Continente #153 - Cidade verde

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# 153

#153 ano XIII • set/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

CIDADE

VERDE

PORQUE O BEM-ESTAR DAS PESSOAS DEPENDE DA PAISAGEM

SET 13

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SETEMBRO 2013

HÉLDER TAVARES

aos leitores

Esta é uma pergunta que não nos dá sossego: que cidade queremos para nós? Um lugar inóspito, árido, sufocante? Ou seu contrário: aquele em que as pessoas se sentem integradas ao espaço fluido, em que tensões são minimizadas? Boa parte do bem-estar que sentimos, mesmo em cidades grandes e populosas, decorre da presença constante de áreas verdes, sejam parques, jardins ou alamedas que dão sombra e frescor. Mas o que tem ocorrido é que o verde de cidades como o Recife está sendo subtraído, minimizado ou mutilado. E a falta de planejamento paisagístico somada à avalanche imobiliária e à insensibilidade de parte da população para com a importância da manutenção desses elementos naturais são as responsáveis pelo que poderíamos chamar de desertificação do espaço urbano. É com o olhar ao mesmo tempo crítico e contemplativo que nos lançamos a este assunto, capa da edição deste mês, que teve na dianteira o jornalista Fellipe Fernandes, em sua primeira colaboração conosco, e o fotógrafo Hélder Tavares, que havia feito os retratos dos mágicos da nossa edição de julho. Estamos felizes com o resultado, que reflete nossas preocupações. E esperamos, com esta reportagem, sensibilizar as pessoas para o bem que o verde é capaz de nos proporcionar.

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sumário Portfólio

Raoni Assis 6

Cartas

7

Expediente + colaboradores

8

12

20

34

58

62

Cinemascópio

64

Claquete

68

Palco

72

Matéria Corrida

78

Entremez

86

Artigo

88

Criaturas

Entrevista

André Heller-Lopes Diretor de ópera fala da importância de formação abrangente para cumprir tal função

Conexão

Arte Hall Site pretende atingir interessados em arte que não saibam por onde iniciar uma coleção

Balaio

Hollywood Forever Cemitério em Los Angeles é palco de badalação, com exibição de filmes e shows

Perfil

Joca Reiners Terron Além de lidar com a ficção, escritor mostra habilidades na cozinha

Sonoras

Moacir Santos Obra e vida do maestro, multi-instrumentista e compositor pernambucano são tema de publicação

Kleber Mendonça Filho Liga da justiça

Sci-fi nacional Embora de forma discreta, cinema brasileiro produz ficção científica de baixo orçamento

A partir de várias técnicas e de uma paleta eclética e vibrante, desenhista une arte e design, explorando personagens surgidos no cotidiano da cultura urbana

14

Infantil Companhias investem em espetáculos e encenações de dança contemporânea específicos para crianças

José Cláudio Cerimônia do adeus

Ronaldo Correia de Brito Susana e o judeu errante

Amanda Martinez Elvir Construção social da segregação

Loopy Dave Vincent Van Gogh

Cardápio

Food stylists Para criar uma boa imagem de um prato e traduzir sua essência apetitosa, profissionais utilizam diversos truques, nem sempre comestíveis

54 CAPA FOTO Hélder Tavares

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Especial

Audiovisual

Fruto de um planejamento urbano que considera o equilíbrio climático e o bemestar da população, o uso de vegetação deve ser item essencial nas metrópoles

Espectador já pode assisitr a 200 novos projetos, entre filmes e séries, em todos os canais fechados, que exibem três horas e meia diárias de produção nacional

Visuais

Leitura

Construído sobre as ruínas de um antigo teatro de Figueres, museu reúne pinturas, esculturas, fotografias, mobiliário e objetos escolhidos pelo próprio artista

Autor do clássico Quarup, jornalista e escritor tem publicada fotobiografia que conta, com ênfase nas imagens, passagens importantes de sua vida pública

Paisagismo

22

Salvador Dalí

74

Lei da Ancine

44

Set’ 13

Antonio Callado

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cartas Mágicos I

Mágicos III

Escrevo para parabenizar a Continente pela matéria de julho de 2013 sobre os mágicos e o universo da magia. Um tema inusitado, pouco conhecido, exposto de forma didática e lúdica. Emocionantes os relatos de vida dos mágicos antigos e a paixão dos mais jovens, que seguem com a arte de “ilusionar”. A matéria presta o serviço de iluminar universos invisíveis, revela um mundo novo, de ilusões e desilusões, à espera, ou melhor, em diálogo com o “respeitável público”.

Cumprimento a todos pelo belíssimo trabalho. Confesso que foi com emoção que li as reportagens e pude relembrar muitas histórias, narradas por “velhos” amigos queridos: Astor, Lugom, Lorax, Mr. Denis. Gostei de saber também do trabalho dessa nova geração de mágicos que eu não conhecia, como o Rapha Santacruz e seu espetáculo Abracasabra. Gostei muito da matéria e tenho certeza de que os leitores da Continente puderam conhecer aspectos importantes da arte mágica e da dedicação dos mágicos, para o seu engrandecimento.

HUGO MENEZES NETO ANTROPÓLOGO – PROFESSOR DA UFPE

Mágicos II É admirável a facilidade que a jornalista encontra em resgatar momentos da história dessa arte no Recife, nas suas variadas linguagens, assegurando uma “teia de saberes” que vai do popular ao erudito, possibilitando ao próprio artista se rever – fazer uma

releitura de sua própria obra – e se ver como coconstrutor da cultura de sua nação. A valorização da pessoa, do humano, antes mesmo da técnica e do profissionalismo, é marca registrada em suas interfaces, o que possibilita uma reflexão apurada no que diz respeito ao papel social da arte mágica. Parabéns, Christianne Galdino e Continente.

OZCAR ZANCOPÉ SÃO PAULO – SP

Mercado de arte em crise Estou conferindo a Continente #152. Edição muito forte, de capa a contracapa. Obrigado pela generosidade com meu artigo. Parabéns pelo belíssimo resultado!

CHRISTIANE RÊGO

JOSÉ AFONSO JR.

OLINDA – PE

RECIFE – PE

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

Felipe Porciúncula

Fellipe Fernandes

Isabelle Meunier

Luciano Velleda

Jornalista, escritor e consultor do Unicef e Unesco

Jornalista e mestrando em Comunicação Social pela UFPE

Engenheira florestal e professora da UFRPE

Jornalista especializado em viagem e turismo

E MAIS Amanda Martinez Elvir, arquiteta formada no México e nos EUA. Trabalha em projetos com foco em segregação social e estudos de gênero. Augusto Pessoa, fotógrafo e jornalista. Christianne Galdino, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural pela UFRPE. Eduardo Sena, jornalista. Hélder Tavares, fotógrafo. Inácio França, jornalista, blogueiro e consultor das Nações Unidas. Josias Teófilo, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB. Loopy Dave, ilustrador australiano . Mariana Camarotti, jornalista radicada em Buenos Aires. Renato Parada, fotógrafo. Roberto Seba, fotógrafo. Rodrigo Carreiro, jornalista, professor e crítico de cinema. Ronaldo Bressane, jornalista e escritor, publicou, entre outros, os livros Céu de Lúcifer e O impostor.

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ANDRÉ HELLER-LOPES

“Ópera exige formação de um artista da Renascença” Diretor afirma que, na concepção de um espetáculo, tudo é importante, sobretudo uma educação cosmopolita, mas que a essência do trabalho está na partitura. Ele foi responsável por polêmica montagem de Crepúsculo dos deuses, de Richard Wagner TEXTO Josias Teófilo

CON TI NEN TE

Entrevista

André Heller-Lopes é um dos mais destacados diretores cênicos brasileiros no mundo da ópera, dirigiu aclamadas montagens recentes no Brasil, Argentina, Áustria, Inglaterra e Portugal. Detentor de três prêmios Carlos Gomes, ele é doutor pelo Kings College de Londres, especializou-se na San Francisco Ópera, nos Estados Unidos, e na Royal Ópera House, Covent Garden, de Londres. É professor do Departamento Vocal da Escola de Música da UFRJ e, recentemente, foi convidado pela Orquestra Sinfônica Brasileira para assumir o cargo de coordenador de elencos das óperas da temporada 2013. Em maio, André Heller-Lopes dirigiu a sua sétima ópera no Theatro Municipal de São Paulo, com regência de Rick Wentworth. Trata-se de Ça iras (que significa “assim será”), obra do roqueiro britânico Roger Waters sobre a Revolução Francesa, com libreto do francês Étiene Roda-Gil, transportada por ele para um manicômio, cujos figurinos e cenografia foram inspirados nas obras do artista plástico

brasileiro Arthur Bispo do Rosário – reconhecido por viver no limiar entre a loucura e a genialidade. Em agosto, André fez seu debut no Uruguai, dirigindo Macbeth, ópera de Verdi adaptada da peça homônima de William Shakespeare. Ele trabalha no projeto de montar a única ópera de Astor Piazzolla, Maria de Buenos Aires, no Recife, a convite do Festival Virtuosi. Ainda neste ano, André HellerLopes dirigiu a estreia brasileira de Sonho de uma noite de verão, de Benjamin Britten, no Rio de Janeiro – a ópera teve apresentação ao ar livre no Parque Laje, em meio à natureza exuberante do local. À Continente, Heller-Lopes fala sobre sua formação, trabalho e sobre a recente – aclamada e controversa – montagem brasileira de Crepúsculo dos deuses, de Richard Wagner, que transpôs os cenários do mito da ópera para a cultura e o folclore brasileiros e, na última récita, chegou a encenar um caso homossexual entre Siegfried e Gunther – inexistente no libreto original. O diretor fala também da ópera de Roger Waters, apresentada

no Theatro Municipal de São Paulo, em maio, que teve a presença do ex-Pink Floyd. Waters participou da montagem e até cumprimentou o público após cada récita, sendo ovacionado pelos fãs da banda e habitués da ópera. CONTINENTE Podemos dizer que sua formação partiu do estudo acadêmico da ópera até a prática da direção cenográfica? Ou as duas atividades foram feitas paralelamente? ANDRÉ HELLER-LOPES Um pouco de ambas, diria. A formação acadêmica é essencial, sempre. Mesmo que seja apenas para dar bagagem e asas à imaginação do artista. Como não existe, no Brasil, formação específica para direção de ópera, fui me especializar nos EUA e, depois, no Reino Unido. Talento e genialidade são apenas parte do nosso oficio; há que ajudar o dom divino... CONTINENTE É preciso ter uma formação cosmopolita como a sua para dirigir ópera, um gênero tão iminentemente internacional? ANDRÉ HELLER-LOPES Sim. Se você

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JOSIAS TEÓFILO

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quer fazer bem, de verdade, isso exige conhecimento de música, idiomas, tradições, estilo e estética. Exige a formação de um artista da Renascença! Agora, em verdade, um bom diretor de teatro, que se dedique aos clássicos, também deveria ter a mesma formação.

CONTINENTE Como é o processo de montar uma ópera de um compositor vivo como Roger Waters? ANDRÉ HELLER-LOPES A grande diferença está na comunicação. Posso passar um e-mail com uma pergunta, posso pedir uma mudança. CONTINENTE O que você acha dessa nova fase do Theatro Municipal de São Paulo, dirigido pelo maestro John Neschling?

BOB TOLEDO/DIVULGAÇÃO

CONTINENTE Como você concilia o cargo de coordenador de elencos de óperas da Orquestra Sinfônica Brasileira, o de professor na Escola de Música da UFRJ e, ainda, uma montagem como a da ópera Ça ira no Municipal de São Paulo? ANDRÉ HELLER-LOPES Exige planejamento e dedicação – como para encenar uma grande ópera. A parte dos elencos, como fechamos

negro, de João Guilherme Ripper, com texto do pernambucano-carioca Nelson Rodrigues, feita ao ar livre, no ano passado, provou ser um enorme sucesso. A grande pena é não poder levar esses “desafios vencidos” para fora do eixo Rio-São Paulo.

CON TI NEN TE

Entrevista tudo com antecedência, é definida ao longo do ano. No mais, fechase em dezembro, quando as férias acadêmicas já começaram. Com as greves mais recentes, os períodos ficaram conturbados. Mas, no caso de disciplinas como as do Departamento de Canto, não há como fazer greve e parar com um processo que é quase “muscular”, como de um atleta. Por mais que as greves possam ser justas, o artista não pode ficar sem prática. CONTINENTE Chega a ser um desafio dirigir uma ópera tão contemporânea e recente como Ça iras, em que não há tantas montagens anteriores e, além disso, é inédita no Brasil? ANDRÉ HELLER-LOPES Fazer ópera, no Brasil, é sempre um desafio. Anjo

ANDRÉ HELLER-LOPES O maestro é um administrador muito elogiado, figurou à frente do grande processo que resultou na Osesp, orquestra que é um orgulho nacional. É um maestro que conhece repertório, gosta de ópera e tem intimidade com o gênero. Ele compreende, por exemplo, a importância da continuidade de um projeto como o Anel Brasileiro, do Municipal de São Paulo. Somandose todas essas qualidades, acho que temos uma ótima equação para dar ao país o mais importante teatro de ópera da América Latina. CONTINENTE Na montagem de uma ópera, como é a interação entre o maestro e o diretor cênico? Chega a ser

por vezes conflitante essa relação? ANDRÉ HELLER-LOPES Desde que o maestro e o diretor conheçam seu métier, e a obra em questão, desavenças serão apenas na ordem do gosto artístico. Conflitos só acontecem com quem está inseguro. CONTINENTE Quais as diferenças entre montar uma ópera no Brasil e na Europa? A tradição europeia influi em como as coisas são feitas? ANDRÉ HELLER-LOPES Claro, especialmente no quesito planejamento e organização. Nós temos mais paixão, menos rotina. Porém, isso pouco adianta sem técnica.

“Fazer ópera, no Brasil, é sempre um desafio. Anjo negro, feita ao ar livre, provou ser um sucesso. A pena é não poder levar esses ‘desafios vencidos’ para fora do Rio-SP” CONTINENTE Com que o diretor cênico trabalha na montagem de uma ópera? A partir do libreto exclusivamente ou é importante a tradição de montagens anteriores ou até dados históricos? ANDRÉ HELLER-LOPES Tudo é importante. Mas a partitura – música e libreto – é o ponto de partida. CONTINENTE Podemos dizer que existe uma afinidade sua com as óperas de Wagner, dado que você já dirigiu três delas (aliás muito elogiadas pela crítica)? ANDRÉ HELLER-LOPES Certamente deve existir, pois também tive grande felicidade com óperas de Richard Strauss, sucessor de Wagner, por assim dizer. Não sei bem explicar como aconteceu, pois sempre

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achei que seria o homem da ópera italiana... Mas a afinidade com o alemão e com a cultura germânica criaram esse link. Acho que a forma mais psicológica do enredo dessas óperas também contribuiu para que os teatros buscassem um diretor de ópera, ao contrário de um encenador de teatro ou cinema. Acredite, dirigir um Rigoletto parece um passeio no parque em comparação com um Crepúsculo: o primeiro ato desta dura quase o mesmo tempo que a outra inteira!

CONTINENTE As críticas sobre a sua montagem de O crepúsculo dos deuses foram muito favoráveis. Inclusive, o fato de ter sido uma montagem integralmente nacional foi considerado um sucesso sem precedentes. Entretanto, uma crítica de Leonardo Oliveira, no blog Euterpe,

SYLVIA MASINI/DIVULGAÇÃO

CONTINENTE Existe um belo livro de Paul Valéry em forma de diálogo, Eupalinos ou o arquiteto, em que é feita uma comparação entre a arquitetura

em que senti que dominava tanto a mitologia como o conteúdo filosófico (Feurbach, em particular), pude mergulhar em nossa cultura. Repito: tudo começa e termina na união de estudo e inspiração. Meu conceito é honesto e original, pode agradar ou não –, mas será sempre porque ofereço do fundo do coração; jamais a cópia de alguém ou uma tolice provocadora.

clara, durmo tranquilo. Agora, se um senhor “crítico” resolve não gostar, está no direito dele – a mim cabe apenas esperar que ele fundamente sua crítica. Acho tão tolo, como aconteceu com outra pessoa escrevendo, que veio criticar a presença de “boi-bumbá no Wagner”. Veja só que ignorância: ele não sabe a diferença entre as cavaladas de Pirenópolis e o bumbá e deu-se ao direito de criticar. No caso do crítico que você cita, “homoerotismo” estava sugerido, sim, mas não em Siegfried e sim no Gunther... E era baseado numa leitura do texto que ele canta. Siegfried não tem “culpa” nenhuma dos sentimentos que desperta em

“Meu conceito é honesto e original, pode agradar ou não – mas será sempre porque ofereço do fundo do coração; jamais a cópia de alguém ou uma tolice provocadora” e a música: “Há duas artes que encerram o homem dentro do homem (...), de dois modos ele é envolvido por leis e vontades interiores, figuradas em uma ou outra matéria, a pedra ou o ar”. O seu trabalho me parece que está exatamente entre essas duas artes, a música e a arquitetura, ou seja, a cenografia. Que lhe parece essa relação? ANDRÉ HELLER-LOPES Não sou cenógrafo, às vezes “estou” cenógrafo. Mas que trabalho entre duas artes, música e teatro, é verdade. CONTINENTE Como foi o processo de transposição da atemporalidade mítica da ópera O crepúsculo dos deuses, de Wagner, para a cultura e o folclore brasileiros? ANDRÉ HELLER-LOPES Foi fruto de muito estudo. A partir do momento

destacou um elemento que parece não ter sido abordado na mídia impressa: a tensão homoerótica, inexistente no libreto original, entre Gunther e Sigfried, insinuada na montagem e que, segundo ele, altera a função heroica de Sigfried, assim desconstruindo todo o mito da ópera. Até que ponto uma montagem pode interferir num mito ou numa história tão consagrada? ANDRÉ HELLER-LOPES Olha, uma critica é uma opinião. O que seria do amarelo se todos só gostassem do azul? Os críticos, sejam diletantes ou profissionais, têm direito de escrever o que quiserem (ou quase). Eu raramente leio críticas. Veja bem, respeito a opinião alheia e quero meu trabalho respeitado. A legitimidade do que fiz e faço está

Gunther. Está tudo no texto, basta procurar o duplo sentido... Um processo, aliás, muito parecido com o que Wagner faz na música: Isolda diz “amaldiçoado seja!”. Quando, em verdade, quer dizer “eu te amo”, e a música apresenta esse seu subconsciente. Eu desejo ao público o mesmo prazer que tive, a mesma emoção que provo ao escutar e viver essas óperas, apenas isso. Sou fiel ao compositor e libretista, sou seu intérprete. Não pretendo mostrar que eu sei e ninguém mais; apenas dividir uma visão! Em resumo: venham à ópera, que ela seja parte da nossa vida; gostem ou odeiem, ao menos provem a força e a magia dessa experiência

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

PAISAGEM URBANA

MOACIR SANTOS

São frequentes as vezes em que os moradores das cidades sentem a necessidade de contato com áreas verdes, sejam parques, praças, jardins ou alamedas que atenuem o calor da caminhada. Nesta edição, abordamos o assunto sob a perspectiva do planejamento paisagístico urbano. Como complemento à reportagem, oferecemos, no site, a íntegra de Os doze princípios da Carta Brasileira da Paisagem, documento elaborado pela Associação Brasileira de Arquitetos e Paisagistas, a partir do que é considerado imprescindível ao bem-estar humano e ao respeito à natureza.

Entre em contato com o talento jazzístico do multiintrumentista Moacir Santos pela audição da música Suk cha e assista a um trecho da gravação do CD Ouro Negro.

Conexão

SALVADOR DALÍ Veja no site outras fotografias do Teatro-Museu Dalí, localizado em Figueres, na Catalunha, assunto desta edição na seção Visuais, em visita de Augusto Pessoa.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

ARTE

ESTÚDIO

VOLUNTARIADO

CONSÓRCIO

Britânico de 11 anos impressiona com sua técnica de pintura

Site ajuda músicos a montar estrutura de gravação em casa

Pela contação de histórias, grupo atua a favor da humanização da saúde

Escritórios de design e de arquitetura projetam livro sobre o Capibaribe

kieronwilliamson.com

harmonycentral.com

vivaedeixeviver.org.br

facebook.com/EuCapibaribe

Na década de 1980, a parapsicóloga Nancy Ann Tappe apontou a existência de “crianças índigos”, aquelas com aptidões superdesenvolvidas. Talvez, a desenvoltura de Kieron Williamson sirva como argumento para os que concordam com as sugestões de Tappe. Iniciado na pintura aos 6 anos, Kieron surpreende por sua precisão técnica. Hoje, aos 11 anos, ele é conhecido como o Pequeno Monet, tanto por usar técnicas parecidas com as do impressionista como por seu talento. Em recente exposição, o pequeno pintor britânico conseguiu o feito de vender 24 peças em 14 minutos, somando um montante de 250 mil libras (cerca de R$ 790 mil).

Hoje é comum conhecer um artista ou banda que tem estúdio doméstico, mantido num espaço mínimo, onde grava todo seu material. Nesse contexto, os músicos precisaram aprender ofícios – desde pequenos consertos, melhorias em instrumentos, montagem e utilização de equipamentos para um estúdio. No Harmony Central, eles encontram tutoriais, artigos e resenhas sobre como melhorar pedaleiras, como equipar um estúdio para gravações caseiras e, principalmente, como otimizar seus apetrechos. Também é possível trocar ideias com outros músicos e anunciar venda e troca de equipamentos.

Viva e deixe viver é uma organização da sociedade civil de interesse público com sede em oito estados brasileiros. Inicialmente, o objetivo era capacitar voluntários para contar histórias a crianças e jovens internados em hospitais. Com o tempo, o projeto Viva cresceu. Hoje, além de treinar voluntários, oferece oficinas, palestras e fóruns sobre temas que envolvam humanização da saúde. A organização também realiza ações para arrecadar dinheiro, como o projeto Rota Chef, feito em parceria com restaurantes de São Paulo e Salvador. Através dele, o Viva recebe o valor integral dos pratos do dia vendidos.

Dia 24 de novembro é aniversário do Capibaribe, rio que define simbolicamente o Recife. Na data, será lançado o livro Eu Capibaribe – o rio que termina onde a cidade começa, viabilizado por consórcio. À frente do projeto, estão a designer Gisela Abad e o urbanista Márcio Erlich, que convidaram fotógrafos e redatores para “interpretar” o rio. A compra é feita mediante pré-venda. Os que assim o fizerem terão seus nomes impressos nas 144 páginas do volume, que receberá acabamento luxuoso. Entre os autores, estão Eduardo Queiroga, Alexandre Severo, Anco Márcio Tenório Vieira e Julien Chitunda. Vendas pelo www. eventick.com.br/eucapibaribe.

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blogs MIDIARTE desvirtual.com

Editora da revista Select, professora da FAU-SP e midiartista, Giselle Beiguelman classifica com três palavras a sua obra: redes, ruas e ruídos. No seu blog, o Desvirtual, Giselle apresenta artigos sobre curadoria, arte urbana e arte virtual ou eletrônica, além de disponibilizar algumas de suas palestras e conversas em vídeo.

ESTÍMULO AO COLECIONISMO

MÚSICA ILUSTRADA

Site Arte Hall oferece um clube em que os 50 associados pagam uma taxa e recebem cinco obras de artistas selecionados por ano

O ilustrador Teófilo Viana usa o seu blog para ilustrar trechos de músicas, com referência, principalmente, aos últimos acontecimentos, como a derrota de Anderson Silva, a Copa do Mundo e os problemas com a TelexFree.

artehall.com.br

Provavelmente, você já ouviu falar nos clubes de vinho. Neles, um grupo paga uma taxa fixa e recebe um determinado número de garrafas da bebida mensalmente. Assim, os não especialistas tem a segurança de receber produtos escolhidos por sommeliers que percorrem vinícolas em busca de bons rótulos. Agora, imagine um formato similar, com obras de arte. Esse é o projeto desenvolvido pelo Arte Hall – cujo objetivo é atingir interessados em arte que não saibam por onde iniciar uma coleção. Dentro dele, funciona o Clube Hall, nos mesmos moldes daqueles voltados para vinhos. São formados grupos de 50 associados, que pagam uma taxa (na última edição foi de R$ 5.400) para receber cinco trabalhos inéditos dos cinco artistas convidados, cada qual com tiragem de 50 unidades. O participante sabe de quem vai receber, mas não conhece a obra. O Clube Hall organiza encontros e conversas nos ateliês para aproximar os integrantes do grupo deste universo. Na primeira edição, figuraram: Armando Prado, Artur Lescher, Flávia Ribeiro, OVO e Paulo Climachauska. Na segunda, Christian Cravo, Vicente de Mello, Nati Canto, Cassio Vasconcellos e Cristiano Mascaro. O site programa a 3ª edição do clube para este segundo semestre de 2013. MARIANA OLIVEIRA

logomusica.tumblr.com

DESCUIDO TECNOLÓGICO lifeofastrangerwhostolemyphone.tumblr.com

Ao roubar um aparelho celular em Ibiza, na Espanha, Hafid não esperava ter sua vida privada invadida. Por descuido dele, um aplicativo, que repassa todos os registros da câmera para o e-mail da real proprietária, não foi desativado. A dona, que passava férias na praia, não pensou duas vezes e criou o blog Life of a stranger who stoled my phone (Vida de um estranho que roubou meu celular), com fotos e vídeos de Hafid em sua vida cotidiana.

sites sobre a

maternidade BEBÊ NA BARRIGA

CORPO DE MÃE

CULINÁRIA

comecandoerrado.tumblr.com

theshapeofamother.com

marmitababy.blogspot.com.br

Aida Polimeni conta no Comecei Errado as dificuldades e os privilégios de se estar grávida aos 20 e poucos anos.

Site reúne imagens de partes do corpo de mulheres que tiveram bebê. Com isso, espera difundir a ideia de que imperfeições são comuns e não o fim do mundo.

O Mamita Baby reúne receitas de comidas e temperos para os bebês, enviadas por várias mães. Além disso, abre debate sobre a alimentação dos pequenos e das gestantes.

