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# 155
RAEL LYRA PARQUE DE DIVERSÃO MONTAGEM FÍLMICA DJ DOLORES CERIMÔNIA DO CHÁ
#155 ano XIII • nov/13 • R$ 11,00
CONTINENTE
BIOGRAFIAS ESPECIAL
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Secretaria de Turismo
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A “BATALHA” ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO À INFORMAÇÃO
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Ministério da Cultura apresenta:
IX Festa Literária Internacional de Pernambuco Homenageado: José Lins do Rego
14 a 17 de Novembro Praça do Carmo - Olinda
Estamos na rede
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reprodução de charge de jean galvão, publicada na folha de s.paulo em 20/10/2013
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aos leitores No início da década de 1980, a editora Record lançou no Brasil a autobiografia Roman, de Polanski. Pouco antes, em 1977, o cineasta havia sido protagonista de um escândalo que colocou a opinião pública contra ele: o estupro de uma garota de 13 anos. Naqueles anos, sem internet, os comentários demoravam muito mais para se expressar, difundir e replicar, de modo que, mesmo com as agências internacionais propagando o acontecimento, a sua repercussão foi menor que as que hoje se dão com as celebridades mundiais. Assim, Roman Polanski teve tempo de preparar sua “defesa”, que foi escrever um livro sobre sua atuação profissional, minimizando sensações em torno de sua vida pessoal, pontuada por fugas e lances macabros. A primeira linha de Roman é exatamente esta: “Desde quando posso me lembrar, a linha entre a fantasia e a realidade tem estado irremediavelmente embaçada”. A que poderíamos emendar: E com quem não tem sido assim? No episódio brasileiro cheio de lances, que se intitulou “Batalha das Biografias”, há muitos interesses em jogo – artistas, produtores, editores, biógrafos e jornalistas são os protagonistas do embate –, mas certamente
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se trata do direito (ou da sua interdição) de dar a sua versão dos fatos, ou, para continuar com Polanski, de escrever uma história em que não se distingue fantasia e realidade. Porque é isto que ocorre às narrativas da vida dos outros e da nossa própria vida, já que estamos lançando eternamente versões para elas. Juntando os depoimentos que têm sido selecionados pela imprensa, o que está aborrecendo os famosos brasileiros – concentrados no campo da música – é a possibilidade de que biografias a respeito deles sejam produzidas à sua revelia e sem partilhamento de lucros. Para evitar isso, proíbese a sua simples realização. Há cerca de um mês, estamos nessa pisada, pois a Batalha não encontrou desfecho, por não ser mesmo um caso simples. Enquanto ela segue seu curso, decidimos nós também da Continente entrar no campo da discussão. Embora concordemos que todos têm direito à privacidade – garantida por lei –, políticos e artistas (entre outros célebres) deixam de ser indivíduos, porque representam uma comunidade. Os primeiros, porque são eleitos para isso, os segundos, porque conquistaram o “direito” à representação. E isso tem um preço, que os artistas não estão querendo pagar.
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sumário Portfólio Rael Lyra
6 Cartas
7 Expediente
8 Entrevista
+ colaboradores Yann Beauvais Diretor francês discute os pressupostos do cinema experimental e sua imbricação com outros gêneros
12 Conexão
Capcom Site de empresa de games disponibiliza jogos que prometem nutrir a nostalgia de adeptos
54 Claquete
Amor, plástico e barulho Estreia de Renata Pinheiro em longa-metragem protagonizado por Maeve Jinkings retrata universo da música brega
Machado de Assis Estudo de João Cezar de Castro Rocha contribui à análise sobre a amadurecimento literário do autor de Dom Casmurro
72 Entremez
Ronaldo Correia de Brito Admirável mundo virtual
74 Sonoras
33 Perfil
78 Matéria
Rock Santeiro Escultor integra a Oficina do Artesão Mestre Quincas, que agrega 70 profissionais em Petrolina
48 Cinema
Montagem Técnica de sequenciar cenas dá estrutura aos filmes, mas sua importância é despercebida
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66 Leitura
20 Balaio
Letras com álcool Pesquisas revelam o aumento na quantidade de citações a bebidas em músicas
Ilustrador e quadrinista mostra versatilidade estilística nos desenhos que cria em colaborações para publicações da Marvel e jogos da Sony
Banda sonora Disco reúne trilhas sonoras criadas por DJ Dolores em 15 anos de contribuição ao cinema
Corrida
José Cláudio Wilton de Souza
80 Visuais
Paulo Bruscky Livros, exposição de fotos e retrospectiva em Nova York aprofundam olhar sobre a obra do artista
88 Criaturas Cárcamo Albert Camus
Urbanismo
Vidro e concreto Por conta da ocupação máxima do espaço e da ideia de luxo a que estão submetidos, os projetos construtivos para as grandes cidades apartam o indivíduo da paisagem
42 Capa ilustração Karina freitas e Janio Santos
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Capa
Tradição
Embate entre músicos e jornalistas sobre a legislação de biografias fomenta debate sobre censura, liberdade de expressão, direito à informação e à privacidade
Esses ambientes de diversão, que mantêm viva antiga e lúdica forma de passatempo, são cada vez mais raros e contrastam com os brinquedos isoladores de agora
Palco
Cardápio
Recurso técnico firma-se como elemento central à concepção de espetáculos teatrais e para dar ênfase ao discurso cênico. Formação ainda é autodidata
Bebida produzida a partir da planta Camellia Sinesis, de origem chinesa e sabor amargo, passa por criativas adaptações aromáticas e de degustação
Biografias
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Iluminação
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Parquinhos
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Chá
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cartas Portfólio Só esta semana é que vi a Continente, pois estava fora do Brasil. Amei a matéria (seção Portfólio da edição de agosto, nº 152). Parabéns pelo texto e projeto gráfico em torno do meu trabalho! BETE PAES RECIFE–PE
De mim Dança e criança Escrevo para agradecer o envio da revista Continente e o carinho e competência do trabalho da jornalista e crítica Christianne Galdino. Muito bacana a matéria sobre dança para crianças, publicada na edição de setembro de 2013, nº 153. Parabéns pelo trabalho. Espero que se abram mais espaços para este assunto. GEORGIA LENGOS II Virtuosi sec - anuncio SãoXXI Paulo–SP
Acaba de chegar às minhas mãos a Continente, com a magnífica e inspirada matéria de Marina Suassuna sobre o meu novo CD De mim. Estou comovidíssimo pelo cuidado, pelo profissionalismo e por sua dedicação ao bom jornalismo. Pela segunda vez, percebo que disciplina e profissionalismo não lhe faltam. Sinto-me orgulhoso e vaidoso em ter no meu currículo uma matéria assinada por ela, em tão respeitosa revista. continente.pdf 1 para 14/10/13 16:20 Isso é o máximo qualquer
artista. Estou muito grato a todos os que fazem esta revista. Desejo a vocês o melhor, sorte e sucesso pela vida afora. GONZAGA LEAL RECIFE–PE
Vitalidade “A boa sorte ainda que venha tardiamente é sempre bemvinda” (provérbio popular). Assim é que terei a assinatura da revista Continente, já com 80 anos; mas, lendo-a, sinto-me aos 40 anos, uma vez que príncipes, poetas e mulheres têm a idade que sentem. A revista é uma festa para os olhos e o espírito. MONTANA MAGDA OLIVEIRA RECIFE–PE
Nota da Redação Excepcionalmente, nesta edição, a coluna Cinemascópio, assinada por Kleber Mendonça Filho, não irá circular na revista Continente.
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
augusto Pessoa
camilo Soares
Marcelo Pedroso
Pollyanna diniz
Fotógrafo e jornalista, viaja pelo Brasil e pelo mundo em busca de uma boa história
Fotógrafo, professor e doutorando na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne
Cineasta, membro da Símio Filmes e mestrando em Cinema pela UFPE
Jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?
e MaiS arthur a. de ataíde, doutor em Teoria Literária pela UFPE. andré dib, jornalista e crítico de cinema. cárcamo, ilustrador e caricaturista chileno radicado no Brasil. carlos eduardo amaral, jornalista, crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE. eduardo cesar Maia, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária. Leo caldas, fotógrafo.
GoVeRno do eStado de PeRnaMBUco
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Recife/Pernambuco
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CEP: 50100-140
diagramação e ilustração)
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Gilberto Silva
Ouvidoria: 3183.2736
Daniela Brayner
ouvidoria@cepe.com.br
cONSELHO EDItORIAL:
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇãO, ADmINIStRAÇãO
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YANN BEAUVAIS
“A tentativa de uma sinestesia real” Cineasta e historiador francês analisa o conceito e o impacto do cinema experimental, uma arte que enfrenta o desafio de estar em constante diálogo com novas linguagens e tecnologias texto Clarissa Macau
con ti nen te
Entrevista
O cineasta e historiador francês
Yann Beauvais é amante de filmes que avançam sobre o espectador, ultrapassando os limites da tela de cinema. Não estamos falando do formato 3D, tão comercializado nas salas de exibição, mas do excêntrico cinema experimental. Ao revelar os mecanismos cinematográficos, essa arte tenta, desde meados de 1920, discutir a percepção humana através da constante relação entre as novas tecnologias e linguagens. Obras que parecem imitar a percepção do nosso cérebro, pela aleatoriedade do uso do tempo, da independência em relação a uma história linear e da imersão em uma cena ou num caos de imagens e sons. Ao observar a necessidade de acessar longas e curtas estrangeiros indisponíveis na França e mostrar a vitalidade da produção de outro países, Beauvais criou, nos anos 1980, a distribuidora de filmes Light Cone. Cineastas importantes como Malcolm Le Grice e Paul Sharis apoiaram o projeto, que pretendia disseminar o experimentalismo cinematográfico além de ambientes restritos como
cinematecas e festivais. Atualmente, a cooperativa distribui mais de quatro mil filmes e vídeos ao redor do mundo. Desde 2011, Yann mora no Recife e é cofundador do B³, espaço voltado a discutir a relação entre os suportes digitais e o mundo da arte. Nesta conversa com a Continente, ele nos conta sobre o desafio que o experimento lança ao público e desmistifica preconceitos com relação ao gênero. “O fazer desse cinema provoca a condição da experiência de ver um filme, dando à audiência um espaço para transformar o assistir em atividade e divagação”, diz o diretor de filmes como Still life, Des rives e Tu, sempre. Segundo Beauvais, o cinema que influenciou a estética dos videoclipes musicais, além de ser utilizado por cineastas aclamados como David Lynch e Gus Van Sant, ainda é pouco conhecido como arte pela sociedade, chegando a ser tachado de elitista ou confuso. Ele lança um convite para se experimentar e discutir essa cena audiovisual, que atenta ao incomum, trabalha novos significados em técnica e poesia imprevisível.
CONTINENTE O que poderíamos chamar de cinema experimental? YANN BEAUVAIS Fazê-lo significa questionar os sentidos do cinema, o que é possível exercer com tal mídia, sempre revelando os mecanismos usados, questionando a linearidade narrativa e a percepção do tempo no cinema e para as pessoas. Desde a democratização dos meios de produção pelos computadores, aspectos que pertencem à prática foram invadidos por uma maior possibilidade de atividades fílmicas, confundindo limites de gêneros. Se o cinema experimental era considerado autoral e feito por subjetividade, hoje, é difícil definir. CONTINENTE Ao comentar sobre a dificuldade de diferenciar gêneros, gostaria que você opinasse sobre a relação entre a videoarte e o cinema experimental. YANN BEAUVAIS A oposição não é forte como em 1980. A diferença era o suporte entre a película, do cinema, e a fita magnética, do vídeo. O vídeo era a forma mais imediata de fazer filme. O foco não era analisar os mecanismos cinematográficos, era algo mais voltado
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clarissa macau/ divulgação
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ao mundo das galerias. Hoje, com o computador e o digital, tudo pode ser reunido, incorporando a videoarte e o experimental. As causas dos dois são similares: criticar, pensar, dar a voz. O uso da película está mais restrito, ainda cultivado pelos que têm uma fascinação pela produção de sentidos do cinema, como na Hollywood independente.
Espaços para a investigação são mais do que uma necessidade para a sociedade. CONTINENTE Ainda nesse mesmo raciocínio, à primeira vista, o experimental e suas vertentes parecem caóticos. Existe lugar para pensamentos organizados nessa arte? YANN BEAUVAIS Estamos condicionados a certo tipo de filme, tornando difícil o olhar ao diferente. Se não conseguimos nos projetar no mundo retratado pelo evento a que assistimos, sentimonos automaticamente perdidos. Filmes podem ser uma experiência
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CONTINENTE O tempo nesse cinema não é o mesmo dos filmes convencionais. Qual a relação entre o tempo e o cinema experimental? YANN BEAUVAIS Existem, no mínimo,
CONTINENTE Na sua opinião, essa arte encara preconceito? YANN BEAUVAIS Esse cinema tem sido visto como uma prática marginal, devido ao aspecto subversivo, à pluralidade de formas como sua exposição pode ser feita. Foi menosprezado tanto pelo cinema clássico quanto pelo mercado de arte. Até os anos 1990, filmes experimentais eram tidos como uma prática artística burguesa e formalista. Desqualificada, porque lidava com a observação das ferramentas usadas para fazer o filme, logo, não
“Muitos trabalhos feitos durante os anos 1970 privilegiavam o tempo específico do evento, como nos trabalhos de Hangiun Lee. Andy Warhol (à esq.) trabalhava expandindo o tempo.” con ti nen te
Entrevista três tempos. O tempo da projeção – o qual o público vive –, o de gravação e edição das imagens, e o tempo que a imagem é absorvida pelo espectador. Diferente do cinema tradicional, não há a necessidade de elucidar uma história, resolvê-la. Há, às vezes, uma narrativa que trabalha com o espontâneo em relação a uma dança ou uma música, como nos videoclipes. Podemos sobrepor os tempos e deixar as regras de lado, colocando o espectador em lugares inesperados. Muitos trabalhos feitos durante os anos 1970 privilegiavam o tempo específico do evento, como nos trabalhos de Hangjun Lee. Andy Warhol trabalhava expandindo o tempo, Paul Sharits contraía ou condensava.
fazia parte do reino das artes. Isso privilegiava a videoarte contra o filme experimental. Hoje, tanto o campo da arte quanto a indústria do cinema incorporam seus próprios valores ao cinema experimental, produzindo novas interpretações. CONTINENTE Normalmente, alguns veem cinema experimental como uma arte restrita, “para quem entende do assunto”. Por que isso acontece? YANN BEAUVAIS Primeiro, se uma prática não é dominante, não quer dizer que é elitista. É uma prática singular: um cinema de oposição, resistência e pesquisa. Pesquisar com frequência significa se opor ao comum, ao dominante e renovar o pensamento.
de pensamento produzida com elementos com os quais estão em jogo: o negativo do filme, a tela, o projetor, o espaço. Por exemplo, quando a cineasta Maya Deren tenta seguir anacronicamente os sonhos como algo organizado em seus filmes. Isso pode ser feito a partir de uma experiência audiovisual organizada de acordo com a melodia, mas o fato é que nunca é obrigatório que eles estejam uniformes numa mesma narrativa. CONTINENTE Com quanto de técnica e de poesia podemos nos deparar no cinema experimental? YANN BEAUVAIS Para muitos cineastas experimentais e
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em atividade e divagação. Por exemplo, o meu filme Tu, sempre, que aborda a problemática da aids, nos faz encarar uma tela rotativa com um espelho de um dos lados, os textos invadem o espaço em que o espelho está, e pessoas que passam por ali acabam se tornando agentes do texto. Nessa instalação, você é potencialmente alguém carregando informações da aids enquanto vive o trabalho. CONTINENTE Qual a influência das plataformas digitais na
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videoartistas, a questão da tecnologia é importante porque estimula nosso modo de perceber as coisas. A poética é enfatizada quando a forma de filmar tem a ver com a expressão de uma visão individual. Nesses casos, o lirismo é essencial. Experiências mais recentes dessa tendência são voltadas à preocupação com as minorias e o gênero sexual, que podem ser vistos nas obras de Richard Fung e Isaac Julien. A tecnologia tem a ver justamente com a produção de novos significados. No cinema tradicional,
CONTINENTE O estudioso Gene Youngblood fala do conceito de um cinema experimental chamado “expandido”, que, diferentemente do drama comercial, não tem a necessidade de “contar uma história”. Muitos cineastas como Le Grice defendem essa prática. O que o cinema expandido quer nos contar? YANN BEAUVAIS É o modo de pensar e fazer um filme que transcende o modo clássico teatral de vê-lo e indaga o limite do que seria o cinema. Um jeito de ligar a sétima arte a outras práticas, como a coreografia. Ou seja, não é um campo único de produção. Os situacionistas, nos anos 1950, já ofereciam experiências inovadoras para um cinema que chamava para contracenar com o filme, ao vivo, a audiência e os performers. É a tentativa de produzir uma sinestesia real. CONTINENTE O que lhe chamou a atenção para o Brasil, no cinema experimental? YANN BEAUVAIS O que me trouxe ao país foi a possibilidade de mostrar experiências desconhecidas por aqui. O cinema experimental não é muito forte no Brasil hoje, como já foi com o movimento super-8, nos anos 1970. Algumas figuras importantes emergiram, como José Agrippino de Paula, Arthur Omar, Carlos Adriano. Uma marca do Brasil é que o vídeo sempre foi um campo importante de questionamento, oscilando entre o filme e o vídeo, cinema e galeria. De maneira que, no país, o filme experimental se tornou um elemento diretamente conectado com o cenário artístico contemporâneo.
existe diferenciação clara do que é tecnologia e do que não é, mas no nosso campo e na videoarte, o processo, as ferramentas não estão escondidos, mas colocados à mostra e são parte do discurso, seja ele poético ou não. CONTINENTE Como podemos descrever a interação desse cinema com o público? YANN BEAUVAIS Para um filme tradicional ou programa de TV, o lugar da audiência é cativo e temos que reagir ao estímulo da “história” retratada. O fazer do cinema experimental é essencial porque tem desafiado essa condição, dando à audiência um espaço para que ela possa se pensar e analisar o que está acontecendo ao transformar a experiência de assistir
experimentação cinematográfica? YANN BEAUVAIS Como o cineasta Malcolm Le Grice e o teórico Lev Manovich apontam, a chegada do digital transformou a experimentação do filme e do vídeo. Pode-se dizer que a maioria dos filmes experimentais funcionou desconstruindo o discurso para revelar o mecanismo. Há, agora, com as plataformas digitais, maior facilidade nas possibilidades da multiprojeção, em tornar acontecimentos simultâneos e em espacializar a imagem. É possível imaginar um cinema ao vivo, no qual se usa a chamada RAM (memória de acesso aleatório de sistemas digitais) para produzir, a cada performance, um evento fílmico único para o cineasta e o público.
CONTINENTE Você acredita que algum dia esse cinema poderá ser massificado, comercializado? YANN BEAUVAIS Ele vem se tornando um importante elemento de valorização. Vários cineastas tradicionais e artistas visuais estão reclamando o rótulo do filme experimental para dar uma aura de importância às suas obras. Há duas décadas se tornou uma questão acadêmica, e assim foi depois incorporado à história do cinema. Tornou-se uma categoria em que o cineasta tem mais liberdade formal. Ele encontra não somente interesse na universidade, mas a nostalgia o torna um objeto de fetiche.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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tRilha sonora
montagem
“É preciso entrar no filme, envolver-se no ambiente, entender o sentido narrativo que o diretor quer imprimir”, afirma Hélder Aragão, o DJ Dolores, sobre a tarefa de criar trilhas sonoras para o cinema. De tanto que atuou nessa função, ele lança agora o CD Banda sonora, em que reúne trabalhos desde o início da carreira até os dias atuais, como o que realizou para o filme Tatuagem, recentemente premiado no Festival de Gramado. Para “sonorizar” a matéria que fizemos sobre esse trabalho de Dolores, oferecemos no site algumas das faixas do disco, que está disponível para download.
Assista ao vídeo em que é apresentada a teoria russa da percepção do espectador a partir da montagem fílmica, conhecida como “Efeito Kuleshov”.
Conexão
CERIMÔNIA DO CHÁ Tomar chá é uma experiência pessoal e, ao mesmo tempo, propícia ao cultivo de amigos. Veja as orientações de Gloria Kurnik quanto ao seu preparo dentro da tradição oriental.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
MAGRELAS
COLOR
CINEMA
REVISTA
O Escola de Bicicleta ensina tudo que você precisa saber sobre bikes
Site ajuda no diagnóstico do daltonismo e no ajuste da tela do seu computador
Indiewire faz coberturas de festivais e da indústria de cinema independente
Reportagens sobre aspectos pouco comuns e bizarrices do cotidiano
escoladebicicleta.com.br
color.method.ac
indiewire.com
vice.com/pt_br
As cidades e seus impasses têm sido um tema cada vez mais recorrente. Em mesas de bar, mesas redondas, palestras, redes sociais e campanhas eleitorais. E, quando se coloca a cidade “na roda” para ser analisada, é certeiro que o assunto mobilidade surja em algum momento. A razão é mais do que óbvia: a mobilidade em uma grande cidade é quase inexistente. Uma alternativa ao trânsito caótico e à falta de transporte público de qualidade têm sido as bicicletas. Caso você queira ser mais um a aderir às magrelinhas como transporte, o site Escola de Bicicleta é uma ótima forma de se informar sobre o assunto.
Quem nunca parou para se perguntar se as outras pessoas enxergam as cores e as coisas como você? Como saber se a cor laranja que vejo é a mesma que você vê? O site Color Method, além de orientar na hora de equilibrar o brilho e contraste do seu monitor, ajuda a responder essas questões. Em forma de jogo, ele apresenta uma cor qualquer e o internauta tem um tempo máximo para identificá-la numa palheta de cores. No total, são cinco exercícios. Caso erre muitas cores, fica o alerta: você pode ser daltônico. Mas, para ter um diagnóstico exato, é indicado procurar um oftalmologista.
Com 12 anos de existência, o Indiewire é um dos maiores portais de notícias sobre a produção independente de cinema. Considerado o coração online dessa categoria pela Forbes, o site já conquistou premiações importantes do meio virtual, como o Prêmio Webby de melhor site de cinema por duas vezes. Em 2009, foi comprado pela empresa SnagFilms e teve um relançamento. O site ficou conhecido também por fazer coberturas de festivais independentes, que não recebem grande visibilidade na grande mídia. Dividido por seções, também disponibiliza resenhas e críticas, detalhes das novas produções e notícias.
Tem quem considere as matérias da Revista Vice como não jornalísticas, mas vale lembrar as mudanças sofridas pelo jornalismo. Novas formas, nova linguagem. Irônica e ácida, a Vice, que é publicada tanto em papel como na internet, oferece ao seu público novas perspectivas de assuntos aparentemente banais, que vão desde entrevistas com pessoas que se alimentam de carne crua a matérias que tratam da ética de guerra, apontando as melhores e mais corretas maneiras de se matar um inimigo. Além disso, a Vice faz coletâneas magníficas, como a #VanzoNews, que reúne as mais bonitas manchetes produzidas pelo “quarto poder” na internet.
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blogs FOFOCAS AMOROSAS controley.tumblr.com
O blog Controle Y: porque amar tá foda! é o desabafo de um bem-humorado jovem gay de 23 anos, frustrado com o amor. Esse jovem, que não revela seu nome, adianta que não pretende se curar do azar com o amor por meio do blog – o máximo que ele espera é virar DJ de balada GLS. Venenosamente, Y conta com detalhes como e por que sempre sai decepcionado de seus curtos relacionamentos.
O CLÁSSICO CAPCOM
POESIA ILUSTRADA
Uma lembrança mágica para os que jogavam video game na década de 1990, a Capcom continua no mercado de games, mas vem perdendo espaço capcom.com
O que Mega-Man, Street Fighter e Residente Evil têm em comum, além de serem grandes clássicos do video game? A resposta está na apresentação de cada jogo. No tema de abertura, que dura apenas alguns segundos, e nas letras garrafais em dourado e azul da Capcom. Empresa fundada em 1987, no Japão, produziu, ao lado da Sega, os melhores jogos do final da década de 1980 e início dos anos 1990. Até hoje, ela continua fazendo a alegria da garotada com lançamentos que acompanham os games mais recentes, apesar da concorrência ter ficado mais apertada a partir dos anos 2000. A entrada de empresas como a Ubisoft, com a série de jogos Far Cry, e a Blizzard, com o inesquecível Diablo, no mercado, fez com que a nostálgica Capcom perdesse grande parcela do seu público. É mais difícil conseguir achar hoje uma criança que se anime e identifique de longe aquela música de abertura, que parece com o som de moedas caindo. O site vale para relembrar os jogos pixelados da época em que a imaginação ia além da capacidade de imergir nas aventuras, e quando era preciso também considerar aquele ponto quadrado no centro da tela como o seu personagem perfeito. GABRIELA ALMEIDA
podelua.com
No Pó de Lua, a publicitária Clarice Freire derrama uma poesia ilustrada com cara de cordel. Entre um trocadinho e outro, fala das coisas da vida com leveza e delicadeza. De dor de cotovelo até a pequenas filosofias de bar.
feitos À mão lewmejia.com
Cheio de referências latinas, por causa das constantes viagens que sua família fez entre os EUA e o México, o ilustrador Llew Mejia trabalha, normalmente, com desenhos feitos à mão, em preto e branco. Além das telas, Mejia cria texturas para tecidos, que diferem das suas ilustrações por brincar e abusar das cores.
sites sobre
Largar tudo e começar de novo Uma escolha
Gluck Project
Continue Curioso
notasobreumaescolha.wordpress.com
gluckproject.com.br
continuecurioso.cc
Manu, Hugo, Tomé e Nina decidiram se mudar de Minas para o paraíso da Chapada Diamantina. Lá, vão começar a viver apenas do que conseguem produzir.
O casal de jornalistas Fred Di Giacomo e Karin Hueck abandonou seu emprego na Editora Abril e foi estudar a felicidade em Berlim.
A Continue Curioso é uma websérie documental sobre pessoas que deixaram seus trabalhos considerados tradicionais e foram fazer o que gostam.
