E MAIS MARCELO GOMES E CAO GUIMARÃES | EFRAIN ALMEIDA | PROTESTOS | BORIS SCHNAIDERMAN | TAPIOCA | CHAPADA DOS VEADEIROS | WILLIAM BURROUGHS # 158
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#158 ano XIV • fev/14 • R$ 11,00
CONTINENTE FEV 14
O AMOR
NA SOCIEDADE DE CONSUMO, ELE TAMBÉM É DESEJO E MERCADORIA
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você sabe o que é um abilocil? uma baldroca? uma cacerenga? um debo? um embeleco? e um fifó?
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FILME O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN/REPRODUÇÃO
FEVEREIRO 2014
aos leitores A gente se acostumou tanto com a ideia de que o amor é um sentimento que nos é intrínseco, que apenas esperamos que um dia ele aconteça. Como não encontrar a “alma gêmea”? Esta é uma premissa de felicidade e realização. Quando acontece de “não dar certo”, é como se a gente fosse assim... doente. Também não é fácil. De todo lado, a toda hora, somos estimulados a “viver o amor”. Fora as tradições religiosa e romântica, os romances, as novelas, os happy ends do cinema, a publicidade, as letras de músicas nos azucrinam: ame, ame, ame! Talvez essa pressão só perca para a de enriquecer. Por conta dessa onipresença, esta edição voltou-se para o amor. Na matéria, Fabio Lucas escreve: “Nas últimas décadas, graças à ampliação do alcance da produção cultural, o amor está no ar de forma epidêmica: na mídia, no desejo de consumo, nas prateleiras, no calendário, nos bares, na moda, na TV, nas redes sociais, na música, na literatura, no cinema. E na mente de cada um parece ter sido depositada a noção de que sem aquele amor arquetípico, de vitrine, do comercial de shopping, a própria vida não vale a pena”.
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Quem veio nos tirar esse “peso de amar” foram os estudos da mente, que derrubaram o mito, afirmando: o amor é uma invenção. O psicanalista Jurandir Freire Costa, citado na nossa matéria, afirmou: “O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo”. Para dar uma forcinha na distensão, a também psicanalista Bianca Dias disse à reportagem: “Não existe ninguém que possa completar outro alguém. Essa é uma relação imaginária com o amor. O encontro com o outro se dá nessa construção simbólica a partir da estranheza e da alteridade radical que o outro é”. Pois a ideia é não se iludir e ter mais liberdade: se amar é bom, é porque assim queremos, não somos obrigados, e cada um escolhe a melhor forma de se jogar nessa aventura de alegria e dor.
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sumário Portfólio
Efrain Almeida 6
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Marcelo Gomes e Cao Guimaraes Cineastas falam sobre longa-metragem que dirigem juntos
Conexão
Interview Magazine Site publica conteúdo da versão para iPad da revista idealizada por Andy Warhol, em 1969
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Entremez
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Leitura
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Visuais
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Matéria Corrida
82
Sonoras
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Criaturas
Perfil
Boris Schnaiderman Aos 96 anos, tradutor russo mantém perfeccionismo no ofício
Comunicação
Midiatização Tipo de interação a partir da inserção das tecnologias nas práticas sociais implica em diferente presença do sujeito no mundo
Barricadas Quem acompanhou os protestos nas capitais brasileiras em 2013 pode encontrar aproximações entre eles e as trincheiras erguidas na França
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Balaio
Armandinho Instrumentista critica ouvintes baianos, que ignoram o trabalho de músicos de antigas gerações
História
A influência das histórias de assombração sussurradas pela avó, da iconografia católica e do imaginário fantástico do Sertão na obra do artista cearense
14
Ronaldo Correia de Brito Será que em Marte é assim?
William Burroughs No centenário de nascimento do autor de Almoço nu, observamos a sua permanência como ícone da contracultura
Carroças A partir da dicotomia entre o urbano e o rural, artista realiza projeto sobre essa forma arcaica de transporte
José Cláudio Juliana vai a Roma
Quinteto Violado Grupo lança álbum temático em que celebra o frevo
Dálcio Machado Reginaldo Rossi
Cardápio Tapioca
Alimento preparado pelos indígenas a partir da goma de mandioca recebeu vários recheios, além dos tradicionais coco e coalho, e agora compõe a mesa dos saudáveis
54 CAPA FOTO Kiss V (1964), Roy Lichtenstein
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Capa
Viagem
Em tempos de individuação e consumo frenético, o discurso amoroso é assimilado pela publicidade e pelo mercado sob os arquétipos da tradição romântica
Parque Nacional situado no interior de Goiás abriga rica fauna e flora, mas se destaca sobretudo pela abundância de cristais e cachoeiras
Claquete
Palco
Filmes como Ninfomaníaca, Tatuagem e Azul é a cor mais quente reacendem velha polêmica sobre como deveria ser a abordagem do tema no cinema
A interação necessária entre fotógrafos, encenadores, artistas, iluminadores e diretores de arte para que o essencial do espetáculo seja traduzido em imagens
Amor
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O sexo como linguagem
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Chapadas dos Veadeiros
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Fev’ 14
O registro de cena
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cartas DO TWITTER Lendo a @revcontinente... e a ilha de Saramago já sacudiu areia nos meus olhos... o caderninho do poetinha já poetou para mim... seduzida...” BETHÂNIA LIMA NATAL–RN
Hollywood Na ótima matéria escrita por Rodrigo Salem sobre brasileiros em Hollywood, na edição de janeiro, notei uma falta de informação e um erro. Carmen Miranda realmente foi a primeira brasileira a brilhar nos EUA nos anos 1930. Mas, depois dela, não foi Sônia Braga (acima). Senti falta de uma referência a Norma Bengell, atriz brasileira, que filmou, em 1966, em Hollywood, e encantou até Walt Disney, partindo depois para a Europa. A série da qual participou chamava-se T.H.E. Cat, com Robert Loggia. Norma faz o papel de Maria e cantou a música-tema do episódio que era de Tom Jobim. O erro seria a informação de que Sônia Braga fez as novelas Tieta do Agreste e Força
de um desejo. Ela não fez a novela Tieta, mas, sim, o filme de Cacá Diegues, em 1996. Parabéns pela revista – que está cada dia melhor. WILLIAM CASTILHO ARCOVERDE–PE
Sambadas
DO FACEBOOK Gostaria de dar os parabéns à Continente. Eu faço revista há mais de 16 anos e posso garantir que a Continente está cada vez melhor. Estive no Recife recentemente e fiquei muito feliz em ver a revista tão bacana. Parabéns! KLESTER CAVALCANTI
Bem legal ter participado da edição de dezembro da revista Continente com o texto sobre sambadas. Quem costuma apreciar esses espetáculos sabe a riqueza que eles representam; quem ainda não conhece pode mergulhar um pouquinho nesse universo conferindo a matéria, que também tem as imagens incríveis da Roberta Guimarães.
SÃO PAULO–SP
Passei o dia lendo a edição de dezembro da Continente. Só matérias show de bola. Curti especialmente as de Gianni Paula de Melo, Pollyanna Diniz, Isabelle Câmara, Josias Teófilo e Carolina Leão. Vale muito a leitura.
NICE LIMA
CARLOS EDUARDO AMARAL
RECIFE–PE
RECIFE–PE
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
Dálcio Machado
Fábio Lucas
Marcelo Abreu
Marcelo Robalinho
Caricaturista e chargista premiado, trabalha no Correio Popular, de Campinas
Jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio
Jornalista e autor de livrosreportagem, como De Londres a Katmandu
Jornalista, mestre em Comunicação e doutorando em Comunicação e Saúde
E MAIS André Dib, jornalista e crítico de cinema. Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Bruno Albertim, jornalista e mestrando em Antropologia pela UFPE. Carolina Leão, jornalista e doutora em Sociologia pela UFPE. Eduardo César Maia, jornalista, professor universitário, mestre e doutor em Teoria da Literatura pela UFPE. Eduardo Sena, jornalista. Guilherme Novelli, jornalista. Josias Teófilo, jornalista, mestrando em Filosofia pela UnB. Leandro Lima, fotógrafo. Marcelo Pedroso, cineasta, membro da Símio Filmes e mestrando em Cinema pela UFPE. Pollyanna Diniz, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO
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MARCELO GOMES E CAO GUIMARÃES
“Esse filme é sobre solidão”
Diretores pernambucano e mineiro coassinam a direção de O homem das multidões, longa inspirado em conto de Edgar Allan Poe, que será lançado no Festival de Berlim TEXTO André Dib
CON TI NEN TE
Entrevista
Eles já trabalharam no curta
Concerto para clorofila e no longa Existo. Agora estão juntos em O homem das multidões, primeira coprodução cinematográfica entre Pernambuco e Minas Gerais. Assinado por Marcelo Gomes e Cao Guimarães, o longa é o único brasileiro selecionado para a Mostra Panorama do Festival de Berlim. Diretor de Cinema, aspirinas e urubus, Viajo porque preciso, volto porque te amo (com Karim Aïnouz, que, com Praia do Futuro, também estará em Berlim, na competição oficial) e Era uma vez eu, Verônica, Gomes define o novo filme como o encontro da cachaça mineira com o coentro pernambucano. Sobre o processo, diz ele, “foi muito divertido”. Com O homem das multidões, Cao Guimarães completa a assim batizada Trilogia da Solidão, iniciada com A alma do osso e O andarilho. Inspirado em conto de Edgar Allan Poe, o longa acompanha o dia a dia de um condutor de trem (o ator Paulo André, do grupo Galpão) em Belo Horizonte. Sua chefe, vivida pela atriz Silvia
Lourenço, o acompanha com interesse particular, por monitores de vigilância e subterfúgios sociais. Uma das particularidades do longa é o espaço ocupado na tela, um formato quadrado que lembra o Instagram (e por sua vez, o Polaroide) e, ao mesmo tempo, remete ao usado na origem do cinema. Em entrevista concedida à Continente, Cao e Marcelo falam sobre as escolhas estéticas e o processo criativo, que resultaram em uma obra singular. CONTINENTE O roteiro é fruto de uma estada de vocês em Berlim. Como foi a relação com a cidade nesse tempo? MARCELO GOMES Nossa temporada em Berlim foi de três meses. Foi o momento de amadurecimento, o que permitiu um processo inicial de definir a história que gostaríamos de narrar, os personagens, o tema da solidão analógica e digital e o desejo de tornar contemporâneo o conto de Allan Poe. Depois disso, viajei muito para Minas Gerais, e Belo Horizonte foi se tornando mais presente como a cidade na qual iríamos trabalhar.
CONTINENTE A história se passa no centro de Belo Horizonte, mas o filme trabalha com elementos de Berlim, como as linhas de trem. O que mais foi transposto? MARCELO GOMES Os trens remetem a uma relação direta com Berlim, mas esse filme é sobre solidão no Terceiro Mundo, cuja urbanidade começou há menos tempo. A solidão é uma questão universal, mas a solidão berlinense cheira a mofo; a nossa, a suor. O ritmo com que observamos o centro de Belo Horizonte é de metrópole europeia, com mais calma e tranquilidade. CAO GUIMARÃES Berlim seria quase o oposto da sensação que procuramos no filme, o oposto da capital tropical, desgovernada e claustrofóbica. E Berlim é dilatada, com muitos parques, é a solidão da falta, do vazio, da velhice de uma cultura cansada, de uma vida tão organizada, que entedia. Aqui, é do excesso, da quantidade de gente, falta de organização, da luta do dia a dia. Começamos a escrever o roteiro lá e, durante as conversas, pensamos que essa seria a sensação do personagem, que talvez inconscientemente tenha se tornado um maquinista de trem.
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IVO LOPES ARAÚJO/DIVULGAÇÃO
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CONTINENTE E, para um solitário, nada melhor do que se diluir na multidão. O anonimato é confortável. CAO GUIMARÃES No caso do Juvenal, é uma necessidade espiritual e física, por isso o foco da imagem está nele e não nas demais pessoas. É como se a multidão pudesse sentir sua presença. CONTINENTE Isso tudo remete ao flâneur, personagem do início do século 20, identificado pelo filósofo Walter Benjamin na poesia de Baudelaire. CAO GUIMARÃES Sim, buscamos
fazer edição rápida, esquizofrênica, optamos por observar esses dois personagens com tranquilidade. CAO GUIMARÃES O ponto de vista é mais do observador do que o daquele que age. CONTINENTE Essa não é a primeira vez que trabalham juntos. Como tudo começou? MARCELO GOMES Em 2003, fui a Belo Horizonte montar, com Karen Harley, Cinema, aspirinas e urubus e, numa festa, ela me apresentou a Cao, que dias depois me mostrou o
CONTINENTE Como foi dirigir em dupla, a dinâmica de criação? MARCELO GOMES É muito fácil trabalhar com alguém que tem gostos parecidos, além da admiração mútua. Todo o processo de criação foi prazeroso. Naturalmente, houve discussões, e o que prevaleceu foi tendo em vista o melhor para o filme. Deve ter sido difícil para equipe, pois são dois diretores. Mas, para nós, foi complementar. Enquanto eu trabalhava com atores, Cao estava com Ivo Lopes de Araújo,
FOTOS: DIVULGAÇÃO
“Buscamos outro tempo, mais dilatado, no sentido da contemplação do outro, do surgimento das cidades. O flâneur está presente no conto, como consequência de uma forma de vida guiada pela urbanidade, não pelo campo” Cao Guimarães
CON TI NEN TE
Entrevista outro tempo, mais dilatado, no sentido da contemplação do outro, do surgimento das cidades. O flâneur está presente no conto como consequência de uma forma de vida guiada pela urbanidade, não pelo campo. Por isso, o conto é a centelha inicial, nós transpomos isso para o contemporâneo, que traz outros tipos de sensação. Daí o quadro quadrado. A solidão de espaços largos mostrada em cinemascope não dá conta de estar dentro de uma multidão, na qual se pode sentir o cheiro do outro. O quadrado tem essa potência. MARCELO GOMES Por isso a câmera anda a passo de tartaruga, no ritmo do personagem. Também não tivemos a preocupação de
primeiro corte do seu curta, Da janela do meu quarto. Fiquei impressionado com o filme e começamos a sair, conversar sobre cinema. Havia interesse comum em determinado cinema, filmes e cineastas. Mostrei-lhe o primeiro corte de Cinema..., ele gostou bastante, principalmente do trabalho com os atores. Ele havia acabado de fazer A alma do osso e me falou que era uma trilogia, da qual queria que o terceiro filme fosse uma ficção baseada em Allan Poe. E me convidou, porque não se sentia familiarizado com o mundo da ficção. Em 2007, ganhei uma bolsa do DAAD de residência na Alemanha e, como estava com o roteiro de Era uma vez eu, Verônica e de O homem das multidões, solicitei um auxílio para levar o Cao. É muito bom fazer a estreia mundial em Berlim, sete anos depois.
que fez a fotografia. Estávamos empenhados em saber que filme era esse, quando ele chega ao set, onde tudo se materializa. E foi tudo muito eficiente, graças a esses anos de discussão. CAO GUIMARÃES Muitas vezes uma parceria fica complicada, mas o filme ultrapassou questões e quis existir independente da gente. Ao complementar características minhas e de Marcelo, o filme ganha uma vida paralela às nossas vontades e desejos. Quando ele começou a existir para além de cada um, fiquei satisfeito. Chamei Marcelo porque, além de bom roteirista, é divertido falar com ele. E, cada vez que compartilhávamos o roteiro com as pessoas envolvidas, como o ator, a direção de arte e a de fotografia, percebia que o projeto ganhava novas formas. Isso até o momento da filmagem, quando
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quase abandonamos o roteiro e fomos ver o que essa entidade, o filme, queria dizer. Nesse momento, trocamos de características com o outro, eu estava gostando mais de trabalhar com os atores e Marcelo, com a fotografia. Isso foi rico para o aprendizado de cada um. CONTINENTE A escolha do Grivo (dupla mineira responsável pelo som) e de Ivo Lopes de Araújo (diretor de fotografia, do coletivo cearense Alumbramento) para a equipe tem a ver com essa parceria?
produtor dos meus filmes. Nesse caso, isso está mais definido, porque estamos bancando esse filme durante todos esses anos, antes mesmo de chegarem os patrocínios. CONTINENTE Por falar nisso, essa talvez seja a primeira coprodução Minas/ Pernambuco. MARCELO GOMES A REC Produtores foi pioneira na coprodução entre estados. O Brasil é um país continental, precisamos aproveitar essa diversidade. A
no cinema, se usa tão pouco o formato como linguagem, não são feitos filmes redondos, por exemplo, buscando um sentido, para não ficar no maneirismo pelo maneirismo. Assim como você interpreta a inadequação, podese imaginar que o quadrado é a janela de metrô, por onde Juvenal vê o mundo. O interessante é que ele abre uma reflexão sobre formatos, que se adequam ao sentimento dos personagens. Em 1927, Abel Gance fez Napoleon usando
“Os trens remetem a uma relação com Berlim, mas esse filme é sobre solidão no Terceiro Mundo, cuja urbanidade começou há menos tempo. A solidão é universal, mas a solidão berlinense cheira a mofo; a nossa, a suor” Marcelo Gomes CAO GUIMARÃES Sim, foi uma equipe sintonizada, que também é autora do filme. Já conhecia Ivo, de Fortaleza, antes de ele começar a se relacionar com a Teia (produtora mineira da qual fazem parte Helvécio Marins, Clarissa Campolina e Sérgio Borges). Queríamos um diretor de fotografia mais jovem, mais aberto do que alguém engessado à indústria, a equipes grandes. E o Ivo tem noção de direção, deu pitacos, não é à toa que está dirigindo filmes. MARCELO GOMES O Grivo está para o Cao assim como Marquinhos (Marcos Pedroso, diretor de arte) está para o meu trabalho. Ele construiu o apartamento de forma brilhante, foi um encontro muito bacana de pessoas de lugares diferentes. CONTINENTE Vocês também assinam como produtores. MARCELO GOMES Sempre fui
maior parte dos recursos está no eixo Rio-SP, mas as leis estaduais têm facilitado a captação. CAO GUIMARÃES No nosso caso, estabeleceu-se um diálogo entre formas de fazer cinema: João (Vieira Jr., da REC) e Beto (Magalhães, da Cinco em Ponto). Um tinha curiosidade de sair do esquema de grande produção. O outro, de entender o mecanismo de uma produção maior. Nesse sentido, o aprendizado de definir o tamanho do filme foi fundamental para que as coisas fluíssem na hora da filmagem. E isso determinou o resultado, que ficou dialético, no meio termo. CONTINENTE O formato de tela adotado é incomum para os padrões atuais. Ao mesmo tempo, ele traduz a condição do personagem, de estreitamento de horizontes e inadequação. MARCELO GOMES É curioso como,
formatos completamente estranhos, dividindo a tela em três, ousando formas narrativas. Cao, que veio das artes plásticas, compartilha desse pensamento. Queremos convidar o espectador para entrar em um mundo diferente, em que a identificação com os personagens supere o estranhamento. CAO GUIMARÃES Pergunto-me por que o cinema é tão engessado em si mesmo. Por que a indústria tem que reger uma expressão artística, só porque as TVs são 16x9? É preciso pensar ontologicamente a arte cinematográfica. Por que nos acostumamos ao formato “x”? Optamos pelo quadrado sabendo que isso iria estreitar as possibilidades de venda, mas a ousadia é algo fundamental, que o cinema também precisa. É preciso trazer o momento cinematográfico para a contemporaneidade.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
OS CARROCEIROS NA ARTE
HISTÓRIA
Na seção Visuais desta edição, abordamos o trabalho do artista Jonathas Andrade, que busca na Sociologia elementos para propor reflexões sobre o mundo contemporâneo. Na matéria, destaca-se o documentário de ficção O levante, realizado com os carroceiros do Recife. No site, pode-se conferir esse trabalho e ter acesso à matéria de capa de abril de 2012 (nº 136), que trata das contradições que habitam essa metrópole. Vale a pena conferi-los num momento em que a cidade discute a lei que pretende tirar as carroças das ruas, usando como argumento os maus-tratos de animais.
Assista ao vídeo feito no Bairro do Leblon, durante os protestos de junho, comentado na matéria sobre as barricadas, escrita por Marcelo Pedroso.
Conexão
VIAGEM Curta outras imagens do Parque Nacional Chapada dos Veadeiros, no cerrado goianense, considerado um lugar “luminoso”, por conta da presença de cristais.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
LITERATURA
MÚSICA
CULINÁRIA
PROTESTOS
Blog de escritores oferece espaço para o exercício da criação
Rede de mídia global VICE Mag conta com portal sobre música
Blog voltado para quem valoriza uma boa culinária caseira feita com amor
Projeto entrevista participantes das“Jornadas de Junho”
htmlgiant.com/
noisey.vice.com/pt_br/
pitadinha.com/
depoisdejunho.com
Criado em 2008, o HTML Giant é “um blog de literatura que não necessariamente trata de literatura”. Feito por um largo número de jovens colaboradoresautores, configura-se como um espaço livre para o exercício da escrita, sem seguir uma temática específica, trazendo críticas a livros de poesia e ficção, entrevistas com escritores, vídeos diversos, infográficos, diagramas, textos sobre os processos criativos, trechos de livros consagrados e inéditos, ou quaisquer outros assuntos que dialoguem (ao menos tangencialmente) com literatura.
Fundada em 1994, em Montreal (Canadá), e originalmente uma revista impressa focada em arte e cultura, a VICE Magazine expandiu-se e é, atualmente, uma rede de mídia global com foco em jornalismo investigativo e vídeos com “informações esclarecedoras” sobre diversos assuntos, desde política, turismo, esportes, artes, moda, até sexo, drogas e bichos fofinhos. Uma das subdivisões da VICE, o Noisey é o “braço musical” da rede. Com sede em 13 países (incluindo o Brasil), o portal conta com matérias, entrevistas, críticas, resenhas, vídeos, galeria de fotos, podcasts e publicação de mixtapes.
Escrito pela amazonense naturalizada pernambucana Juliana Stelli, que se define como “cozinheira amadora, porque amador é quem faz por amor”, o blog Pitadinha, mais do que publicar fotos de pratos bonitos à moda Instagram, reúne receitas deliciosas ensinadas passo a passo (muitas delas sem lactose e glúten) e dicas voltadas para quem valoriza uma boa culinária caseira. Para facilitar o acesso, o site conta com um índice de receitas, divididas em: acompanhamentos; café da manhã e lanche; comidinhas lights; massas e molhos; muffins e cupcakes; prato principal; sobremesas; sopas, caldos e bebidas.
Depois de Junho é o nome do novo projeto do antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos maiores especialistas em segurança pública e justiça no Brasil. Realizada em parceria com o artista multimídia Tomaz Klotzel, a iniciativa tem como objetivo entrevistar os principais atores das chamadas “Jornadas de Junho”, a onda de protestos que teve início com o Movimento Passe Livre de São Paulo. Três entrevistas já estão disponíveis no site: Bruno Torturra, um dos criadores do Mídia Ninja; Íbis Pereira, coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, e Luiz Carlos Dumontt, do movimento Enraizados.
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blogs FRENESI LITERÁRIO oleitorcomum.blogspot.com.br/
Um espaço para a crônica, a crítica, ou o simples diário de um leitor. Depois de ler Frenesi polissilábico, obra do inglês Nick Hornby – uma compilação de artigos mensais sobre literatura publicados na revista The Believer – o recifense Arthur Tertuliano teve a ideia de lançar um blog para escrever sobre seus livros favoritos e suas últimas leituras.
ANDRÉ BARCINSKI
A BOLA DE CRISTAL DO POP
entretenimento.r7.com/blogs/andrebarcinski/
A Interview Magazine oferece suas edições na íntegra gratuitamente na internet. Ela foi a primeira revista a ter uma verão para Ipad interviewmagazine.com/
Fundada em 1969 por ninguém menos que Andy Warhol e pelo
jornalista inglês John Wilcock, a Interview Magazine é uma publicação norteamericana consagrada por realizar extensas entrevistas não-editadas com personalidades da época – ou editadas conforme a cartilha excêntrica do criador da Pop Art, que buscou imprimir suas influências estéticas no projeto gráfico inovador da publicação. Perto do fim da vida, Warhol foi abandonando o cotidiano da revista, que adquiriu um perfil editorial mais convencional através do editor-executivo Bob Colacello. Depois da morte do “Papa do Pop”, em 1987, a Interview passou por forte crise, e, em 2008, foi repaginada pelo diretor artístico francês Fabien Baron (numa capa icônica com a modelo Kate Moss), com tiragem girando em torno de 230 mil exemplares. Apelidada de “bola de cristal do pop”, a revista foi a primeira publicação a criar uma versão para iPad (a estreia foi exatamente no dia do lançamento do dispositivo da Apple, em 2010), e também publica gratuitamente o conteúdo no site, na íntegra. As entrevistas continuam sendo com personalidades ligadas à moda (seu carro-chefe), celebridades da cultura pop e mentes criativas. OLIVIA DE SOUZA
Autor de Maldito, biografia do cineasta José Mojica Marins (o Zé do Caixão), e diretor do programa O estranho mundo de Zé do Caixão, André Barcinski foi colunista e crítico de cinema na Folha de S.Paulo, na qual alimentou o blog sobre cultura Uma Confraria de Tolos. Seguindo a mesma proposta, desde 2013, Barcinski alimenta outro blog no portal R7.
TOCA O TERROR blogtocaoterror.wordpress.com/
Criado em 2012, o blog Toca o Terror é um verdadeiro repositório de informações do gênero horror, apresentando dicas de filmes, resenhas, indicações de quadrinhos e de livros. Originalmente um podcast semanal, hoje o Toca conta com um cineclube mensal e um grupo de discussão no Facebook, com um largo número de participantes/amantes do gênero.
sites sobre
cartunistas DINÂMICA DE BRUTO
MAGRA DE RUIM
CYNTHIA B.
dinamicadebruto.wordpress.com/
sirlanney.tumblr.com/
cynthiab.com.br/
Com bastante sarcasmo e deboche, Bruno Maron destila seu veneno contra diversos aspectos que rondam o universo da classe média.
O universo feminino e suas complexidades são retratados em aquarela nos quadrinhos autobiográficos da carioca Sirlanney.
Editora da Toscographics Desenhos Animados, Cynthia Bonacossa publica cartuns semanais na Folha de S.Paulo.
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Efrain Almeida
UM CONVITE À INTIMIDADE TEXTO Luciana Veras
Seu nome significa “frutífero” e possui origens bíblicas – consta que seu homônimo era
o segundo filho de José, nascido no Egito. Efrain Almeida de Melo veio ao mundo em uma região tão inóspita quanto o deserto do Saara. “Nasci em 1964, em Boa Viagem, no sertão central do Ceará”, diz. A quantos quilômetros de Fortaleza? “Não sei, só sei que é muito longe”. Diferentemente do Efraim das escrituras sagradas, ele era o caçula dos três filhos de um pai carpinteiro e uma mãe costureira. “Como o lugar em que nasci não tinha oportunidade para nada, a ideia de ser artista não existia porque eu não dimensionava o que era isso. Lá não tem tradição de artesanato. O Cariri é rico em termos de artesanato, mas a região do meio não tem nada”, comenta. O garoto passava o dia desenhando na areia, pois nem papel havia. Criado em uma família católica, reteve, desde cedo, as imagens dos ex-votos acumulados nas igrejas, o que lhe inoculou “mais um sentido crítico do que uma crença”. Aos sete anos, veio a primeira mudança, para um conjunto habitacional na capital cearense. Nas férias, Efrain voltava para o Sertão, onde aprendeu a manusear o barro vermelho, usado pelo avô para fazer utensílios domésticos. “Quando voltei, descobri que tinha do mesmo barro no quintal do conjunto. Foi uma sensação de descoberta ver que era possível fazer formas com aquele material”, relembra. A surpresa da mãe ao constatar o passatempo dele talvez seja uma das chaves para compreender o universo fantástico e singular que hoje caracteriza sua obra. Porque, quando ela dizia “de onde você tirou isso?” e ele respondia “da minha imaginação”,
Página anterior e nestas páginas 1-2 RECORRÊNCIAS
Os pares de olhos e os animais são elementos constantes nos seus trabalhos
3 DIMENSÃO Nas pequenas esculturas, um desafio para o espectador
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o menino mostrava à mãe e a todos a matéria de que era constituído. Sua criatividade inata, sua investigação particular da paisagem ao redor e sua apropriação peculiar das memórias que carrega e reutiliza, todos os elementos perduram, até hoje, nas esculturas e instalações que concebe.