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Port f 1

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CON TI NEN TE

Portfólio

Raoni Assis

PERSONAGENS COMO VISÃO DE MUNDO TEXTO Marina Suassuna

Quando pequeno, Raoni Assis trocava os carrinhos de brinquedo por lápis de cor e

massinha de modelar, que ganhava de presente da família. Mas foi cursando Publicidade que se conectou definitivamente às artes visuais. Longe de se dedicar à criação artística em prol de um objetivo publicitário, o pernambucano de 26 anos, absorveu outro tipo de aptidão proporcionada pela sua formação. Quem vê suas ilustrações não imagina que são resultado do processo criativo semelhante ao da publicidade: a sugestão de conceitos por imagens. No entanto, Raoni não tem intenção de persuadir o interlocutor. Seu universo artístico é autorreferente, funciona como um porta-bandeira de si mesmo. É através de personagens, todos com uma história fictícia, que ele expressa sua visão de mundo. Sensível ao cotidiano, compõe seus protagonistas inspirado na cultura urbana. Seja reproduzindo o gestual de alguém que encontra na padaria, detalhes da roupa de um transeunte ou cenas prosaicas que de alguma forma o cativam. As técnicas variam de acordo com a proposta. Nanquim, aquarela, grafite, lápis de cor, hidrocor, acrílica e carvão sobre papel, madeira e pedra são as mais exploradas. Não há restrições para o uso das cores. Munido de uma paleta eclética e vibrante, o artista enxerga a variedade de tons como sinônimo de possibilidades criativas, e não como necessidade de transmitir alegria e vivacidade. Alguns elementos são recorrentes em suas obras, como as figuras do negro, da mulher, e objetos, como o capuz preto dos zapatistas. Se, na infância, Raoni tinha dificuldade em

Página anterior 1 MULHERES

Raoni diz que tenta entendêlas, à medida que as desenha

Nestas páginas 2-5 CORES

Tons vibrantes reincidem no seu trabalho

6 AUTORRETRATO Aqui, artista usou várias técnicas: aquarela, lápis de cor, nanquim e esferográfica sobre papel

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Portfólio

desenhá-la, hoje, a figura feminina é um dos ícones de seu trabalho. Nada mais natural, para quem tem como referência obras de artistas como Gustav Klimt e Egon Schiele, cujas obras, ainda que sob perspectivas diferentes, apresentam culto ao feminino.“Mulher é um negócio muito difícil pra mim. À medida que vou desenhando, vou tentando entendê-la. Ela tem umas sutilezas... Homem é uma mulher maldesenhada”, brinca. A estética visual e a narrativa das histórias em quadrinhos está intimamente ligada à identidade artística de Raoni. “Quadrinho é a linguagem que mais me

cativa. Acho bem completa. Gosto do jeito que você é conduzido de uma imagem para outra. Mudando o tamanho dos quadros, o vácuo entre eles.” Seu estilo também flerta com a psicodelia, sinalizada pela desordem, delírio e “conexões desconexas”. É da natureza do artista criar imagens sugeridas pelas músicas que ouve, além de cenas que “rouba” de filmes. O diálogo com a linguagem musical também está presente nas ilustrações dos cartazes que produz para divulgar as festas d’A Casa do Cachorro Preto, em Olinda, espaço cultural que coordena há pouco mais de um ano, onde também se localiza seu ateliê. Muitos desses anúncios integram

a decoração do espaço e refletem a influência, no trabalho do artista, dos cartazes no estilo art noveau e do pintor Toulouse-Lautrec. Adepto do rascunho, ele diz que a transição para a arte final é algo que gosta de deixar em aberto em seus trabalhos, como maneira de interagir com o interlocutor. “Muitas vezes, risco os desenhos depois de finalizados, na intenção de criar lacunas para que as pessoas possam preenchê-las.” Raoni realizou cinco exposições individuais e participou de várias coletivas. É de sua autoria a ilustração do pôster oficial da Copa do Mundo da Fifa Brasil 2014 – Sede Recife. Suas obras também estão em livros, publicações jornalísticas e já ocuparam espaços públicos, através de intervenções urbanas.

7 RASCUNHO Ideias inacabadas servem de estudo e deixam brechas que interessam ao ilustrador 8 ESTILO Desordem e delírio indicam psicodelismo 9-10 CARTAZES Dentre sua produção gráfica, há ilustrações para divulgação de festas e eventos 11-12 QUADRINHOS Raoni afirma a influência exercida nele pelas HQs

Nos últimos anos, tem sido responsável por movimentar a cena das artes plásticas em Olinda, utilizando A Casa do Cachorro Preto para dar visibilidade ao trabalho de uma nova geração de artistas, entre eles o paraibano Shiko, que ele considera uma de suas referências mais próximas.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

FESTA PARA WARHOL Como se sabe, Andy Warhol adorava festas, algumas promovidas em seu ateliê, Factory. Mesmo após 25 anos de sua morte, não foi esquecido esse seu espírito (perdoem o trocadilho). Por isso, o Museu Warhol organizou uma transmissão ao vivo (live streaming), diretamente do cemitério onde o seu corpo foi enterrado, como uma forma de comemorar a passagem pelos 85 anos de nascimento do expoente da pop art, em 6 de agosto. Durante a transmissão, que seguiu até o dia seguinte, os internautas puderam assistir à movimentação no local. Alguns visitantes passaram por lá, tiveram seus minutos de fama, mas apenas um homem vestido com um kilt (roupa tradicional escocesa) chegou a passar algumas horas e até arriscou um happy birthday. (Débora Nascimento)

Ao vivo, no cemitério A pessoa ir a Hollywood e não ficar o mais próximo possível de uma celebridade é dar a maior bobeira. Esteja ela viva ou morta. Pelo menos é o que se constata diante dos eventos realizados no Hollywood Forever Cemetery, hoje, um dos espaços mais queridos de Los Angeles, onde estão enterrados astros e estrelas do cinema americano. É que, no verão, o calor na Califórnia é de matar qualquer cristão, e as pessoas zanzam atrás de um lugar aberto e ventilado para relaxar. E, ao lado da cara metade, melhor ainda. Os 62 hectares do cemitério, localizado no nº 6.000 do Santa Monica Boulevard, naquela cidade, viraram palco para shows de bandas como Bon Iver, Belle & Sebastian, Flaming Lips e Broken Social Scene. Todos se esbaldam com cerveja e vinho, e arrumar uma vaga no local é uma parada de morte. Tudo começou com a exibição de filmes ao ar livre do projeto Cinespia, fundado há 10 anos pelo arquivista John Wyatt. Com o tempo, para a turma balançar os esqueletos, DJs passaram a tocar depois das sessões, que apresentavam filmes, em sua maioria, clássicos ou cults, excetuando os de terror, estrelados por um naipe de astros, como Rodolfo Valentino, Douglas Fairbanks, Jayne Mansfield e Tyrone Power, que, alheios ao furdunço, repousam eternamente no local. LUIZ ARRAIS

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A FRASE

“Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo.”

Balaio BILHETINHOS, VOLVER!

A velha máquina de datilografia, quem diria, pode viver novo ciclo. É o que sugere o fato de o governo da Rússia ter comprado 20 desses equipamentos para a produção de textos oficiais. Isso depois de o ex-técnico da CIA, Edward Snowden, denunciar que os EUA estavam fazendo espionagem digital em vários países, o que levou a chanceler alemã, Angela Merkel, a lembrar os “idos tempos da Guerra Fria”. A coisa está tão séria que não será surpresa se, no Brasil, outra vítima dos “arapongas” norte-americanos, aparecer alguém sugerindo a volta do estilo Jânio Quadros, presidente que costumava despachar com os auxiliares mais próximos através de bilhetinhos. (Gilson Oliveira)

Eça de Queiroz, escritor português C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 3 | 2 0

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ARQUIVO

O NOVO E O VELHO DYLAN Geralmente, as histórias relacionadas a Bob Dylan estão envoltas por uma camada de pitoresco. Uma delas diz respeito a como ele conheceu Bruce Springsteen, em 1975. Dylan era a estrela de um festival de música. Em dado momento, chega aos bastidores o novato de Nova Jersey, causando certo burburinho. O bardo se volta para os presentes e pergunta “Quem é esse tal de ‘Springfield’?”. Entenderam como se fosse uma brincadeira. Afinal, o rapaz de 26 anos tinha acabado de lançar pela Columbia (hoje Sony), mesma gravadora de Dylan, Born to run, disco que vendera 6 milhões de cópias, um sucesso comercial que o autor de Like a rolling stone nunca conhecera. Para completar, Bruce era tratado pela imprensa e pela própria gravadora como o “novo Dylan”. (DN)

O NOVO E O VELHO DYLAN 2 Bob, apesar de ser o compositor número 1 da América, quiçá do mundo, nunca conseguiu ter tal apelo de massas. Enquanto isso, Bruce possui uma “presença cênica” muito maior e estreitou ainda mais os laços com os americanos através de dois aclamados álbuns, um sobre o pós-11 de setembro (The rising, de 2002), e, outro, inspirado nas consequências da crise financeira nos EUA. Wrecking ball ficou em 1º lugar na lista dos melhores discos de 2012 da Rolling Stone, na qual Tempest, de Dylan, conquistou a 4ª posição. Neste mês, “Springfield” volta ao Brasil, após 25 anos, para dois shows da Wrecking Ball Tour, que também celebra seus 40 anos de carreira fonográfica. Diferenças à parte, os dois ícones da música americana se tornaram amigos desde aqueles anos 1970. (DN)

O homem do front Deparar-se, hoje, com fotografias da Segunda Guerra Mundial pode ser, surpreendentemente, uma experiência “insensível”. Antes que você me apedreje, explico: esta seria uma reação de saturação a tudo já (re)exposto sobre o conflito. Um antídoto contra essa possível apatia diante de imagens de guerra é o contato com a obra de Robert Capa, “o” fotógrafo de fronts por excelência, que faria 100 anos em outubro, se não tivesse morrido ao pisar numa mina terrestre em 1954, quando cobria a Guerra da Indochina. Nas suas fotos, vivemos a guerra. Não apenas nas cenas de horror, de combate, mas nos “intervalos”, nos “vazios”. Como no portrait acima, em que Capa registra um piloto aliado que “anotava” na funilaria do seu avião os abates de nazistas e fascistas que tinha realizado. Capa não queria ser fotógrafo, tinha a pretensão de ser escritor, foram a guerra e a perseguição aos judeus que o empurraram para o ofício (ele era de família judaico-húngara). A propósito, o texto dele também é bom, pelo menos o de caráter memorialista, como se constata no seu Ligeiramente fora de foco. ADRIANA DÓRIA MATOS

APELIDOS QUE PEGAM Atribuir apelidos aos músicos é comum, mas raros são os que pegam. Como o de Calvin Broadus, cujo epíteto da mãe, Snoop Dogg, virou sua marca, e foi baseado no cachorrinho de Charlie Brown. Já Man in Black surgiu após todos perceberem que Johnny Cash só se vestia de... preto. O de Elvis, Rei do Rock, não precisamos explicar muito, né? Essa história de reinado parece ter agradado Michael Jackson. Há três versões para o surgimento da ideia de O Rei do Pop, que teria partido: 1) de sua amiga Elizabeth Taylor, 2) da Columbia/ Sony, 3) do cantor, que sugeriu à gravadora barganhar com os canais de TV que o divulgassem dessa maneira, se quisessem veicular o vídeo de Black or white. Já David Robert Jones resolveu trocar de sobrenome por conta do músico Davy Jones, do Monkees. Pôs o Bowie, “inspirado” numa marca de facas de defesa e caça. É também conhecido como o Camaleão do Rock. pelos motivos óbvios. (DN)

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PAISAGISMO Um passeio pelo verde da cidade

Ainda que muitas vezes de modo imperceptível, a vegetação urbana provoca impacto psicossocial nos cidadãos, não tendo apenas a função de reguladora climática ou estética, mas sendo responsável pela sua saúde emocional TEXTO Fellipe Fernandes FOTOS Hélder Tavares

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CON CAPA TI NEN TE para planejar o tipo de árvore exato para cada rua, levando em consideração as condições estruturais do lugar e a necessidade de criar microclimas”, afirma o urbanista Luiz Vieira, professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco. As árvores podem provocar uma diferença de oito graus na temperatura local. “Na nossa cidade, temos um déficit de área verde. O fato de a arborização municipal ser responsabilidade da Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), um órgão de serviços, diz algo sobre como é pensado hoje o paisagismo no Recife”, diz o professor. Ele lembra que o Recife já teve uma diretoria de parques e jardins. Pedro Paulo Araújo já esteve à frente desse departamento. Ao terminar o curso de Agronomia, com 22 anos, passou num concurso público para fiscal de obras da prefeitura. Assim

A importância de espécies que nomeiam bairros, como Tamarineira, é subjugada por novos empreendimentos Os moradores da Rua Santo Elias

acordaram ao som de motosserras. Numa manhã de domingo, uma querela chegava ao fim no Bairro do Espinheiro, zona norte do Recife. Quem lançasse a vista pela janela do apartamento poderia observar uma discussão em torno de uma das grandes árvores, com troncos grossos e copa larga, que margeiam o asfalto. Era o capítulo final de uma história antiga. Um prédio fora construído com a porta da garagem projetada para ficar atrás de onde uma árvore antiga estava fincada. Depois de uma disputa que durou meses, envolvendo o Ministério Público, moradores da região e a construtora do edifício, esta última levou a melhor, e o

exemplar cativo de acácia mimosa estava sendo removido naquele dia. Em troca, a construtora plantou na mesma região 12 pés de ipê. O fim da acácia da Rua Santo Elias, em junho passado, revela uma constante da paisagem recifense, que pode ser notada por qualquer observador mais atento. À medida que novas construções são desenhadas no horizonte da capital pernambucana, o verde perde espaço. A importância das plantas, que inclusive batizaram bairros como Jaqueira, Tamarineira, Mangabeira e Mangueira, é subjugada pelos novos empreendimentos. “Ruas novas são calçadas sem árvore alguma. Um plano de arborização poderia ser feito

que foi efetivado, tornou-se gerente da divisão de parques e jardins, que mais tarde se tornaria uma diretoria desvinculada da Secretaria de Agricultura, mercado e matadouros, à qual pertencia então. Durante as cinco décadas como funcionário público, ocupou o mesmo cargo diversas vezes, acompanhando mandatos de prefeitos como Geraldo Magalhães, Pelópidas Silveira e José do Rêgo Maciel. Hoje, aos 82 anos, Pedro Paulo mora em Boa Viagem, zona sul da cidade. Ele observa a paisagem ao redor. Olha para algumas poucas árvores em sua rua e para o paredão de edifícios que envolve o bairro. Diz que não gosta de reclamar. “Porque parece coisa de velho,

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que fica nostálgico por causa da idade”, brinca. Mas garante que não entende o valor que é dado ao verde atualmente no Recife. “Muito muro, asfalto e poucas árvores. As que existem, ou estão aí há muito tempo ou são pequenas, porque não conseguem conservar o que plantam”, comenta, com a experiência de quem já foi responsável por toda a área verde da cidade. Quando o agrônomo entrou na faculdade, não existia ainda um estudo da paisagem, como é feito hoje no Laboratório da Paisagem – UFPE. Ao assumir a divisão de parques e jardins, ele contava com o pouco que havia aprendido nas disciplinas de Botânica na faculdade. O aperfeiçoamento veio com a prática. No primeiro jardim que montou – uma das etapas do que é hoje o Parque da Jaqueira –, teve que lidar diretamente com Roberto Burle Marx, um dos maiores paisagistas brasileiros, com projetos realizados em todo o Brasil e em países como Estados Unidos e Venezuela.

No Recife – onde Burle Marx morou entre 1934 e 1937, assumindo o cargo de diretor de Parques e Jardins do Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Estado de Pernambuco –, foram construídos 50 jardins, entre públicos e privados, a partir de projetos do paisagista. “O problema é que as pessoas não costumam entender que um projeto de jardim tem que ser respeitado. Então, cada nova gestão vem e planta uma muda ali, outra aqui, porque acha que fica mais bonito e acaba descaracterizando o projeto inicial”, comenta Pedro Paulo. Em agosto passado, os jardins da Praça Euclides da Cunha, projetados por Burle Marx, começaram a ser revitalizados. Segundo Cida Pedrosa, secretária de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Prefeitura da Cidade do Recife (PCR), as obras devem ser finalizadas no final deste mês. “Vamos executar a revitalização e a Emlurb ficará responsável pela manutenção do espaço”, explica. A praça Euclides da Cunha está entre os seis espaços públicos

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Página anterior 1 AGAMENOM MAGALHÃES

Avenida que margeia canal possui trechos bem arborizados

Nesta página 2 ANA RITA SÁ CARNEIRO

Arquiteta afirma que o ser humano precisa entender que não há distinção entre ele e a paisagem

projetados por Burle Marx que aguardam o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O projeto de tombamento dos jardins como patrimônio cultural, encaminhado desde 2008, foi elaborado pelo Laboratório da Paisagem – UFPE, em parceria com a PCR e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Inclui ainda as praças de Casa Forte, do Derby, da República (abrangendo o jardim do Campo das Princesas), a Ministro Salgado e a Farias Neves. “Burle Marx dizia que fazer paisagismo é fazer arte”, conta a coordenadora do Laboratório da Paisagem – UFPE, Ana Rita Sá Carneiro.

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CON CAPA TI NEN TE CONSCIÊNCIA DO PARAÍSO

O Centro de Artes e Comunicação (CAC), da UFPE, fica no final da principal avenida da Cidade Universitária, na zona oeste do Recife. Um canteiro invariavelmente verde acompanha toda a extensão da via. No pátio interno do prédio, árvores imensas dão sombra aos bancos de cimento rodeados por gramas e trepadeiras. Ainda no térreo, num corredor sem janelas, a porta indica: Laboratório da Paisagem do Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Lá dentro, repousam sobre a mesa diversos livros, que se espalham para além das prateleiras. Ana Rita Sá Carneiro logo cita Augustin Berque, quando começamos nossa conversa. Depois de passar alguns anos no Japão, o geógrafo e filósofo francês trouxe para o Ocidente uma forma diferente de se pensar a paisagem. “Ele dizia que a medicina oriental entendia o próprio corpo do homem como uma paisagem”, ressaltou. Essa seria apenas uma pista para revelar a necessidade de conexão do homem com a paisagem, possível apenas através da natureza. “A discussão sobre paisagem começa com a criação, o Jardim do Éden. A ideia de paraíso é um jardim”. Para Ana Rita, há uma carência biológica real que faz o homem necessitar do contato com a natureza. “É uma coisa que nos atinge diretamente como seres humanos.” Antes de qualquer coisa, ela afirma, é preciso trabalhar o olhar das pessoas. “Como posso dar um valor paisagístico a qualquer coisa, se não tenho consciência do que é paisagem? Não fomos educados para a contemplação. Os pais levam os filhos, de carro, para passear nos shoppings”. Ela lembra que a cartilha da Convenção Europeia da Paisagem tem o desenho de uma criança olhando a cidade na capa. “Precisamos entender que nós somos a paisagem.” Ana Rita defende que a sensação de pertencimento que a paisagem é capaz de gerar deve ser levada em consideração em qualquer planejamento urbano. Ela mora em Casa Forte. Na sua rua já existiram

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mais árvores, antes de tanto prédios. Mas o bairro da zona norte recifense permanece como destaque entre os logradouros do Recife que mantêm boa vegetação. Assim como o Espinheiro, onde seus avós moravam. A casa deles ficava na Avenida Conselheiro Portela. “Lembro que meus irmãos sempre comiam oiti direto do pé e as calçadas ficavam todas amarelas por conta dos oitizeiros.” A arquiteta não gostava da fruta, mas, a partir da lembrança dos oitizeiros, revisitou a casa dos avós, a infância, o Recife de décadas atrás. Ela completa sua reflexão com um pensamento de Augustin Berque: “A paisagem é o sentimento com o mundo”.

Ana Rita tinha acabado de dar aula. Passou no laboratório para adiantar algumas coisas antes de almoçar. Na sala, o biólogo e doutorando em desenvolvimento urbano Joelmir Silva e a arquiteta e mestra em Desenvolvimento Urbano Michele Santana trabalhavam no computador. Michele lembra que, no Espinheiro, no Carnaval, acontece o desfile do Bloco do Oiti, e comenta: “Muitas vezes, as pessoas não percebem o quanto a vegetação é importante no processo de elaboração da identidade do lugar. Existe um processo de associação tão natural, que, apesar de forte, passa despercebido”. Um dos maiores exemplos de como a construção da identidade de um

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3 MANGUEZAL Espécie que se encontra nas margens do Capibaribe tem porte mais alto que a original, impedindo visibilidade

espaço passa pela vegetação local é a identificação da cidade do Recife com o mangue. Versados por uma geração de artistas que ajudou a forjar a identidade cultural pernambucana, do manguebeat, os manguezais são ainda grandes símbolos da capital pernambucana, a manguetown. Em desenhos mais antigos da cidade – do século 17, época da invasão holandesa –, já é possível perceber a presença do ecossistema na paisagem recifense. Mas boa parte do tipo de vegetação que margeia hoje o Rio Capibaribe não é original. “Na década de 1980, com a ideia de revitalizar o ecossistema, foi plantado um tipo de mangue diferente da espécie natural daquela área”, explica Joelmir.

“Como posso dar um valor paisagístico a qualquer coisa, se não tenho consciência do que é paisagem?” Ana Rita Sá Carneiro Ele conta que, do ponto de vista paisagístico, a mudança do tipo de mangue – plantado numa região específica da cidade, mas que em alguns anos se multiplicou, tomando boa parte das encostas do rio – não foi positiva. “Esse tipo de mangue tem uma vegetação de porte mais alto do que a original. Ela acaba formando

uma barreira entre o rio e a rua, isolando as paisagens”, completa o biólogo. Seria necessário um estudo específico para executar uma nova mudança na vegetação, sem que as alterações afetassem o ecossistema. O processo decerto seria longo, mas faria uma diferença significativa no visual da cidade, ao facilitar a contemplação do rio a partir das diversas vias urbanas que o margeiam. “A vegetação tem que andar de mãos dadas com a pessoa enquanto ela se desloca no espaço urbano. A ideia é que a paisagem seja uma coisa contínua”, afirma Ana Rita. Ela lembra a sensação agradável de caminhar por algumas ruas do Recife, como a Professor Othon Paraíso,

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CON CAPA TI NEN TE no Torreão, bairro da zona norte, com o canteiro central repleto de grandes árvores com copas largas. Ou, ainda, pela Avenida Visconde de Suassuana, no Bairro da Boa Vista, na área central da cidade, com árvores dos dois lados da via emoldurando a passagem de veículos e pedestres. O canteiro do canal da Avenida Agamenon Magalhães também pode ser lembrado como um reduto de arborização urbana, principalmente nos trechos próximos à Praça do Derby. Em oposição ao prazer proporcionado pela existência de árvores nas vias da cidade, ela contrapõe a aridez da Avenida Norte. “Você sente o impacto quando passa por um fícus antigo, bem grande, próximo ao cruzamento com a Avenida Professor José dos Anjos. Depois de tanta coisa árida, a árvore é um sopro de salvação”, comenta.

Inventário recente aponta as quatro árvores mais frequentes no Recife: oitizeiro, sombreiro, castanhola e cássia Os pesquisadores do Laboratório da Paisagem afirmam não entender como as autoridades responsáveis pelo planejamento urbano são capazes de ignorar o bem-estar proporcionado pela arborização urbana e pelas áreas verdes. “Os novos desenhos do espaço urbano do Recife mostram que essa é uma questão menor para quem planeja a cidade”, lamenta Joelmir, citando as obras na Avenida Caxangá. Por conta da implementação do corredor viário leste/oeste, que pretende ligar a zona oeste da cidade ao centro, através do transporte rápido por ônibus, o canteiro central da avenida está sendo destruído. Assim como, há alguns anos, foi retirada parte do canteiro central do início da Avenida Domingos Ferreira, também em prol de uma melhor fluidez do tráfego viário. “Cada cidade deveria ter uma carta de paisagem”, sugere Ana Rita,

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FÍCUS Numa via árida como a Avenida Norte, exemplar frondoso se destaca na paisagem, a metros de distância

referindo-se ao documento que pode servir como guia para o planejamento do espaço urbano. A Associação Brasileira de Arquitetos e Paisagistas (Abap) lançou, em 2010, a Carta da Paisagem Brasileira, composta por 12 princípios (leia íntegra do documento no site da revista), que versam sobre cultura, meio ambiente e política. Ao contrário do Recife, outras capitais brasileiras, como Porto Alegre, Goiânia e Campo Grande, já fizeram planos de arborização urbana. “A carta é um documento importante para lembrar às autoridades o papel estético, social e cultural da paisagem”, argumenta a pesquisadora. A Divisão de Praças e Áreas Verdes da Emlurb – setor da Prefeitura da Cidade do Recife responsável pela manutenção de praças e jardins, além da arborização urbana – é composta por engenheiros florestais, biólogos e agrônomos. Segundo Socorro Silvério, chefe da divisão, não há nenhum arquiteto paisagista na equipe.

