Continente #160 - Multidões

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# 160

#160 ano XIV • abr/14 • R$ 11,00

CONTINENTE ABR 14

E MAIS MOZART GUERRA | ULTRAVIOLÊNCIA NA ARTE | SAMIR MACHADO | DRAGÕES | MÚSICA JAPONESA | EVANDRO, O DONO DO IRAQ | QUARESMA CAPA_multidão 2.indd 1

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FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

ABRIL 2014

aos leitores Este é um ano em que lateja no inconsciente brasileiro a imagem de multidões. Pelo menos dois eventos provocam isso: a Copa Mundial de Futebol e as eleições presidenciais. Antes deles, entretanto, temos observado – nacional e internacionalmente – um fluxo de massas nas ruas, sobretudo em reivindicações e protestos. O marco disso está na Primavera Árabe, quando, no final de 2010, milhares de indivíduos foram às ruas pela deposição do ditador Zine El Abidine Ben Ali. No ano seguinte, seria a vez dos egípcios ocuparem a Praça Tahrir, pela renúncia do tirano Hosni Mubarak. Desde então, ocorreram diversas ocupações, manifestações, protestos, sendo o mais representativo no contexto nacional aquele que ficou conhecido como Jornadas de Junho. Diante de tais investidas e a uma certa distância temporal – que nos capacita a interpretações menos efêmeras –, buscamos entender os elementos que ligam tais fenômenos, a partir de uma indagação que intitula a nossa reportagem de capa: “O que querem as multidões?”. Ao mesmo tempo em que fomos atrás de motivações, percebemos que as reações e críticas aos movimentos que têm ocorrido referem-se ao que o mestre em Filosofia do Direito, Bruno Cava, identificou como a perda da “tranquilidade de quem só consegue pensar segundo velhos esquemas, ou que depende da manutenção da ordem vigente para conservar privilégios, da falta endêmica de democracia, da gestão autoritária dos negócios da cidade”.

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sumário Capa

Multidão 6

Cartas

7

Expediente + colaboradores

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Entrevista

12

14

Valter Hugo Mãe Escritor angolano fala do seu novo livro, A desumanização

54

Leitura

64

Entremez

72

Matéria Corrida

80

Palco

84

Sonoras

88

Criaturas

Portfólio

Mozart Guerra O hiper-realismo em escala “real” marca a produção recente do artista pernambucano radicado em Paris

20

Balaio

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Perfil

Marlon Brando O ator de espírito indomável faria 90 anos este mês

Evandro Sena A figura por trás de um dos melhores espaços culturais alternativos da cidade, o Iraq

Quaresma Durante 40 dias, os católicos mais empedernidos mantêm uma dieta de rigores

59

Conexão

Caminhos do romance Site expõe o desenvolvimento do gênero literário no Brasil

Cardápio

Ordem mundial está sendo colocada em xeque desde que surgem, em todo mundo, manifestações e protestos, muitos deles organizados e debatidos nas redes sociais

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Romance histórico Em Quatro soldados, Samir Machado constrói narrativa de aventura sobre disputas territoriais que estão no ethos gaúcho

Ronaldo Correia de Brito Juazeiro do Norte não é Rouen

José Cláudio Minha tarde de herói

Anjo Negro Adaptação dá tratamento cênico inspirado nas religiões afro-brasileiras à peça de Nelson Rodrigues

Experimentações Bandas japonesas surgidas da fusão entre o post e o math rock chegam aos admiradores brasileiros via web

Dorival Caymmi Por Humberto

Comportamento Ultraviolência

Foi no romance Laranja mecânica, de Anthony Burgess, que o termo foi primeiramente usado. Hoje, é possível observá-lo em vários gêneros artísticos

50 CAPA FOTO Agência Brasil

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História

Viagem

Bicho fabuloso, este réptil voador está no imaginário popular desde a Antiguidade. Na Idade Média, ele ganhou fama de mau, quando foi vencido por São Jorge

Cidade histórica do interior paraibano é toda enfeitada de cores, no belo casario eclético que ostenta, e oferece aos visitantes opções de passeios ecológicos

Visuais

Claquete

Exposição, inspirada no poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, reúne obras de artistas brasileiros que discutem os problemas sociais do país

As aproximações entre as linguagens do teatro e do cinema em obras que contribuem para a dilatação do conceito de gêneros e provocam o público

Dragões

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Cães sem plumas

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Areia

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Abr’ 14

Diálogos

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cartas você sabe o que é um abilocil? uma baldroca? uma cacerenga? um debo? um embeleco? e um fifó?

REPRODUÇÃO

Ponta cabeça Recebi hoje a Continente, nº 158, de fevereiro deste ano, que traz um portfólio do meu trabalho. As imagens e texto estão ótimos, parabéns. O único problema é que a primeira imagem do prato com olhos está de ponta cabeça. Fora isso, a revista é ótima, com qualidade técnica e de conteúdo. EFRAIN ALMEIDA RIO DE JANEIRO–RJ

Entremez Mesmo sem entender os contextos da teledramaturgia citada no ensaio de Ronaldo Correia de Brito, na edição de março, nº 159, ficou clara a mensagem... Enriquece meus argumentos quando falo em “sociedade de valores psicopáticos” e o colunista, quando fala em uma “sociedade de personalidades psicopatas”. Resumindo: foi fantástico o texto e a nova argumentação oferecida. LEONARDO LIRA RECIFE–PE

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas.

Passe o grau neste livro e fique por dentro!

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colaboradores

Alexander Martins Vianna

Fábio Lucas

Humberto

Rafael Dias

Professor de História Moderna do Departamento de História e Relações Internacionais da DHRI-UFRRJ

Jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio

Ilustrador e chargista, passou pelos principais jornais pernambucanos, e hoje está na revista Algomais

Jornalista e mestre em Comunicação Social pela UFPE

E MAIS Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Clarissa Macau, jornalista. Guilherme Novelli, jornalista. Gilson Oliveira, jornalista e revisor do suplemento Pernambuco. Leo Caldas, fotógrafo

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VALTER HUGO MÃE

“Acho que a arte tem de conter uma utopia” Escritor angolano, radicado em Portugal, comenta seu mais recente livro A desumanização, que é ambientado na Islândia e narrado por uma garota, e a reincidência da temática da família nos seus romances TEXTO Luciana Veras

CON TI NEN TE

Entrevista

“Éramos gêmeas. Crianças-espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte.” A dor da perda, enunciada pela irmã sobrevivente Halla, dá o tom na primeira página de A desumanização, novo romance do português Valter Hugo Mãe, lançado no Brasil (Cosac Naify) neste mês. Sexto livro do angolano, nascido em 1971 e radicado em Portugal, é o primeiro a se afastar de solo pátrio rumo a um novo horizonte narrativo – e mais um capítulo da trajetória iniciada em 2004, com O nosso reino, e seguida por O remorso de Baltazar Serapião (2006), O apocalipse dos trabalhadores (2008), A máquina de fazer espanhóis (2010) e pelo sucesso de O filho de mil homens (2011). Por telefone, em uma recente madrugada europeia, o poeta, cantor, compositor, escritor também de livros infantis Valter Hugo Mãe falou à Continente sobre A desumanização. Narrada por uma garota de 11 anos entre fiordes, rompantes de violência, saudades e descobertas na longínqua Islândia, a obra evidencia a delicadeza do estilo linguístico que o caracteriza, aprofunda temas já apresentados,

porém, talvez pela paisagem extraordinária (descrita com precisão e melancolia), vislumbra um outro caminho para esse autor que fala de pessoas que amam, erram, perdem, choram e sempre perseguem qualquer coisa que se possa sentir. Sentimento não lhe falta. Surge na conversa o assunto da paternidade, de que tratou em entrevistas na sua última vinda ao Brasil (em novembro/2013). VHM não refuga: “Todo mundo foi deixado ou já deixou alguém, toda gente falhou em alguma coisa. Não preciso ter vergonha de não ter filhos, mas sinto uma frustração de não ter. A gente deve ter vergonha de outras coisas, de roubar, de matar. As pessoas vivem muito assustadas consigo mesmas. Elas são os seus próprios predadores”. Pais e filhos, amantes, viúvos, crianças e adultos, predadores ou não, pertencem a seu universo literário e estão sempre a acompanhá-lo. CONTINENTE A desumanização é seu sexto romance e o primeiro em que você sai de Portugal, levando a história a um cenário diferente e inóspito. O que gerou essa mudança?

VALTER HUGO MÃE Eu sempre tive essa coisa de fugir dos livros que já escrevi, de não deixar que algo vire uma receita. Para mim, sempre foi muito importante partir de outros pressupostos, de outras referências, de outras personagens, muito embora as minhas nunca tenham sido exatamente coincidentes comigo enquanto pessoa. Ao fim de cinco romances escritos dentro de uma mundividência mais ou menos portuguesa, achei que precisava aumentar o desafio. Então, precisei sair, a escrever como se estivesse a começar tudo, como se verdadeiramente começasse outra vez, a aprender outra vez como fazer um romance. A Islândia era um país que me fascinava há muito. Sempre quis lá ir, conhecer melhor sua cultura e achei que era a oportunidade perfeita: começar um livro em que as minhas referências portuguesas não estivessem em causa e talvez não servissem para nada. Aquilo que diz respeito especificamente a Portugal não interessa nada a A desumanização. Correr esse risco foi a minha intenção.

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NELSON D AIRES/DIVULGAÇÃO

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família, como a narradora e sua mãe. Como se dá esse conflito em A desumanização? VALTER HUGO MÃE Sou muito crítico em relação ao espartilho criado para o que deve ser uma família. Porque as famílias são tudo e não há famílias normais. As famílias são feitas de todas as formas. Creio que, em A desumanização, como em O filho de mil homens e em todos os meus livros, faço uma crítica à visão fechada da família. Isso porque eu fiquei solteiro, odeio ter ficado solteiro, não tive filhos, odeio não ter filhos... Preciso

REPRODUÇÃO

CONTINENTE Na narrativa, existe a opressão da natureza, que é tão forte no que Halla está contando, e ainda a vastidão da paisagem, os fiordes, o frio e também a solidão. Aquelas pessoas estão isoladas numa vila que parece tão pequena como a dos Sargas em O remorso de Baltazar Serapião. A sensação de isolamento fica amplificada pelo fato de ser na Islândia. VALTER HUGO MÃE Exatamente. Essa história poderia ser mais ou menos contada acerca de outro país, mas nunca resultaria no mesmo livro. Ao mesmo tempo, há uma sensação da própria Islândia ser gente, do próprio lugar ser

CON TI NEN TE

“Essa história poderia ser mais ou menos contada acerca de outro país, mas nunca resultaria no mesmo livro. Ao mesmo tempo, há uma sensação da própria Islândia ser gente, do próprio lugar ser gente”

Entrevista gente. E isso leva a uma construção que me interessou muito porque conduz a uma ideia complexa da solidão. Para nós, que talvez estejamos habituados a outros tipos de lugares ou outros tipos de paisagens, quando estamos no fim de uma montanha, podemos sentir que estamos absolutamente sós. Mas, efetivamente, aprendi que os islandeses dificilmente se sentem sós, porque espiritualizam a natureza. Sendo espiritual, a natureza é sempre uma companhia. Ouvi muito isso na Islândia, pressenti muito essa questão espiritual da natureza, como se ela tivesse uma forma de inteligência e tomasse decisões. CONTINENTE Ao mesmo tempo em que aponta para a diferença de estar ambientado fora de Portugal, A desumanização traz temáticas que são recorrentes nos seus livros. Uma delas é a família, presente na sua obra, mas nunca de maneira convencional. No romance, volta a existir um tensionamento entre figuras-chave da

VALTER HUGO MÃE Sou muito obstinado. Fico muito obcecado com as personagens, fico procurando-as e mantendo-as muito próximas. Quando começo a criação de um livro, quando eu decido sobre o que quero escrever, de uma forma um pouco estranha, porque é uma decisão quase compulsiva quando me surge a primeira personagem, começo colecionando características. Todas as palavras, aquilo que vou escutando nas ruas, as minhas conversas com os amigos, tudo é uma espécie de casting. Costumo dizer que tem uma fase

acreditar numa família diferente, preciso acreditar que outras pessoas podem me ser familiares. Então, os meus livros passam muito por essa construção ou desconstrução do mito da família tradicional. Conto muito e quero muito contar com amigos como gente de casa, como família. Em O filho de mil homens, o que eu faço? Invento um mundo de gente que não tem nada a ver uns com os outros, uma gente improvável que termina pertencendose. Em A desumanização, faço o contrário: começo com gente que se pertence e, que, depois, de uma forma improvável, se afasta. Os dois livros ironizam esse papel tradicional da família. CONTINENTE Como convive com os personagens enquanto está pensando em um novo livro? É uma ideia, uma voz que surge, um desejo de mudar, de falar de um outro jeito? E depois, como se despede deles para buscar novos caminhos?

em que faço o casting das personagens. Às vezes, não só para encontrar a personagem, mas para encontrar como ela é, o que diria, que tipo de linguagem poderia ter. E o mundo, nessa altura, é mais interessante se me corresponder e é menos interessante se não me corresponder. Se eu estiver escrevendo sobre a Islândia, nesse momento, ela é quase o único lugar do mundo onde eu quero estar, único lugar capaz de ser bonito. É claro que é uma loucura, mas é um enfoque, uma forma de degustar. Sempre tenho isso. Quando escrevi O filho de mil homens, por exemplo, há umas passagens em que falo de orégano. Durante a escrita, eu andava obcecado com orégano. Houve uma garota que ofereceu para mim um ramo de orégano e eu coloquei na sala. Toda gente entrava no meu apartamento e achava que eu tinha mandado vir pizza. Porque tem esse cheiro e todo mundo achava que eu tinha acabado de

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receber a pizza e ia comer. É uma fixação que leva a que eu mantenha de perto as coisas que me remetem ao livro.

do livro vai decidindo muita coisa. Por vezes, tenho a sensação de que não sou nem eu a decidir coisas minhas.

CONTINENTE Como essa fixação, a coleta das referências e a feitura do casting se transmutam em linguagem? Você tem uma escrita peculiar, descrita por José Saramago como um “tsunami linguístico”. Como é o trabalho da escrita, de forjar as frases? É o tipo de escritor que tem disciplina, que reserva horários para escrever? VALTER HUGO MÃE O livro começa com apontamentos, impressões, pequenas palavras, frases que vou tomando nota num caderno. Só mais tarde, quando o caderno está, eu diria, meio ou às vezes cheio, é que começo efetivamente a escrever. Só depois de ter uma ideia mais ou menos clara de quem é o sujeito sobre o qual vou escrever é que começo. Mas nunca escrevo de manhã. Acho obsceno acordar cedo, procuro acordar sempre tarde. Sou muito indisciplinado. Na maneira como escrevo, sou muito intuitivo. Normalmente, as frases e o modo às vezes estranho da expressão surgem como por uma oferta do inconsciente, uma coisa que está lá e que vem de uma qualquer natureza. O que me acontece é que, normalmente, começo mesmo a escrever. Há qualquer coisa que me ajuda, que não sei bem explicar, mas que ajuda a encontrar diferenças, a encontrar caminhos menos óbvios. Sempre termino grato.

CONTINENTE Nos seus livros, as personagens estão sempre em movimento. Depois que Sigridur morre, Halla empreende a sua jornada em A desumanização; Crisóstomo sai de um lugar para achar Isaura em O filho de mil homens; já em O apocalipse dos trabalhadores, Andriy é um imigrante da Ucrânia completamente desenraizado. O tema do deslocamento, de identidade e migrações é uma constante na sua obra. De onde vem isso? VALTER HUGO MÃE Esse movimento é uma mistura, uma mescla, e essa é a forma de colocar em crivo tudo aquilo em que nós acreditamos. Quando nós nos deslocamos, saímos do nosso lugar, repensamos as coisas, recomeçamos. E afinal percebemos que o mundo pode ser completamente de outra maneira e que aquilo que nós tomamos como certo pode ser absolutamente errado. Por isso é um combate a uma identidade empedernida. A viagem tem isso, não é? A viagem é construção de uma identidade dinâmica. Viajar, sair, mover: nós não deixamos de construir uma identidade, mas passamos a ter a noção de uma certa dinâmica das coisas, que nos leva a perceber que tudo podia ser de outra forma. Que aquilo que nos foi dito quando pequenos só é válido na medida em que nós quisermos que isso seja válido. Porque o mundo pode ser completamente da outra maneira.

CONTINENTE E como segue em frente? VALTER HUGO MÃE O livro, quando acaba, fico desolado, derrotado. É porque aquilo é estranho, é quase uma forma de pensar; não tem como sair dali e voltar ao normal, ao que era antes. A gente muda com os livros. Os livros são modos de ver aquilo que não tínhamos visto até então, mas, depois de ver, não dá pra ignorar que vimos. Não dá para voltar a ser criança. O que acontece é que, ao mesmo tempo em que fico muito deprimido quando termino o livro, procuro aprender a perdê-lo e depois a ganhar algum outro livro qualquer, a ganhar outra gente qualquer. É sempre essa relação de acabar e recomeçar. No fundo, é quase como voltar sempre atrás, voltar sempre ao lugar de início, voltar a aprender tudo, tudo quanto seja possível. Mas tenho sorte: a natureza

CONTINENTE Que autores você lia no início da construção do seu eu literário? E quais escritores o fascinam hoje? VALTER HUGO MÃE Eu lia sobretudo poesia. É claro que foi muito importante para mim a prosa de Kafka, mas, sinceramente, os autores com os quais me fascinei e aprendi a escrever foram: um português chamado Herberto Helder, um poeta que eu adoro, Ruy Belo, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, que foi alguém que li muito... Também Manoel de Barros, Walt Whitman, um poeta português chamado Alberto de Oliveira, Luís Miguel Nava, Adília Lopes, todos poetas. Atualmente, gosto muito de um espanhol chamado Ricardo Menéndez Salmón. Ele escreveu uma trilogia do mal, que começa com um

livro chamado A ofensa, e eu o adoro. Das últimas coisas que tenho lido de novas gerações, é o que tenho lido com mais gozo. No Brasil, gosto muito de Marcelino Freire. Acho excelente. Gosto de Evandro Affonso Ferreira, que finalmente ganhou o Jabuti que estava para ganhar há muitos anos, e, dessa vez, ganhou e fiquei contente. Na poesia, há uma senhora americana que leio muito, que se chama Sharon Olds. É muito forte, muito poderosa. CONTINENTE O processo de tradução dos seus livros é algo que o interessa como autor? VALTER HUGO MÃE Interessa-me e angustia-me muito, mas não consigo acompanhar de perto. Isso rouba muito tempo e implica que eu esteja sempre a viver no passado. Os livros são traduzidos com muita lentidão. Por vezes, eu estou nesse momento, acabando de editar A desumanização, mas as traduções são de A máquina de fazer espanhóis, O apocalipse dos trabalhadores ou O filho de mil homens. Ou seja, é sempre assim uma espécie de passado que fica assombrando. Tento me distanciar e criar alguma liberdade, mas eu quero muito que os livros fiquem bem-traduzidos. Fico muito contente quando percebo que a pessoa que está a traduzir está entusiasmada. Quando as críticas que saem em França, por exemplo, elogiam muito o trabalho da tradutora francesa, e a ela própria, isso me deixa satisfeitíssimo. CONTINENTE Em O apocalipse dos trabalhadores, seu Ferreira ouve o réquiem de Mozart, aprecia muito a arte e tenta incutir essa fruição em Maria das Graças, naquela relação cheia de particularidades, e a doméstica entende que aquilo, até então desconhecido, tem um quê de sublime. Para você, qual o papel da arte num mundo cada vez mais efêmero? VALTER HUGO MÃE Acho que a arte tem de conter uma utopia. Nem todos os artistas hão de ser assim. Muitos são só gente desencantada, que parece querer magoar o mundo porque foi magoado. Vejo a arte como uma esperança, uma utopia de salvar e redimir tudo, e me interessa muito que aquilo que eu faço possa ter um valor para alguém. Sei que não vou salvar o mundo, mas há qualquer coisa que pode vir de uma contribuição de cada um de nós, e, por isso, sim, acho e quero muito que a arte salve o mundo.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

MULTIDÃO

VIAGEM

Os interessados em refletir sobre o conceito de multidão – nossa matéria de capa desta edição – encontrarão material complementar no site. Estará disponível a versão completa da entrevista com o escritor e blogueiro Bruno Cava, autor do livro A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013. Haverá uma lista de outras publicações que tratam do tema, e também de filmes relacionados. Ainda será possível assistir ao documentário US now, que aborda a força da coletividade em tempos de organização via redes sociais.

Aprecie outras fotografias de Areia, cidade histórica do brejo paraibano, localizada a 100 km de João Pessoa, famosa por seu casario e pelos passeios ecológicos.

Conexão

SONORAS Ouça composições das bandas japonesas instrumentais, surgidas da fusão entre o post e o math rock, como a Toe, Mouse On The Keys e Lite.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

CULTURA

SEXUALIDADE

VANGUARDA

TURISMO

Produtor do Creative Commons reúne notícias e publicações

Discussõe sobre feminismo lésbico e bi em destaque

Uma historiografia do movimento a partir do Lira Paulistana

Dicas do que fazer e de onde ficar no Recife e em Olinda

www.lessig.org

www.autostraddle.com

www.vanguardapaulista.com.br

compartilherecife.com.br

Lawrence Lessig é professor de Direito na Universidade de Harvard e um dos responsáveis pela criação do Creative Commons. Em sua luta por uma cultura livre das restrições impostas pelo copyright (os direitos autorais), Lessig escreveu uma série de livros nos quais revê o conceito de autor, questiona a noção de pirataria e aproveita para fazer um histórico da legislação da propriedade intelectual nos Estados Unidos. Em seu site, ele alimenta um blog com notícias relacionadas ao assunto e disponibiliza algumas de suas publicações.

Fundado em 2009, o Autostraddle concilia questões triviais com discussões sobre gênero e sexualidade. Com teor feminista e direcionado às lésbicas e mulheres bissexuais, o site garante postagens regulares com notícias relacionadas, galerias de fotos e uma série de colunas, como a Movie Night, que faz indicação de filmes, e a Queer Girl City Guides, que mostra guias turísticos específicos, feitos por mulheres que vivem a cidade. O site declara, ainda, sua intenção de criar um ambiente não opressor às mulheres trans.

O site é parte do filme de Riba de Castro, lançado em 2012, Lira paulistana e a vanguarda paulista. Nele, uma rádio disponível para ouvir artistas que fizeram parte do movimento, como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. “Causos” contados pelos antigos frequentadores e uma disposição de peças, shows e filmes que estrearam no centro cultural Lira Paulistana estão organizados cronologicamente. Uma seção intitulada Canjas reúne vídeos de cantores que tiveram algum envolvimento com o teatro, cantando músicas da Vanguarda.

Nas mãos dos jornalistas Mariana Pontes e Paulo Carvalho, o recém-lançado portal Compartilhe Recife monta uma agenda da cidade a partir dos lugares que consideram interessantes. O turista que vier à capital ou à vizinha Olinda encontrará roteiros para conhecer os pontos turísticos das cidades em apenas um dia ou mais. Além disso, dicas de como usar o transporte público, desde o aeroporto, e indicações de lugares para se hospedar e fazer refeições.

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REPRODUÇÃO

blogs MOREIRA SALLES www.blogdoims.com.br

O Instituto Moreira Salles mantém três centros culturais no país e publica livros, catálogos e revistas regularmente. O blog, além de trazer a agenda dos espaços, é atualizado com postagens sobre os principais temas do instituto: música, literatura, artes visuais e cinema. Geralmente, as postagens se referem à programação e disponibilizam parte do acervo, montado a partir das exposições realizadas.

ROMANCE NO BRASIL

ANIMA MUNDI

Pesquisa nascida da parceria entre instituições de São Paulo e Minas Gerais, examina a entrada do gênero romanesco no Brasil e a consolidação de um estilo www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br

O projeto de pesquisa Caminhos do romance no Brasil – séculos XVIII e XIX,

financiado pela Fapesp, tem uma proposta interdisciplinar de reunir pesquisadores e colaboradores das áreas de História e Letras para a apuração do tema. São quase 50 profissionais e estudantes que investigam os primeiros romances chegados ao Brasil e o processo de implantação e consolidação do gênero no país. A análise é feita a partir dos próprios romances, das práticas de leitura que eles iniciaram e dos espaços em que essas práticas aconteceram. Além disso, quatro objetos são focos de investigação: os pareceres dos censores que decidiam o que era conveniente de entrar no Brasil ou aqui ser traduzido, a construção de bibliotecas privadas e o movimento livreiro, a consolidação da importação do gênero e a relação entre o romance brasileiro e o inglês, nesse período. O site reúne, ainda, uma biblioteca virtual – na qual se pode buscar um romance tanto pelo título como pelo autor – com obras que se relacionam ao tema do estudo e uma cronologia detalhada da ficção brasileira, inglesa e da tradução para o português. Teses e ensaios que acompanham o tema proposto também têm uma seção reservada. PETHRUS TIBÚRCIO

blog.animamundi.com.br

O maior festival de filmes de animação do Brasil, o Anima Mundi, destina um espaço para a divulgação de notícias relacionadas ao gênero. No blog, a organização do festival disponibiliza making ofs, tutoriais e divulgação de oficinas. O festival acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo e depois segue para outras cidades.

GILMORE GIRLS gilmoregirlspopculturereferences.tumblr.com

Prince, Condoleezza Rice e The Breakfast Club são algumas das referências feitas na série de TV Gilmore Girls. Suas sete temporadas são marcadas pelas menções consecutivas a filmes, livros e bandas que ajudam a autora, Amy Sherman-Palladino, na composição das personagens. O tumblr faz uma reunião desses momentos para os fãs que acumulavam lembretes de “procurar depois”.

sites sobre

crowdfunding CATARSE

SOCIAL BEERS

QUEREMOS!

www.catarse.me

socialbeers.com.br

fundrise.com

O Catarse é a plataforma mais popular de financiamento coletivo no Brasil. O site aceita projetos divididos em quase 30 categorias, como arte e mobilidade.

Baseado no mesmo princípio de colaboratividade, o Social Beers especifica sua rede de financiamento à produção de cervejas artesanais.

Fãs e produtores podem se organizar no Queremos! para promoverem shows em suas cidades. Os artistas também podem descobrir onde têm público.

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ORLANDO DOS SANTOS/DIVULGAÇÃO

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CON TI NEN TE

Página anterior 1 BABUÍNOS

Portfólio

Personagens que surgem em posições humanas são recorrentes em seus trabalhos

Mozart Guerra

HIPER-REALISTAS E INSTIGANTES TEXTO Laís Araújo

Nesta página 2 INSPIRAÇÃO

Uma viagem ao Japão resultou na coleção de gueixas com bocas costuradas

“Minha primeira grande exposição foi num bar em que eu trabalhava

como garçom na Rua das Graças”, conta Mozart Guerra, escultor recifense radicado em Paris desde 1992. Antes dos espaços em galerias, feiras de arte e casas de colecionadores, o artista plástico teve como marco de sua carreira essa mostra no ambiente pouco ortodoxo do Depois do Escuro, querido dos recifenses nos anos 1980. “Era um espaço que muita gente ligada à arte frequentava, um bar cultural. Pedi ao dono para fazer a decoração, as pessoas gostaram, vieram falar comigo.” Inspirado em quadrinhos, Mozart espalhou pelo ambiente – em cima das caixas de som, presas ao teto – esculturas de materiais simples, que deram identidade ao local. Sua preferida dentre estas obras (atualmente perdidas) era uma noiva nua feita de papel. “Evoluí muito desde ali.” Hoje, outros elementos marcam seu trabalho: o hiper-realismo e a escala 1:1 unem-se ao inusitado material do revestimento – em cores e texturas fortes – dos objetos e esculturas. Os materiais que mais utiliza agora são poliestireno, espuma expansiva e cordas de náilon.“As cordas apareceram quando quis me afastar um pouco da pintura. Me emocionei com o resultado. Meu trabalho é autodidata, então, sentir esse prazer e emoção é algo que pontua todas as mudanças no que faço.”

