Continente #162 - Paixão

Page 1

www.revistacontinente.com.br

# 162

#162 ano XIV • jun/14 • R$ 11,00

CONTINENTE

PAIXÃO JUN 14

O BRASIL ESQUECE SUAS DIFERENÇAS E VIBRA EM TORNO DO FUTEBOL E MAIS GILVAN BARRETO | MÃE BIU DE XAMBÁ | FILATELIA | GOJIRA CANÇÃO | TEATRO COMUNITÁRIO | MAGIC BUS | CHICO BUARQUE

CAPA_template bol.indd 1

02/06/2014 17:21:21


CAPA_template bol.indd 2

02/06/2014 17:21:29


JUNHO 2014

REPRODUÇÃO

aos leitores Em 1953, o Correio da Manhã lançou um concurso nacional para a concepção do uniforme oficial da seleção brasileira. Até então, a Canarinho só jogava de branco. O desenho de um gaúcho de 19 anos foi o escolhido. O jovem usou amarelo com detalhes verdes na camiseta, azul no calção e branco nas meias. A nova configuração teve sua estreia na Copa de 1954 e passou a canalizar e a simbolizar a torcida do Brasil em torno do esporte que surgiu na Europa, mas que foi adotado pelo país tropical como seu. Há 60 anos, o padrão vem tanto representando essa paixão nacional quanto agregando o país em torno do sentimento de nação. Isso corroboraria a afirmação do comediante Jerry Seinfeld de que não se torce por um time, mas por um uniforme. No entanto, no caso da seleção, poderíamos dizer que o uniforme resumiria, com as cores da bandeira e a alegria proporcionada pelos jogos, a afeição pelo país e o indelével desejo de superar as outras nações a partir da simbologia da vitória. A guerra também parte desse princípio. Mas a diferença é que o esporte proporciona a celebração entre os povos e a busca do ser humano por ultrapassar suas limitações físicas. Ao longo das últimas seis décadas, o uniforme criado pelo desenhista Aldyr Schlee

Editorial_JUN.indd 4

(esboços acima), sofreu intervenções, inclusive com o acréscimo da marca patrocinadora da seleção, um reflexo de como o futebol cresceu como negócio. O romantismo que envolvia o amadorismo da modalidade na primeira metade do século 20 deu lugar ao extremo controle mercantil de sua realização, o que se reflete até na venda da camiseta oficial da Canarinho, a mais procurada, logo, a mais cara. Após a terrível derrota brasileira na Copa de 1950, em pleno Maracanã, o país passou por um processo de perda da inocência, enfrentando, a partir da década seguinte, uma ditadura militar que afetou, inclusive, o futebol, que os militares usurparam, principalmente na Copa de 1970. Em paralelo ao poder opressor, crescia também o do esporte. Jogadores e torcedores passaram a notar sua força e expressaram, com suas “armas”, o anseio pela redemocratização. A trajetória dessa relação entre futebol e política é abordada na matéria de capa deste mês da Continente, que também aborda o processo de mudança no tal uniforme do time nacional e a origem da catarse experimentada no campo, que leva o torcer a chorar, sorrir, abraçar, gritar, xingar e cantar, numa alternância de emoções tão súbita e circular quanto uma bola rolando. E tudo isso por causa dela, que precisa entrar numa rede. Mas não somente por isso.

27/05/2014 15:11:57


Localizado no coração do Recife Antigo, o Cais do Sertão é um dos equipamentos culturais e de economia criativa mais completos e modernos do Brasil. O museu traz para o visitante as principais dimensões da vida no Sertão, tendo como pano de fundo a vida e a obra de Luiz Gonzaga, utilizando recursos expositivos inovadores e tecnologia de última geração, que estimulam a interatividade.

O Cais do Sertão é mais uma ação do Governo de Pernambuco para valorizar a nossa diversidade artística, fortalecer a economia criativa e promover o intercâmbio entre as atividades culturais do Interior com a Região Metropolitana do Recife.

H o r á r i o d e f u n c i o n a m e n t o | Te r ç a s à s q u i n t a s : 9 h à s 1 8 h . S e x t a s : 9 h à s 2 1 h . S á b a d o s e 2_3_ANUNCIO.indd 24

27/05/2014 15:12:46

do


e

Cais do Sertão. Mais que um museu. Um espaço para a economia criativa e a tradição cultural de Pernambuco.

O FUTURO A GENTE FAZ AGORA

São 2.500m2 com salas de projeção de vídeos, painéis interativos, karaokê e uma exposição permanente sobre a cultura sertaneja e a obra de Luiz Gonzaga. Venha conhecer. O Museu Cais do Sertão já está de portas abertas. d o m i n g o s : 1 3 h à s 1 9 h . I n g re s s o s : R $ 8 ( i n t e i ra ) e R $ 4 ( m e i a ) . À s t e r ç a s , a e n t ra d a é g rat u i t a . 2_3_ANUNCIO.indd 25

27/05/2014 15:12:47


sumário Portfólio Nestor Jr. 6

Cartas

66

Entremez

7

Expediente + colaboradores

72

Matéria Corrida

74

Palco

79

Claquete

84

Sonoras

88

Criaturas

8

12

20

62

Entrevista

Gilvan Barreto Fotógrafo comenta sobre o seu O livro do sol, que acaba de ganhar o Prêmio Fundação Conrado Wessel de Arte

Conexão

Bookstorming Grupo de editores cria plataforma de publicação de livros no sistema de financiamento coletivo

Balaio

HR Giger Em maio último, morreu o artista suíço que deu vida às criaturas de Alien – o oitavo passageiro

Leitura

Show de bola Romances, contos, crônicas e ensaios também fazem do esporte o seu tema

Duas cenas pastoris

José Cláudio Lugar de morrer

Artista catarinense cria desenhos e gravuras em que a nudez, entre ingênua e erótica, de figuras humanas é adornada com elementos da natureza

14

Comunitárias Encenações teatrais que são criadas para e por grupos com finalidades sobretudo sociopolíticas

Eiji Tsuburaya Foi o japonês quem, há 60 anos, concebeu visualmente e criou os efeitos especiais do Gojira

Canção Artistas discutem se há ou não esgotamento criativo na música popular brasileira Chico Buarque de Hollanda Por Paffaro

História

Magic Bus Há meio século, o escritor Ken Kesey juntou uma trupe de presepeiros para circular pelos EUA, em um ônibus velho e colorido, difundindo a cultura psicodélica

52 CAPA ILUSTRAÇÃO Indio San

CONTINENTE JUNHO 2014 | 4

Sumario_JUN.indd 4

27/05/2014 15:14:49


Capa

Tradição

Mais de 60 anos depois, o Brasil volta a sediar o campeonato mundial de futebol, que, mesmo com expectativas conflitantes, faz o coração do torcedor bater mais forte

Terreiro de Santa Bárbara – Ilê Axé Oyá Meguê prepara-se para comemorar a memória da matriarca Mãe Biu de Xambá, que este mês faria 100 anos

Cardápio

Visuais

Pratos tradicionais de países que jogam no Recife – como Estados Unidos, Costa Rica, Croácia e México – podem ser degustados em restaurantes locais

Mesmo com a massificação da correspondência eletrônica, há os colecionadores que se dedicam a reunir os selos comemorativos da Copa

Copa

22

Seleções

56

Candomblé

44

Jun’ 14

Filatelia

68

CONTINENTE JUNHO 2014 | 5

Sumario_JUN.indd 5

27/05/2014 15:14:54


cartas Arquitetura moderna Em minhas frequentes viagens à capital pernambucana, invariavelmente compro meu exemplar da revista, que considero uma das poucas boas publicações dedicadas à cultura no país. Fiquei muito animado ao ver na capa o anúncio de uma grande reportagem sobre a expressiva e interessante produção arquitetônica moderna pernambucana, objeto de meu interesse na graduação e no mestrado em História da Arquitetura. Mas uma parte deste sentimento se transformou logo na primeira página, no editorial, onde se lê que a intervenção com os cobogós no Edifício Luciano Costa realizada no final dos anos 1950 seria de autoria de Luiz Nunes. Ora, na página 37, o texto da professora Guilah Naslavsky informa corretamente aos leitores que Luiz Nunes morreu em 1937! Uma boa revisão do belo material que vocês compilaram teria detectado o erro, que é repetido na página

45! Em tempo: a intervenção no Luciano Costa, marca da história da cidade e da arquitetura moderna recentemente apagada, foi projetada pelo português Delfim Amorim, um dos maiores arquitetos que o Recife já viu. Uma consulta mais detalhada das fontes disponíveis, como as publicações e depoimentos dos professores Luiz Amorim, Geraldo Gomes da Silva e Guilah Naslavsky, mostraria quem é que fez o quê... Concordo com vocês e com os entrevistados pela reportagem quando dizem que “a valorização dessa arquitetura (moderna) passa essencialmente pela conscientização e apreço dos moradores da cidade”. Por isso mesmo, a pesquisa e divulgação dessas obras e trajetórias é essencial, seja através de pesquisas universitárias ou de publicações como a Continente, que, zelando por sua reputação e alta qualidade, não pode deixar passar um erro grosseiro como este. Espero que os filhos da terra e vocês mesmos já tenham se

dado conta da gafe e que o puxão de orelha do paulistano enxerido aqui seja desnecessário. Faço votos para que a revista continue contrastando com o panorama geral do frequentemente medíocre jornalismo brasileiro, que muita vezes prima pela superficialidade e pela falta de um olhar mais cuidadoso para suas fontes e textos. DIEGO INGLEZ DE SOUZA SÃO PAULO – SP

RESPOSTA DA REDAÇÃO Prezado Diego, ficamos bastante felizes que você seja um apreciador da revista e que tenha o cuidado da informação. Sim, é verdade que erramos sobre a autoria da intervenção na fachada do Edifício Luciano Costa, de autoria de Delfim Amorim, e lastimamos a informação incorreta, pela qual nos desculpamos. Apesar disso, não achamos que esse lapso macule a qualidade de todo o material publicado, sobretudo pelos motivos que você alega apreciar a revista.

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

Fax

(81) 3183 2783

Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

CONTINENTE JUNHO 2014 | 6

Cartas_colab_JUN.indd 6

27/05/2014 15:16:08


colaboradores

Diego Di Niglio

Isabelle Câmara

Samarone Lima

Sérgio Miguel Buarque

Fotógrafo milanês, radicado em Olinda, com ensaios sobre cultura afro-brasileira, história e patrimônio

Jornalista e diretora de comunicação do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Jornalista, poeta e escritor, autor do livro Zé – José Carlos Novaes da Mata Machado, uma reportagem

Jornalista e sócio da Marco Zero Conteúdo – agência de jornalismo investigativo,sem fins lucrativos e independente

E MAIS Clarissa Macau, jornalista. Eduardo Sena, jornalista. Jarbas Jr., fotógrafo. Leo Caldas, fotógrafo. Marcelo Abreu, jornalista, autor de livros reportagem como De Londres a Katmandu - Aventura na Estrada do Oriente. Rodrigo Casarin, jornalista. Paffaro, ilustrador.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

GOVERNADOR

Adriana Dória Matos

Olivia de Souza (jornalista)

0800 081 1201

João Soares Lyra Neto

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO

Juan Ropero (webdesigner)

Fone/fax: (81) 3183.2750

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Luiz Arrais

assinaturas@revistacontinente.com.br CONTATOS COM A REDAÇÃO

Luciano Vásquez Mendez REDAÇÃO

(81) 3183.2780

EDIÇÃO ELETRÔNICA

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE

Débora Nascimento e Mariana Oliveira

Fax: (81) 3183.2783

www.revistacontinente.com.br

PRESIDENTE INTERINO

(editoras-assistentes), Luciana Veras

redacao@revistacontinente.com.br

Bráulio Mendonça Meneses

(repórter)

DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO

Maria Helena Pôrto (revisora)

PRODUÇÃO GRÁFICA

Ricardo Melo

Fernando Athayde, Laís Araújo, Pethrus

Júlio Gonçalves

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO

Tibúrcio e Priscilla Campos (estagiários)

Eliseu Souza

Bráulio Mendonça Meneses

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Sóstenes Fernandes

Everardo Norões (presidente)

ARTE

PUBLICIDADE E MARKETING

E PARQUE GRÁFICO

Lourival Holanda

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

E CIRCULAÇÃO

Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro

Nelly Medeiros de Carvalho

Sebastião Corrêa (tratamento de imagem)

Armando Lemos

Recife/Pernambuco

Pedro Américo de Farias

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Alexandre Monteiro

CEP: 50100-140

diagramação e ilustração)

Rosana Galvão

Fone: 3183.2700

Gilberto Silva

Ouvidoria: 3183.2736

Daniela Brayner

ouvidoria@cepe.com.br

CONSELHO EDITORIAL:

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO

CONTINENTE JUNHO 2014 | 7

Cartas_colab_JUN.indd 7

27/05/2014 16:47:35


GILVAN BARRETO

“A fotografia não pode estar presa ao dispositivo” Pernambucano radicado no Rio, autor do recém-premiado O livro do sol, comenta sobre a produção desse ensaio, da sua paulatina migração do fotojornalismo ao trabalho autoral e das desvantagens do mercado fotográfico TEXTO Clarissa Macau

CON TI NEN TE

Entrevista

O fotógrafo Gilvan Barreto possui um arsenal de fotografias-palavras. “Antes de tudo, minha ligação é com a poesia e o cinema. Nunca me liguei ao equipamento da câmera. Minha questão é a imagem e construir histórias”, diz. Considerado um dos grandes fotógrafos da sua geração, o pernambucano nascido em Jaboatão dos Guararapes, radicado no Rio de Janeiro, distancia-se cada vez mais da fotografia clássica e do fotojornalismo. Jornalista de formação, viu nessa função social a maneira de se aproximar do sonho de infância – frustrado, segundo ele, por causa de um país corrompido – de ser político. No caminho, afeiçoouse mais à fotografia que ao texto. No Recife dos anos 1990, passou dois anos no Jornal do Commercio. Em 1999, mudou-se para São Paulo, contratado como editor de fotografia pela extinta revista de viagens Caminhos da Terra. Ao longo da carreira, prestou serviços a organizações não-governamentais, além de colaborar com a Folha de S.Paulo e El País. Sua relação com o jornalismo

profissional esmaeceu. O contato se limita a leituras diárias de jornais. Hoje, o trabalho de Gilvan amadurece artisticamente, e está em diálogo com o de fotoartistas, como o paulista Gui Mohallen (Welcome home, 2012) e o carioca Edu Monteiro (Saturno, 2013). O que caracteriza a produção deles é o fato de criarem cenas para contar histórias. Gilvan, no caso, monta narrativas fantásticas, inspiradas na relação do homem com seu entorno natural, político e social. No elogiado Moscouzinho (2012), sua estreia no universo dos photo books, homenageia o pai, falecido em 2010, a cidade natal e relembra uma ditadura militar misturada aos tons encarnados do comunismo soviético. As imagens foram fabricadas com intervenções artísticas, colagens, fotomontagens. “São fotos que nascem da palavra, são fotografias, mas pensam que são filmes.” O livro deu origem à exposição Arqueologia de ficções, que roda o país desde o ano passado. Em março deste ano, Gilvan Barreto foi vencedor da 12ª edição do Prêmio Fundação Conrado Wessel de Arte, a

maior premiação nacional de fotografia. Arrematou a competição com a série publicada n’O livro do sol. Imagens guiadas pela poesia de João Cabral de Melo Neto desbravam de forma subjetiva a realidade do sertão pernambucano, fugindo da busca pelo “instante decisivo” e explorando o sonho dos sertanejos pela água. Ainda no final do ano, o fotógrafo pretende lançar o projeto Orquestra Pernambucana de Fotografia, em livro e DVD, no qual fotógrafos e músicos tornam imagem em música. Gilvan conversou com a Continente sobre a sua fixação pela desconstrução fotográfica, seu amadurecimento profissional, criticou a falta de liberdade no fotojornalismo e a atual situação do mercado fotográfico, um território bem demarcado, e desigual. CONTINENTE Por que, na sua opinião, entre 305 concorrentes, O livro do Sol foi o vencedor do prêmio FCW de arte deste ano? GILVAN BARRETO Apesar da inscrição dos candidatos sob pseudônimos e o júri, em teoria, desconhecer os autores, é difícil acreditar que não percebam

CONTINENTE JUNHO 2014 | 8

Entrevista_JUN.indd 8

27/05/2014 15:17:14


GILVAN BARRETO

CONTINENTE JUNHO 2014 | 9

Entrevista_JUN.indd 9

26/05/2014 09:58:36


realidade das pessoas está em segundo plano. A prioridade foi estética, poética, mostrar a decoração, a arquitetura das casas. Perceber como as famílias ornamentavam suas moradias com objetos achados na rua. Tenho interesse grande pela “antifotografia”. Destruo uma fotografia para criar outra. Adapto coisas não fotográficas para extrair sentimento. Se essa fotografia já foi feita antes, ela é nova para mim, usando ferramentas velhas que estão ao meu alcance. Preciso fabricar imagens, ou incorporá-las ao discurso. Esse caminho

IMAGENS: GILVAN BARRETO/DIVULGAÇÃO

características peculiares de cada autor. Quem julga conhece os trabalhos que estão no meio de arte. No ano passado, fui finalista no FCW com o ensaio do livro Moscouzinho, no qual juntei minhas referências de música, política, cinema, jornalismo e da experiência fotográfica. O prêmio vem para uma trajetória que mostra a construção de uma voz própria. Não acredito que a responsabilidade foi só, mas também, das 10 fotos que mandei d’O livro do sol, que reforçam o meu interesse na interação entre o homem e a natureza, junto ao lado

CON TI NEN TE

Não mostro o que as pessoas já sabem, e nisso há um desconforto. Aí perguntam: “Peraí, nesse sertão não tem gente?”. Eu quero mostrar um sertão desértico. É O livro do sol, mas ele é preto. É seco, mas cheio de nuvem carregada. Tem muita provocação. Para um público, isso pode ser uma besteira sem sentido. Poesia não se explica, sente-se. Mas eu não fiz para agradar ninguém. Estou doido para fazer uns lançamentos pelo interior e ver o que acham. Ouvi alguns sertanejos que viram o resultado e se identificaram. Já Moscouzinho foi

“É O livro do sol, mas ele é preto. É seco, mas cheio de nuvem carregada. Tem muita provocação. Para um público, isso pode ser uma besteira sem sentido. Poesia não se explica, sente-se.”

Entrevista sociopolítico. Entre os trabalhos enviados, havia mais de registro. Ganhar no contexto de que estão apoiando um trabalho de fórmula diferente, menos formal, foi muito bacana.

se alinha com a ideia do cinema. Me pergunto quais imagens representarão certos roteiros que tenho na mente. Moscouzinho, por exemplo, foi construído a partir de um roteiro pré-organizado.

CONTINENTE Vemos na história, já no início do século 20, as vanguardas, o surrealismo e o construtivismo russo fazendo experimentos com a fotografia. O que você herda disso? Como começou a desbravar esse universo artístico? GILVAN BARRETO Demorei a largar a fotografia clássica. De repente, olhei meu reportório, composto muito mais por poesia, palavra, cinema do que pela fotografia propriamente dita. Sinto a minha relação com a foto mais madura. Meu trabalho em jornalismo já era em cima de viagem, retrato, voltado à questão cultural e ambiental. O primeiro trabalho em que me deixei fotografar sem preocupação com a objetividade foi o das ocupações aqui no Rio, o ensaio Garagem (2009). Nele, a

CONTINENTE O livro do sol e Moscouzinho têm forte carga surrealista.Você chegou a pensar em fazê-los como ensaios de registro documental em algum momento? GILVAN BARRETO Já fui muito ao Sertão tirar foto para ONGs, jornais e revistas, focando construções de cisterna e pessoas enfrentando a seca. É útil, mas não é mais o que procuro. Sobre o Sertão, prefiro me perguntar: “Que lugar seco é esse cheio de pessoas com sombrinhas, que vivem pensando em água, falando em água e parecem estar à espera de um dilúvio?”. Há a leitura muito específica sobre o Sertão, com um roteiro que contraria o repertório que temos da seca. Foi uma aposta grande num ponto de vista artístico.

uma necessidade de externar um sofrimento, a saudade do meu pai e de nossa história numa ficção. Cheguei a reproduzir sonhos em imagem. CONTINENTE A fotografia parece ter encontrado lugar no mundo da arte. Mas há quem critique a relação “excessiva” da fotografia com o conceito artístico. No final do ano passado, o fotógrafo André Vieira disse, em entrevista ao blog do Olhavê: “A fotografia que fazemos hoje está mais preocupada em dialogar com a história da arte do que com a história da fotografia, sobretudo documental. Temos excelentes fotodocumentaristas, mas (...) as revistas daqui há muito não apoiam esse tipo de fotografia e o mundo institucional parece estar deslumbrado com as feiras de arte”. Num momento em que a atenção está voltada a projetos conceituais, o que a foto conceitual oferece para quem a vê? GILVAN BARRETO André é um documentarista de trabalho diferenciado. Seus trabalhos possuem reflexão. Não existem veículos que deem liberdade e

CONTINENTE JUNHO 2014 | 10

Entrevista_JUN.indd 10

26/05/2014 09:58:37


espaço aos documentaristas. Concordo. Mas são caminhos de fotografia distintos, um não deve predominar sobre o outro. Aquela escola bressoniana, de fotografar as ruas, as sombras, está ameaçada pela violência. E, hoje, há um movimento maior de reflexão sobre o cotidiano de uma maneira mais ensaística, poética. Pautando isso pelo desejo de consumo, parece-me também que o mercado, os colecionadores estão exigindo uma intervenção maior nessas imagens. Acredito que as obras relevantes desse movimento virarão

envolvidos, e esse lado logicamente vai te mostrar o que deseja. Não há mais liberdade. Lembro que, há um tempo, um fotógrafo português estava aqui no Rio de Janeiro para fazer umas fotos na favela da Rocinha. Ele realmente entrou nuns lugares e situações que não são fáceis de achar. Todos ovacionaram. Mas, olhando para as fotos, você vê claramente que ele foi dirigido pelos traficantes. Os traficantes aparecem fazendo pose, de rosto coberto, como heróis. Eu pergunto: você não quer ser guiado pelo veículo em que você

um documento da nossa época. Isolar a foto de arte no mundo da fotografia é limitar. Ao pegar um exemplo fora da fotografia, vemos o artista Jonathas (de Andrade) criando ficção, a invasão dos carroceiros de cavalos no Recife (onde é proibida a circulação de carroceiros na zona urbana) através de uma corrida. Ele faz parte de um grupo de artistas, o que inclui fotógrafos, que pensa em tom fantástico e traz um retrato do nosso tempo.

trabalha, nem pela polícia, mas quer ser guiado pelo traficante?!

CONTINENTE Sua matriz é o fotojornalismo. Como você vê a fotografia feita hoje nos jornais? GILVAN BARRETO Nesse tipo de foto, prefiro a clareza do posicionamento de quem vê. Fingir um distanciamento, uma imparcialidade é muito fácil de resolver tecnicamente. As coberturas de guerra não são mais como no tempo de Robert Capa. Hoje, para se ter uma ideia, ao cobrir qualquer guerra, você será guiado por um dos lados

CONTINENTE Em 2009, o jornalista Alexandre Belém perguntou ao curador Eder Chiodetto qual a opinião dele sobre a crítica fotográfica feita no Brasil. Ele não se delongou na resposta: “Ela existe?”. Onde está a crítica da fotografia? E qual seria sua necessidade? GILVAN BARRETO A crítica realmente está capenga. Acho que pessoas como Diógenes Moura e Rosely Nakagawa deveriam escrever mais. Georgia Quintas deveria ser mais ouvida. Ela não tem espaço para escrever, escreve no blog dela (o Olhavê). O Chiodetto, não sei se ele sustenta a mesma opinião, mas ele é tão presente em tantas produções, como é que poderia ter essa função de criticar, não é verdade? A gente vê também a Simoneta (Persichetti) num espaço (do jornal Estado de S.Paulo). Mas realmente são poucos. Acho que por conta dessa falta de profissionais no mercado

criam-se lacunas em que, de repente, um oportunista cresce e vira estrela do dia para noite. Eu mesmo já vi alguns textos sobre trabalhos meus, e a pessoa não entendeu absolutamente nada. A crítica guiaria sobre o que está acontecendo, ajudaria a explicar os novos movimentos, apoiaria o próprio mercado e mostraria o porquê de certo autor estar vendendo bem ou sendo bem-recebido. CONTINENTE Quando um olhar mercadológico fere a intenção de uma fotografia? GILVAN BARRETO Vemos agora, com essa falta de espaço de críticos, a implantação de uma cadeia empresarial. São modelos muito convenientes e de capitalismo selvagem tentando abocanhar todas as etapas de produção e divulgação. Imagine o conflito: eu tenho uma escola de fotografia, sou jurado em vários prêmios e curador. Então, é bem provável que eu vá elogiar um cara que é meu aluno, ou edita um livro comigo. O mercado é tão carente, que, intencionalmente ou não, essa assessoria, esse elogio é confundido com crítica. Há uma indústria da fotografia. Aprendemos a vender antes de entender. Enquanto a produção teórica está escondida nas faculdades ou em blogs, os fotógrafos estão sendo agenciados como jogadores de futebol. É negócio. Estão se espelhando em políticos. Há conchavos de todos os lados. E os que não estão com essa bola toda, planejam modelo parecido para conseguir crescer. É o retrato de um mercado ainda inconsistente, cheio de falhas. Só os “maiores” são favorecidos. CONTINENTE Os iphones estão cotados como as novas câmeras fotográficas profissionais. Como você vê isso? GILVAN BARRETO A gente tem de fotografar com o que tem à mão. A fotografia não é mais um mistério técnico. Se estiver com um celular, uma maquininha automática, vá fazer. O que me preocupa é a linguagem com a qual as pessoas fazem a fotografia. A técnica é muito bonita, mas não concordo que isso seja uma barreira. No Moscouzinho, eu cheguei a usar câmeras digitais semiprofissionais, outras de alta resolução, pinhole, analógicas. Eu uso muitas máquinas amadoras. A fotografia não pode estar presa somente ao dispositivo.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 11

Entrevista_JUN.indd 11

26/05/2014 09:58:41


O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

COPA

GILVAN BARRETO

Esta não é a primeira edição que a Continente dedica ao futebol, afinal vivemos na chamada “pátria de chuteiras”. Sendo assim, resgatamos os dois especiais mais recentes publicados na revista. O internauta poderá encontrar a matéria de capa da edição de junho de 2013, cujo tema foram as torcidas, aproveitando o gancho da Copa das Confederações. Também estará disponível o especial publicado em junho de 2010, durante a Copa da África do Sul, que incluiu um ensaio fotógrafico e uma série de pinturas feitas por artistas com o tema futebol, ambos exclusivos.

Veja algumas fotos do ensaio reflexivo e poético acerca do binômio sol-água, O livro do Sol – que se contrapõe a clichês acerca do Nordeste.

Conexão

ROGÉRIO ASSIS Na fotografia brasileira, vários foram em busca da documentação dos povos indígenas. Confira outras imagens do ensaio com os zo’é do Pará, em p&b.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

HEMEROTECA

CÊNICAS

LITERATURA

ESTANTE

Fac-símiles digitalizados estão disposíveis no site da Biblioteca Nacional

Por dentro da produção teatral pernambucana, através dos próprios agentes

Obra completa de Machado de Assis para download gratuito

Banco de dados cruza obras e autores para sugerir leituras

memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx

bastidorespe.com.br

machado.mec.gov.br

www.whatshouldireadnext.com

Dentro do portal da Biblioteca Nacional Digital Brasil, há um espaço reservado à Hemeroteca Digital Brasileira. O site é um sistema rápido de pesquisa de jornais e outros tipos de periódicos para leitura online. A busca pode ser realizada pelo nome da publicação, pelo período – que inclui impressos lançados há mais de um século – ou pelo local de produção. A lista de publicações reúne, por exemplo, o Cosmo Litterario, o Voz Operária, o Correio Paulistano e O Abolicionista.

O Bastidores é um recente projeto pernambucano que busca reunir os profissionais do setor cênico do estado. Além de facilitar para o público o acesso a informações relativas a espetáculos em cartaz, o site cria uma rede que permite aos artistas se conhecerem. O portfólio de cada um deles está disponível para os profissionais interessados, criando a possibilidade de contatos para produções futuras. O site conta, ainda, com um espaço para um blog com notícias relacionadas a esse tipo de atividade.

O portal Domínio Público do Ministério da Educação, em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (Nupill), da Universidade Federal de Santa Catarina, organizou e sistematizou a obra completa de Machado de Assis. O site reúne informações introdutórias acerca da vida e obra do autor. Há, ainda, um espaço para a leitura de autores que lhe foram contemporâneos e uma seção para produções acadêmicas relacionadas a Machado. A coletânea está dividida por gênero, como romance, conto, crítica e poesia.

What should I read next? é uma plataforma que se destina a ajudar na decisão sobre leituras. Ele se baseia em dois pontos de partida: as características de algum livro que agradou o internauta e a nota de classificação que outros usuários dão aos livros. Por exemplo, se você leu um romance policial que se passa na estrada e foi escrito na década de 1930, o banco de dados vai procurar livros do mesmo gênero, com cenários parecidos e linguagem próxima. Além disso, coloca no topo os livros mais indicados por outros internautas.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 12

Conexao_JUN.indd 12

26/05/2014 10:00:23


blogs EROTISMO SURREAL marionfayolle.canalblog.com

A ilustradora francesa Marion Fayolle lançou recentemente a série chamada In pieces. A coleção apresenta personagens estranhamente eróticos, dentro de situações sexuais metafóricas. Seus traços finos e os tons de cores que usa resultam num estilo inconfundível. A obra da artista está reunida em seu blog.