ÁRVORE DE RUA

A engenheira florestal Isabelle Meunier lembra que, na sua infância, era comum ver flamboyants pelas ruas do Recife. Apesar de não ser a espécie mais adequada para arborização urbana, a Delonix regia, nome científico da árvore, coloria a cidade em tons de vermelho e amarelo. “A árvore não faz mais parte do elenco da sementeira da Prefeitura do Recife. Hoje, vemos apenas alguns exemplares vermelhos nas ruas”, comenta Isabelle, que é professora do Departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ela afirma que inventários recentes mostram que são quatro os tipos de árvore mais comuns nas ruas da cidade: sombreiro, cássia amarela, castanhola ou oitizeiro. Elas correspondem a 60% das árvores urbanas. A predominância dessas e de outras espécies em determinadas ruas confere certa identidade aos

bairros. “No centro, em ruas da Boa Vista e no Cais José Mariano, há muitos fícus. Eles foram plantados por aqui no fim do século 19, vindos da Ásia”, explica Isabelle. Já o oitizeiro é característico de algumas ruas do Derby e do Espinheiro, bairros vizinhos. Enquanto, na zona sul, ainda que muita algaroba tenha sido plantada erroneamente e depois arrancada pela incompatibilidade da espécie com a arborização urbana, predominam os sombreiros. A castanhola, também conhecida como amendoeira-daÍndia ou coração-de-negro, não é indicada para calçadas estreitas, devido ao espaço necessário para o seu desenvolvimento, mas também está espalhada por todo o Recife. Árvores frutíferas como jambeiros, jaqueiras ou mangueiras, que já foram comuns nas ruas da cidade, hoje são evitadas. A queda de seus frutos

Seguindo tendência, o Recife substitui, nas calçadas, árvores por arbustos, resultado da falta de espaço no ambiente urbano pode machucar veículos e pessoas. Seguindo uma tendência nacional, Recife vem mudando a cara de suas calçadas, ao privilegiar arbustos ao invés de árvores. Segundo Isabelle, essa não é uma opção estética ou ambiental, mas resultado da falta de espaço no ambiente urbano, disputado por redes aéreas e subterrâneas, tráfego de pedestres e veículos, placas sinalizadoras e semáforos, fachadas e anúncios comerciais. “Querem uma espécie de planta impossível: uma árvore que não cresça muito, mas que dê sombra, que não suje a calçada com folhas, que não precise de poda e que tenha a raiz curta. Só se for uma árvore de plástico.” Pedro Paulo Araújo lembra a época em que precisou colocar dois guardas de bicicletas ao redor do canteiro central da Avenida Mascarenhas de Moraes, recém-

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Artigo

ISABELLE MEUNIER COMO COMEÇAR A ARBORIZAR AS PESSOAS Os tradicionais manuais de arborização urbana descrevem as etapas da arborização urbana bemsucedida, iniciando-se, evidentemente, pelo planejamento, que prevê a avaliação dos locais dos plantios, a seleção de espécies adequadas, definição dos métodos e técnicas para produção de boas mudas etc. Esses e outros passos são importantíssimos para a implantação e condução de um bom conjunto arbóreo urbano, essencial à sadia qualidade de vida das pessoas. Mesmo constituindo um roteiro lógico e tecnicamente embasado, são poucas as cidades, inclusive capitais, que os seguem. Sem dúvida, não se pode menosprezar a boa técnica, resultado de pesquisas nacionais e internacionais, após anos de desenvolvimento e avaliações. No entanto, além da técnica e antes de qualquer iniciativa de elaboração de um plano de arborização municipal, a observação da realidade das nossas cidades indica que uma questão precedente parece funcionar como fator limitante poderoso, condicionando a possibilidade de convivência harmoniosa com as árvores. Não há arborização possível se uma cidade não se prepara para acolher as árvores em suas ruas, praças, jardins e quintais. Se não há o desejo e a convicção da necessidade, não se desenvolvem as ações. Árvores precisam de espaço, de alguns cuidados, reconhecimento e respeito; sem isso, não há projeto bem-intencionado que se concretize na realidade. O planejamento urbano, participativo, inclusivo e corajoso, precede o plano de arborização, e deve acolhê-lo como um serviço urbano essencial – notadamente em cidades tropicais, onde os extremos climáticos se acentuam.

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O controle urbano é importante, executado com normas e fiscalização eficientes, e deve estar associado a uma mentalidade coletiva que reconheça a importância das árvores do meio urbano, pelos múltiplos serviços ambientais prestados. Legisladores e gestores precisam estar convencidos dessa importância, e buscar eficácia e inovação nas medidas de conservação, bem como nos mecanismos de incentivo à arborização. As construtoras, grandes remodeladoras da paisagem urbana, devem compartilhar com os cidadãos o compromisso com o futuro da cidade, e não apenas direcionar suas decisões em função do retorno financeiro no curto prazo. Embora seja difícil imaginar que o compromisso socioambiental possa imperar frente à “lógica do mercado”, pode-se acreditar que os técnicos que dão forma aos seus projetos, e os consumidores que definem esse mercado, desempenhem um papel fundamental nessa mudança de paradigmas. Para que se dê aceitação das árvores pela cidade, sobretudo os cidadãos precisam desejá-las, acolhê-las, valorizá-las e cuidar da sua conservação. E, em um passo adiante nessa tomada de decisão, vê-las não apenas como um serviço urbano útil, inanimado e substituível, mas como seres vivos, cuja sobrevivência depende de nossas escolhas de natureza ética. Para termos uma cidade mais arborizada e, assim, mais bonita e acolhedora, com temperaturas mais amenas e ar mais puro, na qual as pessoas caminhem e pedalem à sombra e usufruam de espaços públicos de esporte, lazer e convivência, precisamos, antes de tudo, mudar as pessoas, despertar a consciência por meio da comunicação, da educação e do exemplo. Repetindo Einstein, nenhum problema pode ser resolvido pelo mesmo grau de consciência que o gerou. Nosso grau de consciência precisa mudar, se quisermos um lugar melhor para viver.

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Alguns moradores não querem manter árvores em casa pelo simples fato de poupar energia na hora da varrição

construído. Eles anotavam a placa dos carros das pessoas que paravam ali para roubar mudas e plantá-las num jardim particular. “Mas eu quase me dei mal, quando mandei chamar os donos dos veículos para prestar esclarecimentos. Eram as mulheres dos generais da ditadura que mandavam os jardineiros roubarem as nossas mudas”, diverte-se o agrônomo. Boa parte dos oitizeiros da Avenida Visconde Suassuna foi ele quem plantou, assim como alguns da Praça do Derby. Como outras árvores implementadas em suas gestões, elas continuam firmes. “Vez por outra vejo que noticiam a queda de uma árvore mais antiga plantada na calçada. Pode ter certeza de que essas quedas estão mais frequentemente associadas a uma poda malfeita que a problemas das próprias árvores”, afirma Pedro Paulo.

PEDRO PAULO Grande parte dos oitizeiros existentes em bairros como Espinheiro, Derby e Boa Vista, no Recife, foi plantada pelo agrônomo, nos anos 1950

Socorro Silvério explica que, para cada uma das Regiões Político Administrativas (RPA), existe um engenheiro florestal responsável na Emlurb. “Nosso quadro conta com diversos doutores especialistas na vegetação urbana.” Eles determinam a poda e erradicação das árvores. Pelo número telefônico 156, qualquer morador da cidade pode solicitar o plantio, a poda ou a remoção de uma árvore em via pública. A partir do pedido, os engenheiros da Emlurb analisam a coerência e validade da ação. Isabelle fez um parecer, há alguns anos, sobre o corte de uma árvore pública, em frente a uma residência, em Olinda, realizado sem qualquer fundamento técnico que justificasse sua autorização. A proprietária do imóvel alegou que havia solicitado o corte de uma vigorosa castanhola porque a planta não permitia que sua calçada permanecesse limpa, sem necessidade de varrições constantes. “Para aquela senhora, a árvore desvalorizava sua residência, reduzia sua área de calçada e era uma fonte constante de incômodo.” Já o vizinho reclamava da sombra perdida e da ausência dos pássaros que costumavam visitar o local. “Não deixa de ser curioso como um único ser vegetal pode despertar

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sentimentos tão antagônicos, assim como acontece com seres humanos. O certo é que o benefício gerado pela árvore – além de público, pela sua localização – é de uso coletivo, assim estabelecido pela Constituição Federal, e portanto, deve ser zelado pelo poder público”, observa. Interesses pessoais não podem determinar um prejuízo coletivo. Dessa forma, o corte não autorizado de uma árvore constituiu-se crime ambiental. “Fácil julgar e até mesmo penalizar a velha dama dendrofóbica. Mas como mudar sua percepção? Como fazê-la compreender a beleza e a utilidade da árvore da sua calçada? Como incutir respeito a essa forma de vida e às demais

“O benefício gerado pela árvore é de uso coletivo, assim estabelecido pela Constituição Federal” Isabelle Meunier que ela abrigava? Esse parece ser o grande desafio da arborização urbana”, defende Isabelle Meunier. Dendrofobia, explica a engenheira florestal, é o mal social que faz as pessoas detestarem as árvores (no grego, dendron). “Em pleno mês de abril, início das chuvas, o Recife ferve a mais de 30ºC. Se esse calor

já é efeito das mudanças climáticas globais, não sabemos. Mas é certo que a nossa dendrofobia tem contribuído, e muito, para vivermos numa cidade de clima escaldante”, escreveu Isabelle num artigo. Ela acredita que essa atitude só poderia ser combatida através de uma ação educativa perene, que fizesse a população entender os benefícios efetivos da arborização urbana. “A importância das árvores na paisagem não tem como ser negligenciada. Elas geram benefícios ambientais e sociais.” Uma pesquisa feita na década de 1990 e início dos anos 2000, em Chicago, analisou o impacto psicossocial dos espaços verdes em áreas urbanas. Frances Kao,

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pesquisadora do Laboratório de Saúde Humana e Paisagem da Universidade de Illinois, estudou o comportamento de moradores de prédios de habitação. Eram dois conjuntos de arquitetura idênticas, exceto que perto de um existia uma área verde, com equipamentos de lazer e contemplação. Após a análise de uma série de dados, como o número de chamadas à polícia por residência, e da realização de entrevistas, o resultado mostrou que as pessoas que residiam próximas ao verde eram menos agressivas, tinham maior espírito de comunidade e lidavam melhor com as tensões do cotidiano. “O homem volta do trabalho exausto.

A aversão de indivíduos pela vegetação poderia ser combatida por ação educativa que apontasse benefícios Se ele passa pela praça e encontra um amigo, senta, conversa e relaxa. Quando chega em casa, já está melhor. E, se for agressivo com a mulher, ela consegue buscar ajuda mais facilmente, pois já fez amizades na comunidade por conta do convívio proporcionado pela área verde”, exemplifica Isabelle.

DIFERENÇAS Levantamento realizado em 2006, sobre vegetação do Recife a partir de suas zonas, apontou desproporção de ocorrência, sendo mais arborizados os bairros de melhor poder aquisitivo

Apesar disso, uma pesquisa realizada na comunidade do Coque, na área central da cidade, revelou que a praça pública é vista com receio pelas mães de jovens e crianças em localidades de baixo poder aquisitivo. Elas preferem que seus filhos fiquem dentro de casa, onde podem controlar de maneira mais efetiva a educação deles. “Se simplesmente jogamos uma área verde no meio da comunidade e pronto, impera a lei do mais forte. Então é preciso uma gestão do lugar para transformar a área pública num espaço de cidadania.” O Parque da Jaqueira, na zona norte, é um exemplo de gestão consciente, destaca Isabelle. Em 2006, ela realizou um levantamento da vegetação urbana do Recife, a partir de amostragens divididas pelas RPAs. Foi possível perceber uma constante que relacionava a flora com o poder aquisitivo do bairro. “Nós temos um processo de disparidade em termos de ofertas do benefício da arborização proporcional a questões da renda. Nas áreas mais densamente povoadas, onde as calçadas são mais estreitas que o normal ou quase inexistentes, como os altos e morros, não há nenhum esforço para se buscar formas alternativas de arborização, como parques e praças”. Pedro Paulo se diz cansado de lutar por um olhar adequado ao verde da cidade. “Hoje, põem cercas em todas as áreas públicas e deixam algumas delas completamente abandonadas. Na minha época, cada um desses espaços contava com um quadro fixo de funcionários, que se revezavam cuidando da manutenção e segurança do local, 24 horas por dia.” Aposentado do cargo na prefeitura e da função de professor na UFRPE, ele diz que se preocupar com o paisagismo da cidade é como uma corrida de obstáculos. “Um revezamento. E, agora, estou passando o bastão adiante.”

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JOCA REINERS TERRON Um escritor e sua cozinha extraordinária Em novo romance, o cuiabano que vive há duas décadas em São Paulo recria sua receita baseada em seres excêntricos, humor bizarro e linguagem surpreendente TEXTO Ronaldo Bressane FOTOS Renato Parada

Engraçado é que sempre que lembro o Joca, eu lembro comida. Não que ele seja exatamente gostoso. Tampouco gordo – o vôlei da adolescência o deixou musculoso, boa sustentação para a pancinha proeminente da cerveja da juventude (da meia-idade? Ele já está com 45 anos e a sede segue grande). É que quase sempre que nos encontramos estamos a uma mesa. A primeira vez que bati os olhos no nome Joca Reiners Terron foi em 1999, no finado Fran’s Café da rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena: no café, havia uma rara livraria que dispunha em uma grande mesa livros de autores mais tarde convencionados sob o rótulo Geração Noventa (ou Geração Nojenta, para alguns), gente como Marçal Aquino, Nelson de Oliveira, Marcelino Freire. Ali estava seu primeiro livro de poesia, Eletroencefalodrama, publicado por sua editora Ciência do Acidente. Mais tarde nos vimos em um Bloomsday, no Finnegan’s Pub de Pinheiros, munidos de cervejas pretas e fish’n’chips. Depois, viriam os encontros revezados

No livro, os personagens se movem ao redor de um crime enigmático, praticado em um zoológico noturno entre a Pizzaria Mandrágora e os bares Platibanda, Filial, Ponto X e Empanadas, até que, por fim, concentraríamos nossas conversas ao redor dos balcões e mesas da Mercearia São Pedro – onde, glória dos botequineiros, o assíduo Joca chega a batizar um sanduíche de pastrami. Conforme Joca foi sofisticando sua literatura, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, a tornava mais acessível, também ia requintando sua gastronomia (comer/cozinhar e ler/escrever são atividades complementares; desconfie de um escritor que não goste de comer, que não tenha prazer em degustar uma específica iguaria, e que não tenha ao menos um jeito autoral de

fritar um ovo). Pai de Júlia, hoje com 14 anos, aprendeu a cozinhar para a filha na marra; a intimidade com as panelas o fez recriar os pratos favoritos em seu próprio fogão. Suas especialidades são pucheros e cozidos (traindo a ascendência ibérica), costelas, pernis e outras carnes ao forno, bem como uma sobrenatural feijoada – servida em raros sábados em sua casa, em convescotes embalados por vinis de Erasmo Carlos, Black Keys e Cartola, tendo como MC a inseparável Isabel Santana Terron, fotógrafa e editora cognominada Egípcia do Crato (pela discreta procedência cearense). Embora esfomeado, Joca é um chef à moda antiga; somente se serve quando todos os seus convidados já finalizaram o primeiro prato. Há uma explicação simples para esse emergente talento da culinária brasileira: a cozinha de Joca é colada a seu escritório, e há quase 20 anos o homem vive na frilândia. Seja como designer, cozinhando capas e projetos gráficos, seja como tradutor, editor, dramaturgo, professor, roteirista,

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curador ou até mesmo escritor, os proventos de Joca vêm de seu home office, onde junta a fome por frilas com a vontade de comer. Foi nesse apertado quartinho atulhado de livros, anotações, desenhos e perdidos pedaços de bacon que Joca concluiu o terceiro romance, A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves. A fome de bola desse renitente torcedor do São Paulo o levou cozinhar a obra em somente dois meses. Talvez a velocidade seja a responsável por uma escrita tão leve, limpa dos trocadilhos, das frases sinuosas e das imagens complexas que temperaram livros como o romance em contos Não há nada lá, as narrativas fragmentárias de Hotel Hell ou os contos autobiográficos de Curva de rio sujo. Isso não significa, no entanto, que seja um livro feijão com arroz. Ao contrário: tal como o chinês da anedota, o ágil romance equilibra

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Perfil vários pratos giratórios ao mesmo tempo. Um taxista psicopata amante da música clássica, um escrivão insone cujo pai está moribundo, uma bióloga com pretensões televisivas, um entregador coreano apaixonado e evangélico, uma enfermeira especializada em cuidados paliativos para pacientes terminais. Cada um dos personagens ganha o olhar parcimonioso do chef – além de uma criatura estranha que nunca sai de casa e do melancólico leopardo-dasneves cujo canto foi enjaulado. Todos se movem ao redor de um crime enigmático, praticado em um zoológico noturno, e todos se cruzam no bairro paulistano do Bom Retiro, caldeirão multicultural (Joca vai detestar esse clichê) onde fervilham bolivianos, judeus, coreanos, nordestinos – e até cuiabanos como Joca, que há alguns meses vive ali perto, no Bairro de Santa Cecília. Apaixonou-se pela área ao bater perna por quase dois anos reunindo material para a dramaturgia de Bom Retiro 958 metros, peça encenada pelo radical Teatro da Vertigem.

Entrevista

JOCA REINERS TERRON “A IMAGINAÇÃO E A REALIDADE VIVEM TROCANDO FLUIDOS” Foi no bairro paulista de Bom

Retiro, no clássico Esquina Grill, onde petiscamos maminhas e fraldinhas, que Joca Reiners Terron concedeu a entrevista a seguir. Ali mesmo ele rabiscou, em um guardanapo com manchas suspeitas, a receita de uma requintada iguaria, baseada em situações e cenas de seu novo romance (leia no box). Bom apetite. CONTINENTE Nunca sua linguagem esteve tão enxuta e certeira quanto neste livro, em termos estritamente fabulares, ligados à trama. Por vezes me peguei pensando em livros de Mario Bellatin e Roberto Bolaño. Essas leituras influíram? JOCA REINERS TERRON Certamente, mas não só. O que influi com certeza é a falta de tempo para escrever, que acabou me levando ao osso da linguagem, ou ao tutano, que é o que realmente interessa. CONTINENTE Em seus primeiros livros de ficção é visível o esforço de tornar cada frase impactante. Neste livro houve uma depuração, já sinalizada no anterior Do fundo do poço se vê a Lua. Esse é o caminho para onde se dirige sua escrita? JOCA REINERS TERRON Se o esforço era visível, era ruim. Infelizmente, não dá para saber ao menos se existirá um próximo texto. Cada dia é uma batalha, que não é perdida apenas quando surge espaço para levar adiante uma narrativa. Mas seria assim, mesmo se eu tivesse tempo. Terminar um livro é quase tão difícil quanto ganhar na loteria. CONTINENTE A peça que fez para o Teatro da Vertigem foi estímulo para descobrir um cenário para sua narrativa. Por outro lado,

mesmo surgindo elementos do “real” (bolivianos, coreanos, judeus), você manteve um pé na imaginação. Este é o norte da escrita, menos que a apreensão do “real”. Concorda? JOCA REINERS TERRON Para mim, uma coisa não está separada da outra. A imaginação e a realidade vivem trocando fluidos o tempo todo. Se a gente parar para observar, acaba notando que a realidade desenvolveu sua maneira própria de imaginar. É essa capacidade que me interessa, aquilo que Alexander Kluge chama de “o mundo fantástico dos fatos objetivos”. CONTINENTE Um bairro como o Bom Retiro foi salutar para a inspiração? JOCA REINERS TERRON Qualquer escapadela do escritório é boa para a imaginação. Sair de casa e andar pela rua é o momento em que escrevo com maior fluência. O problema é que não há registro dessa escrita, então, sou obrigado a voltar correndo e anotar antes que as ideias sumam. CONTINENTE A São Paulo que você apresenta é uma cidade mais pluralmente étnica do que a cidade normalmente decantada pelos próprios paulistas, orgulhosos de sua

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tempo para me envolver com eles, e também com um passado fugidio de descendente de imigrantes sem lembranças nem contato com suas origens. Quando saio à rua, me pergunto: quem são essas pessoas, do que vivem? É uma preocupação da qual nunca extraio respostas.

NY tupiniquim. Você, apesar de morar em SP há décadas, não é paulista. Ainda se sente estrangeiro nesta cidade, daí sua compaixão pelos gringos que aqui residem? JOCA REINERS TERRON Me sinto estrangeiro em qualquer lugar, principalmente dentro do meu próprio corpo. Tenho lembranças de um corpo que conseguia saltar e nadar sem sentir dores, então me sinto alienado neste corpo, pensando “onde será que meu eu de antigamente foi parar?”. São Paulo é o lugar onde menos me sinto assim, pois, com raras exceções, ninguém é daqui. Como em toda cidade composta por imigrantes, porém, o nômade chega ao novo mundo e imediatamente o toma para si. É como se tivesse sempre pertencido àquele lugar. CONTINENTE O livro é cheio de prisões e seres detidos: o leopardo, o taxista, a criatura, o garoto violador, o escrevente sarará — todos seres apartados, deslocados, alheios a um convívio. Por que o Outro é tão inacessível na sua obra? JOCA REINERS TERRON É o problema essencial de minha vida, que acabou invadindo os livros. Tem a ver com minha história pessoal, ter morado em diversos lugares sem nunca ter tido

CONTINENTE Esse é seu livro mais rápido, não? Isso também influiu no ritmo do texto? JOCA REINERS TERRON Escrevi em dois meses, mas, entre um mês e outro, o livro ficou esquecido por mais de ano, e acredito que isso tenha sido importante. Escrevi rapidamente, pois surgiu o tempo necessário para isso, e eu queria ter a primeira versão com urgência, pois sabia que o tempo logo desapareceria. Depois de um ano, reli, encontrei os problemas com maior facilidade e reescrevi durante mais um mês. Mas note que o livro tem dois ritmos: um é o dos capítulos ímpares, que reproduz circunvoluções do pensamento do narrador, o escrivão de polícia. O outro é o ritmo em que são narrados os eventos, muito mais factual e cheio de ação. O contraste entre esses dois ritmos faz a narrativa avançar. CONTINENTE Você é um dos 70 autores que vão representar o Brasil em Frankfurt. O que aguarda da feira? O governo continua tímido nas traduções de obras brasileiras? JOCA REINERS TERRON Não sei ao certo. Se não me obrigarem a jogar futebol e a sambar, já vai estar valendo. O sistema de subsídio à tradução de obras brasileiras da Fundação Biblioteca Nacional está fazendo sua parte, o mundo é que anda tímido em seu interesse em ler a literatura brasileira. CONTINENTE O que está cozinhando? Novo romance? O livro de poemas sairá? JOCA REINERS TERRON Estou ensaiando retomar a escrita de um romance já iniciado, o que é bastante difícil. Tenho vários livros de poemas inéditos, e isso me envergonha um pouco. Não o ineditismo – mas os poemas.

FEIJOADA DO NOCTURAMA Esta feijoada é feita com feijão negro, variação pouco conhecida do popular feijão preto. É um tipo de feijão de poucas colheitas ao ano, às vezes apenas uma, daí ser tão raro. Na noite anterior, coloque o feijão de molho em leite de cachorra rottweiler. O contato com esse leite de sabor ácido expulsará os carunchos do feijão. Não ligue para o que os carunchos digam (têm ideias maléficas). Separe, jogue fora. Cozinhe lentamente por duas noites seguidas o feijão negro acompanhado dos seguintes ingredientes. Lembre-se de que o segredo para que o feijão fique macio e suculento é a ausência de sal no processo de cozimento. • Duas folhas de mandrágora; • Buquê garni com: olho de vidro de escrivão de polícia, calcinha usada de assassina serial e coentro. • Azeite judaico de Heilel BenShachar.

CARNES

Prefira carnes tenras. • Paio de criança gorda. • Bulgogui coreano (churrasco). • Cauda de leopardo-das-neves em rodelas (toque especial). Tudo cozido, tempere com sal a gosto. Acompanhamentos: o feijão negro deve ser consumido sempre desacompanhado. Igualmente, o comensal deve estar sozinho. (JRT)

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ZURIQUE A terra dos dadaístas Cidade suíça guarda antigo clima boêmio e festivo, que atraiu jovens artistas e até soldados desertores em plena I Guerra Mundial TEXTO Luciano Velleda FOTOS Roberto Seba

Dezenas de garrafas brancas de vidro pendem do teto quase escondendo canhões de luz apontados para um pequeno palco existente no ambiente. As paredes ao redor são cobertas por pinturas velhas e descascadas, frases escritas à mão, quadros, grafites e retratos. Uma pequena lareira aquece o local, iluminado por uma luz fraca irradiada de alguns poucos lustres misturados às garrafas e um punhado de velas postas em candelabros. Um grupo de jovens ocupando duas mesas toma cerveja e se diverte com um irreconhecível jogo de cartas de baralhos especiais. A noite está começando e o salão no 2º andar do antigo casarão ainda está vazio. Mas, assim como há quase 100 anos, a atmosfera de contestação e rebeldia já está montada, à espreita. Não se trata de um salão qualquer e a noite promete ser quente: este é o Cabaret Voltaire, em Zurique, entre cujas paredes nasceu o Dadaísmo, o movimento que desestruturou a arte ocidental, no começo do século 20. Em 1916, enquanto bombas devastavam a Europa na I Guerra Mundial, iniciada dois anos antes, músicos, pintores, escritores, poetas, dançarinos e até soldados alemães desertores encontraram na cidade suíça o abrigo seguro. Revoltados diante da situação política que conduzia o

Movimento artístico vanguardista de contestação negava as experiências formais da arte até então, sem aceitar regras continente a uma batalha fratricida, desiludidos com os rumos econômicos que privilegiavam alguns poucos e alijavam a maioria, e contrários ao pensamento racionalista que se estendia às manifestações artísticas, um pequeno grupo de jovens decidiu expurgar a insatisfação e fundar o Dada, movimento artístico radical de contestação que negava as experiências formais da arte até então, sem aceitar preceitos, enquadramentos, e tampouco pretender formar um novo modelo. Até mesmo o nome, Dada, é fruto da intenção de não significar nada – embora a palavra tenha tradução no francês, romeno, alemão e italiano, em cada língua com significados discordantes. Fazer arte de maneira espontânea, desordenada, de preferência chocante e escandalosa, foi a motivação dos dadaístas. As longas noites movidas por poesia, música e dança no Cabaret

Voltaire atraíam artistas europeus com a mesma intensidade que o movimento se expandia para além das fronteiras da Suíça, espalhando suas ideias por Barcelona, Berlim, Paris e Nova York. O movimento contestador durou oficialmente até 1919, embora sua influência seja perceptível na obra de franceses e alemães de anos seguintes, como Max Ernst, defensor do Dadaísmo na Alemanha e ícone do Surrealismo. “Hoje, eles querem só provocar”, diz Monika Ghidoli, guia de turismo em Zurique, referindo-se aos atuais ocupantes do Cabaret Voltaire. Usado para diferentes fins durante longas décadas do século 20, o casarão da Rua Spiegelgasse 1, na zona histórica de Zurique, foi invadido e ocupado ilegalmente por artistas numa tarde de 2002. O ato reacendeu o interesse da mídia e da comunidade literária internacional, voltando seu foco uma vez mais para o lugar. Após meses de ocupação, a rebeldia venceu. Seguiram-se processos políticos, judiciais e trabalhos de restauração, até que o local de nascimento do Dadaísmo reabrisse suas portas ao público, em 2004. Hoje, a histórica casa apresenta, em seu 1º andar, exposições artísticas, interpretações e releituras do movimento. No andar superior, há

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MOBILIDADE

O rio é um elemento integrador da paisagem da cidade centenária Exclusivo para o público feminino durante o dia, o clube é procurado no verão Os simpáticos trens de superfície são pontuais e importantes meios de transporte na cidade

o café-bar, o lounge com poltronas espalhadas desordenadamente e o hall principal. O salão onde tudo começou, impulsionado pela ação de homens como Hugo Ball, Tristan Tzara, Hans Arp, e muitos outros, é um ambiente por excelência despojado, criativo, inspirador.

