dedicar unicamente aos ianomâmis. Fiquei entre 1971 e 1977. No começo, eram idas e voltas, fiquei meses lá, depois voltei para São Paulo, para revelar os filmes, ver o que tinha produzido, como eu deveria continuar. Realizei muitas gravações. Queria entender quem eles são, qual a sua mitologia, todo o sobrenatural – o começo do mundo, o trabalho dos xamãs, tudo o que significavam seus ritos.
“ O xamanismo foi algo que explorei muito, mas acabou sendo um trabalho não tão conhecido. Quando eles tomam alucinógenos, explicam que entram numa fase de sonho. Por isso que depois chamei essa parte do livro (A vulnerabilidade do ser) de Sonhos.”
que é se aproximar das representações do outro, com uma técnica e linguagem estrangeiras a elas, sem eclipsá-las. CLAUDIA ANDUJAR Cada imagem tem uma história. O xamanismo foi algo que explorei muito, mas acabou sendo um trabalho não tão conhecido como os Marcados. Quando eles tomam alucinógenos, explicam que entram numa fase de sonho. Por isso que depois chamei essa parte do livro (A vulnerabilidade do ser) de Sonhos. Sonhos em que eles veem a ligação que o ser humano tem com a natureza. CONTINENTE Seu trabalho com os ianomâmis é artístico e político. Gostaria de falar um pouco sobre a exposição Marcados, que veio ao Recife?
CONTINENTE A senhora costuma dizer que não é nem jornalista nem antropóloga. O que deseja com a reivindicação do lugar de fotógrafa? CLAUDIA ANDUJAR Sou uma pessoa que gosta de trabalhar sozinha. Sou autônoma em tudo que faço. Eu absorvi muito da cultura ianomâmi. A maneira de ver o mundo, as relações dos seres humanos, os mundos vegetal e animal, as constelações. Tenho uma admiração muito grande pela visão deles. Minha infância, na Hungria, o fato de toda a família do meu pai ter sido morta, todos eles terem sido marcados, tatuados com números. Sou, como posso dizer, uma pesquisadora da alma. Hoje, minha ligação com eles é afetiva. Onde posso, eu ajudo. Pretendo construir um banco de dados digitalizados, com todos os registros. Gostaria de deixar isso para eles.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
O FADO DE RIBEIRO
D MINGUS
Canção tradicional portuguesa, o fado passou por ostracismo até que, em 2011, foi declarado patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco, o que provocou novo interesse em torno dele. Um de seus renovadores é Ricardo Ribeiro, de apenas 32 anos. Para acompanhar a leitura do seu perfil, que publicamos nesta edição, sugerimos a audição de suas músicas, o que pode ser esclarecedor da atração que ele tem exercido diante de plateias de todas as idades. No site da revista, encontre o link de acesso a seu primeiro disco, Água louca da Ribeira.
Ligado à cena independente da música pernambucana, ele lança seu terceiro CD, Fricção. Ouça algumas de suas faixas, em que há referências aos anos 1980 e à música eletrônica.
Conexão
YAYOI KUSAMA Artista japonesa precursora da arte pop tem exposição retrospectiva na América Latina. Veja algumas de suas obras coloridas e imersivas, que contam com a ação do público.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
ÁUDIO
ARTE
FRASES
REVISTA
Estudiosos desenvolvem artifícios sonoros que aguçam criatividade
Erotismo esquenta os desenhos em nanquim de Apollonia Saintclair
Guia oferece modos de dar boa desculpa quando se quer declinar um convite
Site reúne resenhas, críticas e ensaios sobre produção cultural
coffitivity.com
apolloniasaintclair.tumblr.com
entaodeixaeutefalar.tumblr.com/
outroscriticos.com
Para quem lida diariamente com criação, os “brancos” podem ser angustiantes. Algumas estratégias simples podem evitar essas situações. Pesquisadores defendem que ambientes tranquilos demais não são propícios à produtividade. A partir dessa perspectiva, foi criado o Coffitivity, que é um simulador de uma cafeteria. Você coloca os fones de ouvido e o som é como se estivesse rodeado de pessoas que conversam, pratos e talheres que batem, num ambiente público. No futuro, o simulador deverá fazer com que a gente sinta o cheiro de café, tornando a experiência mais real.
A arte erótica tem no desenho um forte aliado. As HQs de Manara e os mangás de Hentai dão provas disso. No ambiente online, tem chamado a atenção o trabalho de Apollonia Saintclair, pseudônimo que mantém sob anonimato uma autora ou um autor que conquista aficionados do gênero. Apesar das entrevistas e matérias tratando Apollonia como mulher, sabe-se muito pouco a seu respeito. O certo é que seus desenhos em nanquim conseguem mexer com o imaginário da audiência. Há cenas de nudez e sexo que desprezam opções de gênero e descartam qualquer moralismo ou interdição.
Os mais reservados sofrem em negar um convite. Até porque dar uma nova desculpa a cada chamada para saídas indesejáveis é constrangedor e, às vezes, cruel. Assim, caso você não tenha na ponta da língua uma boa desculpa, disfarce, abra uma nova aba no seu navegar e entre no Tumblr Então, deixa eu te falar. Você encontrará um bem-bolado compêndio de desculpas. Entre elas, “Minha máquina de lavar quebrou e alagou toda a sala”, “Vou viajar amanhã e ainda não arrumei minha mala” e “Ai, tenho um frila pra entregar, vou trabalhar até de madrugada” podem lhe soar familiares...
No ar desde 2008, a revista eletrônica Outros Críticos é alimentada com textos voltados à recente produção cultural, principalmente relativos à cena de música pernambucana. Além do site, renovado a cada mês, o grupo que o coordena também produz debates e edita coletâneas com material produzido para a revista. A publicação pq?, por exemplo, traz artigos, entrevistas e reportagens; o livro Entrelugares – notas críticas sobre o pós-mangue reúne ensaios sobre música; e a Bootleg é uma coletânea sobre o mesmo tema, que se pretende anual.
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blogs LITERÁRIAS claudiacavalcanti.net
Tradutora do alemão, Claudia Cavalcanti oferece nesse blog uma agradável seleção de “achados e relidos”. Seu post pode ser crônica ou breve comentário, com reprodução de poemas, trechos de prosa, a maioria, de autores alemães.
PERFIS opovonopoder.tumblr.com
A SALVO DA ESPIONAGEM Cofundador do site de compartilhamento The Pirate Bay cria aplicativo para celular à prova de curiosos indesejados heml.is
Criado em 2004 pela organização sueca Piratbyrån, o site de
compartilhamento de arquivos The Pirate Bay, que toma a frente da luta contra as leis de direitos autorais e propriedade intelectual, agora assume também outra causa. Com as recentes revelações do ex-técnico do FBI Edward Snowden, acerca da existência de programas de vigilância telefônica e na internet pelos Estados Unidos, Peter Sunde, cofundador do site de compartilhamento, iniciou a criação de um aplicativo de mensagens para celular à prova de espionagem. Batizado de Heml (“segredo”, em sueco), o aplicativo está sendo custeado pelos próprios usuários, que já doaram mais de 53 mil dólares até o momento. Utilizando criptografia de segurança capaz de enviar e receber dados de forma considerada segura, mesmo dentro de canais vulneráveis, o aplicativo também garante que os usuários ficarão livres das propagandas e de que não terão seus dados vendidos para empresas como forma de obter lucro, assim como fazem alguns sites de busca e redes sociais. “Nós decidimos criar uma plataforma em que ninguém pode espiar você, nem mesmo a gente”, ratifica Sunde no site do aplicativo. GABRIELA ALMEIDA
Com tanta gente nas manifestações de julho, ficou difícil definir o que se pedia e quem estava pedindo. Para ajudar a revelar o quem-é-quem das ruas, esse tumblr retratou e entrevistou algumas dessas pessoas.
TIRINHAS omundodefantomas.wordpress.com
Criação dos irmãos Marcel Allain e Pierre Souvestre, em 1911, Fantomas foi lutador de telecatch e cultuado pelos surrealistas. Hoje, em uma versão de Odyr, ele é personagem de tirinhas em O mundo de Fantomas.
DESIGN simpledesks.net
Quem trabalha muito tempo no computador sabe o valor de ter uma boa mesa. Simple Desks reúne ideias de como ter uma bancada funcional, em diferentes estilos e possibilidades de ocupação de espaço.
sites sobre
jogos PORTAL
CANAIS
ESTUDOS
jogos.uol.com.br
youtube.com/user/Zangado
virtual-illusion.blogspot.com.br
Organizado em seções variadas, o Jogos Uol publica diariamente notícias textuais e visuais relacionadas ao mundo dos games, como resenhas, análises e notas.
No Vlog do Zangado encontramos gameplays dos jogos mais novos, análises de sagas antigas, como Tomb Raider, e comentários sobre jogabilidade e gráficos.
Para quem prefere a teoria, o Virtual Illusion, do português Nelson Zagalo, é boa pedida. Ele trata de ciência, arte e tecnologia com ênfase em videogame e cinema.
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Bete Paes
TUDO É DESIGN TEXTO Mariana Oliveira
Não é difícil cruzar com um trabalho dela. Suas criações podem estar adornando a cidade
durante a celebração do Natal; nas almofadas jogadas sobre o sofá da casa de alguns amigos; em bancos, cadeiras e mesas de centro com designer arrojado; ou mesmo num acessório de vestuário. É atuando em várias frentes que Bete Paes sente-se verdadeiramente realizada. Ela cresceu num ambiente criativo: suas avós lhe garantiram o contato precoce com o universo das linhas e das agulhas e com o desejo de “fazer coisas”. Já seus pais a levaram para conhecer o Brasil. Pouco antes de entrar na faculdade de Arquitetura, começou a trabalhar com Janete Costa. Essas foram experiências determinantes para formar a inventiva e inquieta artista. Bete iniciou sua carreira se dedicando aos detalhes, desenhava móveis e estampas, além de desenhar e pintar. Chegou a realizar uma exposição individual no MAC, onde apresentou, discretamente, algumas sedas pintadas à mão. Percebeu ali algo que lhe interessava. “Não vi aquilo como um desvio, mas como um aprofundamento do que me tocava. Queria algo mais aplicado. Eu gosto de ter o resultado do meu trabalho ao alcance das minhas mãos”, diz. Ela havia encontrado uma forma de expressão que não precisava do quadro como suporte, mas que produzia beleza e encantamento, sendo útil e de fácil acesso às pessoas. Arte e design. Bete se dedicou a pesquisar técnicas, materiais e cartelas de cores que se relacionassem com suas raízes culturais. As linhas Ex-Votos, Cordel e Mangacaju mostram essa leitura mais contemporânea de expressões bem locais – uma importante demostração da influência de Janete Costa e de todo seu trabalho de junção do universo popular com o erudito. Mesmo
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Detalhes das séries: Tao, China, Tanger e Estrela
Nestas páginas 2 TÉCNICA
Artista também desenha em nanquim sobre papel
3-5 LINHA CORDEL As estampas ganham vida quando aplicadas em objetos 6 FIGURATIVO Desenhos da primeira fase de sua carreira foram usados para montar estampa
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com o pé nas suas raízes, a artista sempre se preocupou em não se tornar regionalista. Por meio da convivência com Janete Costa, Bete passou a atuar como consultora de grupos de artesãs, algo que segue fazendo até hoje e influenciando diretamente seu trabalho. “Foi através do contato com um grupo de mulheres de Garanhuns, que introduzi a renda e os bordados em minhas composições.” Em sua produção recente, a artista/designer tem utilizado uma técnica que conheceu numa viagem à Índia. O blockprint é uma espécie de carimbo usado para estampar, de forma totalmente artesanal, dando
à artista um universo grande de possibilidades, jogando com as sobreposições. Cada uma de suas estampas parecer ter um vida distinta, dependendo do objeto em que são aplicadas. Pois Bete também cria cadeiras, mesas, bolsas, enfim, utilitários que dão tridimensionalidade às suas estampas bidimensionais. Na cadeira Copacabana, por exemplo, a artista faz uma releitura de uma peça dos anos 1950, utilizando vergalhão de ferro – descarte da construção civil – e revestimento de tiras de malha trançadas artesanalmente. Nesse investimento no tridimensional, ela se apaixonou pelo material de descarte. “Eu não posso ver
um lixo”, brinca. Bete passou a realizar também diversos projetos de cenografia, reciclando materiais, desde as tradicionais garrafas pet até frascos de polietileno de vacina contra febre aftosa. A luminária Balão, por exemplo, feita com tiras de banner e utilizada na decoração de Natal da Praça da República, no Recife, em 2008 , fez parte da Bienal Brasileira de Design, de 2010. Como seu desejo, hoje, mais do que administrar um grande negócio, é criar, terceirizou boa parte da sua produção. Em seu charmoso ateliê no Bairro do Parnamirim, gerencia, com o apoio de apenas uma funcionária, seus diversos projetos, surjam eles da encomenda de um cliente ou de sua inventividade. Como ela gosta de afirmar, seu trabalho é ter ideias.
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7 BALÃO Luminária feita com material de descarte participou da Bienal Brasileira de Design 8 COPACABANA Peça é uma releitura de cadeira dos anos 1950 9 ALMOFADAS Série teve como base os tradicionais exvotos 10-12 CENOGRAFIA Boa parte dos seus projetos de ornamentação usa material de descarte, como isopor e garrafas pet
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ARMARIA, NASSAU! Com mais de 1,5 milhão de “curtidas”, a página do Facebook Bode Gaiato se tornou um fenômeno nas redes sociais. Usando o bordão “Armaria, mainha, nãm” (jeito nordestino de dizer Ave Maria, mainha, não), o simpático bicho ganha cada vez mais destaque no mundo virtual, retratando sobretudo o jeito de falar típico da região, tão diferente de outras do país. O que pouca gente sabe é o porquê do Brasil ter tantos sotaques. Acredita-se que isso tenha se originado com os variados povos que ocuparam o Brasil. O sotaque pernambucano, por exemplo, crê-se ter sido herança dos tempos da invasão holandesa. É de se imaginar uma criança nas ruas do Recife, na época a “cidade Maurícia”, proferindo: “Armaria, mainha, olha um boi voador!”. (Janio Santos)
Crítica elegante e sincera Se, hoje em dia, no Brasil, a crítica cultural é muito comedida em soltar farpas públicas explícitas, preferindo a vaidade da autorreferência, o mesmo não ocorria no jornalismo impresso dos anos 1930-1960. O “pau cantava”, como se diz vulgarmente, e não apenas quando o crítico analisava determinada obra, mas entre os próprios pares. É notória, a esse respeito, a peleja estabelecida entre o acadêmico Afrânio Coutinho e o jornalista caruaruense Álvaro Lins. Foi uma batalha em vários lances, que se desdobrou nas páginas literárias dos jornais cariocas, com vitórias e derrotas para ambos os lados. A atitude combativa de Lins está resumida no depoimento aqui transcrito: “H. conta-me qualquer coisa a respeito de alguém que muito se irrita com aquilo que lhe parece a ‘arrogância’ da minha crítica. Afinal, fico sem entender bem o que essa expressão significa. Seria curioso que eu fosse pedir desculpas aos autores por lhes dizer a minha opinião. Não tenho nenhum motivo para alterar o meu processo de fazer crítica. Um processo que se pode resumir neste propósito invariável: o esforço de procurar a verdade e a decisão de exprimi-la sem qualquer outro interesse que não seja o da literatura”. Ai, ai, saudades de tal atitude sincera e do interesse restrito ao próprio objeto de crítica! ADRIANA DÓRIA MATOS
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A FRASE
“As melhores frases nos orientam como estrelas no céu, como pegadas de uma trilha.”
Balaio BAOBÁ DO PRÍNCIPE
Livro mais vendido e traduzido do mundo, depois da Bíblia, O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, tem a marca da superlatividade também nas comemorações dos seus 70 anos, completados em abril último. As festividades se prolongarão até o fim de 2014, com uma programação que inclui exposição em Nova York, simpósio internacional e apresentação de uma ópera homônima. No Recife, não há divulgação de nenhum evento alusivo à efeméride, mas a cidade tem uma relação bem especial com a obra: a árvore-personagem da história teria sido inspirada no baobá da Praça da República, em frente ao Palácio do Governo do Estado, o que teria ocorrido durante uma visita de Exupéry à capital pernambucana. Lenda urbana ou não, o fato é que o Google traz 398 mil ocorrências sobre o assunto. (Gilson Oliveira)
Jhumpa Lahiri, escritora
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ARQUIVO
ADONIRAN E PETELECO Em evidência nos últimos tempos, pelo fato de o senado ter aprovado projeto de lei que reformula e dá mais transparência aos mecanismos de arrecadação, a questão dos direitos autorais tem também o seu lado folclórico. Uma das mais curiosas histórias está relacionada com o compositor e ator Adoniran Barbosa e o seu parceiro Peteleco, autores de várias músicas. Quem não gosta muito do assunto é a filha e herdeira do primeiro, Maria Helena, que andou penando para provar que as canções foram produzidas apenas pelo seu pai. Isso porque Peteleco era o nome de um vira-lata que Adoniran encontrou nas ruas de São Paulo e decidiu adotar. Talvez nunca a expressão “animal de estimação” tenha feito tanto sentido... (GO)
CHEIRO DE LIVRO
O índio e a fotografia Em agosto se comemora o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Em torno dessa data, lembramos os fotógrafos que tornaram clássicas as imagens do índio brasileiro em seu ambiente natural. Entre eles, destaca-se José Medeiros (1921-1990). Vários fatores contribuíram para que as fotos de Medeiros fossem entronizadas. Primeiro, claro, as suas qualidades estética e documental. Depois, o fato de elas terem sido divulgadas no contexto das revistas ilustradas, que, naqueles anos 1940 e 1950, eram consumidas com avidez pelo público posteriormente fidelizado à televisão. As fotos, então, eram o canal de compreensão e interpretação do mundo. Um emblema do que era o Brasil desenvolvimentista daqueles tempos é a foto de Medeiros de um índio iaualapiti, na Serra do Roncador (MT), em 1949. Nu, pisando terra batida, o homem “empurra” um avião com as próprias mãos. O contraste entre ele e a máquina é notável, em escala, em potência, em textura. Medeiros, que nasceu no Piauí e morreu na Itália, fez também fotos fantásticas de ambientes sofisticados e urbanos, mas sempre destacava que o que preferia mesmo era fotografar negros e índios. (ADM)
A paixão de Gerhard Steidl por livros chega a extremos. Depois de abandonar a profissão de fotógrafo, para criar a Steidl Books – uma das editoras mais cobiçadas pelos artistas para publicação de suas obras, devido à qualidade gráfica de seus trabalhos –, ele inova. Sua recente criação é o Paper passion – parfum for booklovers, aroma criado pelo perfumista Geza Schoen, em parceria com o próprio Steidl, o estilista Karl Lagerfeld e a revista Wallpaper, responsáveis pelo desenho da embalagem em formato de livro. A caixa tem o interior vermelho, em cujo centro está o recorte em que o frasco é encaixado. Ali, estão alojados um livreto com ensaios de Schoen, Günter Grass e o editor chefe da Wallpaper, Tony Chambers, e, claro, o vidro de perfume, do qual emana uma fragrância de livro recém-impresso. Para Lagerfeld, trata-se do “melhor cheiro do mundo”. (Luiz Arrais)
A VOZ DE MALKOVICH “Sou a versão feminina doTom Waits.”. A declaração é do ator John Malkovich, comparando sua voz à do cantor de rouquidão extrema. Para quem já ouviu o ator, sabe que é de timbre marcante. Aliás, ele tem experiência em óperas. Recentemente, colocou o instrumento vocal à disposição da peça The infernal comedy. O artista declarou “odiar” a própria voz. “Quando me escuto, pareço sob o efeito de narcóticos.” A maioria das pessoas não gosta de suas vozes pela desarmonia entre o que escutam e o que é escutado delas pelos outros. Escutamos nossa voz vibrada em nosso corpo, enquanto que a gravada é propagada pelo ar. A frequência do som é diminuída ao longo do caminho, tornando o timbre agudo. O que Malkovich precisa fazer é se acostumar com essa diferença. (Clarissa Macau)
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ARTE EM PE
O mercado em fase retraída Cancelamento da última edição do SPA das Artes. Orçamentos reduzidos em todos os museus e equipamentos públicos do estado e da prefeitura. Atraso do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Migração para outros estados de artistas, críticos e curadores. Adiamento do Olinda Arte em Toda Parte. Galerias fechadas ou vazias. Quem observa o campo das artes visuais do Recife, em 2013, encontra uma terra desolada. O observador de hoje pouco consegue encontrar a euforia que se vivia na primeira metade da década passada, quando a cidade parecia pegar o bonde nacional de um mercado tão promissor como complexo. Esse mercado é complicado porque agencia um conjunto de variáveis interdependentes. Nele, exigem-se harmonia entre a produção artística, o fortalecimento dos espaços de exposição e ambientes de formação de todos os profissionais da cadeia e do público, o despontar de um pensamento crítico e a possibilidade de que a produção encontre compradores, seja no mercado primário (com obras adquiridas diretamente dos artistas ou através de galerias), seja no mercado secundário (em que obras adquiridas por pessoas físicas ou jurídicas são revendidas para pessoas físicas ou jurídicas, principalmente através de leilões). O próprio estado, com a aquisição de acervo para os museus, colecionadores, grandes empresas ou pessoas que vejam mais significado na aquisição de uma obra de arte que de uma cortina automática representam esse
vértice consumidor que, no Recife, é quase nulo, segundo constatou esta reportagem, e insignificante, se comparado ao restante do país. A dificuldade nas vendas reflete a fragilidade dos outros pontos do sistema. Problemas como poucos museus, ausência de importantes coleções em exposição permanente, carência de catálogos que documentem a produção de artistas consagrados e jovens e facilitem o entendimento crítico dos seus trabalhos, e a última posição para as artes visuais na captação de recursos da principal Lei de Incentivo, a Rouanet, fazem com que espaços de venda flutuem em uma órbita sem sentido. Moacir dos Anjos, pesquisador e curador vinculado à Fundação Joaquim Nabuco, figura angular para a compreensão crítica da produção de arte contemporânea no país e responsável pela consolidação do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães no cenário nacional, responsabiliza o poder público pelo cenário atual. “A impressão que dá é a de que o campo das artes visuais, de dois anos para cá, não tem a menor importância dentro das políticas públicas. Os equipamentos não têm verba, alguns deles são dirigidos por senhoras da sociedade e, na melhor das hipóteses, por pessoas ligadas à cultura popular. O engraçado é que temos um discurso no campo econômico desenvolvimentista, mas, no campo simbólico, algo profundamente conservador. O que temos hoje é uma
Fechamento de galerias, orçamentos reduzidos para museus e cancelamentos de mostras são alguns dos aspectos negativos do cenário atual TEXTO Paulo Carvalho FOTOS Rafael Medeiros
polarização entre a riqueza econômica e a pobreza nas artes”, afirma. Bruna Pedrosa, ex-diretora do Museu Murillo La Greca e, hoje, coordenadora de Artes Visuais da Fundação Joaquim Nabuco, afirma que as leis orçamentárias anuais não foram cumpridas. “O La Greca saiu de uma verba anual pequena, de R$ 120 mil, para uma menor, de R$ 40 mil; depois, para uma irrisória de R$ 18 mil, até não ter nenhum recurso disponível, tendo sobrevivido praticamente pela doação da sociedade de amigos que se formou em torno dele.” No período de apuração desta reportagem, estavam sem gestores o Murillo La Greca, o Centro de Formação em Artes Visuais, Cefav, e o Museu de Arte Popular.