UMBURANA
Os cinco anos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, aprofundaram seu conhecimento empírico. Para ingressar no curso, precisou submeter alguns trabalhos a Luiz Aquila, “o pai da geração 80”. Esse segundo deslocamento, do Ceará ao Rio, deu-lhe a certeza necessária. “Eu tinha muitas coisas que guardava num baú que naquela hora passaram a fazer sentido”, rememora. Começou a trabalhar com umburana porque é uma madeira “resistente, perfumada e sobrevive na selva”. É nela que até hoje
talha as microesculturas que cria, sempre em uma dimensão a reter o olhar do espectador. “O autorretrato é quase como um índice para informar que o assunto do meu trabalho sou eu mesmo. É uma obra autorreferente e a forma de indicar isso é a noção de escala, que determina outra relação na hora de fruir a obra. O posicionamento do personagem chega ao imaginário. Ele está desprotegido, pequeno diante da base gigantesca de melancolia e solidão”, explica. A cumplicidade se estabelece para além dos diminutos “Efrains” e se espraia nos animais inventados e nos pares de olhos, dois conjuntos recorrentes. “Minha obra é um convite à troca, à confissão. Eu convido o espectador à intimidade que quase não existe nesse mundo de informação e relações superficiais. Mas tudo é um jogo. Quando você entra num espaço expositivo para observar e é observado, como um espelho a refletir, tem a ideia de inversão de sentidos. Meus autorretratos estão o tempo todo observando os
4 NATUREZA As esculturas figurativas trazem do mundo os detalhes 5-7 TECIDO E MADEIRA Seu trabalho revela delicadeza no trato com esses materiais 6-8 QUINTAL DO IMAGINÁRIO Artista afirma que viu no prosaico o momento mágico
espectadores, com dramaticidade, delicadeza e ambiguidade”, situa. Influências da literatura de cordel, das histórias de assombração sussurradas pela avó, da iconografia católica e do imaginário fantástico do Sertão o marcam, e ele nunca as repele. “Em cada projeto, tento resgatar a primeira sensação de quando entrei numa igreja pela primeira vez e vi aquele quarto de milagres. Que arrebatamento pelo poder de transformação da imagem nas coisas mais cotidianas! A beleza está nesses momentos”, acredita. “Em o Quintal do imaginário, imaginei 32 pintinhos, como se estivessem numa cena cotidiana, dispostos em tablado de madeira, num momento mágico. Olhar para aquilo de certa forma me modificou”, afirma. Eis o sublime, segundo Efrain Almeida.
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OS BONS PARCEIROS O Lobo de Wall Street é o quinto filme de Martin Scorsese com Leonardo DiCaprio como protagonista. O mais curioso é que essa parceria começou a partir de uma dica de Robert De Niro, até então, o principal ator fetiche do cineasta americano, que protagonizou oito de seus 23 longas-metragens, incluindo os clássicos Touro indomável, Táxi driver e Os bons companheiros. De Niro havia gostado da performance do jovem ator em dois trabalhos, Gilbert Grape e O despertar de um homem (ambos de 1993), no qual interpretou seu padrasto cruel. Só não sabemos se DiCaprio conseguirá bater o recorde de De Niro, pois Scorsese anunciou que sua aposentadoria está bem próxima. A propósito, uma notícia melancólica para seus fãs. (Débora Nascimento)
Reserva de mercado baiano A velha piada “A Bahia é um estado disfarçado de gravadora” ainda não deu sinais de cansaço. Para o turista que chega à sua capital, Salvador, é bem clara a “reserva de mercado” que paira no lugar: escuta-se música baiana em todo lugar. E não somente o que nós costumamos chamar de “música baiana”, a axé music, mas aquela composta/interpretada por baianos. Nos hotéis, nos táxis, nos restaurantes, nas lojas, nos bares, nas praças de alimentação dos shoppings, podem ser ouvidas canções desse pessoal. Chamar de reserva de mercado, claro, é um exagero, afinal de contas, a Bahia é responsável por gerar alguns dos maiores artistas do país, como Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Raul Seixas, João Gilberto, Tom Zé, Pepeu Gomes, Moraes Moreira... Mas um dos seus melhores instrumentistas, Armandinho (na foto acima), andou reclamando da plateia baiana: “O público, principalmente os mais novos, não possui uma relação com os primeiros artistas que fizeram a música baiana ser reconhecida em todo o Brasil e também no exterior”. Não é necessário ser expert no assunto para supor que esses ouvintes preferem a música “pra pular” de nomes como Ivete Sangalo, que toca nos trios elétricos. Ironicamente, esse tipo de música foi gerada a partir do som eletrificado surgido com o primeiro trio elétrico do país, o de Dodô e Osmar, ao qual Armandinho se juntou depois. A ideia do veículo que emite a música tocada ao vivo surgiu no início dos anos 1950, após a passagem do Clube Vassourinhas nas terras do Senhor do Bonfim. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“Se você tem medo da solidão, não se case.”
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Uma ideia leva à outra. No mundo extremamente tecnológico em que vivemos, essa máxima ganha cada vez mais sentido. Sabe aquele aplicativo chamado Shazam, com o qual se pode descobrir à qual artista pertence tal música que se possa ouvir por aí? Pois bem, a polícia alemã utilizou o conceito do app para criar um novo, que rastreará canções com teor nazista e/ou racista. Só no ano passado, foram identificadas 79 composições com esse tipo de conteúdo. Acredita-se que a música seja uma forma fácil dos grupos extremistas cooptarem jovens. Com esse tipo de ação, o governo tenta impedir que erros do passado se repitam. Afinal, não se pode apagar da memória o massacre de seis milhões de pessoas pelos alemães. (DN)
Anton Tchekov, escritor russo
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ARQUIVO
DE PEITO ABERTO O maior desrespeito. Pelo menos para meio mundo de peitólatras, curiosos e peiticas em geral que se aglomeraram na praia de Ipanema, dia 21 de dezembro passado, para o toplessaço, evento convocado pelo Facebook. Mais de 8 mil amigas do peito confirmaram a presença, mas, na hora H, foram apenas umas gatas pingadas, entre elas, a produtora de cinema Ana Paula Nogueira, 34 anos. Quando chegou ao “peitódromo”, tinha mesmo era uma tuia de repórteres e fotógrafos de jornais e TVs – e só ela lá, de peito aberto. Aproveitou bem seu quinhão de fama à Andy Warhol e tirou e botou blusa, tirou e botou echarpe, tirou e virou... Parecia que a patuleia nunca tinha visto um par de peitos na vida. Agora, me digam quanto querem de aposta que ela sairá numa próxima edição da Playboy? (Luiz Arrais)
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Já em Nova York, um grupo de mulheres adeptas da leitura a céu aberto, sem a parte de cima da roupa, criou um grupo chamado Coed Topless Pulp Fiction, que propõe às suas integrantes a retirada de suas blusas e a leitura e debate de livros em áreas públicas como o Central Park. Lei do estado novaiorquino permite que mulheres deixem troncos nus em qualquer lugar onde homens também podem fazê-lo. Se a lei pega por aqui... (LA)
O holocausto por Hitchcock Em abril de 1945, câmeras cinematográficas inglesas e soviéticas acompanharam a libertação de campos de concentração nazistas. O amigo e patrão do cineasta Alfred Hitchcock, Sidney Bernstein, o incumbiu de realizar um documentário sobre o holocausto, usando as imagens militares. O filme resultante é tão perturbador, que raramente foi assistido, e chegou a ser considerado, durante muito tempo, uma lenda. Hitchcock orientou cinegrafistas que viriam a documentar a libertação de alguns dos campos de concentração a fazerem tomadas longas, panorâmicas e em movimento, para evitar acusações posteriores de manipulação das imagens. O roteiro ficou a cargo de Richard Crossman e do jornalista Colin Wills, que construíram uma narração baseada em depoimentos de sobreviventes. Ao todo, foram usadas imagens de 11 campos de concentração. O trabalho foi desgastante para o diretor e sua equipe, e demorou a ser concluído. Quando terminado, considerou-se que o filme não ajudaria a uma Alemanha em plena reconstrução, e os seis rolos originais foram guardados, sob protestos de Hitchcock e Bernstein, no arquivo do Imperial War Museum, na Inglaterra, onde foram silenciosamente esquecidos até 1985, quando uma versão de baixa qualidade foi exibida no Festival de Berlim. Uma restauração está sendo realizada pela instituição, a ser lançada em 2015, em comemoração aos 70 anos do fim da II Guerra Mundial. YELLOW
IRMÃS E RIVAIS ATÉ A MORTE Joan Fontaine morreu em dezembro, aos 96 anos, e com ela se foi a maior rivalidade fraternal do cinema. Por décadas, ela e a irmã Olivia de Havilland eram intriga pura. Mais velha, Olivia já estrelara E o vento levou, quando topou com Joan (que usava o sobrenome do padrasto) na categoria de melhor atriz em 1942 (foto). A caçula levou o Oscar por Suspeita, de Alfred Hitchcock, a outra se enciumou e as duas se afastaram. Detalhe: depois, Olivia ganharia por Só resta uma lágrima e A herdeira. Na morte da mãe, a primogênita nem telefonou. “Não lembro nenhum gesto de bondade dela”, resumia Joan. Olivia, 97, ainda vive, talvez mais triste sem a nêmesis predileta. (LV)
MINHA RELIGIÃO, MINHA VIDA Elisabeth Moss não é famosa como Tom Cruise, mas a Peggy Olson do seriado Mad men é atuante na defesa da Cientologia. Adepta da religião criada por L. Ron Hubbard, ela se diz “uma versão melhor de si mesma” graças à polêmica seita, intimamente ligada a Hollywood. Os fãs toleram, mas comenta-se que o ex-marido, o comediante Fred Armisen, pediu o divórcio ante tamanha devoção. (Luciana Veras)
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AMOR
OS AMANTES, OBRA DE RENÉ MAGRITTE (1928)/REPRODUÇÃO
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Tradição romântica, alimentada através dos séculos, mantém o discurso amoroso embalado para satisfazer o desejo de consumo frenético dos “tempos líquidos” TEXTO Fábio Lucas
O coração na cultura
Se você aproximar as palmas das
mãos, juntando e colando os dedos umas das outras em sua extensão com os correspondentes, como num espelho, certamente fará brotar em sua mente um pensamento místico. A posição milenar das mãos unidas para a prece pode trazer ainda uma emoção de pertencimento a algo maior, ao universo, como pregaram os líderes espirituais e como repetem os seus seguidores. Aproveitando as mãos nessa postura e deslizando suavemente os dedos de forma a entrelaçar cada um ao vizinho, dobrando-os, evocará talvez a imagem mental da submissão a uma ordem ou um ser superior, criador da ordem e da desordem terrenas. E até poderá se flagrar remetendo-lhe algum pedido, quem sabe uma promessa. Agora, lembre-se da última vez em que deu as mãos a alguém por quem estava apaixonado. Tanto o roçar das palmas quanto o entrelace dos dedos podem igualmente ter levado você a experimentar uma espécie de emoção que considerou rara, associada ao amor descoberto e correspondido. A emoção de quem agradece a sorte do encontro talvez o tenha invadido, acompanhada de descargas químicas produzidas pelo seu corpo, e de pensamentos de completude, descolamento do tempo e intenso bem-estar que você passa a associar àquela pessoa. Em nenhum dos dois casos acima mencionados você duvida do que sente. Ou chega a pensar no papel da cultura, acumulada durante séculos, nos gestos que antecipam ou acompanham o sentimento. É difícil não acreditar nas próprias reações: o ceticismo não vem com o DNA. Costumamos não suspeitar daquilo considerado alheio ao âmbito racional. Mas, como definiram os próprios românticos, poucos séculos atrás, a razão não se limita ao racional – existe uma razão sensível, cuja potência não deve ser desprezada como guia de nossas vidas. A natureza e a arte seriam fontes de tal fluxo. Depois dos românticos, outra espécie de influência foi descortinada: a da razão
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inconsciente, desbravada por Sigmund Freud e, desde então, explorada pela psicanálise a fim de investigar o comportamento humano. Para essa teoria, é a cultura a raiz de quase tudo o que sentimos, de fervorosas manifestações religiosas a febris declarações de amor. O romantismo amoroso, do ponto de vista psicanalítico, seria uma espécie de messianismo, em que o indivíduo a que damos as mãos encarna, à perfeição, ideais radicados na cultura e forjados nas nossas particulares expectativas. Ou seja, na paixão, criamos deuses e deusas. Sem desconfiar do panteão cultural de onde vêm as nossas divindades. Se alguém disser que sabe o que é o amor, mente, ou se ilude mais do que se estivesse possuído de corrosiva paixão. O amor é do reino do inefável, ao alcance imperfeito dos sentidos, com tradução tosca pelo palavreado da razão. Pelo menos, essa é a opinião de um romântico. Há românticos ilustres com outra opinião, como o autor do clássico romance Em busca do tempo perdido, Marcel Proust, para quem o conhecimento da natureza do amor só é possível quando não se ama. Amar e discernir no meio da tormenta da paixão, para ele, é tarefa impossível. Se amamos, não nos interessa saber, já que o amor não pede explicação – substitui toda ela, encolhendo o mundo ao redor do ser amado. O pensamento é dominado pelo amor, e assim, o amor escapa ao domínio do pensamento. A falta de um entendimento evidente e comum não tem, contudo, impedido o romantismo de espalhar seu ideal máximo de felicidade. A necessidade do amor para a realização pessoal é a premissa da visão romântica do mundo, responsável por um legado simbólico resistente e que se multiplica como o mais famoso preceito bíblico. Nas últimas décadas, graças à ampliação do alcance da produção cultural, o amor está no ar de forma epidêmica: na mídia, no desejo de consumo, nas prateleiras, no calendário, nos bares, na moda, na TV, nas redes sociais, na música, na literatura, no cinema. E na mente de cada um parece ter sido depositada a noção de que
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Para a psicanálise, a cultura é a raiz de quase tudo que sentimos, de manifestações religiosas a declarações de amor sem aquele amor arquetípico, de vitrine, do comercial de shopping, a própria vida não vale a pena. Como a felicidade não chega porque o consumo do desejo não cessa, vai faltando sentido para muita gente, cada vez mais atraída pelos apelos do romantismo amoroso. O círculo se fecha, e não se consegue sair dele.
INVENÇÃO DO FOGO
“Adoro um amor inventado...”, cantou Cazuza. No livro de referência para qualquer um que se interesse pelo tema, Sem fraude nem favor – estudos sobre o amor romântico, Jurandir Freire Costa é taxativo: “O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada,
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trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo”. Linhas adiante, o autor é otimista: para ele, as convicções amorosas podem ser aperfeiçoadas. Na introdução da obra, o psicanalista recorda uma cena de filme para mostrar como a cultura retrata a busca amorosa. Em Terra das sombras, a moral é clara, aponta Jurandir Freire: “Sem amor, estamos amputados de nossa melhor parte. A vida pode até ser mais tranquila e livre de dores, quando não amamos. Mas trata-se de uma paz de cinzas. Nada substitui a felicidade erótica, nada traz o alento do amor-paixão romântico correspondido. Diante dele, tudo empalidece; sem ele, até o que engrandece perde a razão de ser”. E nada impregna mais a contemporaneidade do que
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1 JURANDIR FREIRE DA COSTA
Para o psicanalista, o amor é uma crença que pode ser mantida ou alterada 2 CONTARDO
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“Idealizamos o objeto de amor para perceber se somos amáveis aos olhos dos nossos ideais”
o romantismo amoroso, na exacerbação de cenários dignos de filmes, novelas e anúncios em que o final feliz é o princípio regente de uma perseguição infinda. “A nossa cultura exalta o amor romântico e isso compromete as relações com o mundo”, anota a publicitária Ana Lima. “Vivemos o mundo da busca pelos contos de fadas, a sociedade do inalcançável.” Em um de seus romances, Paisagem com dromedário, Carola Saavedra fala através de uma personagem: “Sentimos apenas o que nos foi dito que era possível sentir, fazemos apenas o que se vislumbra como uma possibilidade”. Deparamo-nos com o confronto entre as demandas abertas e os limites impostos pela mesma herança cultural. Para o professor e pesquisador da Universidade Católica de Salvador, José Menezes, a transmissão de valores enraizados no romantismo é a causa de tudo. De acordo com ele, que ensina no mestrado e no doutorado em Família na Sociedade Contemporânea, o correto é analisar
A cultura contemporânea colabora muito com a reprodução e exaltação do amor romântico romantismos, no plural, tal a variedade de significados que o termo assumiu. “Em sua forma mais elaborada, trata-se do movimento filosófico-cultural que matizou as produções de entre fins do século 18 e todo o século 19. O exemplo mais desenhado é Goethe, que expõe, particularmente em Os sofrimentos do jovem Werther, a aspiração desesperada dos amantes pela completude através da experiência amorosa. Ou, se quisermos, o romantismo expressa a busca dos amantes por uma unidade absoluta na experiência amorosa. Unidade absoluta: os dois sujeitos se tornam um.” A psicanálise lançou um balde de água fria na pretensão romântica.
Freud e Lacan chamaram a emoção de impossível. Em suas Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris expõe a mecânica do problema: “Quando nos apaixonamos por alguém, a coisa funciona assim: nós lhe atribuímos qualidades, dons e aptidões que ele ou ela, eventualmente, não têm; em suma, idealizamos nosso objeto de amor”, define, acrescentando que “idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amáveis aos olhos de nossos próprios ideais”. A cultura se transforma, então, num caldeirão de idealizações, como sugere o professor José Menezes. “Na música popular de todos os países (pensemos o rock, por exemplo), na poesia, nas artes plásticas, no teatro, no romance, essa ideia de identificar o romântico como aquele que adere com suas ventosas amorosas em toda a superfície do outro tem certa correspondência com o desejo de completude absoluta. Quem de nós não conhece a famosa ‘fossa’, ou identifica rapidamente aquilo que vulgarmente se nomeia como ‘dor de corno’? O que essas duas menções aqui apontam? Profundos sentimentos de frustração pela ruptura de uma relação que se esperava ‘eterna’, duradoura, com correspondência e reciprocidade de fidelidade, centralidade na vida etc.” É na celebração de uma projeção idealizada que se fundamentam os produtos culturais de hoje, reconduzindo ao turbilhão de informações em rede o ideário da paixão romântica.
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PAIXÃO Uma bomba explode no peito “Ao se deparar com a coisa mais bonita do mundo: 1. Certifiquese de que ela existe. 2. Observe-a minuciosamente. Pode ser que ela evapore. 3. Ouça a coisa mais bonita do mundo. 4. Deite a coisa mais bonita do mundo sobre a superfície mais confortável do mundo. 5. Ame-a imensamente.” Pela eterna reelaboração cultural, vê-se que o amor é uma espécie de pergunta perfeita, cuja resposta não pode ser suficientemente expressa. Mas a resposta parece óbvia, quando sua personificação surge diante dos olhos. É “a coisa mais bonita do mundo”, como escreve o autor do texto que abre este parágrafo, ator e poeta
Gregório Duvivier, no seu livro Ligue os pontos – poemas de amor e big bang. A paixão provoca ondas no corpo e na mente. Gera intranquilidade, insônia, calores, temores. O sistema límbico trabalha em carga máxima, a tal ponto, que níveis elevados de alguns hormônios, como a ocitocina e a dopamina, caracterizam a ocorrência da paixão. Dentro do corpo há uma explosão causada pela visão ou notícia de repente trazida pelo mundo e à qual não podemos mais mostrar indiferença. Tamanha correnteza emocional, experimentada individualmente, é vista no espelho da cultura sob a luz da perspectiva coletiva. A paixão
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GHOST No filme, o romantismo atravessa a fronteira terrena e se manifesta após a morte
também dá tesão poético. “O meu amor faísca na medula”, confessava Carlos Drummond de Andrade, no primeiro verso do poema Os poderes infernais. E Mia Couto, no romance Antes de nascer o mundo: “Sou o papel que espera pela tua mão, sou a letra que aguarda pelo afago dos teus olhos”. O amor provoca ânsias de expectativa, à espera da consumação, à espreita da liberdade de amar. É também a descoberta fundadora de um estado de espírito, como se não repetisse nenhum padrão. Gaston Bachelard cunhou uma frase inesquecível na sua Psicanálise do fogo: “O amor é um fogo que se descobre, o fogo é um amor que se transmite”.
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Na essência da visão romântica, a loucura e a liberdade se confundem. Nessa indistinção, a necessidade de fazer do ideal realidade, e da realidade algo imutável e eterno, permanece, insuflada pelos mitos de predestinação mútua e do alheamento do tempo cronológico por obra mágica do condão amoroso. Numa cena do filme Ghost: do outro lado da vida, o romantismo atravessa a fronteira da existência terrena e se revela presente até depois da morte. “É impressionante, Molly, o amor que sentimos levamos junto conosco”, garante o protagonista, um fantasma interpretado por Patrick Swayze, à inconsolável viúva vivida por Demi Moore. Já em Vanilla sky, um atormentado Tom Cruise declara ao espectro virtual de Penélope Cruz: “Estou congelado, você está morta... e, mesmo assim, eu te amo”. Em ambos os casos, a tragédia do interrompido, ou não acontecido, que contabiliza vários modelos literários, como o medieval Tristão e Isolda, ou Romeu e Julieta, de Shakespeare, faz do amor ideal, mais uma vez, perfeito: imune à realidade, o sonho pode seguir intacto. No mirante trágico, o amor é “impotente diante da própria potência” – roubando a expressão de Affonso Romano de Sant’Anna. O romantismo faz o amor oscilar entre dois polos absolutos: o destino que forja uma alma gêmea, e a eternidade que sustenta a ilusão de que a condição de turbulência apaixonada não mudará. O sentimento estaria isolado no tempo como um casal se esconde no espaço, numa ilha de dois ocupantes protegida dos perigos e tentações do mundo. A realidade, para o amor, é outra – nova na paixão, inquebrável na duração, inviolável na imaginação.
INCOMPLETUDE
“O amor não precisa começar a partir de nenhum estrondo hormonal, mas de uma sutileza, de uma amarração que nos arremessa para o enigma do outro sexo. Para a psicanálise, o amor é uma construção a partir do encontro com a diferença”, diz a psicanalista lacaniana Bianca Coutinho Dias. “O amor romântico tão alardeado pelo discurso capitalista é um empuxo à completude. O amor,
para a psicanálise, é justamente aquilo que te descompleta, é algo que te faz operar a partir da falta e te coloca em movimento constante.” Nada de encaixe, portanto, de almas separadas, arrancadas de um ser único de origem mitológica, das mil e uma maneiras conclamadas pela cultura todos os dias. “Não existe ninguém que possa completar outro alguém. Essa é uma relação imaginária com o amor. O encontro com o outro se dá nessa construção simbólica a partir da estranheza e da alteridade radical que o outro é”, explica Bianca Dias, que é coordenadora do núcleo de investigação em arte e psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz, em Ribeirão Preto (SP).