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KRISTINE THIEMANN/DIVULGAÇÃO

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3 INDÍGENAS Seu trabalho lança um olhar crítico sobre comunidades ameaçadas 4 MATERIAIS Cordas de náilon foram incorporadas resultando em novas dimensões e texturas

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KRISTINE THIEMANN/DIVULGAÇÃO

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CON TI NEN TE

5 CRIADOR E

Portfólio

Mozart é graduado em Arquitetura e trabalhou como cenógrafo de teatro e cinema. Dividiu ateliê com diferentes artistas que “remavam como ele, começando a carreira”. Durante o governo Collor, resolveu tentar a vida longe: foi para a França. “Quem vivia de artes plásticas no Brasil era a classe média, classe média alta, sabe? Era difícil.” Sua partida ocorreu numa época em que as atenções se voltavam à produção artística do Recife. Mas foi só em Paris, ouvindo uma estação de rádio francesa – hábito que, junto com a audição de canções de jazz, cultiva até hoje durante seu processo de criação –, que escutou pela primeira vez Chico Science (na mesma rádio, bem depois, ouviu também uma versão japonesa de Paraíba, de Luís Gonzaga. Não ficou mais surpreso com nada). Suas referências vêm de todos os lugares, resultando numa obra bastante autoral. “Tudo que vejo, eu assimilo.”

CRIATURA

A escultura em 1:1 une o mundo real ao da fantasia

Pelo menos a influência do colombiano Fernando Botero o público recifense pode avistar numa escultura de sua autoria, a Mulher acocorada, feita no ínício dos anos 1990, que compõe o acervo do Parque das Esculturas, no Shopping Recife. “Basicamente porque nós dois trabalhávamos com gordos”, resume. Além da corpulência das obras de Botero, da versatilidade de David Mach e do hiper-realismo gigante de Ron Mueck, o que – naturalmente! – inspira Mozart são seus próprios pensamentos e vivências. A imagem do alvo, constante em suas obras desde seu início, ele afirma ter sido um insight: além do efeito estético hipnótico, há a simbologia de um jogo cínico. “É lúdico e colorido, mas é ambíguo. Há uma ironia, uma diversão estranha naquilo. O que a gente aprecia a gente destrói.” Um dos usos mais marcantes dos elementos desse objeto está nas esculturas

6 ESTILO Grafismo e policromia marcam sua obra

de rostos indígenas, esculpidos minuciosamente e revestidos com cordas coloridas, cercados pelas linhas de mira. A criticidade na sua obra é também manifestada em outras coleções, como nos babuínos em posições humanas e nas gueixas com bocas costuradas. Foi, ainda criança, morador do Bairro do Arruda, zona norte do Recife, que ele manifestou suas habilidades artísticas, criando os próprios brinquedos. No nosso encontro, sentado numa varanda próxima ao lugar onde cresceu, Mozart contou de sua saudade: “Uma vez fiquei três anos sem vir ao Brasil. Na despedida, tive aquela dor na hora de embora. Não quero mais isso”. Dias depois, encontro Mozart no Bloco Amantes da Glória, no Carnaval, e lembro uma de suas últimas falas: “Construí minha vida na França e quero ficar lá, mas sou do Recife. Escreve que amo isso aqui e que ainda sou recifense”.

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DIVULGAÇÃO

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

BRANDO, O BAD BOY

Marlon Brando, o selvagem O selvagem (1953), filme que lançou para o mundo o estilo de vida rock’n’roll, também mostrava na tela o que se via nos bastidores: a rebeldia de Marlon Brando, intérprete do protagonista Johnny Stabler. Esse espírito indomável do ator, cujos 90 anos de nascimento completam-se neste mês, começou a despontar ainda na juventude, quando foi expulso da escola por andar de moto nos corredores. Numa aula de teatro, por exemplo, após o professor pedir para os estudantes agirem como galinhas durante uma sirene de ataque aéreo, Brando foi o único a ficar quieto. O instrutor questionou e o rapaz respondeu: “Sou uma galinha. Não sei o que é uma sirene de ataque aéreo”. No cinema, costumava ser insubordinado: recusou-se a decorar as falas de Jor-El, do Superman (1978), e a emagrecer para o papel do Coronel Kurtz, de Apocalipse now (1979), quando já havia se comprometido a perder peso. O diretor Francis Ford Coppola teve que sanar o inesperado problema utilizando uma fotografia repleta de penumbras. A irreverência máxima de Brando se deu na entrega do Oscar de melhor ator, por O poderoso chefão (1972), quando enviou, em seu lugar, uma atriz vestida de índia para receber a estatueta, em protesto contra a forma como o povo indígena era tratado pelos EUA e pela indústria cinematográfica. “A única razão pela qual estou em Hollywood é que eu não tenho a coragem moral de recusar dinheiro”. DÉBORA NASCIMENTO

CON TI NEN TE

A FRASE

As excentricidades daquele que era considerado por muitos críticos, como Roger Ebert (1942-2013), o ator número 1 do mundo pareciam não ter fim. Na frente da residência de Marlon Brando, em Los Angeles, havia um ímã gigante, que era acionado por ele, se algum carro suspeito estacionasse no local. Quando o ator Wally Cox faleceu, em 1965, o astro se prontificou a jogar suas cinzas ao mar. Em vez disso, levou os restos mortais para casa. Posteriormente, em sua autobiografia, revelou que costumava conversar com o amigo de infância já morto. Os resíduos só encontraram o destino esperado pela família após a morte de Brando, em 2004. No ano seguinte, um leilão provava o fascínio do ator. Uma cópia do roteiro de O poderoso chefão foi vendida a 312 mil dólares. Tudo isso porque continha anotações do astro. O valor de sua letra é tal, que muitos cheques emitidos por ele nunca foram descontados. (DN)

Balaio MOSQUEIRO

“Os pecados do ladrão são as virtudes do banqueiro.”

Já frequentei tudo que foi lugar detonado. Beco da Fome, bares de praia, mercados públicos, como os de Afogados e Casa Amarela, ou barracas de bairros bem “calminhos”, tais como Coelhos, Arruda, Nova Descoberta, Vasco da Gama. Mas, desta vez, me rendo. O Bar Tricopa, reduto de estudantes de Ipanema, no Rio de janeiro, está de luto. Seu dono morreu deixando histórias de arrepiar os intestinos. Uma delas: um rapaz aponta para o balcão e pede: “Me dá esse quibe, por favor”. E o garçom, espanando o salgado, de onde sai uma tuia de moscas em revoada: “Não é quibe não, moço. É ovo cozido”. (Luiz Arrais)

Bernard Shaw, dramaturgo

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NOTÍCIAS DE MARÇO O ano está longe de terminar, mas o mês de março, até agora, vem se mostrando o campeão de notícias bizarras. Na Inglaterra, um casal deixou sua cadela boxer no banco de trás do carro. Insatisfeito com a situação, o animal passou para o banco do motorista, sentou-se e apertou a buzina durante 15 minutos, até os donos aparecerem. Também do Reino Unido veio outra história esquisita. Uma adolescente namorou por duas vezes o mesmo rapaz, achando que eram pessoas diferentes. Depois descobriu que se tratava de uma amiga que conheceu numa festa. Mais um fato estranho foi o da jovem que procurou por si mesma (!). A canadense, que estava num passeio de ecoturismo na Islândia, resolveu ir ao banheiro e trocar de roupa. Na volta, o guia notou que alguém do grupo havia sumido e deu a descrição da mulher. A turista se juntou às buscas. Após horas de procura, uma pessoa lembrou que a viu com a roupa anterior e o malentendido foi desfeito. A moça virou notícia no mundo todo, deve ter recebido olhares tortos pelo resto da viagem, mas, pelo menos, se encontrou. Março realmente foi um mês atípico. E olhe que nem falamos do avião que havia sumido... (DN)

ARQUIVO

Terrorista patricinha Em 15 de abril de 1974, o mundo foi surpreendido por uma imagem captada pelas câmaras de segurança do Hibernia Bank, na cidade de San Francisco, na Califórnia, EUA. É que, empunhando uma senhora “metranca” e ameaçando funcionários e clientes da agência, era reconhecida entre os terroristas a figura da burguesinha Patricia Hearst, filha do multimilionário William Randolph Hearst, magnata de um conglomerado de comunicações. O surpreendente é que Patty estava junto a militantes da organização do Exército Simbionês de Libertação que a tinham sequestrado dois meses antes, exigindo, além de muita mufunfa, outros adendos, como caminhões cheios de alimentos para pobres em troca de sua liberdade. Para muitos, ela estaria drogada, ou mesmo abilolada, à custa de lavagem cerebral. O que foi dito em sua defesa, no julgamento a que foi submetida, tempos depois, é que se tratava da Síndrome de Estocolmo, o que atenuaria a sua pena, de sete anos, depois transformada em perdão por Bill Clinton. No fim, leve e solta, com dinheiro suficiente para lavar a égua, casou-se e hoje vive na Califórnia se refestelando do bom vinho e do melhor caviar. Seus companheiros da organização antiburguesa acabaram todos com azeitonas na testa ou em outras partes do corpo, ministradas por agentes do FBI. (LUIZ ARRAIS)

MARVIN GAYE, NA WEB Há 30 anos, um dos nomes mais singulares da soul music morria de forma trágica: Marvin Gaye foi assassinado pelo próprio pai, aos 45 anos. Quando da sua morte, o cantor vivia uma época de renascimento, graças ao sucesso do hit Sexual healing, que acabou regenerando seus excessos do final dos anos 1970. Graças ao YouTube, relembrar o impacto da música de Gaye tem sido cada vez mais uma experiência elaborada. Entre as raridades que você encontra, uma versão a capela (só voz) de I heard through the grapevine e imagens de ensaio em hotéis pouco iluminados, flagrando o músico insone e com a voz afiada. É o caso do video em que ele é flagrado cantarolando o clássico I want you. (Schneider Carpeggiani)

OS BRUTOS TAMBÉM AMAM (2) Seria uma nova versão de O segredo de Brokeback Mountain? Ou um duelo de pistolas? Steve Mcqueen, conhecido como o rei do cool, fazia o gênero machão, apesar de o tampinha deste tamanho ter-se esparramado quase aos beijos nos ombros do bruto John Wayne. Nascido Marion Morrison (humm...), Wayne, em momento rala-bucho, ficou mais conhecido pela sua sanha sanguissedenta incontrolável em detonar tudo que passase pela sua frente: bandidos, cavalos, índios, cactos, postes, mocinhas etc. (LA)

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SITE CIDADEDORIO.COM

Nos últimos anos, temos assistido, em todo o mundo, ao fluxo constante de pessoas nas ruas em reivindicações e protestos. Uma evidência de que a atual ordem global está em xeque TEXTO Fábio Lucas

CON TI NEN TE

CAPA

O QUE QUEREM AS MULTIDÕES? 1

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De Nova York a Paris, do Cairo ao Rio de Janeiro, as ruas se encheram de pessoas. Da Avenida Paulista à Conde da Boa Vista, gente que não podia antes ser exatamente definida como militante tomou a decisão de participar. Por quê? O que leva, de uma hora para outra, as pessoas a se reunirem, longe de eventos marcantes óbvios, como shows, competições esportivas, posses históricas de governantes e funerais de celebridades? Ainda se buscam respostas claras para os levantes que sacudiram o planeta, mas, depois de algum tempo de iniciada a onda das ocupações de espaços públicos, poucos anos atrás, emergem as primeiras pistas. Tanto pode ser uma causa específica, como a insatisfação cristalizada contra um déspota, ou outra, difusa, compartilhada coletivamente, mas expressa por grupos ou mesmo por indivíduos – como se viu na proliferação impressionante de cartazes nas passeatas de junho do ano passado em várias cidades brasileiras. A visão clássica das multidões é alimentada pelo fantasma de tiranos, Hitler e Mussolini à frente, que disseminaram o medo gozando de grande popularidade. Hoje, a falta de liderança, de uma palavra de ordem única, é um traço que afasta do passado o movimento das coletividades. E lança às instituições atuais o desafio de compreender o que está acontecendo, para enxergar o futuro para onde apontam milhões de olhares insatisfeitos em lugares distantes do globo. Antes de pipocarem na onda atual, as multidões que foram às ruas poderiam ter se espelhado em precedentes. No final da década de 1960, as massas bradavam por liberdade. Em maio de 1968, os estudantes parisienses foram os primeiros de uma revolta popular que se estendeu a outros países da Europa e além do Velho Continente, chegando ao Brasil e ao Japão. Um ano depois, foi a vez de acontecimentos tão díspares quanto os de Woodstock, nos Estados Unidos, no festival da contracultura – que não tinha caráter político, mas acabou adquirindo –, e o Cordobazo, em Córdoba, na Argentina, em que centenas de milhares de pessoas protestaram contra a ditadura militar, depois que CONTINENTE ABRIL 2014 | 23

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CON CAPA TI NEN TE “VISTA PRIVILEGIADA”/ALBERTO KORDA, 1959/REPRODUÇÃO

a polícia matou um estudante e um operário. Outro momento histórico marcante foi a Queda do Muro de Berlim, duas décadas mais tarde, na Alemanha então dividida. Hoje, o único consenso sobre a contestação protagonizada pelas multidões é que ela tende a não esperar mais situações-limite para vir à tona. O que surgirá daí, do ponto de vista da renovação da prática democrática contemporânea e do chamado Estado de Direito, sempre invocado para alertar sobre os perigos da presença das massas no processo político? De acordo com Alexander Martins Vianna, professor de História Moderna do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DHRI-UFRRJ), quando se fala em “multidão que protesta”, deve-se considerar que “multidão” não é partido ou sindicato, mas

Hoje, o único consenso é que as multidões tendem a não esperar por situações-limite para contestar uma configuração social flutuante e provisória, com alvos e focos específicos, mas que podem mudar durante a própria performance de protesto, pois, uma vez na “multidão”, o comportamento de cada indivíduo se vê parte de outra energia social. Para o professor, como ator coletivo, a “multidão que protesta” não hierarquiza as falas e as performances, ao contrário de partidos e sindicatos, cada vez mais, atualmente, esvaziados de adesão social. Nisso residem os problemas de compreensão sobre os protestos recentes no Brasil e no mundo, que partem da ideia de anonymous, na visão de Alexander Martins: “Sem partido não significa sem política, pois não se faz política apenas por meio dos partidos e sindicatos existentes e do sistema representativo instituído”. Por outro lado, argumenta o professor, não é possível abordar o

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fenômeno anonymous como único e nem esperar que haja uma rede mundial nessa direção. “Na verdade, algumas ideias, princípios e métodos são deslocados e aclimatados em função dos dilemas estruturais de cada país, ou região num país.” Os movimentos de protestos aparecem no contexto como um sintoma de crise na representação política. “Enquanto a crise de representatividade existir, considerando os meios atuais de comunicação de massa, observaremos novos fenômenos com a mesma natureza, ainda que mudem

os referenciais estéticos e políticos extraparlamentares, extrapartidários ou antissistêmicos”, diz Martins Vianna.

CLASSE MÉDIA?

E, por falar em estética, para Barbara Szaniecki, mestre e doutora em Design e atualmente pesquisadora PNPD/Capes da Esdi/UERJ, observar os movimentos massivos do ponto de vista estético pode contribuir de um modo singular para a compreensão de fenômenos para os quais outras ferramentas teóricas não têm sido exitosas. “Não apenas para a

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FOTOS: REPRODUÇÃO

3 Página anterior 1 JORNADAS DE JUNHO No Rio de Janeiro, como em outras capitais brasileiras, as ruas se encheram de manifestantes Nestas páginas 2 REVOLUÇÃO CUBANA Nos movimentos de massa latinoamericanos, há o brado contra pobreza e injustiças sociais

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FUNERAL Eventos, como a morte de John Kennedy, mobilizam grande afluxo de multidões

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WOODSTOCK Eventos culturais e festivais de grande porte são catalisadores de massas de participantes

análise do que vem sendo produzido do ponto de vista artístico, cultural e criativo, como também para a análise da multidão em sua composição social e em sua determinação ou decisão política”, diz Bárbara, autora do livro Estética da multidão (Civilização Brasileira, 2007). Por exemplo, a respeito das manifestações de junho passado no Brasil, alguns analistas negam que tenham sido mobilizações populares e as consideram como típicas de classe média. “Como discernir? Nas passeatas, vemos modos de

expressão tão diversificados, que parece impossível determinar algo a partir deles unicamente. Mas certamente uma análise mais sistemática de bandeiras, faixas, cartazes, camisetas, assim como atos performáticos no seio das manifestações, podem trazer elementos enriquecedores, porque seriam examinados em seus conteúdos e em suas formas: nas manifestações, as pessoas se exprimem por meios ditos eruditos, populares ou de massa, entre eles muitas apropriações que, ao serem analisadas, podem nos dar dicas importantes sobre seus sujeitos”, afirma Barbara Szaniecki. Sujeitos, aliás, poderíamos complementar, que empunham cartazes de cara limpa – prontos para se valerem do oceano de gente para se mostrar, e não mergulhar no anonimato. Ela aponta o caso da figura do Batman como ilustrativo. O personagem surgiu logo nas primeiras manifestações no Rio de Janeiro. Mais tarde, veio um Batman Pobre, e eles fizeram parceria, passando a aparecer juntos. “O uso da fantasia do personagem de quadrinhos – típico da cultura de massa americana –, sua posterior apropriação antropofágica por um ‘pobre’ (em seus termos), cuja capa é um saco de lixo preto, e o diálogo que iniciaram são um bom exemplo de como o ponto de vista estético pode contribuir para um melhor entendimento do fenômeno sociológico e político das ruas.” O professor de História da UFRRJ ressalta a característica de que são fenômenos multifacetados – “e,

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talvez por isso mesmo, vejo-os com certo otimismo”, afirma. “Obrigam a ordem pública instituída a repensar seus paradigmas e responsabilidades sociais, éticas e políticas. Se a ordem pública der a resposta esperada, as razões de protesto cessam e teremos novos desafios diante de novos cenários mais qualitativos na relação entre representantes e representados”, acredita Alexander Martins Vianna. O tom otimista é um antídoto para o alarmismo que beira o pânico, e também cerca um dos principais livros a respeito do assunto: Multidão – guerra e democracia na Era do Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, publicado no Brasil em 2005. A obra já começa com uma apologia ao que os autores chamam de “projeto da multidão”. Segundo esse projeto, “o desejo de um mundo de liberdade e igualdade não apenas exige uma sociedade global democrática que seja aberta e inclusiva”, como dispõe dos meios para alcançála. Ao contrário da noção de povo, a multidão é múltipla, um conjunto de inúmeras diferenças singulares. É daí que vem sua força e potencialidade. Reconhecer que ela tem várias faces é mais do que acatar a verdade de um clichê – pode significar sair do impasse imposto pelo fascínio das multidões. E descobrir o ponto de partida para a observação que está longe de conclusiva, sobre um fenômeno cujos efeitos na ordem política não irão se limitar a encontros de mascarados agendados pela internet. Até porque as massas e a rede se fundem cada vez mais.

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CON CAPA TI NEN TE

EM REDE A face virtual do coletivo

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COMUNICAÇÃO Convocações via internet e registro de eventos por celulares são práticas das atuais manifestações públicas

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“TOPLESSAÇO” Chamada de ato feminista teve boa adesão na web, mas pouca presença real de participantes

MOHAMMED ABED /AFP

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Descontrole, desordem e caos? Aos alertas que reinariam em sociedades guiadas por uma indecifrável – até agora – política das multidões, com o risco totalitário sempre injetado no discurso oficial por estados, ironicamente, em crise de representação ou em xeque em suas capacidades para responder às demandas coletivas, é que sobressai uma característica apontada como fundadora na organização da onda de manifestações de massa nos últimos anos: a convocação via tecnologia da informação. Formando redes de mobilização de alcance global, sim,

mas de incidência nacional ou local de maneira mais eficaz, pela própria multiplicidade de temas para a montagem de uma agenda mundial. Porque as massas não são estanques, não se parecem nem um pouco com o estereótipo simplista de hordas tuteladas ou entregues à sorte feito zumbis. O movimento, físico e simbólico, de pernas, braços, corações e mentes, pode ser visto como o seu principal traço constitutivo. Pois o movimento é próprio do humano. Em A guerra dos mundos, livro de 1898, ao descrever a invasão da Terra por marcianos, H.G. Wells desenhava

a seguinte cena: “Nunca antes na história mundial tamanha massa de seres humanos havia se movimentado e sofrido ao mesmo tempo”. Do ponto de vista da comunicação do século 21, é o deslocamento virtual e ininterrupto de mensagens que faz emergir grupos prontos para a tomada de posições, seja através de sua materialização num espaço delimitado ou não. Sem a necessidade de invasão extraterrestre, as multidões tomam o planeta. É claro que a supervalorização da face em rede tem suscitado exageros e equívocos de interpretação. O

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fenômeno da mobilização virtual ainda é relativamente recente para ser considerado um jeito consolidado de tecer afinidades e promover o ativismo em contingentes garantidos. Várias manifestações marcadas no Facebook por milhares de pessoas não chegaram a contar, de fato, com uma centena de participantes. Há que se ter cuidado, portanto, na separação entre o conceito em desenvolvimento e a sua prática correspondente, pressupondo o aprendizado, quem sabe, de uma nova ordem social – uma vez mais, na história, baseada na evolução tecnológica e na integração viabilizada pelos meios de comunicação. Se as redes de comunicação contribuem para o advento de multidões, a sombra do uso totalitário das massas no século 20 mantém o receio, difundido por muitos, de que a tecnologia da informação compartilhada em tempo real desponta não como instrumento democratizante, e, sim, manipulador. “A internet é efetivamente um espaço ambíguo, ou melhor, um espaço em disputa. Como todo e qualquer espaço público. Ela não é essencialmente libertária e nem essencialmente autoritária”, defende Barbara Szaniecki, doutora em Design e pesquisadora PNPD/Capes da Esdi/UERJ. Para a autora de Estética da multidão, as novas tecnologias de informação e comunicação são ferramentas potentíssimas ao alcance

da sociedade. “Todo o recente ciclo de lutas globais em diferentes partes do mundo – dos países árabes aos Estados Unidos, passando por todos os países do Sul da Europa atingidos pela crise – tem feito uso intenso das redes para mobilizar multidões”, pontua, chamando a atenção para um aspecto importante na esquina da realidade com o virtual: “Redes e ruas não são, aliás, antagônicas, e, sim, complementares. Ora são as ruas que chamam as redes, ora são as redes que agem sobre as ruas. São táticas massivas – corpos e inteligências articuladas – em função das necessidades e possibilidades do momento. No Brasil, as mobilizações têm sido feitas pelo Facebook. Na Espanha, pelo Twitter ou tecnologias livres”, explica a designer.

PORTABILIDADE

A portabilidade da tecnologia abre outra vertente na interação entre a rua e as redes. E uma perspectiva otimista para a política das multidões, como observa o professor de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fernando Weller. “Hoje, são as luzes azuladas das telas dos celulares que estão nas mãos da multidão. Talvez a imagem do cinema seja insuficiente para dar conta da experiência atual das manifestações, das pessoas que portam os pequenos e poderosos dispositivos para registrar e acompanhar simultaneamente os

protestos no Egito, na Venezuela ou no Brasil. A massa de hoje não é mais aquela que não se sabia filmada ao sair da fábrica dos Lumière, no fim do século 19. Estamos diante de uma atomização da multidão, um imenso aglomerado de indivíduos que protagoniza uma experiência que o cinema, apenas, não é mais capaz de expressar”, compara Weller. A atomização que carrega na mão, num mesmo objeto, o compartilhamento e o registro do ato que primeiro surgia em potência na rede virtual, talvez desfaça a ideia tradicional de que a massa absorve o indivíduo, transformando-o em partícula de manobra. Um pequeno apetrecho tecnológico parece inverter a lógica anterior: não é mais a multidão que absorve o indivíduo, mas o indivíduo que a absorve, integrando-se ao contínuo fluxo de informação. “Minha opinião é que as novas tecnologias e esse espaço global, que é a internet, mesmo que não sejam essencialmente democratizantes, eles o são tendencialmente. Penso que corpos e inteligências em rede tendem a tecer liberdade, ainda que a tarefa seja sempre muito árdua”, acredita Barbara Szaniecki. Mas o que significa a liberdade para cada átomo da multidão? É no avesso do indistinto coletivo que se mexe a multiplicidade de vontades e medos atávicos que disputam lugar na imaginação. FÁBIO LUCAS

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PSICOSSOCIAL Permuta simbólica entre o individual e o massivo

“Um por todos, todos por um”: a

famosa frase é o lema do romance Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, clássico da literatura publicado em 1844. Seu significado na obra remete à fidelidade entre os integrantes de um grupo de espadachins diante de diversos confrontos. Mas, para o olhar que examina as multidões, o lema pode trazer outro significado – o da permuta simbólica entre o individual e o coletivo, efetuada em qualquer ocasião em que a massa de corpos e mentes se apresente, desde o funeral público de celebridades,

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DYLAN MARTINEZ/REUTERS

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como John Kennedy, Tancredo Neves e Ayrton Senna, a eventos esportivos como a Copa do Mundo de Futebol. Para o escritor e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza, em entrevista de divulgação sobre seu 11º romance policial, no ano passado, “a multidão dilui a singularidade das pessoas e, quando faz isso, fica essa multiplicidade sem cara, sem rosto”. A soma das faces daqueles que a compõem não resulta numa face discernível, uniforme, apesar do comportamento de “onda” que muitas vezes caracteriza a massa

de gente. Mesmo assim, há um avesso possível de ser visto no indivíduo que se dilui, se mistura, às vezes virando “ninguém”, outras, querendo ser “mais um”, como nas letras de canções populares do Rappa (Boa-noite, Xangô) e de Erasmo Carlos (Mais um na multidão). Talvez por isso seja tão difícil julgar multidões: não é uma só máscara, não é só um anonimato. A fragmentação de anseios que pode estar presente foi evidente nas manifestações de junho do ano passado no Brasil, em que as mais eloquentes imagens estampavam

PRAÇA TAHRIR Na contemporaneidade, as manifestações pela deposição do ditator egípcio Hosni Mubarak são um marco da força exercida pela multidão

cada pessoa erguendo o seu cartaz, com a sua queixa, ironia ou demanda particular – que coincidia com a de muitos, mas nem por isso deixava de ter a conotação singular. Nem a pasteurização de desejos, nem a diluição completa do sujeito definem a multidão. Dois grandes pensadores inauguraram a reflexão sobre o íntimo dos coletivos humanos. O primeiro foi Gustave Le Bon, com Psicologia da multidão, publicada no final do século 19, em 1895. O livro serviu de base para Sigmund Freud que, em 1921, lançava Psicologia das massas e análise do eu. Além do ponto de partida de Le Bon, Freud também analisa a coesão das massas à luz de filósofos como Nietzsche, Kierkegaard e Platão. “Para compreender o fenômeno dos grupos através de duas instituições, a Igreja e o Exército, a reflexão freudiana superava as teses sociológicas e psicológicas vigentes, que depositavam na sugestão e na hipnose as fontes do poder dos chefes sobre as massas”, explica a psicanalista lacaniana Bianca Coutinho Dias, coordenadora do Núcleo de Investigação em Arte e Psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz. Para Freud, segundo ela, os vínculos se davam através de outro processo, o da identificação, que poderia ser vertical ou horizontal. “O eixo vertical – preponderante para Freud – tratava das relações entre a multidão e um líder, quando os indivíduos se identificam com um objeto colocado no lugar de seu ideal do eu – no caso, o líder. O eixo horizontal, não tão valorizado por ele, podia ser observado nas relações entre indivíduos de um mesmo grupo, pressupondo relações simétricas de identificação de uns com os outros.”

