Continente #156 - Luxo

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# 156

#156 ano XIII • dez/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

O DESEJO DE OSTENTAR SE MASSIFICA NA SOCIEDADE DE CONSUMO

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AUGUSTO RODRIGUES | JOANESBURGO | BEL ANDRADE LIMA | DICIONÁRIO DO NORDESTE | MARACATU LEÃO COROADO 3/12/2013 15:45:43


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HELDER TAVARES

DEZEMBRO 2013

aos leitores Conta-se que, quando o novo shopping center do Recife estava para inaugurar, os ricos da cidade respiraram aliviados. Ali, eles teriam um lugar “só seu”, em que poderiam circular com garbo, sem ter que dividir espaço com os periféricos, que se tornaram uma “praga” em centros de compras mais populares. Ali, era a promessa, os menos favorecidos se sentiriam constrangidos com todo o fausto, com as marcas internacionais, com os preços inacessíveis. Não seria um lugar para “eles”. Os ricos foram frustrados. Logo na primeira semana, o shopping foi tomado por um público heterogêneo, “mestiço”, que também estava ávido pelo novo templo, louco por sorver aquela maravilha em concreto, vidro, vitrine e ar-condicionado central – frio, muito frio, para simular melhor a oposição com o calor grudento do espaço externo, por extensão, todo o Recife “natural”. O luxo agora é de todos, e não adianta bater pezinho. Os itens que serviam à distinção de classe, que erguiam nobres e burgueses (estes, já uns remediados históricos), foram parcelados em 10 vezes, sem juros. E, se o pobre não pode comprar os mesmos itens, ele pode satisfazer seu desejo de ostentação com genéricos e piratas. Ou ninguém por aqui usou um Falsier e um Ching Ling na vida? O

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desejo de consumo não é exclusivo dos ricos e, isso, a sociedade atual exacerba, escancara. O supérfluo nos redime. É nesse clima que navega a nossa matéria de capa: na observação desse fenômeno avassalador que é a sociedade de consumo. A reportagem realizada por Carol Leão reúne dados e análises extraordinários. Sim, trata-se de um fenômeno econômico, sobretudo com a estabilização da moeda, os programas sociais, o crescimento do salário mínimo e do emprego formal, que trouxeram melhorias na vida de muitos. Entretanto, o mais perturbador desse fato é que ele não transforma essencialmente os indivíduos, tampouco os aproxima. “Do ponto de vista da relação entre as classes, continuamos vivendo em um dos países mais desiguais do mundo, e não somente em termos de renda, mas de status e de direitos garantidos”, diz à reportagem Maria Eduarda Rocha, especialista em cultura de consumo. Isso significa que os abismos entre ricos e pobres se mantêm, apesar das aparências, apesar de todos poderem ingressar no mesmo shopping, ainda que em termos bem distintos. Contra os estratagemas de aproximação, os ricos dão um jeitinho: eles compram iates, porque, no alto mar, ainda conseguem a tão ansiada exclusividade.

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sumário Portfólio

Bel Andrade Lima 6

Cartas

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Expediente + colaboradores

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Entrevista

Tiago Rodrigues Encenador português fala sobre processos criativos coletivos e a cena teatral no seu país hoje

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Conexão

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Balaio

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Linguagem

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Palco

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Sonoras

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Entremez

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Leitura

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Criaturas

O suplício do Papai Noel Revoltado com os modismos, clero de Dijon incendeia o bom velhinho diante de crianças

Carnaval

Sambadas Grupos de brincantes da Zona da Mata ensaiam em espaço aberto, em eventos que atraem pela descontração

Fotografia Encartadas nesta edição, impressões de quatro imagens de fotógrafos pernambucanos evidenciam apuro técnico

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Rosa Em sua terceira edição, revista cultural eletrônica afirma sua condição queer

Regionalismos Dicionários que reúnem palavras e expressões típicas de territórios reforçam caráter cultural indissociável à língua

Visuais

Com as ilustrações para o Carnaval do Recife, a designer, que privilegia paleta reduzida de cores em estampas exuberantes, teve seu trabalho propagado

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Helio Eichbauer Cenógrafo carioca, que teve formação em Praga e desenvolveu trabalhos para importantes diretores nacionais, lança livro de memórias Forró Músico e pesquisador Climério de Oliveira esmiúça o gênero musical a partir de obras de Luiz Gonzaga

Ronaldo Correia de Brito O Baile nunca termina

Will Eisner Criador do personagem Spirit, o quadrinista tem sua vida interpretada em biografia

Sávio Araújo Tomie Ohtake

Claquete

Tradição

Imagens do inconsciente Reedição da trilogia dirigida por Leon Hirszman possibilita contato com terapias de Nise da Silveira

Leão Coroado Mais antigo maracatu nação completa 150 anos, numa história marcada pela manutenção dos costumes culturais e religiosos ligados ao candomblé

Matéria Corrida

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José Cláudio O retrato da vítima

CAPA FOTO Marcelo Soubhia/FOTOSITE

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Capa

Viagem

Luxo. Conceito antes restrito aos endinheirados, que podiam pagar por itens exclusivos, é agora massificado e inclui mesmo a classe C

Relegado ao ostracismo, depois do fim do apartheid, o bairro de Newtown é revitalizado por movimentos artísticos de rua e abertura de instituições de arte

Memória

Cardápio

No ano do centenário de nascimento do desenhista pernambucano, é lançado um olhar sobre sua produção no humor gráfico e nas artes plásticas

Na mesa de dedicados comensais, além de pratos principais caprichados, não podem faltar as bebidas de sobremesa, que favorecem paladar e digestão

Consumo

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Augusto Rodrigues

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Joanesburgo

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Dez’ 13

Digestivas

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TIAGO RODRIGUES

“Trabalhamos muito uns com os outros”

Encenador português fala sobre o trabalho da companhia Mundo Perfeito, na qual atua, e sobre o cenário teatral em seu país, hoje concentrado em Lisboa, e que tem se caracterizado pelas trocas constantes de experiências TEXTO Gianni Paula de Melo

CON TI NEN TE

Entrevista

É impossível desvincular o nome de Tiago Rodrigues da Companhia Mundo Perfeito, ainda que a trajetória do artista comece antes de o coletivo ser concebido. Isso porque os últimos 10 anos de trabalho com o grupo teatral que o consagrou no cenário português também foram decisivos para o surgimento do traço autoral de ambos, diretor e companhia. Junto à produtora Magda Bizarro, Tiago criou uma marca colaborativa e vem desenvolvendo projetos em parceria com grupos de vários países. Entre eles, constam experiências com artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. No entanto, seu ímpeto de tentar abraçar o mundo não significa desligar-se nem por um instante do seu lugar primeiro. Em conversa com a Continente, ele demonstra grande entusiasmo com a produção cênica da capital portuguesa, mas lamenta a falta de investimentos, que inviabiliza a mesma força criativa em outras cidades do país. O jovem diretor destaca o que chama de “promiscuidade” das artes performativas em Lisboa, onde há uma troca intensa entre profissionais de

diferentes companhias, que se envolvem nos projetos uns dos outros. Mundo maravilha e Peça romântica para um teatro fechado são os nomes dos espetáculos desenvolvidos em parceria com brasileiros – o primeiro, com a companhia Foguetes Maravilha, o segundo, com artistas de diferentes procedências, consequente de um convite do Teatro Ipanema. Outra peça que, embora não tenha sido desenvolvida em parceria com grupos do país, estabelece um diálogo instantâneo com o nosso atual momento é Três dedos abaixo do joelho. Seu texto é uma colagem de falas de censores do período da ditadura de Salazar. Três dedos nos faz pensar, a um só tempo, na censura do passado e do presente e nos documentos aos quais, no Brasil, ainda não temos acesso. CONTINENTE A imprensa portuguesa o define como um dos mais influentes criadores da década no país. Você concorda? TIAGO RODRIGUES A única coisa importante nesses rótulos, que têm sempre a injustiça de pôr um adjetivo em alguém em vez de pôr em outra pessoa, é quando ele oferece visibilidade

do trabalho do artista a um público mais alargado. De alguma forma, (esse rótulo) é o resultado de como a Mundo Perfeito desenvolveu 10 anos de trabalho intenso, de muita criação, altos e baixos. Essa intensidade permite que, inevitavelmente, você crie um espaço, e depois as pessoas põem o nome que quiserem. Acho que o que nos tornou aptos a sermos classificados como “influentes” foi o fato de colaborarmos com gente diferente e, ao interagir com outros grupos, a nossa forma de trabalhar se dispersar com eles. Também tem a ver com o fato de estarmos a completar uma década e termos criado um projeto que as pessoas já identificam. A única coisa realmente importante é que isso é uma forma de revelar conhecimento, não só reconhecimento de um artista, mas também conhecimento de seu trabalho. CONTINENTE Com quais outras companhias do teatro português você se identifica? TIAGO RODRIGUES Uma característica de uma geração do teatro português na qual eu me incluo é o fato de trabalharmos muito uns com outros, há circulação, uma grande promiscuidade.

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JOTA GAMBUZINO/ DIVULGAÇÃO

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ter uma dinâmica cultural devido à gestão política, como é o caso do Porto, que é a nossa segunda grande cidade, e foi quase completamente silenciada em termos artísticos por falta de investimentos. Há coisas de qualidade acontecendo no Porto, mas poucas e com pouco espaço. Alguns lugares tentam combater isso, Guimarães tenta ter uma dinâmica cultural; Montemoro-Novo, que é uma pequena cidade ao sul, é extremamente importante para a criação contemporânea, porque tem um projeto de residências artísticas. Mas a esmagadora maioria das cidades portuguesas do interior tem pouca oferta cultural. Já a dinâmica da capital, pelo contrário, tem reforçado que a cidade quer, politicamente, investir

MAGDA BIZARRO/ DIVULGAÇÃO

Claro que, depois, há o risco de tudo ficar parecido, mas não é o caso. Nessa mistura de gente, existem projetos que se destacam e que, muitas vezes, têm mais reconhecimento internacional do que no próprio país. Há uma companhia muito interessante, chama-se Mala Voadora, e está completando 10 anos como o Mundo Perfeito. É um grupo singular, com uma produção sólida e que se comunica com o nosso trabalho, porque eles também estão preocupados com a escrita, em como tratar a realidade, a política e a sociedade. Temos uma dupla de criadores, Ana Borralho e João Galante, que também já se apresentou no Brasil e que faz um trabalho de performances. Já colaborei com eles na tradução do texto, no acompanhamento

CON TI NEN TE

Entrevista dramatúrgico. São dois artistas mais conhecidos fora de Portugal e pode-se dizer que são volantes de nosso tempo. Na dança, a dupla Sofia Dias e Vitor Roriz é um caso fulgurante, com um trabalho próprio, inclusive difícil de definir. Acho que as artes performativas portuguesas são profundamente portuguesas, pessoais, parecem que só vão fazer sentido para aquelas pessoas, mas depois explodem. CONTINENTE E a produção está mais concentrada em Lisboa? TIAGO RODRIGUES Absolutamente. Primeiro, por ser a capital, então acaba tendo mais projetos, mais oferta. Depois, porque, nos últimos anos, o resto do país tem tido muitas dificuldades em

na cultura. Uma coisa importante em Lisboa é que existe sempre um olhar nas possibilidades, às vezes é muito deprimente, às vezes é muito difícil, não há dinheiro, mas há sempre esse olhar nas possibilidades. Isso é algo que o meio artístico poderia ensinar ao resto da sociedade... CONTINENTE Esse cenário vibrante tem conseguido impulsionar as novas gerações de artistas? TIAGO RODRIGUES Hoje, uma das questões mais importantes é abrir espaço para os mais novos, porque é pouco dinheiro e pouco espaço. Se eu tiver que competir com um estudante recém-formado no conservatório de teatro, eu ganho. Agora começam a

haver conversas entre artistas sobre como criar as condições para que a falta de meios não faça com que só uma geração com mais estrutura continue a se afirmar sem deixar espaço para os mais novos. Já é um sinal positivo o fato de estarmos preocupados com isso. Há um passado muito complicado de gerações anteriores que continuam a receber todo o dinheiro – companhias antigas com 30, 40 anos de trabalho – e a fazer pouco para abrir espaço para os mais jovens. Às vezes, eles convidam atores mais novos, mas é mais como absorver, não é permitir que eles façam seus próprios caminhos. CONTINENTE A companhia Mundo Perfeito está completando 10 anos. O que você acha que mudou neste tempo?

“O espetáculo Mundo maravilha foi criado em Montemor-oNovo, escrito por várias mãos. É uma ironia ingênua sobre a ligação entre o Brasil e Portugal.”

TIAGO RODRIGUES Somos mais ricos na forma como fazemos os espetáculos, temos mais ferramentas. Também articulamos uma linguagem, fomos construindo uma forma de olhar para o palco, de olhar para o trabalho com os atores. Muitas vezes os princípios são os mesmos, por exemplo, o de que o espetáculo nunca está fechado e só acontece realmente quando o público está presente. Se, durante a apresentação, passa um avião e faz barulho, não vamos fingir que ele não passou. Isso são coisas que se mantêm desde o primeiro dia, em 2003, o que acontece é que sabemos fazer melhor. Além disso, nós começamos ligados a projetos de criação coletiva e, lentamente, fomos compreendendo

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escolhido. Foi um verão explosivo, pois criamos três peças e mais não sei quantos solos. Continuamos em contato e, rapidamente, surgiu a ideia de fazermos outro trabalho juntos, porque percebemos que tínhamos muita coisa em comum. A oportunidade surgiu em 2012, no mesmo teatro em que tínhamos nos encontrado, o Maria Matos. A Mundo Perfeito os convidou para vir a Portugal para uma criação coletiva, nós e os quatro membros do Foguetes Maravilha – Felipe Rocha, Alex Cassal, Renato Linhares e Stella Rabello. O espetáculo Mundo maravilha foi criado em Montemor-o-Novo, ensaiado lá e estreado em Lisboa, escrito por várias mãos e interpretado por todos. É uma ironia ingênua sobre a ligação

companhias cariocas e paulistas eram dirigidos por um convidado estrangeiro durante duas semanas. Primeiro, foi a companhia Gob Squad, da Alemanha. Depois, foi a Lola Arias, de Buenos Aires. E o terceiro artista que eles convidaram fui eu. Trabalhei com oito atores de quatro companhias e fiz algumas propostas de textos, mas depois começamos a escrever em conjunto. Fui escrevendo todos os dias e, ao fim de uma semana, havia uma peça, então resolvemos fazê-la. Foi um processo intensivo, eu gosto muito de processos rápidos; gosto mais, às vezes, do traço a carvão que do quadro a óleo bem pintado. Às vezes, há qualquer coisa nessa urgência, nessa imperfeição, que me interessa.

DIVULGAÇÃO

que essa ideia de trabalharmos democraticamente é possível mesmo que haja um autor, porque isso não se traduz em uma hierarquia em que eu mando e alguém obedece, de que eu tenho um sonho e alguém serve ao meu sonho. Existe um lado nos nossos trabalhos que também nos transforma. Quando fizemos um espetáculo sobre cozinha, O que se leva desta vida, fomos trabalhar como aprendizes de cozinheiro. Quando fizemos Se uma janela se abrisse, fomos estudar jornalismo. Portanto, a cada espetáculo há uma aprendizagem para o artista, mas também para a pessoa. Acima de tudo, o que nos aconteceu foram 10 anos de vida, mais que de teatro. Tenho muito carinho pelo Tiago Rodrigues que

“Nessa mistura de gente, há projetos que se destacam. Há a dupla de criadores Ana Borralho e João Galante, que também já se apresentou no Brasil.”

começou com a Mundo Perfeito em 2003, mas eu não era tão bom quanto hoje, assim como tinha outras coisas que hoje devo ter perdido – essas são as escolhas que fazemos e as que não conseguimos fazer. CONTINENTE Como surgiu a parceria com o grupo Foguetes Maravilha? TIAGO RODRIGUES A Mundo Perfeito organizou em Lisboa, durante alguns anos, uma experiência que chamávamos de Estúdios e, todos os verões, convidávamos artistas estrangeiros para trabalhar com portugueses. Em 2009, desafiamos o Felipe Rocha, ator e dramaturgo do Rio, a escolher uma equipe carioca, trazê-la para Lisboa e trabalhar com a equipe que eu tinha

entre os dois países e, principalmente, sobre expedições, aventuras e contar estórias. Um grupo de brasileiros e portugueses que querem realizar um espetáculo decide fazê-lo a bordo de um navio, porque acham que isso tem um simbolismo qualquer. Obviamente, como são artistas brasileiros e portugueses, naufragam e morrem todos. O espetáculo é a história do que o espetáculo poderia ter sido. CONTINENTE Peça romântica para um teatro fechado também é uma parceria com o Brasil. Como se deu esse outro encontro? TIAGO RODRIGUES Surgiu de um desafio do Teatro Ipanema. Eles tiveram um projeto chamado Companhia Provisória, em que artistas de várias

CONTINENTE Você não parece sentir necessidade de esperar muito tempo para amadurecer seus projetos. TIAGO RODRIGUES Eu tenho experiências muito diversas. Demorei quase um ano escrevendo peças regularmente, mas também tenho criações realizadas em uma semana. Eu não escrevo por disciplina, se eu não fizesse teatro, eu não escreveria. Minha escrita é na beira do palco, faz parte da mecânica de construir um espetáculo, e o que acho que define uma obra é a escolha. O fato de ela ser escrita em duas noites ou em noves meses não deriva nenhuma garantia de qualidade. Nesse sentido, não acho que todo trabalho tenha que ser feito rapidamente, nem que tenha que ser lentamente, que

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precise de um ano, caso contrário não é válido. Três dedos abaixo do joelho demorou sete anos para ficar pronta, Peça romântica para um teatro fechado, duas semanas. Foi o tempo preciso.

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CONTINENTE O processo criativo e a possibilidade de fracasso são temas presentes nas parcerias com o Brasil. Você realmente enfrenta os projetos como barcos à deriva ou sabe exatamente aonde quer chegar ao integrar a temática? TIAGO RODRIGUES Existe um pouco das duas coisas. A partir do momento que tu olhas para o trabalho como uma possibilidade de fracasso e, ainda assim, isso te parece interessante, então as duas ideias se juntam. Uma de, efetivamente, poderes falhar e a outra

eu acho que há demasiado ego nesse gesto, mas se falarmos do processo com a convicção de que estamos a abrir a porta para outros níveis de leitura, então é muito interessante. Agora, há sempre o risco efetivo de falhar e essa possibilidade tem que estar sempre em cima da mesa, porque, quando achamos que ela não existe, significa que as coisas se tornaram aborrecidamente eficazes. Uma das principais competências dos artistas – e aqui não falo de mim, mas de grandes artistas de verdade – é essa capacidade de, tendo a qualidade e o conhecimento para produzir uma grande obra, portar-se como alguém que não a tem. Essa dúvida metódica é essencial. E é essencial que, às vezes, seja mesmo um fracasso.

CON TI NEN TE

Entrevista de integrar a possibilidade de falhar como uma parte do processo. No caso do Mundo Maravilha, falar do construir o espetáculo só vale se isso comunicar sobre outras coisas. O naufrágio, por um lado, diz muito sobre o risco de afundar ao tentar fazer um espetáculo, mas também sobre a necessidade de haver pensamentos divergentes, gente que faz coisas que não se sabe bem pra que servem; isso é essencial em uma sociedade, que haja essas zonas de risco e experiência. Portanto, sim, estávamos a falar da arte, mas também estávamos a falar de nós próprios, até mesmo em uma escala mais íntima, dos riscos que temos que correr na vida. Essas várias interpretações têm que estar lá, porque se falares estritamente do processo,

CONTINENTE Três dedos abaixo do joelho é uma peça sobre a censura oficial que o teatro sofreu em certo período histórico. Existe censura ainda hoje? TIAGO RODRIGUES Existe uma grande diferença entre haver um órgão do governo com a função de censurar, como aconteceu durante a ditadura, e o que há nas sociedades democráticas em que vivemos hoje. Não existe uma instituição, mas existe censura sim, sempre existiu. Hoje, há uma censura que vem da pressão econômica, que ocorre, muitas vezes, pela autocensura, pois se fizeres determinado trabalho artístico, talvez não tenhas financiamento. Acredito que a maioria dos artistas, na qual eu me incluo, pratica autocensura

em alguma medida, mas é algo mais ambíguo. Existem grandes grupos econômicos na sociedade e pressões que são exercidas para que certas coisas não aconteçam. Essa censura cumpre um caminho mais difícil de traçar, pois não se pode dizer que a pessoa A que dirige aquela empresa tenha proibido o artista Z de fazer o seu trabalho, mas, se fizermos o percurso, vamos ver a ligação entre essas instâncias. Uma das coisas que é interessante nessa peça é perceber como o público reconhece maneiras de falar. Por exemplo, quando o diretor de um canal diz que determinado reality show é imbecil, mas é o que o povo quer. Essa ideia de alguém que

“Três dedos abaixo do joelho é um grande elogio ao teatro. Uma diferença entre os censores daquele tempo é que eles achavam que o teatro era perigoso.”

assume saber o que o povo quer é completamente demagógica. Isso é algo que os censores faziam, eles diziam: “Por mim, aprovava, mas as pessoas não vão gostar”. Com a peça, percebe-se nos censores daquele tempo uma forma de argumentar que encontramos hoje na nossa sociedade. Agora, esse espetáculo é também grande elogio ao poder do teatro. Uma diferença entre os censores daquele tempo e o que acontece hoje é que eles tinham medo do teatro, eles achavam que o teatro era perigoso. Hoje, quem toma decisões que limitam a possibilidade do teatro acontecer, não o faz por medo, mas porque acha que o teatro é irrelevante. Isso é mais perigoso, ser indiferente ao teatro.

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ANÚNCIO GALERIA ARTE PLURAL

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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LUIZ GONZAGA

DOCUMENTÁRIO

O livro Forró – a codificação de Luiz Gonzaga, tema de matéria na seção de Sonoras deste mês, vem acompanhado de DVD, apresentado pelo autor da publicação, o pesquisador e músico Climério de Oliveira. O trabalho, quase uma videoaula, tem como objetivo destrinchar as características marcantes de cada um dos subgêneros do gênero principal, o forró, como as variantes das batidas da zambumba, a importância do triângulo e o papel da sanfona em cada um deles. O DVD traz participações especiais de diversos músicos, como Genaro, Camarão e Dominguinhos, em um dos últimos registros do sanfoneiro.

Assista a Imagens do inconsciente, comentado em Claquete. Nele, são narrados casos de três pacientes de Nise da Silveira, tratados com práticas artísticas.

Conexão

RUBEM BRAGA Confira o prefácio de Alvaro Costa e Silva para a nova edição de Rubem Braga – um cigano fazendeiro do ar, seguido da abertura do livro, A guerra de um repórter.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

VIAGEM

ESTADOS

JUSTIÇA

PESQUISA

Jornalista e design contam sobre andanças em território africano

Depoimentos de artistas sobre suas tristezas

Organização cria site em apoio às vítimas de pornografia online

Família do geógrafo Milton Santos cria site que disponibiliza sua obra

afreaka.com.br

oqueetristezapravoce.com.br

endrevengeporn.org

miltonsantos.com.br

Saindo de Johanesburgo, na África do Sul, a jornalista Flora Pereira e o designer Natan Giuliano percorreram, durante sete meses, sete países africanos (Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Zâmbia, Quênia, Tanzânia e Moçambique), em busca de elementos que revelassem ao Outro a cultura contemporânea desses diversos lugares, pouco conhecidos para a maioria dos habitantes globais. “Tendências, música, arte, arquitetura, pessoas, projetos sociais, moda, cultura jovem, tradições, diversidade e tudo o que se encaixa na zona de intersecção desses tópicos” é o que promete a dupla neste site, em conteúdos como textos, fotos e ilustrações.

Em Conexão, do mês passado, indicamos o blog Gluck Project, dos jornalistas Fred Di Giacomo e Karin Hueck, que largaram tudo no Brasil e foram estudar a felicidade em Berlim, postando suas experiências online. Na contramão dessa proposta, está O que é tristeza para você?, criado pelo Coletivo Centro, a partir do curta-metragem Thomás Tristinho. O projeto reúne uma série de minidocumentários com artistas de diferentes áreas, expressando em suas mídias respostas à pergunta lançada. Em sua segunda temporada, O que tristeza é para você? agora abre espaço à participação do público na produção e sugestões de ideias.

O termo revenge porn é novo, mas a prática de se vingar de ex-afetos, divulgando imagens intimas na internet é conhecida há tempos. Nos últimos dois meses, três casos brasileiros ganharam destaque, com dois deles, infelizmente, acabando em suicídio. Além de desassistidas pela lei brasileira, que ainda não tem especialidade para crimes virtuais, as vítimas desse tipo crime têm que suportar forte constrangimento, problemas psicológicos, sociais, familiares. O grupo End Revenge Porn, criado pela Dra. Holly Jacobs (uma ex-vítima), oferece, de forma prática, ajuda jurídica e psicológica a pessoas que passaram pelo mesmo problema.

Com passagem por universidades do porte da Paris-Sorbonne, Massachusetts Institute of Technology, Universidade de Toronto e Columbia University, Milton Santos é autor de importante legado. Nascido em Brotas de Macaúbas (BA), Milton ganhou o mundo por meio dos seus estudos sobre geografia humana. Além de uma biografia detalhada, o site, organizado e mantido por sua família, tem o propósito de reunir obras do pesquisador e artigos sobre seu trabalho e vida. A quantidade de material é extensa, já que ele teve uma vida acadêmica ativa desde cedo e também por ser referência em sua área de estudo.

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blogs ECONOMIA estamosricos.com.br

O blog Tem algo errado ou estamos ricos? tenta provar, de forma bem-humorada, que nós, brasileiros, somos ricos, mas ainda não sabemos disso. Comparando preço de imóveis em cidades do primeiro mundo e cidades brasileiras, ou mesmo de aparelhos eletrônicos no exterior e por aqui, o blog mostra uma diferença gritante de preços e qualidade dos produtos, a favor do Brasil.

ARTE E LITERATURA QUEER

MÚSICA

Em sua terceira edição, a revista eletrônica Rosa afirma discussão de gênero através de produção artística

Se você é um músico daqueles que passou do violão ao cravo tentando achar seu talento natural, mas sem muito sucesso, a ilustradora e quadrinista francesa Aude Picault pode ajudar com uma solução divertida. Em 2011, ela ilustrou a Fanfare, uma banda animada que toca a música Les ouiches lorènes. Basta um clique e você se transforma em um maestro de banda.

audepicault.com/fanfare/fanfare.htm

revistarosa.com.br

Ao assumir a vontade de se vestir como uma mulher, o cartunista Laerte

Coutinho trouxe à tona, de forma efetiva, um assunto antigo, mas negligenciado – para não usar a palavra feia que é “marginalizado” – em todos os setores da nossa sociedade. A partir dele, foi gerada uma variada discussão sobre o desejo de homens se trajarem como mulher, ao mesmo tempo em que se criou espaço para abordar questões de sexualidade e gênero de forma mais abrangente. A revista eletrônica Rosa tomou partido da ousadia de Laerte, ao segmentar ainda os assuntos trazidos em revistas direcionadas ao público de cultura, tornando suas pautas também uma discussão afirmativa da liberdade sexual. À primeira vista, o nome Rosa nos direciona a um gênero específico, mas o editorial da primeira edição esclarece: “Rosa é uma cor que está sempre envolvida em questões de gênero. Para os meninos, é ofensiva; para as meninas, reforça estereótipos. Obviamente, cor é cultura”. Assim, Rosa busca romper com essa tradição. No que diz respeito ao conteúdo, a revista, que é trimestral, explora desde a literatura às intervenções urbanas. Um destaque da última edição fica para um trecho do livro Nossos ossos, do romancista pernambucano Marcelino Freire. GABRIELA ALMEIDA

ILUSTRAÇÃO alice-wellinger.com

“Sempre tento contar uma pequena história em minhas ilustrações. Eu gosto quando as pessoas têm algo para pensar.” É assim que a ilustradora austríaca Alice Wllinger define sua obra. Ela trabalha principalmente com o Surrealismo e o irônico, para retratar a rotina da vida e as suas lembranças da infância.

sites sobre

Fotografia ANALÓGICO

CINEMA

AMADORES

queimandofilme.com

cinematography.com

youarenotaphotographer.com

Queimando Filme é um site essencialmente voltado às técnicas fotográficas, sobretudo as de baixa tecnologia. Ele orienta também na compra de equipamentos.

Cinematography é um fórum especializado na sétima arte, em que há ênfase nas técnicas de fotografia, mas com informações sobre produção, direção, som e edição.

Para minar pretensões, o site enfatiza que não basta ter uma câmera e o Photoshop instalado no computador para ser fotógrafo e explica o porquê dessa negação.

