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# 163
E MAIS
HILDA HILST CIRCO SOCIAL MARCO CÉSAR OUVIDO ABSOLUTO MESTRE DE VINA VIAGEM A JALISCO
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#163 ano XIV • jul/14 • R$ 11,00
CONTINENTE
O ATO DE CRIAR COMO, QUANDO, ONDE E POR QUE ELE ACONTECE
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REPRODUÇÃO
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aos leitores A primeira aparição do verbo “criar” remonta ao ano de 1001, segundo o Dicionário Houaiss. Contudo, sua aplicação no cotidiano dos seres humanos é ainda mais antiga. Antes mesmo de nos tornarmos sociedades minimamente organizadas, já utilizávamos esse conceito, que, talvez, encontre paralelo apenas no ato de pensar. Hoje, a máxima cartesiana do “penso, logo existo” poderia ser comparada ao “crio, logo sou”. Usamos a nossa criatividade a todo instante: para pensar em qual caminho percorrer a fim de escapar ao trânsito matinal, para bolar uma ideia para os presentes dos filhos ou, ainda, para imaginar uma solução diferente para um problema no trabalho. Mas há aqueles entre nós cuja relação com a criatividade se dá em outro âmbito, naquele de maior entrega, num casamento em que se tem começo e, às vezes, nem fim. É justamente no ambiente artístico que percebemos com mais facilidade sua evidência. Por isso, são os artistas que aparecem como esteio da reportagem de capa desta edição. Durante dois meses, a repórter Luciana Veras buscou refletir sobre os diversos aspectos que envolvem a criatividade, o momento do insight. Ela ouviu escritores, artistas plásticos, cineastas,
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designers para saber como se inicia a produção de uma obra, como é a dinâmica de trabalho, enfim, tentou entender como se dá o momento do clique, da eureca, do Aha! Porém, a proposta era investigar os processos criativos, não apenas sob a ótica de quem deles se apropria para criar livros, músicas, personagens, filmes ou instalações artísticas, mas também na perspectiva do que acontece quando surge uma ideia na parte suprema do corpo humano: o cérebro. Assim, apresentamos os meandros da criatividade na rede neural desse órgão humano pela ótica da neurociência e da psicologia. É fato que ainda existe muito a se descobrir no que diz respeito ao funcionamento do cérebro, mas já se sabe quais áreas são mais afetadas pelos processos criativos; e novos estudos e evolução das técnicas de mapeamento cerebral jogam luz sobre o mistério da inspiração. Por exemplo, sabe-se que o cérebro do físico alemão Albert Einstein, retirado do seu corpo sete horas após sua morte, em 1956, possuía uma área maior de interconectividade entre os dois hemisférios, o que certamente é sinal de sua genialidade. No entanto, numa era em que todos criam a todo instante, e em que processos criativos são coletivizados, expostos e partilhados para milhares, ainda há espaço para gênios?
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sumário Portfólio
Luigi Ghirri 4
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
Marco César Bandolinista e professor de música fala dos entraves de seu ofício e do mercado
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Cardápio
Simbologia A cultura e o contexto histórico podem explicar o ato de comer terra (geofagia) e também os nomes que damos a alguns alimentos
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Sonoras
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Leitura
William Gibson Há 30 anos, o escritor publicava o romance Neuromancer, que legitimou a criação de um subgênero da ficção científica literária
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Entremez
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Perfil
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Palco
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História
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Matéria Corrida
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Criaturas
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Conexão
ArchDaily Site voltado para aquitetura e urbanismo estimula o pensamento sobre as cidades
Balaio
Zé de Vina Natural de Feira Nova, o mamulengueiro aprendeu o ofício aos 12 anos e hoje é considerado um mestre
Zapatista Duas décadas depois da eclosão do movimento, sua ideologia segue viva na Universidad de la Tierra
Fotógrafo italiano explorou bastante a paisagem do seu país, em imagens que investigam o conceito de realidade e provocam uma reflexão sobre a fotografia
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Ouvido absoluto O portador dessa condição percebe isoladamente qualquer nota musical
Hilda Hilst Um livro de cartas, uma biografia e dois filmes serão lançados para marcar os 10 anos da morte da escritora
Ronaldo Correia de Brito A Copa do Mundo na Era do Rádio Circo Há 20 anos, a Escola Pernambucana de Circo tem tido papel central na formação de novos profissionais
José Cláudio Alfarrábios
Frida Kahlo Por Cibele Santos
Viagem Jalisco
O estado, cuja capital é Guadalajara, é bem menos conhecido que outras regiões do México, apesar da riqueza cultural, natural e da Rota da Tequila
54 CAPA FOTO Mauricio Planel
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Capa
Especial
Enquanto pesquisadores tentam entender como se manifesta a criatividade no cérebro humano, artistas relatam como vivenciam o momento do insight
A chegada da temporada de chuvas no Nordeste provoca uma reflexão poética sobre o fenômeno, compreendendo-o para além de uma manifestação climática
Claquete
Visuais
Categoria audiovisual híbrida de cinema e marketing tem sido alvo de críticas por falhas recorrentes, como contar demais o enredo do filme
Exposição em cartaz no Mepe expõe pela primeira vez um recorte de cerca de duas mil obras da coleção de arte popular do arquiteto
Processos Criativos
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Trailer
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Chuva
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Carlos Augusto Lira
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cartas DIVULGAÇÃO
interessou-me muito a entrevista com o diretor Karim Ainöuz, de Praia do Futuro, bem como uma explanação do filme. Também observo, mesmo não sendo a minha área de atuação, a arquitetura de nossa cidade; a descoberta de algumas peculiaridades de famosos edifícios foi muito interessante, sugiro dar continuidade ao tema. Obrigado e parabéns! THIAGO LEITE AMARO DA SILVA RECIFE–PE
NOTA DA REDAÇÃO A reportagem Viagem a Jalisco, publicada nesta edição, foi produzida a partir de um convite da Copa Airlines.
Pernambuco Os assuntos abordados, atualmente, contemplam os interesses e valores de nossa cultura regional e de Pernambuco. Parabéns
e sucesso ainda maior para essa publicação. GLÓRIA M. BARBOSA RECIFE–PE
Praia e filme
FACEBOOK Saiu na ótima revista Continente mais uma matéria que produzimos no Marrocos, sobre a belíssima cidade de Essaouira. Fotos minhas e texto de Luís Patriani. Obrigado, Adriana Dória e competente equipe! FERNANDO MARTINHO
Sou bibliotecário e faço a indexação de cada artigo da Continente, da qual somos assinantes na minha instituição. É um prazer deleitarme com cada matéria, muito bem-escritas, com um material gráfico muito bom. Na edição 162,
SÃO PAULO–SP
Bienal do Barro na Continente: excelente matéria de Mariana Oliveira. Superobrigado! CARLOS MÉLO
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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RECIFE–PE
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colaboradores
Camilo Soares
Guilherme Novelli
Maurício Planel
Rodrigo Carreiro
Fotógrafo, professor e doutorando na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne
Jornalista e pesquisador. Trabalha como colaborador em revistas culturais e científicas
Ilustrador que tem a colagem como principal forma de expressão
Jornalista, doutor em Comunicação e coordenador do curso de Cinema da UFPE
E MAIS André Dib, jornalista e crítico de cinema. Carolina Albuquerque, jornalista. Cibele Santos, ilustradora, cartunista, criadora das tirinhas de humor Mulher de 30. Emiliano Dantas, fotógrafo. Jarbas Jr., fotógrafo. Williams Sant´Anna, artista, historiador e educador.
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MARCO CÉSAR
“Havia uma missão para mim”
Bandolinista pernambucano, um dos ícones do instrumento hoje, critica a ideia de “dom”, defende a formação musical para aspirantes a músicos e analisa os entraves do mercado TEXTO Débora Nascimento
CON TI NEN TE
Entrevista
Numa pequena sala de parede branca, com alguns poucos móveis, o professor Marco César recebeu a Continente para uma entrevista que se estenderia por quase três horas. Nessa conversa, realizada em um dos seus locais de trabalho, o Conservatório Pernambucano de Música, o mestre e músico resgatou a trajetória que o levou a se tornar um dos heróis do bandolim no Brasil. Herói não somente por seu rigor técnico, mas por sua contribuição para o surgimento de novos instrumentistas e para a manutenção do choro em Pernambuco, terra que originou um dos maiores ícones do instrumento e do gênero, Luperce Miranda, que completaria 110 anos neste mês. Marco César nasceu e cresceu num ambiente musical. Seu pai, Manoel Xavier de Brito, mais conhecido como Tozinho, tocava violão de sete cordas como um hobby levado muito a sério, que o fazia ser tratado como profissional e participar de um grupo com Rossini Ferreira, Bebé e Henrique Annes. O violonista acordava e dormia à base de música. E, nos finais de semana, enchia
a casa de convidados, como o amigo Canhoto da Paraíba, que o homenageou em Valsa a Tozinho. Esse cenário despertou o ouvido musical do menino, que, com pouco mais de 10 anos, começou a tocar violão de seis cordas e depois bandolim, sendo ladeado pelo irmão Múcio Fernando e posteriormente pelo pai. Um dia antes de falecer, em 1976, Tozinho fez um pedido ao filho: “Nunca mais deixe de tocar o seu bandolinzinho”. “Senti nas palavras dele que havia um futuro pra mim na música e uma missão, formar.” O adolescente passou, então, a ser orientado pelo tio, Tonhé, do Conjunto Pernambucano de Choro, que o aconselhou a largar a outra paixão, o futebol – Marco treinava no infantojuvenil do Sport Club do Recife. O ex-presidente do clube, Jarbas Guimarães, ao vê-lo, ainda garoto, executar com perfeição Brasileirinho, disse: “Se você jogar futebol como toca bandolim, o Sport tem um craque”. O jovem também recebeu elogios e apoio de figuras marcantes que apareceram em seu caminho, como os músicos Cussy de Almeida e Henrique Gregory, ambos ex-diretores do Conservatório
Pernambucano de Música. Diante do talento prodigioso, a instituição concedeu uma rara bolsa de estudo, para que ele aperfeiçoasse sua técnica. A retribuição veio quando atendeu ao convite de Gregory para dar aula de violão, cavaquinho e bandolim, no Conservatório, iniciando o ensino de música popular no local, que até então era voltado a instrumentos eruditos, tais como violino e piano. Nesse período, o CPM multiplicou consideravelmente a quantidade de alunos e ajudou a manter o Recife no mapa das cidades chorísticas do Brasil. O currículo do artista ainda inclui diversas gravações e shows com o Conjunto Pernambucano de Choro, Marco César Trio, Orquestra de Cordas Dedilhadas, Coral Edgar Moraes, Oficina de Cordas, Orquestra Armorial de Câmara, Antônio Nóbrega, entre outros, e aulas na Escola João Pernambuco, Centro de Educação Musical de Olinda (Cemo), Funeso, Aeso, UFRPE, sem contar com as lições particulares. O bandolinista entendeu o recado do pai e vem cumprindo, com solidez, sua missão.