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Rael Lyra
UM SUPER-HERÓI PERNAMBUCANO TEXTO Gabriela Almeida
Se você é ou foi um leitor assíduo de histórias em quadrinhos e um jogador
de eletrônicos, vai se identificar com o trabalho do ilustrador pernambucano Rael Lyra. Mas, caso não se encaixe em nenhum dos perfis, não se preocupe, esse não vai ser um texto cheio de jargões e, tampouco, a obra de Rael se limita a essas duas plataformas. Basta você ter lido alguns Almanaques da Turma da Mônica ou ter praticado seus dotes nerds jogando Snake (aquele famoso jogo da cobrinha), para entender a magia por trás do universo desse artista. Mais difícil que estabelecer empatia com ele é imaginar como esse quadrinista e concept artist (profissional que conceitua o visual de um jogo eletrônico) conseguiu, sem sair do Recife, participar de publicações da Marvel e de jogos da Sony. “Comecei a desenhar porque gostava de criar personagem, mas não enxergava como poderia trabalhar com isso. Então, achei que o quadrinho seria o mais próximo”. Assim, Rael também escolheu cursar Artes Plásticas, na Universidade Federal de Pernambuco, e começou a buscar pessoas que pudessem guiá-lo por esse caminho. Do Recife, fez contato com a antiga Fábrica de Quadrinhos, hoje a Quanta Academia de Artes, uma escola de São Paulo, na qual teve sua primeira grande publicação, a Quebra-Queixo. Em pouco tempo, chamou a atenção do mercado “gringo” e foi convidado, em 2004, para ilustrar a edição 25 da saga X-Men unlimited, publicada pela Marvel
1-2 Concept art Estudo para o jogo Downfall: clash of faction 3-4 cartoon Rael Lyra ilustrou as séries Dune e Valen the outcast, publicadas pelas Boom! Studios protótipos 5 Gabiru, Seba e Considerado são desenhos criados para praticar técnicas
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6 internacional Original da edição 14 da Nation-X, publicada pela Marvel Comics inédito 7 Personagem inspirado no ator Ron Pearlman, produzido para a Playlore
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Comics e distribuída no Brasil pela Editora Panini. Seis anos depois, voltou a trabalhar com a Marvel na edição 14 do quadrinho Nation X, ilustrando a história de Wolverine, um dos protagonistas da série X-Men. Dessa mesma publicação, participaram ilustradores como Mike Allres (criador da personagem Madman e vencedor do prêmio
Harvey Award for Best New Series) e Niko Henrichon (criador de várias capas da Marvel e da DC Comics, em séries como a do Quarteto Fantástico). Em 2007, surgiu a possibilidade de trabalhar também com jogos eletrônicos. “Quando se é quadrinista, o natural é procurar um estilo próprio, para que sua autoria se evidencie nas publicações. Mas quando se trabalha com concept art é o contrário, você tem um estilo, mas precisa ser versátil. Tanto
faz trabalhar com um conceito mais cartoon, fazendo bonequinhos engraçados, como pegar um trabalho mais realista, como um game de guerra”. Com a experiência dos quadrinhos e muitos anos de desenho em bloquinhos, Rael encontrou um traço próprio, a partir do qual pôde navegar por estilos bem distintos. Trabalhando para a Playlore, empresa recifense que desenvolve e cria games, Rael produziu jogos para a Sony, como o DC Universe Online (RPG que se pode jogar com os personagens Batman, Robin, SuperHomem ou Mulher Maravilha, por exemplo) e Star wars galaxies, além das criações da própria Playlore, como Downfall: clash of faction (para aparelhos Apple, como Iphone e Ipad), seu trabalho mais recente. O fato é que, para jogos ou histórias em quadrinhos, Rael Lyra é um legítimo criador de super-heróis. Portanto, ele seria o ilustrador perfeito para criar um Batman mangue boy, com ou sem máscara, mas que vestisse pelo menos uma capa, para salvar as nossas “Gotham Cities” castigadas.
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teste da dança! O chefe “sem-noção” da finada série The Office – Michael Scott, na versão americana, e David Brent (foto), na original inglesa – foi um personagem tão bem-sucedido, que deve ter feito escola. O inconsequente costumava pôr os empregados em situações embaraçosas. Possivelmente inspirado nele, um gerente da loja de eletrônicos Currys resolveu, numa entrevista coletiva de emprego, pedir aos candidatos que dançassem. Um dos postulantes teve que dançar ao som de Around the world, hit de 1997 do Daft Punk. Após o constrangimento ter ido parar na imprensa, a filial da empresa, no Reino Unido, retratou-se com o rapaz e o convidou para uma nova entrevista. Mas ele não aceitou, talvez com receio de que agora peçam para ele dançar Get Lucky, o novo mega-hit da dupla, aclamada como a “música do ano”. (DN)
Canções de embriagar Uma pesquisa da Liverpool John Moores University revelou que, em média, uma em cada cinco canções que entram no Top 10 britânico contém “teor alcoólico”. Segundo o estudo, a quantidade dessas letras “alcoolizadas” duplicou ao longo dos últimos 10 anos (8%, em 2001, contra 18,5%, em 2011), devido à “importação” de hits norteamericanos. Os pesquisadores, que estudaram quatro décadas de música, notaram que havia poucas menções em 1981 e menos em 1991, época do aumento das raves, festas mais ligadas ao ecstasy. Já uma pesquisa da Escola de Saúde Pública da Universidade de Boston atestou que marcas de bebidas aparecem em 23,2% das músicas mais executadas nos EUA entre os anos de 2009 e 2011. As menções a bebidas alcoólicas foram mais comuns no rap e rythm and blues (37,7%), country (21,8%) e pop (14,9%). Esses dados podem ser preocupantes, pois estudos anteriores constataram que a exposição à publicidade do álcool aumenta a probabilidade de adolescentes começarem a beber. Enquanto isso, muitas bandas lançaram suas próprias bebidas, como Sepultura, Velhas Virgens, Chiclete com Banana e Motörhead. A ligação de músicos com a água que passarinho não bebe é antiga e notória, tanto que o seriado Os Simpsons usou o nome de um deles, o baixista Duff McKagan (Guns N’Roses e Velvet Revolver), para batizar a cerveja preferida de Homer. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“Se tivesse 100 anos para viver, eu ainda não teria tempo para fazer tudo o que quero fazer.”
Balaio maior fetiche nerd
Um grupo de cientistas da Universidade de Harvard conseguiu manipular fótons (partículas emitidas pela luz), unindo-os em uma nuvem de átomos superfrios, criando moléculas. A nuvem de gás dentro de uma câmara foi resfriada com laser. O estudo de computação quântica, que procura compreender as aplicações das teorias e propriedades dessa mecânica, tem o objetivo de desenvolver um computador hiperveloz. Em meio à pesquisa, os estudiosos conceberam a “luz sólida”, que acaba sendo a base para uma ideia fantasiosa do cineasta George Lucas, mais conhecida como “sabre de luz”. Ou seja, o fetichemor dos nerds aficionados pela saga Star Wars pode, um dia, numa galáxia não tão distante, virar realidade. (DN)
James Dean, ator, morto aos 24
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poesia com humor Não se trata de piada, mas de manter o clima de leveza, mesmo nos momentos em que expressamos desagravo, tristeza, insatisfação. Essa foi a tônica, por exemplo, da poesia marginal dos anos 1970, que teve como empedernidos praticantes gente como Ledusha e Leminski, citados em prol da boa aliteração. Alguns poetas da chamada “militância alternativa” contemporânea recifense seguem essa trilha da busca da distensão. Um deles é Fernando Chile, que lançou recentemente o folheto Sujeito a reboque, em que expõe versos de olhar irônico sobre a sociedade atual. É preciso dizer que os poemas de Chile são feitos sobretudo para serem ditos, daí o sentido atribuído ao uso de negritos, por exemplo, em alguns dos versos. O poema que inaugura o livrinho, Super na minha, dá o tom da conversa: “eu também gostaria/ de abrir o peito/ e gritar assim:/ sou forte!!!/ mas, heróis/ estão em promoção/ na cidade”. (Adriana Dória Matos)
arquivo
Dallas, novembro de 1963
somos todos pennywise Coulrofobia significa medo de palhaços. Na maior parte dos casos, acomete pessoas que sofreram um tipo de experiência traumatizante, ou que apenas ficaram impressionadas com a visão de algum palhaço assustador. O medo em si não é tão infundado, quando nos vêm à mente figuras como a do psicopata John Wayne Gacy, mais conhecido como “o palhaço assassino, ou a de Pennywise (foto), famoso na pele de Tim Curry em It: a obra-prima do medo, filme televisivo baseado no livro de Stephen King. Foi inspirado pela figura desse último que, desde a sexta-feira 13 de setembro, surgiu um misterioso palhaço que tem dado calafrios nos moradores da cidade inglesa de Northampton. Ele é visto apontando e dando “tchau!” para os transeuntes, segurando balões de festa e bonecos de pelúcia. O próprio palhaço solicita em sua página criada no Facebook (Spot Northampton’s Clown), que as pessoas tirem fotos e enviem para ele. Apesar de muitos terem odiado a brincadeira, sentindo-se ameaçados, o Palhaço de Northampton garante: “Não, eu não ando com uma faca, isso são boatos estúpidos feitos por pessoas estúpidas”. Pelo visto, ao menos em Northampton, o índice de coulrofóbicos deve ter aumentado muito. (Olivia de Souza)
Quem nunca ouviu a expressão “ele se acha a bala que matou Kennedy” para se referir a alguém metido a besta? O que se sabe é que, há 50 anos, três dessas balas, numa fração de segundos quase impossível, estouraram a cabeça do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, numa praça no Dallas,Texas, desferidas por Lee Oswald, um ex-fuzileiro naval, cheio de problemas, que desertara para a URSS e voltara aos EUA. Era o fim do sonho americano, que entraria em pane, com os movimentos sociais, a escalada da Guerra do Vietnã e também da Guerra Fria. Neste meio século, centenas de pessoas e instituições se dedicaram a tentar provar que o Relatório Warren, resultado das investigações oficiais sobre o crime, estava errado, e que o presidente havia sido morto não por um atirador solitário, como se concluiu, mas, sim, vítima de uma conspiração.O fato de Oswald ter sido assassinado dois dias depois, diante das câmeras de TV(foto), por Jack Ruby, dono de boate revoltado com a morte do Presidente, só serviu para alimentar a torrente de teorias. Ruby também se achava o grande vingador da América. No final, dois grandes solitários se achando. (LUIZ ARRAIS)
camus no recife Enquanto esteve de passagem no Recife, em viagem de turismo, no final da década de 1940, o escritor Albert Camus foi ciceroneado pelo jornalista Aníbal Fernandes, então editor do Diario de Pernambuco. No seu Diário de viagem, o intelectual argelino, cujo centenário de nascimento ocorre neste mês, não cita o nome de Aníbal, mas confessa que ficou entusiasmado com as igrejas barrocas, o bumba meu boi e os terreiros de xangô que visitou. Faz apenas breves comentários sobre o anfitrião que foi escolhido e indicado pelo Consulado da França no Recife. (Raimundo Carrero)
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biografia Só fale de mim se eu permitir
Há um mês, instalou-se no Brasil uma complexa discussão sobre o direito dos artistas de não serem expostos em narrativas não autorizadas, em oposição à opinião de que suas vidas são um bem público, portanto, perscrutável texto Luciana Veras
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Em 10 de janeiro de 2002, no primeiro mês do último ano da segunda gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, inscreveu-se na história do Brasil a lei de número 10.406, que instituía o Código Civil Brasileiro. Em sua Parte Geral, o instrumento normativo que regula a vida de todos os cidadãos nascidos em solo pátrio abre com o Livro I – Das pessoas com o Título I – Das pessoas naturais. No Capítulo I – Da personalidade e da capacidade, estão os mais célebres dos 2.046 artigos que entraram em vigor em janeiro de 2003, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, após o período de vacatio legis, o hiato que decorre entre a promulgação e a concreta efetivação. Ei-los, os artigos 20 e 21, na proa de um debate que se iniciou em outubro e instalouse entre compositores, produtores, cineastas, jornalistas, escritores e advogados como uma discussão intensa, contraditória e nacionalizada.
Diz o artigo 20: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Seu parágrafo único: “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. O artigo 21 exprime que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Em novembro de 2011, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros criou a Associação Nacional dos Editores de
Livro (Anel) para submeter uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de derrubar o artigo 20. A ADI 4815 foi autuada no STF em 5 de julho de 2012 e distribuída, no dia seguinte, para a ministra Carmen Lúcia. Na petição, assinada pelo advogado carioca Gustavo Binenbojm, a Anel sustenta seu pleito enfatizando que os artigos em questão “em sua amplitude semântica, não se coadunam com a sistemática constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação”. Vai além: “As pessoas cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita. Sua história de vida passa a confundir-se com a história coletiva, na medida da sua inserção em eventos de interesse público”. A argumentação sacramenta, ainda, que “exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus familiares, em caso de pessoa falecida) importa consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão dos autores, historiadores e artistas em geral, e ao direito à informação de todos os cidadãos”. Uma audiência pública no STF sobre o assunto das “biografias não autorizadas” está marcada para os dias 21 e 22 deste mês. É possível, também, que a Câmara Federal vote o Projeto de Lei 383/2011, de autoria do deputado Newton Lima (PT/SP), que, na verdade, retomou noções apresentadas – porém nunca votadas – em legislaturas anteriores, ao propor uma alteração no mesmo artigo 20, com o intuito de “garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Independentemente das datas em que o PL 383/2011 e a ADI 4815 sejam apreciados nas respectivas instâncias, a celeuma se disseminou nos círculos artísticos, políticos e midiáticos. De um lado, o grupo Procure Saber que, tão logo raiou outubro, assumiu uma postura contrária à ADI e que, presidida pela empresária e produtora Paula Lavigne, tem em suas fileiras artistas do quilate de Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano
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Veloso, Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Djavan, entre outros. Eles se definem como “um grupo de autores, artistas e pessoas ligadas à música dedicado a estudar e informar os interessados e a população em geral sobre regras, leis e funcionamento da indústria da música no Brasil”. “Estamos no meio de um conflito entre gigantes, dois direitos fundamentais da Constituição: o da liberdade de informação e o direito à privacidade”, comentou Paula Lavigne, em programa exibido em um canal pago em 16 de outubro (procurada pela Continente, a Procure Saber não retornou as solicitações de entrevista). Chico Buarque defendeu o direito à privacidade, tomando como exemplo o autor de O divã, que, do alto do seu reinado, tirou de circulação Roberto Carlos em detalhes, biografia lançada por Paulo César de Araújo em 2006, pela editora Planeta, 22 mil exemplares vendidos antes do recolhimento a mando da 20ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. O compositor de Apesar de você, cuja carreira sofreu, em diversos momentos, a devassa da censura, enredou-se em constrangimento ao afirmar não ter sido entrevistado por Araújo, que logo divulgou foto e vídeo feitos durante encontro dos dois, em 1992. Dias depois, entrevistado por um jornal em Paris, Chico admitiu: “Posso
“Pela lei, qualquer narrativa tem que ser autorizada pelo protagonista da história” Lira Neto ter me precipitado, mas eu acho e continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado. (..) O que a gente pretendia era deixar as coisas como estão, no sentido de se poder preservar a privacidade de qualquer cidadão. Repito: posso ter me enganado. Eu julgava que eu estava tendo uma posição sensata”. Lavigne, porta-voz do grupo, posicionou-se a favor de remuneração para os biografados e de pagamento de royalties para herdeiros, da mesma maneira que Djavan, em nota oficial, postulou que “editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”. “Corremos o risco de estimular o aparecimento de biografias sensacionalistas, em um país em que a reparação pelo dano moral é ridícula”, disse a empresária. Sua motivação, no entanto, escancarou-se em outra declaração: “Se alguém quiser
escrever uma biografia e publicá-la na internet sem cobrar, tudo bem. O problema é lucrar com isso”. Do mesmo modo que seu ex-marido e parceiro profissional Caetano Veloso, em 5 de outubro, publicou no seu perfil no Twitter @caetanoveloso: “Querem fazer biografias sem autorização? Ok! Mas paguem ao biografado”. A frase foi apagada horas depois. Mas o jornalista e escritor cearense Lira Neto, biógrafo de José de Alencar, Padre Cícero, Maysa e, mais recentemente, de Getúlio Vargas, viu e replicou. “O que está em jogo não é um simples cabo de guerra entre biógrafos e celebridades, é mais sério e profundo. Isso transcende a questão das biografias e diz respeito aos historiadores, jornalistas, sociólogos. Pelo que está exposto, qualquer narrativa tem que ser autorizada pelo protagonista da história, o que nos legaria uma História única, oficial, contada com o aval do personagem principal. Isso é absolutamente inadmissível, surreal e vexatório dentro de uma perspectiva internacional”, expõe à Continente.
PECUNIÁRIO
Lira Neto conta que não teve problema algum para pesquisar e redigir os três volumes de Getúlio, que a Companhia das Letras vem publicando desde
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1 dominique dreyfus Biógrafa de Luiz Gonzaga e Baden Powell revela a omissão de fatos lira neto 2 Autor de Getúlio defende que a polêmica transcende biografias silvio tendler 3 Autor de várias cinebiografias, ele diz que “a censura é o inferno”
2012 (o último tomo sairá em agosto de 2014). “Sequer me preocupei em procurar a família dele pra pedir permissão, pois considero que a sua história não é propriedade privada de ninguém. Acontece que, depois do primeiro livro, a sua neta, Celina Vargas, escreveu nas redes sociais que estava gostando muito do primeiro volume. Motivado por isso, entrei em contato. Ela me recebeu de forma carinhosa, me forneceu documentos novos que não estavam incorporados ao acervo dele e me disse de forma sincera que tinha medo do segundo livro, mas que, como uma cientista social, compreendia que a biografia teria obrigação de tocar em assuntos que, para ela como neta, não seriam saborosos”, acrescenta. O seu questionamento sobre a posição adotada pelos membros do Procure Saber – artistas não podem ser biografados, mas políticos e outras figuras públicas, sim – é incisivo: “Não há sentido em artistas acharem que estão em um patamar superior, além dos mortais. Se essas pessoas têm a exata noção do que estão propondo, e se forem além do propósito pecuniário e financeiro, precisam saber que vão inviabilizar o conhecimento histórico. O Brasil seria um caso sui generis de uma democracia que vai proibir a própria narrativa da sua história”, vislumbra Lira Neto. O cineasta carioca Sílvio Tendler concorda e vai além. “É um absurdo que, pra fazer uma biografia, tenha que pedir autorização. É muito grave na literatura, no cinema, na história. Chico Buarque defende isso, mas já imaginou se o pai dele precisasse de autorização para contar a história do Brasil? E se Gilberto Freyre precisasse de autorização também?”, indaga o diretor de Glauber, o labirinto do Brasil (2003), Jango (1984), O mundo mágico dos Trapalhões (1981) e Os anos JK (1980). Tendler lembra à Continente que a
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solução idealizada pelo Procure Saber “só contempla os ricos”. “Tudo isso termina em acordos econômicos. O subtexto é dinheiro. Quero ver se vão querer proibir um filme sobre um operário ou grande artista que tenha significado na arte, mas não tenha expressão. O que estão tentando fazer é um crime contra a arte e a cultura. A censura é o inferno”, vaticina. Em todos os seus documentários biográficos, o único imbróglio enfrentado foi com a família de Glauber Rocha (1939-1981), que adiou por 19 anos o aval para que o filme fosse finalizado. “Mas tive um problema ao contrário com a viúva de Milton Santos. Pelas leis absolutamente idiotas, precisava de uma autorização da família para a Biblioteca Nacional. A viúva achava que não precisava me autorizar nada, porque o filme pertencia a mim. A família tem plena consciência de
que a biografia é livre. E me vem um artista que faz tudo pra alcançar a fama e, quando chega aos píncaros da glória, resolve não querer ser biografado... Brincadeira”, ironiza. Já o cineasta moçambicano Ruy Guerra, há muito radicado no Brasil, alerta para o “aproveitamento sensacionalista” da controvérsia e para a tentativa de desqualificação do caráter dos artistas que são contra a mudança no Código Civil. “Minha indignação é ao uso que está sendo feito de um debate sério e importante. Acusam de censores pessoas idôneas, artistas que merecem todo o respeito. É inaceitável, é uma atitude ignóbil. Há um debate mais profundo a ser feito, e não há nada resolvido no plano jurídico. No entanto, a mídia, vestal que nunca pode ser criticada, não reconhece a pluralidade de comportamentos. Que liberdade de expressão é essa que esses artistas, que têm filhos, famílias,
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uma ligação com a sociedade, não podem se expor sem ser acusados de praticar um atentado a essa mesma liberdade de expressão?”, questiona.
CONFESSOR
Há quem examine a polêmica por outro viés. “Uma pessoa pública, uma vez que ela assume esse posto, não pode recusar que sua história seja contada. Mas a censura que o biógrafo deve ter é a ética. O biógrafo é, muitas vezes, psicanalista e confessor. Cabe a ele ter a delicadeza de entender que está lidando com intimidade, com confiança”, situa a biógrafa francesa e doutora em Letras Dominique Dreyfus, autora de duas biografias sobre ícones do cancioneiro popular brasileiro (Vida de viajante – a saga de Luiz Gonzaga, de 1996, e O violão vadio de Baden Powell, de 1999). Não houve intrigas entre ela e os biografados. “Contei com o apoio, a ajuda e a colaboração dos dois. Não tive nenhuma restrição para falar do alcoolismo do Baden ou da paternidade de Gonzaguinha. Baden me perguntava se eu estava contando dos porres dele. Gonzaga me abriu a vida, o coração. Como o que me interessava contar era tudo aquilo que na história dos dois interferia em suas músicas, teve coisa que ficou de fora. E nem que me torturem eu vou contar”, ilustra.
4 humor Charge de Miguel, no Jornal do Commercio, refletiu o debate nacional
“A censura que o biógrafo deve ter é a ética”, afirma Dominique Dreyfus, biógrafa de Gonzagão e Baden Powell Para o jurista, advogado e escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa, uma quase autobiografia (30 viagens a Lisboa para sua confecção e 50 mil exemplares vendidos pela Record desde 2011), “não há um argumento digno para impedir biografias”. “Há que se pensar na dimensão pública do biografado e no interesse da coletividade. Mas há o direito de liberdade de expressão e a responsabilidade do exercício do direito de falar. E também não há argumento digno que impeça a indignação contra alguém que foi irresponsável ao publicar erros. A indenização tem que ser proporcional ao dano. E essa mesma indenização não se constitui censura. Essa é uma afirmação indecente”, contextualiza. Os direitos à privacidade e de liberdade de expressão, tão evocados ao longo do mês de outubro por
biógrafos, biografados, advogados e artistas, estão garantidos pela Constituição promulgada em 1988. O parágrafo X do artigo 5 reza que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Mas, talvez inspirados pelo parágrafo anterior – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” –, Roberto Carlos, Gilberto Gil e Erasmo Carlos gravaram um vídeo sob a chancela do Procure Saber em que se dispõem a “afastar toda e qualquer hipótese de censura prévia”, mas exigindo garantias contra “ataques, insultos e aproveitadores”. Disponibilizado na internet em 29 de outubro, sinalizou um abrandamento da tese que eles construíram ao longo do mês. “Nunca quisemos exercer qualquer censura, ao contrário: o exercício do direito à intimidade é um fortalecimento do direito coletivo”, pronunciou Gil. “Não negamos que essa vontade em dado momento nos tenha levado a assumir uma posição mais radical”, reconheceu Roberto Carlos, que citou a necessidade de “conciliar o direito constitucional à privacidade com o direito fundamental à informação”. Refutando qualquer elo com a censura, os três artistas, peças-chave na historiografia da cultura nacional desde a década de 1960, adotaram uma tática para aplacar críticas e aparar arestas. “Não somos censores. Nós estamos onde sempre estivemos, pregando a liberdade”, apregoou o Rei, o mesmo cuja biografia se encontra banida há seis anos. As reações foram variadas: houve quem elogiasse a recuada ou quem classificasse o vídeo como uma tentativa de rebater os argumentos de quem atribuiu ao Procure Saber motivações monetárias. Transformações à vista? O certo é que a contenda, seja no Legislativo, no Judiciário, na surdina das negociações de venda de direitos ou na mídia, apenas principia.
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MÁRIO MAGALHÃES “PAGAR AO BIOGRAFADO EQUIVALE A PAGAR POR ENTREVISTA” Com Marighella – o guerrilheiro
que incendiou o mundo, uma extensa reportagem sobre o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella (1911-1969), publicada pela Companhia das Letras em 2012, o jornalista Mário Magalhães ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes e, no mês passado, a mais importante honraria literária do país, o Jabuti. Em ambos os casos, na categoria de melhor biografia. Ironia ou acaso que ele, nascido no Rio de Janeiro na primeira semana de abril de 1964, quando o Brasil respirava o início da ditadura militar, tenha atingido o status de escritor premiado com a biografia de um dos mais temidos inimigos do regime que se estendeu até 1985? Tanto faz: o que importa é que Magalhães defende, com veemência, o direito dos jornalistas e biógrafos de continuarem investigando, reportando e escrevendo.