GALERIAS
Segundo Lúcia Costa Santos, marchande da Galeria Amparo 60 (Pina, Recife), o esvaziamento das políticas públicas reverberam diretamente na atividade da galeria, que acaba com a frequência de público reduzida. Filha, irmã, esposa e mãe de arquitetos e artistas, Lúcia manteve, de 1992 a 1996, uma loja de móveis na Rua do Amparo, em Olinda, na qual expunha e vendia decoração e arte. Sem a formalidade de uma galeria, exibia obras de José Cláudio e Roberto Lúcio, entre outros artistas. O carro-chefe, entretanto, eram os móveis de ferro desenhados por Janete Costa, sua mãe. Em 1998, Lúcia mudou-se para
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CON ESPECIAL TI NEN TE 1 NADJA DUMARESQ Galerista critica a ausência de informação sobre arte por parte da clientela 2 LÚCIA SANTOS Proprietária da Amparo 60 observa retração do público
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o Pina, inaugurando a Amparo 60, galeria de arte contemporânea. Nos 15 anos de atividade no Recife, Lúcia diz que percebeu uma sensível diminuição do público frequentador das exposições. Acredita que parte dessa queda é decorrente da maior seletividade do projeto curatorial da Amparo 60. A galeria já teve em torno de 40 nomes. Hoje, representa 27. Participam do casting artistas de gerações diferentes, a exemplo de Rodrigo Braga, José Paulo, Rodolfo Mesquita e Paulo Bruscky. Um dos diferenciais da Amparo 60 tem sido o registro das exposições em catálogos, editados com recursos do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, a Rouanet. Os recursos também possibilitaram a vinda de curadores, realização de conversas com artistas e ações de arte-educação. “Em muitos momentos, as pessoas confundiram a galeria com uma instituição. Perguntavam se as obras estavam realmente à venda.” Profissionais que são referências no setor em que ela atua são Marcantônio
Aquecido entre os anos 1990 e início dos 2000, o sistema de arte de Pernambuco sofre hoje perdas materiais e simbólicas Vilaça e Nara Roesler, o primeiro, falecido, a segunda, radicada em São Paulo. No Recife, Roesler criou e comandou a Galeria Artespaço, entre 1971 e 1986. Outra galerista de referência foi Tereza Dourado, marchande da galeria Futuro 25, falecida em 2009. Tereza expôs artistas como Guita Charifker, Francisco Brennand, Reynaldo Fonseca, Gilvan Samico e Gil Vicente. Lúcia lembra também Augusto Rodrigues, há mais de 40 anos à frente da Rodrigues Galeria de Artes, no Torreão, e de Carlos Ranulpho, há mais de 45 no comando do espaço com seu nome, no Bairro do Recife. “É um mercado muito pequeno, temos que valorizar cada gesto e, particularmente, não
tenho necessidade de exclusividade. Nós ajudamos uns aos outros.” É nesse sentido, de um mercado pequeno, em que as ações de formação de público somam-se umas às outras, que a marchande lamenta o fechamento da galeria Mariana Moura, no Recife, acontecido no ano passado, depois de oito anos de atuação. Mariana Moura aportou em São Paulo, em 2011, realizando parceria com a galeria Laura Marsiaj, do Rio. A galeria Moura-Marsiaj, no entanto, também fecharia depois de um ano e 10 meses de operação no mercado paulistano. Foi em 2005 que Fernando Neves inaugurou a Galeria Arte Plural (Bairro do Recife), espaço eminentemente voltado para a exposição de trabalhos em fotografia. De lá para cá, realizou 52 mostras. “A fotografia teve um crescimento grande como meio de expressão da arte contemporânea, trazendo junto a valorização da arte fotográfica como um fim”, afirma Fernando, sobre a carreira bem-sucedida. Na Arte Plural, foram expostas fotografias, entre outras, de Tomas Farkas, Edu Simões, Evandro Texeira, Walter Firmo, Clicio Barroso, Francesco Zizola. No espaço anexo ao primeiro andar da galeria, funciona um pequeno e sofisticado ateliê de impressão. O modelo adotado pela Arte Plural não possui contratos de exclusividade nem a pretensão de constituir um casting. “Exclusividade, a gente tem que pedir da obra, não do artista”, defende Fernando. A Arte Plural tem uma boa frequentação, de acordo com o galerista. “É um lugar em que as pessoas entram sem qualquer cerimônia.” No catálogo da reserva técnica, exposta na galeria, estão obras que vão de R$ 700 a R$ 30 mil. Na experiência do marchand, o mercado não vai tão mal, mas ainda não seria a hora de partir para as grandes feiras do Sudeste. “Só gostamos
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de dar um passo do tamanho das nossas pernas. Se, algum dia, a gente for, terei que passar por algumas transfusões de sangue para me transformar num animal do mercado de arte. Não tenho esse perfil.” Nadja Dumaresq, da Galeria Dumaresq (Setúbal, Recife), oferece um diagnóstico negativo do mercado de arte, mais próximo ao de Lúcia Santos. Há 10 anos, seu espaço exibe e comercializa apenas arte contemporânea, tendo passado por um período voltado ao antiquariato. “Alguns clientes chegam aqui e não sabem nem articular aquilo que desejam comprar. O olhar é muito conservador e a tela ainda muito valorizada. O objeto da arte conceitual não é aceito. Além de tudo, falta vontade de ver o mundo de hoje, seja ele representado pela arte primitiva, moderna, ou a dita contemporânea. Nem sempre o público está interessado nesse mundo em que elas vivem, ou sequer desconfiam que arte também pode se apropriar dele”, define a galerista, em poucas palavras, o gosto médio da clientela.
ARTISTAS
“A galeria legitima, promove, divulga, apoia, amplia questões. Promove o artista não só no mercado, mas o oferece enquanto proposta”, argumenta Carlos Mélo. Hoje, com 40 anos, ele foi o primeiro a realizar uma individual na Mariana Moura. Sua primeira experiência com galeria. De acordo com Carlos, existem dois tipos de artistas numa galeria. “Aquele que vende no sentido formal e o que vende conceito. O que vende no sentido formal, muitas vezes banca aquele que só vende conceito. Mas chega um momento em que fica muito difícil para a galeria manter um artista desse segundo tipo. Daí, começa a forçar a barra para que fique mais diluído, mais acessível, objetual, fetichizado.” Para Carlos, o fechamento de Mariana Moura foi apenas um sintoma de que as coisas não iam bem nas outras esferas. Crítico, propõe uma mirada na atual configuração do mercado, a partir da sua estruturação originária. “Precisamos ir lá atrás, como a psicanálise faz, para tentar entender o que foi que aconteceu. Somos de uma geração de arte contemporânea
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tensa, conservadora, tradicional e política. Digo não politizada, mas política. Aqui, as oligarquias culturais se estruturaram e, durante muito tempo, estiveram no poder ditando regras estéticas do que seria arte. O mercado é um reflexo de uma circunstância cultural. O Recife tem apenas 15 anos de Museu de Arte Moderna, o Mamam. Pouquíssimo tempo para se criar um repertório”, analisa. Em 1998, lembra ele, houve um mapeamento nacional chamado Antártica Artes com a Folha, com a curadora Lisette Lagnado. A ideia era que cada estado brasileiro fosse representado por um artista, tal como opera o programa Rumos Itaú Cultural hoje. Pernambuco foi o único estado que não teve nenhum artista como representante. “Aquilo foi um escândalo. Como um estado, com tanta tradição, com a maior tradição de produção de arte no Nordeste, não conseguiu colocar nenhum nome nesse programa? Daí surgiram alguns movimentos. O Instituto de Arte Contemporânea, o IAC, começou a criar rodas de discussão. O grupo Camelo, com
Marcelo Coutinho, Paulo Meira, Oriana Duarte, Ismael Portela começou a se articular”, pontua. A primeira individual de Carlos Mélo aconteceria no IAC. Assim como o primeiro texto de Moacir dos Anjos para um artista foi escrito sobre o seu trabalho. Um começo para ambos. Carlos ressalta ainda a importância de Marcos Lontra que, em 1997, contratado pela prefeitura recifense, concebeu, batizou e inaugurou o Mamam – construído no espaço da antiga Galeria de Arte Metropolitana. “Hoje, ele é um tanto esquecido pelos artistas. Injustamente. Foi Marcos quem começou a projetar os artistas locais através do Salão Nacional e do Salão da Bahia e que começou a trazer para o Recife curadores, críticos de arte, como Tadeu Chiarelli e Fernando Cocchiarale”, afirma. Para Carlos, depois de Lontra, Moacir do Anjos foi decisivo no fortalecimento de um museu de arte moderna na cidade, que integrasse a arte local e trouxesse de fora novas alternativas. “Ele fez uma política cultural muito eficiente. Deu uma cara ao museu.”
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Carlos Mélo considera que houve um amadurecimento no campo da arte em Pernambuco. “Não estou sendo otimista. Só estou dizendo que o Recife nunca teve, na verdade, uma cena contemporânea. Pode ter tido a anunciação dessa cena, a pretensão, a sensação. Tanto que as galerias locais continuam do mesmo jeito que antes. Com dificuldade de venda, de inserção. O mercado não avançou em absolutamente nada. As galerias não passaram a vender mais. Os artistas continuam com o mesmo nível de insatisfação. O rei ficou efetivamente nu. Será que não é o momento de se pensar a relação de políticas públicas com o mercado de arte?”, questiona. “O que existe, de fato, aqui, são excelentes artistas”, acrescenta. “Artistas corajosos, dispostos, talentosos, que continuam trabalhando a duras penas. Artistas no Recife são resistentes. Pode não ter arte, porque há artistas que nem produzir conseguem. Pode não ter mercado, não ter crítica. Mas artistas muito sérios, muito bons, comprometidos, heróis, isso temos.”
Para Carlos Mélo, nunca houve cena contemporânea local, apenas sua pretensão. O que há, defende, são excelentes artistas Representado pela Amparo 60 e pela Galeria 3+1, de Lisboa, Carlos ainda comenta que o mercado brasileiro não conheceu uma mudança substancial e nem se aproxima do volume praticado nos mercados norte-americano, inglês e do continente europeu. A chegada da White Cube, em São Paulo, e da Gagosian, no Rio de Janeiro, seria mais resultado das dificuldades do mercado na Europa e nos Estados Unidos em tempos de recessão. O Brasil representa apenas 1% do que é comercializado, mas ainda assim é interessante para um mercado que diminuiu suas exportações em 15%. “A SP-Arte comercializa o que sempre se vendeu: pintura. Outra coisa que vende muito são aqueles objetos
bonitos, interessantes, inteligentes, coloridos, que se movem, que acendem uma luz. É como se fosse uma loja de decoração ‘cabeça’. A feira não é parâmetro nenhum para dizer que o Brasil está vivendo um boom em arte contemporânea”, conclui. A 9ª edição da SP-Arte, promovida em abril passado, apresentou as cinco maiores galerias do mundo: Gagosian, White Cube, Pace, David Zwirner e Hauser & Wirth. A vinda de grandes nomes também foi incentivada pela isenção de impostos que antes chegavam a quase 50% do valor de cada obra.
CONCENTRAÇÃO
Em levantamento realizado em oito capitais brasileiras, os pesquisadores Fá Sá Earp e George Kornis (leia artigo de autoria dele nas páginas 34-35) chegaram a números que traduzem a concentração de mercado na região Sudeste, percebida por artistas e galeristas do Recife. De acordo com a investigação, publicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio concentram 3/4 do mercado, sendo
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MOACIR DOS ANJOS Pesquisador e curador vinculado à Fundaj responsabiliza o poder público pela retração
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CARLOS MÉLO Para o artista, o fechamento da galeria que o representava no Recife é apenas um sintoma de que outras esferas estão mal
60% em São Paulo e 15% no Rio. O restante é representado com alguma relevância apenas por Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília. O mercado nordestino é irrelevante, em termos de movimentação de capital. A pesquisa também revela uma transformação do modelo de comissionamento, agora constituído sob forma mais complexa, em que o galerista financia a produção, deduz o financiamento do valor da obra segundo a tabela do artista, e o valor deduzido vira base de negociação da divisão dos lucros da venda. A pesquisa alerta, ainda, que a participação brasileira no mercado internacional vem do dinheiro nacional depositado em paraísos fiscais. Ainda que tenha um mercado retraído, o Recife está na mira da ArtRio. “Estamos prevendo um evento da ArtRio no Recife, com o intuito de estimular o interesse pela arte e de nos aproximarmos mais de galerias e colecionadores”, afirmou Brenda Valansi, uma das promotoras do evento, em entrevista à Continente. “Agora, em qualquer esquina tem uma feira”, diz o artista Bruno Faria. “Muitos artistas já condicionam sua produção com vistas à exibição e venda nesses lugares. Isso gera um problema, que é a anulação do impulso subversivo, importantíssimo para a arte. Mas qual o sentido disso hoje? Grande parte dos meus projetos não resultam em objetos vendáveis e é muito difícil deslocar esses projetos para outros lugares, porque foram feitos para os locais em que estão instalados”, constata. Nascido em 1981, Bruno é um dos artistas mais premiados de sua geração e já trabalhou com uma galeria, a Casa Triângulo. Segundo o artista Rodrigo Braga, graduado em Artes Plásticas pela UFPE e atualmente radicado no Rio de Janeiro, quem movimenta o mercado consolidado em Pernambuco são os mesmos nomes do passado. “Isto é: os grandes mestres da pintura. O que se estendeu para alguns dos ‘filhos’ desses grandes mestres. É algo da tradição. Não se trata de o mercado
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não ter dinheiro circulando, nem o fato de não termos cultura para adquirir.” Afirma ainda Rodrigo: “É esquizofrênico que o artista contemporâneo, e falo de minha geração (ele nasceu em 1976), tente lidar com um trabalho de construção de novos sentidos, linguagens, pensamentos sobre a arte, que estejamos conectados com o mundo, enfim, que operemos dessa maneira sem que haja um retorno de mercado em nossa própria terra”. Rodrigo é representado pela Amparo 60 há mais de 10 anos, está há dois anos na Galeria Vermelho (SP) e já teve galeria representando seu trabalho, por seis anos, em Luxemburgo. Nos últimos quatro anos, diz ele, a Amparo 60 começou a conseguir
vender obras suas. “Essas vendas vêm aumentando. Acho que isso é resultado, sim, do trabalho da galeria, mas também, em grande parte, do esforço pessoal do artista. A inserção nas instituições, sobretudo. Quer dizer, quanto mais o artista se consolida com grandes mostras importantes, nacionalmente e internacionalmente, rebate no maior conhecimento dele pelo público, chegando a mais vendas.” Durante a última SP-Arte, em abril, Rodrigo Braga foi anunciado como ganhador de uma bolsa de residência artística em Nova York, concedida pelo Instituto de Cultura Contemporânea, sediado em São Paulo. Além desse, em julho, o artista foi um dos contemplados com o Prêmio Masp de Artes Visuais.
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CON ESPECIAL TI NEN TE AUGUSTO GOMES/DIVULGAÇÃO
Artigo
CRISTIANA TEJO OS DESENCONTROS DO MERCADO Fazia seis anos que eu não ia à
SP-Arte, feira de arte de São Paulo. Não via o motivo de ir a uma feira de arte, já que não era mais responsável pela coleção de um museu e prefiro visitar artistas em seus ateliês, ou ver um trabalho num contexto mais aprofundado, como numa mostra individual, mesmo que seja numa galeria de arte. No ano passado, por conta de uma exposição da
qual eu estava fazendo a curadoria em São Paulo, num período muito próximo à SP-Arte, fui perguntada várias vezes se ficaria para a feira. Impressionou-me a recorrência dessa pergunta, já que, para mim, o grande momento de encontro do mundo da arte em São Paulo era durante a Bienal, o que ocorreria em setembro do mesmo ano. Apenas alguns meses depois, quando de minha participação na curadoria da sessão Solo projects – Latin America da feira ARCO de Madri, deime conta de que as feiras de arte têm se transformado num ponto de encontro dos agentes do mundo da arte e fórum de reflexão sobre a arte contemporânea, e não apenas uma
estância de venda. Curadores, críticos e pesquisadores são convidados para palestras e trocas de experiências e cada vez mais para fazer a curadoria de exposições ou de seções dentro das feiras. Muitas vezes são convidados apenas para prestigiá-las e conhecerem os artistas expostos; e essas viagens, cada vez mais frequentes, dividem espaço na agenda com bienais mundo afora. Sim, muita coisa tem mudado na esfera da visibilidade e da legitimação da arte contemporânea e eu é que não conseguia dimensionar. Notava que, concomitante ao aumento do interesse internacional pela arte brasileira, estava ocorrendo o desmantelamento de políticas culturais
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FEIRA Eventos como o SP-Arte ganharam relevância no circuito
arte em si são muito positivas. O problema é quando há o desencontro com a esfera institucional e gera uma assimetria de poder que perpetua a discrepância de acesso a acervos, à informação e à tomada de decisões.
NÚMEROS
Durante a SP-Arte deste ano, a pesquisadora Ana Letícia Fialho apresentou os resultados de sua investigação setorial Mercado de arte contemporânea no Brasil, encomendada pela ABACT (Associação Brasileira de Arte Contemporânea), organização de galerias de arte e do Projeto Latitude, que visa à internacionalização da arte brasileira. A radiografia que emerge dos dados coletados por ela
Enquanto lamentava a precarização das instituições locais, o mercado de arte se concentrava cada vez mais no eixo RJ-SP
implementadas no governo Lula e que atingiam principalmente lugares em que a atuação do setor privado é precário. Observava, em especial, em Pernambuco, o arrefecimento do fomento a ações e a projetos que foram imprescindíveis para a dinamização do circuito de arte, colocando o Recife no patamar de uma das principais cidades para a arte contemporânea no Brasil. Enquanto lamentava a precarização das instituições locais e a crescente incapacidade dos museus pernambucanos de colecionar a própria arte pernambucana, o mercado de arte crescia e se concentrava cada vez mais no eixo Rio–São Paulo. A solidificação e a profissionalização do mercado de
corroboram o desequilíbrio de forças que estamos vivendo no país. O universo pesquisado foi de 45 galerias que responderam à pesquisa (o projeto abrange 52 galerias). Dessas, 38 localizam-se no eixo Rio–São Paulo (sendo 12 no Rio de Janeiro e 26 em São Paulo) e as restantes estão em Belo Horizonte (4), Porto Alegre (1) e no Recife (1). Das 48 galerias pesquisadas, 50% foram criadas a partir de 2000 e representam hoje cerca de 1.000 artistas, entre brasileiros e estrangeiros. Entre 2010 e 2012, foram implementadas 11 galerias de arte, e o crescimento do setor entre 2010 e 2011 foi em média de 43,5%. A média de preço das obras de menor valor era, em 2011, de R$ 1 mil. Em 2012, esse valor passou para R$ 2 mil. A média de preços das obras de maior valor passou de R$ 400 mil, em 2011, para R$ 710 mil, em 2012, uma valorização de quase 100%. E quem compra a arte contemporânea brasileira? É nesse tópico que fica evidente o descompasso entre setor privado e setor público, entre o colecionador individual e o
institucional. 70% dos clientes são colecionadores privados brasileiros; 12% são colecionadores privados estrangeiros, 5% são instituições no Brasil, 5% são empresas nacionais, 3% são instituições internacionais e 5% são empresas internacionais, fundos de investimento e outros. Ou seja, pouco mais que 10% das compras podem vir a ser mostradas ao público ou farão parte de coleções públicas, tendo em vista que a maioria dos colecionadores privados não possui espaços para mostrar suas coleções ou mesmo não as colocam em comodato em instituições de acesso público. Com relação à internacionalização da arte contemporânea brasileira, o estudo aponta que as feiras internacionais são o lugar em que ocorre a conquista de colecionadores estrangeiros, que estão localizados nos Estados Unidos, na Europa e América Latina. Das 45 galerias respondentes, 32 afirmam ter clientes internacionais e dizem que 95% das vendas para o exterior são negociadas nas feiras internacionais. Entre 2010 e 2012, o volume total de exportações mais que duplicou, saindo do patamar de aproximadamente US$ 10 milhões, em 2010, e chegando a US$ 27 milhões, em 2012. As feiras brasileiras são responsáveis por 29% do volume anual de vendas. Nesse cenário de alta profissionalização e internacionalização do mundo da arte, cabe a nós, que estamos baseados no Nordeste do Brasil, nos questionarmos: como podemos nos posicionar? No caso de Pernambuco, estado que até recentemente contava com duas galerias comerciais de arte contemporânea, com um museu de importância nacional como o Mamam, com bolsas de pesquisa em arte e outros projetos de fomento, por que perder a posição de ativo no sistema da arte para tornar-se passivo? Por que voltar a ser apenas um espectador, ao invés de um agente? Quem sai ganhando com a perda de políticas culturais que nos empoderaram durante quase uma década? Como boa parte dos artistas, curadores e críticos do estado não dependem mais do circuito local, só posso conjeturar que o maior perdedor é o público pernambucano.
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INDEPENDENTES Minha casa, meu ateliê Alguns artistas optam por desvincular-se de galeristas, instituindo espaços em que criam e estabelecem relação direta com compradores
Eudes Mota, 61 anos, considera que o mercado de arte dos anos 1960 e 1970 era mais aquecido. Naquele momento, no entanto, o maior intermediador com o público não eram a galerias. “A grande vitrine dos anos 1960 e 1970, o espaço que mais divulgava nossa obra, era o Salão de Arte de Pernambuco. Uma festa. A partir do salão, as galerias começaram a surgir.” O embate entre a compra direta nos ateliês e a intermediada por aqueles espaços, segundo Eudes, sempre existiu. O artista mantém um site em que hospeda exposições virtuais organizadas por ele mesmo. “No meu ateliê, o mercado é melhor que nas galerias. Sempre vendi mais aqui. Além disso, dentro do meu site, hospedei um espaço expositivo do qual eu mesmo sou curador. Sem despesas e sem preconceitos. O cliente fica mais à vontade, mais livre para escolher sua obra. E escolhe com calma e sem pressão. E tem mais visitação do que o espaço físico.” O Facebook também divulga sua obra e faz uma espécie de laboratório a partir do feedback da rede social. Nos anos 1990, Eudes Mota participou das feiras Art Miami, Art Santa Fe e Art New York. Trabalhou com a Neuhoff Gallery por sete anos, com contrato de exclusividade em todo o território americano. Foi a Neuhoff que o levou para todas essas feiras. “É bom observar que o nome do artista não é construído pela galeria. Quem constrói é o próprio trabalho, no decorrer de muitos anos. Qual é o papel dela? Divulgar o artista, em feiras, bienais, financiar exposições no exterior e adquirir obras para o próprio acervo. Isso nem sempre é feito pelo galerista local. O que existe é o mercado. As galerias normalmente vão para feiras, como a SP-Arte, para divulgar o nome próprio e não necessariamente o do artista”, critica Eudes. “O papel do marchand é divulgar o artista”, reafirma. “Não é apenas o de cobrar 50%. Imagine, a cada duas obras, uma é do artista, outra, da galeria. Um negócio praticamente sem despesas para eles, um negócio da China. No mercado dos anos 1960 e 1970, cobravam-se 30%, 20%. Só quando o galerista comprava diretamente do artista, é que havia os 50%, ou quando havia contrato de exclusividade e toda
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EUDES MOTA Além do espaço físico, artista mantém site pessoal e página no Facebook para contatos
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GIL VICENTE Ele criou a Sala Recife, anexa à sua casa, com o objetivo de hospedar artistas. Mas o público rareou e ele desmontou a estrutura
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a produção tinha um único comprador, como trabalhou Ranulpho.” Eudes foi amigo de Macantônio Vilaça, “um exemplo a ser seguido por todo marchand brasileiro”, elogia. “Ele tinha seus gostos. Mas eu não estava pronto para Marcantônio Vilaça, na época. Eu entendo. E nossa amizade nunca foi abalada por isso. Assim como é minha amizade com Paulo Darzé, de Salvador. Nunca deixamos de ser amigos pelo fato de ele nunca ter me escolhido para a sua galeria.” O artista diz criar duas categorias de trabalhos. “A obra da vida e a obra da morte. Quer dizer, trabalhos que sei que vendem, e outros que sei que vão ficar comigo. É assim que tenho sobrevivido. Ao exemplo de Mondrian, nunca deixei de pintar flores para sobreviver.” Eudes Mota critica também a relação única entre o artista e o mercado. “É preciso ter uma terceira peça. A informação para o público. A crítica. Nesse sentido, a presença de Moacir dos Anjos, durante todos esses anos, foi muito importante para o Recife. Divulgando os artistas, adquirindo obras de artistas locais para o Mamam. Enfim, uma pessoa que sabe exatamente o que está fazendo.”
João Câmara, 69 anos, também mantém independência em relação às galerias. No Bairro das Graças (Recife), possui uma extensão de seu ateliê olindense, no qual guarda e vende seus trabalhos “como profissional autônomo”. João também relativiza a importância das galerias, quando o assunto é propor novos debates. “Uma galeria não é, a princípio, uma lançadora de ideias. Circunstancialmente, pode acontecer, porque algumas delas trabalham com determinadas linhas mais provocativas e tendem a conglomerar um conjunto de artistas que induzem à troca, à provocação. Mas não é o seu fim precípuo. O fim da galeria é vender”, analisa. João Câmara lamenta que não esteja na faixa de prioridade do estado a exibição de obras de arte ou a sistematização de seus acervos. “E sistematização significa não só exibição como a construção de uma sintaxe clara do que pode ser exibido, seja do antigo, seja do novo. Não há política do governo a respeito de aquisição de acervo, nem compra de obras que estão sendo produzidas. Não está na prioridade deles. Toda a parte do planejamento
para o fomento foi revertida para as leis de incentivo, de maneira que o governo lavou as mãos, isentou-se dessa tarefa.” O artista paraibano trabalhou com duas galerias. A Bonino, no Rio de Janeiro, e, no final dos anos 1980, com a Dan Galeria, em São Paulo. Ambas sem contratos de exclusividade. Se os galeristas discutiam seu trabalho junto com ele? “Não. E nem eu deixaria. Eu não mexo na contabilidade deles e eles não mexem em meu ateliê (risos).” O pintor afasta também a tentativa de interferência de alguns compradores. “Interessante que os compradores, hoje, adoram um quadro abstrato. Combina com sofá, com a cortina. O figurativo incomoda muito, perturba o ambiente. Algumas vezes, dá vontade de fazer a marcação na tela e pedir para que o comprador pinte o quadro ele mesmo.” Também em fase independente, Gil Vicente, 55 anos, recorda uma série de galerias que tiveram atuação importante no Recife. Além das já citadas Futuro 25 e Artespaço, mereceriam destaque, segundo o artista, a Galeria Lautréamont, em Olinda; a Galeria Estúdio Arte, de Beth Araruna, em Boa Viagem; e a Galeria Observatório de Arte Fotográfica, comandada por
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8 RAONI ASSIS Artista conta que a Casa do Cachorro Preto foi montada em Olinda para abrigar mostras informais 9 FERNANDO PERES Exposições aliadas a festas são alternativas oferecidas pelo artista, como o Lesbian Bar, que ele promove
Gleide Selma, no final dos 1990. Essa última esteve aberta por três anos, tendo promovido 24 exposições. “Nos final do anos 1970, durante a década de 1980 e no início da de 1990, circulava no comércio de arte uma soma bastante significativa. O público comparecia, visitava as exposições e, principalmente, comprava os trabalhos”, lembra Gil Vicente. “A galeria Ranulpho, que era a mais chique, embora não fosse uma das melhores”, recorda ainda o artista, “trouxe boas exposições, como a de Siron Franco. Crisaldo Morais, mais um marchand importante para o Recife, tinha uma coleção pessoal de artistas primitivos e, em sua galeria, fez várias exposições”. De acordo com Gil Vicente, o consórcio foi uma prática que funcionou bem no Recife. “Por exemplo, uma pessoa que trabalhava numa repartição pública combinava com outras 10 pessoas de pagar um trabalho por mês. Vendeu-se muito através de consórcios. Durante a construção desta casa, para onde me mudei em 1993, fiz dois deles, que me deram dois terços do valor da construção. Cada um com cerca de 60 pessoas. Isso é impensável hoje em dia, no Recife. Não tem gente interessada.” Gil Vicente lembra que, em 1996, a última exposição que fez com a galeria Futuro 25 tinha 12 telas pintadas a óleo (“o hit que o comprador gosta, porque tem preconceito contra papel”), todos os trabalhos figurativos.Vendeu apenas um. “Foi uma novidade para mim. Ali, eu percebi que o mercado tinha mudado.” O artista, contudo, destaca a atuação mais adequada e amadurecida das instituições. “O comércio diminui, mas ainda bem que o institucional, dos anos 1990 para cá, foi melhorando sua atuação. Moacir dos Anjos estava chegando nessa época. Ele escreveu sobre essa exposição.” Para Gil Vicente, que ficou sem galeria após o fechamento da Mariana
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Moura, era normal a procura, vez ou outra, por trabalhos mais palatáveis. “De vez em quando, Tereza Dourado, a melhor galerista que tive, dizia, ‘Gil, não tem um biscoitinho, não?’. Biscoitinhos eram os quadros mais fáceis de vender. A gente se divertia com isso. É normal. De modo geral, as galerias têm respeito pela peculiaridade da cada artista. Claro, se ele está fazendo uma série e aquilo está vendendo bem, e de repente calha de ele querer fazer outra coisa, a galeria vai dizer, ‘espere, continue um pouco mais’ (risos)”.