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REPRODUÇÃO

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FOTOS: REPRODUÇÃO

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Portfólio

Bel Andrade Lima

ALEGRIA CROMÁTICA TEXTO Luciana Veras

Isabela da Fonte de Andrade Lima tem 28 anos, é a terceira dos cinco filhos de

Mariza, uma médica, e Hisbello, um engenheiro, e reúne, no sobrenome, a tradição de duas numerosas famílias pernambucanas. Mas a assinatura concisa – Bel Andrade Lima – já indica o pragmatismo da designer, carreira pela qual optou em 2004, ao abandonar a ideia de cursar Medicina e ingressar em Desenho Industrial, com habilitação em Programação Visual (UFPE). Se o interesse pela Medicina refletia o exemplo materno (“sempre quis ser médica, me espelhava nela”), a opção pelo design casava com o hábito de desenhar, cultivado por conta de uma “piração em histórias em quadrinhos”, e pela vontade de desenvolver algo que fosse autoral. Surgiu, nessa decisão consciente, o embrião do seu estilo, que em 2013 ganharia as ruas do Recife nas ilustrações utilizadas no projeto de cenografia urbana e decoração do carnaval da cidade. O traço de Bel encontra matrizes diversas. Uma delas é a sobriedade cromática do design escandinavo – fã do coletivo Marimekko e da também finlandesa Sanna Anukka, ela menciona a escassez de cores como um trunfo a ser explorado. “É um design complexo, de paleta mais limitada, mas não por isso pobre, com espaço para simplicidade e repetição”, contextualiza. Pode-se dizer o mesmo daquilo que, hoje, ela admite ser sua “assinatura”. “Uso poucas cores, no máximo quatro; menos é sempre mais. Quando vou ilustrar, o

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Ilustração para edição de novembro de 2012 do jornal literário

Nestas páginas 2 MARCAS

A designer cria estampas para produtos de mercado

3 MODA Ilustrações para grife de roupa infantil 4 PALETA Bel Andrade prefere usar poucas cores em cada padrão

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FOTOS: REPRODUÇÃO

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CON TI NEN TE

Portfólio

desenho vai seguindo uma composição. Então, antes de qualquer coisa, faço quatro quadradinhos de cores, coloco lado a lado e vejo se dialogam”, conta Bel. Nas estampas, a lógica decorre da repetição: “Quando se repetem os elementos, tudo ganha outra dimensão, outros contornos, outra cara”. Em uma escala maior, a própria vida, nada estanque, serve-lhe de inspiração. Entre 2005 e 2012, ela foi a Londres para estudar na Central Saint Martins College of Arts and Design; voltou ao Recife, trabalhou em dois estúdios de design e duas agências de publicidade, idealizou a estamparia de uma grife de pijamas infantis, foi para São Paulo, atuou na extinta revista Bravo!, fez diversas ilustrações para outros veículos da

imprensa e, aos poucos, foi se sentindo “mais ilustradora do que designer”. Nesse meio tempo, uma amizade via Instagram com a designer, ilustradora e artista visual Joana Lira rendeu-lhe o convite para substituí-la na equipe que decora o Recife para o reinado de Momo. “Sempre fui sua fã, achei uma honra, topei na hora.” Bel criou figuras e ícones que simbolizavam o percussionista Naná Vasconcelos, homenageado da festa em 2013, e ursos, passistas de maracatu, mulatas fogosas e outros tipos urbanos característicos da iconografia carnavalesca. Maximizados em totens de até 7m, serviam de suporte para as fotografias em preto e branco do outro homenageado, o fotógrafo Alcir Lacerda (1928-2012).

Explorando nuances de azul, rosa, marrom e branco, com força, expressividade e delicadeza figurativa, o traço de Bel sugere um parentesco armorial (ela é, afinal, sobrinha do pintor Romero de Andrade Lima) e revela ecos de Gilvan Samico, como no uso de cores intensas, porém delicadas, para aplacar o contraste entre preto e branco. A estreia no Carnaval lhe deu outra certeza: “Sinto vontade de construir algo meu. De virar artista mesmo”. Dúvidas? Existem, claro. Mas ela, agora radicada em São Paulo, continua a experimentar. Matriculou-se, recentemente, em um curso de bordado e vislumbra incursões por porcelana e cerâmica. Aguardemos, pois.

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5 ILUSTRAÇÃO Em sua atuação em design gráfico, trabalhou para a revista Bravo! 6-7 EM 2013 Primeiro trabalho da artista para a decoração do Carnaval recifense

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SANTA CLAUS, DE WILLIAM HOLBROOK BEARD/ REPRODUÇÃO

LOU E LAURIE

O suplício do Papai Noel A coisa se deu na véspera de Natal de 1951. No pátio da Catedral de Dijon, na França, 250 crianças assistiram a um ritual macabro: um boneco do Papai Noel foi queimado numa fogueira. Os mandantes? O próprio clero. Motivo: acabar com a idolatria a uma crendice pagã, uma aculturação norte-americana, em detrimento da adoração ao Menino Jesus. O fato tornou-se um escândalo, criticado em reportagens, artigos, editoriais e notas de repúdio por toda a França. Diante do malfeito, a prefeitura local “ressuscitou” o Bom Velhinho, em um ato na frente do seu prédio. Claude Lévi-Strauss acompanhou o episódio com interesse e, a partir dele, escreveu um belo ensaio, O suplício do Papai Noel. Nele, o antropólogo busca explicações menos óbvias para o repúdio da Igreja ao frisson em torno do velhinho de barbas brancas, não para defendê-la, mas para buscar as origens da presença cultural do Noel. Mitos e personagens como o Père Fouettard (que castiga crianças malcriadas) e St. Nicholas (suposta matriz do Papai Noel), assim como objetos e práticas ligadas ao Natal de épocas distintas da história são reunidos para trazer a compreensão. Lévi-Strauss parte do conceito de “difusão por estímulo”, em que um costume importado funciona como catalizador de elementos potencialmente ali presentes há anos. Ótima leitura para tempos de hegemonia do pisca-pisca de LED! ADRIANA DÓRIA MATOS

CON TI NEN TE

A FRASE

FOTOS: DIVULGAÇÃO

“A guerra é a forma de Deus ensinar geografia aos americanos.” Ambrose Bierce, escritor

Laurie Anderson corre o risco de virar apenas uma nota de rodapé na história da cultura pop, “esposa de Lou Reed”. No entanto, ela é bem mais que isso: artista plástica, compositora, inventora de instrumentos musicais, realizadora de curtas-metragens e musicista. Era considerada pelo marido seu “segundo” Andy Warhol, padrinho do começo da carreira de Lou com o Velvet Underground, com quem podia trocar ideias sobre arte. Ela foi sua companheira desde o começo dos anos 1990 até o dia 27 de outubro, quando nos braços da “eterna amiga”, o cantor se foi, olhando para árvores e fazendo com as mãos os movimentos do tai chi chuan, numa manhã de domingo, lembrando poética e ironicamente o nome da canção que iniciou a trajetória fonográfica de Lou Reed, Sunday morning. (Débora Nascimento)

Balaio LOU E LESTER Para muitos, Lou Reed foi um gentleman, um homem atencioso e generoso. Mas, para alguns, principalmente jornalistas que cobrem a área musical, o ícone não era exatamente um docinho de coco. Talvez essa relação conflituosa tenha se agravado após os contatos que teve com o mais iconoclasta dos críticos de rock, Lester Bangs. Numa certa madrugada de 1975, Lou e Lester travaram, talvez, a mais ácida entrevista da história da música, com direito a sarcasmos, hostilidades, insultos e palavrões mútuos. As perguntas e respostas pareciam mais um duelo de agressões verbais. Quando conseguiam dialogar, os temas abordados não eram menos espinhosos: efeitos de algumas drogas, críticas a Iggy Pop, a vida sexual de David Bowie... A entrevista, eternizada no livro Reações psicóticas, começa da seguinte forma: “Oi, Lou…Creio que você se lembra de mim”. Após um aperto de “mãos de peixe morto”, o cantor respondeu: “Infelizmente”. (DN)

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ARQUIVO

LOU E SUSAN Lou Reed era uma artista de atitudes controversas, como, por exemplo, lançar no auge da fama, três anos após o clássico Transformer, um álbum inteiro apenas com distorções de guitarra, Metal machine music (1975), que se tornou o mais devolvido nas lojas. Em 2010, um ano antes de sua polêmica parceria com a banda de heavy metal Metallica, ele negou a Susan Boyle, então badalada caloura do programa de auditório America’s Got Talent, o direito de gravar a música Perfect day, do citado Transformer. Mas, após conhecer a história da intérprete e ouvir a interpretação, resolveu não somente liberar a gravação, como dirigir o clipe da música. (DN)

TODA ARTE TEM UM LOUCO

A discussão sobre a ligação entre arte e “loucura” ganhou reforço com um estudo do Karolinska Institutet, da Suécia, que confirma a relação entre tendências artísticas a doenças mentais e problemas como bipolaridade, autismo, TDAH, anorexia nervosa, suicídio, depressão e abuso de drogas. Podemos pensar em muitos exemplos efetivos, como Lou Reed (drogas), Amy Winehouse (álcool, drogas e anorexia), Sylvia Plath, na foto acima, (depressão e suicídio)... Os pesquisadores avaliaram o histórico de 1,2 milhão de pacientes. O transtorno bipolar se mostrou mais comum em pessoas com profissões artísticas ou científicas do que na população em geral. Para Simon Kyaga, um dos autores do estudo, a confirmação da associação entre a criatividade e transtornos mentais pode colaborar na forma como estes são tratados. (DN)

Precisando de Viagra? Há exatos 60 anos, era lançada nos EUA a Playboy, revista que mudaria o padrão de caretice herdado pelos jovens da geração babyboom. Hugh Hefner (na foto acima), então com 27 anos, comprou um lote de fotos de Marilyn Monroe (feitas para um calendário) por 500 dólares e imprimiu do próprio bolso a edição de dezembro de 1953. O seu palpite de que a publicação não daria certo fez com ela saísse sem número e data na capa. Porém, tão rápida quanto uma bimbada de coelho – marca registrada da publicação –, a revista esgotou sua tiragem de 69 mil exemplares e consolidou-se como entretenimento de homem, com fotos de mulheres famosas, nuinhas da silva, cartuns, reportagens de moda, comportamento e as imensas entrevistas. Seu logo espalhou-se pelo mundo, inclusive no Brasil, onde foi lançado com o nome Revista do Homem, pois os milicos, nacionalistas, não gostavam do nome em inglês. E não deixavam, pudicos, que aparecessem pelos púbicos, até que, com a abertura política, escancararam as páginas e pernas, exibindo verdadeiras florestas, como as de Cláudia Ohana e Vera Fischer, entre outras. Hoje, em meio a boatos de fechamento, com a internet mostrando tudinho, tudinho, talvez a revista esteja precisando de um Viagra – para Hefner, a maior invenção do século 20. (LUIZ ARRAIS)

JACOBSEN SE DEU BEM... O inglês John Profumo (1915-2006), ministro da guerra no começo da década de 1960, protagonizou o primeiro grande escândalo da história política britânica no século 20. A imprensa deitou e rolou. Conservador, ele pediu demissão do cargo em junho de 1963, depois de admitir seu relacionamento com a prostituta Christine Keeler (foto), que, ao mesmo tempo, era amante do adido militar soviético em Londres, Evgene Ivanov. Pivô da crise, Christine foi convidada pelo fotógrafo Peter Morley para posar nua em divulgação de um filme sobre o caso. Mas, por causa do sucesso do ensaio, o filme acabou não sendo exibido. Quem se deu bem mesmo foi o arquiteto e designer de móveis dinamarquês Arne Jacobsen, criador da Chaise 3107, em que Christine pousou seu charmoso bumbum. O designer se beneficiou da publicidade gratuita da sua cadeira pelos quatro cantos do planeta. (LA)

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MARCELO SOUBHIA/FOTOSITE

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CONSUMO

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SÓ!

O alto consumo da sociedade contemporânea, que vem redefinindo papéis sociais, tem motivações culturais, antropológicas e psicológicas, que o projetam para além do rótulo de “fenômeno econômico” TEXTO Carol Leão

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CON CONSUMO TI NEN TE HELDER TAVARES

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É sempre mais difícil analisarmos

os fenômenos culturais que estão acontecendo, enquanto os vivenciamos. Defende o teórico pós-modernista Steven Connor que só se pode obter e aproveitar o conhecimento sobre coisas de alguma maneira acabadas e encerradas. “Essa formulação se baseia num sentido da separação inerente entre experiência e conhecimento, uma crença de que, quando experimentamos a vida, só podemos compreendê-la parcialmente; de que, quando tentamos compreender a vida, deixamos de experimentá-la de fato”. Esta matéria da Continente ilustra, de certa forma, essa ambiguidade. Há algo de distinto no Reino dos Engenhos Coloniais. São mudanças que estilhaçaram o luxo, criando um mercado novo, hierarquizado, no qual coexistem o luxo de exceção, o raro e exclusivo, e o luxo intermediário – parcelado em 10 vezes, mas nunca ignorado. “O brasileiro compra por impulso e adora uma novidade. Mas, para operar aqui, tem que parcelar, faz parte da nossa cultura”, defende Cláudio Diniz, diretor-executivo da

Com a estabilidade econômica, surgiram tipos de luxo que incluem de produtos e objetos a experiências sensoriais Maison du Luxe, consultoria paulista especializada nesse segmento. No topo da pirâmide, lembramos as suntuosas festas de casamento e seus vestidos de 40 mil reais, os aniversários majestosos de bebês, as boas-vindas aos recém-nascidos, com bolos de renda bordados à mão e suíte reservada para a chegada dos nobres recifenses. Os banquetes gastronômicos nos quais os eleitos desfrutam de cardápios excêntricos. O universo gourmet, com extratos de baunilha que custam fortunas. E a moda personalizada, pela qual se compra a marca, mas customizada à sua maneira por alguns mil reais a mais. O colunismo social, em que ricos emergentes desfilam seus hobbies. Os

apartamentos de cobertura, isolados do burburinho urbano, com vistas exclusivas e panorâmicas. E, agora, a vantagem de não se precisar atravessar o Atlântico para se obter as tendências da alta costura. Elas estão aqui, e prometem chegar cada vez mais. É o que mostra o ingresso de grifes tradicionais ao Recife, como Burberry e Prada. Tudo isso seria considerado natural diante da riqueza concentrada em Pernambuco. Mas não podemos mais falar em distinção econômica, e, sim, em distinções culturais. Apesar de não contarmos com estatísticas mais atualizadas sobre o mercado de luxo e sua hipotética democratização no Recife, como apregoam os especialistas de marketing, não deixamos de notar que ele se impõe e revela uma distância hierárquica estabelecida como legitimidade entre os diversos tipos de consumidores. Um mercado embrionário e próspero, do ponto de vista da geração de renda e movimentação econômica. Um motivo óbvio de seu sucesso é a caçada globalizante a novas “praças” de comercialização e o mundo de olho nos

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MERCADO O aporte de marcas luxuosas a centros de compras espelha as migrações e ascensões de classes. Nos últimos 10 anos, 165 mil brasileiros ficaram milionários

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PHOTO NOTE Ensaio do artista holandês Hans Eijkelboom, realizado em metrópoles globalizadas, evidencia, entre outros aspectos, a padronização do estilo pelas tendências de moda

nas comunidades tradicionais da América Latina, defende uma “reconceitualização” do consumo, não apenas como cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como o campo no qual a sociedade se organiza em torno de posições psicológicas e sociopolíticas que redefinem sua identidade e, consequentemente, o exercício da cidadania.

SUPÉRFLUO INDISPENSÁVEL

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BRIC, que o Brasil integra como potência emergente. Segundo Cláudio Diniz, que também é um dos maiores estudiosos do luxo no Brasil e autor de O mercado de luxo no Brasil – tendências e oportunidades, a estimativa é de que o segmento movimente US$ 48 milhões em 2025. Por isso deve ser pensado a longo prazo. Nos últimos 10 anos, 165 mil brasileiros ficaram milionários e 34 milhões de pessoas migraram para as classes A, B e C. Esse número pode chegar a mais de 30 milhões, em 2025, só no que se refere às classes

mais baixas. Com a estabilidade econômica, surgiu não um, mas vários tipos de luxo, que incluem desde acesso a produtos e objetos caros a experiências sensoriais exclusivas. Esse novo tipo de luxo muda os padrões associados ao consumo e aproxima os recifenses das classes menos abastadas de uma cidadania que se exerce pelo poder de aquisição de bens materiais e culturais. Nestor Garcia Canclíni, teórico que vem há mais de duas décadas estudando os efeitos do consumismo

Para trabalhadores que por décadas foram alijados do poder de sedução da publicidade, agora é a hora de mostrar o seu potencial consumista. Cidadania exercida na medida em que o mercado os enxerga com o direito básico ao supérfluo indispensável. “O consumo é um lugar onde os conflitos entre as classes, originados pela desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade em relação à distribuição e à apropriação dos bens”, descreve Manuel Castell. Por isso há uma tensão silenciosa num dos mercados mais promissores que se estabelecem no Recife, cidade que detém o número de 1.743 milionários – conforme dados do Haliwell Bank. Considerado um dos campos econômicos mais prolíficos do futuro, por conta da expansão da riqueza mundial, o consumo de luxo é tendência geradora de distinções culturais e acompanha, na cidade, o crescimento da mão de obra qualificada que tem dinheiro e quer gastar. Não foi, no entanto, por conta de seus modernos shoppings que marcas como Burberry e Prada aportaram no mais novo mall da capital, o Rio Mar. Marcas internacionais pesquisam bem os locais em que vão investir e o Recife é, hoje, a cidade com maior expectativa de crescimento no Nordeste e no Brasil, segundo a especialista em Desenvolvimento

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CON CONSUMO TI NEN TE Econômico Tatiane de Meneses, professora de Economia da UFPE. “Temos acompanhado em Pernambuco um PIB acima da média nacional, que atrai empresas e riquezas para o estado. Mudamos o perfil da mão de obra, que hoje é qualificada, mais produtiva e bem-paga. Para se ter uma ideia: em 2001, apenas 28% da População Economicamente Ativa (PEA) eram formados por pessoas que tinham mais de 11 anos de estudo. Em 2011, esse número subiu pra 46%”, explica Tatiane. A primeira e mais problemática tensão é que boa parte dessa mão de obra qualificada vem de migrações interestaduais. De Pernambuco, tem-se aproveitado, como nunca, o setor de serviços gerais, responsável por um fenômeno contemporâneo: a categorização de uma classe pelo seu acesso ao consumo e não por indicativos socioculturais, como é de praxe nas estatísticas sociológicas. É o fenômeno da classe C, formada por trabalhadores como empregadas domésticas, frentistas, taxistas, entre outros serviços gerais, que, por conta de uma política de estabilização da moeda e da melhoria na oferta de trabalho, aponta Tatiane, passou a ter acesso massivo a compras parceladas. “Essas pessoas não mudaram de classe, não houve mobilidade social. Elas apenas deixaram de comprar artigos de sobrevivência e se inseriram no mercado de bens supérfluos e de entretenimento”, detalha a pesquisadora. “Do ponto de vista da relação entre as classes, continuamos vivendo em um dos países mais desiguais do mundo, e não somente em termos de renda, mas de status e de direitos garantidos. Afirma-se que somos os inventores do elevador de serviço e isso diz muito sobre nossa sociedade. De todo modo, a desigualdade caiu pelo contínuo crescimento do salário mínimo, o aumento do emprego formal e os programas sociais”, completa Maria Eduarda Rocha, especialista em cultura de consumo e professora da pós-graduação em Sociologia da UFPE. A distribuição da renda gerou, sobretudo, um excedente de oportunidades com as quais a cultura contemporânea reivindica, a despeito da classe, o seu direito ao supérfluo. Um exemplo recente virou hit e meme

HELDER TAVARES

A pirataria contribui para difundir signos das grandes marcas, que hoje circulam promiscuamente nos mercados urbanos na internet: o Melô da calça jeans. Em meio a boatos sobre o fim do Bolsa Família, um vídeo de uma senhora negra, mãe de família, caiu no YouTube, gerando comentários jocosos, indignados com o rumo que a matriarca daria para sua mesada pública. “Só ganho 134 reais, não tá dando nem para comprar uma calça para minha filha. Porque uma calça para uma jovem de 16 anos é mais de 300 reais”, vaticinou. Independentemente das implicações sociais que um comentário como este indica, a frase

dá a justa medida de como o consumo supérfluo se tornou indicativo do manejo da renda familiar.

SEM FRONTEIRAS

A disseminação da informação e o acesso massivo aos meios digitais estimularam a aproximação de mundos distintos que, por meio do e-commerce, blogs e promoções em mídias sociais, acabaram tendo o luxo inacessível desmitificado. O surgimento das lan houses, que ocupam boa parte das periferias recifenses, e do wi-fi, facilitou o ingresso desse novo consumidor ao mercado de bens supérfluos. Para muitos consumidores das diversas variantes de luxo, o deslocamento geográfico era o passaporte para a fruição nesse universo – o que acabava garantindo o monopólio dessa informação apenas para os detentores de capital financeiro suficiente para

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CLASSE C Com a estabilização da moeda e o crescimento do salário mínimo, parcela da população, alijada do consumo de bens supérfluos, pôde ter acesso a eles

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viagens nacionais e internacionais – ou aquisição de informação por meio de mídia especializada. Naturalmente, o poder de sonhos e as fantasias de raridade e exclusividade coexistem à atração pelas políticas de preço e imagem acessíveis. Segundo Gilles Lipovestky, autor de Luxo eterno – da idade do sagrado ao tempo das marcas, no entanto, é um novo sistema que cresce, junto à difusão das cópias e falsificação das marcas. A pirataria, ironicamente, contribui para a democratização, somente em tornar popular o signo das grandes marcas, que hoje circulam promiscuamente nos mercados urbanos. As logos, porém, são esvaziadas do sentido original atribuído a grandes grifes (apoiadas em sua institucionalidade, tradição e permanência, caso, por exemplo, de símbolos como Channel, praticamente uma lei para os consumidores de alto luxo). A logo, no luxo democratizado,

é menos índice de refinamento e mais mecanismo de identificação com os personagens da indústria do entretenimento: celebridades efêmeras, jogadores de futebol, cantores pop, sertanejos. O diretor da CDL, Fred Leal, localiza com propriedade esses novos consumidores, que praticamente causaram uma revolução na forma com a qual as empresas negociam os produtos contemporâneos mais populares, sobretudo os tecnológicos. “Eles estão nas grandes lanchonetes, estão comprando smartphones e TVs de plasma ou assinando TV a cabo”. Nas periferias, é comum a proliferação de antenas de TV por assinatura, cujos assinantes das classes C e D representam, juntos, quase 70% dos serviços, segundo estudo divulgado pelo Instituto Data Popular, em abril deste ano. “Antigamente reservados aos círculos da burguesia rica, os produtos

de luxo progressivamente ‘desceram’ à rua. No momento em que os grandes grupos apelam a managers oriundos de grande distribuição e treinados no espírito do marketing, o imperativo é de abrir o luxo ao maior número, de tornar ‘o inacessível acessível’”, diz o autor de Luxo eterno. O gosto generalizado pelas grandes marcas, o crescimento de consumo em frações ampliadas da população provocam, para ele, uma relação menos institucionalizada, mais personalizada, mais afetiva com os signos prestigiosos. Mudanças que convidam ao questionamento do sentido social e individual do consumo dispendioso, “bem como do papel tradicionalmente estruturante das estratégias distintivas e dos afrontamentos simbólicos entre os grupos sociais”. O clamor de pertencimento a uma cultura à qual esteve tradicionalmente afastada economicamente reformula, porém, toda a dinâmica do consumo, com a liberação de uma demanda reprimida. Cada vez mais, as facilidades de pagamento se tornam um meio de acesso a essas classes que, sorrateiramente, vão ocupando um espaço deixado para trás pela classe média, por uma pequena burguesia. Eis a segunda grande tensão do mercado de luxo democratizado. O ingresso da classe C redefine o gosto e a distinção entre classes. “Quando os bens se democratizam, perdem sua capacidade de marcar o ‘valor’ social de seus usuários. O ingresso de novos grupos sociais no mercado de consumo de bens e serviços, como máquinas de lavar roupas ou viagens de avião torna esses bens e serviços ‘triviais’, de modo que eles perdem a capacidade de explicitar as fronteiras entre as classes médias e as classes baixas, até então excluídas do consumo”, explica Maria Eduarda Rocha. Basicamente: para as classes originalmente detentoras desses estoques de bens de entretenimento, a popularização os banaliza. O acesso ao refinamento, possível pelo estabelecimento de um mercado de luxo desmitificado, altera o gosto e distinção na cidade. Os grupos mais abastados buscam desvincular-se da banalização estética, que os ameaçaria nessa nova relação com o grande público.

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EXCLUSIVO Sensorial... de exceção

No mercado de alto luxo, o que mais valora o indivíduo de posses é o conceito de exclusividade, pelo qual se paga muito caro Embora visto muitas vezes como um campo no qual se sobressaem os aspectos mais supérfluos ou superficiais da cultura contemporânea, o consumo é hoje um dos mais significativos elementos de reposição da distinção cultural, ultrapassando até indicadores de escolaridade e posicionamento social. Cada grupo, cada classe em destaque nesse novo cenário do consumo fará uso dos códigos publicitários e comportamentais para se definir diante dos demais, afirmando sua soberania, independentemente de conta bancária. “Toda determinação é uma negação”, diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Formado em Direito, o velejador profissional Samuel Brito está há três anos num mercado pioneiro e

considerado um dos mais profícuos do luxo do Brasil: o setor náutico, em que a exclusividade determina o convívio social entre pessoas de uma mesma classe. Ele começou no segmento de importados com a venda de carros, mas deixou para trás por conta dos problemas sociais. “O consumidor no Recife não se sente muito confortável, tem medo, por conta do alto índice de violência”, explica. Apesar de ser um dos maiores importadores de carros do Nordeste, o Recife é uma cidade pequena, onde o “todos se conhecem” afasta os consumidores do luxo automobilístico, verdadeiros distintivos sociais. Ferraris, por exemplo, não chegam a 10 unidades numa cidade que tem dinheiro para gastar. Pelo menos, é o

que comprova o setor de Samuel. Ele trabalha com iates que podem custar de três a 15 milhões de reais. Embarcações que não ficam atrás de apartamentos de luxo. Pagos, geralmente, à vista. E tem fila para adquirir modelos que podem ser personalizados de acordo com o gosto e refinamento do cliente. Samuel lamenta a falta de infraestrutura, como a construção de marinas, e garante que um dos maiores hobbies dos milionários pernambucanos é sair a bordo de um iate, com sua família ou amigos. “Lá, eles estão isolados. Não precisam se preocupar com a violência. São apenas eles mesmos”, comenta. E nada de champagne ou caviar. No iate do pernambucano, a pedida é um bom churrasco. A demanda é tal,

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NOVOS SÍMBOLOS Iates luxuosos se tornam espaços privilegiados de convivência social

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JULIANA SANTOS Empresária de loja multimarcas disponibiliza motoristas para levar roupas às casas das clientes

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SAMUEL BRITO Velejador profissional investiu no setor náutico que, segundo ele, tem sido mais lucrativo que a venda de carros importados

que o restaurante Tapa de Quadril vai oferecer delivery de churrasco para iates. Juliana Santos, herdeira do grupo João Santos, à frente da multimarcas Dona Santa desde 1994, soube traduzir o desejo de consumo de seu perfil de consumidora. “Luxo, hoje, não é apenas o valor, mas a exclusividade”, resume. A loja focaliza em dois perfis: um, voltado para a fast fashion, com tendências contemporâneas; outro, especializado na raridade. Grifes como Balmain e Chloè integram esse segmento. “Enquanto marcas tradicionais comerciais fazem 1.000 exemplares, a Chloè produz quase artesanalmente, em torno de 100 exemplares”, afirma. Além do parcelamento, ao qual a Dona Santa já se rendeu, o mercado de luxo, no segmento de moda, tem uma característica. “O consumidor gosta de ser o centro das atenções, de ser paparicado”, garante Cláudio Diniz, diretor-executivo da Maison du Luxe. Pensando nisso, a Dona Santa disponibiliza diariamente dois motoristas, que vão até a casa da cliente com os modelos

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FLORENÇA Além de acomodações super luxuosas, o hotel Four Seasons oferece itens do luxo “sensorial”, como a experiência de “caça às trufas” no bosque

solicitados ou recomendados por vendedoras especializadas em marketing e atendimento. O luxo sensorial é uma definição que agrega tanto o estereótipo do milionário excêntrico como workaholics que passaram a última década obcecados em aumentar sua fortuna. Para eles, lembra Cláudio, o mercado é do luxo contemporâneo, no qual estão em destaque, por exemplo, o apelo emocional proporcionado por experiência simples. Nos Alpes Dolomitas, na Itália, o Hotel San Lorenzo Lodge, um dos mais famosos do mundo no segmento, oferece ao hóspede instalações luxuosas acompanhadas de atividades frugais, como a arte de fazer pão. O Four Seasons, na Florença, outro complexo de luxo, apresenta como uma de suas opções de lazer uma caçada às trufas, com direito a cães farejadores e porquinhos treinados. Para quem busca fortes emoções, a aviação é o setor mais indicado. Por U$ 5 milhões, a Saker Aircraft, especialista em aviões de caça, disponibilizará um dos seus modelos para uso pessoal. Mas só em 2019. É o monopólio, diz Lipovestky, dos emblemas de classe nos quais a apropriação de bens de luxo lhes confere uma raridade capaz de fazerem deles, os consumidores, o símbolo por excelência da excelência. Um outro setor que se destaca em meio ao novo cenário de luxo é o da gastronomia. É o que também mais se aproxima de uma classe média órfã de seus signos afetivos de consumo, como a moda. O segmento tanto funciona com as experiências gastronômicas permitidas pela liberdade da compra (de viagens a cardápios fechados) quanto pelo rótulo da “gourmetização”, um simulador de bom gosto. “A classe média, por sua vez, fica no meio termo entre os dois extremos e pode procurar rótulos fáceis, como este dos produtos gourmet, no esforço pela distinção, tentando emular (mas nem sempre conseguindo) o gosto da classe alta”, comenta Renata Amaral, jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFPE. CAROL LEÃO

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RIQUEZA Dos primórdios até hoje

A tendência à ostentação revela-se como um traço do comportamento humano bastante anterior à sociedade capitalista Para Lipovestky, o luxo é um fenômeno cultural, intrínseco ao desenvolvimento da civilização. Em todas as épocas, sob todas as formas, ele existiu. Se você acha que o consumismo foi o criador do fenômeno Rei do Camarote, índice de ostentação e esnobismo, leia o Luxo eterno – da idade do sagrado ao tempo das marcas. No livro, ele explica que o luxo não nasceu de um excedente de riqueza e progresso tecnológico, comumente associado à Era Moderna, mas do

espírito de dispêndio – encontrado nas mais primitivas sociedades. Esse espírito manifesta-se muito antes de uma lógica econômica estratificada em classes, como acontece, por exemplo, com as distinções sociais promovidas pela aristocracia e burguesia, a fim de se estabelecer politicamente. Uma das condições primeiras do surgimento do luxo, a medida de uma riqueza social, foi o pensamento mítico, mágico, que antecedeu às religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo).