CONTINENTE Para você, autor de uma
biografia que acaba de receber o Prêmio Jabuti na categoria (e para a qual, como você escreveu em seu blog, os herdeiros de Marighella lhe deram total liberdade), qual é o principal dano
que pode advir do veto ao gênero? O seu lento abandono? Ou a perspectiva do monopólio de histórias “oficiais”? MÁRIO MAGALHÃES Uma questão conceitual: sei que muitos biógrafos jornalistas julgam que as biografias constituem um gênero jornalístico ou literário. Para mim, são reportagens. Com características singulares, pois contam vidas. A reportagem, sim, é um gênero do jornalismo, o mais fascinante. A legislação em vigor permite impor a exclusividade de biografias laudatórias. No limite, haveria um monopólio da verdade, expresso em biografias chapas-brancas, com a chancela da lei, o Código Civil. Seria uma tragédia, cujos indícios já surgem. Existem livros proibidos, projetos biográficos cancelados e numerosos autores tentados a abandonar as biografias enquanto a norma obscurantista que autoriza a censura prévia se mantiver. Eu desisti: enquanto a lei não mudar, não escreverei biografias. CONTINENTE E o que mais o surpreende: a ideia de que os herdeiros poderão reprimir as biografias ou a noção, defendida por alguns artistas, de que o biógrafo capitaliza e faz fortuna com seu trabalho? Seu balanço financeiro, digamos assim, não foi lá para cima com a imersão na vida de Marighella, não foi mesmo? MÁRIO MAGALHÃES O verbo deve ser conjugado no presente. Os biografados e seus herdeiros já “podem” proibir biografias, amparados pela lei. Têm feito isso. Não sou contra biógrafo e biografado compartilharem os direitos autorais de um livro. O inaceitável é impor essa regra. Porque uma biografia não autorizada, como a que escrevi, tem caráter jornalístico. Uma das características do jornalismo é a sua condição de serviço público. Pagar ao biografado equivale a pagar por entrevista. Isto é, desvirtua a natureza do jornalismo independente. No caso, da biografia não autorizada. Cinema é outra coisa. Trata-se de entretenimento, showbiz. Jornalismo é serviço público, mesmo quando exercido por empresa privada. Pelos livros vendidos e a cessão dos direitos da biografia para o cinema, receberei meros 15% do total de salários de que abri mão nos 69 meses em que me dediquei exclusivamente a Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo. Empenhar-se em uma biografia,
como me empenhei, é um péssimo negócio financeiro, mas um gratificante empreendimento de vida. CONTINENTE Algumas pessoas, entre elas profissionais que ouvimos para a matéria que estamos publicando agora, têm argumentado que a discussão está sendo feita de forma açodada e que é preciso um debate mais amplo sobre a questão. Você concorda? MÁRIO MAGALHÃES Incrível é que muitos que falam agora em discussão açodada não pronunciaram uma sílaba quando o Código Civil foi aprovado com dois artigos, o 20 e o 21, escancaradamente inconstitucionais, ao prever a censura prévia. Há muitos tresloucados e açodados, como temos visto. Mas a discussão tarda, era para anteontem. Ou viver sob censura é legítimo? E outros têm insistido em que não se trata de censura, e, sim, de preservar o direito à privacidade. O que você pensa sobre isso, ainda mais se levarmos em consideração que um outro direito, o da liberdade de expressão, está garantido na Constituição? O direito à privacidade é assegurado legalmente. Bem como o de não ser alvo de calúnia e difamação. Mas não é porque a lei prevê punição para homicidas que os assassinatos acabaram. Quem comete crimes como os de difamação e calúnia e viola a privacidade deve ser processado e punido com rapidez e dureza. A propósito: o que isso tudo tem a ver com censura prévia em plena democracia? O Código Civil não fala em biografias, seu alvo é muito mais amplo. Atinge toda a produção jornalística e cultural. Com base nessa lei, a revista Continente pode ser obrigada a pedir autorização a um perfilado que tema por sua “boa fama”. Já pensou? CONTINENTE Imaginamos que a experiência de Marighella lhe dê subsídios para tecer comparações com o exercício jornalístico e literário da biografia praticado em outros países. Que diferenças lhe são mais sintomáticas, nesse caso? MÁRIO MAGALHÃES Biógrafos brasileiros, como Ruy Castro e Fernando Morais, estão entre os melhores do planeta. Nada devem aos britânicos e norte-americanos. A maior diferença hoje é que o Brasil configura a única grande democracia a impor censura prévia para biografias.
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TEXTO Relato vital sobre uma pessoa
As biografias se situam entre história, jornalismo e literatura. O narrador reconstrói episódios a partir de documentos, cartas, livros e depoimentos
5 MITOs Embora o gênero só tenha se definido no século 17, a narrativa dos deuses tem caráter biográfico 6-7 medievo No período, eram frequentes as hagiografias, ou biografias de santos, como Francisco e Joana D’Arc
TEXto Eduardo Cesar Maia
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Muito tem-se falado a respeito
de direitos e deveres do biógrafo. Nas últimas semanas, jornais, revistas, programas de televisão e mesmo as pessoas comuns, nas mídias sociais, têm apresentado a questão sob as mais distintas perspectivas, com maior ou menor coerência e pertinência em cada caso. A “Batalha das Biografias” brasileira, portanto, teve como ponto bastante positivo o fato de ter gerado um intenso debate público sobre temas como direito à privacidade, liberdade de expressão e censura; coisas que, numa democracia liberal, nunca devem cessar de ser problematizadas. Não se trata de apresentar um juízo de valor em relação ao que têm dito personalidades como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso e outras figuras de nossa música popular. O leitor encontrará aqui simplesmente algumas informações e breves reflexões sobre o gênero biográfico e seu desenvolvimento. A palavra “biografia” (do grego bio, “vida” e grafos, “escrever”) – se observarmos a variação em seu uso durante a história – não permite uma compreensão unívoca e definitiva. O termo foi estabelecido
Durante o Romantismo, o aprofundamento da vida psicológica dos personagens ganha relevo somente no século 17 e foi utilizado, retrospectivamente, para se referir a um gênero autônomo desenvolvido desde a Antiguidade, conhecido então como vita (vida). Primordialmente, desde as Vidas paralelas, de Plutarco, ou dos textos de Cornelio Nepote, o gênero se baseava num desígnio moralizante, edificante e didático, ainda que existam importantes exceções, como a notável Vida dos doze césares, de Suetônio. Esse propósito ético e pedagógico prosseguiu durante a época medieval, com as hagiografias (biografias de santos), que teve como figura principal Giacomo da Varazze, autor de Legenda áurea, uma espécie de crônica das vidas santas. Os trovadores provençais também cultivaram, à sua maneira, os relatos de caráter biográfico, tanto religiosos como referentes à nobreza e famílias importantes.
O antropocentrismo renascentista, posteriormente, levou o gênero a uma importante reformulação. O estudo da vida e do pensamento de pessoas ilustres se opôs ao modelo teocêntrico das vidas dos santos, colocando em primeiro plano personagens de destaque na vida civil, militar e artística. A revisão da herança clássica restaurou a fé central no homem, no indivíduo. A fama, o prestígio, as conquistas, o dinheiro, as façanhas, o poder e o gozo material e sensual da vida passaram a ser admirados, e não mais desprezados. Plutarco volta a ser o modelo imitado por todos; e o padrão moral já não pode ser somente o da rigidez cristã. Já durante o Romantismo, o aprofundamento da vida psicológica dos personagens ganha relevo, juntamente com a preocupação, por parte dos biógrafos, em tornar a leitura da obra mais amena e estimulante, muitas vezes em detrimento da verdade factual. As metodologias positivistas, no século 19, também contribuíram com o desenvolvimento do gênero, principalmente no que diz respeito ao rigor documental e ao detalhamento minucioso do contexto histórico e cultural.
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RELEVÂNCIA PÚBLICA
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Como se vê, ao longo do tempo, escritores e pensadores de diferentes origens estabeleceram variadas expressões para descrever os diversos procedimentos, estilos e modelos do gênero biográfico. Talvez por isso contemos hoje com uma série de expressões e palavras, muitas vezes redundantes ou polissêmicas, para nos referirmos a esse tipo de narrativa – o que pode gerar ambiguidades. Escutamos com frequência os termos biografia, autobiografia, história pessoal, narração biográfica, perfil biográfico, relato biográfico, biografia intelectual... Ao invés de nos atermos aos rigores das diferenciações, às particularidades e definições a respeito de cada uma dessas formas de abordagem, podemos nos propor algo mais simples: mostrar o que existe de comum entre elas.
Com a “sociedade de massas”, surgiu uma leva de mitos culturais surgidos da música, do cinema e dos esportes
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Em qualquer acepção que propusermos para um relato de tipo biográfico encontraremos, na prática, um tipo de trabalho orientado a narrar total ou parcialmente a trajetória vital de uma pessoa que desperte algum interesse social, comumente personagens históricos e de relevância pública, que tenham contribuído nos âmbitos da política, da ciência ou da arte. Nos últimos tempos, no entanto, a ideia de relevância pública, como se sabe, transformou-se bastante. Com o advento da chamada “sociedade de massas” e com a estonteante explosão do consumo cultural e midiático, foi se estabelecendo uma nova hierarquia de mitos culturais surgidos fundamentalmente dos campos da música popular, do cinema e do esporte. As biografias – e não poderia ser diferente – seguiram o caminho das novas demandas, e
8-10 m ercado editorial
iografias estão entre os títulos B de maior vendagem no Brasil
passaram também a atuar em serviço da publicidade, muitas vezes através de abordagens polemistas desses mesmos novos mitos. Em sua forma mais tradicional e reconhecível, portanto, a biografia nos apresenta um personagem famoso, e tenta explicar suas escolhas, ideias e atos em conformidade com suas circunstâncias particulares, com sua época e com o arranjo político, cultural e social no qual estava inserido, traçando uma espécie de pintura de sua personalidade e pensamento. Assim, podemos partir, com alguma segurança, da ideia de que as biografias constituem um gênero situado entre a história, o jornalismo e a literatura (o predomínio ou o equilíbrio entre essas três disciplinas numa biografia vai depender da perspectiva e das preferências do biógrafo), no qual um pesquisadornarrador tenta reconstruir ou costurar certos episódios da vida de um indivíduo a partir da consulta a documentos, cartas, livros, depoimentos orais etc., a fim de compor um painel que, de certa maneira, forneça ao leitor um sentido geral para aquela trajetória (lembrome do narrador Casmurro tentando “atar as duas pontas da vida” para explicá-la a si mesmo). Daí o caráter de conhecimento humanístico atribuído ao gênero e a necessidade de se preservar a liberdade de atuação dos biógrafos: diferentemente das formulações sistematizáveis e abstratas das ciências “duras”, no campo das ciências do homem, precisamos narrar para entender. As biografias servem ao conhecimento assim como a História: como exemplo das possibilidades infinitas que brindam a existência humana e a capacidade que temos para aprender moralmente a partir da experiência de outros.
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CENSURA Calabar, a peça como paradigma do veto
A prática da interdição a atividades culturais oficializou-se no Brasil em 1934, mas foi nos anos 1970, sob golpe militar, que recrudesceu TEXto Luciana Veras
Um dos episódios mais emblemáticos da censura artística no Brasil deuse em 1973, com a proibição, às vésperas da estreia, do espetáculo Calabar - o elogio da traição. A direção era de Fernando Peixoto (19372012) e o texto tinha assinatura do cineasta moçambicano Ruy Guerra e do cantor e compositor Chico Buarque, cujo nome àquela época já era recorrente nos documentos dos órgãos de repressão da ditadura. Sua peça Roda-viva (1967) havia sido acusada de não respeitar “a formação moral do espectador, ferindo de modo contundente todos os princípios de ensinamento moral e de religião herdados dos nossos antepassados”, de acordo com
parecer da censura disponível para consulta no Arquivo Nacional. A rigor, a prática da interdição de quaisquer atividades culturais foi oficializada em 1934, com a criação da Censura Federal, ligada à Diretoria Geral de Publicidade, Comunicações e Transportes. Em 1939, no primeiro governo de Getúlio Vargas, a “censura teatral e de diversões públicas” é transferida para o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP); seis anos depois, surgia o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), que se reportava ao Departamento Federal de Segurança Pública. “A censura sempre existiu. Antes era uma censura basicamente de costumes, um pouco moral, e muito ideológica”, afirma o
advogado e jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, ex-secretáriogeral do Ministério da Justiça, quando comandado por Fernando Lyra (19382013), entre 1985 e 1986, durante o governo José Sarney. Com o golpe que instaura o regime militar, sob o qual o Brasil viveu entre 1964 e 1985, a legislação vira refém do autoritarismo. “A ditadura fez 42.514 leis. Dessas, 39 eram textos sobre a censura”, aponta Cavalcanti Filho. Com o subsequente recrudescimento nas forças de repressão proveniente do Ato Institucional nº 5, em 1969, a censura ganha mais poder e legitimidade. No caso de Calabar – o elogio da traição, por exemplo, adotouse a tática da procrastinação. Em abril de 1973, Chico Buarque requisitou análise para liberação do texto; o derradeiro juízo emitido pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, vinculada ao Departamento da Polícia Federal, ligado ao Ministério da Justiça (Alfredo Buzaid era o ministro, o presidente era o general Emílio Garrastazu Médici), só viria em janeiro de 1974. Negativo, claro. Assim, “a paródia baseada em fatos reais, o escracho, o sarcasmo na representação do poder”, nas palavras do próprio Ruy Guerra, foram afastados da apreciação pública na montagem
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que resgatava a figura de Domingos Fernandes Calabar (1609-1635), que lutou pelos portugueses e depois se aliou aos invasores holandeses, nas batalhas travadas na capitania de Pernambuco, no século 17 (herdando a pecha secular de “traidor da pátria”). Os produtores Fernando Torres e Fernanda Montenegro haviam investido US$ 30 mil; o elenco estava pronto, as músicas ensaiadas, figurino e coreografias finalizados. O texto, entretanto, só seria liberado seis anos depois. “A peça fala de traições sucessivas e contínuas, que existiam e continuam existindo, e de uma época em que o conceito de nacionalidade era confuso. Calabar talvez seja o mais visível e mais representativo paradigma da
Segundo o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, a ditadura fez 42.514 leis. Dessas, 39 eram textos sobre a censura censura teatral no Brasil”, Guerra diz à Continente. Ele dirigirá uma nova montagem, que deve estrear no primeiro semestre de 2014, e garante que fará jus “ao mito de Calabar”. “Há a importância dos 40 anos do texto e pensamos em fazer um grande espetáculo, à altura sob o aspecto da visualidade, da musicalidade, da miseen-scène. Uma resposta, ainda que tardia, à censura”, completa Ruy Guerra. Chico Buarque, hoje envolvido na querela das biografias, não integra o projeto do novo Calabar. Lembra o jurista José Paulo Cavalcanti Filho que o mais famoso herdeiro de Sérgio Buarque de Holanda era um dos membros do Conselho de Defesa da Liberdade de Expressão, um dos primeiros atos do ministro Fernando Lyra para extinguir a censura. “Criamos essa comissão para redigir como isso funcionaria. Chamávamos os maiores especialistas brasileiros para escrever. Nunca houve uma recusa. No caso do conselho, presidido por Antonio Houaiss, eram Chico, a cineasta Ana Carolina, o dramaturgo Dias Gomes, o senador e jornalista Pompeu de
11 Ruy guerra O cineasta moçambicano vai dirigir uma nova montagem de Calabar, com estreia prevista para 2014 12 chico buarque O compositor foi taxado de “subversivo” pela coautoria de Calabar 13 Cavalcanti filho Jurista afirma que a censura, sempre presente, já teve caráter mais moral e ideológico
Souza, o cartunista Ziraldo e Terezinha Martins, representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil”, recorda Cavalcanti Filho. O jurista considera que o dano maior da censura é imensurável: “Aconteceu no Brasil o mesmo que no Portugal pós-Revolução dos Cravos, em 1974. Pensava-se que a censura impediria o surgimento de grandes obrasprimas, mas os efeitos são ainda mais danosos porque incidem no próprio processo de criação. Não é que se impeça uma obra-prima de ser dada a conhecer; impede-se que as pessoas a escrevam, porque a censura lhes tira o substrato anímico, a disposição de criar”. Para Ruy Guerra, as restrições da atualidade são de outra ordem. “Sofremos uma censura diferente, não tão violenta quanto na ditadura, não oficial, mas muito delicada, que é a censura econômica. A produção de cinema é absolutamente castrada. Estou há seis anos lutando para filmar Quase memória, da obra do Carlos Heitor Cony, mas os meios de expressão de massa e de produção são submetidos ao interesse do capital”, lamenta. Uma situação de adversidade oposta à experimentada com Os fuzis, seu longa-metragem de 1964, ano em que João Goulart (1919-1976) foi deposto. “Antes de Calabar, não cheguei a ter problemas com a censura porque, quando Os fuzis foi lançado, coincidiu com o momento do golpe. Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos estavam em Cannes, falando mal dos militares e, para verificar se meu filme poderia ir ou não a Berlim, formou-se uma comissão de generais para vê-lo”, relembra Ruy Guerra. O resultado ilustra que a censura também se filiava a critérios subjetivos, que iam além de subversão ou provocação políticas. “Os generais chegaram à conclusão de que se tratava de um filme de macho. Assim, ninguém quis censurar porque pegaria mal para eles”, comenta o cineasta.
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CON TI NEN TE
Perfil
ROCK SANTEIRO O escultor de boa conversa Integrante da Oficina do Artesão Mestre Quincas, ele mantém inspiração e ritmo de trabalho até enquanto recepciona visitantes, com suas assertivas engajadas TEXTO Carlos Eduardo Amaral FOTOS Leo Caldas
Reagir à depreciação durante a
negociação com os lojistas. Essa foi o que motivou artesãos petrolinenses a se mobilizarem em defesa do valor artístico de suas obras, antes compradas por comerciantes a preços módicos para serem revendidas a apreciadores e colecionadores de todo o país por cifras vultosas. Como reação, portanto, foi fundada a Oficina do Artesão Mestre Quincas, em 1989, espaço que abriga ateliê, loja de artigos e depósito de matéria-prima, geridos pelos próprios artesãos. Conforme conta Roque Gomes da Silva, mais conhecido como Rock Santeiro, duas entidades de classe estão estabelecidas na oficina: a Associação dos Artífices
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1 MADEIRA
Entre as peças produzidas no local estão variações da carranca
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2 ASSOCIAÇÃO
O espaço abriga ateliê, loja e depósito de material e é gerido pelos artesãos
Perfil de Petrolina (Assape), que agrega os confeccionadores de peças em geral (em cerâmica, tecido, barro etc.) e possui cerca de 70 membros, e a Associação dos Escultores de Petrolina (Assespe), exclusiva para essa categoria, com apenas 15 integrantes. Tanto escultores quanto artífices, por sinal, até hoje aguardam que a regulamentação do ofício de artesão seja aprovada no Congresso Nacional. Depois das perguntas quebra-gelo, uma pausa para um cigarro serve de senha para uma aproximação mais pessoal com Rock Santeiro, que acabou nos persuadindo a mudar o objeto da reportagem para ele próprio. Após puxar-nos uma cadeira, para que ficasse próxima à área onde trabalhava sentado no chão desbastando toras de madeira – ou melhor, dando a elas as feições que já lhe estão claras na cabeça, como fez questão de frisar – Rock começou a perfilar suas teses artísticas, adicionando outras informações sobre a Oficina do Artesão, local no qual construiu toda a sua carreira. As paredes do ateliê – aberto aos associados da Assape e da Assespe, mas que só comporta nove pessoas, que residem mais próximos ao local – traduzem o pensamento do santeiro: tomadas por fotos e certificados até certa altura, registram num canto à parte, perto ao teto, frases de estímulo, rudimentos sobre o fazer artístico e lendas sobre as carrancas. Por falar nelas, vale dizer que não reinam isoladas. Pelo contrário, a arte sacra tem boa acolhida entre todos os artesãos que encontramos durante nossa visita e parece satisfazê-los mais existencialmente,
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ao passo que as citadas carrancas são esculpidas segundo uma fórmula definida, sem segredos. O próprio Rock atesta que era assim que todos encaravam as duas facetas. Ao nosso redor, por exemplo, Karina era a única mulher do grupo que talhava sucessivas carrancas, de todos os tamanhos. Noutro canto, Biu, invocou o nome de batismo – Gabriel – para justificar sua inclinação: “Trabalhei 10 anos com carrancas, mas senti que devia me reciclar e aí me voltei para o Barroco”. Na edição 117 da Continente, de setembro de 2010, já havíamos apresentado a vocação dos artesãos interioranos para a arte sacra neobarroca em madeira, na cidade de Ibimirim, e agora constatamos como ela se dá também em Petrolina. Não foram muito além nossas novas tentativas de diálogo após uma pausa para um novo cigarro e uma circulada no ateliê: loquaz, só Rock, que joga aberto quando algo lhe incomoda, como bom artista e
sertanejo. “Não é pra fins políticos não, né? Não tenho partido, candidato, nada. O artista tem de ser do povo”, disparou. Certeza adquirida, o escultor tenta localizar um exemplar da Continente Turismo n° 3, de 2005, em que havia sido mencionado, mas a tentativa foi frustrada. Voltamos, então, a conversar sentados, pois ele tinha um São Jorge a concluir. Bem informado, o santeiro falou de sua expectativa sobre a Central do Artesanato de Pernambuco, inaugurada em setembro de 2012, no Recife Antigo: “O artesão que não tem onde escoar sua produção terá uma boa oportunidade nesse local”. Ele cita uma experiência, comum a seus colegas de ofício, que o fez engajar-se junto a eles e defender os direitos da classe profissional. Em tal episódio, Rock voltava para casa com uma de suas peças debaixo do braço, após ser-lhe oferecido um preço irrisório por ela, então um anjo teria dito que ele nunca mais comercializaria seu trabalho
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com lojistas. Tais narrativas fantásticas fazem parte da personalidade dos bons contadores de história, Rock não precisa mais de intermediários. “Mas muitos artesãos ainda não conhecem essa liberdade”, acrescenta.
PASSO NATURAL
Natural de Afrânio, cidade mais ocidental de Pernambuco e vizinha ao Piauí, Rock Santeiro chegou bem jovem a Petrolina e lá conheceu a arte dos mestres carranqueiros aos 10 anos de idade. Para tornar-se escultor de santos, foi um passo natural: detalhando sobre o que nos dissera uma hora antes, reitera que a escultura de carrancas é “um mundo pequeno” e por isso o ofício de santeiro lhe proporcionou mais liberdade, considerando que mesmo na hagiografia popular – isto é, na lista de santos conhecidos pelo povo – a variedade de representações é ampla, em contraste com as monotemáticas figuras lendárias do Rio São Francisco.
Vindo do município de Afrânio, Rock Santeiro conheceu os mestres carranqueiros de Petrolina aos 10 anos
Rock, que revezava sua atenção entre São Jorge e o Dragão sob a mira da lança do santo, confessa ainda que não está dando conta das encomendas e, saindo do prosaico tema, volta a divagar com a mesma oratória, clara e resoluta. Defende que um artesão e um artista se diferem em poucos pontos e externa um sentimento comum a ambos: “É uma profissão tão gostosa, mas tem um lado negativo. Você pode ter alguns ajudantes para lhe auxiliar com o material bruto, mas na hora de esculpir é sozinho, porque parte de você. Pelo menos está fazendo o que gosta”. E as preocupações ecológicas não são ignoradas pelos artesãos com quem divide o ateliê: segundo Rock Santeiro, seus colegas que lidam com madeira (há os que utilizam pedra-sabão e os que pintam tecidos) só trabalham com árvores de áreas tombadas pelo governo e estocadas na área externa da oficina. O tino de Rock para descobrir novos talentos em nada difere dos renascentistas: “A madeira já tem meio caminho andado, você só tem de retirar os excessos, pois a peça já está
lá”. O teste prático que ele aplica aos novos aprendizes é o de esculpir um cachorro com estilete a partir de um sabonete. Daí, ele pega uma castanha de caju e, mediante oito pequenas incisões nela, dá-lhe as feições de um macaco, sem tirar uma única lasca, e nos mostra o que espera que os novatos revelem: aptidão. Como exemplo de talentos descobertos na Oficina do Artesão Mestre Quincas, ele aponta os trabalhos de Pintor, grafiteiro que passou à arte sacra ao descobrir a vocação por lá, e Luz Divina, cega de nascença que ficou conhecida por talhar golfinhos – animal que sequer existe no São Francisco, para ser tomado como referência – mas que, inesperadamente, deixou a função após converterse a uma igreja evangélica. Chamado vez ou outra a ministrar aulas pelo estado, o escultor não esconde que prefere prestar orientação individual. “Meus alunos são exclusivos. Não adianta me botar 20 alunos num curso ou oficina para me ver: basta um ao meu lado, com 100% de atenção. Assim, ele vai trabalhar de verdade, não vai copiar o que faço”. Rock Santeiro, que eventualmente viaja ao Recife para vender seus trabalhos e já esteve na Argentina e no Uruguai, parece só guardar uma queixa: “Se tem um mundo que não vou conhecer é o dos gregos. Queria estar lá só pra sentir a energia daquela perfeição clássica”.
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PARQUINHO Uma licença à nostalgia
Esses ambientes itinerantes de diversão mantêm viva uma antiga forma de passatempo, que contrasta com o estímulo ao lazer isolador dos brinquedos deste século TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
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Tradição
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Quem nunca sentiu saudades de
passar o dia inteiro num parquinho de diversões, com trenzinhos, canoas, carrosséis, barracas de tiro ao alvo, cavalinhos e um açucarado, saboroso e rosa algodão-doce? Cenas como essas estão cada vez mais raras, na medida exata em que novos shoppings são construídos e brinquedos eletrônicos enfeitiçam a criançada, com muita tecnologia e pouco apelo lúdico. Em alguns rincões do Brasil, no entanto, especialmente no interior do Nordeste, o tradicional parquinho de diversões resiste ao tempo e ainda exibe sua colorida variedade de atrações. Da emblemática roda-gigante – às vezes nem tão gigante assim – ao variado cardápio de guloseimas,
Assim como o circo itinerante, os parquinhos constituem hoje uma espécie de relicário do entretenimento que inclui pipocas coloridas, cachorros-quentes, maçãs do amor e o chocolate conquistado na pontaria, os parquinhos de interior, assim como o circo itinerante, constituem hoje uma espécie de relicário do entretenimento, um retrato de um tempo que já se vai tão rápido quanto um mergulho na montanha-russa.
Os parques tradicionais, assim como os campos de futebol de várzea e os circos, têm cada vez menos espaço nas cidades. Mesmo que a interação e a socialização das pessoas sejam mais humanas num parque ao ar livre, a maioria tem escolhido os ambientes fechados dos shoppings, onde os filhos podem se divertir enquanto os pais passeiam pelas lojas. Para alguns, a facilidade é o maior argumento. “O parque do shopping, eu sei que esta lá. É diferente do parquinho do meu bairro, que numa semana está montado e, na seguinte, já foi embora”, diz Adriana Senna, comerciante, mãe de dois filhos pequenos apaixonados por diversão. Muitos desses parquinhos à moda
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antiga percorrem um circuito prédefinido que leva em consideração as festas religiosas de cada região. Dezenas deles, no entanto, acabam tendo dificuldades para encontrar espaços livres em função da forte especulação imobiliária e muitos findam “morrendo” na estrada a cada ano por falta de dinheiro. Foi o aspecto itinerante dos parques, a propósito, que durante muitos anos manteve a sobrevivência dos equipamentos. No início, tudo era mais difícil, desde o transporte até a montagem. Se, por um lado, os brinquedos não eram tão sofisticados, possibilitando a mudança de endereço com mais frequência e dando ao parquinho um aspecto
nômade, que oxigenava o fluxo e garantia a manutenção da estrutura, a dificuldade de viajar por estradas de terra e ter que montar tudo no braço muitas vezes desanimava os proprietários, quase sempre famílias que viajavam juntas pelo país no estilo mambembe. Outro empecilho, hoje, é a segurança. Numerosos parques infantis tiveram suas atividades proibidas por não observarem exigências mínimas, sendo o crescente índice de acidentes um dado que em nada combina com a alegria dos heróis infantis pintados em cores berrantes nas estruturas metálicas dos brinquedos. Entre os brinquedos que compõem um típico parque de diversões, nenhum tem mais prestígio e fama que o carrossel. Em Paris, bem em frente à Torre Eiffel, funciona até hoje um dos mais bonitos carrosséis da Europa. Eles combinam beleza, arte e entretenimento e fascinam crianças e adultos. No século 17, na Bulgária, foi apresentado o primeiro carrossel com cavalos de madeira que se tem notícia. O brinquedo rodava num eixo por tração humana que, mais tarde, foi substituída por tração animal. O mais antigo do mundo ainda em funcionamento está em Praga e data de 1880. Em alguns países, no entanto, os carrosséis estão cada vez mais incríveis. Em Copenhague, na Dinamarca, um imenso carrossel leva os corajosos às alturas e, em seguida, desce girando
Página anterior 1 RODA-GIGANTE
rinquedo se mantém como B o emblema dos parquinhos
Nestas páginas 2 CARROSSEL
Divertimento secular é o mais esmerado e lírico
TIRO AO ALVO 3 Jogos são forma de tentar ganhar os ansiados brindes
em alta velocidade. Muitas dessas atrações acabam sendo peças únicas, espalhando a moda dos curiosos parques de “um brinquedo só”.