INSTITUIÇÕES
Para Gil Vicente, tudo que está tendo melhores resultados no Recife está ligado à esfera institucional. “O edital do Funcultura funcionou muito bem para a realização do catálogo, registro das mostras. Isso tem sido muito positivo. Editais da Funarte também estão funcionando bem e compensam a atividade mais reduzida das galerias”, avalia, sem deixar de criticar as políticas públicas dos equipamentos da prefeitura e do estado.
“Muita gente boa, como Bruna Pedrosa, quando estava no La Grecca, e Beth da Mata – artista e atual diretora do Mamam –, fica amarrada, sem conseguir levar os museus para frente, por falta de recursos. Deveria existir uma lei que garantisse um funcionamento sem interrupção desses equipamentos.” Gil Vicente imputa o decréscimo na venda de arte também ao crescimento da indústria de decoração e de ambientação. “As pessoas gastam R$ 30 mil reais nas cortinas da casa, mas para comprar uma pintura de R$ 5 mil... Não existe mais a moda.” Anexa à sua casa-ateliê, construída em Boa Viagem, o artista manteve a Sala Recife por quatro anos. A ideia era hospedar artistas, oferecendo assessoria de imprensa e infraestrutura para as exposições. “Se o artista vendesse alguma obra, o dinheiro ia todo para ele. Fizemos várias exposições, sempre com foco no desenho e na pintura. Mas eram 20 pessoas na abertura e, depois, mais ninguém. Foi minguando até virar um almoxarifado.” No Recife, alguns espaços tentam driblar a formalidade encontrada
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nas galerias. Integram festas ao ambiente de exposição e não propõem contratos de exclusividade. É o caso da Casa do Cachorro Preto, em Olinda. Comandada por Raoni Assis, 26 anos, desde março de 2011, a casa vizinha ao quase sempre fechado Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, surgiu depois que o artista afixou seus próprios trabalhos na primeira sala da casa, com janelas voltadas para a rua. Tornou-se um espaço demandado pelos amigos Ayodê França, Pedro Melo e Greg, que também expuseram informalmente seus trabalhos. “A falta de referência de lugares sempre abertos com novas exposições faz com que o público simplesmente perca o hábito. Abrimos por necessidade mesmo”, explica Raoni. “Não cobramos para entrar no espaço. A casa começou a se pagar nos últimos dois meses e nunca deu renda, lucro”, afirma. No espaço, já realizaram individuais de artistas como Shiko, Cavani Rosas e Jeims Duarte. “Mesmo estando aberta, há um público que se acanha de entrar, porque esse tipo de atividade nunca foi realmente voltada para a população. As pessoas
Fernando Peres acredita que houve dois momentos relevantes para a arte local: fim dos anos 1970 e fim dos 1990 param na janela, olham, curtem, mas não entram”, atesta o galerista. O artista Fernando Peres, 41 anos, também é referência na busca por formas alternativas de expor e comercializar a própria produção e de artistas com quem mantém afinidades. À frente do Lesbian Bar, no Poço da Panela, Peres diz identificar dois momentos diferentes de intensificação do mercado de arte local. “O primeiro, no final dos anos 1970, início dos 1980, com galerias muito fortes. Época da pintura dos políticos de João Câmara, produção de Francisco Brennand, Gil Vicente, muito jovem e já muito requisitado, uma época da pintura e da escultura. No segundo boom, mais recente,
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tivemos novamente várias galerias, mas dessa vez apostando numa diversidade maior de artistas, com uso não só da pintura, do desenho, da gravura e da escultura, como é o caso de Bruno Vilela, que, além de pintar, fotografa, e de Rodrigo Braga, que produz filmes e fotografa, assim como Marcelo Coutinho e Oriana Duarte”, analisa Peres. A trajetória de Peres é marcada pela construção de espaços em que habita, mas também produz e expõe seus trabalhos. Foi assim com o coletivo Molusco Lama (duas casas na Praia dos Milagres, em Olinda, por onde passaram mais de 40 artistas), a Menor Casa de Olinda e a Mau Mau, nas Graças. “Agora está tudo um tanto decadente, como se o produto de arte não fosse mais tão cobiçado. É mais interessante o carro, a internet, o iPhone. O público consumidor, a classe média, ou já tem obras herdadas da família, ou vai investir em algo novo. Não existe mais o fetiche, nem mesmo a noção de investimento, que ficou restrita a figuras mais antigas”, arremata Peres. PAULO CARVALHO
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CON ESPECIAL TI NEN TE FLÁVIO PESSOA
Artigo
GEORGE E.M. KORNIS UM OLHAR SOBRE O MERCADO DE ARTE NO BRASIL A revista Observatório Itaú – Instituto Cultural publicou em setembro de 2012 uma entrevista que concedi a Isaura Botelho, na qual procurei informar aos interessados em arte sobre a existência de uma pesquisa pioneira no Brasil intitulada Estudo da cadeia produtiva das artes visuais. Essa pesquisa teve origem numa demanda e num financiamento da Funarte/Ministério da Cultura – instituição detentora dos direitos de publicação – que, até hoje, não foi publicada, tendo sido realizada entre 2009 e 2010, por Fábio Sá Earp e eu, ambos economistas com formação plena, dedicados a produzir estudos e pesquisas no campo da economia da cultura no país. Posteriormente, em 2012, publicamos uma breve síntese desse trabalho no artigo intitulado O mercado de artes visuais: características e tendências que integra o livro Políticas culturais: pesquisa e formação, organizado por Lia Calabre e publicado também em 2012 pela Fundação Casa de Rui Barbosa e pelo Instituto Cultural Itaú. Não foi uma pequena tarefa realizar no Brasil o primeiro estudo de corte econômico de um tema complexo como o mercado de arte. Logo nos defrontamos com um contexto de baixa densidade de títulos publicados e de baixa confiabilidade das informações disponíveis. Esses problemas nos conduziram a buscar soluções para suprir essas lacunas. No primeiro estágio de nossa pesquisa sobre o mercado de arte, e após tratarmos de questões de natureza teórica, deslocamos nosso foco para o âmbito internacional, por uma simples razão: aqui existia uma ampla e diversificada bibliografia sobre o tema, bem como um razoável conjunto de informações sobre as várias facetas desse mercado. Estudamos, então,
De acordo com a pesquisa, o mercado mundial de arte está hierarquizado dos centros EUA e Reino Unido às periferias o mercado de arte em 18 países e localizados em três continentes – Europa, Ásia e Américas. Essa etapa da pesquisa nos conduziu a algumas evidências: a primeira é a de que, nas quatro últimas décadas, esse mercado passara (e ainda passa) por um amplo processo de mudanças; a segunda é a de que o
sistema de arte era e continua sendo hierarquizado, pois tem centros nos EUA e no Reino Unido (que controlam 75% das operações de compra e venda do mercado de arte) e possui não apenas uma periferia, mas várias periferias – a europeia, a asiática e a latino-americana; a terceira evidência é a de que a América Latina – e isso incluía (e ainda inclui) o Brasil – era a mais atrasada e menos relevante das periferias do sistema e do mercado de arte. Vale dizer que a Europa é a periferia mais avançada, a Ásia é a periferia com maior progressão e que a África está praticamente ausente do sistema e do mercado de arte. Nesse momento, ficou claro que a
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participação brasileira no mercado internacional de arte era (e continua sendo) ínfima – menos de 0,5 % do mercado mundial de arte. Nosso limite estava claro: poderíamos chegar após um longo e consequente esforço a algo mais próximo de 1%, pois a nossa participação no comércio mundial era de apenas 1%, e esse era e continua sendo um limite claro e intransponível. E disso não passaremos, a menos que ocorra uma grande transformação no comércio mundial, na nossa competitividade produtiva e outras tantas mudanças radicais no horizonte do provável. Portanto, estávamos em claro confronto com
a retórica triunfalista dominante no mercado de arte nos últimos 25 anos: esse mercado, no Brasil, era claramente desimportante na escala internacional e o nosso “sucesso internacional” era e continua sendo, no mínimo, muito discutível e frágil.
PERIFERIAS
No segundo estágio de nossa pesquisa, o foco deslocou-se para o Brasil: realizamos um breve histórico da economia, do aparelho de Estado e do mercado arte e, na sequência, buscamos definir os agentes da cadeia produtiva das artes visuais. Optamos, então, por nos concentrar em três grupos de agentes: os distintos tipos de comerciantes de arte (art dealers),
os colecionadores e os dirigentes das instituições públicas e privadas de arte atuantes no país. Identificados esses grupos de agentes, partimos para a realização de 66 entrevistas em oito capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza e Vitória. Conseguimos construir uma matriz de problemas e de sugestões de solução dessas questões do sistema e do mercado de arte no Brasil. E creio que logramos contribuir para uma mudança radical no patamar de informação sobre o assunto. O banco de dados do Itaú Cultural, que há 25 anos reúne e arquiva informações, é um outro importante vetor de mudança no patamar de informação a esse respeito. Além da construção da matriz acima mencionada, pudemos constatar o seguinte: o mercado de arte brasileiro hoje está fortemente concentrado em São Paulo (60% das operações de venda), e o Rio de Janeiro, que foi o berço desse mercado, representa 20% dessas operações. Essas duas cidades representam o centro desse segmento de negócio, concentrando 80% das suas operações de venda. Logo, a periferia avançada (Belo Horizonte e Porto Alegre) e a periferia atrasada (Salvador, Recife, Fortaleza e Vitória) dividem de modo desigual os 20% remanescentes. Foi possível, então, constatar que reproduzimos, no plano interno, a escala de concentração desse mercado internacional. E mais: pudemos constatar que os três estados nordestinos citados, somados, representam apenas 6% desse meio consumidor. Vale mencionar que o Recife representa apenas 2% desse mercado. Não é, de modo algum, uma situação confortável pois, embora hoje isso reproduza o dobro da participação de Vitória, essa cidade apresenta um maior potencial de crescimento do que a capital pernambucana, no tocante ao tema aqui tratado. Podemos assim afirmar que, salvo mudanças muito rápidas e significativas, o mercado nordestino de arte – e, em particular, o pernambucano – pode reduzir ainda mais a sua participação.
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ISABEL PINTO/DIVULGAÇÃO
CON TI NEN TE
Perfil CO N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 3 | 3 6
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RICARDO RIBEIRO O fadista fora do tempo Com apenas 32 anos, o lisboeta desponta na cena do fado, criando um estilo próprio de interpretar a tradicional canção portuguesa, destacando-se entre intérpretes contemporâneos, como Carminho e Carlos do Carmo TEXTO Ricardo Viel
Quando Ricardo Ribeiro ocupou
o centro do palco da aula magna da Universidade de Lisboa, naquela noite de fim de maio, já haviam passado pelo cenário alguns dos maiores nomes do fado contemporâneo, mas nenhum deles fora recebido com tantos aplausos. Pacientes, os músicos aguardaram até que o furor vindo da plateia cessasse, e deram início aos primeiros acordes. Mas, na metade da introdução, alguém mais animado, numa atitude pouco portuguesa e ainda mais rara entre o público do fado, gritou um elogio ao cantor. Ribeiro recebeu o afago com um leve sorriso, mas em seguida colocou-se sério; fez um sinal para que os músicos repetissem a introdução, virou-se para a plateia e levou o indicador ao lábio, num pedido de silêncio. Ato contínuo, colocou a mão direita fechada na altura do peito, como quem diz: vamos sentir o que vai acontecer. E com sua voz potente, contou, como gosta de dizer que se deve fazer no fado, uma canção que dizia: “Diz o povo que quem canta reza sempre duas vezes/ Na minha confissão, vão as rimas do meu fado”. Tratava-se de um tributo ao fado, num local respeitado e com um público apreciador da música. Ribeiro foi antecedido por Carminho, a fadista que atrai mais holofotes na atualidade, e sucedido por Carlos do Carmo, uma lenda viva da música portuguesa. Naquela noite, só Ribeiro deixou o palco aplaudido de pé. Ele teve a delicadeza de apresentar os músicos que o acompanhavam e pedir palmas aos três.
“Ele tem a humildade dos gênios”, diz Pedro Castro, 35, produtor musical, músico e dono de uma das casas de fado mais respeitadas de Portugal, a Mesa dos Frades. “O Ricardo é aquilo que você vê no palco, o fado está nele. Tem um talento enorme e é muito nobre, preferiu fazer o caminho mais difícil.” O mais fácil seria o de aderir à indústria fonográfica, aceitar o jogo, cantar o que o público e as gravadores querem ouvir, vender-se. “Se ele tivesse se prostituído um pouquinho... Mas, ainda bem, ele não quis. Entre cantar o que sente, o que acredita, e o aplauso, fica com o primeiro. Claro que, se o aplauso vier, melhor. Mas não é o fim. Há muita gente que se perde pelo caminho, que se embriaga com as palmas. Ele não se perdeu”, acrescenta Castro. Em 2004, quando gravou o primeiro disco, Ribeiro escolheu três grandes músicos para participar. Tão talentosos como temperamentais. A gravadora não queria aceitar. Argumentava que nomes conhecidos acabariam por ofuscar o jovem músico, além de que as personalidades deles poderiam se enfrentar e colocar o trabalho a perder. Ribeiro bateu o pé e impôs sua vontade. Anos depois, gravou com o alaudísta Rabih Abo Khalil, deixando novamente seu nome em segundo plano. Ainda assim, sem se dobrar e sem querer brilhar mais do que os outros, Ricardo Ribeiro é hoje uma das principais figuras do fado. “Para mim, ele é o melhor”, escutei várias pessoas do meio musical dizerem, quando lhes perguntava sobre o
fadista. Outro comentário era de que, no mundo do fado, Ribeiro era dos poucos que não tinha rixa com ninguém.
DESDE MENINO
O fado entrou na vida do lisboeta Ricardo Ribeiro muito cedo. A mãe fazia a limpeza da casa cantando, e algumas cantigas ficaram na memória do músico. Em seguida, uma tia, apaixonada pelo ritmo lusitano, levou-o a uma festa do bairro para que ele cantasse. Tinha 12 anos. Começou a se “apresentar” para os amigos em pequenos festejos, na casa de conhecidos, e, aos 15 anos, já cantava profissionalmente. “Eu comecei cedo porque o destino quis assim. O fado, desde quando eu era muito pequeno, me chamava atenção, mexia comigo”, comenta Ribeiro, entre uma baforada e outra de cigarro. Ribeiro é uma figura imponente. Alto, largo e gordo, bastante gordo. “É um fadista incontornável, eu costumo dizer. É impossível dar a volta nele”, se diverte Castro. É dono de um vozeirão que faz chorar os azulejos, e, quando fala, aparenta ter bem mais do que seus 32 anos. Possui uma sabedoria nada acadêmica, de alguém que aprendeu com a vida. Os amigos falam de altos e baixos, de uma vida de desassossego, circunstâncias que ele prefere não comentar. Outro fator que contribuiu para criar essa personalidade “envelhecida” foi o de sempre andar com pessoas mais maduras. Quando começou, o fado não vivia o boom atual e praticamente não havia
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Perfil jovens no meio. O público e os músicos eram muito mais velhos do que Ribeiro. “Eu me lembro do Ricardo Ribeiro muito menino, andando com o Fernando Maurício, e me recordo do carinho que o Maurício tinha para com ele”, conta Sara Pereira, 40 anos, diretora do Museu do Fado. Fernando Maurício foi um grande fadista da segunda metade do século passado. Quando Ribeiro começou a cantar, Maurício, que se apresentava na mesma casa que ele, o apadrinhou. “O Fernando Maurício foi um homem que sempre fez o que quis, sempre seguiu seu coração. Admirava muito isso”, explica Ribeiro. Dentro dessa concepção de fazer o que o coração manda está o canto dos fados de que gosta, do jeito que gosta. “Eu procuro criar um estilo, criar minha própria personalidade dentro do fado”, explica. Essa busca por uma identidade própria significa pesquisa. “O Ricardo Ribeiro é um dos poucos fadistas que vêm aqui ao Museu do Fado. Ele me telefona e pergunta se temos tal fado, que queria escutar. Vem pesquisar a biografia dos fadistas antigos, ouvi-los cantar”, comenta Sara Pereira. Dentro de algumas décadas, é provável que jovens fadistas procurem no museu os rastros de Ricardo Ribeiro, para “estudar” seu modo de interpretar as canções. Hoje, o fadista já tem seu lugar no local, ao lado de figuras como Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Dulce Pontes. Numa das televisões espalhadas pelo casarão na beira do Tejo, vê-se a imagem de Ribeiro em
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uma entrevista. Nela, ele diz que o fado é alma. E, quase cochichando, arremata: “De que me vale a mais linda melodia se não lhe dou alma, se não lhe dou vida?”. Pronunciar as palavras corretamente, colocar a ênfase na sílaba exata para que soe perfeita, controlar a respiração, entender as letras das canções para logo interpretá-las à sua maneira. São
Ricardo Ribeiro iniciou sua carreira num momento em que o fado não atraía nem o público nem os músicos mais jovens essas as preocupações de Ribeiro. “O fado é como um idioma, é fruto da mentalidade dos portugueses. Pode ser estranho o que eu vou dizer, mas eu canto para mim. É aquela coisa da arte pela arte. Claro que preciso comer, me vestir, que tenho uma filha e tenho que sustentá-la, mas eu não faço isso buscando o dinheiro”, diz. A religião quase mudou seu destino. A ida a um colégio interno e o contato com o padre Manuel Alves fizeram Ribeiro pensar em seguir a vocação religiosa. Depois, acabou por cuidar de rebanhos no Alentejo. Chegou a pensar em ser veterinário. Durante todos esses anos, cantava fado aos finais de semana. E, sem planejar muito, um dia tornouse fadista profissional.
PALCO Ricardo Ribeiro possui uma grande presença e sua maneira de cantar fados se aproxima do tom de um pregador
O fado é lúcido e sério, gosta de repetir Ribeiro, que também é lúcido e sério, embora dono de uma gargalhada potente. Quando sorri, desmonta a imagem de pessoa envelhecida e faz recordar que não há tanto tempo foi uma criança. “Fado é um desabafo. Quando estou feliz, não quero cantar fado, quero estar com os amigos”, diz. E o fado é triste? “Meu amigo, o fado canta a vida”, me diz em tom professoral. Ribeiro responde a algumas perguntas cantarolando fados. “O fado é tudo que acontece quando se ri ou se chora, quando se lembra ou se esquece, quando se odeia ou se adora.” O traje escuro e a maneira de recitar os fados faz Ribeiro parecer, às vezes, um pregador. “Ele é uma espécie de líder, porque é alguém que leva muito a sério isso de estudar, de ir atrás das raízes”, conta o guitarrista Marco Oliveira, 25, um dos novos talentos do fado que, como Ribeiro, se preocupa em renovar o ritmo, sem deixar que ele perca sua identidade. O veterano jornalista espanhol Miguel Mora foi correspondente do jornal espanhol El País, em Lisboa, por quatro anos. Em 2007, numa crônica em que contava suas andanças pelo mundo do fado, escreveu que Ricardo Ribeiro, que então tinha 26 anos, era um cantor de “muito peso e pouca idade”. Mora comentava sobre o momento que vivia o fado naquela época; falava do surgimento de uma nova idade de ouro, e apontava Ribeiro como um desses novos prodígios. Naquele mesmo ano, Carlos Saura gravou um filme chamado Fados, parte de sua trilogia sobre música. Ricardo Ribeiro é um dos músicos que aparecem na película. Em 2011, o fado foi declarado patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco, o que gerou ainda mais interesse por ele no exterior. Atualmente, Ribeiro está gravando seu terceiro álbum. Em maio passado, apresentou-se na Bienal de Veneza. Em junho, cantou com a orquestra sinfônica da Venezuela, em Caracas. Para Pedro Castro, as escolhas de Ribeiro serão entendidas e trarão frutos. “Se ele vivesse em outro país ou em outra época, já teria sido aclamado. Não tenho dúvida de que dentro de 50 anos vamos dizer: eu fui contemporâneo do Ricardo Ribeiro.”
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ACERVO Herança da visita de Dom Pedro II
Museu instalado em sobrado que hospedou imperador abriga acervo que rememora cultura da cana-de-açúcar e o estabelecimento da imprensa em Vitória de Santo Antão TEXTO Gabriela Almeida FOTOS Ana Araújo
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Ali, a casa de nº 187 conserva na sua fachada um mosaico floral de azulejos portugueses do século 19, com portas e janelas grossas em madeira talhada. Erguida em 1851, pelo promotor público Joaquim Jorge dos Santos, a casa guarda histórias que vão além do seu exterior. Inicialmente alugada pelo município para abrigar a Câmara dos Vereadores, serviu, em 1859, de Paço Imperial, quando o imperador Dom Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina passaram pela cidade. Acompanhado por sua comitiva e família, o último monarca do império do Brasil levou ao município móveis e louças usados nos três dias que permaneceu na casa, deixando um legado para a cidade. Depois da passagem de Dom Pedro II, o solar adquiriu status de nobreza. Moraram nele senhores de engenho e comerciantes da região. Também foi um educandário, um posto de saúde e sede do Tiro de Guerra e do Sport Club da Vitória. Até que, em 1950, por iniciativa do promotor público Djalma Raposo, foi organizada uma plêiade entre 30 vitorienses e, assim, no dia 19 de novembro do mesmo
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Em tempos nos quais arranha-
céus equivalem à modernidade e ao progresso para grande parte dos cosmopolitas, visitar a Rua Imperial, na cidade pernambucana de Vitória de Santo Antão, traz certo alívio. Além do trânsito mínimo, se comparado ao das metrópoles, por ali, os únicos elementos que se propagam para o alto são as torres das igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e da Matriz de Santo Antão, que se encontram na praça central da cidade, a pouco mais de 100 m dali. Estreita, a Rua Imperial é ocupada, em sua maioria, por casas residenciais antigas, ainda pouco modificadas, e os sinais mais visíveis da vida moderna são as grades nas janelas e nas portas dos antigos solares.
Depois de variadas ocupações, em 1950, o sobrado da Rua Imperial foi transformado em museu ano, foi fundado o Instituto Histórico e Geográfico da Vitória de Santo Antão.
MANUTENÇÃO
Quem visita o IHGVSA esperando encontrar um pequeno museu de interior se surpreende. Com um acervo que ocupa cinco galerias, montado nos últimos 60 anos, basicamente através de doações, suas instalações ultrapassam o antigo solar construído em 1851. Além de um anexo localizado na rua de trás, em que funciona o auditório com lugar para 250 pessoas, também são de responsabilidade do Instituto o Sobradinho Mourisco e a casa da filósofa e teóloga Maria do Carmo Tavares de Miranda, localizada no Recife, no Bairro da Boa Vista.
Mas, como boa parte das organizações cívicas de qualquer lugar do país, o Instituto enfrenta dificuldade na hora de arrecadar verbas. Tombado pelo Estado e localizado na mesma Rua Imperial, 81, o Sobradinho Mourisco, construção remanescente do então povoado de Santo Antão da Mata, foi levantado no ano de 1730 em taipa, com arquitetura de influência árabe. Mas, apesar de hoje ser a sede da Academia Vitoriense de Letras, Artes e Ciência, encontra-se fechado por risco de desabamento. “Temos um projeto de restauração para o Sobradinho. No momento, contamos com a colaboração da prefeitura e o apoio de nove dos 11 vereadores que formam a câmara. Mas lamentamos que a ajuda da prefeitura seja diminuta, porque não mantemos apenas o Sobradinho. Criamos um apêndice do nosso museu no Recife, na casa de Maria do Carmo Tavares de Miranda. Antes de falecer, a professora incluiu o instituto no seu inventário. Portanto, precisamos manter o sobrado e prosseguir com a reforma da nossa biblioteca”, lamenta o atual presidente do Instituto, Pedro Ferrer. Apesar dos impasses, o museu consegue manter um acervo invejável, com raridades como um dos três prelos (máquina tipográfica) restantes no Estado, que pertenceu ao jornal vitoriense O Lidado, de 1880, e à tipografia de Esmeraldino de Deus e Melo; fotografias da visita de Pierre Verger, em 1947, a Vitória de Santo Antão para registrar a exploração dos escravos nos engenhos; o retroprojetor, de 1947, do Cine Iracema, fundado em Vitória pelos irmãos José Sabino e Luís Boaventura; os móveis e as louças trazidos por Dom Pedro II, na sua passagem pela cidade; e uma galeria de arte sacra, iniciada pelo primeiro presidente do instituto, José Aragão, com peças perfuradas por balas de batalhas ocorridas na região.
VISITA
Reformado recentemente com apoio da Companhia Hidroelétrica do São Francisco, o IHGVSA contou com a ajuda de professores locais de História, um jornalista, um arqueólogo e um comunicador social para reorganizar as peças do acervo em suas cinco galerias.