PRIMEIRAS CONVERSAS

CROWDFUNDING PARA LIVROS Grupo de editores se reúne para viabilizar a publicação de projetos autorais pelo sistema de financiamento coletivo, já propulsionado em outros setores artísticos www.bookstorming.com.br

O recém-criado Bookstorming é uma plataforma de financiamento coletivo

para a publicação de livros. A ideia do site – fundado por Cristiano Baldi, Erika Mattos da Veiga, Katherine Funke e Natércia Pontes – consiste em três etapas. Na primeira, é feita a divulgação de projetos nas redes sociais para possíveis publicações; na segunda, depois que a meta é atingida, são preparados capa, projeto gráfico e edição do texto; na terceira, os colaboradores que ajudaram a financiar o livro ganham um exemplar em casa. O primeiro projeto do Bookstorming foi Desordem, uma antologia de contos de sete autores brasileiros. Para ele, por exemplo, foram necessários 700 colaboradores que pagaram, cada um, R$ 35. Além de contar com a atuação dos quatro fundadores do site, o livro recebe a colaboração de Paulo Bullar, Olavo Amaral e Patrick Brock. Antes de decidir entrar na cota, os colaboradores têm a oportunidade de ler um trecho do livro e conhecer a apresentação feita pelo autor. A participação dos financiadores vai além, pois os editores recebem deles sugestões para o desenvolvimento de projetos gráficos para as publicações. PETHRUS TIBÚRCIO

www.frasesdecriancas.com/?m=1

“- Mãe, a lagarta é uma borboleta que não deu certo na vida?“. A pergunta é de Valentim, 4 anos. Ela está exposta no blog Frases de crianças, no qual pais e mães compartilham os pequenos diálogos com seus filhos. Muito mais do que “de onde eu vim?”, a lista traz uma série de perguntas e respostas sobre as primeiras dúvidas, as conclusões prematuras e o entendimento típico dos poucos anos.

TRANSFEMINISMO generoaderiva.wordpress.com

Hailey Kaas é a autora deste blog transfeminista. Como ela define, o espaço trata de “feminismos, transfeminismos, gordofobias, racismos, bissexualidades, pansexualidades e sexualidades não binárias, acessibilidades e outros elementos de justiça social”. Além de publicações pessoais, a autora traz críticas aos privilégios cisgêneros e à transfobia dentro do movimento feminista.

sites sobre

transporte público PASSE LIVRE

TARIFA ZERO

CITTABUS

www.mpl.org.br

tarifazero.org

www.cittabus.com.br/

O Movimento Passe Livre foi um dos protagonistas dos protestos de rua de 2013. O site dá o cenário do transporte nos lugares onde o grupo funciona.

O site Tarifa Zero reúne uma série de textos que defendem a democratização do transporte público, a partir da eliminação do valor pago pelos usuários.

Voltado aos passageiros, o Cittabus é um aplicativo que diz a hora em que o ônibus vai passar, os pontos mais próximos e se ele é adaptado para pessoas com deficiência.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 13

Conexao_JUN.indd 13

26/05/2014 10:00:24


REPRODUÇÃO

1

Portfolio_JUN.indd 14

Port f 26/05/2014 10:02:01


f贸lio Portfolio_JUN.indd 15

26/05/2014 10:02:03


IMAGENS: REPRODUÇÃO

2

3

CON TI NEN TE

Portfólio

Nestor Jr.

NATURAL, FIGURATIVO, ERÓTICO TEXTO Laís Araújo

Corpos nus em posições improváveis, como nas pinturas de Egon Schiele

(com menos sofrimento e mais corpulência que estas), olhares marcantes, referências à natureza, tudo realizado em cores suaves de aquarela e, vez ou outra, gravados em metal. Com um traço já reconhecível, o catarinense Nestor Jr. oferece uma obra discreta, mas cheia de possibilidades. Nascido e criado num sítio, na pequena cidade litorânea de Penha, o artista de 30 anos se dedica exclusivamente à produção, estudo e compartilhamento de conhecimentos artísticos. Antes da decisão sobre o uso de seu tempo, porém, a costumeira dúvida sobre a possibilidade de viver somente da arte: aconselhado pelos pais a não alimentar o interesse pelo desenho, viveu até cinco anos atrás uma dupla jornada criativa, trabalhando como ilustrador e utilizando as horas vagas para produzir seu trabalho autoral. “Quando eu comecei com ilustrações para os mercados de moda e publicidade, procurei afastar o que fazia nessa área da minha pesquisa pessoal. Mas não dá para fugir totalmente do teu traço, um acaba contaminando o outro. Lembrome de criar e logo descartar, porque tinha muito do meu trabalho pessoal naquelas linhas.” A separação consciente do que fazia como profissional e como artista rendeu suas primeiras exposições – e a experiência foi tão boa, que encheu Nestor de desgosto pela ideia de continuar a trabalhar com briefing,

1-3 REINCIDÊNCIAS A fusão dos seres humanos com a natureza e a beleza assimétrica dos rostos estão presentes em seus trabalhos 4

CORPOS

A nudez aparece tanto de forma inocente e natural como em intensidade erótica

CONTINENTE JUNHO 2014 | 16

Portfolio_JUN.indd 16

26/05/2014 10:02:07


4

CONTINENTE JUNHO 2014 | 17

Portfolio_JUN.indd 17

26/05/2014 10:02:10


IMAGENS: REPRODUÇÃO

5

6

CON TI NEN TE

Portfólio

sob a aprovação de terceiros. Insatisfeito, largou a indústria. Ele mantém a rotina de trabalho de oito horas diárias no seu ateliê, montado em sua casa em Florianópolis, e é representado por galerias da Bahia, São Paulo e de seu estado natal. O artista diz que seu retorno financeiro, apesar da insegurança da inconstância, é maior do que quando trabalhava como ilustrador. Ultimamente, conta, tem refletido mais que produzido. “Ando revendo a minha forma de ver, viver e lidar com meu trabalho”. Fazer o balanço e repensar a própria poética trouxe a experimentação: após uma década utilizando apenas a aquarela, apareceram os trabalhos em xilogravura, metal, acrílica, além de instalações, vídeos e fotografias. “A minha intenção é ampliar o meu trabalho sem limite de suportes ou técnicas.”

Independentemente do meio utilizado, a temática que permeia sua obra se manifesta com clareza, fato que ele descreve como “uma repetição, uma insistência de representações”. Estão ali a nudez inocente e natural, mas também erótica, os rostos marcados por uma beleza assimétrica, a fusão dos seres com a natureza. Sua maior inspiração visual é o período renascentista, além de artistas como Gustave Courbet, Cícero Dias e Franklin Cascaes. Já a vontade de criar foi impulsionada pelo cinema, em especial pelos filmes marginais de Júlio Bressane e pelos dilemas de Almodóvar. Mas Nestor diz que seus temas mais queridos estão presentes desde a infância. “A primeira imagem que tenho do corpo nu, e que me incomodava num certo sentido, era a nudez da minha mãe em casa. Desde muito criança, o corpo nu e o sexo me atraíram muito,

visualmente. Meus pais tinham uma bíblia imensa, ilustrada com imagens renascentistas, e eu adorava aquele livro, com esses corpos nus muito expressivos. Era uma fixação.” Aos seis anos, ele passou a desenhar corpos semelhantes. Nas figuras de suas obras é possível encontrar certa familiaridade: algumas, ele explica, são pessoas importantes em sua vida – outros são crias aleatórias, que acabam reaparecendo enquanto produz. “Dessa nudez doméstica, a da minha mãe, guardo a corpulência de uma mulher com descendência italiana. Todas as mulheres que eu represento guardam essas características corpóreas, a imagem feminina que me agrada. A assimetria é uma coisa que me causa uma comoção maluca também. O estranho e o feio, para mim, têm uma força gigantesca que sempre me instigou”.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 18

Portfolio_JUN.indd 18

26/05/2014 10:02:18


5 POSIÇÕES Os corpos nus entrelaçados e retorcidos remetem às pinturas de Egon Schiele 6-7 AQUARELA Apesar de trabalhar com outras técnicas, esta é destaque nas suas produções

7

CONTINENTE JUNHO 2014 | 19

Portfolio_JUN.indd 19

26/05/2014 10:02:22


FOTOS: DIVULGAÇÃO

SELFIE COM ARTE

Morre o criador do Alien No último dia 12 de maio, morreu o artista suíço HR Giger, responsável por fundir dor, carne, sexo e aço. Com sua técnica única de aerografia, pintura e escultura, Giger contribuiu para a criação do horror contemporâneo, numa caótica sublimação dos desejos mais obscuros da psiquê humana. Original, a sua obra surgiu na segunda metade do século 20 como uma força da natureza oculta sob o pesar do próprio tempo. A relação íntima do homem com a tecnologia cotidiana, a busca pela liberdade sexual e o sentimento de repressão social são características onipresentes no trabalho do artista. Famoso mundialmente pela concepção do Xenomorfo e de toda sua horripilante espécie, criaturas da obra máxima de Ridley Scott, Alien – o oitavo passageiro (1979), Giger ainda migrou entre vários gêneros artísticos e fundamentou uma carreira tão admirável e prolífica quanto arrepiante e pavorosa. Trabalhou com artistas com Jean “Moebius” Giraud e Alejandro Jodorowsky, inclusive na adaptação cinematográfica nunca concretizada por este, do romance Duna, de Frank Hebert. Outra incursão sua no cinema foi o design concebido para a alienígena Syf, da franquia sci fi A experiência. A causa de sua morte foram complicações do desgastado estado de saúde atingido pelo artista após uma queda. FERNANDO ATHAYDE

CON TI NEN TE

A FRASE

“Não acredito em Deus, mas tenho medo dele.” Gabriel García Márquez, escritor

A praga selfie continua e, desta vez, ataca num lugar que se supunha a salvo. Como sabemos, o Brasil não é pródigo em público para as artes visuais, salvo em situações raríssimas. Uma dessas está sendo a individual do australiano Ron Mueck, no MAM do Rio. Há meses, as pessoas fazem filas de dar voltas em torno do prédio para ver as suas esculturas hiperrealistas. O fato seria louvável, não fosse o comportamento do público que, não satisfeito em fazer fotos (liberadas, sem flash) das obras em grandes dimensões, demora-se em realizar as suas imagens com as obras, dificultando deveras a vida daqueles pacatos visitantes que estão ali para – inacreditável! – admirar a exposição. (Adriana Dória Matos)

Balaio CÃO-TALISMÃ

Em tempos de arenas multiuso, assépticas e padronizadas, há aquele ser que, quando aparece, se torna a redenção e esperança dos saudosos por um futebol mais roots: o cachorro. O melhor amigo do homem, vez ou outra, o acompanha dentro das quatro linhas ou nas arquibancadas mais modestas. Sua súbita presença no gramado já resultou em peripécias em jogos de Copa do Mundo, como a de 1962, no Chile, quando o astuto animal invadiu o campo e driblou até Garrincha. Antes disso, em 1948, um cão chamado Biriba virou mascote do Botafogo, que, com a companhia do talismã vira-lata, se tornaria, naquele ano, campeão carioca invicto após 13 temporadas de jejum. Hoje, a presença canina é rara, mas ainda garante diversão, como o “cachorro-zagueiro”, que evitou o gol da vitória do Remo, no clássico paraense contra o Paysandu, e o pacato “cão-torcedor” (foto), que, com o boné do Joinville, acompanhava tranquilamente a partida do seu time no campeonato catarinense. (Janio Santos)

CONTINENTE JUNHO 2014 | 20

Balaio_JUN.indd 20

27/05/2014 15:20:47


ARQUIVO

FRASES GENTIS “Meu time vencer é a mesma coisa que dar zebra no jogo do bicho”. Dita pelo técnico Gentil Cardoso, na década de 1960, quando treinava um fraco time do Rio de Janeiro, a frase se incorporou ao futebol brasileiro e à loteria esportiva com o significado de fato inesperado e sem “lógica”. Nascido no Recife em 1906, Gentil teve a trajetória marcada pelo comando de times como Flamengo, Vasco da Gama, Botafogo, Fluminense e Corinthians, com os quais foi várias vezes campeão. Numa temporada em sua terra natal, conseguiu a proeza de conquistar o campeonato para as três equipes em que atuou: Sport, Náutico e Santa Cruz. (Gilson Oliveira)

FRASES GENTIS 2 Um dos momentos de maior glória de Gentil Cardoso foi quando ele – descobridor de Garrincha e responsável pelo primeiro contrato do craque no Botafogo – dirigiu a seleção brasileira no Campeonato Sul-Americano de 1959. O sucesso como frasista não foi menor. Entre as mais famosas tiradas de Gentil, que faleceu no Rio em 1970, figuram: “O craque trata a bola de você, não de excelência”, “Só me chamam pra enterro, ninguém me convida pra comer bolo de noiva” (numa fase em que só era convidado para ser técnico de times com problemas) e “A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca gosta de grama, então joga rasteiro, meu filho” (dirigindo-se a um jogador que só gostava de bola nas alturas). (G.O.)

SEM FONE, NÃO

O crime que iniciou a guerra O assassinato do arquiduque Franz Ferdinand (não, não é da banda que tocou por aqui, no ano passado), herdeiro do Império Austro-Húngaro, e da sua esposa, a duquesa Sofia, é considerado o episódio decisivo para o início da Primeira Guerra Mundial. A morte do arquiduque ocorreu num atentado executado a 28 de junho de 1914, em Sarajevo (ô lugarzinho pra estar em tudo que é bronca!), atual capital da Bósnia Herzegovina, e, na época, província da Áustria-Hungria.O responsável pelos dois pipocos certeiros foi um estudante sérvio, Gavrilo Princip, membro de um grupo nacionalista, cujo braço armado, a “Mão Negra”, arquitetou o plano. Preso pela polícia, quase foi linchado pela população. Sorte dele não estar no Brasil. A Áustria culpou a Sérvia pelo crime e declarou guerra. A Alemanha ficou com a Àustria. A França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha. A partir daí rolou o maior bololô e o conflito se espalhou pelo planeta, terminando com um saldo de mais de 9 milhões de mortos na guerra, que ficou conhecida pelos terríveis combates nas trincheiras. LUIZ ARRAIS

Como se não bastassem o desconforto dos assentos, o aperto, o calor, o preço da passagem e todo tipo de contrariedade que se possa ter dentro de um ônibus, o passageiro ainda enfrenta um recorrente aborrecimento: tolerar a música ouvida pela pessoa ao lado. Essa situação inconveniente enfrentada por milhares de pessoas diariamente promete mudar, pelo menos até agora, no estado do Rio de Janeiro. Em abril, o governo publicou uma lei proibindo os passageiros de ouvirem música sem fone de ouvido nos transportes públicos. A empresa que permitir o comportamento será multada. Nas redes sociais, as pessoas já estão pedindo a implantação da regra nos seus estados. Outra iniciativa importante seria a proibição de mais uma chateação nos busões: a pregação religiosa. Imagine, ouvir um indesejado sermão em meio à demora e ao barulho de um engarrafamento... (Débora Nascimento)

DESCONTO NO LOOK Muitos artistas entraram de cabeça na moda dos anos 1970. No entanto, alguns deles resolveram mergulhar mais fundo, como o Abba. O que não se sabia é que, por trás do estilo extravagante do quarteto sueco, havia outra motivação. No livro Abba: the official photo book, o guitarrista Björn Ulvaeus explica que a opção pelo visual era a forma de deduzir os impostos das roupas dos shows. Conforme a legislação da Suécia, o vestuário precisa ser comprovadamente “inadequado para o uso diário”, para obter o desconto. Isso deve ter ajudado a encher ainda mais os bolsos do grupo, responsável por alguns dos maiores sucessos da disco music, como Dancing queen e Fernando. (DN)

CONTINENTE JUNHO 2014 | 21

Balaio_JUN.indd 21

27/05/2014 15:20:48


INDIO SAN

CON TI NEN TE

CAPA

CONTINENTE JUNHO 2014 | 22

Especial Futebol_JUN.indd 22

27/05/2014 15:25:02


COPA Em campo nacional

Sessenta e quatro anos depois, o Brasil volta a abrigar o campeonato mundial de fubebol. Desta vez, numa nova realidade e sob diversos questionamentos. No entanto, algo se mantém intacto, a paixão pelo esporte, explicitada na ida aos estádios e nas discussões a seu respeito

CONTINENTE JUNHO 2014 | 23

Especial Futebol_JUN.indd 23

27/05/2014 15:25:04


IMAGEM: REPRODUÇÃO

CON CAPA TI NEN TE

1

FUTEBOL O ópio do povo?

Seria apenas mais um dia de clássico. Corinthians e Santos se enfrentariam no Morumbi. Cem mil pessoas lotavam o estádio à espera do jogão. No rádio, o locutor Osmar Santos avisa: a Gaviões da Fiel promete uma surpresa. As lentes das câmeras, então, direcionam-se para a torcida corinthiana. Assim que o time de Sócrates entra em campo, os torcedores começam a festejar e abrem uma extensa faixa: “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Naquele 11 de fevereiro de 1979, assistia-se não apenas a uma partida de futebol, mas a uma importante manifestação pública do desejo de boa parte da nação de encerrar de vez com a perseguição política que afligia milhares de pessoas no país, tendo como condutor um mecanismo legal: a anistia. Seis meses depois, em 28 de agosto, a lei foi promulgada, tornando possível o processo da “reabertura”,

TEXTO Débora Nascimento

CONTINENTE JUNHO 2014 | 24

Especial Futebol_JUN.indd 24

27/05/2014 15:25:05


Em 1969, dez anos antes da abertura daquela faixa, iniciativa que provocou duas prisões sem graves consequências, surgira um dos primeiros rompantes de rebeldia no país, mesmo que não estivesse diretamente ligado à política nacional, mas à futebolística: a Gaviões da Fiel. Numa época em que as pessoas não podiam se juntar em grupos ou associações, a torcida foi criada para contestar a direção do Timão. Nada que despertasse maiores atenções do governo militar, embora este já tivesse aparelhado a maior parte dos times brasileiros. No mesmo ano, os torcedores também fundaram sua escola de samba homônima. A partir de 1969, o Brasil ingressava na pior fase da ditadura, após a publicação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro do ano anterior. Foi naquele 1969 que Pelé marcou o seu milésimo gol, no mesmo

Em 1970, o governo militar já havia estendido seu manto de autoristarismo sobre vários setores, inclusive no futebol que tiraria o Brasil, em 1985, de duas décadas de ditadura militar e o traria de volta à democracia, em 1989. É incrível imaginar, hoje, quando vemos por todo o país mostras de violência praticadas por grupos de torcedores, que aquela atitude política tenha partido de uma torcida organizada, a propósito, a maior do Brasil. Um dos idealizadores do ato foi o jornalista Antônio Carlos Fon, membro fundador do Comitê Brasileiro pela Anistia. Ao saber da ideia, o repórter da Veja Chico Malfitani, que era um dos fundadores da Gaviões, combinou com outros membros da GF como seria o momento. Uma pessoa estratégica foi avisada: Osmar Santos, que se transformaria poucos anos depois na “Voz das Diretas Já”, ao apresentar os famosos comícios que reuniram milhares de pessoas em torno de um palanque formado por políticos, artistas e atletas.

Maracanã que serviu de palco para um outro um episódio histórico: o desfecho do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, estrategicamente realizado na saída do jogo entre o Fluminense e o Cruzeiro. Mantido refém por 70 horas em uma casa no Rio Comprido, no Rio de Janeiro, por membros da Dissidência Comunista da Guanabara e da Ação Libertadora Nacional (ALN), o diplomata foi solto em troca da libertação de 15 presos políticos. Dispersos na multidão, os militantes escaparam dos policiais.

PRA FRENTE, BRASIL

Em 1970, o governo, que já havia estendido seu manto de autoritarismo sobre o executivo, o legislativo, o judiciário, a imprensa e a cultura do país, intensificava suas investidas na principal atividade das massas, o futebol. Financiou e ocupou diversos

times e a menina dos olhos do esporte, a seleção brasileira. Tomou para si o hino da campanha do tricampeonato, Pra frente, Brasil. Isso foi o bastante para transformar a equipe canarinho numa espécie de inimiga para os que desejavam e lutavam pela queda da ditadura. Nesse período, uma máxima passou a ganhar fama no meio intelectual, “Futebol é o ópio do povo”, parodiando a notória frase de Karl Marx sobre religião. Não demorou muito para a multiplicação de detratores da paixão nacional. “Um país inteiro para por causa do futebol, mas não para para resolver o problema da fome... Este, sim, é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecer que são explorados, subdesenvolvidos... Estou torcendo para o Brasil perder! Assim o povo voltará à realidade e verá que a vida não é feita de gols, mas de injustiças... Nossa realidade não é tão infantil como uma jogada como esta de Pelé invadindo a grande área inglesa e... Pênalti! Pênalti! Juiz filho da mãe! Pênalti, seu safado”, atacou o cartunista Henfil, n’O Pasquim. A discussão, em 2014, poderia soar datada, mas desde 1970 que, a cada quatro anos, ela se renova e volta às rodas de conversa. Agora, ganha força nas redes sociais com a hashtag #naovaitercopa. Tendo como principal reclamação os gastos públicos para a realização do campeonato, boa parte dos que criticam também argumenta que o resultado do evento influenciaria a política nacional, principalmente em período de eleição. O jornalista Juca Kfouri, em seu blog, se mostrou contrário a esse raciocínio: “Sempre será bom lembrar que o Brasil foi bicampeão mundial em 1958/62 e nem por isso seus presidentes de então, Juscelino Kubitschek e João Goulart, deixaram de ser cassados pelo golpe militar. Em 1970, a seleção ganhou sob Médici e a imagem que ficou do militar foi muito mais a do torturador que a do torcedor”. O colunista esportivo apenas se esqueceu de ponderar que a maior parte da população assistiu a isso tudo calada, até porque havia uma grande dificuldade em saber o que realmente estava acontecendo no país; a troca de informações

CONTINENTE JUNHO 2014 | 25

Especial Futebol_JUN.indd 25

27/05/2014 15:25:05


CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

(verdadeiras) não era instantânea e facilitada como hoje em dia. Recentemente, o ex-jogador Tostão também resgatou o tema da “alienação em torno do futebol”, na sua coluna na Folha de S.Paulo, do dia 26 de março: “Ao mesmo tempo em que tenho orgulho de ter sido campeão por um dos maiores times da história, sinto-me, às vezes, incomodado, quando escuto que a seleção de 1970 foi o ópio do povo e que foi usada pela ditadura. Todos os governos, de todo o mundo, ditaduras e democracias, como a atual do Brasil, fazem o mesmo, ainda mais em uma Copa no próprio país”. Tostão era um dos poucos jogadores que sabiam o que estava se passando e que tiveram a coragem de se manifestar contra o regime. Mas o craque arrefeceu o discurso ao receber um cala-boca através de uma ligação telefônica anônima. Isso ocorreu após ter concedido entrevista ao Pasquim, na qual elogiava Dom Hélder Câmara, arcebispo do Recife e persona non grata da ditadura. Com a ameaça, o jogador calou-se e, então, recebeu a convocação definitiva para jogar no escrete canarinho de 1970.

BAITA ENXAQUECA

Meses antes de Tostão e companhia pisarem em solo mexicano, o regime militar teve outra dor de cabeça, aliás, uma baita de uma enxaqueca, chamada João Saldanha. O jornalista, comentarista de futebol e ex-técnico do Botafogo foi convocado para assumir o posto de técnico da seleção. Nessa jogada que tinha tudo para ser genial, afinal o convidado era um dos nomes do futebol mais populares do país, os militares só esqueceram um detalhe: ele era comunista. De carteirinha, literalmente, com filiação ao PCB. Fora isso, que já seria o bastante para nem se cogitar que assumisse tal cargo estratégico, Saldanha era do tipo esquentado, não levava desaforos pra casa. O jornalista assumiu uma entidade desacreditada, na pósderrota no mundial de 1966, e montou um dream team. Em compensação, sem qualquer jogo de cintura ou paciência, irritava-se com a equipe técnica e a Comissão Brasileira de Desportos

2

(presidida por João Havelange, de 1956 a 1974), já infiltrada por militares. Também se desentendeu com a maior estrela do time, Pelé, a quem considerava, claro, um gênio, mas que engessaria todo o grupo em torno de seu jogo. Para completar, o novo técnico ainda usava as viagens da seleção ao exterior para levar recados

Tostão diz sentirse incomodado ao ouvir que a seleção de 1970 foi usada pela ditadura militar e que era o ópio do povo aos exilados e denunciar os crimes cometidos pelo regime militar. O motivo atribuído à sua saída foi o fato de não ter convocado Dario (Dadá Maravilha), desrespeitando o pedido do presidente Emílio Garrastazu Médici. Numa entrevista a uma rede de televisão, ironizou: “Eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, gremistas, gostamos de futebol, e nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time”. Após a saída, o ex-técnico escreveu uma carta, publicada em

março de 1970, na Placar, numa edição especial editada por Juca Kfouri, na qual relata tudo o que passou à frente da seleção e os desmandos da equipe técnica e da CBD. No entanto, dirige-se ao presidente de forma extremamente amigável. Talvez o João Sem Medo tenha considerado que passou dos limites com o general e achou prudente fazer uma política de boa vizinhança. O documentário João Saldanha (2010), de André Iki Siqueira e Beto Macedo, defende que o jornalista escapou ileso de uma retaliação mais violenta porque era uma personalidade bastante conhecida e querida pela população. Na própria reportagem da Placar sobre o imbróglio, uma pesquisa apontava que a maioria dos torcedores ainda queria Saldanha à frente da Canarinho. Mas era tarde. O ex-jogador da seleção Mário Zagallo já havia assumido o posto, que tempos depois seria ocupado por seu companheiro na comissão técnica montada pelos militares, Carlos Alberto Parreira. “Muitos jovens imaginam que, na concentração da seleção, havia um ambiente de terror, com cartilhas sobre o que os jogadores poderiam falar ou fazer. João Saldanha, homem corajoso, independente, não

CONTINENTE JUNHO 2014 | 26

Especial Futebol_JUN.indd 26

27/05/2014 15:25:07


3 Página 24 1 PELA ANISTIA

Torcida do Corinthians estende faixa

Nestas páginas 2 PROTESTO

Manifestação contra a realização da Copa no país

3 REALIDADE Título de revista expunha a ideologia da ditadura militar 4 JOÃO SALDANHA Técnico da seleção de 1969 ironizou pedido do general Médici

4

permitiria. Saldanha foi o técnico, desde as eliminatórias de 1969 até meses antes da Copa. O reacionário Zagallo entrou, mas não mudaram as regras”, lembra Tostão.

DEMOCRACIA CORINTHIANA

Se os jogadores não seguiam uma cartilha, por outro lado, um bom punhado deles sofreu retaliações diversas, algumas até drásticas, por tentar assumir uma postura contrária à dos dirigentes, como o ex-jogador do Centro Sportivo Alagoano Roberto

Mendes, que teve dois irmãos assassinados, e Fernando Antunes Coimbra, detido e torturado por cinco dias ao voltar de Portugal, onde buscou refúgio longe da ditadura no Brasil. Nando, além de estudante de Filosofia e jogador da base do Fluminense, tinha participado do Plano Nacional de Alfabetização de Paulo Freire e era primo de uma pessoa do MR-8. Passou, então, a ser boicotado em alguns clubes. Depois de se destacar no Ceará, em 1968, foi vendido ao Belenenses. Mas, barrado pela ditadura

de Salazar, regressou à terra natal, onde foi preso pelo Dops. Ele se viu obrigado a encerrar a carreira para não prejudicar os outros irmãos boleiros, Edu e Zico – este, por sua vez, se tornou um dos líderes do Sindicato de Atletas do Rio de Janeiro, criado no fim da década de 1979. Nesse ano, Sócrates, companheiro de campo de Zico nas duas Copas seguintes (1982 e 1986), seria o cabeça do movimento Democracia Corinthiana, que lutava por mais liberdade dentro do Timão. A chegada de Waldemar Pires à presidência do clube foi ápice da DC, abrindo espaço para tomadas de decisões através de votações abertas. “O clima criado ajudou na conquista dos títulos. O futebol é um esporte coletivo. Quanto mais força coletiva existir, quanto maior a amizade, a cumplicidade, o compromisso coletivo, maiores são as suas chances de vencer”, sentenciou Sócrates, no livro Democracia corintiana, cujo nome estampado no uniforme alvinegro foi uma ideia do publicitário Washington Olivetto, que pretendia tanto fazer a propaganda política como mostrar que o time estava aberto a patrocinadores. Posteriormente, o Corinthians foi “aconselhado” a não mais usar a mítica camiseta com os dizeres. Como uma extensão de sua postura no futebol, o meio-campista também foi um dos (poucos) atletas do país, como os colegas de time Casagrande e Wladimir, a participar ativamente da campanha das Diretas Já. Prometeu, inclusive, que, se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, ficaria no Brasil. Com a derrota, aceitou a proposta da Fiorentina e saiu do país para jogar na Itália, o que acabou esfacelando a Democracia Corinthiana. Após o veto da emenda, um estádio, mais uma vez, abrigou ato de apoio à redemocratização. Na final do Campeonato Brasileiro de 1984, entre Fluminense e Vasco, 128 mil torcedores lotaram as arquibancadas do Maracanã e fizeram coro pelas eleições diretas, durante a execução do Hino Nacional. Não dava mais para os militares fazerem vista grossa diante desse tipo de expressão maciça, coesa e anônima, com apenas uma identidade possível: povo.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 27

Especial Futebol_JUN.indd 27

27/05/2014 15:25:09


CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

5

OS REBELDES

Por sua atuação no cenário político do país, Sócrates foi um dos cinco craques escolhidos para constar no documentário Os rebeldes do futebol (Les rebelles du foot, 2012), produzido e apresentado pelo ex-jogador francês e encrenqueiro Eric Cantona. O filme conta como esses jogadores contribuíram politicamente para a história de seus países: Drogba conseguiu unir a Costa do Marfim em meio a um sangrento conflito civil; Pedrag Pasic montou uma escola de futebol para dar esperança a crianças em meio à massacrante guerra da Bósnia; o argelino Rached Meklhoufi formou um time que se tornou parte da Frente de Libertação Nacional da Argélia, e Carlos Caszely teve a família perseguida e sua mãe presa e torturada como retaliação porque o atacante se recusou a cumprimentar Pinochet, o general que usava o Estádio Nacional do Chile como ambiente para torturas (28 mil pessoas) e mortes de presos políticos (cerca de 3,5 mil chilenos). No Brasil, o Estádio Caio Martins, em Niterói, também abrigou a prática, com 38 vítimas (número da Comissão da Verdade). No final do filme, Cantona levanta o questionamento sobre se o futebol

A popularização do futebol no país teve apoio do governo e empresariado, com o intuito de aplacar levantes coletivos seria o ópio do povo. Para ele, o esporte pode ser uma arma de luta. Mas é inquestionável que a atividade vem sendo utilizada por políticos ao longo de sua trajetória. No ensaio Sobre algumas mensagens ideológicas do futebol, o sociólogo Luiz Felipe Baêta Neves afirma que há “possibilidades de apropriação ideológica” do esporte, demonstrando que ele pode transmitir mensagens ligadas tanto a uma “ideologia da permanência” quanto a uma “de transformação” e o define como “a mais importante manifestação de massas no Brasil de hoje”.