ADRENALINA
Surgidos durante as exposições comerciais do século 12, na GrãBretanha, os parques de diversões ganharam projeção mundial durante a Feira de Colombo, realizada em 1893, em Chicago, em homenagem ao navegador italiano. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, os parques se popularizaram em função da grande quantidade de jovens que se mudavam para as grandes cidades, provenientes das zonas rurais. Aqui no Brasil, a tradição sempre esteve atrelada às festas religiosas, principalmente por causa das quermesses juninas, quando os povoados se transformavam para semanas inteiras de festividades e os parquinhos eram tão aguardados quanto as colheitas. Em algumas cidades do Brasil, os parques
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4 CANOA Brinquedo tipo gangorra é dos mais comuns dos parquinhos
Tradição
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5 COSPE-FOGO Alguns parques atraem clientela com números circenses 6 ESTÉTICA Cores berrantes nas estruturas metálicas dos brinquedos são marcantes 7-8 GULOSEIMAS Barracas de comida oferecem cachorroquente e crepe, este, um item novo
tradicionais resistem bravamente e conseguem se manter vivos. Nos interiores nordestinos, uma curiosa simbiose foi a solução encontrada para seguir adiante. Circos e parquinhos se uniram e cenas de palhaços e homens cuspindo fogo conferem um clima ainda mais encantado ao já surreal cenário do lugar. A história dos parques de diversões, tal qual um tobogã, é cheia de altos e baixos. Por volta de 1884, o mundo do entretenimento apontou para Coney Island, litoral de Nova York, quando a região foi parque de testes para a primeira montanha-russa da História, a “Thunderbolt”, que permaneceu na ativa até o início do século 21. Durante muito tempo, as atrações de Coney Island foram um verdadeiro mito no mundo do entretenimento, com vários parques reluzentes. Contudo, a década de 1960 significou um tempo de dificuldades para o lugar, quando um grande incêndio acabou prejudicando boa parte da estrutura dos parques. Com a inauguração da Disneyworld, em 1971, na Flórida, Coney Island foi sendo esquecida, os parques temáticos
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viraram febre mundo afora e o clima romântico deu lugar à busca pela emoção, com brinquedos cada vez mais ousados e uma forte tendência à espetacularização. No nordeste brasileiro, em função do calor, o setor que mais cresce é o dos parques aquáticos, com milhões de reais investidos anualmente. Embora a tendência mundial sejam os parques de adrenalina, para uma parte dos apreciadores
dessa modalidade de lazer, a busca desenfreada por mais emoção nem sempre substitui o simples prazer de avistar a cidade do alto de uma tradicional roda-gigante ou sentir o vento no rosto durante um típico giro de carrossel. Para esses, a mágica está mais na imaginação do que na aventura, mais na alegria do que no risco. Eternizado nas telas do cinema e pano de fundo recorrente na
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literatura, o parque de diversões que colore o imaginário é, antes de tudo, um ponto de encontro, território mágico dentro das selvas de pedras em que se transformaram as cidades. Num mundo paradoxalmente sufocado pela tecnologia, onde video game e televisão ocupam o tempo, e o tablet substitui o livro, conquistar um urso de pelúcia jogando coloridas argolas de plástico parece ser, enfim, um divertido capítulo da história.
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CIDADES Paisagens de vidro
1 FACHADAS Cidades em crescimento acelerado como o Recife estão sendo rapidamente ocupadas por torres espelhadas
Voltado à máxima ocupação dos espaços e às ideias de consumo e luxo, o avanço imobiliário tem desprezado as relações históricas e afetivas do sujeito com o ambiente TEXTO Camilo Soares
Alguns eventos relacionados
ao avanço imobiliário e a projetos de urbanismo para o Recife vêm provocando debates fervorosos entre a sociedade civil e órgãos competentes em jornais, audiências públicas e, sobretudo, na internet. A demolição do Edifício Caiçara (erguido na década de 1940), sem autorização legal, o projeto do Novo Recife, que propõe construir mais de uma dezena de arranha-céus no Cais José Estelita, ou a dos viadutos sobre a Avenida Agamenon Magalhães (que liga Olinda ao Recife) foram alvos de discussões que, comumente, simplificam o embate em dois lados rivais: os progressistas que defendem a modernização da cidade versus os conservadores com a bandeira da preservação da identidade e memória. O problema é que tal dicotomia afasta mais o foco da discussão do que a amadurece, pois nem sempre tais perspectivas são tão antagônicos. A cidade é constituída por diversos atores, que a vivenciam e a modificam, sendo os pontos de vista incompatíveis parte dessa realidade. Ela não para de se construir, e isso não se refere
apenas à sua transformação material, mas à contínua composição mental. O que se está colocando em xeque não é simplesmente a construção de um prédio ou a demolição de um armazém abandonado, mas a construção imaterial e afetiva da cidade por aqueles que a utilizam e a compõem. Diante dessa ambivalência entre a objetividade com a qual nos deparamos cotidianamente e a subjetividade que a interpreta, forma-se uma imagem do real, mas que, ao mesmo tempo, impõe-se independentemente dele. É aí que a noção de paisagem aparece como um bom guia para nos levar à luz da questão. Originalmente, o termo paisagem indicava apenas um pedaço do país visto de uma tacada só, com uma conotação rural. Essa ligação com o lugar, como lembra Alain Roger, está presente na maioria das línguas ocidentais, como land-landscape (inglês), land-landschaft (alemão), landschap (holandês), landskap (sueco), landskal (dinamarquês), pais-paisaje (espanhol), paese-paesaggio (italiano) e pays-paysage (francês), além do grego topos-topio. Para
o filósofo francês, a ligação entre esses dois termos é feita graças à mediação da arte. Diferentemente de noções geográficas, como mapa, ou políticas, como território, ou sociológicas, como nação, paisagem parte de uma conotação estética, relacionando, assim, uma descrição concreta do mundo a um olhar íntimo sobre o real. A palavra surgiu no Ocidente, em meados do século 15, na Holanda, e não designava um lugar natural, mas “pedaços do país” pintados por mestres como Van Eyck, mesmo que ainda no fundo da tela, e que se tornou um gênero em si em pintores como Jan Van Goyen, entre o século 16 e 17. Na Idade Média, não se tem registro dessa relação contemplativa com o ambiente e sua consequente expressão. Esse espaço do mundo sensível que percebemos com a paisagem é, para Augustin Berque, uma semente de ruptura com o que ele chama de POMC (Paradigma Ocidental Moderno-Clássico) e seu espaço puramente objetivo de coordenadas cartesianas representando a crença absoluta na objetividade e a separação entre o eu e o mundo.
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O termo já era conhecido na China mais de mil anos antes, entre os séculos 4 e 5, primeiro na poesia e, em seguida, na pintura, já que a cultura oriental sempre desprezou essa ânsia de realismo, de coesão e completude, privilegiando a impermanência e o vazio. Sendo o termo em chinês formado pela junção das palavras montanha (shan) e água (shui), paisagem adquire uma noção que supera os limites da materialidade, dando margem à subjetividade do observador, num estado ambíguo de transformação constante e mútua entre a dureza da rocha e a volatilidade do líquido-vapor. O pintor Zong Bing escreveu, em 440, o que é hoje considerado o primeiro tratado sobre o tema, Hua shanshui xu (Introdução à pintura de paisagem), no qual revela que “quanto à paisagem, mesmo tendo substância, ela tende para o espírito”. Daí a pintura chinesa não ter fixado seus esforços na semelhança realista de suas representações, já que nunca visou ser um substituto da experiência real. Sua intenção é sugerir que cada um veja por si mesmo o universo. Por isso tal tradição pictórica, que conheceu o ápice na dinastia Sung (960-1279), era permeada por espaços vazios e um inusitado branco no centro das telas, o que Alan Watts vê como uma fabulosa reticência que gera curiosidade: “Eles levantam apenas a ponta do véu, para estimularem as pessoas a encontrarem por si mesmas o que está além”.
NATUREZA URBANA
Quanto às cidades, foi após a Revolução Industrial que o urbano encontrou sua vez na paisagem. Na época, toda destruição de bens naturais ou históricos passou a ser justificável em nome da evolução técnica e material do homem, e a cidade passou a ser o grande símbolo disso. A objetividade materialista prevalecia sobre questões subjetivas como o belo, o estético, o agradável, colocadas em segundo plano pelos poderosos. A volta à natureza pelos românticos foi uma nítida reação contra essa separação entre homem e mundo, incorporando à paisagem desdobramentos psicológicos do observador-pintor. A naturphilosophie alemã, surgida nos fins do século 18
2 CONCEITO Paisagens chinesas, como esta de Zhang Daqian, antes de representarem “o real”, buscam transcendê-lo por sua idealização 3 FOTOGRAFIA Na Paris do final do século 19, o panorama registrado por Charles Marville é o das margens das cidades
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e encabeçada por Schelling, não foi apenas um movimento artístico, mas se ramificou pela ciência, como no trabalho de percepção das cores escrito por Goethe, para quem a óptica puramente geométrica de Newton não levava em conta a realidade da percepção humana. A representação do mundo pela percepção do eu ressurge até nos momentos em que a objetividade reina nas esferas artísticas. Mesmo o espaço equilibrado do Renascimento era, segundo Pierre Francastel, em seu Études de sociologie de l’art, “uma mistura entre geometria e invenções míticas”. A ilusão da perspectiva dava a sensação de realismo tal qual alguns sonhos nos dão. Um exemplo disso está nas telas do pintor Albert Eckhout, retratando
Pernambuco entre 1637 e 1644, quando participou da comitiva trazida pelo conde Maurício de Nassau durante a ocupação holandesa. Suas representações realistas dos tipos humanos e da botânica locais eram cercadas por um cinzento céu, mais parecido com o norte da Europa do que com o nordeste do Brasil. Mesmo que os esboços de pessoas e plantas tenham sido executados in loco, as telas eram pintadas na calma do ateliê, de acordo com as referências pictóricas e lembranças do artista, sobretudo os elementos do fundo que não estavam no estudo original. Já no século 19, com o advento da fotografia e a reprodutibilidade técnica da paisagem, os pintores ficaram
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cientes das qualidades espaciais das cores e seus desdobramentos psicológicos que libertariam a pintura do traço realista. Concomitantemente, fotografia e pintura se voltavam para a cidade, acompanhando a mudança de paradigma visual trazido pelos novos tempos. Charles Marville (1813-1879) já registrava as reformas do barão de Haussmann na Paris do século 19, em seus negativos em vidro. No final do mesmo século, os pintores impressionistas observavam as mudanças de luz nas margens industriais dos grandes centros. A crescente necessidade de iconografia das cidades aproximou a noção de paisagem ao urbano, pois havia a urgência de interpretar e representar esses espaços. Um pouco mais tarde, no começo do século 20, a Escola de Quioto, a partir de Nishida (1870-1945), propunha a experiência do mundo a partir da tradição zen-budista. Nishida pretendia “unir num campo originário o que a modernidade separou: o sujeito e o objeto, a matéria e o espírito, o eu e o universo”, subvertendo a divisão descartiana
Já em 1975, Émile Aillaud definiu os grandes conjuntos habitacionais como lugares onde ninguém quer morar do eu pensante do mundo sensível. Essa ligação inexorável entre ser humano e mundo exterior tomou amplitude oficial na Conferência de Estocolmo de 1972, através da noção de ecologia, que não só uniria conceitualmente homem e meio ambiente como também atualizaria a agenda política para normas menos imediatistas e racionais, colocando em questão o progresso material e repensando o valor de felicidade pessoal e coletiva. As novas paisagens deveriam, a partir de então, não apenas respeitar a exterioridade da natureza, mas também a subjetividade de seus habitantes. Décadas mais tarde, a importância da interpretação afetiva do ambiente de convivência ressurge com força, agora
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num debate urbano, quando centenas de carros foram incendiados durante manifestações na periferia parisiense, em 2005. Na ocasião, a noção de percepção subjetiva do hábitat humano esteve bastante presente nas análises de urbanistas e filósofos. Muitos deles afirmavam que, apesar de viverem fisiologicamente de forma satisfatória, tais massas suburbanas, em maioria jovens oriundos da imigração, sentiamse discriminadas por morar em lugares sem identidade, sem opções de cultura e lazer e longe do imaginário que suscita uma cidade como Paris. E isso não surgiu de uma hora para outra. Já em 1975, o arquiteto francês Émile Aillaud (1902-1988) previra o mal, ao descrever as torres dos conjuntos habitacionais populares como “grandes casernas separatistas onde ninguém quer morar”. Aillaud observava que a lógica funcional dessas construções não prestigia a carga psicológica da ocupação humana, um certo calor humano, e limita a vida das pessoas a um caráter sanitarista. Com os carros, o próprio ideal moderno de sociedade fora também posto em chamas nas periferias.
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CINEMA E VIDRO
Essa relação entre ocupação territorial na cidade e estruturas de representação de poder em um sistema calcado em automóveis, arranha-céus e shopping centers, está permeando a produção recente do cinema pernambucano. O documentário Um lugar ao sol (2009), de Gabriel Mascaro, coloca em questão o desejo pela verticalização das cidades a partir do olhar dos moradores de coberturas. Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho, faz um bem-humorado paralelo entre as inexplicáveis baixas temperaturas que teriam chegado à cidade com a frieza social da vida em torno de altos prédios e centros comerciais. Mendonça também é autor do longa O som ao redor (2012), que sugere que a paisagem do presente urbano de Pernambuco reflete o passado rural escravocrata da região. Um coletivo de cineastas lançou, em 2011, o filme [projetotorresgêmeas] sob o mote das duas torres de luxo construídas num bairro histórico do Recife, sem interação com o entorno, simbolizando o violento processo de avanço imobiliário em curso. Vale ressaltar ainda os filmespílulas do site Vurto, e os curtas O Menino Aranha (Mariana Lacerda), Praça Walt Disney (Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira) e Velho Recife novo (coletivo Contravento). Na arquitetura, um dos elementoschaves dessa discusão é a utilização do vidro como material privilegiado nessas torres de luxo. Material versátil na forma e admirado pela transparência, o vidro é, no entanto, incapaz de amenizar a temperatura do sol bravio da região. O resultado é o aumento do calor nas grandes áreas envidraçadas, que demanda equipamentos de refrigeração potentes e um consumo de energia incompatível com os atuais valores ambientais: “O vidro é melhor para a vista e para o conforto. Só não o coloca quem não tem dinheiro”, defende (em reportagem do Diario de Pernambuco, de 2010) o arquiteto Jerônimo da Cunha Lima, que assina o projeto das torres gêmeas e outros grandes empreendimentos da cidade. Involuntariamente, o arquiteto nos coloca outra questão fundamental: a formação da paisagem, sobretudo numa cidade como o Recife, não é só simplesmente pessoal, subjetiva e estética; é também social. O dinheiro
4 CAIÇARA Edifício histórico “atrapalhava” a especulação imobiliária em área nobre e foi parcialmente demolido 5 DIMENSÕES Torres gêmeas contrastam com a escala do bairro em que se instalaram, em projeto executado à revelia da opinião pública
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paga a bela vista sobre o mar azul, os vidros, o ar-condicionado, os altos muros e o carro importado, em detrimento de uma lógica mais sustentável de cidade. Em sua história, a arquitetura local buscou respostas mais compatíveis com o clima tropical: “Criar sombras, recuar paredes, vazar muros (colocar cobogós, elementos que permitem a iluminação e a circulação do ar), proteger as janelas com beirais, abrir as portas, continuar os espaços e permitir a convivência com a natureza são alguns dos ensinamentos da antiga Escola Pernambucana de Arquitetura, hoje praticamente em desuso”, lamenta a jornalista Tânia Passos, na mesma reportagem. Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi estão entre os nomes de frente da Escola Pernambucana de Arquitetura, que há 50 anos encontraram soluções de ventilação e iluminação para os projetos desenvolvidos no Recife, capazes de adaptar princípios da modernização à realidade local. “Trabalhemos no sentido de uma arquitetura livre e espontânea, que seja uma clara expressão da nossa cultura e revele
uma sensível apropriação de nosso espaço; trabalhemos no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contínua, vigorosa, acolhedora e envolvente, que, ao nos colocar em harmonia com o ambiente tropical, incite-nos a nele viver integralmente”, defende Armando de Holanda, em seu livro Roteiro para construir no Nordeste, sobre a corrente recifense da arquitetura moderna.
ESPAÇOS DE LAZER
O problema é que as mesmas tendências do mercado imobiliário dirigidas a esse público que “pode pagar pelo ar-condicionado” também definem as diretrizes urbanísticas das cidades. São as construtoras que ditam as regras, atropelando planos diretores e leis ambientais, projetando a cidade para atender apenas tendências de mercado. O resultado disso é um visível descaso com os espaços públicos pelos órgãos responsáveis e a consequente desvalorização desses lugares pela população. Quando tais espaços não apresentam qualidade, como manutenção, segurança, estética, boas condições de uso e harmonia ambiental,
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a população não vê aquele lugar pouco convidativo como seu, pois sua percepção dele carece de vínculo afetivo inerente à representação mental do ambiente por onde transitamos. Por isso, não luta por ele. Para o urbanista Kevin Lynch, essa identidade afetiva com a imagem de cidade nos liga mais uma vez ao conceito de paisagem, pelo processo mental de interação do indivíduo com o meio ambiente, que se dá através de mecanismos perceptivos e cognitivos. Para ele, paisagem está inerentemente ligada ao bem-estar do homem, por sua qualidade visual de legibilidade, imaginabilidade (capacidade de provocar forte impressão sobre o observador) e, finalmente, identidade. Tais efeitos emocionais também são explorados pelo arquiteto inglês Gordon Cullen, que aponta que a paisagem é construída a partir das experiências do observador, levando em consideração as sensações óticas e estéticas em movimento durante os deslocamentos, provocando emoções diferentes a partir da posição física e mental do observador em relação ao ambiente.
O espaço futuro deve considerar as necessidades de todos que nele habitam, e não apenas tendências de mercado Sentimentos como pertencimento, proteção, territorialidade e domínio foram também levados atualmente à tona pelas manifestações de Ocupação (Occupy) em diversas cidades do mundo, tendo no Recife o #ocupe estelita, contra o projeto Novo Recife, como exemplo mais significativo. Os manifestantes apontam o dedo contra tal megaempreendimento numa área de cerca de 10 hectares no coração da cidade, que representa tendência de privatização de um espaço de grande interesse público, além de marcar claramente mais uma fronteira na cidade ou, como diz Lynch, um limite visual desagregador na área. Um paredão de 13 torres de 40 andares tornará o bairro histórico de São José
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em simples pano de fundo, dificultando sua percepção e atratividade. Diante da expansão imobiliária, fenômeno normal no mundo inteiro e em todas as épocas, não se deve apenas ater-se ao impacto material que ele deflagra, mas também na possível destruição de valores afetivos que delineiam a leitura da cidade por seus usuários. A identidade e o patrimônio de um povo não se encontram apenas nas paredes de suas ruínas, mas no olhar que se renova a cada esquina, na construção contínua da paisagem entre o espaço físico e o mental. Derrubar um galpão já sem uso talvez não seja um grande problema, se for para surgir em seu lugar um espaço capaz de criar condições agregadoras para que a população o tome para si, numa espécie de posse subjetiva e visual que une cidade e identidade. Prédios podem conviver com parques, bibliotecas, comércio de proximidade. O espaço futuro pode ser construído de forma equilibrada, tomando em consideração necessidades objetivas e subjetivas de todos aqueles que olham para o horizonte.
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MONTAGEM A PARTIR DE FOTOS DE DIVULGAÇÃO
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MONTAGEM Quando duas imagens são três A complexa técnica de juntar o quebra-cabeça de cenas é o principal pilar de um filme, mas sua importância quase sempre passa despercebida pelo grande público de cinema TEXTO Marcelo Pedroso
Muitos são os teóricos e as teorias da
montagem. Entram frequentemente em choque, filiam-se a espectros ideológicos antagônicos, movidos por fundamentos estéticos, políticos, os mais diversos. Em meio aos arames farpados dessas trincheiras, vem-nos de Jean-Luc Godard, numa conversa que manteve com Régis Debray para a Cahiers du Cinéma, uma sucinta consideração sobre este que é um dos princípios elementares do cinema: “Não há imagem, há imagens. E há, sim, uma certa forma de organização das imagens: sempre que há duas, há três. É o fundamento do cinema”, afirmou o realizador francês, numa tradução livre. É justamente essa terceira imagem de Godard que nos interessa: a imagem que nasce quando duas outras se juntam. Pois não se trata propriamente de uma imagem – ou, ao menos, não de uma imagem com dimensão material, que tenha corpo físico no mundo como as duas anteriores a que ele se referiu. Uma imagem mental, então? Talvez, mas poderíamos falar também de um efeito de imagem: da terceira imagem
Béla Balázs define a montagem como um artifício “graças ao qual apreendemos coisas que as imagens não mostram” enquanto elemento intangível que não vemos objetivamente, mas que, de alguma forma, se faz ver. Trata-se de descortinar, via Godard, o princípio propriamente estético da montagem, ligado à nossa faculdade de perceber, de sentir. Pois é somente dessa forma que nos é dada a possibilidade de enxergar a terceira imagem, aquela que nasce da colisão, como num choque entre partículas. Assim, Béla Balázs (1930) se refere à montagem como um artifício “graças ao qual apreendemos coisas que as imagens não mostram”. De seu lado, Jean Mitry (1963) fala de uma “associação, arbitrária ou não, de duas imagens que, relacionadas uma com a outra, determinam na consciência que
as percebe uma ideia, uma emoção, um sentimento estranho a cada uma delas isoladamente”. Esse sentimento estranho a cada uma das imagens isoladamente guarda ligação direta com o pressuposto da terceira imagem godardiana. Referese também a um entendimento de montagem que começou a ser posto em prática – e concomitantemente teorizado – por cineastas e pensadores da vanguarda russa, muito atuantes na década de 1920. Podemos observá-lo, por exemplo, num dos mais famosos experimentos de montagem, que resultou no chamado “efeito Kuleshov”. O experimento consistia numa sucessão simples de cortes. Uma mesma imagem, em que se via o rosto de um ator com expressão relativamente neutra – ou talvez simplesmente curioso, interessado – era alternada com outros planos: o de um caixão com uma criança, o de um prato de sopa e o de uma mulher bonita deitada sobre um divã. Apesar de o quadro do rosto do ator permanecer rigorosamente inalterado (tratava-se
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CON ESPECIAL TI NEN TE efetivamente do mesmo take, com a mesma duração), sempre que ele era posto em contato com outra imagem, o rosto parecia se transfigurar e adotar uma expressão ligada à situação hipoteticamente observada pelo ator. Dessa forma, quando o rosto do ator olhava para o prato de sopa, tinha-se a impressão de que ele apresentava uma expressão de fome. Assim como, ao olhar para o caixão da criança, parecia se entristecer e, finalmente, demonstrava desejo ao observar a mulher deitada no divã. O experimento, que foi conduzido pelo cineasta Lev Kuleshov, baseiase numa sintaxe elementar da montagem, que é a noção do plano subjetivo confrontado ao reaction shot. Trata-se de mostrar uma imagem em que assumimos o ponto de vista do personagem (o tal plano subjetivo: no caso aqui uma criança morta, um prato
de comida e uma mulher sensual) e, em seguida, cortar para a imagem do personagem que observa aquela cena ou objeto (o reaction shot). O que o cineasta russo conseguiu demonstrar é que as imagens, quando postas em contato, têm a curiosa propriedade de se contaminarem mutuamente. Significa que são capazes de criar uma zona de interseção que não está localizada na materialidade da tela, mas na percepção que temos delas. Assim, a imagem deixa uma espécie de rastro sobre a outra, untando-a de um tipo particular de verniz que transforma e afeta sensivelmente sua natureza.
QUASE ALQUIMIA
Discorrendo sobre montagem, o cineasta Robert Bresson refere-se justamente a isso. Ele fala de uma arte graças à qual “uma imagem se
transforma ao contato de outra, como uma cor quando em contato com outras cores”. Pois parece tratar-se bem de um processo quase alquímico de transformação. Como um pintor que seleciona as matrizes cromáticas que vai misturar para obter o exato tom de cor que deseja, o montador organiza a intensidade das imagens que manipula, justapondo-as, separandoas, confrontando-as. São muitas, aliás, as possibilidades de analogia da montagem com outras artes. Serguei Eisenstein, cineasta notável não apenas por seus filmes, mas também por suas reflexões teóricas sobre o cinema, desenvolveu um protótipo de classificação dos tipos de montagem segundo um arcabouço de parâmetros quase inteiramente baseados em princípios musicais. Assim, ele distingue, por exemplo, a montagem rítmica da tonal,
MONTO, LOGO EXISTO Recife e Brasília sediaram,
neste segundo semestre, a Mostra de Cinema de Montagem: uma preciosa seleção de filmes e debates que motivou algumas das reflexões trazidas nesta matéria. O evento foi organizado pela edt. – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual. Fundada no Rio de Janeiro, a entidade é uma iniciativa voltada para a representação dos interesses da categoria, principalmente ligados à melhoria das condições de trabalho, e já conta com mais de 170 associados. No Recife, uma iniciativa semelhante começou a tomar corpo há cerca de dois anos, mas ainda não resultou na formalização de uma entidade. O grupo pretende fundar uma entidade semelhante à edt. do Rio. Em sintonia com o esforço dos montadores pernambucanos de se agrupar numa representação, convidamos profissionais para falar sobre sua atividade. M.P.