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Pernambucanas Na primeira sala, ficam alguns painéis que contam a história da evolução da cidade, desde seu surgimento como povoado até a sua elevação a município. Também é nesse primeiro pavimento que ficam expostos os pertences deixados pelo imperador Dom Pedro II na cidade. Em seguida, há o espaço dedicado
à arte sacra, composto por santos e uma liteira do século 19, tipo de poltrona com tração humana, usado por nobres e religiosos. Com destaque para a imprensa local, a terceira galeria expõe exemplares dos antigos jornais publicados na cidade. Também são apresentados nomes da literatura do
lugar, como o romancista Osman Lins, autor do experimental Avalovara, Nestor de Holanda, autor de Jangadeiro, e Zilda Maurício Crisóstomo, autora de Terreiro prateado. A quarta galeria é reservada à produção de cana-de-açúcar. Moendas de cana, destiladores de águardente, garrafas de pinga fabricada no município e troncos usados para castigar escravos remontam o cenário de quando os grandes engenhos estavam no seu auge e eram a base da economia na
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Sobrado se destaca com sua azulejaria portuguesa
Nestas páginas 2 ALAMBIQUE
Produção de cachaça é destaque no acervo
3 PRENSA Museu possui uma das três prensas mais antigas de Pernambuco 4 UTILITÁRIOS Louça fabricada na cidade pela família Azoubel 3
5 ESCRAVIDÃO Mobiliário dos engenhos locais está entre as peças catalogadas
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região. Por fim, compõe a quinta e última galeria o acervo antropológico montado com peças de folclore e artesanato, como os filtros de cerâmica da família Azoubel, produzidas artesanalmente na cidade. O instituto, que tem a finalidade de divulgar e conservar a cultura e as tradições locais, também conta com um modelo de visitação peculiar, baseado no Museu do Sacramento da Califórnia, nos Estados Unidos. “Sempre que viajo, tento visitar o máximo de museus e observar como
eles encaminham seus visitantes. Fui juntando algumas ideias e achei que uma videoaula seria a melhor forma de apresentação para o instituto. Principalmente para facilitar o diálogo com os mais de 5 mil alunos das redes pública e privada de ensino que nos visitam todos os anos”, afirma Ferrer. Além de tratar da estrutura do museu, o vídeo, primeiro contato do público com o acervo, projetado no salão nobre, antes do acesso às galerias, também conta
a história do desenvolvimento da cidade e da Batalha do Monte das Tabocas, que aconteceu em 1645, entre os invasores holandeses e os portugueses, junto a alguns brasileiros. Com a vitória dos segundos, a batalha é motivo de orgulho para o povo vitoriense e também de seu nome. Ao fim da sessão, um guia acompanha os visitantes por todo percurso e acrescenta conhecimentos aos textos explicativos, que se encontram ao lado de algumas coleções.
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FIOS E CONTAS Símbolos de fé e proteção Produzidos em diversos materiais e cores, cujos sentidos variam entre nações, os colares significam a ligação sagrada entre os praticantes e os orixás do candomblé TEXTO Danielle Romani FOTOS Roberta Guimarães
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1 IEMANJÁ Para a orixá, as contas podem ser azul turquesa, brancas ou cristais. O peixe é apenas um elemento decorativo 2 OXUMARÉ Masculino e feminino, o orixá é associado ao arco-íris, e seus fios podem ser em verde raiado de amarelo
em território brasileiro, ao qual chegaram como escravos. Mas o que chama especial atenção no trabalho de Lody é a importância dos fios de contas, objetos sagrados e de reconhecimento para o povo de santo. Presentes em nosso cotidiano, mesmo entre os que não pertencem ao candomblé, os fios são elementos de extrema importância na proteção e afirmação do devoto. Um item que abre as portas para que o indivíduo receba proteção e o habilita a participar das cerimônias dedicadas aos orixás.
FILIAÇÃO
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A riqueza de materiais, cores e
adornos é evidente nas práticas e rituais das religiões afro-brasileiras. Nas cerimônias sagradas, a plasticidade e o simbolismo se impregnam nos gestos, roupas e adereços das ialorixás, babalorixás e iaôs. Nelas, o imaterial e o material mantêm um tênue limite, como se os orixás e os seus devotos fossem uma única pessoa. “Ao contrário de alguns sistemas religiosos, nos quais a perfectibilidade moral e espiritual se adquire pelo distanciamento ‘das coisas deste mundo’, inclusive dos prazeres provenientes do corpo, nas religiões afro-brasileiras, as coisas deste mundo são elementos fundamentais para a manifestação do sagrado”, escreveu
Vagner Gonçalves da Silva, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). O texto de Vagner Gonçalves, um reconhecimento à peculiaridade e originalidade desses cultos, foi escrito como apresentação de um livro que mostra, com detalhes, a multiplicidade dos adornos nas religiões de matriz africana: Joias de axé, fios de contas e outros adornos do corpo – a joalheria afro-brasileira, elaborado pelo antropólogo Raul Lody. Obra rara e bem-vinda sobre os objetos sagrados da joalheria africana, o livro destaca as muitas vertentes e habilidades adquiridas pelos artesãos dos cultos afros nos últimos séculos. Sejam aquelas trazidas dos países do Continente africano, sejam as adquiridas
Os fios de contas desempenham inúmeros papéis para os povos dos terreiros. Através do sistema de cores, identificam os orixás. Quando usadas como colares, braceletes, bordadas nas palhas ou nas vestimentas, associam quem as utiliza às divindades em termos de filiação mítica ou outros laços de devoção. Seu uso é obrigatório para quem quer se tornar um filho de santo do candomblé. No seu trabalho, Lodi aborda os usos e funções dos fios de contas em vários estados brasileiros, em especial, na Bahia, no Maranhão e no Rio de Janeiro. Destaca que seu uso se diferencia de acordo com as nações do candomblé, mesmo as que se encontram numa mesma região. Mas afirma que os fios de contas não obedecem um padrão único. São encontrados – e utilizados – em variedade de materiais e formatos. Podem ser de contas de vidro, bolas confeitadas, miçangas, cerâmica, marfim, louça, corais e, ocasionalmente, trabalhos de ourivesaria, com bolas de prata ou ouro banhado. O uso depende das práticas do terreiro em questão. Existem, ainda, colares feitos de contas que levam o nome de guias. Eles são usados, principalmente, pelos que procuram uma proteção para o corpo. “Alguns exibem símbolos básicos como cruz, seta, estrela, machado, espadim
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e medalhas de santos populares”, escreve Lodi, lembrando que os que trazem santos católicos, normalmente, pertencem aos adeptos da umbanda. Nas nações da Região Metropolitana do Recife, objetos com formatos de peixe são usados em homenagem à Iemanjá; machado, em alusão a Xangô; pombas, referência à Oxalá; e raios, símbolo associado à Iansã. São fartamente utilizados pelos filhos de santo, na maioria das vezes fixados nos próprios fios de contas. Mas os babalorixás e ialorixás consultados pela Continente destacaram que essas alegorias não fazem parte dos “fundamentos da religião”, são apenas adornos.
NAGÔ
Para quem leva o candomblé a sério, o uso de fios de contas jamais pode ser feito de maneira aleatória. “Eles fazem uma ligação entre o orixá e a matéria como elemento de proteção”, explica Manuel do Nascimento Costa. Conhecido como Manuel Papai, ele é um dos líderes da nação nagô pernambucana e um dos babalorixás mais respeitados do país. É o responsável pelo Centro de Cultura Pai
“Os fios de contas são como baterias: os devotos têm que carregá-los positivamente” Manuel Papai Adão, o Obá Ogunté, terreiro fundado em 1875 pela ialorixá Inês Joaquina da Costa, e que, pela sua importância, foi tombado pelo governo estadual em 1985. “Os fios representam a segurança do filho, além de identificar para a sociedade qual é seu orixá. Eles, obrigatoriamente, têm que ser consagrados. Se isso não acontecer, têm apenas valor decorativo. A pessoa até pode usar, mas é como uma bateria que não foi carregada ”, afirma Manoel, que descreve todo processo de sacralização dos fios. “Quando a pessoa quer ‘carregar positivamente’ as suas contas, tem de se submeter a um ritual de consagração. Tanto os que querem usar apenas como proteção, como os que vão passar pelo
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batismo. O primeiro passo, para todos, é fazer uma lavagem com as plantas sagradas da nossa nação, entre elas o calumbi, a corama, o malvavisco, o pegapinto e o cajá. Por esse motivo, Ossaim – que é o dono das plantas – é o orixá mais importante, no que diz respeito aos fios de contas. É com as folhas dele que os fios são batizados e se tornam elementos sagrados.” Se a pessoa quiser apenas proteção, o trabalho termina por aí. Mas, se quiser tornar-se filho de santo (iaô), é apenas o começo da tarefa. “Para quem vai fazer a cabeça, as contas seguem para o ibá do orixá, onde serão feitos os sacrifícios dos animais. Quando finalmente o iaô se faz, recebe 16 fios de contas, o que nós, da nação nagô, chamamos de xumbetá”, completa o babalorixá. Após esse processo, os fios só serão alterados quando o devoto completar sete anos de cabeça feita. “Até então, os fios ficavam soltos. A partir desse período, eles passam a ser amarrados em seis gomos, se forem filhos de Xangô, ou sete gomos, se forem dos outros orixás.” No terreiro Obá Ogunté, contas de plástico, as miçangas miudinhas
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3 PROTETORES Mais de um orixá pode estar relacionado a um devoto. Neste caso, os colares reverenciam Xangô, Iansã e Oxum 4 OSSAIM O orixá das plantas é o mais importante nas consagração dos fios: somente após serem lavados com elas, tornam-se objetos imantados
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tão comuns nos mercados públicos, não são aceitas. “Não admitimos material que não seja nobre e durável. Até compramos de terceiros, mas preferimos usar as fabricadas pelos nossos filhos. Temos pessoas que fazem fios com pedras, canutilhos, contas de vidro (que não podem ser usados por orixás masculinos) e de outros materiais, alguns importados da Europa e da África. Mas hoje isso é bobagem: o Brasil já tem empresas que produzem pedras tão boas quanto as africanas. O Maranhão tem uma produção de pedras muito importante, muito poderosa para a confecção de fios de contas”, diz o babalorixá, que lembra os rituais usados pelos seus antepassados. “Antigamente, os
colares de contas dos nossos iniciados vinham com um patuá, cheios de axés, realizados pela mãe ou pelo pai. Eles não sabiam o que tinha dentro, mas era nossa marca registrada. Deixamos de usar há muito tempo, devido à perseguição que houve, em décadas passadas, aos terreiros. Perdemos essa tradição por culpa dos marginais da polícia que nos perseguiram.”
XAMBÁ
Representante da nação xambá, o babalorixá Adeildo Paraíso da Silva, o Ivo de Xambá, comanda o terreiro Santa Bárbara Ilê Axé Oya Megué, próximo ao Portão do Gelo, no bairro olindense de São Benedito. Com a autoridade de quem é líder de uma
das nações mais respeitadas de Pernambuco, Pai Ivo explica que o ritual dos fios de contas pelos seus filhos se assemelha, apenas em parte, ao da nação nagô. “Elas (as contas) são como um amuleto. É uma identificação com seu orixá. Como cidadão, você tira RG, CPF, certidão de nascimento para ser identificado na sociedade. Como filho de santo, as contas são a identificação sagrada com sua nação”. Para que a conta seja consagrada, devem ser observadas várias práticas. “Primeiro, jogam-se os búzios, para confirmar os orixás. Só a partir daí é que se compram os fios, que têm que ser da cor própria do santo. Depois se fará o amaci, lavagem com as ervas sagradas para purificálas. Se for apenas para proteção, estão prontas, mas quando se vai fazer cabeça, realiza-se também o sacrifício, e, nesse momento, no nosso caso, elas são colocadas no altar”, descreve Ivo de Xambá. Da conta do orixá de cabeça, o ori, os filhos também devem usar as contas dos outros dois orixás revelados pelos búzios, os ajuntos, que vêm a ser o segundo e o terceiro orixás protetores. “Isso vale apenas para quem faz iaô”, comenta o babalorixá, ressaltando que, entre os seus filhos, usa-se entre uma ou sete voltas. “No último caso, só quando se faz o santo”. Os devotos também têm que ter alguns cuidados, quando portam seus fios. “Com eles, não se pode ter conjunção carnal, beber ou fazer qualquer tipo de recreação que não obedeça aos preceitos de celebração. Temos que ter respeito aos orixás”, observa Ivo. Na Nação Xambá, as exigências com a qualidade das pedras não é rígida. “Para nós, não importa se são de plástico ou de ouro. A gente
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prefere que sejam de qualidade, pela durabilidade. Mas nossos filhos podem comprar de qualquer material. Porque o que interessa nelas é a ritualidade do candomblé. É isso que as tornará especiais, que lhes dará purificação, proteção e identificará a pessoa como filho da nossa nação”, explica Ivo, lembrando que, entre os xambás, os orixás masculinos podem optar por usar os fios pendurados no pescoço ou atravessados.
KETU
Entre os ketu (queto), pelo menos os que frequentam o terreiro da Mãe Valda de Pirapama, ou Valderez Gonzaga Ferreira, no Cabo, o uso de fios obedece a critérios rigorosos. “Eles não podem ser comprados fora do terreiro. A gente usa miçanga e cordão encerado. Temos também guias particulares: umas só para os babalorixás e ialorixás e outras usadas em festas especiais, no xirê do santo.” Na nomenclatura ketu, os fios especiais, de quem já “pagou o santo”, são chamados de rujevi, os fios de conta simples são os abiãs. Os mocãs, feitos
“As contas são como um RG, um CPF: são uma identificação sagrada com sua nação” Ivo de Xambá de palha-da-costa, são guias especiais e próprios da nação, obrigatórios para os que fazem a cabeça. Nos rituais executados por mãe Valda, as cores dos orixás podem ser mescladas. “Por exemplo, se uma pessoa é filha de Ogum e de Oxalá, a gente chama de Ogumjá, e ele vai usar uma guia com sete miçangas brancas e sete azuis, as cores de cada santo”, explica. No ritual de purificação, também há diferenças em relação às outras nações: além da limpeza das contas, o devoto também é purificado.” As cores das contas dos orixás sofrem pequenas alterações, dependendo da nação do candomblé. Exu, normalmente, tem contas
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pretas intercaladas com vermelhas ou cinzas, apesar dos xambás usarem as cores branca e preta. As de Ogum alternam-se entre o verde ou o azulmarinho. As de Ossaim são verdes, ou verdes rajadas de branco. Para Oxóssi, é utilizado o azul-turquesa. Omolu tem cores que variam entre brancas raiadas de preto e marrom. Oxumaré, o orixá do arco-íris, aceita as verdes raiadas de amarelo. Oxum, a deusa da beleza e do ouro, adorna seus filhos com contas douradas ou de âmbar (alguns aceitam o amarelo). Iansã, a senhora dos ventos e tempestades, se associa às contas marrom ou cor de coral. Iemanjá, a rainha do amor, é cultuada com contas brancas translúcidas ou de cristal (apesar de alguns utilizarem um azul-turquesa). Xangô, o mais popular orixá dos terreiros pernambucanos, traz contas vermelhas ou marrons, intercaladas com contas brancas. Os filhos de Oxalá, que no sincretismo religioso brasileiro é equiparado a Jesus, usam contas brancas leitosas. Em todos os casos, independentemente do orixá ou das cores, todas trazem o seu axé.
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RENATO ALARCÃO
ilustração
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MERCADO EDITORIAL
SICK-LIT Eles estão doentes Novo filão temático de livros voltados ao público infantojuvenil é o estado patológico, expresso em narrativas que abordam sequelas por estados graves de saúde, abandono, abuso sexual, depressão e mesmo o tema-tabu suicídio TEXTO Thiago Corrêa
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Nem zumbis, nem bruxos,
figuras mitológicas ou vampiros. A presença do livro A culpa é das estrelas no topo das listas dos mais vendidos tem sido alardeada como uma mudança no interesse dos jovens leitores brasileiros. O sexto título do escritor norte-americano John Green é protagonizado por Hazel Grace, uma adolescente de 16 anos que não tem dentes afiados ou quaisquer poderes sobrenaturais, mas um câncer na tireoide, cujo efeito colateral do tratamento inunda seus pulmões, fazendo-a carregar para todo canto um carrinho com um cilindro de oxigênio. Lançado pela editora Intrínseca, o livro chegou ao Brasil já imprimindo o mesmo ritmo de sucesso que tem alcançado nos Estados Unidos, onde figura há 30 semanas na lista dos mais vendidos, para adolescentes, do jornal The New York Times. De acordo
com o site Publishnews (página dedicada a notícias do mercado editorial brasileiro), A culpa é das estrelas, desde março, tem marcado presença entre os 10 livros de ficção mais vendidos do país, ocupando a 4ª posição no mês de junho. No ranking da revista Veja, a obra de John Green já virou habitué, acumulando 15 semanas na lista de best-sellers. Ironicamente, os novos ventos que impulsionam a literatura comercial infantojuvenil tem a participação direta de um dos personagens mais populares da série Harry Potter. Estrelada por Emma Watson, a adaptação cinematográfica de As vantagens de ser invisível pegou carona na popularidade da atriz, que ganhou fama ao interpretar a bruxinha Hermione Granger, e impulsionou as vendas do livro, levando-o ao impensável status de best-seller. Publicado sem alardes lá em 1999, o livro do americano Stephen Chbosky ingressou para a lista dos mais vendidos, logo após a estreia do filme e, desde novembro do ano passado, vem aparecendo entre os best-sellers na categoria infantojuvenil do Publishnews. No filme, com direção do próprio escritor, Emma Watson assume o papel de Sam, que integra um trio de outsiders formado por seu irmão Patrick e Charlie. O livro é narrado por Charlie, numa série de cartas em que ele dilui a solidão após o suicídio do amigo Michael, nutre saudade pela tia Helen e compartilha a alegria por ter encontrado novos amigos, compondo uma história que envolve preconceito, homossexualismo, depressão e abusos sexuais.
CONTAMINAÇÃO
Junto com As vantagens de ser invisível, A culpa é das estrelas encabeça um fenômeno editorial que ganhou o nome de sick-lit. Em português, algo como “literatura doente”. Cunhado pelo tabloide britânico Daily Mail, o rótulo sick-lit foi usado para englobar um conjunto de títulos voltados ao público adolescente, em que os jovens personagens enfrentam problemas da vida real num cardápio que, a exemplo das obras de Chbosky e Green, vai do
bullying ao abuso sexual, de doenças terminais a casos de suicídio. Com o tom sensacionalista, característico do tabloide, a matéria do Daily Mail repreende os novos rumos da literatura infantojuvenil, levantando preocupações quanto à responsabilidade social de livros que, em vez de explorarem o terreno da fantasia, passam a tratar de temas pesados como suicídio e estupro. Em resposta, a editora de infantojuvenis Michelle Pauli do Guardian, no artigo Sick-lit? Evidentemente a literatura jovem é complexa demais para o Daily Mail, ironiza a consternação do jornal, citando os cuidados do mercado editorial no segmento infantojuvenil e afirmando que “criança e jovens – como todos nós, na verdade – leem para explorar, experienciar outras vidas, pensamentos e situações de uma maneira segura, não puramente como escapismo, aventura e fantasia”.
A culpa é das estrelas, Os 13 porquês, Extraordinário e As vantagens de ser invisível estão entre os títulos do segmento No Brasil, o termo acabou chegando após matéria do jornal carioca O Globo e logo se espalhou pelos blogs ligados à literatura. Curiosamente, aquilo que lá fora tinha um sentido pejorativo, parece ter recebido uma tradução mais positiva no Brasil, festejado como o novo oba-oba do mercado editorial, motivando promoções e sorteios realizados por livrarias no meio virtual.
REALIDADE
Ao invés do recurso da fantasia e do apelo à aventura, que marcaram uma geração de leitores através das obras de J. K. Rowling (da série Harry Potter), Rick Riordan (Percy Jackson) e Stephenie Meyer (Crepúsculo), os títulos da sick-lit optam pelo drama, por obstáculos do cotidiano e constroem suas narrativas através de perspectivas de quem sente a dor de ser estranho e de quem reconhece
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que o fim é iminente. Em geral, estão vinculadas ao real, contam histórias de superação, seja contra doenças ou preconceitos gerados pela dificuldade da sociedade em lidar com o diferente. Em Os 13 porquês, de Jay Asher (que já soma mais de 158 mil cópias vendidas e figurou por 13 semanas na lista do NYT), por exemplo, a personagem Hannah Baker deixa 13 fitas cassete para o colega Clay Jensen, relatando situações de bullying e explicando seus motivos para ter cometido o suicídio. Já em Extraordinário, de R. J. Palacio (30 semanas no NYT), outro título que tem entrado no balaio da sicklit, temos August Pullman, um menino de 10 anos que sofre de uma deformidade no rosto e, após passar por 27 cirurgias, vive a expectativa do seu primeiro dia de escola. A abordagem de temas atuais, como o bullying, que se encontram na pauta da mídia e povoam os pesadelos dos pais, explica parte do sucesso comercial desses livros. Essas narrativas cumprem o papel social de
refletir sobre o mundo no qual estão inseridas, alertando sobre a existência de problemas, trazendo o assunto para o debate e indicando caminhos para sua resolução. O aspecto educacional desses livros é tanto, que o Extraordinário chegou a motivar a campanha antibullying Choose a Kind, nos Estados Unidos, em que a autora R. J. Palacio vem dando entrevistas e palestras com o objetivo de conscientizar a população e combater o problema. Na versão brasileira, o romance segue essa mesma linha, trazendo na contracapa os dizeres: “Não julgue um livro menino pela capa cara”.
METÁFORAS
Essa preocupação com o social, contudo, não desmerece nem inviabiliza a vertente da literatura fantástica, que até pouco tempo dominava as listas de mais vendidos. Por mais inventivas e fantasiosas que sejam as narrativas, elas sempre são motivadas por um pano de fundo do real. “As metáforas levam o significado de um domínio ontológico para outro, criando uma relação que não
se encontra na natureza. Quando falamos do mal, tendemos a criar referências metafóricas, relacionando um ser ou um acontecimento que existe em um plano diferente”, diz o professor Julio Jeha, da UFMG, no artigo Monstros como metáfora do mal. Embora seja ambientada numa escola de bruxos, povoada por quadros que se mexem, chapéus que falam e vassouras voadoras, a série Harry Potter é construída em cima de um sério problema do lado dos “trouxas” (como os comuns são chamados pelos bruxos). Além de abordar questões que remetem ao processo de amadurecimento, como a descoberta do amor, as transformações físicas e as instabilidades hormonais dos adolescentes; o universo criado pela autora J. K. Rowling revela um mundo dividido, ameaçado pela intolerância – de um lado, os seguidores do Lord Voldemort, que acreditam na pureza da raça dos bruxos; do outro, estão os que defendem o convívio pacífico com os trouxas –, uma situação tantas vezes registrada pela História e que ainda persiste.
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1 ADAPTAÇÃO As vantagens de ser invisível, de Stephen Chbosky, foi levada ao cinema 2-3 CÂNONE Personagens como Filoctetes (Grécia Antiga) e Gregor Samsa (da Metamorfose, de Kafka) apontam a presença de moribundos na literatura
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Da mesma maneira, uma leitura mais atenta da saga Crepúsculo revela a metáfora que existe por trás do recurso da fantasia. Na história de Stephenie Meyer, os vampiros são apresentados como os excluídos, os rejeitados da escola da pequena cidade americana de Forks, num outro caso sobre os obstáculos em lidar com as diferenças. Na trama, também encontramos a lição sobre o poder de cada indivíduo decidir seu próprio destino, rompendo com as expectativas que recaem sobre nós, os planos de futuro desejados por nossos pais e até as condições da nossa natureza.
RECORRÊNCIA
A opção por abordar problemas da sociedade de maneira direta, sem recorrer à fantasia, não é uma novidade no mundo da literatura. Há muito que a doença vem nutrindo o imaginário dos escritores. A literatura está repleta de personagens que sofrem algum distúrbio, encontram-se em situaçõeslimite ou sofrem com a solidão por estarem à margem.
Ao invés da fantasia, os títulos da sick-lit optam por obstáculos do cotidiano, sob a perspectiva de quem se sente estranho
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Já na Grécia Antiga, a lenda de Filoctetes, arqueiro que foi abandonado pelos companheiros de guerra numa ilha deserta por conta dos gritos de dor e do cheiro da sua ferida, serviu de mote para autores como Ésquilo, Eurípides e Sófocles. A segunda fase da produção romântica manteve estreita relação com a tuberculose, e a literatura moderna está repleta de moribundos, novos Filoctetes que – rebatizados por Kafka, Tolstói e Tchekov – ganharam os nomes de Gregor Samsa, Ivan Ilitch e Dr. Ranguin. Na literatura contemporânea, também não são raras as abordagens sobre a exclusão imposta pela condição física. O romance O filho eterno, em que Cristovão Tezza relata de forma ficcional
o processo de aceitação ao descobrir que seu filho é portador de Síndrome de Down, e os contos Qohélet e Homem folheia álbum de retratos imorais, do médico e escritor Ronaldo Correia de Brito, mostram que é possível trabalhar o tema de outras formas. A semelhança temática não justifica o rótulo da sick-lit. O protagonista de Vida e época de Michael K, do Prêmio Nobel J. M. Coetzee, apresenta a mesma deformação de lábio leporino do personagem de Extraordinário, mas os livros seguem caminhos opostos. Isso nos faz perguntar: se o tema da doença e a sua abordagem por vias diretas não é uma inovação, então, o que caracteriza a sick-lit? Parece que a resposta está nos objetivos dessas narrativas. Enquanto autores como Tezza, Correia de Brito e Coetzee buscam nas situações de agonia melhores ângulos para observar o mundo, suas arestas e feridas, as obras da sick-lit nutrem uma meta educativa, de autoajuda, de bom mocismo. A doença deixa de ser uma metáfora, uma estratégia estética para a transgressão, e se transforma em exemplo, em lição de vida e mais uma história de superação. O tom da sick-lit é pacificador: ao invés da doença, a cura. Assim, elas procuram naturalizar o estranho e reconfortar o leitor em vez de despertar a ojeriza. Numa consequência à preponderância das histórias em primeira pessoa da sick-lit, o mal que recai sobre os narradores é exteriorizado, justificado como uma causa biológica e não como um problema nosso, a exemplo do que acontece com as narrativas em terceira pessoa, mostrando que a exclusão dos outros, dos moribundos, acontece porque somos tão culpados quanto os companheiros de Filoctetes e não conseguimos lidar com a repugnância que existe dentro de nós, a lembrança de que um dia também vamos morrer e cair no esquecimento.