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cobram pra aprovar. Então, isso é um desgaste muito grande. Por isso, as regras precisam ser bem claras. CONTINENTE Como funciona esse “cobram pra aprovar”? MARCO CÉSAR Normalmente, se você tem projeto aprovado, está com a carta, vai pra empresa, ela diz “Apoio. Mas só se você me retornar tanto. Me dê 20%, ou 30%. Já pra garantir”. Aí, eles querem isso dentro de um projeto que já está difícil. Muitas vezes, o captador pede o valor dele, que é além do que deveria solicitar. Vamos dizer que a regra do projeto é 10% para o captador, aí, por fora, ele pede mais. E esse “mais” já vai prejudicar o nosso produto final, que é aquele “mais” que a gente
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CONTINENTE Você acha que o mercado melhorou nesses últimos 40 anos? Ou as dificuldades mudaram? MARCO CÉSAR Antigamente, você podia alugar um teatro, fazer a sua bilheteria e ter o seu retorno. Hoje em dia, não pode fazer isso, porque, se faz, tem uma despesa muito grande e vai concorrer com cinco, seis shows em outros teatros, já patrocinados, com bilheteria de graça. E, aí, ou entra no esquema dos projetos e tem também uma relação próxima com a curadoria ou não aprova. São várias ideias, projetos que a gente tem que não são aprovados. E por quê? Porque não presta? A gente não sabe. Porque foi mal-escrito? Às vezes. Porque não é interessante? Porque não dá mídia? Já tive projetos aprovados que não consegui
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CONTINENTE Qual seria a alternativa para os projetos de financiamento? MARCO CÉSAR Você já ter o patrocinador, principalmente. Isso é importante. Pra você não ficar correndo atrás de algo que não sabe se vai conseguir. Há pessoas que estão à frente dessas empresas, que
CONTINENTE Quais são os outros problemas do mercado? Como está o ensino? MARCO CÉSAR Bom, o ensino já é outra coisa. A gente sabe que agora existe uma obrigatoriedade da música na escola. Então, o Brasil está formando 30 mil e vai precisar de 200 mil professores. Vejo que existe um preconceito muito grande com relação à profissão. Alguns dizem: “Vocês escolheram as piores profissões da vida, professor e músico”. Ambos ganham pouco, ou não ganham. Mas eu digo que não, porque o professor de música pode chegar a ser um doutor ou pós-doutor, tanto quanto um médico. Agora, com o vestibular, a
“Eles (músicos venezuelanos, no Recife) falaram de Jacob do Bandolim como quem fala do maior ídolo. Acho que nós não somos reconhecidos aqui, como deveríamos”
Entrevista captar porque talvez não fosse um grande artista nacional que dava mídia. Aí, você fica naquela, e tem também uma linha de trabalho, que, de repente, lá dentro da concorrência dos projetos, não é muito bem-esclarecida, não é clara, não é colocada no edital. Então, isso depende muito da comissão e da disponibilidade do artista de estar junto dos órgãos pleiteando, conversando.
de ouvir direito. Essas avaliações, muitas vezes, não são justas.
já está tirando de algo, de uma foto, de uma mixagem, de uma masterização, e a qualidade do produto cai um pouco. Então, acho que as regras, e também as justificativas, precisavam ser bemdefinidas e claras. Você não deve ter um projeto negado lá, “Não deu”. “Não deu” por quê? Qual é a razão? Uns alegam itens, às vezes é uma assinatura, às vezes é uma gravação que você deixa de levar, uns aprovam, outros não. E por que é que uns têm 2, 3, 4, 5, 6 projetos aprovados e outros, nenhum? Outra coisa importantíssima é que as curadorias de música deveriam ter músicos reconhecidamente capacitados para fazer essas avaliações. Muitas vezes são tantos projetos, 400, 500, que o cara não tem paciência ou tempo
gente teve aí uns dois anos de primeiro lugar para o curso de música. Mas existe um preconceito muito grande na sociedade, de incentivar o membro da família de se formar em música. Existe até uma brincadeira: – “Você trabalha em quê?” – “Sou músico.” –“Sim, mas você trabalha em quê?” CONTINENTE Você nota que hoje há uma geração mais preocupada em gravar e tocar do que estudar música? MARCO CÉSAR Também. É outra coisa que me preocupa. Porque as pessoas fazem música sem conhecer o ofício. A minha parte aqui, pelo menos, no Conservatório, é pegar aqueles que já iniciaram, mostrar o que já foi feito e o que se pode fazer. E direcionar ou
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orientar. Costumo dizer que não quero que nenhum aluno acredite no que falo. Quero que eles pensem no que eu falo. Se pensarem, acho que estarão se ajudando. Tenho alunos que são professores, tive alunos que hoje são professores. Conheço praticamente quase todas as famílias deles. Porque existe sempre a dúvida: se vale a pena. A família entende como se fosse um problema aquele talento que o filho tem para a música. Muitas vezes atrelam à questão da malandragem e da droga. CONTINENTE Os pais continuam preocupados com essas questões? MARCO CÉSAR Sim. Então digo: “Tenho 40 anos de música e nunca usei droga, nunca precisei de droga pra tocar.
uma filosofia de vida ser músico. É toda uma vida. Não é menos do que cinco anos de investimento pra se começar a entrar no mercado. “Ah, mas Fulano nunca estudou, um Djavan da vida, um Dominguinhos, um Luiz Gonzaga.” Aí é outro departamento. Não é que a pessoa não possa chegar. Pode. CONTINENTE Mas até pra isso também é preciso tempo, não é? É preciso prática. MARCO CÉSAR O exemplo que dou é o de Michael Jackson. Quando ele morreu, soube que o grande maestro americano Quincy Jones o orientou. Então, até o próprio Michael Jackson precisou estudar música, afinação, expressão... E por que é que a gente não tem que estudar? Porque a gente é
organizarem e se dedicarem à música, porque precisam de mais tempo do que qualquer outra matéria. Por isso é muito difícil convencer as famílias de que deve haver paciência pra dar o tempo certo, a fim de que a pessoa comece a ter o retorno financeiro. Costumo dizer aos alunos que eles precisam ouvir, ler, pesquisar bastante e começar a fazer o ofício mesmo, pra ter a tranquilidade de fazer consciente. O problema é que muitos fazem e não sabem por que estão fazendo. CONTINENTE Você acha que a música pop e tudo o que a envolve, principalmente a fama, é, de alguma forma, um entrave para a evolução da música de uma forma geral? Percebo uma preocupação muito grande dos músicos com o
“E é preciso que os de fora reconheçam, para que você seja lembrado na sua terra. Eu me lembro do centenário de Luperce Miranda, quis trazer os dois filhos dele ao Recife e não consegui” Entro num palco, como entrei no Free Jazz Festival, no Rio, onde a plateia era Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Francis Hime, Turíbio Santos. Toco aqui no Conservatório, em qualquer lugar que seja, até na rua, e nunca precisei me drogar”. Então, acho que o medo das famílias é exatamente esse, o preconceito que já existe. Se um pai chega pra mim com a dúvida, se vale a pena realmente investir, nunca fico contra. Porque sempre acreditei que a gente pode sobreviver de música. Vejo muitas pessoas que deixaram de trabalhar com ela e hoje não estão felizes em outras profissões. Agora, qual é o problema do mercado musical? É que, pra você ter retorno financeiro, o prazo é longo. É uma vida inteira, porque é
bandolim, cavaquinho, violão, rabeca, zabumba ou pandeiro? Não. Você tem que conhecer a linguagem musical e a partir dela fazer o que quiser. CONTINENTE Há uma evasão muito grande nos cursos de música? MARCO CÉSAR Eu me lembro de que, aqui no conservatório, fui estudar com um dos maiores professores que conheci, Severino Correia. Minha turma tinha uns 40 alunos, terminamos com quatro. Os adolescentes que chegam aqui são meninos que têm um excesso de atividades no colégio, o que faz com que não priorizem a música. Eles têm que priorizar, talvez, o inglês, em detrimento da música. E a dificuldade é grande para se
sucesso, mais do que com a qualidade da música, que é o que vai ficar. Você percebe isso? MARCO CÉSAR Percebo. Alguns até perguntam: “Você não gosta de pagode? Você não gosta de rock?” Gosto, não gosto é da qualidade do que escuto. Tive a oportunidade de fazer a curadoria de 40 ou 50 grupos de rock, e eu sentia dores. De raiva. Porque é rock, tem que ser malfeito, ruim? A minha crítica é essa. Por que é que não pode ter uma linha melódica, uma harmonia, uma ideia diferente? Uma vez, um amigo disse: “Mas música não mata...”. Depende de quem está ouvindo, porque já recebi um telefonema de outro amigo: “Marco César, tem uma flauta tão desafinada perto da minha casa! Não aguento mais! Eu vou dar um tiro nesses caras aqui!”
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CONTINENTE Qual é a importância de uma formação musical que se inicia mais cedo? MARCO CÉSAR Ela é disciplinadora, tanto é que tenho depoimentos de mães que dizem: “Feliz da hora que meu filho começou a estudar com o senhor”. A música traz elementos que são importantes pra vida dum cidadão. Não é simplesmente fazer o cara tocar como uma maquinazinha ou um computador. Mas é o lado humano e social. Quando você coloca um aluno dentro de um grupo, ele vai aprender a respeitar o momento de
Conjunto Pernambucano de Choro, depois da morte de quatro, só tem a mim, Valéria e Geraldo, mas quando a gente precisa se apresentar, reúne-se com aqueles que foram meus alunos e possuem uma certa experiência. CONTINENTE E os espaços diminuíram? MARCO CÉSAR O que rege isso é exatamente o produtor. Se a gente tivesse os produtores, teria mais. Até programa de rádio de choro já tivemos. Acho que só o Retalhos; o Nosso Quintal, que fica na Chesf, onde quem toca é o Chocho,
ORQUESTRA RETRATOS/DIVULGAÇÃO
CONTINENTE São poucas as pessoas interessadas em tocar bandolim? MARCO CÉSAR Não vou ser tão pessimista, como o Jacob, que dizia que, quando morresse, o bandolim ia acabar e não ia ter mais choro. Mas tenho a impressão de que a gente garante aí uns 40 anos de bandolim, cavaquinho e violão, porque tem esses meninos que saíram daqui, não é? Eles entenderam a escola, já se profissionalizaram, estão no mercado, preparam outros, e eu já tenho alunos de meus alunos. Acho
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Entrevista que poderíamos ter muito mais gente tocando bandolim, e esse “muito mais” seria a partir da formação de orquestras, que é o meu projeto maior, que penso mais na frente, no método de orquestra. Mas já tenho um projeto na Escola Técnica: quero montar uma orquestra com mais de 50 alunos. Tem menos gente interessada em bandolim do que em cavaquinho. Por causa dos pagodes e dos sambas, que é o que está na televisão. Mas o pouco que a gente tem, possui qualidade. Agora, a crítica que faço à escola de samba é: por que não é escola? Por que é só o nome? Por que é que ela não forma os músicos também? Por que não contrata profissionais pra ensinar música?
cada um na música. Isso faz com que ele exercite a humildade também. CONTINENTE Houve um boom do choro aqui, e agora? Como está o movimento de choro na cidade? MARCO CÉSAR Está tendo uma renovação. Uma vez, Sivuca foi muito criticado porque disse que a melhor escola de música brasileira é o choro. Aí, alguns reclamaram: “E os outros estilos?” Vejo o choro como um ponto de partida para outros gêneros. A gente tem aqui, ainda em atividade, o Choro Brasil (com Maíra e Moema), Choro Miúdo (Bozó, João Paulo, João Victor, Alexandre), Grupo de Danda, um clarinetista que já tem outros meninos tocando com ele; o
que é daquela geração antiga. Os espaços são pouquíssimos. Agora, a gente está com uma ideia de fazer um projeto nacional de choro. Serão nomes de outros estados com os locais. É importante esse intercâmbio. CONTINENTE Ainda permanecem as mesmas cidades ligadas ao choro? MARCO CÉSAR Uma cidade que não é muito falada, mas que tem um movimento bastante interessante, é Salvador; lá, tem gente muito boa tocando choro. Minas agora tem. Rio Grande do Sul também. A gente recebeu recentemente um grupo de alunos, no Santander Cultural, que tocou música de Rossini (Ferreira). Foi emocionante vê-los tocando a música daqui. Tem o
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Maranhão. Há a questão de o músico de choro estar atrelado ao samba. Então, quando ele não está no choro, está no samba, e muito mais neste, por causa da oportunidade de mídia. Acho que poderia haver mais espaços. Aqui, no Conservatório, também tem; o Sesc abriu um espaço. Foi muito importante Hamilton de Holanda ter conversado com Artur da Távola, que era senador, e que instituiu o Dia Nacional do Choro, 23 de abril, que é aniversário de Pixinguinha. Isso fez com que o Brasil inteiro tocasse choro, pelo menos, uma vez por ano.