ORDEM DIURNA

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Curiosamente, ou talvez justamente por isso, para além do casarão da Rua Spiegelgasse, Zurique é uma cidade fiel ao estereótipo suíço. Durante o dia, nada parece estar fora do lugar. Tudo parece perfeitamente ordenado. A cidade é extremamente limpa, os trens de superfície deslizam silenciosamente – e são pontuais. As ruas da Old Town ostentam prédios antigos muito bem-cuidados, com fachadas preservadas, sacadas floridas, e chamativos “puxadinhos”, de gosto duvidoso para uns, e charmoso para outros. Os habitantes de Zurique dão bastante importância à moda: homens e mulheres vestem-se elegantemente, o que não significa exagero, pelo contrário, discrição. Há, contudo, exceções. Nos dias ensolarados de verão, algumas mulheres aproveitam as elevadas temperaturas para exibir-se com shortinhos e vestidos provocantes, atraindo olhares. As lojas de roupas são predominantemente caras e de marcas mundialmente famosas, com os produtos meticulosamente expostos na vitrine. Embora seja uma cidade antiga, e preserve bem sua história, Zurique impressiona mesmo é por sua modernidade – ou justamente pela harmonia do ontem com o hoje. E nada reflete melhor essa busca pelo novo quanto a valorização do design.

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“Os suíços e os moradores de Zurique gostam muito de design”, confirma Peter Vauthier, há 30 anos trabalhando na linha de frente do Hiltl Restaurant, o mais antigo restaurante vegetariano da Europa, inaugurado em 1898. A idade mais que centenária não está evidente na aparência do local. O restaurante tem um ambiente despojado e moderno, com belos detalhes – como quase tudo em Zurique – em suas cadeiras, lustres, sofás e poltronas. Referência na alimentação vegetariana, desde 2007 funciona no local uma escola de culinária especializada em comida asiática, com aulas para crianças, e cujos mestres são os próprios cozinheiros. À noite, quando o serviço do jantar é encerrado e a digestão começa, o Hiltl se transforma num agitado clube noturno. “Quando cheguei aqui, era só um restaurante. Um bom restaurante. Hoje ampliamos, a mentalidade das pessoas mudou muito nesse período, e somos mais que um restaurante”, atesta Peter. Para além de sua vocação como um dos maiores e mais famosos centros financeiros da Europa, a ânsia

A cidade possui muitas opções de restaurantes, bares, festas e passeios, que atraem turistas do mundo todo por inovação é uma faceta pouco alardeada de Zurique. Não à toa, a gigante Google instalou na cidade seu quartel-general no continente europeu. Num passado não muito distante, a maior cidade da Suíça era notícia mundo afora devido ao grave problema das drogas e da prostituição, que dominava bairros mais afastados da zona central. Justamente nessa região, conhecida como Zuri-West, a transformação hoje é mais evidente. O que, antes, era decadência e degradação urbana e humana, agora, é um local estiloso, na vanguarda da arte de rua e do design contemporâneo. Durante o dia, também um local para famílias, como no uso dado ao parque diante do Viadukt.

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Na manhã de um domingo ensolarado do mês de agosto, auge do verão, cada raio de sol é aproveitado ao máximo – pois a turma sabe bem o que a espera quando o inverno chegar. Crianças correm de um lado ao outro, jovens esparramam-se pela grama verde do parque ensaiando romances, casais bebem vinho enquanto embalam o carrinho do bebê, e até o chafariz, mais do que um objeto de enfeite, é motivo de festa para adolescentes e adultos, que nele se banham com alegria.“Zurique é uma cidade em que você pode fazer de tudo. Há muitos bares, festas, cultura. E, num dia de sol como este, você ainda pode fazer bons passeios”, diz a jovem Miriam Meier, de 24 anos, enquanto observa a paisagem da cidade emoldurada na janela do barco que lentamente desliza pelo Rio Limmat. Miriam é de Davos e vive em Zurique para estudar. Por ser mulher, se ela quiser, pode ainda aproveitar o sol do verão suíço de um modo peculiar: num deque montado sobre a margem do Rio Limmat fica o centenário clube Frauenbad, exclusivo para mulheres,

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No local onde funciona, desde 2004, uma badalada galeria-bar, nasceu o Dadaísmo

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onde elas podem banhar-se com privacidade e bronzear o corpo livre da parte superior do biquíni. Durante a noite, a exclusividade feminina é deixada de lado e ambos os sexos se encontram no Barfussbar, no mesmo local do Frauenbad – ainda que o número de homens permitido não ultrapasse os 150.

NOITE DE ARROUBO

As horas seguintes ao pôr do sol trazem, junto com a escuridão, a Zurique que pulsa num ritmo frenético. Se, durante o dia, a cidade é perfeitamente organizada e eficiente, à noite, o olhar mais atento começa a identificar curiosidades. As casas noturnas de Zuri-West sacodem ao

ritmo do techno, house, hip hop e R&B. No centro, na principal rua da Old Town, a Niederdorfstrasse, bares e restaurantes de diferentes estilos, e para distintos públicos, atraem moradores e turistas, que vagam de um lado a outro em procissão desenfreada. Vê-se de tudo um pouco: jovens recém-saídos da adolescência, casais maduros e garbosos, outros em idade mais avançada, para os quais os arroubos juvenis já impressionam menos. Arroubos como os cometidos por alguns grupos fantasiados de Fantasma da Ópera ou portando máscaras com o nariz em formato de pênis, mexendo com todos e principalmente com as mulheres, seus alvos prediletos. À medida que a noite avança, junto à quantidade de álcool na corrente sanguínea, jovens com idade entre 18 e 30 anos parecem exorcizar, na madrugada, a vida ordeira e disciplinada que levam durante o dia. Falam alto, gritam, gesticulam, ensaiam passos de dança e se abraçam de modo efusivo, às gargalhadas. Garrafas, copos de plástico e papéis jogados no chão das ruas históricas da Old Town são o oposto da imagem recatada da Suíça. De repente, dois rapazes pulam pelados nas águas do Rio Limmat, enquanto suas amigas berram e riem. Tal qual o famoso urinol de Marcel Duchamp, transformado em objet trouvé, alguns jovens chutam as garrafas jogadas ao chão nas ruas próximas ao Cabaret Voltaire. Horas depois, em algum momento antes que amanheça, a eficiência e a precisão que caracteriza o país retorna, e as ruas estão outra vez impecavelmente limpas. Quando o sol surge, as marcas da agitada noite de verão de Zurique já estão varridas. Não há sinais da rebeldia vivida horas antes, não há vestígios de contestação. Mas a noite seguinte logo virá, o Cabaret Voltaire abrirá suas portas uma vez mais, a juventude sairá às ruas novamente, e os ecos do Dadaísmo parecerão ainda reverberar na ordeira cidade suíça.

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AUDIOVISUAL

PROGRAMAÇÃO No horário nobre das TVs por assinatura

A partir deste mês, “Lei da Ancine” obriga todos os canais fechados do Brasil a exibirem três horas e meia de produção nacional por semana; 200 projetos aprovados pela Agência estão no ar, entre eles, filmes e séries. Impacto da lei é grande no mercado TEXTO Felipe Porciúncula

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Para os desavisados, talvez cause surpresa a invasão, de um tempo para cá, de produções brasileiras nas tevês por assinatura, em pleno horário nobre. Isso só deve crescer, principalmente quando os mais de 200 projetos já aprovados pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) começarem a entrar no ar. São os efeitos da Lei 12.485, mais conhecida como “Lei da Ancine”, que, a partir deste mês, obriga todos os canais fechados (menos os esportivos) a exibirem três horas e meia de produção brasileira por semana. O grande avanço dessa legislação, em relação aos outros mecanismos de incentivos fiscais, é que os recursos só são liberados quando o projeto proposto garante um canal de exibição, ou seja, quando há a certeza de que essa produção será exibida. O resultado prático é que, dos 15 canais monitorados pela Ancine desde 2011, quando entrou em vigor a lei, o espaço dedicado a filmes, documentários e séries nacionais quadruplicou. “Essa lei provocou uma mudança de paradigma na indústria do audiovisual no Brasil. O impacto no mercado acredito ter sido maior do que o provocado com a criação das leis do audiovisual para o cinema”, afirma o cineasta Fernando Meirelles, sócio da O2 Filmes. No começo da implantação da nova lei, os canais começaram exibindo filmes brasileiros e chegaram a reprisar muita coisa, mas foi uma fase de adaptação para cumprir a cota, que era de duas horas e vinte minutos semanais. “É importante o incremento da produção brasileira. Acredito que o desafio é uma afinação de linguagem entre o que as produtoras querem oferecer e o que nosso público busca ver”, lembra Anthony Doyle, vice-presidente regional e diretorexecutivo de conteúdo local da Turner International do Brasil. Diferentemente do cinema, as tevês fechadas precisam ter programas focados em determinados públicos, o que é uma novidade para as produtoras brasileiras, que sempre almejaram esse nicho, mas não tinham o caminho das pedras. “Hoje, há muitas demandas, pois os canais devem cumprir as cotas. Mas existe um formato específico de cada canal

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Para produtores, uma das tarefas a serem cumpridas é a afinação entre as expectativas e os conteúdos oferecidos

com seu público que precisamos entender. Por isso, um ponto essencial é abrir um diálogo com as programadoras, para saber sobre sua expectativa”, diz Débora Ivanov, sócia da Gullane Filmes, que tem vários projetos em fase de desenvolvimento, com cinco lançamentos previstos ainda para 2013.

“Outra diferença importante em relação à telona é que as produções para TV são mais rápidas, então não podemos esperar dois anos para pôr um produto no ar. É essencial que a Ancine torne o processo mais ágil e menos burocrático”, coloca Doyle.

SÉRIES

Assim como as novelas são as preferidas do público nas tevês abertas, o formato consagrado nos canais fechados são as séries, por possibilitar que se façam várias temporadas abordando temas bem diversificados, com os mesmos núcleos dramáticos. É aqui que reside um grande interesse dos canais americanos em projetos brasileiros. Já existem vários deles em

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fase de produção, mas há a demanda de construir uma linguagem própria, sem copiar modelos. “Antes de existir de fato, a série 3 Teresas, exibida desde maio no GNT, teve uma fase de desenvolvimento valiosa, pois pudemos testar diversas soluções de narrativa, o que se mostra útil agora, quando precisamos criar os episódios num ritmo mais rápido. Um dos nossos desafios é ampliar o universo da ficção que, no Brasil, por conta das novelas, é baseada nos diálogos”, coloca Paula Cosenza, produtora-executiva e diretora de desenvolvimento da BossaNovaFilms. “Estamos aprendendo a fazer TV fora das emissoras. Como aconteceu com o mercado americano, começamos aqui no Brasil fazendo sitcoms e programas de 30 minutos. Espero que esse começo nos leve aonde eles já chegaram, que são essas séries mais parrudas que hoje fazem mais sucesso do que o cinema. Do ponto de vista da dramaturgia, séries como Breaking bad e Mad men são mesmo mais interessantes que cinema, pois, em três episódios, é

possível uma complexidade de trama e desenvolvimento de personagens bem mais profundos que num longa de duas horas”, afirma Meirelles. Como a série solicita um enredo que tenha condições de ser explorado de diversas formas, isso exige que se invista em planejamento, o que, de maneira geral, não é forte no Brasil, inclusive na hora de fazer cinema, que hoje representa uma parcela importante da produção audiovisual. “Os produtores recebem financiamento para fazer os filmes, mas não há muito incentivo para o desenvolvimento de projetos, que são a base de uma obra cinematográfica. Pelo valor médio de um filme, podese bancar o desenvolvimento de 150 roteiros. O mais lógico seria investir nessa fase, depois selecionar os melhores para produzi-los, mas parece que a eficiência em investimento não é exatamente uma especialidade de nosso estado”, defende Meirelles.

VANTAGENS

Aprovada no Congresso Nacional em agosto de 2011, e sancionada

Página anterior 1 COPA HOTEL

Série terá estreia de sua 2ª temporada, este mês, no canal GNT

Nestas páginas 2 FERNANDO MEIRELLES

Diretor diz que a lei gerou uma mudança de paradigma na indústria do audiovisual no Brasil

3 SESSÃO DE TERAPIA Produção inspirada em série americana conquista público

em setembro do mesmo ano, após quase cinco anos de debates, que contaram com intensa participação da sociedade, a Lei 12.485 foi fruto do esforço coletivo do governo federal e dos agentes do mercado, que, em busca de um novo marco regulatório no setor de TV por assinatura, unificou regulamentos que se encontravam dispersos na legislação. “A lei destrava a concorrência no setor, ao permitir que as concessionárias de telefonia utilizem suas redes para fornecer o serviço de TV paga, aumentando a base de assinantes – que já está em cerca de 17 milhões, o que corresponde a 28% dos lares brasileiros – e permite que mais brasileiros tenham acesso à TV por

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4 3 TERESAS “Dramédia” acompanha a rotina de mulheres da mesma família, de diferentes gerações 5 SURTADAS NA YOGA Escrita e encenada por Fernanda Young, a série é centrada em três mulheres estressadas

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assinatura”, destaca Manoel Rangel, diretor-presidente da Ancine. Além disso, estimula-se o desenvolvimento do mercado audiovisual no país, induz-se o crescimento das empresas brasileiras de produção e programação e se atrai investimentos privados para o setor, criando um ambiente de maior competitividade. Isso fez com que o Fundo Setorial, uma das fontes de recursos para os realizadores produzirem filmes e documentários a serem exibidos nos canais fechados, crescesse bastante, com previsão de chegar a R$ 800 milhões em 2014. “Nunca os produtores brasileiros tiveram tantas oportunidades de exibir seus filmes, séries e documentários em horário nobre, pois, além desse Fundo Setorial, é possível também usar a Lei do Audiovisual e outros incentivos fiscais regionais. O importante é ter uma boa gestão desses recursos, pois a Ancine exige até que os proponentes comprovem o retorno sobre o investimento”, afirma Debora Ivanov, sócia da Gullane Filmes.

Hoje, no Brasil, já existem 17 milhões de assinantes de TVs pagas, o que corresponde a 28% dos lares Dos projetos contratados e comercializados até 2012, foram analisados pelo agente financeiro e pela Ancine os relatórios de comercialização de 21 projetos, que resultaram no retorno de R$ 7,2 milhões, o que representa 34,4% dos recursos investidos nesses projetos. Uma das novidades é que se estabeleceu a obrigação, para as empresas programadoras, de veicular conteúdo nacional (metade dele realizado por produtoras independentes) no horário nobre dos canais de espaço qualificado, aqueles que exibem filmes, seriados, animações e documentários. “Isso é um dos pontos limitantes da lei, porque, ao não conceder a coprodução com programadores

internacionais, não nos permite acompanhar o desenvolvimento dos projetos, além de não consentir que tenhamos um maior retorno financeiro com os projetos. O resultado é que o formato das séries finalizadas pode não estar de acordo com o perfil do canal e do que o público espera da nossa programação. Como o assinante paga pelo que vê, temos que oferecer programas diferenciados. Acho que, nos próximos cinco anos, os mecanismos dessa lei vão estar mais adaptados à realidade do mercado”, argumenta Doyle, que negocia a produção de 17 projetos. Mas Rangel, da Ancine, argumenta que o saldo é positivo: “O espectador já percebe a presença de novos conteúdos na programação dos canais. Hoje, os assinantes ligam a TV no horário nobre e encontram diversas alternativas de conteúdo nacional, e houve um movimento de estruturação de novos canais brasileiros nos pacotes ofertados. Isso sinaliza que os produtores independentes estão fazendo a sua parte, redobrando esforços para atender a demanda criada por novos conteúdos”.

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TRAMAS A novíssima produção nacional

Programas apostam na diversidade, da comédia aos documentários, passando por séries que primam por enredos ágeis e bem-estruturados

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Para a produtora conseguir ser viável nesse mercado de tevês fechadas, é preciso ter vários projetos ao mesmo tempo, cada um em um estágio diferente de produção: pesquisa, desenvolvimento de roteiro, préprodução, filmagem e montagem. Vale salientar que, em média, cada série leva uns quatro ou cinco meses para ser rodada. A diversidade de programas criados e exibidos a partir da “Lei da Ancine” vai da comédia aos documentários, passando por séries que primam pela força dramática dos enredos. Um deles é Elmiro Miranda Show (TBS, o primeiro canal veiculado no Brasil com 24 horas de comédia), que estreou em outubro de 2012. O humorista Rafael Queiroga interpreta Elmiro Miranda, um apresentador egocêntrico, machista e inconveniente, que conseguiu ter seu próprio programa de televisão. No decorrer dos 10 episódios, de 30 minutos cada, o programa dará aos telespectadores a oportunidade de acompanhar tudo o que

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VIDA DE ESTAGIÁRIO A tirinha homônima do cartunista Allan Sieber virou série de televisão

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PARCERIA Kevin Spacey e David Fincher estão juntos no drama político House of cards

COTAS FORA DO BRASIL A Unesco estabeleceu, em 2005, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, já assinada por quase todos os países, inclusive pelo Brasil – exceto EUA e Israel. As cotas mínimas para conteúdo nacionais geram diversidade nos mercados audiovisuais e são instrumentos legítimos reconhecidos pela comunidade internacional.

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acontece, diante das câmeras e nos bastidores, no dia a dia da equipe e, é claro, no cotidiano de Elmiro. Há também a série Vida de estagiário (Warner), que teve seu primeiro episódio em março deste ano. A trama acompanha, em uma agência de publicidade, o dia a dia do estagiário Oseias (Thomas

Temas polêmicos envolvendo histórias e pessoas reais são o mote da série de documentários Tabu Brasil Huszar), que, não bastasse o salário de fome, ainda tem de aguentar funções maçantes e a incompetência dos colegas. Adaptada a partir das tirinhas homônimas do cartunista brasileiro Allan Sieber, a série tem como marca o sarcasmo e o escracho. Nesse projeto, zomba do universo publicitário em geral, com tipos como Marlon (Conrado Caputto) e Paulinho (Luciano Amaral), a dupla de criação pouquíssimo inspirada, e o caricato chefe, Seu Almeida, que é dono dos cachorros Duda e Nizan.

A série 3 Teresas, que começou em maio na GNT e trata dos conflitos e dilemas vividos por mãe, filha e neta, a partir do momento em que passam a dividir o mesmo teto, já tem bons índices de audiência. Em uma casa modesta no Bairro Bom Retiro, em São Paulo, Denise Fraga, Claudia Mello e Manoela Aliperti protagonizam um enredo que fala sobre a relação entre três gerações: adolescente, quarentona e sessentona, a maneira como cada uma enxerga a vida e os efeitos que suas atitudes provocam umas nas outras. Além de ficção, há outros projetos, como a série de documentários Tabu Brasil, que aborda temas polêmicos na NatGeo sobre personagens reais. O argumento original não é brasileiro, mas teve adaptação nacional e já está em sua segunda temporada. Este ano, serão abordados temas como mudança de sexo, prostituição, fanatismo, cirurgia plástica, nudismo e compulsão. “A proposta do formato é gerar a dúvida no telespectador sobre o que é certo e o que é errado – se é que dá para haver julgamento dentro dos assuntos escolhidos”, afirma Paulo Franco, vice-presidente de Programação e Conteúdo da Fox International Channels Brasil.

Na Europa, as cotas são de 50% de conteúdos europeus no espaço qualificado, em todos os canais. Além disso, todos os veículos de TV aberta ou por assinatura presentes no mercado europeu têm de ser programados em terras europeias. Mesmo nos Estados Unidos, uma política de proteção e incentivo à produção independente (realizada por empresas produtoras sem vínculos com os canais), praticada entre as décadas de 1970 e 1990, é apontada como fator determinante para o fortalecimento do mercado de séries e filmes norte-americanos, possibilitando inovação, diversidade de conteúdos e desenvolvimento. “Diversos países criam mecanismos de apoio à produção local ou independente, como TVs estatais, TVs comunitárias e públicas. Na Inglaterra, os cidadãos bancam a BBC, que tem um canal que trabalha só com produção independente. Agora, vale destacar que, como a lei brasileira, não conheço outra. Quando conto para amigos de fora como ela funciona, todos ficam com uma certa inveja de termos uma garantia de espaço para a produção local, frente ao volume do que vem de fora”, aponta Fernando Meirelles.

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NETFLIX Novos hábitos de consumo

Pagando mensalidade barata, espectador tem acesso a variado acervo de filmes e séries e pode montar a própria programação TEXTO Olivia de Souza

Como não presumir que uma

produção audiovisual envolvendo nomes do cacife de David Fincher, aclamado diretor de Hollywood, e de Kevin Spacey, não seria passível de premiações? A dupla, que não costuma aceitar qualquer projeto, já havia obtido destaque em sua parceria anterior, A rede social (2010),

em que Spacey, premiadíssimo ator e cineasta estadunidense, atuou na produção executiva. Qual não foi a surpresa, quando os dois se uniram para um novo projeto, desta vez para as telinhas – dos computadores. Quinze anos após Sopranos ter sido a primeira série de TV paga a receber um prêmio no Emmy Awards

– uma das principais premiações atribuídas a programas televisivos dos Estados Unidos –, o drama político House of cards (remake homônimo de um série da BBC) estreou todos os 13 episódios de sua primeira temporada, de uma só vez, através da Netflix, acumulando nove indicações no Emmy 2013. Outras duas produções da empresa receberam as mesmas honrarias: Hemlock grove e Arrested development, somando mais cinco indicações ao prêmio. Até então feito inédito para uma websérie, o que deu os indicativos de que, a partir daí, passava-se a competir de igual para igual com todas as emissoras tradicionais de televisão, como a HBO, NBC, AMC. Um marco na internet e uma quebra dos paradigmas culturais na forma de se consumir filmes e seriados. “Queremos virar a HBO, antes

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que a HBO vire a Netflix”, afirmou o fundador Reed Hastings, numa entrevista ao jornal The New York Times. Não é preciso ser um entusiasta de seriados ou ter passado horas na internet para ter topado com alguma propaganda da empresa. Surgido em 1997, como um esquema de entrega de DVDs pelos correios, a Netflix logo angariou 15 milhões de assinantes, sendo uma das responsáveis pela quebra da rede de locadoras Blockbuster. Em 2011, Hastings migrou para a web, e já com 20 milhões de usuários nos EUA e Canadá, viu sua receita saltar para o montante anual de 2,2 bilhões de dólares. Pagando uma assinatura mensal a um preço baixo, o usuário pode trafegar pelo variado acervo de filmes e séries e assisti-los online, via streaming, sem necessidade de downloads, o que lhe confere total liberdade para montar sua programação. “A convergência de meios mostrase promissora no cenário atual do consumo, no qual os indivíduos buscam alternativas das mais variadas a fim de acessar conteúdos personalizados pelos aparelhos na hora que desejarem e quando desejarem. Isso caracteriza, ainda mais, a necessidade de criação de produtos voltados à utilização na web”,

“Queremos virar a HBO, antes que a HBO vire a Netflix”, afirmou Reed Hastings, ao jornal The New York Times afirma a doutoranda em Comunicação e Linguagem da Universidade Tuiuti do Paraná, Letícia Hermann, no artigo Netflix e a “desmaterialização” dos produtos. Dentro desse cenário, a reprodução via streaming se pretende fazer presente no maior número possível de plataformas além do site, como aplicativos para celulares e tablets, em video games (Xbox e Playstation 3), e nas Smart TVs.

BIG DATA

As estatísticas de consumo dos usuários (conhecidas como Big Data) são um dos maiores trunfos da Netflix e possibilitaram à web TV agregar ao seu menu blockbusters hollywoodianos, bem como uma grande quantidade de conteúdo televisivo. A Big Data se aperfeiçoa a cada dia, graças a um sistema de recomendação que sugere ao usuário novas opções de programas, baseado naquilo a que ele assiste online.

Outras variáveis são analisadas, como a quantidade de estrelas (ratings) dada pelo público a determinados programas; a quantidade de vezes (e o exato momento) em que ele pausa, avança ou volta determinada cena; os horários de acesso, entre outros pontos. Essas estatísticas, além de ajudar a melhorar a performance dos servidores, dá um perfil preciso do usuário, um algoritmo do sistema que praticamente adivinha o que ele quer ver. De posse dessas preciosas informações, o serviço passou a investir em produções próprias, e de maneira nem um pouco amadora. A partir daí, dado o ineditismo da iniciativa, como fazer com que uma equipe técnica de peso, somada a um brilhante elenco de atores, comprem a ideia de investir na produção de séries online? Sobretudo, como fazer com que tais programas sejam bemsucedidos? Quando são os números de audiência os grandes responsáveis por muitas das decisões que definem o direcionamento dos programas televisivos, a Netflix – que em 2011 já havia estreado sua primeira série, Lilyhammer, uma parceria com a sueca Rubicon TV – revolucionou, ao dar liberdade criativa para roteiristas e produtores desenvolverem os

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projetos, transformando-se num campo bastante sedutor para que nomes de peso da indústria cinematográfica demonstrassem interesse pelo meio. Foi assim que conseguiu atrair os requisitados David Fincher e Kevin Spacey. House of cards também trouxe uma abordagem totalmente diferente na relação com o espectador, pois, ao invés de seguir o modelo tradicional de exibição de um episódio por semana – praticado pela TV paga e aberta para maximizar os lucros com a inserção de publicidades –, o serviço disponibiliza todos os episódios de uma só vez, apostando no chamado binge viewing, mais conhecido como maratona em frente à TV. Então, como avaliar o grau de aceitação do público pela série? É aí que entra o fator mais interessante das séries online: os produtores sabem que elas vão fazer sucesso junto ao público, muitas vezes renovando temporadas antes mesmo da estreia dos programas. É um tiro certeiro bastante estudado, e isso se deve exatamente ao Big Data: já se sabe o que o público quer e o que ele gosta. Não por acaso, três séries suas obtiveram o total de 14 indicações na última edição do Emmy.