DISCIPLINADOR

O processo de massificação do futebol, nas primeiras décadas do século 20, teria sido resultado de uma intervenção direta do poder público e da classe patronal, que tinham interesse em aquietar as populações urbanas envolvidas em movimentos operários

e desordens sociais, principalmente em São Paulo. Segundo Joel Rufino dos Santos, em História política do futebol brasileiro, entre 1904 e 1917, as greves eclodiram reivindicando oito horas de trabalho, proteção às operárias, melhores condições de higiene nas fábricas. “A greve de 1917, que chegou a paralisar dezenas de milhares de operários, fez ver às autoridades e aos industriais que a cidade precisava de um esporte de massas”, afirma o professor, historiador e escritor brasileiro, que, exilado na Bolívia, passou a jogar futebol em La Paz para poder sobreviver. No artigo Construindo a nação; futebol nos anos 30 e 40, Plínio José Labriola acrescenta que o Estado Novo teria utilizado sistematicamente os eventos esportivos para difundir seus ideais nacionalistas de integração regional e racial, contando com o apoio de empresários e jornalistas, a exemplo de Mário Filho (1908-1966). A propósito, o pernambucano que dá nome ao Maracanã, pai da crônica esportiva, irmão de Nelson Rodrigues, é considerado o principal personagem da imprensa que contribuiu para transformar o futebol num espetáculo das massas. Esse antigo desejo dos governantes de integração nacional manteve-se durante a ditadura

CONTINENTE JUNHO 2014 | 28

Especial Futebol_JUN.indd 28

27/05/2014 15:25:10


5 DIRETAS JÁ Socrátes participou ativamente da campanha 6 CORINTHIANS Clube foi orientado a não mais usar o mítico uniforme 7 CASZELY Jogador sofreu retaliação por gesto contra Pinochet 8 DROGBA Com jogo, craque uniu a Costa do Marfim, que estava em guerra

6

7

militar, quando foi criado, em 1971, o Campeonato Brasileiro de Futebol. Já Leonardo Affonso de Miranda Pereira, no livro Footballmania, defende que, nos clubes suburbanos e operários, a modalidade teria sido um mecanismo de criação de redes de solidariedade e laços de identidade territorial, profissional e racial, um meio de ascensão social e um artifício para a legitimação de atividades de lazer submetidas ao controle policial, como o Carnaval e os clubes de dança. “Trazido da Europa, no final do século 19, por rapazes da alta sociedade que voltavam de temporadas no exterior e estrangeiros que residiam no país, o futebol foi, a princípio, um passatempo moderno e elegante das jovens elites urbanas. Mas, através de um processo complexo, que durou aproximadamente do início da década de 1910 ao final da década de 1930, ele sofreu uma série de transformações

que alteraram dramaticamente suas relações com a sociedade brasileira”, escreve Marcelino Rodrigues da Silva, no livro Mil e uma noites de futebol – o Brasil moderno de Mário Filho. O autor ainda acrescenta que “os grandes ídolos futebolísticos encarnaram aspirações coletivas, como a libertação da herança escravista, a ascensão econômica e o status social”. No documentário Canções do exílio: a labareda que lambeu tudo (2011), de Geneton Moraes Neto, o cantor Gilberto Gil recorda um fato que parece abrandar o inegável afastamento de boa parte da classe artística e intelectual da empolgação popular em torno do futebol e da seleção: “Não sabia se torcia pelo Brasil ou contra, pois torcendo a favor estava dando força à ditadura. Mas o coração, o amor pela terra foi mais forte e eu e um grupo de exilados torcemos, gritamos, vibramos pelo Brasil, que ganhou da

8

Inglaterra de 1 a 0. Onde eu morava, no Bairro Chelsea, tem o time de futebol e seu estádio. No outro dia, após a vitória do Brasil, as ruas amanheceram pichadas com a inscrição ‘Rivelino revelation’, numa alusão ao grande jogador brasileiro Rivelino, que eles, os londrinos, consideraram a grande revelação daquela Copa que foi nossa”. O sentimento paradoxal que sentira o cantor baiano durante a Copa de 1970, exilado em Londres, pode carregar consigo o cerne de duas frases distintas. Uma, de Nelson Rodrigues: “Graças à seleção, todo mundo virou brasileiro. Disse-me um conhecido: ‘É a única vez em que me sinto uma nação’. Enquanto durar a euforia do escrete, seremos um país ocupado por brasileiros”. Outra, do músico e ensaísta José Miguel Wisnik: “Viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele”.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 29

Especial Futebol_JUN.indd 29

27/05/2014 15:25:12


CON CAPA TI NEN TE

CATARSE Os “loucos” das arquibancadas TEXTO Sérgio Miguel Buarque

Maracanã, 16 de julho de 1950. Quase 200 mil pessoas em um silêncio lancinante, unidas pelo sentimento de dor após a inesperada derrota do Brasil por 2 x 1 para o Uruguai. A cena angustiante daquela final de Copa ficou gravada na memória coletiva dos brasileiros. Até quem ainda não tinha nascido sofre com a lembrança daquele fatídico domingo que, com a Copa do Mundo sendo novamente realizada no Brasil, volta a rondar o país feito um fantasma. O “maracanaço”, como ficou conhecida a tragédia de 1950, é o mais famoso caso de catarse coletiva futebolística da história. Mas não é o único. Ano após ano, das modernas arenas esportivas aos mais acanhados estádios das mais periféricas cidades do planeta, o rito se repete nas arquibancadas. A loucura, a paixão, a alegria extrema ou o sofrimento mais profundo seguem unindo torcedores de todo o mundo. Se essa explosão de sentimentos contraditórios e intensos é difícil de ser entendida por quem nunca foi a um estádio de futebol, é igualmente complicada de ser explicada também por quem já sentiu essas emoções na pele. Um caminho para o entendimento dessa força das arquibancadas pode estar no conceito aristotélico de catarse na

tragédia grega. Para Aristóteles, a catarse era uma manifestação eminentemente purgativa e purificadora, capaz de provocar no espectador a liberação de determinadas sensações e de fazer com que aflorassem nele sentimentos como compaixão, temor ou angústia. Seguiam-se depois o gozo, a calma e o relaxamento obtidos pelo escoamento do excesso de emoções. De maneira geral, são essas alternâncias de estados emotivos opostos que combinam tensão e alívio, sofrimento e prazer, terror e comiseração que alimentam o espírito do torcedor de futebol. Isso só é possível porque, como na tragédia grega, o espetáculo esportivo é uma imitação (a mimesis aristotélica) de ações e situações da vida real, com início, meio e fim. Em outras palavras, como o antigo cidadão grego, o torcedor vai ao estádio para extravasar as agruras do dia a dia. Bernardo Borges Buarque de Hollanda, doutor em História Social da Cultura e pós-doutor pela Maison des Sciences de l’Homme (MSHParis), tenta compreender como se deu a passagem do elemento catártico, originado, segundo ele, nos domínios do teatro, para o universo esportivo na vida contemporânea. No artigo Futebol, arte e política: a catarse e seus efeitos na representação do torcedor,

publicado na revista Organizações & Sociedade, em 2009, Hollanda constata que essa migração começou a acontecer “nos séculos 18 e 19, quando o teatro passava a ser uma arte de espetáculo, um habitus aristocrático e burguês – vinculado, portanto, às regras de etiqueta e à contenção de emoções”. A partir de então, quando a luz do teatro é apagada, a única interação entre atores e público só se dá no aplauso final, quando a cortina é fechada e as luzes são novamente acesas. É também no fim do século 19 e início do século 20 que o futebol é instituído, regulamentado e incorporado na vida das pessoas, transformando-se em grande evento de massa. Naturalmente, ocorre uma transferência dos elementos catárticos das plateias dos teatros para as arquibancadas dos estádios de futebol. A catarse coletiva das arquibancadas nasce da soma de sentimentos de cada um dos torcedores. Uma força capaz de transformar um centrado e

CONTINENTE JUNHO 2014 | 30

Especial Futebol_JUN.indd 30

27/05/2014 15:25:15


GABRIEL UCHIDA

tranquilo cidadão num “louco” por seu clube. Quem poderia imaginar um padre, por exemplo, tendo que tomar relaxante muscular e remédio para a garganta depois de torcer pelo seu time? Mas assim é Gimesson Eduardo da Silva, o “Padre Tricolor”, como é conhecido pelos fiéis (da sua antiga paróquia e das arquibancadas do Arruda). Atualmente, ele mora em Roma, onde foi estudar e é regularmente visto com a camisa do Santa Cruz. De lá, continua torcendo pelo Santinha ao acompanhar os jogos pela internet. Mas sente saudade de quando “sofria” nas arquibancadas do Arruda. “Fico muito tenso nos jogos. Acompanho atentamente. Detesto quando o time não joga bem e fico chateado quando perde. O meu excesso é a ansiedade pela vitória. Fico com o coração apertado, quando o jogo é difícil e decisivo. Faço comentários, critico e fico irritado.”

O “maracanaço”, como ficou conhecida a final de 1950, é o mais famoso caso de catarse coletiva futebolística SIMBOLISMO

O escritor rubro-negro Raimundo Carrero, autor de livros consagrados pela crítica e de “loucuras” épicas nas arquibancadas da Ilha do Retiro, também é do time dos que veem confluências entre o futebol e a filosofia aristotélica. “O futebol reúne elementos como o mito, a beleza e a liberdade. Há um simbolismo importante na entrega e no amor ao clube.” Carrero observa no comportamento dos torcedores em relação aos seus clubes uma busca pela felicidade através da liberdade. Para ele,

“é na arquibancada que a ironia ocupa o lugar da tragédia na vida moderna”. Nessa exacerbação de emoções, que é torcer por um time de futebol, às vezes, os limites são ultrapassados. É como se dentro de cada torcedor, até mesmo do mais pacato deles, existisse uma fera reprimida. Nas arquibancadas, todos são “loucos” em potencial. Talvez por isso existia o sentimento de compreensão, cumplicidade e mesmo de admiração dos demais torcedores para com aqueles que vão além do limite em sua demonstração de paixão pelo clube. Sendo assim, pelo menos uma vez, Raimundo Carrero libertou, literalmente, sua fera interior. O fato ocorreu depois que o juiz apitou o fim do jogo em que o Sport ganhou um título estadual. Carrero invadiu o campo para comemorar a conquista. Ele mesmo contou o episódio: “Ao entrar no gramado, fui direto para o lugar onde o jogador do Sport tinha feito o gol do

CONTINENTE JUNHO 2014 | 31

Especial Futebol_JUN.indd 31

27/05/2014 15:25:16


CON CAPA TI NEN TE

JARBAS JR

DIVULGAÇÃO

9

para o hospital, passou por cirurgia e imobilizou o pé. Antes de tirar o gesso, já estava novamente, de muletas, nas arquibancadas dos Aflitos.

VIOLÊNCIA

10

título. Me abaixei e comi a grama. Ainda levei para casa para fazer um chá. Foi para satisfazer meu instinto animal”. A loucura por um time de futebol também pode ser expressa por um ato de resistência. Assim foi com o empresário alvirrubro Ygor Valença. Numa partida válida pela Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro de 2001, o Náutico fez o primeiro gol contra o Vila Nova (GO), ainda no primeiro tempo. Na comemoração, Ygor caiu e rompeu os ligamentos do tornozelo. Enquanto a articulação inchava e os colegas tentavam socorrê-

lo no estádio, o jogo corria. Quando finalmente chegou até a ambulância, que se posicionava atrás do gol do Vila Nova, a partida já estava 3 x 2 para o Náutico. A ambulância se preparava para deixar o campo, quando o árbitro marcou um pênalti. Ygor não teve dúvida. Pediu para o motorista alinhar o veículo e esperar a cobrança. “Tinha esperado até ali, poderia esperar mais um pouco”, lembra. O sofrimento “valeu a pena”. O Náutico converteu a cobrança do pênalti e venceu por 4 x 2. Ygor foi direto

Raimundo Carrero e Ygor Valença, apesar de defenderem cores diferentes, têm algo em comum, além da paixão por seus clubes. Os dois confessam que já pularam o alambrado para bater no árbitro. Claro, acabaram detidos pela polícia. Explicação para dois pacatos cidadãos fazerem uma coisa dessas? Ygor acha que a testosterona sobe. “Depois o cara pergunta: por que fiz isso?” Eduardo Araripe, que faz parte do grupo Antropologia, Esportes e Sociabilidade do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro Paixão perigosa – uma etnografia das torcidas organizadas no Recife/PE, vem observando, pesquisando e tentando entender o comportamento dos torcedores há cerca de 10 anos, quando começou a trabalhar com planejamento em estratégia de futebol. Além de ser formado em História, com mestrado e doutorado em Antropologia Social, Eduardo faz parte do Corpo de Bombeiros há 16 anos. O interesse pelo tema começou justamente no trabalho que ele fazia

CONTINENTE JUNHO 2014 | 32

Especial Futebol_JUN.indd 32

27/05/2014 15:25:18


REPRODUÇÃO

9 RAIMUNDO CARRERO Para comemorar a conquista de um título, o escritor comeu grama da Ilha do Retiro 10 PADRE TRICOLOR O sacerdote Gimesson da Silva era figura frequente nas arquibancadas do Arruda 11 NO MARACANÃ Menino expressa ansiedade na final da Copa de 1950

nos estádios durantes os jogos, quando tinha oportunidade de ver de perto o comportamento dos torcedores. Para ele, o futebol é uma metáfora da vida social. “As mesmas dimensões sociais que passam pelas ruas estão congregadas na figura das torcidas, presentes nos estádios.” Como nas ruas, as arquibancadas são espaços para se reverenciar ídolos, protestar, colocar-se contra a ordem instituída ou simplesmente festejar. “O futebol nos dá oportunidade de entender melhor a sociedade. Quer entender um lugar? Vá ao seu estádio”, recomenda. Eduardo tem observado que o torcedor quer se destacar da massa de anônimos e vem assumindo o protagonismo cada vez maior. “O torcedor é protagonista porque ele sente que pode interferir no resultado da partida. A mídia já percebeu e explora isso.” Segundo ele tem observado, cada vez mais as câmaras de televisão estão voltadas para as arquibancadas. Essa passagem de “coadjuvante para protagonista”, claro, gera mudanças no comportamento nas arquibancadas. Os cartazes com inscrições do tipo “filma eu” são um bom exemplo. Outro efeito disso é a multiplicação de “torcedores símbolos”, como os “Zé do Rádio”, “Mister N” ou “Super-Santa”. “Eles se tornaram pontos de aglutinação nos estádios. No entorno deles, sempre se forma um grupo. Porque as câmeras irão focalizá-lo”, explica Eduardo. Dentro dessa lógica, “sofrer muito” pelo time do coração também passa a ser uma forma de distinção. Quanto maior o sofrimento, a loucura, mais as pessoas irão dizer: “Este, sim, é um torcedor de verdade”. E sempre terá a chance de uma câmara de TV captar uma lágrima escorrendo e espalhar a imagem pelo mundo.

Sofrer muito pelo time passa a ser uma forma de distinção para o torcedor, alguns deles ganham até apelidos referentes a isso Mas, se os estádios de futebol funcionam como espaço público, sendo um complemento das ruas e praças, eles também têm o seu lado privado e são percebidos pela torcida como uma extensão das suas próprias casas. Não por acaso, são comuns frases do tipo “hoje, jogamos em casa” ou “na nossa casa, mandamos nós”. Para

11

Eduardo Araripe, isso gera uma relação de intimidade. É nesse momento que você abraça um desconhecido na hora do gol, por exemplo. Eduardo constatou que o fato de o torcedor assistir ao jogo “em casa” ou como visitante interfere, de maneira geral, até na forma de se vestir. “Em casa, constatei muito mais pessoas de chinelos ou sem camisa. O que não acontece na casa do adversário, onde, por exemplo, os tênis predominam e existe bem menos gente sem camisa.” Dessa forma, o torcedor de futebol segue se equilibrando na corda bamba das contradições entre o público e o privado, a segregação e a aproximação, a alegria e a tristeza, a vitória e a derrota. Mas a vida também não é assim?

CONTINENTE JUNHO 2014 | 33

Especial Futebol_JUN.indd 33

28/05/2014 10:52:50


CON CAPA TI NEN TE

UNIFORME A evolução da camisa do Brasil Para uns, é como se fosse

uma segunda pele. Para outros, um manto sagrado. Dentro do universo de simbolismos, ritos e mitos que envolvem o futebol, o uniforme com que os times entram em campo ganha um lugar de destaque no imaginário dos torcedores. Ao longo do tempo, transformouse em peça reverenciada, desejada e adorada. Além disso, e principalmente por conta disso, as camisas usadas pelos atletas passaram a ter também um significado econômico. Espaço que foi ocupado pelo marketing esportivo e que virou uma fonte de receita para as equipes. Mais do que a preocupação estética ou simbólica, tão importante para os torcedores, o vestuário adequado à prática esportiva deve estar de acordo com as necessidades fisiológicas, ergonômicas e antropométricas (proporcionais às medidas do corpo) do atleta. Por estar em contato direto com a pele, esse tipo de vestuário ocupa um papel importante no bem-estar do esportista. Diante disso, a evolução dos uniformes pode ser observada por dois caminhos distintos, mas complementares. O primeiro é o aspecto tecnológico, com a evolução dos materiais

usados e a preocupação com a performance e conforto dos atletas. O outro, é estético. Acompanha a moda e os costumes de cada época. Recebe influência e também influencia as maneiras de vestir dos jovens de cada geração. Desde 1860, quando os jovens britânicos vestiam uma calça usada para dentro de um meião, camisa de botão e um terninho esportivo, até as modernas camisas da Nike, com tecnologia dry fit, sistemas de ventilação e dispersão de calor, muita coisa mudou. A partir dos jogos nos colégios da Inglaterra, começou o processo de aperfeiçoamento das vestimentas dos atletas. A primeira grande mudança ocorreu nas primeiras décadas do século 20, quando o tecido plano da camisa com botões foi substituído pela malha 100% algodão com gola e cordinha. Em 27 de julho de 1914, é formada a primeira seleção brasileira de futebol. Há 100 anos, os pioneiros daquela que viria a se tornar a maior campeã da história do futebol não vestiam a famosa dobradinha verde-amarela da seleção canarinho, mas a camisa branca e o calção azul, hoje descartados. SÉRGIO MIGUEL BUARQUE

1914

Há 100 anos, a primeira seleção brasileira de futebol vestia camisa branca de algodão com listra azul nos cotovelos e calção branco. Usava meias pretas com listras brancas.

1970

A camisa que conquistou o tricampeonato mundial no México e entrou para a história por vestir um dos melhores times de todos os tempos abandonou a gola polo e passou a adotar a gola canoa.

1994

Patrocínio da Umbro. As mudanças foram muitas. O amarelo ganhou tom claro e brilhoso. Foram aplicados três escudos em relevo. O escudo no peito voltou a ser o tradicional, só que com o nome da CBF.

1930

Na primeira Copa do Mundo o tecido permanece 100% algodão. A camisa branca fica mais simples, mas a gola segue com cordas. Há uma tendência de valorizar as formas do corpo com camisas mais justas.

1974

Mantida a camisa vitoriosa de 1970. A mudança, para a alegria dos brasileiros, foi a incorporação de três estrelas sobre o escudo, representando o tricampeonato mundial e a conquista da Taça Jules Rimet.

1998

Começa a era Nike, que inaugura o período de gastos milionários para equipar a seleção. A camisa ganhou mais uma estrela sobre o escudo. Destaque para o sistema dry fit da marca, que absorve e elimina o suor mais rápido.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 34

Especial Futebol_JUN.indd 34

27/05/2014 15:25:22


JANIO SANTOS

1938

A cor branca continuou sendo usada, mas as cordas foram abandonadas e a gola passou a ser em V. O escudo da então Confederação Brasileira de Desportos (CBD) ficou maior.

1978

A Adidas passou a fornecer o material da seleção e a camisa ganhou nos ombros as três listras características da marca. Era o início da efetivação do marketing esportivo no uniforme brasileiro.

2002

A gola passou a ser amarela. Em compensação, o verde ganhou espaço nas laterais da camisa, acima do escudo e nos ombros. Passam a serem usados tecidos com uma menor área de contato com a pele.

1950

O uniforme seguiu muito parecido com o da Copa de 1938, mantendo a cor branca. A maior diferença estava no uso de material mais leve e nas golas polo azul.

1982

Mudou o fornecedor, mudou a camisa. Sumiram as três faixas no ombro. Com a mudança da CBD para a atual CBF, o escudo sofreu alterações. Entrou o nome da nova entidade e a Taça Jules Rimet foi incorporada.

2006

Possui a tecnologia cool motion, baseada no conceito de duas camadas. A camisa e o calção apresentam dois tecidos, um que fica em contato com a pele e tem a tecnologia dry fit, e um externo, impermeável e com elasticidade.

1954

Mudança radical. Depois da derrota da Copa de 1950, a camisa branca foi aposentada. Os jogadores passaram a vestir a camisa amarela. As golas passaram do azul para o verde. O escudo da CBD ficou menor.

1986

Derrota dentro de campo, vitória do marketing esportivo. Pela primeira vez, a marca da fornecedora de material foi liberada pela Fifa para aparecer na camisa. A gola voltou a ser polo.

2010

A Seleção usou camisas confeccionadas a partir da reciclagem de garrafas PET, aliando tecnologia e sustentabilidade. Dentro da gola, lê-se: “Nascido para jogar futebol”.

1958/62/66

A camisa de 1954 é mantida para as três copas seguintes. É feita uma versão azul para o confronto contra a Suécia, em 1958, que também jogava de amarelo. Foi aposentada após a derrota no mundial de 1966, na Inglaterra.

1990

Assim como a seleção brasileira mostrou pouco futebol, a camisa também teve pouca mudanças. Só uns pequenos detalhes na gola.

2014

O novo uniforme tem uma mudança na gola, que agora é lisa e tem uma faixa verde em forma de V, além da faixa verde mais fina dos braços. A camisa é 17% mais leve que o anterior e segue com a tecnologia dry fit.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 35

Especial Futebol_JUN.indd 35

27/05/2014 15:25:23


CON CAPA TI NEN TE

JORGE SILVA/REUTERS

HINOS Com o coração inflado da pátria amada TEXTO Marcelo Abreu

Quando a bola rolar na Copa do Mundo, os estádios brasileiros vão abrigar, pela primeira vez em grande escala, a presença de torcidas dos cinco continentes. Apesar de não se esperar a chegada de um grande contingente de estrangeiros, pelo menos os norteamericanos, argentinos, alemães, franceses e japoneses devem vir em número suficiente para fazer barulho e colocar em jogo uma coisa fundamental no clima de uma partida de futebol: os hinos, as canções e os gritos de incentivo das torcidas. Tradicionalmente, nas disputas entre clubes de futebol, os hinos das equipes têm, pelo menos no Brasil, um uso quase restrito às transmissões de TV, quando há comemorações por títulos, e raramente são cantados nas arquibancadas. Mesmo assim, cada clube tem, normalmente, várias canções consideradas hinos extraoficiais, muitas vezes mais conhecidas do que as versões oficiais. Existe um vasto folclore a respeito das músicas que foram adotadas ao longo do século 20 pelos times brasileiros. É conhecida a proeza realizada no final dos anos 1940 pelo compositor carioca Lamartine Babo, quando ele recebeu a encomenda de compor hinos para as 11 equipes que disputavam o campeonato estadual do Rio de Janeiro. Babo compôs a homenagem ao seu time de coração, o América – na época uma equipe forte –, e fez também os hinos dos outros clubes, adversários, de forma igualmente inspirada. Botafogo, Fluminense, Flamengo, Vasco, Bangu, Madureira, Olaria, Bonsucesso, Canto do Rio e São Cristóvão, todos ganharam marchinhas

que foram consideradas, a partir de então, hinos extraoficiais, ou populares, já que os oficiais existiam desde a década de 1910. No Rio Grande do Sul, o Grêmio também teve seu hino composto por um nome ilustre da música brasileira, Lupicínio Rodrigues, que fez a música em 1953. No futebol de clubes na Europa, as canções são bem mais utilizadas. O badalado Barcelona encerra as partidas de forma imponente, com a execução do seu Canto del Barça após cada jogo, no Camp Nou, com a torcida cantando de pé. Os torcedores do inglês Manchester City cantam uma versão romântica de Blue moon (referência à cor de seu uniforme), clássico do cancioneiro norte-americano composto por Richard Rodgers e Lorenz Hart, em 1934, e gravado por mais de 60 artistas até hoje. Virou moda também se utilizar pequenos trechos de músicas pop para homenagear equipes de futebol. A torcida do Arsenal, de Londres, utiliza o refrão de Hey Jude, dos Beatles, para homenagear o atacante francês Olivier Giroud, que joga no time. A torcida do Stoke City canta Delilah, grande sucesso na voz de Tom Jones. O maior fenômeno recente, porém, tem sido a música Seven nation army, da banda de rock norte-americana White Stripes, que vem sendo usada por várias torcidas para animar as arquibancadas. Adotada inicialmente por um grupo de torcedores do pequeno time do Brugge, da Bélgica, que a ouviram, por acaso, em um bar, na véspera de um jogo da Liga dos Campeões, foi depois utilizada pelos torcedores da Roma e se espalhou por vários clubes e competições internacionais.

Os torcedores vão além dos hinos, entoam gritos de guerra específicos e parodiam canções polulares A música do White Stripes foi adotada numa época em que o ritual nos grandes eventos do futebol internacional começa a se aproximar da coreografia das partidas do basquete norteamericano, em que não há um segundo de silêncio – mesmo os intervalos são preenchidos com atrações musicais, números de danças, ou brincadeiras de um apresentador supostamente engraçado. Com as modernas arenas de futebol caminhando na mesma direção, a música dos Stripes, com seu riff pegajoso, calhou bem e já rivaliza com We are the champions, do Queen – essa já um clichê sempre usado nas comemorações de títulos.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 36

Especial Futebol_JUN.indd 36

27/05/2014 15:25:24


minissinfonia, cheia de variações de tempo e de clima. O espanhol, intitulado Marcha real, é saltitante e animado. O de Honduras é um dos mais longos, desproporcional ao tamanho do país e à sua importância no futebol. No caso do Brasil, o Hino nacional foi se tornando, nos últimos anos, cada vez mais importante, com jogadores compenetrados, de olhos fechados, cantado a todo pulmão junto com a torcida. A execução deixa parte da plateia frustrada, porque metade da letra de Joaquim Osório Duque Estrada é cortada por questão de tempo. Mesmo assim, a melodia de Francisco Manuel da Silva é inspiradora e importante para criar o clima da partida.

GRITOS DE INCENTIVO

Na Argentina, as torcidas conhecidas como barra bravas (que também têm seus problemas com a polícia) levam charangas e tambores aos estádios e cantam incansavelmente durante toda a partida. Há uma década, começaram a influenciar o comportamento de torcidas do sul do Brasil.