“Vejo o choro como um ponto de partida para outros gêneros. A gente tem aqui, ainda em atividade, o Choro Brasil (com Maíra e Moema), o Choro Miúdo, o Grupo de Danda...”
CONTINENTE O evento em homenagem ao músico pernambucano Moacir Santos, no ano passado, e do qual você participou, veio do Rio, partiu da flautista carioca Andrea Ernest Dias. Você acha que isso é sintomático de uma possível falta de reconhecimento local dos nossos talentos? MARCO CÉSAR Acho. Inclusive, queria agradecer a Andrea, em nome de Pernambuco, por ter escolhido o Recife. Mas ela não teve a acolhida que merecia. O projeto era formado por músicos maravilhosos, de primeiro naipe mundial e a repercussão não foi a que eles mereciam. Infelizmente, não somente Moacir Santos, mas tantos outros músicos só são reconhecidos depois que morrem. E é preciso que os de fora reconheçam, para que você seja
lembrado na sua terra. Eu me lembro do centenário de Luperce Miranda, quis trazer os dois filhos dele ao Recife e não consegui. E foi homenageado no Rio. Fui o único pernambucano convidado, participei do lançamento do livro O Paganini do bandolim. Tentei trazer para cá a autora Marília Barboza, mas não sei por que não houve interesse. O Recife tem essa história. Eu não diria o Recife, o Brasil não sabe reconhecer os seus talentos. O próprio Tom Jobim dizia que a saída do músico brasileiro é o aeroporto. Quando toquei a suíte Retratos, entreguei o LP ao maestro Radamés (Gnattali). E ele, um dos maiores músicos que o Brasil já teve, de todas as épocas, chegou pra mim e disse: “Muito obrigado, garoto, por você gravar minha música”. Eu disse que eu é quem deveria agradecer. Ele respondeu: “É porque não divulgam”. A gente recebeu os venezuelanos aqui tocando bandolim, bandola. Toquei pra eles. Falaram de Jacob do Bandolim como quem fala do maior ídolo, como quem fala de Mozart. Então, acho que nós não somos reconhecidos como deveríamos. Agora, eu me sentiria muito realizado, se conseguisse convencer o poder público a criar, pelo menos, um conjunto oficial de choro em cada cidade do país. CONTINENTE Ainda se tem a ideia de dom? MARCO CÉSAR Aí, entra aquela frase que não sei quem falou: “95% é trabalho e 5% é dom”. O cara nasce com o dom. E você trabalha esse dom. Agora, uns têm uma tendência, outros menos. Aqueles que têm uma tendência maior, melhor, são mais fáceis de a gente trabalhar, porque têm certa facilidade. Mas, às vezes, atrapalha, porque o cara confia na beleza. Tem uma frase que digo muito no curso de Produção Fonográfica da Aeso: “Não confie na beleza”. O cara acha que tem facilidade, mas na hora fica nervoso. É por isso que digo que sou chato. Chato para que as coisas sejam cada vez melhores. E tenho lutado para que a gente forme grupos que sejam referências nacionais. Não estou pensando aqui, estou pensando em termos nacionais e internacionais. Por que sou convidado pra dar aula em Paris? Pra me apresentar em Londres, em Portugal? Porque sou referência. E por que eu sou referência? Porque busco
a qualidade. Então, a sua qualidade faz você ser o seu próprio marketing. Se você for ruim, a reputação será ruim; se for bom, vai ser sempre requisitado para estar entre os melhores. CONTINENTE A biografia de Baden Powell revelou que ele chegava a passar um dia inteiro treinando uma só troca de acordes. MARCO CÉSAR E o jazzista faz isso. Estuda 12 horas por dia. Talvez até mais do que um músico erudito. Mas as pessoas dizem: “É livre, é jazz, é improviso. É na hora”. Não! Existe toda uma sistematização de escala, de acorde, de progressão harmônica, de sentido musical, de linguagens, e o cara precisa estudar pra não fazer besteira. Costumo dizer isso: Por que o jazz está aí? Porque foi sistematizado. CONTINENTE E a música brasileira ainda precisa dessa sistematização, não é? MARCO CÉSAR Muito. A nossa literatura ainda é muito escassa. Principalmente na formação de instrumentistas. A gente tem que buscar coisas de fora. CONTINENTE O frevo, nesse quesito, está ao deus-dará? MARCO CÉSAR Está. Eu havia participado do curso de capacitação de pau e corda, na época do governo de Miguel Arraes. A assessoria era de Leda Alves, que hoje é secretária de cultura. Ela me convidou, pediu que eu me afastasse dos empregos que tinha para poder assumir esse trabalho. Conseguimos formar sete orquestras de 15 músicos, que muniram as agremiações do estado, que estavam se acabando. Então, a partir daí, nós criamos o livro em que o músico passou a ter as melodias escritas, no qual ele ia pra casa pra decorar, chegava no bloco e tocava, pelo menos, as introduções, que nem isso sabiam. O Carnaval também deixou de ser de rua, pra ser de palco e com a influência de outros gêneros, que são importantes, se olharmos pelo lado da mídia, porque traz a atenção pra cá, mas ofusca os gêneros locais. Costumo dizer o que o professor Sérgio Barza diz: “Não somos contra outros gêneros, somos a favor dos nossos”. A gente deveria valorizar mais e incentivar a criação de novos produtos e que estes cheguem aos ouvidos.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
PROCESSOS CRIATIVOS
CLAQUETE
Um livro de contos inéditos da artista visual baiana Virgínia de Medeiros, a ser publicado neste segundo semestre como parte integrante da obra Studio Butterfly (foto); um trecho em primeira mão do documentário Se cria assim, a respeito do pintor recifense Bruno Vilela, com direção do cineasta paulistano Beto Brant; e o clipe de And love you have, da cantora e compositora carioca Bárbara Eugênia, podem ser apreciados como extras da reportagem de capa desta edição, que investiga o surgimento da inspiração nos processos criativos dos artistas e nos misteriosos caminhos do cérebro humano.
Assista ao famoso trailer de Psicose (1960), estrelado pelo diretor do longametragem Alfred Hitchcock, na principal locação do filme: o Bates Motel.
Conexão
VISUAIS Confira mais imagens de peças da exposição A lírica de Carlos Augusto Lira e o texto sobre sua coleção, escrito pela antropóloga e pesquisadora Ciema Silva e Melo.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
ANIMAÇÃO
TRADUÇÃO
CAPISTAS
BIBLIOTECA
35 episódios da série Daria disponíveis online
Site faz busca automática de legendas
Criadores de capas de livro têm seus trabalhos reunidos
Acervo virtal reúne textos sobre questões agrárias
mtv.com/shows/daria/video.jhtml
legendafacil.com
bookcoverarchive.com
O desenho animado Daria foi uma criação de Glenn Eichler e Susie Lewis Lynn para a MTV. No ar entre 1997 e 2002, a série foca na personagem Daria Morgendorffer, um spin-off de Beavis and Butthead, outra animação na qual Daria participava recorrentemente. Durante cinco temporadas (e dois filmes lançados posteriormente), a série acompanha a vida da protagonista no ensino médio. No site da emissora, 35 episódios completos estão disponíveis para serem assistidos online.
O Legenda Fácil é um auxiliar para quem tem arquivos de vídeo, como filmes e séries, em outras línguas e precisa de tradução. O sistema tem um conceito rápido, em que basta arrastar o arquivo para a janela do site e ele buscará sozinho a legenda com melhor avaliação de outros usuários. Os que quiserem colaborar com o banco de dados devem arrastar o seu letreiro junto ao vídeo, e ele ficará disponível para outras pessoas. O site disponibiliza as legendas para download nas línguas portuguesa e inglesa.
Projeto de Ben Pieratt e Eric Jacobsen, o The book cover archive faz um catálogo de designers de capas de livros – como Mark Abrams, Isaac Tobin e Megan Wilson – e apresenta seus trabalhos. O site está em constante atualização e reúne capas de autores como David Foster Wallace, Albert Camus e Roberto Bolaño. As divisões são feitas por capas com fotografia e ilustrações, por gênero literário ou por diretores de arte. Há, ainda, uma lista de indicação de outros sites de design de capa, como o The Penguin Blog, da editora homônima.
reformaagrariaemdados.org.br/ biblioteca
Desde o último mês de maio, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) organizou uma biblioteca virtual com temas ligados às questões agrárias. Com mais de 1.600 arquivos já reunidos, os temas variam entre tópicos como agroecologia, educação no campo, reforma agrária e soberania alimentar. A variedade do site está também em seus formatos: de livros a poesias, passando por jornais, cartazes, literatura camponesa e uma videoteca com mais de 130 títulos. O portal pede sugestões e materiais por e-mail.
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blogs AUGUSTO BOAL institutoaugustoboal.org
O teatrólogo brasileiro Augusto Boal, falecido em 2009, ficou mais conhecido pelas metodologias que desenvolveu em torno do Teatro do Oprimido. O blog oficial do Instituto Augusto Boal procura difundir as produções do dramaturgo e as pesquisas desenvolvidas sobre ele. Além de divulgar notícias relacionadas à obra e às suas práticas, a entidade procura organizar eventos presenciais e online.
ARQUITETURA E URBANISMO
CENÁRIO PARAIBANO
Site internacional reúne material sobre a área, trazendo, além de projetos relevantes, temas como identidade e preservação de memória
O blog Música da Paraíba reúne colaborações para publicar o trabalho de quem faz música e nasceu ou se relaciona de alguma forma com o estado. Montando acervo desde 2009, o blog reúne artistas mais conhecidos, como Geraldo Vandré, Zé Ramalho, Sivuca e Chico César até grupos mais recentes e menos conhecidos no cenário musical.
musicadaparaiba.blogspot.com.br
archdaily.com.br/br
Criado em março de 2008, o ArchDaily é o site de arquitetura mais visitado no mundo, referência como fonte de informação na área. Com versão também direcionada ao Brasil, ele divulga notícias relacionadas diretamente à arquitetura do país, bem como difunde projetos e produtos desenvolvidos aqui. Tudo isso sem deixar de registrar projetos inovadores implantados em outros países. Também há espaço para divulgação de concursos, eventos (como a Bienal de Veneza e a de São Paulo) e artigos, em categorias específicas para os visitantes. Na item Clássicos, entram em destaque obras que se tornaram relevantes para a história da arquitetura mundial. O internauta pode buscar projetos específicos usando como referência o escritório que o planejou, a data de execução, o tipo de material utilizado (aço, concreto, vidro), o país e o tipo de empreendimento (apartamento, casa, escritório). O lugar é um acervo riquíssimo sobre o assunto. Atualmente, já reúne mais de 30 mil postagens em seu portal. A página também se mostra sintonizada com as discussões que têm tomado corpo na academia e nos movimentos sociais, como as reflexões sobre a cidade contemporânea, sua identidade, memória e a relação com o meio ambiente. PETHRUS TIBÚRCIO
YOU ARE YOU lindsaymorris.viewbook.com
A fotógrafa Lindsay Morris disponibiliza online um de seus trabalhos mais recentes, no qual registra um acampamento que ela chama de You are you. Lá se reuniram crianças entre 5 e 12 anos que não se identificam com os gêneros que lhe foram designados. O espaço facilita a descoberta da individualidade em um espaço coletivo.
sites sobre
tatuagem MUSEU
CZAPIGA
PLUM
ottotto.it
kamilczapiga.blogspot.com.es
capitaineplum.tumblr.com
O milanês Ottorino D’Ambra era especialista em cenografia e, desde 2005, começou a tatuar. Destaque para as figuras de animais.