“Não existe ninguém que possa completar outro alguém. Essa é uma relação imaginária” Bianca Coutinho Dias O professor da Universidade Católica de Salvador José Menezes recorda um dos mais recorrentes conceitos da atualidade, os “tempos líquidos” de Zygmunt Bauman, em que a velocidade das trocas estimulada pelo consumo torna tudo provisório, inclusive as relações afetivas. “Uma propriedade do estado líquido das coisas é fluir, escorrer, jamais se assentar. Adicione a isso uma sacada de Marx: a contemporaneidade transforma as pessoas em coisas. Ora, vamos nos perguntar o que é o amor. Grosso modo, a literatura especializada tende a dizer que o amor é uma experiência humana mediante a qual eu coloco um outro sujeito no centro de minha existência. Nessa perspectiva, o amado jamais pode ser uma coisa. É, antes, um sujeito, singular, descrito de forma muito singela, mas bem próximo à rosa do Pequeno Príncipe, que ele não troca por qualquer jardim de rosas”, compara Menezes. Enquanto a lógica do mercado ataca a mitologia romântica, ao menos superficialmente, em paralelo, o romantismo cultural
devolve ao mercado cada vez mais apelos e demandas românticas. “Se a experiência de intimidade perde a consistência (porque é fluida, não há projetos, nem interesse pelo que o outro seja, mas pelo que eu projeto nele ou nela), se o outro é objeto e não sujeito, vale então a lei do mercado: circulação de corpos. Não nos encontramos com pessoas, mas com coisas úteis enquanto exploramos sua novidade. Gastou a novidade, adquirem-se outras coisas”, afirma José Menezes. “Queremos que o sentimento da paixão seja eterno, pois a reciprocidade da paixão alimenta a nossa autoestima”, defende a publicitária Ana Lima. “Na verdade, não queremos nos apaixonar, queremos encantar o outro.” Nesse contexto, segundo ela, a propaganda parte da premissa da sedução. Nos comerciais – porque se tem uma coisa que vende é o romantismo –, todos aparecem felizes. “Isso faz com que o público endoide atrás dessa felicidade fabricada”, comenta ela. Quando a paixão acaba, o anticlímax esbarra numa realidade imprevista, desafiando a estabilidade emocional e psíquica de quem acreditou no discurso fabricado. Mas o mau desfecho não precisa ser traumático, ressalva Bianca Dias: assim como uma relação não precisa começar com fogos, também não tem que terminar em melancolia. “Podemos fazer o luto do objeto e aí aprendermos a amar a partir de um ponto outro. Ao contrário da melancolia, o amor pode nos lançar para a vida naquilo que ela tem de terrível e maravilhoso. É um desafio que se situa além dessa paixão romântica e algo infinitamente maior, que vai além do narcisismo e onde dois não fazem um.” A eternidade cara ao romantismo pode ser reelaborada pela verdade do amor vivido. “O amor é uma invenção. Não acaba nunca. Enquanto há desejo e amor ao enigma, ele pode ser reconstruído”, avalia a psicanalista. “Aliás, como dizia Paulo Mendes Campos, ele acaba, mas para recomeçar em outros lugares. É a nossa maior invenção e sem a qual não nos humanizamos. Como cada relação vai se constituir é algo absolutamente singular e que só podemos conhecer no um a um de cada parceria.” FÁBIO LUCAS
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QUEER AS FOLK
Foi o primeiro seriado a tratar, exclusivamente, das relações amorosas do público gay
DESEJOS Amores sólidos Quando algo é muito falado, debatido,
não é porque esteja em excesso: pelo contrário, é porque está em falta. O raciocínio é de Paulo Leminsky e integra o livro Os sentidos da paixão, organizado por Adauto Novaes, que reúne intelectuais que deram um curso de mesmo nome há quase 30 anos, em 1986. Se a paixão estava faltando naquele momento, o que hoje rareia é o amor, zunindo em todas as mensagens, telas e ideais de que se ocupam os amantes nos tempos líquidos. Na correria da troca afetiva e do consumo de corpos, a busca frenética é por amores sólidos. “Os sinais de cansaço pela nossa escolha cultural estão se multiplicando: um percentual significativo de pessoas descobre, no segundo ou no terceiro casamento, poder conviver com o outro como outro, em sua diferença, mesmo que ele ou ela não seja ‘a tampa da panela’”, pondera o professor da Universidade Católica de Salvador José Menezes. “A dinâmica da vida fica mais interessante, se tenho na minha intimidade a companhia de um sujeito (ou na pluriafetividade,
de sujeitos) e não coisas que consumo, como se disponíveis estivessem no supermercado.” Casado há 20 anos com Clarissa Duarte, o museólogo e artista plástico Aluizio Câmara não possui a receita do que para tantos soaria como felicidade. Mas seu depoimento (leia na próxima página) é sintomático de uma busca bem-sucedida, e do cansaço da overdose pseudorromântica. Para a psicóloga Bianca Dias, o que mais sintetiza o amor está numa frase de Jacques-Alain Miller, psicanalista francês, genro de Lacan: “Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amálo, se alcançará uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão – Quem sou eu?”. José Menezes, por sua vez, chama a atenção para as modalidades novas de composições familiares. “Recémcasados que cuidam com extremo zelo dos filhos do companheiro, a ponto de esses preferirem sua madrasta ou padrasto a seu genitor. Casais homossexuais que assumem
o companheiro/companheira como possibilidade de realização e de cumplicidade extrema, a ponto de muitos serem a possibilidade de amparo dos pais velhos, dedicando um tempo de suas vidas aos cuidados dos mesmos. A variedade de possibilidades é infinita.” A psicanálise e o testemunho dos que atravessam o turbilhão dos primeiros anos do século 21 apontam para a impressão de que o amor estereotipado dos mitos românticos pode ter surtido um efeito inverso ao que propõe: ampliando os contornos do modelo ideal, empobreceu a experiência do amor real, transformando a busca numa corrida maluca. Mal é reconhecida, a paixão é logo comparada a imagens caricatas que não permitem o melhor aproveitamento do fogo descoberto. Ocupando o primeiro plano, a fantasia mascara e atrapalha a vivência amorosa – estragando a graça e a própria aura romântica do caminho que se faz de mãos dadas... pois amar se aprende amando, mas não se aprende sozinho... (FL)
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Depoimento
ALUÍSIO CÂMARA OTIMISMO E PRAZER DE UM ROMÂNTICO Longe dos clichês e dos estereótipos que dominam a propaganda romântica nas novelas, nos programas de variedades e nas revistas de comportamento, as relações duradouras desafiam o próprio romantismo. O tempo compartilhado é um tempo de aprendizado constante, sem espaço para simplificações e generalizações. Por isso convidamos um romântico assumido para falar sobre uma paixão que celebrou duas décadas de convivência uma marca distinta no tumulto de laços frouxos de nossa época. “Gosto da ideia de me apaixonar diversas vezes pela mesma pessoa”, diz o museólogo e artista plástico Aluísio Câmara, casado com a arquiteta Clarissa Duarte. “O romantismo, acredito, acontece naturalmente na entrega ao amor, de uma forma ou de outra, expressando-se quando o conhecimento entre o casal atinge a maturidade. São pequenos gestos cotidianos que só quem conhece
bem o outro pode oferecer. O que acontece na fase do namoro é uma caricatura do romantismo, que se populariza em canções melosas e em exacerbações grotescas em nome do amor. A paixão fugaz, o encontro repentino com um encantamento capaz de questionar e provocar uma reflexão sobre o destino pode acontecer a qualquer momento. É um risco da exposição. Baudelaire fala sobre isso no poema A uma passante. Senti isso uma vez num vaporetto, a caminho de Veneza, tanto que, de quando em quando, me lembro daquele olhar que troquei com alguém que só vi naquele momento. Sucumbe mais facilmente quem não tem capacidade de entender o momento e ponderar sobre a vida construída. Gosto da ideia de me apaixonar diversas vezes pela mesma pessoa, porque na verdade não somos mais a mesma pessoa, tal qual a história de Heráclito que fala que um homem não se banha duas vezes no mesmo rio, porque tanto ele quanto o rio não são mais os mesmos... Acho romântico preparar a refeição, escrever um bilhete, trazer uma flor, lembrar as datas importantes, colocar uma música, ser todo ouvidos quando ela precisar falar, fazer uma massagem nos pés quando ela chegar cansada. Cuidar é super-romântico, preocupar-se
com os desejos e com a felicidade do outro é um componente confortante na relação, sem falar da admiração. Também acho a surpresa uma coisa romântica. Mas considero o romântico aquele que se apaixona pelo que faz e sempre se lança sem medo. Gosto da imagem de Ícaro voando ao encontro do Sol, de Van Gogh cortando a orelha, de Cézanne oferecendo suas dramáticas maças e da joie de vivre de Matisse, da felicidade, sobretudo. Fui criado com muito jazz e bossa nova. Casamos ao som de Tom Jobim, porque era 8 de dezembro. No início de nosso namoro, passávamos nossos finais de semana em uma palafita na praia. Era de um tio de Clarissa. Comparava sempre a palafita com a Maison du jouir, de Paul Gauguin. Essa palafita era o nosso Magic Bus, o lugar encantado. Depois veio Paris, quando nos casamos. Não dá pra não levar em consideração que nossa primeira casa, a Chez Câmara, foi montada justamente em Paris. É certo que os quatro anos da velha Lutèce significaram deveras. Mas o romântico é, acima de tudo, um otimista. Alguém capaz de olhar sobre a miserabilidade da vida e enxergar as possibilidades, ver coisas boas. Além de ser um alguém que não contabiliza os obstáculos e o sacrifício para realizar as coisas que poderão dar prazer. Romantismo tem a ver com o prazer. Principalmente com o prazer do outro! Minha relação com Clarissa sempre foi baseada no respeito e na admiração mútua. O amor é o que transforma as vidas e as torna indissociáveis, e a paixão não acaba com o tempo, mas na imagem da chama evocada por Vinicius sabemos que precisa ser alimentada, como todo fogo, para que não apague. Dizia Seu Rômulo Carneiro Leão, filósofo de Maria Farinha, que um homem tem que dar, pelo menos, três carinhos por dia na mulher. Acredito nisso e sigo à risca. Alimento o máximo que posso o meu amor.”
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CON ESPECIAL TI NEN TE
JULIANA LOMBARDI/DIVULGAÇÃO
CASAMENTO O ritual valorizado e a noiva eterna O dia marcante do matrimônio não
perdeu a magia e o encanto com a rotatividade das relações líquidas. Pelo contrário, cada vez mais o evento é eternizado, e ganha toda a pompa. Para celebrar a data, famílias despendem suas economias em celebrações planejadas e vivenciadas em expectativa com um ano ou mais de antecedência. Um exército de prestadores de serviços é convocado para a arrumação das flores, a decoração da igreja e do local da festa, o bufê, a orquestra, o cerimonial... e, claro, fotógrafos e produtoras de vídeo que cuidam da captação de momentos tão esperados e sua edição para inscrição na eternidade. Sem falar no making of do show, em que cada centímetro pisado pelos noivos vira palco, e cada cumprimento, um gesto ensaiado.
Embora o “para sempre” seja cada vez mais relativizado num universo cultural que supervaloriza a troca e enfatiza o gosto da novidade, a festa de casamento talvez seja a maior prova da permanência da tradição romântica. Na era da imagem, as fotos de casamento ganharam tanta importância, que a noiva começa a ser fotografada do instante em que acorda até o flagrante alcoólico dos efeitos da festa. Sem falar nas fotos posadas em cenários externos, em que o romantismo se expõe num teatro de exageros para a degustação do olhar dos outros. A fotógrafa Juliana Lombardi diz que o registro do grande dia é cercado de verdadeira emoção. “É a experiência do ápice, a materialização de um sonho que foi pensado em cada detalhe”,
relata Juliana, que declara ter escutado muitas noivas se sentirem órfãs depois que passa a festa. “Muitas sentem saudade desse período, de vivenciar o seu status e a sua identidade de noiva”, conta. Ou seja, é a mania romântica da idealização transferida do sonho a dois para a caricatura de um – a noiva eterna. Lombardi lembra que as festas de casamento trazem um clima de fechamento, como encontramos nas novelas. “Todo final feliz tem um encontro perfeito, um beijo ou um casamento – e é exatamente nesse ponto em que a novela termina, e nós, espectadores, ficamos sem saber o que veio depois na vida desses casais.” Vem isso mesmo: a vida. Começa a realidade. Longe do sonho arrematado na festa cara, depois do buquê jogado ao alto e dos pombinhos partindo em lua de mel, o romantismo é desafiado a se desdobrar, e ir além da idealização – ou retornar dela. De qualquer modo, a imagem do casamento também é apresentada cheia de estereótipos, para não destoar muito da visão romântica vendida pela cultura. Cansada de ver a exploração do tema na TV, especialmente em programas de entrevistas com casais famosos, juntos há longa data, a psicanalista Bianca Dias postou numa rede social: “As respostas são sempre as mesmas imbecilidades, que nada dizem sobre o maravilhoso e assustador encontro com a diferença. ‘Muito respeito, admiração e fidelidade’ – como se todas as relações tivessem que se encaixar nesse ideal normativo, como se isso garantisse alguma coisa, como se o tempo fosse indicativo de que ali existe amor”, critica. Para ela, o tempo só pode ser comemorado como acontecimento se houve uma reinvenção, senão, não há o que ser celebrado, e, sim, “só o acúmulo de dias sem cor no calendário”. Depois de encerrado o ritual, Juliana Lombardi diz ter contato com os noivos fotografados de duas maneiras: ou sabe da separação poucos anos depois, ou continua sendo chamada para registrar o batizado e aniversários dos filhos. “O interessante é observar que, apesar de o romantismo ser um artigo universal no enredo dos casamentos, o caminho é único para cada casal: há espaço para sonhos e realidades”, comenta a fotógrafa. (FL)
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CONCEITO Amor de filósofo
Há pensadores que projetam as próprias noções sobre verdade, justiça, virtude e mesmo sobre Deus e outras abstrações para explicar este sentimento TEXTO Eduardo César Maia VÊNUS, CUPIDO E SÁTIRO, OBRA DE AGNOLO BRONZINO (1545)/REPRODUÇÃO
Entre as muitas dúvidas existenciais de Riobaldo Tatarana, jagunçopensador protagonista de Grande sertão: veredas, para quem os assuntos humanos eram por demais complexos e “muito misturados”, a autoexplicação do sentimento amoroso era uma de suas questões fundamentais. Conceber o amor univocamente lhe parecia uma impostura, ou ao menos uma impossibilidade. Apesar de preferir ver os “pastos bemdemarcados”, Riobaldo percebe que existem variadas manifestações do desejo e do sentimento que por vezes o acompanha: seus amores – Otacília, Nhorinhá e Diadorim – eram representações concretas do
amor carnal, do amor familiar e do amor sublime. Para Riobaldo, “a flor do amor tem muitos nomes”. Amor – palavra que tão frequentemente (e impunemente!) pronunciamos –, se prestarmos a devida atenção, não apresenta sempre o mesmo sentido em qualquer situação em que a empregamos. Como toda palavra, seu significado depende fundamentalmente do uso, do contexto cultural e vital em que é proferida. Escutamos hoje a palavra “amor” e nos remetemos quase que automaticamente ao ideal do amor romântico: os casais apaixonados, as juras de fidelidade eterna e a instituição do matrimônio
heterossexual e monogâmico. Outros sentidos também podem aparecer: um bem-querer intensificado, o desejo erótico, a admiração, a ternura, o companheirismo, o vínculo familiar etc. É difícil estabelecer, como costumam almejar os teóricos ao lidar com conceitos, uma definição fixa e unívoca. Contudo, a diversidade de usos da palavra amor não precisa ser encarada, necessariamente, como um problema: pode ser vista como uma riqueza da linguagem humana, que busca adequar-se ao espírito de cada época e circunstância. As metáforas amorosas – seja na filosofia ou na linguagem comum – parecem não cessar de
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CON ESPECIAL TI NEN TE EROS Y PSIQUE, DE FRANÇOIS GERARD (1798)/REPRODUÇÃO
gerar significados úteis, sugestivos e esteticamente valiosos. Não é incomum encontrar, se nos restringirmos ao âmbito da filosofia, pensadores que se referem ao amor como um meio de projetar conceitualmente suas próprias noções essencialistas sobre a verdade ideal, a justiça universal, a virtude suprema, e mesmo sobre Deus e muitas outras noções “superiores”. De forma geral, os filósofos têm usado o amor para elaborar construções intelectuais grandiosas e abstratas, que em quase nada se parecem com a maneira com que as pessoas comuns, na linguagem cotidiana, se referem a esse sentimento. As variadas formas com que usamos a palavra “amar” na linguagem natural, por um lado, e a forma teórica – baseada em sistematizações filosóficas –, por outro, acabaram se convertendo em coisas bem diferentes, apesar de não completamente estranhas entre si. Se quisermos apresentar um brevíssimo panorama de como esse conceito foi tratado historicamente no Ocidente, particularmente no âmbito filosófico, é possível, esquematicamente, falar de duas grandes vertentes semânticas, Eros e Ágape, que surgiram e se desenvolveram a partir de duas fontes culturais fundamentais: o pensamento grecolatino da Antiguidade Clássica e a tradição religiosa judaico-cristã. Entre os gregos, os debates em torno do amor priorizaram o viés erótico, num sentido mais dilatado do que o que manejamos hoje em dia: a influência de Eros na afetividade começava nos impulsos instintivos em direção aos corpos belos e acabava num âmbito transcendente, divino. Em Platão, por exemplo, para quem o amor surge da tensão entre abundância e necessidade – o deus Eros é apresentado como filho da riqueza (Poros) e da carência (Penia) – o amor se mostra como desejo em permanente e penosa busca de satisfação. É importante registrar que, ainda entre os gregos, podemos relacionar termos afins como filia, aphrodisia, epithemia, que podem ser traduzidos sem grandes inconvenientes como formas de reconhecer o amor que compreendemos ainda hoje (fraternal, sexual, desejante). Aristóteles, por exemplo, nunca se refere ao amor
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EROS Para Platão, o amor surge da tensão entre abundância e necessidade
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ÁGAPE Depois de ser assimilado pelo cristianismo, seu modelo passa a ser o amor divino, pleno e perfeito
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erótico: prefere discorrer a respeito da superioridade ética da relação de amor entre amigos, entre iguais.
COMPASSIVO
Já a noção de Ágape, que também aparece em textos platônicos, como no arquifamoso O banquete (texto em que muitas outras definições de amor aparecem nas vozes dos diversos personagens do diálogo, provando que a riqueza semântica já existia mesmo na Grécia), teve uma interessante trajetória conceitual após sua assimilação pelo cristianismo. Seu modelo passa a ser o amor divino, pleno e perfeito, outorgado pelo criador aos homens, ainda que estes, imperfeitos e originalmente em pecado, não o
mereçam. A imagem do filho de Deus crucificado, que doa a vida por um amor compassivo e não correspondido à humanidade é a máxima representação dessa linhagem conceitual. É interessante perceber que, já finda a Idade Média, a concepção amorosa de um racionalista como Baruch Espinosa, um dos pensadores fundamentais da modernidade, ainda não se difere muito, em essência, da visão bíblica da Ágape grega: o ato de amor consiste num gesto verdadeiro de empatia, no compartilhamento das “alegrias e tristezas dos outros como se fossem próprias”, assim como aparece em “amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Segundo suas palavras: “Se imaginamos que alguém afeta de alegria
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CRISTO CRUCIFICADO, DE DIEGO VELÁZQUEZ (1632)/REPRODUÇÃO
a coisa que amamos, seremos afetados de amor para ele. Se imaginamos, pelo contrário, que afeta de tristeza, seremos, pelo contrário, afetados também de ódio para ele”. A ética espinosiana se refere ainda a um tipo de amor particular: o amor intelectual a Deus, que se traduz na necessidade humana de buscar o sentido de tudo que o rodeia. O pensamento filosófico mais recente além de, por um lado, seguir considerando o amor a partir de vieses teológicos e metafísicos tradicionais, por outro, apresentou uma inflexão importante: os estudos acerca do fenômeno amoroso passaram a adotar em grande medida pontos de vista psicológicos (emocional) e sociológicos (modo de relação dos
A visão mais comum que temos hoje do amor parece ter origem no amor cortês do medievo, berço do romantismo seres humanos em sociedade). A partir de então algumas questões passaram a ser debatidas reiteradamente. Em primeiro lugar, discutiu-se a validez da consideração da natureza puramente subjetiva do amor em oposição à noção de que o sentimento surge da descoberta de qualidades e valores objetivos no ser amado.
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Outra controvérsia recorrente, sobretudo a partir da psicanálise freudiana, refere-se à ideia de que o amor pode ser explicado simplesmente através de nossa estrutura psicofisiológica (o amor como epifenômeno social do desejo sexual) ou se possui autonomia em relação ao meramente orgânico, quer dizer, se ele transcende uma explicação material por ser irredutível à tal. Outra linha de debate levanta as seguintes premissas, excludentes entre si: ou o amor é resultado de uma cadeia de processos imutáveis, baseados em uma natureza humana universal e estável; ou é fruto das contingências históricas, dos valores circunstanciais que o homem inventa para viver em comunidade – José Ortega y Gasset, por exemplo, afirmava que nossa ideia de amor surgiu num período determinado da história e que de certa maneira é uma “invenção literária”. A visão mais comum que temos hoje a respeito do amor parece ter sua origem nos padrões do amor cortês tardomedieval, berço do ideal romântico. Desde então, muitos pensadores têm pautado suas especulações sobre o fenômeno a partir da perspectiva passional, dentro do enquadramento de uma espécie de antropologia psicológica, tal como acontece em Descartes e Hobbes. Outros, como Rousseau e Schopenhauer (para quem todo amor é amor-próprio), apresentam um ponto de vista crítico, afirmando o caráter irracional das paixões amorosas: o amor como prisão, como armadilha da natureza, operando através dos nossos baixos instintos, para a consecução de seus próprios fins. A diversidade semântica do amor no âmbito filosófico, obviamente, não cessa por aqui. Contudo, parece mais produtivo terminar este texto com uma provocação à filosofia do que com mais definições. Tal variedade de usos e concepções não deveria servir como um alerta no sentido de que a busca teórica por uma significação última, essencialista e definitiva para o amor é um empreendimento estéril? O amor é mais bem-compreendido justamente como o elogio humano da contingência enquanto as teorias sobre o amor são, em sua maioria, a negação justamente dessa contingência, motivada pela ilusão de permanência.
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CON ESPECIAL TI NEN TE TUCA SIQUEIRA/DIVULGAÇÃO
Entervista
JULIETA JACOB UMA QUESTÃO DE ESCOLHA Editora do site Erosdita, a jornalista e educadora sexual Julieta Jacob considera que alguns valores do romantismo estão perdendo força, embora ainda sejam percebidos hoje. Para Julieta, as pessoas estão se dando conta de que é possível alcançar a tão desejada satisfação amorosa e sexual optando por uma relação nada romantizada. Uma das opções que ganha adeptos a cada dia é o poliamor, em que a necessidade da monogamia é descartada, e o casal encara o desafio da maturidade e do desapego sem abrir mão da cumplicidade. CONTINENTE Como a cultura romântica pode ser observada nas relações afetivas contemporâneas? JULIETA JACOB Os ideais românticos são calcados na noção da fusão amorosa, como se nascêssemos incompletos e só alcançássemos a felicidade ao encontrarmos a nossa “cara metade”. Por isso, desde cedo, nós, ocidentais, somos levados a esperar por esse “grande amor” para, então, sermos felizes como nos contos de fadas. O amor romântico sustentase na idealização da pessoa amada e na expectativa de que ela vai suprir
todo o nosso desamparo afetivo (o que não ocorre). Assim, a relação torna-se simbiótica e muitas vezes sufocante, pois à cultura romântica só interessa, por exemplo, a relação monogâmica, e a monogamia pressupõe a exclusividade sexual em todos os aspectos, o que significa dizer que o casal só sentirá desejo um pelo outro e por mais ninguém. O que está mudando nesse cenário é que muitas pessoas estão percebendo que o amor romântico não é uma regra nem deve ser uma imposição, embora ainda seja o ideal predominante na nossa sociedade. É possível se relacionar de outras maneiras, descartando a exclusividade afetivosexual e ampliando a possibilidade para se ter vários parceiros ao mesmo tempo. É apenas uma questão de escolha. CONTINENTE Você acha que as novas gerações são tão românticas quanto seus pais e avós? Ou seriam até mais? JULIETA JACOB Nossos pais e avós são em parte responsáveis por transmitirem os ideais românticos aos mais jovens. Nesse sentido, é possível e lógico que os filhos repliquem os valores que receberam das gerações mais velhas. No entanto, por mais hegemônico que seja o estilo “romantizado”, a sociedade contemporânea já apresenta novas formas de se relacionar que fogem ao modelo tradicional. Não me refiro, é claro, ao fato de dar e receber flores, de jantar à luz de velas e fazer gentilezas, pois isso nada tem de nocivo para um relacionamento e nunca deve sair de moda. Refiro-me à crescente busca por individualidade e ao fato de muitas pessoas se sentirem mais livres para escolher se a monogamia lhes interessa ou não. Antes, não havia escolha. Hoje os casais já encontram abertura para conversar e fazer acordos para se sentirem satisfeitos com sua escolha. CONTINENTE O poliamor é uma tendência que se desprende da tradição romântica? JULIETA JACOB Com certeza, pois o poliamor se diferencia do amor romântico em um aspecto crucial: ele recusa a monogamia como princípio ou necessidade. Nele, o casal faz um acordo no qual é permitido para ambos ter relações afetivas e sexuais com outras pessoas sem que isso signifique uma traição e nem abale a harmonia afetiva. É
algo possível e sabe-se que no Brasil há diversas pessoas que optam por isso. CONTINENTE Isso pode parecer um pouco difícil para a maioria das pessoas, acostumadas a vivências românticas no figurino tradicional. Além disso, não seria a vitória de uma visão que muitas vezes foi considerada machista e traduzida como pura traição? JULIETA JACOB Sem dúvida. Considerando a influência romantizada que recebemos desde que nascemos, o poliamor pode soar como algo impensável e inviável para alguns. Caso esse grupo tenha apenas vivências monogâmicas, não há nada de errado. O importante é que elas saibam que a monogamia é uma escolha. Quanto ao poliamor, sua prática é desafiadora, pois exige maturidade e cumplicidade, além de certo desapego. Discordo que seria a vitória de uma visão machista. No machismo, só o homem tem o “direito” de se relacionar com outras pessoas. O objetivo do poliamor é tentar construir uma relação mais sincera e menos hipócrita. Não existe infidelidade porque não existe exclusividade sexual. E não existe uma vitória masculina porque o acordo é feito de forma igualitária. Sobre o poliamor, na década de 1980, Simone de Beauvoir escreveu, no livro O segundo sexo, que declarar que um homem e uma mulher devem bastar-se de todas as maneiras durante toda a vida é “uma monstruosidade que engendra necessariamente hipocrisia, mentira, hostilidade e infidelidade”. CONTINENTE Como educadora sexual, até que ponto o romantismo se insere na prática educativa? JULIETA JACOB É importante mostrar às crianças, desde cedo, que existem várias formas de amar e ser amado, e que não há hierarquização entre as opções, não há uma melhor e outra pior. A monogamia pode ser tão interessante para alguém quanto a poligamia para outra pessoa. E, para fazer uma escolha consciente, é importante estimular o autoconhecimento, a autonomia, o respeito à individualidade e a capacidade de ficar em paz e feliz mesmo que sozinho. Isso é vital para que as crianças cresçam com a autoestima saudável, prérequisito para não buscarmos no outro, de forma desesperada, a cura de todos os nossos males. FÁBIO LUCAS
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CON TI NEN TE
Perfil
BORIS SCHNAIDERMAN Um tradutor desmedido Nascido em 1917, ano da Revolução Russa, é hoje referido como a pessoa que alçou a tradução do idioma no país do amadorismo ao profissionalismo. Aos 96 anos, radicado em São Paulo, o tradutor mantêm atitude perfeccionista TEXTO E FOTOS Josias Teófilo
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CON TI NEN TE
Perfil
A caminho de completar 100
anos, Boris Schnaiderman mantém a firmeza intelectual e a precisão nas palavras, além do profundo entusiasmo pela tradução, atividade que o ocupou durante décadas, tornando-se a principal referência na tradução dos autores russos no Brasil. Nas palavras de Irineu Franco Perpétuo (que recentemente publicou, pela Editora 34, tradução de Boris para o livro Memórias de um caçador, de Ivan Turguêniev): “Ele é o pai fundador da escola moderna da tradução de literatura russa no Brasil. Num tempo em que as distâncias eram maiores, e que ambos os países viviam regimes ditatoriais, foi fundamental ter um mediador com sua cultura enciclopédica, paixão infatigável, gosto amplo e rigor científico. Graças a ele, demos um salto qualitativo decisivo: do diletantismo disperso ao profissionalismo sistemático. E, graças a seus ensinamentos, essa mudança de paradigma agora parece irreversível. Se hoje a literatura russa ocupa um lugar especial na cultura
"Graças a ele, demos um salto do diletantismo disperso ao profissionalismo sistemático” Irineu Franco Perpétuo brasileira, isso é devido não apenas à qualidade intrínseca da obra, mas ao tipo altamente qualificado de defesa e difusão que ela vem recebendo de Boris e seus seguidores”. O tradutor Paulo Bezerra, autor da tradução de Crime e castigo, publicada também pela 34, refere-se a Boris como “herói fundador no campo da literatura russa”. Mas Schnaiderman, para além das suas realizações e méritos, tomou um vulto mítico, talvez por sua fascinante história. Este senhor simpático, com a voz solene que parece pesar cada palavra, nasceu em 1917, ano da Revolução Russa, na cidade de Uman, na Ucrânia, e logo foi morar em Odessa. Lá, aos 8 anos de idade,
viu ser registrada uma das cenas mais famosas do cinema: a da escadaria de Odessa, do filme O encouraçado Potemkin, de Serguei Eiseinstein. É que ele morava em frente à escadaria, e costumava brincar livremente no local onde foi filmada a cena ontológica. Em 1925, imigrou para o Brasil. “Naquela época, quem queria emigrar não tinha muita escolha. Não era fácil conseguir um visto de entrada. Nós conseguimos porque um tio nosso já tinha vindo a São Paulo, estava trabalhando aqui. Meu pai queria sair da Rússia, era comerciante, não se adaptava ao sistema comunista, mas era estranho, porque ele era muito bemrelacionado e nós saímos legalmente, o que era muito raro”, relata Boris. Chegando aqui, teve a oportunidade de assistir no cinema aO encouraçado Potemkin, cuja filmagem ele havia presenciado. Formou-se engenheiro agrônomo em 1940 e, na Segunda Guerra Mundial, lutou ao lado do Brasil na Itália, pela Força Expedicionária Brasileira; perdeu
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vários companheiros e viu a morte de perto, quando o exército americano atacou seu agrupamento por engano. Essa experiência inspirou sua obra de ficção Guerra em surdina (Cosac Naify), resultado de uma elaboração de 16 anos sobre os traumas da guerra.
APURO E AUTONOMIA
Em 1943, ofereceu a várias editoras brasileiras uma tradução diretamente do russo do romance Os irmãos Karamazov, que ele nunca tinha lido. “Se tivesse, não aceitaria de jeito nenhum”, diz ele. Porém, ele atribui um papel importante dessa tradução na sua história: “Traduzir Os irmãos Karamazov foi uma revelação. Eu era novato, não em termos de idade, mas em termos de conhecimento. E, no entanto, foi um acontecimento na minha vida. Eu acabei quase decorando o romance”. Ainda hoje, de tempos em tempos, é possível encontrar essa edição em sebos. Boris, entretanto, a renega. Usou o pseudônimo Solomonov, que é o seu nome patronímico, nessa e em outras traduções, até se sentir seguro.