PATRIOTISMO

Durante a realização da Copa do Mundo, os hinos nacionais ganham destaque, apesar do uso ser restrito à cerimônia de abertura de cada jogo. Mesmo os mais tradicionais e populares, como o francês A marselhesa, raramente são cantados durante ou depois da disputa. Entretanto, a prática de apresentar os hinos com os jogadores perfilados antes das partidas é parte indissociável do glamour e da paixão que o futebol adquiriu nas últimas décadas no mundo inteiro. É o momento máximo da ritualização do confronto esportivo, uma espécie de canto da guerra iminente que se resumirá, espera-se, às disputas com a bola. Esses hinos são geralmente produtos da instituição dos estados

nacionais a partir do século 18. Para os padrões atuais, são considerados rebuscados, cheios de arcaísmos e referências ao sacrifício pela pátria, noções agora bastante distantes das ideologias dominantes no mundo do capital globalizado. Mas, diante de uma disputa internacional do mais universal dos esportes, servem para animar as torcidas, inflar o peito dos jogadores, criar esperanças que muitas vezes evaporam no primeiro ataque do time mais forte. Cada hino remete a imagens que se tem do país e extrapolam o âmbito futebolístico. O norte-americano The star-spangled banner (A bandeira estrelada) lembra as patriotadas de George W. Bush. O britânico God save the queen (Deus salve a rainha) é imperial e diz tudo em 51 segundos. O da Holanda, o melodioso Het Wilhelmus (O Guilherme), de 1568, é o mais antigo, ainda em uso, do mundo. O dramático japonês Kimi ga yo (Reino Imperial) tem apenas seis estrofes curtas e dura 53 segundos. O passional uruguaio vai a mais de cinco minutos (se a Fifa não o podasse por razões de tempo) e mais parece uma

Nos jogos entre seleções, as canções se misturam também aos tradicionais gritos de incentivo. Os franceses entoam uma ladainha que repete incessantemente: Aller les bleus!(Vamos, azuis!). Os alemães, quando querem botar o time para frente, gritam em uníssono: Sieg! (Vitória!). Nas pessoas que conhecem o período da Segunda Guerra Mundial, o grito pode causar um certo desconforto, porque se aproxima da saudação Sieg heil! (Salve, vitória!), entoada nos desfiles nazistas. A pequena Costa Rica aposta no simpático Si, se puede (Sim, é possível), inventado anos antes do Yes, we can da campanha de Barack Obama. É paradoxal, mas o Brasil, tão conhecido pela sua musicalidade, não leva aos estádios a riqueza musical presente no país. Até as tradicionais charangas perderam importância. A despeito da força do time em campo, o barulho da torcida brasileira raramente domina as arquibancadas na hora de incentivar a equipe durante as Copas do Mundo. Jogando em casa desta vez, espera-se que seja diferente, apesar da pobreza de canções de incentivo. O estímulo da torcida brasileira resumese ao pouco inspirado “Ô, lê-lê ô, lê-lê ô, lê-lê ô, Brasil!”, ou ao “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, ambos pobres em melodia e desprovidos até de uma rima. Seria bonito se, ao lado do bom futebol, o Brasil chegasse ao hexa com boas canções ou, pelo menos, com algum grito de incentivo mais inspirado.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 37

Especial Futebol_JUN.indd 37

27/05/2014 15:25:25


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: LEO CALDAS

Crônica

PARTIDA 1 CHÃ GRANDE X YPIRANGA O nome oficial é Estádio Severino Cândido Carneiro. Mas, como quase todo estádio do Brasil, foi rebatizado com um aumentativo. A população de Vitória de Santo Antão, município da Zona da Mata pernambucana, o chama de “Carneirão”. Os exemplos se espalham Brasil afora. Estádio Plácido Castelo, o “Castelão”, em Fortaleza. Estádio Maria Lamas Farache, o “Frasqueirão”, em Natal. Estádio Jornalista Edgar Augusto Proença, “Mangueirão”, em Belém. Com o fenômeno das “arenas”, é bem provável que fiquem nomes compostos, que excluem os excessos. “Arena Pernambuco”. “Arena das Dunas”. “Arena Corinthians”. À beira da Copa, nem uma brisa distante parece indicar que ali há resquício da Copa do Mundo. Num sábado, 15 de março, os times Chã Grande e Ypiranga se encontram para a antepenúltima rodada do temido “hexagonal da morte”. Dos seis times do interior do estado que ainda disputam o Campeonato Pernambucano de 2014, já sem chance de título, dois serão rebaixados para a segunda divisão. Um pneu velho, em uma poça de lama, é apenas o primeiro sinal de que algo não vai bem por ali. O ingresso para o jogo custa R$ 10,00 (sem meia-entrada) e, nessa tarde quente, o público oficial foi de 120 pessoas. Com o Programa Todos com a Nota, do governo do estado, os clubes receberão o equivalente a cinco mil ingressos, que podem ser retirados gratuitamente por torcedores cadastrados. Para os cofres dos clubes, é como se as arquibancadas estivessem parcialmente ocupadas por torcedores que estão em casa. A sensação é de vazio. O pequeno estádio se torna imenso. É possível escutar cada grito no juiz e até as instruções dos treinadores aos jogadores. No apertado vestiário do Chã Grande, time do Agreste do estado, CONTINENTE JUNHO 2014 | 38

Especial Futebol_JUN.indd 38

27/05/2014 15:25:25


o único luxo é o chão com carpete verde. Os 21 jogadores e a comissão técnica vivem os momentos tensos que antecipam a partida decisiva. O maior salário fica em torno de R$ 5 mil. O mais baixo é o do roupeiro, Luciano Monteiro, que também é massagista e “faz tudo” – R$ 700. O time está na quarta colocação, com sete pontos, à beira da zona de rebaixamento. Na semana seguinte, teria que enfrentar o Pesqueira, que seguia firme na liderança da tabela. “Se ganharmos, poderemos chegar à liderança. Uma derrota e voltamos à zona de rebaixamento”, diz o compenetrado treinador e exjogador Edson Miolo, 42 anos, que teve seus dias de glória jogando pelo Corinthians, além de temporadas no futebol francês e polonês. O forte cheiro de amônia e suor se mistura à tensão. Todo o incentivo psicológico é atravessado pelo mote religioso. Nas paredes, cartazes pregados de improviso com frases do tipo “Jesus Cristo. Nesse nome há poder”, “O homem é do tamanho do seu sonho”, “Não há glória sem sacrifício”. A música que toca no pequeno aparelho de som é evangélica. Tudo é simples e pouco. Cinco chuveiros (um com água quente), dois vasos sanitários. Não há armários com nome e número. Os celulares são carregados em tomadas espalhadas. O roupeiro preparou água com malte, o energético disponível. “É um Tang grande”, diz Luciano. Luxo é um substantivo distante. Nada aqui é supérfluo. Um jogo de dois times do interior do estado à beira do rebaixamento tem apenas o básico. E os jogadores parecem não se importar com o que falta. Pensam apenas nos 90 minutos que os esperam. Na preleção, Edson Miolo fez um discurso motivador, mexendo com o brio dos atletas. Um dos diretores chegou pouco depois, com algo ainda mais motivador. Informou que tinha acabado de conseguir um “bicho” de R$ 20 mil, em caso de vitória. A poucos metros dali, nos vestiários do Ypiranga, os jogadores já estão quase prontos para entrar em campo. A música evangélica está no ar. Eles fazem um círculo, para a tradicional

oração. Um deles pede que fiquem de joelhos. Todos obedecem. “É entrar ligado! A gente tem que entrar ligado na porra desse jogo. Só faltam três jogos!”, diz um deles. Aos gritos, começam a rezar o PaiNosso. Em seguida, a Ave-Maria. No túnel, o novo abraço e mais gritos. “Ganhar! Ganhar! Um, dois, três. Ypiranga!” “É entrar ligado! Ligado!” “É hoje! É hoje!” “Vamos lá, pessoal!” ** O Chã Grande esteve à frente do placar duas vezes, mas cedeu o empate. O placar final foi 2 x 2, com quatro gols de cabeça. Resultado ruim para o Ypiranga, que ficou com 11 pontos e à beira da zona de rebaixamento, e péssimo para o Chã Grande, que estacionou nos oito pontos e desceu para a quinta colocação. De volta aos vestiários, os jogadores do Chã Grande pareciam abandonados. A vitória, mais do que merecida, escapou aos 20 minutos do segundo tempo. O empate praticamente sacramentava o rebaixamento. Os mesmos atletas que duas horas antes exalavam confiança, fé, vontade absoluta de ganhar, estavam perplexos. No vestiário, cerca de 25 homens, entre jogadores e comissão técnica, faziam pequenos gestos taciturnos, como se tivessem escutado, pelo rádio, a notícia de uma tragédia familiar.

Pretendia conversar com Neror, lateral direito do time, que era boliviano. Vi seu rosto negro, banhado de suor, mas ele estava sentado, apenas de cueca, exausto e sem esperança. Se aquela condição em que estavam era ruim, até comovente, certamente passava pela cabeça deles a disputa da Série B do Campeonato Pernambucano de 2015. Era como desaparecer do cenário futebolístico. Pouco depois, chegou o treinador, Edson Miolo. “Edson, o time jogou bem...”, disse eu, na tentativa de fazer um arremate da entrevista, mas ele sequer me olhou. Estava possuído por alguma raiva que vinha das entranhas. Chamou os dois auxiliares com um gesto e seguiram para uma salinha contígua. Voltei a olhar para os atletas. As orações, rezadas com tanto fervor, pareciam não ter sido ouvidas. Eles se desfaziam lentamente do papel de jogadores de futebol de uma equipe quase rebaixada do Campeonato Pernambucano e se tornavam apenas homens, entre 21 e 39 anos, abraçados pela derrota. O silêncio absoluto não deixava margem para análises ou suposições. Precisavam apenas tomar banho, trocar de roupa e pegar o ônibus de volta. Olhei para Leo Caldas, o fotógrafo. “Aqui acabou”, disse. Concordei e saímos, perseguidos pelo silêncio dos jogadores do Chã Grande, que seria oficialmente rebaixado na rodada seguinte. SAMARONE LIMA

CONTINENTE JUNHO 2014 | 39

Especial Futebol_JUN.indd 39

27/05/2014 15:25:27


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: JARBAS JR

Crônica

PARTIDA 2 CENTRAL X SANTA CRUZ Estádio Luiz Lacerda, o “Lacerdão”, no centro de Caruaru, agreste pernambucano. O jogo Central x Santa Cruz era decisivo para o time de Caruaru. Caso ganhasse do Santa Cruz, e dependendo da combinação de resultados, chegaria à semifinal do Campeonato Estadual. Estava na quinta posição do “hexagonal do título”, o lado oposto do “hexagonal da morte”, em que a única glória futebolística era não cair para a Série B. Fazem parte Santa Cruz, Sport, Náutico, Central, Salgueiro e Porto. O domingo, portanto, prometia. O estádio, bem-cuidado, tem capacidade para 20 mil pessoas e não sofre com o problema de “mobilidade urbana”. Fica exatamente no centro da cidade. Às 14h, o assessor de imprensa,

Antônio Arruda, bancário da Caixa Econômica Federal e comentarista da Rádio Cultura, já está em campo. “Aqui é amor ao clube mesmo”, diz. Ao lado, o locutor da 98 FM entra ao vivo. “Boa-tarde, minha amiga Valéria. É grande a expectativa para a chegada do ônibus do Central para esse jogo decisivo. Um jogo de vida ou morte para a Patativa chegar às semifinais do Campeonato Pernambucano de 2014. Só a vitória interessa. A Confraria Alvinegra já confirmou uma ajuda de 10 mil reais para o Porto, para ele conseguir um pontinho contra o Salgueiro e ajudar o Central a se classificar.” O locutor, Adalberto Alves, prosseguia. “A estimativa é de um público entre oito e 12 mil pessoas. Foram colocados 12 mil ingressos à venda, sendo sete mil e quinhentos do Programa Todos com a Nota.” O time chegou num ônibus, acompanhado de uma caravana de torcedores, com direito à queima de fogos e buzinaço. “Olha o Central, Reginaldo! É muita emoção”, diz o locutor da Rádio Cultura. Os jogadores descem do ônibus

seguindo o “padrão-internacional-dejogador-descendo-do-ônibus”. Quase todos com enormes fones de ouvido coloridos, com ares pouco simpáticos. Descem e vão cumprimentando um homem que tem um olhar angustiado e está emocionado. É César Veloso, vice-presidente de honra do Central, que teve um acidente vascular cerebral (AVC) 15 dias antes. “Ele estava internado no Recife e veio hoje para o jogo”, explica o locutor. Pouco depois, começam a chegar as “centraletes”, animadoras da torcida do Central. Todas vinham de motocicleta, já com a camisa preta e branca do time. Alexisandra Santos, de 26 anos, a “Alexi”, é a primeira. Atendente de laboratório durante o dia e estudante de Serviço Social na Faculdade Maurício de Nassau, vem a todo jogo. Chega na sua “Cinquentinha”, uma Honda metálica. Fica ao lado das amigas, durante toda a partida, tentando animar a torcida, disfarçando as cantadas que saem das arquibancadas e cadeiras – algumas pouco elegantes. Aline Maciel, de 20 anos, estudante de Engenharia Civil na UFPE, diz

CONTINENTE JUNHO 2014 | 40

Especial Futebol_JUN.indd 40

27/05/2014 15:25:28


“Aqui é a entrada do Central ou do Santa?” “A gente está dizendo que é a do Central, mas a turma do Santa está entrando, tudo bem”, responde o PM. No calor de rachar, o vendedor de bandeiras, pulseiras, bonés, chapéus e toucas, Adauto Norato, de 31 anos, torcedor do Santa Cruz, espera fazer a festa.“Quero vender umas 50 peças”, diz, com um arsenal de material com as cores do Central. Mora em São Lourenço da Mata, mas fica de olho nas tabelas dos campeonatos para organizar sua empresa ambulante. Já vendeu nos estádios do Ceará, Bahia e Alagoas. “No jogo do CSA contra o São Paulo, em Maceió, levei tudo do São Paulo. Vendi mais de 100 peças”, conta, animado. No final do primeiro tempo, Adauto me encontra. Já tinha vendido 25 bandeiras, 20 bonés e 11 toucas da equipe local.

CLIMA DE VELÓRIO

que há dois meses participa dessa “torcida feminina”. São convidadas pelo clube e recebem por isso.

PADRÃO NACIONAL

O vestiário do Central segue uma espécie de padrão nacional. Música evangélica em alto volume (com telão mostrando clipe dos cantores), altar num dos cantos, em uma parte alta, com velas acesas, carpete verde. O roupeiro, Joselito Francisco da Silva, de 45 anos, cinco anos de Central, diz que o clima é muito bom. “Vamos chegar à classificação.” Tem material para 30 atletas, mas hoje só serão 20. Num mural, os dados de um dos jogos: Central 0 x 2 Sport. Número de faltas cometidas por cada jogador, bolas perdidas, roubadas etc. O treinador, Humberto Santos, calmo e comedido, passa confiança aos atletas. Lembra Edson Miolo, só que menos tenso. “Tivemos dois jogos que eram decisões e ganhamos. Agora, vamos para a terceira. Hoje, só depende da gente.” Falta uma hora para o jogo começar. O cheiro de cânfora se espalha. Como se trata de um clube intermediário do interior, o Central paga melhor. O

jogador Tallys já ganha R$ 10 mil. Os menores salários são de R$ 1.500 – para os que vieram da base. “Toque no altar de Deus do impossível”, canta Lázaro, no Programa Raul Gil, enquanto os jogadores começam a bater bola num vestiário que é três vezes maior que o do estádio Carneirão. “Diante do trono das águas purificadas”, repete várias vezes. Lázaro parece ser o preferido dos jogadores. Discreta, mas atenta a tudo, está a única mulher dentro dos vestiários, nos três jogos que acompanhamos. A fisioterapeuta Mércia Almería, de 33 anos. Ela tinha uma clínica particular e atendia vários jogadores do Central, até que foi contratada.“O time chegou a ter 14 jogadores no Departamento Médico”, diz. “Hoje, estão bem, à disposição do treinador.” O horário do jogo se aproxima. A campanha irregular do Santa Cruz não empolgou muito sua torcida, que veio em menor número. Os centralinos vão chegando aos poucos e ocupando a parte do estádio abençoada pela sombra. Um torcedor chega à entrada com um ingresso e uma dúvida. Pergunta ao policial militar:

O Central abriu o placar com um gol de Danilo Lins, aos 14 minutos do primeiro tempo, anulado pelo árbitro Luís Sobral. Dois minutos depois, Erivélton fez a festa da torcida alvinegra. A classificação estaria garantida, não fosse um lance polêmico. O atacante do Santa, Léo Gamalho, trombou com o zagueiro Alison, e o juiz marcou pênalti. O gol do Santa deixou a torcida do Central revoltada. Para piorar, o Salgueiro, que disputava a vaga com o Central, conseguiu vencer o Porto. Quando o juiz apitou o final da partida, o clima da torcida, da comissão técnica e dos jogadores do time local era de revolta. Nos vestiários, os jogadores viviam um misto de revolta e tristeza. Por causa de um ponto, o Central não ficou entre os semifinalistas do Estadual. Cabisbaixos, calados, não se conformavam com o gol anulado e o pênalti que não existiu. “Desse jeito, nunca um time do interior vai chegar à final”, lamentou o assessor de imprensa do clube, Antônio Arruda. O prejuízo do clube foi estimado em R$ 300 mil reais. Depois da Copa do Mundo, em julho, o Central reiniciará a vida jogando pela Série D do Brasileirão. O Santa voltou ao Recife com o desafio de dois jogos contra o Sport, para chegar à sua quarta final consecutiva. (SL)

CONTINENTE JUNHO 2014 | 41

Especial Futebol_JUN.indd 41

27/05/2014 15:25:28


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: LEO CALDAS

Crônica

PARTIDA 3 SANTA CRUZ X SPORT O clima estava tenso para o time do Santa Cruz, no segundo jogo da semifinal da Copa do Nordeste. Na primeira partida, uma semana antes, na Ilha do Retiro (estádio do arquirrival Sport), derrota por 2 x 0. Isso obrigava o time a vencer por três gols de diferença, para chegar à primeira final do torneio. O jogo está marcado para as 22h, mas, desde a tardinha, o massagista do Santa, Catatau, 48 anos, não para um minuto. Com 19 anos de clube, ele é um xodó da torcida, famoso por ser o responsável por chamar os jogadores que estão na reserva para entrar em campo. Basta o treinador chamar Catatau para mexer no time, que a torcida vai ao delírio. Ele sai em disparada, como se estivesse numa

corrida contra o relógio, dá um tapa nas costas do atleta e a esperança renasce. “Eu dou um tiro na faixa de 200 metros. É para o jogador se ligar. Ele tem cinco minutos para entrar em campo”, diz Catatau, que é técnico de enfermagem no Hospital Infantil Maria Lucinda, no Recife. Chega a dar 30 voltas ao redor do campo, para manter a forma. Nos vestiários do clube, a movimentação é grande. Os jogadores estão concentrados em um hotel e só chegarão faltando uma hora para o jogo. Comparado com os estádios do interior, o Arruda é gigantesco. Por debaixo das arquibancadas, o clube mais parece um labirinto, com diversas salas, divisórias, entradas, como se tivesse construído e reconstruído a estrutura do estádio ao longo de décadas. O vestiário é imenso, mas simples. O material de cada jogador já foi preparado pelo roupeiro Marcelo José da Silva, de 31 anos, na parte da manhã (camisa, calção e meião). São 19 padrões completos. As chuteiras, cada jogador escolhe a sua. Num dos cantos, no altar, o sincretismo

religioso futebolístico: imagens de Nossa Senhora de Fátima (padroeira do clube), Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora Aparecida, Cosme e Damião, Padre Cícero, duas imagens do candomblé e quatro velas de sete dias. “Hoje, botei quatro velas, porque vai ser quatro a zero”, diz Rosenildo Gonçalves da Silva, o “Madruga”, de 41 anos, que se define como “um bombril” dos bastidores do Arruda.“Faço de tudo aqui. Limpeza, cuido do altar, faço depósito para os jogadores, não deixo faltar vela de sete dias, cobro a caixinha, é tudo mesmo”, diz. A caixinha é uma norma interna. Jogou lixo no chão? Caixinha. Chegou para treinar acima do peso? Caixinha. Há uma série de itens que os próprios jogadores organizam, em nome de mais organização, respeito aos horários, cuidados com a vida de atleta. Incansável, Catatau passa e pergunta se está tudo bem. Mostra as várias garrafas que já preparou. Gelo, água, Gatorade, além de um preparado que ele mesmo faz. “Um saquinho desses é mesmo que comer um prato de macarrão”, diz, com o eterno sorriso.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 42

Especial Futebol_JUN.indd 42

27/05/2014 15:25:30


Faltam poucos minutos para a chegada dos jogadores. Pergunto a Catatau onde fica o túnel que vai dar no campo. Ele me mostra. Vou sozinho. Desço 24 degraus, sigo um enorme corredor, talvez 150 metros, mais degraus, outro pequeno corredor, e, finalmente, os degraus que vão dar no campo. Subo lentamente, recordando que por ali passaram grandes craques do futebol brasileiro, como Ramon, Nunes, Givanildo, Ricardo Rocha, Rivaldo. Chego ao último degrau e vejo parte das arquibancadas. A torcida chega aos poucos. Imagino a emoção de um jogador de futebol, ao subir os degraus, pisar no gramado e ser recebido por milhares de torcedores. Poucos dos jogadores brasileiros espalhados pelo mundo terão a oportunidade de viver uma emoção desse tipo em plena Copa do Mundo.

A CHEGADA

Volto aos vestiários. Às 20h30 instalase um frenesi ali. A notícia é de que “os jogadores já saíram do hotel”. Como vêm com a ajuda de batedores da Polícia Militar, rapidamente

chegam. Há um barulho intenso do lado de fora. Centenas de torcedores, com sinalizadores, começam a cantar músicas de apoio ao time, encerrando com “eu a-cre-dito!”, repetido diversas vezes. Será um jogo dificílimo. Do lado de dentro do vestiário, é possível ver toda a agitação. Os atletas passam por um corredor de torcedores, que aplaudem, incentivam, dão gritos de “vai pra cima deles, tricolor!”. Muitos jogadores descem com seus indefectíveis fones de ouvido. Aguardamos passar o alarido. O treinador, Vica, chega em silêncio. Para diante do altar, acende uma vela pequena e sai em direção à sua sala. Imediatamente, alguém liga um aparelho de som com música evangélica, que vai acompanhar toda a preparação, aquecimento, entrada em campo. Rapidamente, os atletas vão ocupando seus lugares, pegando o material, trocando de roupa. O clima é descontraído, apesar da pressão que viveram durante a semana, por causa da derrota por 2 x 0.

O fotógrafo Léo Caldas coloca a câmera fotográfica ao seu lado, para não causar qualquer tipo de problema com a comissão técnica. Ficamos em silêncio, aguardando os jogadores vestirem seus padrões, para ver a movimentação e encerrar o trabalho. “Tudo bem por aí? Falta alguma coisa?”, pergunta Catatau. “Tudo tranquilo, Catatau”, respondo. Pouco depois, um dos diretores de futebol, Athaíde Macedo, chega e nos interpela. Quer saber quem nos autorizou a ficar ali. Está irritado. Explicamos que foi com a autorização do presidente do clube, Antônio Luís Neto, e do diretor de futebol, Constantino Júnior. Ele sai, indignado. Volta 10 minutos depois e pede para que nos retiremos. “Vestiário não é lugar de imprensa”, diz. Acenamos para Catatau e encerramos nosso trabalho. O Santa teve dois jogadores expulsos, perdeu de 2 x 1 e ficou de fora da final da Copa do Nordeste. (SL)

CONTINENTE JUNHO 2014 | 43

Especial Futebol_JUN.indd 43

27/05/2014 15:25:31


CON TI NEN TE#44

Tradição

QUILOMBO Em nome da mãe, dos filhos e orixás No ano em que completaria 100 anos, a ialorixá Biu de Xambá, que criou o primeiro (e único) quilombo urbano de Pernambuco, é celebrada pelo seu povo TEXTO Isabelle Câmara FOTOS Diego Di Niglio

CONTINENTE JUNHO 2014 | 44

Tradiçao_JUN.indd 44

27/05/2014 15:26:31


CONTINENTE JUNHO 2014 | 45

Tradiรงao_JUN.indd 45

27/05/2014 15:26:32


Tradição

CON TI NEN TE

1

O ano era 1950. A ialorixá Severina Paraíso da Silva, ou Mãe Biu de Xambá, decidiu sair do Bairro de Santa Clara (hoje Dois Unidos), ir morar no subúrbio de Olinda e ali começar um processo geopolítico, social e antropológico, ainda que de forma inconsciente. Disposta a reabrir o Terreiro de Santa Bárbara – Ilê Axé Oyá Meguê, da Nação Xambá, depois de ele ter sido fechado em 1938, pelo Estado Novo, e a reagrupar sua família e seus filhos de santo, ela encontrou às margens do Rio Beberibe, no lugar conhecido como Portão do Gelo, um espaço simbólico para apropriação, uso, sobrevivência, exercício da fé; um ambiente ideal para desenhar uma nova cartografia familiar, comunitária e religiosa, que resultou no nascimento do primeiro quilombo urbano de Pernambuco, a comunidade quilombola do Portão do Gelo Nação Xambá, devidamente reconhecida, em 2006, pela Fundação Cultural Palmares. Acompanhada dos filhos de sangue e de santo, a matriarca atraiu também agregados, pessoas que migraram para aquele local com

Como líder religiosa, Mãe Biu passou a negociar com seus filhos e suas filhas de santo a orientação moral de suas vidas a esperança de uma vida melhor, como suas irmãs Donatila Paraíso do Nascimento (Madrinha Tila), Maria Luíza de Oliveira (Tia Luíza) e Laura Eunice Batista (Tia Laura), mulheres que, junto com Mãe Biu, assumiram o papel de ocupar, ampliar, negociar e garantir a construção daquela nova comunidade. “Estar perto do rio tinha dois significados: o religioso, porque era preciso a proximidade com a água corrente para a realização dos rituais, e de sobrevivência, pois não se tinha água encanada à época e as pessoas ali lavavam roupas, louças, tomavam banho”, explica Hildo Leal da Rosa, filho de santo de Mãe Biu e historiador. “Minha mãe foi uma líder natural. Qual a função do líder? Que as pessoas

que ficam ao seu comando estejam sempre bem, felizes. Ela tentava fazer casas logo, fazia casamentos, arrumava emprego público, pedia, se preocupava com aquele que estava desempregado”, recorda Adeíldo Paraíso da Silva, mais conhecido como Pai Ivo de Xambá e filho de Mãe Biu, em depoimento concedido a Valéria Gomes Costa, para o livro É do dendê! – histórias e memórias urbanas da Nação Xambá no Recife (1950 – 1992) (Annablume, 2009). “Tia Biu gostava de dar casas às pessoas e casar. Uma casa, todo mundo tinha que ter uma casa própria. Ela tinha essa visão. Mamãe, Tia Lourdes, eu, voinha, Tia Nair, Tio Luiz, Ciço, Mina, Edileuza, D. Belmira, Antonieta, Sônia, todo mundo tinha que ter uma casa própria. O negócio dela era uma casa”, complementa Maria do Carmo de Oliveira, a Cacau, no mesmo livro. Como líder religiosa, Mãe Biu passou a negociar com filhos e filhas de santo a orientação moral de suas vidas cotidianas, apontando caminhos que, para ela, eram os mais indicados

CONTINENTE JUNHO 2014 | 46

Tradiçao_JUN.indd 46

27/05/2014 15:26:34


1 MEMORIAL SEVERINA PARAÍSO DA SILVA

Localizado no próprio terreiro, guarda um dos maiores acervos religiosos do Nordeste 2 IVO DE OXUM Filho biológico de Mãe Biu, ele preserva as tradições do Terreiro de Santa Bárbara 3 GUITINHO Filho da casa, é líder do Bongar, grupo musical que divulga o coco xambá

para o estabelecimento das relações sociais internas e externas ao terreiro.

SANTA BÁRBARA

2

3

Em paralelo à nova comunidade que ali se configurava em sentimentos, elos, hábitos e costumes, o Terreiro de Santa Bárbara viveu um período áureo nas práticas religiosas, que legitimavam a posição de Mãe Biu como ialorixá e líder religiosa do grupo, e asseguravam a permanência da tradição xambá de culto aos orixás. “O grande feito de Mãe Biu, além de agrupar essas pessoas em torno da religião, foi garantir no Brasil a permanência da prática do culto de matriz africana xambá. Ela conseguiu o que muitos praticantes do candomblé não conseguiram. Teóricos afirmam que havia vários cultos de matriz africana no Brasil, mas que os processos de repressão fizeram com que eles desaparecessem”, conta Guitinho da Xambá, filho da casa e líder do Bongar, grupo musical que hoje tem a função de divulgar o coco xambá. Mãe Biu comandou o seu povo durante 43 anos, um período de construção de identidade étnica e fortalecimento do culto nessa tradição. Para Pai Ivo, Mãe Biu, Tia Laura, Madrinha Tila e Tia Luíza representaram não só a manutenção da religiosidade de matriz xambá em Pernambuco, mas também o empoderamento de uma etnia e a luta pela igualdade de gênero – quando nem se falava nisso. “Se hoje, em pleno século 21, mesmo que nós tenhamos uma presidente mulher, o machismo

CONTINENTE JUNHO 2014 | 47

Tradiçao_JUN.indd 47

27/05/2014 15:26:37


,,

Tradição

CON TI NEN TE

4

impera, imagine, em 1950, quatro mulheres negras, praticantes do candomblé, que conseguiram manter e trazer aos dias atuais a tradição e a religiosidade de um povo? Elas foram muito fortes”, assegura. “Além disso, Mãe Biu era analfabeta, abandonada pelo marido, e conseguiu gerir uma casa, liderar uma comunidade que nascia. Ela também teve que reinventar tradições. Por exemplo: no culto a Exu, a mulher não pode ‘cortar’, sacrificar um animal, pois dentro da liturgia só os homens podem fazer isso. Mas, numa casa regida por mulheres, qual a opção?”, pondera Guitinho. “Ela se tornou uma grande referência na comunidade e extracomunidade, pois o campo das tradições de matriz

africana é repleto de tensões, você precisa se legitimar”, complementa. Mãe Biu faleceu em 27 de janeiro de 1993, aos 78 anos, deixando o Ilê de Oyá sob o comando de sua irmã, Mãe Tila de Oxalá, e de seu filho biológico, Ivo de Oxum, que preservam as tradições do terreiro xambá. Ela também deixou um extenso legado cultural, religioso e político, compartilhado por filhos (de sangue e de santo), irmãos, sobrinhos, netos e bisnetos, no Quilombo do Portão do Gelo Nação Xambá. Como reconhecimento a esse patrimônio material e imaterial, a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura (MinC), e o Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceram, em 2006, a Comunidade Xambá do Portão do Gelo como primeiro Quilombo Urbano de Pernambuco. De acordo com a Fundação, a Comunidade Xambá guarda um dos maiores acervos religiosos do Nordeste; bens que estão preservados no Memorial Severina Paraíso da Silva, instalado no próprio terreiro e organizado pela comunidade, com a ajuda de três historiadores filhos da casa: Hildo da Rosa, João Monteiro e Antonio Albino. “Elas tinham um profundo senso de registro. Tudo que faziam, compravam, era documentado. O ritual de iniciação de Maria Oyá,

CONTINENTE JUNHO 2014 | 48

Tradiçao_JUN.indd 48

27/05/2014 15:26:40


feito em 1927, foi todo descrito em manuscrito por Tia Laura. Elas tiravam fotos, guardavam objetos de infância, roupas etc. Talvez tivessem a visão do que isso representaria no futuro”, avalia Guitinho.