EGOS E MÁSCARAS

Uma das críticas recorrentes a grupos que se aproveitam da multidão para praticar a violência é exatamente a oportunidade do anonimato, da dissolução do sujeito na identidade sem rosto de centenas ou milhares de

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CON CAPA TI NEN TE MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

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pessoas reunidas, não necessariamente com idênticos propósitos violentos. A multidão, de algum modo, injeta força e inculte sensação de imunidade em manifestantes, por exemplo, dispostos a cerrar fileiras com os polêmicos black blocs. Bianca Coutinho Dias recorda que o cientista político grego Yannis Stavrakakis baseia-se em Lacan para afirmar que “o indivíduo encontra o outro como uma força que limita sua autonomia subjetiva”, o que faz com que “o sujeito torne-se um mero efeito da construção discursiva e ideológica do outro”. E essa é a via de mão dupla da massa. “Para ele, toda identificação mobiliza os afetos e aumenta as possibilidades de que o sujeito abra mão de sua consciência crítica e submeta-se, sem perceber, a um sistema de dominação.” É nesse contexto que as máscaras aparecem, e, para Bianca Dias, seu exame passa

por processos identificatórios de difícil dissolução. “Existe uma identificação com a multidão, mas também um apagamento do sujeito. Por outro lado, é preciso perder algo desse ‘gozo da identidade’, renunciar ao eu para que se possa pensar num coletivo – uma corda bamba delicada e que não nos chega de maneira simples.” Assim também a solidão, nunca simples, ganha radicalidade e contraste no meio de um mar de sujeitos concentrados em espaço delimitado. Contraste que já integra o imaginário sobre o isolamento humano, especialmente depois dos fluxos populacionais espremendo a vida urbana. Um sentido político pode advir da escolha do ser solitário em plena metrópole pulsante. Dessa forma, a solidão “pode representar o sujeito que escolheu andar na contramão e optou pela radicalidade da singularidade, como um Flávio de Carvalho enfrentando

MÁSCARAS Uma das críticas ao uso do objeto é o anonimato, que permite a ocultação do indivíduo na massa

a multidão da procissão a partir de um ponto absolutamente singular e único – pura invenção. A solidão, para a psicanálise, pode ser terreno fecundo, o encontro com uma verdade que está para além do partilhável socialmente”, acredita a pesquisadora do Instituto Figueiredo Ferraz. É a afirmação da diferença que sobressai no comportamento destoante da massa, ou no desconforto que promove quase um resgate da individualidade. “Dessa opção radical, pode-se inscrever no mundo, a partir do laço social, algo dessa solidão que Lacan vai nomear estilo”, diz Bianca Dias. A psicanalista ressalta um equívoco histórico, na atribuição de suposta desimportância do problema do coletivo para a psicanálise, quando tanto Freud quanto Lacan discorreram sobre a incidência do social como fundamental para a constituição do sujeito. “Freud, em 1921, afirma que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, de grupo. E Lacan, em 1964, que o sujeito advém como separação de sua alienação, necessária, ao outro. Novamente uma mão dupla de constituição do sujeito: para se compor, ele precisa passar pelo outro e, para encontrar algo de sua singularidade e de seu estilo, ele precisa, em alguma medida, abandonar o outro. Da contradição entre a multidão e o mais impartilhável de si é que nos fazemos. Desafio ético que nos interroga cotidianamente.” Um desafio que atira o sujeito num campo minado de pânico e força, isolamento e compartilhamento extremos. Ali, entre hesitações e ímpetos, recuos e avanços, o sentimento ancestral de união e guerra pela sobrevivência se depara com a herança da elaboração cultural que tenta, através dos séculos, tirar da imagem da multidão a essência da contradição que nela transborda, espelho de multifaces. (FL)

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FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Artigo

ALEXANDER MARTINS VIANNA A FORÇA DOS PROTESTOS O que é “arena política” ou “ágora” hoje, frente às novas formas massivas de comunicação, às diversidades de letramento e à compreensão da estrutura representativa formal existente numa sociedade? Observo com muito estranhamento as reações dos estabelecidos nas “instituições representativas”, quando se esboça algum tipo de “reação participativa” coletiva mais violenta (geralmente, entendida como tal quando afeta propriedade ou fere fisicamente pessoas), tanto mais na imprensa que segue o tom da Rede Globo, que tenta enquadrar um fenômeno complexo e multifacetado em fórmulas simples consumíveis, direcionadas e parciais. Antes de condenarem a “violência” de algumas ações de protesto, os “representantes instituídos” deveriam se perguntar que danos éticos estão causando à população que, depois de 30 anos do fim da ditadura militar, não se sente representada, ou seja, por que a estrutura representativa atual faz com que os “representantes” se tornem tão “autorreferidos” e estabeleçam vínculos de avassalamento patrimonialistapaternalista com os “representados”? Aqueles que deveriam ser pedagógicos e exemplares em criar vínculos necessários e dinâmicos entre democracia representativa e democracia participativa não fazem isso, e condenam ações que, a meu ver – devido à sua natureza formativa e à performance social – simplesmente expõem a perda desse vínculo e a desconfiança em relação a partidos, sindicatos etc. Hoje, vivemos há mais tempo na democracia formal do que na ditadura. Por que, depois de 30 anos, ainda enfrentamos problemas básicos como distribuição de renda, concentração fundiária, saúde pública

Antes da condenação, os “representantes instituídos” deveriam se perguntar que danos éticos estão causando à população ruim, transporte e educação pública de péssima qualidade, enquanto o país aumenta exorbitantemente a sua base tributária? Qual a responsabilidade dos próprios mecanismos representativos da democracia formal em gerar o vazio no nexo com os representados? Eu não chamaria as diferentes categorias sociais de jovens que se misturam nos protestos de “despolitizados”, pois a quem os chama assim eu perguntaria: O que você entende por “politizado”? Quando se diz “politizado”, qual o horizonte de “política”, de educação, de meios de ação e de meios de informação se tem em mente? “Politizado” segundo que ethos, educação e classe social? A “multidão” como configuração social flutuante que protesta coletivamente é uma forma específica de estabelecer negociação com a

ordem instituída, quando parece haver negligência na relação entre representantes e representados, podendo ir, no extremo, à ruptura com a ordem instituída, como aconteceu recentemente na Ucrânia e parece ser o cenário potencial da Venezuela. O ponto é saber se a “agenda” da multidão visa a objeto e objetivos ligados ao horizonte mais restrito da manutenção da renda familiar (por exemplo, se a agenda de protesto se foca apenas no aumento ou não de passagens), ou se isso evolui para questionamentos estruturais (por exemplo, transparência nos contratos públicos e regimes de lucros e contrapartidas de serviços de empresas de transportes, investigações de contratos viciados, “se vai ou não ter Copa”, prioridade de investimentos na educação e hospitais etc.), pois, nesse caso, o foco de protesto toca a legitimidade dos “representantes”, a sua política de governo e a falta de prioridade sobre temas mais relevantes e estruturais para a população. Então, a força está na natureza da agenda de protesto e sobre como reverbera na ordem instituída em conjunturas específicas, provocando algum tipo de resposta à agenda de protesto por parte dos representantes, que se veem ameaçados nessa posição, se não dão alguma resposta à multidão que protesta. No entanto, se a multidão continuar protestando e as agendas se repetindo, é sinal de que as respostas não foram ainda satisfatórias, com o risco potencial de quebra do pacto social – tema sobre o qual Cristovam Buarque tem se embatido com seus pares do Senado Federal desde junho de 2013. Portanto, tirar os “representantes” de sua zona “autorreferida” de conforto e obrigá-los a refazer suas bases de conexão com representados mais conscientes de direitos, entendendo que direito não é favor e que não vem separado de responsabilidades, é, para mim, a grande força e contribuição política e cultural da “multidão que protesta” neste momento.

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CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

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ARTE A massa como tema

Talvez o anti-herói solitário, marcado pela injustiça, a lutar contra o sistema opressor e a se tornar líder anônimo de um movimento revolucionário. Ou o oceano de faces indeterminadas abrigando a cara-metade de alguém na longa busca do ideal romântico. Talvez a turba desesperada diante de evento de extinção iminente, ou outra, em ameaçador descontrole, avançando em formação de zumbis contra os últimos humanos não infectados por terrível epidemia. Talvez a violência

sangrenta da guerra corpo a corpo em batalhas campais. Ou o cenário confuso, tenso e apressado das ruas atulhadas nas grandes cidades. O símbolo das multidões no imaginário coletivo tem aparecido com frequência na expressão artística da cultura de massas, reforçando arquétipos, gerando ou renovando estereótipos, e ampliando os efeitos psicológicos de um fenômeno cada vez mais presente na vida contemporânea: o encontro, hostilizante ou não, na praça, na

esquina, no metrô, no teatro, no estádio, no parque, nas calçadas ou no meio da rua, de um monte de gente. As pinturas de momentos históricos, a narrativa de pessoas aglomeradas por qualquer motivo, as cenas cheias de efeitos especiais - aumentando ao máximo o seu impacto visual -, as fotos e filmes de campos de refugiados ou de ambientes lotados para um show musical, mostram a perseguição de “uma ordem oculta na desordem, uma ordem que inclui a desordem”, na expressão de Arturo Pérez-Reverte, no romance O pintor de batalhas. É a multidão pelo avesso da análise psicanalítica, desenhada agora pelos canais da arte. Como observa o professor do curso de Cinema da UFPE Fernando Weller, a sétima arte já nasceu com a visão de uma multidão: “A primeira imagem dos irmãos Lumière, que retrata a saída dos trabalhadores da fábrica, é emblemática porque condensa esses

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dois fenômenos da modernidade – o tecnológico, que inaugura um novo regime perceptivo do mundo; e a massa, essa nova categoria que molda e é moldada por esse novo regime”. Weller lembra que há uma série de filmes sobre as cidades que se referem ao novo sujeito da modernidade. “As multidões exigem um novo olhar, veloz, chocante e não mais contemplativo ou o olhar concentrado das artes tradicionais.” Nas primeiras décadas do cinema, conta Weller, são inúmeros os exemplos de filmes que refletem o fascínio que a nova arte tinha pelas multidões formadas pelos trabalhadores urbanos. “Os soviéticos, sobretudo, apostavam em um caráter revolucionário das massas e elegeram a técnica cinematográfica como a mais potente para representar o novo homem surgido no mundo industrial. O filme de Vertov, O homem da câmera, de 1929, é um elogio radical às massas e uma crença nas potencialidades da maquinização da vida moderna.” No espelho coletivo, morava então, como ainda mora, a semente da transformação latente, e a descoberta de uma espécie de potência escondida. “A multidão era revolucionária, sobretudo, porque ela exigia e promovia uma nova percepção estética do mundo e, consequentemente, uma nova política.” O professor de Cinema da UFPE diz que, com Leni Riefenstahl em O triunfo da vontade, de 1935, e Olympia, de 1938, o cinema conheceu uma outra face das multidões. “Os choques perceptivos de Vertov dão lugar a uma imagem da massa ordenada,

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IRMÃOS LUMIÈRE

uníssona, que converge na figura A primeira imagem em movimento deles do líder. O que surgiu no cinema retrata a saída de como uma explosão revolucionária, trabalhadores da fábrica como uma aposta futurista, torna-se 01-10 O HOMEM DA CÂMERA expressão de um discurso do retorno Filme de Vertov, de 1929, é um elogio às origens. Homens e mulheres às massas não mais são representados em 01-11 LENI RIEFENSTAHL um ambiente urbano, conflituoso, Nos filmes da alemã, a multidão mas desfilam coreografados em ordenada converge um cenário olímpico, neoclássico. em direção ao líder As ferramentas nas mãos dos trabalhadores dão lugar a tochas e bandeiras”, explica Fernando Weller. como política e afetos, subjetividade, teoria crítica e idealismo alemão. EXPERIÊNCIA Filipe Campello também Para o doutor em Filosofia pela recorda Antonio Negri, quando este Universidade de Frankfurt e, evoca Espinosa, na indicação de atualmente, pesquisador de uma ontologia social no instante pós-doutorado na UFPE, Filipe em que o indivíduo se expressa Campello, a arte, em grande medida, também a partir das demandas e pode ser vista como uma tensão sentimentos compartilhados. constante entre a representação da Segundo Campello, essa reflexão individualidade e a de uma multidão ainda pode ser encontrada no esparsa. “Isso se mostra também na pensamento de Heidegger, que própria experiência estética. Aquilo entendia o conceito de autenticidade/ que parece ser mais particular em, propriedade (Eigentlichkeit) como uma por exemplo, um poema ou um categoria da existência em que o quadro, com o qual o indivíduo se sujeito se movimenta como constante identifica singularmente, é também expressão da sua singularidade, expressão de muitos indivíduos.” um horizonte que não é facilmente O compartilhamento do efeito alcançado. “De certo modo, a arte, catártico de um show, de uma bem como a própria experiência peça teatral ou mesmo de um filme estética, estabelece essa tensão: ela faz com que a reação do público expressa o que há de mais singular complemente a obra e integre a no artista (ou no espectador), mas experiência estética subjetiva. “É também revela uma experiência tanto nesse sentido que um dos conceitos do seu tempo, enquanto situa-se mais intrigantes nesse debate é o de numa experiência compartilhada, autenticidade: a experiência estética como atemporal, enquanto desvela traz um caráter aparentemente o que é comum ao ser humano.” singular, mas que, em última análise, Em sua inquieta marcha, a revela o de uma coletividade”, define carregar múltiplos olhares e desejos, o filósofo, autor de publicações no a multidão espera a obra que a Brasil e no exterior sobre temas traduza, pronta para o aplauso. (FL)

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CON CAPA TI NEN TE ZENIVAL

dos poderes constituídos, pretendendo introduzir um novo ator político dentro da máquina representativa. Não. Tratase, antes, de uma manifestação com um caráter constituinte, que favorece novas dinâmicas de produção política, cultural, midiática, uma democracia radicalizada para além dos canais institucionais. Os sistemas-redes dos movimentos formam vasos comunicantes que, no conjunto, são também resistência à crise do capitalismo global.

Entrevista

BRUNO CAVA “O ‘SIM’ MAIOR POR TRÁS DO ‘NÃO’ ” Mestre em Filosofia do Direito pela

UERJ e autor de A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (AnnaBlume, 2013), o blogueiro Bruno Cava é uma das vozes no país que buscam analisar o sentido político positivo e fundador dos movimentos das multidões nos últimos anos. Para ele, novas dinâmicas de produção política e cultural estão nascendo dentro de um quadro de mudança qualitativa nos movimentos ativistas, apontando para uma democracia que ultrapasse os impasses criados pelos canais institucionais tradicionais. Seus artigos podem ser lidos em www.quadradodosloucos.com.br. CONTINENTE A participação das multidões deverá ter um papel relevante na configuração política nos próximos anos? BRUNO CAVA Existe um ciclo global de protestos, que começou em dezembro de 2010, na Tunísia, contagiou o norte da África como um todo, e ficou conhecido como Primavera Árabe. A imagem

da Praça Tahrir ocupada no Cairo, Egito, foi a senha para que, em 2011, mobilizações acontecessem também na Europa, principalmente na Espanha, com o movimento do 15 de Maio e suas centenas de acampadas autônomas, bem como com o movimento Occupy, nos Estados Unidos e Canadá. Nessa época, já aconteciam algumas microexpressões desse estouro aqui no Brasil, com dezenas de “ocupas” em algumas metrópoles, já indicando uma mudança qualitativa na movimentação ativista, o que não passou despercebido por quem pesquisa esses processos de luta. O ciclo se prolongou por 2012, percorrendo um arco de requalificações, desafios e impasses, até chegar renovado em 2013, principalmente no Egito (de novo), na Turquia e, a partir de junho, no Brasil. CONTINENTE Qual a característica comum na expressão dessas multidões mundo afora? BRUNO CAVA Exatamente a capacidade de mobilizar grandes quantidades de pessoas, numa diversidade enorme de sujeitos sociais, muitos que até então não haviam participado de espaços tradicionais, sem passar pelas estruturas estabelecidas da representação: partidos, sindicatos, movimentos sociais tradicionais etc., de esquerda ou direita. Além disso, as mobilizações não se restringem a reivindicar diante

CONTINENTE E a principal diferença? BRUNO CAVA Grosso modo, no hemisfério norte, é uma crise recessiva, e assim se resiste ao desmantelamento final dos sistemas de proteção social. No sul, por sua vez, é uma crise do crescimento, onde a resistência se dá contra a partilha desigual dos rendimentos, contra um modelo neodesenvolvimentista. Aqui, há uma lógica de governo pautada pelo crescimento econômico e uma distribuição relativamente tímida dos rendimentos, enquanto os serviços (transporte, saúde, educação etc.) continuam péssimos. Existe também uma dimensão de formulação de alternativas de desenvolvimento, seja como modelo de gestão da cidade e seus territórios (moradia, mobilidade urbana, produção cultural em rede), seja da própria macroeconomia (contestação das barragens, do modelo energético, da ideia de sustentabilidade). Não são protestos simplesmente destituintes, embora haja, sim, uma recusa muito forte. CONTINENTE É possível notar, ainda, em vários locais e por motivos bem diversos, um ânimo geral para o protesto, e até mais, para o confronto. Por quê? BRUNO CAVA Existe essa disposição de enfrentar a repressão com os próprios corpos. Isso só acontece porque, mais do que compromisso ideológico, há condições existenciais que passam por cada um, de maneira diferente, mas que terminam por motivar as pessoas a lutar nas ruas e nas redes. Mas, mais do que isso, é também um momento constituinte, um “sim” maior por trás do “não”, base de continuidade e persistência de um ciclo, que o faz existir como tal. No Brasil, presenciamos grandes manifestações, chegando à casa do milhão de pessoas numa única ocasião, no Rio de Janeiro, totalmente

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por fora das estruturas partidárias e militantes existentes. Proliferaram novos grupos, coletivos, mídias alternativas, táticas de autodefesa, uma nova maneira de viver a democracia e lutar por ela. A maioria dessas formações ainda está incipiente, é verdade, existe pouco acúmulo, mas não há dúvida de que está aprendendo de maneira intensiva e compartilhada. CONTINENTE E qual a direção dessa nova democracia, já que nenhum dos 32 partidos políticos no país conseguiu ser identificado com as manifestações – pelo contrário, foram hostilizados? BRUNO CAVA Num contexto em que mesmo os partidos de esquerda estão descolados dos movimentos, em que faltam núcleos e redes militantes enraizadas pelos territórios da cidade, isso significa que existe um enorme campo de construção, para o qual estão convergindo as pessoas interessadas em resistir e afirmar alternativas. Nenhuma força eleitoral conseguiu, até agora, capitalizar o processo. E isso é bom. Um campo autônomo notável está sendo gerado enquanto governos e partidos mais à esquerda se limitam a desqualificar ou desacreditar o movimento – ou mesmo criminalizálo, e aí obviamente não podemos mais usar o termo “esquerda”. CONTINENTE O que essa criminalização revela? BRUNO CAVA É, no mínimo, inadequado falar em perigo das “massas”, quando a maior parte da violência urbana é mantida, reproduzida e justificada pelo estado. Vivemos num país onde milhares de jovens são mortos anualmente pela polícia e os cadáveres têm endereço e cor bem-marcados. E onde as mortes decorrentes do “tráfico” também podem ser imputadas ao modelo de gerenciamento de um problema social, a droga, que se pauta pela lógica do inimigo e da guerra, e que serve a toda uma economia política nem tão subterrânea assim. Os perigos de um crescimento econômico que empurra os pobres e os nem tão pobres assim para as periferias, que apesar dos investimentos não consegue emplacar um modelo democrático de gestão da cidade, e tampouco desatar os nós do transporte e da saúde. O fascismo é

um agente do estado e pode subir em qualquer favela de uma metrópole e matar qualquer jovem negro e, no dia seguinte, sair no noticiário que o jovem era “envolvido com o tráfico”. CONTINENTE As multidões nas ruas não parecem querer o mesmo destino de multidões no passado, entregues à fé em um líder e a dogmas ideológicos. Nem qualquer tipo de golpe. BRUNO CAVA O que estamos vendo é o oposto disso. É a possibilidade de muitas pessoas, para quem fazer política sempre foi uma quimera, e mesmo um risco para a própria vida, poderem se encontrar nas ruas e redes, e se autoorganizar. Ora, o golpe é para que as coisas continuem como estão, e isso certamente não é o que desejam os protestos. De forma desajeitada ou não, essa aposta de mudança democrática me parece estar sendo levada a sério, e com resultados duradouros e profundos, nesse ciclo de lutas em sua expressão

“Os sistemas-redes dos movimentos formam vasos comunicantes que são também resistência à crise do capitalismo global” brasileira. O maior “perigo”, na realidade, está em usar o esmagamento dos processos como pretexto para generalizar o estado de exceção que já está em vigor nas favelas e periferias, ou contra moradores em situação de rua ou com sofrimento mental. CONTINENTE No artigo A multidão contra o estado, mas também contra o vanguardismo, no blog Quadrado dos Loucos, você escreve que “a verdadeira força do movimento (sua capacidade de renovação, autocrítica, decisão democrática) decorre, acima de tudo, de sua multiplicidade de táticas, pautas, composições sociais, formas de organização e comunicação – uma força na diferenciação, na capacidade de reunir pessoas e grupos muito diferentes”. A multidão ou as multidões podem ser deixadas à própria espontaneidade? BRUNO CAVA Uma crítica muito comum na tradição política ocidental, e muito antiga, é que a multidão seja espontaneísta. É uma crítica que

remonta, pelo menos, a Edmund Burke, um teórico conservador do século 18, que não cansava de alertar para o caráter anárquico, instintivo e perigoso da multidão. Hobbes também dizia que o soberano é necessário para controlar os apetites autodestrutivos do “estado de natureza”, uma terra sem estado onde o homem se revela lobo do homem. Você pode ir mais longe, e vai achar até em Lucrécio, na sua história da peste de Atenas, alertas a respeito dos riscos altíssimos de dissolução da cidade, quando a multidão sai do controle. E aí tem toda uma linhagem dominante da filosofia política, cujo grande objetivo é justificar a existência do estado, sua economia de coerções e mediações, contra a possibilidade de uma democracia mais direta, sem precisar passar pela transcendência da soberania. No Brasil, isso aparece bem claro com a noção de “pacificação”, que, desde a colônia, significa a intervenção policialmilitar brutal contra quilombos, tribos indígenas, rebeliões, inconfidências, Canudos, sempre a título de civilizar os impulsos desordenados e bárbaros da “gente grossa”. CONTINENTE E quem organiza essa formação de uma nova ordem política? BRUNO CAVA Ainda é cedo, me parece, para dizer “quem organiza”, mas é certo que o movimento se organiza de uma maneira ou de outra, de muitas maneiras, porque são muitas, mesmo, as táticas, instâncias deliberativas, formas de comunicação e redes de produção política e cultural. O fato é que funciona, e que há uma enorme potência aí à solta, tirando a tranquilidade de quem só consegue pensar segundo velhos esquemas, ou que depende da manutenção da ordem vigente para conservar privilégios, da falta endêmica de democracia, da gestão autoritária dos negócios da cidade. E é só imergindo nesse funcionamento, participando desse ciclo em sua constante requalificação e aprendizado, que vai ser possível não só compreender o movimento, mas contribuir com ele, extrapolando dele as tendências positivas, construtivas. O que fica claro, hoje, é que vivemos um tempo de grande transformação, sem gentileza para os esquemas e macetes.

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DÉBORA NASCIMENTO

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EVANDRO SENA O inquieto da Rua do Sossego Músico e produtor é proprietário do mais autêntico espaço alternativo de cultura do Recife, o Iraq, onde acontecem festas, shows e lançamentos TEXTO Débora Nascimento

Por entre mesas e cadeiras, Biribela transitava com a habitual tranquilidade dos animais domésticos, inconsciente de que havia um mundo ao redor em busca de sensações tão boas quanto a sua, inata. Sem incomodar os presentes, a cadela circulava como se estivesse checando se todos estavam sendo bem-atendidos, como se conferisse se tudo permanecia sob controle. A sua presença discreta, em vez de apressados garçons, intensificava no ambiente o clima de uma boa acolhida num oitão de algum lar da periferia do Recife. Mas ela residia numa casa situada na Boa Vista, embora na parte menos hostil do bairro, a aprazível rua cujo nome lhe faz jus, a do Sossego, onde os espigões ainda não chegaram para destruir a utopia de uma cidade horizontal. É lá onde funciona o espaço de convivência artística mais autêntico, alternativo e diversificado da escassa e restrita agenda cultural recifense, o Iraq. Apesar de abrigar semanalmente eventos diversos, o Iraq é a casa de Evandro Sena, também conhecido como Evandro Q?. Até contarmos a história do lugar que pode ser considerado, em menor escala, como uma espécie de mistura entre a casa de shows punk o CBGB e o Chelsea Hotel, vamos resgatar um pouco o extenso currículo do músico, produtor e agitador cultural

que nasceu, há 40 anos, em Olinda. Ele cresceu no Bairro de Ouro Preto, ouvindo música no rádio e na TV, como no programa do apresentador Chacrinha. Ainda na adolescência, estudou no Centro de Educação Musical de Olinda (Cemo), no qual foi aplicado aluno de violão clássico, recebendo boas notas, até que uma crítica grosseira de um professor o levou a desistir dos estudos. Mas a ligação com a música não foi perdida. O rapaz já assistia a seus primeiros shows de rock (que nessa época aconteciam apenas na periferia da cidade), fazia suas primeiras composições e queria montar uma banda. Recife e Olinda, nesse período, ensaiavam o despertar de um período de marasmo cultural, principalmente na área musical. “Encontrei outras pessoas que curtiam rock, que queriam mudar o mundo, a comunidade. Vi gente crescer, morrer, sumir, virar evangélico. Alguns eram músicos bastante sonhadores”, lembra Evandro. Ele, então, formou com amigos a banda Garapa Nervosa e participou ativamente da mudança de paradigma do antigo Matadouro de Peixinhos, situado num bairro estigmatizado pela violência, uso de drogas e, principalmente, pobreza. O músico integrou o Movimento Cultural Boca do Lixo. Tempos depois, aos 21 anos,

realizaria um de seus primeiros sonhos, abrir um estúdio, o Panaceia. O local funcionava na Rua Gervásio Pires, no Bairro da Boa Vista. Nele, passou a ter contato mais frequente com a cena musical da cidade, conhecendo instrumentistas de vários gêneros. Devido a problemas financeiros, o estabelecimento não vingou, mas os equipamentos musicais passaram a ser alugados por artistas e bandas. Em 2000, o músico concretizava outra idealização, um local de encontro, no qual a música seria o elemento aglutinador. Nascia ali o “bar” mais incomum da cidade, o Garagem 27, instalado no pé da Ponte da Torre, reunindo, de quinta a sábado, centenas de pessoas. Em 2002, Evandro desfez-se da sociedade e o Garagem seguiu funcionando com uma outra administração até 2009, quando foi demolido pela Prefeitura do Recife, deixando saudade em muita gente que, sentada às poucas mesas ou em pé na calçada, se sentia fazendo parte de uma agitação underground. Até hoje, é difícil contabilizar quantos se conheceram ali, tiveram ideias de criar ou montar algo, dividiram sonhos ou simplesmente tomaram uma cerveja, contando com a sorte de nunca ser

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REPRODUÇÃO

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atropelado por algum maluco que descesse a ponte em alta velocidade. A ausência foi tão sentida, que os órfãos do Garagem criaram no Orkut o grupo “Evandro, abra um bar”. Digamos que aquele boteco alternativo de beira de rua foi o embrião do que Evandro queria fazer com o Iraq. Antes do músico chegar à casa da Rua do Sossego, a editora Livrinho de Papel Finíssimo ocupava o lugar, que já havia sido transformado em residência de um grupo de amigos. Moraram por lá a atriz Olga Torres, o artista plástico Diogo Todé, o designer Moa Lago, os desenhistas Henrique Koblitz e Greg. Aos poucos, o local começou a realizar ou acolher eventos. Foi palco para as primeiras reuniões do grupo teatral Magiluth. Abrigou palestras, como a do escritor Lourenço Mutarelli. Evandro começou a frequentar o ambiente ao ser chamado para fazer ou colaborar com os eventos. Com a saída desses antigos moradores, acabou ficando como o único residente e promotor de realizações que estão ajudando a manter viva a troca de informações culturais da cidade,

principalmente num momento em que parecemos viver uma nova crise na área, a exemplo do claro desequilíbrio entre a quantidade ínfima de espaços de convivência artística e a profusão de artistas locais.