A Netflix passou a realizar as próprias produções, a partir das estatísticas de consumo de seus usuários SOB DEMANDA

Partindo desse princípio, a empresa conseguiu trazer de volta Arrested development, série norte-americana de comédia, exibida no canal Fox entre 2003 e 2006. Durante esse período, o programa não conseguiu bons índices de audiência, sendo então cancelado em sua 3ª temporada. Seu retorno em 2013 deveu-se ao status de cult que a série adquiriu ao longo dos anos, fortalecido pelo sucesso que o programa teve frente ao público online. Dessa forma, até as séries de TV conseguem se beneficiar e manterse no ar por mais tempo, como é o caso de Breaking bad, drama exibido pelo canal AMC, e outro destaque no acervo do Netflix. Em entrevista à New York Magazine, o criador Vince Gilligan declarou que o seriado do professor de química que se torna traficante de metanfetamina – que terá sua 6ª e última temporada

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ROTEIROS

Liberdade criativa é a receita do sucesso de séries como Hemlock grove e Orange is the new black

exibida este ano – devia muito à web emissora por sua continuidade. Outras produções on demand (sob demanda), com nomes de peso migrados da TV e do cinema, estrearam no site, como o thriller de horror Hemlock grove, com produção executiva de Eli Roth (de O albergue); Derek (co-produção com a BBC de Ricky Gervais, nome por trás de The office), e mais recentemente, a dramédia Orange is the new black, de Jenji Kohan (de Weeds), essa última, talvez, uma das primeiras visões de dentro dos presídios femininos norte-americanos. Em breve, nomes como o de José Padilha (Tropa de Elite 1 e 2) farão parte desse casting de diretores. Prevista para 2014, a estreia de Narco, drama produzido pela Gaumount International Television, sobre a vida do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, terá todos os seus 13 episódios dirigidos pelo brasileiro, que também redigiu o argumento. O país deu seus primeiros passos na produção de conteúdo original com a chegada da minissérie Na toca, produzida e protagonizada pelo comediante e “webcelebridade” Felipe Neto, que estreou no mês passado e foi veiculada internacionalmente, com três episódios de 30 minutos cada. Mais do que estimar o futuro da Netflix ou quais e quantas inovações surgirão em seguida, é importante levar em conta o seu impacto causado na indústria de entretenimento, que corre para se adaptar. Em carta aberta, Reed Hastings afirmou: “A internet TV irá substituir a programação linear de TV, aplicativos irão substituir o canais, controles remotos irão desaparecer e as telas irão proliferar”.

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MICHEL TÉO SIN / DIVULGAÇÃO

APARÊNCIAS Maquiagem que dá textura e suculência

Food stylists e fotógrafos trabalham em sintonia para traduzir a essência de um prato em imagem, aguçando os sentidos TEXTO Eduardo Sena

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Dia desses, a McDonald’s, rede

que instituiu o conceito de fast food no Ocidente, precisou emitir nota oficial aos clientes, por meio de um vídeo, explicando o porquê dos sanduíches vendidos em suas lojas nunca serem iguais aos dos seus anúncios. Frustração recorrente dos consumidores. No material, a diretora de marketing da empresa, Hope Bagozzi, conduz o vídeo com a retórica do processo de food styling. Ou seja, método que consiste em “estilizar” o alimento, preparando-os para fotos. “Este hambúrguer foi feito em um minuto. O processo de tirar fotos (do mesmo sanduíche) leva muitas horas”, frisa. Os profissionais especializados na elaboração dessas

comidas produzidas, primeiramente, para os olhos, explicam que, além de fazê-las parecerem apetitosas, eles precisam mostrar quais ingredientes estão dentro do sanduíche, uma preocupação que quem monta o hambúrguer na loja geralmente não tem. As imagens que nos provocam como “porn-food” são resultado de uma reengenharia que envolve dois profissionais trabalhando em perfeita harmonia, o estilista de comida, ou food stylist, e o fotógrafo especializado. Quando chega a hora de capturar a essência de um prato, o que menos importa é se o alimento ali depositado está gostoso. Antes, a preocupação é que ele consiga cumprir, ao menos na aparência, todas as promessas

por que anseiam nossa visão e nosso paladar. Para isso, vale literalmente tudo: desde usar fumaça de cigarro, para simular o calor que se desprende de um frango que acabou de sair do forno, a utilizar bolas de margarina, para fazer de conta que não há sorvete mais delicioso que aquele – e evitar que ele derreta com a sempre longa sessão de fotos sob luzes quentes. Com 20 anos trabalhando como chef de cozinha, o alemão Heiko Grabolle – radicado no Brasil desde 2000 – é atualmente um dos principais nomes no país, quando o assunto é food styling. “Começou de forma não deliberada, em 2005, quando foi convidado para fazer um trabalho de embalagem de

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IGO BIONE/DIVULGAÇÃO

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SAINDO DO FORNO A fumaça da clássica imagem de uma ave assada é produzida a partir de um cigarro queimando

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PRODUÇÃO Fotos de comida demandam cenários, como este, do livro Gilberto Freyre e as aventuras do paladar

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macarrão instantâneo. “Percebi que a minha formação profissional é a base fundamental para esse tipo de produção. O que significa refino e preparação de alimentos, sempre respeitando a autenticidade do produto, bem como a sua origem”, destaca. A partir daí, ele passou a enxergar no incipiente mercado nacional um novo nicho. Para Heiko, a principal diretriz que um trabalho tão particular como esse deve seguir é a de apresentar o melhor do alimento, da textura à suculência, expressando a gastronomia fresca e saborosa por meio de imagens. “É um ofício ao qual vale muito a pena se dedicar. As grandes e pequenas empresas investem cada vez mais nessa área, estão ficando exigentes, e o mercado precisa de profissionais. A demanda ainda é maior que a oferta”, aponta.

BRIEFING

Mas, calma! É preciso haver boa comunicação entre o estilista de comida e o fotógrafo, para que o resultado seja preciso. “O briefing é base de tudo. A partir dele é que os dois profissionais irão conceber a melhor forma de apresentar aquele alimento”, diz Heiko. No caso do fotógrafo pernambucano especializado em gastronomia André Nery, que nem sempre conta com o auxílio de um food stylist nas suas

produções, é importante pesquisar que tipo de comida será fotografada, para ter uma ideia de como ela se comporta melhor numa imagem. “Um crepe, por exemplo, pode ser fotografado de várias formas, desde cortado ao meio, como

As louças e utensílios utilizados – fundamentais para dar um conceito a imagem – são chamados de enxoval cortado nas pontas, ou aberto em suas extremidades, e até inteiro, sem modificações. E é aí que entra o briefing, através do qual se estuda o que será mais adequado em cada caso, para não haver perda de tempo no ato das fotografias”, explica. As escolhas de ingredientes também são realizadas dentro do briefing, no qual, de acordo com os pratos que serão fotografados, haverá uma necessidade de escolha de insumos a mais para composições das fotos, ou até os componentes do próprio prato. Além de ingredientes, outro aspecto que tem que ser levado em consideração na hora do briefing é o enxoval. Inclua aí, louças,

tecidos e toda sorte de utensílios. “Muitas vezes, vendemos um conceito numa foto. E, quanto mais utensílios tivermos, mais opções haverá na construção da foto”, explica Grabolle. Para André Nery, esses são itens de “extrema necessidade”. No caso da produção de um cardápio de restaurante, além de não deixar a composição repetitiva, os utensílios deixarão a imagem com uma perspectiva real de um ato de comer. “Todo o enxoval envolve o consumo”, afiança. Quem precisou de bastante briefing, enxoval e, sobretudo, de pesquisa, foram a jornalista de gastronomia Vanessa Lins e o fotógrafo Igo Bione, profissionais do metiê, no Recife. Contratados para a produção fotográfica do livro Gilberto Freyre e as aventuras do paladar, da pesquisadora Maria Lecticia Cavalcanti, a dupla precisou mergulhar no universo freyriano, para buscar referências para as fotos da obra, que aborda culinária, utensílios, receitas, rituais de cozinha e de mesa na obra do Mestre de Apipucos. “Mesmo que a foto traga poucos elementos além da comida propriamente dita, seja um prato, uma fruta, um legume, o enxoval tira a frieza que uma foto produzida em estúdio, com luz artificial, pode ter”, defende Vanessa Lins. Segundo ela, os utensílios também cumprem

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FOTOS: ESTÚDIO GASTRONÔMICO/LUNA GARCIA/DIVULGAÇÃO

3 HEIKO GRABOLLE Chef tornou-se um dos principais nomes do país em food styling 4 CALZONE Para destacar o recheio, o prato italiano foi fotografado cortado ao meio

a função de ambientar o alimento. “Se quero retratar uma fruteira em cima de uma mesa rústica de madeira, como se estivesse numa fazenda, vou pensar não apenas numa fruteira, mas nas frutas mais típicas de uma região de interior, uma toalha de mesa que reforce a ideia de aconchego que um ambiente desses proporciona.”

OS FEIOS

Feijoada, sarapatel, arroz branco, buchada... Existem algumas receitas que os estilistas de comida e fotógrafos tremem só de olhar. Não são fotogênicas. Nery diz que “por mais ‘feia’ que seja, comida sempre tem salvação”, embora o trabalho seja triplicado. “Pratos e enxovais, esses sim, dificultam mais do que o alimento em si. Peças de inox fundas, e que refletem muita luz, são piores do que qualquer tipo de comida para uma imagem”, opina. Já Heiko tem pavor de ver um prato ficar com um aspecto muito falso. “Cozinhar demais ou de menos o produto a ser

Cardápio 3

Truques

UMA BELA APARÊNCIA Para conseguir um hambúrguer bonito, Heiko Grabolle não frita a carne por muito tempo, pois, caso contrário, “a gordura derrete, o aspecto fica empipocado e o tamanho reduz”, explica. Para conseguir brilho e cor, são usados recursos como mel e açúcar caramelizado. A maionese ou qualquer outro molho

deve ser injetado com uma seringa, cuidadosamente, com o sanduíche já fechado. No mesmo hambúrguer, o queijo derretido só fica suculento depois que o chef usa um maçarico para amolecer as pontas. A alface e o tomate ficam ainda mais vivos e frescos com a ajuda de água. O efeito que aparece na foto são gotinhas pontuadas uma a uma, com a ajuda de uma caneta. Um copo ou uma garrafa ficam com o aspecto de gelado depois de receberem

uma camada de glicerina ou vaselina em spray ao redor da superfície. Para dar brilho a carnes ou frutas, óleo de soja e gelatina incolor são alguns dos recursos utilizados. Uma panacota é uma sobremesa que leva creme de leite em sua composição. No food styling, ele é substituído por uma mistura à base de amido de milho, obtendo o mesmo efeito visual e um menor custo de produção. As carnes que aparecem sendo cortadas com facilidade

em filmes foram, na verdade, previamente seccionadas e remontadas para não oferecerem resistência à faca. No caso de aves assadas, elas ficam no forno apenas na metade do tempo para não reduzirem de tamanho. Para dar o aspecto de assadas, uma mistura de caramelo de açúcar, molho inglês e shoyu deixamnas com uma cor ideal para fotos. Frutas e verduras lavadas e borrifadas na hora com uma mistura de azeite com água apresentam frescor total.

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ANDRÉ NERY/DIVULGAÇÃO

fotografado, ou deixá-lo muito seco ou muito úmido, também entra na lista do que evitar.” No que tange à técnica do fotógrafo, um deslize fatal é não se preocupar com a luz ideal. “Seja da forma que a comida estiver, uma boa iluminação trará uma boa imagem”, ressalta Nery, que costuma usar lentes do tipo teleobjetivas, uma vez que deixam os produtos mais achatados e com mais detalhes. Mas nem sempre os cuidados técnicos são compreendidos pelos clientes. É recorrente que eles queiram ter uma participação na produção da foto, o que pode ser um atrapalho. A produção fotográfica é muito diferente aos olhos de um fotógrafo em relação aos demais. “Ele percebe a cena sob o ângulo da imagem. A maneira de dispor os produtos é particular, pois ele não está olhando ao olho nu, e, sim, raciocinando o trabalho final”, defende o fotógrafo. Vanessa Lins pondera: “É muito difícil acertar apenas com base no

Feijoada, sarapatel, arroz branco, buchada são pratos que usualmente necessitam de uma maior produção que eu e o fotógrafo achamos que seria bom, já que esse valor deve ser definido pelo cliente. Nosso papel é executar o desejo dele”. Há algum tempo, em entrevista à escritora sul-africana Signe Rousseau, o chef americano Anthony Bourdain chegou a dizer que a comida é a nova pornografia. “Assistimos diariamente, nas mais variadas formas de mídia, a coisas que provavelmente não vamos fazer tão cedo”, justificou o cozinheiro. No que diz respeito ao “assédio” alimentar que sofremos, basta lembrar a quantidade de imagens de comida a que somos submetidos diariamente. Bastam um celular na mão e um prato de comida na frente, para que

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muitos tenham uma vontade louca de compartilhá-lo com o mundo. Mas nem sempre a foto se mostra apetitosa, muito pelo contrário. Para Ricardo D’Angelo, editor de fotografia da revista Prazeres da Mesa, a regra para evitar a má imagem é “menos comida, prato maior e uma luz mais natural. Se for noite, peça para um amigo acender a luz do celular, ajudando assim a deixar o prato mais claro e bonito”. Paulo Pereira, do Estúdio Luzia, pondera que cada tipo de prato pede um tipo de iluminação. Recomenda, então, o uso mínimo de luz artificial e o máximo de ambientação do prato em seu contexto, elegendo cores, fundos, louça. “Use como ponto de partida as cores dos alimentos para compor o restante da cena”. Ele também lembra que uma boa produção é fundamental, e isso vale também para suas fotos no Instagram. ‘’Tente mostrar o melhor de cada item: o melhor pedaço de tomate, a melhor folha. A comida deve ter aparência de que acabou de sair da panela’’, ensina.

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LÍDIO PARENTE/DIVULGAÇÃO

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MOACIR SANTOS Reencontro com o Ouro Negro

Festival, lançamento de discos e produção de estudos aprofundam retomada da obra do maestro, compositor, multi-instrumentista e professor pernambucano TEXTO Débora Nascimento

Na frente do Teatro de Santa Isabel, um pequeno grupo de amigos conversava. Um deles contou um fato. No ano passado, um rapaz deu de cara com o LP Coisas, num sebo cearense, e ficou surpreso ao ouvir do vendedor o valor do produto: “Esse é mais caro, 15 reais”. Após efetuar o pagamento, o cliente quase saiu correndo, com receio de que

o sebista descobrisse o próprio engano e se arrependesse, pois o rapaz acabara de adquirir um dos maiores tesouros já produzidos na música brasileira. Para se ter uma ideia, no ano passado, o mesmo long play estava custando, na internet, em torno de 1.700 dólares. Esse episódio da compra do disco foi relatado no intervalo do Festival Moacir

Santos, cujo título exibe o nome do autor do citado álbum. Naquela noite, no teatro, a plateia pôde assistir à Banda Ouro Negro, que apresentou, primorosamente, o repertório de seu disco homônimo, lançado em 2001, que incluía as “Coisas” de Moacir. Foi um evento memorável e um momento histórico, porque, de alguma forma, tratava-se do primeiro encontro da música de Moacir Santos com seu estado natal. O que é um contrassenso, pois o músico está no panteão dos maiores artistas do país. No entanto, Moacir sofreu do mal que acomete aqueles que saem de sua terra. “Tom Jobim dizia que, no Brasil, é proibido o aborígene sair da taba. Moacir Santos foi um dos que saíram e o Brasil fez desabar sobre seu nome um manto de silêncio. Pois chega de silêncio. Nanã sabe das coisas e diz que chegou a hora de o Brasil saber de Moacir, reaprender Moacir, merecer Moacir”, afirmou

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1 FESTIVAL Evento reuniu músicos no Teatro de Santa Isabel, no Recife, para executar músicas do maestro

de publicação, tornando-se, então, o primeiro livro no Brasil sobre a vida e a obra de Moacir Santos (!), sob o título Os caminhos de um músico brasileiro. Em seu trabalho, Andrea estudou a fundo a música do compositor, seu processo de composição, harmonia, arranjos e, de quebra, levantou a história de vida do maestro, que nasceu em 1926, no município de Flores, sertão pernambucano, e que, aos três anos, ficou órfão de mãe e foi abandonado pelo pai. O menino foi adotado por uma família com a qual conviveu até aos 14 anos. Jovem assim, saiu de casa para viver de música. O futuro multiinstrumentista (que dominaria saxofone, piano, clarinete, trompete, banjo, violão e bateria), quando adolescente, já tocava vários instrumentos de sopro. Após transitar pelo interior do estado, chegou ao Recife, onde foi contratado pela Rádio Clube. Depois, seguiu para João Pessoa, para, então, chegar ao Rio de Janeiro

Pesquisadora estudou aspectos técnicos da música do compositor e arranjador e, de quebra, levantou sua história de vida o jornalista e escritor Ruy Castro, no encarte de Ouro Negro, aclamado álbum produzido pelos músicos cariocas Mário Adnet e Zé Nogueira. Até a chegada desse disco no mercado fonográfico, a música do maestro era ainda mais restrita, a maioria dos ouvintes consistia em músicos profissionais, boa parte jazzistas norteamericanos. O CD tornou-se um marco, e o nome Moacir Santos voltou a circular no seu país, passando a influenciar uma nova geração de compositores e instrumentistas. Uma dessas pessoas foi a flautista carioca Andrea Ernest Dias, que conheceu mais profundamente o trabalho do compositor nesse período, ao ser convidada para participar do Ouro Negro. A partir daí, a paixão pelos sons do pernambucano só cresceu. Tanto, que a música dele passou a ser objeto de sua tese de doutorado, na Universidade Federal da Bahia, um material que agora se encontra à espera

e se tornar o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, cujos principais profissionais dessa área eram de origem italiana, como Radamés Gnatalli.

FORMAÇÃO

Radamés, a propósito, foi um dos professores de Moacir. Num determinado período, o pernambucano chegou a ter cinco mestres. Um para cada dia da semana. Uma de suas diversões, como aluno, era tirar a mesma dúvida com cada um deles, para poder chegar à resposta mais completa possível. Essa faceta de estudo do artista é um dos destaques das pesquisas de Andrea e algo que até hoje admira e influencia alunos e fãs. A carioca escolheu a UFBA para realizar seu doutorado por um motivo específico: “A Universidade Federal da Bahia é uma escola muito interessante, porque existe o Grupo de Compositores da Bahia, que era a vanguarda dos

anos 1950 e usava todas as teorias novas em música que apareciam. O compositor alemão Hans Joachim Koullreuter fundou essa escola, foi o precursor do dodecafonismo aqui, dessas estratégias todas de composição, que o Moacir (do qual foi aluno e assistente) depois aplicou”, comenta. Andrea conta que, nesse grupo, na UFBA, começou a atentar para essas outras possibilidades na música, outras análises, além da interpretação, partindo da composição para vários vieses, várias entradas. “Então, peguei essa perspectiva interdisciplinar, com muitas janelas, e fui conduzindo minha pesquisa, reunindo os dados biográficos do Moacir, analisando suas partituras de épocas diferentes, retracei as fases dele, que foi muito mais fácil, porque ele mesmo as definiu, a fase da juventude no sertão, mais intuitiva, mais natural, digamos assim, a fase do Rio de Janeiro, que é mais de consciência musical, em que ele realmente decide se tornar um compositor, já se valendo de todos esses recursos que foi buscar no estudo.” Seguindo o exemplo do estudante e do estudioso que Moacir foi a vida inteira, Andrea defende que os músicos devem estar cada vez mais afiados, não somente na prática, mas na teoria. “As pessoas tendem a dizer que é melhor tirar tudo de ouvido, não defendo isso. É importante a intuição, mas não apenas ela. O exemplo do maestro evidencia que a música popular pode ser melhor elaborada. Por isso, o resultado do trabalho dele parece simples, mas é muito elaborado, o que só foi possível porque ele tinha os recursos técnicos, formais e estilísticos para isso, ele pôde avançar”. O trompetista e compositor Steve Huffsteter, que tocou em vários discos de Moacir, reforça o impacto que o estilo do maestro causa. “É de uma simplicidade complexa ou uma complexidade simples. Ele fazia coisas que ninguém nunca tinha pensando em fazer”. Como cantou Vinicius de Moraes, em Samba da bênção, “não és um só, és tantos”. Para a flautista, um entrave para a evolução dos músicos e da própria música, como consequência, é que as pessoas tendem a acreditar muito na ideia do dom. “Fala-se muito em ‘meu dom, o meu talento’, mas só isso não basta, tem que ter muito

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

2 ELOGIO Wynton Marsalis apelidou Moacir Santos de “Duke Ellington brasileiro”

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trabalho, e o trabalho diário, porque música é artesanato. Então, você vai trabalhando e fazendo, se deixa de fazer um dia...Tem até uma piadinha: se deixa de tocar um dia, você percebe; no 2º dia, seu amigo percebe; no 3º dia, todo mundo percebe que você não está trabalhando, aí você começa a jogar contra você mesmo.” “Então, na pesquisa, foi uma coisa muito bacana constatar esse exercício diário do Moacir, mesmo ele já sendo um compositor formado, os cadernos de anotações de estudo mostram que voltava ao início sempre, ao contraponto, à harmonia, às cadências, sequências, das mais básicas possíveis, conduções harmônicas mais simples. É como se fosse dar uma espanada em tudo, ‘o caminho ainda é esse e aqui eu posso dar uma decorada de outra forma’”, afirma a pesquisadora. Para realizar a pesquisa, Andrea contou com o apoio do filho do artista, Moacir Santos Jr., que abriu as portas da antiga casa do pai em Pasadena, Califórnia, onde o maestro passou a residir a partir em 1967. Lá, a flautista teve a oportunidade de se deter sobre os cadernos de estudos do compositor e descobrir algumas músicas inéditas. Três delas estarão no próximo disco de seu Trio 3-63, junto com Marcos Suzano (percussão) e Paulo Braga (piano).

A bossa nova deve parte de seu mérito a Moacir, que foi professor de Baden, Menescal, Nara e Sérgio Mendes MESTRE DE MUITOS

Moacir Santos saiu do Brasil levando “no matulão” a autoria de trilhas sonoras do cinema nacional, como Ganga Zumba (de Cacá Diegues), e o lançamento de, pelo menos, uma obra-prima, o citado Coisas, lançado pela Forma em 1965. Chegando aos EUA, alguns anos depois, foi contratado pela mítica gravadora jazzística Blue Note, pela qual realizou três discos, Maestro (1972), Saudade (1974) e Carnaval dos espíritos (1975). Depois, em 1978, através da Discovery, lançou Opus 3, nº1. Para Andrea, da época desses lançamentos para cá, muita coisa mudou na recepção ao músico de jazz nacional. “Os instrumentistas brasileiros têm muito mais alcance do que na década de 1970. Quem tinha alcance nos EUA é quem definia alguma estratégia para si próprio, como o Sérgio Mendes, que já foi para lá bem definido, já preparou todo o terreno dele para estourar com

aquela linha, com o sexteto dele. O Tom Jobim estourou nos EUA, mas aquilo foi planejado, né? O João Gilberto... A história conta. O concerto da bossa nova não foi só um show, foi uma jogada comercial já pronta para lançar o gênero musical como um produto internacional da indústria e virou exatamente o que é.” A propósito, o estouro da bossa tem parte de seu mérito em Moacir, que foi professor de músicos como Baden Powell, Roberto Menescal, Nara Leão, Carlos Lyra e Sergio Mendes. A lista de seus alunos é imensa, e inclui renomados instrumentistas do país, como Airto Moreira, Wilson das Neves, Paulo Moura, João Donato, Dori Caymmi e Raphael Rabello. Essa é apenas uma amostra do quanto a música brasileira deve parte de sua evolução a ele. “O que difere a arte do entretenimento é a transformação. Não conheço ninguém que, depois de conhecê-lo, não passasse por uma transformação”, afirma um de seus discípulos, o saxofonista Teco Cardoso. O “Duke Ellington brasileiro” (definição do trompetista Wynton Marsalis), que saiu jovem de Flores, voltando ao estado poucas vezes para visitar familiares e amigos, afirmava: “Aonde quer que eu vá, sempre digo: o Brasil é meu berço e Pernambuco é meu orgulho”. Por isso é compreensível a emoção dos músicos cariocas responsáveis por esse resgate da obra do maestro, Zé Nogueira, Mário Adnet e Andrea Ernest Dias, quando pisaram no palco do Santa Isabel, nos dias 2 e 3 de agosto, com a presença de Moacir Santos Jr. na plateia. Eles sabiam que, com a ausência do próprio Moacir, falecido em 2006, aos 80 anos, estavam cumprindo uma missão histórica: promover o encontro da música do Ouro Negro com a sua terra.

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INDICAÇÕES VÁRIOS

CANASTRA Confie em mim Toca Discos

Produzido pelo ex-Titãs Charles Gavin, o terceiro disco do sexteto carioca com alma de big band tem atmosfera de baile. A banda se alimenta de ritmos acelerados como rockabilly, ska, marchinhas e fanfarras, que dão gás a todo o repertório, composto por 13 músicas. A flexibilidade para lidar com diversos gêneros e influências está evidente neste trabalho, que também traz rock retrô e música country, além de um quê de latinidade, em músicas como Mambo trip e Triste. Um típico convite para cair na dança.