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THE FINDING OF MOSES Tela de Lawrence Alma-Tadema evidencia a distinção social entre nobres e vassalos

Honrarias divinas costumavam incluir sacrifícios humanos, banquetes festivos, ofertas de joias raras e vestimentas preciosas fabricadas com a matériaprima presente em cada região. O luxo sagrado, selvagem. Elo entre o humano e o sobrenatural, amuleto faústico em nome da gratidão e proteção espiritual. Santuários monumentais foram erguidos em diversos momentos da história à base de exaustivo trabalho humano, em agradecimentos aos deuses. No Egito Antigo, escravos judeus ajudaram a erguer uma arquitetura

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complexa e suntuosa, repleta de ouro e pedras preciosas com as quais os faraós, representantes dos deuses na terra, garantiram sua última morada. Fausto em nome da superioridade de classe, definindo, assim, a hierarquia social, que determinava quem ficaria para a história. “Os bens de luxo estiveram na origem não apenas dos objetos de prestígio, mas também das maneiras de estabelecer um contato com os espíritos e os deuses, dos talismãs, dos seres espirituais, das oferendas e dos objetos de culto supostamente benéfico tanto aos vivos como aos mortos”, comenta Lipovestky. Culto religioso politeísta, o candomblé, por exemplo, tem sua própria divindade da fartura e vaidade: Oxum. Ela agrega diversos elementos simbólicos da natureza humana (fertilidade, abundância, beleza) encontrados em outras mitologias nacionais sob a persona de outras divindades. No misticismo afrobrasileiro, sua simbologia deu origem a um dos orixás mais populares. Também pudera. A riqueza é um desses símbolos que rege a deidade. Por isso, Oxum tem como metal afetivo o ouro e um espelho adornado acompanhando sua dança sensual. “O arquétipo de Oxum é o das mulheres graciosas e elegantes, com paixão pelas joias, perfumes e vestimentas caras. Das mulheres que são símbolos do charme e da beleza. Voluptuosas e sensuais, porém mais reservadas que Oiá. Elas evitam chocar a opinião pública, à qual dão grande importância. Sob sua aparência graciosa e sedutora, esconde uma vontade muito forte e um grande desejo de ascensão social”, diz o fotógrafo e pesquisador das religiões afro-brasileiras Pierre Verger. Filho de Oxum, o professor de educação física Paulo Abdo herdou o candomblé da mãe, há 32 anos, e conta que desde sempre foi coquete. “Minha mãe falava que eu, além de querer só coisas boas e caras, era bastante vaidoso e gostava muito de usar perfumes. Eu sempre pedia para ela comprar uma pulseira de ouro para mim”, lembra. “Quem domina, protege e me rege em meu ori (cabeça) é Oxum. Vejo muito brilho na minha vida. Todos quando me vêm dizem logo: és a cara da riqueza e do brilho”, completa.

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DIVULGAÇÃO

OSTENTAÇÃO

Mais recentemente, o etnólogo Malinowski citou as grandes expedições dos kula, na Melanésia, como exemplo de opulência e dispêndio. Tribos localizadas na região da Papua-Nova Guiné se expunham ao perigo, caçando ostras para colares que seriam ofertados a habitantes de ilhas distantes. O objetivo era claro: neutralizar o inimigo através da dádiva. “A estima social e as posições prestigiosas são ganhas à força de presentes oferecidos frequentemente numa rivalidade exasperada”, comenta Lipovestky, sobre a prática. A cerimônia Potlatch, realizada entre os índios do Canadá e dos Estados Unidos, consistia num festejo que incluía, além de um farto banquete de carnes, como a de foca, a renúncia de todos os seus bens materiais. A tribo dos Potlatch obtinha seus títulos e honrarias desafiando seus rivais com a destruição de seus tesouros, jogados ao mar. Para Marcel Mauss, era uma sabedoria amparada por uma racionalidade simples: matar a propriedade para ganhar paz, distribuir na festa para não ser massacrado. “Distribuir tudo com excesso, das festas e presentes exagerados, e oferecer hospitalidade generosamente é transformar o estrangeiro em amigo, substituir a hostilidade pela aliança, os

Para Lipovestky, a origem dos bens de luxo se deu, também, como forma do homem ligar-se a deuses e espíritos recursos das armas pela reciprocidade”, conceitua o filósofo. Vista como “perdulária”, a cerimônia Potlach foi proibida pelos governos americano e canadense, no final do século 19. Essa “generosidade”, de forma mais utilitarista, vamos encontrar no conceito de Noblesse oblige, da Idade Média ao pós-moderno. Banquetes, festas patrocinadas, presentes suntuosos, tudo isso realça o prestígio das altas classes. A nobreza manda e sua etiqueta pede, também, que ela patrocine, ostente. Hoje, os emergentes, novos ricos, celebridades, jovens milionários, fazem como podem: desperdiçam garrafas de champanhe ou caviar num tour de force de exaustão narcísica. Qual seu valor simbólico? A simbologia numa nova fase dessa prática relaciona-se tanto com o culto ao espetáculo cotidiano e ao narcisismo contemporâneo quanto à necessidade de se mostrar ativamente

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PAULO ABDO O filho de Oxum destaca os atributos de riqueza e bens de prestígio associados à divindade

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CERIMÔNIA POTLATCH Prática entre índios canadenses e norte-americanos consistia em destruir dádivas para mostrar poder

como soberano em seu novo status. Para a socióloga Maria Eduarda Rocha, tomando o sociólogo francês Pierre Bourdieu como referência, o luxo verdadeiro não combina com a ostentação. “O que, na França, permitia distinguir um membro da elite era uma certa segurança de si, um desinteresse na demonstração de seu lugar social que é a mais clara marca deste lugar social, porque lança os ‘novos ricos’ em uma situação cruel, na qual quanto mais se esforçam para ostentar sua ascensão social mais explicitam sua origem inferior, pela ansiedade com que tentam emitir os sinais de riqueza”, defende. O velejador Samuel Brito lembra que, hoje, a moda dos milionários americanos é a filantropia. Verdadeiros campeonatos de doações são patrocinados como ostentações, que funcionam tal qual provas de prestígio social. “Já vi festas na Europa em que milionários derramavam garrafas de champanhe de 15 mil reais. Nos Estados Unidos, eles competem com quem gasta mais, doando”, comenta. Para o executivo Cláudio Diniz, o Brasil não pode ser comparado a nenhum dessas culturas, mas aos países dos BRICs. “A nossa cultura do luxo é recente e nós somos uma sociedade emergente. A Europa passou por duas guerras. Lá, ostentar é cafona. O chique é não usar logo e as pessoas que entendem reconhecem a simplicidade com a elegância. Já o Brasil vive uma febre do consumo. Não chega a ser como a Rússia e a China, onde tudo que tem logo e luxo eles compram, porque vieram de uma economia reprimida (a comunista)”. Ele diz que, a cada 30 minutos, uma pessoa fica milionária no Brasil. São profissionais que vêm da pecuária, dos esportes e do mundo das celebridades. Tiveram uma vida de penúria e o que eles querem mais é ostentar. “Precisam ostentar para ser referência. Mas o fato apenas de comprar não é ostentação. Ela só existe quando se compra para se impor perante outras pessoas. O fato de as pessoas terem dinheiro e poderem comprar um vestido de casamento não é por si só ostentação”. CAROL LEÃO

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COLAGEM: JANIO SANTOS

CON TI NEN TE

LINGUAGEM

REGIONALISMO Ordem e sentido para a babel da fala Publicação de verbetes regionais em livros, como a nova edição do Dicionário do Nordeste, relançado pela Cepe Editora, responde ao interesse do brasileiro em conhecer sua variedade cultural, criatividade e identidade através da língua TEXTO Thiago Corrêa

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de encarar esses números. Se, antes, o discurso religioso da Bíblia apontava a pluralidade de línguas como um castigo para a evolução de um povo, hoje, ela é vista como sinal de riqueza cultural, criatividade e identidade. Num país com as dimensões do Brasil, onde o Ethnologue indica a existência de 215 línguas faladas, o discurso positivo da diversidade linguística também está vinculado às variantes do idioma predominante, diferenças de sotaque, expressões idiomáticas e peculiaridades do português falado em cada região.

DICIONÁRIOS

Até os homens se estabelecerem

numa planície do Sinar, a Bíblia diz que o mundo inteiro falava a mesma língua. Aparentemente, essa vantagem fez com que eles decidissem cozer tijolos para substituir as pedras e usassem o piche no lugar da argamassa. Enquanto erguiam uma cidade onde poderiam se agrupar e uma torre tão alta, que chegaria ao céu, Deus lhes fez uma visita e percebeu que, para aquele povo de uma só língua, nenhum projeto seria irrealizável. Ele então condenou os homens à confusão, fazendo com que não mais entendessem a língua dos outros e a construção de Babel fosse interrompida. O mito da Torre de Babel, narrado do versículo 1 ao 9 do capítulo 11 do Gênesis, tem sido usado como lição para o atrevimento do homem, mas também ilustra o surgimento dos vários idiomas. Espalhados pelo mundo, os homens precisaram retomar a tarefa que Deus passou a Adão para dar nome às

coisas. Séculos se passaram, as línguas se desenvolveram e foram registradas, frutificaram em arte literária, foram normatizadas, disseminadas pelos sistemas educacionais, transmitidas pelos meios de comunicação e ganharam a importância de um território identitário, visto como capaz de guardar valores, delimitar fronteiras e segredos de um povo. Um status que tem motivado discussões sobre a necessidade de preservação da língua culta e despertado receios aos estrangeirismos. No entanto, por maiores que sejam os esforços de preservação e estabelecimento de um padrão, os homens continuam condenados à confusão dos antepassados da planície do Sinar. Números do Ethnologue: languages of the world, que desde 1951 tem catalogado as línguas vivas do mundo, apontam para a existência de 7.105 línguas faladas hoje no mundo. O que mudou foi a maneira

Uma mudança de postura pode ser observada na proliferação de expressões populares e de dicionários regionais nas livrarias. O mais recente exemplar da seção é o Dicionário do Nordeste, do jornalista pernambucano Fred Navarro, em sua 3ª edição, lançada no dia 13 deste mês, no Cais do Sertão Luiz Gonzaga (Bairro do Recife), pela Cepe Editora. Fruto de um trabalho de 21 anos, que envolve a coleta de novos termos em obras literárias, folhetos de cordel, músicas e na fala do povo, o volume atualmente reúne mais de 10 mil verbetes em suas 711 páginas. São expressões populares, neologismos e termos típicos dos nove estados do Nordeste que remetem à fauna, flora, culinária, às manifestações culturais e gírias cheias de duplo sentido. Tudo devidamente checado, com classificação gramatical, localização geográfica e citações de referência para contextualizar o uso dos termos. Com uma dimensão regional e um cuidado maior na descrição dos verbetes, a reedição do trabalho de Navarro vem confirmar o interesse do público pelo vocabulário local, a exemplo do Dicionário do Ceará, de Tarcísio García, e do Minidicionário de pernambuquês, de Bertrando Bernardino. Engenheiro mecânico de profissão, Bernardino explica que começou a colecionar palavras ao se deparar com o Outro e perceber que o seu português falado era diferente. “Eu trabalhava numa empresa cuja matriz era em Blumenau, e, noutra, com matriz em São Paulo. Então, quando chegava nesses cantos, o pessoal sentia certa dificuldade em entender o que eu estava dizendo. Aí, resolvi fazer um guia para os sulistas, fiz um guia com

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CON LINGUAGEM TI NEN TE REPRODUÇÃO

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umas 300 palavras e divulguei com o pessoal”, recorda Bernardino. Como o guia fez sucesso entre os colegas de trabalho, o autor ficou estimulado e publicou a 1ª edição do Minidicionário de pernambuquês, pela Bagaço, em 1994. Com o tempo, a fome de Bernardino por novas palavras o levou a se aprofundar mais na pesquisa, através de leituras, viagens e conversas com o povo. “Esse livro não foi feito atrás de uma mesa. Se você somar a quantidade de pinga e de cerveja que foi utilizada pra fazer esse livro... Quando você vai conversar com um vaqueiro, não tem como fazê-lo conversar e se soltar sem um gole. Você tem que se meter numa vaquejada, tem que conversar com as pessoas mais simples, pra ver exatamente como é aquele linguajar”, explica Bernardino. Hoje, o livro está na 4ª edição, reúne quase 2 mil vocábulos e suas quatro edições já somam cerca de 20 mil cópias vendidas. “O livro é um

xodó de jornalista. O aeroporto também é um lugar onde vende muito. Uma coisa importante é o tamanho do livro, porque cabe no bolso”, observa o autor. Nesse sentido, o caso que melhor revela o filão lucrativo que se tornou o registro de termos típicos de uma região é o Dicionário de baianês, desenvolvido pelo engenheiro Nivaldo Lariú, publicado pela primeira vez em 1991. De lá para cá, o livro de Lariú já vendeu 200 mil exemplares (segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada pela Fipe em 2011, a média entre exemplares produzidos e títulos publicados fica em 8.589 exemplares). Número que faz o autor alcançar o patamar de tiragens de livros best-sellers como O silêncio das montanhas, de Khaled Hosseini, 1889, de Laurentino Gomes, e Diário de um banana 7, de Jeff Kinney. O fenômeno do surgimento de dicionários regionais, contudo, não deve

ser visto apenas como uma simples oportunidade de mercado. No início do século passado, pesquisadores como Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, Horácio de Almeida, na Paraíba, e Pereira da Costa, com o seu Vocabulário pernambucano (1936), já demonstravam a preocupação com o registro das peculiaridades da região. Esse esforço ganhou amplitude nacional em 1952, com a publicação de decreto para a elaboração de um atlas linguístico do Brasil. Assim, devido às dimensões do país, ficou definido que os primeiros passos nesse sentido deveriam ser os registros regionais, o que gerou os atlas com as variantes da Bahia, Minas Gerais, Sergipe, Paraíba e Paraná. A ideia foi retomada em 1996 e deu início ao Projeto Atlas Linguístico do Brasil, rendendo novos atlas, dessa vez do Pará, da região Sul, Mato Grosso do Sul e Ceará, além de um segundo volume de Sergipe.

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DIVULGAÇÃO

TIAGO MELO/BAHIA NOTICIAS/DIVULGAÇÃO

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DEMARCAÇÃO

Entre os seis objetivos do Projeto Atlas está a identificação dos dialetos do Brasil, para tornar “evidentes as diferenças regionais através de resultados cartografados em mapas linguísticos” e, assim, renovar o mapa proposto por Antenor Nascentes em 1922, que dividiu o país em sete áreas dialetais – amazônica, nordestina, baiana, mineira, fluminense, sulista e um território incaracterístico. Enquanto isso não acontece, o critério da divisão territorial oficial tem servido para delimitar a abrangência dos dicionários regionais. “O Minidicionário de pernambuquês é muito genuíno, muitas palavras que estavam na primeira edição eu descobri que não eram exclusivas de Pernambuco, então, na segunda edição, elas já saíram”, defende Bernardino, que usa dicionários tradicionais como o Houaiss e o Aurélio no processo de checagem da origem dos termos e sua ortografia. Na prática, ao mesmo tempo em que partem de divisões estáticas e já estabelecidas, como as geográficas, os dicionários instituem fronteiras de ordem cultural, na tentativa de revelar as diferenças do país através das palavras. Segundo a professora de Linguística da UFPE, Nelly Carvalho, que também integra o conselho editorial da Cepe, essa associação é possível porque

Os dicionários estabelecem fronteiras de ordem cultural, na tentativa de revelar as diferenças do país através das palavras grande parte do vocabulário é de origem cultural. “A língua ajuda a decifrar uma cultura. O que é que faz parte da cultura? Cultura é religião, culinária, arte, literatura e tudo isso a gente diz com a língua. Então, no fundo, língua e cultura são uma coisa única. Quando muda a cultura, a gente muda a língua. A tese de Sapir-Whorf diz que a língua e a cultura são indissociáveis”, explica a professora. A exceção à mutabilidade é o vocabulário instrumental e o vocabulário básico (do qual fazem parte as áreas do corpo, a divisão do tempo, condições temporais, acidentes geográficos, graus de parentesco, elementos da natureza). Dessa maneira, tomando o Dicionário do Nordeste como exemplo, encontramos marcas deixadas na língua por eventos históricos, como é o caso do verbete “cabelo a pirulito”, que remete à presença de soldados americanos das bases navais instaladas

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TORRE DE BABEL Mito exemplifica a confusão gerada pela pluralidade das idiomas

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BERNARDINO Ele lançou em 1994 o bem-sucedido Minidicionário de pernambuquês

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NIVALDO LARIÚ O seu Dicionário de baianês, de 1991, vendeu 200 mil exemplares

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na região na década de 1950. Pelas palavras, também é possível observar os principais interesses de uma região através da incidência de termos sobre o mesmo tema. “O regionalismo faz alguns divisores de água. Gírias, à farta, sobretudo no Sudeste, são fomentadas pelas gangues, sejam de marginais das cadeias ou de grupos urbanos, punks, hippies e os linguajares com cheiro de telurismo, no Nordeste. Aqui, o meio ambiente grita alto, e os bichos tomam pé e o meio rural prevalece. No Norte, a influência mesológica, a ecologia e a grande selva amazônica, com seus mistérios, são os fatores que se sobressaem”, aponta o professor cearense João Gomes da Silveira, responsável pelo Dicionário de expressões populares da língua portuguesa, cujas páginas registram cerca de 22.500 expressões idiomáticas.

SEXO E CACHAÇA

Nesse sentido, a existência do Dicionário do frevo (organizado por Nelly Carvalho, Sophia Karlla Mota e José Ricardo Paes Barreto) e do Dicionário da aguardente, por exemplo, já expõe a importância desses elementos para a sociedade em questão. Publicado em 1974, pelo cronista pernambucano Nelson Barbalho, o Dicionário da aguardente reúne verbetes em torno da cachaça – seja referente

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CON LINGUAGEM TI NEN TE a seus tipos, apelidos, tira-gostos e ao estado de embriaguez – ao longo de 150 páginas. “Sexo e cachaça são abundantemente explorados na fraseologia de caráter popular. A cachaça, por exemplo, traz inumeráveis registros. Vai de branquinha à abrideira. Por via de consequência, bêbado é outro bicho estigmatizado; puta, nem se fala. Há uma gama de designações para esses aí”, reconhece Silveira. Por outro lado, embora esses dicionários contribuam para a reafirmação de uma identidade nordestina, a diversidade deles no mercado já põe em dúvida a tentativa de colocar nove estados e populações de realidades tão diferentes sob o mesmo guarda-chuva. Verbetes como “costurar pra fora”, registrado no Dicionário do Nordeste, são um indício disso. Se seu sentido geral no Nordeste é o de traição, no Piauí, ela pode ser aplicada a homens afeminados, enquanto na Paraíba ela se refere ao ato de praticar caridade. Mais do que revelar diferenças em amplitudes cada vez mais locais, o viés de estranhamento causado por expressões regionais já é um indicativo das relações históricas de poder. “O Centro-Sul ficou como modelo de língua, porque toda a corte foi para lá. Depois, houve um congresso em 1954, do qual participaram Antonio Houaiss e Celso Cunha, e os gramáticos resolveram que o modelo de língua tinha que ser o do Rio de Janeiro”, pontua Nelly Carvalho. A professora explica, ainda, que as mudanças numa língua acontecem por variações diatópicas (lugar), diacrônicas (tempo) e diastráticas (classe social).

JANIO SANTOS

“Paul Teyssier, francês que veio pesquisar o Brasil, diz que notou mais semelhança no falar do Recife com o de Porto Alegre do que o falar de uma pessoa rica do Recife com o do seu vizinho pobre. O que muda muito a língua portuguesa é a diferença de classe. E isso a gente vai ver nos dicionários locais, porque não são palavras cultas que aparecem, são palavras usadas pela língua do povo. Os dicionários locais são muito diacrônicos e diastráticos”, explica a professora. Uma reflexão que também se estende à própria concepção de Nordeste. De acordo com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., até 1910, não havia a noção de Nordeste. No livro A invenção do Nordeste e outras artes, ele explica que essa ideia foi forjada no meio simbólico e reflete mudanças ocorridas nas relações econômicas e de poder no Brasil, com o fim da escravidão, o poderio econômico de São Paulo, a decadência do ciclo da cana-de-açúcar e o êxodo de trabalhadores para o ciclo da borracha no Norte. “Uma nova consciência do espaço surge, principalmente, entre intelectuais que se sentem cada vez mais distantes do centro de decisão, do poder, seja no campo político, seja no da cultura e da economia. Uma distância tanto geográfica quanto em termos de capacidade de intervenção. Um intelectual regionalista quase sempre é aquele que se sente longe do centro irradiador de poder e de cultura. Ele faz da denúncia dessa distância, dessa carência de poder, dessa vitimização, o motivo do seu discurso”, escreve Albuquerque Jr.

VERBETES Uma seleção de fazer rir As poucas palavras ou frases reproduzidas abaixo não dão a mínima conta das 10 mil que integram o Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro. Aqui, buscamos apenas rir um pouco do que falamos e usamos o critério daquilo que o autor denominou como “termos fortes, rústicos, grosseiros, mas também dotados de lirismo, sensibilidade poética, bom humor e picardia”. Também suprimimos várias das informações contidas no volume, deixando apenas o significado e o seu lugar de origem.

A

ABIGOBAL • Abistuntado. AL. Abobalhado, tonto, besta como aruá, lelé da cuca. ALMA SEBOSA • 1. AL/PB/PE. Bandido,

malandro, assaltante, trombadinha. 2. CE/PB. Poeta de segunda categoria, que faz versos ruins. 3. PE. Pessoa cruel, “sem coração”, bandido sem compaixão, que deve ser executado por justiceiros, a mando e “em nome” da comunidade, por causa de supostos crimes.

AMIZADE DE CAGAR JUNTO • Amizade de cu. PI. Grande amizade, amizade do outro mundo, ou melhor, “amizade que só o cu pode explicar”.

B

BARONESA • 1. AL. Prostituta já velha, sem mais nenhuma atração física. 2. NE. Planta aquática (Eichhornia crassipes), conhecida também como dama-do-lago e aguapé, da família das ninfeáceas, típica de lagoas e rios, e que acompanha estes nas cheias do período chuvoso. BEBER SORO AZEDO E ARROTAR COALHADA • CE. Aparentar ser mais do que se é, se amostrar, exibir-se socialmente.

C

CABELO A PIRULITO • NE. Tem origem nos anos 1950, época em

que os soldados americanos das bases navais instaladas na região usavam cortes de cabelo em que a nuca era raspada e a cabeça ficava com uma espécie de topete, semelhante a um pirulito.

CONVERSA DE USINEIRO • PB. Falta de sinceridade, hipocrisia, cavilação, desfaçatez.

COSTURAR PRA FORA • 1. PI. Expressão aplicada aos homens efeminados, bandeirosos. 2. PB. Praticar caridade, fazer beneficência. 3. NE. Ocorre quando a mulher pratica o adultério e “trai” o parceiro.

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P

E

PITÓ • 1. PB. Apanhado de cabelo enrolado em espiral ou

ELE E ELA • PE. Dupla composta por caldinho

em forma de concha, e fixado na cabeça por meio de grampos, varetas, fios elásticos. 2. PB. Cigarro grosseiro de fumo picado, arromba-peito. 3. PE. Cabelos puxados para os lados e presos com marias-chiquinhas, num arranjo também chamado de totó.

(de peixe, fava, sururu, chambaril ou camarão) e uma dose de cachaça de cana pura.

G

GALA-RALA • NE. 1. Diz-se do homem que não esporra (ejacula) com intensidade. 2. Diz-se do homem que não tem filhos logo após o casamento: dois anos de casado e sem filhos, logo vão chamar você de gala-rala por aí. GUENZO • NE. Que não tem firmeza, com as pernas bambas,

bamboleante. “Palanquim:/ Para que negar? Suporto/ o duro de certas bundas:/ padrecos brancos, croinhas,/ beatas e velhos guenzos;/ mas também gozar eu posso/ a maciez tão redonda de iaiás e sinhazinhas,/ de calor tão excitante/ que minha madeira fica/ mais rija do que o ferro.” Sobrados e mocambos, Hermilo Borba Filho. “E, no turbilhão do tempo, o palácio onde dormiu o casal imperial foi perdendo a sua esplendidez e (...) acabou reduzido a uma enorme ruína, com os cômodos cheios de goteiras (...), as portas guenzas, as escadas rangentes (...).” Ninho de cobras, Ledo Ivo.

L

LOIRA DE FARMÁCIA • Loura a pulso. NE • Falsa loura, loura oxigenada. “Esta mulher de Jaílson é uma puta. Nem conheço ela, mas está escrito na testa. O cabelo é oxigenado, loira de farmácia. Jaílson bate um bolão, mas em termos de mulher, está lascado.” O negro e o branco, Cicero Belmar. V. Loura, linda e japonesa. LOMBRA • Lombrinha. NE. Leseira física e mental que ocorre depois de beber cachaça ou fumar maconha. Xangai menciona: “Eu já bebi toda a minha solidão/ fiquei de lombra na ladeira do luar/ e na lembrança teu carinho me invade/ e a saudade fez intriga com a razão,/ fiquei biruta, enlouqueci, perdi o tino/ feito um menino numa farra de bombom,/ naquela tarde me senti um pescador,/ vi teu sorriso, se espalhava no batom.” Não é brincadeira, Maciel Melo.

M

Q

QUEBRA-QUEIXO • 1. NE. Puxa-puxa, doce japonês, puxa-

de-coco, feito a base de doce de goiaba e coco ralado. V. espichacouro/ sambongo. 2. NE. Todo tipo de doce que fica ‘ligado’ demais. Comes e bebes do Nordeste, Mario Souto Maior. V. citação em pirulito coxão de moça. 3. CE. Qualquer bebida gelada em excesso. 4. CE/PB. Um tipo de charuto (cigarro de folhas secas de palha).

R

RUA DA PALMA Nº 5 • NE. Punheta, gloriosa, masturbação. V. pecar na rua da palma nº 5.

S

SEBITE BALEADO • Sebito baleado. AL. 1. Pessoa sebite demais, turbinada, aloprada. 2. PB/ PE. Pessoa magra demais, quase anoréxica. V. ser magro como um sebite baleado/ vara de bater. SÓ QUER SER AS PREGAS DA ODETE •

NE. Diz-se de quem quer ser mais do que pode, de quem vive alardeando as próprias qualidades. “Pra começo de conversa, eu era puto com os alemães, que só queriam ser as pregas da Odete. Os felas das putas dos galegos, só porque tinham armas modernas e dinheiro dando no meio da canela, queriam abarcar o mundo com as pernas.” Roliúde, Homero Fonseca. V. quem gaba o sapo é a jia/ vai ser bom assim lá na casa do carái!.

T

TUIUTU • NE. Equivale ao site de vídeos Youtube: “Eu

não assisti no dia, mas minha neta me mostrou no tuiutu da internet e você foi tampa!!!”. Berro novo, Jessier Quirino.

MALOCA • 1. NE. Nas vaquejadas, o gado juntado pelos vaqueiros e conduzido ao curral. 2. NE. Gado, chamado também de ‘moloca’, que costuma pastar em determinados locais, nas fazendas de criação. 3. AL/PE. Esconderijo próprio dos caranguejos na areia da praia. 4. Para os adeptos do manguebeat recifense, equivale a moradia, lugar onde as pessoas ‘se escondem’. 5. NE. Membro de grupo suspeito, maloqueiro, pessoa que não inspira confiança: não se meta com aqueles malocas.

U

O

V

o tempo, checar se vai chover ou não. 2. PB/PE. Perder-se em reflexões, matutar, olhar para o infinito. “E pede pra Rique dar os papéis pra ela, pra que ela se salve dos alemães. Rique fica assim, olhando a maçaranduba do tempo, numa sinuca desgraçada.” Roliúde, Homero Fonseca.

bagunça. 2. Lugar apertado, rua estreita ou loja cheia de gente: não vou hoje naquele vuco-vuco de jeito nenhum. V. Bater chifre. 3. Relação sexual, cachimbada, trepada. “Mulher é um bicho muito complicado, não é como vocês, homens, costumam pensar. Vocês pensam que só basta enfiar, fazer vuco-vuco, e pronto. Não e assim não, meu filho. Tem que haver poesia, como diz uma amiga minha de Petrópolis. Tem que haver muita poesia.” As alianças, Ledo Ivo.

OLHAR A MAÇARANDUBA DO TEMPO • Tomar a maçaranduba do tempo. 1. PB. Consultar

URNA EMPRENHADA • Urna prenha. Urna prenhe. NE. Urna

eleitoral violada, “prenhe” (cheia) de votos falsos. V. emprenhar urna.