“Durante a filmagem de Cinema, aspirinas e urubus, Marcelo Gomes me chamou para a locação, no interior do sertão paraibano, me trancou num quarto de hotel e me fez assistir a 28 horas de material bruto. Depois de algumas horas, nas quais eu só tinha visto cenas de interior do caminhão, ele queria saber se o filme montava. Fiquei insegura, mas disse que sim, o filme montava. Algum jeito haveria de ter. Lembro que, na ilha de edição, ficamos procurando o início do filme durante muito tempo. Experimentamos várias coisas. Quando o início finalmente apareceu, junto com a música, a impressão era de que ele sempre esteve ali, que não podia ser de outra forma, era parte orgânica do filme. Mas, por algumas semanas, o plano inicial tinha sido descartado e o filme o chamou de volta.” KAREN HARLEY, sobre Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005)
“A primeira sequência de Tchau e bênção se encerra com um plano muito próximo do homem tomando banho (plano 1). Ele está imóvel e deixa a água cair sobre o corpo. A segunda se inicia com o plano também fechado de uma roda de carro em movimento (plano 2). Se, no plano 1, o homem está virado para a esquerda, no plano 2, a roda em movimento corre para a direita: o carro está a caminho do homem. O corte seco sugere um encontro nada agradável: o som de água caindo dá lugar ao do pneu sobre o asfalto e os sons da cidade. Tentando traduzir esse corte para o português: esse homem está se preparando para um conflito duro. É um conflito inglório e implacável, e é apenas uma questão de tempo para que ele o encare. A natureza do conflito será esclarecida logo a seguir, numa escalada de informações em que cada novo corte terá sua função.” DANIEL BANDEIRA, sobre Tchau e bênção, que dirigiu e montou em 2009
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descrevendo modos de se combinar fragmentos de filmes orientado pela percepção da narrativa fílmica com base na estrutura de uma composição musical, levando em conta aspectos como ritmo e tom, próprios da música, que são transportados para as imagens. Eisenstein, um dos defensores da proeminência da montagem sobre outros recursos do cinema, foi pródigo em criar analogias para descrever o método de associação de imagens dentro de um filme. Em outra delas, ele compara a montagem a um motor movido à explosão: assim como os choques entre as partículas de combustível provocam a expansão do pistão, que faz girar o eixo e que, por sua vez, dá movimento ao carro, seria o choque entre as imagens no interior da narrativa que impulsionaria o funcionamento de todo o filme.
Acontece que, no fluxo do cinema, em que há centenas ou às vezes até milhares de cortes e de imagens, nós, muitas vezes, não percebemos racionalmente a montagem. Embora ela possa ser considerada, ainda segundo Eisenstein, o “nervo” do filme, muitas vezes se deixa – até intencionalmente – apagar, tornandose invisível. Isso acontece, na verdade, não apenas com a montagem, mas também com outros elementos que compõem a narrativa fílmica. Existe, por exemplo, um postulado comumente evocado segundo o qual uma trilha sonora boa é uma trilha que não escutamos. Segundo essa atitude, uma trilha bem- resolvida deveria estar tão organicamente associada ao filme, tão harmoniosamente cúmplice da narrativa e compondo de maneira tão eficiente as atmosferas dos diferentes momentos, em diálogo
com os personagens e as situações, que nós não a notaríamos. Ou, dizendo de outra forma, que se acontecesse de chegarmos a um estado perceptivo em que, de tão absorvidos pelo filme, não notássemos a trilha sonora, isso significaria que ela teria cumprido da forma mais bem-acabada seu papel dentro da narrativa, apagando-se em favor do filme. Seria esse mesmo princípio aplicável à montagem? Não gosto muito de pensar assim – aliás, nem para uma coisa nem para outra. Entendo a reivindicação da “invisibilidade” dos recursos do cinema – seja a música, a montagem, fotografia, atuação etc. – como uma tentativa de combater excessos indesejáveis – e até bastante comuns – em que os elementos do filme parecem brigar entre si, querendo se sobrepor aos demais, chamando
“O material bruto do Acercadacana era cheio de planos longos, em que o inesperado sempre aparecia, ‘intensificando’ a imagem do documentário. Em um desses takes, eu e Felipe Peres estávamos com uma grande dúvida: como e onde cortar a sequência, um embate entre dona Francisca e os seguranças da usina. Assistimos várias vezes e decidimos o momento ideal: dona Francisca perguntando onde estava a imagem, com os vigias apontando armas de fogo, que registrava as ameaças que ela vinha sofrendo. Pronto! Daí, cortamos e abrimos uma sequência que indicava a última escala do isolamento vivido por aquela senhora, em uma casa rodeada por canaviais: um take em que até o céu, única informação na imagem que conseguimos ver por cima da barreira de cana, não parece apontar para um novo horizonte.”
“Desde a primeira vez que vi o material, senti a necessidade de juntar esses planos. Sérgio, empregado que mora na casa de uma família e que não vê o filho faz anos, não esconde a sua ansiedade com a proximidade do Natal. Nós vemos a família da patroa pulando em volta do nosso personagem, e cortamos para Sérgio, comendo em pé, fora da mesa da família. Não suportando a pressão da câmera filmada pela adolescente, ele sai pra tentar um pouco de privacidade no quintal. A justaposição evidencia uma falsa esperança de felicidade através do afeto, para a realidade dura de não pertencer àquela família. Esse corte representa bem a montagem de Doméstica, em que parte da nossa experiência afetiva pessoal nos faz rir das excentricidades familiares, mas é desmascarada pela consciência do poder de quem segura a câmera. E essa justaposição de emoções, ao invés de nos prender no filme, nos faz refletir sobre o que vemos decorrer na tela.”
“No curso de Artes Cênicas aprendi a reconhecer as sutilezas no trabalho do ator, não por simples ‘achismo intuitivo’, mas fundamentado em Stanislavski e seus pares. Somente quando estive em um set de filmagem pela primeira vez, entendi que não era ali o meu lugar. Eram muitos músicos e instrumentos para este não maestro. No jargão do teatro, quando um espetáculo vai ser realizado, diz-se que vai se montar uma peça. Encontrei aí o elo que me fez estar hoje montador de filmes. Por isso exerço meu ofício defendendo com afinco a melhor atuação. Por exemplo, no filme Quinha, escolhemos usar um plano no qual o foco está doce, porque temos certeza de que esse é o melhor da atriz. Não me incomoda se o movimento da câmera não está retilíneo, linear, uniforme, desde que o ator esteja orgânico e visceral. O público deseja crer. E é para o deleite deste, no qual me incluo, que trabalho.”
PAULO SANO, sobre Acercadacana (Felipe Peres Calheiros, 2010)
EDUARDO SERRANO, sobre Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012)
JOÃO MARIA, sobre Quinha (Caroline Oliveira, 2013)
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CON ESPECIAL TI NEN TE REPRODUÇÃO
1 LEV KULESHOV No experimento proposto pelo cineasta russo, percebemos como a mesma imagem do personagem ganha conotação diferente a partir da imagem que ele “olha”
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mais a atenção. Nesse sentido, tornase algo bastante apropriado e até desafiador conceber que os elementos podem, justamente ao desaparecer, atingir um regime de perfeição. Porém, de um modo geral, quando não se trata de uma disputa ruidosa, parece-me aceitável que trilha sonora, montagem ou qualquer outro recurso ganhe mais relevo em determinado momento do filme, contanto que aquilo faça sentido para a narrativa. Um pouco como, pegando carona nas metáforas musicais de Eisenstein, uma orquestra sinfônica executa uma composição alternando momentos em que uns ou outros instrumentos protagonizam calculadamente cada trecho do conjunto.
Mas o curioso é que o debate específico sobre uma montagem mais ou menos “invisível” se liga diretamente a uma dicotomia que marcou os estudos sobre cinema e se intensificou nos anos 1970, que se refere à oposição da opacidade e da transparência. As duas lógicas se enfrentam justamente numa concepção de representação mais ou menos declarada ou evidente – e a montagem atua fortemente na construção desses efeitos. No cinema que se reconhece enquanto artifício, enquanto discurso e construção assumidamente ideológica, o da opacidade, a montagem tende a se destacar, a encampar o conflito, permitindo-se manobras de descontinuidades, de ruptura,
reconhecendo-se – e se mostrando –, abertamente, como instância reguladora e organizadora das imagens e sons. Bem diferente do cinema da transparência, aquele do ilusionismo, que se coloca como uma espécie de extensão não mediada do mundo, com o qual reivindica uma continuidade pura e natural: nele, a montagem precisa ser discreta, quase oculta. Ver e dar a ver, mostrar e se mostrar. São equações essenciais ao cinema, esse instrumento permanente de negociação de visibilidades que tem na montagem um de seus grandes aliados. E Godard não diz outra coisa: “a montagem é aquilo que faz ver, aquilo que torna a imagem dialética”, afirma, ainda em sua conversa com Debray.
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AnĂşncio
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Claquete
POPULAR Coração e lentes sobre o brega
Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro, trata do universo colorido e estridente do gênero musical, colocado à margem pela elite cultural TEXTO André Dib
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desmerecer o núcleo masculino de atores, formado por Leo Pyrata, Samuel Vieira, Rodrigo Garcia, Dedesso, Everton Gomes, Paulo Michelotto e Rodrigo Rizla. Mas de reconhecer a entrega e maestria com que Maeve encarna Jaqueline; a leveza e naturalidade com que Nash vive Shelly. No descompasso e tentativas de superação das duas personagens está a grande força do filme. As protagonistas fazem parte da banda Amor com Veneno, cujo empresário a administra dentro da cartilha da exploração capitalista: muito trabalho, salários baixos e condições sub-humanas. A princípio, isso não parece uma questão para as garotas. No entanto, conforme mapeia essa realidade, o filme justifica a amargura etílica e sem perspectiva de Jaqueline, que Chelly, no frescor dos 20 anos, sente, mas não consegue entender. O elogio ao brega se faz presente em Amor, plástico e barulho dos cenários ao figurino, do som estridente aos diálogos, que reproduzem o imaginário popular. Se o mundo brega é cruel, é também colorido e
O filme defende a tese de que a cultura brega incomoda não por motivos culturais, mas sociais. É música do povo À revelia das ilusões afetivas ou
profissionais sustentadas por seus protagonistas, o filme Amor, plástico e barulho inicia com um episódio nada romântico. No banheiro de uma casa de shows da noite brega recifense, duas garotas vomitam nas instalações sanitárias, para então, cúmplices, retocar a maquiagem e voltar para a festa. Bêbadas, mas sem perder a pose. Eis a sórdida síntese com que a diretora Renata Pinheiro antecipa a mistura de purpurina e mal-estar promovida por seu primeiro longa de ficção, lançado em setembro, no 46º Festival de Brasília. Amor, plástico e barulho saiu da mostra competitiva de Brasília com sua maior riqueza reconhecida, o trabalho com
as atrizes Maeve Jinkings e Nash Laila – além do justo prêmio de melhor direção de arte para Dani Vilela. Apesar dessa divisão não ser tão clara na dinâmica do elenco, Maeve e Nash ganharam os prêmios de melhor atriz principal e coadjuvante, talvez mais como reflexo dos papéis que representam, respectivamente, uma cantora estabelecida no star-system local e uma aspirante que ambiciona a fama, já que os papeis são de igual importância para o equilíbrio narrativo da produção. A doce vida dos profissionais do brega também é dura, diz o filme de Renata. O ponto de vista é o das mulheres, que colocam corpo e voz na linha de frente. Não é o caso de
estimulante. Ou seja, um prato cheio para Renata Pinheiro, que vem de uma trajetória de destaque como diretora de arte, sendo o ótimo trabalho no longa Tatuagem, de Hilton Lacerda, o seu mais recente. Renata demonstra competência, principalmente nas contagiantes sequências musicais, em que a própria câmera faz parte das coreografias, em bonitas tomadas de torpor e fantasia.
TESE DEFENDIDA
A dimensão política do filme está em defender a tese de que a cultura brega incomoda não por motivos culturais, mas sociais. É a música do povo, daí sua rejeição por elites de qualquer espécie. Isso fica claro na
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muito a proximidade com a cantora Michelle Melo, que foi supergenerosa, me levando a seus shows, trocando torpedos e e-mails, me dando um acesso muito pessoal ao universo da mulher no brega. Os personagens nascem aí, nessa ponte com pessoas, inclusive com a gente mesmo, enquanto ser no mundo.
Claquete Entrevista
MAEVE JINKINGS “SE O ATOR NÃO ESTÁ BEM, TODA A MAGIA SOME” Sem dúvida, a atriz Maeve Jinkings vive uma ótima fase. Ela, que estreou no cinema dirigida por Carlos Reichenbach, atua em importantes filmes da recente safra pernambucana, um deles, O som ao redor, o indicado brasileiro ao Oscar. Não bastasse, acaba de ter o seu trabalho reconhecido em um dos festivais mais conceituados do país. Antes de se mudar para o Recife, viveu em Brasília, Belém e São Paulo. Entre os novos projetos, estão atuações em Loja de répteis, curta de Pedro Severien, e Seu Cavalcanti, curta de Leonardo Lacca. Além disso, ela se lança como preparadora de elenco em Animal político, de Tião e Nara Normande. Maeve conversou com a Continente sobre seu atual momento e sobre os novos projetos. CONTINENTE Seu primeiro prêmio como atriz foi oferecido em Brasília, sua terra natal. O que significou esse momento? MAEVE JINKINGS Foi muito bonito porque é o festival que mais admiro, o mais antigo e mais político do país, não consigo imaginar prestígio
maior. Falei isso no palco, que levava muita gente dentro do peito. Em milésimos de segundos passa um filme na cabeça, sobre as dificuldades de ser ator no Brasil. Mas, afinal, estava ali celebrando nosso ofício, no meio de pessoas que admiro. Além disso, Brasília foi o lugar onde estreei meu primeiro filme, Falsa loura, de Carlos Reichenbach, que foi uma espécie de pai. Ele me pariu no cinema. O prêmio também foi importante pra minha família que, às vezes, tem dificuldade de entender minhas escolhas, mas que sempre me apoia muito. CONTINENTE Seu trabalho em Amor, plástico e barulho confere profundidade dramática na representação de artistas do brega. Como foi o processo para chegar à Jaqueline? MAEVE JINKINGS Do ponto de vista dramático, até aquele momento, foi a personagem mais exigente que já tive a chance de viver. Então, estudei muito. Foi um amadurecimento em meu processo de trabalho. Além de todo nosso estudo com Amanda Gabriel (preparadora de elenco), fiz aulas de canto com Pedro Martins e de dança com o elenco. Mas tinha um elemento que me preocupava, a relação de Jaqueline com o álcool. Como tratar disso com humanidade, sem cair em clichês? Fui conversar com mulheres dos Alcoólicos Anônimos e do Narcóticos Anônimos, que me contaram detalhes de suas vidas, do impulso autodestrutivo, de suas lutas contra si mesmas. Também me ajudou
CONTINENTE Que qualidades específicas o cinema exige na ação dramática? MAEVE JINKINGS Deixar-se afetar pelo mundo, pelas pessoas. Gente é bicho, então, biológica e culturalmente, tentamos esconder nossas fragilidades, pois nos deixam vulneráveis. O ator precisa ser forte o suficiente para estar completamente sem defesa para os vetores que afetam o homem no mundo. Ao mesmo tempo em que, como artista, consciente desses vetores, perceber qual a melhor forma de desenhar isso no corpo e na subjetividade do personagem. CONTINENTE Qual a relação entre o trabalho feito em Falsa loura com tudo que veio depois? MAEVE JINKINGS Continuo fazendo um cinema muito autoral, com pessoas apaixonadas. Houve um período de quatro anos entre Falsa loura e O som ao redor. Nesse período, fiz muito teatro de grupo, um pouquinho de TV, mas acho que o mais importante foi ser a fase da minha vida em que mais me preocupei em pensar as minhas escolhas, o ofício do ator, a condição solitária do artista e de que forma quero lidar com isso. CONTINENTE O que o trabalho nos filmes pernambucanos acrescentou à sua percepção sobre cinema? MAEVE JINKINGS Posso dizer que o cinema pernambucano me formou como atriz de cinema. Tem sido uma segunda faculdade: na prática, com escolhas que ficam eternizadas. Porém, mais do que como atriz, o cinema de Pernambuco me afeta como cinéfila, como agente do cinema. Tive a sorte de chegar aqui e conhecer uma galera que pensa o cinema de forma muito ativa, dialogando com o que está sendo feito no mundo. CONTINENTE Você estudou Comunicação e, quando criança, queria ser veterinária. Quando surgiu a vontade de ser atriz?
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FOTOS: ANTONIO MELCOPE/ DIVULGAÇÃO
MAEVE JINKINGS Eu era ainda criança, aos 10 anos. Não lembro exatamente quando isso surgiu, mas foi na relação com cinema e TV, pois em Belém não havia um movimento muito forte de teatro. Gosto de pensar que sou atriz para ser um tipo de bióloga, antropóloga, musicista, desenhista, fotógrafa... Tudo que me provocou durante a vida, mas que por alguma razão não realizei profissionalmente. Aí, juntei tudo num só ofício, o do ator. CONTINENTE Como lida com a possibilidade de O som ao redor ser indicado ao Oscar? MAEVE JINKINGS Honestamente, tenho crises de riso. Pode ser nervosismo, ou simplesmente a imagem de Kleber Mendonça andando sobre o tapete vermelho usando um smoking, cheio de flashes. Pode ser bobo de minha parte, mas acho muito engraçada essa imagem. Fora isso, fico muito feliz (já estou), porque dá outra camada de visibilidade para o filme, que foi feito sem contar com essa possibilidade de promoção. CONTINENTE Em Brasília, dos 10 prêmios concedidos a filmes pernambucanos, três foram para atrizes: Maeve Jinkings, Nash Laila e Rita Carelli. Como vê esse reconhecimento? MAEVE JINKINGS Vejo sempre o trabalho do ator como o ingrediente final e sutil de uma química que precisa dar “a liga”. Às vezes, assisto a filmes com roteiro, fotografia e direção de arte incríveis. Mas, se o ator não está bem, toda a magia desaparece e começo a “ver” a maquinaria atrás da câmera. Estamos todos amadurecendo juntos, produzindo mais e nos desenvolvendo a cada novo trabalho. E isso acontece em todas as funções. Também tenho a sensação de que estamos conseguindo fazer um trabalho colaborativo no qual o ator tem espaço para, dentro dos limites de seu ofício, propor mais dentro do set. Uma relação onde nos sentimos parte do processo e assim podemos ousar mais como artistas do corpo.
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forma pouco sutil com que cenários do “Novo Recife” são incorporados ao filme, como o Shopping RioMar (rebatizado RioMangue) e suas torres comerciais, o empresarial JCPM, pontos turísticos como o Parque das Esculturas ou o passeio de catamarã pelo Rio Capibaribe. Ricos também são excessivos e ostentam mau gosto, aponta a narrativa. A trilha sonora, composta por Yuri Queiroga e Hélder Aragão (DJ Dolores), radicaliza o conceito do filme ao se impregnar do gênero musical e, por vezes, promover releituras artísticas. Uma, em especial, evidencia de forma curiosa que o preconceito contra o brega não é de ordem estética. Durante um número romântico, a
1 NASH LAILA Atuação rendeu-lhe prêmio de atriz coadjuvante no Festival de Brasília DIREÇÃO 2 Renata Pinheiro (à esq., de boné) com elenco em filmagem na Praia do Pina, no Recife
música muda de uma levada brega para um arranjo mais próximo a disco music dos anos 1970. O resultado é eletrizante, sendo praticamente a mesma música. Vídeos do YouTube e programas televisivos são outros elementos que dão sentido político à obra, que busca refletir a forma violenta com que símbolos do consumismo são incorporados por meios desprovidos de outras fontes educativas ou de
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INDICAÇÕES ANTONIO MELCOP/ DIVULGAÇÃO
SUSPENSE
DRAMA
Direção de Steven Soderbergh Com Jude Law, Rooney Mara, Chanin Tatum Paris Filmes
Direção de Michel Franco Com Tessa Ia, Hernán Mendonza, Gonzala Veja Sisto Imovision
TERAPIA DE RISCO
Claquete 3 CONCEITO
A direção do filme o concebeu entre o dramático, o experimental e o musical
informação. Uma lógica que recai inclusive sobre o corpo, principal mercadoria a ser valorizada, usada pelas próprias mulheres como moeda de troca. “Elas vivem essa realidade e nos aproximamos dessa busca pela beleza e juventude como algo que faz parte de qualquer show business. De qualquer forma, não há inocência nessas mulheres, elas têm consciência do poder de seus corpos e são donas dos seus destinos”, diz Renata. “Se formos ver por outro lado, o mundo já foi muito mais moralista e fez com que a mulher escondesse seu corpo e sua sensualidade. Eu prefiro os dias de hoje.” A diretora encontra na cultura brega liberdade e autovaloração sem preconceitos ou moralismos, além da capacidade de existir de forma alheia à cultura oficial. Com Amor, plástico e barulho, ela se torna a primeira mulher no Recife a realizar um longa de ficção. Sobre sua estreia no
DEPOIS DE LUCÍA
Emily, uma designer com histórico de depressão, é casada com Martin, um investidor de mercado imobiliário que foi solto da prisão. A relação dos dois não é mais a mesma e ela se rende à ajuda de um psiquiatra que prescreve um remédio que motivará situações estranhas. Esse thriller explora a indagação sobre as doenças psicológicas que assolam a sociedade, a partir de um olhar cinematográfico equilibrado perfeitamente entre o comercial e o autoral.
Após a morte da esposa, Roberto e sua filha Alejandra decidem se mudar para a cidade grande. De luto, os dois escolhem maneiras de se desvencilhar do passado, mas não será tão fácil. No novo colégio, a menina não é bem-recebida sofrendo bullying, enquanto o pai se abandona à incivilidade. Esse filme mexicano, ganhador da mostra Um Certo Olhar em Cannes, de 2012, retrata, em cores frias, a influência da invasão da violência na individualidade humana.
DOCUMENTÁRIO
FICÇÃO CIENTÍFICA
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formato, diz que “é preciso vencer os medos. Me senti preparada para este desafio. Tenho formação em teatro, atuei como atriz em espetáculos, em artes plásticas, em que realizei diversas exposições no Brasil e no exterior. Ingressei no cinema muito naturalmente, levando essa bagagem que já faz parte de mim”. Renata e seu companheiro Sérgio Oliveira (produtor e roteirista) conceberam um filme que transita entre o experimental, dramático e musical, unindo imagens e texturas díspares. Ao almejar a arte, propor reflexão e se comunicar com público – a reação da plateia em Brasília foi um bom termômetro –, Amor, plástico e barulho se torna obra atípica no atual cinema nacional que, para conseguir o seu quinhão de espectadores, tem produzido comédias rasas, apelativas e calcadas em celebridades televisivas. O resultado pode render dinheiro a alguns, mas é artisticamente desastroso. Cabe ao cinema independente encontrar um caminho viável.
O POVO BRASILEIRO Direção de Isa Grinspum Ferraz Versatil
Baseado no livro homônimo e renomado do antropólogo Darcy Ribeiro, o filme retrata a sociedade brasileira, mapeando, através de cinco povos, a formação da nação. O documentário explica, com imagens gravadas pelo próprio escritor, a origem da supressão de raças em detrimento da cultura do conquistador português, mostrando as raízes da desigualdade social, do jeitinho brasileiro e das perspectivas de futuro a partir de um olhar diferenciado.
STAR TREK – ALÉM DA ESCURIDÃO Direção de JJ Abrams Com Chris Pine, Zachary Quinto, Benedict Cumberbatch Paramount Pictures
Um longa visualmente impressionante, considerado melhor do que o primeiro da franquia inspirada na série dos anos 1960. Ao enviar a nave Enterprise para um missão num planeta primitivo, o Capitão Kirk descobre uma força de terror dentro da sua própria organização que deixa o mundo em crise, desencadeando um épico jogo estratégico de vida e morte para capturar um homem que é a própria arma de destruição em massa.
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ALESSANDRO SOAVE/DIVULGAÇÃO
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ILUMINAÇÃO Para trazer beleza e significação à cena
Recurso técnico é um dos elementos cruciais de construção do discurso cênico, embora ainda existam poucos cursos de formação na área TEXTO Pollyanna Diniz 1
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ADRIANA MARCHIORI/DIVULGAÇÃO
1- 2 BEM-INTENCIONADOS O espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba teve sua iluminação criada por Nadja Naira GRUPO MAGILUTH 3 Na peça Aquilo que o meu olhar guardou para você, a iluminação é toda portátil
4 LANTERNAS DE LED Em Corpo-massa: pele e ossos, Saulo Uchôa utiliza o aparato para iluminar a cena
BERNARDO CABRAL/DIVULGAÇÃO
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Na Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, a criação da iluminação de um espetáculo começa pela palavra. Com perguntas que talvez pareçam muito simples, mas que só de longe dão essa impressão, e acabam por determinar todo o desenrolar da peça: como contar uma história? Estabelecer um diálogo efetivo, uma relação com o público? Para o grupo, um dos mais importantes do país no que se refere à experimentação de uma linguagem contemporânea, inclusive montando textos de dramaturgos pouco conhecidos pelos brasileiros, a luz de um espetáculo não pode ser idealizada depois que todo o resto da encenação já está pronto.