Kamil Czapiga abusa do pontilhado e do sombreado para fazer tatuagens surreais de autoria própria.
O francês Capitaine Plum desenha com traços finos e dá pequenas doses de cor em suas tatuagens monocromáticas.
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Luigi Ghirri
IMAGENS DO QUE SUPOMOS CONHECER TEXTO Priscilla Campos
“Sempre considerei que a fotografia fosse uma linguagem para ver – e
não para transformar, ocultar, modificar – a realidade. Deixei que sua magia revelasse ao nosso olhar os espaços, os objetos, as paisagens que quero representar. Confiante em que um olhar livre de acrobacias formais, modos de coerção e elucubrações consiga achar um equilíbrio entre consciência e simplicidade”, escreve o italiano Luigi Ghirri, em A obra aberta, publicação na qual ele tenta explicar, com domínio literário, sua construção fotográfica. Pouco conhecido para além das terras itálicas, Ghirri aparece, tardiamente, como uma descoberta gradual e curiosa aos olhos alheios. Curador, editor, crítico e fotógrafo, o artista reuniu, entre palavras e imagens, um grande acervo, que perpassa diferentes tópicos, mas converge em sua totalidade como ode à austeridade e à despretensão. Nascido durante o inverno de 1943, numa pequena cidade italiana chamada Fellegara, Ghirri conectou-se, ainda jovem, com a geografia e seus desdobramentos (poéticos e concretos). Em textos e biografias, autorais ou não, sempre é citada a sua paixão pela cartografia e pelas paisagens italianas, tanto as naturais quanto as urbanas. Em Módena, cidade onde viveu boa parte de sua vida, tornou-se agrimensor. Foi na década de 1960, durante uma viagem pela Europa, que o italiano empreendeu suas primeiras séries fotográficas.
Página anterior 1 LIDO DI SPINA, 1974
Meios tons e economia de elementos marcam fotografias de Ghirri
Nestas páginas 2-4 LUCERNA, 1971
O fotógrafo arranjava e rearranjava suas fotos em séries. Estas aparecem em Kodachorme (1970-1978)
3 BOLONHA, 1973 Boa parte do seu acervo foi realizado em viagens e férias, o que transparece nas situações registradas
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Num momento de crise para a fotografia, Ghirri apareceu como símbolo de renovação. Porém, ao invés de explorar, com despudor, experimentações e tecer críticas ácidas ao cenário que se apresentava, o italiano fez da perturbação motivo de debate pessoal. Em toda sua obra, Ghirri parece repensar a fotografia ao mesmo tempo em que escolhe uma linguagem amadora para isso. A impressão é que o italiano procura montar na sala de sua casa, tranquilamente, um quebracabeça sem fim. Ele optou pelo desligamento da técnica, da busca pela perfeição e do uso de métodos clássicos como base para repensar a linguagem fotográfica. De acordo com o especialista em História da Fotografia, Quentin Bajac, a escolha em nomear o livro com o conjunto dos trabalhos de
Ghirri, realizados na década de 1970, de Kodachrome – procedimento banal de revelação na época – traz consigo a relevância de um manifesto. As imagens, que também fizeram parte da série Paisagens de papelão, procuravam investigar o conceito de realidade. Por meio de fotos da foto e ângulos nos quais o momento capturado parecia uma montagem feita através de colagens, o italiano evoca a atenção do olhar para o que é verdadeiro ou falso. Sobre esse conjunto, Ghirri afirmou: “Muitos, ao escrever sobre fotografia, disseram que ela mostra aquilo que já sabemos: o conhecido; eu acredito, ao contrário, que a afirmação mais correta seria a seguinte: a fotografia mostra sempre aquilo que acreditamos já conhecer (...)”. Luigi foi também um esmerado explorador de seu país. A sua
intenção era sempre distanciar a lente dos registros óbvios acerca de tópicos como cultura, cotidiano, arquitetura e geografia. Ainda nos anos 1970, viajou por diversas cidades italianas para apresentar a mostra Italia-Ailati, cujo título, um palíndromo, faz alusão ao constante foco de Ghirri nas coisas que estão “ao avesso”, situações tidas como pequenas e postas, muitas vezes, à margem de uma dominante linguagem fotográfica. O contraste entre o íntimo e o universal obtido pelo italiano é um dos pontos mais fascinantes de suas imagens. Assim como a inglesa Virginia Woolf o evidenciou com as palavras, Luigi Ghirri expôs, através de suas fotografias, a dualidade presente no real, nas situações corriqueiras, oferecendo ao cotidiano toda a atenção que se lhe possa dedicar.
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BRAIES,1978
Inserida entre as imagens de Topografiaiconografia, esta pretendia "ver cada coisa que já foi vista como se a olhasse a primeira vez", de acordo com Ghirri 6 ROMA, 1979 Foto foi inserida em conjunto que busca refletir mais a percepção da Itália que sua descrição 7 RIMINI, 1977 Da série Em escala, feita no parque Itália em Miniatura
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
A LISTA DE CHICO
Realidade virtual, 30 anos Há 30 anos, o escritor norte-americano William Gibson publicava o romance Neuromancer, uma porta aberta para a realidade high tech – low life, premissa máxima do cyberpunk, subgênero da ficção científica literária. Imortalizado no cinema, porém, por clássicos como Blade runner – O caçador de andróides (1982), adaptado do livro Andróides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K Dick, e Matrix (1999), que este ano completa 15 anos, o cyberpunk veio a ser uma instituição. Legitimada através do tempo, essa ótica sob a qual se ergueram inúmeras histórias se tornou notável por fundamentar um contraponto à própria ficção científica, na época voltada para o combate estelar entre naves espaciais e extraterrestres. Mais que isso, a resolução cyberpunk acabou se provando uma verdadeira previsão metafórica para o contexto em que está ambientada a vida contemporânea na cidade grande. A acessibilidade da tecnologia doméstica e a imersão das pessoas no mundo virtual surgem em contraste com a pobreza de espírito e de intelecto dos próprios indivíduos – algo tão comum atualmente, quanto o ato de sair de casa e ir à padaria, enquanto se bate um papo furado via Whatsapp. FERNANDO ATHAYDE
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A FRASE
“Fato concreto. Quem inventou o alfabeto era analfabeto” Millôr Fernandes, escritor
No mês passado, quando Chico Buarque completou 70 anos, o Ecad divulgou o ranking das músicas mais regravadas do compositor. O artista possui 502 obras cadastradas no escritório, e, claro, centenas delas se tornaram clássicos absolutos da música popular brasileira. Foram catalogadas 930 regravações. Em primeiro lugar, está Gente humilde (em parceria com Vinicius de Moraes), seguida por Anos dourados, Retrato em branco e preto, Beatriz, O que será, Todo o sentimento, Carolina, Valsinha, Quem te viu, quem tem vê e O cio da terra. Já na lista das mais tocadas, não é trabalhoso apontar a campeã: Iolanda, que é, na realidade, uma versão da música de Pablo Milanês. Que atire o primeiro copo de cerveja quem nunca esteve num bar e ouviu, pela milésima vez, um cantor começar “Esta canção é mais que uma canção...” (Débora Nascimento)
Balaio VENDENDO ADOIDADO Foi vendida, em Chicago (EUA), uma mansão por U$ 1,1 milhão. A notícia poderia passar completamente despercebida, se a casa em questão não tivesse sido cenário do maior clássico da sessão da tarde dos anos 1980, Curtindo a vida adoidado. No filme dirigido por John Hughes (1950-2009), a residência, construída em 1953 pelos arquitetos James Speyer and David Haid, foi cenário para uma das cenas memoráveis da divertidíssima história, a queda da Ferrari do pai de Cameron (Alan Ruck), o amigo perturbado do protagonista Ferris Bueller (Matthew Broderick). Há um ano, o carro também foi vendido. Não o que caiu da garagem, claro. Aquele era, na realidade, uma das três réplicas feitas para o filme. Avaliada em U$ 2,3 milhões, a casa foi arrematada por menos da metade do preço. Se o jovem Cameron Frye realmente existisse, teria gostado bastante de ver seu pai sofrer esse prejuízo. (D.N.)
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ANONIMATO NO GOOGLE 1 Criado em 1998, por Larry Page e Sergey Brin, o Google surgiu com a proposta inicial de organizar a informação mundial e transformá-la em algo acessível e útil ao público. Seu rápido crescimento culminou no surgimento de uma cadeia de outras atividades para além do sistema de busca online, que foram desenvolvidas ou posteriormente adquiridas através de transações milionárias – serviços como o Orkut, Youtube e a plataforma Android para smartphones são alguns exemplos. Na prática, o altruísmo pregado no slogan da empresa – “Don’t be evil!” – parece não ser de muita valia, quando o assunto é dinheiro e anunciantes. Carro-chefe das ações do Google, o sistema de busca coleta um grande número de informações dos usuários, traçando valiosos perfis que são de extrema importância para empresas bombardearem os internautas com anúncios e ofertas de produtos. (Olivia de Souza)
ANONIMATO NO GOOGLE 2 Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia parece ir de encontro, ao menos superficialmente, a esse tipo de conduta do serviço, que agora deve responder aos pedidos dos utilizadores e apagar de seu sistema de busca informações consideradas “inadequadas, irrelevantes ou excessivas”. Para isso, o usuário deve preencher uma ficha disponível no site do Google, indicando o link a ser removido, e esperar pelo retorno. Apesar de ser contra o veredicto, a empresa é obrigada a cumprir a sentença, que, por enquanto, é válida apenas na Europa. Está aberta a temporada do anonimato na internet – resta saber se o mesmo garantirá que os usuários, além de não terem seus nomes encontrados nos resultados, vejam-se livres, de uma vez por todas, dos também “inadequados, irrelevantes e excessivos” anúncios da web. (O.S.)
Bruce versus Reagan A figura destacada de Abraham Lincoln fez com que os norte-americanos passassem a nutrir um extremado respeito por seus presidentes. Já a morte trágica de John Kennedy e a recorrente intervenção dos EUA nos problemas internos de outros países contribuíram para envolver o ocupante do cargo numa aura mítica, como se fosse uma espécie de super-herói ou diretor-geral do mundo. O senso crítico do povo, na realidade, só veio despertar, mesmo, após o escândalo de Watergate, que levou à renúncia de Nixon, em agosto de 1974. Até aí, vários artistas não viam problema algum em aparecer ao lado de seus chefes de estado, e chegavam a se sentir orgulhosos nessa parceria que mais beneficia os políticos que os astros. Em 1984, o presidente Ronald Reagan, achando que não estava fazendo nada demais ou, até mesmo, um favor, usou a música Born in the USA, de Bruce Springsteen, e citou o compositor em discursos na campanha à reeleição. A manobra acabou se tornando um tiro no pé. Por vários motivos. O cantor não havia liberado a música, não apoiava o candidato e não tinha composto uma canção patriótica. Posteriormente, Springsteen apoiou os democratas Bill Clinton e Barack Obama – este chegou a afirmar “Eu sou o presidente, mas ele é o chefe”, em referência ao apelido The Boss. Ou seja, estes são novos tempos, nos quais os políticos têm que se curvar diante do fato de que a música pop deu aos artistas o mais resistente e autêntico poder com as massas. DÉBORA NASCIMENTO
PESOS DA OBESIDADE 1
PESOS DA OBESIDADE 2
Altura: 1,54m. Peso: 83 kg. Essas características físicas fizeram Marcelo (nome fictício), de 12 anos, passar por três colégios do Recife e de Olinda entre 2012 e 2014. Razão: ele não suportava viver atacado pelos colegas com palavras como “gordão”, “bolota” e “baleia”. Esses dados, contidos em levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – que mostra o aumento dos casos de bullying motivados pela obesidade no Brasil –, também ensejam a verificação de quanto a visão em relação aos “quilos a mais” muda ao longo do tempo. (Gilson Oliveira)
Um dos mais antigos exemplos de entronização da gordura é a w, estatueta pré-histórica vista como símbolo de beleza e fecundidade. Em tempos mais recentes, o pintor Renoir (1841-1919) celebrizou quadros com gordinhas saindo do banho. Já nos anos 1960, o jingle de uma indústria recifense associava a um de seus produtos as virtudes do engordamento: “Todo gordo quer emagrecer,/ todo magro quer engordar,/ para o gordo não há o que fazer,/ para o magro biscoitos Pilar”. (G.O.)