VUCO-TE-VUCO • PB. Vuco-vuco. NE. 1. Confusão, fuá,

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Entrevista

FRED NAVARRO “O GRANDE TRABALHO FOI SEPARAR O JOIO DO TRIGO” Fred Navarro cresceu numa casa no

Bairro de Campo Grande, no Recife. Já formado em Jornalismo, arrumou as malas e migrou para São Paulo. No convívio com os colegas de redação, ele descobriu diferenças. As palavras que ouviu da sua babá, e aprendeu a usar para se comunicar nas suas brincadeiras de menino, passaram a ser motivo de risadas no trabalho. A partir de então, ele adquiriu um novo hábito, passou a colecionar palavras que remetiam à sua região. Quando está curtindo uma praia, conversando, lendo ou ouvindo música, ele está, na verdade, caçando palavras. Prática que se tornou trabalho, já dura 21 anos e frutifica com a terceira edição do Dicionário do Nordeste, com mais de 10 mil verbetes. CONTINENTE Colecionar palavras tem a ver com sua mudança para SP? FRED NAVARRO É uma prática de exílio. Tive que sair do Recife para que essas palavras ganhassem importância na minha vida. Antes, eu as usava normalmente, mas, quando vim para cá, isso virou um objeto de estudo. Mudei para São Paulo em 1983, vim trabalhar na Folha de S.Paulo e, no meio do caminho, fui parar na revista IstoÉ. E lá, sempre que eu usava expressões típicas do Nordeste, como a “coluna tá troncha” e “ora, pinoia”, era aquela gargalhada na redação. Então, percebi que havia alguma coisa a ser explorada. O riso não era de sarcasmo, de crítica, mas de desconhecimento, surpresa. Havia ali um desconhecimento muito grande e comecei a colecionar essas palavras, cada vez que acontecia, ia anotando, rabiscava num pedaço de papel e guardava. CONTINENTE Como se deu essa busca por palavras? FRED NAVARRO Quando saiu a primeira edição do dicionário, eu já estava

escrevendo a segunda há muito tempo. A primeira edição, com 2.500 palavras, é de 1998, a segunda, com 5 mil, é de 2004. Veja que se passaram quase 10 anos para a terceira edição, que tem 10 mil verbetes. Ele foi crescendo, à medida que foi sendo escrito; 20% a 30% das palavras da nova edição fui conhecer quando escrevia o livro – ia procurar uma coisa e achava outra. Procurava uma citação para ancorar um verbete e achava outras duas palavras que não conhecia, então ia atrás e confirmava a origem nordestina delas. Foi um trabalho em construção. Parti da minha biblioteca, da minha discografia pessoal. Também viajei muito pelo Nordeste, tenho parentes na Bahia, no Ceará, Paraíba e sou um rato de praia. Então, cada vez que ia, voltava com centenas de palavras novas para checar, pesquisar. O grande trabalho, ao final, foi separar o joio do trigo, muita coisa que parece ser do Nordeste, mas não é. É do Amazonas,

de Minas, de Goiás. As fontes foram se multiplicando e o que deu mais trabalho foi confirmar o que não podia entrar. CONTINENTE Por mais que você se dedique, novos termos surgem e é impossível atingir a totalidade. Isso dá alguma frustração? FRED NAVARRO Quando vou ao Recife, no avião, já vou colecionando expressões novas, já vou com a caderneta no bolso, porque sei que vão surgir palavras novas. Como Manuel Bandeira falava, o povo é o inventa-línguas. Hoje à noite, em algum barzinho do Pina, alguém está inventando palavra nova. A riqueza vocabular da nossa linguagem é uma no Litoral, outra na Zona da Mata, no Agreste e no Sertão. E, às vezes, elas não se confundem. A classe média de Fortaleza não fala igual à classe média de Juazeiro do Norte. O sotaque, as expressões, os termos são muito diferentes. Assim como a do Recife é diferente da de Petrolina, o sertanejo não

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fala igual ao pescador. São características próprias de microrregiões. Claro, elas interagem, fazem um conjunto, mas a riqueza vocabular é tremenda. CONTINENTE Como foi o processo de checagem para saber se o termo é do Nordeste? FRED NAVARRO É um trabalho duro de jornalismo investigativo, que é checar as fontes, ir aos dicionários tradicionais e clássicos para pesquisar a origem dessas palavras, encontrar referências na nossa cultura popular. Consultei os três dicionários tradicionais, o Aurélio, o Houaiss e o dicionário da Academia Brasileira de Letras. Quando eles identificam, a sigla do estado está registrada lá. Quando não conseguem identificar o estado, eles colocam a região. E, quando não conseguem identificar a região, colocam como brasileirismo. Muitas dessas palavras eu chegava achando que eram do Nordeste e a fonte era Goiás. Além disso, nossa cultura popular registra essas palavras com abundância; você pega 10 cordéis de Caruaru, Campina Grande ou do Crato e vai encontrar dezenas de termos em comum, e outros não, são específicos do Ceará, específicos da Paraíba. E eu ia fazendo a triagem. Meu trabalho foi tentar ver o que era realmente de onde. Isso deu trabalho. Meus critérios foram jornalísticos, de checar a veracidade da informação, de procurar uma citação digna de confiança. CONTINENTE É normal que novos termos sejam criados e muitos acabem se perdendo. Qual o critério para que ele se torne um verbete? FRED NAVARRO Useis dois critérios. Primeiro, o registro em alguma forma de manifestação cultural, pode ser Lia de Itamaracá, pode ser Xico Sá ou Chico Science. Ser registrado por alguém é uma evidência de que esse termo continua vivo, não caiu em desuso, não é um ósculo da vida. O critério para mim é aquilo que está vivo. O que é representativo para a comunicação, o povo adota, assume como seu. Inclusive, nós temos centenas de palavras de origem estrangeira, na língua portuguesa. Se essas palavras foram incorporadas, é porque elas tiveram uma utilidade, uma função na comunicação das pessoas. O critério é a utilidade, às vezes, entra a beleza, a singularidade, o humor, mas tem que ser útil, funcional.

CONTINENTE O Dicionário do Nordeste é resultado de um trabalho anterior, que tinha como título Assim falava Lampião. Essa primeira versão não foi bem-recebida no Rio Grande do Sul por conta da antipatia dos gaúchos com Lampião. Como foi essa história? FRED NAVARRO É aquela velha história do desconhecimento. Para eles, a imagem de Lampião é lugar comum, clichê, bandido, bandoleiro, matar criança. Nunca leram Frederico Pernambucano de Melo, nunca leram a grande e boa literatura sobre Lampião já feita no Nordeste, nunca viram Baile perfumado. A região Sul e o Nordeste são as duas regiões mais nacionalistas. O Rio Grande do Sul já tentou se separar do Brasil, assim como nós. Lampião era músico, inventou um ritmo musical, inventou o xaxado com as marcações dos fuzis e alpercatas, para comemorar as vitórias sobre os policiais, compôs mais de 18 músicas, inclusive Mulher rendeira. Lampião tinha todo um lado

“Só o Nordeste e o Rio têm essa expressão tão rica, com o tom da brincadeira, da sacanagem, da provocação” fascinante junto ao bandido vingador, que merece atenção. Esse fato reflete um pouco nosso distanciamento cultural, eles não se interessam pelos livros de Jorge Amado, as músicas de Fagner. Para eles, tudo isso é o lado pobre, o lado sem educação, sem instrução e estrutura do brasileiro. É preconceito, é falta de informação e ignorância deles. Mas, quando tiram férias e conhecem o Nordeste, eles voltam todo ano. CONTINENTE Um exemplo que sempre é citado no campo da linguística é o dos esquimós, que possuem mais 100 termos para designar o branco. Esse exemplo nos dá uma ideia de que a língua se desenvolve de acordo com as necessidades e características de cada sociedade. A partir do seu trabalho, é possível entender o Nordeste? FRED NAVARRO É possível conhecer o Nordeste através dele. Vejo o dicionário como um manual de tradução do

Nordeste para outras regiões do Brasil e outros países. Porque a força da cultura popular nordestina está na diversidade, na capacidade que tem de expressar a voz do homem da rua e do rico de Boa Viagem ao mesmo tempo. No cordel, na linguagem sofisticada de Elomar, na invenção de um Tom Zé, Francisco Dantas. Essa diversidade cria uma riqueza vocabular que expressa o meio ambiente em que vive o homem nordestino. A chave para entender o dicionário é a relação do homem com a natureza, é da sua relação com a natureza que o vaqueiro, o pescador e o canavieiro tiram a maior parte dessas expressões. Muitas delas foram herdadas de Portugal e adaptadas ao meio nordestino. Isso aconteceu em todas as regiões do Brasil, não só no Nordeste. O número de palavras que o vaqueiro tem para designar o boi e que o pescador tem para falar do barco são equivalentes às do esquimó com a neve. O mesmo peixe, no Brasil, tem 18 nomes diferentes. Essa riqueza remete à questão da globalização. A globalização passa réguas nas culturas, mas ela localiza e destaca as culturas com base nessa força popular. Não são culturas que inventaram as coisas artificialmente, são culturas enraizadas, com história, as histórias da nossa linguagem remetem ao tempo medieval português, aos romanos, à própria origem do latim. É uma língua que soube acoplar essa história ao meio ambiente e ao povo. CONTINENTE No dicionário, há muitos páginas com verbetes relacionados a sexo. Isso é um reflexo da importância que o tema tem no Nordeste? FRED NAVARRO Ele não entra como item especial, tem tantos termos quanto comidas e árvores. Mas a importância dos termos chulos, com a picardia e a sacanagem, tem a ver com o bom humor do nosso povo. Você só encontra isso, no Brasil, na gíria carioca. A linguagem falada no Amazonas, no Pantanal, no Sudeste e no Sul é muito careta, muito conservadora, sob esse ponto de vista. Só o Nordeste e o Rio de Janeiro têm essa expressão tão rica, com o tom da brincadeira, da sacanagem, da provocação. Mário Souto Maior já publicou o Dicionário do Palavrão com 500 e tantos verbetes. THIAGO CORRÊA.

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NEWTOWN Renascimento sul-africano

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MARKET THEATRE Situado ao lado do Museu da África, o local oferece bares, restaurantes e eventos culturais abertos

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BRENDA FASSIE Escultura em bronze homenageia a cantora sul-africana, falecida em 2004

Histórico bairro de Joanesburgo é impulsionado por manifestações artísticas e culturais, que trazem de volta o ambiente de vitalidade minado pelo regime de segregação TEXTO E FOTOS Luciano Velleda

Cercado por 3 mil indianos que ali estavam para ouvi-lo discursar, o advogado Mohandas, de 39 anos, vocifera contra a recente lei racial que restringe a chegada de imigrantes indianos à África do Sul. Em protesto, ele incendeia seu visto de residência, instigando todos que o ouvem a acompanhá-lo no gesto. Em instantes, centenas de vistos ardem num improvisado caldeirão armado diante da mesquita Hamidia, na Rua Jennings Street, em Joanesburgo. O ato é um dos pontos altos da epopeia sul-africana de 21 anos de Mohandas. A resistência exercida com a queima dos documentos ocorrida naquele 16 de agosto de 1908, anos depois, se tornaria o símbolo máximo da luta desse advogado indiano, que entrou para a história conhecido como Mahatma Gandhi. A parada em frente ao marco de pedra oval, em que um breve texto relembra o fatídico dia, integra o tour a pé pelo histórico Bairro de Newtown, organizado pela agência Past Experiences. O gesto de rebeldia de Gandhi, um dos mais influentes homens do século 20, seria repetido meio século depois pelos líderes nacionalistas negros que lutaram contra o fim do apartheid, queimando seus passes – documentos que não brancos eram obrigados a carregar. Com o fim do apartheid, o Bairro de Newtown, outrora pulsante centro econômico e financeiro de Joanesburgo, foi repentinamente abandonado pelas agências e escritórios comerciais das empresas nacionais e estrangeiras que ali operavam – não por acaso comandadas

pela minoria branca que governava o país. A região caiu em decadência. Tornou-se uma área degradada da noite para o dia, esquecida pelos homens de negócios, que rumaram com suas famílias para o norte da cidade, deixando para trás lojas e prédios esvaziados, temerosos com os rumos que o país tomaria com a chegada dos negros ao poder. Vinte anos depois do fim do regime de segregação racial na África do Sul, Newtown começa a renascer, impulsionado por manifestações artísticas e culturais que despontam aqui e ali, atraindo visitantes, moradores e, aos poucos, reconstruindo o ambiente de vitalidade de épocas passadas. Caminhar pelo bairro é a forma mais apropriada de travar contato com

esse renascimento. E a praça Mary Fitzgerald Square, epicentro da região, é um bom ponto de partida. Reformada após a Copa do Mundo de 2010, na praça fica a Bassline, casa de shows de jazz e blues inaugurada em 2004, no antigo local do Music Hall. Nesses quase 10 anos de portas abertas, os mais importantes nomes da música africana têm se apresentado na Bassline, com capacidade para mil pessoas em sua sala principal, e para 150 em outra menor, dedicada a espetáculos intimistas. Em frente à casa, destaca-se a escultura em bronze de Brenda Fassie, legendária cantora sul-africana, falecida em 2004. Ao me afastar da estátua de Brenda, o olhar é atraído para uma curiosa fileira de pequenos bustos representando anônimos rostos de traços africanos. Esculpidos em toras de madeira retiradas de antigas estradas ferroviárias, as cabeças estão dispostas lado a lado, sobre baixos pilares brancos, formando uma extensa e retilínea fileira. Ao todo, existem 560 esculturas assim espalhadas pela cidade, muitas delas em Newtown. Obra de artistas locais, chama a atenção a forma única de cada rosto, com feições nunca repetidas. “A arte está instigando as transformações do centro da cidade. Estamos começando do zero, sem exclusão, construindo Newtown com uma outra visão”, afirma Tania Olsson, formada em Arqueologia, e há quatro anos comandando visitas guiadas pelas ruas de Joanesburgo. Seguindo a linha formada pelas cabeças de madeira, caminha-se por

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Viagem uma área ampla da Mary Fitzgerald Square, entre trechos arborizados, de grama bem-aparada e árvores esparsas não muito altas; e por vazios, espaços abertos, como à espera da ocupação. Ao longe, prédios de arquitetura moderna lembram o passado recente de vocação empresarial. Ao alcançar a extremidade norte da Mary Fitzgerald Square, dá-se de frente com o grande e sóbrio prédio do Museu da África. A construção de linhas retas, em formato retangular, reconta a história de Joanesburgo

desde os primórdios, passando pelo povoamento da cidade, a exploração de metais preciosos, até o desenvolvimento da música sulafricana. Um dos destaques do museu é a exibição que detalha o Treason Trial, entre 1956 e 1961, episódio que forjou o caráter de muitos líderes da nova África do Sul. Ao lado do Museu da África, o Market Theatre aguarda os visitantes nas mesas de alguns restaurantes e bares, e tem se consolidado como um ponto frequente de shows e apresentações artísticas. O tour a pé por Newtown continua, cruzando uma movimentada avenida, na face oeste do Museu da África. O pequeno grupo de seis ou sete pessoas segue os passos da guia Tania Olsson,

uma sul-africana muito branca, de cabelos loiros, com cerca de 1,60 metro de altura, vestida de modo despojado, com roupas largas, movimentandose com agilidade e bastante falante. Tania parece adorar seu trabalho e ter grande orgulho da cidade. Chegamos embaixo de um longo viaduto, o De Villiers Graaff Motorway, e a guia aponta para os pilares que sustentam a construção, com cerca de 10 metros de altura e dois de largura, cobertos por coloridos grafites. “A arte de rua é responsável pelo renascimento da área central de J’oburg. Tudo começa a vir à tona agora”, diz ela, referindo-se a Joanesburgo como os nativos a chamam, e refletindo sobre a ebulição artística de Newtown. Os desenhos são enormes e irreverentes. Um dos primeiros retrata a Virgem Maria segurando nos braços um grande spray de tinta; há o Super-Homem feio, baixinho e gordo; o Homem de Ferro com cara de cansado; uma jovem morena de cabelo tipo Channel e fita métrica a mão, que mais parece uma faca; outro que retrata um negro desenhando, com formas e traços que se assemelham ao modernismo de Di Cavalcanti ou Tarsila Amaral; e outros mais, todos primando pelo colorido, muitos com a temática de quadrinhos. Ao contrário da famosa e turística Cidade do Cabo, no sudoeste do país, onde o grafite é expressamente proibido – com punição, inclusive, para o dono do imóvel que oferecer seu muro ou parede –, em Joanesburgo o grafite não só é legalizado, como é incentivado. Se, na Cidade do Cabo, essa forma de manifestação artística iniciou ao redor das linhas de trem, em áreas de certa forma mais escondidas e afastadas, em J’oburg, o grafite já começou em espaços abertos e centrais. Afastamos-nos dos pilares da ponte e atravessamos a rua em direção à calçada lateral. Alguns passos adiante, um grupo de jovens (três meninas e um rapaz) arma dois tripés e fixa câmeras neles, com as lentes apontadas para os grafites. Embora sul-africanos brancos, loiros, e de olhos azuis sejam minoria no país, ainda assim há muitos, mas aqueles ali parecem estrangeiros. De fato, são alemães e estão produzindo vídeos sobre as manifestações artísticas de Joanesburgo.

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BUSTOS

Esculpidos em madeira, espalham-se pela cidade

4-5 NA RUA

Grafites estão em toda parte, também na fachada da CityVarsity

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MARCO

Frase expressa revolta dos negros, durante apartheid

Antes de dobrar na rua, à esquerda, seguindo orientação da guia, um grafite no muro ao lado chama a atenção: o perfil de um chimpanzé, com o queixo apoiado sobre a mão, ares de pensador e, abaixo, a palavra: Fin. Entramos numa rua pouco movimentada, e logo adiante passamos pela fachada vermelho-escarlate da CityVarsity – School of Media & Creative Arts. A escola de graduação e pós-graduação em Comunicação e Artes nasceu na Cidade do Cabo, e, desde 2007, tem campus em J’oburg. É uma instituição de ensino superior prestigiada e sua localização em Newtown, centro do renascimento artístico da cidade, não é por acaso. Apesar disso, não é por esse motivo que a guia Tania Olsson trouxe o grupo a uma rua pouco movimentada, quase um beco. Embora, à direita, um muro com dezenas de metros de comprimento ostente mais uma série de grafites de bonecos e coloridos quadrinhos, é um pouco adiante, à esquerda, sob uma ponte baixa, que uma singela frase escrita num muro de tijolos talvez seja a mais importante inscrição de Joanesburgo: “WE WONT MOVE”. A firme e curta negativa foi escrita há muitas décadas, e representa a inequívoca revolta da população negra da cidade, forçada pela minoria branca a se mudar para os bairros afastados da periferia, sendo expulsos das áreas centrais. Mesmo escrita há mais de 20 anos, artistas de J’oburg sempre preservaram a inscrição, retocando quando preciso a histórica frase em grandes letras de forma. No caminho de retorno à Praça Mary Fitzgerald Square, ponto inicial do tour em Newtown, o grupo passa ao lado do antigo prédio usado, desde 1968, como uma espécie de quartel-general da polícia de Joanesburgo. Nas duas últimas décadas do regime racista do apartheid, entre 1971 e 1990, o local, conhecido como John Vorster Square, foi o mais sinistro da cidade. Tal como o DOI-CODI da ditadura brasileira, ali, os ativistas

negros que lutavam por liberdade eram presos, detidos brutalmente, e submetidos à tortura. Em 1997, já tendo Nelson Mandela como presidente da África do Sul, o prédio alto e feio, com mais de 20 andares, foi renomeado para Johannesburg Central Police Station. Da calçada da esquina, a guia Tania Olsson aponta para o QG da polícia e conta que ali dentro, mais especificamente nas salas dos 8º e 9º andares, oito importantes líderes sulafricanos foram assassinados. E alguns outros se suicidaram. Em homenagem às vítimas, um memorial projetado pelo artista Kagiso Pat Mautloa foi inaugurado em 2007. “Esse prédio não deveria continuar sendo utilizado pela polícia. Ele traz péssimas lembranças

à população. Sou a favor de que a polícia saia daí e que esse local todo seja transformado num memorial”, diz Tania, não se eximindo em dar sua opinião. O ponto de vista de uma sul-africana loira e branca é simbólico. Em 2014, toda a África do Sul celebrará os 20 anos da eleição de Nelson Mandela e o fim do apartheid. Duas décadas depois, embora o país ainda enfrente muitas dificuldades sociais, as raízes do regime segregacionista parecem estar definitivamente cortadas. Impulsionado por ideais artísticos e valores humanistas, o renascimento do histórico Bairro de Newtown é como um sopro de esperança. Nem pretos nem brancos. Na igualdade racial, mais vale o colorido da arte.

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MARACATU Com o agô dos orixás

Leão Coroado completa 150 anos de atividades ininterruptas neste mês de dezembro, mantendo as condutas e práticas religiosas herdadas do século 19 TEXTO Isabelle Câmara FOTOS Diego Di Niglio

Ele se autodenomina “zelador das

tradições” do maracatu Leão Coroado. Mas, há 17 anos, é dele a missão de salvaguardar, preservar, desenvolver e renovar a cultura do mais antigo maracatu nação de Pernambuco em atividades ininterruptas, transmitindo saberes e fazeres aos cerca de 90 integrantes da agremiação – papel desempenhado pelos mestres da cultura popular. Afonso Aguiar, 65 anos, babalorixá, assumiu a honrosa função no dia 19 de outubro de 1996, quando o mestre Luiz de França dos Santos, sacerdote do culto dos orixás e destacado membro das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, já muito doente, percebeu que estava na hora de repassar o comando do folguedo, atividade à qual se dedicava desde 1954. “As pessoas tendem a acreditar que o dirigente de uma organização carnavalesca é a própria organização. Mas Luiz fez uma autocrítica e, em determinado momento, talvez tenha sentido que, se ele desaparecesse, o maracatu, da forma como ele

o conduzia, corria o risco de não prosseguir. Luiz criou a consciência de que o maracatu não era ele. A partir de então, passou a perseguir, com urgência, a ideia de encontrar um sucessor”, conta José Fernando Souza e Silva, pesquisador em cultura popular e membro da Comissão Pernambucana de Folclore. A confirmação de que estava na hora de encontrar um substituto veio de maneira metafísica, mas que faz sentido na cosmologia dos cultos afro em nagô, com os quais o maracatu se mimetiza e confunde. Mestre Luiz consultou os búzios e os orixás, e Nanã, que no candomblé representa a protetora dos idosos e doentes, senhora da morte e guardiã dos portais da encarnação, avisou que era chegada a hora de Mestre Luiz. De acordo com José Fernando, Roberto Benjamin, também pesquisador em cultura popular, autor de vários livros e artigos científicos sobre cultura afro-brasileira e ex-presidente da Comissão Pernambucana de Folclore, falecido no último dia 20/10, indicou o nome

de Afonso Aguiar – ainda que este soubesse quase nada sobre maracatu e mestre Luiz não o conhecesse. A indicação foi confirmada por Xangô, “pai” de mestre Luiz, padrinho do Leão Coroado e orixá do fogo, dos raios e trovões. Numa cerimônia realizada no sítio do Pai Adão, ou Ilé Obá Ogunté, a mais antiga casa de culto nagô de Pernambuco (fundada em 1875), a transição foi anunciada ao som do agogô e dos ilus. A posse também foi acompanhada por Roberto Benjamin, José Fernando e pelo babalorixá Manoel Papai (Manoel do Nascimento Costa). Depois desse ritual, a residência de Afonso ganhou um novo hóspede: mestre Luiz, que, na ausência de familiares, passou a receber os cuidados de Afonso e sua esposa, Janeth de Aguiar, 63. “Eu trabalhava como serviços gerais num hospital. Quando chegava em casa, ele estava lá. Dava banho, arrumava, fazia a comida, acompanhava nos médicos”, recorda ela. “Acredito que a passagem dele lá em casa foi só

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Página anterior 1 MESTRE Afonso Gomes de Aguiar Filho recebeu a liderança do maracatu nação das mãos de Luiz de França Nestas páginas 2 XANGÔ MENINO Cauã Aguiar da Silva veste as cores do orixá patrono do Leão Coroado

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pra entregar o maracatu pra gente”, sugere Janeth, que hoje atua como dama do paço e costureira do grupo. “Foram seis meses de muito aprendizado. Conversávamos dia e noite, madrugada a dentro, sobre maracatu. Ele me ensinou o baque secular, que ele aprendeu com o pai, tocando na mesa, explicou a função de cada instrumento, as toadas, repassou os segredos e a parte religiosa”, lembra Afonso. José Fernando também fala sobre esse período: “Luiz era um portador extraordinário da religiosidade de matriz africana nagô e tinha muito forte a característica dos transmissores de conhecimentos africanos, montada numa pedagogia da oralidade. Não apenas mestre de folguedo, mas de uma teologia dos cultos afro em nagô. Luiz reconheceu que estava encontrando um sacerdote que tinha uma consistência religiosa tão grande quanto a dele e passou a ensinar a Afonso, sem abrir mão da maneira tradicional que ele tratava os saberes”. Luiz de França faleceu no dia 3 de maio de 1997, em decorrência de uma metástase, provavelmente provocada por um câncer de próstata.

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CASA E TERREIRO Não há distinção entre a vida laica e a religiosa, sendo o candomblé constituinte do grupo

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CORTEJO Entre o brinquedo e a religião Mesmo aprendiz no maracatu, o

sacerdócio no candomblé e as heranças históricas, genéticas e identitária de Afonso Aguiar se afirmaram. É a ele que cabe proteger a memória, a arte, o saber, o segredo, o sagrado, o simbolismo e as habilidades da nação, transformando todos esses sistemas imateriais em música, dança, ação dramática e manutenção do brinquedo. Na obra Folguedos e danças de Pernambuco (Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1989), Roberto Benjamin afirma: “O maracatu é um folguedo criado pelos negros no Brasil. A sua origem é a festividade católica de Reis Negros, celebrada na Festa do Rosário. Tanto nos arquivos da Irmandade do Rosário dos Pretos, do Bairro de Santo

Antônio (Recife), há documentos sobre a celebração da coroação de reis negros desde os tempos coloniais, como nos grupos mais tradicionais há ainda memória daquela festa. Relatos de negros velhos testemunham a origem católica. Além disso, alguns grupos continuam a realizar reverências com cânticos em honra de Nossa Senhora do Rosário, na porta das suas igrejas (Rosário dos Pretos, Igreja do Terço, Matriz do Pina). Hoje o folguedo se resume ao cortejo – o desfile de uma corte real negra. A organização do cortejo obedece ao estilo das procissões católicas. (...). Como a religião é vivenciada plenamente por seus praticantes, é sempre possível encontrar aspectos religiosos nas

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manifestações profanas. Nos maracatus são realizadas cerimônias propiciatórias, para a obtenção da proteção dos orixás, visando o sucesso das apresentações e a realização dos desfiles sem incidentes. Também a boneca recebe reverências de natureza religiosa”. A boneca parece representar a materialização desse diálogo da brincadeira com a religião. De acordo com Benjamin, ainda, Mário de Andrade chegou a escrever um ensaio exclusivo sobre a calunga dos maracatus: “A boneca seria uma divindade (a Calunga – o mar) cultuada pelos povos do Congo e Angola. Artur Ramos, considerando as ligações dos maracatus aos cultos gegê-nagô, portanto a uma origem iorubana, corrige aquele autor, para afirmar que os ídolos para os povos iorubanos não têm o sentido de fetiche, devendo ser entendidos apenas como representação da divindade. Ao estabelecer esta posição, Artur Ramos não levou em conta o intercâmbio cultural entre os negros de procedências diferentes no Brasil. Além destas duas hipóteses – isto é – ser um fetiche de uma divindade,

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ou ser um ídolo representativo da divindade, há ainda de se considerar a possibilidade de ser um objeto, que por causa da consagração (que pode se renovar) concentre uma força espiritual capaz de proteger o grupo. Em um plano não religioso, as bonecas poderiam ser encaradas como crianças de colo, príncipes e princezinhas da corte real. Nenhum dos estudiosos negou, porém, um fundamento religioso para as bonecas do maracatu. Ao ser introduzida no grupo, a boneca passa por uma cerimônia nos cultos gegênagô, recebendo um nome próprio e o tratamento de princesa – Dona Clara, Dona Isabel, Dona Leopoldina”. E Afonso é rigoroso com a tarefa que lhe foi confiada: rege os tambores

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do Leão Coroado, seguindo à risca os ensinamentos musicais de Luiz; não admite calungas que não sejam de madeira; não incorporou abês à percussão, como fez a maioria dos maracatus de baque virado de Pernambuco; não participa do desfile oficial das agremiações no Carnaval do Recife, em que há disputas entre agremiações; fez da sua própria casa, no Bairro de Águas Compridas, em Olinda, a sede do grupo; não abre mão das obrigações religiosas; e expande todo o legado da tradição que lhe foi repassada por mestre Luiz, ao transmitir o conhecimento que adquiriu e construiu para os integrantes do grupo, em sua maioria moradores da própria comunidade.

Gente como Juliane Silva Costa, 24, que entrou no Leão Coroado aos 8 anos de idade, para dançar como índia e, ao longo de 16 anos, desempenhou diversas funções. Hoje, Juliane está casada, mora na Cidade Tabajara (Olinda), faz faculdade de Recursos Humanos e trabalha como recepcionista, mas todos os finais de semana vai a Águas Compridas para ensaiar com o grupo, em que atualmente é batuqueira, e aprender outros ofícios próprios da manifestação cultural, como manutenção e confecção de instrumentos e corte e costura das fantasias, ajudando Dona Janeth. “O maracatu me proporcionou muitos conhecimentos culturais. Tive oportunidades de viajar para

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CATIRINAS Cintia de Aguiar Silva e Juliane Silva Costa integram o Leão Coroado desde a infância

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DAMA DO PAÇO Esposa do líder do grupo, Janeth de Aguiar tem a incubência de carregar a simbólica Calunga

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ENTIDADE UM PATRIMÔNIO VIVO DE PERNAMBUCO

outros países e conhecer pessoas que, sem ele, não conseguiria.” Cinthia de Aguiar Silva, 25, entrou no grupo no mesmo período de Juliane. “A raiz chama quando o tambor toca, é uma coisa da qual você tem que participar”, afirma. Ela já saiu como princesa, catirina, baiana, e hoje, licenciada em Letras, além de atuar como professora de português e inglês em escolas particulares do Grande Recife, dança e participa do coro. “A gente aprendeu muito, não só sobre a arte, mas sobre a vida. Infelizmente, o nosso país não nos permite viver de cultura, a gente tem que seguir outra carreira, mas hoje eu posso dizer que faço parte da cultura pernambucana e isso é um orgulho danado!”, comemora.