INICIAÇÕES

4 FEMININO As líderes do terreiro foram pioneiras na luta pela igualdade de gênero 5 COMEMORAÇÃO A tradição de realizar uma festa animada pelo coco começou no aniversário de 50 anos de Mãe Biu, em 1964

No início da década de 1920, o babalorixá Artur Rosendo Pereira, fugindo da repressão policial às casas de culto afro-brasileiro, deixa Maceió (AL) e passa a morar no Recife. Na capital pernambucana, no Bairro de Água Fria, por volta de 1923, reinicia suas atividades de zelador dos orixás, segundo os rituais da tradição xambá, cujos conhecimentos foi buscar na África, onde viveu por quatro anos. De acordo com Guitinho, diversos autores apontam o povo xambá como habitantes da região limítrofe da Nigéria com Camarões, nos Montes Adamaua, vale do Rio Benué. Artur Rosendo iniciou filhos de santo e vários deles, em seguida, abriram terreiro, entre eles, Maria das Dores da Silva, ou Maria Oyá, que fez sua iniciação em 1927. Em fevereiro de 1928, Maria Oyá começou a cultuar os orixás em Campo Grande, tendo Artur Rosendo como babalorixá e Iracema como ialorixá. Maria Oyá inaugurou seu terreiro em 7 de junho de 1930. Uma forte repressão policial, na gestão do então interventor Agamenon Magalhães, fechou o terreiro de Maria Oyá, em 1938. A jornalista Marileide Alves, no livro Nação Xambá, do terreiro

A figura de Mãe Biu começou a aflorar num momento de resistência e de luta para manutenção dos espaços e rituais

5

aos palcos, descreve esse episódio: “Em maio de 1938, a polícia chega à porta da casa de Maria Oyá, invade seu terreiro e recolhe vários objetos usados nas festas religiosas, como instrumentos musicais, louças, vestimentas, bijuterias, imagens, entre outros. Os policiais colocaram Maria Oyá dentro do camburão, onde já estavam alguns pais e mães de santo de outros terreiros, e se dirigiram para a delegacia do Bairro do Espinheiro, no Recife. Lá, já se encontravam detidos outros adeptos do candomblé, juntamente com objetos do culto. Apesar de ter sido liberada logo depois, a ialorixá não pôde reaver seus materiais de culto”. Ainda assim, alguns rituais eram realizados a portas fechadas, de maneira disfarçada, mas a manutenção dessas tradições, às escondidas, segundo Guitinho, não foi suficiente para evitar que Maria Oyá entrasse em depressão. Em 1939, ela falece, abrindo um hiato de 12 anos entre o fechamento do terreiro e o surgimento de Mãe Biu como ialorixá. “São 12 anos muito importantes, pois foi nesse tempo que começou a aflorar

CONTINENTE JUNHO 2014 | 49

Tradiçao_JUN.indd 49

26/05/2014 10:06:19


,,

Tradição

CON TI NEN TE

6

a figura de Mãe Biu, num momento de resistência, quando foram criadas várias estratégias de manutenção do espaço e dos rituais”, conta. Em 1950, ano da morte de Arthur Rosendo, Mãe Biu é consagrada a nova líder do Terreiro de Santa Bárbara – Ilê Axé Oyá Meguê, reabrindo-o no então Bairro de Santa Clara, onde fica só por um ano. De lá, a comunidade migra para o Portão do Gelo. No artigo Nação Xambá: criando e recriando estratégias de garantia de espaços sociais e religiosos no Recife, publicado

na revista Ciências Humanas em Revista (São Luís, dez/2006), Valéria Gomes Costa aponta motivos para essa migração: “Os subúrbios como Beberibe e Casa Amarela, por exemplo, se transformaram em espaços de habitação/moradia, bem como em lugares de reconstrução simbólica do povo de santo, que, desde a década anterior (1930), vinha ocupando esses espaços geográficos, por conta das perseguições étnico religiosas. A área periférica de Beberibe se constituía,

em parte, por terrenos baldios, cobertos por matas, nos quais a política de modernização da cidade, na época do interventor Agamenon Magalhães, incentivava os industriais dispostos ou persuadidos a construírem as vilas populares para seus operários. Os terrenos, distantes do centro, eram doados à população, que, por sua vez, via nesta política uma alternativa para adquirir suas residências próprias. Foi nesse espaço-tempo que o Portão do Gelo, que pertencia geograficamente às

CONTINENTE JUNHO 2014 | 50

Tradiçao_JUN.indd 50

26/05/2014 10:06:20


Mãe Biu sempre comemorou a data. A tradição de realizar uma festa animada pelo coco começou no aniversário de 50 anos dela, em 1964. Guitinho e Hildo explicam o motivo. “Essa história permaneceu envolta em mistério por anos, era quase um tabu. Na festa, com música de radiola, muita cerveja, duas crianças se afastaram e uma delas caiu numa cacimba. Muita gente desmaiou, foi um chororô, e surgiram especulações, até de que era um castigo dos orixás, pois a festa era realizada no salão do terreiro e Oyá não permitia”, revela Guitinho. Hildo acrescenta: “A partir de então, ela fez uma promessa aos mestres da Jurema: se não houvesse

Em função dos 100 anos de Mãe Biu, a casa está preparando uma grande festa a ser celebrada no dia 29 deste mês

áreas de terrenos baldios, à margem esquerda do Rio Beberibe, na Zona Norte da região metropolitana do Recife, tornou-se, possivelmente, a alternativa de lugar encontrada por Severina Paraíso da Silva, a Mãe Biu, para instalar o seu terreiro”.

FESTA DO COCO

Um dos legados de Mãe Biu foi a festa do dia 29 de junho, que nada tem a ver com as tradições da Igreja Católica, que reverencia São Pedro. Nascida nesse dia, no ano de 1914,

nenhum problema maior com a polícia, em função desse episódio, ela promoveria um coco no aniversário dela. E essa promessa teria sido feita aos mestres da Jurema porque o coco é uma dança deles”. Para Guitinho, essa festa é uma das maiores manifestações da reinvenção da memória do povo xambá: “No início do terreiro, o coco era um elemento brincante. Em 1960, as casas de terreiro funcionavam com alvará da Secretaria de Segurança Pública. Com um acontecimento como esse, a casa sofria risco de nova interdição. Para mim, com esse fato, vem a memória traumática de 1938, quando a casa foi fechada por 12 anos. Nesse período, alguns rituais foram mantidos e, para protegê-los e disfarçá-los, os homens ficavam tocando coco na frente da casa. Após o acidente da menina, o coco tornase promessa. Em 1993, com a morte de Mãe Biu, essa tradição poderia se perder, pois o compromisso era dela, mas, nas comunidades de matriz africana, promessas também são herdadas. Aí, o coco

6

MÃE BIU A ialorixá ladeada por seus seis filhos biológicos

deixa de acontecer em função de uma promessa por uma memória traumática e passa e acontecer para manter viva a memória de Mãe Biu”. Do ponto de vista musical, o coco do povo xambá, segundo Guitinho, se diferencia dos outros por conta da alfaia amarrada na cadeira. “Essa é uma tradição nossa, seguramente. O uso de alfaia e a batida são específicos dessa nação. O coco começava e não tinha hora pra acabar. Aí, alguém teve a ideia de amarrar a alfaia na cadeira e tocar. E isso permite usar as afinações das duas peles, utilizar o aro, fazer diversas variações rítmicas, além de que o tocador pode dançar.” A Festa do Coco, que celebra o aniversário de Mãe Biu, só acontece na Nação Xambá uma vez por ano, com hora para começar e acabar: das 10h às 20h. Hildo da Rosa explica que é uma festa profana, cheia de religiosidade. “Não existe fronteira entre uma e outra.” De acordo com Guitinho, a celebração já está marcada no calendário festivo de Pernambuco e, nesse dia, o terreiro recebe visitantes e brincantes de diversos locais do Brasil e do mundo. Este ano, em função dos 100 anos de Mãe Biu, a casa está preparando uma festa ainda maior, com direito a coco, sambada de coco, rua e terreiro enfeitados, comidas e bebidas típicas preparadas pela comunidade. “Mãe Biu se fará presente na fogueira tradicional do terreiro, nas roupas coloridas, na estrela gigante tradicionalmente pendurada na fachada do terreiro todo dia 29 de junho, em cada canto entoado por um mestre ou aprendiz, em cada umbigada, no girar das saias floridas das mulheres e no ‘rufar trovão’ do tambor do coco.”

CONTINENTE JUNHO 2014 | 51

Tradiçao_JUN.indd 51

26/05/2014 10:06:20


REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

História

MAGIC BUS O tapete voador da contracultura 1

Há 50 anos, o escritor Ken Kesey pegou a estrada com sua turma de gozadores num ônibus colorido e deu início à cultura psicodélica TEXTO Marcelo Abreu

Depois de terminar de escrever seu segundo romance, Sometimes a great notion, e publicá-lo em 1964, Ken Kesey decidiu abandonar a carreira de escritor. Dois anos antes, seu primeiro livro, Um estranho no ninho, havia sido um grande sucesso e seria adaptado para o cinema por Milos Forman, na década seguinte. Mas, naquele 1964, aos 29 anos, Kesey queria mesmo era experimentar. Junto com uma trupe de amigos que orbitavam em torno de sua casa de madeira no vilarejo de La Honda, a 70 quilômetros de São Francisco, ele planejou uma viagem que seria um marco na sua mudança de vida: um trajeto de costa a costa, partindo da Califórnia e cruzando todo o país em um velho ônibus escolar.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 52

Historia_JUN.indd 52

26/05/2014 10:08:00


A desculpa para a empreitada era ir a Nova York para o lançamento do segundo livro e visitar a Feira Universal que se realizava na cidade. Mas, na verdade, Kesey e seus amigos queriam mesmo era experimentar LSD em grandes quantidades, e sair pelo país adentro chocando as pessoas com o ônibus colorido, as roupas malucas, ouvindo rock a todo volume e emitindo sons e ruídos através de microfones e alto-falantes instalados no ônibus. O plano era sentar no bagageiro do teto para soprar bolhas de sabão nos transeuntes e tirar um som qualquer dos instrumentos musicais que levavam. E também registrar tudo em filme de 16 milímetros para algum projeto no futuro. Em suma, queriam

responder à seguinte pergunta: o que acontece quando um comportamento estimulado por alucinógenos colide com o conformismo das vidinhas banais das pessoas comuns? A aventura do ônibus de Ken Kesey e seus Merry Pranksters, iniciada em 17 de junho de 1964, acabou se tornando um marco na contracultura do século 20, um referencial que viria a influenciar toda uma geração, levando à popularização do mito da viagem, em todos os sentidos. Pode-se dizer que o Magic Bus foi o momento em que a geração beat dos anos 1950 se transformou na moçada hippie da década de 1960. O próprio escritor diria depois, numa entrevista em 1999, que se considerava “jovem demais para ser um beat e velho demais para ser um hippie”. Era, então, o elo entre os dois movimentos. Em junho de 1964, “hippie” era uma palavra ainda de uso restrito. O rock’n’roll estava na fase ingênua dos Beatles de terno, que haviam acabado de conquistar a América. Bob Dylan era um cantor folk de música de protesto. Toda a cultura das drogas, com seu lado sombrio e violento, era coisa de um futuro distante. O LSD – iniciais para a dietilamida do ácido lisérgico – inventado em laboratório, em 1938, era de uso tão limitado, que não havia uma lei que o proibisse. Mas Kesey já estava por dentro de tudo. Desde 1961, ele vinha sendo pago para ser cobaia num programa secreto de experimentação de drogas psicoativas no Hospital de Veteranos de Menlo Park, próximo a São Francisco. O objetivo do projeto, patrocinado pela CIA, era estudar os efeitos de drogas como LSD, psilocibina e mescalina nos seres humanos. Intelectuais, boêmios e dissidentes em geral aproveitavam-se do programa para ludibriar o governo e “expandir a consciência”, como se dizia na época.

LA HONDA

A experiência transformou sua vida. Ken Kesey havia nascido no estado do Colorado, em 1935, mas foi criado no Oregon, no meio rural. Quando criança, interessava-se por ventríloquos, mágica e hipnose. Havia se mudado para a Califórnia para tentar ser escritor. Viveu uns tempos em

Palo Alto – próximo à Universidade de Stanford, onde estudava Literatura –, numa rua cheia de intelectuais. Lá conheceu os amigos que seriam seus companheiros de aventuras. Quando se mudou para o bucólico vilarejo de La Honda, as experiências com as drogas inspiraram um estilo de vida que se assemelhava a um circo ambulante de maluquices. Freak passou a ser a palavra do momento. Piração, experimentação, eliminação de barreiras mentais, um mundo novo a ser vivenciado a partir da liberação dos sentidos sob o efeito do ácido lisérgico. Foi Ken Babbs, um dos amigos, quem deu a ideia de aproveitar a viagem para realizar as chamadas pranks (presepadas, gozações,

O Magic Bus foi o momento em que a geração beat dos anos 1950 se transformou na moçada hippie da década de 1960 trotes, palhaçadas), para chocar a sociedade da época, considerada por eles careta e conservadora. A experiência foi registrada pelo jornalista Tom Wolfe, um dos grandes nomes do novo jornalismo, que escreveu o clássico livro-reportagem intitulado O teste do ácido do refresco elétrico, publicado em 1968. O grupo acabou se denominando como os Merry Pranksters, que pode ser traduzido como “presepeiros alegres” – a expressão foi vertida para o português na edição brasileira do livro de Wolfe para o igualmente correto “festivos gozadores”. O ônibus levava a bordo 15 pessoas e tinha pintado, no lugar que indica o destino, a palavra Furthur, uma corruptela de further que significa “mais adiante”, uma perfeita definição filosófica para a experiência da viagem. Dentro do veículo, fabricado em 1939 pela International Harvester, havia bancos, beliches, uma pia e uma geladeira, onde nunca faltavam garrafas com suco de laranja contendo LSD. Na traseira, estava escrito: “Cuidado: carga estranha”.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 53

Historia_JUN.indd 53

26/05/2014 10:08:01


IMAGENS: REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

História

2

Mas a maior atração do excêntrico grupo era o motorista. Kesey o havia conhecido quando, um dia, ainda morando em Palo Alto, viu alguém surgir do nada em frente de sua casa dizendo que seu jipe tinha quebrado. O sujeito começou imediatamente a desmontar o carro, falando em disparada, como se fosse um maníaco. “Eu assisti a ele correndo pra lá e pra cá, um personagem frenético e enlouquecido falando num monólogo que parecia com o Finnegans Wake (de James Joyce) tocado em versão acelerada.” Sim, era Neal Cassidy, o próprio herói do livro On the road – pé na estrada, escrito por Jack Kerouac. Cassidy havia sido imortalizado sete anos antes como o Dean Moriarty no clássico da literatura beat. Pois aí estava ele de novo, em carne e osso, agora aos 39 anos de idade, juntando-se sem convite ao bando de presepeiros, para fazer o que sempre fez de melhor: dirigir veículos de uma forma totalmente irresponsável, mas, paradoxalmente, segura, tagarelando sem parar sobre os mais variados assuntos.

COM TIMOTHY LEARY

Formado o grupo, o ônibus seguiu em direção ao leste, parando em lugares como Phoenix, no Arizona, e

3

Houston, no Texas. Os adultos ficavam atônitos com a passagem do veículo, as crianças se divertiam como na chegada de um circo à cidade. Pouco antes de Nova York, os pranksters pararam na comunidade de Millbrook, onde o professor Timothy Leary, o guru do LSD, mantinha uma comuna de experimentação psicodélica, no meio de uma fazenda. Tom Wolfe descreve a chegada do grupo no livro Teste do ácido: “Quando avistaram a grande mansão de pão de ló, com suas torres, torrinhas e seixos formando quebra-cabeças (...) começaram a atirar bombas de fumaça verde do topo do ônibus”. O próprio Leary, na sua autobiografia Flashbacks - LSD: a experiência que abalou o sistema, lembra que um amigo lhe confessou naquele dia: “Sinto como se fôssemos uma bucólica aldeia índia invadida por um bando de vaqueiros fanfarrões do Oeste selvagem”. O ônibus cheio de excêntricos foi parado algumas vezes pela polícia, mas ninguém chegou a ser preso. Depois da viagem, os pranksters promoveram em São Francisco os famosos trips festivals e os acid tests, festas em que se consumia drogas sob luzes estroboscópicas, ao som de bandas de rock como Greatful Dead e Jefferson Airplane. Em 1967, o movimento hippie tomou conta de São Francisco. Virou moda

nos Estados Unidos pegar a estrada, deixar o cabelo crescer e levar uma vida fora do sistema. O que em 1964 se restringia a grupo de malucos gozadores passou a ser um estilo de vida difundido pela mídia. Em 1969, o Festival de Woodstock amplificaria esses valores para boa parte do mundo.

GRANDE INFLUÊNCIA

O LSD foi proibido em 1967. Procurado pela polícia norte-americana, Kesey fugiu para o México, mas depois acabou sendo preso por uns meses. Aquele velho ônibus escolar colorido, no entanto, havia se tornado um símbolo muito forte e seria usado pela contracultura nos anos seguintes. A banda The Who lançaria, em 1968, uma música chamada Magic bus (cuja letra, na verdade, trata apenas de um veículo que leva o narrador da canção para a casa da namorada). Na capa de uma coletânea da banda, um ônibus londrino de dois andares foi pintado em cores psicodélicas. Também em Londres, logo após o colorido disco Sgt. Peppers, os Beatles lançavam o álbum e o filme Magical mystery tour, cuja história se passa num ônibus pintado de muitas cores. John Lennon mandou pintar sua limusine em estilo psicodélico. O guitarrista Jimi Hendrix, mais do que ninguém, ajudou a popularizar a

CONTINENTE JUNHO 2014 | 54

Historia_JUN.indd 54

26/05/2014 10:08:03


Página anterior 1 MAGIC BUS

Viagem no antigo ônibus escolar partiu da Califórnia

Nestas páginas 2 KEN KESEY

Escritor era cobaia de um programa de drogas psicoativas

3 BEATLES Ida do grupo à Índia marcou auge da psicodelia 4 JIMI HENDRIX Pergunta Are you experienced? era relativa ao LSD

4

estética florescente, de cores fortes e distorcidas, quando lançou, em 1967, seu primeiro disco, intitulado Are you experienced. A pergunta referia-se, é claro, à experiência com ácido. Em 1969, o mesmo ônibus dos pranksters cruzou de novo o país, dessa vez em direção a Woodstock, levando o grupo para o famoso festival. Também em 1969, saiu o filme Sem destino (Easy rider), de Dennis Hopper, que conta sobre uma viagem de moto de três aventureiros pelos Estados Unidos. Por essa época, os europeus também já estavam se mandando para a Índia e o Nepal, por terra, seguindo de ônibus, trem, caminhão, carros, ou um misto de tudo (menos avião). Pelo menos na superfície, o mundo estava mais solto e colorido e o Magic Bus, verdadeiro tapete voador da contracultura, já havia virado um mito. O filme que seria feito originalmente pelos pranksters, com imagens da viagem, não foi concluído. Ao voltar à Califórnia, perceberam que não conseguiriam sincronizar as imagens com o som, registradas de forma desorganizada. Tom Wolfe usou o material bruto para escrever seu livro O teste do ácido com grande riqueza de detalhes. Se fosse depender somente da memória caótica dos participantes da experiência, estaria

Ao longo dos anos, vêm sendo lançados livros, relatos e até documentário sobre a viagem que marcou a cultura do século 20

perdido. Somente no ano 2000 é que a primeira parte do filme veio à tona, resumindo em 56 minutos a viagem. Chamou-se The intrepid traveler and his merry band of pranksters look for a kool place (O viajante intrépido e seu bando de presepeiros alegres procuram um lugar legal). Em 2011, foi lançado o documentário intitulado Magic trip. Os diretores Alex Gibney e Allison Ellwood tiveram acesso a 50 horas de imagens e 150 horas de áudio, registrados na viagem de Kesey, e daí tiraram os momentos mais importantes para oferecer uma visão crítica da empreitada. Ao longo dos anos, foram saindo livros e relatos sobre o que significou a viagem dos pranksters. Até hoje, nos Estados Unidos, os remanescentes da contracultura comemoram o feito. Figuras como Ken Babbs e Wavy Gravy (o palhaço hippie e mestre de cerimônia de Woodstock) participam de festivais que relembram aqueles dias. O próprio

Kesey e os pranksters apareceram, em 1997, em shows das bandas de rock Phish e Jane’s Addiction. Ken Kesey usou o humor e o choque para despertar uma nova consciência e desafiar o establishment. Certa vez, escreveu: “Eu achei que devia viver minha arte, em vez de descrevê-la. O ônibus é uma metáfora compreendida instantaneamente. É como o veículo de No tempo das diligências, de John Ford, só que com o caubói Neal no comando, exatamente como John Wayne no filme”. O respeitado Instituto Smithsoniano tentou comprar o ônibus original, para colocá-lo em exposição nos seus museus. Mas o escritor rejeitou a proposta e, depois, fiel ao espírito do grupo, tentou vender um veículo falso à instituição. Dessa vez, o trote não pegou. Kesey virou um mito da contracultura e morreu em 2001, aos 66 anos. O ônibus colorido passou 15 anos semi-abandonado em um pântano na fazenda da família, no Oregon. Desde 2006, um grupo de amigos da velha guarda, liderado pelo filho, Zane Kesey, tenta conseguir um dinheiro para restaurar o veículo e exibi-lo pelo país. Porque, como disse uma vez o próprio Ken Kesey, “o ônibus mesmo só existe um, exatamente como a nave Enterprise que também é única”.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 55

Historia_JUN.indd 55

26/05/2014 10:08:04


ALEXANDRE MORAIS/DIVULGAÇÃO

Cardápio 1

MUNDIAL Seleções vão à mesa

Os oito países já definidos para passar pelo Recife durante evento esportivo trazem uma bagagem rica de sabores e aromas TEXTO Eduardo Sena

CONTINENTE JUNHO 2014 | 56

Cardapio_JUN.indd 56

26/05/2014 10:14:49


Rua Prudente de Morais, nº 358,

1

MASSA Prato típico italiano é tão querido no Brasil, que faz parte da cesta básica oficial

Sítio Histórico de Olinda. Verde, vermelho e branco nas paredes; nelas, além de alguns bibelôs, um mapa em forma de bota. Do corredor, observa-se uma cozinha de onde saem, sobretudo, massas e alguns molhos – entre os quais, o de tomate. No quintal, a brisa agita os pés de manjericão. Alguns gritos são ouvidos, não de discussão, voz alta mesmo. Já não se tem mais dúvidas de que se está em um pedaço da Itália nos trópicos. Trata-se da Don Francesco Trattoria, típica cantina da mamma de Francesco Carreta, italiano da cidade de Pádua, 53 anos, sendo 16 deles cozinhando em Olinda. O reduto promete, como nunca antes, se encher de pares de pátria durante a Copa do Mundo, que tem início no próximo dia 12, com direito a jogo do Brasil na data, em São Paulo, e com partidas em Pernambuco a partir do dia 14 – um total de cinco certames, que serão disputados na Arena Pernambuco, em São Lourenço da Mata. Croácia, Costa do Marfim, Costa Rica, Alemanha, Estados Unidos, México, Japão e Itália são as seleções que desembarcarão por aqui, na primeira fase. E, muito além do toque de bola, essas nações visitantes trazem também temperos, aromas e sabores de suas terras. A Itália, por exemplo, que para os brasileiros é no gramado um rival histórico, na mesa, possui uma afinidade inquestionável. Macarrão está na lista da cesta básica oficial do Brasil. E pouco importa se ele nasceu na China ou lá no “país da bota”, são os italianos que dominam sua arte com perfeição. Em tempo, vale pontuar que macarrão “é o nome genérico, em português, para os diversos tipos de pastas italianas”, como nos informa a escritora Maria Lúcia Gomensoro, em Pequeno dicionário de gastronomia (Objetiva). Em princípio, é fundamental saber que existem quatro famílias de massa: frescas e secas, com e sem ovos. E, a partir daí, nasce uma infinidade de tipos. Fettucine (fitas), orecchiette (orelhinhas), os maltagliati (pedaços malcortados), pappardele (fitas largas), os linguine (tipo de espaguete

achatado) e o clássico espaguete (que, aliás, se divide em spaghettini, mais finos, e spaghettoni, mais grossos). E, para não limitar aquela nação apenas à massa, vale destacar entre os potenciais gastronômicos do país europeu a trufa branca da região de Alba (que chega a custar R$ 7 mil, o quilo) e o vinho espumante prosseco feito a partir da uva glera. A propósito, a bebida tem denominação de origem controlada. Ou seja, só pode ser chamado de prosseco o vinho espumante feito com a uva glera, produzido nas vilas de Valdobbiadene e Conegliano, na região do Vêneto. A mesma regra vale para o queijo parmesão, típico de Parma.

PARA OS FORTES

Igualmente gentílica é a tequila, destilado feito a partir de uma planta chamada agave azul com selo de município homônimo, no estado de Jalisco, do México, bebida que propicia um mergulho na alma dessa civilização vibrante, de personalidade que não passa despercebida. O receituário mexicano pede estômagos fortes, pois é um dos países mais reputados pelo uso extensivo de pimenta. E do milho. “O cereal é base para muitas receitas típicas. Vai no preparo da tradicional tortilla – aquela massa redonda – transformada em burritos (enrolada como panqueca) e nachos, que são as tortillas crocantes e cortadas como triângulos”, explica o chef guatemalteco Fernando Escalante, que, depois de uma temporada naquele país, abriu no Recife o Escalantes, especializado em comida mexicana. Os carboidratos mexicanos ainda podem ser recheados com fajitas (carnes grelhadas), chilli (pasta de feijões que pode ser misturada com carne moída), molhos como o guacamole, de abacate, e creme azedo. Os tamales também são populares por lá e consistem numa parente da nossa pamonha, só que salgada. Além da pimenta, coentro e alho são abundantes nessa vívida gastronomia. Falando em coentro, ele também não pode faltar na culinária da Costa Rica, país situado na América Central, tendo ao seu leste o mar caribenho, que ostenta o fato de

CONTINENTE JUNHO 2014 | 57

Cardapio_JUN.indd 57

26/05/2014 10:14:49


ANDRÉ NERY/DIVULGAÇÃO

DIVULGAÇÃO

Cardápio

2

estar entre as 22 democracias mais antigas do mundo. A coentro e arroz com feijão preto estão nas três refeições principais. “Não à toa, o prato nacional de lá atende pelo nome de gallo pinto, uma espécie de baião de dois com bastante cebola, coentro, pimentão e especiarias, como cominho”, explica Claudio Manoel, que oferece fortuitamente o preparo entre as sugestões do dia do seu Bistrot La Comédie, que funciona na Aliança Francesa do Derby, no Recife. Ou seja, combinação de temperos que o pernambucano não estranha – menos pelo fato de a receita ser servida no café da manhã dos costarriquenhos. Literalmente na outra costa, a africana, a Costa do Marfim, fincada na África Ocidental, tem rotina alimentar baseada em ingredientes também recorrentes nas panelas brasileiras: mandioca, milho, amendoim, especiarias e muito pimentão. De lá, os pratos mais tradicionais são o maffè, que traz carne picada cozida com verduras e molho de amendoim. E

São ingredientes típicos da Costa do Marfim: milho, mandioca, amendoim, especiarias e muito pimentão o boarake, espécie de ensopado com peixe, folha de mandioca e óleo de dendê. No rol das sobremesas, um bolinho feito com farinhas de milho e amendoim é bastante comum nas mesas costa-marfinenses, ou, como preferem eles, ebúrneas. E, se a ideia for buscar afinidades entre o país-sede da Copa e alhures, na hora de falar da Alemanha, tricampeã mundial de futebol, irá se esbarrar, ou melhor, brindar com cerveja. O país é o terceiro maior consumidor e produtor da bebida. Já no âmbito dos comes, um engarrafamento de clássicos: chucrute, joelho de porco, salsichas e pratos com batata-inglesa formam um retrato (ainda que incompleto)

da cozinha alemã. “O chucrute nada mais é do que uma conserva de repolho fermentado, utilizado como acompanhamento nas refeições”, define o chef alemão radicado no Brasil, Heiko Grabolle. Os alemães também fazem fama com a charcutaria, com destaque para as salsichas, comumente servidas com mostardas. Entre as proteínas, a carne de porco se sobressai, uma vez que é mais barata e tem disponibilidade durante todo o ano.

REGRAS DO MAR

Na Croácia, as entressafras também não atingem a mesa. No sul do país, onde ficam as praias, a cozinha mediterrânea com frutos do mar frescos malcozidos ou grelhados rapidamente, temperados com azeite abundante e ervas é menu de ano todo. Nesse pedaço croata, o consumo de frutas in natura também é rotina. Já ao norte, durante o inverno, comida substanciosa e quente, como o sarma – um charutinho de repolho fermentado com carne de porco moída e arroz.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 58

Cardapio_JUN.indd 58

26/05/2014 10:14:52


ANDRÉ NERY/DIVULGAÇÃO

3

4

DIVULGAÇÃO

2 TAC0S São recheados com fajitas (carnes grelhadas), chilli (pasta de feijões que pode ser misturada com carne moída) e molhos como guacamole, tudo apimentado 3 GALLO PINTO Espécie de baião de dois com cebola, coentro, pimentão e especiarias, como cominho, da Costa Rica 4 CROÁCIA Os frutos do mar são comuns no menu principal 5 LINGUIÇA Na Alemanha, os melhores acompanhamentos para a iguaria são o chucrute e a batata

5

Os croatas não dispensam preparos com batata-inglesa, sendo a versão predileta a assada no forno junto à carne. Combinação típica também é purica com mlinci, ou para brasileiro entender, peru assado com massa à base de trigo esticada. Já o strukli é a sobremesa obrigatória, um folhado com queijo fresco ou maçã.

A maçã, nos Estados Unidos, vira ingrediente para a salada típica. É misturada com batata, mostarda em grãos, vinagre, bacon, tomilho e cebola roxa, mix que é servido com o salmão assado em tábua de cedro na churrasqueira (o que faz uma defumação rápida), crosteado com semente de coentro, pimenta-

do-reino, demerara, páprica doce, pimenta vermelha, alho, cebola e cominho – condimento usado amplamente na terra do Tio Sam. Segundo Carmen Dowling, cônsul interina de Diplomacia Pública, as influências na cozinha norte-americana são diversas, a mexicana é uma das mais fortes, mas ainda há regiões com sinais fortes da presença francesa; noutras, peruana, por exemplo.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 59

Cardapio_JUN.indd 59

26/05/2014 10:14:55


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

6

ALÉM DO HAMBÚRGUER A comida dos EUA inclui peixes, como o salmão, temperados no estilo americano

7

JAPÃO O sushi é a iguaria mais famosa no Ocidente

Roteiro PARA EXPERIMENTAR PRATOS DOS PAÍSES VISITANTES DA COPA

6

ALEMANHA Apesar de ser um restaurante italiano, o Pomodoro Café tem na casa um charcuteiro, ou seja, um profissional especializado em produzir embutidos artesanais. As linguiças são destaques.