MPB

LOS SEBOSOS POSTIZOS Los Sebozos Postizos interpretam Jorge Ben Jor Deckdisc

Há 10 anos, integrantes da Nação Zumbi se juntavam para reviver canções de Jorge Ben em shows batizados de Noite do Ben. Sob a alcunha de Los Sebosos Postizos, converteram a ideia para o estúdio e lançaram o CD que reinventa, com suingue próprio, 14 faixas faixas do cancioneiro do Zé Pretinho. Gustavo da Lua (percussão), Bactéria (teclados), Guizado (trompete) e os backing vocals de Bárbara Eugênia contribuíram para o resultado.

ROCK

R&B/FUNK/SOUL

Oi Música

Daptone Records/Deckdisc

NEVILTON Sacode! Apesar da estrutura simples das canções e do ritmo veloz, Sacode! é o tipo de álbum que não cansa. O terceiro disco do trio paranaense faz jus à performance dos integrantes nos palcos, onde costumam fazer estripulias. A pegada, mais potente e cheia de personalidade do que nos trabalhos anteriores, é fruto da produção de Carlos Eduardo Miranda, que já trabalhou com Mundo Livre S/A, Raimundos e Lobão, e evidenciou a domínio técnico do trio. Destaque para a faixa-título, Crônica, e Noite alta.

CHARLES BRADLEY Victim of love É impossível não lembrar James Brown e Marvin Gaye ao escutar o segundo álbum de Charles Bradley. Aos 64 anos, o norte-americano mantém o vozeirão impecável, digno dos mestres do soul funk. Nenhuma das 11 faixas de Victim of love sai imune à carga emocional que guia Bradley. Seja em músicas mais dançantes, como You put the flame on It e Love bug blues, carregadas de grooves de metais, seja em momentos mais chorosos, a exemplo de Let love stand a chance e Victim of love.

Free rock

MONSTRO AMOR APRIMORA MIX DE ESTILOS EM NOVO CD

A arte abstrata não é do gosto ou, sequer, da compreensão de todos. Muitos conseguem desdenhar de gênios como Pollock, Klee ou Kandinski, comparando suas telas a rabiscos infantis. A muitos custa acreditar que existe apuro técnico e requinte por trás de cada garrancho ou mancha de Basquiat ou Picasso. A maturidade de autores abstratos

se mostra através do domínio de suas respectivas mídias. Lançado de forma independente, Amor só de monstro, segundo disco da banda Monstro Amor, é o registro da maturidade de cinco músicos que há muito habitam a cena artística do Grande Recife. Formada em meados de 2007, por Túlio Falcão (mixer/ keyboards/

samplers, que também faz parte das bandas Realidade Encoberta e Cruor, entre outras), Grilo (guitarra, artista plástico e performático, que também participa de inúmeros projetos, como a banda Geladeira Metal), Evandro Q? (vocalizações/feedback mixer/ megafone, cantor da banda Garapa Nervosa), Robson Schizo (bateria, integrante do Garapa Nervosa, tocou também na Heads Bacon) e Roma Romildo (baixo elétrico, das bandas The Urb e Alice Quer Ser Punk), a banda não tem composições fixas e faz performances improvisadas. Todos os temas elaborados no disco, assim como nas apresentações ao vivo, são jams fortuitas, com raízes no free-jazz, porém trazendo influências estéticas de música pop, noise, pós-punk e eletrônica experimental. Isso levou seus integrantes a classificarem o tipo de música produzido pela Montro Amor como free rock. O caráter volátil das composições impressiona, porque

o resultado soa muito bem. Amor só de monstro dá ao ouvinte a impressão de um trabalho bem-pensado e estruturado, e o som das gravações, produzidas por Evandro Q?, é cristalino e de profundidade multifacetada. Outro aspecto importante da arte abstrata é que seu conteúdo reside no olhar de quem a observa. Como um conjunto de placas de um teste de rorsharch, cada uma das faixas desafia o ouvinte a uma interpretação própria, e, assim sendo, só posso falar do que ouvi em minha leitura particular: nos ganchos dançantes, a idiotia da publicidade; nos ruídos e microfonias, o caos das ruas cheias de buracos e sem calçadas; na ininteligibilidade das vozes, nossa incapacidade de comunicação e respeito; na densidade sonora, a umidade quente do ar. Enfim, a trilha sonora ideal para o Recife pós-mangue. (Yellow)

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Kleber Mendonça Filho CRÍTICO E CINEASTA

CINEMASCÓPIO

LIGA DA JUSTIÇA

No início de julho, participei de uma

comissão de seleção para o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que acontece neste setembro. O trabalho previa a escolha de seis longa-metragens de ficção, os novos exemplares da atual safra brasileira. Seis filmes inéditos de um universo de aproximadamente 50 inscritos que acabam de sair da linha de montagem. Se você faz parte da cadeia do cinema, esse tipo de convite chega como uma colaboração que sugere idealismo mixado com pragmatismo. Comissões de seleção fazem parte dos que trabalham com cinema. É uma missão profissional. Há comissões de seleção em editais de fomento, concursos, festivais. Por tratar-se de arte, fica a esperança de que cada filme torne-se um organismo vivo, que inspire nas pessoas o que nós achamos que eles talvez tenham nos trazido. O cenário para esse trabalho foi um hotel no Setor Hoteleiro Norte de Brasília, com vista para a Esplanada dos Ministérios, o Congresso, a Catedral e os peculiares autoramas da capital, onde veículos entram e saem de trevos. Era esse o nosso espaço

para tomar pequenas decisões de cinema, numa área geográfica do país onde tantas decisões são tomadas. Os instrumentos de trabalho: um monitor LCD de 40 polegadas, um tocador de DVD e outro de Blu-Ray, ligados ao monitor com cabos HDMI. Controles remotos, kits de seleção com a lista de filmes a serem vistos e uma caixa com discos digitais. A organização do festival trazia, via serviço de quarto, salgadinhos, café, água e sucos. Nenhuma bebida alcoólica. É uma missão de corte tragicômico. A simples noção de uma comissão de seleção, uma possível “Liga da Justiça” ali reunida, que irá tomar decisões sobre as obras de outras pessoas, a princípio, não me agrada. De qualquer forma, e indo direto ao ponto, isso faz parte da vida, num mundo onde naturalmente as coisas adquirem valores o tempo todo, uma verdade que precisa ser sobreposta a um mundo no qual as coisas cada vez mais adquirem valores artificiais, gerados por interesses comerciais. No cinema, a composição de cada comissão é uma aposta. A

ideia de perfeição não existe, a química, o cavalheirismo e o respeito que, em tese, fazem parte desse trabalho, só se confirmam ao longo do processo, e a melhor coisa a fazer é esperar que dê tudo certo. Algumas experiências podem ser desagradáveis, desastrosas. Esta experiência, especificamente, não foi. As visualizações, reações, discussões e argumentações naquele quarto de hotel de número 1210 são intransferíveis, e só poderiam ser fruto daquelas cinco pessoas ali reunidas. Os colegas dessa comissão eram três realizadores e um crítico. Contando comigo, foram quatro realizadores e um crítico. Para os cinco, o quarto tinha três cadeiras e um sofá com dois lugares. Revezávamos nossas posições nas cadeiras, que deixavam as colunas retilíneas, e no sofá, que sugeria que nos esparramássemos. A probabilidade de cochilar nas cadeiras era menor por serem menos confortáveis. Nossos dias começavam por volta das 8h30 da manhã, e muitas vezes o trabalho ia até às 21h30 ou 22h, com pausas para almoçar por volta das 13h e

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jantar às 20h. Seis, sete ou oito longasmetragens num dia, e é espantosa a capacidade que um filme tem de se impor, mesmo sendo o 8º do dia, ou o 1º de uma manhã ainda sonolenta. Como se comportar num grupo em que cada um tem uma experiência pessoal e estética distinta em relação ao cinema? Como decodificar as reações físicas dos seus colegas de equipe durante a sessão de um filme? Ver alguém espreguiçando-se significa tédio ou cansaço? Se o outro faz um “ai, ai, ai...”, imagina-se que o filme não está agradando, especialmente se uma explosão de gargalhadas em grupo ecoa pelo quarto, talvez para liberar um sentimento coletivo. Logo, o grupo se impõe pelo seu gosto, algo que só é possível no 3º dia.

VEREDICTO

Ao longo da semana, as discussões pareciam simples, os candidatos mais fortes destacavam-se, os mais fracos eram descartados com certa facilidade. Dias depois, alguns filmes voltaram e outros mais fortes pareciam perder energia.

Com o afunilamento do processo e a realidade de ter que escolher apenas seis filmes, as discussões tornam-se mais difíceis, nesse caso, nunca no sentido de ver os relacionamentos entre os membros do grupo deteriorar, mas pela simples matemática das escolhas e dos argumentos. Não se trata de tentar encaixar 15 filmes em seis buracos, mas a coisa fica realmente difícil quando há oito filmes importantes para seis espaços. Para cada argumentação, há uma contra-argumentação, e logo o grupo tem a clara sensação de que tenta trocar seis por meia-dúzia. A tarde inteira. Como as decisões irão impactar os realizadores e seus filmes? Como ficam os membros da comissão que têm algum tipo de relação pessoal ou social com produtores e realizadores? Como os filmes serão valorizados no atual momento histórico do cinema brasileiro? Como os filmes rejeitados serão prejudicados? Será que, na contagem geral, eles serão realmente prejudicados? Provavelmente, sim. Uma das verdades mais doloridas do cinema é a de que não importa

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POR ANALOGIA... Cena do clássico 12 homens e uma sentença, de Sidney Lumet, 1957

a qualidade final de um filme, seu sucesso ou fracasso, o cinema dá uma quantidade sobrenatural de trabalho aos que fazem cinema. Esse trabalho é notável em cada bela cena que se desdobra, e em cada sequência medíocre ali vista. Se uma cena é “bela” ou “medíocre”, abrese o debate e, muitas vezes, não há respostas certas ou erradas. Curiosamente, a cada noite, de volta ao quarto, eu via na CNN o desenrolar do julgamento de um segurança americano, George Zimmerman, que matou com um tiro, numa vizinhança da Flórida, o adolescente Trayvon Martin. Esse julgamento abalou a sociedade americana. O segurança suspeitou que Trayvon era um ladrão, aparentemente pelo fato de o rapaz ser negro e usar um moleton com capuz cobrindo sua cabeça. Os seis jurados terminaram chegando a um veredicto que chacoalhou a ideia de raça na América: Zimmerman foi declarado inocente.

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REPRODUÇÃO

Claquete

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FANTASIA Ficção científica com selo do Brasil

Ainda que com poucos exemplares, a produção cinematográfica neste gênero se inicia em 1908, com o uso de efeitos especiais

1 CARNAVAL EM MARTE

Longa de 1954 é desconhecido do público e cultuado por cinéfilos 2 VIAGEM NO TEMPO O homem do futuro (2011), estrelado por Wagner Moura, explora a temática clássica

TEXTO Rodrigo Carreiro DIVULGAÇÃO

Falar do gênero de ficção científica no Brasil é tarefa complicada. E não apenas no cinema: em 1976, o escritor Fausto Cunha escreveu e publicou um artigo intitulado A ficção científica no Brasil: um planeta quase desabitado, em que denunciava a escassez de trabalhos literários que pudessem ser enquadrados no gênero, um dos mais populares da literatura ao longo do século 20. Era verdade. Mais do que isso, até: ainda que livros e contos com temáticas típicas da ficção científica fossem publicados pontualmente, inclusive por autores consagrados como Machado de Assis e Monteiro Lobato, o gênero jamais conseguira o tipo de produção massiva que lhe desse robustez e visibilidade. É fácil, quase instantâneo, transpor esse raciocínio para o cinema. Ora, se na literatura – em que a produção de obras custa pouco mais do que o suor do escritor e o preço de “lápis e papel” – o gênero, nascido durante a Revolução Industrial europeia do século 19, não tem produção e consumo expressivo dentro do país, que dirá em uma arte coletiva, de manufatura cara, cuja relação de produção com a tecnologia de ponta é estreita e imprescindível? Um observador desatento provavelmente alimentará a impressão de que não existe cinema de ficção científica no Brasil. Essa impressão, contudo, está errada. Mesmo que seja tarefa árdua delimitar uma lista de filmes enquadrados no gênero, eles têm sido realizados em terras tupiniquins há mais de um século – mais precisamente, desde o longínquo ano de 1908. Naquele ano, pouco mais de uma década após o surgimento do cinema

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como atividade comercial (a data oficial de invenção da sétima arte remonta a 28 de dezembro de 1895, quando os irmãos Louis e Auguste Lumière realizaram a primeira sessão pública de exibição de filmes, em Paris), o Brasil ainda engatinhava na produção cinematográfica, mas tinha pelo menos dois trabalhos nacionais em circulação: O Diabo, de Antônio Campos, e Duelo de cozinheiras, de Antônio Leal. Os dois títulos, identificados pelo professor Alfredo Suppia, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), investiam fortemente em efeitos especiais: o primeiro imaginava um encontro entre um homem e o demônio, enquanto o segundo exibia os efeitos das tecnologias de destruição da guerra nos corpos de algumas pessoas, cujos braços, pernas e troncos ganhavam vida própria e enfrentavam seus donos. A esses filmes veio se juntar, em 1909, Fósforo eleitoral, de

Antônio Serra, uma sátira política que também investia no cruzamento de ciência e fantasia. O pesquisador Alfredo Suppia, que escreveu uma tese de doutorado na Universidade de Campinas (SP) contando a história do cinema brasileiro de ficção científica, é a maior autoridade brasileira em filmes nacionais desse tipo. Ele identifica o hibridismo de gêneros fílmicos como principal característica dos filmes de ficção científica produzidos aqui. No Brasil, desde o começo do século 20, a temática sci-fi não costuma aparecer isolada, como ocorre nas filmografias de países como os Estados Unidos e a Inglaterra; ela vem combinada com elementos de outros gêneros cinematográficos tradicionais, como o melodrama, a aventura e especialmente a comédia. “Existem os filmes de ficção científica genuínos e as paródias usam o tema para fazer troça”, afirmou o

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3 ANIMAÇÃO Uma história de amor e fúria (2013) narra a saga de um índio imortal

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pesquisador, em depoimento ao Jornal da Unicamp, em 2007.

HÍBRIDOS

Essa combinação de sci-fi e comédia, que já podia ser observada na primeira década do século 20, foi explorada pelo primeiro longa-metragem importante a flertar com elementos da ficção científica no Brasil: Uma aventura aos 40, dirigido e escrito pelo comediante carioca Silveira Sampaio, em 1947. Como nos melhores exemplares puros do gênero, o enredo do filme se passa no futuro – mais exatamente em 1975, quando um professor é homenageado por um programa de TV que exibe sua biografia, no dia em que este completa 70 anos. Na ficção, chateado com as incorreções levadas ao ar pelo apresentador desastrado, o biografado telefona para a sede da emissora de televisão e interrompe a transmissão ao vivo, passando a dialogar diretamente com o apresentador do programa. Trata-se de uma ficção científica legítima: mesmo com a intenção primeira de fazer graça, o longa-metragem concretiza uma das características mais interessantes do gênero fílmico, que é antecipar proezas tecnológicas que os avanços científicos só permitirão que ocorram anos depois (no caso, a transmissão ao vivo e a interação em tempo real entre espectadores e membros de equipes de produção de programas de TV). Até a década de 1950, de acordo com o trabalho de Alfredo Suppia, as

No Brasil, a ficção ganha formas híbridas, em geral, com elementos fortes da comédia e da aventura aparições de filmes brasileiros com temáticas ligadas à ficção científica eram esporádicas e pontuais. Foi nessa época – não por coincidência, a mesma década em que a produção de Hollywood sofreu um incremento significativo da produção de filmes sci-fi sobre invenções científicas que se tornavam um perigo para a humanidade, um reflexo inconsciente do pesadelo nuclear da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética – que a ficção científica passou a ser explorada com maior assiduidade pelos nossos cineastas. De modo geral, essa produção foi dominada por chanchadas, que se utilizavam de temas científicos para provocar risos. Alguns desses filmes se tornaram pequenas gemas cult do cinema brasileiro, obscuras para a maior parte das pessoas, mas veneradas por uma minoria cinéfila. É o caso de Carnaval em Marte, longa de 1954, dirigido por Watson Macedo. O enredo resgatava um subgênero importante do cinema brasileiro dos anos 1930 (os filmes que retratavam o Carnaval, criando uma trama de

ficção sobre um tecido documental que reificava a festa brasileira como uma celebração hedonista, alegre e genuinamente sexual). Nele, uma legião de fêmeas marcianas militares (muito convenientemente, os homens marcianos não acompanhavam as parceiras na viagem até o Brasil) oriundas do Planeta Vermelho invadia o mundo em pleno Carnaval e caía de amores pela festa tupiniquim. Mas o primeiro clássico popular com temática ligada à ficção científica apareceria em 1959, com O homem do Sputnik, de 1950. A chanchada, travestida de aventura espacial, narra as peripécias de um casal (Oscarito e Zezé Macedo, ambos engraçadíssimos) dono de um galinheiro em que cai o satélite mencionado no título, uma inovação tecnológica que dominava as manchetes de jornal da época e afetou fortemente a produção de filmes de ficção científica em todo o mundo. Pouco depois, surgiu o primeiro filme de ficção científica sério a causar algum rebuliço no cinema nacional: O quinto poder, de Carlos Pedregal, lançado em 1962. Nesse trabalho, espiões estrangeiros tentam o domínio psíquico da população brasileira através de mensagens subliminares transmitidas por rádio. Mas a chanchada continuava a explorar a temática com mais sucesso: Os cosmonautas (1962), de Victor Lima, e Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968), de Roberto Farias, são títulos nacionais que flertam com a fusão entre experimentos científicos e fantasia.

ALEGORIAS

Nos anos 1970, as duas vertentes do sci-fi continuaram gerando filmes interessantes, agora em maior número. O grupo Os Trapalhões, então em sua fase mais popular, flertou com temas ligados à ficção científica diversas vezes: O Trapalhão no planalto dos macacos (1976), de J.B. Tanko; Os Trapalhões na guerra dos planetas (1978) e O incrível monstro trapalhão (1980), ambos de Adriano Stuart; e Os Trapalhões no rabo do cometa (1985), dirigido por Dedé Santana.

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INDICAÇÕES Na vertente mais séria, ligada à ficção científica pura, destacou-se O homem das estrelas (1971), de JeanDaniel Pollet, que traz como protagonista um alienígena capaz de viajar no tempo. Nessa época, muitas produções realizadas na área da Boca do Lixo (SP), por diretores como Fauzi Mansur, Carlos Reichenbach e Carlos Coimbra, eram abertamente influenciadas pela ficção científica, introduzindo temas tradicionais do gênero (alienígenas, viagens no tempo, ambientação futurista, enredos pósapocalípticos, que refletem o medo de que tecnologias da destruição eliminem a vida na Terra), em tramas carregadas de conotações sexuais e alegorias políticas. Até mesmo o consagrado Nelson Pereira dos Santos realizou, em 1972, uma ficção científica pura: Quem é Beta, coprodução francesa passada em um futuro distante, em que os seres humanos lutam para sobreviver em um planeta devastado. Até então, a defasagem tecnológica das produções brasileiras era uma das razões mais fortes para que o gênero da ficção científica não emplacasse entre as produções nacionais. Afinal de contas, esse tipo de filme depende fortemente de efeitos especiais caríssimos, e os cineastas daqui não tinham nem a tecnologia nem o dinheiro para bancar esse tipo de extravagância. Isso explica, em parte, o sucesso das tramas híbridas com a comédia, pois numa chave paródica essas limitações tecnológicas e orçamentárias são permitidas e até mesmo incentivadas, já que muitas vezes fornecem a fonte para os risos e peripécias cômicas que movem a trama. A partir

de meados dos anos 1980, porém, o cinema brasileiro passou lentamente a superar essas duas barreiras.

ANIMADOS

Hoje, limitações orçamentárias ou tecnológicas não podem mais ser apontadas como razões plausíveis para que a ficção científica não seja explorada com mais afinco por cineastas brasileiros. Nesse ponto, levando-se em consideração que o cinema de gênero puro (exceção feita à comédia) nunca chegou a realmente cativar as plateias do Brasil, elementos de sci-fi têm aparecido com razoável frequência na tela grande, em filmes como Cassiopeia (1996), um dos experimentos mais arrojados com animação computadorizada de ponta realizados em todo o mundo; Acquaria (2004), superprodução estrelada por Sandy e Júnior, que teve recepção crítica fria; O homem do futuro (2011), de Cláudio Torres, que recicla a temática clássica da viagem no tempo e trabalha dentro dela elementos da comédia romântica; e Uma história de amor e fúria (2013), animação futurista que leva um índio brasileiro a alcançar a imortalidade e viver 600 anos perseguindo a mulher amada em diversas encarnações. É provável que o futuro nos reserve mais novidades relacionadas ao gênero, a começar pela revelação do cineasta Marcos Alqueires, que produziu e divulgou em 2012 o curta-metragem The flying man, através do YouTube, praticamente sem recursos, ganhando elogios de peixes graúdos como Joe Quesada, chefão da Marvel. O futuro é promissor.

COMÉDIA

REALITY: A GRANDE ILUSÃO Direção de Matteo Garrone Com Aniello Arena, Nando Paone, Claudia Gerini Europa Filmes

DRAMA

FERRUGEM E OSSO Direção de Jacques Audiard Com Marion Cotillard, Matthias Schoenaerts e Armand Verdure Sony

O longa italiano faz crítica à sociedade conservadora e aos programas de reality show da TV. Luciano é capaz de qualquer coisa para manter a família, até de participar de um show de realidade, o Grande Fratello. Bem-sucedido nos testes para seleção dos participantes, o peixeiro acredita que já está dentro do programa. Dias se passam e nenhum comunicado da emissora de TV chega até ele, deixando-lhe paranoico .

Ao juntar os contos Rocket ride e Rust and bone, do escritor canadense Craig Davidson, Ferrugem e osso conta a vida de Alain, um boxeador que trabalha como segurança de boate. Após uma briga, o lutador conhece Stephanie, uma treinadora de baleias. A personagem sofre um grave acidente num aquário, perdendo as pernas. Encontra em Alain uma companhia especial. O drama de Audiard foi aplaudido por 10 minutos no Festival de Cannes de 2012.

COMÉDIA

DRAMA

Direção de Pedro Almodóvar Com Javier Cámara, Cecilia Roth, Lola Dueñas

Direção de Danièle Huillet, Jean-Marie Straub Com Gustav Leonhardt, Christiane Lang e Paolo Carlini Cult Classic

OS AMANTES PASSAGEIROS

Primeiro filme gravado com câmeras digitais por Almodóvar, o longa narra, com um humor rasgado, a vida de passageiros que enfrentam problemas durante um voo para o México. Impossibilitado de pousar, o avião voa em círculos por horas, atrás de um pouso de emergência em solo espanhol. Antes que seja tarde demais, comissários de bordo e clientes da classe executiva deixam escapar segredos pessoais. O diretor tenta desconstruir os tabus ligados ao sexo, num filme histérico.

CRÔNICA DE ANNA MAGDALENA BACH

A adaptação fílmica do diário da esposa de Bach descreve fases da vida do compositor barroco, entre 1721 e 1748. A direção usa suas composições para criar uma história de amor, com narrativa simples. Relançado, este filme de 1968 apresenta mais de 20 números de Bach, interpretados pelo cravista e organista Gustav Leonhardt. Aqui, a música não é trilha, é personagem.

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PAULO CÉSAR LIMA /DIVULGAÇÃO

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INFANTIL Uma dança que queria ser criança

1 IDENTIDADE Em Guia improvável para corpos mutantes, o Grupo Experimental de Porto Alegre discute as mutações do corpo

Grupos de dança contemporânea começam a mostrar interesse em produções voltadas para esse público TEXTO Christianne Galdino

Era uma vez uma dança que, no

caminho da reflexão, ficou adulta demais e acabou ganhando uma cara tão séria que desaprendeu a brincadeira... É difícil alguém explicar o que exatamente levou as produções coreográficas contemporâneas a adotarem uma postura tão sisuda, na maioria das vezes imprópria para menores. Parece que há uma regra implícita, em vigor no meio artístico, de que dança contemporânea não foi feita para crianças, já que elas não seriam capazes de alcançar as complexas configurações estéticas, intenções de tais obras. Discordando desse pensamento, a paulista Georgia Lengos convidou amigos que tinham concluído com ela a graduação em Dança, na Unicamp (SP), a criar a Balangandança, primeira companhia brasileira com um trabalho específico de dança contemporânea para crianças, fundada oficialmente em 1997. “Comecei a observar muitas conexões entre o trabalho que realizava na companhia Nova Dança (e, depois, no Grupo Oito Nova Dança) e os movimentos das crianças a quem eu dava aulas. Percebi que a arte contemporânea e a criança têm tudo a ver, e decidi mergulhar nesse universo, direcionando minhas pesquisas criativas para esse público”, lembra

A espontaneidade e a destreza dos movimentos das crianças são matériaprima e ferramenta para criações a bailarina, que continua dirigindo a companhia, mas, desde que foi mãe há três anos, decidiu deixar os palcos. Quando resolveu encarar essa missão, Georgia trouxe as técnicas de improvisação e educação somática que vivenciava na dança contemporânea, e aprofundou os estudos no desenvolvimento motor infantil, para oferecer às crianças “outra visão de corpo e de mundo por meio de uma comunicação menos comercial e apelativa”. A espontaneidade e a destreza dos movimentos característicos das crianças são matéria-prima e ferramenta metodológica para as criações da Balangandança, que tem nas brincadeiras e jogos da infância sua principal inspiração. Ao contrário do senso comum, fazer arte para crianças é um processo complexo, que requer preparo e cuidado redobrado para não cair na

armadilha de uma representação infantilizada e postiça, ou usar uma linguagem que “soe falsa”. Alguns grupos de dança optam por atrelar suas montagens para crianças a textos teatrais, mas Georgia e sua trupe fizeram outras escolhas: “A palavra só aparece como parte do movimento, como é habitual nas crianças. Ou, quando um dos intérpretes relata memórias pessoais, ou conta um fato ocorrido durante o processo criativo. Não usamos grandes cenários nem roteiros dramatúrgicos adaptados da literatura, nos guiamos mais pelas sensações, emoções e as relações existentes no universo infantil”. Interatividade é palavra-chave em todos os trabalhos da companhia, desde Brincos & folias (1997), passando pelo recente Álbum das figurinhas (2012), até Ninhos – performance na qual a falta de espaço urbano para crianças é discutida em cena, através de analogias com os ninhos dos pássaros. “Eles são lugares de aconchego e segurança, mais que necessários para os filhotes aprenderem a voar. Queremos chamar a atenção para a carência de afeto, e de espaços de brincadeira que sejam como os ninhos, e possam estimular relações carinhosas, na confusão caótica das grandes cidades”, explica Georgia. Para esse trabalho, a diretora,

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FOTOS: PAULO CÉSAR LIMA/DIVULGAÇÃO

Palco 2

Apesar do aumento no número de espetáculos no segmento, os temas “delicados” ainda são evitados últimos anos, ainda há indefinição pairando sobre a relação dançacriança. Os temas “delicados” – como sexualidade, morte, miséria e certos conceitos mais abstratos – continuam a ser escanteados e evitados.