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MAURICIO PLANEL
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Os caminhos que levam ao insight
Inerente à trajetória humana, a criatividade não é exclusiva do ambiente artístico, embora seja nele que reconheçamos sua evidência. Mas existe um modo de sabermos onde exatamente ela se desencadeia no nosso corpo? TEXTO Luciana Veras
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CON CAPA TI NEN TE
ROMULO FIALDINI/DIVULGAÇÃO
O escritor Milton Hatoum sempre
começa seus livros pelo fim. A estilista Adriana Barra registra as sensações que lhe aparecem em viagens. O pintor Bruno Vilela coleciona cadernos em que rabisca impressões e desenhos. A cantora e compositora Bárbara Eugênia usa sua vida como combustível para versos e melodias. O cineasta Beto Brant parte de uma matriz literária para iniciar uma viagem de corpo a corpo com o olhar. A fotógrafa e videasta Virgínia de Medeiros trabalha sozinha, sem equipe, e se envolve muito com seus personagens. O escritor Rodrigo Fresán não tem um sistema, horário ou disciplina. A atriz Marieta Severo se apossa de imagens e referências para lhe servir de munição. Eles são artistas. Destacam-se e ganham a vida com as obras a que se dedicam, alguns há mais tempo, outros de umas temporadas para cá, todos com afinco. São indivíduos que iluminam as acepções do verbo criar, cuja primeira aparição nos léxicos remonta ao ano de 1001, segundo o Dicionário Houaiss. A criatividade, decerto traduzida com mais nitidez na trajetória dos que imergem na carreira artística, acompanha a humanidade desde sempre. E a ciência tem procurado, continuamente, delinear como se dão os processos criativos no cérebro humano. Os estudos vêm se intensificando graças ao aprimoramento das tecnologias de mapeamento imagético do corpo humano. Neurocientistas, psicólogos e médicos tentam elucidar qual o caminho das ideias e das articulações criativas na rede de sinapses formada pelos neurônios, as células do cérebro. “Tipos diferentes de criatividade utilizam partes diferentes do cérebro. Nos meus estudos, comprovamos que cada um de nós precisa do trabalho conjunto dos dois hemisférios para um resultado criativo”, explica à Continente a neurocientista Lisa Aziz-Zadeh, doutora em Psicologia e professoraassistente do Brain and Creativity Institute (literalmente, Instituto do Cérebro e da Criatividade, coordenado pelo neurocientista português Antonio Damasio) e do departamento de Ciência Ocupacional da Universidade da Southern California, em Los Angeles. Ao hemisfério direito, por exemplo, cabem as funções de reconhecimento de rostos, melodias, notas musicais,
1 ADRIANA BARRA Para criar, a estilista toma nota de sensações que tem em viagens
sons ambientais, formas e padrões geométricos; o pensamento concreto; o senso de direção; a memória não verbal; e as emoções relacionadas à sensação de evitar algo, como o medo. À metade esquerda, por sua vez, estão reservadas a linguagem (letras, palavras, memória verbal, falar, ler, escrever), o ato de fazer contas, as resoluções lógicas, processuais e sistemáticas de problemas, análise, pensamento abstrato e as emoções ligadas à aceitação, como afeto. “É complicado generalizar no que se refere ao cérebro, mas, se formos ter uma vaga ideia de quais
regiões são comumente associadas aos processos criativos, geralmente teremos atividade no córtex pré-frontal, na ínsula, nas regiões motores e nas redes recompensatórias, que respondem por aquela sensação boa que você tem quando passa por um momento ‘aha!’”, acrescenta dra. Aziz-Zadeh. Em seu estudo mais recente, Aha! The neural correlates of verbal insight solutions (Aha! Os correlatos neurais de soluções verbais de insight), 12 participantes com idades entre 20 e 40 anos, seis homens e seis mulheres, todos destros, completaram 48 testes contendo anagramas, aplicados dentro de uma máquina de fMRI (ressonância funcional magnética). Ao solucionar o anagrama, eles tinham que apertar um botão para indicar se
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ADRIANA VICHI/DIVULGAÇÃO
MILTON HATOUM, escritor brasileiro A imaginação e a inspiração são o que há de mais poderoso na escrita literária. A literatura é um trabalho solitário que começa, na verdade, com a leitura. Não seria o escritor que sou hoje se não houvesse lido os romancistas que li. Não se domina a técnica de um romance sem uma leitura estudada, reflexiva, de Flaubert, por exemplo. Nunca conheci nenhum escritor que não tivesse sido um rato de biblioteca. E as obras pelas quais você tem empatia não estão separadas da vida; elas são a sua vida, elas te ajudam a construir personagens, te inspiram personagens. Mas a escrita não depende exclusivamente da leitura: nela entra tudo aquilo que nos constitui, como a memória, que é um outro nome da imaginação. O nosso cérebro é muito complexo. Às vezes, faço um gesto diferente ao acordar e isso desencadeia um sonho, uma lembrança, que desperta uma ideia. O processo de escrever, que para Manuel Bandeira era o “alumbramento”, um estado de espírito propício à poesia, carrega em si um pequeno milagre e alguns mistérios.
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Preparação, incubação, iluminação e verificação seriam estágios do processo criativo, de acordo com Shelley Carson
haviam chegado à solução como algo que simplesmente irrompeu na mente (“aha!”) ou se haviam procurado a resposta a partir de memórias e conhecimento prévios. Os resultados apontam a proeminência do córtex pré-frontal direito, área já associada à criatividade, e a utilização dos dois hemisférios em simultaneidade para atender demandas específicas, o que pode ser um componente importante para o insight. “Pode ser” é uma locução repetida ad nauseam nesse estudo e em artigos afins. O fato é que, no campo da criatividade e no seu percurso cerebral, para cada certeza há um sem-número de mistérios. “O cérebro sempre me fascinou, desde a minha primeira aula de
anatomia como estudante da graduação. Tudo ao nosso redor – dos edifícios onde vivemos aos carros e aviões que nos levam, das roupas que vestimos aos nossos smartphones e às músicas que ouvimos dentro deles – nasceu como apenas uma visão dentro de um cérebro humano. Meu objetivo, então, foi tentar entender os achados contraditórios da neurociência da criatividade, indo além da discordância em quais aspectos do cérebro eram mais importantes para os processos criativos”, diz Shelley Carson, psicóloga e professora da Universidade de Harvard, a respeito do seu livro Your creative brain – seven steps to maximize imagination, productivity and innovation in your life (O cérebro criativo – aprenda a aumentar a imaginação, melhorar a produtividade e
inovar em sua vida, na tradução da edição nacional publicada pela Best Seller, atualmente esgotada). Tanto ela como a dra. Lisa Aziz-Zadeh citam o exemplo do matemático grego Arquimedes e o fenômeno da “Eureca!”, palavra que o grego teria gritado ao correr nu pelas ruas de Siracusa após constatar, enquanto tomava banho, como poderia saber se a coroa de ouro do rei Hierão havia sido adulterada ou não (e vem daí a lei do empuxo que todos estudam na física). O mito da inspiração instantânea persiste, assim como a compreensão de que o processo criativo pode ser incrementado, se dividido, como prega e elabora Shelley Carson no seu livro, em quatro fases: preparação, incubação, iluminação – eureca! – e verificação. Contudo, a criação também possui seus enigmas. Nunca estanque, assume outros contornos a depender de quem com ela se confunde.
MODUS OPERANDI
Para Rodrigo Fresán, escritor argentino radicado em Barcelona, autor de O fundo do céu (2009), trata-se de uma experiência da qual ele prefere pouco
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“Com menos ou mais intensidade, o ato de criar está totalmente imbricado com o de viver” Hermes Azevedo
RODRIGO FRESÁN, escritor argentino Desde que tenho memória, sempre quis ser escritor. Nunca pensei em ser advogado ou dentista. Os escritores me interessavam como tema e espécie animal. Deles, gosto de ler biografias, cartas, diários... tenho uma atitude bastante fetichista. Os que mais aprecio são Proust, Cheever, Vonnegut, Nabokov e Philip K. Dick, que escrevem livros sobre livros ou que transcorrem dentro da cabeça de escritores. Em todos os meus livros há personagens escritores. O mais recente, La parte inventada, investiga como funciona a cabeça de um escritor enquanto ele está criando. Como se inventa uma história? Por que lugares ela passa? Como ocorrem as ideias? Para mim, o ofício de escrever passa pelo “durante”, não pelo “depois”. Sempre penso em vários livros ao mesmo tempo. Gosto de estar corrigindo e agregando coisas. Quando chego ao final (e só entrego nas últimas, para desespero dos meus editores), há uma sensação difícil de descrever: é o momento em que sinto que o livro já não é meu, que tem que ir. Então que se vá.
ou nada apreender. “Não tenho muita certeza sobre algumas coisas, tampouco me interessa tê-las como claras. Há dois tipos de atitude na vida e uso como exemplo um espetáculo de mágica: tem gente muito preocupada em saber como é o truque, enquanto outros apenas se deixam maravilhar pelo que o mágico faz. A mim, o terreno da criação e da escrita é o da surpresa. Não quero perder a perspectiva do leitor enquanto escrevo, até porque sou sempre o meu primeiro leitor. Não me interessa perder a capacidade de surpresa. Por isso, cada livro me impõe um tempo próprio e gera um método particular. Sem disciplina alguma”, compartilha com a Continente. É uma perspectiva distinta, por exemplo, da do escritor manauara
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2-3 BRUNO VILELA Anotações em cadernos e horário regular são parte de sua rotina 4 BETO BRANT Matriz criativa do cineasta é a literatura
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Milton Hatoum, de Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), entre outros. No início, quando ainda era professor universitário, ele não era muito rígido consigo mesmo por causa da escassez de horários. O tempo alterou sua metodologia. “Quando meu primeiro filho nasceu, em 2004, aluguei uma edícula para trabalhar. Não tenho fetiche algum de viver a reclusão do escritor, mas preciso estar sozinho e de silêncio para escrever”, conta. A prática de transformar em redações ficcionais “a memória, as inquietações, as mais
íntimas dúvidas que trazemos dentro de nós e componentes autobiográficos” deslinda outros cacoetes. “Escrevo sempre à mão, depois passo a limpo e vou corrigindo. Não sei escrever direto no computador. Também faço um plano como o arquiteto que nunca fui: comecei todos os meus romances pelo fim, para depois chegar ao caos. Se não souber onde vai terminar tudo, não tenho como descobrir o que virá antes”, revela. Curioso perceber que dois profissionais no mesmo âmbito de
atuação possuem modus operandi bemapartados. A criação, porém, respeita a subjetividade de cada ser e obedece a sentimentos e repertórios afetivos acumulados em toda existência. “Com menos ou mais intensidade, o ato de criar está totalmente imbricado com o de viver. Seja de forma mais sutil e simples, nos telhados de uma casa composta por garrafas pet cheias d’água para substituir a iluminação artificial, por exemplo, ou de forma mais espetacular e exposta em teorias ou exposições de arte, se o homem não cria, ele não vive. E essa sua criatividade é completamente entrelaçada com suas frustrações e problemas que povoam sua realidade. Criador e criatura são inseparáveis. Em outras palavras, a realidade objetiva, a realidade subjetiva, o eu objetivo e o eu subjetivo formam uma unidade dialética indissociável na hora de criar”, afirma Hermes Azevedo, presidente do Conselho Regional de Psicologia/Pernambuco. O “fenômeno da criatividade”, como o psicólogo coloca, unifica os homens: “Existe em alguém com pouco ou nenhum acesso ao conhecimento formal e também no cientista. É de tal forma democrático e onipresente, que, não raro, o homem mais simples – e menos comprometido com os métodos formais – consegue resolver problemas de forma mais criativa e original do que os de mente complexa. Contudo, ambos partilham da mesma capacidade de, frustrados, não se resignar e assim transpor os limites impostos pelo mundo objetivo e/ou suas interpretações da realidade”. A criatividade, então, age ora como uma ferramenta de catarse, ora como um catalisador do que o artista sente, sofre e anseia. Foram essas questões, inerentes ao que ele chama de “cosmogonia do pintor recifense Bruno Vilela”, que orientaram o diretor paulista Beto Brant quando veio ao Recife dirigir um dos documentários da série Se cria assim, com concepção e direção-geral do cineasta pernambucano Cláudio Assis.