MÚSICA

Um termômetro para isso é que o Iraq vem sendo bastante procurado por bandas que querem tocar por lá, mesmo sem cachê, mesmo sabendo que sequer há um palco. As apresentações acontecem no piso de mosaico, no qual os músicos se espremem para se apresentar no mesmo nível da plateia. No entanto, Evandro vem evitando shows e festas, para não incomodar a vizinhança com som alto. Em eventos promovidos à tarde, como o encontro dos Grudes (reunião de músicos para tocar rock no violão), é possível ver alguns desses vizinhos sentados em suas cadeiras de balanço e até receber um sorriso de um deles como cumprimento. O Iraq não frequenta as páginas de cultura dos jornais. Seus eventos são divulgados apenas através de postagens no Facebook, num grupo específico, que

hoje conta com cerca de 500 amigos de Evandro. Assim como qualquer casa, o dono só permite a entrada de quem ele quer. Em dia de bom público, o lugar chega a comportar 200 pessoas, como acontece no já tradicional Natal do Iraque (“Traga a ceia, mas não a família”). Antes, para poder controlar a entrada, toda sexta-feira era divulgada uma senha diferente para o acesso à festa N.A.d.A. Agora, o sistema foi abolido. Pelo menos, por enquanto. Por lá já passaram mais de 20 DJs. Entre os mais frequentes, estão o músico Marcelo Frogger e o próprio Evandro Sena, que entregam um repertório com punk, pós-punk, indie rock, krautrock, psicodelia, afrobeat, noise, entre outros gêneros. Também de estilos diversos, tocaram cerca de 60 bandas e artistas. Dentre eles, Wander Wildner, Aire’N Terre, Paulinho do Amparo, Novanguarda, Black Soda, Matalanamão, Voyeur, Chambaril, Thelmo Cristovam, Subversivos, Zé Brown, Julia Says, Zefirina Bomba, The Trumps e os grupos que Evandro integra, Garapa Nervosa e Monstro Amor. O Iraq serviu ainda como

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DIVULGAÇÃO

Página 36 1 EVANDRO SENA

Morador e "gerente" do Iraq em um dos cômodos de sua residência

Nestas páginas 2 DECORAÇÃO

Derlon é um dos artistas que "assinam" as paredes

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N.A.D.A.

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MÚSICA

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"IRAQUIANOS"

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vitrine para os primeiros shows de compositores como Juvenil Silva e Graxa, que, neste ano, foram atrações do palco do Rec Beat, festival de música alternativa do Carnaval do Recife.

ARTE NO OITÃO

Como não é um bar, não há variedade de bebidas. Apenas cervejas geladas e um ou dois destilados servidos pelo simpático Rubens Del Rey, recrutado uma vez por semana para assumir o posto de barman. Talvez por sua escancarada informalidade, não se criou uma cultura nos frequentadores do lugar de que há pratos disponíveis, preparados pelo chef e consultor gastronômico Rubens Grunpeter. A maior parte dos frequentadores ainda não se acostumou a pedir as poucas e boas opções. A casa onde funciona o Iraq é divida em 10 compartimentos. Fora a área de serviço e o quarto do proprietário, todos os outros, inclusive o oitão e o quintal, sombreados por árvores de pequeno porte, são frequentados pelos visitantes. As paredes têm grafites de Galo de Souza, Serjão, Greg, Arbos,

Mais de 20 DJs, 60 bandas e artistas já se apresentaram no Iraq, em eventos divulgados apenas entre amigos, através da internet Ricardo Tatoo (SP), Mozart Gomes, Grupo Acidum (CE), Magolombra, Flavão, Manoel Quitério, Derlon Almeida, Michael Dieter (Alemanha), Germana Oliveira, Leo Resende, Uiara Coelho e Henrique Koblitz. Numa cidade que está constantemente se descaracterizando, perdendo prédios históricos, restaurantes, bares, casas de shows, em que lugares como a Soparia e o Poco Loco são apenas memória de roqueiros saudosos, o Iraq é mais um espaço cultural que vive sob ameaça de extinção. Por conta disso, já foi até criado grupo no Facebook para discutir os rumos do local, devido à sua importância para além da “casa de Evandro Sena”. Fechar suas portas

Festa acontece às sextas-feiras Vários DJs da cidade já discotecaram no lugar Olga Torres, Helene Subtil, Diogo Todé (com Biribela) e Anais Durrafourg SHOWS

The Trumps integra lista de 60 nomes que tocaram no local

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está longe dos planos do dono. Mas as dificuldades se mantêm. “Queria saber onde é que o meu sonho cabe dentro da sociedade”, questiona o produtor, afirmando também que o Iraq é apenas um detalhe no seu histórico, que inclui os trabalhos realizados na coordenadoria de música da Fundarpe (em que produziu e apresentou o bem-sucedido projeto Observa e Toca) e na gerência de música da Prefeitura do Recife. O inquieto morador da Rua do Sossego está cheio de planos, como a realização de um catálogo com os grafites de suas paredes, a gravação de seu primeiro disco solo e o lançamento do livro de poemas Cachorro e do show da banda God Save The Chico, com versões punks de clássicos de Chico Buarque. Evandro Sena que, além de músico e sonhador resistente, é pai de duas meninas, tem também um sonho singelo e tão comum neste país: conseguir pagar suas contas com a mesma tranquilidade com que Biribela, falecida em dezembro do ano passado, transitava entre os “iraquianos”.

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SAINT GEORGE AND THE DRAGON , RAPHAEL/REPRODUÇÃO

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DRAGÃO Eternamente fascinante

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SÃO JORGE E O DRAGÃO A história do santo surgiu na Idade Média, quando a criatura tornou-se um símbolo do mal

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DRAGÃO CHINÊS A figura cultuada por esse povo tem forma de serpente e não sabe voar

Fonte de adoração na China e de medo na Europa medieval, réptil alado assume um caráter misto no mundo de hoje, no qual anima a indústria cultural como símbolo de poder TEXTO Gilson Oliveira

REPRODUÇÃO

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Atualmente, ele já tem direito até a “estudos” na área da anatomia: “Quem nunca admirou as fabulosas viragens de um dragão em voo ou a força harmoniosa que revela em combate? (…) sua força e agilidade fora do comum devem-se a duas vantagens anatômicas: um esqueleto robusto e bem-articulado (composto por uma liga de boro e de silicato praticamente indestrutível) e uma musculatura vigorosa e versátil (feita de um tecido prateado brilhante muito denso e resistente)”, ensina o blog Dragões & Criaturas Fantásticas, um dos milhares de espaços na internet dedicados a esses mitológicos seres. Na verdade, a presença do dragão é “monstruosa” em várias dimensões

do mundo atual, inserindo-se até nas áreas da indústria e do comércio, com seu nome e sua imagem nos mais variados produtos, tão díspares como água sanitária, quimono e salgadinho. Mas é no âmbito da cultura (e da subcultura) que ela deixa mais fortemente as marcas de suas imensas pegadas, numa época em que, devido às novas tecnologias, confundem-se o real e o virtual, a realidade e o mito. No cinema, é expressivo o número de produções que têm o monstrengo alado como protagonista ou personagem de destaque, muitas das quais com sucesso de bilheteria mil vezes maior que a colossal criatura. Caso de vários títulos da série de Harry Potter, Shrek, O Senhor

dos Anéis, Eragon e Reino de fogo – este último ambientado no mundo atual. Disponível no YouTube, um documentário que “reconstitui” a figura da besta voadora é Dragões, uma fantasia que se torna realidade, do Discovery Channel. A ideia do vídeo surgiu depois de encontrado, no Monte Cárpatos, na Europa Central, o fóssil de um animal com as características de um dragão. O que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi uma espada cravada nos restos do animal e, ao lado, cinco corpos humanos queimados. Outro campo onde o cuspidor de fogo tem soltado suas enormes asas é a literatura, grande fornecedora de histórias para o cinema, como em Harry

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Potter e O Senhor dos Anéis – baseados, respectivamente, em livros de J. K. Rowling e de J. R. R. Tolkien –, e várias outras produções, a exemplo do também já citado Eragon, inspirado em Ciclo da herança, de Christopher Paolini, e de As crônicas de Nárnia, a partir de textos de C. S. Lewis. A TV paga norte-americana entrou na onda, como mostra A guerra dos tronos (Game of thrones), com base em As crônicas de gelo e fogo, de George R. R. Martin. O último capítulo da terceira temporada da série termina com o voo ameaçador dos três “filhos” da princesa Daenerys Targaryen, que reforçarão o seu exército na batalha pelo trono, prevista para acontecer na quarta temporada, lançada mundialmente no dia 6 deste mês.

DRAGOMANIA

Para quem quiser tornar-se um grande dragonologista, boa opção é o livro Dragonologia – o livro completo dos dragões. A obra tomou como base anotações deixadas pelo pesquisador e membro da Sociedade Secreta dos Antigos, Ernest Drake, no final do século 19.

Com nome originado no grego drákon, o dragão atravessou a história mantendo presença nas mais diversas culturas Quem também teria participado de entidade que cultuava as criaturas aladas, na Transilvânia, seria Vlad Tepes, mais conhecido por um nome que significa dragão: o Conde Drácula. A “dragomania” foi recebida com entusiasmo em várias outras áreas, como a das histórias em quadrinhos, com destaque para os mangás japoneses, e do desenho animado, em que dois exemplos famosos são Cavaleiros do Zodíaco – com episódios como O cavaleiro do dragão e A ressurreição do dragão – e Caverna do dragão. Um dado interessante sobre este último é ter feito parte, inicialmente, do primeiro jogo de RPG lançado no mundo, Dungeons & dragons, de 1974. A versão animada surgiria em 1983.

VERDADES DO MITO

“Mitos, contos de fadas, lendas, provado está, não são historinhas fantasiosas. Estudos determinaramlhes a íntima conexão com o psiquismo humano. São a expressão de realidades fundas da psique, suas fantasias, necessidades diversas e difusas emoções. (…) Representam uma verdade profunda da mente”, afirma Artur da Távola, no livro Comunicação é mito, acrescentando: “Expressar-se por meios simbólicos é a forma de as mentes individual e coletiva fazerem emergir ao consciente o que nelas jaz ou lateja em profundidade”. Baseadas nas teorias do psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung, essas afirmativas do escritor e jornalista podem muito bem ser aplicadas à figura do dragão, cujo sucesso na contemporaneidade está vinculado ao fato de ser, conforme opinião de psicólogos e sociólogos, um símbolo do poder e da liberdade, coisas com as quais o ser humano sempre sonhou. Afinal, trata-se de uma figura que se assemelha a um dinossauro, com a vantagem de ter asas e

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possuir um potente lança-chamas. Em um mundo constantemente ameaçado por todo tipo de perigo – assaltos, terrorismo, guerra nuclear etc. –, nada melhor do que ter a companhia de um ser tão poderoso e temido. “São Jorge, por favor, me empresta o dragão!”, diz o cantor e compositor Djavan na música Se. Então, não é sem motivos que os dragões conseguem despertar fascínio nas pessoas, sobretudo nos jovens, que fazem questão de estampá-los em suas indeléveis tatuagens (os répteis voadores são, de acordo com profissionais da área, as imagens mais solicitadas nesse tipo de body art, por homens e mulheres). A “necessidade” de se ter um dragão no mundo da “realidade real” pode ser, talvez, mais uma das explicações para o fato de que lagartos que vivem em ilhas da Indonésia sejam conhecidos como dragão-dekomodo e o monstro de Loch Ness, na Escócia – sobre o qual existem registros datados de 1.500 anos atrás –, seja, para muitos, também mais um remanescente do terrível voador.

DADOS BIOGRÁFICOS

Presente nas culturas de todos os povos e civilizações, desde a pré-história (como atestam pinturas rupestres

datadas de cerca de 40 mil anos a.C.), o mito do dragão, como o próprio animal alado, vive numa caverna, no caso, uma escura caverna do tempo, sendo, por isso, impossível identificar sua origem, embora não faltem discussões a esse respeito. Em geral, acreditase que o mito surgiu no Paleolítico (entre 2,5 milhões de anos a.C. e 10 mil anos a.C.), quando o homem teve contato com fósseis de dinossauros. Uma defensora dessa tese é a paleontóloga Lilian Bergqvist, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo pensamento foi recentemente reforçado com a descoberta, nos Estados Unidos, de um crânio de dinossauro tão semelhante à cabeça de um dragão, que a espécie foi batizada como Dracorex hogwartsia, cujo significado é “dragão rei de Hogwarts”, numa referência à escola de bruxaria da série Harry Potter. Com nome originado no grego drákon, o dragão atravessou as diversas fases da história mantendo forte presença nas mais diversas culturas, nas quais assumiu funções e simbologias diferentes, sendo visto como fonte de sabedoria e bondade e também como monstro destruidor. Foi na China que a visão positiva sobre o famoso réptil mais

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3 GAME OF THRONES A princesa Daenerys Targaryen é “mãe” de três dragões na série 4 DRACOREX HOGWARTSIA Foi encontrada, nos EUA, ossada de dinossauro que se assemelha à cabeça de um dragão, nomeada “dragão rei de Hogwarts” 5 DRAGÃO-DE-KOMODO Espécie de lagarto, que vive em uma ilha da Indonésia, lembra figura mitológica

decolou, chegando os chineses a autodenominarem-se “filhos do dragão”. Diferente do europeu, que se assemelha a um dinossauro, o dragão chinês tem forma de serpente e não sabe voar, o que não o impediu de chegar ao céu, pois é como um ser divino que é visto no país, responsável, entre outras coisas, pela chuva e fertilidade no campo. E foi para celebrar as boas colheitas que os chineses, por volta de 200 a.C., criaram a dança do dragão. Outras homenagens à fera alada são o Festival do Dragão da Primavera e o Ano do Dragão, considerado um período de sorte e oportunidades. Também na China nasceu o kung fu, cujas técnicas imitam movimentos do monstro voador. Um dos maiores

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CARNAVAL O dragão é símbolo do Bloco Eu Acho é Pouco, que circula em Olinda nos dias de Momo

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divulgadores das artes marciais orientais no ocidente foi Bruce Lee. Nascido nos Estados Unidos e criado em Hong Kong, o lutador e ator tem a figura do mitológico réptil destacado em seus filmes, como Dragão chinês, O voo do dragão e Operação dragão. Embora distinto do chinês, com corpo de serpente e cabeça de crocodilo, o dragão japonês, assim como o coreano, também desfruta do status de divindade, o que não impediu que ele se tornasse símbolo de uma das mais temidas organizações criminosas do mundo, a Yakuza, cujos membros possuem uma tatuagem de dragão que cobre as costas. Na Grécia Antiga, os dragões estavam bem presentes na mitologia, enfrentando heróis como Hércules e Perseu. Já na América pré-colombiana, existem registros de que Quetzalcoatl, um dos primeiros deuses do México, era uma serpente voadora. No Peru, a mitologia da tribo Chincha assinala que Pacha Mama, deusa protetora do plantio e da colheita, era um dragão. As relações da Europa da Idade Média com o dragão são um capítulo

à parte na biografia desse animal fabuloso. Foi neste período que ele se tornou símbolo do mal. Isso porque, em algumas culturas, o dragão tinha as formas de serpente, que foi responsável pela expulsão de Adão e Eva do Paraíso e era vista pelos cristãos como a representação do Diabo. Foi nessa época que surgiu a figura de São Jorge, que, para salvar uma donzela e uma cidade, matou um dragão. Mas, ao contar essa história, escritores cristãos a converteram num símbolo da vitória de sua religião sobre as antigas crenças e tradições de povos que traziam imagens de dragões nos estandartes de guerra e nos brasões familiares. Mensagem que ficou: para o catolicismo vencer o paganismo era necessária a morte do dragão.

BRASIL É FERA

Descoberto durante o Renascimento, período de ruptura com a cultura e a ideologia medievais, o Brasil não tem dragão na sua fauna mitológica, embora exista um ser com várias características semelhantes, o boitatá, cobra gigantesca que cospe fogo. Batizado com o nome dragão só existe no país o da inflação, que assusta mais que os monstros medievais.

Na esfera cultural, no entanto, o Brasil solta as feras, como na música popular, a exemplo da já citada Se, de Djavan; de Menino do Rio, de Caetano Veloso (“dragão tatuado no braço”); de O mestre-sala dos mares, de João Bosco e Aldir Blanc (“Há muito tempo nas águas da Guanabara/ o dragão do mar reapareceu”), homenagem ao marinheiro João Cândido e ao pescador Chico da Matilde, conhecido como “dragão do mar”, por lutar pelo abolicionismo no Ceará, onde hoje existe, também para homenageá-lo, o Centro Cultural Dragão do Mar. Das maiores paixões brasileiras, o Carnaval e o futebol não poderiam ficar alheios ao ser mitológico. Na folia de Olinda, um personagem muito querido é o dragão do bloco Eu Acho é Pouco, em cujo ventre os carnavalescos costumam entrar. Sobre essa experiência, diz a jornalista Marcela Balbino, no site Recife Estranho: “(...) saí de lá uma nova foliã. Com energia triplicada para o restante do Carnaval”. Achando realmente pouco, o bloco criou sua versão infantil, o Eu Acho é Pouquinho, cuja alegoria é um dragão criança com chupeta. Misturando o esporte com Carnaval, a torcida do São Paulo Futebol Clube criou o Grêmio Recreativo Dragões da Real, que edita o jornal O Dragão.

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AREIA Toda enfeitada de cores 1

Cidade principal do brejo paraibano – localizada a 100 km de João Pessoa – tem seu casario bem-preservado e se constitui também um bom local para passeios ecológicos TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa

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ARQUITETURA Tombado pelo Iphan, antigo casario colorido traz charme à cidade

Um fusca cor -de-sol está estacionado na mais colorida rua do interior paraibano. Em cada fachada da antiga cidade, a paleta de cores aponta para o capricho arquitetônico. Nesse fértil território cercado de montanhas, beleza e bom gosto refletem o jeito simples e hospitaleiro de um povo que, desde o século 17, cultiva o amor pela cultura. Localizada a pouco mais de 100 km de João Pessoa e com um clima capaz de confundir o visitante quanto à sua real localização, a região do Brejo paraibano resguarda um multicolorido e preservado complexo arquitetônico tombado pelo Iphan, trilhas que levam até cachoeiras escondidas dentro da mata e dezenas de engenhos de cana-de-açúcar que contam parte da história da colonização do interior nordestino e, ainda hoje, adoçam a paisagem, produzindo rapadura exatamente como 200 anos atrás. Areia, município com pouco mais de 30 mil habitantes, é a base num circuito pelo Brejo. Caminhando por suas ruas seculares, é possível chegar à primeira casa de espetáculos construída na Paraíba. Erguido por mãos escravas e com uma arquitetura que reflete a época de ouro da região, o Teatro Minerva é visita obrigatória num roteiro pelos monumentos históricos da cidade. Inaugurada em 1859, toda em estilo barroco, a edificação chama a atenção pela riqueza dos detalhes em madeira, que fazem dela uma relíquia arquitetônica. Impossível não se encantar com a atmosfera que permeia o prédio e promove uma volta ao tempo no qual grandes companhias europeias se apresentavam no seu palco para satisfação dos senhores de engenho. Bem perto dali, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, construída com apenas uma torre central, é possível voltar um pouco mais na linha do tempo e testemunhar o foco original da cidade que cresceu junto com a exploração da cana-deaçúcar. No local onde está a catedral existia originalmente apenas um casarão de palha que, após sucessivas reformas, se transformou numa valiosa representação da qualidade colonial que faz do Brejo um laboratório para estudantes e amantes

da arquitetura. Tão importante quanto a matriz é a Igreja do Rosário, uma das mais antigas do estado, construída pelos escravos e que revela um estilo próprio. De suas janelas, descortinase uma Areia de praças bemornamentadas e ruas de pedra bruta. Apelidada de “Princesa do Brejo”, Areia se orgulha de raramente ultrapassar os 25 graus numa Paraíba em plena estiagem. No inverno, os termômetros chegam com facilidade abaixo dos 10 graus. Se, nos arredores, a cor predominante é o verde, na zona urbana de Areia, a aquarela diversifica seus tons e pinta de arcoíris as fachadas históricas. Não é difícil encontrar uma casa sendo pintada, geralmente em mais de duas cores. Tons pastéis, por ali, talvez só nas boas e madrugadoras padarias, com suas chaminés de tijolo vermelho-barro. E já que o assunto é cor, que tal uma passada na Casa de Pedro Américo? Ali, na residência em que nasceu, está instalado um pequeno museu sobre o artista plástico que faleceu em 1905, em Florença, na Itália, e que imortalizou um dos grandes momentos da história nacional com a obra Independência ou morte, de 1888, conhecida popularmente como O grito do Ipiranga. Multicoloridas, também, são as fachadas decoradas com azulejos portugueses. Muitos estabelecimentos comerciais do centro da cidade ostentam preciosos exemplos dessa arte decorativa. Em uma delas, talvez a mais famosa, lê-se em cerâmica portuguesa o título “A Felicidade”. Areia é, na verdade, um variado conjunto de tradições e estilos diferentes que se agrupam em construções inter-relacionadas através das cores. Nessse contexto, destaque para o verde-claro que cobre a fachada da Igreja do Rosário.

REINO DO AÇÚCAR

“O açúcar adoçou tantos aspectos da vida brasileira, que não se pode separar dele a civilização nacional.” Em poucos lugares do Nordeste brasileiro, a frase do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre faz tanto sentido quanto no Brejo paraibano. Apenas em Areia, mais de 100 engenhos estavam

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em atividade entre meados do século 19 e final da década de 1960. Hoje, os poucos mais de 20 que sobreviveram mantêm a tradição. Areia abriga os primeiros engenhos da Paraíba que contaram com máquinas a vapor, a exemplo do Engenho Vaca Brava, inaugurado em 1860 e considerado o mais antigo da região. Aurélio Leal, seu proprietário, é especialista em contar histórias da época em que as fazendas eram equipadas com senzalas e escravos moíam a cana. Ainda hoje, a cachaça produzida no Vaca Brava é armazenada em barris de umburana e de jequitibá. Carregados de memória, os engenhos começam o dia, ainda escuro, já moendo o caldo e espalhando o doce perfume da cana. Antes de se chegar ao famoso

tablete de rapadura, no entanto, várias etapas são realizadas. O primeiro líquido constitui o melaço, ou mel, que dá origem ao alfenim e à batida, com o seu característico aroma de cravo. Todo realizado manualmente, o processo exige a presença de um mestre, o homem responsável por dar o “ponto” certo ao doce. Produzida com um único ingrediente, a rapadura já foi vítima de preconceito em função da sua raiz popular, mas hoje incrementa com um toque rústico as receitas de chefs famosos. Sua alta qualidade nutritiva também é reconhecida pelo mercado de produtos naturais, que valoriza sua superioridade em relação ao açúcar refinado. O ciclo da rapadura foi tão importante para a formação

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econômica e cultural do Brejo paraibano, que mereceu a criação de um museu específico sobre o tema. Instalado dentro do campus da Universidade Federal da Paraíba e cercado por uma mata preservada, o lugar resguarda uma típica casagrande do final do século 19 e um engenho que documenta em detalhes

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MINERVA Construído em 1859, teatro em estilo barroco é visita obrigatória

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TRILHAS A área rural da cidade conta com passeios para apreciar a natureza preservada

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MATRIZ Eminentemente católica, Areia é pontuada por igrejas

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“A FELICIDADE” Cada fachada reflete o jeito simples e hospitaleiro do lugar

6-9 RAPADURA

As várias etapas da feitura do doce, produto elementar na formação econômica de Areia

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a evolução do processo manual de produção de uma das mais tradicionais iguarias nordestinas. Em Bananeiras, cidade a 45 km de Areia, as construções do período colonial destacam-se pela mistura de estilos arquitetônicos, refletindo o ecletismo cultural que caracteriza o Brejo. Entre os

exemplares do patrimônio que sobreviveram na área urbana da cidade, um dos mais representativos é o Túnel do Trem, construído em 1922 e que permitiu que a estrada de ferro chegasse até a cidade. Já no Cruzeiro de Roma, datado de 1899 e construído em homenagem à Sagrada Família, a viagem

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pela Serra da Borborema atinge literalmente seu ponto alto. Fincado a exatos 507 metros de altitude, o santuário descortina a visão e revela, entre serras e pequenas reservas florestais, as imponentes chaminés de tijolo aparente, símbolos marcantes de uma doce época impregnada de vapor melado.

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ULTRAVIOLÊNCIA A beleza que pode estar contida na dor Universo da cultura pop tem sido farto na criação de obras que expressam o nosso desejo profundo de experimentar situações-limite, que beiram a morte, e que não respeitam os limites impostos pela ética e moral vigentes na sociedade TEXTO Fernando Athayde

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COMPORTAMENTO

Na sequência final do filme Dredd (2012), de Pete Travis, o juiz Dredd droga a vilã Ma-Ma com uma substância cujo efeito colateral é retardar a passagem do tempo a 1% da velocidade real e a atira do alto de um prédio. A câmera, posicionada no solo, captura a chegada de Ma-Ma ao chão, mostrando em slow motion o corpo dela se transformando numa massa homogênea de vísceras e sangue. Na sala de cinema, algumas pessoas tapam a vista, outras olham para baixo. Essas reações pontuam a eficácia da metáfora exibida em tela: por mais complexa que seja a mente em questão ou as relações de poder que a cercam, um corpo humano ainda é um corpo humano, tão frágil quanto é o de qualquer outro ser vivo. Ao perceberem isso, os espectadores preferem ocultar o cruel grafismo da verdade, confortando-se no abismo de escuridão escondido sob suas pálpebras.