O Maracatu Nação Leão Coroado foi fundado em 8 de dezembro de 1863, embora haja a hipótese de que ele já existisse em 1852. Não há documentos que comprovem quem o fundou, mas todo o conhecimento que Luiz de França portava lhe foi ensinado por seus pais, Manoel dos Santos, africano que chegou escravizado ao Brasil e, depois de liberto, virou estivador, e Philadelpha da Hora, ambos brincantes do maracatu. No ensaio Gente dos maracatus, publicado no livro Artes do corpo, organizado por Vagner Gonçalves da Silva (Selo Negro, 2004), Roberto Benjamin escreve que Luiz de França contava que havia recebido a direção do maracatu de seu padrinho, José Luiz, que era dirigente da irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do Bairro de Santo Antônio. Coincidentemente ou não, o dia 8 de dezembro é dedicado à Nossa Senhora da Conceição que, no sincretismo religioso, é associada a Iemanjá. Este dia também é dedicado à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos,

protetora das pessoas escravizadas, de quem o mestre Luiz era devoto. A primeira sede do grupo estava localizada no Bairro da Boa Vista, numa rua que agora leva o nome do maracatu. Depois, o grupo migrou para Afogados, rumou para Água Fria, até chegar em Águas Compridas, onde permanece até hoje. Em 2005, o Leão Coroado foi reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco, recebeu o Prêmio Cultura Viva (2006), do Ministério da Cultura, e se tornou um dos grupos da cultura popular tradicional que mais viaja pelo mundo, representando a cultura afro-brasileira. Segundo Benjamin, no ensaio Gentes do maracatu, “Luiz de França tinha plena consciência da importância do Leão Coroado como um bem do patrimônio imaterial de Pernambuco, embora não usasse essa expressão. Ele destacava o fato de que era o único que não havia suspendido as atividades em mais de 100 anos, tendo as sucessões ocorrido dentro da comunidade da religião dos orixás, conservando os seus símbolos, estandartes, bonecas, toadas e ritmos tradicionais”. O título de Patrimônio Vivo de Pernambuco garante ao Leão Coroado uma bolsa mensal de R$ 2 mil, que é investida sobretudo na aquisição e manutenção dos instrumentos e da indumentária.(I.C.)

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CON TI NEN TE

Tradição Depoimento

AFONSO AGUIAR O FALADOR DE SILÊNCIOS Ele não fala em linha reta. Suas conversas, geralmente, são em círculos. E incompletos. José Fernando explica: “Afonso é de uma ortodoxia tão valente que o fato de você ser mulher já cerceia o aprendizado em profundidade”. Ou seja, para que uma jornalista como eu entendesse o funcionamento e a dimensão do Leão Coroado foi preciso ouvir mestre Afonso, observá-lo e estar com ele, ainda que no silêncio.

Aprofundar esse conhecimento também requer conversar com integrantes, entrevistar pesquisadores, ir aos ensaios, ouvir (repetidas vezes) o único CD do grupo, lançado há 10 anos, com apoio do Funcultura, e ler a parca bibliografia que cita a agremiação. Dessa aproximação, extraímos os mais significativos trechos dos diálogos estabelecidos.

SER MESTRE

Nunca fui de cultura de Carnaval, eu não sou carnavalesco. Eles me colocaram nessa enrascada. Digo a todo mundo: eu nasci dentro (do candomblé), vivi minha vida todinha e nunca me afastei um dia do meu pai, tinha obrigação, mas nunca me afastei. Ele morreu e eu, por determinação dos orixás,

fiquei tomando conta da casa e não sei a metade do que ele sabia. Aí, hoje eu vejo gente muito mais nova do que eu, com menos vivência, se dizendo “babalorixá”, “mestre”. E eu não gosto de dizer assim, porque esse título de mestre é meio pesado. Mestre é quem vai pra universidade, fazer mestrado pra tentar defender aquela tese, né? Sempre digo: “eu tô aqui com um pouco mais experiência do que vocês, então, a gente vai tocar, vocês vão aprender comigo e eu vou aprender com vocês”.

PATRIMÔNIO VIVO

A lei diz que o Estado tem que ter 60 patrimônios culturais vivos, sendo pessoas físicas e jurídicas. Só que eles elegem duas pessoas físicas e

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que chama. Faleceram Arlindo dos Oitos Baixos (23/10/13) e Salustiano (31/08/2008), que eram patrimônios.

CARNAVAL DE PERNAMBUCO

Depois que assumi o Leão Coroado, de acordo com o que eu tinha conversado com Luiz, para manter do jeito que ele deixou, eu fui verificando que, se permaneço na competição (desfile oficial das agremiações, na Av. Guararapes), como ele participava, eu iria, automaticamente, me estilizar. Eu não me achava com o direito de mudar, como o pessoal tava pleiteando, porque ia desvirtuar, ia acabar com a tradição. Na época de Luiz, não havia essas mudanças, mas quando cheguei, começaram a pedir pra colocar abês e outras coisas. E pra evitar um atropelo, achei melhor desistir. Consultei os orixás e recebi o aval pra sair. Eu participo nos palcos, como no Alto José do Pinho, em Casa Amarela, mas só não participo do desfile oficial, que é a competição. Da Noite dos Tambores Silenciosos eu voltei a participar esse ano, pois houve um problema na época do ex-prefeito. O pessoal mudou muita coisa e eu não concordava. Mas, como não é mais ele o prefeito, eu voltei.

RELIGIOSIDADE

uma jurídica por ano. Pras pessoas jurídicas, eles estão dando uma quantia de R$ 2 mil e, pras físicas, eu não sei, mas acho que é R$ 1,3 mil. Se fosse uma brincadeira que você ficasse o ano todo parado e tivesse aquele dinheiro entrando todo mês, quando visse (ao final de um ano), tinha uns R$ 25, 22, 23 mil, que dava pra suprir. Mas você ensaia toda semana, que é pra inserir o pessoal da comunidade, aí rasga os bombos, quebra, e tem que repor e tem que fazer (novos). E o patrimônio físico é a mesma coisa: é um patrimônio que ostenta aquele saber que foi eleito Patrimônio Vivo. Eu não penso em ser patrimônio vivo (pessoa física). Todo mundo que entra, morre. Parece

O maracatu só é nação se tiver um vínculo religioso e de verdade, né? O ritual para o Carnaval já começou. A gente fez uma oferenda (para os orixás) no dia 2 de novembro (Finados), pedindo fortalecimento, para que nos guiem. Pra gente, o Carnaval não é festa profana, tudo tem caráter religioso. Mesmo que você não seja do maracatu, todo pessoal que é de candomblé, quando chega na semana de Carnaval, se reúne o pessoal do terreiro todinho para dar aquela oferenda a Iansã, pra ela tomar de conta de todo o povo no Carnaval, para que a festa vá sem atropelo, acidente, roubo. Minha vida é todinha assim e o relacionamento do Leão Coroado com o candomblé é muito íntimo. A história é muito mais séria do que se pensa. Não existe separação, não.

CALUNGA

Nossa calunga é Dona Isabé, em homenagem à princesa Isabel, que fez a abolição. Dizem que o maracatu é comandado por Xangô, mas não

pode. Você pode ter um orixá como padrinho, mas não pode dizer que é de Xangô, porque o maracatu é da religião, foi nascido dentro do terreiro como candomblé, mas ele tem um egum (espírito pós-morte) na frente, que é um ancestral, e é a Calunga. Agora, Luiz era filho de Xangô, então ele sacramentou que a bateria do maracatu sai de vermelho e branco. A calunga do maracatu tem que ser de madeira. E tem que ser por inteiro, uma figura completa. Você encontra maracatu que só é um busto: enfia um pau, veste a roupa e vão. A dama do paço é quem leva a calunga. Minha esposa, Janeth, é que faz isso, porque fica difícil você arrumar uma pessoa de confiança que pegue aquela calunga. A pessoa que pega nela tem que estar em abstinência sexual e fora do ciclo menstrual. Após o estandarte, vem ela, ela é quem guia. Aí, então é uma procissão, né? Não é uma correria. Cada coisa representa uma coisa, que é pra formar um conjunto. E é nessa guerra que a gente vai chegando aos 150 (anos).

AGOGÔ

O agogô só tem um. Ele é o coração (do maracatu). A história é uma coisa que gera muita polêmica entre o nome agogô e gonguê. Gonguê é aquele que tem duas bocas, o agogô só tem uma. E o nome dele é agogô porque ele é que vem pedindo licença aos orixás e dá sinal para os bombos tocarem.

PEDAGOGIA DA ORALIDADE

O aprendizado da gente é oral. Se você não participou de nada, só porque hoje chegou aqui, tocou e aprendeu a tocar, vai chegar ali embaixo e dizer: “sou mestre”? Dentro do candomblé você não tem condições de vivenciar (o aprendizado) com 30 anos de idade. Não tem. Se o aprendizado é oral, então tem que conviver, né? Viver e conviver, que é pra ver aquele dia a dia. Se você não vê, vem aqui de noite, toma um cafezinho e vai embora, não aprendeu a conversa, não sabe o que aconteceu durante o dia, não sabe aquele processo todo. Tem que colocar eles (as crianças e os jovens) pra conviver e pra viver dentro, para eles se habituar e ter uma responsabilidade em cima dele. Acho que, talvez, o pessoal ainda não tenha entendido o potencial da oralidade.

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MEMÓRIA

AUGUSTO RODRIGUES O repórter do traço

Chargista, que agora faria 100 anos, expressou sua opinião de maneira original e criativa, legando aos leitores um retrato em preto e branco do tempo em que viveu TEXTO Lailson de Holanda Cavalcanti

Em um campo florido, um espantalho com a face do líder nazista Adolf Hitler balança ao vento enquanto é bicado por três pombas brancas, tendo como legenda a frase: “O espantalho desmoralizado”. A imagem, de 1942, é uma das muitas que o cartunista Augusto Rodrigues deixou registradas em sua carreira como chargista na

Agência Meridional, grupo distribuidor de conteúdo dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. A importância de Augusto Rodrigues para o desenvolvimento das artes plásticas no Brasil é bastante conhecida, porém, sua contribuição como artista do humor gráfico é pouco mencionada e analisada, apesar dessa faceta do seu

trabalho nada ficar a dever às suas obras voltadas para uma expressão estética mais aceita como expressão plástica. Desde os 18 anos que o artista participava dos movimentos artísticos que se processavam no Recife e, aos 22 anos, fixou residência no Rio de Janeiro onde, de fato, realizou sua carreira profissional.

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Iniciando-se na imprensa carioca no D. Casmurro, em poucos anos, Rodrigues tornou-se um dos nomes mais solicitados na imprensa da capital, fazendo charges, ilustrações e caricaturas para as revistas Vamos Ler, Fon-Fon, Diretrizes e também a mais importante de todas, a revista semanal O Cruzeiro, do Grupo Associados. A censura à imprensa na época, promovida pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, limitava tremendamente a livre expressão do pensamento e, no início da Segunda Guerra Mundial, deixava claras as tendências políticas do regime brasileiro. Charges favoráveis a Mussolini, publicadas originalmente no Popolo di Roma, eram republicadas na imprensa brasileira, principalmente em relação à invasão da Abissínia pelo exército fascista italiano, retratando de maneira racista e preconceituosa o líder africano Hailé Sélassié. A partir de dezembro de 1941, com a entrada dos Estados Unidos da América no conflito mundial, e com a subsequente negociação com o governo federal para que o Brasil formasse aliança com o Bloco dos Aliados no ano

seguinte, é que as charges brasileiras passaram a expressar uma visão de contestação à opressão nazifascista. O humor gráfico tem como sua principal característica enfrentar o terror provocado pelos regimes de força através de uma visão crítica que provoca a reflexão e o riso. Tem sido assim desde os tempos de William Hogarth, na Inglaterra do século 18, e na França e no Brasil do século 19, com Honoré Daumier e Angelo Agostini.

CRÍTICA E CRIATIVIDADE

No Brasil do século 20, esse desassombro diante da ameaça nazista é muito bem-demonstrado pelo chargista Belmonte na imprensa paulista, e por Augusto Rodrigues, que tem seus desenhos distribuídos nacionalmente através da Agência Meridional, para diversos jornais. Enquanto Belmonte procurava fazer um registro do desenrolar dos acontecimentos do combate mundial, quase que como um quadro a quadro da História, Rodrigues preocupava-se em dar uma opinião pessoal sobre os diferentes aspectos do conflito, ridicularizando com

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SEGUNDA GUERRA

Charge com Stalin e Hitler foi uma das que trouxeram a opinião do artista sobre os líderes do conflito

trabalhos contundentes e impiedosos os líderes do Eixo e aqueles que com eles compactuavam. Suas charges traziam em si um fino e sutil humor que traduziam a qualidade crítica e criativa do autor, apresentando desenhos que se destacam dos seus contemporâneos pela forma modernista como foram feitos. Suas figuras e caricaturas são estilizações gráficas e interpretativas dos personagens visados, recriando-os à sua própria maneira. Pierre Laval, por exemplo, colaboracionista francês que apoiou os nazistas na ocupação da França, é caricaturado por Augusto Rodrigues em uma charge de três tempos em que, no primeiro quadro, aparece ao lado de um soldado nazista que passeia com um cão bassê na coleira; no segundo quadro, Laval é o garçom que serve o mesmo cão

Os desenhos de Augusto Rodrigues se destacavam dos seus contemporâneos pela forma moderna como eram feitos como almoço para o nazista; e, no quadro final, Laval agora é o cachorro levado na coleira pelo nazista. Na charge intitulada Voluntários de Vichy, o cartunista retrata novamente Laval, desta vez, acompanhado pelos líderes alemães Adolf Hitler e Hermann Göring, que, com armas nas mãos, mandam os soldados franceses lutar contra os aliados. Sua análise da posição do ditador espanhol Francisco Franco é feita de maneira mordaz, com o general escondendo uma foto do “Führer”, atrás, enquanto é observado pelos líderes aliados Winston Churchill e Franklin Roosevelt. A contrapropaganda japonesa é satirizada pelo artista através do

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HUMOR

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CHARGE

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LITERATURA

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AUGUSTO RODIRGUES

Critica ao francês Pierre Laval, que colaborou com os nazistas Olhar sobre a política “café com leite”, que buscava controlar a economia do país José Lins do Rego e Manuel Bandeira estão entre os seus caricaturados Artista dividia o tempo entre o ensino, o humor e as artes plásticas

diálogo entre dois oficiais japoneses, com braçadeiras suásticas, em que o oficial mais graduado determina: “Escreva que dominamos na Birmânia”. Ao que o outro responde, espantado: “Mas não é verdade!”. E o primeiro conclui: “Que tem isso?” Mas é o líder comunista Joseph Stalin que representa, para Augusto Rodrigues, o verdadeiro opositor ao perigo nazifascista, retratando-o como um gigante prestes a devorar o líder nazista ou um enorme boneco de neve que assusta o ditador alemão. Em outras charges, Stalin salta sobre Hitler e o imobiliza, ou usa o laço de uma forca para prender o governante germânico. O cenário da guerra é um bom palco para Augusto Rodrigues provocar no leitor brasileiro a reflexão sobre os cerceamentos da liberdade promovidos pelos estados nazifascistas, sutilmente comparando-os à ditadura de Vargas no Brasil, sem, no entanto, incorrer numa afronta aberta ao regime brasileiro. A derrota alemã pelas tropas aliadas e a rendição do Japão, após os ataques atômicos realizados pelos norteamericanos em Hiroshima e Nagasaki, fazem surgir um novo equilíbrio político, e as tropas expedicionárias brasileiras que retornam ao país questionam a manutenção do apoio a um governo cujo chefe, no comando do Brasil, assemelha-se aos ditadores europeus derrotados. Com a deposição de Getúlio Vargas e a eleição do general Eurico Gaspar Dutra para presidente do Brasil, as charges de Augusto Rodrigues tomam um novo rumo, buscando opinar sobre a redemocratização do país e sobre a ciranda política dos novos partidos e novos líderes que surgem.

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Com seu traço modernista, o cartunista retrata esses novos atores da cena política, deixando registradas as imagens de Nereu Ramos, Dutra, Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Plínio Salgado, João Mangabeira, Tenório Cavalcanti, Agamenon Magalhães e muitos outros.

AUTOCARICATURA

O próprio Augusto Rodrigues torna-se personagem das suas charges na figura do Repórter, uma autocaricatura em que se apresenta com o topete caído sobre a testa, um sorriso matreiro sob o fino bigode, a barba por fazer, um ar sempre desleixado e um eterno cigarro pendurado nos lábios. O personagem faz sugestões aos figurões da política que aparecem em diversas situações. O texto de Rodrigues é bemestruturado e criativo, mas seu traço é muito superior no conjunto do seu trabalho. O texto procura expressar mais claramente seu posicionamento político diante dos fatos, enquanto os desenhos ressaltam a sua visão dos personagens envolvidos. Durante todo esse período, suas charges formam uma excelente fonte iconográfica para o acompanhamento e compreensão do desenrolar dos fatos políticos que culminam com a volta de Vargas ao poder em 1950. O uso de trocadilhos em seus textos é muito explorado, como na charge onde o Repórter conversa com o marechal Dutra, perguntando ao presidente: “Então vossa excelência recusou o convite de Adhemar sobre a mesa redonda de conservação do solo?” Ao que o marechal responde: “Meu caro, o Adhemar não quer conservar o solo. Ele quer é ganhar terreno para a sucessão”. O citado Adhemar aparece em uma charge vestido de garçom, servindo um café ao presidente Dutra, que diz: “Estou com a faca e o queijo na mão”. E o político paulista pergunta: “E que tal um cafezinho, excelência?”. Nessa síntese humorística, Rodrigues satiriza as conchamblanças políticas na articulação da política do café com leite entre Minas (queijo) e São Paulo (café), que buscavam controlar a política e a economia do país. Augusto Rodrigues coloca seus personagens em diferentes cenários,

Para Rodrigues, a caricatura pode atingir fins políticos, ajudando a preservar a dignidade do homem e a liberdade da arte como um campo de futebol, onde Dutra faz embaixadas diante de Getúlio e Adhemar; ou um teatro, onde o mesmo Dutra rege um coral de todos os candidatos à sua sucessão. Na charge No jogo da sucessão, o marechal Dutra aproxima-se de uma mesa na qual jogam cartas Adhemar de Barros e Nereu Ramos, e onde Getúlio Vargas – transformado em peru – está empoleirado. Abrindo os braços, Dutra declara: “Agora que tem peru no jogo, eu entro”. Em 1951, com a posse de Vargas, que retorna à presidência pelo voto popular, Augusto Rodrigues mais uma vez se autorretrata numa charge, desenhando numa prancheta a caricatura do presidente recém-empossado, que tem atrás de si seu imenso guarda-costas, Gregório Fortunato. O repórter, enquanto desenha, pergunta: “Posso trabalhar com liberdade, presidente?”, numa clara

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alusão à censura imposta à imprensa por Vargas durante o Estado Novo. As novas situações políticas não são mais uma fonte de inspiração para Augusto Rodrigues, que passa a desenvolver sua linha de artista plástico, sem, no entanto, abandonar a caricatura, arte que ainda pratica por vários anos, retratando importantes figuras da cena intelectual e artística do país nos anos 1950 e 1960. Sua representação de Dorival Caymmi numa roda de samba, em 1958, é de uma expressão plástica excelente, com as figuras que compõem o cenário expressas em traços extremamente modernos e perfeitamente compostos. Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, todos foram imortalizados nos traços rápidos e precisos de Augusto Rodrigues. Um artista que, em suas próprias palavras, acreditava “ser a caricatura instrumento direto para atingir fins políticos e humanos, ajudando a preservar a dignidade do homem e a liberdade da arte”. E que expressou sua opinião e seu talento de maneira original e criativa, deixando para os leitores do seu tempo e dos tempos futuros um retrato em preto e branco definido e claro dos tempos em que viveu.

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Na arte de Augusto Rodrigues, é

DESENHO A serviço do humor e da arte 6

difícil traçar um limite entre o desenho e a pintura, pois, acima de tudo, ele era um desenhista que se expressava através de todos os elementos que usava para compor seus quadros. O passista do frevo pode ser apenas uma linha colorida em movimento, enquanto uma roda de samba pode apresentar um cromatismo pleno de luzes e sombras em que se manifestam músicos, dançarinos e instrumentos musicais. Acima de tudo, porém, Augusto Rodrigues é um romântico, fascinado pela forma feminina, principalmente pelas cabeças de mulheres que nos olham de suas telas como se buscassem nossa admiração. Elas não são provocantes ou sensuais em um sentido carnal, mais básico. Suas figuras nuas provocam um desejo de abraçar e proteger, de conhecer, de saber que romances permeiam seus sonhos. São mulheres sonhadoras, as mulheres de Augusto Rodrigues, com seus olhos profundos e plenos de mistérios. O romance impossível de Abelardo e Heloísa se repete de infinitas maneiras nos quadros pintados por Augusto Rodrigues, talvez um reflexo da sua própria busca pelo impossível. Talvez pelo drama romântico que essa história nos conta e que o encanta. A liberdade dos traços do artista é completa, trazendo para a arte mais reconhecida como “Bela Arte” o sabor irreverente do seu traço de caricaturista, que sintetiza sua expressão em poucas linhas. Suas representações de danças populares deixam esse viés muito claro. Não há uma preocupação em representar o objeto visto em seus detalhes, mas, sim, representar seu movimento, sua ação em um instante, transmitindo não apenas a forma, mas também a sensação de presenciar, de viver, de assistir ao espetáculo. O espetáculo da música, da dança, da vida. Pois é de vida que a obra de Augusto Rodrigues fala, não apenas em suas telas, mas também em seus desenhos artísticos ou satíricos, em suas gravuras, em seus poemas ou em sua paixão maior: a educação. Ele considerava que a arte é parte fundamental da educação e isso o levou, junto com Oswaldo Goeldi, Lúcia Alencastro, Vera Tormenta, Fernando

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MULHERES

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ESTUDO

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PASSISTA DE FREVO

Augusto Rodrigues era fascinado por figuras femininas Esboço de um corpo em movimento A cultura popular era um dos seus temas

9 PERSONAGENS Abelardo e Heloísa aparecem em diversos quadros

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dos fundadores do Primeiro Salão de Arte Moderna de Pernambuco. No ano seguinte, enviou três desenhos para participar do Pavilhão de Pernambuco na Sétima Feira Internacional de Amostras, no Rio de Janeiro, e para lá se transferiu no ano seguinte. Ali, pouco tempo depois, expôs seus trabalhos no Salão da Associação dos Artistas Brasileiros, junto a uma nova geração de pintores que surgia e da qual faria parte, que incluía nomes como Guignard, Portinari e outros.

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Pamplona e Humberto Branco, a fundar a Escolinha de Arte do Brasil, em 1948, no Rio de Janeiro. Um modelo que seria replicado em várias outras capitais, inclusive no Recife, sua cidade natal. Foi no Recife que Augusto Rodrigues iniciou seu aprendizado, no ateliê de Percy Lau, fazendo quadros de formatura, publicidade, pintura decorativa, desenvolvendo seu estilo sem preocupação formal ou acadêmica. Sua primeira exposição individual foi também nessa cidade, em 1933, sendo um

O desenhista iniciou seu aprendizado no Recife, fazendo trabalhos ainda sem preocupação formal ou acadêmica Em 1942, Augusto Rodrigues realizou sua primeira individual importante na capital federal, expondo 100 dos seus desenhos no Museu Nacional de Belas Artes, realizando, neste mesmo ano, uma individual em São Paulo. Seu nome, por essa época, já era popular na imprensa brasileira, com a publicação de seus desenhos nos jornais e revistas do conglomerado jornalístico de Assis Chateaubriand, inclusive na revista O Cruzeiro, a mais importante da sua época, como foi mencionado no texto anterior.

Suas atividades nas artes plásticas, entretanto, vão ocupando cada vez mais o seu tempo e tomam um rumo mais amplo a partir de 1953, quando ganha o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, no Salão Nacional de Arte Moderna, realizando nesse ano uma exposição individual na Galeria Tenreiro. Seus trabalhos começam a ser expostos em galerias de diversos países, como na Bianco e Nero de Lugano, na Suíça, e durante os próximos 40 anos viajam pelo mundo, em exposições coletivas. Ele chega a realizar exposições individuais no Centro Brasileiro de Cultura no Chile, na Galeria Parodi (Argentina) e em Poitiers, na França, em 1990. Augusto Rodrigues manteve suas atividades de artista plástico e educador, dividindo seu tempo, na maturidade, entre as cidades do Rio de Janeiro (RJ) e Penedo (AL), trabalhando e realizando palestras até 1993, o último ano de sua vida, quando faleceu na cidade de Resende, no Rio de Janeiro. Sua definição de si mesmo resume o artista e o homem que ele foi, em busca da expressão da sua arte: “Só vim a tomar consciência da condição de artista quando, finalmente, compreendi essa coisa tão simples: sendo a arte uma forma de conhecimento do mundo e de comunicação, artista é todo aquele que procura ver os homens e as coisas em sua verdade essencial, e, para isso, desenvolve sua atividade com esforço, humildade e intensidade”. LAÍLSON DE HOLANDA CAVALCANTI

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CON TI NEN TE

CARNAVAL

SAMBADAS Da poeira se faz o brilho

1 CAVALO-MARINHO Brincantes dançam nos ensaios abertos do folguedo

Encontros, que se intensificam no final do ano e servem como ensaios para a folia, são os espaços mais espontâneos para apreciação das manifestações artísticas populares TEXTO Nice Lima FOTOS Roberta Guimarães

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determinada brincadeira; os ensaios das variadas manifestações culturais em que a comunidade vai para ver mestres se desafiando, pessoas afinando as brincadeiras com ou sem objetivos de uma posterior apresentação oficial nos palcos maiores dos festivais, encontros produzidos pela iniciativa pública ou por produtores culturais. Um terreiro batido, plano, varrido ou as pontas de ruas calçadas se transformam no espaço para as apresentações que, no geral, não possuem rigor quanto ao uso de figurino especial, número mínimo de brincantes, tempo de duração (uma sambada de caboclinho pode durar uma hora, enquanto uma sambada de cavalomarinho, das mais animadas, começa à noite e rompe a madrugada, mesmo com a intensidade dos passos frenéticos da dança e da música). O cenário é composto por elementos simples:

“Onde se conhece o maracatuzeiro é no terreiro; no Carnaval, é só uma exibição de fantasia” 1

A chegada do segundo semestre de

cada ano no interior de Pernambuco representa um período de recomeço, preparação para as grandes festas dos diferentes tipos de brincadeiras da Zona da Mata Norte. É o tempo das sambadas de maracatu, caboclinho, coco, ciranda, cavalo-marinho. A origem da palavra samba remete a uma derivação do quimbundo “semba”, que significa umbigada, ou do “umbumdo samba”, que significa estar animado. Há ainda uma linha que entende a origem da palavra ligada à língua luba e a outras línguas bantas, em que samba significa “pular” ou “saltar com alegria”. Assim, com base nas teorizações em torno da palavra samba, já dá para concluir que, ao contrário do que muita gente ainda imagina, samba é mais do que um ritmo popular do carnaval carioca. Samba representa a festa, sambada é encontro para se exaltar e afinar

Mestre Barachinha algumas gambiarras para iluminar o terreiro, barracas em que são vendidas as bebidas e os tira-gostos, e amplificadores e microfones modestos ou, quando muito, carros de som para amplificar as vozes, esses mais comumente encontrados nas sambadas de maracatu. Preparação é uma palavra que define muito as sambadas. A pesquisadora Maria Alice Amorim destaca, no livro Carnaval: cortejos e improvisos, que, no caso do maracatu de baque solto – assim como os bordadores precisam preparar as fantasias da “caboclaria” e os caboclos devem sair pelas ruas e estradas com o surrão nas costas em preparo físico (e também religioso) –, o brinquedo precisa de reuniões em torno do mestre, do terno (grupo de músicos tocadores de cuíca, caixa, mineiro e gonguê), para afinar tudo para o próximo Carnaval, daí a importância de se realizar as sambadas. Há mais de 30 anos em meio à

brincadeira do maracatu rural, o Mestre João Paulo, do Leão Misterioso de Nazaré da Mata, considera a sambada um grande exercício para cada folgazão, do mestre cantador ao dançante, que fará as manobras do caboclo de lança, e também uma oportunidade de reunir todos os integrantes do maracatu: “A gente junta o grupo, tem um que mora em Lagoa Seca, outro mora no Recife... Aí, quando tem esse ensaio, a gente dá um jeitinho de juntar os componentes todos, e faz aquela festa, aquela confraternização, e cada qual já fica sabendo o que vai fazer no carnaval.” Para Manuel Carlos de França, o popular Barachinha, primo de João Paulo: “Onde se conhece o autêntico maracatuzeiro é no terreiro, é onde a gente fica observando quem sabe dançar, quem gosta de dançar, porque eu acho que no Carnaval é só uma exibição de fantasia”, destaca o mestre do Maracatu Leão Mimoso, grupo surgido em 1984, em Upatininga, distrito de Aliança. Outra característica forte das sambadas é a grande oportunidade que os cantadores têm de improvisar na poesia, embora muitos entoem também versos de balaio, aqueles previamente decorados. “Todo mestre de maracatu sai de casa já com um balaio pronto, quer queira, quer não queira, ele acaba cantando alguma coisa que ele já sonhou em casa, já pensou em casa... Agora, com certeza, tem um que improvisa mais que o outro. Mas, de acordo com a sambada, a gente é forçado a improvisar, tudo vai do momento, da inspiração da gente”, afirma Barachinha.