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Artigo
ERMELINDA FERREIRA A ARTE DA CURA: UM VOO PARA ALÉM DO SILÊNCIO E DA SOLIDÃO O que têm em comum a jornalista
Lisa Sanders, colunista da New York Times Magazine e professora da Universidade de Yale, e a crítica literária Rita Charon, professora da Universidade de Columbia? Escritoras americanas, formadas em Medicina, são apaixonadas pela literatura e praticam uma clínica que defende a importância das histórias narradas pelos doentes para o sucesso do diagnóstico. Numa época em que a ciência torna-se cada vez mais mecanizada e a relação médico-paciente cada vez mais desumanizada, ambas investem na defesa da anamnese (do grego ana, trazer de novo e mnesis, memória), entrevista realizada pelo profissional de saúde destinada a relembrar os fatos que se relacionam à doença e à pessoa doente como um expediente dos mais econômicos e eficientes para a prática médica. Em seu livro Every patient tells a story: medical mysteries and the art of diagnosis, Lisa Sanders considera que a história clínica muitas vezes é o melhor lugar para se encontrar a pista sobre determinado caso: “é a nossa mais antiga ferramenta diagnóstica e também uma das mais confiáveis”. De fato, a maioria dos diagnósticos – algo em torno de 70% a 90% – é feita com base apenas na história do paciente. Essa eficácia esbarra, contudo, no atual modelo do interrogatório da anamnese que, ao adotar pressupostos generalistas sobre os sintomas de determinadas doenças, direciona-se mais à confirmação ou não das expectativas prévias do médico do que a um questionamento verdadeiramente investigativo. A falta de treinamento, o reduzido tempo de consulta, o desconforto
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com as emoções dos clientes são algumas das causas apontadas pela médica jornalista para a tendência dos profissionais de buscar “apenas os fatos” durante a entrevista, interrompendo-a frequentemente. Segundo ela, em gravações de atendimentos médicos, constatou-se que a descrição inicial dos sintomas pelo paciente foi interrompida em mais de 75% das consultas. O estudo indicava que os médicos escutavam os pacientes, em média, durante 16 segundos antes de interromper, e alguns interrompiam a fala do paciente em apenas três segundos. Uma vez suspendida a história, menos de 2% dos pacientes a retomavam, e nenhum deles chegava a completá-la. Arthur W. Frank, em seu livro The wounded storyteller body, illness and ethics, além de constatar o descompasso entre os avanços científicos e tecnológicos da contemporaneidade e os discursos que sustentam o pensamento pós-moderno e póscolonialista na defesa da necessidade de expressão da pessoa humana – denunciando situações de sua sujeição aos discursos de poder oficiais e institucionais –, identifica na prática de contar histórias de sofrimento uma “ação moral”, considerando extremamente relevantes os testemunhos de sujeitos individuais, não como matéria para a construção de um “caso clínico” – objeto da investigação profissional –, mas como relatos denunciadores do papel que a doença efetivamente exerceu em suas vidas. A “medicina narrativa” emergiu, segundo Rita Charon – pioneira nesta área –, em resposta a um sistema de saúde que muitas vezes suplanta as necessidades do paciente através de conceitos e interesses corporativos e burocráticos, gerando no sujeito já fragilizado um sentimento de desamparo, solidão e abandono. Estes, incompatíveis com os resultados práticos que os recursos científicos atualmente disponíveis são capazes de proporcionar em termos de cura ou de alívio para os males do corpo. Em seu livro Narrative medicine honouring the stories of illness, Charon descreve a “medicina narrativa” como uma atividade destinada à formação
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de profissionais mais competentes para reconhecer, interpretar e reagir com empatia às narrativas dos doentes, utilizando para isso recursos que vai buscar na Teoria da Literatura – como a compreensão da complexidade temporal dos eventos clínicos e o estabelecimento de conexões textuais através da metáfora e da linguagem figurada –, acreditando que o incentivo à construção de uma genuína relação médico-paciente pode conduzir a uma prática clínica, além de eficiente, mais rica e humanizada.
ESCAFANDRO
A literatura sempre foi profícua na elaboração de retratos de médicos e doentes, bem como de relatos autobiográficos de sofrimentos físicos, mentais e espirituais. Há quem diga, inclusive, que só escreve aquele que sofre, constituindo os
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textos uma espécie de espelho da alma, cuja eficiência em “dizer” já contribui para o conforto e o alívio de seu autor. Uma das mais belas histórias que ilustram a pertinência da defesa da “medicina narrativa” pode ser encontrada na obra de JeanDominique Bauby, de 1997, vertida para o cinema 10 anos depois, por Julian Schabel: O escafandro e a borboleta, verdadeiro ato de tradução do espírito na palavra, que redimensiona a arte. Nascido em 1952, Bauby era um jovem feliz e realizado, com dois filhos, redator-chefe da revista Elle, quando, aos 43 anos, sofreu um acidente vascular cerebral que o aprisionou nos limites de um corpo com todas as funções motoras deterioradas. Inerte e isolado nesse escafandro, sem esperança de recuperação, ele descobriu – com a decisiva ajuda de sua dedicada enfermeira – um caminho para
A literatura sempre foi bastante profícua na elaboração de retratos de médicos e doentes, bem como de relatos de sofrimentos fora de si mesmo. Juntos, eles elaboraram lentamente um código gestual, baseado nas piscadelas de seu olho esquerdo – o único vínculo que podia estabelecer com o mundo –, e conseguiram escrever um livro inesquecível, comovente e devastador na intensidade de sua verdade humana. A “cura”, nesse “caso clínico” desenganado pela medicina, atingiu uma dimensão verdadeiramente poética, que não teria sido possível sem a correspondência paciente e solidária
BAUBY O longa O escafandro e a borboleta leva às telas o relato do jornalista que ficou totalmente paralisado depois de um AVC
de sua cuidadora, e sem a força interior e o desejo de superação do ser aprisionado nos limites de um corpo vitimado pela tragédia. A experiência, em lugar de ser vivida em completo desespero, foi transformada pelo milagre da palavra na razão mesma da existência desse homem, cujo sonho sempre fora escrever um livro. A doença, nesse caso, representou a ponte que forneceu o material para uma narrativa que, de nenhum outro modo, teria atingido a dimensão, a eloquência e a validade que alcançou, em sua qualidade de incomum e rara anamnese. Suas últimas palavras atingem o objetivo almejado por todos os poetas, por todos os médicos, por todos os homens – a alegria de viver, ainda que provisoriamente, ainda que contingentemente, a esperança da redenção: “Com os cotovelos sobre a mesa rolante de fórmica que lhe serve de escrivaninha, Claude relê esses textos que vimos extraindo pacientemente do vazio todas as tardes, há dois meses. Sinto prazer em rever certas páginas. Já outras nos decepcionam. Juntando tudo dá um livro?... Pelo zíper aberto da bolsinha, percebo uma chave de hotel, um bilhete de metrô e uma nota de 100 francos dobrada em quatro, como se fossem objetos trazidos por uma sonda espacial enviada à Terra para estudar os tipos de habitat, de transporte e de troca comercial em vigor entre os terráqueos. Esse espetáculo me deixa desamparado e pensativo. Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu escafandro? Alguma linha de metrô sem ponto final? Alguma moeda suficientemente forte para resgatar minha liberdade? É preciso procurar em outro lugar. É para lá que vou.”
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Ronaldo Correia de Brito MÉDICO E ESCRITOR
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AS PALAVRAS QUE BROTAM Em fevereiro de 2012, quis percorrer os quilômetros que me separavam da fazenda Lajedo, onde nasci. Fiz o percurso inverso ao de quando deixei o sertão dos Inhamuns e fui morar no Crato, em 1955. Subi a serra do Araripe, atravessei Nova Olinda e Assaré, passei ao lado de Antonina e por fim cheguei a Saboeiro: o Rio Jaguaribe correndo por perto, restos de arquitetura colonial e o passado de riquezas e guerras entre famílias. Quando eu era pequeno, ouvia dos narradores populares as histórias de cavaleiros medievais e jagunços, reis e fazendeiros, princesas e donas de casa. Em 300 anos de isolamento, o mundo sertanejo inventara uma épica particular. Nela se misturavam a mitologia local e a de outros povos, leis e códigos de honra garantidos pela violência. Como no resto do mundo, tudo mudou depois da Segunda Guerra, chegaram o rádio e as indústrias, as pessoas migraram para as cidades. O campo se esvaziou, transformandose no que é hoje: ruína e periferia. Minha viagem tinha um motivo. Eu finalizava o romance Estive lá fora e, como em todos os livros anteriores,
a memória regressou ao mundo arcaico. Os personagens se moviam no Recife urbano, mantendo um pé no sertão. Talvez temessem se perder nas incertezas da pós-modernidade. Padeço os mesmos anseios do filósofo Hermann Broch: sonho que toda grande arte pode se tornar mythos uma vez mais, representar uma vez mais a totalidade do universo. A cultura dos Inhamuns, por mais que apontasse para a desintegração do mundo e de valores, me parecia guardar os últimos resquícios de uma sociedade mítica. O pretexto era reencontrar um apanhador de algodão e perguntar a ele quantos quilos apanhava num único dia. Feita a pergunta pragmática, sem a transcendência da que fizera o jovem Parsifal ao rei Amfortas, no Castelo do Graal, retomaria a escrita do romance. Em minha narrativa, eu referia que nos bons tempos, quando o Nordeste brasileiro era um dos maiores produtores de algodão, um homem colhia sozinho, sem a ajuda de maquinários, 90 quilos de capuchos. Mas guardava a lembrança de que Luis Ferreira, vizinho de terras do meu pai, alcançava as 12
arroubas: 180 quilos. Que importância tinha para o romance o dado numérico? Nenhuma. Parsifal perguntou a Amfortas por que ele sofria e com essa pergunta mudou a hierarquia do Castelo. Meu questionamento era raso como o chão duro sertanejo, que não se deixa perfurar. A partir de Saboeiro, percorri os 18 quilômetros que me separavam da fazenda Lajedo, no carro de um comerciante da região. A estrada parecia ruim como no dia em que fui embora dali. A planura, o céu azul limpo de nuvens e o silêncio também pareciam os mesmos. Luis Ferreira não estava em casa, trabalhava na roça apesar do feriado de Carnaval. Já não era homem rico, um produtor que vendia algodão às usinas de beneficiamento. A praga do bicudo arruinara os sertanejos, acabando com o sonho do ouro branco. Na sucessão de desgraças, seu pai enforcou-se e o filho de 15 anos também pôs fim à vida. Vínculos fortes o ligavam à minha mãe e ao meu pai, amizade que o tempo e a falta de convivência não conseguiram desfazer. Tinham sido vizinhos muitos anos e os laços familiares remontavam a três gerações.
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KARINA FREITAS
Numa vez em que meu pai precisou de dinheiro, fomos do Crato ao Lajedo e pedimos emprestado. Não sentíamos vergonha, os códigos sertanejos nos facultavam esse direito. Antonio Ferreira e o filho Luis nos atenderam prontamente, sem a burocracia de uma agência bancária. Quando retornei muito anos depois para liquidar a dívida, falaram que haviam esquecido o valor e que não devíamos nada. Não via Luis Ferreira desde essa época, mas guardava a imagem do rapaz magro, alto, silencioso e trabalhador. Mandaram que eu seguisse de carro pela estrada, o roçado ficava longe, depois de um açude. Apesar dos 56 anos de transformações, das poucas vezes em que retornei ali, eu conseguia recompor cenários e paisagens. Encontramos um sobrinho de Luis e ele quis nos guiar. Adiante, avistamos uma cerca de arame farpado, um passadouro, um resto de mata e o roçado no chão de cascalhos e pedras. No meio disso, o homem alto e magro cavava a terra e atirava sementes contadas nos buracos. Caminhei de peito aberto pelo descampado, enquanto o rapaz se escondia. Se chegássemos juntos, o
Padeço os mesmos anseios do filósofo Hermann Broch: sonho que toda grande arte pode se tornar mythos uma vez mais tio desconfiaria quem eu era. Quando avancei até bem perto dele, o homem me encarou. Era o mesmo, apesar dos anos. – Luis Ferreira, perguntei sem preâmbulos, você sabe quem eu sou? – Ronaldo de Ritinha. Ele não me vinculava ao pai, mas ao nome da mãe. – Luis, eu vim aqui porque tinha uma pergunta a lhe fazer. Quanta arrouba de algodão você apanhava, nos bons tempos? – 12. E calou. Dos seus olhos esguicharam lágrimas, como dos palhaços no circo. Só que não havia mecanismo falso, nenhum truque. O homem cavando as pedras e os lajedos, plantando sementes a pulso, chorava de verdade.
Seguimos em silêncio pela estrada e até o instante de minha partida Luis não disse uma palavra. Quando entrei na camioneta para ir embora, soube o que ele remoía por dentro. – Ronaldo, você tem filhos? – Tenho, sim, já lhe falei de minha vida. – Desculpe, tive um passamento, só estou voltando agora. – Eu percebi. E aí ele se aproximou de mim e tocou o meu braço, de um jeito que apenas os homens sertanejos sabem tocar outros homens. – Ronaldo, me disse, Ritinha e Joãozinho fizeram bem em ir embora daqui. Se você tivesse ficado, não seria o que é hoje. Nessa hora, a esposa que assumira um lugar dois passos atrás do marido, avançou até junto de nós e falou: – Se tivesse ficado por aqui, sempre seria o mesmo homem. Não foi o lugar que fez ele ser o que é. Olhei abismado o casal e segui de volta. Já tinha resposta. No sertão ainda semeiam palavras. Poucas. De preferência, nas pedras.
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GRAPHIC NOVEL Um olhar sobre as revoluções
A morte e a morte de Frei Caneca apresenta o lado mais sórdido da repressão aos revolucionários de 1817 e 1824, em páginas de predominantes tons escuros
REPRODUÇÃO
TEXO Germano Rabello
Leitura Entre as figuras mais emblemáticas da história do Brasil no século 19, Frei Joaquim do Amor Divino Rabello Caneca foi um intelectual, propagador de teorias avançadas para seu tempo, participante ativo de várias lutas contra o absolutismo, em especial a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1824); também pioneiro da imprensa, através do periódico Typhis Pernambucano. Ligado à ordem carmelita, do Convento de Nossa Senhora do Carmo, transgrediu a tradicional complacência da igreja
com os poderosos. Tudo isso no curto intervalo de 1779 a 1825, quando morreu com apenas 46 anos. Quase 300 anos depois, essa narrativa ganha as páginas dos quadrinhos, na graphic novel A morte e a morte de Frei Caneca (Tomo I: filhos de Marte), um casamento da pesquisa histórica e da liberdade poética da ficção, como é deixado claro em sua nota introdutória. O projeto foi idealizado pelo roteirista e historiador Rodrigo Acioli Peixoto. O envolvimento com a época retratada vem de sua dissertação de mestrado na
UFPE, sobre os primórdios da imprensa pernambucana. A arte é elaborada por vários desenhistas, lembrando o caráter coletivo das revoluções: Diogo Luna, Tiago Acioli, Mateus Samico, Luiz Ribeiro, Élio Borba, Pamella Araújo, Philippe Razeira, Raoni Assis, Toni Braga e o próprio Rodrigo. Ao longo de suas páginas, a HQ não se furta em mostrar o lado mais sórdido da repressão aos revolucionários, o desespero da prisão, o medo da morte. Aliás, nas páginas predominam tons escuros, é um quadrinho dark: guardadas
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INDICAÇÕES as devidas proporções, lembra Do inferno, a ficção histórica sobre Jack, o Estripador, feita por Alan Moore e Eddie Campbell, que mostra as ruas sombrias de Londres na era vitoriana. A narrativa começa com a morte de Caneca, fuzilado por suas tentativas de revolução, e, ao invés de enterrado, emparedado no interior da Igreja do Carmo. Até depois de sua morte, temia-se que o corpo sofresse retaliações. Então, o roteiro retrocede e acompanha suas horas finais, para depois chegar aos eventos de 1817, e a posterior permanência humilhante na prisão, que alquebrou Caneca e seus companheiros, entre eles, as figuras históricas de Pedroso e Gervásio Pires. Surge o jornalista Cipriano Barata, como visitante ocasional, trazendo novas esperanças e notícias do mundo ao grupo que se encontrava preso. Graças a esse alento, “a Habitação das Trevas se transformou em Asilo de Luz”, e a cadeia foi transformada em espaço de aprendizado. Caneca manifesta novamente sua paixão pela geometria, que ensinou quando estava liberto.
NÍVEIS DIFERENTES
A ideia inicial seria resumir os eventos de sua vida num volume único. No processo, esse livro deu conta apenas do período até 1821, quando, após a libertação, o grupo volta a lutar contra a tirania. Com esse tomo realizado sob o financiamento da Lei de Incentivo – Funcultura, o próximo estará sujeito a uma espera em busca de novos apoios. O lançamento contou com o know-how da Livrinho de Papel Finíssimo, editora atípica que se dedica ao trabalho de incentivar e dar um tratamento gráfico adequado aos novos talentos.
A dificuldade de se produzir uma graphic novel foi sentida pelos autores, marinheiros de primeira viagem nesse tipo de empreitada. O leitor, que se emociona e se envolve com a história, pode notar a qualidade irregular de sua produção. A arte, por ser feita a várias mãos, tem níveis diferentes. Alterna momentos muito expressivos e alguns deslizes. A principal deficiência é a falta de clareza. O mesmo personagem pode ter dois rostos diferentes na mão de dois desenhistas; certas cenas tem arte-finalização confusa, em que o cenário é difícil de ser identificado. Tipo de coisa que leva o leitor a se perguntar o que está acontecendo, que situação é aquela, onde estão os personagens. Se a prática leva à perfeição, é bom levarmos em conta que a produção de HQs no Recife ainda é incipiente, em termos de mercado, principalmente quando se fala de narrativas longas. Nas curtas, temos vários exemplos excelentes, entre eles a Ragu, antologia que congrega artistas pernambucanos, brasileiros e estrangeiros. Ainda é muito raro no Nordeste o aparecimento de uma graphic novel, ou seja, um álbum de quadrinhos contando uma única histórica ou histórias tematicamente ligadas. A produção brasileira desses álbuns de quadrinhos vai bem, obrigado, com fluxo constante nas livrarias. Mas, em nosso cenário, que tem excelentes profissionais de ilustração e quadrinhos, o mercado é ainda imaturo, inclusive pela grande concentração das editoras no Sul/Sudeste. A morte e a morte de Frei Caneca surge como uma exceção a essa regra.
CONTO
OSMAN LINS Domingo de Páscoa Editora UFSC
ROMANCE
JOHN BANVILLE Luz antiga Globo Livros
O conto ocupa 17 das 176 páginas deste volume, mas é acompanhado de traduções para o espanhol e inglês, de apresentações, comentários. Inédito em livro, sua primeira edição se deu em 1977, na revista Status (nº 47), meses antes da morte do autor. A obra, organizada por Ana Luiza Andrade, é uma reflexão sobre a solidão.
O 17º romance da carreira do irlandês John Banville é o terceiro desse autor que chega às livrarias brasileiras, depois de O mar e Eclipse. Nesta obra, ele narra o processo de decadência do personagem Alexander Cleave, que se agarra às memórias para lidar com fantasmas nada dóceis – como o suicídio da filha – e a ansiedade quanto ao próprio fim.
ANTOLOGIA
ROMANCE
JULIO MENDONÇA (ORG.) Poesia (im)popular brasileira Lamparina Luminosa
Antologia com foco na poesia que passa longe dos brasileiros canônicos. Podemos dizer que alguns dos nomes já não nos parecem tão marginais ou deslocados da tradição literária. Outros, no entanto, devem soar pouquíssimo familiares para grande parte dos leitores.
FERNANDO DE MENDONÇA Um detalhe em H Grupo Paés
Na apresentação, Lourival Holanda pondera: “O leitor pode ficar perdido pela adjetivação ou pelo movimento quase circular da narração de Fernando Mendonça: essa forma desestabilizadora do narrar é já sinal de outra sensibilidade face ao mundo”. O autor diz ter levado cinco anos para escrevê-lo e mais cinco para tirá-lo da gaveta.
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Claquete 1
DOCUMENTÁRIO Cinema como forma de escrita O cineasta Eduardo Montes-Bradley vasculha nos livros uma maneira de explicar o Brasil e o ser humano TEXTO Clarissa Macau
“Eu não me sinto filmando os documentários, mas escrevendo com a câmera. Quero humanizar experiências, sejam elas livros, a medicina, ou a política”. A declaração é de um cineasta que, profundamente marcado por política e arte, decidiu juntá-las a fim de explorar a natureza humana e seus contextos. No melhor estilo façavocê-mesmo, o argentino, também biógrafo e jornalista, Eduardo Montes-Bradley peregrina desde os 15 anos em torno de projetos cinematográficos. Embora pouco comentado, é dono de um currículo de 74 produções e, atualmente, aventura-se pelo mundo da literatura contemporânea brasileira. Nesse
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universo, o diretor percebe a “origem dos melhores livros do futuro”. Em 1976, a Argentina era vítima da ditadura militar, o que estimulou o cineasta, então exilado, a criar filmes contemplando os direitos humanos. Morando nos Estados Unidos desde aquela década, realizou documentários sobre vários intelectuais. “Em hipótese, eu acredito que o diretor Woody Allen poderia ajudar a visualizar a classe média judaica de Manhattan nos anos 1970, assim como a família dos Médici ajudaria a compreender a cidade de Florença no século 15”, defende. Pintores, poetas, escritores, políticos, ativistas já foram retratados sob facetas desconhecidas diante da sua câmera. Entre eles, o
guerrilheiro Che Guevara, o escritor Julio Cortázar e a primeira-dama Evita Perón, exemplos de argentinos que serviram a uma “biópsia” da vida cultural e social do país. Hoje, Montes-Bradley volta suas lentes para escritores brasileiros, no projeto Writers made in Brazil, no qual produz esquetes biográficas que prestigiam intimamente os autores, um a um: a carioca Adriana Lisboa, o cearense Ronaldo Correia de Brito, a chilena radicada no país Carola Saavedra, o mineiro Luiz Rufatto e o amazonense Milton Hatoum. Os filmes serão oferecidos a universidades e bibliotecas de todo o mundo em janeiro de 2014, pela distribuidora Alexander Street Press e pela sua produtora, a Heritage Film Project. Na composição de seus documentários, Montes-Bradley segue sem roteiro prévio, apenas munido de câmeras, microfones, baterias e um computador, além de um amigo, o assistente Max Gordon. O principal método para a construção dos filmes é sua sensibilidade como diretor e a interação com o entrevistado. “Eu navego através do diálogo, espero conseguir acessar a alma do tema que escolhi.”
DIÁSPORA MODERNA
A relação com o Brasil é antiga. Eduardo é fã dos filmes Orfeu negro (1959) e Central do Brasil (1997). Como cineasta, viajou pelos bastidores do samba e do carnaval do Rio de Janeiro,
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CAROLA SAAVEDRA Filme com a escritora chilena foi realizado a partir de seu livro Flores azuis, no Rio de Janeiro e em Berlim
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BASTIDOR Eduardo Montes-Bradley com Ronaldo Correia de Brito, durante captação para documentário sobre o escritor
no documentário Samba on your feet (2005). Na literatura nacional, quem o despertou foi Azul-corvo, romance de Adriana Lisboa. O diretor se identificou com a diáspora moderna vivida pela protagonista Evangelina.“O enredo lembra meu próprio exílio. A praia de Copacabana, na história dela, é como se fosse minha cidade de origem, Buenos Aires. O estado americano do Colorado, da pesonagem, é meu mundo pósexílio. É interessante perceber a relação da ideia de origem e destino”. O resultado do encontro com a escritora foi um belíssimo poema visual de 26 minutos, ambientado no clima frio das montanhas americanas coloradenses, apresentando os contextos históricos de dois países e do encontro do ser humano com o “outro”. “No meu caso, sempre posso transformar a saudade em literatura”, expressa a personagem Adriana, numa cena. O filme Lisboa está disponível na íntegra, no site da Continente. Processo de aproximação semelhante ocorreu entre MontesBradley e Ronaldo Correia de Brito. No apartamento recifense do escritor, eles conversaram sobre as inspirações socioculturais do conto Homens atravessando pontes. “A escrita
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país, como Carlos Ocantos-Ziegler, o primeiro argentino a escrever sobre o Rio de Janeiro, ainda no século 19. CONTINENTE A sua concepção de como filmar um documentário mudou do seu primeiro filme até hoje? EDUARDO MONTES-BRADLEY A tecnologia e a forma de entender as audiências mudou. A TV é cheia de shows de realidade. Documentário é drama ao vivo, está em todo canto. Os formatos tradicionais de filmar estão mortos, como a Alemanha Oriental.