“Tudo acontece ao mesmo tempo, desde o dia em que vamos ler o texto, se for uma dramaturgia pré-existente. Dentro da companhia, não tenho só essa função. Sou atriz, assistente de direção. A gente se apoia e se questiona. Por que estou dizendo o texto daquela forma? Qual a função da luz em determinada cena? As opções estéticas da companhia também são minhas, como de todos os outros”, explica Nadja Naira, atriz, diretora e iluminadora da companhia curitibana. “Antes de ser iluminadora, a Nadja é uma mulher de teatro, tem um pensamento sobre teatro. O trabalho dela sempre traz uma dimensão dramatúrgica. A luz integra o pensamento de um corpus dramatúrgico,
que é o trabalho como um todo, um conjunto de elementos que colocamos em fricção. A luz está no mesmo patamar desses outros elementos, nem maior, nem menor”, explica o diretor Márcio Abreu. Do grupo do qual Nadja faz parte, surgiram algumas das montagens mais instigantes e interessantes dos últimos anos, como Vida, que ganhou o Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Cultura de melhor espetáculo de 2010; Isso te interessa?, que levou tanto o Prêmio Bravo! quanto o APCA São Paulo de melhor peça em 2012; e, a mais recente, Esta criança, que tem Renata Sorrah no elenco e abocanhou cinco categorias do 25º Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro: direção (Márcio Abreu), atriz (Renata Sorrah), cenário (Fernando Marés) e, finalmente, iluminação (Nadja Naira). No processo de trabalho do Magiluth, grupo pernambucano, a iluminação também é pensada ao mesmo tempo que os outros elementos da encenação. Essa realidade é potencializada porque o diretor Pedro Vilela assina a luz das montagens. “Facilita. Posso conceber a cena já sabendo que todos devem estar na contraluz, por exemplo. A luz muitas vezes resolve determinadas cenas”, avalia. Uma curiosidade é que Vilela não é um dos fundadores do Magiluth; ele entrou como convidado para fazer a luz de Corra, primeiro espetáculo do grupo, que estreou em 2007. A iluminação da montagem foi premiada no Festival Riocenacontemporânea, no mesmo ano; e no Festival Internacional de Teatro de Blumenau em 2008. “Eu estava morando em Curitiba, quando recebi o convite. Gosto muito da luz desse
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BRENO CÉSAR/DIVULGAÇÃO
espetáculo porque foi a primeira, de fato, que eu assinei e porque pedia uma edição cinematográfica. Como dar conta de tantas imagens com poucos recursos?”, diz. Desde Corra, todas as concepções de luz do Magiluth são de Vilela, embora pensadas de forma coletiva, como acontece com a dramaturgia, a atuação, o cenário, a música das produções assinadas pelo grupo. Muitas vezes, por conta das condições práticas e operacionais, a luz é vista como um trunfo. “Desde cedo, percebemos a impossibilidade de ter elencos numerosos, cenários grandes. Então, de repente, exploramos com a luz algumas coisas que não conseguimos com o cenário”, afirma Vilela. Em Aquilo que o meu olhar guardou para você, por exemplo, a iluminação é toda portátil. O grupo não depende dos recursos do teatro que vai abrigar a peça e, ao mesmo tempo, essa proposta dialoga com o discurso cênico do espetáculo. “A luz não é ornamento. É o que espetáculo necessita. Em O canto de Gregório, por exemplo, a iluminação é muito simples. Em Viúva, porém honesta,
Para construir uma linguagem estética, o iluminador deve se envolver já nas primeiras decisões sobre a montagem da mesma forma. Sinto que, neste último, o jogo entre os atores está muito ativo, não preciso fazer muitas elaborações para a luz”, explica. A possibilidade de construir uma linguagem estética também com relação à iluminação, trabalhando efetivamente dentro de uma produção desde as primeiras decisões sobre a montagem, como acontece com a Companhia Brasileira de Teatro e o Magiluth, nem de longe é método, ou melhor, rotina de trabalho dos iluminadores no Brasil, mesmo daqueles já consagrados. O carioca Aurélio de Simoni tem 21 prêmios ao longo de 37 anos de carreira. Assinou a iluminação de mais de 600 espetáculos. “A luz é, geralmente, o último elemento que entra no
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espetáculo. De todos esses trabalhos que fiz, conto nos dedos aqueles em que fui chamado desde a primeira leitura do texto. Até com as produções de grupos, também funciona desse modo”, revela. Ainda assim, Aurélio de Simoni mantém um relacionamento estreito com diversos grupos e criadores, entre eles a Cia. Atores de Laura e o diretor Moacir Chaves. “São parcerias que vão se efetivando ao longo dos anos e de muitas criações”, explica. É de Simoni, por exemplo, a iluminação de Duas mulheres em preto e branco, peça dirigida por Chaves, e que tem no elenco a pernambucana Paula de Renor e a gaúcha Sandra Possani. “O próprio Moacir já me dá algumas ideias e eu sei que tenho a responsabilidade de materializar isso com minha técnica e sensibilidade de criação”, explica.
GERAÇÕES
Um dos pioneiros da iluminação cênica moderna no Brasil é o carioca Jorginho de Carvalho, que tem 50 anos de atuação e mais de mil espetáculos no currículo. Quando ele começou, a função de iluminador era delegada aos
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GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO
Palco
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eletricistas. “Jorginho foi o bandeirante. Algo do tipo: ‘Sigam-me os bons que querem trabalhar com luz’ ”, brinca Simoni. “Eu já sou da terceira geração. Não pela idade, mas pelo tempo de trabalho. Aprendi com ele e com Luiz Paulo Neném”, complementa. Jorginho começou a carreira no Tablado, em 1964. “Ele usava e ainda usa todo o potencial da iluminação, em todas as suas funções; não só para revelação de formas, mas, para ajudar a contar uma história, pensa a luz também como cenário. A precisão e a simplicidade são características fortes no trabalho dele. Não há malabarismos. É a luz a serviço do drama, da obra”, explica o professor João Denys, que leciona na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e é também diretor, dramaturgo, iluminador e cenógrafo. O carioca influenciou iluminadores espalhados por todo o país. Em 1990, por exemplo, estava na ficha técnica de Álbum de família, montagem do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, dirigida por Eid Ribeiro. “Na vida de grupo, somos obrigados a entender um pouco de
A formação do iluminador vai além do entendimento e da formação técnica, precisa também do pensamento estético tudo: cenário, figurino, iluminação. Depois que Jorginho criou a luz de Álbum, fiquei como responsável, porque ele não podia estar conosco no dia a dia. Acabei me apaixonando”, conta Chico Pelúcio, ator, diretor, iluminador e coordenador do Galpão Cine Horto, centro cultural fundado e dirigido pelo grupo mineiro. Desde então, Pelúcio assinou algumas iluminações para o Galpão, mas sempre em parcerias. “Diria que sou um iluminador dependente”, ri. “Faz parte da filosofia do teatro de grupo, das atividades compartilhadas”, explicita. A iluminação de Os gigantes da montanha, peça mais recente do Galpão, Chico idealizou com Wladimir Medeiros. “Com o Gabriel (Villela,
diretor da peça), você acompanha os ensaios, o processo, e já vai batendo uma bola com ele. Temos a vantagem de poder experimentar a luz bem antes, nos ensaios no Cine Horto e, nesse caso, fizemos também na rua, aqui perto da sede”, diz.
AUTODIDATISMO
Eron Villar, diretor e iluminador pernambucano, também foi influenciado por Jorginho de Carvalho. Na década de 1990, numa das viagens com o Mamulengo Só-Riso, já trabalhando com iluminação, Villar conseguiu fazer uma oficina com o mestre carioca. A profissionalização dos iluminadores se dá muito através de cursos rápidos e do próprio cotidiano de trabalho. Mas a formação vai além do entendimento sobre eletricidade, física óptica, teoria das cores. “O iluminador precisa ter formação técnica, mas também estética. Não é só conhecer os equipamentos, mas é o pensamento estético o que norteia o espetáculo, as relações com outras linguagens”, avalia Vilar, que terminou, recentemente, de
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5 GALPÃO Chico Pelúcio assina a iluminação de Os gigantes da montanha, peça mais recente do grupo PARA JOSEFINA 6 Espetáculos de dança também precisam de uma boa programação de luz, a exemplo do trabalho de Cleison Ramos EXPERIÊNCIA 7 Aurélio de Simoni, que tem mais de 600 peças no currículo, é responsavel pela luz de Duas mulheres em preto e branco
MARCELO LYRA/DIVULGAÇÃO
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ministrar a disciplina de iluminação para os alunos do Curso Regular de Teatro do Sesc Piedade, em Jaboatão dos Guararapes. No curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Pernambuco, apenas uma disciplina dá conta de iluminação. “O objetivo da disciplina é apenas para que o futuro professor possa tomar ciência de mais um elemento da cena, assim como indumentária e cenografia. Por isso os cursos de extensão, as oficinas, são tão importantes”, explica João Denys. Este ano, 15 pessoas participaram de um curso de iluminação apoiado pela PróReitoria de Extensão da UFPE. As aulas foram ministradas por Cleison Ramos, sob orientação de Denys.
“A formação de um iluminador vai depender muito do próprio interesse dele em pesquisar, em se atualizar, em trocar com os outros. E a experiência, se não engessar o profissional, também é fundamental. Em sete anos de iluminação, já fiz vários cursos e tenho que continuar nesse caminho. Senão, você para no tempo, acaba resvalando no automatismo da iluminação, quando o ser humano termina servindo à tecnologia e não o contrário”, defende Cleison Ramos, responsável por diversas iluminações de espetáculos de teatro e também de dança, como Para Josefina, do grupo Acaso. Mesmo quando há formação técnica e estética, muitas vezes a criação do iluminador esbarra na falta de
condições financeiras dos grupos e no sucateamento de vários teatros, que não possuem equipamentos adequados. “Quando chegamos ao teatro, deparamo-nos com a realidade. E aí o grupo precisa comprar equipamentos, fazer locações. Só que 90% das produções não têm orçamento destinado para isso”, revela Saulo Uchôa, iluminador e bailarino. “Muitos teatros sofrem, por exemplo, com a falta de lâmpadas. Os equipamentos estão lá, mas não têm lâmpadas. É descaso e falta de gestão”, denuncia Uchôa. Uma das criações mais importantes de Saulo Uchôa, por acaso, Corpo-massa: pele e ossos, trabalho da Cia. Etc pensado como uma exposição coreográfica, não depende do aparato técnico dos teatros. “Nós usávamos cinco lanternas de led e eu operava em cena. Acabava que a iluminação, apesar das nossas marcações, determinava muito a performance. E o público também tinha a chance de determinar o espetáculo porque, em alguns momentos, também operava as lanternas”, conta. As lâmpadas de led são consideradas uma tendência em iluminação cênica. Em Os gigantes da montanha, elas permitem que o grupo consiga as referências ao circo que o diretor propõe. “É um espetáculo muito colorido, que passa de certa forma pelo brega, pelo clichê. Compramos refletores de led para conseguir 12 cores. Tivemos que correr atrás da tecnologia, senão a ideia seria inviabilizada pelo próprio fato de o espetáculo ser de rua”, revela Chico Pelúcio. “Em última instância, o investimento se justifica pela paixão pela luz, que dá a possibilidade de levar o olhar do espectador para o espetáculo”, opina.
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REPRODUÇÃO
Leitura
MACHADO DE ASSIS Hipóteses para uma metamorfose literária
Em seu mais novo livro, o crítico João Cezar de Castro Rocha fornece subsídios para uma melhor compreensão da impressionante produção da fase madura do autor TEXTO Eduardo Cesar Maia
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A mais recente obra do crítico e
professor de literatura João Cezar de Castro Rocha merece especial atenção por (pelo menos) dois grandes motivos. Em primeiro lugar, Machado de Assis: por uma poética da emulação (Editora Civilização Brasileira) contribui de maneira instigante com um dos debates hermenêuticos mais difíceis e renitentes da literatura brasileira: a conversão do “Machadinho”, autor de obras convencionais e apenas medianas como A mão e a luva, Iaiá Garcia ou Ressurreição, no mais importante e influente escritor brasileiro de seu tempo (e talvez de todos os tempos). Por outro lado, o livro é também uma contribuição à crítica brasileira, num momento importante de redefinição de seus valores, tanto no âmbito acadêmico quanto no jornalístico. Nesta breve resenha, proponho-me a apresentar algumas questões desenvolvidas pelo crítico, embora consciente de que minha perspectiva aqui é limitada diante de obra tão minuciosa e abrangente. Já em sua Introdução, o autor do livro expõe sem rodeios os objetivos centrais do longo ensaio crítico que irá desenvolver adiante: “Oferecer uma explicação alternativa a um dos dilemas centrais da crítica literária brasileira: a ‘crise dos 40 anos’, vivida por Machado de Assis entre 1878 e 1880, cujo resultado é a escrita de Memórias póstumas de Brás Cubas”, e a partir disso fornecer subsídios e hipóteses para uma melhor compreensão da impressionante produção literária da fase madura do autor. Para tal, João Cezar adota um método de trabalho que estrategicamente lhe garante um espaço de maior liberdade intelectual e estilística diante do peso que poderia ser a enorme fortuna crítica machadiana produzida até hoje (ainda que, no fim das contas, fique claro, através das epígrafes de cada capítulo, que ele não prescindiu dela em nenhum momento). E qual método seria esse? Basicamente, a leitura meticulosa e cruzada de toda a obra do Bruxo do Cosme Velho, estabelecendo, a partir daí, comparações, analogias, oposições, ambiguidades... A tentativa é, portanto, a de “mapear o sistema literário de Machado de Assis” a partir do retorno efetivo ao texto do escritor, realizando uma “descrição densa”.
MACHADO X EÇA
O ponto central da argumentação do crítico é simples, apesar de polêmico: em certo momento de sua trajetória literária, Machado foi obrigado a rever profundamente os valores éticos e estéticos que orientavam seu ofício de escritor, refundando assim sua literatura a partir de um nível de exigência artístico-intelectual muito superior ao que vinha realizando. O episódio desencadeador de tal transformação – e esta é a hipótese central de João Cezar – teria sido o recrudescimento da rivalidade literária com o português Eça de Queirós, notadamente após o impacto causado por O primo Basílio, publicado em 1878. Machado escreveu duras críticas a respeito da obra, com condenações de ordem estética (estrutural) e moral. O curioso, mostra João Cezar, é que o tipo de reproche feito pelo escritor brasileiro caberia perfeitamente a suas próprias obras
Talvez a rivalidade com Eça de Queirós tenha obrigado Machado a rever os valores éticos e estéticos de sua obra futuras, de Memórias póstumas de Brás Cubas (publicado inicialmente como folhetim durante o ano de 1880) em diante. Sobre a hipótese da transformação através da rivalidade literária, o autor do ensaio esclarece que “Não se trata de questão ‘psicológica’, mas de insatisfação do autor com sua obra; dilema agravado pelo aparecimento do jovem romancista português”. E enfatiza que “em nenhuma circunstância considero o surgimento do romance queirosiano a causa da metamorfose machadiana. Não se trata de fenômeno simples, passível de explicação unívoca, mas de processo de grande complexidade, razão de ser do escritor Machado de Assis”. O fato é que a argumentação do crítico é muito bem-tecida e legitimada através dos trechos de romances, contos, poemas e artigos críticos do próprio Machado, estrategicamente selecionados e encadeados.
O caráter conservador, tradicionalista, excessivamente prudente e convencional do “Machadinho” pré-1980 (o crítico de Eça e autor de Helena) é uma e outra vez cotejado com a escrita do Machado maduro, criador de personagens moralmente ambíguos e psicologicamente complexos como Capitu e Bento Santiago. Dessa maneira, o momento preciso da superação de uma estética engessada e normativa e de um moralismo radical e paralisante vai se tornando cada vez mais claro para nós leitores. João Cezar observa que há, tematicamente, muitas coincidências entre obras das duas “fases”, mas ressalta a radical mudança no tratamento literário dado aos assuntos. Sobre o tema do adultério, por exemplo, que aparece em diversas obras de ambos os períodos, o que mudaria de fato é a visão artística do escritor ao lidar com o assunto: “Em lugar da perspectiva do juiz severo, principia a entrar em cena o observador arguto da instabilidade radical das relações humanas”. A hipótese de que Machado teria conscientemente adotado uma poética da emulação, um “resgate moderno de práticas retóricas progressivamente abandonadas depois do advento do Romantismo”, é também ponto fundamental no desenvolvimento da argumentação de João Cezar de Castro Rocha. O crítico apresenta a técnica de emulação como “critério de leitura crítica e de escrita inventiva”. Não seria, portanto, simplesmente uma mera repetição, mas a invenção e criação de algo novo a partir de modelos canônicos. Com sua “explicação alternativa” para o fenômeno da radical mudança na arte de Machado de Assis, João Cezar não propõe um modelo totalizante e peremptório de exegese. Ele reconhece, de antemão, o caráter complexo do tema e trata de apresentar novas perspectivas para a sua compreensão.
Machado de Assis:
por uma poética da emulação
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA Civilização Brasileira Crítico analisa a conversão do escritor de um romântico mediano em um dos mais importantes do seu tempo.
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Leitura TEORIA A estética de Lévi-Strauss, e a estética de Merquior
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Ensaios escritos pelo pensador brasileiro em 1969 são agora relançados e apontam para a independência crítica de um autor pouco lido, cuja obra mantém-se atual TEXTO Artur A. de Ataíde
Os dados gerais de um livro
como A estética de Lévi-Strauss (Editora É, tradução de Juvenal Hahne Jr.), tomados à distância, talvez conduzam facilmente o leitor de hoje a um primeiro juízo errôneo. O texto remonta ao ano de 1969, último de uma década em que o dito estruturalismo, automaticamente evocado pelo nome de Claude LéviStrauss, começava a se tornar alvo crítico de heroísmos teóricos em formação, menos afeitos à objetividade dos esquemas e diagramas, e mais encantados com a ressignificação, ou mesmo subversão, operada por cada indivíduo leitor diante da obra artística (Crítica e verdade, por exemplo, de Roland Barthes, é de 1965).
Também se trata de não mais que 150 páginas, escritas relativamente cedo na trajetória do crítico José Guilherme Merquior – suas últimas obras são da década de 1980 –, e são páginas dedicadas, no contexto de um seminário dirigido pelo próprio Lévi-Strauss, a um projeto de interesse aparentemente restrito: evidenciar, a partir da leitura de passagens esparsas da extensa obra do antropólogo, algo que se pudesse chamar de sua estética. Possivelmente velha, portanto, em termos de história dos paradigmas críticos, possivelmente velha no contexto da trajetória de Merquior, e demasiadamente periférica ou circunstancial, quanto à temática, para servir de amostra do que caracteriza sua
contribuição à cultura crítica brasileira: dispensar-se da leitura da obra com base nesse diagnóstico é perder uma ótima chance de se surpreender. Cedo se vê que muito do ensaio de Merquior, além de se haver com questões teóricas ainda atraentes, termina por jogar luz sobre motivações decisivas de outra estética: aquela que subjaz a seu próprio exercício crítico. A fé no papel que caberia especificamente à arte no concerto social, por exemplo, e mesmo a conhecida imbricação entre análise das estruturas e aprofundamento na história, típica de obras hoje clássicas como A astúcia da mímese, são ingredientes de sua visão que também encontram solo fértil no “estruturalismo autêntico” de LéviStrauss, distinto dos formalismos de base mais restritivamente linguística. É como reforço a esse último contraponto, aliás, que sugerirá Merquior, em suas últimas páginas, que mapeamentos microscópicos como o que fizeram Jakobson e o próprio Lévi-Strauss de cada uma das sutis oposições métricas, prosódicas e gramaticais de um soneto de Baudelaire – a conhecida análise de Les chats – deixem-se complementar pela perscrutação mais amplamente cultural de outros conhecidos intérpretes do poeta de Les fleurs du mal: Spitzer, Auerbach e Benjamin. O convite, acompanhado ainda de uma série de referências a trabalhos de Panofsky – mais um cindido entre a forma e a história –, é indisfarçavelmente emblemático de escolhas que são também as do próprio ensaísta de As ideias e as formas. Essas são questões, no entanto, que farão mais sentido ante análises mais concretas, como a que dedica LéviStrauss à pintura facial das mulheres cadiuéus, assunto do primeiro capítulo do estudo de Merquior.
SISTEMAS SIMBÓLICOS
Não podendo os cadiuéus, em virtude de restrições internas de sua cultura, adotar uma divisão social bipartite, que temperasse a tripartição do seu rígido sistema de castas, como fizeram os guanás e os bororos, puseram-se eles, segundo Lévi-Strauss, a “sonhá-la”: embora ausente, portanto, da estrutura social cadiuéu, a desejada tensão entre
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simetria e assimetria, chave do maior equilíbrio de forças observável nas culturas vizinhas, estaria presente, sim, em sua peculiar pintura corporal, traduzido em geometria. Tal arte, como explica Merquior, “não é mais somente uma ferramenta da vida social empírica: é também a imagem do seu ultrapassar; desenha a metáfora da forma utópica da sociedade onde nasce”. Nem escrava do social pré-dado, nem dele apartada como forma pura: a arte cadiuéu, segundo essa leitura, seria um golpe no sociologismo redutor e no formalismo intransitivo, a uma só vez. Mas há outras lições. Para Lévi-Strauss, os vários sistemas simbólicos de uma cultura, segundo os quais ela organiza seu mundo, nunca são perfeitos. Imagine-se a cena de uma narrativa mítica hipotética: uma lua, ou um tatu, não serão apenas o satélite, ou o animal; a relação do mito com a tentativa de dar sentido pleno ao universo faria desses elementos, simultaneamente, porta-vozes de certo excedente incomensurável de sentido, imantados que estão pelas conotações difusas do originário, do indeterminado, do todo. Do mesmo modo é que certos elementos pictóricos terão sido mobilizados, pelas mulheres cadiuéus, para dar conta de um excedente até então não contemplado pelo seu mundo simbólico pré-dado. O mito, desse modo, bem como a arte, as palavras do xamã ou mesmo o discurso do indivíduo numa sessão de psicanálise, seriam manifestações análogas de uma mesma voz periférica: essa que, numa cultura, busca a cura para os conflitos e insuficiências dos códigos sociais (ou individuais) em vigência, através de um ato especial de conhecimento que se divide entre o interpretar e o simbolizar, entre o complexo rearranjo dos signos conhecidos e a captação inesperada de um desconhecido, ou, ainda, para aludir com Merquior a Aristóteles, entre o “intelecto” e as “paixões”.
CORPO E CULTURA
O alcance dessa concepção, que reconhece a pluralidade das faculdades humanas mobilizadas pela arte, deixase demonstrar nas páginas dedicadas à interpretação da música de Wagner, entre as melhores do livro. Tem-se aí
1-2 ENSAIO Claude LéviStrauss teve sua obra analisada por José Guilherme Merquior em 1969
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um exemplo, em conformidade com a teoria da música de Lévi-Strauss, da indissociabilidade dinâmica que se pode dar entre a cultura – de Schopenhauer à escala diatônica –, de um lado, e os ritmos fisiológicos do corpo, de outro, num movimento de ampliação e enriquecimento mútuos. O enorme potencial cognitivo da experiência artística é assim assegurado, e, à arte, seu posto “no coração do social”. Alguns aspectos do ensaio, finalmente, talvez saltem à vista mais hoje do que à época em que apareceu. Apesar da reticência explícita de Merquior em relação à estética de Hegel, por exemplo, não parece incomodá-lo certo sistematismo da visão de LéviStrauss, segundo o qual não deixa de se ver fixada de antemão uma função geral para a arte na cultura. Seu preciso emolduramento antropológico privilegia, como motivação-base da arte, o desejo por uma outridade social, em detrimento de outros muitos desejos motrizes potenciais, resultando numa escala de valores tipicamente pósromântica, talvez não tão adequada à arte de certas épocas. Tal emolduramento, à semelhança do “sistema das artes” hegeliano, parece pois antecipar-se, como estrutura ideal, à análise concreta das obras, e
é moldura que não exclui, mesmo, uma caracterização hierarquizante das artes “particulares”, para usar de novo o vocabulário de Hegel, e previsões sobre a “morte da arte”. É assim que o figurativismo ocidental, por exemplo, considerado em bloco, comparece em Lévi-Strauss como fenômeno de antemão menos prezado, muito embora uma consideração mais sensível da dimensão temporal da arte pictórica, com a ajuda de Arnheim (já citado por Merquior), pudesse devolver ao figurativismo – e garantir à fotografia, por exemplo – a riqueza conotativa que atribui o antropólogo especialmente à música. Curiosamente, caminhos para a superação de tais impasses também se encontram no próprio ensaio. Contra os purismos teóricos do seu e do nosso tempo, em favor da arte: parece que nosso crítico nunca teve dúvida sobre qual o seu partido.
A estética de Lévi-Strauss JOSÉ GUILHERME MERQUIOR É Realizações A partir da leitura de trechos da obra do antropólogo, autor busca chegar à sua estética.
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REPRODUÇÃO
Leitura
BIOGRAFIA Vida célebre de um cão altivo e corajoso
Chega ao Brasil Rin Tin Tin – a vida e a lenda, festejado livro que conta a história do animal que virou astro de TV e do cinema norte-americano TEXTO Débora Nascimento
De cada nova fornada de filmes lançados no período das férias, pelo menos um é protagonizado por animal, seja em animação ou em carne e osso. Desavisados podem achar que essa presença é algo recente. No entanto, os bichos estão nas telas desde sempre. Já em The horse in motion, sequência fotográfica produzida por Eadweard Muybridge, em 1882, considerada a precursora do cinema, lá está um deles. Três anos depois, Trabalhadores saindo da fábrica, de Auguste e Louis Lumière, exibido em 1895, seria também o primeiro a mostrar a imagem de um cachorrinho. Após 10 anos, o “melhor amigo do homem” estreia como personagem de uma ficção, no britânico Rescued by Rover, de 1905. A obra de seis minutos circulou tanto, que acabou ficando desgastada e teve que ser rodada novamente. Eis uma prova inicial de que animais e, principalmente cachorros, eram muito bem-vindos nas salas de exibição, algo que seria incontestável duas décadas depois, com o mais bem-sucedido desses astros, Rin Tin Tin. A trajetória do mítico cão é narrada em Rin Tin Tin – a vida e a lenda, livro lançado em 2011, nos Estados Unidos, e que chega agora ao Brasil. Em princípio, o título da obra pode parecer pomposo, diante do fato de se tratar apenas de um cachorro. No entanto, ele não foi um cão qualquer. Para se ter uma ideia de seu impacto na indústria cinematográfica norteamericana, o primeiro Oscar de melhor ator da história, em 1929, quase foi parar em suas patas. No entanto, com receio de não ser levada a sério, a academia optou por entregar a estatueta dourada ao ator Emil Jannings, que, ironicamente, não era tão popular quanto a primeira opção de vencedor da premiação. Esse e outros fatos estão no livro de Susan Orlean, cuja ideia, a priori estapafúrdia, se mostrou genial, pois, a partir a vida de Rin Tin Tin, a autora narrou 100 anos da trajetória social, econômica e cultural nos Estados Unidos. O livro começa contando a história do dono de Rin Tin Tin, Lee Duncan, resgata os bastidores de sua família, o casamento de seus pais, a falência da mãe após o abandono do marido, a ida de Lee ao orfanato (quando sua mãe não pode sustentá-
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INDICAÇÕES lo por um período de três anos). É bom destacar que esses episódios poderiam parecer absolutamente desinteressantes ao leitor, se não contassem com o talento da escritora para narrá-los através de um texto bemconduzido e sensível. Há trechos realmente emocionantes, como por exemplo, o do período em que Lee Duncan esteve na Primeira Guerra Mundial, na qual encontrou dois filhotes de pastores-alemães, os quais batizou de Nanette e Rin Tin Tin, nomes dos namorados sobreviventes de um bombardeio a uma estação de trem em Paris, que viraram símbolos de sorte, inspirando até a criação de bonecos e pingentes, tratados como amuletos. Duncan tinha um par desses, carregado ao pescoço. Encontrar dois pastoresalemães em meio a um canil em ruínas e cheio de corpos já era um sinal de sorte. Na época, um cão da raça chegava a ser vendido por 10 mil dólares, o equivalente hoje a cerca de 215 mil dólares – embora Duncan não pretendesse negociar a venda dos animais. Simplesmente os queria como bichos de estimação. No entanto, apenas Rin Tin Tin estava com saúde suficiente para sobreviver à viagem da Europa aos Estados Unidos. Por conta da superação do cachorro às adversidades, Duncan suspeitava que havia um destino glorioso reservado para ele. O dono o tratava com todo zelo e acreditava no potencial do seu bicho – algo que fazia parte dos ideais dos integrantes do Clube do
Pastor-Alemão dos Estados Unidos, ao qual se filiou em 1922. O grupo surgiu com os primeiros anos da popularização da raça, criada em 1899 por Max Emil Frierich, que buscava um cachorro perfeito, reunindo qualidades como força, coragem, nobreza, lealdade, perspicácia, altivez e beleza. Tudo isso se encontrava em Rin Tin Tin. Duncan presumia que ele e seu cachorro poderiam ser “alguém na vida”, mas não sabia como, até ler o artigo que lhe inspirou, Por que não fazer o seu hobby render dinheiro? “Hoje, essa ideia é comum, mas na década de 1920 era surpreendente. Trabalho sempre fora somente trabalho, nada tinha a ver com gratificação – fosse por meio de algum hobby ou da realização de uma visão pessoal. Se a fortuna lhe sorrisse, você arranjaria um emprego e prosperaria – talvez até ficasse rico. Mas a guerra toldara essa linha de pensamento”, escreve Susan, experiente jornalista que passou por revistas como Rolling Stone, Vogue, New Yorker, Esquire e escreveu uma dezena de livros, dentre eles O ladrão de orquídeas, que inspirou Adaptação, filme de Spike Jonze, com roteiro de Charlie Kaufman. O resultado inesperado de Rin Tin Tin – a vida e a lenda garantiu a sua entrada na lista dos best-sellers, dos 100 melhores livros do ano do New York Times, que a proclamou “uma obra de valor inestimável”. Não foi exagero do jornal. E o mais chocante é que a publicação, já tratada como “patrimônio nacional”, parte da ideia esquisita de biografar um cachorro.