POESIA ORAL

Para o músico e pesquisador Climério Oliveira – autor de Batuque book maracatu e Batuque book caboclinhos –, as sambadas são ambientes geralmente frequentados por apreciadores dessa poesia oral, pessoas que conhecem muito essa poética e podem avaliar que mestre cantador está tendo desempenho excelente, regular, ou fraco. “A partir do bom desempenho do mestre, o maracatu dele cresce politicamente na comunidade de maracatus”, destaca Climério. Quem também conhece de muito perto as sambadas de maracatu é o

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CON CARNAVAL TI NEN TE

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Mestre Biu Alexandre, morador da cidade de Condado, também da Mata Norte de Pernambuco. Desde 1970 ele tem o seu Leão de Ouro, mas, para ele, a realização mais plena acontece nas brincadeiras do cavalo-marinho Estrela de Ouro, grupo surgido em 1979. Ao longo dos seus 71 anos de vida, Biu Alexandre coordena de perto as atividades dos dois grupos, embora seja o cavalo-marinho, esse variante do bumba-meu-boi, composto de mais de 70 personagens e caracterizado pela mistura de dança, teatro e música, o que mais apaixona Seu Biu. Ele considera essa brincadeira de terreiro um elemento que revigora os brincantes: “O cavalomarinho desenvolve os nervos da gente, as juntas da gente, a gente fica mais maneiro, eu tenho paixão pelo cavalo-marinho, ele é uma vitamina para nós”. Biu Alexandre destaca que os ensaios desse brinquedo já foram mais frequentes, começavam geralmente nos meses de junho, ou agosto. Hoje em dia, o que se vê mais amiúde são sambadas já no ciclo natalino,

A sambada é o momento de apreciar os folguedos com maior autenticidade, pois estão livres das amarras dos palcos ou apresentações contratadas para eventos, estas, de tempo muito mais reduzido: “A diferença é esta: se a gente vai fazer uma apresentação nesses cantos (apresentações contratadas), não é para a gente brincar uma noite toda, a gente puxa pra acabar logo, o cavalo-marinho completo é muita coisa. Eu acho melhor brincar uma noite toda do que brincar meia hora”. Nessas sambadas, também existe a presença de pessoas de fora, pesquisadores, turistas, interessados em registrar e conhecer as apresentações: “É uma brincadeira que atrai muita gente para assistir. Todos que brincam cavalo-marinho são amostrados, gostam muito de se amostrar e quando tem gente de fora

é pior, aí é que se amostram bonito (risos)”, declara Biu Alexandre. Mas é importante considerar, principalmente, a participação de pessoas da comunidade nas sambadas de maracatu, cavalo-marinho, caboclinho. Elas vão para se divertir, dançar, beber. Mas – se não são apresentações oficiais, divulgadas na mídia, e com todo o aparato de uma divulgação massiva e/ou de interesses turísticos – o que leva as pessoas a frequentar as sambadas? Para muitos, o interesse parte justamente por serem encontros mais espontâneos, em que ainda é possível apreciar as brincadeiras com mais autenticidade, pois estão livres das amarras das apresentações nos grandes palcos. Na opinião de Climério Oliveira, outro grande segredo do prestígio das sambadas na própria comunidade – ganhando, em muitos casos, a concorrência com a televisão – é que se impõem como eventos de força: “Elas não são importantes apenas porque meia dúzia de pesquisadores o afirma, mas porque se impõem; a energia delas tem resistido à tour de

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2 BIU ALEXANDRE Para o mestre, a brincadeira de terreiro revigora os brincantes 3 BARACHINHA Ele defende que a sambada provoca a arte de improvisar

force da mass media, que tenta sugar toda a atenção para si. Nas sambadas, as pessoas discutem seus problemas, desabafam, discutem política, trocam informações sobre trabalho e sobre tudo o mais, conhecem novas pessoas e por aí vai”, destaca o pesquisador.

LIMITAÇÕES

Por outro lado, não menos verdadeira é a limitação que as sambadas encontram dentro da própria comunidade, pois há também pessoas pouco condescendentes às brincadeiras que se estendem até altas horas, conforme depõe Mestre Grimário, do Caboclinho Tupynambá de Goiana: “Tem gente que não gosta porque faz zoada, quando demora muito, liga até pra polícia”. Mas, de maneira geral, o Caboclinho Tupynambá não encontra muitas adversidades na comunidade onde está situado. Os ensaios, iniciados em julho e que seguem até o Carnaval, costumam durar cerca de 60 minutos. No caso do Tupynambá, o que colabora para que os ensaios se iniciem e

“A energia delas tem resistido à tour de force da mass media, que tenta sugar toda a atenção para si” Climério Oliveira se encerrem cedo, além do acordo com a comunidade, é o fato de esse caboclinho contar com um número grande de crianças e adolescentes. Nos ensaios do Caboclinho Tupynambá, a atenção se volta primordialmente para a dança. É o momento em que os componentes afinam os passos, e serve para deixálos mais “maneiros”, leves, adquirirem resistência para o Carnaval. “Tem gente que passa três, quatro, cinco meses para aprender. O motivo do ensaio é esse, que a pessoa aprenda, para quando chegar numa apresentação – seja ela em Goiana, João Pessoa, no Recife, em qualquer canto – todo mundo chegue dançando por igual”, destaca Mestre Grimário.

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Também nas sambadas do Tupynambá há a oportunidade de os músicos exercitarem os toques. Com as maracas, pífanos, caixa de guerra e atabaque são executados os ritmos sambada (guerra), perré, tesoura, macumba do índio e baião, além das loas dos mestres. Em todas as brincadeiras citadas, o que se percebe é que, mesmo com a ausência, nas sambadas, das exuberantes indumentárias – preparadas durante meses para o Carnaval, com o mesmo zelo de versos e passos –, prevalece a poeira das brincadeiras, que dá um colorido especial a elas, por mais incoerente que isso possa parecer ao leigo ou a quem aprecia as brincadeiras pela primeira vez. Afinal, muito antes de as purpurinas, as penas e as lantejoulas estarem presentes nas apresentações “oficiais” do Carnaval, é a poeira dos terreiros batidos que enche de energia os brincantes dessas manifestações. Talvez seja essa poeira a tal “vitamina” à qual se referiu o Mestre Biu Alexandre de Condado.

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DIGESTIVOS Tudo por um grand finale

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HARMONIZAÇÃO De acordo com especialistas, vinho do Porto combina com bolo Souza Leão

Bebidas de sobremesa são itens de apreciação dos que se esmeram no ato de comer e receber, e incluem conhaques, licores, vinhos do Porto e de colheita tardia TEXTO Luciana Veras FOTOS Rafael Medeiros

Os que gostam de comer, e apreciam os rituais etílicos, sensoriais e gastronômicos que envolvem um banquete, adoram abrir suas casas para receber amigos e se esmeram em preparar iguarias, compartilham uma certeza: toda refeição que se preze pede um grand finale. Mas como superar o ápice a que se destina o prato principal? Uma das respostas possíveis e mais difundidas é o binômio sobremesa e “digestivo”, adjetivo que veio a congregar o conjunto de bebidas tradicionalmente servidas ao término de almoços, jantares e afins. Jogam nesse escrete os vinhos do Porto, de colheita tardia (late harvest), os brancos de sobremesa (como o francês Sauternes), os conhaques e, claro, os licores. Afinal, não são poucas as vezes em que se ouve, em restaurantes lotados nas tardes de domingo, a singela frase endereçada ao garçom: “A sobremesa, um café, um Cointreau e a conta”. Esses são os craques do time, aqueles para quem nunca faltam oportunidades de arrematar um encontro festivo. Não estão sós, porém: champanhe, espumante, cachaça e até mesmo uísque podem ser escalados. Ainda mais no Brasil, país em que costumes se incorporam à rotina na mesma velocidade com que são modificados.

“O brasileiro é um povo festivo, que gosta de estar à mesa, de preparar, de receber, e que sempre aprende rápido. Começou a perceber que o final de uma refeição também tinha que ter uma bebida para se servir, mas não uma bebida qualquer, e, sim, uma que fosse compatível com a sobremesa”, situa a chef carioca Flávia Quaresma. “Absorvemos a cultura do digestivo após a sobremesa. É só ver as nossas cachaças envelhecidas, os nossos licores, o casamento final que damos com os vinhos”, acrescenta ela, que é autora dos livros Água na boca – o Brasil e seus sabores, e Saboreando mudanças: o poder terapêutico dos alimentos. Quaresma afirma que é preciso observar as especificidades de cada um. “A combinação pode ser por aproximação ou por contraste. Pegue o chocolate, por exemplo. Tem personalidade forte, é doce e tem muita gordura. Então, você apela para o vinho do Porto, e sabe que dará certo. Se quer usar um vinho branco, como um Sauternes, pode optar por uma torta musse de chocolate amargo. A gente brinca, ainda, com a acidez das frutas. Uma goiabada com queijo combina com um Porto”, ensina. O segredo, portanto, é a harmonização. Esse conceito, tão disseminado como o casamento ideal entre comes e

bebes à mesa, é utilizado também para determinar se vai ser o vinho doce Tokaji húngaro, um Porto do rótulo Real Companhia Velha Vintage, um licor Bailey’s ou o conhaque Hennessy, que os comensais bebericarão enquanto se servem de bolos, sorvetes e compotas. O açúcar, aliás, desempenha função essencial no balanceamento dessa equação. Sempre foi assim, como explica Robson Rodrigues, gerente de bebidas e sommelier das duas lojas do Barchef Mercado Gourmet. “Os licores datam da antiguidade. Na Itália do século 16, na época de Catarina de Médici, aparecem como uma bebida medicinal, feita de açúcar, álcool de cereais e frutas. Quando ela vai para a França, leva o remédio para lá e acha fórmulas para dar mais prazer no consumo daquilo que era visto como um elixir. Ao torná-lo mais aprazível, acrescentando mel, cacau, especiarias, começa a popularizar o consumo do licor”, contextualiza. Rodrigues explica que o teor alcoólico mais elevado dos licores, dos vinhos fortificados como o Porto (após a fermentação, acrescenta-se álcool na forma de uma aguardente vínica, o que o torna literalmente mais forte) e do conhaque os credencia para a fruição pós-prandial: “O Porto tem entre 16% e 22%. O licor varia de 20% a 28%, enquanto o conhaque chega a 40%.

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ANDRÉ WANDERLEY/DIVULGAÇÃO

2 FLÁVIA QUARESMA Para chef, o digestivo deve ser compatível com a sobremesa 3 LEA WANDERLEY Diversifica o cardápio de bebidas de acordo com a ocasião social 4 PRUNEAUX Elaboração conta com ameixas maceradas dentro do álcool

O alto teor de álcool dá a sensação de prazer, de alívio e de conforto. Se você junta a isso o doce da sobremesa, chega a uma carga de açúcar que vai ajudar na digestão”. Em uma região como o Nordeste brasileiro, onde álcool e açúcar compuseram, por séculos, o esteio da economia e da culinária, seria irracional supor que a mania de mergulhar numa doce embriaguez não se massificaria. “Entre os séculos 16 e 17, fomos os maiores produtores de açúcar do mundo. Nossos doces são extremamente doces e hoje somos um mercado que consome muito vinho e que tem até produção de vinho regional de sobremesa”, aponta o professor, chef e antropólogo

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da alimentação Erick Buarque, especializado em cozinha pernambucana. “Aqui, é difícil não termos uma sobremesa muito doce, então, buscar o equilíbrio na hora de conjugar com a bebida é importante”, emenda Buarque. À Continente, ele sugere o alinhamento de dois clássicos – os bolos de rolo e Souza Leão – com dois líquidos legendários: o vinho de colheita tardia e o Porto, respectivamente. “Doce com doce seria a referência da cozinha clássica e a nossa tradição de açúcar comporta isso”, sustenta.

APRECIADORES

Na hora de montar o menu, opções não são escassas. O Porto pode ser ruby, vintage ou tawny, da casa Ferreira, da Real Companhia Velha ou da Quinta de la Rosa. Fortificado como o Porto são o Madeira, o Marsala, o sherry e o espanhol jerez. Os licores se dividem entre os que são à base de frutas (Cointreau, Mandarine, Ginja de Óbibos), de ervas, plantas ou frutas secas (43, Bénédictine, Frangelico, Amarguinha) e os cremosos (Bailey’s, Amarula, Sheridan’s). Conhaque e brandy são o mesmo líquido, mas o conhaque se denomina assim a partir da região de Cognac, na França. Os rótulos mais famosos são o Rêmy Martin e o Hennessy. Várias dessas garrafas acham guarida na casa de Lea e Antônio Henrique Wanderley, na orla do Pina, zona sul do Recife. Os dois gostam de cozinhar, receber, comer e beber. Nas viagens, preocupam-se mais em seguir à risca o roteiro gastronômico e garimpar mais rótulos para as adegas do que comprar outros itens. “Cozinho, adoro ler, anoto as harmonizações que os chefs

fazem nos restaurantes aonde vamos para depois tentar fazer aqui. A casa sempre viveu cheia de amigos nossos e dos nossos dois filhos”, diz Lea, auditora fiscal recém-aposentada que é fã do Sauternes, do Porto e de diversos licores. É de sua lavra um tuille de amêndoas (biscoito crocante que é levado ao forno), servido com sorvete de limão siciliano ou de vinho do Porto, acompanhado por uma redução do Porto (“bota uma garrafa no forno e deixa reduzir até a metade”). Para acompanhar, ele de novo, o Porto. “Fica uma delícia”, garante Lea. Difícil duvidar. Suas descobertas transcendem fronteiras. “Como minha filha mora na França, sempre trazemos de lá o Pruneaux, que é da região de Bordeaux. As ameixas maceradas são engarrafadas dentro do álcool; você abre e come a sobremesa e toma o licor ao mesmo tempo. Uma delícia”, comenta Lea, que também oferece o vinho doce Tokaji, da Hungria, tão famoso em seu país, que figura até na letra do hino nacional (“mas agora mesmo só temos uma garrafa, é tão bom, que nunca dura muito”). Ela e o marido diversificam o cardápio de acordo com a ocasião: ora o desfecho é com Porto, ora com um tinto, ora com Moscatel de Setúbal e, às vezes, até com champanhe. “Champanhe ou espumante com sobremesa muito doce casa bem demais. Sempre tivemos a rotina de tomar um digestivo aqui, então gosto de pesquisar para achar outras combinações”, resume. Foi uma tia de Lea, Maria do Socorro, que nela inoculou o gosto pela culinária. “Fui criada com minha tia fazendo licor de jenipapo”, recorda.

COMBINAÇÕES

CASADINHAS BEM-VINDAS A pedido da Continente, o chef Erick Buarque pensou em quatro sugestões de harmonização entre sobremesas e bebidas. Que tal experimentar nas festas de fim de ano? Bolo de rolo & vinho late harvest “Como esse tipo de vinho é produzido com uvas muito maduras, quase passas, é uma boa harmonização pelo fato de a bebida e a sobremesa terem notas de frutas e serem bem doces. A leve acidez e cremosidade do vinho e a textura do bolo de rolo se equilibram perfeitamente.” Cartola & licor de jenipapo (foto acima) “O licor de jenipapo é recomendado com a cartola, pois os dois possuem sabor marcante. A cartola tem a gordura do queijo manteiga e a canela, que harmonizam bem com o gosto peculiar do jenipapo. O licor, pelo teor alcoólico, ainda permite quebrar a untuosidade do prato.” Bolo Souza Leão & vinho do Porto “O Souza Leão cai bem com o vinho do Porto por possuir uma textura firme, sendo compacto e cremoso. Como o vinho também apresenta um cremor, na degustação, tudo é incorporado sem problemas.” Torta de morango & espumante moscatel “Ambos são adocicados e com uma marcante nota de frutas frescas; a suculência dos morangos é mantida pelo frescor e acidez do espumante. O casamento é mais leve, pois a torta é de frutas, bem como o espumante é menos alcoólico.”

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LICOTERIA

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FERNANDO GUIMARÃES

Na casa, são servidos licores artesanais Dono de licoteria produz a partir de receitas de família

RECEITA DE VÓ

A mesma origem familiar lastreia a Licoteria Noctivagos, em Olinda, “a única do Brasil”, informa Fernando Guimarães, o seu Fernando. Sua avó, Maria de Lourdes Vasconcelos Guimarães, aprendeu com a sogra portuguesa e começou a fazer licores de jenipapo, pitanga e limão. “Ela deixava em álcool puro, comprado em um engenho de cana-de-açúcar, em recipientes de vidro. Passavam seis meses, um ano ali dentro. Hoje, cada licor passa 15 meses marinando”, conta. Há 13 verões, a Noctivagos abre de quinta a domingo, na esquina da 13 de Maio com São Bento, uma das mais animadas da Cidade Alta de Olinda. Com álcool de milho que manda vir dos Estados Unidos, seu Fernando e o sobrinho Orimar Ramos Neto produzem 150 litros de licor por mês, comercializados em 21 sabores, em doses, ou embalagens de 50ml, 150ml, 335ml, 500ml ou 750ml. Os campeões de pedidos são os de café, rosas, leite, jenipapo e menta. Cada garrafa é obtida a partir de receita mantida sob sigilo. O mistério, segundo seu Fernando, é a chave do processo que caracteriza sua produção: “Não consigo tirar muitas garrafas de cada um. É algo artesanal mesmo, que vem desde o tempo da minha avó, que fazia porque gostava e para consumo da própria família”. Os sabores de pitanga, cajá e tamarindo, frutas típicas do Nordeste, fazem a festa dos turistas que chegam lá, encantados com o digestivo. “Muitos passam aqui depois de almoçar nos restaurantes da Cidade Alta, compram para levar para casa, tiram fotos para mostrar para os amigos e depois voltam dizendo que as pessoas adoraram”, alegra-se ele, feliz por perpetuar uma tradição que, no seu caso, alia os laços de família a um hábito que virou praxe nacional.

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Claquete DOCUMENTÁRIO Arqueologia da psique através da arte

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Restauração digital possibilita acesso à trilogia Imagens do inconsciente, de Leon Hirszman, que registra o trabalho realizado pela psiquiatra Nise da Silveira TEXTO Josias Teófilo

No cinema documental brasileiro,

uma obra salta aos olhos pela estranheza e profundidade da abordagem. É a trilogia Imagens do inconsciente, de Leon Hirszman, feita entre 1983 e 1986, que foi restaurada digitalmente e será relançada em DVD e blu-ray pela Videofilmes. Hirszman teve no roteiro da médica psiquiatra Nise da Silveira – introdutora

do pensamento junguiano no Brasil, aconselhada pelo próprio Jung na criação do método terapêutico que estimula os doentes mentais a pintar e a esculpir – material em que ela produziu análises utilizando a mitologia e a história da arte como instrumental para penetrar no estado psíquico dos “doentes”. O mérito particular de

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NISE DA SILVEIRA Psiquiatra ousou aderir a Jung num ambiente dominado por freudianos

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LEON HIRSZMAN Cineasta (à direita), na sala de edição, durante produção da trilogia

Nise da Silveira nesse trabalho foi o de deslocar a problemática da loucura – do campo da psicopatologia médica para o campo da cultura, como escreveu João Frayze-Pereira. Não foi essa, entretanto, sua única inovação no Setor de Terapêutica Ocupacional no antigo Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro – transformado por ela em Museu de Imagens do Inconsciente, que funciona até hoje. O regime de portas abertas, a participação que ela atribuía aos animais como coterapeutas, gatos e cachorros especialmente, tornaram seu trabalho reconhecido até pelo mestre Carl Gustav Jung. Nise, alagoana nascida em Maceió, em 1905, se destacou no meio da psiquiatria, primeiro, por ser mulher – diz-se que foi a única da faculdade de Medicina em que estudou –, também, pela adesão às ideias de Jung no ambiente dominado pela escola freudiana. Mas, sobretudo, pelo diálogo que estabeleceu entre psicanálise, arte, crítica de arte e filosofia – pelas obras de Antonin Artaud, Gaston Bachelard, Vassili Kandinski, do brasileiro Mário Pedrosa e do filósofo Baruch Espinoza. Muitos anos antes do Museu de Imagens do Inconsciente, Nise da Silveira foi citada num importante livro da literatura brasileira, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. É que eles se encontraram, de fato, na prisão, levados pela polícia de Getúlio Vargas. No livro, Graciliano descreve de forma interessantíssima esse encontro: “Numa passada larga, atingi o vão da janela: agarrei-me aos varões de ferro, olhei o exterior, zonzo, sem perceber direito por que me achava ali. Uma voz chegou-me, fraca, mas no primeiro instante não atinei com a pessoa que falava. (...) Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavamse alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se: – Nise da

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Silveira. Noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-a culta e boa, Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço”. Essa pessoinha, muitos anos depois, interessou profundamente a Leon Hirszman, que insistiu durante anos para que Nise aceitasse trabalhar num documentário baseado no seu trabalho – não foi fácil persuadi-la. Ora, Hirszman tinha filmado São Bernardo – um dos grandes filmes do cinema nacional, com o belíssimo monólogo interpretado por Isabel Ribeiro – baseado na obra de Graciliano Ramos. Em 1981, recebeu das mãos de Liv Ullmann o Leão de Ouro, em Veneza, pelo longametragem Eles não usam black-tie – onde foi aplaudido de pé pela plateia. O resultado da colaboração entre Nise da Silveira e Leon Hirszman foi uma trilogia de documentários

Nise da Silveira deslocou a problemática da loucura do campo da psicopatologia médica para o da cultura absolutamente original. Original – não pela complexidade da linguagem cinematográfica, mas exatamente o contrário: pelo uso de elementos mínimos, narração em off, imagens dos artistas/pacientes pintando ou esculpindo, e imagens das suas obras. Com esses três elementos principais, o espectador faz uma viagem pelo mundo psíquico e a vida interior dos personagens – uma viagem instigante e dramática, tendo como base as imagens artísticas produzidas por eles no museu. Os filmes enfocam três pacientes/ artistas do hospital /Museu de Imagens do Inconsciente: Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis. O primeiro, Em busca do espaço cotidiano,

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trata de Fernando Diniz, autor de obras plásticas que buscam restabelecer o espaço perdido do lar e um amor irrealizado da infância. Filho de uma empregada doméstica baiana, ele destacou-se na escola, sempre com notas altas, mas tinha um amor não correspondido pela filha da dona da casa na qual sua mãe trabalhou. Quando soube do casamento de sua amada, passou a vagar pelas ruas, descuidou-se de sua higiene pessoal e, num único gesto de rebeldia, tomou banho nu, no mar em Copacabana. Foi preso e levado a um hospital psiquiátrico, onde sofreu todos os agressivos tratamentos aos quais eram submetidos os doentes mentais àquela época, até poder expressar-se através da pintura e da escultura. Destacou-se como verdadeiro artista: as obras de Fernando Diniz logo chamaram a atenção pela complexidade e pelo apuro, chegando a ser expostas em galerias de arte. Nise interpreta as imagens à luz das forças autocurativas da psique que tentam organizar o caos emergido do inconsciente. Em sua obras, o

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3-4 PINTURAS

Quadros de Carlos Pertuis e Fernando Diniz colaboraram com seus tratamentos

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ADELINA GOMES Telas de paciente expressam trauma sofrido no ambiente familiar

geometrismo expressa a necessidade de reorganização da psique, o naturalismo, uma tentativa de reorganização do seu ego. Ele chega a pintar as casas onde morou com a mãe com um elemento importante, o piano, e – no ápice da sua fase naturalista – se coloca tocando o piano. Sobre essa imagem, Mário Pedrosa escreveu: “O menino pobre e rejeitado de outrora senta-se ao piano e dedilha os acordes triunfais da arte sobre um velho sonho desfeito e uma realidade ingrata, pobre e grande Fernando!”. O segundo filme, No reino das mães, trata de Adelina Gomes, cuja expressão plástica revela a incapacidade de sair do espaço materno. Menina tímida do interior do estado do Rio, aos 18 anos, apaixonou-se por um homem que não foi aceito pela sua mãe. Depois disso, retraiu-se cada vez mais, até, num arroubo de fúria, estrangular a gata de sua casa. Em seguida, foi internada. Nise da Silveira localiza uma tema mítico recorrente nas pinturas de Adelina: o da ninfa Dafne. Segundo a tradição, o deus Apolo apaixonou-se por Dafne e, apesar das suas esquivas, persegue-a. Ela se refugia na mãe, a terra, que a metamorfoseia em vegetal. O mito de Dafne representa o arquétipo da condição feminina de uma identificação tão profunda com a mãe, que seus próprios instintos não se desenvolvem. Foi o que aconteceu a Adelina. Conhecia ela o mito de Dafne, que tão bem representa sua condição, para tê-lo retratado tantas vezes, pintando mulheres-plantas, mulheres-flores, mulheres em fuga? Muito pouco provável, pois Adelina só tinha o curso primário e alguma formação manual. Para entender esse fenômeno, é preciso entender dois conceitos de Jung muito caros a Nise da Silveira: inconsciente coletivo e arquétipo. O primeiro, aliás, foi um dos motivos de divergência

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INDICAÇÕES com Freud, ele não admitia a existência de um inconsciente interpessoal. As pesquisas de Jung demonstraram a existência de tendências herdadas, chamadas de arquétipos, acessíveis a qualquer ser humano e universais – o que explica as semelhanças entre as pinturas de Adelina, sua condição psicológica, e um mito tão antigo da humanidade. O terceiro, A barca do sol, o mais luminoso da trilogia, é sobre Carlos Pertuis, homem religioso, de expressão verbal quase nula, que Nise compara, pela simplicidade e pureza espiritual, a São Francisco de Assis. Nise da Silveira conta assim a história de Carlos: “Há vários anos, vinha sendo dilacerado por conflitos pessoais. Esses conflitos sugavam a energia do seu ego, que ia enfraquecendo e já começava a vacilar. Certa manhã, raios de sol incidiram sobre o pequeno espelho do seu quarto. Brilho extraordinário que o deslumbrou e surgiu diante dele uma visão cósmica: o ‘Planetário de Deus’, segundo suas palavras. Gritou, chamou a família, queria que todos vissem aquela imagem maravilhosa que ele estava vendo. Foi internado no mesmo dia...”. Para analisar as pinturas de Carlos Pertuis, Nise da Silveira utilizou um conceito retirado igualmente de Freud e de Jung: arqueologia da psique. Ela compara o material arquetípico das obras plásticas de Carlos Pertuis – em que aparecem imagens claramente presentes em épocas distantes da humanidade, como na religião mitraica e na mitologia

grega, junto a símbolos cristãos provenientes da sua memória – com a descoberta, sob a Catedral de Colônia, do mosaico representando o deus pagão do vinho: “Se Dionysus surgiu das escavações ao lado da Catedral de Colônia, em mosaicos antigos intactos, como um achado arqueológico, aparece vivo no Hospital de Engenho de Dentro, emergindo do mundo subterrâneo psíquico, mostrando assim que é de fato um poder eterno. A história gravada em pedra do alto das torres da Catedral de Colônia ao mosaico de Dyonisus equivale a um corte profundo na psique do homem. Dois mil anos de cristianismo representam apenas a superfície”. Os pacientes do museu conseguiam acessar essas imagens arquetípicas e representá-las com impressionante clareza – de modo que a interpretação das pinturas e esculturas por eles produzidas revelam experiências humanas perenes e universais. A lente de Leon Hirszman coloca o espectador em contato com a alma humana em sua expressão mais pura, através das análises de Nise da Silveira sobre os pacientes/artistas que ela conhecia tão bem. Curiosamente, a morte de Nise da Silveira aconteceu somente depois da morte dos seus pacientes/artistas, no dia 30 de outubro de 1999. A ligação entre ela e Leon Hirszman parece ter sido bastante forte, pois a última imagem que este gravou antes da sua morte, em 1987, foi de um depoimento da Nise da Silveira, como mostra o documentário feito por Eduardo Escorel.

SUSPENSE

DOCUMENTÁRIO

Direção de Denis Villeneuve Com Hugh Jackman, Jake Gyllenhaal, Viola Davis Paris Filmes

Direção de Vladimir Carvalho Videofilmes

OS SUSPEITOS

O PAÍS DE SÃO SARUÊ

Após o desaparecimento de sua filha de seis anos, o carpinteiro Keller, insatisfeito com o trabalho do departamento de polícia local, decide encontrá-la e fazer justiça por seus próprios meios. Apesar da ausência de provas, ele encarcera e tortura Alex, o primeiro suspeito do caso, que foi descartado por possuir o QI de uma criança de 10 anos e ser incapaz de planejar o crime. Com ótimas atuações e roteiro preciso, o horror psicológico se sustenta sem nunca apresentar respostas óbvias.

O país de São Saruê (1971), inspirado no cordel de mesmo nome do paraibano Manoel Camilo dos Santos, é um filme que pensa de forma lírica a relação do homem lavrador com a terra, dentro da evolução das atividades econômicas de um lugarzinho chamado Rio do Peixe, no Polígono da Seca. Recentemente exibido na sua versão restaurada no 5º Festival do Filme Etnográfica do Recife, a película merece o resgate, pelas imagens realistas acerca das dificuldades da sobrevivência no Sertão.

DRAMA

DOCUMENTÁRIO

Direção de Haifaa al-Mansour Com Waad Mohammed, Reem Abdullah, Abdulrahman al-Guhani Imovision

Direção de Werner Herzog Zeta Filmes

O SONHO DE WADJDA

Um filme cuja própria existência relata problemas sociais e mudanças, O sonho de Wadja é o primeiro longa-metragem ficcional gravado inteiramente na Arábia Saudita e o primeiro filme a ser dirigido por uma mulher no país. Wadja, 12 anos, sonha em comprar uma bicicleta para apostar corrida com seu amigo, mas a venda do produto é destinada apenas a meninos. Um libelo pela liberdade feminina nos países árabes.

CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS Neste registro fílmico, o alemão Werner Herzog nos leva pelo mundo desconhecido das pinturas rupestres mais antigas do mundo, às quais poucos têm acesso. No sul da França, com mais de 30 mil anos, a Caverna de Chauvet é a protagonista desta história. O tema poderia ser simplesmente abordado por um programa do National Geographic, mas se firma como cinema, ao refletir, de maneira forte, sobre a existência humana, em imagens de uma viagem de contemplação do passado.

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

O RETRATO DA VÍTIMA

A vítima hoje é Francisco VillaChan Neto, vulgo Villa-Chan, nascido na Cabanga, Recife, 04/12/1937, às 11h30, com 5 kg e duzentas gramas (favor deixar no feminino), bisneto de Jerônimo José Telles Júnior, nosso grande pintor (Recife, 1851-1914). “A filha de Telles Júnior, Arminda Telles, era casada com o pai do pai, pera aí, do pai”, atrapalha-se Villa-Chan, ou atropela-se com tanto pai e o resto de uísque Grant’s que sobrou de um almoço com minha neta Emília no último sábado aqui em minha casa, onde o pintor dá esta entrevista. Os dois últimos pais, presumo eu, comerciantes: um de estivas, o pai do pai; e outro de joias, o pai. O pai do pai chamava-se Francisco Pinto Ferreira. O pai ficou conhecido como “Seu Villa-Chan”, nome de fantasia da firma Viriato & Villa-Chan. Quer dizer, o nome Villa-Chan nunca existira como nome de família. É nome de uma praia de Portugal, Vila Chã. O pintor Francisco Villa-Chan Neto é, pois, filho de Francisco Telles Villa-Chan: vamos ficar por aqui, que cada vez me enrolo mais.