Nessa situação, percebe-se a intensidade que tem a violência quando exibida de forma plena. Em seu artigo Do assassinato como uma das belas artes, de 1826, o britânico Thomas De Quincey oferece a primeira reflexão sobre tal prerrogativa. Ambientado num contexto fictício, em que o palestrante X.Y. Z. vai a uma conferência explicitar as formas de pensar de uma tal “Sociedade de Encorajamento ao Assassinato”, De Quincey destrincha o assassinato num painel de ideias. A principal delas propõe que o momento exato em que se desfere o golpe de misericórdia pode ser um agente estético, ou seja, constituído de significado tanto plástico quanto intelectual. Para justificar isso, o autor aborda a questão do prazer obtido através da violação daquilo que é ilícito. Assim, trabalhando sob uma ótica filosófica em que o Direito surge como mecanismo regulador do desejo, ele identifica a arte como

mecanismo de extravasão psíquica, desprendido de qualquer moralidade – um retrato definitivo da modernidade e dos anos consecutivos a ela. Tendo como base essa visão, é possível admitir que obras de arte cujos eixos temáticos estão ligados à violência não representem um incentivo à agressividade, como se sugere hoje. “Ultraviolência”, termo que surge no livro Laranja mecânica (1968), de Anthony Burgess, representa justamente essa utilização da violência como elemento estético. A adição do prefixo latino ultra não configura necessariamente um aumento do nível de agressão em si, mas uma ampliação da carga simbólica atribuída ao ato de violência.

ESPETÁCULO

“Depois, tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lhe sobre a cabeça e um caniço na mão direita. E, ajoelhando-se diante dele, diziam-lhe,

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REPRODUÇÃO

caçoando: ‘Salve o rei dos judeus!’”. (Mateus, 27:29). Segundo o esloveno Slavoj Žižek, em O guia pervertido do cinema (2006), a sétima arte é uma plataforma pela qual se transforma o ilógico em lógico. Na prática, a ficção é o artifício que torna possível uma situação absurda. Žižek exemplifica isso a partir da concepção do filme Os pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, em que uma situação irreal (pássaros atacarem humanos espontaneamente) não parece estranha ao espectador. E isso acontece justamente por tal ação estar contida numa obra ficcional. O desapego da realidade é adotado em função de uma reconfiguração simbólica do que está na tela. Dessa forma, a “espetacularização” do absurdo, tal qual a representação da própria agressividade, por se tratar de uma metaforização do desejo, configura à ultraviolência um caráter freudiano – e essa não

O termo ultraviolência surge no romance distópico de Anthony Burgess, Laranja mecânica, depois levado à tela é uma particularidade do cinema, mas da cultura pop como um todo. No início da década passada, o escritor irlandês Garth Ennis assumiu o título mensal da HQ do anti-herói Justiceiro, publicada pela Marvel Comics. Despindo o personagem de qualquer moral, Ennis o retrata como um homem que, após jurar vingança ao mundo do crime por ter sua família brutalmente assassinada, se torna muito mais sádico que os próprios criminosos. Além da arte do ilustrador Steve Dillon, a série

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tem como excelência fundamentar a desconstrução da psiquê humana: renegando seu ego, o protagonista é apenas uma ponte para que o id se infiltre no superego. Isso fica claro quando, ao atirar um mafioso na jaula de um urso faminto, o Justiceiro observa a carnificina com o mesmo fascínio de um garotinho que vai ao circo. E se o Império Romano lotava as arquibancadas do Coliseu para assistir ao espetáculo de uma vida posta à provação, hoje é possível traçar um paralelo entre esse fascínio ancestral e a onda das séries de TV. Em Breaking bad (2008–2013), talvez a mais representativa de todas, a própria brutalidade da natureza inspira a trama: o químico e pai de família Walter White (Bryan Cranston), após descobrir um câncer de pulmão, inicia uma jornada sem volta ao mundo do tráfico de drogas. Com gigantesca popularidade, a obra tem o mérito de captar o

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CON COMPORTAMENTO TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

espectador através de um personagem que, diferentemente da geração selfie que o idolatra, não tem nenhum apego à sua posição frente à sociedade.

GRAFISMO E SEXUALIDADE

Seria um tanto equivocado representar a sobrecarga simbólica que caracteriza a ultraviolência como uma injeção que transubstancia a violência. O que acontece é uma ampliação do significado do termo e não uma transformação completa. Dessa forma, o caráter gráfico é algo quase sempre presente nas obras dessa fatura. Em 1945, o pintor irlandês Francis Bacon concebeu o tríptico Três estudos de figuras na base de uma crucificação, cujo impacto visual é impulsionado pela intensa violência da série. Ainda assim, em nenhuma das três telas que a compõem há sequer uma gota de sangue ou sofrimento físico. A tonalidade laranja e a deformidade das criaturas subverte o conceito de agressão e torna intensamente dolorosa uma imagem ausente de qualquer figura crível. Na prática, a arte de Bacon afirma à própria ultraviolência seu teor subjetivo, tornando a ligação entre a dor e um evento físico apenas um dentre tantos símbolos possíveis para representá-la. Por outro lado, um dos artifícios capazes de conectar plenamente homem e natureza, o sexo, compõe um amplo campo de ação nas artes. Formando um contraponto à subjetividade da obra de Bacon, a desconstrução dos valores e a exposição física do desejo são condições de extrema carga simbólica. Por interagir diretamente com diversas representações sociais, a utilização do sexo como metáfora é a forma mais recorrente de ultraviolência. Um exemplo disso está na adaptação cinematográfica dirigida por Stanley Kubrick do já citado livro Laranja mecânica, que disseminou definitivamente o termo tratado aqui. Dentro dessa perspectiva, H.R. Giger, artista visual polonês famoso pelo design do monstro Xenomorfo do filme Alien – o oitavo passageiro (1979), de Ridley Scott, uniu carne e aço para representar os aspectos mais obscuros da moralidade. Em sua obra, repleta de aberrações chamadas de biomecânicos,

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o que vemos é o hibridismo de homem e máquina, cujo elo é selado através do sexo. Na prática, uma representação do mundo a partir da segunda metade do século 20, unindo a expansão definitiva da tecnologia como aparato doméstico à luta pela liberdade sexual. Imageticamente, a obra de Giger é como girar a lâmina de um canivete dentro de uma úlcera moral. O sexo anal, a gravidez na adolescência, a pornografia, o desejo encarado sem regulação, tudo está lá, à vista de quem quiser.

E, ainda que possam ser citados nomes dos quadrinhos, tais quais Dave McKean e Bill Sienkiewicz, como grandes detentores da ultraviolência na arte sequencial, ou até mesmo a relevância de Frida Kahlo para a pintura, há um caso que chama bastante atenção. Trata-se de um roteiro escrito pelo quadrinista britânico Alan Moore para uma história do Batman. Publicada no final da década de 1980 e desenhada pelo britânico Brian Bolland, A piada mortal é surpreendentemente a obra ultraviolenta mais representativa.

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3 Página 51 1 LARANJA MECÂNICA

No filme de Kubrick, a violência estetizada

Nestas páginas 2 A PIADA MORTAL

Nesta HQ do Batman, cenas de brutalidade

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FRANCIS BACON

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H.R. GIGER

Em 1945, pintor concebeu série impulsionada pelo horror Criador do monstro de Alien, polonês uniu carne e aço para representar aspectos da moralidade

Nela, o personagem Comissário Gordon é sequestrado, despido, encoleirado, enjaulado e forçado a assistir aos registros fotográficos do Coringa aleijando e estuprando sua filha. Enquanto isso, o vilão ainda urra para sua vítima como é bom tomar uma dose de realidade. O que está por trás desse espetáculo de terror é uma metáfora para a ficção que o ser humano adotou como referencial de sua vida. No diálogo final, travado entre o próprio Coringa e o Batman, o antagonista conta uma piada sem aparente graça ou lógica, mas cuja interpretação adequada retrata com perfeição a relação entre humanidade e natureza: as relações afetivas, os costumes, o amor e a sociedade são criações humanas para suportar a realidade. Brutal, a vida é uma ação natural, vivida através de instantes consecutivos, sem ligações com o passado ou o futuro. A dor dos homens reside na dissolução de seus símbolos – e a ultraviolência é a ponte para que isso aconteça.

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REPRODUÇÃO

Cardápio 1

PÁSCOA O legado da Quaresma

Tempo de penitência e restrições alimentares, ciclo católico de 40 dias, iniciado após o Carnaval, vai à mesa em forma de ritos, interditos e receitas TEXTO Rafael Dias

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Até a madrugada do próximo dia

1 ÚLTIMA CEIA Tela de Juan Junes representa a celebração do encontro de Jesus com os apóstolos

20 deste mês, quando todo cristão devotado encerra, com a vigília pascal, a celebração da ressurreição de Cristo, os dias resumem-se à privação e entrega espiritual. Hábito carnal, o prazer de comer é um dos que ficam limitados nessa época, algo que só os hereges o fazem, sem culpa. Assim tem sido, até hoje, o costume da Quaresma, que indica meditação, jejum, parcimônia ao falar e outros tipos de penitência a todos os católicos, até o Domingo da Páscoa. Historicamente, desde a chegada dos jesuítas ao Brasil, ainda no século 16, índios, negros e até judeus, os chamados cristãos-novos, tiveram de seguir a norma da Igreja sob o pretexto de uma única religião adotada na colônia. Até 1891, ano da primeira constituição da república brasileira que instituiu o estado laico, o catolicismo aparece como o “cimento da nossa unidade”, como indicou o sociólogo Gilberto Freyre. Na prática, os brasileiros adaptaram o ciclo quaresmal à sua moda. Em Pernambuco, por exemplo, a obrigação de se comer somente peixe às quartas e sextas-feiras ganhou a companhia de acepipes à mesa. Bredo, quibebe e o molho de coco compõem o cardápio de receitas litúrgicas, quase que exclusivamente nesse período. Com uma peculiaridade: nasceram pelas mãos de negros na cozinha da casa-grande. Hoje, não há quem se furte, mesmo um não praticante religioso, a uma peixada ao molho de coco na Sexta da Paixão. O rito tornou-se um hábito cultural. “Os jesuítas catequizaram os índios nos aldeamentos. Mas, com os negros, foi diferente. Força de trabalho inicialmente dos engenhos de açúcar, a educação religiosa deles era confiada aos capelães, que nem sempre fizeram seu dever”, indica o antropólogo e professor do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE Bartholomeu Figueirôa. Segundo ele, a participação dos negros na renúncia da Quaresma é um aspecto ainda não suficientemente estudado pela História. “Suponho que aos negros não era permitida a penitência quaresmal, porque já viviam sob a penitência dos senhores, pois comiam sobras.

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Cardápio 2

Eles precisavam comer em grandes quantidades o que lhes restava para poderem trabalhar na lavoura, enquanto as negras faziam o serviço de limpeza e de cozinha”, explica. No livro História da vida privada no Brasil – cotidiano e vida privada na América portuguesa, a professora de História da Unicamp Leila Mezan Algranti enfatiza que coube às mulheres índias, em virtude da falta de mulheres brancas no começo da colonização, ensinar a “socar o milho e a preparar a mandioca”. No entanto, séculos mais

tarde, as portuguesas contariam com as negras como aliadas na confecção de receitas lusitanas, ajudando a moldar as variadas influências, mesmo na escassa dieta quaresmal. O uso do bredo, por exemplo, está cercado de conjeturas. Planta suspostamente cultivada desde os povos maias, é encontrada em qualquer solo das Américas. Durante a Semana Santa, figura como guarnição. Teria sido introduzido à mesa pelas portuguesas da casa-grande, à falta de folhas europeias. Geralmente, era

refogado ao molho de coco, por sua vez, tempero africano. “Essas decisões sobre o que entrava à mesa não foram totalmente descritas. Existem múltiplas contribuições no processo histórico”, pontua o jornalista e pesquisador em gastronomia Bruno Albertim. Autor de um levantamento sobre os acepipes eminentemente nordestinos, inclusive os quaresmais, no livro Recife – guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição, Albertim defende que a voz portuguesa ditou os cardápios nas casas-grandes, mas

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2 TRADIÇÃO Interdição à carne vermelha na Quaresma alça o peixe a prato principal do período

de pão –, fez-se uso da farinha de mandioca oriunda dos índios. Assim, surge o pirão, a mais seminal das receitas nordestinas. Criados sob a resistência à fome, os pratos quaresmais respondem à demanda por ingredientes locais. Prosaicos, cumprem recomendações da Igreja. A presença do bacalhau contradiz o preceito religioso do abandono do luxo, por ter se tornado um alimento de custo elevado. “O vinho, se não for tomado como bebida de alegria, fazendo parte

No Brasil, as negras trouxeram a influência africana às receitas lusitanas, moldando a escassa dieta quaresmal apenas da refeição, pode”, observa o vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife, José Albérico de Bezerra. Segundo o pároco, três práticas são repassadas pela Igreja aos fiéis: a oração, o jejum e a esmola.

O NÚMERO 40 que a mão africana “temperou e retemperou” os pratos. Outra contribuição afro-brasileira é o quibebe, purê de jerimum (ou abóbora, como é conhecido no Sudeste) que foi introduzido pela predileção de legumes pelos escravos. Os portugueses, por sua vez, contribuíram com as técnicas de cocção. No caso, os ensopados de peixe, receitas advindas das quaresmas além-mar. Mas, no lugar da açorda – que consistia em engrossar o caldo com base em nacos

De acordo com o padre jesuíta José Raimundo de Melo, formado em Teologia Litúrgica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), os cânones 1249 a 1253, do Código de Direito Canônico, que são aqueles que tratam dos dias de abstinência dos cristãos, esclarecem que todo fiel, a seu modo, deve fazer penitência. “Mas, para que haja certa unidade nessa prática, são indicados dias penitenciais em que se deve intensificar a oração, as obras de piedade e caridade, a renúncia de si próprios, o jejum e a abstinência”, afirma Melo.

Inspirada na Páscoa judaica, a Páscoa cristã passa a ser o principal momento do calendário cristão, além de, historicamente, ser a primeira festa desse grupo religioso. A Quaresma corresponde, assim, ao período de meditação e preparação espiritual dos fiéis, antes da grande celebração. Desde o Concílio de Niceia, o primeiro ecumênico da Igreja, celebrado no ano 325, já se falava em um período de preparação de 40 dias, a quadragesima paschae (em latim). O número 40 refere-se a vários episódios bíblicos, todos em torno de experiências de preparação: Jesus jejuou 40 dias no deserto (nos livros de Mateus e Lucas); Moisés jejuou 40 dias no Sinai (Êxodos); Elias caminhou 40 dias e 40 noites até a montanha de Deus (I Reis); o povo eleito peregrinou 40 anos pelo deserto etc. O jejum é anterior à Quaresma, pois desde o século 2 os cristãos se preparavam para a festa da Páscoa ao jejuarem por dois dias. No século 3, tal prática se estende a toda a semana. De início, a Quaresma começava no sexto domingo antes da Páscoa e durava até a Quinta-Feira Santa, dia em que, em Roma, os penitentes eram reconciliados e readmitidos no seio da comunidade cristã. Os primeiros cristãos, porém, desejavam cumprir exatamente 40 dias de jejum em preparação à Páscoa. E, como não se pode jejuar aos domingos, porque domingo é o alegre dia da Ressurreição de Cristo, tiveram de recuar o início da Quaresma para a quarta-feira anterior ao sexto domingo, que passa a se chama Quarta-Feira de Cinzas e, depois, alongar a Quaresma até o Sábado Santo. Dessa maneira, conseguiram reservar precisamente 40 dias para os exercícios de preparação à Páscoa. Nem todos são obrigados a jejuar. Ainda segundo o Código Canônico, a

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LEO CALDAS

3 MARIA SOUZA Cristã defende que “o jejum faz bem à alma”

Jejum

UMA PRÁTICA RECORRENTE • Costuma-se associar o jejum e a

abstinência ao período que sucede o Carnaval (carnevale, que, em italiano, significa adeus à carne). A Quaresma incorpora uma série de limitações às diversões, ao prazer, ao sexo e à ingestão de carne, como representação de um momento de “limpeza” dos pecados praticados pelo cristão. No entanto, não se trata da única ocasião de penitência durante o ano, tampouco um ato exclusivo imputado aos cristãos.

Cardápio

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abstinência começa aos 14 anos e vai até o fim da vida, enquanto o jejum deve ser feito a partir dos 18 anos completos e vai até os 60 anos começados. Doentes são desobrigados da prática. Praticante do jejum há quase 60 anos, a aposentada Maria Souza Pereira, 79 anos, abstém-se de carne durante a Quaresma, mas, em função da idade avançada, não pode fazer o jejum à risca. “Faço jejum ainda, mas de maneira mais suave, por causa dos remédios que tomo. O que faço é comer menos. Jejum é uma coisa boa para a alma”, justifica a devota, que frequenta a Paróquia de Nossa Senhora da Boa Viagem. O jejum e a abstinência de carne e outros alimentos, como entendemos hoje, passaram a ser praticados, com fervor, às quartas e sextas-feiras da Quaresma. Rita de Cássia Barbosa, pesquisadora e historiadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj),

• Todas as quartas e sextas-feiras do

ano são dias de jejum e abstinência, em especial as sextas-feiras da Quaresma. Mas esse jejum pode ser comutado em obras de caridade e exercícios de piedade. A questão, portanto, não é verificar o dia penitencial, mas, sim, se o fiel católico vive em estado de penitência contínuo.

Tabus e abstinências alimentares ocorrem entre os mais diferentes povos e culturas, nos mais variados tempos pontua que a privação quaresmal também está associada historicamente a outros fatores, como a época da colheita nas lavouras e o calendário adotados por cada povo: “Tabus e abstinências alimentares ocorrem entre os mais diferentes povos e culturas, nos mais variados tempos históricos. Em muitos casos, estão relacionados à religião, mas também ocorrem por ocasião de rituais de passagens, quando um determinado sujeito se prepara para passar de um estado a outro”.

Em outros ciclos católicos também se repete o jejum, a exemplo do Advento (três semanas antes do Natal). Em caso extraordinário, o Vaticano pode recomendar abstinência episódica. Em 7 de setembro do ano passado, por exemplo, os cristãos foram convidados a unir-se em oração, por meio do jejum, a pedido do Papa Francisco, em prol da paz na Síria, no Oriente Médio.

• Muçulmanos e judeus praticam

igualmente o jejum, mas, diferentemente dos cristãos, que reservam o almoço como a única refeição; somente comem depois do pôr do sol. • No Brasil Colônia, cristãos-novos

tentavam manter em segredo o jejum judaico, comendo carne de carneiro e de boi à noite, longe da supervisão de escravos e outros delatores. Nem sempre conseguiam. No Engenho Camaragibe, no Recife, a cristã-nova Branca Dias foi por isso denunciada à Inquisição.

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REPRODUÇÃO

Leitura

QUATRO SOLDADOS Romance histórico em reinvenção

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1 BATALHAS No imaginário gaúcho está a luta territorial, retratada no filme Anahy de las missiones e em Quatro soldados

Escritor gaúcho Samir Machado apropria-se do gênero para construir narrativa de aventura em que a ironia e o pastiche sedimentam argumento em torno de disputas territoriais TEXTO Priscilla Campos

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Leitura Entre os séculos 18 e 19, Portugal,

para controlar seus súditos, administrava a entrada de livros no Brasil, através de censores. Na época, surgiram práticas destinadas ao contrabando do produto, que envolviam livreiros e comerciantes, além de formas alternativas para a distribuição das publicações. Diante de um cenário intelectual limitado, três jovens – Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel Araújo Porto Alegre e João Manuel Pereira – canalizaram a preocupação em formar leitores na colônia fundando o periódico O Gabinete de Leitura, Serões das Famílias Brazileiras, Jornal Para Todas as Classes, Sexos e Idades, publicado pela primeira vez na Corte do Rio de Janeiro, em 1837. Com um detalhe: quase todos os textos da gazeta eram ficcionais. A ligação entre história e literatura parecia meio esquecida pelos escritores contemporâneos brasileiros até o lançamento de Quatro soldados, segundo livro do gaúcho Samir Machado de Machado. Não é possível sair incólume do romance, após abri-lo: através de ilustrações, diagramação e linguagem textual que remetem ao final do século 18, o leitor é levado aos primeiros parágrafos, que surpreendem pela segurança do narrador. A sensação é de empatia ao ler trechos como: “Uma vez que cabe a mim, teu narrador, a obrigação de narrar, e a ti, meu leitor, a de ler – e assim te apraz –, faz-se mister, por questões de cortesia, que nos apresente. Porém, não sendo possível que eu te conheça, não há sentido que conheças a mim, posto que cá eu ficaria em posição de desvantagem contigo”. A partir daí, a disputa territorial entre a Colônia do Sacramento (hoje, pertencente ao Uruguai) e a Vila de Laguna (Santa Catarina) se conecta com as histórias de quatro homens das armas que estão em constante movimento, tanto emocional quanto geográfico. Samir consegue unir ação, ficção científica, terror e suspense, trazendo ao leitor uma narrativa que não deixa espaço para classificações engessadas. De acordo com Samir, a vertente histórica é apenas uma das que sustentam o romance, cheio de inquietações e referências.

Entrevista

SAMIR MACHADO “A LINGUAGEM DO LIVRO É MAIS UM PASTICHE QUE UMA RECONSTRUÇÃO” Samir Machado de Machado nasceu em Porto Alegre, em 1981. Além de escrever, trabalha como designer editoral e editor da Não Editora. No tempo livre, o gaúcho organiza o Sobrecapas, espaço em que analisa e armazena capas de livros diversos. Entre as suas obras, estão o romance O professor de botânica e a série Ficção de polpa. No momento, Samir trabalha em novo romance, ambientado no mesmo período histórico de Quatro soldados. CONTINENTE A temática de aventura com alusões ao heroísmo é pouco explorada hoje na literatura brasileira e você a desenvolveu com propriedade e segurança narrativa. Como foi esse processo? SAMIR MACHADO Os personagens desse livro eu carrego comigo já faz bastante tempo. A ideia de uma história de “aventura”, do modo como eu vejo, é de um enredo sobre a relação do personagem com o espaço que ele atravessa, tanto geográfico quanto emocional. Cheguei a pensar que escreveria com eles um longo romance de fantasia ou ficção científica, mas depois me ocorreu que seria mais prático ambientar essa narrativa em um espaço de tempo histórico, do que criar do zero um mundo novo. E, para o tipo de história que eu queria contar, o período da metade do século 18 era o ideal: o Brasil Colônia, que é explorado e mantido à míngua por Portugal, mas vivendo momentos definidores de algumas identidades regionais e nacionais. CONTINENTE Quanto tempo você levou e como foi realizado o estudo da época ambientada no

livro? O quanto essa pesquisa histórica influenciou na criação das narrativas? SAMIR MACHADO Eu trabalhei oito anos no livro, o que não significa só pesquisa histórica e literária, mas oito anos para descobrir qual voz eu queria dar aos personagens, qual seria minha própria voz, como autor. Os personagens tinham características específicas que eu havia definido antes mesmo de começar a pesquisar, e para isso foi preciso encontrar uma forma realista de adaptar seus perfis à realidade daquela época. Um livrinho obscuro, publicado pela Biblioteca do Exército, em 1950, intitulado Os dragões de Rio Pardo, me ajudou muito na criação do cenário. Uma coisa que me interessa é o quanto das “certezas” daquela época são absolutamente ridículas hoje em dia, mas eram dadas como certas, e, portanto, definiam a visão que se tinha da realidade. CONTINENTE Quatro soldados apresenta uma linguagem narrativa que mescla expressões e linguajar do século 18 com uma prosa coloquial, presente nas publicações contemporâneas. Além disso, você utilizou uma grafia diferente em alguns trechos, na qual a escrita do S chama bastante atenção. Como se deu tal construção? SAMIR MACHADO A linguagem do livro é mais um pastiche do que uma reconstrução da linguagem da época. Minha inspiração maior foram, especificamente, as traduções feitas pelo Paulo Henriques Britto para o Mason e Dixon, do Thomas Phynchon, e para o Viagens de Gulliver, lançado pela Companhia das Letras. Não é, de fato, uma linguagem antiga, apenas utilizei palavras que fossem contemporâneas aos meus personagens, evitando aquelas que só tivessem entrado na língua portuguesa depois do século 18. Ou seja: trabalhei com o Houaiss aberto de um lado e o site Brasiliana da USP no outro, no qual se mantêm scans do dicionário de Raphael Bluteau, de 1728, e de Antonio de Moraes Silva, de 1789. Esses dois últimos me possibilitaram checar a data de origem das palavras e a grafia. Já a escrita diferente é uma imitação do português setecentista, respeitando a ortografia, a gramática e a tipografia da época (o que inclui o uso do S longo, já em desuso hoje em dia, que se parece demais com

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um F minúsculo). Gosto desse tipo de minúcia, principalmente, porque serve para lembrar que não somente o mundo de então era muito diferente do nosso, mas a própria forma de expressá-lo e de se expressar era uma coisa que, vista hoje em dia, parece algo alienígena. CONTINENTE Ao final da leitura, fica claro que Quatro soldados é, também, uma ode à literatura. Quais as suas referências pessoais (literárias, cinematográficas) estão presentes na obra? SAMIR MACHADO Até mais que a literatura, o livro para mim é sobre o modo como a ficção nos ajuda e nos ensina a definir nossas próprias identidades, bem como o modo que vemos e nos relacionamos com o mundo à nossa volta. Alguns personagens leem muito, outros leem pouco, alguns nem leem, mas essa relação (ou não relação) com a leitura, com o ficcional, é o que define, amplia ou limita a percepção deles, conforme a personalidade de cada um. Tenho uma relação mais cerebral

do que emocional, com Pynchon; minha experiência de leitura com ele foi, sobretudo, um mindfuck em termos de possibilidades de forma e experimentação. Quando o li, já estava na metade do processo de escrever o livro. O ponto de partida foi, na verdade, o Baudolino do Umberto Eco, seguido de algumas leituras de Borges, intercaladas com Michael Chabon, o Reparação do McEwan, Moby Dick; os quadrinhos do Alan Moore, as peças do Peter Shaffer, os livros de Harry Potter, Cormac McCarthy, Bernard Cornwell, Érico Veríssimo. Aliás, uma das principais referências (e um livro que ninguém mais lê hoje em dia), que me serviu de modelo tanto na estrutura quanto no tom geral da terceira parte do livro, foi o Bambi de Felix Salten, cruzando também com alguns games. No que diz respeito ao cinema, há pelo menos duas passagens que piscam o olho para Os pássaros do Hitckcock e para Jurassic Park do Spielberg.