CROÁCIA O Prouvot cozinha e bar, dos irmãos cozinheiros Hugo e Julio Prouvot, investe em frutos do mar frescos em seu cardápio, preparados com o mínimo de intervenção de cocção. As receitas variam semanalmente.

Cardápio 7

Nas cidades do nordeste, o caldo/ creme de batata com milho é receita que aquece o inverno pesado e pode ser acompanhada por salada. Já na Flórida, há grande presença de frutos do mar, apresentados com uma verve tropical: o camarão empanado em crosta de coco servido com molho de alguma fruta é símbolo. Igualmente, os pescados protagonizam os hábitos alimentares dos japoneses, que, por conta da religião budista, têm repulsa por carnes de animais e aves – ingredientes que só foram incorporados à cultura alimentar nipônica após a Era Meiji. Por esse motivo, o peixe se tornou a mais tradicional fonte de proteínas da dieta nacional. E foi nessa circunstância que nasceu o sushi, provavelmente um dos maiores presentes que o Oriente deu ao Ocidente. “Su significa felicidade, shi, presidir; numa tradução literal, ‘presidir a felicidade’. Já em uma

ESTADOS UNIDOS Com unidades nos shoppings Recife e RioMar, o Outback Steakhouse (cujo menu

Segundo André Saburó, su significa felicidade, shi, presidir; numa tradução literal, “presidir a felicidade” interpretação livre, pode soar como ‘comer peixe feliz’”, explica o chef e sushiman André Saburó, dos restaurantes nipônicos Quina do Futuro e Sumô. Os principais peixes utilizados por eles no preparo são o fugu, saiory, hirame e atum. Curiosidade: os restaurantes no Japão são especializados em um determinado tipo de cozinha, partindo do princípio de que um nível de excelência só pode ser atingido pela especialização. Assim, há casas especializadas em frituras (tempuráya), massas (soba-ya) e, claro, sushi.

é baseado na cozinha australiana) dispõe de alguns clássicos norte-americanos. Destaque para os camarões empanados com coco, o tradicional hambúrguer e o salmão temperado à moda americana.

ITÁLIA Massas e molhos produzidos artesanalmente e à moda italiana são o diferencial do Don Francesco Tattoria.

JAPÃO Exímio sushiman e chef de cozinha, André Saburó preza pela boa qualidade dos pescados utilizados nos preparos do Quina do Futuro. É o único restaurante do Norte e Nordeste em que é possível provar do atum tipo 1, servido no Japão.

MÉXICO Antes um trailer, em Boa Viagem, o Escalantes ganhou formato de restaurante e traz todos os clássicos da cozinha mexicana. O mix de minitacos com recheios variados e os tradicionais churros são dicas.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 60

Cardapio_JUN.indd 60

26/05/2014 10:14:56


O ROMANCE QUE VIROU LENDA E MINISSÉRIE, AGORA EM E-BOOK. ONDE BAIXAR Amazon, Apple, Buqui, Disal, Ebookcult, Gato sabido, Iba, Jetebooks, Kobo, Livraria Cultura, Travessa, Mobydick ebooks, The copia.

Cardapio_JUN.indd 61

26/05/2014 10:14:56


JANIO SANTOS SOBRE REPRODUÇÃO

Leitura

FUTEBOL O bate-bola na estante Lançamentos, relançamentos e publicações só encontradas em sebos delineiam o encontro entre o esporte e a literatura TEXTO Rodrigo Casarin

Jairzinho rouba a bola, toca para Tostão e dispara pela lateral, levando consigo o marcador. Tostão, completamente livre, dá quatro toques na redonda, em direção ao gol, sempre com sua perna esquerda. Vê um vulto amarelo e negro passando à sua direita e enfia o balão entre os dois oponentes que se aproximam. A pelota parece estar no ponto certo para ser esmagada, trucidada por uma dividida – Pelé e Ladislao Mazurkiewicz estão em grande velocidade. Entretanto, na hora de dar o toque que causaria a

inevitável colisão, Pelé tira o pé, passa à direita de Mazurkiewicz e precisa mudar drasticamente sua trajetória para recuperar a gorducha, que passou à esquerda do goleiro (que, por sua vez, foi parar próximo ao limite da meia-lua). Pelé, ainda com velocidade surpreendente, alcança a grande amiga. Está um pouco desequilibrado, mas está só, com o gol à sua frente. Mazurkiewicz, longe, tenta retornar desesperadamente à meta. Pelé chuta cruzado, um zagueiro passa correndo e cai de cara no chão, já fora de campo. A bola quica em direção

ao gol, ao pé da trave, à linha de fundo... Se a bola de Pelé no jogo contra o Uruguai, na Copa de 1970, tivesse entrado, a jogada teria dramaticidade suficiente para virar literatura? Sim, na opinião de Sérgio Rodrigues, contudo, “o não gol contribui para que aquele lance fique nos assombrando para sempre. Como é possível que uma jogada tão bela tenha resultado num gol perdido, isto é, num fracasso? É incongruente, parece injusto, porque dissocia radicalmente a ética da estética. Enquanto aquela bola não entrar, não sossegaremos. É por isso que nunca nos cansamos de rever o lance: pela esperança insana de que uma hora aquela bola entre. Ou seja, estamos fritos”. Sérgio Rodrigues é o autor de O drible, romance que parte justamente do lance narrado acima para contar a história de Murilo Filho, ex-cronista esportivo de sucesso que está em seus últimos dias de vida, e Neto, seu filho, que durante muitos anos se manteve distante do pai. A retomada de alguma relação entre os dois só se torna possível por conta do futebol, que assume um papel fundamental na obra.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 62

Leitura_JUN.indd 62

26/05/2014 10:18:52


Nos últimos meses, O drible, lançado no final de 2013, vem ganhando muitas companhias nas prateleiras. É normal que em ano de mundial as produções sobre futebol aumentem consideravelmente. Há de tudo: almanaques, guias, enciclopédias, biografias de craques atuais e do passado, ensaios... “Algumas editoras e autores vêm tentando aproveitar os anos de Copa para pegar uma carona no evento. Mas não acredito que isso seja uma boa estratégia; percebo que, para essas efemérides, vêm sendo importados muitos livros com acabamento requintado e divertido, mas sem compromisso com a qualidade que eu gostaria que permeasse a produção editorial futebolística. O que mais acontece, nesses momentos, é a produção de livros que visam o comprador e o leitor incautos”, diz Cesar Oliveira, proprietário da livraria virtual Livros de Futebol, no ar desde 2004 e com mais de 400 títulos no catálogo. O momento é oportuno para colocar uma antiga discussão de volta às rodas literárias: de que forma o encontro entre futebol e literatura acontece? Os exemplos de sucesso dessa mistura realmente são raros ou não há atenção suficiente para o que podemos encontrar nas bibliotecas e livrarias? O próprio O drible, muito bemrecebido pela crítica especializada, nos dá a pista para uma resposta possível. Seguindo enredo próximo, uma história na qual pai e filho se apoiam no futebol para arquitetar a delicada relação, há um clássico da mistura entre o esporte e a arte: Febre de bola, do inglês Nick Hornby, lançado em 1992. Na obra, o autor assume o papel do protagonista para remontar um momento conturbado de sua família. Sem saber ao certo o que seria do futuro após a separação de seus pais, Nick, então com 11 anos, encontra nos jogos do Arsenal o momento ideal para conviver, sofrer e se alegrar com a figura paterna, o que dá origem ao seu fanatismo pelo time inglês. Entretanto, há a queixa de que não são muitos os títulos de ficção que apresentam o futebol com grande destaque. “Não acho que apenas assuntos de prestígio cultural rendam ficção. É possível escrever um grande romance com um tema trivial. O fato é que o futebol é uma das mais

importantes, mais populares e mais universais manifestações da cultura brasileira, tanto que, desde garoto, vejo os críticos literários reclamando de sua escassa presença em nossa ficção”, defende Rodrigues. Pesquisando o mercado nacional, podemos encontrar diversas outras obras de ficção que tratam do tema, como Cartão vermelho, de Dimmi Amora, O batedor de faltas e Em campo aberto, ambos de Cláudio Lovato, Escravos do jogo, de Marlos Bittencourt, e O diário secreto das copas, de Jeosafá Fernandez. José Roberto Torero é um exemplo de renomado escritor com diversas obras com grande presença do esporte. São dele títulos como Os cabeças de bagre também merecem o paraíso, Zé Cabala e outros filósofos do futebol, Futebol é

Provavelmente, o maior clássico da literatura esportiva no país é O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho bom pra cachorro, Copa do mundo – figurinhas e figurões e Nove contra o 9, os três últimos escritos com Marcus Aurelius Pimenta. No cenário internacional, um grande escritor que costuma criar histórias que se relacionam ou surgem do esporte é o uruguaio Eduardo Galeano. É dele o livro Futebol ao sol e à sombra, obra que faz uma viagem pelo passado futebolístico por meio de pequenos textos em que informação, memória e ficção se fundem – uma marca do autor, aliás. Galeano, que recorrentemente usa o futebol em suas entrevistas – na sua recente passagem pelo Brasil, em abril, falou sobre Sócrates e a democracia corintiana –, também leva o mundo da bola para outros de seus livros, como Espelhos e Os filhos dos dias. E é exatamente nos gêneros de textos mais breves que o futebol melhor se apresenta no Brasil, com grandes nomes da literatura nacional entrando em campo. Nas crônicas, temos obras como Quando é dia de futebol, de Carlos Drummond de Andrade, A eterna privação do zagueiro absoluto, de Luís Fernando Veríssimo, e o clássico À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues,

provavelmente o nome mais famoso no país, quando levamos em conta a relação entre as letras e o esporte. Temos ainda Passe de letra, de Flávio Carneiro, que mistura memórias com reflexões, e o recente Entre quatro linhas, uma coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato. São grandes nomes transformando o futebol em literatura. Apesar disso, uma outra questão vem à tona: não é simples definirmos o que é exatamente um livro sobre futebol. Falando de seu O drible, por exemplo, Rodrigues considera enquadrá-lo nessa categoria algo que o diminui. “Chamá-lo de livro de futebol me parece um equívoco ou pelo menos uma simplificação excessiva. Trata-se de um romance, um drama de família, e tem tanto a ver com o futebol quanto com a história política brasileira recente e a cultura pop dos anos 1970 e 1980. Um romance nunca conta uma história só. Pelo que entendo dessa expressão, ela se refere a livros de não ficção que documentam algum aspecto da história futebolística”. Vamos à não ficção, então.

A BOLA, O LIVRO E O REAL

Provavelmente, o maior clássico da literatura esportiva no Brasil, O negro no futebol brasileiro é uma obra de não ficção. Escrito pelo jornalista Mario Filho – que dá nome ao Maracanã e era irmão de Nelson Rodrigues – e publicado originalmente em 1947, traz as primeiras décadas do futebol no país, quando negros mal eram aceitos nos clubes. “Trata-se de nosso mais importante título sobre o tema e, mais do que isso, um clássico sobre a formação da sociedade brasileira que – ainda que menos declaradamente ambicioso e muito menos conhecido – comunga do espírito de obras como Raízes do Brasil (de Sérgio Buarque de Holanda) e Casa-grande & senzala (de Gilberto Freyre). Não se trata de um romance, mas de uma longa reportagem, com tintas ensaísticas, sobre os anos de formação do grande esporte nacional (...). A ambição jornalística do livro é impressionante: contar com minúcias, sempre pelo viés da progressiva ocupação de espaços por jogadores negros e mulatos, a história do futebol carioca desde o tempo em que os melhores em campo eram todos ingleses, no início do século 20. Dar conta desse recado já seria muito, mas

CONTINENTE JUNHO 2014 | 63

Leitura_JUN.indd 63

26/05/2014 10:18:52


Leitura

Mario o faz com um talento de escritor que raros jornalistas esportivos têm ou tiveram em qualquer época. É forte a tentação de dizer que ele escreve como se falasse, mas vale lembrar que nem o orador mais experiente conseguiria – não de improviso – se expressar com tanta clareza”, escreveu Rodrigues no texto Não deixe de ler o negro no futebol brasileiro, publicado no Todoprosa, seu blog, em dezembro de 2013. O livro está recebendo uma versão em inglês que será distribuída entre jornalistas estrangeiros durante a Copa do Mundo, numa campanha do governo federal contra o racismo nos estádios. Quem prefere obras nessa linha histórica – que buscam, de alguma forma, retratar a realidade – é José Renato Santiago Júnior, um dos maiores colecionadores de livros de futebol do país; quando entrevistado, tinha exatamente 2.874 exemplares em suas estantes. “Prefiro as histórias reais de futebol. Entre a prosa apaixonada de um Luís Fernando Veríssimo ou do José Roberto Torero e a precisão de

um historiador, fico com o segundo.” Seguindo sua preferência, indica um escritor clássico do jornalismo esportivo: Thomás Mazzoni. “Ele é o fundador da Gazeta Esportiva e o autor da primeira grande obra sobre o esporte no país, A história do futebol no Brasil. Ele era uma figura presente, que relatava os fatos. Se alguém quer saber a história do futebol, qualquer livro dele relata exatamente o que aconteceu.” Ao ser questionado sobre outras duas obras que seguem a linha de sua preferência, o colecionador tem visões distintas. Considera Veneno remédio, um ensaio de José Miguel Wisnik que busca associar o futebol brasileiro e seu entorno a grandes pensadores, “um livro chato, feito para acadêmico”, enquanto aponta Futebol – o Brasil em campo, no qual o jornalista inglês Alex Bellos traça um panorama do esporte no país, um bom exemplar de como o futebol pode ser tratado em um livro. Nessa linha, temos ainda A dança dos deuses, do historiador Hilário Franco Júnior, que associa o esporte à história das civilizações. Entretanto, é um livro de autor estrangeiro que Santiago Júnior aponta

como preferido: Futebol e guerra, de Andy Dougan, centrado numa partida disputada em 1942, na Ucrânia, entre uma equipe formada principalmente por membros do Dínamo, de Kiev, e a Luftwaffe, da Alemanha, durante o nazismo. O jogo se transforma numa metáfora de resistência ao poder. “Até os nazistas, que, a princípio, são vistos como pessoas desprovidas de moral, reconhecem que precisam se aproximar da população que dizimaram e utilizam o futebol para isso”. Do cenário internacional, temos outras grandes obras que tratam do esporte: Como o futebol explica o mundo, de Franklin Foer, que se utiliza de situações do universo da bola para falar sobre a globalização, e Entre os vândalos, livroreportagem de Bill Buford, jornalista que passou mais de um ano em meio a hooligans para relatar sua experiência com os violentos torcedores ingleses. São obras que compõem a gama de livros que há sobre o esporte, que pode não ser vasta como gostariam alguns, mas está longe de ser insignificante ou inexistente, como supõem outros.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 64

Leitura_JUN.indd 64

26/05/2014 10:19:03


INDICAÇÕES THRILLER

ROMANCE

Biscoito Fino

Companhia das Letras

JOËL DICKER A verdade sobre o caso Harry Quebert

O que ler

NAS LIVRARIAS Entre quatro linhas

O nome de Entre as quatro linhas – contos sobre futebol já define muito bem o que é a obra. Organizada por Luiz Ruffato, traz 15 autores nacionais – como Ronaldo Correira de Brito, Eliane Brum, Tatiana Salem Levy, Rogério Pereira, Carola Saavedra e Cristovão Tezza – escrevendo textos breves com histórias relacionadas ao esporte.

Quando é dia de futebol

O livro traz crônicas e poemas de Carlos Drummond de Andrade, publicados originalmente em jornais. Selecionados por Luiz Maurício e Pedro Augusto Graña Drummond, netos do autor, os textos apresentam uma visão drummondiana sobre o esporte, indo além da simples análise pragmática e encarando o futebol como uma possibilidade para se entender o homem.

MILTON HATOUM Relato de um certo Oriente

Numa metanarrativa – em que o narrador escreve sobre um autor que discute a feitura do romance, enquanto cita trechos do livro do coprotagonista da trama – A verdade sobre Harry Quebert é um passatempo de 576 páginas, sobre um assassinato ocorrido em 1975, que aflora 33 anos depois. Embora engenhoso, pode entediar exigentes.

Edição marca os 25 anos do primeiro romance do manauara. Com suas falas alternadas, personagens imersos em um oceano de recordações e memórias, o romance antecipa a força e profundidade da literatura que Hatoum desenvolveria em seus outros livros, notadamente em Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005).

POESIA

ROMANCE

Hooliganismo e a Copa de 2014

Os textos deste título, organizado por Bernardo Buarque de Holanda, foram inicialmente apresentados em um simpósio internacional em abril de 2012, que aconteceu na FGV e na Unicamp. São artigos sobre violência, assinados por especialistas no assunto, como Paul Dietschy e Patrick Mignon. Integra a coleção Visão em Campo, da Sete Letras, que traz obras que encaram o esporte sob o olhar das ciências humanas.

A pátria de chuteiras

A Nova Fronteira disponibilizou gratuitamente em seu site a versão digital de duas obras de Nelson Rodrigues: Somos o Brasil e A pátria de chuteiras. A segunda é uma coletânea de crônicas, selecionadas por Aldo Rebelo, ministro do Esporte, publicadas pelo escritor entre as décadas de 1950 e 1970.

NOS SEBOS Anatomia de uma derrota

Um relato contextualizado seguido de uma análise sobre a derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 1950. Nesta obra, de 1985, Paulo Perdigão remonta a que é, provavelmente, a maior tragédia do esporte brasileiro e as consequências que ela trouxe.

Gol de letra – o futebol na literatura brasileira

Lançado em 1967, é uma seleção de crônicas sobre futebol, organizada por Milton Pedrosa. Dentre os nomes que assinam os textos, há escritores como Coelho Netto, Carlos Heitor Cony, Fernando Sabino, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Vinícius de Moraes.

Os subterrâneos do futebol

Um dos clássicos da literatura de futebol no Brasil foi publicado em 1963 e traz o relato de João Saldanha, que foi treinador do Botafogo e viria a ser o técnico da seleção brasileira nas eliminatórias para a Copa de 1970, sobre os bastidores do futebol.

A história do futebol no Brasil

Assinada pelo jornalista Thomáz Mazzoni, a obra conta a história do esporte no país ao longo de 56 anos, entre 1894 e 1950. Para compor o livro, Mazzoni se apoia principalmente em documentos e na própria vivência no mundo esportivo, com a preocupação de reunir o maior número possível de informações sobre os principais fatos do futebol no Brasil.

MANOEL RICARDO DE LIMA Geografia aérea 7 Letras

Neste livro, o poeta reúne reescrituras. Afora os inéditos do início do volume, os demais poemas são reelaborações de textos publicados em Embrulho e Falas inacabadas – objetos e um poema (ambos de 2000) e Quando todos os acidentes acontecem (2012). Uma oportunidade para os leitores se (re) encontrarem com este autor.

MARCELINO FREIRE Nossos ossos Record

Primeiro romance do autor, Nossos ossos guarda afinidades com seus livros de contos, tanto do ponto de vista da linguagem e da narrativa, quanto da temática. No que diz respeito às primeiras, oralidade, frases curtas e cortantes. Quanto à temática, o cenário urbano, violento e solitário, pontuado por momentos de encontro. As afetividades homoeróticas embasam o enredo.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 65

Leitura_JUN.indd 65

26/05/2014 10:19:08


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

DUAS CENAS PASTORIS

PRIMEIRA CENA

O rapaz que viaja à minha frente no trem não olha com bons olhos o senhor escrevendo numa caderneta. Veio de Potengi morar no Crato, hospedou-se na casa do sogro com a esposa e dois filhos, vai procurar trabalho em Juazeiro, na única profissão que aprendeu: a de vaqueiro. Não parece fácil. Boa parte dos rebanhos morreu em três anos de estiagem, agravando a decadência da agricultura e da pecuária. Se não encontrar emprego, volta a Potengi. Não, ele não bebe, em respeito aos pais da esposa, ambos evangélicos. Também não sai de casa à noite e não gosta de responder a perguntas. Nem o dinheiro da passagem de volta ele possui. Um real. O jeito será fazer o percurso a pé, 12 quilômetros. Nada pede ao escritor, a confissão de indigência fere seu orgulho. Recebe com dignidade os dois reais que o homem saca da carteira e, ao descer do vagão, não olha para trás. As ranhuras nos vidros das janelas são propositais? Ninguém enxerga a plenitude da miséria em torno, o lixo

descendo pelas encostas, restos de mato, poças d’água e riachos que no passado eram exuberantes, e agora são indefinidos como as pinturas de Monet velho e quase cego. Nos painéis das Ninféias, uma paisagem aquática com plantas, galhos, reflexos de árvores e nuvens. Aqui, as imagens da natureza destruída assombram o senhor de barba e cabelos grisalhos. Fez o mesmo percurso entre Juazeiro e Crato, há 46 anos. Um tempo grande, o bastante para ele também sofrer mudanças e cobrir-se com outras formas de lixo. Anota impressões no caderno e as frases lhe parecem falsas, vazias. Compara o lixo atirado pelos moradores nos barrancos aos rabiscos do caderno de notas. Faz calor, os vagões do trem fechado não refrigeram bem. No passado, abriam-se as janelas. Escrever tornouse um pesadelo. Quais os choques permanentes do escritor? A pergunta não é dele, Peter Brook formulou-a sobre o trabalho do ator, a propósito de Grotowski. O choque de se ver confrontado com desafios simples e irrefutáveis. O vaqueiro não se rende

à miséria e luta por uma profissão em declínio, por seu lugar no mundo em ruínas. O choque de entrever suas próprias camuflagens, seus truques, seus clichês. O entulho das palavras no caderno de notas, as frases de efeito, o enfadonho exercício de criar a beleza sem verdade. O choque de sentir a imensidão dos seus recursos inexplorados. A cegueira não impediu que Monet pintasse as Ninféias, olhando mais para dentro do que para fora, alcançando a máxima depuração das cores. É possível a mesma experiência com as palavras? O choque de ser obrigado a se perguntar por que é um escritor. Por quê? Por quê? Por quê? O choque de ser obrigado a reconhecer que tais questões existem, que é hora de encará-las e querer encará-las. O choque de descobrir que escrever é uma arte à qual é necessário consagrarse totalmente, de uma maneira monástica e absoluta. Felizmente, o trem chega ao destino. As pessoas descem vagarosas. O vaqueiro ficou duas estações atrás: duro, cruel contra si mesmo, exigindo um único

CONTINENTE JUNHO 2014 | 66

Entremez_JUN.indd 66

26/05/2014 10:21:26


KARINA FREITAS

papel no mundo, um modo de vida autêntico naquele lugar do planeta.

SEGUNDA CENA

É custoso enfiar o pé 43 na bota de borracha número 40. Mas é necessário para atravessar a lama e chegar ao Jardim. Dias de chuva continuada, riachos e grotas encharcaram a terra. A cada passo um atoleiro, o corpo se desequilibra, afunda, ameaça cair. “Você tem certeza de que dá para chegar?” “Chega fácil. Só hoje, fui e voltei duas vezes.” O lugar fica onde o Jardim se espalha, ganha profundidade e se presta ao banho. “A cheia veio nesse ponto?” “Choveu muito, graças a Deus.” O Jardim deságua no Carás, que deságua no Salgado, que deságua no Jaguaribe, e este no mar. É um dos rios da minha infância, onde eu nadava nos meses de férias. Tento alcançar o poço de d. Naninha Biliu, já que é impossível chegar ao remanso que pertenceu à minha avó. As matas foram derrubadas e vendidas para as olarias. Cada 100 tijolos fabricados queimaram uma

ingazeira, uma cajazeira, um angico. As casas se edificam sobre cemitérios de árvores. Erguem-se as paredes, abrem-se as janelas, o corpo se debruça num parapeito, o olhar busca lá fora, mas só enxerga o deserto. Não existem mais poços d’água cobertos de vegetação, parecendo cavernas. “Lembra que você gostava de se esconder neles?” “Lembro.” Agora as águas correm a céu aberto e, quando o sol bate, secam depressa. “O sol ficou mais quente, reparou?” “Reparei.” “E você quer tomar um banho pra matar a saudade?” “Não sei se a saudade se mata ou se ela mata a gente.” Meu filho Tomás me considera saudosista. Busco apenas compreender o presente. Assis Gonçalves ri da conversa fiada, levanta a bermuda até as coxas, agora estamos os dois no meio da água, olhando a correnteza acima. “Ali é bom de mergulhar, não vai tomar banho?” “Não sei, dá trabalho tirar a roupa, descalçar as botas.” As águas passam ligeiras, lembro o rio de Heráclito. Há muito balseiro nas margens do Jardim, enganchado em arames, nas unhas de gato. Tudo o

que não presta o rio foi deixando para trás. Assis Gonçalves me pergunta se a literatura serve para alguma coisa, ou se é apenas balseiro. Não quer ofenderme, é incapaz disso. Fala-me sobre o dia em que o genro pediu a mão de sua filha em casamento. Enquanto narra a história, enche d’água a concha das mãos e molha a cabeça, como se desejasse esfriá-la. Os gestos são precisos, teatrais, nenhuma energia se perde a cada movimento. Estamos cercados pelas águas. Meu avô morreu um pouco adiante e por bem pouco a enchente não carregou o seu corpo. Assis Gonçalves esfrega as nódoas dos braços, lava o rosto. Não perco nenhum dos seus gestos e gostaria de transformá-los em literatura. Como é difícil, constato. “Você não vai se banhar?”, insiste. “Não”, respondo. Quando era menino, passava o dia no rio. Nadar era o que eu mais sabia fazer. Agora, viciei-me em ver e pensar. Mas também sinto, sinto muito, bem mais do que quando me debatia com os braços e as pernas. Acho que a literatura é responsável por isso. Talvez. Para alguma coisa ela deve servir.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 67

Entremez_JUN.indd 67

26/05/2014 10:21:27


IMAGENS: REPRODUÇÃO

1

FILATELIA De quando se esperava pela correspondência

Lançamento de selos comemorativos da Copa do Mundo no Brasil atualiza tradição colecionista, que se configura ferramenta de reconstituição histórica TEXTO Fernando Athayde

Visuais

No dia 2 de maio, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) lançou uma série comemorativa de três selos especiais da Copa do Mundo do Brasil. Composta por estampas da icônica Taça do Mundo Fifa, do brasão que representa o evento e do mascote Fuleco, essa série é a segunda lançada este ano, em função da maior e mais aguardada competição do universo futebolístico. A primeira, emitida em janeiro, trazia 12 estampas com as cidades-sede da Copa. Na verdade, ambas fazem parte de uma tradição que teve sua gênese há muito tempo. Em 1840, graças à perspicácia do funcionário do correio inglês Rowland Hill, que promoveu uma reforma no modelo postal vigente, o primeiro selo da história foi criado como símbolo dessa mudança. O Brasil, que vivia um período de pleno desenvolvimento sob o comando do imperador mais culto do mundo, Dom Pedro II, seguiu de perto o exemplo da Inglaterra e foi o segundo país a emitir um selo postal. A partir daí, estava instaurada a filatelia, a arte de colecionar selos – uma prática tão intrigante quanto complexa.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 68

Visuais_JUN.indd 68

26/05/2014 10:24:19


5

2

1

MARACANÃ O Estádio Jornalista Mário Filho estampa o selo mais famoso da Copa do Mundo de 1950

2

COPA DA SUÉCIA A vitória na Copa de 1958 rendeu selo e carimbo em homenagem à vitória da seleção brasileira

3-5 1970 A série produzida neste ano fazia alusão às conquitas anteriores do Brasil, em 1958 e 1962, e trazia a imagem da desejada taça

3

Nos idos de 1920, a filatelia atingiu seu ápice, ramificando-se e tomando um caráter histórico único. Acompanhando todos os grandes acontecimentos que passavam pela Terra, não demorou para que, ao início da primeira Copa do Mundo, em 1930, o sistema postal do Uruguai emitisse os primeiros selos comemorativos do evento. Hoje raríssimas, essas estampas só podem ser encontradas em leilões ou sites de venda específicos por um preço nada amigável. O mesmo se diz das produzidas para as competições de 1934 e 1938, realizadas na Itália e na França, respectivamente. No Brasil, os primeiros selos em comemoração à Copa só foram emitidos quando, à sombra do governo Dutra, o país sediou a quarta edição do evento, em 1950. O mais famoso deles é o estampado pela imagem do Estádio Jornalista Mário Filho, o famoso Maracanã, que havia sido construído à altura para a competição. Ironicamente, foi lá que a Seleção Canarinha, que sequer usava o tradicional uniforme azul e amarelo, perdeu de 2 x 1 para o

Nos anos 1920, a filatelia atingiu seu ápice, ramificandose, acompanhando e registrando grandes fatos históricos Uruguai e chorou o bicampeonato dos vizinhos dentro do próprio coliseu. A tradição foi mantida e, a partir de 1958, com a Copa da Suécia, o Brasil passou a emitir sua própria série de selos comemorativos a cada nova competição. Em 1966, período em que a Companhia Brasileira de Correios e Telégrafos passava por um processo de modernização, porém, não foram emitidos selos da Copa. O fato acabou compensado pouco tempo depois, quando o tricampeonato brasileiro foi conquistado no México, em 1970. Na época, saíram alguns dos primeiros selos policromáticos da história do Brasil, cuja novidade é valorizada até hoje. Um deles, referente ao milésimo gol de Pelé, emitido um pouco antes,

4

em 1969, tornou-se extremamente popular e hoje se acha com alguma facilidade, tamanha a adoração que os colecionadores têm por ele. Por volta de 2002, o pioneirismo brasileiro em relação à filatelia ainda voltou a se mostrar. Os primeiros selos redondos da história do país foram emitidos em função da Copa do Mundo do Japão e da Coreia. A série trazia impressões de todos os países vencedores da competição.