Nos anos 1940, Boris ofereceu a editoras a tradução de Os irmãos Karamazov, romance que ainda não havia lido Em 1960, foi o primeiro professor de língua e literatura russa da USP, na qual ficou até 1979, e traduziu escritores como Doistoévski, Tolstói, Tchekhov, Gorki, Pasternak, poetas como Pushkin, Maiakovski. Suas traduções ficaram conhecidas pelo apuro e pela autonomia. Na época da ditadura militar brasileira, Schnaiderman chegou a ser preso em sala de aula por sua aproximação com a cultura soviética. Ele esteve na URSS em 1965, 1972 e 1977, mas deplorava o realismo socialista, estética oficial soviética que impunha padrões para todas as manifestações artísticas. Para Boris, “o realismo socialista foi uma deformação
total. Querer que a literatura se encaixe em normas ético-políticas é um absurdo”. Entretanto, ele simpatizava com o comunismo, o que hoje vê como uma contradição: “Era uma contradição completa, eu não aceitava o realismo socialista, mas era a favor do comunismo”. Escritores foram perseguidos por não se adequarem ao realismo socialista, mas, para Boris, a grande literatura subsistiu, com os autores que escreviam, mas não publicavam. O caso mais curioso foi o de Bulgákov, autor de O mestre e a margarida: “Bulgákov é um caso muito estranho, de alucinação mesmo. Ele foi tão atacado, que, no final da vida, queria fazer realismo socialista, queria exaltar Stalin. É a identificação da vítima com o carrasco. E foi um grande escritor que passou anos e anos sem poder publicar nada”. A larga experiência de tradução de Boris Schnaiderman foi resumida num livro, Tradução, ato desmedido, publicado pela editora Perpectiva na sua famosa coleção Debates. No livro, ele trata da importância da autocrítica constante na tradução – Boris, não raro, revisa suas traduções antigas, quando da reedição – “pois é muito fácil resvalar na autoflagelação e no autocompadecimento, e dessa forma incorrer numa das piores formas de exibicionismo”, como ele escreve no livro. Autocrítica constante, sem autoflagelação ou autocompadecimento, são elementos indispensáveis para um tradutor, mas existe também um elemento central para a atividade: a ousadia. “Traduzir é uma ousadia. Quem sou eu para traduzir Dostoiévski? No entanto, é preciso ser feito. Tenho que aplicar toda a minha capacidade e fazer o melhor que posso. Mas é uma ousadia tremenda”, diz Boris, com toda lucidez, aos 96 anos. De aparência frágil, este filho da Revolução Russa, ao receber a Continente no seu apartamento no Bairro de Higienópolis, corrigiu à mão, num exemplar, pequenos erros de edição do seu Tradução, ato desmedido. “Acontece nas melhores editoras”, disse ele. Um gesto incansável da busca pela perfeição.
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CON TI NEN TE#44
Viagem
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VEADEIROS A joia do cerrado Parque Nacional goianense, distante 250km de Brasília, oferece experiência de contato intenso com a natureza, sobretudo com a rica fauna e flora do cerrado, cachoeiras e cânions TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
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Caminhar pelo cerrado brasileiro,
com sua imensa variedade de plantas e animais, é uma experiência que só se completa quando o destino em questão é o pouco conhecido e ainda preservado Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Localizado a 250 quilômetros da capital federal, num dos pontos de maior concentração de energia da América do Sul, o lugar é um santuário natural, de acordo com quem entende do assunto. O fato, comprovado por anos de exploração, é que a chapada está sobre uma gigantesca afloração de cristal e emana uma atmosfera de paz e tranquilidade. Apenas isso foi necessário para que, a partir da década de 1970, o lugar passasse a receber esotéricos de todos os cantos do mundo, transformando a reserva numa espécie de meca do misticismo nacional e fomentando o turismo ecológico numa das áreas menos habitadas do país. Com trilhas que levam o aventureiro por caminhos que lembram as ilustrações oníricas dos contos de fadas, esse parque é um dos menores do Brasil, mas nem por isso deixa a desejar no quesito beleza.
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Viagem Segundo o pesquisador, escritor e terapeuta holístico Ergom Abraham, “a Chapada dos Veadeiros é um local predestinado a ser uma espécie de berço de uma nova raça”. A profecia, vista por alguns como absoluto devaneio místico, é plenamente compreensível quando se visita essa bela região do Brasil Central. Conhecida por suas cachoeiras e cânions, a chapada abriga uma flora com variedade de cores e formas. Criado em 1961, o Parque Nacional protege uma área de mais de 65 mil hectares do cerrado de altitude, revelando diversas formações rochosas, centenas de nascentes e vegetação própria. Área de antigos garimpos, a chapada foi declarada em 2001, pela Unesco, Patrimônio Mundial Natural. Uma extensa área do parque vive permanentemente fechada para visitas, sendo reservada aos estudos científicos.
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Chapada encontrase sobre gigantesca afloração de cristais, daí a sua “luminosidade” e clima de paz
Os roteiros começam fora da área do parque, quase sempre no Raizama, um santuário que resguarda uma das mais belas cachoeiras da região. Com uma trilha de quatro quilômetros (ida e volta), o Raizama inclui vários pontos de parada em que é possível apreciar toda a exuberância da natureza. O primeiro ponto é
chamado de “hidromassagem”, no qual o visitante pode relaxar sentado debaixo de uma pequena queda d’água, formada pelo córrego que, mais na frente, formará a cachoeira do Raizama. A cachoeira, de mais de 60 metros, cai no Rio São Miguel e forma um maravilhoso cânion. Bem perto dali, seguindo o mesmo roteiro do rio, chega-se à Morada do Sol, outro santuário de extrema beleza e que atrai visitantes a cada final de semana. Tanto aqui quanto no Raizama, não é obrigatória a presença de guias, sendo cobrada uma pequena taxa de manutenção da área. Todo o local é bem-sinalizado e as trilhas são bem fáceis, não exigindo preparação física especial para percorrê-las.
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PAISAGEM
Entre as principais atrações do lugar, estão as cachoeiras e corredeiras
2-7 ACERVO
Minerais, fauna e produção artesanal estão em abundância no cerrado
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Depois de recompor as forças em banhos inesquecíveis, é hora de seguir para o Vale da Lua, um dos pontos de maior visitação na região da chapada e que se destaca pela peculiar formação rochosa, fruto do paciente trabalho das águas que há milhões de anos vêm esculpindo o cenário semelhante a esculturas de formas orgânicas. Localizado na Serra da Boa Vista, o Vale da Lua também está fora dos limites do parque e pode ser visitado por uma pequena trilha. O nome vem da aparência do terreno, repleto de crateras, que se transformam em piscinas naturais. Nas curvas em que as corredeiras são mais fortes, ocorrem pequenos redemoinhos, criando um vigoroso movimento de águas. Um
pouco mais abaixo das formações do Vale da Lua, o rio se dilata e forma uma piscina natural com o fundo de areia, ideal para relaxar e aproveitar a paisagem do cerrado. Por ter sido descoberta por hippies, durante a década de 1970, a região acabou desenvolvendo uma forte consciência ecológica, um bom exemplo para outras áreas de preservação do país e assunto corriqueiro nas salas de aula da região. A Chapada dos Veadeiros recebeu esse nome em homenagem aos cachorros que habitavam o cerrado tempos atrás e eram usados pelos caçadores para encurralar os veados na época do garimpo. Hoje em dia, o Parque Nacional preserva uma
grande área onde a caça, felizmente, só é realizada entre as próprias espécies silvestres que habitam a região. Abrangendo os municípios de Alto Paraíso e São Jorge, a chapada é um dos mais bem-preservados parques do Brasil. Suas trilhas contam muito sobre a história geológica dessa região do Brasil. Depois de visitar os roteiros que estão fora do limite do parque, é hora de encarar a trilha que leva ao Salto do Rio Preto. Depois de mais ou menos uma hora de caminhada, chega-se até o mirante de onde é possível apreciar o majestoso cânion do Rio Preto, com suas formações rochosas e o rio, passando lá embaixo. Mas a atração principal está um pouco mais à direita, na alta e imponente Cachoeira dos Veadeiros. São duas quedas, paralelas, que caem de uma altura de 120 metros e formam um belo lago onde, hoje em dia, não é mais possível o acesso dos turistas. Mas, como a trilha é puxada, o visitante não poderia ficar sem um bom mergulho. A uma caminhada leve de 10 minutos, chega-se adiante, onde é permitido o banho. Mas mesmo ali existe um limite, imposto por um cabo de aço. Vale a pena entrar no lago formado pela cachoeira, principalmente por estar emoldurado pela linda queda que, contra a luz da manhã, oferece um vigoroso espetáculo de força. No roteiro de volta, há ainda uma parada para apreciar as Corredeiras, considerado por muitos o melhor banho do parque. O lugar revela dezenas de piscinas naturais, nas quais a água ganha uma coloração vermelha devido às
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CACHOEIRA DOS 80
É uma das quedas d´água onde o banho é permitido
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VALE DA LUA
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FAUNA
O terreno é repleto de crateras, que se transformam em piscinas naturais Animais em risco de extinção, como emas e tamanduás, estão entre as espécies lá encontradas
rochas. É um verdadeiro paraíso, principalmente para quem começou a andar no início da manhã.
CRISTAIS
A formação rochosa do cerrado é uma das mais antigas do planeta. São quartzitos de cristal que remontam ao período em que a região foi literalmente escavada pelos garimpeiros em busca das riquezas escondidas no seu solo. O minério era exportado para o Japão e Inglaterra, para fins industriais. Ainda nas caminhadas, podem ser apreciadas revoadas de papagaios, araras e tucanos. Com sorte, é possível avistar o gavião-carcará, um dos maiores predadores da região e considerada uma das mais belas aves do cerrado brasileiro. A chapada é ainda refúgio para lobos-guarás, raposas e veados campeiros. Animais em risco de extinção, como a capivara, as emas e o tamanduá-bandeira, ainda são encontrados nessa reserva da vida silvestre. Todos os roteiros dentro do parque são coordenados por experientes guias e partem da sede do Ibama, onde um bem-estruturado Centro de Apoio aos
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Visitantes oferece biblioteca, sala para palestras e estacionamento. Às segundas-feiras, o parque fecha para manutenção interna.
BANDEIRANTES
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O minério que, na Chapada dos Veadeiros, parece brotar da terra, já foi objeto de cobiça por parte de milhares de garimpeiros que ali chegavam em busca de enriquecimento. Durante o século 17, nasceram ali as primeiras trilhas, abertas pelos bandeirantes que buscavam ouro e pedras preciosas. Mas foi em 1912 que a região se transformou num tesouro a céu aberto, quando os garimpeiros invadiram a chapada. Contam que, em 1944, viviam na região cerca de dois mil garimpeiros. Com a criação do Parque Nacional, em 1961, o garimpo foi extinto e outro tipo de invasão começou a ocorrer, a dos esotéricos. Dessa vez, no entanto, os desbravadores não buscavam explorar, mas, sim, aproveitar o astral que domina esses ares. A chapada é reconhecida pela Nasa como a região de maior luminosidade do planeta. Isso se deve ao simples fato de o lugar estar situado sobre o maior bloco compacto de cristal do mundo, com 30 quilômetros quadrados. Em Alto Paraíso, cidade-base da chapada, estão instalados mais de 40 grupos místicos, filosóficos e religiosos. Segundo especialistas, o Paralelo 14, que atravessa a lendária cida de de Machu Pichu, no Peru, também passa sobre Alto Paraíso. A chegada de artistas na região trouxe também uma rica produção de peças que hoje atraem os turistas. Pode-se encontrar quase tudo feito com cristal, desde a pedra em seu estado bruto, até delicadas joias trabalhadas pelos artesãos. Outra arte que parece ser uma marca registrada dos Veadeiros é o Filtro dos Sonhos, uma espécie de mandala, criada originalmente pelos índios e que teria o poder de neutralizar as energias negativas. Com sua aura de encanto e um clima que parece colocar o Brasil central no mapa da rota mística mundial, a Chapada dos Veadeiros é um convite ao mais profundo mergulho interior e uma rara oportunidade para fortalecer a nossa íntima conexão com a natureza num cenário, no mínimo, espetacular.
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HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO
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COMUNICAÇÃO
MIDIATIZAÇÃO Papel dos mass media, agora Teóricos buscam entender como a interação possibilitada pelas novas tecnologias está afetando a vida dos sujeitos, tornando diferente suas presenças no mundo, dominadas pela esfera dos negócios e comércio TEXTO Marcelo Robalinho
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De simples transmissora de informação à ambiência significante e influenciadora de outros campos e instituições socioculturais. Assim pode ser descrita a mídia no contexto em que vivemos. Importante na contemporaneidade, a midiatização é um fenômeno que vem sendo mais explorado pelos teóricos da comunicação. Caracterizada por um tipo particular de interação, a partir da inserção das tecnologias nas práticas sociais e institucionais, ela afeta as formas de vida tradicionais e implica diferente modo de presença do sujeito no mundo. Representaria um quarto bios, como defende o professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO–UFRJ) Muniz Sodré, pensando nas formas de existência humana definidas por Aristóteles na Antiguidade Clássica. Para o filósofo grego, a existência era concebida em determinados gêneros qualificativos, os chamados bios, ambientes em que ela se desenrolava. Dentre eles, havia o bios theoretikos, que representava a vida contemplativa e o conhecimento, o bios politikos, que indicava a vida política, e o bios apolaustikos, que era a vida prazerosa e do corpo. “Partindo dessa classificação aristotélica, a midiatização pode ser pensada como um quarto âmbito existencial em que predomina a esfera dos negócios e do comércio”, aponta. Aristóteles não via a vida dos negócios como um bios específico porque não era possível se atrelar o comércio ao bem e à felicidade desejados pela comunidade na Antiguidade, mas apenas ao lucro, ao contrário do que se dá hoje, explica Sodré. “Reinterpretei o conceito pensando num bios virtual, no qual a mídia seria uma forma de acesso à atual forma de existência, em que a comunicação e a informação deixaram de ser despesas extras do capitalismo financeiro para se tornarem elementos fundamentais na circulação de capitais especulativos e na criação de ideologias para ocultar as consequências sociais desse capitalismo, como o desemprego, se pensarmos na questão do trabalho, por exemplo”, diz. Tendo a internet como elemento potencializador da midiatização, especialmente através das redes sociais (via Facebook e Twitter, sobretudo) e da
convergência digital proporcionada pela junção da internet com meios tradicionais – como o jornal, o rádio e a televisão –, esse processo vem criando um tipo de sociabilidade efetivamente em rede. “A rede tem um sobrevalor ideológico muito grande no espaço urbano, pois traz consigo a ideia de conexão, ligação, organização de coisas diferentes. Daí a importância, hoje, da comunicação, que não significa apenas transmissão de mensagens, mas coesão, laço”, argumenta Muniz Sodré. Segundo ele, a noção de rede não é nova no espaço urbano. “A cidade sempre foi rede: de esgotos, de ruas, de fiações elétricas, assim como foi considerada monumento (ligado à noção de arquitetura, com prédios e edifícios) e máquina (concentração de meios produtivos, fábrica, usina). A sociabilidade em rede gerada pela midiatização exacerba os contatos. Nunca foi tão fácil acessar o outro, nem
A estrutura das cidades sempre foi em rede: de esgotos, de ruas, de fiações elétricas. Pensada como uma máquina se desfazer dos contatos. Basta apagar ou bloquear o outro da rede, enquanto que, nas trocas intersubjetivas, isso não é tão fácil assim. Para fazer um inimigo, custa emocionalmente, tanto quanto para fazer um amigo. Então, essa multiplicação dos contatos, essa aproximação é, na verdade, uma forma de neutralização tecnológica das tensões que existem nas trocas intersubjetivas reais, uma vez que toda relação, todo vínculo humano é tenso, conflitivo, contraditório”, analisa Sodré. Usuário do Facebook há pouco mais de três anos, o carioca Eider Moreira, 60, criou o seu perfil buscando contatos, muitos deles desconhecidos. “Demorei para entrar no Face, assim como para começar a usar o computador. Mas, incentivado por um amigo, decidi entrar na rede. Foi o paraíso para mim. No princípio, eu queria ter muitos amigos, sabendo
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1 MUNIZ SODRÉ Pesquisador aplicou o conceito aristotélico de bios – ou formas de existência humana – para entender a contemporaneidade 2 PROTESTOS Participação popular em redes sociais protagonizou a produção de informação no período
que quem tem poucos não conta com prestígio. Então, comecei a colocar muita gente, às vezes, sem saber de quem se tratava exatamente, mais por afinidade comigo em relação à música e artes em geral. Com o passar do tempo, porém, fui vendo que havia pessoas que não tinham nada a ver comigo, mesmo com interesses em comum. Então, comecei a excluí-las.” Agora, com 467 contatos no seu perfil, Eider reconhece ser um usuário assíduo no Facebook, embora não abra mão do contato pessoal para a criação e a solidificação de uma amizade. “Há pessoas que moram fora do Rio com quem eu mantenho contato permanente até hoje por ter muito a ver comigo, mesmo sem conhecêlas pessoalmente ainda. Com outras, pude desenvolver pessoalmente uma amizade a partir do Face, sobretudo pelo caráter, a lealdade, a sinceridade e a aproximação proporcionada”, diz o administrador de empresas aposentado.
CONEXÃO NAS RUAS
Para Muniz Sodré, a conexão é um elemento poderoso na lógica da midiatização. Ele toma como exemplo as manifestações que ocorreram no Brasil em 2013. “As pessoas entraram num êxtase de conexão nas ruas. Já estavam sideradas pelo êxtase da conexão nas redes sociais,e provaram o do contato coletivo direto, que é diferente. Havia dizeres nos protestos fazendo referência ao fato de as pessoas terem ido das redes sociais para o encontro nas ruas. Algumas delas, como o sociólogo Manuel Castells, interpretaram isso como: ‘O Facebook nos uniu’. Interpretei de outra forma: ‘Nós saímos do Facebook’. Para mim, a rede foi só
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“Essa multiplicação dos contatos é uma forma de neutralização das tensões reais”
meus contatos pela análise e pelo compartilhamento que faziam dos eventos. Eu, que sempre fui ligada ao movimento estudantil no tempo da faculdade, vi novamente a mobilização das pessoas em torno de causas maiores que as suas próprias. Evidentemente, interessei-me em participar das manifestações. E tive Muniz Sodré que aprender também a lidar com os mobilizadora. Foi um meio de conexão. perigos das redes, com os diversos As manifestações de rua não foram perfis e chamadas para eventos falsos. internéticas. Foram uma fricção da Mas, no geral, a virtualidade da rede tensão comunitária de jovens que potencializou as manifestações nas sentiram no corpo a discriminação ruas”, avalia Clarisse. e a indignação frente a uma situação Dentre as principais comunidades social específica”, considera. ligadas ao processo de midiatização, A jornalista cearense Clarisse Muniz Sodré cita os jovens como Cavalcante, 30, foi uma das pessoas um núcleo potencial, bem como mobilizadas pelas redes para participar as mulheres e algumas minorias das passeatas ocorridas no Rio de emergentes, a exemplo dos gays, Janeiro, onde realiza o seu mestrado que a mídia acaba acolhendo. “A atualmente. “As redes tiveram um mídia sempre privilegia os grupos em papel importantíssimo. Era através função do consumo, de quem pode delas que eu me informava sobre os consumir mais. Então, não é qualquer eventos criados a partir das primeiras comunidade, apenas aquelas que manifestações e sobre os próximos apresentam formas de subjetivação passos. Passei a acompanhar pessoas, compatíveis com o mercado e a adicionando algumas delas aos tecnologia”, considera.
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TRANSVERSALIDADE Novas estratégias enunciativas
Atualmente, os meios de comunicação não têm mais a exclusividade no processo de mediação entre instituições e atores sociais
A midiatização não se restringe aos meios de comunicação tradicionais, está presente em todas as organizações sociais. Nesse ambiente atravessado pela mídia, as operações de construção de sentido do real obedecem a protocolos diferenciados em que não há mais uma centralidade dos veículos na mediação entre instituições e atores sociais, mas a transversalidade dos meios, que acarreta uma reconfiguração das próprias práticas do campo jornalístico.
“Os meios não deixam de existir, apenas perdem o status de únicos operadores, fazendo com que a comunicação seja problema de toda a sociedade. Sendo assim, o papel desempenhado antes pelos meios passa a ser desempenhado também por outros atores, sejam indivíduos ou instituições”, afirma o pesquisador Antônio Fausto Neto, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul. Ele toma como exemplo dessa mudança a doença e a morte de dois presidentes
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latino-americanos: Tancredo Neves, no Brasil, em 1985, e Hugo Chávez, na Venezuela, em 2013. No primeiro caso, a situação de saúde de Tancredo é tornada em discurso pelo trabalho do portavoz oficial, o jornalista e político Antônio Britto, que fala em nome do presidente, além dos próprios veículos de comunicação, que se constituem em mediadores entre o hospital e a sociedade. Essa fase é marcada pela centralidade da “sociedade dos meios”, na qual a mídia é protagonista na organização e tematização das questões sobre o presidente, afirma Fausto Neto. “O caso Tancredo se caracteriza por um corpo falado, uma vez que o presidente foi objeto de várias narrativas em circulação pelo porta-voz oficial e outras, escolhidas e disseminadas pelos meios de comunicação”, explica. Já no caso de Chávez, as estratégias de enunciação sobre a saúde do venezuelano ocorrem de forma diferente, algumas acionadas pelo próprio presidente venezuelano ou pelo seu círculo governamental, através do Twitter e de outros dispositivos
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CON COMUNICAÇÃO TI NEN TE 3 ANGELINA JOLIE Anúncio de que se submeteria a dupla mastectomia foi feito pela atriz em artigo no New York Times
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midiáticos. É a fase da “sociedade em vias de midiatização”, na qual as práticas comunicacionais de todos os campos sociais são afetadas, de algum modo, pela lógica midiática. “O hermetismo com que era tratada a saúde de Chávez fez com que o caso fosse levado adiante por meio de vários porta-vozes, que promovem a circulação de informações em diferentes processos discursivos, caracterizando um acontecimento-circulação, ao contrário do acontecimentomediação que marcou o caso Tancredo Neves”, avalia Fausto Neto.
LULA E JOLIE
O professor toma como exemplo o caso do câncer de Lula para demonstrar como o ex-presidente deu visibilidade à sua doença. Em vez de delegar à mídia a função de “fazer saber”, foi o ex-presidente, junto com sua assessoria, que tratou de semantizar inicialmente o tratamento médico e o seu desenrolar, tornando-se, para além de uma simples fonte de notícia dos veículos, um operador de sentido. Um caso recente e bastante emblemático, também para ilustrar as estratégias enunciativas da midiatização, é o da atriz Angelina Jolie. Em abril de 2013, ela resolveu se submeter a uma dupla mastectomia preventiva (remoção dos dois seios) para diminuir as chances de desenvolver um câncer de mama. O anúncio da operação foi feito por ela mesma num artigo escrito para The New York Times. Nele, a atriz fala do falecimento de sua mãe, em 2007, depois de passar 10 anos lutando contra um câncer, e justifica o fato de tornar pública a sua decisão no intuito de incentivar outras mulheres a fazerem o mesmo. “Assim que eu soube qual era a minha condição, decidi ser proativa e minimizar o risco tanto quanto eu
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Lula da Silva e Angelina Jolie tomaram para si a responsabilidade de divulgação de seus estados de saúde
pudesse. (...) Espero que vocês saibam que existem opções”, escreveu na época ao jornal norte-americano. A decisão de tornar pública a sua atitude através de um artigo – um gênero discursivo de opinião – é revelador da sua estratégia de divulgação junto à imprensa. Em vez de convocar uma coletiva para tratar do assunto, como os artistas costumam fazer quando querem divulgar algo sobre sua vida e/ou carreira, Angelina expôs por escrito as razões que a levaram a se submeter a tal cirurgia. No caso dela, a midiatização passaria pelo uso de um espaço no qual os periódicos costumam informar não ter responsabilidade sobre os pontos de vista defendidos pelos autores dos artigos. Nesse sentido,
a atriz teria relativa “autonomia” para discorrer à sua maneira sobre o assunto. Evidentemente, a atitude de Angelina gerou interesse da mídia, sendo capa dos dois principais semanários de informação brasileiros, as revistas Veja e Época. Mesmo com essa mudança nas formas de interação, os especialistas destacam o papel importante dos meios de comunicação tradicionais no processo de midiatização. Por mais que a mídia pareça perder algo do status de saber e difundir primeiro sobre os fatos, é ela ainda a responsável por tornar públicos os acontecimentos para a sociedade, após um trabalho de ressignificação a partir das informações coletadas. A internet é um dos principais veículos nessa maior abertura para o processo de produção e circulação das mensagens.
AUTORREFERÊNCIA
Dentro do fenômeno da midiatização, as próprias práticas midiáticas vêm sendo afetadas, produzindo acontecimentos discursivos híbridos, baseados na própria enunciação,
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Para Charaudeau, o discurso midiatizado assentase em visibilidade, legibilidade, seriedade e emotividade como no caso das atuais estratégias de autorreferencialidade da imprensa que enfatizam mais a operação de produção da notícia que o fato em si. Um exemplo disso, lembra Fausto Neto, foi a ênfase dada pela Rede Globo e pela Rede Bandeirantes na divulgação dos preparativos técnicos para a realização dos debates com os presidenciáveis em 2006 e nos dispositivos televisivos mobilizados para construção e manutenção da midiatização da campanha eleitoral naquele ano. Em 30 de julho de 2006, a Globo publicou no jornal O Estado de S.Paulo o anúncio: “Eu prometo”, informando as características da cobertura que seria realizada. Um dia depois, em 31 de julho, a Bandeirantes publicou
um anúncio semelhante, no mesmo jornal, respondendo à concorrente com os dizeres “Eles prometem, a Band cumpre”. Responsável pelo último debate naquele ano, em 26 de outubro, a Globo ressaltou, ao longo dos telejornais daquele dia, as operações de produção dele em vez da realização do evento em si. Outros espaços jornalísticos, como a coluna Por dentro dO Globo, são exemplos nos quais o produtor (nesse caso, o periódico) se torna parte da notícia, convidando o leitor a saber mais sobre determinados aspectos da produção da mensagem. Característica do jornalismo midiatizado, a autorreferência interfere na forma como os veículos constroem suas narrativas, instituindo diferentes contratos de leitura e complexificando os lugares constituídos por eles. “Cada vez mais, o jornalismo fala para o público de suas próprias operações, enquanto regras privadas de realidade de construção do que, necessariamente, da construção da realidade, produzindo uma espécie de enunciação da enunciação”, avalia Fausto Neto.
DRAMA E FICÇÃO
Sobre a midiatização da ciência, o linguista francês Patrick Charaudeau observa uma mudança importante que pode ser pensada para outras áreas do conhecimento tratadas pela mídia. De uma perspectiva pedagógica do discurso da divulgação, criado para explicar o fato, o contrato instituído pela midiatização é regido pela lógica da credibilidade e, sobretudo, da captação (que dramatiza a informação). “Muitas vezes, a lógica da captação sobressai-se à lógica da credibilidade. A ênfase no dramático seria uma forma de captar a maioria da audiência, ao invés de mostrar o aspecto sério, com base na presunção de que, ao mostrar o demasiadamente sério, perderia a audiência”, diz Charaudeau. “É esse o risco do populismo: apresentar a ciência como uma aventura leva o público a acreditar na ilusão do saber, quando, na realidade, não se explica nada”, diz. No livro La médiatisation de la science (A midiatização da ciência), organizado por Charaudeau, ele aponta quatro exigências relacionadas à organização
enunciativa do discurso da midiatização: visibilidade, legibilidade, seriedade e emotividade. A visibilidade diz respeito à seleção dos assuntos suscetíveis de ter maior impacto imediato na vida das pessoas, podendo ser observado na apresentação iconográfica, bem como nas estratégias de titulação. Já a legibilidade é marcada por duas características específicas: a simplicidade na construção linguística, a fim de tornar o fato mais fácil de ser “digerido”, e a figurabilidade por meio da disposição dos elementos verbo-visuais para uma compreensão mais imediata. A seriedade, por sua vez, joga, em alguns momentos, com os mesmos procedimentos da legibilidade, só que funcionando como argumento de autoridade. Por último, a emotividade busca privilegiar os efeitos afetivos por meio de determinados procedimentos, tais como uma iconografia montada de tal forma, que produza um efeito insólito ou de ameaça, um jogo de títulos e subtítulos dramatizantes. “Hoje, a atenção do outro é a coisa mais cara e isso é muito difícil de obter. Mas desde o início do jornalismo foi assim. Na verdade, o texto jornalístico compete e se esforça para pegar psicologicamente o outro. Assim, não é a melhor argumentação racional que atrai, mas aquela capaz de captar a atenção. Isso vem se tornando cada vez mais intenso, mais forte. Como é que eu capto a sua atenção? Se eu for mais resumido, mais claro, mais simples, mais esquemático e mais atraente em termos do que eu digo”, diz o professor Muniz Sodré. Ele faz uma diferenciação entre o jornalismo impresso, ainda comprometido com a identidade do fato, e o jornalismo eletrônico, que vai perdendo de vista essa referência ao real e entrando na esfera da ficção, necessária para construir essa realidade segunda, que é a da midiatização. “O diferencial da retórica midiática é que, mais do que nunca, ela é pathos, que representa o emocional, e não o logos, que tem a ver com a razão. O importante não é o que se diz, não é a semantização do fato em si. O importante é a conexão. Esse é o êxtase, sobretudo da mídia eletrônica”, ressalta Sodré. MARCELO ROBALINHO
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PIERRE AMBROSE RICHEBOURG/REPRODUÇÃO
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História
PROTESTOS Das barricadas ao Leblon em chamas Essas trincheiras urbanas, que têm na França seu epicentro histórico, são erguidas com amontoado de materiais como fortificações que se erguem sob a urgência de um clamor TEXTO Marcelo Pedroso
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A palavra barricada vem de
barrica, uma espécie muito comum de tonel usado para armazenar líquidos numa época em que a água ainda não abundava nas torneiras das casas. Foi provavelmente o material mais resistente e disponível que os insurgentes do 12 de maio de 1588 encontraram em Paris para se proteger de um inevitável confronto com os forças armadas do rei Henrique III. Vitória das ruas, o monarca teve que fugir da cidade. O episódio, conhecido como Dia das Barricadas, faz parte dos conflitos religiosos entre católicos e protestantes e pode ser visto hoje como uma espécie de marco fundador de uma genealogia das barricadas. Não à toa, o surgimento desse tipo de tática coincide com o fortalecimento das cidades enquanto centros da vida coletiva e produtiva. O mesmo movimento histórico que levou as populações europeias a se organizarem em centros urbanos, buscando formas de otimizar a produção e circulação de mercadorias, nos instantes ainda embrionários do capitalismo. Levou também a novas formas de resistência e ocupação do espaço em situações de conflito. As barricadas funcionam como uma espécie de trincheira urbana – com a diferença de não serem escavadas no solo, mas feitas a partir do amontoamento dos materiais os mais diversos empilhados para formar uma barreira de proteção. São como fortificações contra-hegemônicas, uma engenharia improvisada que se assenta sobre a urgência de um clamor, um protesto, uma revolta. No seu romance Os miseráveis, Victor Hugo registra com fascínio a edificação da monumental barricada de SaintAntoine, em Paris. Uma impensável construção de três andares de altura, que se espalhava por quatro ruas. “De que era feita esta barricada? Das ruínas de três casas de seis andares, demolidas expressamente, disseram uns. Do prodígio de todas as fúrias, disseram outros. (...) Foi a improvisação da ebulição. Olha, este portão! Esta grade! Esta cobertura! Este pedaço de chaminé! Este pote rachado! Tragam tudo, deitem tudo aqui!”, escreveu, situando os acontecimentos durante as revoltas de 1848 em Paris.