“Eu queria escrever um romance de aventuras. Uma história que provocasse, continuamente, o que os americanos chamam de sense of wonder: aquela quebra de paradigma e ‘maravilhamento’ que se relaciona com a descoberta de algo, e que me parece tão intrínseco à uma história de aventura, mas também se encaixava com o período retratado. O século 18 é o do Iluminismo, de uma quebra de pensamento radical, que resultaria numa mudança profunda no modo de vermos a sociedade”, explica. De fato, a classificação de um romance como histórico não está necessariamente definida por restrições ou limites. Segundo o escritor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer, o romance histórico não é uma especialidade brasileira, em sentido estrito. “Porém, em sentido amplo, há muita matéria histórica no grande romance brasileiro, como acontece em casos estratégicos da obra de Machado de Assis”, pontua. De acordo com Fischer, existe uma dificuldade dos escritores contemporâneos em lidar com as características do pós-modernismo e, ao mesmo tempo, estabelecer uma conexão com a tradição do romance histórico, mecanismo utilizado com mestria na narrativa de Quatro soldados. Outro ponto levantado pelo professor é a constante referência, na literatura, aos conflitos políticos nas fronteiras geográficas do Sul do país. “Em certo momento, o Rio Grande do Sul desejou ser um país à parte, numa guerra que durou 10 anos, na qual o Brasil venceu a unidade do território. Essa perda gerou um sentimento, uma consciência e uma fantasia de diferença, de singularidade, que até hoje é sentida, às vezes de forma caricata, às vezes de modo consistente. O romance histórico gaúcho se liga diretamente a esse complexo, essa relação difícil entre o sul e o centro do Brasil.” Com uma narrativa divida em quatro capítulos, que poderiam ser facilmente desenvolvidas separadamente, Quatro soldados traz imagens carregadas de eventos grandiosos. Um exemplo disso é a cena em que dois personagens lutam contra um monstro macabro em um tipo de caverna subterrânea. Nesse ponto, Samir consegue surpreender novamente o leitor com suas habilidades

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FOTOS: REPRODUÇÃO

Leitura

Revista

LITERATURA CURITIBANA

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2 GRAVURA Destaca-se, também, no livro, o bom projeto gráfico

como roteirista de aventuras, acrescentando ironia a uma certa elegância textual insolente: “E agora, leitor, rufem tambores e trovões e cantem os corais, que se fosse dito que tal gana percorreu o braço de Licurgo até converter-se num tiro de pistola perfeitamente preciso, a atravessar a garganta do animal e sair pela nuca, fazendo a besta-fera tombar morta no mesmo instante e caindo a cabeça para um lado e o Andaluz são e salvo para o outro, há de se concordar que tal resultado, ainda que bastante realista, não condiz nem com a tua expectativa tampouco com a minha”. No início, Quatro soldados traz como epígrafe uma citação de Mason e Dixon, de Thomas Pynchon. Nela, o escritor norte-americano afirma que a literatura é uma

“excitação mental das mais mesquinhas e ordinárias”. Ao final das 317 páginas, o que fica para o leitor é a vontade de, com muito afinco, continuar sua busca literária por essa sedutora “excitação mental”. A escrita de Samir oferece uma possibilidade de inquietude intelectual das mais solidárias e honestas.

Barista (apontado como o melhor do Brasil!) e escritor, Otávio Linhares está à frente desta empreitada. Trata-se de Jandique, revista trimestral que pretende difundir a produção curitibana entre os leitores de todo o país. A primeira edição (a da capa acima) saiu em janeiro de 2013 e a quinta está em circulação agora (www. encrencaliteratura.com.br/revista-jandique). O conteúdo da publicação são ficções, artigos, resenhas e entrevistas, cada uma ilustrada por um artista convidado. O seu escopo de atuação deve atravessar, em breve, os limites do território paranaense. Além da Jandique, o selo Encrenca, de literatura de invenção, publica inéditos. Desde setembro, foram lançados três títulos, um deles do próprio Linhares, Pancrário, de breves narrativas.

Comidas

GASTRONOMIA “DESCALÇA”

Quatro soldados SAMIR MACHADO

Não Editora Romance histórico tem narrativa centrada nas desventuras de personagens envolvidos com guerra territorial.

Numa analogia à expressão “literatura de bermudas”, para designar a crônica, utilizamos aqui “gastronomia descalça”, para definir o conteúdo deste Guia da gastronomia popular alagoana, de Nide Lins, que acaba de sair pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos, de Alagoas. O que encontramos nele é uma listagem de bares, botecos e localidades tradicionais da culinária popular do estado. Assim como nos parecem os quitutes, o texto da autora é saboroso e simples, despido de quaisquer ostentações a que a gastronomia tem sucumbido neste tempo de afetação à mesa. Nide conta a história dos lugares, conversa com seus proprietários - gente que está há muito tempo no ramo - e ainda dá dicas de preparo de algumas iguarias. Destaque para as quituteiras de Riacho Doce.

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INDICAÇÕES CRÔNICAS

JULIANA CUNHA Já matei por menos Lote 42

Já matei por menos é um apanhado dos melhores textos publicados no blog homônimo, criado em 2007, pela jornalista Juliana Cunha. Organizado cronologicamente, o livro passeia por temas como a infância da repórter; sua transição para São Paulo; análises dos finais de filmes; ex-namorados e cachorros; e muitos outros textos, sempre carregados de fina ironia.

PSICOLOGIA

ROMANCE

ANDREW SOLOMON Longe da árvore – pais, filhos e a busca da identidade

CAROL BENSIMON Todos nós adorávamos caubóis Companhia das Letras

Companhia das Letras

Em seu segundo romance, a gaúcha leva o leitor para uma roadtrip pelo Rio Grande do Sul. A narrativa intercala o passado e o presente de Cora e Julia, duas jovens estudantes de Comunicação que, após um término abrupto, continuam apaixonadas. Com ritmo narrativo viciante, Bensimon demonstra em Todos nós... uma prosa mais segura.

Após 10 anos de pesquisa, o jornalista norte-americano Andrew Solomon reúne depoimentos, informações, estatísticas sobre como as identidades horizontais influenciam na relação entre pais e filhos. Nas mais de mil páginas, Solomon destrincha, entre tantas coisas, as diversas formas de amor.

ENSAIO

THIAGO MONTEIRO Tudo isto é pop Editora Caetés

Quando se pensa na música de Portugal, a primeira referência é o fado. Mas há muito sendo produzido nessa música contemporânea, que o Brasil desconhece. A obra busca desconstruir a percepção tradicional e cheia de estereótipos que os brasileiros têm da produção lusitana. Apesar de focar na música, a obra ajuda a reescrever o imaginário cultural de Portugal.

Romance

O jornalista e escritor Tom Wolfe, criador de clássicos contemporâneos como A fogueira das vaidades (1987), O teste do ácido do refresco elétrico (1968) e Eu sou Charlotte Simmons (2005), retorna ao batente com mais um livro, no qual o jornalismo é colocado a serviço da literatura, desta vez com o foco sobre o fenômeno da imigração na cidade de Miami. Em Sangue nas veias, (Editora Rocco, 608 páginas, R$ 59,50, tradução de Paulo Reis) o escritor retrata uma Miami repleta de conflitos culturais, dilemas morais e limites éticos, e dá forma a uma narrativa que mistura personagens distintos, enredados em uma narrativa até certo ponto bem-humorada. Na profusão de culturas do romance encontram-se os mais variados tipos: o policial cubano, o oligarca russo falsificador de obras de arte, o jornalista herói,

o chefe de polícia negro, a garota de programa atrás de grana e fama, o psiquiatra especializado em antipornografia, entre outros, num relato contundente da sociedade americana contemporânea. O curioso é não aparecer um único personagem brasileiro no livro, já que a cidade localizada na Flórida é coalhada de milionários verdeamarelos ansiosos para comprar bugigangas e visitar o Pateta na Disneyworld. Tom Wolfe continua um mestre na arte de juntar essas figuras, que vão se entrelaçando a partir de pequenos incidentes, logo transformados em apoteose, num texto que nos convida a não parar a leitura, envolvidos num ritmo de filme de ação (podem ir preparando a pipoca e a poltrona para assistir, em pouco tempo, algum filme baseado no romance). Isso, ele sabe fazer direitinho.

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INTER-CULTURALIDADE DISPERSA EM ONOMATOPEIAS O que talvez já esteja gasta é a velha fórmula do new (old?) journalism, sucesso nas décadas de 1960 e 1970, que ele continua a remoer página a página num ritmo que começa a tornar entediante a leitura. Talvez, para Wolfe, a máxima de que em time que está ganhando não se mexe seja seu mantra de trabalho. Muitas vezes, você tem vontade de pular o parágrafo para não sufocar na repetição de palavras ad nauseam, reticências, exclamações ou onamatopeias. No primeiro capítulo, em dois parágrafos, o vocábulo plaft é repetido 20 vezes. Defensor do romance de nãoficção, Wolfe afirma que só há um tipo de literatura viva: “a que é como a minha”. Já era tempo de ele repensar o assunto, já que o que era novo àquela época hoje soa ultrapassado, ou démodé, a julgarmos pelo seu próprio modo de vestir-se. LUIZ ARRAIS

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

JUAZEIRO DO NORTE NÃO É ROUEN

A Catedral de Saint Pierre,

em Poitiers, na França, é escura e fria como quase todas as igrejas góticas. Os vitrais não dão conta da iluminação, sobretudo nos dias chuvosos de inverno. Ao entrar nela, sentimos desalento e uma pequenez esmagadora. Olhamos para cima e mal conseguimos enxergar os detalhes das torres elevadas. Esse olhar ao alto nos torna menores. Nem a consciência de que tudo foi construído com o propósito de ressaltar a insignificância do homem, diante da grandeza de Deus, nos conforta. Vivemos a paradoxal sensação de claustrofobia em meio ao grandioso. A Notre-Dame de Rouen me encanta bem mais do que a NotreDame de Paris. Certa desordem arquitetônica por causa dos vários projetos de construção e reforma, ruínas testemunhando

os bombardeios da Segunda Guerra e o conhecimento de que o artista Claude-Monet gastou dias pintando-a, essas pequenas bagatelas humanizam a catedral, expõem a fragilidade de Deus. Nunca visitei a Notre-Dame de Chartres, onde a Madona segue o primitivo modelo da deusa egípcia Ísis amamentando seu filho Horus, testemunhando que a devoção à Virgem Maria nasceu de cultos bem anteriores ao cristianismo. Segundo Joseph Campbell, os padres adotaram a imagem de Ísis e de outras divindades femininas pagãs, alegando que aquelas formas, meras formas mitológicas no passado, agora eram verdadeiras e encarnavam no nosso Salvador. A prerrogativa de que ao entrar e sair de um templo renascemos espiritualmente parece não fazer mais sentido nas igrejas transformadas em locais de visitação

turística, ao invés de adoração. Nas cidades medievais, a catedral se elevava acima de todos os prédios; nas cidades modernas, os edifícios mais altos são os dos centros financeiros. Desprovidas da função para o qual foram edificadas, as velhas igrejas ainda guardam uma referência espiritual ao silêncio. Talvez elas tenham se tornado incompatíveis com o homem moderno por conta desse silêncio que remete ao desconhecido e ao absoluto, uma experiência que hoje poucos desejam, preferindo o ruído e a exposição contínua da imagem, num anseio perverso à imortalidade. Em Poitiers, que mantém de pé um batistério românico e muros de uma antiga arena, escutei os sinos da catedral tentando ouvir uma música em contínuo, soando por trás do badalar. Na Igreja de Saint-Ouen, em Rouen, assistimos a um concerto de

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KARINA FREITAS

órgão e trompete. Compreendi por que o órgão é o mais perfeito instrumento para preencher os vazios das torres e abóbadas, utilizando o revérbero da acústica e criando uma polifonia que, ao fim, é uma consagração do silêncio. A cultura gótica é estranha à minha formação. Fui criado no catolicismo popular do Cariri cearense, com influências da mitologia de Juazeiro do Norte. A doutrina romeira prega que as três pessoas da Santíssima Trindade são o Padre Cícero, a Mãe das Dores e o Divino Espírito Santo. Sempre achei iluminada essa contaminação de paganismo na herança judaicocristã, que estabelece o Pai, o Filho e o Espírito Santo como trindade maior. Se considerarmos a simbologia da pomba como representação do feminino, mesmo assim teremos, pela teologia clássica, a prevalência da força masculina. Os romeiros de Juazeiro entronizaram uma deusa mãe, Nossa Senhora das Dores, no meio da trindade, banindo a figura do pai e seu patriarcado. As sete dores de Maria são todas referentes ao seu filho Jesus, por isso ela se representa com sete punhais trespassando o peito. É a mesma mãe sofredora Ísis, dos egípcios, e a Deméter, dos gregos. As igrejas de Juazeiro do Norte estão sempre lotadas de fiéis, na

A cultura gótica é estranha à minha formação. Fui criado no catolicismo popular do Cariri cearense maioria gente pobre e simples, oriunda principalmente das cidades do Nordeste. Ali não se encontra o silêncio que eleva ao transcendente desconhecido. A relação do romeiro com o divino se faz na ordem do milagre, no pagamento de uma promessa em troca da graça alcançada. Buscam-se a proteção e a atuação do poder superior, pagandose um preço para isso: usar roupa preta todos os dias 20 do mês – data em que morreu o Padrinho –, dar esmolas, acender velas e soltar fogos, deixar no salão de ex-votos a representação do sofrimento que afligia o suplicante – braços e pernas de madeira ou cera, fotos de partes do corpo mutiladas ou acometidas de moléstia etc. –, andar descalço e não tomar banho, usar o hábito franciscano, assistir a missas... Embora em Juazeiro do Norte as igrejas ainda ocupem espaços

significativos, atraindo mais gente do que o shopping center, esses templos de romaria não me lembram lugares sagrados, nem me convidam à experiência transcendente. Mesmo que sejam comovedores os cantos dos romeiros e o sofrimento pela perda do santo que os guiava (Mas como ficamos agora/ como o gado sem pastor?/ como os filhinhos sem pai da raminha que murchou), a emoção que sinto na Matriz do Juazeiro é bem diversa da que experimento ao entrar numa catedral gótica de quase mil anos. Sei que tudo se passa pela relação com o silêncio. Bach criou a maior parte de sua obra para ser executada em igrejas descomunais, onde Deus pairava no alto, distante, quase inacessível, para além do primeiro som, como o grande silêncio, ou o proibido, ou o absoluto transcendente. Em meio ao barulho ensurdecedor e temperaturas superiores aos 40 graus nas igrejas de Juazeiro, os romeiros apelam a um padre santo, bem próximo deles, ao alcance de suas mãos sujas e pobres. Padrinho Ciço Romão Disse lá e disse cá Se consolem meus filhinhos Que eu vou e torno a voltar.

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Cães sem plumas De 23/4 a 6/7 Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam)

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CÃES SEM PLUMAS Sobre os desvalidos Sob curadoria de Moacir dos Anjos, exposição reúne obras de 24 artistas em torno do binômio arte e política TEXTO Luciana Veras

“É quando a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem”, escreve João Cabral de Melo Neto (19201999), num verso de O cão sem plumas, longo poema sobre o Rio Capibaribe, em que muito se vê, também, de um Recife cindido entre o vigor de sua paisagem e a precariedade da existência dos que nela habitam. As estrofes apontam um horizonte no qual o curador Moacir dos Anjos percebeu potência para pesquisar. O resultado é a exposição Cães sem plumas, que agrupa obras de 24 artistas sobre os despossuídos, os desvalidos e os marginais que estão, até, à margem da margem, em cartaz de 23 de abril a 6 de julho, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). “A mostra é parte de uma investigação mais ampla sobre a relação entre arte e política empreendida pela diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte da Fundação Joaquim

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1 BERNA REALE No vídeo, artista registra performance com ossadas nunca identificadas 2 CLAUDIA ANDUJAR Série foi realizada pela fotógrafa, em manicômio

Nabuco nos últimos quatro anos, que já gerou 12 exposições na Fundaj, além de debates e conferências”, explica Moacir dos Anjos. Iniciado em 2009, o projeto Política da Arte encampa uma proposta de averiguação artística que o curador levou adiante na 29ª Bienal de Arte de São Paulo no ano seguinte, aproximando arte e política sob o mote “há sempre um copo de mar para um homem navegar”, extraído da obra Invenção de Orfeu, do alagoano Jorge de Lima (1895-1953). “Não é uma exposição sobre o rio, nem sobre o poema de João Cabral”, antecipa. “Mas, lendo e relendo o poema, fiquei intrigado com a força da expressão sobre os despossuídos. Quando recebi o convite da galeria Nara Roesler, dentro do projeto Roesler Hotel, pensei que seria uma boa oportunidade para testar algumas ideias que já tinha acerca da representação dos despossuídos no campo das artes visuais do Brasil”, complementa Moacir. Entre setembro e novembro de 2013, Cães sem plumas [prólogo] ficou em cartaz na galeria paulistana, materializando indagações propostas

pelo curador e sua vontade de buscar espaços para amplificar o debate. “Negros, índios, homossexuais, imigrantes, miseráveis, doentes mentais são, hoje, excluídos de um modelo de crescimento que o Brasil adotou. Por exemplo, o desenvolvimento do agronegócio implica, necessariamente, o avanço sobre terras indígenas. Não se faz muito contra isso. Os despossuídos são todos que não combinam com essa superação do Brasil em outros meios. E isso me traz dois incômodos: apesar do crescimento, essa parcela da população não é, e não vai ser, assimilada ou integrada nesse processo; depois, a pouca atenção que as artes visuais dão a esse processo, a essa exclusão. Nesse sentido, a exposição é uma crítica, porque esse assunto não está na pauta”, considera Moacir dos Anjos. Antonio Dias, Armando Queiróz, Berna Reale, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Claudia Andujar, Eduardo Coutinho (1933-2014), Gil Vicente, João Castilho, José Rufino, Lasar Segall (1891-1957), Marcos Chaves, Maria Thereza Alves, Matheus Rocha Pitta, Oswaldo Goeldi (1895-1961), Paula Trope, Paulo Bruscky, Paulo Nazareth, Regina Parra, Rosangela Rennó, Thiago Martins de Melo e Virgínia de Medeiros, acrescidos de João Cabral de Melo Neto e Jorge de Lima, compõem o time de artistas que ganha uma nova leitura em Cães sem plumas. “Não há uma cronologia nem uma concentração de situações afins. A ideia é mostrar

certa continuidade entre o que essa população excluída sofria no passado e sofre hoje, e como isso era e é retratado”, diz o curador.

AQUÉM DE SI MESMOS

Interligadas por esse conceito, as obras contribuem para um olhar sobre aqueles que vagam aquém de si mesmos, na lógica da poesia cabralina. Moacir evoca o filósofo francês Jacques Rancière para defender, mais uma vez em sua trajetória como curador, a junção entre arte e política: “É a contínua divergência com o que antes era considerado consensual que permite àquilo que, em determinado lugar e momento não podia ser dito, não podia ser visto ou não tinha colocação no corpo social, pudesse ser visto, dito e se legitimar socialmente. Como diz Rancière, é através da política que o que antes era somente ruído pode se afirmar como discurso articulado”. O encadeamento se dá, portanto, entre obras de artistas que trabalham com essa questão, como Claudia Andujar, e outras que mostram a situação e “sugerem alguma forma de resistência”, nas palavras do curador. De Andujar, por exemplo, há fotografias da série Malencontro, datadas entre 1980 e 1989, em que ela enfoca índios ianomâmi, mas também instantâneos feitos no manicômio do Juqueri, de São Paulo, ainda na década de 1963, e nunca antes expostos. Nessa linha, surgem os trabalhos de Paula Trope, Regina Parra e Berna

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Completa a mostra um ciclo de debates abertos ao público em que se discutem temas como A pobreza que não interessa

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Reale, por exemplo, explícitos em seu enquadramento dos “cães sem plumas” anônimos. No vídeo Contos de passagem, a carioca Trope dá voz a meninos de rua, em imagens borradas e som quase inaudível; a paulistana Parra apresenta os imigrantes que, atraídos pela promessa do Eldorado, esbarram em situações de risco e medo; e a paraense Reale usa o audiovisual para outorgar dignidade a presos em condições desumanas e a milhares que morreram e nunca foram reclamados por ninguém. “Solicitei as ossadas ao

Centro de Perícias Renato Chaves, onde trabalho e onde estavam armazenadas, pois haviam sido entregues pela polícia para futuros exames ou reclamações de reconhecimento. Meu objetivo era falar sobre a violência, sobre os anônimos, sobre o outro que não parece ser importante para nós. Utilizo sempre a simbologia para tratar questões que me angustiam”, comenta Berna. As ilustrações de Lasar Segall para os Poemas negros de Jorge de Lima; os próprios versos de Jorge, ao lado do Cão sem plumas original; as soturnas gravuras

de Oswaldo Goeldi (“um dos poucos artistas modernistas brasileiros a se contrapor à ideia de um país sempre solar e alegre”); uma bandeira preta com o verbete “realidade” grafado em italiano por Antonio Dias; uma imagem de três negros e a palavra “poder”, eternizada por Carlos Vergara em um carnaval dos anos 1970; e os trabalhos de Paulo Bruscky e Cildo Meireles alinham-se de modo igualmente politizado e incisivo. De Meireles vem a série Zero real, com uma fictícia nota estampada por um índio e por um louco, e o célebre Projeto cédula, em que o artista carioca carimba um simples e afiado questionamento – nesse caso, o novo é Cadê Amarildo?. Do falecido cineasta Eduardo Coutinho, o vídeo Porrada, em que ele registrou internos do instituto Philippe Pinel, do Rio de Janeiro, encenando quadros do programa do apresentador Carlos Roberto Massa, o Ratinho.

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CARLOS VERGARA Fotografias foram realizadas em carnaval nos anos 1970

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THIAGO DE MELO Suas pinturas em grande formato apontam para situações de desarranjo

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CILDO MEIRELES Desde os anos 1970, o artista desenvolve o Projeto Cédula

TRECHO O cão sem plumas João Cabral de Melo Neto tinha 30 anos e vivia em Barcelona, quando escreveu o poema. Dois exemplares da primeira edição – um deles da coleção do escritor pernambucano Marcelino Freire – estarão expostos. Eis os versos que mais nortearam o curador Moacir dos Anjos. II. Paisagem do Capibaribe Entre a paisagem o rio fluía como uma espada de líquido espesso. Como um cão humilde e espesso.

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Para o maranhense Thiago Martins de Melo, presente na exposição com O matriarcado de Pindorama sucumbe à dança estatal das motosserras do andrógino fálico presidencial, de 2012, “o Brasil é racista e nossa sociedade, patriarcal, machista, excludente e paternalista”. Concebida na época da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, a tela carrega um exagero cromático e uma pluralidade de referências concatenadas pelo raciocínio do artista. “O mítico, o espiritual, o político, a Pindorama de Mário de Andrade e, consequentemente, o movimento antropofágico se juntam, forjando imagens arquetípicas na questão da luta étnica”, explica Thiago. “No Brasil, existe o racismo ambiental. Os quilombolas, os índios e os negros são invisíveis e demonizados. A arte brasileira é burguesa e elitista”, vaticina.

ENCONTROS ABERTOS

À exposição, somam-se três encontros abertos ao público na sala Aloísio Magalhães, na Fundaj do Derby. No dia 24, Falar de quem não tem fala une o escritor mineiro Luiz Ruffato ao artista paraibano José Rufino (cuja presença na mostra se traduz com Lexicon silente, cerca de 50 pedras e fragmentos retirados das

áreas de conflito agrário das Ligas Camponesas da Paraíba). Em 5 de maio, A pobreza que não interessa reúne a jornalista e doutoranda em Sociologia pernambucana Fabiana Moraes, a socióloga e professora Maria Eduarda Rocha e o sociólogo potiguar Jessé de Souza; dois dias depois, O invisível representado congrega a artista cearense Virgínia de Medeiros (sua obra é Fábula do olhar, em que fotografias de moradores de rua são engendradas de acordo com suas vontades), o teórico e crítico literário Márcio SelligmanSilva e o professor de arte e curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Luiz Camillo Osório. Moacir dos Anjos acredita que Cães sem plumas expõe o desejo de “mudar a configuração do ambiente do sensível no Brasil”. “Em outros países com uma situação social semelhante à nossa, como a Colômbia e o México, artistas e instituições articulam essa questão dos despossuídos com densidade de obras e pensamentos. No Brasil, isso não existe. Muitos observadores de fora sentem essa ausência e colocam isso. Talvez pelo colonialismo, talvez pela forte presença negra... O que tentei foi articular essas combinações de modo a refletir e colocar a questão em pauta”, argumenta.

Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama. Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado. Um cão sem plumas é quando uma árvore sem voz. É quando de um pássaro suas raízes no ar. É quando a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem). [...] Mas ele conhecia melhor os homens sem pluma. Estes secam ainda mais além de sua caliça extrema; ainda mais além de sua palha; mais além da palha de seu chapéu; mais além até da camisa que não têm; muito mais além do nome mesmo escrito na folha do papel mais seco.

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BETO FIGUEIROA/DIVULGAÇÃO

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BIENAL Barro: pensamento, corpo e ação

Evento idealizado pelo artista Carlos Mélo, que acontece em Caruaru, lança olhar contemporâneo sobre essa tradicional matéria-prima TEXTO Mariana Oliveira

O artista plástico Carlos Mélo

nasceu no município de Riacho das Almas, no agreste pernambucano, situado a 25 km de Caruaru. Por isso, parte importante da sua formação e linguagem poética se desenvolveu nessa cidade – referência no interior, especialmente pelo comércio, pelo forró e pelos mestres da cerâmica.

Foi a partir dessa forte relação com a região e da percepção da falta de investimento e de um olhar para a sua identidade cultural, que o artista concebeu e planejou a realização da I Bienal do Barro do Brasil, que tem início no próximo dia 12 e segue em cartaz até o dia 19 de maio, no galpão da antiga Fábrica Caroá, em

Caruaru, com o tema Água mole, pedra dura. Engana-se quem imagina tratar-se de uma mostra dedicada ao barro. O foco do evento é lançar um olhar contemporâneo sobre ele. Segundo Carlos Mélo, a palavra que melhor definiria a bienal é transculturalidade. “Entendemos o barro como plataforma de ação para, além de levar a arte para aquela região, usá-lo como conceito ‘trans’, um espécie de atravessamento, construindo um grande e potente encontro entre este material e a arte contemporânea”, explica. Um dos objetivos é institucionalizar a cerâmica como a marca do Agreste, assim como o cangaço e o maracatu rural marcam o Sertão e a Zona da Mata, respectivamente. “A palavra agreste tem como anagrama resgate, e é esse processo de ‘extração’ que impulsiona os princípios conceituais da bienal”, resume o artista.