NOVO MOMENTO

Falar sobre o rumo que a filatelia tomou, especificamente a temática da Copa do Mundo, nos traz alguma introspecção. Na sociedade atual, cuja cultura da exposição do cotidiano individual via internet contrasta com a política de proteção e direito à imagem, é complicado visualizar a arte de colecionar selos como uma prática reciclável e capaz de se adaptar à contemporaneidade. Um exemplar, que trazia estampado Pelé dando seu famoso soco no ar, tal qual o anteriormente citado, dificilmente seria veiculado sem a autorização do atleta, por exemplo. Isso sem falar

CONTINENTE JUNHO 2014 | 69

Visuais_JUN.indd 69

26/05/2014 10:24:21


7

Visuais 6

9

6

ARTILHEIRO Selo comemorativo dos mil gols de Pelé é um dos mais populares e ainda pode ser encontrado

7-8 1978

Essa década foi marcada pelos primeiros selos policromáticos brasileiros

10

nas inúmeras cláusulas contratuais que envolvem a figura do jogador de futebol de hoje, elevado ao patamar de garoto-propaganda, empresário e tantas quantas funções lhe couberem. No Brasil, a tiragem média de um selo entre as décadas de 1950 e

8

1970 variava entre um e cinco milhões de cópias, número dificilmente atingido hoje, mesmo com a população brasileira tendo quadruplicado nas últimas cinco décadas. Além disso, efemérides como os álbuns de figurinhas da Copa, tão populares nas últimas

9

MODERNOS Criações feitas para a Copa do Mundo de 2002 traziam referências dos países que já haviam ganhado a competição

10

COPA NO BRASIL Mesmo com tiragem menor, o país manteve a tradição e preparou uma série de selos para marcar a edição de 2014

competições, também são responsáveis por capturar a atenção das gerações mais novas, restringindo ainda mais a filatelia aos velhos praticantes. Na realidade, porém, os selos sempre configuraram – e ainda configuram – uma extensa ferramenta de análise e reconstituição histórica, algo que diferencia a filatelia de outras práticas de colecionismo. Se, no passado, a aquisição dos selos era feita através do contato direto com as sociedades filatélicas, das quais vale destacar a Associação

Brasileira de Filatelia Temática (Abrafite), hoje, é ironicamente através da internet que se consegue muita coisa. Outrora uma prática ritualística muito diferente de arrastar o ícone de um produto para o carrinho de compras e efetuar o pagamento via pay pal, a aquisição dos selos gerida através de cartas chegava a tanger a poesia – algo que só é evidenciado quando traçamos a associação livre entre a própria filatelia e o motivo pelo qual foram criados os selos. De qualquer forma, ainda que a arte de colecionar selos seja uma prática cuja capacidade de renovação não é evidente, não se deve negar a importância que ela tem, inclusive de mercado. O selo de um centavo da Guiana Inglesa, conhecido como o mais raro do mundo por só haver uma unidade, por exemplo, vai a leilão em junho desse ano e, segundo os especialistas, o evento deverá movimentar entre 10 e 20 milhões de dólares.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 70

Visuais_JUN.indd 70

26/05/2014 10:24:25


ROGÉRIO ASSIS/DIVULGAÇÃO

REPORTAGEM Retorno aos zo’é

Livro documenta as duas viagens que o fotógrafo Rogério Assis empreendeu ao encontro do grupo indígena paraense TEXTO Adriana Dória Matos

O ano era 1989 e o fotógrafo Rogério

Assis estava trabalhando com uma equipe na produção de um vídeo institucional para a Funai, quando foi chamado para integrar outro grupo da Fundação, que estava indo às pressas ao encontro de um povo indígena até então não contatado por ela – uma etnia conhecida à época como poturu, mas que depois viria a ser reconhecida como zo’é. O problema é que, por conta da aproximação com missões evangelizadoras, 147 desses indivíduos estavam com a saúde severamente debilitada. Rogério Assis conta que não teve tempo nem de se reabastecer, então, só levou consigo quatro rolos

de filmes Tri-X. Os registros que fez nesse primeiro encontro são reputados como as primeiras fotografias dos zo’é. Essas imagens, em preto e branco, se juntam a outras que o fotógrafo paraense fez 20 anos depois, no livro Zo’é, que teve recente lançamento e exposição no Recife, no Centro Capibaribe de Imagem (CCI). Rogério Assis está entre os fotógrafos brasileiros que se dedicam ao registro visual de grupos indígenas e seu aporte é francamente antropológico e documental. Essa especificidade torna desigual, por exemplo, a comparação entre o seu trabalho reunido neste livro e o de Claudia Andujar junto aos ianomâmi, nos anos 1970-80, e

publicado em várias obras, ou o de Sebastião Salgado, entre os mesmos zo’é, no livro/exposição Gênesis (2013). Isso porque, mesmo providas de beleza estética, as imagens de Assis apontam para uma preocupação maior com o registro de situações do cotidiano desse povo de língua tupi, que habita o noroeste do Pará, ao longo dos rios Cuminapanema, Erepecuru e Urucuriana, e que, de acordo com a antropóloga Dominique Tilkin Gallois (autora de importante texto no livro de Assis), contabiliza 270 indivíduos. Se essa opção documental de Rogério Assis se distancia do trabalho de imensa carga poética de Andujar e do soberbamente estetizado de Salgado, ele se aproxima de registros mais fotojornalísticos, como os de Nair Benedicto, Pedro Martinelli e Milton Guran, para citar alguns. A propósito, para quem se interessa pelo tema, existe um ótimo trabalho de observação da construção da imagem do índio brasileiro pela fotografia no projeto de pesquisa Iconografia fotográfica dos povos indígenas do Brasil, que pode ser lido na página O índio na fotografia brasileira. É curioso como tem variado a percepção de não índios sobre grupos indígenas, desde os primeiros registros fotográficos, no século 19. Vai desde uma visão do índio como o “exótico” de gabinete de curiosidades, passando pelo desejo de “pacificá-lo”, doutriná-lo, “civilizálo”, pelos projetos assistencialistas, de integração e preservação, até a compreensão – mais comum hoje – de que é preciso manter-se a uma distância possível e atuar pela proteção dessas comunidades, sobretudo daquelas em situação de isolamento, como é o caso dos zo’é. A inflexão de reportagem que perpassa o livro Zo’é decorre da própria trajetória de Rogério Assis, que, radicado em São Paulo, vem trabalhando para jornais e revistas de grande circulação. Ele conta que, depois de 1989, tentou voltar várias vezes aos zo’é, mas que nenhum veículo se interessou pelo assunto. O seu retorno de três semanas, em 2009, “foi um investimento pessoal”, como ele afirma. Depois de algumas peripécias, conseguiu editar o livro pela Terceiro Nome.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 71

Visuais_JUN.indd 71

26/05/2014 10:24:26


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

LUGAR DE MORRER

Morcego (pres. ind. do verbo

“morcegar”) artigo de José Almino de Alencar no Jornal do Commercio, Recife, domingo, 23/fev./14, Uma coisa leva a outra como de fato fui levado pelos assuntos ali referidos, exemplo esse do lugar de morrer, de importância fundamental para nosso sossego: felicidade, segundo Sto. Agostinho, só no outro mundo. Morrer, se morre em qualquer lugar, dirão; o que interessa é o lugar de viver, e viver bem. Mas eu direi no entanto que só quem sabe o lugar de morrer, quem já escolheu onde terminar os seus dias, onde ficar até que a morte nos separe, demonstra maturidade para viver. Você vai morrer aí, amigo Zé Almino, no Rio de Janeiro, ser enterrado no Cemitério São João Batista? Sem andar, gastar sola dos sapatos nas ruas do Recife até que esqueça estar no Recife? O único lugar onde eu não sei quem sou nem seja isso motivo de cogitação, nem sei onde estou, nem preciso, é o Recife. Me diga: você, em outro lugar, não sente que está faltando uma coisa, que está sendo vice, que é segundo prêmio? No livro A cidade antiga de Fustel de

Coulanges ele diz que em Atenas a pena de exílio podia ser comutada em pena de morte caso o réu pudesse invocar a seu favor altos serviços prestados à nação. É isso que não quero dizer à minha filha Maria mas a você eu digo. Zé, não brinque com essas coisas não, Zé! Esses homens antigos sabiam das coisas. “Eu felizmente tenho o meu aleijo”, como disse aquele passador de rifa de Barreiros da história de Garibaldi Otávio (o delegado tinha proibido vender rifa, verdadeira epidemia em Barreiros, somente, dali em diante, permitido a viúvas desamparadas e aleijados). Eu felizmente já sei que vou para Guadalupe, cemitério aqui pertinho, quase na mesma rua. Acho que quando Gari viu que não dava mais veio embora. Alguma coisa me diz que o barro de que somos feitos deve ser restituído. Ou as cinzas, que já há aqui a possibilidade da cremação. Que prefiro. Menos tétrico do que daqui a algum tempo nos recolherem a ossada. E mesmo o enterro, emparedado ou no chão. Hermilo Borba Filho quis ser velado no chão, isto é, dentro do caixão

simples, caixão aberto no chão, ele descalço e em mangas de camisa, camisa de manga curta por fora das calças. Assim foi feito mas Lêda calçoulhe umas meias. E enterrado no chão: Eu até esculpi uma cruz de pedra bruta, sem acabamento e meio troncha, de granito, de pouco menos de lm de altura. Levei no cemitério e botei em cima da cova. Algum tempo depois, indo ao mesmo Cemitério de Santo Amaro no enterro do pintor Wellington Virgolino, procurei a cova de Hermilo, que eu tinha marcado o lugar. Só tinha o capim. Nada da cruz. Perguntei à direção do cemitério o que tinha havido. Me informaram que a esposa legítima tinha mandado tirá-la. Fui encontrar a cruz no depósito de cal, meio enterrada num monte de cal. Lêda levou a cruz para o jardim da casa onde morava o Pe. Marcelo Carvalheira e onde a vi pela última vez, detrás da Sé de Olinda. Lá deve permanecer até hoje. Vou marcar com Lêda para irmos lá. Meu pai, Amaro Joaquim da Silva, nascido no Engenho Taveira, no Cabo, que agora inventaram de chamar Cabo de Santo Agostinho, as últimas palavras

CONTINENTE JUNHO 2014 | 72

Coluna Materia Corrida_JUN.indd 72

26/05/2014 10:44:05


DIVULGAÇÃO

1

CAPIBARIBE VERMELHO

Ana Catarina Mousinho, óleo sobre tela, 70 x 100 cm, 2013

1

que ouvi dele no hospital pouco antes de falecer foram: “Quero voltar para Ipojuca”. Ipojuca a que ele chegou criança para trabalhar na loja de Seu Feijó, loja de onde só saiu para botar a sua própria alguns metros adiante no centro da cidade e onde todos nascemos, eu o mais velho, quatro irmãs e um irmão que nasceu morto, de um susto que minha mãe teve aos oito meses de gravidez, um boi que entrou na loja e pulou o balcão a bem dizer em cima dela. À altura da morte de meu pai já morávamos no Recife havia muitos anos. Perguntei: “Pra que, papai?”. “Pra dormir”, ele respondeu. Está enterrado no cemitério de Ipojuca, junto com meu avô pai dele, Joaquim Pedro da Silva, mais conhecido como Pedro Taveira, nome do engenho onde nasceu meu pai. Quanto a mim, vou ficar por aqui mesmo, no cemitério do bairro, aqui perto, Guadalupe. Uma coisa que acho terrível, mas espero não estar mais aqui, é minha filha ser enterrada nos Estados Unidos. Incluindo aí minha neta. Nem sei falar inglês! Algum dia, algum descendente meu, se houver, mais interessado em árvore

Alguma coisa me diz que o barro de que somos feitos deve ser restituído. Ou as cinzas, que já há aqui a possibilidade da cremação. Que prefiro genealógica, lá nos Estados Unidos, saberá, como coisa meio lendária, que um seu ancestral teria entrado lá séculos atrás vindo dum país chamado Brasil. No enterro de Wellington tropecei numa coisa feito um pedaço de pau, melado de terra. Era um fêmur. Nunca mais pisei num cemitério. Nem no enterro de minha mãe. Minha mãe, Maria Ramos da Silva, porque nascida Domingo de Ramos, num engenho de Sirinhaém, em solteira Maria Ramos de Albuquerque Pinto, Ramira, costumava dizer que só queria viver até a morte de um filho. Isto valia tanto para mim como para minhas irmãs. Estamos todos vivos. Mas sentia a frase especialmente

dirigida a mim, único filho homem e o mais velho. Ela morreu com mais de noventa anos, falência múltipla dos órgãos. Certa vez cheguei lá no apartamento na Conde da Boa Vista onde morava com uma de minhas irmãs, ela sentada na cadeira de balanço, revista aberta nas mãos e repetindo uns números sem nexo: “Um, dois, quatro, nove...” Tirou os olhos da revista, olhou para mim e voltou à revista. A empregada Zeza, uma senhora, disse: “Dona. Ramira! Esse é Zezé, seu filho!” Ela me olhou de novo, baixou os olhos para a revista exclamando: “Eu sei lá quem é Zezé!” Pensei cá comigo, já podia morrer em paz, sem lhe causar dano. Engraçado. Hoje meu filho Mané, Cláudio Manuel da Silva, mais conhecido como Mané Tatu, que segue também a paixão da pintura, veio tomar uma sopa aqui em casa e eu disse a ele que queria morrer em casa, como se morria em Ipojuca. Botassem meu corpo estendido em cima da mesa arrodeado de velas para não sentirem catinga de peido. Morto é danado para soltar peido.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 73

Coluna Materia Corrida_JUN.indd 73

26/05/2014 10:44:05


DIVULGAÇÃO

Palco 1

COMUNITÁRIO Tablado para quem quiser

Essa dialógica manifestação teatral compartilha preocupações, verbaliza problemas e procura resolvê-los TEXTO Pethrus Tiburcio

C O N T I N E N T E J U N H O 2 0 1 4 | 74

Palco_JUN.indd 74

26/05/2014 10:34:54


1

LOUCAS DA PEDRA LILÁS Desde sua criação em 1989, o grupo trabalha temas como autonomia da mulher, violência de gênero e saúde sexual

Para fora da porta de casa, os locais onde vivemos nossas experiências mais substanciais são o que podemos chamar de “comunidades”. Dentro delas, problemas, queixas comuns para lugares comuns. Esse grupo de pessoas é o intermédio entre o indivíduo e a sociedade mais ampla, que precisa dialogar e, às vezes, o faz pelo teatro. Há, porém, duas formas de se pensar “comunidade” e, portanto, o teatro que se faz nela. A primeira aponta para a comunidade no sentido geográfico: um bairro, uma rua, uma vila. A segunda ignora a proximidade dos participantes e os reúne pelos interesses e pautas compartilhadas. Marcia Pompeo, pesquisadora da Universidade do Estado de Santa Catarina, considera essa uma das formas mais frequentes de se fazer teatro no país. “O teatro na comunidade, no Brasil, é uma prática ampla, diversa, viva, que não para de crescer, e está ganhando visibilidade e articulação.” Essas formas comunitárias do fazer teatral podem ser divididas em três pilares, caracterizados pelos modos como os fluxos de informação acontecem: teatro para, com e pela comunidade. O primeiro caminho aponta para perspectivas que busquem levar informações para locais onde elas são precárias. A segunda para um olhar que, mais do que isso, procure democratizar as formas de se fazer teatro. Esses dois caminhos são evoluídos ou complementados por iniciativas dialógicas, nas quais eles são feitos pelo povo, a fim de fortalecer comunidades, compartilhar preocupações, verbalizar problemas e procurar maneiras de resolvê-los. O teatro para comunidade é facilmente identificável, através de duas figuras recorrentemente usadas pelo poder público para a transmissão de informação: Mateus e Catirina, que fazem uma série de campanhas, a exemplo da educação sanitária, com esquetes dos personagens. Nessa perspectiva quase unilateral de comunicação, as apresentações de teatro são frequentemente seguidas de sessões de perguntas e respostas e divulgação de material instrutivo. O programa Consultório na Rua, política pública promovida pelo Ministério da Saúde, lançado em maio deste ano,

é um exemplo. A intenção é inserir moradores de rua de 19 bairros do Recife na rede de saúde pública. As inserções nos bairros são sempre abertas por esquetes de teatro, que falam sobre doenças e serviços. “A linguagem nos dá a possibilidade de falar de doenças como tuberculose e hanseníase de forma lúdica e atrativa. Nas apresentações, falamos de prevenção e orientamos a busca de serviços e profissionais”, explica a coordenadora do projeto, Brena Leite.

FALAR POR SI

Em certos contextos, essa perspectiva “de cima para baixo” não é a única e pode ser considerada ultrapassada. A partir de dado momento, busca-se acesso ao teatro num movimento de levá-lo para as áreas rurais e urbanas empobrecidas, tirando dele o caráter de entretenimento de elite e dando mais abertura às pessoas falarem por si. Um exemplo local ocorre hoje na comunidade do Detran, na zona oeste do Recife, através de um projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O Arte e saúde: promovendo comunicação e a capacidade funcional em idosos através do teatro é uma iniciativa interdisciplinar dos professores Luiz Reis (de Teatro), Vanessa de Lima (de Fonoaudiologia) e Kátia Magdala (de Terapia Ocupacional). Junto a vários bolsistas, o grupo reúne, todas às tardes de quintasfeiras, cerca de 20 a 25 mulheres idosas em oficinas de criação e discussão. Além de formá-las para participarem do processo criativo do teatro, o projeto quer fortalecê-las como espectadoras. “A realidade do Detran aparece naturalmente nas narrativas e memórias das mulheres, mas a gente também quer que elas circulem e ampliem suas experiências, percebendo o que lhes foi suprimido”, explica Luiz Reis. Uma das iniciativas do projeto – financiado pela UFPE e, mais recentemente, por edital do Ministério da Cultura – é levar as mulheres para lugares e espetáculos que não conheciam ou tinham dificuldade de acesso, como a Paixão de Cristo e O Rei Lear no meu quintal. A escolha do Detran como receptor do projeto se deu, entre outras motivações, pela

CONTINENTE JUNHO 2014 | 75

Palco_JUN.indd 75

26/05/2014 10:34:54


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

2

MOVIMENTO SEM TERRA Nas “místicas” do MST, utiliza-se o teatro para renovar a esperança de uma revolução social

3

ARTE E SAÚDE Projeto desenvolvido por professores da UFPE estimula um grupo de idosas a participarem do processo criativo do teatro

4

2

Palco 3

ausência de aparelho cultural que receba ou movimente apresentações no local. Hoje, o projeto funciona no terraço de uma escola municipal. Segundo a pesquisadora Marcia Pompeo, esse tipo de trabalho se relaciona com a perspectiva marxista de encarar a classe trabalhadora como a classe revolucionária. Barateamento dos ingressos e instrumentalização dos espetáculos foram as primeiras iniciativas. Ela relaciona estas ao Teatro de Agitação e Propaganda, criado a partir da Revolução Russa. O agitprop, como também era chamado, mantinha uma postura doutrinária (a fim de difundir os pensamentos socialistas), mas colaborou ao estimular o uso de símbolos, estabelecer diálogos e cenas curtas, favorecendo o conteúdo em detrimento da forma. “Essa simplicidade permitia que se apresentassem em diferentes

espaços, como em frente de fábricas, na rua, em zonas rurais, dando também mobilidade para que mudassem de um espaço para outro com facilidade”, explica ela.

TEATRO DIALÓGICO

Uma terceira perspectiva do teatro de comunidade, mais horizontal, faz uma crítica ao teatro propagandístico e um convite às pessoas a falarem da própria realidade. Essa linha é conduzida, principalmente, pelo dramaturgo Augusto Boal que, em contato com a pedagogia de Paulo Freire, criou o Teatro do Oprimido. “É um conceito guarda-chuva de proposição teóricoprática de um teatro aplicado, também com interesses estéticos, mas sobretudo sociais, terapêuticos e políticos”, explica Luiz Reis. A ideia é dar voz a pessoas em situações de opressão e propor soluções, usando o teatro como ferramenta de libertação.

AUGUSTO BOAL O dramaturgo faz um convite às pessoas para falarem da própria realidade

“É usar o teatro como ensaio de uma revolução”, complementa. As Loucas de Pedra Lilás surgiram em 1989, portanto, há 25 anos. Nos protestos de rua, tal qual a Marcha das Vadias, suas apresentações irreverentes são destaque nas coberturas midiáticas. Seu teatro é declaradamente feminista. As pautas que tinham há um quarto de século mantêm-se em pleno 2014: autonomia da mulher, violência de gênero, saúde sexual e reprodutiva, aborto, mortalidade materna. “O Loucas nasce dentro da demanda do movimento feminista de dar mais visibilidade às nossas questões de maneira lúdica e artística”, diz Cristina Nascimento, coordenadora pedagógica do grupo. As reuniões, que hoje acontecem alternadamente nas casas das integrantes, deixam claro que o conceito de comunidade não se restringe ao espaço geográfico. Elas são: Ana Bosch, Cristina Nascimento, Patrícia Lima e Nadege Nascimento. Cara pintada, roupas pretas e vozes estridentes, elas vão às ruas, escolas, a postos de saúde, seminários, e aonde mais sentirem necessidade, a fim de criar temporários espaços de discussão. Todos os tópicos – regrados pelo caráter anticapitalista, antirracista e anti-patriarcal – defendem a emancipação da mulher. Quando perguntada sobre o porquê do uso do teatro como comunicação, Cristina responde: “O teatro é uma arte viva e presente, que junta diversas linguagens a partir de um meio de comunicação direto e não intermediado”. O processo criativo do grupo também busca aparato teórico no Teatro do Oprimido. Dentro dele, Boal apresentou várias metodologias e a mais conhecida é o teatro-fórum. A

CONTINENTE JUNHO 2014 | 76

Palco_JUN.indd 76

26/05/2014 10:34:55


ideia é criar uma situação de opressão condizente com a realidade daquela comunidade, e, no meio da peça, quando a situação chega ao seu limite, os intérpretes (ou curingas) convidam o público a fornecer soluções e, às vezes, atuarem para colocarem fim às questões. O processo criativo das Loucas começa em reuniões internas entre as integrantes, uma vez que elas vêm de contextos diferentes e carregam experiências e leituras diversas. A partir disso, elas estabelecem conversas com grupos com os quais interagem, como parentes e vizinhas. “Quando vamos para as ruas, criamos verdadeiras audiências públicas, às vezes com presença de representantes do poder público”, diz Cristina.

MÍSTICAS

Marcia Pompeo identifica a prática de teatro na comunidade a partir de iniciativas vindas das políticas públicas, das organizações não governamentais (ONGs), de instituições religiosas, de grupos de teatro, de pessoas independentes e também dos movimentos sociais. O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) utiliza, desde o princípio, as práticas teatrais e elas são apresentadas em grupos consolidados ou dentro das “místicas”.

O Teatro do Oprimido dá voz a pessoas em situações de opressão e propõe soluções, usando o teatro como ferramenta Na rotina dos movimentos sociais, é comum que os participantes destinem momentos específicos à prática das chamadas místicas. No MST, elas acompanham sua origem, por volta de 1984. Usam diversas linguagens, inclusive o teatro, a fim de fazer resgates históricos e renovar a esperança de uma revolução social, sendo o principal local de socialização das experiências individuais e comunitárias. Ana Emília Borba, militante do Coletivo de Comunicação e Cultura do MST Pernambuco, explica a prática dentro do movimento: “As místicas são parte de nosso cotidiano, alimentam nossos sonhos, nossa utopia. É uma mistura de sentimentos que são expressos de diversas formas, que podem ter ou não as linguagens artísticas”. É também a partir de Augusto Boal que o teatro surge no Movimento dos Trabalhadores sem Terra de forma

4

mais organizada. Em 2001, no Rio de Janeiro, militantes de vários estados participaram de um curso sobre o Teatro do Oprimido com o dramaturgo. Lá, deram início à chamada Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré – coletivo responsável pela articulação nacional entre os grupos, promovendo encontros de intercâmbio entre eles. “O teatro, para nós, é um instrumento de transformação social, deve servir como espaço de reflexão, crítica e ação. O trabalho mais interessante que fizemos foi em 2005, durante a Marcha Nacional por Reforma Agrária, quando organizamos um teatroprocissão com mais de 200 pessoas em cena”, comenta Ana Emília, sobre a trajetória do movimento nacional com o teatro. A partir dessa experiência, diversos grupos se formaram no país. Em Pernambuco, apesar das oficinas feitas com os assentados e seus filhos, nenhum grupo foi consolidado. As práticas dentro do MST não apenas quebram a total dependência da mídia hegemônica – que é frequente alvo de críticas dos militantes –, mas dialogam sobre questões internas ao movimento, ao mesmo tempo que procuram externar em sua bandeira opressões como racismo, machismo, homofobia e violência doméstica, discutidas dentro do movimento.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 77

Palco_JUN.indd 77

26/05/2014 10:34:56


A literatura é um terreno minado, apaixonado e real, justamente porque tudo não passa de ficção. É o que o tenta passar para os leitores, há 100 edições

Claquete_JUN.indd 78

27/05/2014 10:48:31


REPRODUÇÃO

Com o passar dos anos, a imagem de

Claquete

1

EFEITOS De onde saíram os monstros

Eiji Tsuburaya foi o pai da concepção visual e dos efeitos especiais do Gojira, cuja versão original estreou há 60 anos TEXTO Fernando Athayde

um monstro gigante de látex e fibra de vidro destruindo uma cidade de papelão tornou-se quase universal, presente na infância de gerações. Hoje, pensar nessa cena é como encontrar uma brecha no tempo, por onde é possível retroceder ao passado e reviver, mesmo que por alguns instantes, a infância. Uma lembrança que se deve ao trabalho do japonês Eiji Tsuburaya, inovador da área de efeitos especiais que ajudou a definir o rumo da ficção científica japonesa. Ele é chamado em seu país de “Pai do Tokusatsu”, em que tokusatsu, contração dos termos tokushu satsuei, significa “filme de efeito especial”. Natural de Sugasawa, na região de Fukushima, no Japão, Tsuburaya nasceu em 7 de julho de 1901. Seu interesse pela arte despontou na adolescência, quando ele passou a estudar fotografia e aeromodelismo. Na década de 1920, estabeleceu o contato direto com o cinema, atuando como cinegrafista do estúdio Shochinku. A partir de então, sua vida passou por um período de intensa busca pelo conhecimento e grandes descobertas. Por volta de 1930, assumiu-se cristão e casou com Masano Araki, também católica. Enquanto isso, ainda trabalhou em diversos estúdios e desenvolveu novas técnicas de filmagem e efeitos visuais. Em 1933, estreou o filme americano King Kong, de grande inspiração para o futuro do cineasta. Dada a adesão do Japão ao Eixo, na Segunda Guerra Mundial, Tsuburaya passou a criar, através da produtora independente Tsuburaya Visual Effects Research, efeitos especiais em produções de cunho militar. Este fato fez com que, iniciada a ocupação americana em solo japonês após o término dos conflitos, o nome do cineasta adquirisse uma péssima imagem frente aos EUA. Mas ele retornou às suas atividades, ingressando no Estúdio Toho, responsável por produções como Os sete samurais (1953), de Akira Kurosawa. Lá, o “Pai do Tokusatsu” viria a presenciar e contribuir para momentos históricos do cinema no Japão.

GOJIRA

Em março de 1954, um navio de pescadores japoneses que circulava pelo Atol de Bikini, o Daigo Fukuryu Maru, foi imerso em cinzas radioativas oriundas de um teste nuclear realizado

CONTINENTE JUNHO 2014 | 79

Claquete_JUN.indd 79

26/05/2014 10:48:11


IMAGENS: REPRODUÇÃO

Página anterior 1 EIJI TSUBURAYA Diretor de efeitos especiais introduziu em Gojira a técnica do suitmation Nestas páginas 2 GODZILLA, O REI DOS MONSTROS No Ocidente, o filme foi adaptado para o modelo de cinema norte-americano

3

Claquete

2

por cientistas americanos. Marcados por queimaduras, náusea e queda de cabelos, todos os tripulantes sobreviveram, com exceção de Aikichi Kuboyama, operador de rádio da embarcação. Reza a lenda que ele, poucos instantes antes de morrer, implorou para ser a última vítima de uma explosão nuclear. Esse incidente foi referenciado na primeira cena de Gojira, o principal trabalho da carreira de Tsuburaya. Nesse ponto da história, o Japão vivia um momento delicado. A destruição de Hiroshima e Nagasaki havia acontecido há menos de uma década e o horror ainda estava presente entre os japoneses. Quando a notícia do acontecido ao Daigo Fukuryu Maru veio a público, o produtor da Toho Tomoyuki Tanaka enxergou uma possibilidade de verter sofrimento em arte: o monstro Gojira, colosso adormecido nas profundezas abissais do oceano, seria acordado por testes nucleares realizados por humanos e viria à superfície arrasar a vida e os continentes. Para a direção e roteirização do longa, foram escalados Ishiro Honda e Shigeru Kayama e, para a concepção visual da criatura e dos efeitos especiais, Eiji Tsuburaya. Da ideia original até a finalização do monstro, que viria a integrar o imaginário popular de todo o mundo, foi um curto espaço de tempo. Gojira estreou no Japão em novembro de 1954, cerca de nove meses após o desastre com a embarcação pesqueira que o inspirou. Foi o suficiente para que o Pai do Tokusatsu solidificasse as bases estéticas da ficção científica nipônica.

ULTRAMAN Produtora de Eli Tsuburayaura lançou série televisiva apra jovens

TSUBURAYA PRO.

A ideia de criar um monstro despertado por testes nucleares surgiu após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki Em Gojira, Eiji introduziu o suitmation. Inicialmente desenvolvida para suprir a escassez de recursos necessários ao stopmotion, tradicional nas produções americanas da época, a nova técnica consistia em vestir um dublê de monstro e fazê-lo atuar sobre um cenário montado em escala reduzida. Além disso, Eiji também explorou com genialidade a utilização de maquetes e miniaturas. A cena em que o monstro Gojira se depara com a rede elétrica de Tóquio é uma síntese do que representa o filme para o cinema. A parceria entre Tsuburaya e Honda, sob o olhar do Estúdio Toho, teve em Gojira apenas o início de uma era. No estúdio, os dois produziram um número exorbitante de filmes de ficção científica voltados para a temática do monstro gigante borrachudo destruindo um continente de papelão. Em 1956, saiu Rodan, o monstro do espaço e, mais tarde, o clássico Mothra, a deusa selvagem (1961). Além desses, vale lembrar Gorath, de 1962, cujo mote era a iminente colisão da Terra com o planeta Gorath, ideia que também reverbera até o presente.