Estamos, de fato, na época áurea das barricadas. Trata-se do período entre 1827 e 1851, quando a capital francesa conheceu oito levantes populares de grandes proporções, que transformaram suas ruas em praças de guerra com bloqueios improvisados por todos os lados. Um momento de intensa convulsão política e aspirações revolucionárias. Alguns anos antes, o povo havia passado a navalha na realeza francesa, a Europa inteira estava transtornada pelo furor das guerras napoleônicas e um espectro novo ameaçava a ordem das coisas no continente – o do comunismo.
OS TRÊS GLORIOSOS
De todos esses momentos em que a ordem estabelecida cambaleia e as barricadas tomam as ruas, o mais vibrante foi a Revolução de Julho de 1830, também conhecida como Os Três Gloriosos (Les Trois Glorieuses), por ter acontecido nos dias 27, 28 e 29 daquele mês. Estima-se que nada menos que 4 mil barricadas foram levantadas em Paris, mobilizando milhares de pessoas entre os insurgentes e as forças da ordem. Para termos ideia do que significam 4 mil barricadas numa cidade, basta lembrarmos que, embora num contexto totalmente diferente, o Recife não aguenta hoje um protesto de meia hora com bloqueio de alguma via movimentada da cidade sem que uma insurreição ruidosa de contramanifestantes venha a clamar pela ordem, denunciar o vandalismo do movimento e exigir a imediata restauração do fluxo de veículos na cidade, dentro de uma linha argumentativa da ordem do “não negociamos com terroristas”. Mas na Paris de julho de 1830, pelo menos durante três dias, ninguém passava nas ruas. Nem as bicicletas, nem as carruagens. A luta civil, de caráter republicano, tinha como objetivo depor o monarca Carlos X, à frente de um governo conhecido como Restauração Francesa, movimento monárquico contrarrevolucionário que teve início em 1814 e terminou durante Os Três Gloriosos com a queda do rei. Mais de mil pessoas morreram durante os conflitos, que teve grande impacto no imaginário da época. Atento ao que acontecia nas ruas,
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FOTOS: REPRODUÇÃO
Página anterior 1 COMUNA DE 1871
Empilhamento de paralelepípedos foi estratégia nessa barricada
Nestas páginas 2 PARIS
Rua Saint-Maur, após ataque em junho de 1848
3 MAIO DE 1968 Durante o levante, os carros foram revirados para efeito de bloqueio 4 BRASIL No Leblon, foram os sacos de lixo incendiados que impediram a passagem nas ruas
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CON TI NEN TE
História
Eugène Delacroix pintou sua mais famosa tela, A liberdade guiando o povo (1830). Em carta ao irmão, disse estar se dedicando a um tema moderno – a barricada. “Mesmo que eu não tenha lutado pela liberdade do meu país, pelo menos pinto-a.” A resposta à tamanha agitação nas ruas não tardou a vir sob a forma de medidas urbanísticas que visavam a, entre outras coisas, neutralizar a possibilidade do povo de se amotinar nos espaços públicos. Estreitas e sinuosas, as vias da Paris de então facilitavam um rápido empilhamento de materiais a partir de um mutirão de mãos ágeis e obstinadas que, logo em seguida, estariam empunhando as baionetas.
3
A Paris que surgia com o barão de Haussmann, o “artista demolidor”, prefeito da cidade entre 1853 e 1870, precisava se modernizar e reagir a tantas intempéries políticas. A cidade foi inteiramente reformatada e vários aspectos da vida coletiva foram levados em conta para se chegar ao atual desenho urbano da capital francesa. Ao erradicar as antigas ruas estreitas e substituí-las pelos portentosos bulevares, o gestor estava atento a medidas sanitárias que dificultariam a proliferação de epidemias (o esgoto deixava de correr a céu aberto e os “miasmas” seriam varridos mais facilmente), assim como à preparação da cidade para a enxurrada de veículos que as
metrópoles passariam a receber no século seguinte. Mas, do ponto de vista da agitação popular, os bulevares se tornavam grandes aliados no combate às barricadas. Primeiro, devido à sua largura, o que demandava uma quantidade de material exponencialmente maior para o fechamento da rua. Isso fazia com que os insurretos levassem muito mais tempo para erigir o bloqueio – o que permitia às forças da ordem chegar a tempo de debelar a construção antes que ela ficasse pronta. E, segundo, porque, com seu traçado retilíneo, os bulevares permitiam que a repressão alvejasse as barricadas de uma distância maior – usando, por exemplo, tiros de canhão. Mas a resposta das barricadas também não tardou. Em 1871, Paris sediou a primeira experiência de um governo operário do mundo. Os communards tomaram o poder a partir da luta civil – e as barricadas entravam novamente em cena. Valendo-se do aprendizado das revoltas anteriores, os militantes buscavam agora outras formas de organização nas ruas da cidade. Em 1866, cinco anos antes da Comuna, Auguste Blanqui publicou Instruções para uma tomada de armas, um programa, segundo o próprio, “puramente militar”, voltado para estratégias de combate de um movimento revolucionário. Em seu texto, Blanqui sugere um esboço de como deve ser erguida uma barricada, abandonando a precariedade improvisada da engenharia guerrilheira empregada nas revoltas da primeira metade do século – que o mesmo vivenciou. O revolucionário francês elege o paralelepípedo como matériaprima por excelência da “fortificação
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passageira”. Em seus cálculos, estabelece que, numa rua com 12 metros de largura, uma barricada ideal deveria se apoiar em 9.186 dessas pedras, que seriam, naturalmente, extraídas da própria via. As imagens – daguerreotipadas – das barricadas da Comuna dão conta do quanto a engenharia sugerida por Blanqui foi absorvida pelos communards. Seu aspecto assemelha-se muito mais a uma fortificação militarizada, com o empilhamento geométrico e planejado dos paralelepípedos, do que o amontoado meio caótico de materiais que caracterizava os bloqueios descritos por Victor Hugo. Passado o ímpeto revolucionário que agitou principalmente a Paris do século 19, barricadas continuaram sendo erguidas em todo o mundo, de diversas formas e nos mais variados movimentos de resistência. A capital francesa, no entanto, continuou sendo um espaço privilegiado para esse tipo de ocupação, como mostram os bloqueios montados pelos partisans, durante a resistência à ocupação nazista, e as barricadas
Contra os motins, foram criados os largos bulevares, que ajudaram a combater as barricadas em seu traçado retilíneo feitas com carros revirados, durante o levante de maio de 1968.
BRASIL, HOJE
No Brasil, os protestos que ocorreram a partir de junho de 2013 adotaram, em alguns momentos, táticas que guardavam familiaridade com a tradição das barricadas. Bloqueios de rua tornaram-se comuns, mais como uma estratégia de interferir na rotina das cidades e chamar a atenção para os problemas do que como forma de proteção contra as forças policiais. O período também marcou ascensão de um tipo de mídia descentralizado, não controlado pelos grandes grupos econômicos, mas organizado em torno de arranjos produtivos
independentes – como é o caso da Mídia Ninja –, tendo a internet como espaço para escoamento do material realizado. Milhares de imagens tomaram as redes testemunhando o que acontecia nas ruas. Uma delas: do Rio de Janeiro, mais precisamente do Bairro do Leblon, Avenida Ataulfo de Paiva. É lá que encontramos uma configuração específica de barricada, vários sacos de lixo espalhados regularmente nos cruzamentos da via, ardendo em chamas. Mais do que como proteção, serviam como bloqueio. Mais do que isso, serviam como gesto. O gesto de uma irrefreável revolta expressa contra uma conjuntura social e política que marca o país: o das barricadas. Diferente de outras imagens dos protestos, essa não treme, sua imagem é 4 de uma estabilidade quase impecável. Trata-se de um planosequência que dura dois minutos e vinte segundos. A câmera flutua por sobre a chamas, faz a varredura de uma rua quase deserta e incendiada. A cidade, pasmem, parece tranquila em meio ao braseiro que tomou a avenida. Há pouquíssimas pessoas na rua, o que contrasta com o ardor do fogo nos cruzamentos, aparentemente aceso há pouco tempo. Onde estão os insurretos, onde está a polícia, onde está o conflito? A imagem não responde, coloca-as num fora de campo para nos deixar numa leve e enigmática suspensão – a suspensão da ordem, a suspensão da razão. Pois, assim como os black blocks, essa imagem não tem rosto, ninguém sabe quem a fez e possivelmente nunca saberá – aí está também a sua força. É uma imagem do estupor. Aquele que tomou todo o Brasil, que nos deixou atônitos, sem entender. As barricadas nos mandavam seu recado e era como se estivéssemos no faubourg de SaintAntoine vendo se erguer o colossal bloqueio de três andares de altura – só que aqui, no coração do Leblon.
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DIVULGAÇÃO
Cardápio 1
TAPIOCA O branco amálgama da cozinha no Brasil
A partir da união de ingredientes banais, como coco, goma de mandioca, sal, fogo – e gestos –, produz-se um dos quitutes mais genuinamente brasileiros TEXTO Eduardo Sena
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Permitam-me uma digressão
pessoal. Dia desses, entrevistando o uberchef francês que institucionalizou a gastronomia no Brasil, o cozinheiro Laurent Suaudeau, questionei qual seria a fonte de sustentação e inovação da gastronomia brasileira. “Acredito que a cozinha do Brasil tem um pilar histórico gestual importante. O gesto faz parte da formação e é tão relevante quanto a técnica. Um exemplo é como fazer uma boa tapioca, que pode ficar ‘borrachuda’. Você tem que deixar a goma aerada, depois de peneirar com cuidado, e pôr aos poucos na frigideira com golpe de vista para evitar que a massa fique muito espessa e crua. Mas quem ensina isso em uma escola? Você vai encontrar em aldeias e ir assimilando gestos ao longo de anos. Isso é um pilar muito grande, a assimilação da relação tátil do cozinheiro com o alimento”, respondeu. Quem sobe ao Alto da Sé, em Olinda, e segue para a praça de alimentação local, depara-se com todo esse gestual descrito por Laurent. Quando o relógio assinala 15h, a brasa do pequeno fogareiro de barro de Dona Tânia já está bem alaranjada. O sol ainda está quente e a quituteira começa a liturgia de preparo da tapioca: soltar o coco fresco raspado, peneirar a goma, abanar o carvão para a labareda subir e pôr a frigideira para esquentar. Os gestos são repetidos à exaustão pela comerciante. Antes disso, porém, na hora da seleção dos produtos na feira, os ritos também são seguidos. O coco seco, por exemplo, é escolhido pelo som que faz quando é balançado na mão. Deve-se ouvir o som da água para assegurar a qualidade para o consumo. E basta um olhar mais cuidadoso para perceber essa individualização dos fazeres como o embrião de linguagens, símbolos e tradições – tripé responsável por constituir a cultura local. E não é demasiado creditar ao talento e à criatividade dessas damas da goma o poder de transformação do espaço público ordinário em um ambiente particular. Talvez, por isso, o Alto da Sé seja a principal referência de quem quer comer uma tapioca na Região Metropolitana do Recife. E nem tanto pelo sabor, que tecnicamente é parelho
ao de vários lugares. Mas por tudo aquilo que a cerca. Atividades simples, que singularizam aquele espaço. “Hoje, a gente tem que trazer tudo pronto. Não podemos mais raspar o coco aqui”, conta Tânia Ferreira, que vende o acepipe há 32 anos, metade de sua idade, referindo-se às novas diretrizes sanitárias da Prefeitura de Olinda, que proíbe também e a fritura de acarajés no local. Mas, falando da vendedora, ela é filha de tapioqueira, portanto, rebento da tapioca. Foi o preparo esbranquiçado, circular e dobrado da goma de mandioca com coco seco fresco ralado com manteiga e queijo, que possibilitou o sustento da cozinheira. Levou adiante a tradição da mãe e criou seus quatro filhos da mesma forma. A receita é secular e brasileira de pai e de mãe. “Era alimento indígena, feito a partir da goma da mandioca produzida por eles. Insumo, aliás, corriqueiro em todo o Norte e Nordeste que, quando levado ao fogo, se transformava em beiju, um tipo de panqueca da terra”, pontua a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti. A tapioca seria, portanto, o beiju recheado. “No princípio, apenas com coco. Depois foi ganhando, aos poucos, toda sorte de ingredientes. Como a massa tem sabor neutro, faz convite a vários temperos”, registra ela. Como a culinária pernambucana, embrião da cozinha brasileira, foi nascendo aos poucos, feita a partir do delicado equilíbrio entre as cozinhas portuguesa, indígena e africana, a tapioca corporifica essa sintaxe étnico-comestível. Segundo Gilberto Freyre, no seu clássico Casa-Grande & Senzala, “na tapioca de coco, chamada molhada, estendida em folha de bananeira africana, polvilhada de canela, temperada com sal, sente-se o amálgama verdadeiramente brasileiro de tradições culinárias: a mandioca indígena, o coco asiático, o sal europeu, confraternizando-se num só e delicioso quitute sobre a mesma cama africana de folha de bananeira”.
TAPIOQUEIRAS
Numa perspectiva comercial, é a tapioqueira quem realiza o ofício tradicional de fazer a tapioca. Nas feiras, nos mercados e em
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FOTOS: LEANDRO LIMA
PASSO A PASSO DA TAPIOCA Preparo e recheios - Em um recipiente, hidrate a goma de mandioca, cobrindo-a com água e espere decantar. Esse processo levará algumas horas. - Retire a água que ficará na superfície, deixando a goma seca. - Quebre a goma e peneire-a. Tempere com sal a gosto. - Aqueça uma frigideira. - Aos poucos vá colocando a goma e fazendo um disco uniforme com uma colher. - Passe o dedo na parte de cima, se a goma não esfarelar, ponha o recheio de preferência. - Vire a tapioca na frigideira para assar o recheio. Desvire e dobre-a. - Sirva, de preferência, quente.
Cardápio
Sugestão para o café da manhã • Queijo cottage + tomate + azeite e sal. • Peito de peru + queijo branco + orégano. • Muçarela light + geleia diet. • Banana aquecida no micro-ondas + canela. • Morango picado + 30 g de chocolate 70% cacau derretido. Sugestão para o almoço ou jantar • Tirinhas de peito de frango grelhado + muçarela light + tomate picado + manjericão fresco + azeite e sal. • Queijo cottage + cubos de peito de peru + salsa picada + azeite + pouco sal. 1
1 ALTO DA SÉ Tânia Ferreira faz e vende tapiocas há mais de 30 anos no local 2 PREPARO Na rua, a tapioca é feita na brasa; nos restaurantes, é preparada no fogão tradicional
muitos outros lugares, lá está ela, realizando as receitas identitárias da região, como também assim faz a baiana vendedora de acarajé, a “tacacazeira”, dispondo seus tacacás em Belém, e outras representantes das cozinhas regionais. Ali, na vista mais bonita de Olinda, são 37 delas, segundo a Associação de
Tapioqueiras da Sé. “A tapioqueira é, sem dúvida, uma grande difusora da comida de coco: a tapioca tem na sua receita tradicional o ingrediente ralado, embora também se faça tapioca apenas com a goma, para ser comida com manteiga que derrete sobre a massa branca”, sublinha o sociólogo Raul Lody. Nesse verdadeiro fast food popular, que é o espaço de alimentação do Alto da Sé, estão as tapiocas secas, mais rápidas de serem feitas e consumidas. Lody lembra que “são preparadas sob o olhar do freguês, e que certamente cada culinarista deixará sua assinatura no sabor, distinguindo-se dessa forma as autorias, como, aliás, acontece com
o acarajé, o abará, a cocada e tantos outros quitutes que nascem de uma habilidade que se pode chamar de mão de cozinha”. No caso da tapioca da Tânia, o segredo, revela ela, está na goma soltinha, pouco úmida. Para quem pede com queijo de coalho, o mesmo não pode se encontrar gelado, uma vez que, em contato com a frigideira quente, soltará água. No fast food tapioqueiro, veem-se muitas interpretações, em especial nos recheios. A massa é a mesma, e o processo também, mas, assim como aconteceu com a pizza, os sabores podem ser os mais diversos. Tem de camarão, charque desfiado, frango, linguiça, chocolate,
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goiabada, doce de leite, banana com canela e queijo de manteiga (cartola). Silvana Araújo, que também desempenha o ofício no Alto da Sé, há 26 anos, vende todas essas versões. Mas confessa que “essa coisa de misturar” é invenção equivocada. “Onde já se viu? Querem defender tanto a autenticidade, o que é típico, e saem fazendo tapioca de tudo. Eu faço, por questão de mercado, se o cliente pedir, preciso ter. Mas no dia que cismarem e proibirem, como proíbem tudo aqui, eu sou a primeira a votar a favor”, depõe.
REFERÊNCIA
Obviamente, não é apenas no Alto da Sé que existe tapioca. A receita é prato de subsistência no café da manhã e na ceia de muitos lares nordestinos. E em muitas das ruas e restaurantes da capital pernambucana, sobretudo aqueles com o rótulo de regional, o acepipe também é vendido. No restaurante Parraxaxá, referência de primeira ordem de comida típica na cidade, que mantém
A massa de sabor neutro, que combina com muitos ingredientes, era originalmente um alimento indígena endereços em Boa Viagem e Casa Forte, a tapioca, junto à carne de sol e o bolo de rolo, está entre os itens mais procurados por turistas. Segundo o proprietário das casas, Bruno Catão, as tapiocas que têm mais saída são as que combinam queijo de coalho e coco, só de coco, ou apenas com queijo. “Nada que fuja muito ao padrão, mas, para reforçar o quesito estética do alimento, temos a bordada: nela, o queijo fica por fora da goma e, depois de assado, ganha um aspecto de renda”, descreve o empresário, que também é cozinheiro. Por mês, são vendidas cerca de 1,3 mil unidades em cada uma das casas. Nas lanchonetes das academias
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de ginástica, ela também é artigo comestível benquisto. Aliás, ganhou o status da nova queridinha do verão porque não contém glúten – a proteína mais odiada dos últimos anos, que colabora para o aumento da inflamação do organismo e da gordura abdominal. Ou seja, é uma boa substituta para o pão branco e, além de tudo, é pouco calórica. Tem cerca de 70 calorias – quando sem recheio. No restaurante Balanceado, da Academia Santé, em Boa Viagem, a mais pedida é a que traz a goma assada com queijo ricota e ervas finas. “Sem dúvidas, o prato é uma opção saudável, quando combinado com recheios e acompanhamentos que seguem a dieta magra. Podem ser acrescentados um ovo mexido, pasta de húmus com páprica e um fio de azeite com orégano. Se preferir um alimento doce, escolha geleia sem adição de açúcar”, recomenda Tamyris Farias, nutricionista responsável pelo espaço, e que sugere as combinações do box da página anterior.
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Claquete 1
ENFOQUE Reincidência do sexo
Filmes da produção atual, como Tatuagem e Azul é a cor mais quente, não apenas mostram cenas explícitas, mas abordam novas formas de desejo
1 UM ESTRANHO... ... no lago, de Alain Guiraudie, aproxima erotismo e morte 2 AZUL É A COR... ... mais quente, de Abdellatif Kechiche, ganhou o Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2013
TEXO Luciana Veras
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Na compilação de textos publicada em 1969 sob o título Essais sur la signification au cinéma (A significação no cinema, no Brasil), o teórico e pesquisador francês Christian Metz (1931-1993) enuncia: “No cinema, muitas vezes, é o dizer que reina soberanamente sobre o dito. Não no sentido muito amplo e inevitável em que sempre e em toda parte ele reina, mas – nesta arte mais que em outras relacionadas com a indústria e a opinião pública – de modo mais cruel, mais doentio”. Um conjunto de filmes lançados em 2013, e distribuídos nas salas brasileiras em uma peculiar concomitância, ampliou o escopo de uma discussão que nunca definha: como o sexo e sua representação são atrelados à linguagem cinematográfica e ao discurso de um autor. Azul é a cor mais quente (La vie de Adèle – Chapitres 1 et 2), do tunisiano Abdellatif Kechiche, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2013, Jovem e bela (Jeune
et jolie), do francês François Ozon, Ninfomaníaca – Volume 1 (Nymphomaniac), do dinamarquês Lars von Trier, Tatuagem, do pernambucano Hilton Lacerda, e Um estranho no lago (L’inconnu du lac), de Alain Guiraudie, evocaram Metz ao angariar prêmios e reações variadas sobre a relação entre o dizer do cinema e seu explícito dito – o desejo, tanto na sua versão heteronormativa como na representação do afeto homoerótico. Provocaram aplausos e vaias, em igual intensidade, os sete minutos de cupidez e explosão entre as duas protagonistas de Azul...; a vontade de se prostituir em Jovem e bela; a compulsão e a angústia que não se saciam em Ninfomaníaca; sexo oral, penetração anal e a aproximação entre Eros e Tânatos em Um estranho...; e o amor escancarado, afetuoso e carnal entre Clécio (Irandhir Santos) e Fininha (Jesuíta Barbosa), de Tatuagem. Não seria este, contudo, um debate esboçado desde os anos 1970, década de O último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, e do O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, e assim de um certo modo anacrônico? Ou seria o caso de indagar como os novos filmes avançam no retrato do sexo e para além da dicotomia erotismo x pornografia? “O cinema é um ótimo instrumento para conversar e pensar sobre sexo, tanto em obras de ficção como em documentários. Todos esses filmes estarem em cartaz, em circuito comercial, implica uma grande mudança, pois não se pode pensar neles como filmes de gueto, e, sim,
como necessários. Uma obra que ganha Cannes não é apenas sobre homossexualidade. Tatuagem é sobre o amor entre dois homens e sobre política, resistência, arte, sobre o Brasil. No entanto, as pessoas ainda se sentem agredidas com alguma situação mais intensa e explícita, como quando a câmera cola na pele daquelas duas meninas. Ou adotam o discurso pesado contra a prostituição em Jovem e bela. Existe um constrangimento em se ver sexo em cinema. E, no Brasil, muita caretice”, argumenta a produtora, roteirista e documentarista paulistana Cláudia Priscilla, cujos curtas-metragens Sexo e claustro (2005), Phedra (2008) e Vestido de Laerte (2012) discorrem sobre gênero, condição feminina e transexualidade. Em uma entrevista concedida ao diretor português João Pedro Rodrigues e publicada na revista Cinema Scope, o cineasta Alain Guiraudie justifica sua opção por radicalizar em Um estranho no lago – que, a despeito de suas sequências sem reserva alguma, é um filme que escapa a rótulos. “Queria fazer um filme romântico, algo entre amor e morte, e mostrar sexualidade, homossexualidade, desejo e amor. Já havia falado de amor antes, mas era ‘amor como amizade’. Aqui, queria falar de ‘amor como paixão’. E sexo é muito importante quando há amor.” Numa prova de que seu discurso se revelou coeso e original, Um estranho no lago foi escolhido o melhor título de 2013 pela “bíblia” francesa Cahiers du Cinema.
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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NINFOMANÍACA Narrativa de Lars von Trier, dividida em dois longas, aborda a patologia sexual
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TATUAGEM Obra de Hilton Lacerda coloca o sexo dentro de uma perspectiva libertária
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O IMPÉRIO DOS SENTIDOS Na década de 1970, obra de Oshima foi considerada pornô por alguns segmentos de público
Doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt com tese sobre o conteúdo afetivo na prática social, o pernambucano Filipe Campello enxerga na arte o potencial de inserir novos discursos de representação do desejo. “Assim, formas afetivas periféricas vão sendo forçadas para dentro do discurso. E isso é interessante no exemplo desses filmes. Não se trata apenas de falar sobre sexo, e, sim, de falar de novas formas de desejo e afeto. Novas não porque inexistiam antes, mas porque agora há uma pressão social em colocá-las no eixo da normalidade. No cinema, isso também é um discurso social. O fato de se transformar numa narrativa cinematográfica faz com que o espectador tenha uma experiência estética. Em Azul e Tatuagem, por exemplo, as cenas de sexo são demoradas, praticamente sem músicas, e numa demonstração do desejo sem apelar. Até a demora tem o sentido de trazer para o discurso da normatividade”, explica.