Claquete Entrevista
EDUARDO MONTES-BRADLEY “O INTELECTUAL PERFEITO NÃO EXISTE” Eduardo Montes-Bradley, ao longo
de mais de 40 anos de carreira, criou a própria maneira de filmar. Desempenha as funções de jornalista e biógrafo.“É impossível separar os papéis”, diz. Entre as obras de sua autoria estão a biografia Cortázar sem barba, sobre o escritor argentino que também é protagonista de um de seus documentários - e a antologia de contos Água no terceiro milênio. Nesta conversa com a Continente, ele revela aversão à canonização de estrelas da literatura e conta como se deu sua aproximação com o Brasil. “Não trabalho com escritores com um olhar cego de um fã incondicional”, afirma. CONTINENTE De onde surgiu o interesse pelo Brasil? EDUARDO MONTES-BRADLEY Está no meu DNA social. Meu pai morou aqui, em 1954, num intercâmbio no bairro carioca de Laranjeiras. Muitos parentes meus moraram no
CONTINENTE No seu filme Cortázar: apuntes para un documental, há visões positivas e negativas acerca do escritor. Não é solene. Existe algum autor a respeito do qual você se posiciona como fã incondicional? EDUARDO MONTES-BRADLEY Não trabalho com nenhum personagem sob o olhar cego de fã incondicional. Esse tipo de intelectual perfeito não existe. Eu amo contradições. Aprecio encontrar livros que não leio porque não foram escritos para mim. Confie no que diz o escritor Luis Borges: se você lê um livro e não gosta, não leia. Se for Don Quixote, que seja! Literatura deve ser prazer. CONTINENTE Há um estranhamento entre a literatura hispano-americana e a brasileira? EDUARDO MONTES-BRADLEY Não creio em irmandade. A multiplicidade de idiomas está em constante tensão. Existe mais distância entre o espanhol falado na região do noroeste da Argentina e uma pessoa no sul da Espanha, como no espanhol falado em Chiapas e em Bogotá. Posso ter mais em comum com um poeta dos Balcãs do que com um poeta da Guatemala. Idiomas são únicos. CONTINENTE Qual a diferença entre a literatura argentina e a literatura brasileira? EDUARDO MONTES-BRADLEY A literatura argentina já foi bastante influente. Hoje é praticamente restrita a Buenos Aires. A brasileira é mais diversificada, é de onde os melhores títulos estão saindo. A primeira está derretendo, aparentemente estagnada. A segunda está envolvendo.
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dele me lembra a de Edgar Allan Poe. Gosto de como descreve o caminho que percorre pelo Recife, a aura imaginativa. A cidade como uma Amsterdã tropical. Gravamos sobre a vida de Ronaldo no interior do Ceará e na capital pernambucana.” O diretor retorna em novembro ao Brasil, para filmar as últimas cenas do filme Correia de Brito, no município cearense de Saboeiro, cidade de nascimento do autor. A partir do seu livro Flores azuis, no documentário que protagoniza, Carola Saavedra analisa o bem e o mal humanos. Entre uma casa escura em Berlim e a praia do Rio de Janeiro, a autora lê “porque não há nada mais perigoso do que tentar ser bom. A certeza de que na bondade residem os maiores delitos, as maiores injustiças”. Os efeitos são únicos. A câmera sai vasculhando entre luzes, trechos de livros e a relação invisível, mas sempre presente, entre o diretor e o escritor. É como uma conversa pacata cheia de insights, acolhida por um olho fotográfico que aproveita as ocasiões memoráveis do espontâneo.
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INDICAÇÕES DRAMA
FICÇÃO CIENTÍFICA
Direção de Xavier Dolan Com Melvil Poupaud, Suzanne Clément, Nathalie Baye
Direção de Ducan Jones Com Sam Rockwell, Kevin Spacey, Kaya Scodelario
LAURENCE ANYWAYS
Os livros Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, e Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, são considerados por MontesBradley como dois dos melhores romances que já leu. Os documentários, ainda em fase de produção, trazem perspectivas tanto dos lugares de onde os escritores cresceram quanto de suas visões pessoais sobre o mundo. Ambos, Ruffato e Hatoum, são migrantes em São Paulo: o primeiro, mineiro, o segundo, manauara. “O foco da minha filmografia não é literatura, nem o escritor. Esse é o gancho para mergulhar na cultura. Estou mais interessado nas circunstâncias que cercam o homem atrás dos escritos de Correia de Brito, por exemplo, do que nos seus trabalhos os quais eu
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LUNAR
Laurence é um professor universitário que vive com sua namorada, Fred. O romance sofre um abalo quando, no aniversário de 30 anos, ele revela a necessidade de virar o que realmente sente: uma mulher. A crônica cinematográfica, que flerta com a linguagem de documentário e tem passagens líricas, explora o mote do amor impossível por um viés atual. Dolan retrata as dificuldades do casal, durante os anos de 1980 e 1990, em face ao preconceito da sociedade contra os transexuais.
Com a função de extrair da Lua uma substância que renova as energias da Terra, o astronauta Sam Bell terá que ficar três anos numa base lunar. Ele é o único tripulante, acompanhado apenas do computador Gerty. Um acidente acontece e Sam começa a delirar. A partir daí, a verdade e o delírio são confundidos na cabeça do protagonista e do espectador. A produção inglesa, estreia do filho de David Bowie, investe mais em argumentos filosóficos do que em efeitos especiais.
COMÉDIA
DRAMA
ADRIANA LISBOA A leitura dessa autora desencadeou o interesse do cineasta pela literatura brasileira
acredito devam ser o foco da crítica literária”, adianta Eduardo Montes-Bradley, para quem não existe forma certa ou errada de explorar a experiência humana, mas “só resultados inigualáveis”. Além dos autores brasileiros, o diretor está finalizando um longa sobre a poeta ganhadora do Prêmio Pulitzer, Rita Dove, e a relação delicada – em meados dos anos 1960 – entre negros e brancos nos EUA. Ao refletir sobre sua intenção, Montes-Bradley afirma: “Não procuro popularidade. O que espero é saber que, algum dia, seus netos e os meus poderão conhecer, através dos olhos de certos personagens, como foram os dias vividos hoje.”
VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA!
Direção de Alain Resnais Com Sabine Azéma, Lambert Wilson, Jean-Noël Brouté
Em um testamento, o dramaturgo falecido Antoine convoca atores para encenar diferentes versões da peça trágica que costumava dirigir: Eurídice. Neste filme do francês Resnais, observamos as diferentes possibilidades que uma história pode incorporar diante de gerações do passado e do presente. Os textos são sobrepostos uns aos outros, enfatizando a tragédia e, ao mesmo tempo, a possibilidade de reunir as influências em um só espetáculo.
NO
Direção de Pablo Larraín Com Gael Garcia Bernal, Marcial Tagle, Diego Muñoz
Em 1988, o ditador chileno Augusto Pinochet estava sob pressão internacional. René Saavedra, personagem interpretado por Garcia Bernal, é um publicitário que, contratado pela oposição, planeja uma campanha de derrubada do regime do político. Abordando de maneira original o tema da ditadura na América Latina, Pablo Larrain coloca em debate a questão do partidarismo. O tom nostálgico e emocional do filme é intensificado pelo recurso de câmeras usadas em reportagens da época.
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Kleber Mendonça Filho CRÍTICO E CINEASTA
CINEMASCÓPIO
TRENS
Em julho de 1991, fui ao MoMA, o Museu de Arte Moderna em Nova York, que estava com uma temporada dedicada à presença do trem no cinema: Junction and journey: train and cinema. Três meses de filmes sobre o tema e uma exposição que nunca esqueci. Me fez pensar que, em grande parte, o trem não faz parte da vida brasileira. Só consegui lembrar uma única viagem de trem feita em Pernambuco, em 1979, da Estação Central, no Recife, até o Cabo, com meu irmão Múcio e Kleber pai. Durante a viagem, levei um tapa feio de um galho de árvore. Eu estava com a cabeça na janela do vagão, olhando a paisagem passar feito um cachorro com a língua de fora. No último mês de junho, lembrei outra vez aquela exposição no MoMA e do passeio até o Cabo. Na ocasião, fui ver Itália x Japão na nova Arena Pernambuco, durante a Copa das Confederações. O Japão jogou lindo e perdeu para uma Itália assustada. Fui de trem. Trens são estruturas fascinantes e extremamente fotogênicas. São personagens cinematográficos, veículos
de mistério e romantismo, uma máquina que chega e sai de estações elaboradas, templos do passado, como a Estação Central armada com ferro inglês, no Recife, na segunda metade do século 19. Hitchcock imprimiu muito cinema em trens. Pacto sinistro (Strangers on a train, 1951) existe a partir de uma conversa prosaica num trem. Cary Grant e Eva Marie Saint, num vagão-leito rumo a Nova York, em Intriga internacional (North by Northwest, 1959), caem na cama beijando-se e o safado do Hitch corta para o trem entrando num túnel. Erótico. A ação de expectativas de Trens estritamente vigiados (Ostre sledované vlaky, 1966), do tcheco Jiri Menzel, o trem como instrumento de conquista do Oeste no cinema americano de incontáveis westerns (Matar ou morrer, para citar um), o trem como alegoria para a morte via nazismo na Europa da 2ª Guerra, o trem da intriga e da ação em Missão impossível (1996), de Brian de Palma. Esses filmes retratam o cerimonial das vias férreas, com uma identidade sonora muito específica de ferro com ferro, de portas que abrem e batem, de horário marcado e relógios bem-posicionados
na plataforma, instrumentos de tensão no cinema e na vida real. Tomando aquele trem recifense em junho, pensei que, de fato, a relação do brasileiro com o trem existe em subúrbios de grandes cidades. É a nossa nota de rodapé social para esse transporte. Nossos metrôs de superfície terminam refletindo nos seus vagões um racha social e racial dramático. Pelo jeito, isso é moldado por uma cultura que vê no carro um indicador de ascensão social e saúde econômica do estado, o que talvez leve a uma falta de investimento no transporte público, como o trem. No metrô de superfície pernambucano também há uma extraordinária divisão de classe, ditada pela pobreza dos bairros por onde as composições passam. As rotas tomadas por empresas de ônibus movidos a diesel e pneu (servindo diretamente bairros de classe média como Boa Viagem, Casa Forte ou Graças) contrastam com as rotas tomadas pelo trem suburbano (bairros e comunidades como Afogados, Estância e Jaboatão).
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REPRODUÇÃO
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Também não há no Brasil o trem como ligação interestadual ou inter-regional, uma não alternativa ao avião e ao ônibus. Pegar o trem noturno Recife-Salvador, ou Belo Horizonte-Rio de Janeiro, não é uma opção hoje. Não há a possibilidade de um romance de trem no Brasil, um thriller férreo no nosso cinema. No cinema brasileiro recente, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, utilizou a estação carioca como encruzilhada humana proletária de todo um país, mantendo ao mínimo a ação cinematográfica a bordo de vagões. Ao tomar a estrada, a única opção é diesel e pneu de borracha. No pernambucano Amigos de risco (2008), de Daniel Bandeira, temos o metrô recifense como última oportunidade de redenção na madrugada para personagens da classe mais baixa. De repente, me vi naquele mesmo trem de subúrbio visto em Amigos de risco. Ficou a sensação de que os preparativos para a Copa de 2014 obrigam o Brasil a falar uma língua que o país ainda não aprendeu: a língua do trem. Da noite para o dia, no Recife, o trem é valorizado por ordens da Fifa,
do governo estadual, governo federal, prefeituras etc., por causa de uma arena europeia que parece ter aterrissado temporariamente em São Lourenço da Mata para a Copa do Mundo. O texto de apresentação de Junction and journey: train and cinema, no MoMA, dizia, “trens são cenário e metáfora”. A viagem de 35 minutos no último mês
Esses filmes retratam o cerimonial das vias férreas, com uma identidade sonora muito específica de ferro com ferro de junho, entre a Estação Central e São Lourenço da Mata (Estação Cosme e Damião) foi tanto um cenário quanto uma viagem metafórica. O vagão lotado havia ficado embranquecido socialmente naquela tarde, com olhares curiosos dos usuários comuns. Eles pareciam dizer “bem-vindos ao metrô”. Os novos
PACTO SINISTRO Assim como neste longa de 1951, de Hitchcock, muitos filmes utilizam trens como “cenário e metáfora”
usuários tinham óculos Ray Ban, iPhones e Galaxy Notes. Parecia estar acontecendo uma experiência social pontual e ausente da rotina da cidade. É como se etapas de desenvolvimento social tivessem sido puladas para chegar até ali. A viagem revelava camadas de comportamento só expostas por causa de um evento internacional que obriga a adoção de costumes estrangeiros transplantados para o Recife precário da realidade. Isso ficou muito claro quando o vagão cruzou a Favela do Coque e depois as entranhas de Afogados e da Estância. Ficou muito claro nos arredores e dentro do estádio padrão Fifa. No trem, sentado ao lado da janela, passava um Recife que um certo Recife não enxerga nunca, um pouco como tomar um barco no Rio Capibaribe e ver a cidade de dentro para fora, como no filme de Kátia Mesel, feito em 1997. O Rio Capibaribe é apenas um rio que a cidade não quer ver de dentro, e isso gera um desconhecimento de outros Recifes. A descoberta da cidade de dentro do trem parece ter sido um aprendizado para alguns, e uma vergonha para outros. Foi aí que ouvi uma sugestão espetacular de direção de arte aplicada à cidade, um pouco teatro, mas talvez mais ainda cinema, e com o olhar estrangeiro em mente: “Vão colocar tapumes para os gringos não verem essas favelas?”. O autor da proposta era um homem com esposa e dois filhos. Eles podem ter gasto mais de R$ 500 para ver um jogo de futebol e tomar um trem suburbano pernambucano.
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JUVENIL SILVA/DIVULGAÇÃO
Sonoras
DMINGUS Como um álbum de fotos
Terceiro disco do pernambucano, Fricção, produzido em estúdio doméstico, revela interesse pela música eletrônica e exterioriza sentimentos e visões de mundo do autor TEXTO Marina Suassuna
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Atualmente ligado à cena independente do Recife, que tem como palavra-chave o desbunde, ele dispõe de um estúdio doméstico, batizado de Pé de Cachimbo Records (assim como o seu selo virtual), que fica na despensa do apartamento onde mora. Ali é o “templo” em que DMingus, como é conhecido no meio artístico, realiza sessões de criação musical. Fricção é um conjunto complexo, tratá-lo como um “álbum” pode ser reducionista, já que transcende o simples registro, exteriorizando emoções e vivências de seu criador. A começar pela musicalidade do CD, com referências nos anos 1980, quando DMingus recebeu influência da música eletrônica. Pequenino, com cinco ou seis anos, foi pego pelo som da banda alemã Kraftwerk, com a música Hall of mirrors, trilha do comercial de sapatos Starsax para a TV.
Ligado à cena independente, neste CD, DMingus discute inadaptação, busca espiritual e hedonismo
“Acho que chamam discos de
álbuns porque eles têm esse aspecto de marcarem períodos de tempo. E para quem os cria, a coisa ganha uma densidade que dificilmente um álbum de fotografias teria.” A reflexão de Domingos Sávio sobre seu ofício torna-se uma pista rica do conteúdo de seu mais novo trabalho, Fricção. Assim como um álbum de fotografias, o terceiro disco do músico autodidata pernambucano traz um registro do tempo que ele vive.
“Aquilo me marcou muito, mesmo sem fazer ideia do que se tratava e muito menos de como tiravam aquele som. Depois acabei conhecendo outras músicas deles. Era uma fruição ingênua e direta, sem intermediários: eu não sabia o nome da banda, das músicas, pois as escutava em programas de rádio, que gravava em fitas K7”, lembra. Com pouco tempo, bandas como New Order, Depeche Mode, Erasure, When in Rome, Front 242, CCCP, Noel, Stevie B e Afrika Bambaataa entraram na cartilha musical de DMingus por mediação dos amigos da época, que só curtiam esse estilo de música para dançar em festas. “Eu gostava realmente de ouvir aquilo em casa, me causava um sentimento lúdico de querer manipular aqueles sons de alguma forma.” Isso fez com que, desde o seu primeiro disco, Filmes e quadrinhos (2010), DMingus já preconcebesse
uma estética, cuja sonoridade flertasse com gêneros da música eletrônica. Ele também lançou Canções do quarto de trás, em 2012. “Algumas pessoas acharam o Fricção estranho, pelo fato de os meus trabalhos anteriores utilizarem bastante violões e elementos acústicos, mesmo que alguns deles tivessem a sonoridade produzida digitalmente. Mas acho que, no meu primeiro disco, o som eletrônico já está lá, meio diluído com rock psicodélico e outros gêneros, mas está.” A relação que estabeleceu com a música eletrônica na infância traz para Fricção uma sonoridade, que, segundo ele, vai ao encontro da dance music hedonista – a música dançante por puro entretenimento – como se habituou enxergar o gênero popularizado pelo Kraftwerk. Esse contraponto está sob o título do novo trabalho. Para DMingus, a palavra fricção carrega um sentido de contradição que sugere a manipulação dos sons eletrônicos no que eles tem de brincadeira e inocência.
DESCOBERTAS
Observando o disco como um conjunto, notamos a identidade do autor em todas as faixas. Suas experiências pessoais também estão nas letras, codificadas. Podemos encontrar músicas que falam do Recife no final dos anos 1980, “com guris jogando videogame de 8 bits, indo para as primeiras festinhas discotecas”, diz o músico, referindo-se à canção Estroboscópica. “Tem também a sensação robotizada de estar num emprego e em papéis sociais alienantes, como em Autossabotagem”. A voz de DMingus, incompreensível em vários momentos, contribui ainda mais para a atmosfera introspectiva do disco, que também explora temas como experiências psicodélicas, inadaptação social, busca espiritual e hedonismo. Segundo ele, o fato de “disfarçar” a voz natural por trás de sintetizadores foi proposital. “Eu sempre gostei de encarar a voz como mais um instrumento, da letra ser um elemento a ser descoberto e, antes disso, funcionar como um aspecto sonoro, de comunicação mais sensorial do que linguística. Acho que, quando uso efeitos na voz, me sinto menos inseguro, porque deixo claro
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DIVULGAÇÃO
Sonoras com isso que não estou querendo ser um cantor no sentido convencional. Penso que cantar é sempre um processo de autodescoberta. Estou nele, buscando as melhores ferramentas que encontro.” Com baterias eletrônicas programadas no computador, essenciais aos timbres e sonoridades de cada música, Fricção teve as guitarras, baixos e teclados todos gravados por DMingus. “Sei que tem muita gente que pensa que música eletrônica é só apertar um botão, que o computador vai fazer tudo e, por isso, considera submúsica. Claro que tem uns caras acomodados e canastrões na área. Mas acho que não músicos podem fazer música relevante, sim, e existem ferramentas que tornam isso cada vez mais possível.” O que acontece é que o músico incorpora todas as possibilidades de produção e gravação no esquema que ele denomina one man band, ou seja, ele assume, sozinho, todas as etapas de feitura do disco, da préprodução à masterização, criando alternativas diante das limitações materiais e de estrutura, chegando a ser considerado, por isso, o “gênio do estúdio”. Ainda assim, durante os dois meses em que gravou Fricção, contou com a “brodagem” de três camaradas: Marditu, Graxa e Daniel Liberalino. O primeiro, seu parceiro na Monodecks, banda de post rock criada em 2003, tocou percussão na faixa Frágil penugem nos ares gelados, além de ter sido coautor da letra de Eno, uma homenagem
ao cantor e produtor inglês Brian Eno. Mas sua maior contribuição, segundo DMingus, foi na “escuta crítica” das faixas. “Na medida em que eu enviava, ele sugeria caminhos e detectava influências.” Angelo Souza, conhecido como Graxa, começou a tocar com DMingus em 2012, no projeto do músico com a Fantástica Kazoo Orquestra. “Música eletrônica não é muito a vibe dele, mas como estava gravando o próprio disco aqui em casa, aproveitei para ele cantar uma parte de Eno, que tem um tom mais grave, e ficou bem legal.” Já Daniel Liberalino é conhecido de DMingus através de textos e ilustrações que viu em blogs e do projeto musical Varzea Sleep. “É um personagem enigmático, porque eu não o conheço pessoalmente, ele mora no Rio Grande do Norte. Mas, ao mesmo tempo, foi um cara que mostrou uma familiaridade imensa com minha linguagem artística e acrescentou-a bastante, tanto sonoramente, participando de três faixas, quanto plasticamente. A arte gráfica do disco também é dele. Sem falar na contribuição de suas epifanias existenciais durante o processo de confecção do álbum.” Apesar de ser um disco denso, que sugere mil simbolismos e imagens ocultas, Fricção é suave, refletindo, com sensibilidade, os resgates pessoais que formam a personalidade de quem o produziu.“Sempre existirá um nível de expressividade humana até mesmo na música mais robótica que exista, a partir do momento em que alguém organizou sons de alguma forma.”
Emicida e Criolo
O RAP AINDA TOCA A FERIDA Duas das principais vozes do rap nacional da atualidade, e um repertório que não poderia ser mais apropriado para o momento de revolta no país. No entanto, as canções de Emicida e Criolo vêm de muito antes dessa onda de protestos, porque os dois compositores, nascidos em regiões periféricas da cidade de São Paulo, conhecem de perto a rotineira ação truculenta da polícia e o tratamento concedido às classes mais pobres. É marcante, inclusive, o episódio em que Emicida foi preso depois de entoar os duros versos de Dedo na ferida, sobre áreas populares brutalmente desocupadas, num show em Belo Horizonte, no ano passado. Também em 2012, os artistas em questão, aclamados pelo público e pela crítica, subiram juntos ao palco e organizaram a apresentação que originou o recém-lançado Criolo e Emicida ao vivo. Disponível em CD e DVD, a performance combina faixas de Pra quem já mordeu um cachorro por comida até que eu cheguei longe (lançado por Emicida em 2009) e Nó na orelha (o disco que consagrou Criolo, em 2011). Seja nas músicas sutis e dançantes, como Bogotá, ou nas de rima calibrada como Triunfo, a crítica está presente e evidencia o olhar agudo dos poetas das ruas (“E se a maioria de nós partisse pro arrebento?/ A porra do Congresso tava em chama faz tempo/ Eu nasci junto à pobreza que enriquece o enredo/ Eu cresci onde os moleques viram homem mais cedo”). Na lista de participações especiais, estão Rodrigo Campos, Evandro Fióti e o peso pesado do gênero musical, Mano Brown. Este último se junta aos parceiros do rap para cantar dois grandes sucessos do grupo Racionais Mc’s: Capítulo 4, versículo 3 e Vida loka I. GIANNI PAULA DE MELO
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INDICAÇÕES ELETRÔNICA
ROCK
REGGAE
Sony Music/Columbia Records
Selo Disco Maravilha
Independente
DAFT PUNK Random access memories Depois de um jejum de oito anos, a dupla francesa mais famosa da música eletrônica contemporânea volta com novidades na bagagem. Seu 4º álbum de estúdio não traz o peso dos primeiros discos, salvo exceções como Lose yourself to dance e Get lucky, que mais se aproximam da atmosfera setentista das pistas de dança. Longe de se tornar um ponto negativo, a leveza do novo disco sinaliza uma sensibilidade inesperada para os precursores da música de computador, expressada em letras como Touch, ode ao toque humano.
DO AMOR Piracema
Quem esperava por um repertório alegre no segundo disco do quarteto carioca Do Amor, foi pego de surpresa. O clima de zoação do álbum de estreia (2010) deu lugar a um repertório mais sóbrio, com doses de irreverência mais calculadas, mas criativas. Em termos de sonoridade, a aposta ficou na pegada mais roqueira. Cumbias e carimbós, bastante explorados na estreia, ainda aparecem em momentos isolados, como em Undu, Eu vou pra Belém e El cancioneiro. É um disco rico em referências e com canções bastante maturadas.
KIKA CARVALHO Pra viagem Com um pé na música jamaicana e outro em mais vertentes da raíz africana, Kika Carvalho reúne, nessa estreia, um instigante repertório de oito faixas, o suficiente para torná-lo digno de trilha sonora para uma viagem, seja ela interna ou externa. A voz doce da paulista segue por trilhas dançantes, que soam simultaneamente nostálgicas e antenadas com o contemporâneo. Para produzir o CD, ela recorreu a Décio7, baterista do Bixiga 70, e Victor Rice, um bamba no quesito dubwise. Sai da frente e Singing along são os melhores momentos.
MPB
LÍVIA NESTROVSKI E FRED FERREIRA Duo Independente/Distribuidora Tratore
Normalmente, espera-se pouco de um disco que relê clássicos do cancioneiro popular. A expectativa é que, no mínimo, haja um diferencial na interpretação. O casal Lívia Nestrovski e Fred Ferreira seguiu esse caminho. Neste álbum de estreia, a voz de Lívia, com formação em canto popular, e a guitarra de Fred reconfiguram canções como Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Estrada do sol, de Tom e Vinícius, e Jogral, de Djavan. O resultado arrojado reforça a atemporalidade das canções.
A outra Minas
MAKELY, KRISTOFF E PABLO CASTRO EM NOVOS TRABALHOS
Quando anunciou o show comemorativo dos 10 anos do CD A outra cidade, em sua página no Facebook, Makely Ka o classificou como um álbum “muito comentado e pouco ouvido”. A definição pode soar um pouco ácida, mas não parece equivocada. Na ocasião do lançamento do disco encabeçado por Makely,
Kristoff Silva e Pablo Castro, os críticos de música, sobretudo os do Sudeste do país, deram uma atenção acolhedora ao que surgia em Belo Horizonte naquele momento. No entanto, tratou-se de um holofote fugaz e pouco se falou dos desdobramentos da carreira desses músicos, que hoje dividem composições e
gravações com artistas como Ná Ozzetti, Zé Miguel Wisnik, Mônica Salmaso, Luiz Tatit, entre outros. O projeto evidenciou a existência de uma nova geração criativa na capital mineira, ofuscada pela tradição musical potente daquele estado, como o atemporal Clube da Esquina. A intenção do que ficou conhecido na época como “CD manifesto” não era instituir uma ruptura ou a ideia de que a cidade estivesse passando por um momento fonográfico revolucionário. Com pretensões bem mais simples, de mostrar a qualidade dos cancionistas, intérpretes e instrumentistas contemporâneos, o trio convocou mais de 40 profissionais para se envolver com as gravações e aglutinar seus interesses pela música popular, erudita e eletrônica. Entre eles, Marina Machado, Regina Spósito, Alda Rezende, Flávio Henrique, Juliana Aragão, Titane, Rosa Souki e Maísa Moura.