Em 1963, Tsuburaya enxergou na recém-chegada televisão ao Japão uma possibilidade de expandir seus horizontes. Dessa forma, ele fundou a Tsuburaya Productions, estúdio voltado à produção televisiva, com foco na ficção científica. Depois de três anos trabalhando como prestadora de serviços para produções estrangeiras, a produtora de Eiji emplaca, em 1966, sua primeira série, chamada Ultra Q. Baseada nos moldes do seriado norte-americano Além da imaginação, a fórmula era simples: episódios semanais com elenco rotativo e um monstro diferente a cada capítulo. Obteve um sucesso moderado, mas suficiente para que o estúdio desse vazão aos próximos planos. No mesmo ano, chegou à televisão japonesa a série Ultraman, que fundamentou as bases da cultura pop japonesa. Voltado para o público infantil, o seriado contava as aventuras de um alienígena que acaba por cair na Terra, dividindo o corpo com o oficial Shin Hayata, membro do grupo de defensores da humanidade Patrulha Científica. A série foi um sucesso imediato. As poses, o rosto e a figura do extraterrestre Ultraman se tornaram símbolos quase onipresentes na mente dos jovens japoneses até hoje. Em 1967, veio a público Ultraseven, maior produção da Tsuburaya Pro., voltada para um público mais velho. Realizada com largo orçamento e repleta de cenas icônicas, a série foi a última produzida com seu criador vivo. Um momento marcante é a crucificação do personagem-título – uma metáfora da dor de um cristão crescido em meio ao budismo e ao preconceito. Artista genial, Eiji Tsuburaya morreu em 25 de janeiro de 1970, vítima de um ataque cardíaco. Uma das mentes mais originais do cinema japonês se foi, deixando um legado que transcende o próprio Japão, marcando a vida de gerações de forma singela e emocionante.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 80

Claquete_JUN.indd 80

26/05/2014 10:48:12


3

PERSONAGEM Ultra quem? Quando a Tsuburaya

Productions lançou, em 1966, a série infantojuvenil Ultraman, era impossível imaginar que estava sendo demarcado o início de um fenômeno cultural ainda hoje influente. O mestre dos efeitos especiais Eiji Tsuburaya havia fundado a própria produtora há pouco tempo. Apesar de consagrado pelos inúmeros trabalhos feitos para o cinema pelo estúdio Toho, anos antes, ele tentava agora investir na televisão, um mercado então obscuro e inexplorado.

Concebido sob um modesto orçamento e prazos apertados, Ultraman estreou em 17 de julho de 1966, sendo a segunda série da televisão japonesa transmitida a cores. A premissa básica do seriado, de um alienígena superpoderoso que vem à Terra, disfarça-se de humano e protege o planeta de quaisquer ameaças, não é nada original. Dezoito anos antes, em solo americano, ele já havia surgido pelas mãos de Jerry Siegel e Joe Shuster, com o Superman. Ainda assim, a

semelhança entre as obras termina aí. Ultraman teve 39 capítulos e uma das maiores audiências da história do Japão. Originalmente transmitida às 19h, horário ideal para o público infantojuvenil, a série se tornou um marco na rede televisiva Tokyo Broadcast System (TBS). Em 1967, consolidada pelo sucesso da primeira série, a produtora dispôs de tempo e de um bom orçamento para produzir sua nova empreitada, o seriado Ultraseven. Voltado para o público adulto e aberto a experimentações técnicas, ele tinha trama e visual muito parecidos com seu predecessor, ainda que fosse totalmente independente dele. Na verdade, o grande trunfo de Ultraseven foi a proeza de superar Ultraman, tanto em popularidade quanto em qualidade. Tornou-se um clássico absoluto, aliando roteiros memoráveis à tradicional experimentação visual

CONTINENTE JUNHO 2014 | 81

Claquete_JUN.indd 81

26/05/2014 10:48:13


4

HERÓI O “superman japonês” usava uniforme com as cores da bandeira do país

SUPER-HERÓI?

Claquete

4

presente na carreira de seu criador, Eiji Tsuburaya. Mantendo o foco em contar boas histórias, Ultraseven resistiu à passagem dos anos. Com a morte de Tsuburaya em 1970 e a presidência da Tsuburaya Productions passada para seu filho, Hajime, a franquia Ultra sofreu uma incisão. Em 1971, foi veiculado O regresso de Ultraman, que fundamentou uma relação direta com os seriados anteriores. Através de um retcon, ou seja, de um fato cronológico inserido após o término das séries passadas, todos os seriados Ultra passaram a acontecer dentro de um mesmo universo. Assim, Ultraseven se tornou a continuação direta de Ultraman e O regresso de Ultraman, a continuação direta de Ultraseven. Além disso, os personagens-título eram agora oriundos de uma mesma raça de extraterrestres, advinda da Nebulosa M78.

Apesar do sucesso no Japão e em outros países da Ásia, a franquia Ultra não foi tão difundida no Ocidente A partir de então, com uma marca criada, a Tsuburaya Productions investiu pesado na criação de novas séries, apostando em aparições de antigos protagonistas e em especiais para o cinema. Entre bons e maus momentos, já foram produzidos mais de 30 seriados sob a patente Ultra, convergindo na criação de uma complexa mitologia. E, embora Ultraman e Ultraseven sejam os mais icônicos, até hoje a franquia Ultra cresce. A mais recente empreitada foi o Ultraman Ginga, de 2013.

Quando a revista Action Comics nº 1 foi publicada em junho de 1938, trazendo o Superman na capa, o conceito de “super-herói” nasceu. Na prática, foi a legitimação de um termo que há décadas vinha sendo gestado, desde a popularização de personagens pulp como Buck Rogers, Flash Gordon e, posteriormente, o Fantasma, Mandrake, o Sombra e tantos outros. Por convicção, um super-herói é alguém capaz de realizar proezas inimagináveis para a maioria dos humanos e usa suas habilidades para combater o mal. O Ultraman da série original, cujo visual e poderes nortearam a criação de todos os outros, é um alienígena gigante, de pele vermelha e branca, que se alimenta de luz e tem a missão de manter o equilíbrio e a paz no universo. Mais que um super-herói, a criação de Eiji Tsuburaya se tornou um símbolo de vários aspectos da cultura japonesa. É interessante perceber que esse fato possui uma ligação direta com o momento histórico que vivia o Japão na época das primeiras séries da franquia Ultra. Em 1954, quando Gojira metaforizou a mutilação sofrida pela sociedade japonesa durante a Segunda Guerra, os monstros gigantes surgiram como uma forma de representar a ameaça nuclear iminente – a personificação da catástrofe antinatural. Já em 1966, o que aconteceu não foi exatamente a criação de um Superman japonês, mas a reação aos anos de sofrimento intenso e desonra que havia vivido o povo nipônico nas décadas passadas. Ultraman é a figura do próprio Japão se reerguendo da destruição nuclear. O vermelho e o branco da bandeira nipônica são também a pele do alienígena. O sol nascente, a fonte de seus poderes, e a busca pelo equilíbrio e pela harmonia, sua missão. Quando,

CONTINENTE JUNHO 2014 | 82

Claquete_JUN.indd 82

26/05/2014 10:48:14


INDICAÇÕES no primeiro capítulo da série, Ultraman derrota o monstro gigante Bemlar, ele não está simplesmente salvando a Terra, ele está estabelecendo que a nação japonesa está curada do mal que lhe foi causado.

NO OCIDENTE

Apesar do sucesso consquistado no Japão e em outros países da Ásia, a franquia Ultra não foi tão difundida no Ocidente. Sem grande sucesso nos EUA, onde teve até uma série filmada com elenco ianque, a Ultraman Powered, de 1991. As criações de Eiji Tsuburaya encontraram no Brasil uma exceção à regra. Por estas bandas, Ultraman (1966), Ultraseven (1967) e O regresso de Ultraman (1971) foram exibidas e reprisadas algumas vezes ao longo das décadas de 1960, 70 e 80, mantendo o legado dos Tsuburaya vivo na mente do povo brasileiro. Durante os anos 1990, chegou às bancas de todo o país a revista Herói, primeira de uma avalanche de publicações responsáveis por tratar do tema. Além disso, esse período também ficou marcado com a retransmissão da série original pela TV Manchete e com o lançamento dela em VHS. Mais tarde, no ano 2000, Ultraman Tiga (1996) estreou na Rede Record e, pouco tempo depois, a popularização dos softwares de compartilhamento de arquivos foi responsável por trazer ao Brasil as séries inéditas por aqui. Nos últimos anos, entre vários boatos sobre o lançamento dos seriados originais por distribuidoras independentes, acabou chegando ao mercado, através da Focus Filme do Brasil, uma série de

especiais cinematográficos dos Ultraman produzidos na última década. Além disso, o Netflix nacional também inseriu no seu catálogo o longa Ultraman – The Next, de 2004, cuja trama, assim como as de boa parte do material que saiu pela Focus, acontece em paralelo à gigantesca e complexa mitologia da franquia. Aparentemente, uma tentativa de trazer a marca de volta. Alexandre Nagado, colaborador da icônica revista Herói e peça fundamental para a difusão e estudo da cultura pop japonesa no país, explica que “existe um público específico para Ultras no Brasil, mas são pessoas mais velhas, um nicho mais restrito. As novas gerações estão descobrindo aos poucos, em parte graças à internet, em parte por conta dos lançamentos da Focus e exibições de longas modernos na HBO”. Esse público mais antigo a que ele se refere, por ser restrito, acabou se fechando numa comunidade tão impenetrável quanto uma falange. Nagado, que ainda hoje publica em seu blog (www.nagado. blogspot.com.br) artigos aprofundados sobre a vida e obra de Tsuburaya e de outras figuras seminais da cultura japonesa, também pontua que Ultraman, mesmo sendo uma franquia direcionada ao público jovem, não tem o mesmo apelo que outras série do gênero. “Quem gosta de Ultraman não necessariamente é fã de qualquer seriado tokusatsu, como Jaspion ou Power Rangers. É algo bem específico, praticamente um nicho.” dentro de um nicho”.

DOCUMENTÁRIO

MATARAM MEU IRMÃO Dirigido por Cristiano Burlan Independente

O corpo de Rafael Burlan foi encontrado no lixo em 2001, após ser assassinado com sete tiros em Capão Redondo, violento bairro de São Paulo. Cristiano, seu irmão e diretor do longa, reconstitui de forma íntima e delicada os fatos que acarretaram a tragédia. Com o prêmio de melhor documentário brasileiro no 18º Festival É Tudo Verdade, o filme traz uma dimensão humana às estatísticas policias, expondo histórias privadas para refletir sobre as causas da violência urbana.

A BIOGRAFIA

HANNAH ARENDT – IDEIAS QUE CHOCARAM O MUNDO Dirigido por Margarethe Von Trotta Com Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer Europa Filmes

Morando nos EUA, a filósofa judaicoalemã Hannah Arendt é enviada pela revista The New Yorker para escrever sobre o julgamento de Adolf Eichmann, nazista levado a julgamento por crimes contra a humanidade. A forma como Hannah analisa a situação choca a sociedade da época: ela vê traços de humanidade não apenas nas vítimas da guerra e cria a tese chamada “banalidade do mal”.

RAMA

ALABAMA MONROE Dirigido por Felix Van Groeningen Com Johan Heldenbergh, Veerle Baetens, Nell Cattrysse Imovision

Produção belga indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro e inspirado numa peça de Mieke Dobbels e Johan Heldenbergh, o filme possui narrativa fragmentada, que intercala sentimentos opostos sem sutileza. O casal Didier e Elise descobre que a filha sofre de leucemia. Os momentos banais do cotidiano não são aproveitados pelo diretor, que prefere costurar a trama apenas com momentos de intensidade.

COMÉDIA

A CRIADA

Dirigido por Sebastián Silva Com Catalina Saavedra, Claudia Celedón, Alejandro Goic Esfera Cultural

Há 23 anos trabalhando como empregada doméstica para a mesma família na capital chilena, Raquel se sente ameaçada pela possibilidade de ser substituída. A criada é sóbrio e certeiro em suas críticas, com um tom sempre leve e humorístico. Catalina Saavedra, que interpreta a protagonista, transmite a contradição entre ser submissa e decidida. A frase de divulgação do longa sintetiza o sentimento do filme e do problema social: “Ela é mais ou menos da família”.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 83

Claquete_JUN.indd 83

26/05/2014 10:48:15


KARINA FREITAS

Sonoras

CANÇÃO A composição está em crise?

Artistas discutem sinais de esgotamento criativo na música popular brasileira e especulam caminhos para sua renovação TEXTO Clarissa Macau

“Estou cozinhando uma canção, mas não quero mostrar a ninguém, talvez alguém me diga, mostre, iguais a essa eu já fiz cem”, canta o carioca, radicado no Recife, Matheus Mota, na composição Na cozinha, do seu disco de estreia, Desenho. O que será “cozinhar” uma canção nos dias de hoje? A junção dos ingredientes letra,

melodia e acompanhamento atravessou décadas, enfrentando e se adaptando a diferentes tecnologias e conceitos. O formato sempre variou entre a música mais elaborada, a exemplo da bossa nova; os ritmos alternativos – entusiasmo das vanguardas, como o Tropicalismo; e as composições feitas em série, sob estilos melódicos

como brega, axé, funk e tecnobrega, que, não raro, repetem temas como amor e sexo. Distinções à parte, a ancoragem de todas essas canções continua a mesma: a tradição oral. A composição da canção popular traduz sentimentos de um tempo. “Os conteúdos criados pela linguagem da canção são necessários para atender às demandas de diversos setores sociais e culturais do país. O artesanato massificado das criações mais populares não difere substancialmente daquelas de prestígio, tanto que, às vezes, algumas obras migram de um universo para o outro”, reflete o pesquisador da música popular e criador do Grupo Rumo, músico Luiz Tatit. “A reinterpretação que Maria Bethânia fez de É o amor, de Zezé de Camargo e Luciano, por exemplo, serviu para expor a beleza intrínseca da melodia dessa canção que, na versão original, só passava os desprestigiados clamores sertanejos”, lembra.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 84

Sonoras_JUN.indd 84

26/05/2014 10:36:02


A difusão da canção é dependente da tecnologia vigente. Surgiu com a possibilidade de ser gravada, adaptandose aos novos recursos, primeiramente mecânicos, depois elétricos e, agora, eletrônicos. Apesar disso, Tatit acredita que a maneira de compor continua a mesma, “a melodia é um modo de dizer parecido com a entoação da fala cotidiana, que induz temas para a letra. Há uma gramática natural de fusão entre melodia e letra que qualquer cancionista domina bem, sem precisar ter consciência do que faz”. Na atualidade, sob a premissa do faça-você-mesmo com o auxílio da internet, todos os músicos dispõem de condições de gravação e lançamento de música no mercado, “em vez da nova estética, procura-se o especial, aquilo que só um artista é capaz de fazer, mesmo que seja dentro de um gênero bastante difundido”, opina Tatit. Considerado uma revelação junto à sua banda, a Filarmônica de Pasárgada, com os álbuns O hábito da força (2013) e Rádio lixão (2014), o carioca Marcelo Segreto resgata e experimenta ritmos brasileiros: da bossa nova ao funk carioca. “Alguns gostam de experimentar mais com a linguagem, propondo obras ‘ousadas’ esteticamente. Outros são mais conservadores. Mas todos podem ter obras de qualidade. A música não é melhor apenas porque ela traz novidades”, atesta Segreto. Matheus Mota sempre tenta fugir dos esquemas convencionais de composição. Às vésperas de lançar seu segundo álbum, Almejão, jingles publicitários e trilhas de filmes foram incorporados ao seu modo de compor. Na sua obra, uma miscelânea de assuntos é descrita: a escola antiga que fechou ou relacionamentos amorosos sutilmente conturbados, entoados na voz brincalhona e extremamente oral de Matheus. “A melodia é o caminho para a letra. Mas nem sempre é coerente. Muitos gostam de escrever coisas alegres em melodias tristes e vice-versa. Essa contradição me interessa”, diz. Na composição Profissional, é possível observar isso. Com uma música animada, Matheus nos conta um caso de exploração no trabalho. Parceiro de Mota no projeto Dois Sons (promovido pela revista Outros Críticos, em abril deste ano), com quem escreveu

duas canções inéditas, Uma pessoa e Uh!, o pernambucano Juliano Holanda possui mais de 100 composições gravadas e dois álbuns solos, A arte de ser invisível e Para saber ser nuvem de cimento quando o céu for de concreto. Para ele, “uma boa letra deve dizer da música, deve ser complementar e, ao mesmo tempo, expandir a percepção dela”. O ato de criar é urgente: “Tem uma música de Caetano Veloso, chamada Noite de hotel, que canta ‘e nunca o ato mero de compor uma canção, pra mim, foi tão desesperadamente necessário’. Uma ideia reveladora. Compor é um ato necessário para se ser. É estar vivo”

ESGOTAMENTO

Há quem diga, como polemizou Chico Buarque numa entrevista à Folha de S.Paulo, em 2004, que a canção tem dias contados. “A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo, só aprimorou a qualidade da

“A melodia é um modo de dizer, parecido com a entonação da fala cotidiana, que induz temas para as letras” Luiz Tatit sua música. Por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa. Como a música lírica foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como conhecemos, seja um fenômeno do século 20.” Matheus Mota não vê essa ideia negativamente: “Não sei quanto tempo esse modelo sobreviverá. Tenho a impressão de que os moldes melódicos e harmônicos atuais estão se esgotando, se é que já não se esgotaram, e a gente não percebeu. A reprodução de estilos musicais de outras épocas sempre existiu, mas é justamente com a capacidade de copiar, cortar e colar ideias, como numa edição de vídeo, que se produz a música contemporânea”. O musicólogo José Ramos Tinhorão sempre comenta, tanto em livros quanto em entrevistas, que essa espécie de colagem é antiga, são plágios não assumidos. Na reportagem João Gilberto? É um bom malandro, da revista Cult nº

159, Tinhorão afirmou, por exemplo, que o cantor Cartola teria composto a clássica As rosas não falam (1973) baseado na melodia do jazz La Rosita (1959), de Coleman Hawkins e Ben Wester. “Pode ser um plágio involuntário, mas que ele ouviu isso, não há a menor dúvida”, respondeu ao jornalista Daniel Silveira. Em 1998, o músico e compositor Tom Zé imprimiu, no encarte de seu disco Com defeito de fabricação, o manifesto Estética do plágio, que denunciava a necessidade clara de criar canções com o já inventado. Assim redigiu, com sua ironia de costume: “Terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a Era do Plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada”. Para Matheus, o plágio faz parte da canção popular. “O plágio sempre existiu em toda a história da música, porque ela sempre se referenciou nela mesma. Tom Zé se refere a isso como uma influência, apropriação de ideias já existentes. Mas o negativo é quando percebemos a preguiça e falta de criatividade de alguns em buscar combinações novas, preferindo se apropriar descaradamente de linhas feitas, sem critério ou contexto. Eu sinto falta da curiosidade em buscar sons e desenvolver a escuta tanto do músico quanto do ouvinte”, reflete. O roqueiro Jean Nicholas admite já ter feito apropriações musicais. Revela que algumas linhas de baixo da faixa O amor é a porta de entrada pras outras drogas, do seu recente álbum Jean Nicholas e a bueiragem (2013), provavelmente já devem ter sido usadas em canções do estilo disco dos anos 1970. “É um lance inconsciente. Eu não penso ‘vou pegar isso aqui de tal música’. Faço e, quando escuto, lembra algo já tocado”. E acrescenta: “Assim como tem autores originais, porém insuportáveis, existem plagiadores geniais. Não acredito em crise no mundo da música, o que acontece é que hoje não temos mais um filtro e isso dificulta achar algo que preste no meio do lixo”. O pianista e compositor Benjamim Taubkin, com seus mais de 30 anos de carreira, acredita que a canção não morreu, mas está em apuros, ao sucumbir ao apelo exacerbado do comércio. “As boas canções não chegam às pessoas. O seu veículo principal, o rádio, está corrompido pelo jabá, aceitando produtos ruins. Até a

CONTINENTE JUNHO 2014 | 85

Sonoras_JUN.indd 85

26/05/2014 10:36:02


Sonoras

1

década de 1980, a média de músicas na programação de uma emissora era de 500 a mil. Hoje, não passa de pouco mais de 50. Antes, com os meios de massa a favor de uma cultura – falo também da TV, com os festivais da Record em 1967 –, todo mundo discutia o surgimento de um Chico Buarque da vida, e a chegada, ora bem-vinda, ora não, da guitarra elétrica no Brasil. Agora, não há mais o debate vivo de formação de pensamento que a canção é capaz de fazer.” Para Tatit, a “maioria silenciosa” – aquela desinteressada por apreciações críticas ou estéticas – necessita de obras que tratem de seus sentimentos, ou suas celebrações concentradas em refrões dançantes. “O lugar desse mundo pop sempre existirá. Sua faixa de atuação não se confunde com a do universo experimental ou mais elaborado dos compositores formadores de opinião”, acredita. Na opinião de Taubkin, escutar música de qualidade se tornou difícil, “são nichos, oásis espalhados pela internet. Os que vão atrás de uma música mais burilada, atualmente, são os próprios artistas, e a grande massa fica com o que lhe é oferecido de primeira, ou seja, muito pouco”. Em 2013, ele participou da gravação da faixa Altas madrugadas, do Arte de ser invisível, primeiro disco solo de Juliano Holanda. Membro da Orquestra Contemporânea de Olinda e adepto de uma MPB eclética, Holanda coloca em xeque a relevância da mídia tradicional. “Nós não estamos nos mass media. Mas deveríamos estar?”

“´Há boas canções surgindo, mas parece que perdemos a capacidade de nos emocionar”

2

Juliano Holanda Holanda rebate a ideia da morte do gênero. “Qualquer um que tenha interesse razoável pelo que está acontecendo atualmente na música brasileira percebe que, ao contrário, há uma grande valorização. Há boas canções surgindo o tempo todo. Mas, às vezes, parece que perdemos a capacidade de nos emocionar. O resultado disso é que quase tudo tem se resumido a refrão e ritmo, por uma despreocupação com o significado das coisas. Não são mais necessárias grandes ideias e arranjos elaborados, tudo vai ser consumido e descartado.” Luiz Tatit atesta que a existência dos produtos de massa não significa o fim da diversidade musical. “Hoje, a experiência cancional é maior, porque não depende de gravadoras, nem de uma instância soberana de veiculação como o rádio. A relação dos novos compositores é diretamente com a internet e as redes sociais.” Silvia Tape lançou seu primeiro EP virtualmente, e sempre alimenta com novas composições sua rede social de música no Soundcloud. Ela costuma tocar em bares de São Paulo, dividindo

3

a assinatura da produção de seu trabalho com o músico Pipo Pegoraro. “Observar os recursos possíveis para criar no computador, por exemplo, abre um cenário de músicas produzidas com formas e timbres diferentes do que se propunha antigamente, além de variadas intenções. Isso pode tanto enriquecer uma canção quanto torná-la vazia”, opina Tape. Para ela, “se as pessoas estão alienadas, existem canções para elas, se amam ou querem protestar, também; a canção acompanha a humanidade”.

DA PERIFERIA

“Quando surgem tecnologias ou discussões na sociedade, isso fará parte do processo criativo do compositor”, diz Marcelo Segreto, da banda Filarmônica de Pasárgada. “O que me inspira é criar uma canção que tenha embate com a realidade, não importando o tema. Pode ser o amor, a vida na cidade, uma situação engraçada, crítica social. Nosso desejo é que nossas canções estabeleçam comunicação com o ouvinte, para a música se tornar viva.” Influenciado pela música erudita contemporânea, Segreto faz comparação entre esse estilo e ritmos mais populares, como o rock’n’roll e o funk: “Ambas trabalham com sonoridades parecidas, abandonando as tonalidades, a harmonia de acordes, para trabalhar com os timbres e as texturas”. O axé, o funk, o tecnobrega e o pagode são mais rítmicos, oriundos das periferias das cidades brasileiras.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 86

Sonoras_JUN.indd 86

26/05/2014 10:36:06


INDICAÇÕES 1

2

MATHEUS MOTA “Moldes melódicos e harmônicos atuais estão se esgotando”, diz

EXPERIMENTAL

JULIANO HOLANDA Músico acredita que ainda há grandes canções surgindo

Independente

3

BENJAMIN TAUBKIN Para pianista, canção estaria em apuros ao sucumbir ao mercado

4

LUIZ TATIT “A experiência cancional está maior, porque não depende de gravadoras”, afirma

WOLF & FOLKS It’s aq/It’s asq Projeto solo do músico pernambucano Thiago Gadelha, das bandas Foxy Trio e Team.Radio. Essencialmente gravado e produzido por ele, o EP contém quatro canções concebidas sob um baixíssimo orçamento. Lo-fi por necessidade, mas nem por isso malproduzido ou captado, o trabalho de Thiago encanta à medida que progridem as composições, erguidas sob um alto nível técnico. A busca por explorar novas sonoridades é algo bastante característico da obra de Gadelha, mas, nesse lançamento, ela se expande.

REGIONAL/ROCK

TAGORE Movido a vapor Independente

Compositor da nova geração de artistas pernambucanos, Tagore é uma figura tão carismática e intensa quanto irônica. No seu disco de estreia, o músico canta dores, amores ou apenas alguma observação pertinente sobre a sociedade contemporânea. Canções como Poliglota e Crença refletem o estado de espírito contestador e bem-humorado do cantor, que é hábil em colocar o dedo na ferida do mundo, sem que jamais soe de mau gosto.

4

Sobre eles, o cantor Tom Zé observou, no documentário Palavra encantada: “Antigamente, a canção era consumida pelo auditivo e cognitivo, hoje é consumida por partes do corpo. Como aparece uma canção que não toca na alma, mas na carne?”. O pianista Taubkin se preocupa com a “invasão” dessas músicas como carro-chefe do gosto popular. “As pessoas estão perdendo o ouvido, quase não reconhecem quando alguém está desafinado. Tem baterista que toca sem ritmo, guitarrista com acorde errado e vocalista desafinado, e a máquina de gravação conserta tudo! Se não fosse importante consertar esses detalhes, não precisava acertar o ritmo, nem acertar a afinação. Estão aniquilando a ideia de criação e radicalizando o conceito de produto. Um tecnobrega está há milhões de quilômetros longe da qualidade de um samba de Cartola.” Mas, seja qual for a origem de uma canção, sempre há a chance do nascimento de uma obra de arte. É o que defende Luiz Tatit. “De repente, ainda é possível o surgimento de uma canção

admirável no campo da produção em série, ao povão. Caso de músicas como Dia de domingo, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, interpretada por Tim Maia e Gal Costa, e É o amor, dos sertanejos Zezé de Camargo e Luciano. Lembremos: quase todo o repertório de Lupicínio Rodrigues, compositor de uma música chamada ‘de piranha’, considerado cafona nos anos 1950, hoje é cult.” Perguntado sobre o futuro da canção, Juliano Holanda diz ser problemático, na arte, pensar em algo como “antigo” e “novo”, pois são conceitos cambiáveis. “Como tudo volta, talvez estejamos em breve ouvindo trupes indígenas. A música feita hoje tem essa coisa tribal. Ao longo da história, alguns horizontes foram alargados. Muito dos experimentos da música erudita mais contemporânea foram assimilados no meio popular, e vice-versa. Vem tudo em degradê, com raros casos de ruptura total. As canções estão aí, as pessoas é que precisam acordar e ser acordadas do seu transe e pular o muro. E, aos compositores, cabe a responsabilidade de permanecer na estrada.”

ROCK/EXPERIMENTAL

NAÇÃO ZUMBI Nação Zumbi Som Livre

Depois de um hiato de sete anos, a banda pernambucana símbolo do manguebeat lança disco de inéditas. Nele, o grupo aparece mais contido, menos experimental e, de certa forma, diferente. Valorizando as melodias e as letras, o álbum não traz as timbragens peculiares e os arranjos exóticos presentes na maior parte da carreira da Nação. Sendo um trabalho voltado para a canção e para a mensagem, o autointitulado lançamento fundamenta a oportunidade de ouvir os artistas se reinventando.

ROCK/REGIONAL

JORGE CABELEIRA & O DIA EM QUE SEREMOS TODOS INÚTEIS Trazendo luzes eternas Independente

Coletânea de 20 anos de carreira da Jorge Cabeleira & o dia em que seremos todos inúteis, banda importante para o cenário pernambucano na década de 1990. O trabalho reúne nove canções de cada um dos dois discos de estúdio do grupo, lançados em 1994 e 2001. Além disso, o lançamento também conta com duas gravações inéditas, registradas especialmente para a ocasião.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 87

Sonoras_JUN.indd 87

26/05/2014 10:36:09


CON TI NEN TE

Criaturas

Chico Buarque de Hollanda por Paffaro

É difícil acreditar, mas aquele belo rapaz de olhos verdes (ou azuis?) que despontou nos festivais de música dos anos 1960 chega, neste mês, aos 70 anos. De lá para cá, criou centenas de canções clássicas e um bom punhado de peças, livros e roteiros festejados. Em 50 anos de carreira, o artista carioca conseguiu a façanha de manter-se intocado na definição que lhe atribuiu Nelson Rodrigues: “Chico Buarque é a única unanimidade nacional”.

CONTINENTE JUNHO 2014 | 88

Criaturas_JUN.indd 88

27/05/2014 14:10:15


www.revistacontinente.com.br

# 162

#162 ano XIV • jun/14 • R$ 11,00

CONTINENTE

PAIXÃO JUN 14

O BRASIL ESQUECE SUAS DIFERENÇAS E VIBRA EM TORNO DO FUTEBOL E MAIS GILVAN BARRETO | MÃE BIU DE XAMBÁ | FILATELIA | GOJIRA CANÇÃO | TEATRO COMUNITÁRIO | MAGIC BUS | CHICO BUARQUE

CAPA_template bol.indd 1

02/06/2014 17:21:21


CAPA_template bol.indd 2

02/06/2014 17:21:29


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.