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5-6 VIRGÍNIA DE MEDEIROS Artista diz que trabalha com a intimidade, com o tempo dado pelo acaso e pelo acontecimento
SE CRIA ASSIM
A série é composta por quatro filmes de 26 minutos de duração, a serem exibidos em canais fechados neste segundo semestre de 2014, cujo propósito é radiografar o decurso inventivo dos artistas visuais Rodrigo Braga, Marcelo Silveira, Paulo Bruscky e Bruno Vilela. Assis dirigiu os documentários sobre Braga e Silveira, o diretor de fotografia e cineasta Walter Carvalho acompanhou Bruscky e coube a Brant, de O invasor (2001) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), entre outros, a tarefa de enquadrar Vilela. “Ele é um artista que se alimenta do afeto e cria a mitologia dele ao mesmo tempo em que vai buscar fontes no mistério, no candomblé, na astronomia. Além disso, é extremamente técnico, fez quatro anos de estudo avançado de anatomia, mas não se deixa enclausurar pela habilidade. Nada é realista na
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MARIETA SEVERO, atriz brasileira Como atriz, não crio isoladamente. Sempre que recebo um personagem novo, começo uma vivência muito particular, num processo de criação abrangente. Mas nada é independente dos outros, do que o diretor quer, dos que meus companheiros de elenco estão fazendo. Sento com eles, observo seus passos durante os ensaios, vejo como eles fazem e sigo criando dentro desse todo. A melhor brincadeira para mim é estar vivendo um personagem. Não é que não goste de quem eu sou, nada disso; é que meu gosto por tudo aquilo que é inventado, pelo ficcional, é enorme. E os personagens exigem diferentes tipos de exercício. Dona Nenê, por exemplo, já está criada. São 14 anos de convivência. Já não caminho com ela diariamente, mas a busca é achar uma sutileza, um novo olhar, algo diferente, para emprestar a ela. É uma recriação constante e necessária, porque senão mecaniza tudo. Por isso, adoro dizer que vivo em um estado de criação. Às vezes, são dois, três, quatro personagens ao mesmo tempo. Mas é só o corpo que fica cansado; o resto está inteiro.
tela dele. Essa liberdade que tem no olhar me encanta”, discorre Brant. Talvez o alumbramento tenha se dado justamente porque, para Beto Brant, o cinema tem uma marcha peculiar: “Às vezes, você passa anos para viabilizar um filme. Um longa é uma obra construída, pensada; você precisa contratar 40 pessoas, depois tem que lidar com o incentivo fiscal, com a prestação de contas. Isso dá um excesso de pressão que o acanha. Mas aí faço uma videoarte, uma videodança, e é uma delícia, porque não tem o menor compromisso com o mercado.” A singularidade de sua jornada como autor é que ela se constitui, exclusivamente, de adaptação de obras literárias. “Gosto de ler, parto da literatura, meu principal parceiro, Marçal Aquino, é um escritor. Mesmo os meus filmes que não são dele, como Crime delicado (2005), que é de Sérgio Sant’anna, ou Cão sem dono (2007), do livro de Daniel Galera, partem do meu contato com a literatura. Mas o que faço com os livros é uma leitura, nunca uma adaptação. Minha viagem é recortar, é olhar em
“Em tese, o processo criativo não passa pela consciência, pela determinação de um efeito, um resultado” Luiz Camillo Osório 3D aquele material e dali construir uma imagem”, exemplifica. No seu episódio de Se cria assim, Bruno Vilela narra o dia a dia de quem decidiu, desde cedo, enveredar pelas searas da arte. Cursou Artes Plásticas na Universidade Federal de Pernambuco, mas não terminou, foi discípulo do desenhista japonês Sunichi Yamada e, há cinco anos, abandonou tudo para ser artista. Isso não implica o desapego à própria ordem interior. Enquanto guarda cadernetas que arruma, com zelo, em um dos móveis do seu ateliê (“São para descarregar a ansiedade, para guardar ideias, para começar desenhos”), ele conserva uma rotina espartana: “Trabalho diariamente, das 10h às 19h. Dois dias da semana, chego às 11h
porque levo meu filho para nadar. Pela manhã, respondo a meus e-mails, vejo mais as coisas administrativas, e à tarde fico pintando e produzindo. Sou artista, abracei o desapego para viver do que der, mas sempre com profissionalismo”. Grafites, tintas a óleo em centenas de tonalidades, pincéis e ferramentas o ladeiam, assim como telas das séries Voodoo drama, Animattack ou Mindscapes, cujas gêneses remontam ao que ele, concordando com Beto Brant, classifica como sua “visão de mundo”. Para atingir esse estado, o processo em si é tão essencial quanto a bagagem ou a pulsão que o desencadeia. “Em tese, o processo criativo não passa pela consciência, pela determinação de um efeito, de um resultado que possa ser previamente qualificado ou determinado como causado por uma intenção específica”, pontua Luiz Camillo Osório, crítico de arte, professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ e curador do Museu de Arte Moderna carioca. “De certa maneira, na ideia de criação de arte, o processo vai sendo constituído
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LISA AZIZ-ZADEH,
neurocientista norte-americana
Embora a criatividade seja talvez a mais importante ferramenta humana, sua base neural ainda é difícil de compreender. Mas a ciência e as tecnologias utilizadas para escanear o cérebro têm avançado e apontado para a constatação de que os dois hemisférios cerebrais são acionados nos processos ligados à criatividade. Completei dois estudos específicos sobre criatividade: um sobre o instante do insight, e outro sobre as correlações neurais da criatividade visual, que é um componente crucial para a fotografia, a pintura, a arquitetura e a escultura. Nos dois, quando induzimos uma situação para que surgisse uma ideia na pessoa dentro da máquina de ressonância magnética, foi possível capturar esse instante no cérebro. Encontramos padrões de atividade cerebral que são relacionados ao insight ou à criatividade visual. Os resultados desses estudos apontam que, mesmo em uma tarefa especializada de um hemisfério específico (por exemplo, o processamento de informações visuais e espaciais no hemisfério direito), uma robusta atividade paralela no hemisfério esquerdo auxilia o processo criativo.
e gerado na realização da própria obra. O artista não existe antes da obra; ele é constituído por ela. É o poema que constitui o poeta”, defende.
VIVÊNCIA
A baiana Virgínia de Medeiros se permite pensar, agir e criar por esse matiz. A artista visual estará presente na 31ª Bienal de São Paulo com o vídeo Sérgio e Simone (2009/2014), em que acompanha a transformação de um travesti negro, autointitulado “guardião” de uma fonte em uma degradada vizinhança do centro de Salvador, em um pastor evangélico – que por sua vez usa o registro feito por ela para corroborar sua conversão. Para abordar o universo dos travestis em Studio Butterfly (2003/2005), a oralidade sertaneja em Fala dos confins (2010) ou o ethos sadomasoquista em Jardim das torturas (2013), ela se imiscuiu na realização de tal modo, que a fundiu em um “processo de vivência”.
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construir uma linguagem que dê conta de tudo que vivi, da complexidade daquele personagem. Por isso, gosto de trabalhar com a videoinstalação, que borra as fronteiras entre literatura, vídeo e fotografia e me dá liberdade e diferentes formas de contar uma história por completo”, ressalta. A noção de “fronteiras” nunca existiu para a estilista paranaense Adriana Barra – tanto aquelas pontilhadas que demarcam territórios de países adjacentes como as que podem ser transpostas com o desanuvio da mente. “Países, tribos, lugares, animais, plantas, cheiros, cores… tudo pode me servir. O processo de criação é livre, sem amarras”, sintetiza. Ao longo do tempo, ela diz ter aprendido a não se deixar intimidar pela “opressão da criatividade”. “Antes, eu acordava no meio da noite, ia escrever as ideias que tinham surgido
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“Trabalho muito com a intimidade, com o tempo dado pelo acaso, pelo acontecimento. Nessa vivência, somos eu, a câmera e o outro, uma relação que se estabelece e na qual me envolvo por completo. Antes, me via muito como mediadora, mas hoje entendo que também entro num estado performativo para fazer esse trabalho de arte, que fica num ponto de intersecção, na borda da prática e da reflexão. Enquanto faço, vou pensando, desenhando, formalizando a experiência, até porque, no começo, quando você tem apenas o projeto, aquilo é uma ficção, um abismo. Como tal, está aberto a sofrer todo tipo de transformação, a todo tipo de desvio, até chegar à instauração da obra. Meu processo criativo não é ponto de chegada, é ponto de partida para algo”, observa. É a força desse processo que a impele a escolher, por exemplo, o suporte a ser usado. “Sou obsessiva no afã de dar forma a tudo aquilo, de
De acordo com a neurociência, as áreas do cérebro mais exigidas por um tipo de atividade são mais desenvolvidas e não conseguia mais dormir. Trabalhava 20h por dia. A partir da experiência, soube que delegar, no meu caso, é tão importante quanto criar, e hoje não fico muito procurando a criação. A inspiração chega”, comenta Adriana, cujo trabalho se notabiliza por um apurado design de coloridas e chamativas estampas. Ela, que nunca desenhou, comanda uma equipe de nove pessoas e as orienta para concretizar em tecidos as imagens que a encantam. “Mas aprendi também que nem toda ideia pode ser aproveitada, que várias inspirações não são representáveis e assim não vão virar uma estampa. O que fica é o que o cérebro registrou. Se houve alguma ideia anterior e eu não lembrei, já não me preocupo”, admite. Indagada sobre se o tipo de trabalho que é feito – uma ideia para uma estampa, uma performance, uma pintura ou um livro – determina as regiões do cérebro afetadas por esta função, a neurocientista Lisa AzizZadeh ensina que o que se faz nas
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BÁRBARA EUGÊNIA
Compositora e cantora, ela diz que tudo entra na criação, de sua rotina ao conteúdo de uma foto, um filme
tentativas e nos ensaios, por exemplo, repercute imediatamente. “Os músicos possuem áreas mais amplas no cérebro que são dedicadas aos dedos que eles usam para tocar seus instrumentos, por exemplo. Os compositores e instrumentistas também processam a música de forma diferente de como um não músico recebe as informações musicais em seu cérebro”, elucida. Sons e palavras, portanto, são processados de jeitos particulares por uma compositora e uma atriz. Afinal, dedilhar um violão é hábito para Bárbara Eugênia; já para Marieta Severo, seria um passo no approach de um personagem. Cariocas, as duas possuem em comum uma certa solitude inicial na hora de evocar suas musas. Compositora e cantora, autora de Journal de Bad (2010) e É o que temos (2013), Bárbara escreve à mão, com lápis, em “um monte de caderninhos” que carrega na bolsa: “Anoto tudo e depois organizo as ideias num só, já pensando no nome das músicas e do disco. Assimilo muito melhor quando escrevo à mão. Esse processo tem uma textura que deixa a letra impressa na minha cabeça”. Para ela, a vida tem o mesmo peso de um filme, um álbum, uma fotografia. “No meu processo criativo, não adianta forçar a barra. Falo muito sobre as coisas que me acontecem, é tudo bastante pessoal. Tem as licenças poéticas, a inspiração de fora, mas é a minha vida e a das outras pessoas ao meu redor que caem no meu trabalho”, situa. Na atriz Marieta Severo, existe um permanente “estado de criação”. Nele, coabitam dona Nenê, que encarna há mais de 14 anos no seriado televisivo A grande família, e Nawal, a protagonista do espetáculo teatral Incêndios, em cartaz no Rio de Janeiro, ou qualquer personagem que vier a ocupá-la. “As palavras que me dão foram criadas por outra pessoa, mas isso não implica uma carga menor de criatividade”, avisa. “Por ser uma intérprete, primeiro preciso entender o que o criador fala. O processo se inicia assim: recebo o texto, passo a cavucar as ideias do autor, a me apropriar disso e fazer minha
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A maior parte do esforço de escrever um romance para mim é tentar me manter fiel a esse zumbido, a esse ritmo. É um negócio altamente intuitivo”, conta. O autor de A trilogia de Nova York (1987), Leviatã (1992), A noite do oráculo (2004) e Sunset Park (2010), entre outros, começa a trabalhar às 9h, no escritório, e escreve à mão com uma Aurora, caneta tinteiro italiana, em um caderninho. “O parágrafo é a minha unidade natural de composição. O verso é a unidade do poema, o parágrafo, para mim, cumpre essa mesma função na prosa. Elaboro e reelaboro o parágrafo até que eu esteja razoavelmente satisfeito com ele, escrevendo e reescrevendo até que tenha a forma ideal, o balanço ideal, a música certa. Uma vez que pareça terminado, eu bato à máquina. Então, cada livro tem um manuscrito cursivo e um outro datilografado, ao lado”.