A experiência coletiva e a versatilidade caracterizam essa produção, que combina um enorme leque de instrumentos nos arranjos: desde violão e piano até cabaça, marimba, berimbau, ilu e gonguê, passando por fagote, clarinete, flautas, trompa e trompete. Curiosamente, no mesmo ano em que A outra cidade completa uma década, os três idealizadores da obra levam ao público novos trabalhos autorais. Anterior, de Pablo Castro, foi lançado no mês de abril; Deriva, de Kristoff Silva, saiu em maio; e Cavalo motor, de Makely Ka, chega às lojas neste mês de agosto. Mais curioso ainda: o departamento de estudos brasileiros da King’s College London, na Inglaterra, convidou-os, no ano passado, para a programação do evento Minas – heart of Brazil. Enquanto isso, no próprio país, eles passam quase despercebidos. (Gianni Paula de Melo)
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OFÍCIO Cozinheiro se faz na cozinha
Para além da formação acadêmica, sete profissionais do setor comprovam a tese de que o ofício pede, antes de tudo, bastidor TEXTO Eduardo Sena FOTOS Helder Tavares
Guru heterodoxo da gastronomia mundial, o über chef norte-americano Anthony Bourdain, no livro Cozinha confidencial, questiona: “Quem é que prepara a comida que você come? Que estranhas feras são essas que se escondem por trás das portas da cozinha? Você conhece o chef. Mas quem está, de fato, fazendo a sua comida? Seriam jovens recém-formados de alma ambiciosa labutando na linha de produção até conseguir agarrar o grande emprego? Provavelmente, não. Se o chef for meio parecido comigo, os cozinheiros serão um bando de mercenários desajustados, marginais motivados por dinheiro, pelo estilo de vida peculiar que levamos e por um orgulho feroz”.
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COZINHA Os profissionais do Wiella Bistrô foram formados no próprio restaurante
de um ‘e’ no final, o detentor de tal qualificação é aquele que tem voz de comando sobre a brigada da cozinha”, diferencia o jornalista especializado no setor, Bruno Albertim. Como bem se vê, um chefe é inútil sem seus cozinheiros, e esses sem um bom superior são uma manada descontrolada. “A última coisa que quero é um cozinheiro inovador, que possa atrapalhar as receitas previstas nas fichas técnicas”, opina Claudemir Barros. Aliás, foi ele mesmo quem, depois de experiência desastrosa com estagiário oriundo de faculdade, determinou que não aceitaria mais nenhum com essa qualificação para trabalhar na casa. Percebeu que cozinheiro pode ser formado de outra maneira. “Deixei de dar estágio para preparar equipes e mão de obra para os novos chefes que estão por vir. E isso é mais difícil do que se imagina. Eles precisam ter uma lealdade cega, quase fanática, uma consistência rígida. O mercado precisa de gente que execute seus pratos sob condições de batalha”, sublinha.
DEGRAUS
A diretriz de recursos humanos do cozinheiro estadunidense parece ter feito escola no Wiella Bistrô, cuja cozinha é comandada pelo chef Claudemir Barros. Por lá, a equipe de cozinheiros é formada por Paulo Calixto, Antônio Melo, Sidney da Cruz, Israel Francisco, Erivaldo Rodrigues, Edjano Ramos e Antônio Ferreira. Além de trabalharem no mesmo local, têm em comum o fato de a profissão ter se imposto na vida deles. Trabalhar na área não foi escolha, foi necessidade circunstancial levada adiante. Diferentemente de toda uma geração seduzida por um falso glamour temperado, antes de serem apresentados às panelas, os sete profissionais nunca pensaram em ter na carteira de trabalho o termo “chef de cozinha”, quiçá cozinheiro, como ofício.
Por isso mesmo, a formação deles foi feita dentro da cozinha do próprio restaurante. Tudo o que sabem foi absorvido lá dentro. Nunca frequentaram escolas, faculdades e afins. E, pelo carimbo ilibado de alta gastronomia que o Wiella apresenta, diplomas não parecem fazer a diferença. Essa escolha (com cara de tiro no escuro) feita por Claudemir é esteira para uma polêmica que há tempos ganha corpo entre os profissionais da área. Afinal, o que diferencia um cozinheiro de um chef? “A grosso modo, poderíamos dizer que todo chef é um cozinheiro, ou pelo menos deveria sê-lo, mas nem todo cozinheiro é chef. Isso porque, como o próprio nome indica, em francês, ou em português com o simples acréscimo
Quando o atual subchef da casa, Paulo Calixto, 33 anos, entrou no Wiella, há 10 anos (data de fundação do restaurante), era um ex-servente de construção civil. Trabalhou na reforma da casa que iria abrir por três meses. Com a obra concluída, recebeu um convite do gerente para fazer parte da equipe de cozinha. Aceitou de prontidão. Começou como stuart – função que engloba a lavagem de pratos, limpeza da cozinha e o recebimento e higienização dos insumos. Depois de dois meses, foi promovido a auxiliar de cozinha. “Tive medo de não dar certo. Foi o maior desafio da minha vida. Imagine: uma pessoa que colava tijolos com cimento ajudar na construção de pratos de um restaurante refinado. Mas pensei e aceitei, nunca imaginaria o que viria pela frente”, conta. Três anos se passaram e, mais tarimbado, Paulinho (como é conhecido) passou a ocupar o posto de cozinheiro. Nessa época, já conhecia ingredientes que nunca antes teve notícias. “Uma vez, me mandaram comprar abobrinha. Fui ao supermercado aqui perto e voltei com miniabóboras”, lembra. Há três anos é o subchef. Mais
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do que isso, na prática, ele é o nome responsável pela cozinha quando o chefe está ausente. Atualmente, não pensa em fazer outra coisa que não seja o que desempenha no momento. Quem também saiu das obras para as panelas foi o “tagarela” Sidney da Cruz. Era ajudante de pedreiro e, por meio de contato de um amigo, garçom da casa, conseguiu uma vaga de stuart. Passados cinco meses, foi convidado para ser auxiliar de cozinha, e o medo de encarar a profissão mais de perto bateu. “Se teve algo que mudou em mim foi a delicadeza. Tive que aprender a ser mais delicado. Na pia, observava os pratos saírem e percebia a quantidade de detalhes de montagem, finalização e decoração. Jamais imaginava que tinha
Antes de serem apresentados às panelas, os sete nunca pensaram em encontrar na cozinha um ofício vocação para isso. E foi o que pesou na hora de dizer sim. Quase que deixei tudo para trás”, constata. Com o incentivo da esposa, decidiu ir adiante. O sinal verde para fazer o que mais temia: riscar pratos. “Riscar é passar os molhos da finalização do prato na louça. Treinei como um atleta, para não fazer feio quando a obrigação
chamasse. Eu sabia que estava em um dos melhores restaurantes da cidade e era alvo de uma confiança que nunca tive antes ”, afiança o rapaz de 22 anos, que só estudou até a 6ª série, já foi ajudante de pedreiro, músico em banda de pagode, e hoje pode falar com orgulho que sabe “riscar um prato”. Sidney pretende seguir carreira na área. “Quero ser chapeiro, ficar na chapa, assando as carnes. Parte que acho difícil, são vários os tipos de ponto das proteínas”, fala com a propriedade de quem sabe que cozinha está mais para trincheira militar que para glamour madrugada afora. E foi em condições militarizadas que Edjano Ramos – ou apenas Ramos – foi fisgado pela cozinha. Ao ser incorporado ao Exército, ficou responsável pela
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cozinha do quartel. Até então, sua única experiência profissional tinha sido como segurança. Tomou gosto pelos temperos e, antes de chegar ao Wiella, já fez carreira em outros recintos gastronômicos. Hoje, o cozinheiro responsável pela cocção das proteínas do restaurante também tem um pequeno bar especializado em comida regional, em Prazeres, bairro onde mora. Com 43 anos, Antônio Melo, o Pelé, também comanda as panelas da casa. Com apenas a 3ª série do Ensino Fundamental no currículo escolar, tudo o que conseguiu antes disso foi ser segurança, auxiliar de serviços gerais e operador de canhão em fábrica de pipoca. Na cozinha, obteve iniciação em uma lanchonete, montando sanduíches.
Depois, já em um restaurante, foi auxiliar de cozinha. “Não desmerecendo, mas era de cozinha regional, uma coisa mais bruta. Quando vim pra cá, não cheguei como auxiliar, mas como stuart. Fiz questão de compreender essa nova cozinha desde baixo”, conta. Ao ser promovido para a seção de cozinha fria (saladas, molhos e sobremesas), Pelé entrou em pânico. “Como eu ia deixar a salada em pé, como uma rosa? Demorava muito para montar. Hoje dou show!”, conta com orgulho. Igualmente com 43 anos, Israel Francisco também tem o seu amorpróprio na cozinha. “Não há melhor coisa no mundo do que ver o prato voltar limpo. Quando comecei a soltar meus primeiros pratos, não sossegava enquanto ele não voltasse. Queria saber se o cliente gostou. Um prato limpo é mais do que um troféu”, deleita-se.
PANELA
Israel está há três anos e meio no restaurante, antes disso, trabalhou como auxiliar em um escritório de contabilidade. Estava há quatro anos desempregado, quando surgiu uma vaga para auxiliar de cozinha no restaurante. Começou fazendo sucos e auxiliando na seção de cozinha fria. Hoje, é cozinheiro, e orgulha-se disso como o maior feito de sua vida. “Bens materiais não tenho, mas o aprendizado que obtive aqui é o que de maior eu carrego. Mais do que isso, a cozinha me fez renascer e por ela dou tudo. Sei que por trás do meu trabalho existe o nome
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DIVERSIDADE
Israel Francisco, que trabalhava como auxiliar de escritório, Erivaldo Rodrigues, ex-cortador de cana, e Paulo Calixto, que atuou como pedreiro e hoje é subchef, compõem a equipe
da casa e do chef em jogo. E isso é uma responsabilidade muito grande. Minha meta é nunca falhar”, projeta. A cozinha também redesenhou a vida Erivaldo Rodrigues, o Dunga, de 36 anos. Ex-cortador de cana e pedreiro, o homem responsável pelas sobremesas do restaurante chegou à casa para ser stuart. Hoje, quase três anos depois, já se deu conta da habilidade que desenvolveu e diz em tom pragmático: “Se alguma coisa der errada para mim aqui, tenho certeza de que posso fazer um self-service no terraço da minha casa”. O novo cozinheiro, e potencial empresário, mora em Socorro, bairro da parte velha do município de Jaboatão dos Guararapes. De personalidade aparentemente ríspida, Dunga é tão delicado quanto a panna cotta de amora que temia fazer, quando assumiu a parte mais doce do Wiella. “Assim que cheguei, achava o preço do cardápio caro. Hoje, sei o trabalho que dá para fazer e que o valor é mais do que justo. Eu pagaria”, afirma o cozinheiro que cortava cana e que, há três anos, não conhecia azeite, arroz arbóreo, aspargo, brócolis e cogumelos. Dia desses, foi cozinhar em casa para os filhos e ouviu um “Painho, não sabia que você era assim”.
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DEBORAH COLKER Vinte anos em alta velocidade
1 TATYANA O pernambucano Dielson Pessoa se reveza com Deborah no papel do escritor Púchkin
Companhia carioca comemora duas décadas de atividades em turnê nacional, composta dos espetáculos Velox, Nó e Tatyana – este, inédito TEXTO Verônica Fraidenraich
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Turnê 20 anos da Companhia Deborah Colker Teatro Guararapes, Olinda 24 a 31 de agosto
vertical, deslocam-se por entre um emaranhado de cordas suspensas no ar e dançam um balé clássicocontemporâneo, em que travam um duelo com leques e bengalas na mão. “Estamos deslocando 28 profissionais – entre bailarinos, produção e técnicos – e levando três caminhões com 17 toneladas de equipamentos”, enumerou a diretora, que lembrou que a última apresentação da companhia no estado foi em 2010, com 4x4. Inquieta e falante, naquele dia, a diretora carioca estava especialmente agitada. Isso porque fazia 15 dias que a equipe havia chegado de uma viagem pela América Latina (Peru, Colômbia e Equador) e começaria, quatro dias depois, o tour pelo Brasil. Ela precisava ensaiar com o grupo e cuidar dos preparativos da turnê. Na sala em frente ao seu escritório, os bailarinos cumpriam a jornada diária de quase oito horas de trabalho. Entre os 17 profissionais, há paulistas, cariocas, uma mineira, um pernambucano, duas argentinas e um cubano. Eles tinham cara de cansados e, após uma hora e meia de aula, em
“Não adianta definir meu trabalho, pois criei uma linguagem própria, que é só minha” Deborah Colker “Eu adoro o Recife e Olinda – o cheiro, as experiências que tive, as ideias, Chico Science, Cafi (fotógrafo com quem foi casada) e os amigos (cineastas) Lírio Ferreira e Cláudio Assis”, disse a diretora e coreógrafa Deborah Colker, 52 anos, assim que nos encontramos, na sede da companhia que leva o seu nome, no Bairro da Glória, no Rio de Janeiro. Nosso encontro se referia à turnê em comemoração aos 20 anos do grupo, que chega a Pernambuco no fim do mês, depois de passar por cidades como Aracaju, Maceió, Salvador e Belo Horizonte. A companhia apresenta três espetáculos – Velox, Nó e Tatyana. Neles, os bailarinos escalam uma parede
vez de ensaiar para valer, apenas faziam marcações de tempo e espaço. Precisavam refrescar na memória, principalmente, as coreografias Nó e Velox, que há tempo não dançavam. Os cenários já haviam sido despachados, mas ainda estava lá a imponente parede vermelha e azul, de 6,6 m de altura, utilizada em Velox – que em latim significa veloz. A obra criada em 1995 foi o primeiro grande sucesso da companhia e traz referências ao futebol, ao atletismo e às lutas marciais, reforçadas pelo figurino de roupas atléticas. A apresentação dura 58 minutos e não tem intervalo, atingindo o ápice com a escalada da citada parede, localizada ao fundo do palco.
Sincronizados e precisos, os bailarinos saltam, penduram-se e movemse entre os apoios, transformando o risco num espetáculo estético, graças às belas figuras formadas. “No começo, tive medo, mas hoje sou fanática por essa parede. Já caí várias vezes, mas é só ficar calma e manter o controle”, explica a argentina Sheila Fingier, 23 anos, que está há um ano e meio na equipe.
NA BOCA DO POVO
Velox lotou os teatros, atraindo um público até então pouco habituado a assistir a exibições de dança. Por conta disso, Deborah foi considerada um fenômeno de comunicação de massa, que conseguiu popularizar a dança e atingir fama internacional. “Eu coloquei a dança na boca do povo”, costuma repetir ela. Mas houve também críticas que apontaram roteiros previsíveis e pouco sentido nas sequências de movimento propostas. De qualquer modo, a referência aos esportes e mesmo ao circo em espetáculos de grande impacto visual viria a se tornar uma marca no trabalho da companhia. O sucesso de público é garantido e Deborah, reconhecida, tornou-se a primeira artista brasileira a ganhar o prestigiado prêmio britânico de artes cênicas Laurence Olivier, em 2001, por Mix, uma combinação de Velox e Rota, sua primeira produção. Ela também teve a honra de ser convidada, em 2009, para dirigir um espetáculo do grupo canadense Cirque du Soleil, que ganhou o nome de Ovo, ainda inédito no país. Sem falar do mérito da companhia por conseguir manter o patrocínio da Petrobras ao longo desses 18 anos, fato raro no meio artístico nacional. Ao mesmo tempo, a diretora se diz cansada dos rótulos. “Não adianta definir meu trabalho desse ou daquele jeito, pois criei uma linguagem própria, que é só minha”. Deborah lembra que a dança era menosprezada pelo mundo pop. “Minha companhia ajudou as outras a existirem”, afirmou, certa vez, ao jornal Folha de S.Paulo. Hoje, porém, ela não se afeta mais com isso – pelo menos, não mais o dia inteiro. “Eu sigo uma frase do Laurence Olivier que diz que
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uma crítica pode atrapalhar o café da manhã, mas jamais o almoço”. Entre goles de água e café e mordidas em bolachas cream cracker, em pleno horário de almoço, a diretora se derrete ao explicar Nó. “É maravilhoso, tão delicado, bonito, e fala sobre o desejo”. Um total de 120 cordas presas ao alto preenche o palco e serve de apoio para que os bailarinos se enrosquem e libertem-se, chegando a dançar suspensos pelas amarras. A intenção é representar os laços afetivos entre seres humanos. No segundo ato, entra em cena uma enorme caixa vermelha de acrílico transparente, criação de Gringo
Está previsto para outubro o lançamento de um livro sobre os 20 anos da companhia, escrito por Francisco Bosco Cardia, diretor de arte e cenografia, responsável por todos os grandiosos cenários da companhia. Dentro da caixa – inspirada nas vitrines com garotas de programa comuns em Amsterdã, na Holanda –, os bailarinos novamente se enlaçam e desenlaçam,
num jogo constante de atração e repulsão. A sedução, a perversão e os nós são reforçados pelo figurino do estilista Alexandre Herchovitch, que criou collants cor da pele, destacando as zonas erógenas do corpo com faixas e triângulos pretos. Deborah conta que se apresentará no segundo ato de Nó, bem como em Tatyana – ambos com cerca de 70 minutos de duração. Aliás, bastou que tocassem os primeiros acordes clássicos dessa última obra, para que ela pedisse licença e saísse correndo para dançar. Entrou na sala do ensaio, fez a sua parte, deu uns pitacos à equipe e voltou para
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a entrevista, retomando a conversa sobre a sua mais recente criação.
CLÁSSICO RUSSO
Tatyana se baseia num clássico da literatura russa, Evguêni Oniéguin, escrito por Alexander Púchkin (1799-1837), que já inspirou criações de uma ópera, um balé e um filme. A trama conta a história do amor não correspondido de uma moça do campo, Tatyana, pelo sedutor aristocrata Oniéguin. A irmã de Tatyana, Olga, e o seu marido Lenski também fazem parte do enredo. Cada um dos personagens é representado por quatro bailarinos,
sendo que, na segunda parte, são oito Oniéguins e oito Tatyanas. Púchkin também entra em cena, sendo interpretado pela própria Deborah e pelo pernambucano Dielson Pessoa. “A gente tem uma afinidade artística grande, por isso o escolhi para revezar comigo esse papel”, explica a diretora. Dielson está há 10 anos na companhia e se diz ansioso para dançar na terra natal. “Tenho de mostrar o sofrimento e as alegrias que o escritor sente pelos destinos dados aos seus personagens e isso é desafiador.” É a primeira vez que a companhia apresenta uma narrativa com começo meio e fim. Contudo, para acompanhar melhor a história, vale ler o roteiro do programa, que detalha as cenas de cada ato. “Das três peças, essa é a mais trabalhosa para ensaiar, pela sua dinâmica e concentração”, explica Jacqueline Motta, assistente de coreografia do grupo. O balé explora bastante a técnica clássica, com direito a sapatilhas de ponta para as meninas. Na trilha sonora, Berna Ceppas, parceiro musical de Deborah há 18 anos, optou por compositores eruditos – Tchaikovski, Prokófiev, Rachmaninov e Stravinski –, mas incluiu colagens e remixagens de músicas, como a experimental eletrônica do Kraftwerk.
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NÓ
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VELOX
Movimentos que levam a um enroscar e desenroscar constante remetem ao desejo, tema principal do espetáculo Primeiro sucesso da companhia, faz referências ao futebol, ao alpinismo e às lutas marciais
A entrevista chegava ao fim, quando perguntei sobre o fato de algumas profissionais terem sofrido para cortar o cabelo bem curto para dançar Tatyana – a intenção era deixá-las parecidas, para que pudessem representar a mesma personagem. “Elas sempre choram.” A diretora contou sobre o lançamento, previsto para outubro, do livro sobre os 20 anos do seu grupo de dança, escrito por Francisco Bosco; sobre a volta ao carnaval carioca no ano que vem, para cuidar da comissão de frente da Imperatriz; e sobre o próximo espetáculo, cuja produção está a todo vapor. A bela da tarde será baseado no livro do mesmo nome, de Joseph Kessel (1898-1979), autor de família russa de origem judaica, assim como Deborah também o é. Nós nos despedimos e fiquei ali mais um pouco assistindo ao ensaio. Vi trechos de Nó e Tatyana, mas perdi a escalada da parede. Para quem não quer perder nada, só mesmo indo três vezes ao teatro.
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FOTOS: LEANDRO LIMA/DIVULGAÇÃO
De Íris ao arco-íris Teatro Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro, Recife) Até 30 de ago
Palco INFANTIL Um tema delicado
A história de uma lagarta é levada à cena na peça De Íris ao arco-íris, com o intuito de discutir a morte com as crianças TEXTO Leidson Ferraz
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Há quem diga que algumas borboletas sobrevivem apenas 24 horas. Outras conseguem até nove meses de vida. Fato é a curta existência desses insetos, com inúmeros percalços desde o primeiro voo. Há também quem não queira falar sobre a morte com as crianças. Muitos pais e mães preferem omitir tal assunto ou o escamoteiam com um “virou estrela no céu”. O encenador Jorge de Paula encarou o desafio de abordá-lo na peça De Íris ao arco-íris, sobre uma lagarta que se transforma em borboleta e deparase com um fim prematuro. “A morte é algo que se esconde das crianças porque tudo se resume à vida e ao consumo. Há, inclusive, pessoas que têm verdadeira aversão ao tema”,
comenta. Nesse conto de fadas, em cartaz durante este mês no Teatro Marco Camarotti, a morte é tratada de modo a não resultar em tristeza. No enredo, com criação coletiva a partir dos escritos do próprio Jorge de Paula, Íris é uma lagarta que sonha em chegar ao reino encantado. Quando vira borboleta, ela finalmente atravessa o céu, tentando atingir seu destino. No voo, depara-se com nuvens as mais diversas, todas de nomes engraçados – Nuvem Ilha, Ventilador, Sorvete e Geladeira –, sem perceber que o seu corpo vai congelando. A morte, então, é inevitável. A jornada ganha um lindo significado, quando uma fada descobre toda a história e, emocionada, acaba pintando o céu
com suas lágrimas em meio às cores da sonhadora borboleta. “Voltada para todas as idades, a peça traz o tema da morte, mas, de fato, é uma fábula sobre a persistência”, lembra o autor e diretor, também no elenco. Essa trama surgiu quando Jorge de Paula ainda cursava Artes Cênicas na UFPE e foi convidado pelo professor Marco Camarotti a participar do projeto Pátio da Fantasia, com pesquisa voltada ao teatro para a infância. “Nos aprofundamentos teóricos e práticos, Camarotti queria despertar a nossa criança guardada, deixá-la viva, pela espontaneidade própria da idade”, lembra. Num dos encontros, ele lançou a perguntachave para a criação da história:
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TRANSFORMAÇÃO Quando a personagem vira borboleta, a peça adota a tridimensionalidade
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PROJEÇÃO O espetáculo utiliza tela difusora especial para dar vida aos personagens
“Por que o arco-íris aparece quando chove?”. A proposta era responder à questão através de dança, música ou narrativa ser contada. “Mas tudo que vinha era ainda um compromisso meu, muito de adulto, querendo agradar ao professor”, confessa. Até que, brincando com um sobrinho no jardim de casa, os animaizinhos que ali se encontravam fizeram a imaginação da infância emergir em Jorge e, com ela, o conto de fadas. Com as aventuras de Íris aprovadas pelo mestre, o texto foi encenado diversas vezes pelo grupo, especialmente para crianças surdas de ONGs e escolas públicas, como parte do projeto Pátio da Fantasia, também voltado a meninos e meninas cegas, com deficiência cognitiva ou hospitalizadas. No entanto, a proposta de ser bilíngue, com parte do texto falado e em libras (comunicação pelo uso das mãos), fragilizou alguns trechos. “Especialmente porque as crianças surdas têm uma alfabetização diferenciada e perdiam algumas partes. Chegamos a pensar em reformulações, mas Camarotti faleceu e o projeto, infelizmente, parou”, recorda.
TEATRO DE SOMBRAS
Em 2012, após diversas tentativas frustradas de retomar De Íris ao arcoíris em parceria com a atriz Andréa Veruska – que também foi aluna de Marco Camarotti –, conseguiram aprovação no edital do Funcultura, do Governo do Estado de Pernambuco, e do Prêmio Myriam Muniz, da Funarte. “A ideia inicial era fazer um revival do espetáculo, partindo da proposta de Camarotti do teatro ser, de fato, uma experiência transformadora para as crianças, mas levamos a montagem para outra perspectiva, com público para todas as idades, surdo ou ouvinte, alfabetizado ou não, já que abdicamos do texto falado, de sonoridades e onomatopeias”, conta Jorge de Paula. Duas novas técnicas, então, foram escolhidas para desenvolver a história da borboleta sonhadora: o teatro de sombras e o de formas animadas.
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Duas técnicas são usadas no espetáculo: o teatro de sombras e o de formas animadas, indicando a mudança temporal e física
“A encenação é pautada em duas dimensões, uma bidimensional, quando Íris ainda é uma lagarta, ou seja, um ser da terra, que se rasteja, e aí utilizamos o teatro de sombras; e outra tridimensional, com o teatro de formas animadas, quando ela passa a ser borboleta e pode voar.” De forte apelo visual, a peça conta com uma rara (e cara) tela difusora, apropriada à técnica de sombras. Todas as silhuetas e desenhos das personagens foram concebidas pelo artista gráfico pernambucano Luciano Félix e guardam uma proximidade com as histórias em quadrinhos. O aderecista Henrique Celibi ficou responsável pela execução das mesmas. Ainda na ficha técnica, Marcondes Lima nos cenários e figurinos, e Eron Villar na iluminação. A peça traz no elenco Jorge de Paula, Andréa Veruska, Iara Campos e Lucélia Albuquerque, com produção de Karla Martins.