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Mesmo tendo sido autor do projeto, ele optou por não comandar a curadoria, convidando para isso o carioca Raphael Fonseca. “Achei que não deveria ser eu a fazer a seleção. Era importante trazer um olhar de fora”, pontua Mélo. O curador selecionou 16 artistas – Armando Queiroz (PA), Clarissa Campelo (ES), Daniel Murgel (RJ), Deyson Gilbert (PE), Ivan Grilo (SP), Jared Domício (CE), Jorge Soledar (RS/RJ), José Paulo (PE), José Rufino (PB), Laerte Ramos (SP), Leila Danziger (RJ), Luísa Nóbrega (SP), Márcio Almeida (PE), Marcone Moreira (MA), Nadam Guerra (RJ), Preciliana Nobre (AL/PE) –, cujos trabalhos passeiam pelos mais distintos suportes (vídeos, pinturas, performances, esculturas, instalações). Em muitas das obras, o barro não está presente fisicamente, mas é utilizado como referência, como ponto de partida. O próprio Carlos Mélo costuma apontá-lo como matéria-

CARLOS MÉLO

A mostra pode ser entendida como mais uma obra do seu projeto Corpo. Barro.Oco

prima seminal de sua obra, mesmo sem nunca ter feito uso direto do material. E são justamente essas investigações conceituais que acrescentam uma “nova substância” para a matéria, que a bienal pretende trazer. A cerâmica e as práticas artesanais comumentemente associadas ao material vão aparecer em momentos específicos, quando forem ativadas pelas discussões em curso. Segundo o idealizador, foi difícil fazer com que todos compreeendessem que não se tratava de uma feira de artesanato, com foco exclusivo nesse tipo de produção. Como usualmente acontece com as bienais, a exposição foi dividida em dois núcleos. O primeiro, dedicado aos artistas contemporâneos e, o segundo, histórico, em homenagem ao Mestre Vitalino e ao legado dele no Alto do Moura, o maior centro de artesãos das Américas. A segunda etapa ocupará a Galeria Mestre Galdino, no Sesc Caruaru, só a partir do dia 14, levando para a cidade, pela primeira vez, os registros do artista caruaruense feitos pelo fotógrafo francês Pierre Verger. Nesse espaço, haverá um diálogo com obras da artista Preciliana Nobre, de Santana de Ipanema (AL), que, desde 2012, desenvolve uma pesquisa em cerâmica popular primitiva no Alto do Moura, com olhar no local, na produção cerâmica contemporânea e nas obras de Vitalino e Galdino. A galeria vai receber reproduções de latas de cerveja feitas em cerâmica, numa alusão à tomada do Alto do Moura, durante os festejos juninos, por uma marca de bebida que patrocina o evento. O núcleo contemporâneo será instalado no galpão, com 4.800 m2, onde funcionou a fábrica de cordas Caroá. A escolha pelo espaço se deu por diversos motivos, entre eles o desejo dos organizadores de promover uma espécie de acerto de contas da cidade com sua cultura e sua história. A fábrica foi fundamental no desenvolvimento de Caruaru – a primeira vez que a cidade teve energia elétrica foi por conta do gerador da empresa. “Apesar

de sua relevância, esse espaço é subutilizado, as pessoas nem sabem da sua existência, não conhecem a história da própria cidade. Queremos estimular a curiosidade da população em conhecer os centros culturais e museus locais que quase ninguém conhece”, explica Carlos Mélo.

ANAGRAMA

A Bienal do Barro pode ser compreendida como uma obra que complementa uma pesquisa desenvolvida por Carlos Mélo nos últimos anos. Desde 2010, o artista se voltou para a região onde nasceu, e criou um anagrama, cuja articulação aciona discursos em torno do barro, da arte contemporânea e do barroco. Como o uso do corpo é algo recorrente em seu trabalho, ele desenvolveu a ideia de Corpo.Barro.Oco, para gerar uma sequência de experiências sensíveis, a partir de articulações distintas. Dentro desse conceito, que se materializou em diversas obras, ele reuniu outros artistas e propôs leituras do tema. Com o apoio do Sesc, realizou, em 2012, na galeria da instituição, em Caruaru, a mostra Barro.Oco, com a participação de José Paulo, Jared Domício e Bruno Viera. Enquanto José Paulo apresentava seus trabalhos com barro, os outros dois convidados traziam vídeos que se relacionavam ao conceito, sem fazer uso da matériaprima. Depois, foi a vez de Belo Jardim, em 2013, receber a segunda etapa, com a mostra Corpo.Barro, quando o artista Armando Queiroz apresentou sua obra em diálogo com os trabalhos de Lorane Barreto, Bruna Raphaella Férrer e Pierre Tenório. Haveria uma terceira etapa em Garanhuns, que completaria as combinações possíveis. Nesse meio tempo, Mélo conseguiu o apoio do Funcultura para realizar a I Bienal do Barro do Brasil e terminou optando por fechar o ciclo novamente, em Caruaru. “Como surgiu de um projeto artístico, o anagrama Corpo.Barro.Oco, a bienal não é apenas um evento, mas uma obra de arte, na medida em que cumpre uma função artística e social de resgate da cultura local, e também de implementar para o futuro uma abordagem diferente dessa cultura, transcodificando o barro matéria em pensamento e ação”, conceitua o artista.

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

MINHA TARDE DE HERÓI

Fui fabricado antes da guerra, como costumava dizer Paulo Vanzolini, guerra de 38 a 45, sendo eu de 32 e Vanzolini de algum tempo antes. Durante a guerra não houve Copa do Mundo. A de 38 consagrara Leônidas, o Diamante Negro, e outros, Nariz, Fausto, o goleiro Batatais, nomes a ecoarem até 1950 nas nossas mentes infantis. Meu pai odiava esse tal de “fitibó”, como os matutos diziam: engraçado ser feet (fit) o plural de foot (fut) em inglês, como se a voz inculta apenas divergisse em questão de número da que prevaleceu. Mesmo meu pai, odiando futebol, empregava o adjetivo “batatal” a respeito de qualquer assunto, indicando uma coisa de qualidade, onde não havia como duvidar: “Ali é batatal”, por exemplo, sobre um freguês pontual nos pagamentos, ou um trabalho bem feito. Realizada no Brasil, a Copa de 50, eu com 18 anos, a primeira depois do longo jejum da guerra, terminou no chamado “maracanãzaço”. Final Brasil x Uruguai. O Brasil jogando pelo empate. É comum time que joga

pelo empate perder. Mas ninguém no mundo acreditaria que o Brasil perdesse, um time que tinha o pernambucano Ademir, conhecido como Queixada, por causa do queixo comprido, o meio-de-campo Danilo, que saiu de campo chorando, o goleiro Barbosa, considerado grande goleiro até aquele dia. Ter engolido aquele gol foi sua pena de morte, como ele próprio declarou, porque toda pena no Brasil acaba, menos a dele, como de fato durou até o seu falecimento. A certeza era tanta da vitória do Brasil que no segundo tempo os jogadores brasileiros entraram em campo a camisa de campeão por baixo da outra. Dizem. Ghiggia, autor do gol, como Barbosa falecido há pouco, disse: “Somente três pessoas calaram o Maracanã: o papa, Frank Sinatra e eu”. Nunca consegui torcer por nenhum clube, tanto porque não encontrava eco dentro de casa como, principalmente, pela derrota de 50. Ao chegar em Roma, Dia de Finados, 57, na mensa onde almoçava me falavam de um tal de “Zulinho”, jogador brasileiro da Fiorentina, isto

é, Julinho. Como no alfabeto italiano não tem a letra j, pronunciam como se em português se escrevesse com z (o z italiano é pronunciado sempre tz ou dz, qualquer coisa assim). Um belo dia, não lembro mais a cidade, meados de 58, um papà albergatore (papai albergador), se fosse mulher mamma albergatrice (ixe), título que se dava ao senhor que tomava conta do albergue da juventude (albergo della gioventù), me convidou para ver um jogo de futebol na televisão. Como nunca tinha visto televisão, aceitei o convite, mais para ver a televisão do que para ver o jogo. Chegamos num bar, o papà solenemente vestido de paletó, gravata e capa se responsabilizando pela consumação mínima, qual ingresso, talvez para exibir esse bicho raro na época, um brasileiro, no meio da torcida maciçamente anglófila diante da derrota do Brasil dada como certa. O mais exaltado era um professor de história da arquitetura de quem eu era aluno na Accademia di Belle Arti de Roma, que, braços levantados, andando de cócoras para não atrapalhar a visão

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REPRODUÇÃO

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dos sentados atrás, gritava diante da televisãozinha preto-e-branco encarapitada na geladeira: Lo fanno! Lo fanno! (vão fazer, vão fazer), toda vez que a Inglaterra ia para cima do Brasil. Mas parece que o jogo ficou no 0 x 0. Por isso, como vim a saber anos depois, Feola substituiu Mazzola por Pelé, que chegou para ficar. Continuei ignorando totalmente essa tal de Copa. A Copa não me ignorava, porém. Uma tarde em Veneza, voltava no vaporetto, ônibus aquático como podia ter aqui no Recife, para o albergue na Ilha da Giudecca, quando, no pátio amplo onde desembarcávamos, uns meninos batiam bola, já quase no escuro. Um deles veio rebatê-la junto de mim dando de calcanhar e gritou: “I brasiliani fanno così!” (os brasileiros fazem assim). Perguntei-lhe por que dizia isso e ele, já se distanciando, respondeu: “Brasile a vinto la Russia!”

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Meu pai odiava esse tal de “fitibó”, como os matutos diziam: engraçado ser feet (fit) o plural de foot (fut) em inglês (o Brasil venceu a Rússia). Parece que a Rússia era o bicho-papão do torneio àquela altura. Mas só senti o tamanho do feito quando, ao entrar no salão do albergue, vi todo mundo falando nisso. O porteiro do albergue, um rapaz agalegado do cabelo meio ruim, diríamos sarará se fosse brasileiro, me acenou de uma espécie de cátedra ou púlpito de madeira onde ficava, gritando cheio de entusiasmo: “Gárrinca! Péle! Dídi! Váva!” Demorei para entender que se tratava de Garrincha, Pelé, Didi e Vavá.

O MAIS BELO

A Virgem com o Menino e anjos, óleo sobre madeira, 1450, 91 x 81 cm, de Jean Fouquet (Tours, França, 1425 – 1481). Museu de Belas Artes de Antuérpia

Mas nem isso conseguiu me contagiar. O meu time favorito era formado por Carpaccio, Tiziano, Giorgione, Tintoretto. Murilo Mendes, professor de literatura brasileira em Roma, casado com Maria da Saudade Cortesão, filha do grande crítico literário português Jaime Cortesão, gostava de reunir brasileiros e italianos em sua casa no Viale Castro Pretorio (Avenida Castro Pretório). Num desses saraus conheci o maior pintor italiano da época depois da geração de Sironi, Carrá, Morandi, Casorati, De Chirico: Emilio Vedova (Emílio Védova). Murilo Mendes considerava A Virgem com o Menino e anjos de Jean Fouquet o mais belo quadro que já foi pintado, o mais belo que já existiu, fazendo-me prometer ir lá vêlo no Museu de Antuérpia. Com esse fito, cheguei uma tarde de domingo em Louvain, na Bélgica, ou Lovaina em português, para me hospedar numa casa do estudante mantida pelo casal Morrin. O recepcionista de plantão, um rapaz moreno assim do meu tope, que evidentemente já tinha lido a minha ficha, quando eu disse meu nome pulou em cima de mim, ali mesmo na porta da rua, me deu um grande abraço abrindo-se num riso de pura felicidade. Disse em espanhol: “Nós viemos mostrar a esses europeus o quanto valem nossos índios!” Era mexicano. Eu me perguntei o que teria havido e não me tinham contado, alguma guerra talvez. Aí ele completou: “O Brasil venceu a Copa do Mundo!”.

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Claquete 1

DIÁLOGOS A conexão entre a tela e o tablado

Ao longo da história, a transversalidade entre o cinema e o teatro mostra como é possível aumentar o impacto de uma experiência artística

1 DOGVILLE Filme de Lars Von Trier, de 2003, utiliza habilmente elementos teatrais 2 ENCENAÇÃO Ao atuar no filmeTatuagem, Erivaldo Oliveira (C) percebeu as distinções da representação nas duas artes

TEXO Clarissa Macau

C O N T I N E N T E A B R I L 2 0 1 4 | 74

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No início do século 20, o cinema pegava tudo emprestado do teatro: atores, espaço, repertórios, explicitando relações

“Na minha primeira cena num filme, falei o texto e o diretor disse: ‘Mais baixinho, aqui não é teatro e tem microfone. Busca uma relação natural com a câmera”, lembra o ator Erivaldo Oliveira, do grupo de teatro Magiluth. Estreando no cinema, sentiu a necessidade de ser menos “teatral” diante da equipe do longa de Hilton Lacerda, Tatuagem. O filme retrata atores vanguardistas do coletivo de teatro – inspirado no Vivencial Diversiones, grupo dos anos 1970. Ao observar o diálogo entre as linguagens da sétima arte e as convenções teatrais, o ator percebeu o encontro das formas. “É bonito quando se pede silêncio num set. Mais de 40 pessoas puxando

fios e câmeras. De repente, gritam ‘Ação!’. Tudo é suspenso para os atores serem ouvidos. É quando acontece teatro no cinema.” A atriz Hermila Guedes aprendeu a encenar nos sets. Apesar de ser cria do novo cinema pernambucano, tem no currículo as peças Angu de sangue e Essa febre que não passa. “No palco, o imaginário é apurado. Na tela, existe a busca mais próxima do real, com limites de enquadramento”, diz ela, mas pondera: “Ambos só terão sentido se houver público. São artes dramáticas feitas para inquietar. Para saber fazer isso, uma tem muito a dizer à outra”. O teatro, com mais de dois mil anos, e o cinema, 118, seguem por caminhos diferentes, mas frequentemente se encontram. No início do século 20, para atrair a elite familiarizada com os dramas teatrais, o cinema mudo pegava tudo

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emprestado do teatro: atores, espaços e repertórios. Os genuínos filmes cantantes do Brasil já explicitavam, em 1908, o cruzamento entre sets e palcos. Canções e falas eram dubladas ao vivo sobre filmes silenciosos. Para projetar as vozes sobre a plateia, os atores usavam utensílios rudimentares, como canudinhos e funis de papelão. O interesse era menos estético ou ideológico, e mais relacionado a entreter e cativar um público desacostumado a novas tecnologias. Autora da pesquisa Teatro e cinema: uma perspectiva histórica, Gabriela Lirio diz que o cinema surge do teatro, ao se apropriar de elementos cênicos. “A partir daí, investiga uma linguagem inovadora. Explorando mais a técnica, os efeitos e a imagem do que diálogos entre personagens, proporcionados pelo som.”

AFETOS E DESAFETOS

A chegada do cinema falado, em 1920, incomodou alguns cineastas. Quem diria que Alfred Hitchcock estaria entre eles? Acreditavam que, com o som, o desenvolvimento da linguagem cinematográfica se apoiaria no teatro e na literatura, minimizando sua marca mais pura: a imagem. Os primeiros filmes abusavam de

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

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GLAUBER ROCHA Em filmes, como Terra em transe, cineasta utilizou conceitos teatrais de Brecht e Artaud

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ANNA KARENINA A utilização do cenário de palco para narrar a história, a bela direção de arte e de fotografia são destaques neste filme

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SENHORITA JULIA Christiane Jatahy dirigiu a peça a partir de storyboard e uso de câmeras

Claquete diálogos e eram superestáticos. Mas o próprio Hitchcock soube como usar esses “defeitos”. Em 1948, filmou Festim diabólico, adaptação da peça Rope, no qual tenta dar a impressão de uma apresentação sem interrupções em longos planos-sequência. Na mesma época, o expoente do teatro épico, Erwin Piscator, projetava vídeos nos palcos de suas apresentações para intensificar o relacionamento entre público e ator. Nas peças políticas, como Bandeiras (1924), exibia três tipos de filmes: didático, que ajudava a contextualizar o espectador na ação da narrativa; dramático, que interferia na ação, substituindo algumas representações cênicas; e de comentário, que chamava a atenção do espectador, provocando uma contracena única entre cenas gravadas e ao vivo. A fim de quebrar o conservadorismo da ilusão cinematográfica, o diretor do Cinema Novo Glauber Rocha utilizou conceitos dos dramaturgos Antonin Artaud, com o transe do teatro da crueldade, e Bertold Brecht, munido do distanciamento político do teatro épico. Adeilton Lima, autor da dissertação A estética teatral no cinema de Glauber Rocha, conta que o baiano fez um “cinema da crueldade, ideia inspirada em Artaud, que propõe elaborar o acontecimento artístico como experiência da qual o espectador não

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sairá ileso existencialmente da sala de exibição. São alguns elementos técnicos, o ritmo acelerado, a construção de metáforas, longos planos-sequência e a profundidade de campo, ao invés da montagem tradicional. E, como fazia Brecht, ele aborda questões políticas, desconstruindo a fantasia do enredo do filme, provocando o espectador a pensar como sujeito da própria realidade”. Nos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em transe (1967), por exemplo, essas ideias estão claras. Na década de 1970, o poeta Jomard Muniz de Britto gravou em super-8 peças do grupo performático

Vivencial Diversiones – entre elas Toques e Vivencial I. Ao ver limitações no espaço do palco, levou cenas de teatralidade extrema para o meio da cidade. “Vi ali algo transgressor e quis transformá-lo em filme na rua do Recife, onde era fácil improvisar.” Comparando épocas, Jomard reflete: “Eu não filmaria isso hoje em dia. A caretice aumentou. Imagine pessoas se despindo na frente da igreja, como seria a reação?”.

JOGO DE CENA

A capacidade que o teatro tem de nos fazer vivenciar o imaginário como real é seu trunfo. Esse atributo, em jargão dramatúrgico, é construído pelas

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“convenções”. “Às vezes, nem existe cenário. É tudo à base da imaginação. Não tem o diretor que diz ‘você falou errado’. O ‘ao vivo’ está nas mãos do ator”, diferencia Erivaldo Oliveira. “No teatro, se eu quiser que minha mão seja o sol, ela será. No filme tradicional, ninguém crerá nisso.” Ao longo dos anos, vem sendo experimentada a teatralidade explícita em obras cinematográficas. Dogville (2003), de Lars Von Trier, César deve morrer (2012), dos irmãos Taviani, Jogos de cena (2007), de Eduardo Coutinho, e Anna Karenina (2013), de Joe Wright, são alguns exemplos. “Dogville construiu um espaço que foge do realismo de cinema. O diretor opta por locação única, um galpão. Os espaços são divididos por linhas marcadas no chão. Não há portas, janelas, tudo é construído na imaginação do espectador, que aceita a convenção como se estivesse no teatro. Ao mesmo tempo, estamos diante de técnicas de cinema na escolha dos planossequência, do comportamento dos atores voltados à câmera e do tempo

A capacidade que o teatro tem de nos fazer vivenciar o imaginário como real, pelas convenções, é seu maior trunfo de duração”, afirma a pesquisadora Gabriela Lirio, sobre a estética da narração escolhida pelo diretor dinamarquês para contar a história de uma cidade americana, durante a depressão econômica de 1929. Na adaptação brasileira do texto de Senhorita Julia, de August Strindberg, através de câmeras e um storyboard de apoio, a diretora Christiane Jatahy faz cinema ao vivo, no palco. “Na adaptação, enquanto a peça é encenada no palco, um filme é criado a partir dela e projetado em telão ao fundo. Uma maneira de renovar a comunicação com o público.” O jogo de tensão e expansão das linguagens estimula o espectador a decidir o que quer ver. “Ele resolverá se quer

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assistir ao filme projetado, à cena teatral – em que o filme se faz – ou ‘entre’ caminhar na linha tênue dos dois.” Em Julia, a câmera age como o olho que induz o público a focar, em ângulos e closes, o que o diretor deseja destacar na história. Já o teatro transforma o espectador em mediador entre real e virtual, mostrando que, independentemente da forma na qual a cena é composta, trata-se de algo construído, artificial, quebrando a ilusão e exaltando o diálogo entre os envolvidos no espetáculo: elenco e plateia.

FICÇÃO E REALIDADE

Quem também se aventura no teatro é o cineasta Leo Falcão. Em 2009, dirigiu a peça Carícias, roteiro de Sergi Belbel. “A sétima arte é uma extensão dos sentidos e tende a amplificar qualquer registro, a partir dos recursos de linguagem da montagem, closes e cortes de efeito. No teatro, é preciso se projetar a uma plateia, por isso a performance ‘exagerada’. O ator deve conseguir chegar até a última fila. Mas nada impede que o estilo

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DIVULGAÇÃO

Claquete de atuação no palco seja naturalista ou a encenação à câmera não possa ser um pouco mais carregada. Tudo depende da proposta da peça ou do filme.” No cinema, quando se diz “corta”, tudo aquilo que não depende do ator, ou seja, luz ou som têm permissão para parar, mas o intérprete humano deve preservar a verve cênica, permanecendo na mesma energia antes e depois do corte. No filme Tatuagem, Erivaldo observou o exemplo do colega Irandhir Santos. “Ele foi Clécio, o protagonista, atrás ou diante da câmera durante meses, sempre atento para o que o personagem fazia. No cinema, você precisa assumir um estado, porque senão tudo para, e você e o personagem não voltam mais. No teatro tem isso, mas por cerca de uma hora.” Radicalizando o diálogo entre teatro e cinema, a diretora Christiane Jatahy instala câmeras, telão e TVs no palco das peças. Além da citada Julia, outra obra sua é a trilogia Uma cadeira para solidão, duas para o diálogo e três para a sociedade, formada pelas peças Conjugado, A falta que nos move e Corte seco. Na última, as sequências das cenas são mudadas a cada apresentação. São feitos direcionamentos ao vivo, como numa gravação de filme. “Esse transitar de fronteiras que faço nas minhas obras se dá na relação do teatro com o cinema, e na relação do real e do ficcional, entre

o ator e o personagem, quando não fica claro se quem está ali é um ou o outro.” E completa: “Isso gera um resultado de várias camadas, abrindo espaços para o espectador colaborar com o que vê e transformar o teatro em algo realmente ao vivo, pela criação de um terceiro território, no qual o enquadramento da câmera dá o ponto de vista, mas o teatro revela o todo”. Para a pesquisadora Gabriela Lirio, esse território é uma zona de sombra, não pode ser delineado e torna cinema e teatro férteis como objetos artísticos. Entre as duas expressões artísticas, ela discorda de que haja atualmente a desvalorização do teatro. Apesar de menos popularizado que o cinema, que alcança público numeroso em exibições pública e por downloads, o teatro também se renova em sua linguagem, defende. “O tablado contemporâneo dialoga com dispositivos audiovisuais, com as artes plásticas, a dança. Há espaço para todas as experiências. Não aceitar a transversalidade é reduzir em muito as possibilidades.” De acordo com o pesquisador Adeilton Lima, os diálogos entre cinema e teatro devem ser desfrutados e continuar atraindo público. São formas revolucionárias de transformação do mundo: “A arte hibridizada serve para pensarmos nosso tempo, espaço social, político e existencial”.

Ela

O HOMEM E A “MÁQUINA” Desde a época em que era diretor de videoclipes, Spike Jonze já apresentava ideias bem legais, que renderam clipes divertidos como Sabotage, dos Beastie Boys. A partir do momento em que abraçou o cinema como profissão, vem nos proporcionando alguns trabalhos incomuns, como Quero ser John Malkovich (1999). No entanto, o cineasta ainda não tinha se destacado como roteirista; não até assinar o roteiro de Ela, o mais estranho concorrente ao Oscar deste ano. O filme tem argumento esquisito: um cara tímido e recémseparado se apaixona pela voz do sistema operacional de seu computador. Entre uma voz masculina e feminina, o introspectivo Theodore (interpretado por Joaquin Phoenix) opta pela segunda. Só não previu que seria um timbre sensual e envolvente, embalando toda a superinteligência, memória e utilidade de um SO que interage com seu dono, a ponto de falar coisas engraçadas e dar conselhos meigos. O grande problema desse drama leve é como a trama vai se desenrolar. Jonze apelou para humanizar demais a “máquina”, simbolizada como um aparelhinho que lembra bastante o design de um iPod nano. Para o futurista Ray Kurzweil, o principal erro da obra foi exatamente esse: separar o homem da máquina. Segundo ele, a linha evolutiva da tecnologia aponta para que o computador seja uma extensão do indivíduo, e não um companheiro. Assim como a maioria dos filmes ambientados no futuro (Metrópolis, Blade Runner, Wall-E, Gattaca, Inteligência Artificial...), Ela também carrega uma visão pessimista, antevendo o mundo afogado em individualismo, sufocado pela solidão e refugiado na tecnologia – algo que já está sendo ensaiado nos dias atuais. A relação que Theodore estabelece com seu sistema operacional pode ser, por exemplo, uma metáfora para a convivência dos usuários com seus smartphones. Ele chega ao ponto de valorizar mais a interação com Samantha (o sistema, interpretado por Scarlett Johansson) do que o contato com uma mulher que o está paquerando. Para incrementar esse clima desalentador, a única pessoa com a qual Theodore consegue se relacionar é Amy (interpretada por Amy Adams), que faz a ligação dele com a vida real. Ela, de alguma maneira, traz ao personagem a desconfiança de que a presença virtual talvez seja a maior armadilha do mundo pós-smartphone. Embora Jonze esteja supostamente prevendo o futuro, possivelmente já estaria, com Ela, retratando o “romance” atual entre homem e máquina. DÉBORA NASCIMENTO

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INDICAÇÕES COMÉDIA/DRAMA

A GRANDE BELEZA

Dirigido por Paolo Sorrentino Com Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferilli Paramount

Jap Gambardella escreveu um romance de sucesso na sua juventude. Agora, aos 65 anos, segue numa vida cercada por intelectuais, artistas e pessoas de poder, num hedonismo luxuoso do qual usufrui com grande cinismo. Relembrando de um amor de sua juventude, Jap passeia por Roma e por si mesmo, numa busca pela própria vida. Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, A grande beleza é um dos filmes mais emocionantes desta temporada.

DRAMA

INCH’ALLAH

Dirigido por Anaïs Barbeau-Lavalette Com Evelyne Brochu, Sabrina Ouazani, Sivan Levy Imovision

Trabalhando como médica numa área de conflito, a canadense Chloe divide seu tempo entre a Palestina, onde trabalha, e Israel, onde mora. No local onde habita, Chloe convive com Ava, soldada israelense; durante seu ofício, cuida de mulheres grávidas e observa de perto a vida do povo sitiado. A constante transição pela fronteira faz Chloe repensar sua opinião sobre os territórios. Inch’Allah é um longa instrutivo e intenso, com ótimas atuações.

BIOGRÁFICO

DRAMA

O LOBO DE WALL STREET

ANIMAÇÃO

Baseado num livro autobiográfico, o filme conta a história de Jordan Belfort e da criação da empresa que lhe rendeu um império de dinheiro e problemas. O filme retrata os excessos com os outros e com si mesmo a partir da possibilidade que os bilhões de dólares acumulados proporcionam. Num ritmo frenético, a vida do personagem e sua “ética” profissional chegam à um ponto insustentável, passando por momentos degradantes.

O filme do diretor de A viagem de Chihiro conta, numa mistura de elementos reais com ficção (e também com cenas de sonho cheias de elementos fantásticos), a história do inventor do principal avião de caça japoneses na Segunda Guerra Mundial, conhecido como “Zero”. Através de sons muitíssimo bem construídos, Miyazaki humaniza uma figura polêmica e trata com delicadeza sobre a nossa capacidade de sonhar, criar e destruir.

DOCUMENTÁRIO

DRAMA

DRAMA

Dirigido por Riba Castro Independente

Dirigido por Woody Allen Com Cate Blanchett, Alec Baldwin, Sally Hawkins Imagem Filmes

TATUAGEM

Dirigido por Hilton Lacerda Com Clément Métayer, Com Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo Garcia Imovision

Em 1978, sob o domínio militarista, as performances do grupo teatral Chão de Estrelas são um contraponto à caretice da política dominante. Fininha, jovem militar, conhece e se apaixona pelo coletivo – e em especial por Clécio. O filme mostra possíveis momentos de liberdade, com um olhar cheio de nostalgia e afeto de Hilton Lacerda (sintetizado nos excertos em super-8 do filme). Tatuagem escolhe não registrar os embates violentos, deixando para o expectador a catarse com a beleza.

LIRA PAULISTANA E A VANGUARDA PAULISTA O Teatro Lira Paulistana foi o local mais desejado pelos artistas de São Paulo entre as décadas de 1970 e 80. Unindo nomes da música, literatura e das artes plásticas, o Lira se configurou como espaço oficial da Vanguarda Paulista, com nomes como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Tetê Espíndola. Num filme financiado por colaborações, Riba Castro entrevista nomes importantes para a história da época, utiliza imagens de arquivo de shows e disserta sobre este fato importante da arte brasileira.