TEMAS-TABU

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incluiu na preparação do elenco aulas de kempo indiano, uma arte de luta que desenvolve a agilidade, a força e a atenção, com movimentos inspirados nos animais e nos ritmos da natureza Com estreia prevista para o início de 2014, Ninhos foi uma das pesquisas contempladas no edital Rumos Dança do Itaú Cultural, primeiro

programa a criar uma categoria específica de dança contemporânea para crianças. O que é um fato revelador da expansão dessa área ou, pelo menos, da preocupação crescente dos artistas e produtores com esse público. Apesar do aumento do número de espetáculos neste segmento nos

Entre os que têm desenvolvido projetos que enfrentam esses temastabu, destaca-se um grupo de jovens gaúchos, coordenado por Airton Tomazzoni. Eles participavam do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre e, em 2011, criaram paralelamente um núcleo de pesquisas voltadas ao público infantojuvenil. O projeto inaugural, que inclui a realização do 1º Fórum Nacional

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DANIELA NADER/DIVULGAÇÃO

2-3 NINHOS

No espetáculo, o Balangandança utilizou kempo indiano, uma arte de luta inspirada nos animais e na natureza

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IRMÃS Ketully e Pollyana integram a ONG Em Cena Arte e Cidadania

de Dança, Infância e Juventude (em abril de 2014), e a montagem do espetáculo Guia improvável para corpos mutantes, foi contemplado no Rumos Dança e no Prêmio Klauss Vianna 2012, da Funarte. São 21 cenas que propõem reflexões sobre as mutações naturais e artificiais do corpo em formação psicofísico-social, e nos levam imediatamente a um debate sobre a identidade cultural. “Partimos da habilidade própria das crianças em reinventar o corpo, nas suas representações (desenhos e esculturas de massas de modelar) e brincadeiras, e criamos artifícios para assumir outros rostos e reconfigurar o corpo, dando origem a movimentações diferentes. Os tão populares tablets, por exemplo, são usados como máscaras, dando a possibilidade de cada intérprete assumir muitas identidades”, diz Airton. A montagem estreia neste setembro dentro do programação do 4º Dança Rima com Criança, realizado pelo Sesc São Carlos (SP), um dos poucos eventos brasileiros destinados exclusivamente para esse público.

EFEITO PEDAGÓGICO

Alguns grandes festivais de dança contemporânea do país inserem mostras

específicas para os pequeninos. No entanto, considerados apêndices ou ações de formação, os espetáculos dessa vertente são os primeiros a serem cortados, quando o orçamento precisa ser reduzido. O que mostra que a dança contemporânea para crianças ainda é considerada supérflua, na maioria dos casos, ou utilizada somente como contrapartida pedagógica dos projetos. “Eles pensam os espetáculos infantis como atividades formativas, como se fossem iguais a uma aula ou oficina. Só porque são voltados para crianças não podem estar na programação artística do evento?”, questiona Georgia Lengos. Não que o aspecto educativo esteja fora dessa conversa, mas tal característica não deve se sobrepor à qualidade artística das obras. Essa é a queixa daqueles que resolveram levar a brincadeira a sério, estudá-la a fundo e traduzi-la em movimento. A maioria das produções pernambucanas de dança contemporânea que chega às crianças traz uma temática próxima do universo infantil. “Sempre vejo todos reclamando da falta de público para a dança contemporânea, mas, ao mesmo tempo, continuam destinando às crianças exclusivamente peças e aulas de balé clássico. Como querem, então, que, quando crescerem, elas assistam e gostem de dança contemporânea?”, provoca o coreógrafo Airton Tomazzoni.

Formação

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UM SONHO DE BAILARINA Havia uma menina de oito anos que queria ser bailarina. Mas a mãe, moradora da comunidade do Coque, não tinha condições de pagar as aulas. Por artimanha do destino, foi nos arredores de sua casa que surgiu, em 1998, a ONG Em Cena Arte e Cidadania. “Eu não passei no primeiro teste que fiz. Mesmo assim, vinha para as aulas, tanto que, no ano seguinte, fui aprovada”, conta Ketully, que atualmente é professora e bailarina do Em Cena. “A idade mínima para entrar era sete anos, e eu só tinha cinco. Mas continuei frequentando as aulas e tentando imitar os movimentos. Quando teve outra seleção, eu chorei, implorei e decidiram abrir uma exceção para mim”, lembra Pollyana, irmã mais nova de Ketully, e uma das veteranas do elenco do Em Cena. As duas chegaram a mentir para a mãe e se aventurar sozinhas no caminho de casa, do Coque aos Coelhos, onde fica a sede da ONG, só para não perder aula. Mesmo tendo como carro-chefe o ensino da dança clássica, o Em Cena conseguiu fazer diferença, quando optou por trabalhar a linguagem contemporânea nos seus espetáculos, realizando “dança para e por crianças”. Mieja Chang, coreógrafa e professora da ONG, conta que “nas aulas, há um momento onde propomos exercícios criativos, e todos os nossos espetáculos são feitos a partir das improvisações e ideias das próprias bailarinas. Nós apenas damos uma direção”. O trabalho em desenvolvimento é uma adaptação da obra infantojuvenil do autor pernambucano Luciano Pontes. “Escolhemos quatro livros dele, para falar sobre as fases do desenvolvimento humano, da infância à velhice, associando cada momento a um elemento da natureza”, explica a professora Valéria Medeiros, que também assina a coreografia do espetáculo. Com direção de Marcos Rodrigues, e intitulado Disse-me dança, esse quinto trabalho do Em Cena conta com o primeiro solo de Ketully. “É a história de uma menina que tem muitas lembranças e não as esquece”, descreve a bailarina, que lembra todos os detalhes dos 15 anos dessa história vitoriosa que está “escrevendo em dança”.

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

CERIMÔNIA DO ADEUS

Divagar por Roma. Ver: Roma e

suoi dintorni (Roma e seus arredores), livrinho que comprei lá em 1957. Via Ventuno Aprile, Rua Vinte e Um de Abril, dia da fundação da cidade, segundo Baccaro. O mesmo do nascimento de meu filho Cláudio Manuel da Silva, ou Mané Tatu como assina nos quadros, além de feriado de Tiradentes. Minha filha, Maria Júlia, nasceu dois anos, um mês e um dia depois, 22/maio/ l963. Casei 16/jan./60. Mané é de 61. Voltando a Roma. Vi no filme Concorrência desleal, de Luchino Visconti, que foi o rei Vítor-Emanuel que decretou o confisco dos bens dos judeus e todos os horrores que vieram a seguir, envio para campo de concentração, a família inteira inclusive crianças como a do filme, junto com Mussolini para agradar a Hitler, e me espanta que exista na Itália tanta rua, praça, ponte, com esse nome que devia era ser submetido àquela lei romana de que fala Umberto Eco, a damnatio memoriae, de ter o nome apagado de todos os registros, de um infame desse passar a nunca ter existido. E os

italianos não-judeus também eram chamados de “arianos”, não podendo um “ariano” ser empregado de um judeu. Por aí você vê que qualquer povo pode ser influenciado por uma imbecilidade dessa. Até ponho minhas barbas de molho. É bom que se enalteça a raça brasileira, tão menosprezada até há pouco tempo pelos próprios brasileiros, quando se dizia que a mistura de raças levava à degenerescência da espécie. Mas cuidado para não passar de um extremo ao outro, considerando brasileiro raça superior. Quando alguém diz que gosta de Roma eu lhe fico grato. Em Roma, só fiz olhar para quadro. Não se pense que tive privilégios além desse, o que não foi pouco. Quanto a mulher, eu pensava: não vim aqui atrás de mulher, que no Brasil tem de sobra (apesar do Pois é de Ataulfo Alves: “Mulher a gente encontra em toda parte/Só não encontra é a mulher que a gente tem no coração”). E eu tinha vinte e cinco anos. Foi lá que comecei a tomar vinho. Fazia frio e água me repugnava. Comecei a

tomar Olevano (olévano), tinto, a uva é a cesanese, me diz o amigo Mario, romano, marido da nossa grande fotógrafa Roberta Guimarães, “bom vinho”, disse ele, e que nunca vi engarrafado, tomava de copinho nas tascas, e Frascati (frascáti), branco, idem, que é comum hoje encontrar nos supermercados aqui. Divagar. Eu gosto é de divagar, até na pintura. Tem um livro ótimo, Amor a Roma, um palíndromo, de Afonso Arinos. O escritor americano Gore Vidal: “Muitos acham que a melhor cidade do mundo é Paris. Alguns sabem que é Roma”. Tem um filme de Fellini, Ginger e Fred, com Marcello Mastroianni e Giulietta Masina, em que os dois, no começo da velhice, relembram os tempos da mocidade, quando se apresentavam nas periferias imitando Fred Astaire e Ginger Rogers. A certa altura Marcello diz, sem amarguras, risonho até, que tudo bem com ele mas às vezes vê as coisas lhe dando adeus. Isso me tocou mais ainda porque quando ele acena me senti não como simples espectador. No ano que passei em

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REPRODUÇÃO

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Roma eu encontrava com ele na rua quase todo dia, acredite se quiser, capa de gabardine bege aberta, as tiras do cinto penduradas, de costas para a parede, uma perna encolhida e o pé no reboco, cigarro na mão, do outro lado da rua defronte de um café na Via del Babbuino (babuíno, macaco) já chegando na Piazza del Popolo (Praça do Povo). A calçada ali é estreita e precisavam se encolher para eu passar e muitas vezes eu ouvia a voz grave saída da boca dele no papo com os amigos, dois, no máximo três, ou se encostavam também na parede. Essa parede devia ser o oitão de uma das duas igrejas que formam o Tridente: ruas Babbuino, Corso e Ripetta, justamente onde ficava a Accademia (acadêmia, academia) di Belle Arti, que eu frequentava diariamente, na Piazza Ferro di Cavallo, na Ripetta, chegando às oito horas da manhã. Tem coisa que parece até espiritismo. Uma vez, agora, dois mil e dez para cá, vi uma entrevista de Mastroianni, no interior do prédio onde morava, uma sala, ou quarto, e tive a exata impressão de que se ele botasse a cabeça na

Atualmente, sem premeditar, me dei conta de que tenho tirado para ver no DVD na maioria filmes italianos janela poderia ver o entorno da Igreja de Trinità dei Monti (Trindade dos Montes), a escadaria onde íamos depois das aulas prendere il sole (tomar sol), inclusive Isaac Gondim, daqui do Recife, que estudava teatro na mesma Accademia. Foi só o que deu. Quando acabei de pensar, ele bota a cabeça na janela explicando porque gostava de morar ali, a câmera o segue e mostra exatamente o que imaginei. Acredite se quiser. Atualmente, sem premeditar, me dei conta de que tenho tirado para ver no DVD na maioria filmes italianos. A princípio me atraía a língua, a única que posso dizer que falei um dia fora português, começando a voltar a entender, me lembrando de

JOSÉ CLÁUDIO

Homenagem ao Guercino. Nanquim sobre papel, 29 x 39 cm, Roma, 1958

frases, expressões, até gíria de minha época lá, o som das ruas, tipos de gente, fardas, as batinas vermelhas dos seminaristas alemães, uma certa distinção nas ruas, isso em 1957-58. Quando voltei com Leonice minha mulher, alguma coisa tinha mudado, vinte anos depois. Os ônibus não eram mais tão novos. A população, menos senhoril. Mas muita coisa era igual. No primeiro barzinho que entrei, pedi un bicchierino di Olevano com alguma apreensão. O rapaz botou o copinho no balcão e serviu o mesmíssimo vinho: vi que seus olhos riam com a minha felicidade. Minha garganta teve vontade de gritar “Vivaviva!” como gritávamos na claque da torrinha do teatro com que pagávamos o ingresso: foi assim que vi ópera. Tem uma rua em Roma que se chamava Via Felice. Aliás também ouvi Vicolo (vícolo, beco) di Via Felice. Em português não tem a mesma musicalidade, Beco de Rua Feliz. Vicolo di Via Felice! Não me surpreende Betânia Caneca quando diz: “Só sabe o que é felicidade quem morou em Roma”.

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SALVADOR DALÍ Mergulho visual no Surrealismo

Artista catalão organizou, sob as ruínas do teatro de Figueres, sua cidade natal, museu com o maior acervo de sua obra TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa

Visuais 1

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1-2 PRÉDIO

Fechando levemente os olhos,

como que imitando orientais, homens e mulheres pelejam para decifrar o imenso quadro à sua frente, enquanto jovens quebram a cabeça para descobrir o que significa um Cadilac Preto, 1942, cheio de água, estacionado no jardim. Salvador Dalí viveu e foi sepultado num teatro espanhol transformado, por ele, em museu. Muito mais que um patrimônio arquitetônico, o conjunto exposto na pequena cidade espanhola de Figueres oferece um mergulho visual no universo surrealista de um dos mais polêmicos e criativos ícones da arte contemporânea. Através de escadarias que não levam a lugar nenhum, somos surpreendidos a cada esquina com os delírios visuais do gênio da pintura, da excentricidade e da provocação. Segundo o próprio Dalí, o objetivo não era colocar peças dentro de um prédio, mas, antes, fazer da própria construção uma obra de arte. Qualquer dúvida quanto ao sucesso da ideia é rapidamente dissipada quando percorremos essa que é umas das duas maiores coleções do pintor catalão. A fachada do prédio é a primeira instalação. As paredes estão repletas de esculturas em forma de pães e o telhado abriga dezenas de ovos gigantes. Nas janelas, emolduradas por plantas, esculturas femininas parecem flutuar. O Museu-Teatro Dalí foi inaugurado em 1974 e foi construído sobre as ruínas do antigo teatro municipal da cidade, destruído durante a Guerra Civil. Poucos artistas tiveram a chance de organizar o próprio museu, como teve Dalí. Tudo lá dentro foi pensado por ele, que fez peças especiais para a instituição. A coleção de mais de 4 mil obras é gerenciada pela Fundação Gala-Salvador Dalí e inclui pinturas, esculturas, instalações, fotografias, móveis e joias. Algumas dessas coleções possuem a qualidade de lançar um novo olhar sobre a vida e a obra do pintor, e colocar um pouco mais de lenha na fogueira de polêmicas que desde cedo acompanhou a obra do artista, a exemplo da exposição Aliyah, the rebirh of Israel, que traz uma série pouco conhecida de 25 litografias coloridas, produzidas entre 1967 e 1968 para comemorar os 20 anos de fundação do Estado de Israel. Além de impressionar pelos traços, os desenhos levantam perguntas até

Na fachada, há esculturas em formato de ovos e pães, além de nichos com imagens oníricas femininas

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hoje sem respostas. Será que Dalí teria antepassados judeus? Ou sua intenção era simplesmente explorar o tema para benefício comercial? As dúvidas surgem quando especialistas apontam certo fascínio do pintor por ditadores como Hitler e Franco, o que teria causado sérios problemas entre seus colegas surrealistas. Talvez a verdade esteja mais próxima da interpretação de David Blumenthal, professor de estudos judaicos: “Eu acho que Dalí não era ideologicamente racista, antissemita, comunista, socialista, fascista ou qualquer coisa. Ele era um artista. Ele absorveu tudo, transformou e depois nos devolveu com arte”.

OBRAS

Esse poder de reinvenção dos surrealistas ganhou, com Dalí, a máxima expressão na montagem do seu museu particular. A partir de uma pintura a guache, produzida na década de 1930, sobre uma fotografia da atriz americana Mae West, Dalí concebeu a ideia de um apartamento onde os cabelos seriam a cortina, os lábios o sofá, o nariz uma lareira e os olhos pinturas fixadas

na parede. Na década de 1960, com a ajuda do arquiteto espanhol Óscar Tusquets, Dalí reproduziu a pintura em três dimensões, sendo essa uma das mais visitadas salas da instituição e um exemplo claro da fixação surrealista do pintor levada às últimas consequências. Já o imenso quadro Gala contemplando o mar revela o aspecto enigmático da obra do artista. De perto, vê-se claramente uma mulher – sua esposa – à janela, apreciando o mar. Mas é só recuar alguns passos e cerrar levemente os olhos, que a pintura se transforma num nítido retrato de Abraham Lincoln. Quem não quiser pagar o “mico”, é só depositar alguns centavos e verificar a transformação através de um binóculo fixo. Numa das janelas externas do prédio, surge um escafandrista em tamanho natural, uma alusão aos anos 1930, quando Dalí compareceu à Exposição Surrealista Internacional de Londres vestindo um escafandro. Até o quarto do pintor virou atração, seus móveis, roupas e objetos pessoais. Além de obras de arte originais, muitas peças espalhadas pelo museu são apenas referências à vida e à

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PROJETO Museu foi arquitetado pelo próprio artista, nos seus últimos anos de vida

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SITE-SPECIFIC Algumas obras foram criadas em relação com o espaço, que também abriga acervo de épocas distintas

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MAE WEST Sala foi projetada por catalão, a partir de pintura do rosto da atriz americana

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PATRIMÔNIO Coleção inclui mais de 4 mil obras, entre pinturas, esculturas, instalações, fotografias, móveis e joias

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FIGUERES Cidade espanhola exibe nas ruas a influência do surrealista

obra do pintor, compondo um mosaico de instalações biográficas que contam um pouco da história do Surrealismo e tentam explicar o que para muitos é conceitualmente inexplicável.

CLIMA DA CIDADE

Pelas ruas de Figueres, o clima surreal dá o tom. Vacas coloridas nas varandas de hotéis e restaurantes são cenas tão comuns quanto esculturas fixadas no alto de uma pilha com dezenas de pneus. Antes de voltar à vida real, no entanto, a dica é passar pela Livraria Surreal, que funciona em anexo ao museu e que oferece livros, réplicas de pinturas e objetos mais prosaicos, como camisas com reproduções de obras de Dalí. Um dos artistas mais célebres e reconhecidos do mundo, mas também um dos mais controversos, Salvador Dalí é ainda admirado por ter montado, ele mesmo, o próprio museu. Organizar um acervo tão diverso, de uma forma que fosse minimamente racional, não parece ter sido tarefa das mais fáceis e preencheu cada segundo dos últimos anos de vida do artista. Vivendo numa época em que a pintura parecia ameaçada pela fotografia, pelas instalações e pela arte conceitual, Dalí se colocou na vanguarda, assumindo essas novas expressões e reunindo-as num único lugar, transcendendo e mantendo vivo o poder expressivo da pintura e a relevância da loucura para a arte. Para Sigmund Freud, o surrealismo de Dalí teve o poder de modificar sua visão negativa acerca do movimento. Numa famosa crítica, ele elogia o pintor catalão e finaliza dizendo que: “de qualquer modo, ele tem sérios problemas psicológicos”.

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Ronaldo Correia de Brito MÉDICO E ESCRITOR

ENTREMEZ

SUSANA E O JUDEU ERRANTE As pessoas que compram ovos em embalagens de isopor nem imaginam que até bem pouco tempo negociantes batiam às portas da zona rural procurando a mercadoria para vendê-la na cidade. Donas de casa vendiam o que tinham juntado na semana e, quando havia poucos ovos, queixavam-se das galinhas no choco, das raposas, do consumo doméstico. O comprador balançava cada ovo junto ao ouvido, para não levar gorados e, se a dúvida persistia, olhava-o contra a luz de um candeeiro. Arrumada num balaio, a frágil mercadoria era transportada na cabeça, léguas a pé. Um tropeço, e o sonho de lucro se desfazia como na fábula Laura e o pote de leite. Conheci alguns desses modestos comerciantes, ramo em que predominavam as mulheres. Percorriam longos trajetos, subiam e desciam serras, entravam por veredas. Ao fim de um dia de canseiras, pernoitavam na casa de um freguês. Tanto os compradores de “balaio na cabeça” como os vendedores de “maca às costas” sabiam contar histórias. Entreter a

família hospedeira com narrativas orais se tornava uma obrigação, um pagamento da hospitalidade. Aos comerciantes andarilhos, pedia-se que fizessem compras nas cidades, levassem encomendas aos parentes, cartas, recados e notícias. Criava-se intimidade com as famílias, uma rede de favores e pequenas intrigas. Num mundo sem televisão e com poucos rádios, onde as casas ficavam distantes umas das outras, os mascateiros representavam um vínculo com o mundo, um sinal de que as pessoas isoladas estavam vivas e de que existiam outros seres vivos iguais a elas. Na nossa casa do Crato, uma mulher chamada Júlia fornecia os ovos. Era conhecida dos meus pais há muitos anos e por isso sentia-se à vontade na família. Tinha sempre um favor a pedir. A mim, mandava que escrevesse cartas e lesse trechos de livros. Carregava cordéis no balaio e meus tios afirmavam que possuía centenas de “versos”, como chamavam os livrinhos editados em tipografias rústicas e que representavam

a mais importante literatura dos interiores nordestinos. Júlia sabia ler, mas não escrevia o próprio nome. Se possuía livros, é porque se dedicava a leituras, eu supunha. Então, por que pedia minha ajuda? A cada visita me mandava ler Susana e o julgamento de Daniel, penúltima narrativa do livro desse profeta: “Havia um homem que morava na Babilônia, chamado Joaquim. Ele havia desposado uma mulher chamada Susana, filha de Helcias, muito bela e temente a Deus. Seus pais também eram justos e haviam educado a filha na lei de Moisés. Joaquim era muito rico e possuía um jardim contíguo à sua casa. A ele acorriam os judeus, porque era o mais ilustre deles todos”. A história famosa, tema de ópera, pinturas e gravuras, conta que dois anciões do povo hebreu se apaixonaram por Susana e como ela resistira ao assédio, eles a difamaram, dizendo que haviam sido tentados. Após a acusação, a mulher é rejeitada pelo marido, julgada pelos dois velhos juízes e condenada à morte. Quando vão executá-la, Daniel escuta os

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KARINA FREITAS

rogos da infeliz e apresenta-se para julgar o caso. O jovem profeta consegue inocentar Suzana e os dois velhos são condenados. Minha ouvinte se comovia e chorava nas mesmas passagens da narrativa bíblica, exultando com a proclamação da verdade. Mandava que eu relesse alguns trechos, fazia comentários ou gemia queixosa. Eu não alcançava a obsessão pelo relato, o amor a Susana. Demorei a compreender os motivos desse culto. A outra obsessão de Júlia era o romance O judeu errante, baseado numa lenda que possui inúmeras versões. Uma delas conta que Jesus Cristo, na subida ao Gólgota, teria caído sob o peso da cruz, em frente à loja onde trabalhava o sapateiro Aasvero. Zombando, o homem gritara para o condenado que caminhasse. Jesus teria respondido que o sapateiro é quem caminharia pelo mundo até o fim dos tempos. Dois temas impressionavam Júlia: o falso testemunho desmascarado – com a proclamação da inocência –, e a condenação de um homem a caminhar eternamente. Eu até

Dois temas lhe chamavam atenção: o falso testemunho desmascarado e a condenação a caminhar eternamente compreendia que ela se sentisse um judeu errante, vagando pelo mundo com um balaio de ovos na cabeça, descalça, malvestida, debaixo de sol e chuva. Mas Susana, de que modo entrava em sua vida? Foi quando meu pai contou-me que Júlia fora acusada de trair o marido. Ele não aceitara sua defesa, tomando as duas filhas da pobre mulher e indo morar bem longe. Por esse motivo, eu escrevia tantas cartas lamuriosas, ouvia queixumes e presenciava cenas de lágrimas. O outro mistério que cercava a vida de Júlia, além de seu apego aos livros, era o destino do dinheiro que ela apurava, em longas jornadas de trabalho. Não gastava nada consigo mesma, vestia roupas que as freguesas

lhe davam, e comia pelas casas dos outros. Seu casebre ameaçava cair. E o dinheiro ganho? Há anos juntava para as filhas, porém nunca se teve notícia de que mandasse um único centavo para as meninas, como sempre as chamou, apesar dos anos passados. Quando a encontraram morta, em casa, primeiro viram os cordéis, três edições gastas de O judeu errante e um volume da História Sagrada, com um cordão sebento marcando a narrativa de Susana. Debaixo de uma cama de varas, que nunca tinha uso, uma maleta de couro. Dentro dela, arrumadas com a cupidez de um usurário, centenas de cédulas, a maioria fora de circulação. Poupadas pelas traças, cheiravam a mofo e à coisa velha. O trabalho de Júlia e seus sonhos, trocados em dinheiro de papel, demandavam um tempo que parecia eterno. Nessa ilusão de eternidade, as filhas cresceram e se casaram, sem jamais reencontrarem a mãe; as cédulas da maleta se tornaram inúteis, estragadas pela inflação, palavra complicada que minha inteligência infantil não alcançava ainda.