Não há fala em nenhum dos 55 minutos do espetáculo, pontuado por trilha sonora do músico Júlio Morais, que cria climas os mais diversos para as aventuras da pequenina Íris. “Tudo acontece como numa metáfora de imagens em sequência, em que a protagonista morre, é verdade, mas tenta aproveitar ao máximo o seu ciclo de vida”, diz Jorge de Paula, comentando sobre o seu encantamento ao conhecer um borboletário no Pantanal, em 2012, quando a peça ainda estava como projeto de montagem. “Foi um contato raro, porque aquele jardim que me serviu de inspiração não existe mais. Acabou transformado em garagem. Então, hoje é difícil eu ver borboletas por aí”, diz, com pesar. Pela estreia acontecida em maio deste ano, durante o Festival Palco Giratório Recife Brasil, as expectativas são as melhores possíveis. “Marco Camarotti dizia que não há problema nenhum em tratar da morte ou de qualquer outro tema com as crianças. A morte faz parte da vida e a criança precisa se relacionar com isso também. Temos só que encontrar a melhor maneira de abordagem”, diz. Afinal, seguindo a sabedoria dos orientais, quem disse que a morte precisa ser uma experiência tão sofrida?
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
A BOLINHA VERMELHA
Um dos melhores quadros da exposição do Imip última, no Museu do Estado, foi o de Armando Garrido, um quadrinho de uma mulher, Mulata, pintura fluente, solta e precisa, um momento extraordinário nesse que virou o principal salão da produção da arte de Pernambuco, ao lado do Arte em toda parte, de Olinda. Que diferença entre o dia de hoje e os salões do Museu do Estado quando comecei em 1952! Naquela época não existia uma única galeria de arte no Recife. Só mesmo um louco ou suicida pensaria em viver de pintura. Aliás, em algum lugar escrevi: “Eu não conhecia ninguém que tivesse vendido ou comprado um quadro”. A única esperança era o salão anual do Museu do Estado que distribuía prêmios de escultura, pintura e desenho, um dinheirinho curto, quem sabe um salário mínimo se fosse hoje, mas era a glória, sair no jornal como premiado. Acho que os prêmios eram aquisitivos porque muitas obras do nosso Atelier Coletivo da S.A.M.R. (Sociedade de Arte Moderna do Recife) desapareceram
do acervo do Museu numa cheia, o Capibaribe levou tudo. Algum arqueólogo do futuro encontrará esculturas de Guita Charifker e Wilton de Souza, até um quadrinho meu se não me engano. Mas não havia nenhuma possibilidade de venda. Atualmente, percorrendo as paredes do salão do Imip, no mesmo Museu, e vendo as bolinhas vermelhas, sinal de “vendido”, na plaqueta ao lado dos quadros, me lembrei daqueles tempos em que não podíamos nem ao menos sonhar com aquilo, ou quem sonhasse sonhava em vão, pois não existia bolinha vermelha. Portanto, amigos pintores, escultores e afins, não percais as esperanças, sonhai! Para alguns pintores restava o emprego de professor de desenho em colégio, que serviam de zombaria porque desenho, como música, não botava ninguém no pau, ou desenhar clichê de jornal. Elezier Xavier e Baltazar da Câmara foram professores de colégio. Esporadicamente, os pintores faziam caricatura para jornal ou desenhavam algum rótulo de aguardente. A salvação, para os escultores, era fazer
anjinho para cemitério ou trabalhar em marmoraria, abrindo letreiros em placas de mármore. Abelardo trabalhou em marmoraria. Os escultores Edson Figueiredo e, antes dele, Carlos Holanda, ensinaram na Escola Técnica Profissional da Encruzilhada, que tinha também como professor de pintura o pintor Álvaro Amorim, pai do pintor Carlos Amorim. O escultor Bibiano Silva ensinou na Escola de Belas Artes, de que foi um dos fundadores. Diferente do que era no prédio do Santander lá dentro do Recife, dividido em três andares, e do Arte em toda parte, de Olinda, espalhado em vários lugares pela cidade, o salão do Imip este ano no Museu do Estado reuniu todos os artistas no mesmo andar, um espaço belíssimo que permitiu a visão geral e a comparação. Eu disse a Garrido: “Você ali se achou”. E, ante a foto no celular: “Toda vez sinto vontade de dar um cheiro nesse peito”. Eu estava até dizendo: “Hoje, tudo que você diz, procuram uma razão menos nobre, uma indignidade por trás. E pra você, Garrido, que é advogado, ainda deve ser pior”.
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Ele disse: “É. Mas eu procuro sempre não deixar de dizer o que penso”. Por exemplo. Eu sempre tenho vontade de falar de Tina Cunha. Mas não sei por onde começar. Ela é muito ágil, muito ativa e comunicativa, muito feliz, dessa felicidade que contagia a todos e o seu trabalho é o reflexo dessa sua capacidade da ação imediata diante dos mais improváveis desafios. Tudo para ela serve de, como se dizia antigamente, fonte de inspiração: garrafas de plástico, arames e outras sucatas, como se ela fizesse parte de uma ong de reciclagem e transformasse o feio em bonito, o perdido em achado, o lixo em vitórias-de-samotrácias. E como ela vibra com isso! Ela e seu fiel escudeiro Felipe que deve viver de perplexidade em perplexidade diante dos milagres operados pela sua deusa Tina (quase que era “desatino”). A arte para Tina é uma tenda de fazer milagres, de dar vida, através de algum sopro mágico, aos seres inanimados. É isso. Eu sentia que havia uma unidade, um fulcro, uma razão que validasse tudo aquilo, toda aquela disparidade e aparente descompromisso: no fundo
ARMANDO GARRIDO
Mulata. Óleo sobre papel, 70 x 50 cm, 2008 TINA CUNHA
Caranguejo-rei. Ferro, resina, bucha resinada e arames, 190 x 320 cm de circunferência, 2013
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Mas a arte é sempre a expressão de uma personalidade mesmo que o artista não esteja ligando para isso eu sou um cara quadrado que precisa de explicação. Mas a arte é sempre a expressão de uma personalidade mesmo que o artista não esteja ligando para isso. A princípio eu me perguntava que ligação havia entre uma cabeçorra de bronze ou material que o imite, comprometida com a realidade, levada a sério – e tudo em Tina é levado muito a sério, embora passe essa impressão de leveza, de amadorismo, mas basta você ir ao seu atelier para constatar a profundidade do seu empenho: um atelier sempre diz muito da identidade de um artista, e por isso um dos nossos maiores artistas, Paulo Bruscky, resolveu expor o atelier – e uma instalação de fundos de garrafa pet espalhados pelo
chão feito caranguejos de andada. Ela também aposta na imaginação, não somente nisso de parecer ou lembrar elementos do mundo real mas também na imaginação estética, na sua capacidade de evocar e emocionar-se, aposta essa que vai da arte grega à lama do mangue, com seus gaiteiros e aratus numa, desculpe o condoreirismo, síntese universal. Voltando à conversa com Garrido e ao mesmo tempo a Tina Cunha. Tina, não pense que estou escrevendo sobre você porque você, num dos seus repentes, tirou de minha cabeça o chapéu de pano dado de presente pela minha netinha querida Emília nos meus 80 anos, botou o do seu marido Felipe, e na cabeça dele o meu, sendo o dele um belo panamá do Equador, sua terra, “GENUINE PANAMA HAT/MONTE CRISTI-ECUADOR”. Quero até desfazer a troca. O panamá vai terminar troncho, dada a diferença de formato das cabeças. “Cada cabeça, um mundo”, diz o ditado. E depois, como iria aparecer à minha neta, que comprou o chapéu, de grife, com todo carinho e o primeiro salário?.
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Visuais KUSAMA Entre a alucinação e a realidade
Precursora da arte pop e de linguagens artísticas experimentais, em Nova York, artista japonesa tem primeira mostra retrospectiva na América Latina TEXTO Mariana Camaroti, de Buenos Aires
Uma infância marcada por
experiências alucinatórias, vinculadas à infelicidade, à repressão, à privação e ao maltrato infantil são a principal matéria-prima da arte de Yayoi Kusama. Considerada a maior artista japonesa viva, Kusama soube redirecionar seus medos e complexos, usandoos como temática de suas pinturas, esculturas, ambientações, slides, instalações, happenings, performances e manifestos. Passou do estúdio à rua, do âmbito privado à figura conhecida, reinventando-se e autopromovendo-se ao redor da sua figura pública. Mas sem abandonar a sua técnica fundamental: a repetição de suas obsessões e inseguranças para exorcizar e apagar traumas.
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Atualmente, está no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) e recebeu mais de 5 mil pessoas só na noite de inauguração. O museu lotou, fechou as portas de madrugada e a fila para entrar dava volta no quarteirão, tamanho o frenesi. Depois do Brasil, a mostra seguirá para o México. Com curadoria de Philip LarrattSmith, vice-curador chefe do Malba, e de Frances Morris, chefe de coleções internacionais do Tate Modern de Londres e curadora da retrospectiva de Kusama nessa instituição, esta é a primeira individual da artista na América Latina. Assim como aconteceu em Buenos Aires e em outras cidades do mundo, haverá intervenções que
Para a artista, cada um de nós é um ponto no universo. Essa ideia está expressa em sua obra através dos polkadots extrapolam suas obras e chamam a atenção do público. Em Brasília, círculos que caracterizam as criações dessa japonesa cobrirão a fachada do local da exposição e haverá balões no interior do prédio com os mesmos desenhos.
PONTOS NO UNIVERSO 1
Uma artista de vanguarda na Nova York dos anos 1960, primeiro com suas abstrações e collages, depois com performances e happenings, orgias e intervenções. Uma das criadoras da arte pop na Big Apple e precursora de instalações, Kusama possui métodos radicais de fazer com que o espectador participe, introduzindo a criatividade coletiva no significado final da obra. Suas mais destacadas criações chegarão ao Brasil em outubro, na exposição Yayoi Kusama – obsessão infinita, uma retrospectiva com mais de 100 obras produzidas entre 1950 e 2013. Primeiro no Rio de Janeiro (Centro Cultural Banco do Brasil), depois em Brasília (Centro Cultural Banco do Brasil) e, por último, em São Paulo (Instituto Tomie Ohtake).
Os círculos ou pontos coloridos que Kusama usa em suas telas, fotos, happenings, vídeos, são um reflexo das suas alucinações e uma forma filosófica de representação de como ela vê o mundo. Para essa artista, cada um de nós é um ponto no universo e este não existe sozinho. Juntos, eles têm a possibilidade de criar um movimento, uma rede, livrando-a do seu medo de isolamento e conectando todos numa trama de amor. “É preciso conhecer Kusama para entender o significado dos seus pontos e o quanto ela precisa tocar e ser tocada através deles. Ela conhece você e lhe toca, uma maneira muito primitiva de se expressar. A repetição de pontos e padrões é sua maneira de se sentir segura”, definiu Morris, em entrevista à Continente.
Ao cobrir sua obra com os chamados polkadots, faz o que ela chama de apagamento do que existia ali inicialmente, desintegrando e padronizando a imagem. Críticos, historiadores da arte e a própria artista tentaram definir o sentido complexo do ponto, que ela usa até alcançar o apagamento total. “Sem dúvida, no final dos anos 1960, o ponto havia se transformado numa marca própria, como as latas de sopa Campbell de (Andy) Warhol”, afirma Morris no ensaio Yayoi Kusama: minha vida, um ponto, que integra o catálogo da exposição. Nas palavras da própria artista, “os círculos são um caminho para o infinito. Quando apagamos a natureza e nossos corpos com círculos, nos integramos à unidade do nosso entorno. Nos tornamos parte da eternidade e nos apagamos no amor”, disse, ao apresentar o filme de 24 minutos Kusama’s self-obliteration: an audiovisuallight-performance (Auto-apagamento: uma performance audiovisual luminosa). Apresentada em 1967 e 1968, em cinemas e festivais dos Estados Unidos e Europa, em que ganhou diversos prêmios, essa sequência hipnótica de imagens mostra Kusama pintando animais, pessoas e até o espelho d’água com círculos, em plena floresta, como se curasse o mundo. O filme, com estética hippie e tom místico, poderá ser visto na retrospectiva. Também estarão em exibição algumas de suas mais importantes obras recentes: I’m here, but nothing (Estou aqui, mas nada, 2000-2013), em que pontos luminosos florescentes coloridos são reproduzidos no interior de uma casa; Obliteration room (Sala do apagamento, 2010), paredes e móveis brancos no qual o espectador intervém livremente com adesivos em forma de círculos; e Infinity mirror room – filled with the rillance of life (Sala de espelhos do infinito – Plena do brilho da vida, 2011), iluminação mutante em uma sala espelhada com água em algumas partes do chão.
FIGURAÇÃO GESTUAL
Nascida em 1928, na cidade rural de Matsumoto, a 200 km a oeste de Tóquio, Kusama frequentou aulas de artes e iniciou sua carreira com uma série de obras semiabstratas
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em papel, na década de 1940. Os primeiros anos evidenciaram não apenas a evolução de uma linguagem estética, que se tornaria uma marca registrada, mas também o modo como ela encararia sua figura pública. Ambição excepcional, vocação para o risco, desejo de abraçar o desconhecido e dar um passo além. O seu progresso em uma década – da abstração à figuração gestual – representa uma viagem que alguns artistas só conseguem em uma carreira completa. Após participar de exposições na capital do seu país, sua aspiração artística e atração pelo novo mundo norte-americano do pós-guerra a levaram a Nova York. Instalada no bairro de Chelsea, em 1958, o epicentro da vanguarda artística de Manhattan, a artista deu início a pinturas abstratas e monocromáticas. Nos anos 1970, essas telas ficariam conhecidas como Infinity nets (Redes infinitas) e seriam definidas por ela como redes brancas de partículas, desprovidas de tonalidades, pouco interessantes, uma forma de resistência. Alguns críticos interpretaram sua criação como
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um posicionamento feminista que rejeita o excesso do expressionismo abstrato, entendido como um exibicionismo masculino. Kusama vivia então uma transformação artística, renovando-se em diferentes direções. Uma espécie de evolução das suas redes foi a colocação de adesivos brancos sobre superfícies brancas, criando padrões mais ou menos uniformes – uma forma mais mecânica de criar. Continuou experimentando outras formas de collage: vários selos de correios em Airmail – accumulation (Correio aéreo – acumulação) ou de notas falsas de dólar ladeados, usando símbolos da vida cotidiana para conectar a arte e a vida através de resultados visuais. Kusama se antecipava, assim, às estratégias de Andy Warhol. Em seguida, ao aplicar uma caixa de ovo a uma pintura, produziu, pela primeira vez em sua carreira, uma obra de três dimensões. A agenda da artista era frenética, assim como sua produção e experimentos. Junto com Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist, participou, em 1962, de uma mostra
na Green Gallery de Nova York, considerada a pedra fundamental da arte pop. Além de espalhar pontos sobre sua pintura, passou a cobrir objetos cotidianos como cadeiras e sapatos com falos – uma obsessão sexual – e com macarrões – sua obsessão pela comida (na verdade, a crítica ao excesso dela). A repetição de falos, o que ela chama de “acumulações”, remete ao seu medo de ser penetrada. Ao reproduzi-los ao longo de sua carreira, posando para fotos entre eles, ela procura exorcizar esse temor. “A simples ideia de que uma coisa longa e feia como um falo me penetre me aterroriza e é por isso que aparecem tantos falos na minha obra. Faço (os falos), faço e continuo fazendo até que submerjo totalmente no processo. Chamo-o de apagamento”, revelaria Kusama. “Com as acumulações – suas esculturas em cadeiras e outros objetos cotidianos cobertos por falos de tecido – aconteceu certa radicalização em sua carreira até que, com o vídeo Self-obliteration fez um resumo, espécie de manifesto, de toda a obra que tinha conduzido a esse ponto de
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Página anterior 1 OBLITERATION ROOM
O espectador pode intervir colando adesivos circulares coloridos nas paredes e móveis brancos
Nesta página 2 I’M HERE, BUT NOTHING
Na obra que compõe a mostra, pontos luminosos florescentes coloridos são reproduzidos no interior de uma casa
3 YAYOI KUSAMA Em 1977, a artista se internou voluntariamente numa clínica psiquiátrica onde vive até hoje 4 ACUMULAÇÕES Os falos são recorrentes nos seus trabalhos, como na obra One thousand boats show
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autoapagamento total”, explica Philip Larrett-Smith à Continente. Segundo Frances Morris, o contexto artístico que levou Kusama da pintura à escultura, e daí à obra ambiental e ao happening, é evidente, se consideramos a comunidade artística que a rodeava no Bairro de Chelsea. A artista expandiu os limites de sua obra, forçando o espectador a se sentir imerso no espaço. Sua primeira ambientação foi One thousand boats show (Espetáculo de mil botes, 1963), uma sala com um bote no centro, coberto de falos e a imagem dele repetida colada à parede. “Respondia à mesma estratégia serial das suas redes, mas agora fortemente carregada de erotismo”, compara Morris. Dois anos mais tarde, a Infinity mirror room – phalli’s field (Sala de espelhos do infinito – campo de falos), que integra a mostra, reunia novamente erotismo e envolvimento do público. Cada vez mais comprometida com políticas alternativas e estratégias artísticas mais audazes, incentivada pelo ostracismo em relação à mainstream da arte local, Kusama radicalizou. Excluída do movimento pop, devido ao
seu gênero e à sua etnia, colocou-se no centro da sua obra, como na série de 12 slides de 1966, em que se mostra triste e abatida na paisagem de Manhattan. Na Bienal de Veneza do mesmo ano, apresentaria sua obra mais controvertida, até então: Narcissus garden (Jardim de Narciso), na qual ela se deitava sobre 1.500 esferas prateadas
Com sua obra ambiental, Yayoi Kusama expandiu os limites, forçando o espectador a se sentir imerso no espaço colocadas sobre a grama. Além disso, distribuía folhetos como uma crítica positiva a seu respeito e vendia as esferas com o cartaz Seu narcisismo à venda. Foi expulsa do evento. A partir daí, adota uma posição de provocadora cultural na cena artística alternativa de Nova York. No contexto dos protestos contra a Guerra do Vietnã,
a favor dos direitos civis e das políticas de gênero, ganha grande visibilidade com happenings, como os feitos na Ponte do Brooklyn e na Estátua da Liberdade, com orgias e nudismo. Após tanta exposição, Kusama retorna ao Japão em 1973. Quatro anos depois, ela se mudaria voluntariamente para uma clínica psiquiátrica, onde mora atualmente e na qual continua produzindo todos os dias, imersa em seu mundo de redes e padrões repetitivos. Para Larratt-Smith, é difícil categorizar a obra de Kusama devido à sua unicidade. “Existe um lado que eu descreveria como abstração excêntrica, e outro como psycho-pop”. Porém, diz ele, não há dúvidas de que ela possui elementos que a definem como uma grande artista: “Um leque de invenção formal, sendo pioneira em muitas técnicas, especialmente na história das instalações na arte; a relação com as grandes tendências dos anos 1960; a criação de um idioma simbólico altamente original; e a especificidade patológica que caracteriza os maiores artistas”.
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Artigo
JOSÉ AFONSO DA SILVA JUNIOR OS JORNAIS PRECISAM DE FOTÓGRAFOS? O noticiário especializado em
jornalismo e fotografia foi pego de surpresa, no dia 1º de junho de 2013, com uma notícia inusitada: o jornal americano Chicago Sun-Times demitiu toda sua equipe de fotógrafos e atribuiu aos repórteres de texto a responsabilidade de fotografar e filmar suas reportagens. De um modo direto, a medida colocou 28 profissionais de fotografia, alguns veteranos, com mais de 20 anos de profissão, na rua e, indiretamente, atingiu mais 40 jornais de bairro afiliados ao grupo. Surpresa? Ou coragem de assumir de modo tão duro o cenário de polivalência que habita a convergência tecnológica? Em tempos de aparelhos capazes de fotografar, redigir, acessar a internet, ativar redes sociais e até telefonar, surge o raciocínio distorcido de que, se o dispositivo é multimídia, o usuário que o opera também o é. Isso se agrava ainda mais quando temos um pensamento tecnologicamente determinista que dita as mudanças a partir do cenário tecnológico, e não do conjunto de saberes específicos que orientam uma determinada profissão. O óbvio parece, nesse caso, não ter sido percebido, ou foi deliberadamente ignorado. Uma equipe de fotógrafos, mais que operadores de sistemas e rotinas para a produção de imagens sobre o cotidiano, possui a habilidade de contar histórias com imagens, desenvolvendo para isso, um conjunto de saberes específicos vinculados à compreensão visual da notícia e seu impacto na sociedade. Saber se mover, entender o que está em jogo em determinada situação, cultivar
ALEX GARCIA/CHICAGO TRIBUNE/DIVULGAÇÃO
fontes, enfim, um fotorrepórter, antes de ser um fotógrafo, é um jornalista que opera a câmera e a cadeia de produção de imagens. Antes que esse texto possa parecer defesa de reserva de mercado, a ressalva a ser feita é inverter a situação: imaginemos se o fardo de assumir uma função a mais (algo que os repórteres de texto no caso receberam “de presente”, diga-se de passagem) fosse dos fotógrafos e, de uma dia para outro, eles tivessem que assumir a função de redigir as notícias? Como reagiria a comunidade de repórteres e redatores? A justificativa para uma opção de travestir repórteres em fotógrafos está baseada numa ordem financeira, em que os departamentos de fotografia dos jornais sempre foram estruturas caras e onerosas, e pelo fato de, contemporaneamente, muitas das imagens mais vistas ou acessadas pertencerem a circuitos de vigilância, câmeras de celulares ou amadoras, produzidas pelos leitores e cidadãos comuns. Em um mundo de hipervigilância e hipervisibilidade, é óbvio que o fluxo de imagens produzidas por câmeras onipresentes vai compor o horizonte visual da construção da realidade em forma de notícia. Em um mundo onde são produzidas milhões de imagens por dia, a fotografia numa visão estreita e míope, é apenas mais um conteúdo digital que é embalado ao redor do texto. Raciocínio direto: o que acontece com toda mercadoria que passa a existir em excesso? Mas, ao falarmos de fotografia do dia a dia, feita de modo vernacular, estamos tratando de algo muito diferente da fotografia de imprensa e de notícia. Querer transportar o que acontece no geral para o específico de uma profissão é uma nítida falsificação, que só pode ser compreendida pelo viés econômico, pelo total descompromisso com qualidade editorial, e por largas parcelas de falta de respeito. A crise precipitada no Chicago Sun-Times ocorre no choque entre o excesso de fontes produzindo imagens, levando a uma brutal
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queda do poder de negociação dos fotógrafos dentro das dinâmicas dos jornais, por espaço de trabalho e também remuneração. Assim, os canais de operação outrora estáveis hoje se afunilam e se deslocam de lugar, física e simbolicamente, de produção, saindo de temas mais densos e que exigem maiores aportes de cobertura. É sintomático deste quadro também a produção do conjunto de imagens que se destinam mais ao acompanhamento de celebridades, do entretenimento e do sensacionalismo. Ou seja, assuntos que demandam uma formação de repertório, custo e problematização de baixo nível. Ao seu modo, há
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1 TRIBUTO Na parede de uma taberna de Chicago, imagens da equipe de fotografia do jornal Chicago SunTimes, hoje extinta
profissionais que também engoliram o caramelo envenenado do “óbvio eficiente”, conceito forjado pelo fotógrafo Hélio Campos Melo. Nele, a imagem não perdeu sua competência, perdeu a sua eficiência, porque só se faz o “óbvio eficiente”, ou seja, uma imagem mais pobre, sabendo que ela vai alcançar o maior número de pessoas, num universo dado. O difícil é fazer uma foto que leve a pensar um pouco mais, que reflita sobre o que está feito. A questão pontual é que, se temos o excesso de imagens digitais, há a contrapartida da possibilidade de termos um fotojornalista em 200, 250 ocasiões de cobertura por ano, cobrindo pautas de modo
Ao falarmos de fotografia do dia a dia, estamos tratando de algo muito diferente do material de imprensa e de notícia sistemático, regular e capaz de gerar boas imagens. Na contraparte, um repórter-cidadão faz uma ou duas fotos, com sorte, sob o ponto de vista de noticiabilidade, jornalisticamente boas. Portanto, fora dos aspectos puramente econômicos e de gestão, não há competição. São posturas e conhecimentos diferentes diante
dos fatos. Se houver dúvida quanto a isso, faço o desafio a qualquer editor de jornal: proponha aos seus leitores ficar de plantão, à noite, debaixo de chuva, sem hora para voltar pra casa, para obter uma imagem relevante e veja se ele topa sair do conforto de casa para encarar esse tipo de empreitada. Lembrando um editor amigo que sempre falava que “todo dia tem jornal”, a questão posta à mesa parece clara: há um cenário que pede um reposicionamento de práticas, que agregue e filtre a enxurrada de imagens em que estamos imersos. Mas confundir esse estado de coisas com a necessária desarticulação de equipes de fotojornalistas é um equívoco que cobrará caro à sua adoção. Porém, o caso do Chicago Sun-Times é um alerta. Não o primeiro. Quem capitaneou essa demissão em massa foi Tim Knight, que já havia feito exatamente a mesma coisa antes, no Newsday (eliminar o departamento de fotografia). Não há surpresa. Sob um ponto de vista cruel, frio e mesquinho, freelancers custam menos que staff. Com o sinal vermelho aceso, cabe a quem é repórter fotográfico: 1) perceber que os valores editoriais não irão melhorar por si sós; 2) que a fotografia não irá se tornar, nos jornais e de uma hora para outra, algo valorizado. Para essas duas apostas vingarem, é preciso investir em conteúdos, práticas, repertório e criatividade capazes de reoxigenar a cadeia produtiva da fotografia de imprensa. Assim, talvez se encontre a rota de fuga do que surge da triangulação entre a falta de recursos, a falta de modelo de gestão e a falta de respeito. Hora de pensar e agir como o jogo será, e não como era.
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Criaturas
CON TI NEN TE
Sebastião Salgado por Rodrigo Gafa
Sebastião Salgado (1944) pode ser considerado modelo ideal da celebração do Dia Mundial da Fotografia (19
de agosto), embora saibamos que a data tem origem na invenção do daguerreótipo, em 1837. Isso porque, com suas imagens grandiosas, ele oferece ao público a oportunidade simultânea de deleite estético e reflexão crítica da realidade. Ensaios como Serra Pelada, Êxodos e o mais recente Gênesis elevam o real à dimensão do trágico e do épico.
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