Como foi que começou essa história de pintor? “Na minha casa havia obras de alguns filhos do bisavô Telles Júnior.” Aos 17 anos, o pai, lhe percebendo o jeito para desenho, encaminhou-o à tia, Raquel Telles, que morreu com 94 anos, trabalhando com ela até quando esta declarou não ter mais nada a ensinar ao pupilo e sobrinho. Saíam com a caminhonete do pai para pintar ao arlivre. Villa-Chan recorda ter pintado a Igreja de Piedade, a primeira vez que saíram para pintar, quadro que ainda existe no Rio de Janeiro, com uma contraparente da mãe. Nome da mãe: Hedelazir Canto Villa-Chan. Sua vida de menino sempre foi ligada à natureza. Seu tio, Fernando Telles Villa-Chan, plantava cana no Engenho Santo Estêvão, no Cabo, fornecedor da Usina Bom Jesus. Dessa época ainda existe, com Tereza Falcão, irmã da esposa de Fernando, uma vista da esplanada do Engenho. Andar a cavalo, pegar passarinho. Não gostava de estudar mas estudou nos melhores colégios, Marista, Osvaldo Cruz e Ginásio São José, dos

padres holandeses. Fez até o 2º ano de contabilidade, equivalente ao 2º científico. Antes disso, viajou à Europa, em 1956, para visitar galerias, museus, aos 18 anos, quando conheceu, na ida, no Conte Grande (tás vendo, Arthur Carvalho?) Clélia Pinto Duarte, com 14 anos, com quem se casaria seis anos depois em Americana, SP, de onde ela era. Namoro por correspondência. 51 anos de casados. Seis filhos: uma mulher, Fátima, trabalha com material cirúrgico de alta precisão; e quatro homens: Antônio Carlos, empresário em São Paulo, Frederico Augusto, proprietário rural aqui em Pernambuco; Francisco Roberto, advogado; e Paulo Rogério, construtor. Ele passou seis meses, ela três. Ela voltou de avião, mas já da Europa ele escrevia para ela. Ele voltou no mesmo Conte Grande. A viagem foi financiada por sua própria família. Com Villa-Chan viajaram os familiares de Rodolpho Pinto Ferreira, português, na época sócio de todas as joalharias Krause do Brasil, com sobrado em São Simão da Junqueira, região de Vila do Conde, Portugal.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

pernambucano, suas paisagens, suas marinhas, tudo o que ele fez, tão impregnado da terra pernambucana. Villa-Chan, mantendo a tradição da pintura de paisagem, que nele vinha de longa data, dos seus primórdios com sua tia Raquel, e não apenas das atuais releituras, estendeu o trabalho às paisagens do Agreste e Sertão, Petrolina, Afogados da Ingazeira, Triunfo e outras paragens fora do estado, Aracaju, aldeias de Portugal. A marchand Beth Araruna, leitora de Walter Benjamin, abriu a galeria Brasil Arte Contemporânea (Bart) com a finalidade de ampliar os limites para os artistas locais, criando o projeto O artista em seu atelier. Ao mesmo tempo em que ocorre a exposição no atelier do artista, esta exposição entra na

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VILLA-CHAN

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VILLA-CHAN

Alagado de Suape. Acrílico sobre tela, 89 x 120 cm, 2009 Ventania. Acrílico sobre tela, 47 x 59 cm, 2011. Releitura de Telles Júnior

O que me leva a escrever estas linhas são as recentes pinturas de Villa-Chan de releituras de seu bisavô Telles Júnior

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Viajaram de carro os meses de maio a outubro pela Espanha, França, Holanda, Alemanha, Suiça, Itália, Belgica e Portugal. Se identificou mais com os pintores impressionistas, percebendo, porém, que aquela já não era a pintura da época. Ao voltar, fez a primeira individual, 1959, na papelaria Lemac. Chamavam de “galeria”, como a Rozenblit, mas na verdade eram lojas que tinham uma parede em que expunham quadros. No Recife não havia galeria de arte. Conseguiu vender dois quadros. E na Associação Brasil-Estados Unidos. Novamente vendendo dois quadros. Vinte e duas composições abstratas, como faz até hoje, entre uma e outra paisagens.

Hoje, já não mais do natural mas de fotos batidas pelo próprio artista. Foi então, depois destas exposições, que resolveu fazer o curso livre da Escola de Belas Artes do Recife, tendo sido aluno de Lula Cardoso Ayres, painéis, decoração; Vicente do Rego Monteiro, natureza-morta; a irmã deste, Fêdora do Rego Monteiro, desenho; e Fernando Barreto, restauração em pintura. O que me despertou interesse agora, e me leva a escrever estas linhas, são as recentes pinturas de Villa-Chan de releituras das paisagens de seu bisavô Jerônimo José Telles Júnior. Aliás é um escândalo que não haja à venda e até distribuídos nas escolas livros sobre o notável pintor

rede mundial da Internet, site www. bart.com.br e a exposição real tem como proposta apresentar o trabalho do artista, através de uma instalação museológica, ao público em geral e atingindo a área educativa, instituições de ensino médio, pelo Projeto Arte e Educação, organizando também um roteiro turístico-cultural para RecifeOlinda. A Bart existe desde 2000 e a partir de 2013 tornou-se Bartvirtual, tendo já organizado a exposição da artista Tina Cunha. Esta de Villa-Chan é pois a segunda. As visitas ao atelier podem ser agendadas, dias úteis das 14 às l7h, fones 34537904 e 91945066, Rua São Francisco de Paula, 371, última rua à direita, Av. Caxangá, no sentido cidade-subúrbio.

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Visuais

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FOTOGRAFIA Impressas para durarem 150 anos

Encartadas nesta edição como presente natalino, as quatro obras de profissionais pernambucanos dão conta da qualidade da cópia em fine art TEXTO Luciana Veras

“As linhas de fuga criadoras que a fotografia introduz na arte enraízam-se no processo fotográfico, isto é, em um setor oprimido da arte, em uma zona menor da cultura. Mas esse devirmenor da arte é talvez a condição de sua renovação.” A frase de André Rouillé, historiador, professor francês e referência mundial em teoria da fotografia, ilumina um debate recorrente no campo das artes visuais. Registro, instantâneo da realidade, obra de arte: todas as definições se aplicam, fundindo-se para reforçar o caráter artístico da fotografia. Em consonância com a noção que fotografia é, sim, arte, esta edição de dezembro da Continente oferece a assinantes e leitores quatro imagens de

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1 CIRCO Gustavo Bettini trabalhou luzes contrastantes 2 CACTO Yêda Bezerra de Melo justapôs várias fotos da planta nesta imagem

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autoria de Fred Jordão, Gustavo Bettini, Roberta Guimarães e Yêda Bezerra de Melo. Em cada exemplar, uma das imagens estará encartada como brinde de fim de ano propiciado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), em parceria com o Atelier de Impressão (AdI). Fundado há sete anos no Recife, e desde 2012 operando também com uma filial em São Paulo, o Atelier de Impressão é um “primeiro birô de impressão fine art do Nordeste”, como informa Gustavo Bettini, um dos sócios, ao lado de Clício Barroso e de Fernando Neves, proprietário da galeria Arte Plural, localizada na mesma casa no Bairro do Recife onde funciona o AdI. Fine art, que remete a expressões como

beaux arts, é o termo cunhado para efetuar uma distinção entre as categorias da produção fotográfica. “Quando começou a se usar essa referência às belas artes, era para diferenciar a fotografia fine art do fotojornalismo e da fotografia comercial ou publicitária. A impressão fine art visa à longevidade, com máximo cuidado na manipulação da imagem, para conseguir um resultado muito fiel ao trabalho que foi desenvolvido”, explica Bettini. No formato 21cm x 28cm, as quatro imagens que acompanham a Continente refletem paisagens distintas, porém unidas pela excelência na impressão. “Usamos a linha Infinity dos papéis Canson, que possui um PH neutro, livre de acidez e de branqueador ótico,

produto usado nas resmas de papel comum para torná-lo mais branco. O papel utilizado na impressão do brinde é o RAG, que é 100% algodão, sobre o qual existe uma película que recebe a tinta toda da impressão, garantindo a maior longevidade. E as fotografias foram impressas em uma máquina plotter de 12 cores, com fios de tinta que garantem a duração de mais de 150 anos. Para se ter uma ideia, uma impressora doméstica opera com apenas quatro cores”, detalha Bettini. Em uma máquina comum, por exemplo, seria impossível imprimir Circo, em que um azul-cerúleo domina quase a totalidade do enquadramento, permitindo ao olhar de quem a vê o mergulho no contraste com a luz que sai do interior da tenda. “Foi uma foto minha que escolhi por acaso. Junto com as outras três que completam o brinde, são dificílimas de reproduzir em qualquer lugar, justamente por apresentar uma situação de cores muito específicas, de tonalidades que, para que a imagem seja fiel ao registro, precisam ser respeitadas na hora da impressão”, comenta Bettini. Com uma paisagem do Recife intitulada Pina, Fred Jordão dá continuidade ao processo de documentação da capital pernambucana. “Estava em Brasília Teimosa e tinha esse céu maravilhoso, daí procurei um local para fazer uma tomada do Recife. Pra mim, o projeto de encartar as imagens em uma grande revista é interessante para popularizar a fotografia como objeto de arte acessível às pessoas. Gera a possibilidade de uma pessoa comprar as revistas, até mesmo colecionar as quatro, e assim ter obras de arte em casa, com papel de qualidade. Acho que é um passo à frente na questão do colecionismo da fotografia no Recife”, opina o fotógrafo, com duas décadas de experiência e participação em vários livros, a exemplo de Projeto lambe lambe e O Rio São Francisco – a natureza e o homem. “No candomblé, você não tem esse engessamento dos gêneros. O orixá principal de um homem,

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Visuais 3

3 PINA Céu exuberante na foto de Fred Jordão 4 OXUM Roberta Guimarães realizou ensaio em terreiro de Goiana

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por exemplo, pode ser feminino”, elucida Roberta Guimarães, a respeito de Oxum, foto em que capta um homem trajando as vestes e os tons branco e dourado de uma das mais importantes deidades da Nação Ijexá. O registro foi feito em Goiana, em 2012, quando ela documentava vários rituais de iniciação que desembocariam na publicação O sagrado, a pessoa e o orixá, lançada em maio deste ano. “A sugestão da dança está presente porque é muito forte a ligação com o corpo. Quando o

orixá incorpora, o iniciado dança e transcende totalmente. A relação com a transcendência, que vai muito além de gênero, é a representação maior da foto”, acrescenta Roberta. A ideia de fim de ano norteou a concepção de Cacto, que Yêda Bezerra de Melo montou a partir de várias fotografias obtidas no sertão do Maranhão. No cenário agrestino, a planta resiliente surge como sua interpretação para um dos mais típicos signos natalinos. “Já sabendo que a foto estaria na edição de dezembro como

um brinde a quem comprasse a revista, pensei em criar uma árvore de Natal com a imagem”, explica a fotógrafa, que integra a Associação de Fotógrafos Fototech e usa a justaposição com frequência em seu trabalho. “As fotos foram feitas naquela hora mágica do final da tarde, com a luz avermelhada, o que vai dando um colorido especial ao cacto”, complementa. São registros que chegam aos apreciadores da Continente como algo muito além de um presente, corroborando o status da fotografia como arte. Afinal, já dizia o húngaro Laszlo Moholy-Nagy (1895-1946), teórico da fotografia e professor da escola Bauhaus, “a antiga briga entre artistas e fotógrafos acerca da fotografia como arte é um problema falso, pois não se trata de substituir a pintura pela fotografia, e, sim, de clarificar as relações atuais entre as duas categorias, de modo a evidenciar que o desenvolvimento tecnológico (…) contribuiu para a origem de novas formas de criação visual”.

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LUIZ HENRIQUE SÁ/ DIVULGAÇÃO

Palco

HELIO EICHBAUER Memórias de um cenógrafo Aos 72 anos, o artista carioca mergulha nas lembranças do vivido em teatro, cinema, música e literatura e realiza o livro Cartas de marear TEXTO Pollyanna Diniz

Quando chegou aos 70 anos, o

cenógrafo carioca Helio Eichbauer sentiu que estava pronto para, finalmente, escrever um livro. Percebeu, então, ao revisitar as décadas, os episódios e os encontros em que as memórias mais pareciam ficção do que realidade – e isso não era, absolutamente, um problema. Afinal, apesar de ser um dos principais

nomes da cenografia no país, Eichbauer não tinha interesse em realizar uma obra técnica, um tratado que abordasse apenas o seu método de trabalho, a trajetória nas artes cênicas. Cartas de marear – impressões de viagem, caminhos de criação, publicado pela editora Casa da Palavra, é um reflexo fiel da formação humanista desse cenógrafo que morou

nos Estados Unidos ainda adolescente, desistiu da faculdade de Filosofia e da pintura para se dedicar ao teatro, estudou na Europa, trabalhou em Cuba e deu aulas na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Escola de Artes Visuais, no Parque Lage, na época da ditadura militar. As lembranças mais remotas que guarda do teatro são contadas no primeiro capítulo, cujo título foi em parte tomado “emprestado” do compositor Gilberto Mendes: Marítimos remotos ou Ulisses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour. Aos domingos, a diversão era o teatro de bonecos na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana. “Primitivos fantoches de luvas, marionetes, cenários pintados, muita paulada, muita pândega”, escreve. “Dia desses, Maria Fernanda, filha de Cecília Meireles, me disse que ao ler livro também reavivou muitas memórias. Ela ia para esse mesmo

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FOTOS: REPRODUÇÃO

TEATRO

Palco

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teatrinho”, conta. Além do teatro de Guignol, o pai, piloto da Força Aérea Brasileira, sempre trazia presentes de suas viagens longínquas. Um deles, Helio coleciona até hoje: “um teatrinho de cartão – Pollock’s Britannia Theatre –, com figuras bidimensionais recortadas, montadas sobre hastes e seus cenários; uma reprodução ingênua de um teatro europeu do século 19”. Como um dos tios era músico, desde garoto Eichbauer também frequentou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. “A cenografia dos espetáculos de dança era geralmente desenhada por pintores, belos quadros pintados para servirem de pano de boca e telões ao fundo. Artistas como Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Emiliano Di Cavalcanti, Cícero Dias e Lasar Segall criaram cenários magníficos”, relata. “Eram outros tempos. Não tinha televisão. No colégio aprendia-se muito, a base era boa. O que eu não tinha como vivência, adquiria da literatura. Lia nomes como Shakespeare e Bernard Shaw.” Na década de 1950, pós-guerra, morou nos Estados Unidos. O apartamento dos tios embaixadores

mais parecia uma galeria de arte, com saraus periódicos. Um dos convidados era Villa-Lobos, de quem Helio se tornou amigo. “Aquele apartamento era fabuloso. E havia a tradição dos saraus, do violão, da seresta. A casa vivia cheia de artistas, músicos, pintores, poetas.” Aproveita para tratar da revolução causada pelos escritores da geração beat e escreve um diálogo “fictício” entre um jornalista (Nelson Coelho, poeta e correspondente do Jornal do Brasil em Nova York), a atriz portuguesa Nita Brandão e um jovem beatnik (ele mesmo). Noutros momentos desse emaranhado de memórias, recorre novamente à ficção, e escreve um solilóquio do rei Rodolfo II, contemporâneo de Shakespeare, ou um diálogo entre personagens do modernismo como Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, Lina Bo Bardi, Flávio de Carvalho e Patrícia Galvão. “Grande parte da estrutura do livro é dramática. Os diálogos são por conta de Platão, que escrevia tudo em forma de diálogos. O livro poderia até ser encenado”, explica.

Quando voltou ao Brasil, vindo dos Estados Unidos, Helio Eichbauer ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, mas não terminou o curso. Uma exposição que esteve na Bienal de São Paulo, vista no Rio, no Museu de Arte Moderna, do arquiteto tcheco Josef Svoboda, um dos principais cenógrafos do século 20, levou o jovem a repensar os próprios rumos. Como que, por destino, os tios embaixadores agora estavam na cidade de Praga, na então República Socialista da Tchecoslováquia. Resultado: Helio Eichbauer foi o primeiro aluno estrangeiro de Svoboda, entre 1962 e 1966. “A minha profissão eu devo a ele. Fui levado ao rigor, ao desenho, ao método, à observação da cidade. Eu era um pintor figurativo, mas em Praga me tornei abstrato. A escola era do abstracionismo geométrico, da Bauhaus, a arquitetura, a estrutura”, enumera. Nessa época, realizou diversos exercícios, sempre em preto e branco. O primeiro pedido do mestre foi para que o aluno criasse cenários e figurinos para um texto de Carlo Goldoni: Le baruffe chiozzotte. Depois vieram Shakespeare, Pedro Calderón, Molière, Nikolai Gógol, Gorki, Tchekhov. “O ateliê de Svoboda, onde nos encontrávamos diariamente para avaliação de meus exercícios, era repleto das mais belas maquetes de cenografia criadas no século 20. Algumas, construídas com madeira e ferro em grande escala, com pequenos motores que transformavam o espaço cênico radicalmente, representavam o mundo cinético que era transposto para os grandes palcos da ópera, tecnicamente perfeito, silencioso, surpreendente.” A certa altura, o teatro já tinha ocupado todos os espaços na vida de Eichbauer – ou, ao menos, tomado a maior parte. O restante era ocupado pela literatura, pela música, pela ópera, pela filosofia ou pintura. “Submetidos à lei da gravidade, salvo quando por processos mecânicos alçamos voo, o que nos sobra é o poder imponderável da poesia. Um grande intérprete, imóvel, pode levarnos a espaços incomensuráveis. Esse é o poder da caixa cênica; não estamos encerrados, mas livres para viajar pelas palavras e pela música, espaço irrestrito, porção de eternidade”, escreve.

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1 MAQUETE Estudo desenvolvido em Praga, nos anos 1960, para montagem de A tempestade, de Shakespeare

O REI DA VELA

Foi em Praga que Helio Eichbauer conheceu José Celso Martinez Corrêa. Desde então, recebeu o convite para que, quando retornasse ao Brasil, fosse ao Teatro Oficina. Mas para a realização de O rei da vela, um dos trabalhos mais importantes da sua carreira de cenógrafo, justamente para o Oficina, foi fundamental uma temporada em Cuba, a convite da Casa de las Américas, organização dedicada à cultura cubana. “Cuba restaurou a cor no meu trabalho”, explica. Era tempo de modernismo no teatro, de tropicalismo. A montagem do Oficina de O rei da vela, texto de Oswald de Andrade escrito em 1930, marcou época. “A partir das provocativas imagens trazidas por Terra em transe, filme de Glauber Rocha estreado no início daquele ano (1967), José Celso lança-se à criação do espetáculo multiplicando, até onde possível, as peculiaridades de sua nova poética: o deboche, a irreverência, as citações, o mau gosto, as alegorias, destacando o claro pacto de classes sociais em convivência para garantir a exploração do proletariado.” “Tornado um manifesto do grupo, O rei da vela inaugura um novo movimento artístico – o tropicalismo”, registra o livro História do teatro brasileiro, organizado por João Roberto Faria. Mais adiante, a cenografia da peça é comentada: “Lançando mão do palco giratório da nova sala de espetáculos, o cenógrafo Helio Eichbauer concebe um aparato cenográfico visualmente exuberante, a partir de signos oriundos do passado nacional e elevados à categoria de kitsch, em bem-humorada releitura da antropofagia moderna”. Além de José Celso, Eichbauer trabalhou com nomes marcantes na história do teatro brasileiro, como Augusto Boal e o pernambucano Martim Gonçalves. “Com Boal fiz três trabalhos: Fedra, O corsário do rei e O público, uma peça de Garcia Lorca. Com Martim Gonçalves, montei, por exemplo, Álbum de família, na Venezuela”. Mas não é só no teatro que Helio Eichbauer transita entre os cenários abstratos, geométricos e figurativos. Nada mais coerente que ele também

2 O REI DA VELA Desenho do cenógrafo para montagem do Teatro Oficina da peça de Oswald de Andrade

Uma exposição do cenógrafo tcheco Josef Svoboda fez Eichbauer repensar os próprios rumos profissionais trabalhasse com música, ópera, cinema, exposições, literatura. Faz cenários, por exemplo, para Chico Buarque e Caetano Veloso. Em Abraçaço, show mais recente de Caetano, colocou no palco quatro telas da fase suprematista do artista russo Malevich. Lembra também que o cinema o trouxe a Pernambuco, nas gravações, ao lado do diretor Ruy Guerra, de Kuarup, filme de 1989, baseado na obra de Antônio Callado. Foi uma época bastante familiar, aliás, já que a mãe

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de Eichbauer nasceu no Recife – o avô dele, Giacomo Palumbo, era um renomado arquiteto, responsável pelos desenhos de prédios como o Palácio da Justiça, a Faculdade de Medicina do Recife e a Ponte Duarte Coelho. Fernando Pessoa, um dos poetas mais citados em Cartas de marear, quem sabe traga de volta o carioca, de raízes nordestinas, ao Recife. A exposição Fernando Pessoa, plural como o universo, que esteve em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, cujo projeto foi assinado por ele, agregou muitos elementos da coleção do pernambucano José Paulo Cavalcanti. “A exposição está guardada, mas seria muito bom levá-la ao Recife. Quem sabe não conseguimos?”, questiona. Seria uma ótima oportunidade não só de conferir mais um trabalho de Eichbauer, mas de ter o lançamento das suas Cartas de marear também em terras pernambucanas.

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ESTUDO Mergulho na obra gonzaguiana

ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Pesquisador Climério de Oliveira lança, pela Cepe Editora, Forró – a codificação de Luiz Gonzaga, livro e DVD que analisam aspectos do gênero TEXTO Débora Nascimento

Sonoras Quando algum artista internacional

quer agradar a plateia brasileira, tocando “alguma coisa da terra”, costuma apelar para Garota de Ipanema. Nós já estamos até habituados a isso. Aplaudimos como se o “agrado” fosse inédito, porque somos, afinal, um povo simpático e cordial, como afirmou o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, também conhecido como o “pai de Chico”. No entanto, no show de Beck, uma das principais atrações do último Festival Planeta Terra, realizado no mês de novembro, em São Paulo, o público “patropi” recebeu um “mimo” diferente. O guitarrista Smokey Hormel, da banda do geniozinho americano, surpreendeu todos, executando trechos de Vem, morena e Asa branca. Ao portal do patrocinador do evento, o guitarrista detalhou sua relação com a música brasileira: “Eu amo forró, samba, choro, bossa nova... É tudo lindo. Eu aprendi a tocar baião em Nova

York. Tinha uma banda que só tocava Luiz Gonzaga. Há muitos músicos bons no Brasil, mas a maioria dos americanos não percebe isso. Estou feliz por conhecer outros músicos aqui”. A banda à qual Smokey se referia é a Forró in The Dark, que está em Nova York há mais de 10 anos, sempre ocupada com apresentações nos Estados Unidos e na Europa. O grupo, que ganhou repercussão quando gravou uma versão de Asa branca ao lado de David Byrne (ex-Talking Heads), é formado por quatro brasileiros, dentre eles, o percussionista Mauro Refosco, também conhecido como um dos membros do projeto paralelo de Thom Yorke, do Radiohead. O que a Forró in the Dark vem promovendo, na verdade, é a retomada de uma agenda de divulgação do gênero musical no exterior. Algo que teve início há quase 70 anos com o estrondoso

sucesso do lançamento da música Baião, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, a ponto de conseguir uma projeção fora do Brasil, duas décadas antes da bossa nova se tornar o nosso principal produto cultural de exportação, algo potencializado pelo fato desse gênero ter nascido de um diálogo entre o samba e o jazz, e de alguns de seus clássicos terem recebido versões em inglês. O que aconteceu a partir daí é que, após o estouro do Baião, os surgimentos da Bossa, da Jovem Guarda e do Tropicalismo abafaram o impacto do forró no mercado fonográfico, na imprensa e na mídia, chegando ao ponto de Luiz Gonzaga expôr seu descontentamento em Hora do adeus. No entanto, apesar da sequência de novos movimentos musicais na música brasileira, o artista não perdeu sua importância e adentrou ainda mais no interior do país, onde era

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tratado como Rei e arregimentava fãs e novos seguidores, perpetuando, paulatinamente, seu prestígio. A trajetória pessoal e profissional do ícone faz parte da narrativa da primeira parte de Forró – a codificação de Luiz Gonzaga, livro do músico e pesquisador Climério de Oliveira, a ser lançado pela Cepe Editora, no dia 13 de dezembro, data que marca os 101 anos de nascimento do Rei do Baião. O objetivo da publicação, na realidade, não é contar a história de Gonzagão, o que títulos anteriores já fizeram, a exemplo de Vida do viajante, de Dominique Dreyfus (1996), e O sanfoneiro do Riacho da Brígida, de Sinval Sá (de 1966; relançado pela Cepe Editora em 2012), tampouco contar a trajetória do gênero fundador, o que o crítico musical José Teles fizera no ensaio O baião do mundo (2008). Publicações como essas serviram apenas como base para que Climério tecesse sua análise

Autor analisou os subgêneros do forró, a partir da escolha de seis canções representativas para cada um deles sobre a musicalidade gonzaguiana, tema que integra a segunda parte do livro, na qual o pesquisador esmiúça aspectos como ritmos, melodias, letras, instrumentos e os subgêneros, abarcados sob o grande “guardachuva” chamado forró. Através de escuta sistemática, cronológica e até compartilhada com outros especialistas, o autor estudou os elementos que compunham essas músicas, selecionando seis delas para analisar os subgêneros: No meu pé de serra (xote), Baião (baião), Asa branca

(toada), Quer ir mais eu? (arrasta-pé), Forró de Mané Vito (forró) e Olha a pisada (xaxado). As canções estão presentes no DVD que acompanha o livro. No vídeo, Climério de Oliveira e o músico Tarcísio Resende conversam com convidados especiais e, ao final de cada episódio, todos tocam cada uma das seis canções. Participaram das gravações alguns dos maiores expoentes do forró, como Maciel Melo, Herbert Lucena, Gennaro, Camarão e Dominguinhos, em uma de suas últimas aparições públicas. Forró – a codificação de Luiz Gonzaga não é um livro destinado apenas a instrumentistas e pesquisadores, mas ao público em geral, pois aproveita para, também, narrar a saga do ícone, construindo um rico, embora breve, painel histórico da época, contextualizando o ambiente social, político-econômico, cultural, no qual se deram os eventos formadores do artista e do gênero. O autor utiliza essa narrativa, da primeira metade da publicação, para inserir as observações sobre as nuances musicais que estarão mais detalhadas na segunda metade da pesquisa. Como a publicação é bilíngue (português/inglês), esta também se torna mais uma forma de divulgar o forró “lá fora”, para que instrumentistas, como Smokey Hormel, possam se aprofundar na obra gonzaguiana e outros saibam que existem por aqui outros gêneros, além de samba e bossa nova. Mas não podemos, ainda, esquecer que essa publicação pode ser mais uma boa oportunidade dos brasileiros mergulharem em suas raízes, pois, quando o guitarrista americano tocou Vem, morena e Asa branca, a reação dos espectadores não foi tão calorosa quanto costuma ser quando tentam nos agradar com a Garota de Tom Jobim e Vinicius.