JOHN CASSAVETES
MODOS IDIOSSINCRASIAS DO MOMENTO DA CRIAÇÃO Cada artista tem o seu jeito de criar. É como DNA: pessoal e intransferível. Os processos criativos podem ser lapidados com a prática diária; ser lineares, no caso de escritores, que, em geral, iniciam a primeira frase e seguem a ordem cronológica até o final do livro; ou se assemelhar a uma epifania. Mas há milhões de nuances entre esses extremos da atividade.
WOLFGANG AMADEUS MOZART
Em The creative process: reflections on the invention in the arts and sciences (O processo criativo: reflexões sobre a invenção nas artes e nas ciências, em tradução livre), coleção de textos assinada por Brewster Ghiselin, aparece uma carta atribuída ao compositor austríaco, na qual se diz: “Quando estou complemente sozinho, em um bom humor – digamos, viajando em uma carruagem, ou passeando após um lauto almoço, ou durante uma noite em que não consigo dormir: é nessas ocasiões em que minhas ideias fluem mais e com melhor abundância. De onde e como elas surgem, eu não sei; nem posso forçá-las”.
PAUL AUSTER
Para o escritor nova-iorquino, todos os livros começam com “um zumbido na cabeça”. “É um tipo de música ou de ritmo, um tom.
Falecido aos 59 anos em 1989, o cineasta e ator é até hoje considerado o pai do cinema independente norte-americano. A partir de Sombras (1959), foi apurando um estilo que, embora emergisse de um roteiro amarrado, incentivava a improvisação dos atores no set. Há quem diga que a maestria apresentada em Faces (1968), Uma mulher sob influência (1974) e Noite de estreia (1977), entre outros, deu-se, também, porque seu gênio era abastecido por doses torrenciais de álcool – consumia a tal ponto que morreu de cirrose. No cérebro, o álcool induz a um estado de desinibição cognitiva que, apontam estudos, pode levar a uma recorrência de insights ou a níveis maiores de criatividade.
CLAUDE MONET
Um dos criadores do Impressionismo na pintura, Monet (1840-1926) se dizia “freneticamente levado pela necessidade de reportar o que eu vivencio”. Principalmente na última fase do seu trabalho, quando retratou os lírios d’água dos jardins de sua casa, em Giverny, sua insatisfação consigo mesmo e suas constantes alterações de humor contrastavam com o método lento e perfeccionista de observar a luz, as cores e as formas. “Trabalhando tão devagar eu me sinto desesperado, mas quanto mais longe eu vou, mais eu vejo que é preciso trabalhar muito para suceder em representar aquilo que procuro”, escreveu. Suas pinturas mais famosas, como a série das ninfeias ou os lírios d’água, feitas ao cabo de dias e meses de observação diária de uma mesma paisagem, ficaram prontas quando ele já estava acometido de catarata nos dois olhos e, portanto, praticamente cego. Ele queria captar o transcendental: “A paisagem, o objeto, é insignificante para mim: o que quero representar é o que está entre mim e o objeto”.
própria criação. O começo é solitário. Começo a me apossar de imagens para compor aquele personagem, a pensar em um olhar diferente e só fico focada nisso. Tudo, aliás, na minha vida se volta para isso. É avassalador.” Os estágios seguintes ampliam o escopo das relações – nos ensaios, Marieta interage com os companheiros de elenco e aí coletiviza a criação até então restrita –, mas mantêm a atriz em uma vigilância perene. “Todos os personagens me consomem muito. Viver um personagem é o que mais gosto de fazer na minha vida. Na verdade, gosto mais da ficção, prefiro entrar em um cenário a entrar em uma casa. Durante o processo criativo, a realidade fica desfocada e todo o resto se volta para a ficção. Até porque eu preciso criar um alguém em que as pessoas não enxerguem Marieta, ao me verem em cena, e, sim, a dona Nenê, por exemplo. E quanto mais diferentes eles forem, mais elasticidade me derem, melhor para mim”, afirma a atriz de cinema (Carlota Joaquina, 1994), teatro (A dona da história, de 2000, entre outros) e TV (Catarina, de Vereda tropical, de 1984).
EVOLUÇÃO
Novos personagens, canções, livros, instalações, pinturas, filmes, estampas... Uma miríade de possibilidades pode irromper com o que se engendra nos cérebros daqueles que se devotam à criação artística. E também nos circuitos criativos das mentes das pessoas comuns. “A criatividade foi um recurso fundamental na evolução da espécie humana. Nossa engenharia biológica é delicada; talvez sejamos uma das mais frágeis espécies do ponto de vista biomecânico. Tivemos que ser criativos para sobreviver. Ao nos depararmos com obstáculos, rompemos com as limitações. Graças à faculdade de criar soluções, fruto do inconformismo que mais nos tipifica, fomos capazes de vencer as fragilidades e desenvolver a criatividade de forma inusitada e singular. Assim criamos a ciência, que é o patrimônio intelectual da sociedade humana”, teoriza o psicólogo Hermes Azevedo. “Viver é solucionar uma série de problemas a cada instante. Quanto mais criativos formos ao fazer isso, mais contribuiremos para nossos irmãos e para nosso futuro”, defende a neurocientista norte-americana Lisa Aziz-Zadeh.
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Entrevista
SHELLEY CARSON “AS PESSOAS PODEM ‘PENSAR FORA DA CAIXA’ COM UM POUCO DE PRÁTICA” Doutora em Psicologia pela Universidade de Harvard, Shelley Carson é autora de Your creative brain – seven steps to maximize imagination, productivity and innovation in your life (O cérebro criativo – aprenda a aumentar a imaginação, melhorar a produtividade e inovar em sua vida, cuja edição nacional está esgotada). Lançado em 2010, pela editora Jossey-Bass, o livro sintetiza o trabalho que a psicóloga desenvolve nas áreas de criatividade e psicopatologia. Uma das teses que defende na tradicional instituição de ensino norte-americana é a de que é possível, sim, exercitar a criatividade. “A capacidade de pegar pedaços de informação e combinálos e recombiná-los de formas que sejam novas, originais e ainda úteis ou adaptáveis a outras situações se chama criatividade. Se você for atrás de mais ‘pedacinhos de informação’, maior será o material que você terá para combinar de maneiras originais”, diz na entrevista concedida por e-mail à Continente, no intervalo de uma das suas aulas no campus em Boston, Massachusets.
CONTINENTE No seu livro, você afirma que não há um centro criativo no cérebro, mas várias partes afetadas pela criatividade. Como traduzir esse processo complexo para um leitor comum? SHELLEY CARSON Em Your creative brain, descrevo vários estados de ativação cerebral, que chamo de brainsets. Cada um desses estados cerebrais pode ser apropriado para diferentes estágios do processo criativo. Por exemplo, quando você está gerando ideias criativas, não quer ficar preso em um estado cerebral em que você está meticulosamente avaliando dados. Você deseja estar em um estado mais desfocado, mais aberto. A ideia principal é que os diferentes estados cerebrais são associados com diferentes meios de usar a nossa percepção, a nossa memória e nossa estrutura mental para resolver problemas. Eu sugiro, portanto, que aprender a entrar em variados estados cerebrais e a passear com flexibilidade entre eles vai aperfeiçoar a criatividade. CONTINENTE Que áreas do cérebro são cruciais para um músico, um escritor ou um cineasta? SHELLEY CARSON O cérebro é complexo e opera mais como um conjunto de redes ou sistemas do que localidades específicas acionadas por tarefas exclusivas. Portanto, enquanto um cineasta pode precisar acionar os aspectos de detecção de movimento do sistema visual (localizados nos lobos parietais) mais frequentemente do que um artista que pinta natureza-morta, por exemplo, cada ato de criatividade possui diversos estágios e requer diferentes ativações de redes neurais específicas em cada uma dessas fases. Pesquisadores ainda estão trabalhando para identificar essas complexas sequências de ativação cerebral.
uma sinfonia”. Então, podemos distinguir duas tarefas relativamente diferentes ao olhar para as partes do cérebro que estão ativas nas pessoas que foram demandadas para executar tais tarefas. Por outro lado, ainda não conseguimos dizer a qualquer uma que esteja se submetendo a uma ressonância que faça algo e depois determinar o que é tal coisa apenas a partir da observação daquela atividade cerebral. CONTINENTE Você acredita que a correria da vida cotidiana suprimiu ou mesmo enterrou a habilidade de um indivíduo comum de “pensar fora da caixa” ou de trazer mais imaginação e inovação para dentro de sua existência? SHELLEY CARSON Creio que muitas pessoas se sentem confortáveis em pensar de maneiras lineares e sequenciais, porque foi isso que eles aprenderam a fazer na escola. Esse tipo de pensamento é eficiente para resolver várias tarefas diárias, do tipo decidir se devemos primeiro pegar as roupas na lavanderia ou ir ao supermercado. Então, sim, a rotina da vida cotidiana provavelmente mantém as pessoas “pensando dentro da caixa”. Entretanto, a maioria das pessoas pode “pensar fora da caixa” com um pouco de encorajamento e prática. Quando alguém começa a fazer isso, logo se surpreende como o quão mais interessante pode ser tornar a rotina diária.