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FOTOS: REPRODUÇÃO

Leitura ANTONIO CALLADO “Um doce radical” Fotobiografia, produzida por sua mulher Ana Arruda, reúne histórias de coragem do romancista, dramaturgo e jornalista TEXTO Inácio França

O governo estadual decide

remover uma favela inteira. Os moradores, negros, pobres, analfabetos e que não compravam jornais, reagem à ideia de morar a dezenas de quilômetros do local onde viviam. O governador ameaça prender quem resistir. Um padre os apoia. O jornal mais importante do país passa a cobrir o conflito com isenção, ouvindo todos os agentes envolvidos

e tomando cuidado para não rotular os favelados como baderneiros. O próprio chefe de redação assume a função de repórter e vai à favela, escuta os moradores, é fotografado sujando os sapatos na lama das ruelas, conversa com o padre e defende abertamente as negociações, que acabam com o recuo do governo. Não, os dois parágrafos acima não são resumo do roteiro de um filme

nem a sinopse de um romance. Tudo isso aconteceu mesmo. E no Brasil. Os tempos eram outros. O jornal era o extinto Correio da Manhã e o chefe de redação chamava-se Antonio Callado. Essa e outras histórias do romancista, autor teatral e um dos mais corajosos jornalistas brasileiros está contada de forma breve, porém com fartura de imagens, em Antônio Callado – fotobiografia (Cepe Editora). O título do livro também poderia incluir a palavra afetiva. Seria mais realista até. O trabalho de preparação dos textos, seleção de fotos, organização de documentos foi realizado pela viúva, a também professora de Jornalismo Ana Arruda Callado, com ajuda de sobrinhos, da filha e dos netos do escritor. Não é preciso ser um expert para perceber o carinho e a saudade transbordando das mais de 450 páginas do volume.

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No episódio que abre esse texto, os 1.100 moradores de Braz de Pina contaram com a ajuda do sacerdote José Sainz Artola, pároco da Igreja de Santa Edwiges, para enfrentar a violência da polícia de Carlos Lacerda, governador do antigo estado da Guanabara. Antônio Callado comprou a briga, e o jornal que ele chefiava passou a denunciar os espancamentos, as prisões e a ação dos falsos assistentes sociais que constrangiam a comunidade, na esperança de convencê-los a morar no subúrbio de Bangu, a mais de 20 km dali. Obrigado a enfrentar o Correio da Manhã e seu respeitado diretor de redação, Lacerda acabou desistindo e Braz de Pina tornou-se a primeira favela da América Latina a ser urbanizada. A atuação de Callado nesse episódio não foi um caso isolado em sua biografia. Pelo contrário, é apenas um exemplo do seu compromisso com os mais pobres, os negros, os índios, os trabalhadores rurais. E de como seu talento para escrever e comandar redações foi colocado a serviço da luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Como repórter, ele já havia visitado Pernambuco no início dos 1960, para conhecer e escrever sobre as Ligas Camponesas e um perfil do seu líder, o advogado Francisco Julião. A reportagem, vencedora do Prêmio Esso, foi compilada no livro Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco, que reuniu outros textos jornalísticos resultantes de suas viagens ao Nordeste. Em 1964, a experiência com as Ligas ganhou uma versão para o teatro com a peça Forró no Engenho Cananeia. Callado voltou a Pernambuco pouco antes do golpe militar, para conhecer a experiência do primeiro governo de Miguel Arraes. Dessa vez, o material foi publicado no Jornal do Brasil na forma de uma série de reportagens, entre dezembro de 1963 e janeiro do fatídico 1964. Sem imaginar o que viria pela frente, sentenciou: “Pernambuco é, neste momento, o maior laboratório de experiências sociais e o maior produtor de ideias do Brasil”. Depois do golpe, com Arraes preso em Fernando de Noronha, publicou a reportagem no formato de livro sob o título Tempos de Arraes – a revolução sem violência. Era preciso coragem

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e espírito provocador para fazer tal coisa em pleno ano de 1965.

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LIGAS CAMPONESAS Francisco Julião e Callado, no Engenho Galileia, em 1959. Jornalista engajou-se às causas dos trabalhadores rurais

PÔSTER DE CHE

A clareza e a coerência que mantinha no campo político lhe renderam três prisões. A primeira, rápida e sem maiores consequências, ainda em 1964, em um protesto no centro do Rio de Janeiro em companhia de outros intelectuais. No período imediatamente posterior ao AI-5, perambulou de quartel em quartel levando um pôster de Che Guevara, depois de ser preso por organizar e participar de uma manifestação contra a presença do ditador Costa e Silva na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para um almoço de confraternização. “Não se almoça com quem quer nos jantar”, teria dito, com irritação. Por fim, em 1978, foi detido junto com Chico Buarque quando retornava de uma viagem a Cuba, onde fez parte do júri do prêmio literário Casa de las Américas. A segunda prisão gerou outros problemas. Numa decisão inédita, em março de 1969, Antônio Callado teve seus direitos políticos cassados pela ditadura. Até aí, nenhuma novidade. Centenas de outros jornalistas e intelectuais foram vítimas de processos semelhantes. O mais bizarro, contudo, foi a proibição de trabalhar “em qualquer atividade de jornalismo de empresas jornalísticas ou estações radiodifusoras de som e imagem bem assim as de magistério em qualquer nível”.

A decisão era absurda até mesmo para os padrões da ditadura brasileira. Não demorou e foi revogada por pressão da ABI, dirigida por um conselho dócil aos militares, e de um jornalista célebre por suas ligações com os quartéis, o colunista social Ibrahim Sued. Este publicou um apelo em sua coluna diária no jornal O Globo. Ana Arruda acredita que foi a notinha de Sued, mais do que o posicionamento vacilante da ABI, que determinou a revogação do decreto de abril de 1969. O documento, por sinal, chegou a ser publicado no Diário Oficial, mas com o tempo e com a anulação dos seus efeitos transformou-se numa espécie de lenda. Para muita gente, era uma história que Callado contava para enriquecer seu folclore pessoal. “Encontrar o documento de cassação foi uma vitória. No processo de produção do livro e com a ajuda de um único registro na internet, encontramos o jornal na Biblioteca Nacional”, conta a viúva do jornalista. Mesmo tendo conhecido o marido em 1971, Ana lembra que Callado falava sobre a postura honrada do proprietário do Jornal do Brasil, Manuel Francisco do Nascimento Brito, nos meses em que durou a proibição. A empresa pediu que ele ficasse em casa, mas permaneceu enviando seu salário integral e

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NA REDAÇÃO Em 1941, Callado cobre a Segunda Guerra pela seção brasileira da BBC de Londres

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QUARUP Lançado em 1967, este é o seu romance mais conhecido

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DITADURA Em julgamento, acompanhado do diretor do JB, Nascimento Brito

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PASSEATA DOS 100 MIL Nas ruas, em 1968, ladeado por Maria Ignez Duque Estrada, Renato Archer, Norma Benguel e Odete Lara

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XINGU Em 1953, foi publicado o primeiro relato do contato de Callado com os índios

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CASAL Quando Ana Arruda conheceu Antônio Callado, ele era viúvo e pai de três filhos

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CORRESPONDÊNCIA Entre os documentos reproduzidos no livro estão cartas e bilhetes de amigos, como este de Carlos Drummond de Andrade

“por fora”, sem registros contábeis ou na folha de pagamento. Quando foi cassado, Antônio Callado havia conquistado respeito e notoriedade na imprensa mundial, graças à série de reportagens sobre a Guerra do Vietnã. Como era de praxe, os textos com relatos das atrocidades praticadas pelos americanos, histórias da resistência, um perfil do líder vietcongue Ho Chi Minh e uma surpreendente entrevista com um piloto americano feito prisioneiro foram reunidos no livro Vietnã do Norte: advertência aos agressores.

UM “LORDE” INGLÊS

Era difícil conciliar a ousadia como repórter e a radicalidade política ao temperamento de Antônio Callado. Tímido, extremamente reservado, não gostava de falar de si próprio ou de seus projetos. Sobre ele, Nelson Rodrigues, porta-voz assumido do pensamento conservador e defensor da ditadura, dizia que era “o único inglês da vida real”. O psicanalista Hélio Pellegrino foi outro que cunhou uma definição repetida ad nauseam pelos jornais nos editoriais que se seguiram à sua morte em 1997, dois dias depois de completar 80 anos. Para ele, o amigo Callado era “um doce radical”. Cedo, Ana aprendeu a conviver com esse homem quieto, tranquilo e de muitos amigos. “Quando nos conhecemos, ele era viúvo, tinha três filhos e uma história. Aceitava seus silêncios. Callado não falava nada

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sobre seus projetos. Quando estava escrevendo Concerto carioca, ia todos os dias ao Jardim Botânico, mas não falava nada. Eu só me perguntava o que diabos ele tanto fazia por lá.” Callado dizia para a esposa que era o oposto de Darcy Ribeiro, este, sim, falante, que contava para qualquer um quais suas ideias, antecipava trechos inteiros de livros nos quais estava trabalhando. Ana acredita que, para ele, escrever em silêncio era sinônimo de viver: “Ele era muito namorador, mas se eu tivesse que ter ciúme de alguma coisa, não seria de mulher nenhuma. Seria da literatura e dos livros”. Encontrar as fotografias, documentos, cartas, bilhetes e originais de livros que compõem o livro não foi difícil. Quando Callado morreu, há 16 anos, a família doou a maior parte da biblioteca e dos arquivos para a Fundação Casa de Rui Barbosa, que já havia organizado todo o acervo. A organizadora da publicação calcula que “70% do material estava todo na Fundação”. Com exceção de casos isolados, como o decreto da cassação, ela ou os seus enteados guardavam

o restante em casa, como a medalha e a espora do bisavô, um marechal português que foi um dos maiores repressores das revoltas populares na época de D. Pedro II. Complicado mesmo – como era de se esperar – foi lidar com as recordações. Com a participação ou ajuda de sobrinhos, netos e de Tessy, a filha mais velha de Callado, vários encontros para discutir a divisão de tarefas e escolha ou ordenamento do material transformaram-se em emocionantes reuniões familiares. Essa atmosfera se faz presente nas páginas finais do livro, em que se encontram as fotos do escritor com seus amigos e parentes. Com a experiência de ter escrito cinco biografias de mulheres, Ana Arruda sentia-se na obrigação de publicar algo para preservar a memória do homem com quem conviveu durante 26 anos. Desde quando o livro ainda era um rascunho de projeto, não lhe sai da cabeça um episódio do tempo em que os dois tinham decidido morar juntos: “Eu estava sozinha no

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apartamento, quando Salim Simão, provavelmente o melhor amigo de Callado, me procurou e me disse, falando alto como era do seu jeito: ‘Eu sei que você e Callado estão juntos, mas não pense que vai conhecer Antônio Callado. Ninguém conhece Antônio Callado’. E foi embora”. Ao final da pesquisa, ela encara como proféticas as palavras de Simão, pois sente que “deve haver muitos cantinhos dele ainda escondidos”. Com a Fotobiografia, pelo menos ela sabe que seu compromisso com a memória do marido morto está honrado: “Publicado o livro, eu me divorcio definitivamente de Antônio Callado. Que os outros cuidem dele a partir de agora”.

Antônio Callado - Fotobiografia ANA ARRUDA CALLADO (ORG.) Cepe Livro conta história do jornalista pela seleção de acervo iconográfico.

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DIVULGAÇÃO

Leitura CRÍTICA Eric Hobsbawn e o tempo a que se filia

Na última obra compilada pelo historiador marxista, suas análises em relação à cultura e à arte evidenciam um pensamento que rejeita a atuação da vanguarda TEXTO Mariana Camaroti

O que aconteceu com a arte e a cultura da sociedade burguesa, uma vez que esta desapareceu, na geração posterior a 1914? Tempos fraturados – cultura e sociedade do século XX, último livro de Eric Hobsbawn, analisa como a revolução da ciência e da tecnologia, o desenvolvimento da sociedade de consumo e a entrada das massas na política afetaram e desintegraram o modelo ocidental até então vigente. O livro reúne 22 textos – conferências em festivais literários, ensaios inéditos e resenhas sobre livros de ciência e economia – escritos em sua maioria a partir de 1990. A coletânea foi finalizada antes da morte do autor (em outubro de 2012, aos 95 anos), mas só agora publicada, pela Companhia das Letras.

Na sociedade burguesa, havia uma separação entre arte e cultura. Como acontecia também com a religião, a arte era algo superior, destinada e apreciada por poucos; um degrau para a aquisição de cultura. Esta, representava elevação espiritual, fosse no âmbito privado – leitura – ou púbico – teatro, museus, salas de música ou lugares símbolos do mundo cultural, como as Pirâmides do Egito ou o Panteão grego. Arte e entretenimento eram separadas, assim como reverência e consumo, trabalho e prazer, corpo e espírito. O paradigma da arte como culto e da cultura como inatingível para a maioria foi quebrado, e a cultura, antes distante do entretenimento, começou a dele se aproximar.

Hobsbawn discorre sobre as dificuldades da alta cultura nos dias de hoje e explica que as artes, no século passado, foram transformadas principalmente por meio das tecnologias da comunicação e da reprodução. Essa mesma combustão tecnológica que trouxe o cinema, o rádio, a televisão e a reprodução da música em aparelhos portáteis permitiu que as massas tivessem acesso à arte, modificando-a. Antes da industrialização da produção e da reprodução cultural, as artes visuais, como a pintura e a escultura, mantinham-se artesanalmente. Isso explica, segundo o autor, a crise na qual essas expressões se encontrariam hoje. O mesmo não aconteceu em outras áreas, como com a literatura, que se renovou com a imprensa, e com a arquitetura – que hoje serve seus trabalhos a edificações “megalomaníacas” abertas ao público, como os de arranha-céus de Kuala Lumpur e Xangai. O autor relaciona a necessidade de gastar da afirmada classe burguesa – quando esta se distancia dos valores puritanos e o dispêndio passa a ter a mesma importância que a acumulação – ao florescimento da art nouveau. E justifica por que esta era inviável, durou poucos anos e derivou na art déco – símbolo da prosperidade das metrópoles na década de 1920, que decora a paisagem de Nova

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INDICAÇÕES York com monumentos e edifícios como o Rockfeller Center e o Chrysler.

PÓS-ARTE

Hobsbawn também aborda a ruptura do significado tradicional da arte e da forma de fazê-la proposta pelo Dadaísmo e pela arte conceitual, inspirada no urinol e na roda de bicicleta de Marcel Duchamp, nas primeiras duas décadas do século passado. Na sequência, versa sobre Andy Warhol, um dos criadores da Pop Art, baseada na sociedade consumista e dos ícones da indústria de massa norteamericana; e sobre o rock como expressão musical que admite deficiências artísticas, nega obrigações morais e rejeita critérios de ofício. Nesse ponto, Hobsbawn questiona o valor artístico desses movimentos e ícones do que ele chama de pósarte –“Em certo sentido, as obras que em tal contexto se produzem como ‘arte’ foram piadas à custa dos que consideravam que uma imagem de comics ampliada, como as de Lichtenstein, era análoga à Mona Lisa” –, numa visão claramente conservadora para os critérios contemporâneos de análise da arte. O historiador argumenta que a obra de Warhol – e outros contestadores do século passado – foi deliberadamente criada como antiarte ou não arte, e que poderia facilmente ser distinguida a olhos nus da arte. Warhol não quis revolucionar nem destruir nada, afirma Hobsbawn. Muito pelo contrário, aceitava bem o mundo. Por outro lado, seu valor está na coerência em rejeitar ser outra coisa senão o veículo passivo de um mundo saturado pelos meios de comunicação.

A publicação contempla ainda a função dos intelectuais e o surgimento do vaqueiro americano – “um mito internacional?” – e sentencia a decadência e o fracasso de quase todas as vanguardas no século passado. Declaradamente marxista e membro do partido comunista, Eric Hobsbawn é reconhecido como um dos maiores e mais influentes intelectuais do século passado. Afirmava ter vivido no “século mais extraordinário e terrível da história humana”. Nasceu em uma família judia, no Egito, em 1917, cresceu na Áustria e na Alemanha e, depois, mudou-se para a Inglaterra, onde obteve a cidadania britânica. É autor de uma vasta obra que inclui a série Era da Revolução (1962) – que cobre desde 1789, ano da Revolução Francesa, até 1914, início da I Guerra Mundial –, Era do Capital (1975), Era dos Impérios (1987) e Era dos Extremos (1994). Seu penúltimo livro, Como mudar o mundo, de 2011, é um compilado de textos escritos sobre Karl Marx e o comunismo.

ROMANCE

POESIA

Bartlebee

Dobra Literatura

LUCAS BARROSO Virose Estreia do jornalista gaúcho, o romance denuncia o exagero e a histeria dos seres humanos. Sua narrativa, que oscila entre a primeira e a terceira pessoa, tem como pano de fundo o alarmismo que tomou conta do país, em 2009, com o surto da Gripe A. Na obra, é possível perceber influências de autores como Charles Bukowski e Jonh Fante e seus personagens do submundo.

ENSAIO

ERIC HOBSBAWN Companhia das Letras Obra analisa as mudanças nas artes no século 20.

Na orelha do livro, Reynaldo Damazio comunica: “O livro de Alexandre Marino fala de um exílio amplo, urbano, mental, que obseda não apenas o poeta, mas o cidadão comum”. Dividida em cinco partes: o homem; o exílio; o amor; o tempo e a morte, a sexta publicação de poemas do escritor e jornalista mineiro procura desconstruir as aparentes certezas do mundo.

INFANTIL

JOSÉ CALOS DURAND Política cultural e economia da cultura

RICARDO MELLO Três Pontinhos

Reunião de artigos, ensaios, conferências, comunicações e relatórios do sociólogo e coordenador do curso de gestão cultural da FGV/SP, o livro esclarece o assunto para um público não iniciado. Toca em aspectos como qualidade do produto cultural, formação para gestão, legislação, financiamento e patrocínio.

Com ilustrações de Pedro Bezerra e projeto gráfico de Carla Teixeira, Três Pontinhos se utiliza de linguagem sensível e pueril para retratar, através de um isolado ponto final, o encontro com o novo e as possibilidades de experiências ao reconhecer o outro. Segundo o autor pernambucano, trata-se de “um poema que fala sobre descobertas de companhia”.

Ateliê Editorial/ Sesc SP

Tempos fraturados

ALEXANDRE MARINO Exília

Independente

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DITA ALANGKARA/AP PHOTO/GLOW IMAGES

Artigo

AMANDA MARTÍNEZ ELVIR CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SEGREGAÇÃO Você caminha 12 minutos até a parada de ônibus? “Sim, porque caminho muito rápido, mas, quando retorno para casa, posso demorar de 15 a 20 minutos, porque venho cansada.” A pernambucana Irece Barbosa termina assim o relato sobre o seu itinerário diário de chegada e saída de casa. O dia de Irece começa às 3h50 da madrugada. A essa hora, ela se levanta e começa a preparação para ir ao trabalho. A parada de ônibus fica distante de onde mora e só chega ao seu bairro um ônibus que a leva ao terminal de integração. São necessários dois ônibus para chegar ao trabalho. Normalmente, o trajeto leva em torno de uma hora e vinte minutos, mas o retorno se alonga, por causa do engarrafamento e chega a duas horas de viagem. Além de se deslocar para o trabalho, uma vez por semana, ela também vai ao centro da cidade. Quando perguntada sobre o meio de transporte utilizado para fazer o itinerário, às gargalhadas, responde: “Caminhando! Pelo preço da passagem”. Leva duas horas para ir ao banco, lojas, supermercado, e a locais de conserto de roupas, eletrodomésticos ou outros utensílios. O corpo de Irece é esbelto. Ela conta sobre o seu prazer em fazer exercício físico, ao que teve de renunciar há três anos, por falta de tempo. Disse que queria estudar, e relata como a organização de sua rotina ficou comprometida quando uma vez tentou fazê-lo. A combinação entre trabalho doméstico, trabalho formal e tempo de deslocamento reduziram essas possibilidades para Irece: “Ou estudava, ou cumpria com minhas responsabilidades”, disse. Além do cansaço acumulado diariamente pelo trabalho e o longo

tempo de deslocamento, outras situações tornam o cotidiano de mulheres como Irece mais difícil. Tanto ela quanto outras entrevistadas contam que vivenciaram situações de violência no transporte público. As experiências relatadas vão desde a física, direta, até “roçadas” constantes no aperto dos ônibus lotados. Uma das entrevistadas, que pediu anonimato, conta que, em certa ocasião, num ônibus cheio, um homem colocou seu pênis para fora, para se masturbar, encostando-se nela. Por situações similares a essa, as mulheres com quem tive contato apresentam sentimento comum de vergonha, impotência e, sobretudo, medo. “Me senti suja. Foi uma das piores coisas da minha vida. Meu único desejo era sair daquele lugar e me banhar imediatamente.” Na mobilidade urbana, registra-se que homens e mulheres se comportam de maneiras distintas, o que estaria relacionado aos papéis que cada gênero desempenha socialmente. De modo geral, o homem tem como principal trajeto de origem e destino “casatrabalho”. Por outro lado, grande parte das mulheres se encarrega do cuidado com os filhos, com a casa e, além disso, têm-se incorporado ao mercado de trabalho. Como consequência disso, seu itinerário diário é mais complexo: casa-trabalho-escolaserviços-comércio. Essa situação da mulher fica mais extenuante quando tais deslocamentos dependem do transporte público. Vale perguntar se as mulheres estão sendo incluídas na agenda de políticas públicas referentes à sua inserção na configuração do espaço urbano e das cidades, ou se ainda continuam sendo segregadas dessa agenda. Isso porque, se historiarmos rapidamente os direitos e deveres da mulher latino-americana, observaremos que suas conquistas são muito recentes. O direito ao voto, por exemplo, foi conquistado em 1932, pelas brasileiras e uruguaias; em 1947, pelas venezuelanas; em 1949, pelas chilenas; em 1954, pelas mexicanas; em 1964, pelas paraguaias, o último país a aceitar o sufrágio feminino. Em 1991, a Argentina se converteu no primeiro país latino-americano a aprovar a Ley de Cupos, que determina

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que os partidos políticos devam ter pelo menos 30% de candidatas mulheres em todas as eleições. Em 1997, o Brasil promulgou a Lei de Cotas, que garante que nunca haja menos de 30% de mulheres nas listas eleitorais. No tocante às leis trabalhistas, apesar de vigentes desde 1943, somente neste 2013 é que se reconhece o trabalho doméstico – cuja maioria é de mulheres – como uma atividade laboral legalmente reconhecida.

VIOLÊNCIA SEXUAL

Apesar dessas conquistas, parece que as mulheres têm sido desconsideradas nos processos de planejamento das cidades, uma vez que essa estrutura urbana tem sido desenhada e construída com base no pensamento e nas necessidades do gênero que ostenta poder: o masculino. De acordo com a arquiteta Maria José Lasaosa, no artigo Mulher e cidade, a mulher, como sujeito que decide, tem estado fora da história escrita pelos homens. No caso das de baixa renda, a situação da mobilidade pode ser dramática. Elas experimentam uma

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1 TRANSPORTE PÚBLICO Na área da mobilidade urbana, as mulheres de baixa renda sofrem segregação de classe e de gênero

dupla segregação, de classe e de gênero. Isso pode ser evidenciado pela dificuldade de acesso ao transporte coletivo e pelo tempo de deslocamento, como constatamos pelo contato com algumas trabalhadoras. Além disso, seus trajetos diários não estão contemplados no itinerário oferecido pelo sistema de transporte público. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 65% dos habitantes das capitais brasileiras utilizam transporte público. No entanto, dos investimentos estaduais em transporte na cidade de São Paulo, em 2005, 10,3% foram destinados ao transporte público e 89,7% à infraestrutura para automóveis. Notase com isso uma atenção prioritária ao sistema de transporte privado, uma vez que o desenho urbano está feito para o fluxo de automóveis. A consequência disso é a imobilização daqueles que se deslocam por meio do transporte coletivo. Um dos crimes mais graves (e até hoje banalizado) que sofrem as mulheres usuárias do transporte coletivo diz respeito à violência

O que se percebe é que as mulheres têm sido desconsideradas nos processos de planejamento das cidades sexual. No Recife, entre os anos de 1998 e 2012, foram feitas 28 denúncias de abuso, oito das quais foram por violação consumada dentro do ônibus. Entre janeiro e junho de 2011, foram registrados 43 casos de assédio sexual a passageiras do metrô de São Paulo, segundo a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Segundo Yasmin Khan, analista do Embarq – Centro para o Transporte Sustentável, o transporte coletivo é menos seguro no que diz respeito à violência, e são as mulheres que mais dependem dele, somando mais da metade dos usuários em nível global. Apesar das evidências de que o transporte público não satisfaz às necessidades de segurança das

mulheres, essa problemática não tem prioridade para a maioria dos prestadores deste serviço. Mas por que as mulheres não tomam a iniciativa de denunciar esses delitos? Por que não denunciam as formas de violência sexual que presenciam contra outras mulheres dentro dos coletivos? Simone de Beauvoir diz que há situações em que os sujeitos experimentam um círculo vicioso: quando se constrói uma situação em que um indivíduo ou grupo é mantido em situação de inferioridade, há uma forte possibilidade de que o dito indivíduo ou grupo se creia inferior. A opressão da mulher na história contemporânea tem sido denunciada e registrada frequentemente. Tem-se documentado que as mulheres – como indivíduos ou como grupo – têm lutado por sua emancipação desde antes da colonização. Os resultados dessas lutas foram concretizados a partir do século passado com as conquistas legais, que finalmente reconheceram a mulher como cidadã na América Latina. Na condição atual das latinoamericanas e dos sistemas de mobilidade na cidade, seria interessante projetar uma revisão das políticas públicas à luz das necessidades e demandas de igualdade e liberdade para a mulher. O tema de gênero é complexo e, mais ainda, aplicado sobre o espaço urbano. Incluir a mulher significa não somente incorporar suas necessidades ao planejamento urbano, mas criar as condições sociais e espaciais, que convidem todos a uma nova significação da mulher, e que esta aprenda a enfrentar a cidade com força própria, acompanhada de uma infraestrutura concreta que a apoie em seu processo de apropriação do espaço urbano.

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CON TI NEN TE

Criaturas

Vincent Van Gogh por Loopy Dave

Até sua morte, Van Gogh não conseguiu vender nenhum quadro. Nascido há 160 anos, na Holanda, deixou mais

de 2 mil obras, entre elas, dezenas de autorretratos. Epilético, depressivo, torturado, transformou seus demônios em arte, que hoje chega a valores inimagináveis. Biografia recente especula que tenha sido assassinado. (Luiz Arrais)

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#153 ano XIII • set/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

CIDADE

VERDE

PORQUE O BEM-ESTAR DAS PESSOAS DEPENDE DA PAISAGEM

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