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ZEITGEIST
À luz da psicanálise, conceitos como exibicionismo e voyeurismo são utilizados até hoje em análises cinematográficas sobre o elo forjado entre obra e espectador. “Na sociedade atual, existe uma tendência voyeurística. Em todo lugar, há a exibição da intimidade. Acho exagero, mas não condeno, é o ato comum. Faz parte da época. A interioridade não existe, não se respeita, não é desejada”, situa a psicanalista e mestre em Literatura Irma Chaves. Ou seja, filmes como esses espelham o que se vê e o que se vive. “Hoje em dia, já não é um problema o diretor abordar o sexo. Se ele for um grande profissional, vai construir um discurso cinematográfico de qualidade, como Tatuagem. Mas há o exibicionismo mesmo, em conluio com a plateia. Isso é muito da nossa cultura atual”, corrobora. Para Filipe Campello, é a ideia de zeitgeist do filósofo alemão Georg Hegel
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Claquete
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Entrevista
JOÃO LUIZ VIEIRA “O CINEMA ATUAL, EM SUA MAIORIA, É MEDROSO” Professor do Departamento de
Cinema e Vídeo da UFF, referência nos estudos sobre a história do cinema e sobre a produção cinematográfica mundial, o crítico e ensaísta carioca João Luiz Vieira é autor de D.W.Griffith and the biograph company (1984), Cinema novo & beyond (EUA, 1998) e Câmera-faca: o cinema de Sérgio Bianchi (Portugal, 2004). À Continente, ele propôs algumas reflexões sobre a representação do sexo no cinema contemporâneo. CONTINENTE Filmes recentes como Azul é a cor mais quente, O estranho no lago, Ninfomaníaca – Volume 1 e Tatuagem, de uma certa forma, reacenderam a discussão sobre sexo como linguagem no cinema. Hoje, os diretores ousam mais ao incorporar o sexo e sua representação à narrativa cinematográfica? JOÃO LUIZ VIEIRA Parece-me que é um fenômeno bem recente, restrito a um circuito de filmes especiais, de circulação mais limitada. Em sua maioria, o cinema contemporâneo é ainda pudico, medroso, que mais promete do que mostra mesmo. As comédias brasileiras, por exemplo, falam muito de sexo – e também, na maioria das vezes, de forma infantilizada, feito piadas de colégio –, mas não mostram nada. Lembro, por exemplo, filmes até sérios, como Bruna Surfistinha, que prometia algo muito diferente do que sua própria publicidade e imagem narrativa anunciavam enganosamente. Deveria ser caso para o Procon. Filmes chapa-branca que, ao final da sessão, fazem com que tenhamos saudade de uma outra época mais liberal até, como acontecia em muitas pornochanchadas, por exemplo, mas não só. Nesse aspecto, Tatuagem é, sim, um filme ousado e corajoso, divisor de águas em nosso cinema,
pois, além da representação mais direta do sexo, é mesmo um marco por aqui ao encená-lo (e muito bem) com pessoas do mesmo sexo. Curiosamente, além da representação sexual mais gráfica, com exceção de Ninfomaníaca I, os outros três filmes citados compartilham dessa conquista. CONTINENTE Em 1976, Império dos sentidos, de Nagisa Oshima, foi considerado “pornô” por causa de algumas sequências, em especial uma ejaculação na boca e a cena em que um ovo é introduzido na vagina da protagonista. Em 2013, quase quatro décadas depois, portanto, o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, Azul é a cor mais quente, chegou a ser descrito com o mesmo adjetivo e taxado de “voyeurístico” por ter sido dirigido por um homem. Mudou o cinema e não mudou a plateia? JOÃO LUIZ VIEIRA Tudo me parece mesmo uma questão de tempo, de
“Esses filmes contribuem, à sua maneira, para o avanço na representação do sexo no cinema” mentalidade, de costumes. E tudo é dinâmico, muda o cinema, mudam as plateias, sempre. A reação de grupos específicos (feministas, jornalistas, críticos, não importa) não representa outras possibilidades de visão. Generalizar, a partir de apenas um grupo, significa cair de novo em dualismos fáceis. Oshima, pelo que fez, está longe do mercado estritamente pornô, pois nunca pertenceu a esse nicho. O que faz um filme voyeurista, em minha opinião, é também uma questão de ponto de vista: olhar pelo buraco da fechadura, espreitar, ter uma personagem em cena que se dedica à essa “perversão”, segundo a psicanálise. Filmes como Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, Dublê de corpo, de Brian de Palma, ou Peeping Tom, da dupla inglesa Powell & Pressburger, estes, sim, adotam narrativamente um ponto de vista voyeurista e o
transformam magistralmente no próprio tema do filme. Azul... é muito diferente. E uma outra questão se coloca: se a direção desse mesmo Azul fosse de uma mulher, o mesmo filme, igualzinho, seria rejeitado por ser pornô ou voyeurista? CONTINENTE Para você, que diretor e filme recentes se sobressaem no uso do sexo como discurso? JOÃO LUIZ VIEIRA Acho que de todos esses quatro filmes em cartaz, simultaneamente, com exceção de Lars von Trier (pelo menos nessa primeira parte de Ninfomaníaca), tanto Abdellatif Kechiche quanto Alain Guiraudie e, especialmente, Hilton Lacerda, os três se sobressaem, cada um à sua maneira, e contribuem para um avanço na representação do sexo no cinema. O dinamarquês me parece ainda preso a uma visão tradicional do sexo como algo negativo, traumático, pesado. Que não é novidade e pautou a obra de outro escandinavo, Ingmar Bergman. Guiraudie, numa chave de inspiração hitchcockiana (incluindo voyeurismo), consegue ainda mostrar prazer (mesmo que associado à morte) e traz planos que enterram, de vez, o cinema dito “pornô”. Kechiche conseguiu o mesmo que Guiraudie e, de forma bastante competente, traduziu em imagens, sons e uma ótima direção de atrizes, algo de difícil representação que é o orgasmo feminino (em oposição ao grafismo da ejaculação masculina, visível, palpável). E Hilton Lacerda me pareceu ainda mais corajoso e ousado, levandose em consideração o contexto e a sociedade na qual trabalha. Claro que são sociedades, culturas, roteiros e intenções bastante diferentes, mas, comparando com o brilhante filme de Ang Lee O segredo de Brokeback Mountain, Tatuagem traz uma visão libertária do sexo, solar, alto astral que tanto Irandhir Santos quanto Jesuíta Barbosa, como excelentes atores que são, conseguiram também transmitir e legitimar no cinema brasileiro, marcando assim um novo ponto de partida.
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INDICAÇÕES DIVULGAÇÃO
COMÉDIA
DRAMA
Dirigido por Noah Baumbach Com Greta Gerwig, Mickey Sumner, Adam Driver Vitrine Filmes
Dirigido por Olivier Assayas Com Clément Métayer, Lola Creton, Félix Armand Imovision
FRANCES HA
DEPOIS DE MAIO
Frances vive em Nova York e estuda em uma companhia de dança, mas não exerce a função que deseja por lá. Sem dinheiro para o aluguel e sem nenhuma intenção de desistir do que gosta, ela segue flanando por sua própria vida, em meio ao caos e à diversão de não saber o que acontece em seguida. Um filme cômico e melancólico, certeiro em seu preto e branco, que grita pelo direito de ignorar a obsessão (e definição) atual de “dar certo e agora”.
A atmosfera de excitação política pós-maio de 68 foi mais uma vez representada de forma delicada no cinema. Inspirado em experiências pessoais, Olivier Ossayas conduz Gilles, protagonista e seu alter ego na tela, pelos desejos distintos de se dedicar por completo às causas sociais e de abrir espaço para seus novos interesses. As mudanças numa Paris setentista se confundem com as revoluções individuais dos personagens, num filme que trata de juventude e política com leveza.
DRAMA
COMÉDIA
Dirigido por Sofia Coppola Com Emma Watson, Taissa Farmiga, Katie Chang Paris Filmes
Dirigido por Quentin Dupieux Com Jack Plotnick, Eric Judor, William Fichtner Imovision
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(1770-1831) que melhor elucida o impacto e a importância desses filmes que o espectador brasileiro teve a sorte de ver em simultaneidade: “Zeitgeist pode ser traduzido como o espírito do tempo. A arte, ao mesmo tempo que apreende aquilo que socialmente já está entrando no discurso, pressiona para ir além. Nunca é fora do seu tempo; revela tudo de uma maneira adiante, na vanguarda. Esse é o grande confronto de opiniões quando alguém vê Azul, Tatuagem ou mesmo Ninfomaníaca, que já entra em uma outra categoria, a do sexo como patologia, mas que é muito mais sobre afeto, sobre angústia e ausência do sentido. As pessoas que saem incomodadas provam que a arte está indo além, ao mesmo tempo expressando o que já é normal, o que
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ÚLTIMO TANGO... ... em Paris, de Bertolucci, trata de romance entre homem maduro e jovem, ambos em crise
outras pessoas já querem ver. O discurso homoafetivo e as novas formas de representar o desejo vão ficar. Quando se força isso, o mundo caminha para assegurar cada vez mais a liberdade individual, para que cada vez mais se possa expressar uma forma de afeto que não seja heteronormativa, e, sim, legítima homoafetiva”. Partindo da concepção hegeliana, que surjam outros filmes inovadores, desafiadores, inclusivos e libertários no retrato do sexo e do desejo. Pois o cinema, como aponta Irma Chaves, “já não é um reflexo da realidade. É a própria realidade”. Nada estanque, portanto.
BLING RING
A obsessão pelo excesso material para suprir vazios internos é o foco da leitura de Sofia Coppola sobre a história real da gangue de adolescentes que invadiu e roubou casas de celebridades em Hollywood. Cheios de vontade de pertencer a esse mundo, os personagens se satisfazem usando as roupas, roubando o dinheiro e se fotografando nas casas de famosos. O fascínio pelo glamour e pela exposição midiática é criticado sem pedagogismos.
WRONG
Numa manhã qualquer, um sujeito comum chamado Dolph Springer acorda e percebe que seu cachorro, Paul, desapareceu. O sumiço repentino daquele que considera o amor de sua vida tem efeito devastador em Dolph, que resolve encontrá-lo. Com chuva dentro de escritório e bombeiros despreocupados, o filme de Quentin Dupiex não tem medo do estranho e do nonsense, e apresenta, com seu jeito peculiar, personagens imersos em negação e passividade.
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Anú
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GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO
FOTOGRAFIA A cena capturada
Os mecanismos usados pelos fotógrafos para expressar elementos materiais, humanos e semânticos que compõem uma montagem teatral TEXTO Pollyanna Diniz
Palco A pesquisa Teatro para crianças no Recife – 60 anos de história no século 20 reuniu mais de 450 imagens – entre fotografias, recortes de jornal, cartazes e anúncios – de espetáculos que subiram aos palcos da capital pernambucana entre 1939 e 1999. “A maior dificuldade foi encontrar informações. Como voltei bastante no tempo, vários diretores, atores, produtores, já faleceram. Então, em muitos momentos, tive que recorrer quase que exclusivamente aos jornais da época”, explica o pesquisador e jornalista Leidson Ferraz. Se, nos primeiros anos cobertos pela pesquisa, os periódicos não publicavam muitas fotos das montagens, depois isso mudou. Mas, ainda assim, nem todas as peças estão registradas em fotografias. “Não temos nenhum resquício de imagem de muitos espetáculos. E são as fotografias que abrem a visão do que foi a cena, que a tornam palpável, que nos fazem perceber não só o trabalho dos atores, mas a cenografia, o figurino, a iluminação”, analisa o pesquisador, mesmo ponderando que nem sempre as imagens são fiéis à encenação. Logo que começou a registrar espetáculos de teatro, João Caldas percebeu a importância histórica
de que fala Leidson Ferraz quanto à fotografia de cena. Engenheiro por formação, trabalhou no Centro Cultural São Paulo, documentando com regularidade a cena paulistana. “Eram muitos espetáculos do circuito comercial e eu também fazia dança. Foi aí que me estabeleci como fotógrafo de palco e aprendi algumas coisas que levo comigo, como fotografar com a presença do público. A energia do espetáculo durante a temporada é completamente diferente”, conta o fotógrafo que, em mais de 30 anos de carreira, já registrou cerca de 800 espetáculos. Uma das referências históricas para João Caldas e muitos outros fotógrafos de artes cênicas é o trabalho de Fredi Kleemann (1924-1974), que, a partir do final dos anos de 1940, registrou as montagens do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “Ele também era ator, pertencia àquele grupo. Então, conhecia muito bem a dinâmica. As suas fotos eram todas posadas, mas pareciam mesmo de cena. Ele preparava a cena para a foto, que mostrava a interpretação, o cenário, os figurinos. A maioria delas, no entanto, era feita com tripé”, diz.
Para Guto Muniz, fotógrafo de Belo Horizonte, uma boa fotografia de cena é aquela que instiga a curiosidade. “Não é a foto que mostra a cena, mas aquela que quer te levar ao espetáculo. Uma foto que é muito retrato da cena talvez seja muito fechada em si mesma”, avalia. Claro que a técnica fotográfica, conhecimento sobre luz, composição, movimento, é importante. Mas o fotógrafo revela que não se atém tão rigorosamente à técnica. “Aceito uma foto que esteja levemente desfocada, desde que tenha a energia do espetáculo, que me dê essa dinâmica. Nos workshops que ministro, percebo que algumas pessoas têm dificuldade em assistir ao que estão fotografando. Exercitam tanto a técnica,
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1 GUTO MUNIZ Trabalho do fotógrafo para a peça Donka - uma carta a Tchekhov, da Companhia Finzi Pasca
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que esquecem o que está acontecendo no palco”, comenta. Guga Melgar, fotógrafo do Rio de Janeiro, com 33 anos de carreira, concorda: “Claro que a técnica importa, mas a emoção me interessa mais. Não adianta ter uma foto perfeita, mas sem expressão, sem o instante certo. Gosto de deixar que o trabalho me guie, gosto de fotografar coisas que ainda não vi”, avalia. Há 27 anos, Guto Muniz acompanha a cena teatral mineira. Em 1987, pediu ao elenco da Cia Sonho e Drama para fotografar Antígona. “Quando cheguei ao laboratório no outro dia e puxei o negativo, percebi que não queria mais parar de fazer isso.” Com o grupo Galpão, o primeiro trabalho oficial foi em 1991, para a montagem de Álbum
de família. “Essa peça foi um marco para o grupo, porque eles estavam acostumados com o teatro na rua. E ali, não, era palco, um texto de Nelson Rodrigues, diferente da vertente mais cômica do grupo”, relembra. Também fez Romeu e Julieta, com direção de Gabriel Villela, provavelmente a peça mais emblemática do grupo. Já Guga Melgar é um dos fotógrafos mais experientes na cena carioca. Fotografa desde os espetáculos mais comerciais até aqueles de grupos, como o Alfândega 88, do diretor Moacir Chaves. “Não tenho preconceitos. Adoro, por exemplo, a turma que faz comédia, Jorge Fernando, Miguel Falabella, Pedro Cardoso. Para mim, o mais complicado é o teatro malfeito,
uma montagem que não tem texto, que não é bem-executada”, diz.
CRIAÇÃO
Uma das discussões sobre a fotografia de cena trata da questão da criação artística. Até que ponto o fotógrafo é um criador, se aquelas cenas foram pré-visualizadas pelo diretor? “A fotografia é o meu olhar e não o do diretor. Esses olhares podem ser até parecidos, mas as relações de cena serão trabalhadas de forma diferente na fotografia. É outra linguagem, que não a da construção do diretor”, avalia Guto Muniz. “A fotografia não é só o disparar. É o que você é, viu, pensa, leu, o que você enxerga do espetáculo a partir de toda a
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JOÃO CALDAS/DIVULGAÇÃO
Palco
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sua experiência de vida. É uma recriação”, comenta Guga Melgar. Para o pernambucano Ivan Alecrim, professor de fotografia, esse novo olhar não pode ser considerado criação. “Você não está criando absolutamente nada. O cenário está montado, a luz. A foto é interpretativa. No teatro, o que você faz é interpretar o objetivo do diretor e transformar num frame. E aí você precisa ter entendimento para escolher qual o instante que representa essa montagem. Se o fotógrafo passar disso, começa a agredir a criação do diretor”, opina. Ele se refere, por exemplo, às interferências que o fotógrafo possa fazer na cena. “Fotografo muito cavalo-marinho, uma realidade bastante específica. Como vou dizer para aquele brincante que a luz não é a ideal para a minha fotografia, se o seu espetáculo acontece com aquela luz de poste?”, pontua. Em condições adequadas, o ideal é que, antes de fazer as imagens, o fotógrafo esteja munido de informações que subsidiem a construção do seu trabalho: é importante o contato com o diretor, com a linha de trabalho do grupo, com a dramaturgia do espetáculo. “Quando é possível acompanhar o processo de montagem, desde as leituras do texto, as imagens finais da peça geralmente são mais ricas de possibilidades e significados”, comenta Guto Muniz.
Para fotógrafos, o trabalho ganha consistência quando há a possibilidade de acompanhar as montagens do início A principal regra de postura profissional do fotógrafo de cena é ser discreto e não atrapalhar o espetáculo. “É uma tríade: passar despercebido, entender os instantes do espetáculo e possuir a técnica”, afirma Ivan Alecrim. Para Bob Souza, fotógrafo que desde 2003 acompanha a cena paulistana, é preciso ter respeito pelo palco. “Esse espaço para mim é sagrado. Não é chegar de qualquer jeito. Talvez seja diferente de um fato jornalístico que está ali, posto. No teatro, você está invadindo um espaço”, comenta. “O respeito é ao trabalho dos outros e à plateia”, complementa João Caldas. Mesmo com as câmeras digitais, sem a limitação das poses do filme das analógicas, esperar o instante certo, a cena se completar, o movimento se realizar, para disparar a câmera, é uma das dicas dos profissionais. “Uma das manias que surgiram com a câmera digital é conferir a imagem depois do
clique. Além de atrapalhar os outros e tirar a concentração do ator por conta da luz, você se distrai e pode perder o próximo momento da cena. Às vezes confiro o foco, mas tento não tirar a câmera do olho”, destaca. O barulho dos cliques também é motivo de incômodo para muitos espectadores e para os próprios atores. Sempre que vai fotografar um espetáculo, Guto Muniz veste preto, tenta se movimentar o mínimo possível e usa um acessório na câmera, como uma bolsa que veste o equipamento, na tentativa de abafar o som. “É preciso escolher uma câmera que seja mais silenciosa, porque cada modelo faz um barulho”, confirma.
ACERVOS E PUBLICAÇÕES
A fotografia digital facilitou a organização do acervo dos fotógrafos. Guga Melgar revela que nunca conseguiu colocar em ordem os negativos que possui. “É uma bagunça! Tentei organizar certa vez, mas isso saiu muito caro. Precisava, por exemplo, de refrigeração adequada”, diz o fotógrafo, que pretende montar uma exposição no ano que vem. Já Guto Muniz, que também é professor e ministrou no mês passado um workshop no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, lançou em 2012 o site Foco in cena (www.focoincena.com.br). “Ficava incomodado com tantas
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BOB SOUSA/DIVULGAÇÃO
IVAN ALECRIM/DIVULGAÇÃO
JOÃO CALDAS Ele acaba de lançar o livro Teatros, em que compila parte do seu trabalho, que inclui fotos para a peça Clara Crocodilo, de 1981
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BOB SOUSA No trabalho com cênicas, elege como destaque os portraits
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IVAN ALECRIM Para ele, a fotografia de teatro não é criação, mas interpretação
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GUGA MELGAR Trabalho para O homem travesseiro. O fotógrafo diz não fazer distinção entre companhias, trahalhando em comerciais e experimentais
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histórias guardadas. O site não é do Guto, mas é um ensaio sobre as artes cênicas. Por isso tem todos os trabalhos, independentemente de eu ter gostado ou não do espetáculo porque, obviamente, fotografei muita coisa ruim”, conta. A tarefa de disponibilizar todo o acervo ainda não foi concluída e o site serve como um banco de dados e pesquisa, já que tenta trazer, além das fotos, a sinopse, a ficha técnica, textos dos programas, vídeos. No ano passado, um dos lançamentos na área de fotografia de artes cênicas foi
o livro Teatros por João Caldas, que reúne imagens, desde 1981, do espetáculo Clara Crocodilo. “Era um espetáculo transgressor, com música de Arrigo Barnabé. Acompanhei desde o ensaio. Fiz cerca de 40 rolos de filmes de 36 poses. Na época, isso era um absurdo!”, relembra. A pesquisadora Sílvia Fernandes deu o norte sobre quais espetáculos deveriam compor o livro e a edição de imagens foi de Juan Esteves. Também no ano passado, Bob Sousa lançou Retratos do teatro (a publicação está disponível para download na internet no
site www.editoraunesp.com.br), com imagens registradas desde 2009. “Esse livro e a opção pelos retratos vieram da vontade de, depois do espetáculo, manter um diálogo com as pessoas envolvidas com teatro”, explica. O livro não traz imagens de montagens, mas retratos de encenadores, atores, produtores, críticos. “A fotografia é um elemento narrativo e, mesmo que não estejam caracterizadas como personagens das peças, essas pessoas são personagens de uma história, a do teatro, prioritariamente paulistano”, comenta Bob Souza.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
SERÁ QUE EM MARTE É ASSIM? Numa tarde em que adormeci sobre rochedos, lá em Taquaritinga do Norte, tive a sensação de levitar. Foi a única vez na minha vida. Em alturas, o oxigênio escasseia e, caso você possua a imaginação fértil, pode até ser abduzido por uma nave espacial. Não alcancei esse delírio. Bastava-me o despenhadeiro sob os pés, a Serra da Borborema ao longe e as extensões infinitas de um cariri, lembrando as estepes do Quênia. Nunca estive na África para fazer comparações, mas habituei-me a visitá-la em filmes, livros e fotografias. Por um milagre geológico, a Serra da Taquara divide o clima da região. O brejo é frio, possui nascentes d’água e um resto de mata. O cariri é quente, seco e plano. Lembra o Sertão. A cobertura vegetal também muda nas duas paisagens. Algum Deus arbitrário, igual ao que preferiu Abel a Caim, deu as primícias da terra ao pequeno brejo, milagrosamente plantado no agreste fértil. Nesse mundo fora das cidades, um resto de silêncio também nos deixa suspensos. Passarinhos cantam, o sol
se põe ligeiro, a quentura da tarde sobe pelas pedras, a flor do café cheira e embriaga. Alguém do meu lado pede que eu escute os coelhos do mato, quando anoitece, mas eu nunca chego a ouvi-los, as ouças viciadas em buzinas e aceleradores. Às vezes, em pleno dia, o tempo se fecha de repente, com nuvens escuras prometendo chuva. A luz se refaz em nova beleza e eu penso que nenhum iluminador conseguiria uma mudança de plano em tempo tão ligeiro. Tudo isso convida à levitação. Caíram umas poucas chuvas em Taquaritinga do Norte, no final de dezembro. O bastante para o cafezal cobrir-se de flores brancas, perfumadas como as das laranjeiras. Antes das grandes estiagens, que mataram quase todos os pés de café, a serra ficava parecendo coberta de neve. Agora, avistamos umas pequenas áreas floridas, aqui e acolá, quase sempre nos lugares de sombra, como se tivesse nevado arbitrariamente. Dizem que a primeira semente arábica típica a chegar ao Brasil
foi plantada em Taquaritinga. As condições da serra eram semelhantes às da Colômbia. Brejo de altitude, chuvas durante sete meses do ano, clima frio com neblina frequente, verão ameno, sombra de bananeiras, ingazeiras e cajueiros tornando a maturação do café mais lenta, o que garante o gosto doce e achocolatado do fruto. Antigamente, chovia tanto, que o primeiro juiz da comarca enviado para o exercício do cargo ficou um tempão na vila de Vertentes, pois não conseguia subir a serra por conta da chuva e da lama. É o que contam as pessoas velhas e eu acredito. A cidade tornou-se cafeeira. Os pequenos proprietários botaram abaixo as árvores nativas, pés de cedro, murici, pau-d’arco, copaíba, burra-leiteira, freijó, juremaçu, angico, baraúna, pereiro, louro, barriguda, jucá, ubaia, canafístula, umburana e mais um bom meio cento de outras espécies. Improvisavam carvoarias e queimavam as árvores. Os recursos pareciam inesgotáveis, o céu generoso, a prosperidade garantida.
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KARINA FREITAS
Porém o céu tornou-se carrasco. Donos de sítios que colhiam 70 sacos de café, hoje, mal tiram para o consumo próprio. E os grandes proprietários com seus extensos secadores e armazéns, onde guardavam centenas de sacos, também estão abandonando a cafeicultura. O negócio tornou-se improdutivo. Os pés de cafés morreram
aos milhares, não adianta replantálos porque eles não prosperam, desapareceram as condições climáticas que favoreciam a lavoura. As ingazeiras, cajueiros e bananeiras, que forneciam a sombra, também morreram. Alguns teimosos compram o pouco que é produzido, beneficiam, exportam ou torram e vendem. A mão
de obra migrou para as cidades, casas foram abandonadas. A nova geração de rapazes e moças não viu futuro na terra. De agricultores, transformaramse da noite para o dia em produtores de moda, fabricantes de sulanca. Cunharam a expressão “fogo morto” para os engenhos de açúcar que paravam de moer a cana. O melhor romance de José Lins do Rego possui esse nome. Como vamos chamar os sítios vendidos aos novos ricos de Toritama e Santa Cruz do Capibaribe? “Café morto”, “arábica calcinada”, “sonho cafeeiro moribundo”? Falta-me talento para definir esse transtorno. Os sulanqueiros proprietários de terra arrancam os pés de café pela raiz, constroem casas extravagantes como as roupas que fabricam, levantam muros altos, cavam piscinas, trazem o barulho da civilização. Há quem teime em se deslocar em cavalos. Bem poucos. A maioria prefere escanchar-se numa moto própria ou de aluguel. A produção de roupas circula pelas casas das costureiras na garupa dos motobóis. Igualzinho às cidades grandes. Até afirmei no romance Galileia que não existe mais o Sertão, apenas periferia de cidades. Posso garantir que o Agreste também se transformou numa vasta e complexa periferia, de onde estão expulsando o silêncio. Não sei por que as pessoas odeiam o silêncio. Talvez não suportem escutar a própria voz. Ainda existem noites escuras em Taquaritinga, de neblina espessa, que nos envolvem como um útero aconchegante. Mas é comum, em meio a essa atmosfera primitiva, ser abalado pelo ronco de uma moto. Os moradores de rua, no Recife, sentem-se seguros dormindo nos lugares públicos iluminados, barulhentos, com buzinas de carro e sons de escape. Evitam os becos silenciosos e reservados, pois representam um risco de sofrerem violência. Será que o avanço da criminalidade e das drogas no Agreste fez as pessoas do campo temerem os lugares ermos? Ou o silêncio tornou-se uma ameaça, uma quase violência? Talvez nossa sociedade tenha evoluído para um estágio de sobrevivência em meio ao ruído e à claridade. Estou fora. Embarco na primeira nave com destino a Marte.
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REPRODUÇÃO
Leitura WILLIAM BURROUGHS O malvado favorito da contracultura
Cem anos depois do seu nascimento, mito em torno do escritor – e de sua literatura delirante – mantém aparência transgressora na indústria cultural TEXTO Marcelo Abreu
Ele andava com amigos radicalmente pacifistas, mas era um colecionador de armas. Experimentou drogas pesadas durante toda a vida adulta, transformando-as no centro de sua literatura delirante, mas vestia-se formalmente com ternos na cor cinza, colete, gravata e chapéu. Era tão discreto, pálido e opaco, que ficou
conhecido como el hombre invisible. Homossexual assumido, foi casado duas vezes com mulheres. Experimentou outras culturas, percorreu selvas à procura de drogas, morou no Marrocos, viveu a boêmia e o submundo franceses dos anos 1950, mas passou os últimos 15 anos de vida no comportadíssimo interior do Kansas. Estas são apenas
algumas das contradições aparentes do escritor William Burroughs (1914-1997), que, 100 anos após seu nascimento, é relembrado sempre como um ícone da contracultura (mais uma contradição em termos). Burroughs tornou-se mais falado no Brasil apenas a partir de 1984, quando as editoras Brasiliense e L&PM criaram, tardiamente, uma onda de literatura beat no país. Foi então lançado o seu Cartas do Yage, um pequeno volume de sua correspondência com Allen Ginsberg sobre a procura pelo chá alucinógeno conhecido como ayahuasca, na América do Sul. Mas o mito em torno do escritor já vinha se expandindo desde os anos 1950, nos Estados Unidos e na Europa. A permanência de seu nome até hoje talvez se deva ao fato de que, apesar de não ter feito o mínimo esforço para tal, Burroughs se aproximou de artistas contemporâneos como poucos nomes
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de sua geração. Suas experiências estéticas acabaram, de forma diluída e distorcida, influenciando grandes figuras da cultura pop. O título de um dos livros de Bill, por exemplo, deu origem ao nome da banda de rock inglesa Soft Machine. A utilização do processo de cut-up (recorte) na escrita foi utilizada pelo cantor David Bowie em alguns discos, e radicalizada com a chegada da cultura digital.