Forró CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Cepe Editora Livro e DVD analisam aspectos técnicos que caracterizam o forró gonzaguiano

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KAZUO WATANABE/DIVULGAÇÃO

Sonoras

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CONCERTO Afinado com o talento local

Conhecida em todo o Nordeste pela qualificação de seus intérpretes, a capital paraibana promove o I Festival Internacional de Música Clássica TEXTO Carlos Eduardo Amaral

Em Pernambuco, tanto quanto os talentos musicais da terra, os produtores culturais são conhecidos pela habilidade de projetar qualquer banda em início de carreira ou de organizar festas e eventos artísticos que, no mínimo, movimentem a cena musical da cidade. Os incentivos culturais, mais vultosos aqui do que em estados vizinhos, também tornam a tarefa menos árdua, quando falamos de manifestações que dependem primordialmente do apoio público. Na Paraíba, a safra de produtores culturais – ao menos na música erudita – não acompanhou a de talentos musicais lá revelados, nem ninguém de fora tinha se aventurado a apostar no potencial turístico e histórico de João Pessoa ou de um município do quilate de Areia, como

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DIVULGAÇÃO

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LAERCIO DINIZ O festival foi idealizado pelo maestro da Orquestra Sinfônica de João Pessoa

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RAIFF DANTAS BARRETO Uma das atrações, violoncelista paraibano lança álbum durante a programação

ocorreu em Olinda com a Mimo. Isso até o recente anúncio do I Festival Internacional de Música Clássica de João Pessoa, idealizado pelo maestro Laércio Diniz. Através do violinista paraibano, radicado na Holanda, Alberto Johnson, spalla da New Netherlands Orchestra, Laércio travou contato com o presidente da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), Maurício Burity, para falar sobre a ideia de uma nova orquestra sinfônica para a cidade. Maurício é filho do falecido ex-governador da Paraíba Maurício Burity, sob cujo governo a Orquestra Sinfônica da Paraíba (OSPB) alcançou glória nacional e teve à sua frente alguns dos melhores maestros do Brasil à época, nos anos 1980. A intenção foi referendada pela prefeitura e somou-se ao projeto do festival e ao de um programa social de ensino coletivo de instrumentos de cordas, que deverá ser anunciado em breve. Assim, Laércio Diniz assumiu a direção artística da recém-criada Orquestra Sinfônica Municipal de João Pessoa e do Festival Internacional de Música Clássica de João Pessoa. A OSM, que incorporou os músicos da Orquestra de Câmara da Cidade de João Pessoa e ampliou o quadro de 40 para 55 integrantes, junta-se à veterana OSPB e à novata Orquestra Sinfônica da UFPB, fundada este ano. Ela ainda não tem uma sede – ensaia na Funjope, por enquanto –, mas já se fala na construção de um teatro municipal. O festival, que acontece de 1º a 7 de dezembro, vem a ser o primeiro de nível internacional desde 1988, na época áurea da OSPB, quando Eleazar de Carvalho chamou intérpretes do mundo inteiro à capital paraibana e levou a orquestra a gravar um CD no exterior. É intrigante perceber que um dos maiores centros da música erudita nordestina (o próprio festival Virtuosi, aqui no Recife, sempre contou com mais músicos paraibanos em sua orquestra sinfônica ad hoc) não empreendeu um evento de porte em todo esse período. O diretor artístico explica por que a dificuldade de canalizar recursos para a

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música clássica é constante, hoje em dia, mais do que naqueles anos: “Acredito que, diferentemente de tempos atrás, quando os recursos apareciam muitas vezes por meras decisões políticas, nos tempos atuais existe uma necessidade grande de as orquestras terem de provar muita qualidade para que estes recursos apareçam. Mesmo que eles venham do governo, é uma eterna luta, mas esta é a luta atual. Então, não dá para ficar parado, e acredito que João Pessoa pode pensar grande”. À exceção da sigla não fluente, como em Mimo, o FIMCJP, a princípio, segue a receita de sucesso do festival pernambucano, a de conciliar música e um importante sítio histórico nacional: cinco igrejas pessoenses receberão concertos, além do Espaço Ciência (contemporâneo ao Parque Dona Lindu e também de autoria de Oscar Niemeyer) e do Teatro Radegundis Feitosa, na UFPB, inaugurado em 2012. “João Pessoa é uma cidade com uma rica tradição cultural e uma beleza natural ímpar, por isso, na hora de receber os recursos do governo federal para a cultura, devemos pensar como o Rio e São Paulo, para recebermos uma infraestrutura que nos dê condições de representar musicalmente o talento do povo pessoense à altura”, justifica o regente, que convidou solistas e ministradores das master classes de cerca de 10 países para o festival. Também constam na programação grupos de câmara locais, como o Quarteto de Cordas da Paraíba, o

Quinteto Musarum, o Grupo Camena e os celebrados Quinteto Uirapuru e Quinteto da Paraíba. Dentre os solistas, dois lançarão CDs no evento: o violoncelista Raiff Dantas e o pianista Paulo Álvares. A abertura ficará a cargo da Sinfônica Municipal, dia 1º de dezembro, no Adro da Igreja de São Francisco, centro de João Pessoa. O festival contará com patrocínio privado, e a orquestra será mantida pela prefeitura de João Pessoa, tal qual o era a OCCJP. Contudo, o maestro Laércio Diniz também prevê que ela venha a captar recursos via leis de incentivo fiscal e parcerias com instituições privadas. Ele, em particular, é patrocinado por uma companhia de seguros que arca com o seu salário, o que também permite que atue como regente convidado onde quer que seja, sem onerar a orquestra convidante – um trunfo, dentre todos os profissionais do ramo no Brasil. Para 2014, no intervalo até a esperada segunda edição do FIMCJP, a OSMJP se empenhará em construir seu conceito sonoro e artístico. Laércio promete uma forte disciplina de trabalho e anuncia que seguirá o caminho esperado para um conjunto sinfônico em início de trabalho: enfatizar o repertório standard, isto é, do Barroco ao Romantismo, incluindo, eventualmente, obras modernas e contemporâneas. “Já anunciando que o patrono da nossa orquestra é o grande compositor paraibano José Siqueira e que com a sua obra teremos boas surpresas em 2014”, revela.

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DIVULGAÇÃO

Sonoras

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VIRTUOSI Para louvar a ópera e a música de câmara

Festival homenageia os dois maiores nomes do drama lírico e enfatiza o repertório romântico para piano solo e ensembles, no Santa Isabel TEXTO Carlos Eduardo Amaral

A pergunta é antiga e recorrente: o que seria da música clássica sem as efemérides? Na música popular, sabemos que um cantor ou grupo consagrado corre o risco de receber muxoxos e resmungos desmedidos se deixar de fora de sua playlist aquelas músicas que todo mundo espera ouvir – ou aquela. Imaginem,

para pegar um exemplo banal, Nelson Gonçalves, quando vivo, rejeitar uma palhinha de A volta do boêmio, por mais que sua discografia superasse as dezenas de LPs. Por mais que haja queixas, esse comportamento, por si só, é necessário e natural entre os ouvintes, porque advém da evanescência inerente à

arte musical, isto é, da fugacidade da obra musical assim que tocada. Na falta da materialidade dessa obra, temos de reiterá-la na nossa memória, escutando-a o máximo que nosso gosto mandar. O problema é a bitola fabricada por esse hábito. Na música clássica, tal apego pelo habitual beira o defuntismo, posto que ouvir a Quinta ou a Nona é ouvir Beethoven – o vulto, na condição de gênio, supera sua obra ou iguala-se a ela. Enfim, a necrofilia não é privilégio dos clássicos (Michael Jackson, John Lennon e outros o comprovam), mas a aura da genialidade – meritória, é verdade –, mais do que a dos showmen, junta a faceta fetichista à museológica e à acadêmica e transforma em cultura de gueto tudo o mais que aparece em nossos dias na música de concerto, condenando a música popular a ditar seus “modismos” pro “povão inculto”. Daí que as efemérides

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INDICAÇÕES 1

SOLISTA Soprano Eiko Senda apresenta-se na noite de abertura

cumprem uma função dúbia de organizar nossa memória afetiva e atiçar um saudosismo que se mostra míope ao presente. Para o Virtuosi, não funcionam assim as coisas. O festival (ou rede de festivais) produzido pelo casal Rafael Garcia e Ana Lúcia Altino Garcia concebeu e emplacou três vertentes – intituladas Brasil, Sem fronteiras e Século XXI (este, recém-realizado na última semana de novembro) – dedicadas a um repertório livre do que chamamos standard. Talvez por isso, a mais ampla e mais antiga das outras três ficou mais à vontade este ano para investir no que o “povão” da música clássica gosta. O Virtuosi “propriamente dito”, ou Internacional (há ainda as edições Gravatá e na Serra), não decepcionará na fórmula: música de câmara, com muita ênfase nos convidados pianistas; boas peças sinfônicas; e, pois falamos de efemérides, Verdi e Wagner, cujo bicentenário de nascimento garante o nicho operístico na programação, mesmo que sem produção cenográfica (em tempo, notemos que, pela primeira vez, tivemos duas encenações de ópera em um mesmo ano no Recife: Don Giovanni, pela Companhia de Ópera do Recife, e Gianni Schicchi, pelo Departamento de Música da UFPE). Na noite do dia 14 de dezembro, o concerto Paixão pela ópera constará de

aberturas famosas (Nabucco e A força do destino) executadas pela Orquestra Virtuosi, sob regência de Rafael Garcia, e terá como solista a soprano japonesa Eiko Senda, que desde 1995 se divide entre os palcos de Montevidéu e do Sudeste do Brasil. Eiko, quem tem desenvoltura tanto para papéis wagnerianos (Senta, de O holandês voador, e Isolda) quanto para puccinianos (sua Madame Butterfly é tida como irrepreensível pela crítica paulistana), também se especializou nos papéis principais de Carlos Gomes, já tendo atuado em Lo schiavo, Maria Tudor e Condor. Para reforçar a audição operística, nos dias 10, 11 e 12, o crítico musical Irineu Franco Perpétuo ministra o minicurso Aprendendo a ouvir ópera, na Livraria Cultura do Paço Alfândega, das 9 às 12 horas. Já o encerramento do festival, dia 15, trará uma maratona pianística de mais de quatro horas de duração, com os solistas Victor Asunción (convidado de sempre do Virtuosi), a paulistana Juliana D’Agostini e o russo Ilya Ramlav. O repertório camerístico ainda não havia sido anunciado por completo, até o fechamento desta edição, mas está confirmada a Série Salão Nobre entre os dias 10 e 13, às 17h, que terá mais de 15 instrumentistas e irá culminar com a execução do Quarteto para piano em mi bemol, de Dvorák, e do Quinteto para piano, de Cesar Franck. A programação completa dos concertos – que acontecerão em Olinda, Recife, João Pessoa, Campina Grande e Belém, entre os dias 8 e 17 – está disponível no site www. virtuosi.com.br.

POP

MPB

Independente

Coaxo de Sapo

SILVIA TAPE Silvia Tape

HÁBITO DA FORÇA Filarmônica de Pasárgada

A paulista Silvia Tape experimenta moldes sonoros no seu caprichado álbum de estreia. São seis músicas de pop lisérgico que lembram algo de Charlotte Gainsbourg e PJ Harvey, sem deixar de mostrar o próprio universo da compositora. Ela visita lugares inesperados em letra e melodia, amparada por sons de ventos, alarmes, entre outras maquinarias, numa aura sexy e estranha. O álbum conta com produção musical da própria Silvia e de Pipo Pegoraro, além de troca de figurinhas com o ícone Júpiter Maçã.

Formada por oito integrantes, a Filarmônica de Pasárgada apresenta seu primeiro disco resgatando, de forma bem-humorada e nova, ritmos tipicamente brasileiros: da bossa nova ao funk carioca. O nostálgico se junta ao experimento linguístico da canção, homenageando abertamente músicos como Luiz Tatit e Tom Zé. Hábito da Força conversa sobre os “simples” acontecimentos do dia dia e ainda faz críticas sociais frenéticas com rebuscados arranjos instrumentais e interpretações vocais de Marcelo Segreto e da versátil Paula Mirhan.

ROCK

INDIE

JEAN NICHOLAS E A BUEIRAGEM Jean Nicholas

Carozo Records e Pé de Cachimbo Records

Um disco de inúmeras boas referências tocando em uníssono. Tem proto-punk, rock rural, baião, reggae. No fim, temos o rock’ n’ roll do pernambucano Jean Nicholas, cantando crônicas desbocadas sobre o estado mental de um personagem que anda pelas ruelas sujas do Recife, ou de qualquer noite ou manhã de “ressaca imoral”. Um álbum de riqueza criativa em letra e música com participação dos músicos D Mingus, Aninha Martins e Leonardo Vila Nova.

REFLEKTOR Arcade Fire Merge

Reflektor é o quarto ótimo álbum dos canadenses do Arcade Fire. Foi produzido por, nada mais, nada menos, James Murphy, o criador do LCD soundsystem. O disco duplo conta com um lado mais introspectivo, e o outro inspirado no mito grego de Orfeu, referência para a capa do álbum. O projeto – que viajou durante quatro anos pelo Haiti, Jamaica, Montreal e Nova York – é considerado o melhor da carreira da banda, trazendo músicas que mostram boas incorporações de reggae e sintetizadores dos anos 1980.

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Ronaldo Correia de Brito MÉDICO E ESCRITOR

ENTREMEZ

O BAILE NUNCA TERMINA

Depois de repetir-se muitas vezes,

até uma mentira, desde que não tenha pernas curtas, se torna verdade. Habituei-me a dizer em entrevistas que Antonio Madureira, Assis Lima e eu nos queixávamos da invasão de renas, Jingle bells e neve falsa no Natal brasileiro, e resolvemos criar uma brincadeira para nossos filhos cantarem e representarem durante o ciclo natalino. Tivéramos a sorte de viver em meio a reisados, lapinhas e bois, a herança do Natal ibérico, assimilada no nordeste do Brasil pelas populações rurais e urbanas, incorporada às culturas índia e negra. A conversa poderá ter sido essa, mas tudo nasceu de um esboço de representação teatral, ao estilo dos autos e dramas populares de empanada, que Assis Lima mandou de São Paulo para mim, pedindo que eu encenasse com minhas irmãs, num Natal do Crato. Esse arcabouço poético existiu, eu o guardo com carinho. Madureira havia composto a música de Lua Cambará, o primeiro e talvez único filme longa-metragem brasileiro na bitola super-8, que realizamos nos

Tivéramos a sorte de viver em meio a reisados, lapinhas e bois, a herança do Natal ibérico, assimilada no Nordeste anos de 1975, 76 e 77, com Horácio Carelli Mendes, uma aventura de malucos, típica da contracultura. Do convívio com Madureira, um músico aclamado por seu trabalho à frente do Quinteto Armorial, ficou o desejo de uma nova parceria. Em 1981, começamos a entregar a Zoca as letras do futuro Baile do Menino Deus. Sem internet nem Skype, com ligações telefônicas caras e precárias, a comunicação com Assis era feita pelo correio. Zoca tocava para eu ouvir as primeiras criações musicais e Assis, em São Paulo, apenas sonhava. Decidimos juntar às nove composições em parceria, três peças de reisado, com escrita e arranjos nossos: Jaraguá, Burrinha e Boi. Tínhamos

12 músicas, o bastante para um long-play. Zoca terminara de gravar Brincadeiras de roda, estórias e canções de ninar, na Eldorado, dirigida por Aluízio Falcão, que trabalhara com Marcus Pereira. Nosso desejo era fazer o Baile pelo mesmo selo. Alugamos o estúdio do Conservatório Pernambucano e, com a ajuda de músicos e cantores amigos, gravamos uma fita modesta, com a intenção de mostrá-la na Eldorado. Zoca conseguiu a produção, mas tivemos de gravar tudo no Recife, no velho e decadente Studio Rozenblit, com apenas oito canais. Enquanto isso, Assis e eu aprontávamos o texto teatral. Em novembro de 1983, lançamos na loja Trupizupe, de Germano Haiut, no Shopping Recife, o nosso Baile do Menino Deus. A produção estourou os gastos e creio que Zoca ficou no vermelho. Mas o prejuízo não impediu que sonhássemos com uma Trilogia das festas brasileiras, que se completou com Bandeira de São João e Arlequim de Carnaval. Procurei José Mário Austregésilo, da Praxis Dramática, e apresentei o Baile. Nesse tempo, não existiam leis

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DIVULGAÇÃO

de incentivo à cultura. Os produtores corriam o risco da encenação, os teatros lotavam e havia até quem ganhasse dinheiro. A Praxis aceitou o desafio, tínhamos apenas um mês para montar o espetáculo e ainda faltava escolher o diretor. José Mário propôs que eu dirigisse. Da noite para o dia, fui investido no papel de encenador. No mesmo novembro de 1983, com o Teatro Waldemar de Oliveira lotado, estreou o Baile. Ao final, as pessoas choravam comovidas, se abraçavam felizes como numa celebração.

Essa primeira montagem ficou sete anos e meio em cartaz sem modificar o elenco, a não ser as crianças, que se tornaram adultas. Havia interrupções e mudanças de teatro, mas o público se mantinha fiel. Algumas famílias compareciam tantas vezes, que Zé Mário ofereceu ingresso livre a elas. O Baile colecionou histórias incríveis nos seus 30 anos Brasil afora, representado pelos mais variados grupos. Vou contar apenas uma. Chego com a família à cidade de São José da Coroa Grande, no mês de

dezembro, para a temporada de praia. Encontramos a cidade cheia de faixas anunciando o Baile do Menino Deus. Meus filhos pequenos me perguntam se eu dei o consentimento. Digo que não. Querem saber se pode. Respondo que o Baile tornou-se de domínio público com os autores vivos e que, se fosse nos Estados Unidos, estaríamos milionários. Eles lamentam o prejuízo e combinamos ver a montagem. De noite, num salão improvisado em teatro, entramos com jeito de criminosos, depois de pagar os ingressos. Quando o Mateus entra e grita o “boca de forno”, me vê no meio da plateia, me reconhece, perde a fala e bota para tremer. Eu dou boa gargalhada, ele relaxa e o espetáculo prossegue. Juro, embora eu tenha fama de “verdadeiro” mentiroso, que não dá para saber as centenas de encenações do Baile. Em 1996, a editora Bagaço publicou o texto adaptado para prosa, com ilustrações de Rosinha, que ficou 15 anos em catálogo. A editora Objetiva vendeu ao Programa Nacional Biblioteca Escolar quase meio milhão de um livrinho bem modesto, com o texto teatral completo. Depois, fez uma edição de luxo. Graças a esse número extraordinário, o Baile foi distribuído por muitas escolas do Brasil e as encenações se multiplicaram. Infelizmente, para os nossos bolsos, as montagens nunca têm fim lucrativo. O Baile completará 30 anos de vida e 10 anos na Praça do Marco Zero, no Bairro do Recife – uma produção arrojada da Relicário, tendo Carla Valença à frente. O Baile tornou-se o “marco” natalino do Recife e de Pernambuco, um ritual sagrado e profano, alegre e comovente, um bem coletivo das milhares e milhares de pessoas que o assistem todo ano. A fala do Mateus, fechando a encenação, garante que o Baile será eterno: Senhores donos da casa, Jesus, José e Maria, o baile aqui não termina, o baile aqui principia do mesmo jeito que o sol se renova a cada dia, da mesma forma que a lua quatro vezes se recria, do mesmo tanto que a estrela repassa a rota e nos guia.

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ARTE SOBRE REPRODUÇÃO

Leitura WILL EISNER O superpoder de um artista

Biografia narra a trajetória do roteirista e desenhista que ajudou, com suas histórias em quadrinhos e personagens como Spirit, a sedimentar a importância da arte sequencial TEXTO Yellow

Para a literatura, os quadrinhos, o design gráfico e o cinema, Will Eisner foi um dos autores mais importantes do século passado. Trabalhando como roteirista e desenhista de inúmeras séries de quadrinhos, sendo a mais famosa delas a do detetive mascarado Spirit, Eisner ajudou a elevar esse gênero ao status de arte. Seu refinamento

artístico e uso de sofisticadas técnicas de narrativa influenciaram muitas gerações de artistas de diferentes mídias. A biografia Will Eisner, um sonhador nos quadrinhos, do experiente autor Michael Schumacher – que já retratou as vidas de Eric Clapton, Allen Ginsberg e Francis Ford Coppola –, documenta, finalmente, a história de um velho conhecido de fãs,

estudantes e autores de quadrinhos, ao mesmo tempo em que conta também um importante período da história dos Estados Unidos. O desenhista nasceu à época da recessão, quando sua família foi uma dentre as muitas que chegaram da Europa, fugindo da Primeira Guerra Mundial, sofreu com a fome e o antissemitismo. Começou a trabalhar como ilustrador desde muito jovem, e chegou a fundar seu primeiro estúdio antes de servir ao exército durante a Segunda Guerra, quando produziu quadrinhos educativos para os soldados. Ao final do conflito, Eisner seria peça fundamental na criação da indústria das HQs. Em edição cuidadosa e ilustrada com imagens raras, da série Biblioteca Azul, da Editora Globo, o livro é uma grande introdução não somente ao trabalho de Eisner, mas à compreensão do nascimento e desenvolvimento da indústria do entretenimento.

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Sua maior contribuição aos quadrinhos, ainda assim, não é através dos maravilhosos exemplos que deixou. Ele lutou durante toda a vida para que sua forma de arte fosse considerada mais do que simples entretenimento pueril para crianças. Ele foi o criador das graphic novels, romances em forma de quadrinhos, feitos para ocuparem espaço nas prateleiras ao lado de romances textuais. É graças a ele que as HQs têm hoje espaço em livrarias e bibliotecas, e recebem prêmios de literatura, como Maus, de Art Spiegelman, que ganhou o Prêmio Pulitzer em 1992.

FERRAMENTA PEDAGÓGICA

Eisner criou também o termo “arte sequencial”, por considerar derrogatória a denominação “quadrinhos” (em inglês, comics, uma redução de comic books) a uma forma de arte que, em sua visão e experiência, poderia ser usada não apenas para entretenimento, mas

O livro também contribui para a compreensão do desenvolvimento da indústria do entretenimento Vários outros quadrinistas passaram pela vida de Eisner. Jack Kirby e Jules Feiffer foram seus empregados. O primeiro, antes de tornar-se o rei dos quadrinhos, ao criar em parceria com Stan Lee, o Quarteto Fantástico, os X-Men e Hulk, enfrentou um capanga da máfia, para poder salvar o chefe. Uma das melhores anedotas do livro é a história de como Eisner se recusou a publicar o Super-Homem de Jerry Siegel e Joe Shuster, que viria a revolucionar os quadrinhos e a indústria do entretenimento em todo o mundo. Eisner inspirou-se, para sua mais conhecida criação, o detetive Spirit, em referências de sua infância. O jovem aprendeu sobre movimento e timing com o cinema, e desenvolveu suas habilidades de contador de histórias a partir da mistura de clássicos da literatura às histórias de detetives das pulps noir, que impregnavam o ambiente em que circulava.

como veículo de expressão artística e ferramenta pedagógica para pessoas de todas as idades, numa época em que quadrinhos eram perseguidos e associados à delinquência juvenil. Eisner foi suficientemente generoso para produzir pioneiros livros didáticos, principalmente Os quadrinhos e a arte sequencial (Comics and sequential art, 1985) e A narrativa gráfica (Graphic storytelling and visual narrative, 1996), nos quais aborda academicamente sua forma de arte, documentando e ensinando, para o porvir de muitas gerações, um conhecimento acumulado em décadas de dedicação à sua arte. Nestes volumes, explicita importantes elementos da narrativa gráfica, como a composição dos quadros e as sequências de imagens e diálogos podem determinar a passagem do tempo. Além de ser um artista de técnica impecável, Eisner nunca deixou de experimentar. Nos anos 1970,

conheceu e começou a tomar parte de convenções de quadrinhos. Passou a acompanhar e incentivar, até o fim da vida, o trabalho de jovens artistas. Participou de publicações underground, como a revista Snarf, do amigo Denis Kitchen. Em 1988, foram criados os prêmios Eisner, equivalentes ao Oscar da indústria dos quadrinhos, que são apresentados anualmente na Comic-Con, em San Diego, Califórnia. O desenhista estaria presente em todas as cerimônias de entrega do prêmio, até sua morte, em janeiro de 2005. Vários dos trabalhos de Eisner abordam sua infância como imigrante de família semita e, para os judeus, ele é reconhecido como um homem honesto e íntegro. Há uma tradição judaica de colocar uma pedra sobre um túmulo para marcar uma visita, e o túmulo dele está encoberto de pedras. O maior trunfo da biografia de Michael Schumacher é o de enumerar os feitos maravilhosos de Eisner, em meio a uma vida que não se pode chamar de aventurosa. Ele recorre a falas e à história paralela de vários outros personagens, e concentra-se na descrição histórica dos tempos do artista, enquanto este silenciosamente mudava o mundo, debruçado sobre sua prancheta. Tive a oportunidade de conversar brevemente com Eisner em 2001, quando de sua passagem pelo Recife, para participar do Festival Internacional de Humor e Quadrinhos. O mestre manteve sempre um sorriso no rosto, e tinha alguns tostões de conversa para quem quisesse se aproximar dele. Sua humildade era arrebatadora, seu interesse pelos fãs fazia seus pequenos olhos brilharem e não lhe faltavam comentários interessantes e engraçados a todas as perguntas ou comentários que lhes eram feitos. O aperto de mão de Eisner era firme como o de todos os heróis deve ser. Na ocasião, quando já amealhava 83 anos de idade, confidenciou que ainda mantinha uma rígida ética de trabalho, produzindo uma página de quadrinhos por dia. A entrega ao ofício parece ser herança de muitos sobreviventes da recessão, que, como ele, tiveram que trabalhar desde a infância para ajudar a sustentar suas famílias. Porém, Eisner exalava uma alegria contagiante por sua atividade e suas realizações. A paixão que tinha por sua arte era um superpoder.

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REPRODUÇÃO

Leitura

RUBEM BRAGA O bicho do mato cosmopolita

Biografia mergulha nas raízes familiares do cronista, narrando, de forma cinematográfica, momentos importantes de sua vida e seu ofício TEXTO Olivia de Souza

“Já tomei muito avião para fazer

reportagem, mas o certo não é assim, é fazer como Saint-Hilaire ou o Príncipe Maximiliano, ir tocando por essas roças de Deus a cavalo, nada de Rio-Bahia, ir pelos caminhos que acompanham com todo carinho os lombos e curvas da terra, aceitando uma caneca de café na casa de um colono.”

Se forem levados em conta os aspectos geográficos, é de se estranhar que o grande nome por trás da crônica brasileira seja o do capixaba Rubem Braga (1913-1990). Ele, que nunca se adaptou muito bem ao estilo de vida corrido da cidade grande – berço desse gênero literário, urbano por essência –, apesar de ter

fincado residência em capitais como São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e até Paris, preferia muito mais a calmaria da roça ou do seu apartamento, em cobertura na Rua Barão da Torre, onde ficou até o fim da vida, em Ipanema, e no qual buscou recriar toda a atmosfera interiorana de Cachoeiro de Itapemirim, sua cidade natal, o sossego de deitar na rede fumando um cigarrinho em paz e a liberdade de escolher fazer absolutamente nada. Um “bicho do mato cosmopolita”, como bem definiu o romancista José Lins do Rego, que, talvez por conta desse gosto pelas “miudezas da vida”, consolidou um estilo próprio de escrita, fundamentando as bases da crônica moderna do país e exercendo forte influência sobre toda uma geração de escritores do cotidiano.

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INDICAÇÕES Diversas celebrações marcaram o ano de 2013, centenário de nascimento do cronista e jornalista, que faleceu em decorrência de um câncer na laringe. Entre elas, o lançamento do livro inédito Retratos parisienses (Editora José Olympio), uma antologia de 31 crônicas feitas por Braga, quando foi correspondente do Correio da Manhã no país, onde, além do ofício de cronista, pôde exercer as facetas de intelectual e crítico de arte, tendo conhecido e “tirado sarro” de figuras como a de Jean-Paul Sartre. “É um homem baixo, retaco, e certamente feio”, afirmou, sem rodeios, num texto sobre a visita à casa do existencialista francês. Nos lançamentos seguintes, ganhou destaque a reedição da biografia Rubem Braga – um cigano fazendeiro do ar (Editora Globo), de autoria do jornalista Marco Antonio de Carvalho, lançada em 2007 e vencedora do Prêmio Jabuti do ano seguinte. Com apresentação de Álvaro Costa e Silva, a obra ganhou revisão técnica e é fruto de um minucioso trabalho de pesquisa de mais de 10 anos, que envolveu cerca de 270 entrevistas com pessoas que conviveram com o escritor, acesso a fotografias e cartas trocadas com familiares, amigos e colegas de ofício. Conterrâneo do escritor, Marco Antonio – que faleceu no ano de lançamento do livro e nem chegou a vê-lo nas prateleiras – mergulha nas raízes familiares de Braga, narrando, de forma cinematográfica,

diversos momentos importantes de sua vida. Aos 19 anos, como jornalista, Braga já havia coberto a Revolução Constitucionalista de 1932. Sua atuação como repórter e correspondente do Diário Carioca durante a Segunda Guerra Mundial, junto à Força Expedicionária Brasileira, na Itália, em 1945, resultou no livro Com a FEB na Itália. Atuou como cônsul e embaixador do Brasil no Chile e no Marrocos; sofreu perseguição durante o Estado Novo, pela forte oposição à política varguista, o que lhe rendeu prisões e mudanças constantes. O livro também aborda a relação com figuras importantes do vibrante cenário cultural da época: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Clarice Lispector, entre outros. Também, as diferenças ideológicas com o crítico, escritor e líder católico Alceu Amoroso Lima, o caso com a atriz Tônia Carrero (chegou a ameaçar suicídio, se ela o deixasse) e o amor platônico por Danuza Leão. Rubem Braga foi um caso único entre os escritores de sua geração – nunca chegou a escrever um romance. Foi um dos maiores colaboradores dos jornais e revistas – aproximadamente 15 mil crônicas, publicadas durante 62 anos de atividade jornalística. Justo a crônica, considerada pelos críticos, por vezes, como um gênero menor, engloba os melhores exemplares da produção literária brasileira de todos os tempos. Tudo culpa do “sabiá da crônica”.

TEATRO

CARLA DENISE Babau Editora Cubzac

COLETÂNEA

LILIANA BARROS TAVARES Notas Proêmias

Homenagem ao teatro de bonecos pernambucano e a seus mestres brincantes, o livro mescla documentação fotográfica e artigo elucidador da história, situação atual e características do mamulengo com o texto da peça teatral Babau. Escrita e modificada a partir das atuações do grupo Mão Molenga, Babau é exemplo de como as possibilidades do ao vivo moldam o texto teatral.

Companhia Editora de Pernambuco

ENSAIO

ARTES

FÁTIMA QUINTAS Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre: face a face Editora Massangana

Um completo e original ensaio sobre o paralelismo entre as obras e vidas de Gilberto Freyre e Joaquim Nabuco, repleto de imagens de acervo e de liberdade autoral. Fátima Quintas, entre documentação histórica e seleção de melhores frases de ambos, leva o título de seu livro ao literal e apresenta ao leitor um encontro inesperado entre eles.

Destinada aos produtores culturais, a publicação compila artigos que apresentam tecnologias assistivas, para inclusão do público com deficiência visual ou auditiva. Esse guia de acessibilidade comunicacional é indispensável para o crescimento dos profissionais da cultura e da própria produção cultural brasileira. Acompanha DVD.

FERNANDA PEQUENO Lygia Pape e Hélio Oiticica: conversações e fricções poéticas Editora Apicuri

Uma análise das divergências e aproximações das poéticas de dois grandes artistas brasileiros. Embora amplamente discutidas, as produções experimentais de Pape e Oiticica, marcadas por forte preocupação política e transgressão, continuam permitindo novas leituras e possibilidades, como fez a autora.

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Criaturas

CON TI NEN TE

Tomie Ohtake por Sávio Araújo

Tomie Ohtake (1913) nasceu em Kioto e fez 100 anos no dia 21 de novembro. A própria obra da artista, em sua variada trajetória, pode explicar tal longevidade. Ela exercitou o figurativismo no início, mas foi levando sua carreira para o abstracionismo, sem rupturas, num fluxo muito próprio das filosofias orientais, a que ela se filia, talvez por atavismo. São obras silenciosas, minimais, em que estão em harmonia a cor, o gesto e a materialidade. CONTINENTE DEZEMBRO 2013 | 96

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CONTINENTE

O DESEJO DE OSTENTAR SE MASSIFICA NA SOCIEDADE DE CONSUMO

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AUGUSTO RODRIGUES | JOANESBURGO | BEL ANDRADE LIMA | DICIONÁRIO DO NORDESTE | MARACATU LEÃO COROADO 3/12/2013 15:45:43


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