CULTURA POPULAR
CRÔNICA
Editora Massangana
Sapho Press
DINARA HELENA PESSOA Jornadas de pastoril
SAMARONE LIMA E INÁCIO FRANÇA A trilogia das cores
Pesquisa sobre o folguedo natalino, que resulta da compilação de tópicos observados pela etnomusicóloga Dinara Pessoa. Se algum grupo decidir pela criação de um pastoril, por exemplo, terá nele acesso a informações essenciais, desde as letras e músicas até as motivações religiosas e profanas que animam esse brinquedo. Acompanha CD.
Possivelmente, o indivíduo mais fácil de se torturar, o torcedor faz parte de um segmento social emocionalmente imprevisível. Samarone Lima e Inácio França dão provas de ser esta uma verdade, ao se deterem em escrever sobre suas paixões desmesuradas pelo tricolor Santa Cruz. Os textos foram selecionados do Blog do Santinha.
INFANTIL
MANUSCRITOS
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO Contos de animais Global Editora
Talvez o maior mérito dessa seleta de 14 contos, feita pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo, seja o de não tentar adocicar muito as histórias. Porque os contos da oralidade, muitos deles vertidos em textos por autores hoje clássicos, sofrem o “politicamente correto”, que ameniza a dor e a violência. Aqui, os desfechos são quase todos crus.
GRACILIANO RAMOS Relatórios de Graciliano Ramos publicados no Diário Oficial Imprensa Oficial Graciliano Ramos
Graciliano Ramos foi revelado escritor pelos relatórios que produziu quando prefeito de Palmeira dos Índios (AL). Este volume faz circular relatórios escritos por ele e publicados no Diário Oficial, em 1929 e 1930. Embora formais, os textos atraem pelo seu caráter de conversa franca e irônica, típica do autor.
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Ronaldo Correia de Brito MÉDICO E ESCRITOR
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ADMIRÁVEL MUNDO VIRTUAL Jantamos num bistrô do Recife.
Na mesa à direita, um casal se distrai com os smartphones. A moça, vez por outra, mostra imagens ao acompanhante. Apressado, o rapaz tira os olhos do seu aparelho, vê o que a esposa lhe aponta – reparei nas alianças fornidas na mão esquerda –, faz comentários monossilábicos e retorna às próprias investigações. A moça, que me parece grávida ou um pouco roliça, ri bastante, tentando chamar a atenção do marido. Não tenho dúvida, os dois são casados, a aliança no dedo esquerdo parece uma argola. O garçom traz a carta de vinhos e ele pede cerveja; ela prefere Coca Zero. Servem a entrada, uma linguine de pupunha, com laranja, agrião, queijo de cabra holandês e bottarga. O casal belisca a iguaria sem desligar-se das telas, os dedos movendo-se nos teclados com a agilidade de um caixa bancário contando cédulas. O garçom traz a segunda cerveja, ele bebe, ela descansa as pernas sobre o sofá, está mesmo grávida, o obstetra recomendou manter as
pernas elevadas para evitar edema e varizes. Contempla o futuro pai sentado à frente, esboça mostrar algo, porém recua a meio caminho, o smartphone quase tocando a linguine fria. Durante longo tempo, os dois ficam mudos, como se uma parede de blindex os separasse. O garçom traz os pratos, os esposos interrompem a comunicação em rede e admiram o jantar conceitual do chef francês, fotografam, postam no Facebook e mastigam em silêncio. Na mesa à esquerda, três mulheres sentam num sofá. Uma delas, sozinha, se exercita freneticamente no seu smartphone computador/ câmera fotográfica/GPS/conselheiro sentimental/astrólogo... As outras olham fotos num tablet. Por mais que alongue o pescoço, não consigo ver as imagens. Consolo-me dizendo que não se trata de nada imperdível, pois as duas bocejam entediadas. Dois homens sentados em cadeiras, de frente para as três mulheres, falam animadamente de negócios, enquanto tomam vinho. Ao lado deles, alheia a todo ambiente,
uma jovem silenciosa contempla as flores de um jarro pequeno. Voo do Recife a Londrina, aguardo embarque durante quatro horas no Aeroporto de Guarulhos. Releio as cartas de Rilke a um jovem poeta, sublinho com lápis que “se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança”. Passeio aborrecido entre pessoas que também esperam aviões, ocupadas com aparelhos celulares de tecnologia infinita. Abandonei a leitura de O som e a fúria, porque já não suportava o relato de um débil mental. Porém o traçado das salas de espera por onde caminho, depois de ter revisado uma conferência pela décima vez, não é menos maluco. Um rapaz senta junto de mim, retira uma banana da mochila e come-a com sofreguidão. Gesto insólito, perfeito para um diálogo. Mas ele saca um headphone da
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KARINA FREITAS
bolsa, liga-o no celular, acompanha com os pés a música que eu não escuto, balbucia palavras em inglês. Ninguém é mais saudável do que Benjy, o doidinho narrador de Faulkner, que chora por tudo. Também vou chorar, não prestam atenção a mim. Ninguém olha para ninguém, ninguém escuta ninguém, ninguém fala com ninguém, ninguém lê livros – o que seria pretexto para um início de conversa –, todos com seus fones, os ouvidos tapados para o mundo, os olhos recusando-se a ver o que não seja uma tela. E se eu disser ao rapaz comedor de bananas que “somente quem está preparado para tudo, quem não excluiu nada,
Ninguém olha para ninguém, ninguém escuta ninguém, ninguém fala com ninguém, ninguém lê livros nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo, e ir até o fundo de sua própria existência”? Ele irá rir e trocar de cadeira. Onde se escondem os leitores brasileiros? É o tema de minha conferência em Londrina e Curitiba.
Nesse aeroporto, eu não enxergo nenhum deles. Mas preciso ter essa resposta na ponta da língua, uma conversa afiada que justifique o cansaço da viagem, os trocados que me pagam. Onde estão os leitores invisíveis? Eles são como as cidades de Calvino, chega-se a eles por caminhos indiretos, percursos enviesados, sem jamais alcançar o âmago. “A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali.” Ninguém entra na cidade dos livros. Eu continuo preso nela, como um Sísifo ou Prometeu fazendo a apologia da própria condenação. Felizmente, a aeronave. Logo mais, o hotel, o quarto, a cama, depois de um voo de 45 minutos. Sentados atrás de mim, o jovem casal e a filhinha de meses. A menina gargalha precocemente, os pais cochilam. Por que a menina ri? Ainda ignora a existência de “uma lista” por onde passeará seus dias. Os pais certamente acreditam que “em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar e atormentar”. Quarenta e cinco minutos passam ligeiro. O comissário de bordo anuncia que o avião iniciou descida, pede que elevem os recostos das poltronas, recolham as mesinhas, desliguem os aparelhos eletrônicos. A menina grita alucinada. Também sinto dores nos ouvidos, sou como as crianças que não desenvolveram completamente o sistema auditivo. Felizmente, pousamos, os avisos de atar cinto continuam acesos, os passageiros se apressam em ligar os smartphones, antes de abrirem as portas do avião. A meninazinha volta a rir alto. Quando me levanto, cumprimento o casal. Digo que sou médico, explico que os bebês choram nos pousos das aeronaves porque sentem dores nos ouvidos. O casal troca olhares. O pai explica que a filha costuma viajar e não sente nada. Ela gritava porque tiveram de desligar o filminho que assistia no tablet. Percebo a engenhoca religada. A criança ri, agita-se, bate na tela com as mãozinhas. Uma princesa feliz para sempre no seu castelo virtual, igualzinho aos contos de fadas.
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Sonoras DJ DOLORES Compondo para imagens
Músico lança álbum em que compila 15 anos de criação de trilhas para o cinema. Seleção partiu do fluxo livre da memória e inclui de Enjaulado, dos anos 1990, ao recente Tatuagem TEXTO Marina Suassuna
Impossível pensar nas trilhas sonoras do cinema brasileiro, sobretudo o pernambucano, e não lembrar DJ Dolores, codinome de Helder Aragão. É só prestar atenção nos créditos dos filmes produzidos no país e verificar que sua assinatura é recorrente. Tanto é que, este mês, ele lança, pelo selo Assustado Discos, o álbum Banda sonora, concebido em CD, vinil e download, que reúne as trilhas que compôs para o cinema. A importância de Dolores no resultado final dos trabalhos em que
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tenso e claustrofóbico de Enjaulado, sua estreia como realizador em curtametragem”, diz Dolores no encarte do disco. Segundo o músico, o trabalho em Enjaulado foi um “exercício de Kleber, antecipando umas inquietudes que estariam presentes em O som ao redor”, primeiro longa-metragem do cineasta pernambucano, cuja trilha também foi assinada por Dolores. O tema de abertura de Enjaulado, batizado pelo diretor de Setúbal, acabou integrando a trilha de O som ao redor e também o repertório do Banda sonora. Segundo Helder, as tracks (termo usado para designar as faixas de uma trilha) escolhidas para a Banda sonora são pedaços soltos de sua memória em relação a essa atividade. “Escolhi um ou outro tema movido por razões igualmente diversas: uma lembrança pessoal relacionada, um achado musical, uma letra engraçada ou até porque havia uma boa história a
Segundo Dolores, para compor uma trilha é preciso entrar no filme, entender o sentido narrativo que o diretor quer dar
se envolve é tamanha, que ele tem no currículo mais três lançamentos de trilhas em álbum, um deles deverá sair ainda este ano, o do longa pernambucano Tatuagem, de Hilton Lacerda. Ele já perdeu as contas dos filmes em que trabalhou, já que faz 15 anos que se dedica à atividade. “Tudo começou na década de 1990, quando eu sequer sonhava em me tornar músico profissional, embora já atuasse como DJ há tempos. Fui convidado por Kleber Mendonça Filho para produzir uns temas que contribuíssem com o clima
ser contada por detrás da música”, explicou. “Lamentei não incluir um trabalho recente, Periscópio, de Kiko Goifman, além de uma música feita para um documentário de TV, chamada Valsa do pódio. Mas irei disponibilizar mais coisas para download e espero corrigir essa falha.” A maioria das tracks presentes na coletânea são originais, criadas para os filmes, como as faixas Polka do cu e Álcool, produzidas para Tatuagem, longa que rendeu ao DJ o prêmio de melhor trilha sonora no Festival de Gramado 2013. “A Polka do cu tinha uma letra sugerida no roteiro, mas a única coisa realmente importante para mim era guardar a intenção: uma composição popular, teatral, de fácil compreensão, que mantivesse uma brincadeira no refrão. Uma deliciosa bobagem incrivelmente reinterpretada por Helder. Em relação à Álcool, o que estava no roteiro era a indicação de cena, e Dolores nos deu
uma versão maravilhosa, com Isaar cantando, bastante inspirada”, explica Hilton Lacerda, diretor do filme. “Tatuagem é uma espécie de musical. Eu precisava dar conta da música dentro da narrativa. As composições dos espetáculos estavam orientadas no roteiro, mas meu talento musical é bastante limitado, apesar de ter um bom ouvido para música. Dolores veio e fez a diferença. Ele já estava no projeto antes mesmo de ser escrito. A função da trilha é quase de uma coautoria de roteiro. Ele percebeu isso e tratou de emprestar mais uma linha narrativa para o filme a partir das composições”, acrescenta. Para Dolores, o processo de composição de suas trilhas equivale ao trabalho de um ator. “É preciso entrar no filme, envolver-se no ambiente, entender o sentido narrativo que o diretor quer imprimir e sustentá-lo; ou, em alguns casos, contestá-lo. Costumo conversar bastante, fazer muitas perguntas e só então começo o trabalho. Tento manter a mente como uma página em branco, que será preenchida pelo fruto desse processo inicial.” Segundo ele, a técnica lhe permite uma liberdade que explica o fato de não ser um músico de formação tradicional, mas, antes de tudo, alguém mais ligado em narrativas literárias e cinematográficas. Helder também compõe trilhas para o teatro e espetáculos de dança, material que ficou de fora da coletânea. Uma das peças teatrais de que participou, A máquina, de João Falcão, ganhou versão em película, cuja trilha também foi assinada pelo DJ, dessa vez em parceria com Robertinho do Recife e Chico Buarque. A música do filme escolhida para integrar a Banda sonora foi Azougue, remixada para uma sequência cômica num shopping center. De Últimos cangaceiros, documentário de Wolney Oliveira, Dolores trouxe para a compilação a releitura da cantiga popular Mulher rendeira, que ganhou novos versos e uma ambiência western. Outra adaptação feita para o filme, que também está presente na Banda sonora foi Satie dub, inspirada num tema do compositor e pianista francês Erik Satie. Uma das passagens históricas da coletânea é Subúrbio soul, composta por Dolores para o primeiro longa do qual fez parte, o pernambucano O rap
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1-2 NO CURRÍCULO Entre as trilhas criadas pelo Dj estão as da ficção Tatuagem e do documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas
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do pequeno príncipe contra as almas sebosas, de Marcelo Luna e Paulo Caldas. “Um documentário dark e sinistro sobre dois jovens do mesmo bairro, um deles, matador. A música aparece no início do filme, melancolicamente incorporada aos sons do centro do Recife”, diz Helder. Gravada com Fabio Trummer e Jam da Silva, parceiros de Dolores na Orchestra Santa Massa, ao lado de Isaar e Maciel Salú, Subúrbio soul acabou entrando no primeiro disco do grupo, Contraditório?. Também estão presentes na compilação O rosto no espelho, do filme homônimo de Renato Tapajós; Narradores, de Narradores de Javé, de Lili Caffé; O amor vai, do documentário Estradeiros, assinado pelo casal
pernambucano Sergio Oliveira e Renata Pinheiro; e Amor, plástico e barulho, do longa de ficção da mesma diretora.” “DJ Dolores é um monstro musical em notas, compassos, tempos e timbres. Ele interpreta o filme de uma maneira muito pessoal, que, a princípio, assusta seus criadores, mas, depois, quando vemos seu trabalho já integrado às imagens, logo entendemos que não poderia ser de outra forma”, diz Renata Pinheiro.
CONCEITO E ACABAMENTO
Veterano do Manguebeat, DJ Dolores sempre brincou com limites estéticos ao produzir música. Com um pé no regional e outro na diversidade da música brasileira, também absorveu
as referências internacionais em suas andanças pelo mundo. É dessa experiência que se alimenta quando precisa se dedicar ao cinema. “De uma trilha brega, em Amor, plástico e barulho, ao experimentalismo do rock eletrônico em Periscópio, de Kiko Goifman, passando por doses de concretismo em Tatuagem, dá pra combinar autoria e entendimento de necessidade de cena”, diz o compositor. O que importa, para Dolores, é que sua música esteja em harmonia com o diálogo e a imagem, estabelecendo o tom do filme. “Fazer uma trilha é como fazer um disco. Envolve conceito, acabamento, criatividade. Dá um trabalho danado. Mas o reconhecimento é mínimo. O cinema preza pela imagem e subestima o som, mesmo que pessoas cantem e se envolvam na cena por causa da música. É um trabalho muito ingrato, muito pior que o do roteirista. Por outro lado, possibilita produzir fora da chatíssima e medíocre indústria fonográfica. Como amo música e detesto ambiente competitivo, o saldo final é a mais pura felicidade.” Bom mesmo seria se, no cinema, a música passasse a ocupar tanto espaço quanto a imagem, extrapolando as fronteiras do papel coadjuvante que a trilha costuma ter na maioria das vezes, como defendeu Glauber Rocha nos anos 1970. “O Brasil é um país musical e eu penso no cinema como uma montagem de pausas e momentos de música.” Não é por acaso que o australiano Graham Bruce, ao estudar o papel da música na obra do cinemanovista, concluiu que, mais do que servir de acompanhamento às imagens, a música organiza a narrativa, expande o sentido das imagens, passa a dividir com elas a incumbência da história. Se, para Glauber Rocha, os precedentes do fazer cinematográfico são “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, para Dolores, basta uma aparelhagem na mão que surgirão mil ideias na cabeça.
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INDICAÇÕES INSTRUMENTAL
VÁRIOS
REGIONAL
Independente
Sony Music/Columbia Records
Joia Moderna
BIXIGA 70 Bixiga 70
O texto de apresentação do segundo disco do Bixiga 70 adverte: a temperatura subiu geral. É que dois anos após o debute, a big band paulista atingiu um nível de energia e entrosamento musical nos palcos, que, naturalmente, refletiu-se no conceito do segundo álbum. A sonoridade, desta vez, vai além do afrobeat, principal referência da estreia. Agora, eles equilibram influências diversas e dialogam com mais ritmos brasileiros, entre eles o candomblé e o carimbó, na versão de Deixa a gira girá (1973), dos Tincoãs, e na faixa Kalimba, respectivamente.
WILD BELLE Isles
Um tanto singular e autêntica é a estreia dos irmãos Natalie e Elliot Bergman. Em Isles, o duo de Chicago assimila o compasso do reggae de uma maneira muito particular e contemporânea, envolvendo o ritmo jamaicano com timbres destoantes de jazz, indie rock, funk e outras influências. O disco traz um clima deliciosamente pop e um astral sonoro que se reflete, sobretudo, no vocal sexy de Natalie. Entre as 11 faixas, destaque para I’m too late, Love like this e I’m in love.
VÁRIOS
YLANA QUEIROGA Ylana
TRIO ETERNO Suíte Pistache
Produzido pelo irmão, Yuri, o álbum de estreia de Ylana Queiroga é resultado de seis anos de elaboração. Para compor o repertório, Ylana, que é filha de Nena Queiroga e Maestro Spok, fez uma leitura pessoal de canções pernambucanas, assinadas por nomes como Nação Zumbi, China, Ortinho, Junio Barreto, Siba, Lenine e Capiba. Cheias de romantismo, as interpretações trazem a personalidade de uma jovem cantora que transita com fluidez entre o contemporâneo e a tradição.
Rico em participações e pegadas instrumentais, o primeiro disco do Trio Eterno, projeto de Felipe S, do Mombojó, junto com André Édipo, do Bonsucesso Samba Clube, e Missionário José, surgiu de forma despretensiosa, como algo para se dedicar nas horas vagas. Lançado em vinil e download pago, o disco traz sonoridades leves, da bossa nova presente na faixa-título à surf music que permeia a canção Zarautz, passando por climas melancólicos em Coisificando, e nem por isso desagradáveis. Destaque para Saí descalço, com Domenico Lancellotti.
Reco-Head Records
Sérgio Cassiano
FONTE QUE NUNCA SECA Em Água!, segundo disco da carreira solo de Sérgio Cassiano, temos um artista tomado pelas possibilidades de leitura do elemento água enquanto inspiração poética. Rios, Nascentes, Chuvas, Embarcações, Fonte, Banho de Mar são títulos de algumas das faixas que trazem perspectivas desse recurso natural em nossa vida, de que se nutre o exMestre Ambrósio para criar repertório. Fazendo jus ao conceito, Água! é um disco fluido, que escorre pelos ouvidos – haja vista as vinhetas com sons de água incorporadas em diversas faixas. Assim também foi seu processo de composição, no qual o percussionista, cantor e compositor optou por seguir o curso natural das canções e deixar “sentir em que cada uma delas poderia se transformar”, buscando, assim, “a relação de timbre e massa sonora”. O resultado tem o dedo de Juliano Holanda, com quem Cassiano dividiu a pré-produção e depois lhe incumbiu a função do baixo. Depois vieram Rodrigo Samico (violão), Kássio Farias (percussão), Sérgio Godoy (piano e teclado) e Fred Andrade (violão e guitarra) contribuindo nas gravações com os padrões rítmicos já definidos por Cassiano.
Para falar da água, Cassiano recorreu a uma linguagem híbrida, assimilada em suas vivências pelo mundo (ele viajou quatro continentes em quase 20 anos de experiência como músico). A música popular de lugares como o mundo arábe, Caribe e África – esta última expressa, sobretudo, através da kalimba, espécie de “piano de dedo”, cuja sonoridade remete a gotinhas d´água – está presente em várias faixas, dividindo espaço com as raízes nordestinas do músico, pontuada, neste disco, por instrumentos como zabumba e viola, e percussões que lhe são características como pandeiro e berimbau. Além de ter criado todos os arranjos, composto todas as músicas e gravado instrumentos diversos, Sergio Cassiano se banhou na mesma água que lhe serviu de fonte sonora nos anos 1990, quando integrou o Mestre Ambrósio, um dos ícones do movimento Manguebeat. Do extinto grupo, ele se apropria não só dos elementos da cultura pernambucana, mas da sonoridade das palavras, recurso que lhe permite um domínio de interpretação bastante rico e singular. Afinal, para matar a sede musical, nada melhor do que recorrer a uma fonte que nunca seca. MARINA SUASSUNA
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
WILTON DE SOUZA
Pessoas que fazem parte de nossas
vidas. “Quão estranho”, estava para dizer. Mas não gosto dessa palavra “estranho” no caso, dando impressão de haver alguma alusão metafísica. Quanta coisa acontece não programada na nossa vida, nossa vida inclusive, nosso nascimento, e outros nascimentos, outros avatares, outras reencarnações dentro da nossa própria vidinha terrestre. Já na última matéria aqui publicada falei no encontro improbabilíssimo com o ex-colega de colégio Ivan Carneiro que me perguntou: “Ainda gosta de desenhar?” Isso provocou minha mudança de rumo, do abandono imediato do curso de direito à dedicação integral à pintura, cuja existência como profissão nunca tinha me passado pela cabeça. Quanto devemos a encontros tão fortuitos, passantes que cruzam conosco nas ruas, nas ruas de quaisquer cidades, até de outros países, de outros continentes, ou qualquer outro lugar, nas lojas, nos shoppings, nas igrejas, mesmo quando não se é assíduo, colegas de colégio ou não sei mais de onde, de clube carnavalesco
ou time de futebol! De barzinho não, que nunca fui de barzinho. E fui, em São Paulo, o barzinho do museu, na Sete de Abril, que tanto era do Museu de Arte Moderna (MAM) como do Museu de Arte de São Paulo (MASP) além da cinemateca que não sei se tinha sigla. Chega de preâmbulo. Vamos a Wilton, que fez retrospectiva há pouco no Centro Cultural Correios. Wilton Andrade de Souza, nascido no Recife, 1933. Quando vi, fazia parte da minha vida. Quando vi Wilton, não sabia que ia ver, como não sabia que ia ver ninguém nesse tal de “atelier coletivo” que ia ser formado (1952). Já sabia da existência de Abelardo da Hora, tinha visto sua exposição no Sindicato dos Comerciários (1948) que considero o marco inicial da escultura moderna de Pernambuco. E de minha vida. Conhecera pessoalmente Ladjane Bandeira e Hélio Feijó, no atelier que mantinham na Rua da Imperatriz, numa breve visita, levado por um primo dela, colega de colégio. Mas não imaginava que iam fazer parte da minha vida. Porque não sabia o que fazer da vida.