COM OS BEATS
Depois de décadas escrevendo, pintando, fotografando, gravando discos de poesia, por volta dos anos 1980, Bill Burroughs já era considerado o avô do movimento punk. Conseguiu popularidade a despeito de sua voz grave, sua aparência austera, e seus traços faciais longos e tristes que compunham uma face sorumbática e sinistra. Não que todo mundo tenha estômago para ler sobre os delírios estimulados pela morfina e sobre a perene caça homoerótica que domina sua prosa. Mas talvez por ser o nome mais barra-pesada de sua turma de escritores, sua imagem se adapte melhor aos tempos atuais. A associação com os beats é inevitável, mas precisa ser esclarecida. Burroughs era oito anos mais velho que Jack Kerouac, e 12 mais velho que Allen Ginsberg. Isso já dificultaria a classificação deles numa mesma geração. No entanto, foi a partir do encontro dos três nos arredores da Universidade de Columbia, na Nova York do início dos anos 1940, que começou a se formar o grupo que viria a ser chamado de beatnik. Na época, já por volta dos 30 anos e com cara de cinquentão, ele parecia bem velho em relação aos boêmios encharcados de Blake, Rimbaud e Dostoiévski que frequentavam os cafés de Nova York. Apesar da amizade que os unia, eram muito grandes as diferenças na temática dos livros e na forma de ver o mundo. Burroughs mesmo disse numa entrevista, já nos anos 1980: “Eu não sou um beat. Nunca fui. Tenho apenas grandes amigos no movimento. Na verdade, meus amigos mais íntimos o formaram. Mas se você analisar bem, somos escritores com estilos absolutamente diversos e temos vidas pessoais completamente diversas.
Não me ofendo em ser considerado um beat, mas na verdade não sou”. A ele não interessava a espiritualidade profunda de Kerouac, Ginsberg e Gary Snyder. Tampouco tinha o espírito aventureiro e pé na estrada dos três. Ele não dava importância à militância política de Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. Do grupo, encontra-se alguma semelhança apenas com Gregory Corso, um pé no submundo do crime e uma sensibilidade mais aberta à vida marginal. Enquanto Snyder bebia chá verde, Kerouac e Corso se afogavam na bebida alcoólica – e Ginsberg experimentava maconha e LSD – Bill Burroughs, sempre o mais radical, vivia às voltas com o vício de heroína e morfina. Apesar de todas as diferenças, acabaram juntos no mesmo ambiente contracultural que despontou para a atenção da mídia a partir de 1956, com
Apesar de ter seu nome sempre ligado aos beats, Burroughs não fazia parte da mesma geração e tinha estilo diferente a publicação do poema Uivo, de Allen Ginsberg, e de On the road – pé na estrada, de Jack Kerouac, em 1957.
GAROTO MEIO-OESTE
William Seward Burrrougs nasceu em 5 de fevereiro de 1914, em Saint Louis, no Missouri, no meio-oeste americano. Seus pais eram da classe média e dinheiro nunca foi um problema. O avô paterno havia sido o inventor da máquina registradora da marca Burroughs, que dominou os pegue e pague do mundo até a difusão dos computadores e scanners, adotados pelos caixas. O jovem Bill saiu de casa aos 18 anos para estudar inglês em Harvard. Lá fez também pós-graduação em Antropologia. Depois, em Viena, na Áustria, iniciou um curso de Medicina. Abandonou tudo em 1942, passou a vaguear por Nova York em busca de aventuras sexuais e drogas. Viciouse em heroína e o uso de drogas
passaria a ser parte central de sua vida até o fim, sem arrependimentos. Em 1944, começou a viver com Joan Vollmer. O casal aparece no relato de On the road, morando em Nova Orleans. No livro de Kerouac, Burroughs é chamado Old Bull Lee. Em 1951, numa brincadeira com armas na Cidade do México, o escritor acabou assassinando Joan com um tiro na testa. Para escapar da prisão, viveu anos transitando entre o México, a América Central, os Estados Unidos e o Marrocos. “A morte de Joan”, escreveria depois, “colocou-me em contato com o espírito maligno, que me forçou a uma longa luta na qual eu não tenho escolha a não ser tentar fugir através da escrita”. Um dos períodos mais movimentados de sua vida foram os anos que passou em Tânger, no Marrocos. Muitos escritores e intelectuais norte-americanos costumavam passar temporadas na cidade em busca da vida barata, das drogas fáceis e de sexo. “A misoginia da estrutura social (do Marrocos) também exercia um grande apelo sobre a desconfiança nata e o medo de Burroughs em relação às mulheres”, escreveu sobre o período o biógrafo Ted Morgan, no livro Literary outlaw. Sob os efeitos do haxixe e de um derivado de ópio de fabricação alemã, chamado Eukodol, ele começou a rabiscar, freneticamente, textos aos quais ele se referia como “rotinas” e que comporiam uma obra chamada Interzone. Depois, esses textos foram desmembrados e reutilizados em vários trabalhos.
CUT-UPS EM PARIS
No final dos 1950, sempre vivendo da mesada enviada pelos pais, Burroughs morou em Paris durante algum tempo, no infame Beat Hotel, um lugar mixuruca na rive gauche, próximo ao Quartier Latin, que era ponto de parada de boêmios e intelectuais sem dinheiro que queriam fugir dos repressivos anos do pós-guerra norte-americano. Foi no ambiente miserável do hotel em Paris que ele e Brion Gysin, pintor e artista performático inglês, desenvolveram o método de cut-up. O escritor paulista Antonio Bivar, que acompanhou de perto a trajetória dos beatniks, define o cut-up no livro Alma
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REPRODUÇÃO
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Leitura 1
beat da seguinte maneira: “É um método experimental de escrever. Um artista que trabalha com cut-up simplesmente recorta teipes ou páginas de narrativa convencional e joga com a justaposição de frases, sentenças, palavras em uma nova ordem que funciona de modo subversivo sobre a linguagem original, permitindo ao leitor a ocasional leitura do futuro”. Era o equivalente, na literatura, ao processo de colagem nas artes plásticas, de inspiração dadaísta. Estava ali, nos anos 1950, a base teórica para a prática do mash-up em outras formas de arte, a mistura levada a cabo pela turma do hip hop dos anos 80, que gerou a cultura dos DJs atuais e intensificou-se com o vale-tudo do mundo digital, no qual tudo se copia e se mistura. O livro mais celebrado de Burroughs, Almoço nu, foi fruto desses experimentos. A princípio, os textos eram cartas escritas para amigos descrevendo alucinações com morfina e heroína, aventuras homossexuais e delírios variados. Nas dezenas de episódios desconexos, há uma enumeração caótica de alucinações, frutos dos delírios causados pelas drogas. Na própria introdução, está escrito que, ao leitor, não adianta tentar seguir um enredo. Pode-se começar a leitura de qualquer parte.
Seu livro mais celebrado, Almoço nu, foi todo feito tendo como base o método do cut-up, criado por ele e por Brion Gysin Apesar de não ser uma obra de ficção científica, muitos consideram que Almoço nu, a seu modo, antecipa fenômenos recentes como lipoaspiração, doenças como a Aids e a pandemia do crack. Os textos, escritos em Tânger, foram, ao longo dos anos, sendo retrabalhados, misturados, embaralhados, até chegarem a ser impressos em 1959, pela Olympia Press, uma editora parisiense alternativa que publicava em inglês. O título vinha de uma prosaica observação de Kerouac que, certa vez, ao ver os restos de ossos de um almoço sobre um prato, exclamou: “This is a naked lunch” (Isto é um almoço nu). A estrutura caótica do texto não o impediu de se tornar um clássico que vem sendo reeditado com muitas mudanças, trechos inéditos, sobras, enfim, qualquer resto de loucura escrita ou delírio vale para acrescentar algumas páginas ao manuscrito original.
BEATNIK Hal Chase, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs se conheceram na década de 1940, em Nova York
A primeira experiência mais consistente de Burroughs com a escrita havia sido feita em parceria com o próprio Kerouac, um livrinho que ficou inédito até 2005 e se chama E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques (Companhia das Letras). Mas sua carreira literária começou propriamente em 1953 com a publicação de Junky (que originalmente se chamava Junky: confissões de um irrecuperável viciado em drogas). Em seguida, escreveu textos que viriam a ser o autobiográfico Queer, somente publicado em 1985. Depois de Almoço nu, sucesso de vendas estimulado pelas tentativas de censura nos Estados Unidos e em outros países sob a alegação de obscenidade, veio uma fase intermediária de sua carreira com livros como The soft machine, (1961), The ticket that exploded (1962) e Nova Express (1963).
DELÍRIOS, PARANOIA
A partir dos anos 1970, sua obra foi cada vez mais marchando para a paranoia, tratando de vírus, doenças macabras, alucinações políticas, transtornos generalizados. É o caso da trilogia composta pelos romances Cities of the red night, The place of dead roads e The western lands, já no anos 1980. Em 1987, Bill disse à revista Rolling Stone que temia uma tomada do poder mundial pelos fascistas, que usariam como desculpa o combate ao tráfico de drogas. Afirmou acreditar nos efeitos da dança da chuva realizada pelos índios norte-americanos, falava sobre mutação da espécie e vida no espaço. Fiel ao seu interesse por pseudociências, práticas alternativas e esoterismo, ele teve também uma controversa passagem pela Igreja da Cientologia. Afirmava que a filosofia e as técnicas do grupo o ajudavam a lidar com os efeitos das drogas, mas expressava ressalvas quanto à sua forma de organização. Em outra entrevista, à revista Gay Sunshine, falou sobre a possibilidade
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INDICAÇÕES de revolução (que nunca foi muito o seu campo de interesse) e se mostrou cético em relação ao uso de armas tradicionais. Disse que “as únicas armas válidas hoje em dia para uma revolução são as armas biológicas e químicas, gases, germes e micróbios”. Mais uma vez, de uma forma ou de outra, antecipava as preocupações do século 21. A literatura produzida por William Burroughs não teve tantos críticos porque, em geral, quem não transita no universo retratado pelos livros é afastado da leitura logo pelas capas (desenhos de seringas penetrando cérebros, reproduções de raios X, pílulas, armas), pelos títulos escabrosos (como O gato por dentro, por exemplo) ou, ainda, pelo conteúdo caótico e aparentemente desconexo. Entre aqueles que, a despeito de tudo, se aventuraram na obra e não gostaram está o escritor inglês Anthony Burgess, famoso pelo seu Laranja mecânica. Burgess disse certa vez que Bill “chateava seus leitores com episódios repetitivos de fantasias envolvendo pederastia e estrangulações sexuais desprovidas de qualquer visão de mundo”.
PERVERSO
Em 1977, o escritor decidiu voltar de suas viagens aos EUA e passou a circular com figuras como Andy Warhol, Susan Sontag, Lou Reed e Patti Smith. Em 1979 estava novamente viciado em drogas. Fez diversas colaborações em trabalhos de artistas mais jovens como Nick Cave, Tom Waits, Laurie Anderson, R.E.M. Sua imagem foi usada em um vídeo do U2. Os escritores cyberpunk o citavam como influência central. É como
se a presença de Burroughs, já velho, num disco ou outra qualquer obra de arte, fosse um selo de contestação necessário para dar algum estofo ao trabalho. Já em 1959, com a fama repentina após o sucesso inicial dos primeiros livros beat, Bill havia escrito à mãe dizendo, por brincadeira, que temia, depois da morte do mago Aleister Crowley, passar a ser chamado de “o homem vivo mais perverso” do mundo. O poema Thanksgiving Day - Nov 28, 1986 (Dia de Ação de Graças, 28 de novembro de 1986) é o ápice de sua crítica social irônica, quando o escritor diz em alguns dos versos: “Obrigado pelo continente para saquear e envenenar/ obrigado pela KKK// obrigado por uma nação de fura-greves/ obrigado pela última e maior traição do último e maior dos sonhos humanos”. Num curta-metragem feito por Gus Van Sant, em 1986, são tocantes a música e as imagens do século 20 em preto e branco sobrepostas à figura soturna do escritor lendo o poema. Burroughs deixou uma obra numerosa, por alguns considerada repetitiva: 18 livros classificados como romances ou novelas, seis volumes de contos, quatro de ensaios, e cinco livros que reúnem entrevistas e sua correspondência. Além de inúmeras colaborações em discos e aparições curtas em filmes. Nos últimos anos de vida, ele ainda publicou livros e participou de exposições retrospectivas em Londres e Nova York. Morreu em 1997, em Lawrence, no Kansas, lugar que serviu de cenário para o apocalíptico filme O dia seguinte (1985) e para outras obras de ficção científica.
NOVELA
RICARDO RAMOS Os caminhantes de Santa Luzia Biblioteca Azul
O jornalista, filho de Graciliano Ramos, recebeu o Prêmio Jabuti de 1960, na categoria Melhor Novela, com este livro, que ganha agora sua terceira edição. O romance conta a história da beata Luzia e seus seguidores, no cenário árido de uma típica cidade do Sertão, com seus coronéis, capangas e políticos.
ENSAIO
MARIA AUGUSTA FONSECA Por que ler Mário de Andrade Globo Livros
A coleção Por que ler escolhe o nome de um autor importante e faz um ampanhado de sua vida e obra. Para falar de Mario de Andrade, foi convocada a professora Maria Augusta Fonseca, que reconhece o desafio de mostrar os muitos Mários que existem no escritor paulista.
ENSAIO
CAROLIN OVERHOFF FERREIRA (ORG) Manoel de Oliveira – novas perspectivas sobre sua obra Editora Fap-Unifesp
O livro traz textos de vários especialistas sobre o trabalho do cineasta português, hoje com 105 anos. O objetivo é lançar olhares diversos sobre seu legado, passando pelos filmes mais conhecidos bem como pelos desconhecidos.
POESIA
RAINIER MARIA RILKE Elegias de Duíno Biblioteca Azul
Essa importante obra da literatura alemã da primeira metade do século 20 foi publicada em 1951, numa edição especial do bibliófilo José Mindlin, com tradução de Dora Ferreira da Silva. A obra tornou-se um patrimônio cultural da poesia alemã no Brasil. Agora, a tradução ganha uma nova publicação bilíngue, acompanhada de comentários da tradutora.
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Visuais
JONATHAS ANDRADE A insurgência dos carroceiros como metáfora
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O LEVANTE Documentário de ficção registra a tomada da cidade por cavalos, carroças e charretes
Artista alagoano, que chegou a Pernambuco no fim dos anos 1990, recorre à Sociologia para pensar o processo de “modernização” das cidades e do povo brasileiro TEXTO Carolina Leão
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A melancolia e a crítica diante
do progresso não são apenas insatisfação idealista. São um descontentamento legítimo. E se justificam diante de um infinito número de projetos empreendedores que alargaram ruas, destruíram monumentos históricos, criaram novo tecido social e ordenamento urbano, mas tiveram consequências drásticas a médio e longo prazo. Só para lembrar uma delas: a Liga Social Contra os Mocambos, no Recife dos anos 1940, aterrou mangues e levou a ocupações miseráveis nos morros dos bairros da Zona Norte, com a retirada dos mocambos à beira do Capibaribe e nenhuma política de assistência social a longo prazo, para a população negra,
marginalizada, destituída de seus abrigos. Ou a destruição de construções arquitetônicas como os Arcos de Santo Antônio e a Igreja dos Milagres, esta última, no alargamento da Avenida Dantas Barreto, executada para a passagem da frota de automóveis, que aumentava com o desenvolvimento econômico nos anos 1970. A história nos mostra também momentos de resistências e enfrentamentos com os quais a arte se tornou um dos mecanismos de crítica e ativismo contra as consequências mais negativas do parâmetro cabal da modernidade: o progresso tecnológico. Baudelaire e o seu Spleen de Paris ainda é a maior referência sobre a ansiedade frente à construção de uma nova cidade e a destruição dos signos tradicionais que marcaram a sua identidade urbana. Atualmente, o Recife vive mais uma etapa dessa expansão capitalista, cuja lógica, se não for imoral, como sugere André Comte Sponville, não tem bons sentimentos. E, como o Mefistófeles de Goethe, não se intimida nem desencoraja diante do mais prosaico e elementar indício de símbolos que compuseram sua tradição e identidade. Os sentimentos sobre essa querela inflam as redes sociais e vão do tédio (que a ignora) à ironia (com slogans de oposição como: “Recife eu te amo, mas não sou correspondido”), passando também por vários tipos de ativismo: o de sofá e o de corpo presente. Interessado em questionar a verdade histórica, documentada como oficial, o artista plástico Jonathas de Andrade recorre à Sociologia e a outros campos do conhecimento teórico para compor sua produção criativa. E investiga, de forma irônica e provocativa, a legitimidade dessas ações. Em 40 nego bom é um real, Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste e Educação para adultos, Jonathas percorreu as heranças escravocratas do Brasil moderno em seus efeitos mais diretos – como o analfabetismo, e a reprodução do discurso elitista – em cartazes, fotografias e colagens. Agora, prepara um dossiê com documentação sobre o projeto O levante e as contradições dos carroceiros. O plano de ação é resultado do projeto O levante, que contou com um evento coletivo, em 2012, e um
documentário de ficção, em 2013. O vídeo foi exposto no Stedelijk Museum Amsterdam, no Wexner Art Center, Columbus – EUA, e vai para a Bienal de Gwangzu, na Korea, em setembro próximo. Dessa forma, aquece o debate sobre o embate entre tradição e modernidade (ou tecnologia) que norteia o pensamento social nas ações modernizantes da América Latina, em que os efeitos do empreendedorismo capitalista são mais recentes e estão sendo analisados à luz de uma sociedade cada vez mais segregacionista. Jonathas é enfático. Acredita que a nova lei que determina a proibição dos carroceiros no Recife usa o direito dos animais como pretexto, mas é, segundo ele, uma medida paliativa para o excesso de trânsito na cidade. “A lei se disfarça em proteção dos animais, mas é um golpe extenso numa população desprivilegiada e no seu modo de viver”, coloca. Jonathas teve o timing para perceber o momento e o exemplo dessa dicotomia entre tradição e modernidade e compor um
O levante toma como base o embate entre a tradição e a modernidade, um dos interesses da Sociologia trabalho original, no qual se unem a sua curiosidade etnográfica e a ironia. O projeto levou, em 2012, dezenas de carroceiros ao coração da cidade do Recife, os bairros de São José e Santo Antônio – onde os mesmos são proibidos de circular. Lá, participaram de uma corrida. O roteiro utiliza o campeonato entre carroceiros para criar um falso documentário de tomada da cidade por cavalos, carroças, charretes. Um universo que desafina do tom progressista do Recife urbano, moderno em seu atual momento histórico. Mas com o qual convivemos diariamente no trânsito, onde eles ocupam vias de grande circulação, como as avenidas Norte, Abdias de Carvalho, Conde de Boa Vista e Agamenon Magalhães.
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JOSIVAN RODRIGUES/DIVULGAÇÃO
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RECIFE RURAL
Esse universo foi tema de matéria publicada na Continente, em abril de 2012. Na ocasião, percorri, junto com o fotógrafo Ricardo Moura, os arredores de dois bairros, Cordeiro e Beberibe, que agregam um volume significativo de carroceiros e trabalhadores em atividades como ferradores, construtores de charretes, vendedores de porcos, galos e cavalos. A realidade, nesse ambiente urbano, contradiz frontalmente o argumento estatístico e social do Recife como uma cidade urbana. Os índices de um mundo rural são claros e mostram, nas duas periferias, pontas do mapa geográfico, áreas de ocupação tardia como a zona oeste e Beberibe, negociações, dinâmicas, artefatos e construções típicas de cidade rurais. Muitos desses trabalhadores vieram, de fato, do interior do estado, onde a carroça é um meio de locomoção como outro qualquer. Aqui, fizeram dela seu meio de vida e subsistência. E estão inegavelmente à margem dos signos modernos do Recife. As trocas comerciais que nesse universo se operam são primárias: há escambo, troca de favores, utensílios e até alimentos e bebidas. Muitos têm celulares de última geração, alguns, internet com wi-fi, mas o uso
Através dos carroceiros, o artista discute a invisibilidade social desse grupo do ponto de vista da lei da tecnologia também é primário. Eles não estão nas redes sociais, nos blogs, nas compras do e-commerce, nos downloads de aplicativos. São “medievais”, porque utilizam cruelmente os animais como força de trabalho, dizem os defensores da proibição das carroças de tração a cavalo. Mas são medievais não por isso. Focar a questão nos maus tratos aos animais desloca o principal problema. O cavalo faz parte de uma opressão muito maior, que é a de um sistema que exclui, ignora e oprime seus cidadãos por estarem distantes da lógica modernizante. O homem e o cavalo estão, assim, como no mundo medieval, excluídos de um pensamento centralizador e dominante no qual, agora, a tecnologia e o progresso são medidas da riqueza de uma cidade. Mas não são apenas isso. Herdaram o trabalho dos pais, das comunidades interioranas ou locais, onde a vida rural coexiste junto ao
comércio e aos serviços gerais. Herdaram não somente um modo de trabalho, mas toda a cultura que envolve a vida rural. Mesmo sendo um grupo socialmente heterogêneo, ele é marcado por crenças e modos de convivência como qualquer outro. O desconhecimento de sua realidade, porém, reduz sua compreensão sobre o princípio que norteia a sua disseminação na cidade como entrave ao processo civilizador. Em depoimento à matéria da edição 143, mencionada há pouco, a pesquisadora Conceição Oosterhout, socióloga da UFPB, afirma que o tempo em si não anula uma prática cultural apenas pela passagem de décadas na história. “A relação entre os carroceiros e a parte urbanizada do Recife, por exemplo, não deve ser entendida apenas como convivência de mundos equidistantes, sobrevivência de valores culturais. Se a cidade fosse pensada para atender aos diferentes grupos sociais que por ela circulam (como ocorre também com os ciclistas), poderíamos desfrutar de um olhar diferente nessa paisagem, com vias adequadas para esse tipo de transporte, uma vez que ele persiste na história”, defende. Através dos personagens, Jonathas discute a invisibilidade social desse grupo do ponto de vista da lei. “A presença deles contrasta com o tráfico, o asfalto, as
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DIVULGAÇÃO
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ENCONTRO Os carroceiros se reuniram no centro do Recife, lugar onde são proibidos de circular
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IRONIA
Em Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste, o artista observa a herança escravocata brasileira
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torres de 40 andares e todo um projeto de civilização que vai na contramão dessa cultura com ecos fortíssimos na ruralidade e que aponta para a origem da nossa região. Aos poucos, me dei conta de que os carroceiros integram um circuito de ruralidade muito maior, que atravessa toda a cidade, na qual o projeto civilizatório está apoiado em outro paradigma. É um Recife não hegemônico, protourbano”, coloca.
POLÍTICA DO CORPO
Em seu trabalho, o artista defende o que define como política do corpo. “Sentia em minha geração uma inquietude política que se resolvia apenas com o consumo de literatura e de uma coleção de afinidades, mas nunca com uma reação presencial, corporal nas ruas ou uma ação efetiva de qualquer ordem. Vejo que as manifestações de 2013 movimentaram um modo de reação.” Em O levante, ele propõe mais um registro etnográfico, um olhar antropológico, a exemplo do que foi feito com Educação para adultos, no qual ele trabalhou previamente com um grupo de lavadeiras analfabetas antes de criar as provocações irônicas do projeto desenvolvido para a 29ª Bienal de São Paulo. O levante teve diversas negociações para que os carroceiros aceitassem ir às ruas do Centro. “Depois de muito
atraso e um medo danado de não aparecer ninguém, apareceram 40 carroças e vários cavaleiros e tudo ganhou proporções massivas, difícil de controlar. Com dificuldade de manejo e organização, a corrida aconteceu com 10 carroças que ganharam bodes como prêmios. E, antes da premiação, foi puxado um cortejo pela cidade com todos os presentes. Num grande bolo de gente, cavalo, carroça, todo mundo foi se misturando, subindo nas carroças, nas calçadas, e o cortejo foi ganhando corpo de massa e ação”, descreve. Por essa aproximação, ele descreve a realidade muito mais ampla dos carroceiros. Uma realidade que vai além de sua circulação pela cidade como veículo. “Eles carregam restos de comida e verduras dos mercados para vários currais e quintais em diversos lugares da cidade. Mas eles estão também na feira de cavalos que acontece durante toda a semana em vários bairros e cidades vizinhas; nas corridas competitivas de argolinha, nas cavalgadas, e na cavalgada a São Severino dos Ramos, a grande procissão de cavaleiros e carroceiros que acontece todo fim de ano.” Jonathas define sua compreensão da atual realidade urbana no Recife como uma tristeza absoluta. Alagoano, chegou aqui em 1997, época da efervescência manguebeat,
quando ser recifense passou a ser cool, após os soturnos anos 1980 e seus muros pichados de “Recifede”, “Recifílis”. “Era uma cidade desde já confusa, que me engolia, mas seduzia.” Mas era uma cidade utópica, com o reconhecimento de suas mazelas e enfrentamentos que tornaram possíveis projetos criativos. O desencantamento agora é desafio criativo para que, por meio do que ele chama de espelho invertido, possam ser confrontadas as ambiguidades tanto do seu processo criativo como social. “O desenvolvimento tal qual entendido atualmente no Recife sempre é excludente em alguma medida, mas é inaceitável que seja desta maneira. Existem possibilidades de integração das carroças ao desenvolvimentismo corrente, sem que se aniquile a subsistência desse grupo social. Medidas fundamentais como reconhecer no Recife áreas urbanas e rurais seriam o primeiro passo, a definição de rotas legalizadas para os carroceiros em algumas avenidas, até medidas mais progressistas, como a criação de currais públicos para suporte a um modo de viver na cidade ainda conectado com uma cultura do campo e dos animais, que são as raízes originais desta terra”, acredita.
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MATEUS SÁ/DIVULGAÇÃO
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TRADIÇÕES Juntando forças
Livro Reencontros, com fotos de Mateus Sá e Guga Soares, traz o reconhecimento mútuo entre as culturas dos índios capinauás e do maracatu rural TEXTO Guilherme Novelli
O primeiro, de Buíque, Sertão,
terra dos capinauás, um dos 12 povos indígenas de Pernambuco. O segundo, de Nazaré da Mata, Zona da Mata, terra do maracatu rural, uma das manifestações culturais mais ricas da cultura popular brasileira. Encontros no primeiro e último sábados de julho de 2013. De início, o estranhamento,
medo do contato com o desconhecido, uma clivagem cultural imposta, estereotipada do índio: povo selvagem, com arco e flecha, cabelo liso e papagaio no ombro. Imagem bem diferente daquela encontrada pelos brincantes de maracatu que se aventuraram a sair de seus domínios, muitos
deles pela primeira vez na vida, e participar do toré – ritual religioso capinauá, realizado na Furna, caverna indígena sagrada. Depois dos encontros, a valorização do índio, da importância dele dentro do maracatu, pela figura do caboclo de pena, personagem do brinquedo que representa o índio, o pajé, o curandeiro. Em ambos, o reconhecimento de si através da cultura do outro. Juntos, índios e brincantes na batida de pé do coco, o maracatu na sambada e o canto capinauá: “Eu cheguei agora nessa nova aldeia, eu cheguei agora nessa nova aldeia”. Reencontros é o nome do livro que registra esse contato, com fotografias de Mateus Sá e Guga Soares, texto de Lula Marcondes e Caroline Leal, com lançamento previsto para o mês de março, numa parceria entre a oficina de criação O Norte e o Funcultura.
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1-2 BUÍQUE
GUGA SOARES/DIVULGAÇÃO
Os encontros ocorreram entre índios e brincantes durante a realização do toré, ritual religioso dos capinauás
Registra os dois encontros entre os capinauá e o maracatu rural com o intuito do reconhecimento das semelhanças culturais entre os dois grupos, além de possíveis diálogos quanto às problemáticas distintas que cada um enfrenta. “Todos os que não estiveram presentes no primeiro encontro fizeram questão de estar no segundo”, conta Lula Marcondes, idealizador do projeto. “No final, falaram que estavam muito felizes em conhecer a cultura do outro por dentro e ver a força de cada grupo para a luta.” Enquanto os capinauás lutam pela terra, o maracatu luta para manter sua expressão cultural. A data do primeiro encontro em Buíque foi escolhida em função da “retomada” de uma fazenda, há décadas expropriada, dentro das terras capinauás. “O elemento que os assemelha é o da opressão histórica, com percursos e formas de resistência diferentes”, define Caroline Leal, doutora em Antropologia pela UFPE e consultora do projeto. “É justamente por não existir um diálogo que nasce a nossa proposta, pois os capinauás têm um processo de resistência através da luta pela terra, e os brincantes do maracatu foram expropriados, historicamente, mas não têm essa luta; sua forma de resistência é através do belo, da arte”, complementa. Os dois encontros provocaram essa discussão, essa reflexão para ambas as partes: os brincantes de maracatu compreenderam a organização e a articulação indígena para a retomada e conservação de suas terras; os capinauás, a força do maracatu pela manutenção de seu patrimônio cultural.