Dirigido por Martin Scorsese Com Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie Paris Filmes

BLUE JASMINE

Após a separação de seu marido multimilionário, a socialite novaiorquina Jasmine vai para São Francisco reconstruir sua vida ao lado da irmã. Precisando encontrar um novo sentido para tudo, a personagem – numa atuação excepcional de Cate Blanchett! – se mostra complexa e difícil, numa das melhores construções das últimas produções de Woody Allen. Com inspiração em Um bonde chamado desejo, o longa é destaque na extensa filmografia do diretor.

VIDAS AO VENTO

Dirigido por Hayao Miyazaki Com Hideaki Anno, Miori Takimoto, Hidetoshi Nishijima Califonia Filmes

CLUBE DE COMPRAS DALLAS

Dirigido por Jean-Marc Vallée Com Matthew McConaughey, Jennifer Garner, Jared Leto Universal Pictures

Num filme que proporcionou a melhor atuação de Matthew McConaughey, é reconstruída a história real de Ron Woodroof, eletricista texano que se descobre com HIV. Ele decide não depender das determinações do governo e do monopólio da indústria farmacêutica e faz suas próprias pesquisas para se medicar e sobreviver. Clube de compras é um conto sobre humanidade (e a falta dela) e sobre o peso da ignorância.

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DIEGO MELO/DIVULGAÇÃO

ANJO NEGRO No terreiro de Nelson Rodrigues

Espetáculo do grupo O Poste Soluções Luminosas, que estreou em festival no início deste ano, ganha tratamento cênico inspirado nas religiões afro-brasileiras TEXO Guilherme Novelli

Palco

“Vosso amor, vosso ódio não têm fim neste mundo! Branca Virgínia... Negro Ismael...” O racismo incutido naquele que, sempre vestido de terno branco, odeia a própria cor. A máscara da Virgem Santa camuflando uma Medeia de filhos com a cor e a cara do pai. A tragédia se passa dentro de um terreiro que profanou o sagrado, a pureza, a família, a virgindade. O terreiro de Nelson Rodrigues. “Primeiro, nós fazemos uma pesquisa de campo, vamos aos terreiros, aos centros e, além de

conversarmos com os pais de santo, observamos o corpo dos orixás, as incorporações”, conta Samuel Santos, diretor do grupo de teatro O Poste Soluções Luminosas, em cartaz com a peça Anjo negro até 27 de abril. O grupo estuda as religiões de matriz africana (candomblé e umbanda) e leva para o palco o resultado dessa pesquisa: “Quando observamos as incorporações, identificamos os centros de energia, o corpo que se dilata e se transforma em outro. O ator tem um pouco

disso: ele se transforma em outra pessoa através de seu corpo e de seu sentimento”, descreve. Interpretado pelo ator Ângelo Fábio, Negro Ismael foi criado a partir da imagem da fúria de Xangô, orixá que representa a Justiça e cuja lei é como a pedra: dura, justa e cega. No texto, Nelson Rodrigues descreve Ismael exatamente assim: inflexível, as mãos duras como uma rocha. “Trabalho com movimentos minimalistas, um estado de contenção, contrapondo com

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Anjo Negro Até 27 de abril Teatro Barreto Júnior Sáb-Dom, às 20h Info:(81) 3355-6398

mas, de acordo com a religião, ele trabalha nas trevas em nome da luz. Abre ou fecha as portas conforme a necessidade. “Na montagem, é como se vivenciássemos o amor entre Xangô e Iansã, ou Exu Tranca-Ruas e Pombajira”, diz Ângelo Fábio. Branca Virgínia foi pensada a partir da Pombajira. “Nós não incorporamos esse elemento de uma forma explícita. Pegamos traços que caracterizam as entidades e os transformamos no corpo de Virgínia, nas expressões, dilatações, contrações, sonoridade vocal”, define o diretor. A atriz Smirna Maciel pesquisou êxtase religioso, transe e possessão. “Nas religiões de matriz africana, o elemento feminino e sua força são bem mais notórios, para mim, do que na religião cristã”, expõe. O corpo de Virgínia foi construído sobre três centros energéticos femininos: quadril, seios e mandíbula. “A voz da personagem, apesar de apresentar variações, é grave e tenta traduzir a feminilidade natural ou ancestral, sem o adoçamento sugerido pela cultura cristã ocidental”, complementa.

EM CENA

explosões e desconstruções, em que os centros de energia migram para vários pontos do corpo”, conta o ator. Outra imagem é a do Exu TrancaRuas. Ismael tranca Virgínia e não a deixa sair. Ele detém as chaves da casa, dos aposentos e controla quem entra e quem sai. “Isso tem muita relação com o Exu Tranca-Ruas, que é o mensageiro entre as duas portas: a dos homens e a das divindades”, explica Samuel Santos. Essa entidade está presente no imaginário popular como assombrosa, assustadora,

Nada é realista na montagem. Tudo é desordenado, esquecido pelo tempo, fechado em si mesmo. Os objetos são como os desalinhos, desequilíbrios dos habitantes à beira do precipício, da loucura. Um trono para o rei, impotente diante do amor e da loucura que o rodeiam. “A ideia é formar um ambiente isolado, fechado, sem contato nenhum com a vida que segue do lado externo”, diz Samuel, descrevendo o cenário da peça. Dentro desse espaço fechado, escadas conduzem a plataformas, trampolins. “São objetos que simbolizam a tensão, a insegurança, pois o ser humano, quando sobe uma escada ou num trampolim, fica cambaleante, sem a firmeza necessária”, continua. Isso tudo está presente nos personagens e na atmosfera da dramaturgia. Os trampolins também servem de cama, já que a relação sexual entre o casal protagonista advém do abismo, da desconfiança.

“Eu jurei que viria dizer apenas estas palavras: ‘Ismael, tua mãe manda sua maldição’”. Elias, o irmão branco, chega à casa de Ismael, tal qual o rei Édipo, cego e perdido, às portas de Colono, como um duplo de Ismael, com traços finos, louro, cintura fina, meigo, carinhoso. Na montagem de O Poste, ele vem como um vodu, mandado pela mãe para amaldiçoar o irmão. A partir dessa cena, Ismael cai na própria desgraça e na que o circunda. “Nelson dilui a estrutura da tragédia grega, do coro que ajuda a criar um efeito épico. Os coros de Anjo negro não têm esse distanciamento da trama, da narração, portanto, ajudam a criar a atmosfera de terreiro que a peça tem”, argumenta o diretor. Na tragédia mítica rodriguiana, Jesus Cristo entra também como símbolo do desejo de Virgínia: “Ismael, quero que você me arranje um quadro de Jesus! Jesus não tem o teu rosto, não tem os teus olhos – não tem, Ismael!”. Ao nascer Ana Maria, filha branca de Virgínia com Elias, Ismael a cega, assim como fez com o irmão, para que ela nunca veja sua negritude. Percebendo ali o início de uma relação incestuosa, Virgínia, com a cumplicidade do marido, traça o plano final para matar a filha, já adolescente. Nelson reproduz, em cena, um microcosmo da sociedade brasileira, destacando a violência como fator de base dos fundamentos étnicosociais, e a vivência de um casal inter-racial, na ambiguidade de sua linhagem mestiça. O dramaturgo expõe de maneira perturbadora temas adormecidos no inconsciente coletivo. O projeto se chama Um Nelson ancestral. “Quando começamos os ensaios, cada um acrescentou sua experiência, inclusive eu, que tinha recentemente acabado uma pesquisa sobre a dança de culto a Oxum dentro do Afoxé Oxum Pandá”, conta Smirna Maciel. A intenção do diretor foi desconstruir o imaginário já cristalizado que se tem sobre a obra de Nelson. “Achei isso uma audácia tremenda, principalmente, por pegar um texto que muitos consideram ultrapassado. Pelo contrário! É um texto atualíssimo”, defende Ângelo Fábio.

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DANIELA NADER/DIVULGAÇÃO

Palco 1

DUAS COMPANHIAS Um espaço para pesquisar e investigar linguagens

Grupo teatral comemora 10 anos de atuação trazendo na bagagem cinco espetáculos, turnê pela Europa, além de workshops e leituras dramatizadas TEXTO Olivia de Souza

Não seria um exagero relacionar a volta do teatro de grupo em Pernambuco, forte durante a década de 1980, ao início da Duas Companhias, em 2004. Depois do estouro do cinema e da música pernambucana nos anos 1990, o grupo teatral encabeçado pelas atrizes Fabiana Pirro e Lívia Falcão foi um dos que reintroduziram a cultura do teatro independente, de pesquisa, concebido, organizado e produzido por um núcleo de atores com um mesmo objetivo e ideal. Criada a partir da vontade das atrizes em investigar a cultura local e mergulhar em suas raízes, a Duas Companhias comemora 10 anos em 2014, com cinco espetáculos no currículo – Caetana, A árvore de Júlia, Caxuxa, Divinas e a mais recente, A dona da história –, turnê pela

Europa (Bélgica, Portugal), além de workshops e leituras dramatizadas. Destaque para a realização da oficina Formação de Mulheres Palhaças, ministrada por Adelvane Néia, em 2012; o lançamento do livro Uma história do teatro pernambucano: daqui pr’ali e de lá pra cá e do documentário Caetana, produzido em parceira com a Ateliê Produções, sobre a concepção do espetáculo de estreia do grupo, feito sob coordenação do encenador e dramaturgo Moncho Rodriguez. “A companhia foi criada em torno de Caetana. Na verdade, 2003 era um momento em que nos juntamos para produzir um espetáculo, e essa união toda é muito maior que a produção em si, porque é toda uma comunhão

de conceber a arte, pensar o que a gente quer fazer, e como fazer. Aos poucos, percebemos a vontade de continuar criando, e disso nasceu a Duas Companhias. Já tínhamos pessoas envolvidas com Caetana, que permaneceram com a gente nos projetos seguintes, e outras chegaram”, afirma Lívia Falcão, frisando a importância de toda a equipe envolvida nos projetos da companhia, hoje cerca de 30 integrantes. Para Fabiana Pirro, um grupo no qual tantos comungam interesses afins é uma boa forma de se ter autonomia do trabalho. Reflexo disso é a opção por temas complexos, para serem trabalhados no circuito comercial, como vida e morte, e o uso de bonecos e palhaços abordando esses assuntos de forma lúdica, mas, ao mesmo tempo, responsável e aprofundada. Temas inquietantes, porém universais, e considerados pelo grupo essenciais para o teatro. “Tudo partiu da nossa vontade de ter um espaço de pesquisa e de investigação de linguagens. E essa nossa vontade também se devia a uma carência da cidade pelo retorno dos coletivos de teatro. Não é à toa que hoje temos nomes fortes como o Coletivo Angu, o Grupo Magiluth e a Companhia Fiandeiros”, completa Fabiana. É interessante destacar que, em uma década de atividades, nenhum dos espetáculos da companhia (com

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RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO

exceção de A árvore de Júlia, por questões de direitos autorais) foi encerrado em definitivo. Volta e meia, por exemplo, Caetana entra em cartaz, trazendo grande público a cada temporada. “É uma roda que não para e que faz a gente celebrar esses 10 anos com Caetana viva, com um monte de gente querendo ver, o que para mim é maravilhoso. Um dos objetivos da companhia é a itinerância, seja trazendo as montagens de volta e viajando com elas, como realizando oficinas e leituras dramatizadas”, aponta Lívia.

PALHAÇAS

Uma das características mais marcantes da companhia é a busca pela compreensão da comicidade feminina através do uso da linguagem do clown, que veio a partir de um interesse pessoal de Lívia Falcão em estudar esse universo, depois de uma oficina realizada no Rio de Janeiro com o ator, diretor teatral, e palhaço Márcio Libar. “Nesse momento, percebi um universo muito amplo, que despertou em mim um interesse forte em estudá-lo. Já em Caetana, utilizamos com todo o respeito a máscara, o nariz. Apesar de ainda ali não estarmos inseridas na linguagem do clown, aquela máscara já trazia uma relação com ela.”

Um dos destaques da companhia é a busca pela compreensão da comicidade feminina através do uso da linguagem do clown Segundo Lívia, a compreensão da delicadeza, da linguagem e da técnica da palhaçaria feminina se deu, definitivamente, durante o aprofundamento de um mês, realizado em 2012, na mencionada oficina Formação de Mulheres Palhaças. “Adelvane é uma mestra da palhaçaria, tem interesse em entender a comicidade feminina, que é de um tempo muito recente. E isso tudo numa imersão, que é o formato ideal para você adentrar em qualquer coisa”, afirma Fabiana, que considera Adelvane a verdadeira “parteira” da sua palhaça Uruba, e também de Zanoia (Lívia Falcão) e Bandeira (Odília Nunes), trio de personagens que compõem a montagem Divinas. Como se marcasse uma nova etapa dessa carreira de uma década, e fugindo um pouco da linguagem lúdica trabalhada pelo grupo nos últimos anos, surgiu a ideia para adaptar o

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CAETANA A companhia foi criada em torno da peça de 2003, que volta ao cartaz de tempos em tempos

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A DONA DA HISTÓRIA No espetáculo mais recente do grupo, Lívia Falcão contracena com a filha, Olga Ferrario

texto de João Falcão, A dona da história. O espetáculo, que teve montagem original estrelada por Marieta Severo e Andréa Beltrão – e também adaptado para o cinema em 2004, por Daniel Filho –, foi pensado após a boa aceitação do público do Centro Cultural Correios, em 2012, durante a leitura dramatizada do texto de João Falcão. A estreia da “peçacaçula” aconteceu no mês passado, no Teatro Apolo, e nela Lívia contracena com a filha (a atriz Olga Ferrario). Dirigida por Duda Maia, parceira de João Falcão por 12 anos, a nova montagem utiliza apenas luz, figurino e as duas atrizes em cena, com total ausência de cenário. “Foi uma opção de Duda por tirar tudo, e aí você tem que fortalecer a verdade da sua figura para tudo fazer sentido no palco”, diz Lívia. “Além de ser ótimo para o ator, a ausência dos cenários também é um bom exercício de criação para o público”, comenta Fabiana, que ficou responsável pelo figurino. Para o segundo semestre de 2014, está programado Obscena, novo projeto da companhia, ainda em estado embrionário, encenado em solo por Fabiana, sobre a obra da escritora e poeta Hilda Hilst. A princípio, um recital poético de um dos textos dela, que acontece este mês durante o VI Festival Literário de Paulo Afonso. “Me aprofundando e me identificando demais com a obra de Hilda, percebi que tinha muito caldo. Conversando com Luciana Lyra (atriz e dramaturga), que convidei para participar comigo desse projeto, surgiu a ideia de fazer Obscena. Optamos por esquecer qualquer texto ou peça de Hilda e vamos criar uma dramaturgia, que será escrita por Luciana.” Com projetos diferentes fazendo parte desse portfólio, a primeira década da Duas Companhias ficará marcada pela experimentação de linguagens e a contínua busca pela ampliação de sua identidade artística e pessoal.

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Sonoras

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INSTRUMENTAL Experimentações japonesas Com a ajuda da internet, bandas surgidas da fusão entre o post e o math rock divulgam seu trabalho e influenciam outros grupos ao redor do mundo TEXTO Fernando Athayde

Um ditado popular foi criado após a imersão do mundo na era digital: “Para tudo que você pode fazer, uma criança japonesa de 8 anos pode fazer melhor e ainda vai divulgar no YouTube”. Ainda bem. Não desmerecendo as afecções e potências do restante do mundo, mas se não fosse a ponte virtual que liga os hemisférios, é bem possível que o Ocidente ainda não conhecesse mais da fascinante cultura de países como o Japão. E foi assim, através da internet, que um gênero musical bastante singular chegou ao Ocidente e explodiu a

cabeça de diversos apreciadores da boa música. Com ascendências no post rock, caracterizado pelo intenso trabalho de dinâmicas sonoras melancólicas, e no math rock, em que todo ritmo é uma possível variável, o som primordialmente instrumental de artistas como Toe, Mouse On The Keys e Lite é algo ainda escasso de um nome próprio, mediante sua complexa grandiosidade tão à frente do próprio tempo. É difícil decifrar quando foi o início de tudo, mas um ponto de partida

fundamental é o EP Songs, ideas we forgot, do quarteto de Tóquio Toe, lançado em 2003. A banda, talvez um dos maiores expoentes da música instrumental contemporânea não erudita, é a peça central cujo eixo sustenta uma verdadeira gama de admiradores e seguidores por todo o mundo. Aliando um nível técnico altíssimo à espontaneidade, o grupo, que começou graças à forte influência do math rock da banda norte-americana Ghosts and Vodka, transcende barreiras e provoca no ouvinte uma sensação intensa de querer ouvi-la ao vivo, por não conseguir imaginar de forma alguma como aquilo é feito. É algo como tentar imaginar uma cor que não existe. Graças a isso, um grande trunfo desse gênero musical, e potencialmente um dos responsáveis pela sua crescente aceitação, está na performance. Sentimental, é tão espontânea, que torna-se um organismo vivo, mutável a cada nova apresentação. No palco, o que vemos são músicos atingindo o êxtase. De expressões corporais frenéticas ao virtuosismo, é um espetáculo quase teatral. Tanto que,

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1 TOE Banda é das mais relevantes no cenário do instrumental não erudito 2 LITE Um dos trunfos desses grupos está na performance no palco 3 MOUSE ON THE KEYS Trio é composto por dois pianos e uma bateria

em 2010, o vídeo da performance da canção Goodbye, do Toe, contida em seu registro ao vivo CUT_DVD, tornou-se um viral, atingindo mais de um milhão de views no YouTube, algo impressionante no meio da música alternativa e que consolidou sua relevância para o universo musical contemporâneo.

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EXPERIMENTAÇÃO

Se há mais um elemento que une esses grupos, sem dúvida, trata-se da ousadia e da busca intensa por novas sonoridades. O Mouse On The Keys, por exemplo, é composto por dois pianos e uma bateria, o que por si só já é curioso, ainda que a banda se apresente ao vivo com uma dupla de metais. Em seu disco An anxious object, de 2007, o trio esteve em seu melhor momento, explorando profundamente o lado percussivo que o piano há de proporcionar quando nas mãos de um exímio pianista. Uma tônica comum no meio é a de inverter os papéis. Se é tido como convenção que a sustentação rítmica da música popular está na percussão, os japoneses souberam fundamentar um contraponto com exuberância. Muitas vezes é a massa sonora de caóticas cordas e teclas que provém a estrutura dos temas musicais, enquanto a bateria atua solta, livre para improvisos, dando personalidade à música. Uma bateria melódica, por assim dizer. Exceção à regra é o Lite, outro quarteto de Tóquio, que desenvolve um trabalho tão meticuloso, a ponto de sugerir um verdadeiro estudo técnico sobre composição. Redefinindo o posicionamento da harmonia e da melodia, o grupo usa seus instrumentos frequentemente, como um conjunto unitário, valorizando o silêncio e as pausas rítmicas. Muitas vezes incorporando elementos eletrônicos, vocais e barulhos desconexos de qualquer musicalidade aparente, testando os limites do que é a própria música, um traçado comum em

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muitas dessas bandas é o de reinventarse na transição entre discos. For long tomorrow, de 2009, segundo trabalho de estúdio do Toe, é a prova viva de que classificar o gênero como “instrumental” é um erro. No álbum, a banda incorpora letras, vozes, ruídos e até registros de conversas à sua composição, provando que, antes de ser cantada ou não, a música é o agrupamento coerente de sons. É quase um ménage à trois entre Thurston Moore, Miles Davis e Brian Eno.

VONTADE

Apesar da qualidade artística e do reconhecimento mundial, é bom ter em mente que enriquecer fazendo música é algo extremamente difícil. Na música experimental e em suas ascendências, especialmente. Para o artista, de modo geral, uma das condições mais desgastantes é a de se submeter ao cumprimento de prazos ou de exigências criativas da parte de terceiros. Assim, torna-se ainda mais belo saber que esse grupo de bandas japonesas não tem vínculo com gravadoras e afins. É independente, fruto da total liberdade de seus idealizadores.

Criado por Yamazaki Hirokazu, guitarrista do Toe, o selo Machu Picchu Industries é uma plataforma de divulgação e venda de conteúdo sem fins lucrativos. Além dos grupos locais, o selo hoje abriga bandas ao redor de todo o mundo. Um exemplo disso é o Tangled Hair, trio britânico que lançou em 2011, através do Machu Picchu, seu único disco até o momento, autointitulado. Ainda na Europa, o selo apadrinhou os irlandeses do Enemies, famosos na internet pela veiculação do seu segundo videoclipe, da música Robert Reid. Fundamental destacar que, após as duas grandes guerras e uma série de desastres naturais acontecidos no último século, a Terra do Sol Nascente sempre ressurgiu das cinzas. Assim, apreciar o que foi construído por essa gama de artistas faz com que seja até fácil de entender o porquê do ditado que abre esse texto. Se a arte é uma reação proporcional ao que se vive no dia a dia, esses músicos, a exemplo da própria cultura, conseguiram subverter um tipo de música denso e pouco difundido numa forma única e cativante de se expressar.

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DIVULGAÇÃO

BRUNA MONTEIRO/DIVULGAÇÃO

Sonoras 4

INFLUÊNCIAS Quando Tóquio cruzou a ponte do Pina No Brasil, país com a maior população nipônica fora de sua terra natal, a imigração japonesa começou e teve seu ápice na primeira metade do século 20. Ainda assim, 90% desses imigrantes restringiam-se ao estado de São Paulo, o que acabou gerando o icônico Bairro da Liberdade, na capital paulista. Apesar disso, a geração de brasileiros nascidos no período compreendido entre as décadas de 1980 e 90 certamente viveu uma época singular em relação à inserção da cultura pop do Japão em sua vida. Durante a infância e a adolescência, essa geração teve, através da televisão aberta nacional, o contato com o tokusatsu e o anime, gêneros televisivos japoneses, cuja popularidade chegava

a desbancar até as famosas telenovelas da Globo em pontos de audiência. Além disso, destacava-se a desenvolvedora de games da Nintendo que, com sua segunda geração de consoles, se tornou febre no Brasil, consolidando o video game quase como um eletrodoméstico básico. Enfim, até mesmo a chegada dos mangás às bancas de jornal, no início dos 2000, e a popularização do sushi como “comida chique”, podem ser apontadas como fatores determinantes para que, traduzindo esse contexto para o Recife, algo muito peculiar viesse a acontecer. Hoje, é nítido o aparecimento de uma frente de artistas pernambucanos que, de terem crescido sob o fascínio da cultura pop nipônica, transgrediram

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o caminho do maracatu, do frevo e de quaisquer ritmos regionais. Assim, sob a influência da música japonesa contemporânea do Toe e no trabalho de compositores como Yasunori Mitsuda e Nobuo Uematsu, é que bandas locais estão fundamentando uma alternativa à tradicional música pernambucana. A Team.Radio, que acaba de gravar seu primeiro disco, Ranma, é a mais antiga delas. Iniciada em 2008, lançou os EPs White Tokyo, de 2010, e Summertime, de 2011, que serviram de ponte para a já duradoura parceria com o selo paulista Sinewave, voltado para a música experimental. O quinteto, que já passou por algumas mudanças de formação, demonstrou competência desde sua estreia, ousando se transformar

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INDICAÇÕES STONER ROCK

MARCHA DE CARNAVAL

Independente

Independente

AMP Big mouth, dead ears

completamente de um lançamento para o outro. Também parte do catálogo da Sinewave, a Kalouv é outra banda pernambucana do segmento. Em 2011, lançou o disco Sky swimmer, cuja repercussão levou o quinteto a palcos de Maceió ao Rio Grande do Norte. Em 2012, apresentou-se no festival Play The Movie, em que a banda tocava ao vivo frente a uma projeção cinematográfica. “As trilhas sonoras japonesas são influências diretas em mim”, conta o pianista Bruno Saraiva, que cita

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TEAM.RADIO Banda acaba de gravar o primeiro disco, Ranma, tendo os japoneses como referência

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KALOUV Dinâmica de criação do grupo é caracterizada pelas parcerias

o compositor nipônico Kenji Kawai como uma referência importante para o som do grupo. A Kalouv, que lançou recentemente seu segundo disco, Pluvero, destaca-se por fechar parcerias. Se toda a sua concepção visual foi pensada pelo coletivo de artes visuais Imarginal, a produção de seu álbum ficou a cargo do músico Roberto Kramer, integrantefundador da Team.Radio. “Ele demonstrou ser um ótimo produtor e se tornou um grande amigo”, pontua o baterista Rennar Pires.

ANTÚLIO MADUREIRA Carnis valles

A banda pernambucana passou cerca de dois anos gravando o segundo disco da carreira, lançado no início deste ano. O trabalho, concebido com maestria , é uma aula de como tocar stoner rock com autoridade. Tudo é bem gravado e parece ter sido revisado à exaustão. As composições, uma continuação do primeiro trabalho do grupo, Pharmako dinâmica (2009), soam orgânicas, imponentes. Uma das razões para isso está nas mãos do guitarrista e vocalista Djalma Rodrigues, que alia virtuose, experimentação e bom gosto.

O consagrado artista Antúlio Madureira regressa de uma pausa de sete anos sem lançamentos com o disco Carnis valles. Uma reinvenção da obra do cantor, o álbum é ousado e pertinente. Nele, Madureira submete os ritmos tradicionais do carnaval pernambucano a uma intensa experimentação, tanto sonora quanto lírica. A faixa de abertura, uma releitura da composição de Ludwig Van Beethoven, mistura o popular e o erudito, tornando recifense a nona sinfonia do célebre alemão.

FORRÓ

TRILHA SONORA/AMBIENT

Selo Cooperativa

Núcleo Contemporâneo

PÉ DE MULAMBO Giro solto O trio, formado em São Paulo por um paulistano, um recifense e um olindense, sintetiza os elementos seminais do gênero num belíssimo trabalho. Giro solto é original, à medida que progridem as canções, fundamentadas na união entre zabumba, triângulo e viola de 10 cordas. Além disso, o “pé-de-serrapower-trio” é hábil ao incorporar às composições coros vocais, arranjos de flauta, rabeca e outras particularidades. Bela, a parcela lírica do álbum aborda assuntos crônicos e lança um olhar reverenciador sobre temas consagrados no gênero.

BENJAMIN TAUBKIN Eu maior Composta para o documentário Eu maior, cujo eixo filosófico é propor uma reflexão contemporânea sobre o autoconhecimento e a busca pela felicidade, a trilha de Taubkin é a metáfora ideal para representar o equilíbrio psíquico. Melancólico, o disco abusa de belas dissonâncias cuja função sinestésica se mostra fortíssima, transportando o ouvinte para um universo de cores suaves e sensações tênues. Sem medir esforços, o compositor faz uso de diversas sonoridades, aliando instrumentos acústicos e elétricos à música eletrônica.

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CON TI NEN TE

Criaturas

Dorival Caymmi por Humberto

Símbolo máximo do estilo baiano de vida, Dorival Caymmi (1914-2008) criou apenas cerca de 100 canções.

Mas todas impecáveis. O Buda Nagô compunha com uma simplicidade sofisticada, sem amarras, descrevendo, com lirismo, sutileza e graça, sentimentos, pessoas, lugares e costumes. De mansinho, suas músicas foram influenciando os músicos que formariam, décadas depois, a nata da MPB. Ô preguiça pra reverberar!

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