Muitas vezes os artistas de grande convicção podem parecer estacionários, como se a sua arte, ao atingir certo ponto, parasse. Como se o artista se satisfizesse em praticar daí em diante uma espécie de artesanato. Ora, numa determinada visão da arte moderna, que abrigava a concepção de progresso em arte, a arte uma espécie de tecnologia e o ser humano uma espécie de robô prevalecendo o de última geração, enquanto não chegasse o seguinte, o ideal era que o artista evoluísse, isto é, se dispusesse a se suicidar ou se renegar a cada passo, praticasse suicídios múltiplos o tempo todo, o que gerou uma febre experimentalista a nos embaçar a visão quando se trata de apreciar a trajetória de um artista mais engajado consigo próprio, menos mutante, menos novidadeiro, menos superficial (aos amantes de efemérides, lembro que o dadaísmo, que pregava “tudo é bom contanto que seja novo”, está perto do centenário, 1916-2016). É de se considerar, pois, em Wilton de Souza, ou na sua arte, a seriedade com que encarou o Atelier Coletivo,
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
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qual repositório dos ideais que ali nos foram incutidos ou, pelo menos, propostos. Sem nunca ter duvidado. Sem nunca ter caído em tentações. Nem mesmo a de se destacar, como se fazer parte desse grupo já lhe desse uma identidade e mais não lhe fosse necessário, considerando de bom tamanho, ou de boa altura, o patamar alcançado em servir à arte de Pernambuco, feliz com o status de “artista ativo no Recife na segunda metade do século 20 – começo do 21” (ai, Wilton, todos estamos nessa, eu, tu, Samico, Guita, Corbi, Reynaldo, e inda temos sorte, mas “segunda metade do 21” está longe, embora Abelardo acredite que daqui para lá vão descobrir o segredo da longevidade; longevidade não: de não morrer). Sobre ideais do Atelier Coletivo. Não custa repetir. Já que aos muito jovens, e há gente jovem, muito jovem, que estuda história, sociologia, escreve sobre arte, gente séria, que até nos dá esperança no Brasil, a quem poderá parecer algo esotérico esses tais ideais: vinham da orientação do soviético Andrei Jhdanov (1896-1948)
Wilton parece que sempre teve cem anos. Passou e passa pelas contigências da vida, claro. Nunca o vi alterar-se tem no Google, o chamado “realismo socialista”. Para ser justo, eu já tinha ouvido o nome de Jhdanov da boca de Abelardo da Hora mas procurei saber melhor depois, que lá ninguém lia nada, papel e lápis só serviam para desenhar, havendo uma tendência a preservarmos ao máximo nosso analfabetismo, em nome da nossa virgindade, nossa autenticidade, fonte confiável de saber, tendência que havia também no México, como li na autobiografia do muralista José Clemente Orozco (1883-1949), emprestada por Carybé (1911-1997). Enquanto nós todos nos debatíamos em nossos sonhos de grandeza, presumo, ou até de sobrevivência, parece que Wilton olhava como a
1-2 P INTURAS ulher no porto (óleo sobre M tela, 70 x 90cm), de 1998, e Madona (acrílica sobre cartão, 100 x 90cm), de 2003, de Wilton de Souza
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dizer: “quanto exagero”. Como se se contentasse, sabiamente, em ser um entre outros, mas ser. E logo daí tirando seu sustento, consciente de que provinha de família que não podia sustentar vadio, pecha que sempre recaía sobre os artistas, até ajudando os outros, como quando dirigia a galeria da loja Rozenblit, fazendo as capas de disco dessa gravadora e capas de livro, e expondo os artistas locais. Tudo sem alarde, sem sair da rotina, alheio a todo tipo de estrelismo típico da imaturidade. Wilton parece que sempre teve cem anos. Passou e passa pelas contingências da vida, claro. Casado há 53 anos com a bailarina Tânia Trindade, quatro filhos (Aramis, 52; Wilton Jr., 50; Carmoniza, 48; e Ana Rosa, 33), “todos formados” diz com orgulho, fez cinco safenas e duas mamárias. Nunca o vi alterar-se. Nem ele nem sua pintura. Como a dizer ao cliente possível: “Olha, o que faço é isso”. Sem surpresas de parte a parte. O artista faz o seu tempo; Wilton é como se vivesse no tempo imutável dos faraós. Direito ele. Se fosse eu, direito eu.
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FOTOS: REPRODUÇÃO
Em 2006, o artista Paulo Bruscky
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POÉTICA O bazar de Paulo Bruscky
Artista lança duas publicações relacionadas ao seu trabalho, abre exposição de fotografias e segue em cartaz em Nova York TEXTO Mariana Oliveira
teve uma primeira publicação sobre sua produção artística. Com textos da pesquisadora Cristina Freire, Arte, arquivo e utopia foi editado e lançado pela Cepe Editora. À época, esse registro coroava a descoberta do artista que, apesar de produzir desde o final da década de 1960, havia permanecido muito tempo no ostracismo, fora dos circuitos da arte. Naquela ocasião, Bruscky tinha vendido sua primeira peça para o Itaú Cultural, sendo reconhecido pelos jovens artistas de uma cena emergente, por críticos e pesquisadores nacionais e internacionais. Hoje, sete anos depois, existem três outras publicações lançadas sobre o seu trabalho, e suas obras fazem parte de instituições do porte do MoMa e da Tate Modern. Este mês, ele lança no Recife dois livros POIeSIS Bruscky (Cosac Naify) – uma vasta publicação que dá conta da pluralidade de seu trabalho, com análises do crítico, curador e também artista espanhol Adolfo Montejo Navas –, e Arte e multimeios (Independente/ Funcultura) – que reúne vários escritos do artista, organizados pela crítica e curadora Cristiana Tejo. POIeSIS Bruscky é uma obra volumosa e bem-cuidada (traduzida para o espanhol e acompanhada de um CD com poemas sonoros) que registra os diversos caminhos traçados pelo artista. Montejo Navas vai em busca da raiz poética “brusckiana”, apresentando o artista como um produtor de imagens, que atua quando é provocado por estímulos externos e internos. Bruscky seria um inventor cujo ateliê funciona como grande laboratório de seus experimentos. “Talvez o motivo profundo deste livro seja dar voz e relevo a essa matriz do trabalho de Paulo Bruscky, que pode ser reconhecida como poesia expandida, como geração de outras escritas. Isso equivale a registrar as várias enunciações que representam não apenas a poesia visual em sentido estrito, mas também outros trabalhos nos quais a categoria palavraimagem-signo entra em jogo de forma substancial. Um fio sinuoso e insinuante que parece costurar todo esse universo de produção tão dessemelhante, cujo inventário de atividades pula de linguagem e registro”, escreveu o autor.
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A obra registra as suas atividades nos mais diversos campos, sem categorizá-las. Ao longo dos capítulos, os trabalhos vão surgindo, encaixandose pelas dobras e soluções gráficas, como a que reduz o tamanho das páginas para fazer uma versão facsímile dos chamados Banco de ideias, pequenos cadernos em que o artista registrava possíveis experimentações. É interessante perceber, através da forma como o próprio livro foi produzido, o quanto a atividade artística e a vida se mesclam, sendo quase impossível determinar as limitações entre essas duas instâncias. Não à toa, sua poesia visual foi, certa vez, publicada num caderno de classificados de jornal diário. Montejo Navas passeia por importantes referências que marcam a atuação de Bruscky. Sua ligação com o mundo e com a sua terra natal é um dos aspectos levantados. A forte vinculação com o Recife é expressa no uso da cidade como suporte e meio para suas intervenções urbanas. Por outro lado, já na década de 1970, quando começava a tomar os espaços recifenses, ele também dava seus primeiros passos na cena internacional, integrando-se ao grupo Fluxus, trocando correspondências via mail art com pessoas do mundo todo e, um pouco mais tarde, nas residências que teve oportunidade de fazer. “Pode-se dizer também que será quase paralela a sua inscrição no cenário internacional, produzindo um paradoxo artístico territorial que será mais bem-compreendido décadas depois, ou no século 21, já implantada definitivamente a sociedade da comunicação”, pontua o autor, mostrando o pioneirismo de Bruscky. Outros pontos fundamentais na poética do artista servem como norte para a reflexão. Montejo Navas trabalha conceitos caros ao pensamento contemporâneo, tais como local e global, erudito e popular, situando a obra de Bruscky num espaço intermediário, que transita por entre todas essas discussões de forma criativa e muitas vezes bem-humorada. O autor pontua como esse jogo entre dois polos é algo que se destaca no trabalho do inventor. A oposição memória x presente é ideia fundante. Ao mesmo tempo que nos postamos diante de
1 NOIVA Obra de 2002, que está na retrospectiva Paulo Bruscky: A arte é nossa última esperança FOTOGRAFIA 2 A sua próxima exposição no Recife será focada no seu trabalho nessa mídia
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um artista inserido na atualidade, dialogando com as novas tecnologias, temos um grande arquivador e catalogador que há anos guarda em seu ateliê um acervo vastíssimo.
MULTIMEIOS E MOSTRAS
Arte e multimeios, também lançada em novembro, traz uma compilação de textos escritos por Bruscky. Segundo ele, boa parte desse material foi publicado originalmente no Suplemento Cultural do Diário Oficial (hoje Pernambuco), na década de 1990. “Há textos sobre xerografia e fax, por exemplo, que contam a história desses equipamentos e falam um pouco de como se dá seu uso na arte. Trago também um texto sobre a história das artes gráficas em Pernambuco”, detalha o autor. No material, há textos inéditos, como os que fazem um histórico do Festival de Inverno da Unicap e do de Garanhuns, projetos que ele ajudou a criar, e outros sobre artistas locais e internacionais. A obra, organizada pela curadora Cristiana Tejo, será ilustrada e traduzida para o inglês e espanhol. Além dos livros, o pernambucano tem se destacado na cena internacional desde que a exposição Paulo Bruscky: art is our last hope foi inaugurada em Nova York, no fim de setembro. A retrospectiva com 150 obras, inédita no Brasil, tem curadoria de Sérgio Bessa, diretor do
Bronx Museum, onde fica em cartaz até março de 2014, quando segue para outras cidades americanas até, finalmente, seguir para o México, em 2015. Essa, que é a maior exposição individual de Paulo Bruscky no âmbito internacional, garantiu elogios do New York Times e matéria na revista de arte Bomb. Neste início de novembro, Bruscky estará em Nova York para prestigiar a mostra e participar da Performa 13 – única bienal dedicada à nova performance. Os nova-iorquinos vão poder conhecer a performance Jogo, realizada por Paulo pela primeira vez em 1971, no Recife, e depois, já recentemente, em Belo Horizonte. Nessa ação, ele coloca 22 jogadores uns contra os outros, com camisas de times aleatórios. No fim do mês, será inaugurada, na Galeria Amparo 60, no Recife, a exposição Foto/linguagem, com mais de 100 fotografias, a maioria inédita. Segundo o artista, essa é uma faceta pouco conhecida de seu trabalho, ainda que ele já tenha sido premiado na área. Com curadoria de Dária Jaremtchuk, a seleção percorre várias etapas da produção de Bruscky com imagens do início da carreira e outras mais recentes, algumas de 2013. Nos seus experimentos, há fotos analógicas, polaroides e digitais. A exposição, que ficará em cartaz até março, será registrada num catálogo.
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IMAGINÁRIO Sertão à beira-mar Em dezembro, será aberto ao público, no Bairro do Recife, primeiro módulo do Cais do Sertão Luiz Gonzaga TEXTO Mariana Oliveira
Quem quiser conhecer o sertão
nordestino, saindo do Recife, precisa percorrer, hoje, cerca de 250 quilômetros até a cidade de Arcoverde, ponto zero da sub-região. Cantada em versos e músicas, retratada em filmes, e vista comumente no noticiário devido aos problemas com a seca, a paisagem sertaneja será transportada
simbolicamente para a beira do mar, no Bairro do Recife. A partir de dezembro, começa a funcionar a primeira etapa do Cais do Sertão Luiz Gonzaga, marcando o encerramento das comemorações pelo centenário do Rei do Baião, ocorrido em 2012. O Cais do Sertão vai ocupar todo o espaço do Armazém 10, numa área
construída de 7.500 m2. Esse novo equipamento faz parte do Projeto Porto Novo, que está restaurando antigos armazéns para transformá-los em espaços culturais, a exemplo do Centro de Artesanato de Pernambuco, aberto em 2012. Inicialmente, o espaço seria um museu em homenagem a Luiz Gonzaga, porém, durante o processo de concepção, o projeto cresceu. Nasceu a ideia de um espaço em que o visitante fizesse uma imersão no universo sertanejo, tendo como fio condutor a obra do Rei do Baião. “Nosso objetivo é que a pessoa entre de um jeito e saia diferente. Que ela tenha uma relação sinestésica com o ambiente sertanejo”, afirma Gilberto Freyre Neto, coordenador de projetos da Fundação Gilberto Freyre – instituição responsável pela produção executiva do espaço. Para abrigar a proposta, foi concebido um arrojado projeto
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1 JUAZEIRO Na entrada, foi projetado um espaço de acolhimento e convivência onde foi plantada a típica árvore da caatinga
“Existem projetos que são criados para desaparecer na paisagem. O Cais do Sertão, ao contrário, foi desenhado para ser referência e, acima de tudo, uma construção a serviço do seu conteúdo”, pontua o arquiteto Marcelo Ferraz, um dos autores do projeto.
MUSEOGRAFIA
arquitetônico, assinado pela Brasil Arquitetura. O edifício tem estrutura diferenciada, com grande marquise em concreto que forma um vão com abertura circular, em que foi plantado um juazeiro, em dezembro de 2012. Segundo Gilberto Freyre Neto, a árvore típica do sertão ainda está em fase de adaptação. “Foi um experimento. Pensamos que seria bom as pessoas entrarem no museu passando pela sombra do juazeiro. Mas ainda não sabemos se vai dar certo, se ele vai se adaptar à maresia”, explica. Internamente, no primeiro módulo, fez-se o uso de chapas de aço e de concreto pigmentado para remeter aos tons ocres do sertão. No segundo, há um vão livre que permite a vista para o mar e o uso de combogó feito para o projeto, que remete à terra rachada pela falta d’água, aos galhos secos das árvores e às rendas produzidas na região.
O módulo que será entregue em dezembro é composto pelo museu, cuja concepção esteve a cargo da pernambucana Isa Ferraz, que reuniu um grupo de consultores, com nomes como Antonio Risério, José Miguel Winsnik e Frederico Pernambucano de Melo. A curadora participou da concepção do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e trouxe de lá a proposta de um espaço dinâmico de convivência, diversão e conhecimento, com o uso de recursos tecnológicos. Segundo Gilberto Freyre Neto, ao entrar, o visitante vai se deparar com uma vitrine com objetos do Rei do Baião, que o conduzirá para uma estrutura metálica de forma elíptica, cujo interior é tomado por um cinema de 220 graus. No Sertãomundo – nome de batismo do lugar –, vai ser exibido um filme produzido por Marcelo Gomes, numa experiência audiovisual de oito minutos que expressa poeticamente a paisagem física e cultural sertaneja. “A ideia é que, ao entrar nesse espaço, o público seja, através da imagem, transportado para esse universo. Depois, ele sairá por uma porta que o levará aO Mundo do Sertão, em que serão apresentadas as principais dimensões da vida na região em sete territórios temáticos, entrecortados pelo Rio São Francisco”, explica Freyre. Cada uma das estações foi batizada com um verbo. A primeira, Ocupar, trará grande maquete reproduzindo a caatinga em seus mais diversos aspectos, incluindo detalhes históricos sobre a ocupação dessa região. Em Viver, será possível conhecer a casa do sertanejo, seus utensílios, sua gastronomia; já no território Trabalhar, a ideia é compreender a labuta diária num ambiente sem água, permeada pelos sons e barulhos das típicas feiras de interior. O âmbito cultural poderá ser vivenciado nas estações Cantar (que traz diversas referências sobre essa
região na música e no cinema) e Criar (que aposta na inventividade do seu artesanato). O aspecto religioso aparece em Crer, e o processo de partida para a cidade grande em Migrar, estação que toma como base o depoimento de diversos sertanejos, famosos ou não, que deixaram sua terra para buscar uma vida melhor. Após esse trajeto, o qual pode ser percorrido livremente, o visitante terá a chance de acessar mais conteúdos, num espaço interativo que vai reunir livros, computadores conectados à internet e softwares específicos para atividades diversas, como compor um baião. O segundo módulo – que será entregue em 2014 – vai abrigar o centro cultural, com auditório, salas para oficinas, café, restaurante-escola e área de convivência. Haverá um espaço com 600 m2 exclusivo para exposições temporárias. “Hoje, no Recife, não
Dimensões da vida do sertanejo são apresentadas em sete territórios temáticos. Em 2014, será aberto o segundo módulo temos condições de receber uma grande exposição internacional. No Cais, teremos o que há de mais moderno, inclusive nos requisitos de segurança, o que vai permitir que a cidade se inscreva na rota dessas grandes mostras”, aposta Gilberto Freyre Neto. Segundo ele, a proposta é que o equipamento interaja com o entorno, torne-se um centro de economia criativa e se conecte também com o Porto Digital. Até a sua consolidação, o Cais do Sertão Luiz Gonzaga será administrado pela Fundação Gilberto Freyre, mas a ideia é transformá-lo numa organização social que possa ter autonomia. “Assim como o Porto do Recife recebe cargas de fora e distribui pela região, movimentando a economia, o Cais do Sertão também irá impactar todo esse território, criando nova dinâmica, gerando e distribuindo riqueza”, resume Freyre.
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WIKICOMMONS/REPRODUÇÃO
Cardápio 1
CHÁ Uma bebida de sutilezas
1 PROCESSOS As folhas para infusão podem ser encontradas em versões verde, preto, branco e oolong
Sobrevivendo há milênios, a cultura da infusão conserva as qualidades de bem-estar e contemplação em meio às rotinas de nações e técnicas de consumo TEXTO Clarissa Macau
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sempre esperam algum efeito dela: que emagreça, previna do câncer, ajude a digestão ou os acompanhe numa conversa. Já os orientais são mais meditativos. De qualquer forma, a bebida oferece paz. O chá é capaz de mexer com os cinco sentidos. Faz companhia para artistas e para a vida religiosa, particularmente o budismo”, afirma a infusionista americana, reconhecida internacionalmente, Suzette Hammond. Há três anos, a designer Yuri Hayashi trocou a rotina de São Paulo pela de São Bento de Sapucaí, onde escala montanhas, dá workshops sobre culinária e alimenta um dos raros blogs brasileiros especializados na bebida, o Chá Arte e Vida. “O termo gourmet diferencia o chá das infusões herbais, utilizadas com finalidades estritamente medicinais, e dos populares, em formatos comerciais. Mas costumo dizer que, no dia a dia, a gente tem liberdade de beber de acordo com a disponibilidade, usando chás de sachê ou podendo adoçá-los, desde que não se descaracterize o sabor original. É impensável adicionar mel, por
Para a qualidade da bebida influem o local de plantio, a manufatura do mestre e o preparo pelo consumidor O que seria o mais próximo de
um elixir da imortalidade na vida real, senão o charmoso chá? Usado até hoje para promover a saúde de diversas formas – melhorando o sistema cardiovascular ou simplesmente aumentando a disposição –, o líquido mais bebido do mundo, após a água, é um antídoto versátil para os efeitos da correria do dia dia, agregando, através do refinamento do sabor, o valor de gourmet. O preparo e a degustação dessa bebida, originalmente feita da planta chinesa amarga Camellia Sinesis, conquistou milhares de adeptos em todo o mundo. “A principal diferença no tratar dessa bebida entre ocidentais e orientais é que os primeiros, apesar de ritualizá-lo de alguma maneira,
exemplo, ao chá tipo darjeeling. É como adicionar mel ao vinho branco”, define. A cultura de beber a imersão de flores, folhas e frutas em água quente surgiu há mais de 5.000 anos, na China, a partir da folhagem da Camellia Sinesis. O método foi divulgado em países vizinhos, como o Japão, e mais tarde foi cultivado pelos ingleses, nas terras indianas colonizadas, de onde foi importado para o Ocidente. A planta inspirou rituais e transformações sociais, desde a prática japonesa chanoyu – na qual o chá verde matcha é protagonista de uma religião estética, contemplativa da beleza imperfeita do cotidiano – até o hábito inglês do chá das cinco horas, com seus earl greys de notas cítricas e breakfast teas
de sabor maltado e aroma fresco. A partir do século 19, essa bebida foi motivo de uma vida mais saudável naquele país. Na época, a água era imprópria para o consumo, por conta do precário saneamento básico. Graças ao processo de infusão, os ingleses passaram a ferver a água que bebiam, e o chá favoreceu a redução de consumo de gim e cerveja. Hoje, o processo de feitura do chá ganha possibilidades que transcendem a folha da Camellia. Os mais puristas consideram que as bebidas feitas com outras plantas não são chás, mas infusões. O gastrônomo e dono da loja virtual de chás chineses Chá Yê, João Campos, defende que “seria difícil sustentar esse argumento. Na China, existem bebidas como o mo li hua cha (chá de jasmim) e mei gui hua cha (chá de rosas). Ou seja, ‘infusões’ chamadas de chás”. No senso comum, os gourmets, apesar de atentarem para o chá original, utilizam-se de ambos os processos, desde que bem-cuidados.
BEBIDA QUE ABSORVE
Um bom chá depende da plantação, do terroir, da manufatura do mestre e do preparo pelo consumidor. Os tipos mais famosos variam entre verdes, oolongs, brancos e escuros – nos quais estão incluídos os pretos ingleses de origem indiana, conhecidos no Oriente como vermelhos, e os cobiçados puers chineses, envelhecidos e de sabor mineral, além dos darjeelings indianos, de gosto doce amargo com notas de moscatel. A natureza da água utilizada na preparação é algo que se mostra essencial: “Grande parte do chá é composta por ela, uma influência direta no sabor. Sempre peço para que não utilizem nas degustações água de torneira, mesmo filtrada. O gosto fica flat. Tira o frescor e algumas notas aromáticas”, afirma Hayashi. O recipiente no qual ela será aquecida também importa, assim como aquele no qual a bebida é preparada e servida. “Uma simples experiência com utensílios de ferro, cerâmica e vidro revelam esta diferença”, diz João Campos. Através da absorção fácil do gosto e odor de qualquer ingrediente ou objeto, o chá pode ser modificado pelos comuns saquinhos sachês nos quais
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
2 CAMELLIA SINESIS O tradicional chá é produzido a partir desta planta
Cardápio
RECIPIENTES 3 O local em que o chá será preparado e servido influi em seus aroma e sabor
4 DELEITE VISUAL Os flowering teas foram criados pelo mestre Wang MASALA CHAI 5 Os indianos “temperam“ a bebida com leite e especiarias
são vendidos nas lojas. O indicado é comprar o produto a granel. Essa característica de absorver os sabores externos é fundamental para um dos métodos mais atraentes do universo gourmet do chá: os blends. “Eles têm como base um chá somado a um aroma que pode ser natural ou artificial, ou com diversos tipos de plantas”, diz Hayashi. Os chineses inventaram a perfumação, que consiste em secar as folhas e adicionar ao processo pétalas de flores, como as de jasmim. No Ocidente, misturas com frutas e ervas foram criadas para reduzir o amargor típico do líquido. O mais conhecido blend ocidental é o earl grey, que mistura vários tipos de folhas com a essência de bergamota. Para Suzette Hammond, a preparação do chá como bebida é algo pessoal, “tem muito a ver com conhecer a si mesmo. É assim que os grandes chefes são feitos, através da compreensão dos ingredientes e o relacionamento que eles protagonizam entre si”. Hoje, porém, já existem as tea makers para uso doméstico, máquinas modernas e simples que já fazem a infusão com folhas a granel no tempo correto, sem necessidade da atenção humana, substituindo os equipamentos básicos para a feitura artesanal como chaleiras, peneiras e cronômetro.
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XÍCARA E PRATOS
“Interessante é perceber como as culturas de diversas nações adaptam uma bebida de acordo com seu próprio estilo de vida e culinária”, lembra Hammond, sobre o relacionamento que diferentes países possuem com o chá. Por exemplo, os japoneses e chineses
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preferem sua bebida sem adição de ingredientes como açúcar, desfrutando o seu estado natural de acordo com o sagrado preparo. Os indianos costumam beber diariamente, num copo de barro, o masala tchai, uma mistura de leite, chá preto, cardamomo e temperos como canela e gengibre. Na Inglaterra, além dos blends, o leite apareceu como um modismo para proteger as finas xícaras de porcelana de manchas provocadas pelo chá, e hoje, junto ao açúcar, ajuda a encorpar a bebida. Os russos preferem servir os chás em copos de vidro temperados incrementandoos com geleia e gotas de limão. O chá teve um papel importante na independência dos Estados Unidos, após a revolta do Tea Party, mas não foi acatado na sua versão quente, em protesto ao calor do verão. Assim, no início do século 20, foram colocados cubos de gelo nas infusões, criando um refresco diferente em sabor e aroma, o chá gelado. “A maioria das essências são muito voláteis e requerem calor. Quando o aroma é minimizado pela temperatura, o gosto se torna mais simples, perfeito para a adição
Cada povo encontrou um modo adequado aos seus costumes de preparar a bebida, adicionando-lhe ingredientes
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de temperos mais fortes e frutas, proporcionando um delicioso adocicado difícil de repetir no preparo quente”, ensina Suzette Hammond. No Brasil, o chá gourmet não encontrou ainda popularidade, mas dá tímidos passos na conquista de adeptos. “Aqui, o ice tea ainda tem apelo, mas os quentes sofrem preconceito pelo clima do país. Se essa restrição fizesse sentido, não tomaríamos café, uma mania do brasileiro”, analisa a chef Mariana Parini, que há alguns meses promove o Chá da Tarde na sua confeitaria no Recife, a Dolce Vitrine. Monica Rennó, dona da Talchá, uma das maiores lojas do setor no Brasil, completa: “Acabamos tendo um conhecimento superficial sobre a bebida, muito restrito à busca
da cura que o chá proporciona. Mas os brasileiros estão se abrindo para os sabores das infusões mais sofisticadas”. Na gastronomia, um ingrediente pode ter múltiplas funções. Não seria diferente com as folhas de chá propriamente ditas, que podem compor o preparo de sopas nutritivas, saladas e biscoitos. Para a bebida, as possibilidades são várias, desde harmonizar refeições até servir de tempero. “A harmonização com chás segue o mesmo raciocínio da feita com os vinhos. O básico é tomar os chás claros, como os verdes e brancos, o chá de jasmim, por exemplo, com peixe ou frango, como faríamos com o vinho branco. E tente chás escuros com alimentos que normalmente harmonizam com vinho tinto, como carnes vermelhas”, ensina Hammond. João Campos usa a bebida no preparo dos pratos. “Costumo usar chás oolongs vermelhos em guizados de carnes e chás pretos em doces que levem leite ou creme de leite”. Yuri Hayashi gosta de combiná-la com chocolates, “eles ficam melhores do que com os cafés, que, por serem muito fortes, ao contrário do chá, cancelam as notas do doce”. Buscando um maior deleite visual, em 1986, o mestre chinês Wang criou os flowering teas. Chás em forma de esfera nos quais estão costuradas folhas secas e flores, que, colocadas em água quente, desabrocham, liberando aromas. João Campos conheceu o criador pessoalmente, na província de Anhui. “Ele inventou mais de 600 tipos de amarrações diferentes. A maioria desses chás disponível no mercado tem qualidade questionável e é mais voltada à ‘pirotecnia’. Os do mestre Wang, contudo, são saborosos por serem feitos com plantas e flores boas”. Ao longo dos séculos, uma xícara de chá continua se mostrando um convite à calma, uma lição para quem o degusta como contemplação do tempo e do prazer dos sentidos. O coreano Thich Nhat Hahn, um dos muitos poetas inspirados pelo chá, um dia aconselhou: “Beba seu chá lentamente e reverenciosamente, como se fosse o eixo sobre o qual o mundo gira – lentamente, de maneira uniforme, sem correr em direção ao futuro. Viva o momento presente. Somente este momento é a vida”.
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CON TI NEN TE
Criaturas Albert Camus por Cárcamo
Albert Camus (1913-1960) esteve no Brasil em 1949, numa viagem em que percorreu cidades como o Rio e o
Recife e teve contato com gente como Manuel Bandeira e Dorival “Kaïmi”. A experiência está em Diário de viagem. Entre outras impressões, Camus nos legou esta: “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar”.
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Ministério da Cultura apresenta:
IX Festa Literária Internacional de Pernambuco Homenageado: José Lins do Rego
14 a 17 de Novembro Praça do Carmo - Olinda
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A “BATALHA” ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO À INFORMAÇÃO
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