Os brincantes reconheceram raízes do maracatu na cultura indígena, pela presença do emblemático caboclo de pena AUTORES
Mateus Sá é um fotógrafo com um olhar antropológico sutil e ao mesmo tempo profundo. O projeto que o tornou conhecido como artista foi a pesquisa Luz do Litoral, de 2005, uma documentação fotográfica sobre as comunidades nativas de pesca do litoral de Pernambuco, incluindo Fernando de Noronha, que estão em vias de desaparecer devido à especulação imobiliária e ao modelo de turismo do estado. Em Reencontros, ele e Guga Soares procuraram capturar a surpresa presente nos dois encontros, o encantamento de uns com os outros, a proximidade e o estranhamento, um observando a cultura alheia. “Eu tive um enriquecimento pessoal ao fotografar os dois encontros, pois há algum tempo realizo pesquisas com o maracatu e os povos indígenas, e esse evento
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ampliou meu entendimento, minha compreensão, minha admiração por ambos”, conta Mateus. O texto do livro não tem a intenção de folclorizar o maracatu e os povos indígenas. “Essa é uma crítica que nós fazemos, pois, historicamente, os governos que se sucederam sempre usaram o maracatu como propaganda da cultura local”, argumenta Caroline. “Ele é mesmo o exemplo de Pernambuco, porque é o explorado, o oprimido, representante do trabalho escravo que persiste até hoje na Zona da Mata, e isso é muito mascarado pela alegoria, pelo folclore”, defende a antropóloga. O legado de Reencontros é o de caminhar rumo a uma sociedade intercultural, não apenas na questão do respeito à diversidade étnica e cultural, mas no reconhecimento social e estatal de que essas comunidades também são sujeitos de direito. “São sujeitos que estão vivos e têm de estar presentes na contemporaneidade também sob um ponto de vista jurídico, econômico, linguístico, territorial, cultural”, resalta a antropóloga. Os capinauás aceitaram participar do projeto com a condição de que o livro seja parte do currículo das escolas indígenas.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
JULIANA VAI A ROMA
Tem um livro tampa: Amor a Roma, de Afonso Arinos de Melo Franco. É que minha netinha americana Juliana, nascida em Waco, Texas, recémformada em letras, já trabalhando, está juntando uns trocados pra ir a Roma, atiçando meu amor de avô. Na falta de algo mais sonante, pego bigu na viagem dela lhe dando essas dicas, confiado no ano em que lá morei quando ela nem era nascida, que digo eu, nem sua mãe era nascida, eu ainda solteiro. Mas Roma é eterna. Passei lá o ano entre 1957-58 e voltei com minha mulher, Leonice, em 79, vinte e um anos depois. Passava frequentemente, na primeira viagem, na Igreja de Santa Maria del Popolo (pópolo, povo), caminho para a Accademia (acadêmia) di Belle Arti, onde estudava, e de tanto pedir ao sacristão para acender a luz da capela onde ficavam os quadros Conversão de São Paulo e Crucificação de São Pedro, ambos de Caravaggio, cujo nome era Michelangelo Merisi, Caravaggio a aldeia de onde vinha, como o Vinci de Leonardo, não confundir pois com o Michelangelo
Buonarroti, ou simplesmente Michelangelo, o da Capela Sistina, e da Pietà de São Pedro; de tanto pedir, dizia eu, o sacristão resolveu que eu podia acender a luz sem precisar ir pedir a ele. A capela era um breu de escura. Quando fui com Leonice, encantada, pois na hora estava havendo um casamento, a noiva muito bonita, alta, vestida a caráter, entrando emocionadíssima, as flores do buquê tremendo nas suas mãos, passamos ao lado da nave e procurei tateando o lugar do interruptor na tal capela: meu dedo mal tocou e as luzes se acenderam! Sempre viajei como aquele rapaz da música de Belchior, sem dinheiro no bolso nem parentes importantes, o melhor jeito de conhecer um lugar segundo Joca Souza Leão: liso. De fato eu comia na Via della Scrofa (porca), mas tudo muito limpo, numa mensa (mesa), comida a preços módicos. Muitas vezes, para completar a refeição, eu comprava ali perto, na Via dei Portoghesi (portugueses) um mezzetto (50 gramas) de stracchino (um tipo de queijo). Nessa Via dei Portoghesi certa
vez Caravaggio puxou da espada e queria matar um cara: foi preso entre outras coisas por não ter licença de carregar espada. Meu amigo Mario Delli Colli disse que ali virou rua de milionários hoje. Uma das grandes épocas de Roma é a do barroco, justamente a época de Caravaggio. Na Scrofa você poderá ver, na Igreja de São Luís dos Franceses (Chiesa di San Luigi de’ Francesi), O Martírio de São Mateus, e A Vocação de São Mateus do mesmo Caravaggio e mais adiante, na Chiesa di Sant’Agostino, La Madonna dei Pellegrini. Se você quiser ter uma ideia do resumo do barroco, visite a Chiesa del Gesú (Igreja do Jesus) onde se fundem arquitetura, pintura e escultura. Engraçado que o nome “barroco” e o da arte que se seguiu, “rococó”, designam ambos coisas do mar, sendo o primeiro, de origem portuguesa, uma pérola de formato irregular, e o outro de uma concha. O barroco é cenográfico, grandioso, a igreja católica querendo mostrar seu poder depois do golpe sofrido com a Reforma, de Lutero, enquanto o rococó já se distingue
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REPRODUÇÃO
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RUÍNAS
Templo de Minerva, bico de pena sobre papel, 24 x 34,8 cm, José Cláudio, Roma, 1958
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pela frivolidade, como se o discurso já se tivesse esgotado (você, Juju, formada em letras e que adora pintar, gostará de ler Rococo to Cubism in Art and Literature de Wylie Sypher. Comecei, ao acaso, por Caravaggio. Em Roma ainda tem dele São Jerônimo, e Davi com a cabeça de Golias na Vila Borghese; Narciso, Galeria Nacional de Arte Antiga; O Repouso no Egito, Galeria Doria; A Decapitação de Holofernes, Coleção Coppi; e Deposição de Cristo, de que há tantas releituras, de Rubens a Cézanne, da Pinacoteca Vaticana. Por aí dá para ver que você não vai poder, durante alguns dias, se especializar em nada. Já que toquei no Vaticano, seria mais didático, para nós do Ocidente, começar por uma visita às catacumbas: foi ali que Jesus Cristo de fato nasceu. Em cima da Via Appia Antica, a tumba de Cecilia Metella a dar notícia do mundo que terminava; e, embaixo do chão, a semente do mundo nascente. A arte desse mundo de cima foi destruída drasticamente. Sobrou apenas o que ficou enterrado. Roma tem sete cidades, uma embaixo da outra. Por
Engraçado que o nome “barroco” e o da arte que se seguiu, “rococó”, designam ambos coisas do mar sua vez, esse mundo que foi soterrado pelo cristianismo, o do Império Romano, começou a sair de debaixo do chão. É a Renascença, outro grande período de Roma, Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo, ou Michelangelo como dizem lá. Você tem que tomar alguns exemplos para entender o todo, pelo menos numa primeira olhada, como fiz aqui com Caravaggio para a pintura do Seiscentos. Antes que me esqueça você terá de dar uma passada no Museo di Villa Giulia, para ver a arte etrusca. Sabia você que a palavra “amor” foi tirada da língua etrusca? Acha José Ortega y Gasset que é por isso que até hoje ninguém sabe direito o que é. Por falar em “entender”, você só poderá entender Miguel Ângelo se vir
a escultura Laocoonte no Museo Vaticano que foi desenterrada justamente na época de sua juventude. E o defeito da pintura renascentista, que dominou o mundo, é justamente ter partido da volumétrica da escultura greco-romana, o que durou até o aparecimento de Velázquez (Ortega y Gasset). Um dos meus lugares prediletos era a Piazza del Campidoglio tendo ao centro o mais belo monumento equestre, modelo de todos os outros que existem no mundo, o de Marco Aurélio. Os cristãos destruíram todos menos este: pensavam ser de Constantino, primeiro imperador cristão. O pedestal e as raias do chão da praça são de Miguel Ângelo. Entre no museu para ver a Vênus Capitolina. Suba à igreja Aracoeli (araxéli). Não deixe de ver as Termas de Diocleciano nem o Foro Romano. Entre no Pantheon (pânteon), vá ver o Moisés na San Pietro in Vincoli (víncoli, ferros) e peça em qualquer boteco um bicchierino (copinho) de Olevano (olévano), rosso (tinto) ou Frascati (frascáti), bianco (branco)..
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DIVULGAÇÃO
Sonoras
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QUINTETO VIOLADO Ensaio para a folia
Grupo lança Eu disse FREEEEVO!, álbum temático, encartado nesta edição da Continente, que reúne clássicos do gênero musical e novas composições TEXTO Luciana Veras
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Quinteto Violado junto com a revista está em consonância com a diretriz de difundir a cultura pernambucana. “A qualidade e o prestígio da Continente têm tudo a ver com a importância que o Quinteto Violado possui, algo que depois de mais de 40 anos é reconhecido pelos pernambucanos”, ratifica Marcelo Melo, voz, viola, violão e um dos fundadores do grupo. Para ele, o disco chega “no momento certo”. “São músicas inéditas e outras canções com propostas novas. O que pensamos foi apresentar uma leitura do frevo com o pique do show, da rua, com a pegada do Carnaval. E, chegando um pouco antes, as pessoas já vão estar com as músicas incorporadas nas apresentações, já vão saber cantar”, observa Marcelo, que, na banda, é acompanhado por Ciano Alves (flauta), Dudu Alves (teclados), Roberto Medeiros (bateria e voz) e Sandro Lins (contrabaixo). Gravado no estúdio Carranca, com arranjos e produção da própria banda, Eu disse FREEEEVO! faz jus ao
Destacam-se no álbum os convidados especiais ligados ao Carnaval e os arranjos de sopro, uma tradição do estado
Folião que se preza sabe bem que Carnaval, quando cai em março, não implica atraso nos festejos, e, sim, uma antecipação que se insinua em novembro, engata em dezembro, incendeia janeiro e espreme fevereiro, para explodir logo em seguida. Em 2014, vai ser assim: o terceiro mês do ano abre logo com o Sábado de Zé Pereira. As comemorações, porém, há muito começaram, e foi pensando nelas que o Quinteto Violado, 43 anos de estrada e muitos carnavais no currículo, concebeu o novo álbum, Eu disse FREEEEVO!, encartado nesta edição como brinde aos assinantes e leitores da Continente. A decisão da Cepe Editora de oferecer o novo registro fonográfico do
título exclamativo em suas 16 faixas. Ao lado de ícones tocados por todas as orquestras nas prévias, bailes e desfiles na rua, a exemplo de Banho de cheiro, Frevo mulher, Oh bela! e Me segura senão eu caio, surgem peças inéditas, como Pernambuco doce e Pula frevo. “Da primeira, vamos fazer um clipe, que será uma homenagem a Pernambuco, pois a música fala da beleza do Carnaval e de quitutes como tapioca, quebra-queixo, caldo de cana”, adianta. Já Pula frevo apresenta as familiares vozes de André Rio, Marrom Brasileiro, Gustavo Travassos e o Som da Terra, nomes que há muito se revezam na interpretação de hits que atravessam anos no
cancioneiro momesco e são as participações especiais do disco. O critério para convidá-los foi a representatividade que possuem diante e durante o Carnaval. “Como são artistas de muita expressão e talento, quisemos trazê-los para uma parceria”, resume Marcelo. Outro destaque citado pelos membros do Quinteto Violado são os arranjos de sopro e sua execução precisa. “O naipe de metais que a gente colocou é de primeira qualidade. Pernambuco é berço dos grandes instrumentistas de sopro. Nossos músicos são excelentes e agregaram muita qualidade ao trabalho”, elogia o vocalista, aludindo a Geony Melo (trombone), Derisax (sax alto e tenor), Gedmerson Netto (trompete 1) e Wanderley Cruz (trompete 2). O que não falta, também, são as orquestrações instrumentais que definem o Quinteto Violado desde sua gênese. Frevo na primavera é uma composição deixada por Toinho Alves (1943-2008), fundador e contrabaixista original da banda. A partir de Freviola, instrumental que Marcelo Melo esboçara anos atrás, nasce Freviolando, com letras do poeta José Mauro de Alencar, o Júnior do Bode. “Ou seja, é uma coisa nova que vem de algo que já existia, o que é um pouco a ideia central do disco”, explicita Marcelo Melo. Para ele, o Carnaval é porção crucial da trajetória quintetiana. Dessa forma, Eu disse FREEEEVO! é uma compilação que reúne a essência da banda, com sua proposta de equilíbrio harmônico entre a velocidade do frevo, a doçura da flauta e a potência do contrabaixo. E, embora o show vá ser apresentado em teatro, com cenário e linguagem específicos, seu repertório se encaixa no que os pierrôs, arlequins, colombinas e outras figuras carnavalescas esperam ouvir nas noites do Bairro do Recife ou nas ladeiras de Olinda. “O Carnaval sempre foi presente em nossos momentos. Antes dos trios elétricos, já saíamos com o Bloco Azul, levando orquestras para as ruas. Trabalhamos com Duda, Zé Menezes e vários maestros clássicos do frevo. Faz parte da nossa história”, arremata Marcelo Melo.
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BETO FIGUEROA/DIVULGAÇÃO
Sonoras
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COCO BONGAR Sob a égide de Oxóssi Grupo lança DVD com registro de show e documentário que narra a trajetória artística iniciada em 2001
Oxóssi é um orixá provedor e conectado às artes. Um caçador que sabe o que quer e do que seus pares necessitam, seja o alimento diário ou a cota essencial das linguagens artísticas. Nas palavras do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger (1902-1996), seu arquétipo é o das “pessoas espertas, rápidas, sempre em alerta e em movimento, cheias de iniciativas e sempre em vias de novas descobertas ou de novas atividades”. Como nada é por acaso, ele, também conhecido como Odé, é quem rege o Coco Bongar, grupo nascido na comunidade Xambá do Portão do Gelo, em São Benedito, Olinda, e que neste mês lança seu primeiro DVD.
Festa de terreiro, com tiragem de 2 mil cópias, concretizou-se graças ao aporte de R$ 120 mil do Fundo de Incentivo à Cultura – Funcultura. Em 9 de fevereiro, na Torre Malakoff, o Bongar pede licença ao Dia Universal do Frevo para apresentar sua batida original, o ritmo sincopado, surgido nas celebrações do terreiro desde sua fundação, em 1951. Com produção da Ateliê Filmes, o DVD traz um show completo, gravado em junho de 2012 no Nascedouro de Peixinhos, e o documentário Quando a memória faz a festa, em que a história do grupo criado em 2001 é narrada pelos próprios integrantes e por membros da comunidade.
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DIVULGAÇÃO
Como produto audiovisual, Festa de terreiro cumpre a dupla missão de funcionar como veículo difusor da obra do Bongar e de resgatar a trajetória de Cleyton Silva, Thúlio Nascimento, Moisés da Silva, Shirleno Gomes, Iranildo da Silva e João Alberto da Silva – ou Guitinho de Xambá (voz, composições e letras), Thúlio (caixa), Memé (congas), Nino (abê, a cabaça com chocalho), Iran (alfaia) e Beto (ganzá, pandeiro, maraca e efeitos). Primos de sangue ou de vínculos religiosos, definem-se como um “grupo que pretende realizar o que vivemos na infância”. “Temos laços antropológicos com a comunidade, crescemos participando das festividades, aprendemos com a vivência”, diz Guitinho, o porta-voz do Bongar.
TRADIÇÃO
Eles avaliam o DVD como o ápice de um percurso norteado pelo desafio de “manter a matriz musical dentro do terreiro em confluência com o que chega hoje”. “Somos um grupo de cultura popular dentro da world music”, afirma Guitinho, refutando, porém, os rótulos fáceis “para não cair no genérico nem no folclórico”. Foi apegando-se às tradições, que o sexteto saiu de Pernambuco, circulou pelo Brasil e, em novembro passado, esteve na Alemanha para participar da Womex, a maior feira de música do planeta. Alegram-se ao constatar que o som persiste no DVD tal qual registrado nos dois álbuns, 29 de junho (2005) e Chão batido coco pisado (2009): um diamante bruto, “sem ser lapidado ou burilado como os produtores pensam que deve ser o som da
cultura popular”, reforça o vocalista. As participações de Juliano Hollanda, do pianista paulistano Benjamim Taubkin, do coquista Zé de Teté e de Adiel Luna corroboram a vontade de se manter íntegros mesmo quando alinhados com as inovações e ao dinamismo requisitados pela contemporaneidade. Guitinho e seus companheiros acreditam na transmissão de uma paixão, na perpetuação de um legado ao qual eles expressam sua gratidão por meio da música: “As crianças daqui do Portão do Gelo aprendem conosco e já sabem tocar. É algo próprio, a questão sanguínea conta. Tudo que fazemos tem a participação da comunidade Xambá, assim como era com nossos pais. O DVD trouxe a oportunidade de dialogar com artistas que não são da cultura popular, mas que mantêm a nossa identidade”. Odé, eles explicam, é aquele que vai investigar se a terra almejada pelo seu povo é fértil e produtiva. A pujança do Coco Bongar se reparte nos discos que já existem e no terceiro, já em gestação; no livro Nação Xambá: do terreiro aos palcos, publicado em 2006; e, agora, no DVD que encapsula mais de uma década de carreira. Sob a proteção da ialorixá matriarca Severina Paraíso, a Mãe Biu (19141993), e com incentivo das 100 pessoas que formam a comunidade Xambá, bem como dos fãs que em Quando a memória faz a festa enaltecem a transcendência da proposta sonora, Guitinho, Thúlio, Nino, Memé, Beto e Iran querem levar o Coco Bongar adiante, muito além de fronteiras, preconceitos e rasas classificações. Axé.
Instrumental
AREIA E GRUPO DE MÚSICA ABERTA EM DVD Os artistas pernambucanos vinculados à canção desfrutam de um razoável espaço na mídia nacional. No entanto, os que trabalham com música instrumental ainda amargam uma considerável falta de espaço. Mas alguns novos mecanismos do mercado da cultura e da comunicação têm ajudado a melhorar esse quadro, como é o caso da Lei da TV Paga, que vem promovendo a exibição, nos canais por assinatura, do material realizado por produtoras independentes. Um dos artistas beneficiados é o compositor e contrabaixista Walter Areia. Em janeiro, o Canal Brasil exibiu, em sua programação, o DVD Areia e Grupo de Música Aberta, que traz o registro de show realizado em 2012. O espetáculo apresenta seis músicas do repertório de Areia, que tem dois discos solo lançados. O número reduzido de faixas do DVD se deve ao fato de que cada uma delas se estende por longas improvisações dos músicos da “música aberta”: “Pela observação de que, em algumas formas de música oriental, o improviso se dá por etapas, assim como na poesia do cantador nordestino. Existe o mote e as pessoas ‘brincam’ com ele. E, no final de cada improviso, o reapresentam. Essa é uma forma ancestral de improviso. Quando fiz essa ligação intelectual, fiquei curioso para saber como soaria na prática. Achei que seria uma forma legal de aplicar o improviso à minha música, que era fechada em termos de arranjo. Foi aí que surgiu a ideia do nome: Música aberta”. O grupo, formado pelo saxofonista e maestro Ivan do Espírito Santo (Orquestra Contemporânea de Olinda), o acordeonista Júlio César (Arabiando) e o baterista Cássio Cunha (Alceu Valença e Duna), se mostra bem à vontade para, junto a Areia, engendrar novos caminhos para as composições do contrabaixista, que, além de produtor musical, é conhecido como integrante da Mundo Livre S/A. Após a exibição no Canal Brasil, o DVD, produzido e dirigido pela Ateliê Produções, será lançado ainda este mês. DÉBORA NASCIMENTO
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FOTO: MARCELO SOARES/SECULT/FUNDARPE
No último Festival de Inverno de Garanhuns,
Sonoras VERTIN MOURA Poética sonora de Arcoverde
Conterrâneo do Cordel do Fogo Encantado estreia com Filhosofia, em que exibe letras extensas e imagéticas, apresentadas de modo performático TEXTO Bruno Albertim
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Lirinha não escondia um certo orgulho paternal. “Acho que o meu fazer musical tem grande encontro no Vertin. E eu também aprendo muito com ele”, dizia o agraciado ex-vocalista do Cordel de Fogo Encantado, depois da apresentação do conterrâneo Vertin Moura, o jovem músico de 23 anos que, ao lado de medalhões como Ney e Caetano, fez um dos shows mais impactantes da maratona de espetáculos que se configura relevante no panorama de festivais de gêneros do país. O jovem reconhece – e assume – a filiação. “Sim, eu, de Paulo Afonso, criado em Arcoverde, tive a sorte de ver a efervescência do Cordel (do Fogo Encantado) e ali virei artista”, devolveu o compositor que é grata revelação da música contemporânea de Pernambuco. Sertanejo, estudante de Filosofia, criador de letras narrativas, extensas, imagéticas, dono de uma poética corporal que o situa como um dos raros performers da cena local, Vertin Moura aparece com força no panorama. Acaba de lançar, de forma independente, o álbum Filhosofia. O disco, que marca ponto na linha evolutiva do mercado local, encurta distâncias e revela sentidos entre o cordel de ascendências ibéricas e o pop do século 21. Ainda que vá, consistentemente, por um caminho próprio, a poética de Vertin tem a subscrição da narrativa de Lirinha. “Quando vi o Cordel, eu estava começando a enveredar pelo teatro. Aí, veio aquele cara que falava, que cantava um rock que não é rock, é regional e tem poesia. Achei aquilo f...”, lembra ele, um filho dileto da Arcoverde efervescente, e ainda marginal, da década passada. “Mas não era só o Cordel que existia. Havia outras figuras, como a Mofobia Torreiro, de que eu gosto muito também. Ali, diante deles, decidi que queria ser artista. Na verdade, há uma relação entre Mofobia e Cordel. Foram bandas lançadas na mesma época, as pessoas se revezavam numa e noutra”, lembra.
FILOSOFIA
Vertin usa suas inquietações intelectuais, inclusive acadêmicas, para nutrir o disco. “Vinha reunindo músicas dos 16 até os 20 anos. E Filhosofia é o nome da última canção que compus antes de idealizar o disco.
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INDICAÇÕES Quando cheguei em 2010, tinha feito duas canções e reunido as dos outros anos”, diz. “Aí, na hora de botar o nome no disco, veio a ideia de Filhosofia. Eu já estava cursando Filosofia e aquele era meu primeiro filho. A ideia de juntar as duas coisas veio da consciência que o ser humano tem e do poder de se expressar. A música fala desse devir, desse processo do que ainda vai vir. A última frase diz: “Já me silencio para não calar os vindos que dormem. É esse o processo de construção da humanidade”, raciocina. Vertin não nega: reflete através da música, emoldurada por um pop cioso de tradições e práticas remotas. “Quando idealizei o disco, quis usar a ferramenta da música para alcançar o público com o pensamento acadêmico. Alcançar outros tipos de público. As teorias são sempre feitas para quem tem acesso a elas. Minha maior preocupação é esse lado prático e social do conhecimento. Em todas as canções há aspectos, termos, conceitos ou alguma ligação com temas da dita filosofia ocidental”, diz ele. A canção Mal pudores, por exemplo, é uma crítica à ansiada verdade e ao universalismo do pensamento ocidental. “Até chegar em Nietzsche, a gente não tinha a crítica da verdade. Só a sua busca. Só aí que a gente deu uma quebradinha e disse: para que essa verdade?” Na canção Suor, ele fala dos “suores da vida”. “A gente nunca vai traduzir realmente o olhar do outro. Vai
estar sempre no campo da interpretação. Herdei muito das leituras que fiz sob a orientação do (professor) Érico Andrade, que é minha principal referência na academia.” Há também canções com temas amorosos. Desenho, por exemplo, descreve um pedido de perdão. Mas são as questões mais existenciais que dão o tom teatral às apresentações de Vertin. “O devir é o principal foco do meu trabalho. Eu idealizei o disco como um espetáculo de teatro, como o espetáculo da vida”, diz o filho de evangélicos que teve que se impor em casa para deixar de frequentar os cultos aos domingos e se engajar na cena cultural da cidade onde cresceu. “Se papai ou mamãe me pegassem ouvindo um disco da Legião Urbana na infância, era um problema. Quando meu irmão decidiu começar mesmo a carreira de artista, eu já era adolescente”, diz ele, que, com os irmãos, traçou a mistura de samba de coco, rap e repente, pop brasuca e clássicos do rock mundial que marcariam sua musicalidade. Fã tanto de Kurt Koubain como de Vital Farias, Xangai e Elomar, Vertin confere à sua perfomance uma aproximação com a teatralidade hoje escassa na produção local, desde que Lirinha encerrou a carreira do Cordel. Vendido de forma independente, Filhosofia deve ser encomendado diretamente ao artista (R$ 20, pelo vertin7@ hotmail.com). “A música independente ainda depende de muito apoio”, ironiza.
ROCK
ARCADE FIRE Reflektor Merge
INFANTIL
FADAS MAGRINHAS Fadas Magrinhas Independente
A banda canadense Arcade Fire maturou por três anos o álbum duplo Reflektor. Se, por um lado, manteve a estrutura narrativa de The suburbs, interligando todas as faixas com uma base temática literária, por outro, expandiu o horizonte sonoro. House, dance music e até reggae unem-se a melodias sofisticadas, orquestradas sob o signo dos 1980, e a personagens históricos, como Joana D’Arc. O disco, aliás, é uma releitura do mito de Orfeu, que desce ao inferno para resgatar sua amante, Eurídice.
As gêmeas Aninha e Lulu Araújo, que ficaram conhecidas na banda de Naná Vasconcelos, conquistaram um novo público, o infantil. Sob o batismo de As Fadas Magrinhas, encantaram crianças em diversas apresentações. Agora, lançam seu primeiro disco, que já pode ser considerado um dos melhores do ano e forte candidato a entrar na lista dos clássicos do gênero. Com direção de Hugo Lins e produção musical de Juliano Holanda, o álbum traz um time de peso de compositores e músicos, entre eles, Publius Lentulus, Marcelo Jeneci e Arthur Nestrovski.
ROCK
ROCK
Sony
Matador
BRUCE SPRINGSTEEN High hopes No ano passado, Bruce Springsteen liberou um clipe de registros da plateia de seus shows. No vídeo, a música Dream, baby, dream, cover do duo pós-punk Suicide, embala as imagens. Mas, como já acontecera com I want you, de Bob Dylan, o Boss criou uma nova composição sobre a original. Dream, baby, dream é agora uma das duas covers que fazem parte de High Hopes, seu 18º disco de estúdio, que traz entre as 12 faixas novas canções e sobras de gravação. Embora não seja espetacular, como o disco de outtakes The Promisse (2010), é um bom trabalho.
STEPHEN MALKMUS Wig out at jagbags Stephen Malkmus acaba de lançar o sexto álbum de sua carreira solo, após a saída do Pavement. Com Wig out at jatbags, o Paul McCartney do Indie Rock, empunhando sua sofisticada guitarra, se mantém incólume na posição de exímio compositor de melodias cativantes e belos arranjos, o que pode ser atestado em composições como Houston Hades, J Smoov e Cinnamon and Lesbians. As 12 canções não trazem inovações, mas, mesmo assim, é um lançamento que deve conquistar seu lugar entre os mais importantes do ano.
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CON TI NEN TE
Criaturas
Reginaldo Rossi por Dálcio Machado
Reginaldo Rossi, o Rei do Brega, se achava um pão, o ó do borogodó. Começou a cantar em 1964, na banda The Silver Jets, naqueles bailinhos, em que se dançava bem-agarradinho; e se mandou pro Sudeste, onde fez sucesso junto à Jovem Guarda. Teve altos e baixos e, de volta ao Recife, danou-se a cantar música de “gaia”, recitando centenas de casos de amor. Reginaldo faria 70 anos (bem-vividos até demais!)este mês. Porém, embarcou mais cedo. CONTINENTE FEVEREIRO 2014 | 88
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