CONTINENTE Que conselho você daria para alguém interessado na oferta de possibilidades criativas dentro do cérebro? SHELLEY CARSON O primeiro passo para se tornar mais criativo e aprender mais sobre o processo criativo é ler muito. Pessoas interessadas em aumentar a própria criatividade devem sempre ampliar o aprendizado, pesquisando e mantendo um olhar curioso sobre CONTINENTE É possível mapear vários assuntos. Um segundo conselho cientificamente o processo de alguém que compõe seria o de desligar o censor do seu uma sinfonia ou que escreve uma lista de compras cérebro. Passe um tempo pensando em para a feira? soluções sem julgar seus pensamentos. SHELLEY CARSON Se você colocar duas Você chegará a algumas ideias bem pessoas em uma máquina de ressonância estranhas, e talvez algumas delas sejam magnética e disser a uma delas para absurdas ou impraticáveis, mas outras pensar na lista de feira e à outra para podem ser bastante criativas. Julgar começar a compor uma sinfonia, é e descartar ideias antes mesmo que possível apontar quem está fazendo o elas tenham a oportunidade de brotar quê. No entanto, não sabemos o bastante completamente limita seu modo de para olhar uma imagem cerebral aleatória pensar. Para que a criatividade floresça, e afirmar “essa pessoa está escrevendo é necessário superar esses limites. (LV)
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GÊNIOS Cérebros privilegiados
Para os neurocientistas, é possível reconhecer o cérebro de uma pessoa superdotada. Os sociólogos trabalham a partir de referências contextuais
Albert Einstein. Alfred Hitchcock. Bob Dylan. James Joyce. Ludwig van Beethoven. Pablo Picasso. Stanley Kubrick. Stephen Hawking. Vincent van Gogh. William Shakespeare. Wolfgang Amadeus Mozart. Em um hipotético certame criativo mundial, essa poderia se tratar de uma seleção de gênios. Ei-los, os seres de uma existência que paira acima de todas as outras. Suas capacidades de articulação de ideias acarretam impressionantes resultados; a partir das faíscas de inspiração que seus cérebros operam, florescem
descobertas científicas ou magníficas obras de arte. Em alguns casos, a eles são atribuídos, até, a conceituação da vida e seus meandros. Em Shakespeare – a invenção do humano, o crítico literário norte-americano Harold Bloom vaticina: “Será que podemos nos conceber sem Shakespeare? Não incluo aqui apenas atores, diretores, professores e críticos, mas também o presente leitor e todas as pessoas de seu relacionamento”. Na ótica fisiológica, existem, sim, as mentes diferenciadas, como lembra a neurocientista norte-americana Lisa
Aziz-Zadeh, professora do Brain and Creativity Institute da Universidade da Southern California. “É absolutamente possível identificar o cérebro de alguém tido como genial. Por exemplo, existem muitos estudos sobre o cérebro de Einstein. Se qualquer um ler, vai constatar que ele era único. Na perspectiva das pesquisas, talvez seja a mente mais explorada até hoje. No meu instituto, atualmente, estão sendo explorados os cérebros de famosos artistas e músicos, mas o estudo ainda não está concluído”, afirma. Em The corpus callosum of Albert Einstein’s brain: another clue to his high intelligence? (O corpo caloso do cérebro de Albert Einstein: outra pista para a sua alta inteligência?), publicado em setembro de 2013, na Brain, revista virtual da Universidade de Oxford, no Reino Unido, dedicada à neurologia, uma equipe de pesquisadores chineses, liderada pela dra. Weiwei Men, do Departamento de Física da East China Normal University, explana a seguinte teoria: a interconectividade entre os dois hemisférios cerebrais do autor da teoria da relatividade era muito maior do que em outras pessoas. Essa ligação cabe ao
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“Os artistas começam a dessacralizar o gênio e a reivindicar a obra no contexto do cotidiano” Paulo Marcondes corpo caloso, uma estrutura cuja função é, justamente, servir de elo entre as metades do órgão supremo do corpo humano; o de Einstein era muito mais desenvolvido do que normal. No estudo, foram usadas imagens de ressonância magnética de cerca de 70 homens, cotejadas com as fotografias do cérebro de Einstein, removido sete horas após sua morte, aos 76 anos, em 1955. Se, por um lado, são incontestáveis os achados científicos relacionados à anatomia cerebral de uma mente extraordinária, por outro, o conceito de gênio é reexaminado em outras esferas do conhecimento. “O grande esforço da Sociologia é entender como uma determinada obra pode causar estranhamento e provocar reações
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NOTÓRIOS
Einstein, Shakespeare, Joyce e van Gogh estão entre os que deixaram um legado incontestável à humanidade
no meio em que ocorre e qual é o ambiente em que o artista e essa obra estão acontecendo. Sob esse ponto de vista, a ideia de gênio é profundamente questionável e frágil, sobretudo quando se toma a dimensão histórica em que se construiu”, sustenta Paulo Marcondes, professor de Sociologia da Arte na graduação, no mestrado e no doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Ele recupera Mozart – sociologia de um gênio, escrito pelo sociólogo alemão Norbert Elias, para ilustrar seu argumento: “A ideologia do gênio está diretamente relacionada a visões idealistas e românticas da arte. Na história da arte moderna, remonta ao Renascimento e aos mestres criadores. Naquele momento, quando o artista assinava uma obra, gerava com isso uma característica de distinção; ele se tornava alguém acima do gênero comum, que fazia uma obra de um belo transcendente que as pessoas comuns não alcançavam. Mas quando Elias fala de Mozart não reassume ou traz a ideologia renascentista, mas mostra como Mozart surgiu na corte em que ele vivia, as adversidades que enfrentou e como conseguiu produzir essa obra de características tão renovadoras, que a tudo influenciou posteriormente. Ele faz uma análise relacional entre a obra, o artista e o meio”. A romantização do artista-gênio, prossegue ele, é implodida com as vanguardas históricas que anunciam o século 20. “Os novos artistas começam a dessacralizar o gênio e a reivindicar a necessidade da obra de manifestarse no contexto da vida cotidiana. Dadaístas, cubistas, surrealistas traziam o objeto mundano para o contexto da obra, que assumia um modo mais performático, ready made. Um iconoclasta absoluto como Marcel Duchamp provocou um nível de estranhamento que se tornou um paradigma em relação à arte contemporânea. Uma visão mais idealista poderia tomá-lo como gênio, mas nunca os que defendiam um olhar mais purista da arte. Com a arte contemporânea, tem-se uma relação com elementos do cotidiano, com a
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CON CAPA TI NEN TE dimensão do corpo, da sexualidade, e vamos deixando de falar em ‘obra de arte’ para falar em manifestação artística, movimento artístico. Abandonamos certas tendências convencionais de lidar com a arte. Isso gera circuitos e redes dentro de um processo novo. Nele, a ideia de gênio tem se inclinado a ser algo arrefecido, não mais evocado ou creditado”, comenta o professor da UFPE. Para o professor de Filosofia da PUC-RJ, crítico de arte e curador do MAM-RJ, Luiz Camillo Osório, a ideia de genialidade tal qual foi postulada por Kant no século 18, configurada por uma “perspectiva de subjetividade original”, diluiu-se ante o novo cenário de produção, fruição e visibilidade artísticas. “Não se decide e nem se pode querer ser um gênio. A genialidade acontece. O problema é que a ideia de gênio terminou se tornando consumida pelo próprio mercado, que fica alimentando a criação de gênios momentâneos, provisórios, de 15 minutos. Sempre foi difícil demarcar a excepcionalidade que caracteriza a dimensão genial, mas hoje tudo tende à banalização, inclusive o que seria ‘genial’. Se todo mundo virar gênio, ninguém o é”, assinala. No contexto do efêmero e da trivialização, como verificar os merecedores de um rótulo que, mesmo revisto, não caduca? “Van Gogh, Rimbaud e Baudelaire são exemplos de artistas que eram reconhecidos entre seus pares, mas cujas obras ficavam à margem do próprio mercado. Hoje, são vistos como gênios. Hélio Oiticica, Andy Warhol, Lygia Clark e Artur Barrio são outros que, de alguma maneira, têm a posteridade garantida com obras que, ao longo do tempo, foram produzindo uma interpretação, uma ativação da própria criação e da própria criatividade no público. Mas a história é necessariamente lenta nessa definição. O artista é o primeiro público da sua obra, porém não se basta. De alguma maneira, tem que disseminá-la e, para isso,vai precisar do acolhimento, da recepção do público e da posteridade. A obra genial é aquela que produz o seu público e esse público vai se renovando com o passar do tempo. Ela tem a capacidade de transcender seu tempo e seu espaço, de despertar no público uma outra obra criativa”, afirma Luiz Camillo Osório. (LV)
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Entrevista
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA “NÃO TEMOS MAIS LUGAR PARA OS GÊNIOS” Professor livre-docente de Teoria
Literária na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Márcio Seligmann-Silva possui formação em História, com mestrado em Letras e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität de Berlim. Prolífico autor, com extensa lista de publicações nos meios acadêmicos, é também tradutor e escritor premiado: seus livros Walter Benjamin: Romantismo e crítica poética (1999) e O local da diferença – ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (2005) venceram, respectivamente, o prêmio Mario de Andrade de ensaio literário da Biblioteca Nacional, em 2000, e o Jabuti de melhor livro de teoria/ crítica literária, em 2006. Autoridade
em romantismo alemão e em Teoria Estética dos séculos 18, 19 e 20, entre outros temas em que atua, ele falou à Continente sobre a noção de “gênio” no âmbito da contemporaneidade. CONTINENTE Você afirma que o conceito do “artista-gênio” segue em reconfiguração, até por conta das novas técnicas de mapeamento do cérebro. Hoje, à luz da História da Arte e da Literatura, que são seus campos de maior atuação, como se enquadraria a noção de “gênio”? MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Na verdade, esse conceito de gênio e, mais especificamente, de artistagênio, foi sendo deixado de lado ao longo dos séculos 19 e 20. O auge dessa noção foi a segunda metade do século 18 e início do século seguinte. Essa época coincide com a fundação tanto da Teoria Estética (com Baumgarten e Kant) como a da História da Arte (com Winckelmann). O Romantismo foi o paroxismo desse conceito. Depois, passa-se a falar mais em intuição, criatividade, fantasia ou, em termos da filosofia de Peirce, em abdução. Um termo do qual não conseguimos ainda nos livrar é o de “originalidade”,
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a veneração dos clássicos, ainda dominante na sua época (o final do século 18), com uma valorização da potência “genial” do artista. Se este não podia mais ser visto como simples imitador, restava a ele aprender com as grandes obras a transformar-se ele mesmo em um “original”, digno de admiração. Mas o paradoxo é que esse artista-gênio que se torna um original também será imitado. Portanto, não existe uma obra absolutamente original e a famosa angústia da influência, teorizada por Harold Bloom, é um mal dos artistas até hoje. Essa busca da “originalidade absoluta” é ilusória e reflete, na verdade, angústias do indivíduo moderno e de sua constante crise de identidade. Por mais que em nossa era tenhamos aprendido a valorizar uma série de gêneros e figuras do discurso que desconstroem o culto da originalidade, como o pastiche, a imitação, a ironia, a colagem e que tem relações claras com a noção de “gênio artístico”. Todas essas categorias projetam no artista uma capacidade intelectual (e sensível) que está além da razão e da lógica do tipo cartesiano. Hoje, tentamos perseguir essa capacidade singular dos artistas (incluindo aí os escritores) com o auxílio de máquinas que escaneiam nosso cérebro em funcionamento. A bem da verdade, do que já pude ler dessas pesquisas, não me parece que elas estão aportando novidades, mas apenas confirmando o que já sabíamos com base, justamente nos tratados de estética desde o século 18. A única diferença é que agora associamos àquele saber belos gráficos coloridos de nosso cérebro pulsante. CONTINENTE Um dos seus artigos traz o seguinte pensamento de Kant: “O artista deve descobrir em si a própria originalidade ao admirar a obra do artista-gênio”. Como se encaixaria aí o “gênio contemporâneo”? Um “gênio” seria o criador a partir do qual surgiriam as imitações, releituras ou ressignificações, para usar termos caros aos tempos de hoje? MÁRCIO SELIGMANN-SILVA A questão, para Kant, era como conciliar
“A busca da ‘originalidade absoluta’ é ilusória e reflete angústias do indivíduo moderno e suas crises” mesmo a cópia e a tradução, ainda não nos livramos totalmente desse paradigma e continuamos a valorizar a assim chamada “originalidade” artística. Consideramos um artista original quando ele nos abre novos caminhos para pensar a própria arte. Esse caminho passa a ser frequentado e transforma nossa imagem da própria história da arte e da literatura. Figuras originais, nesse sentido, foram Van Gogh, Picasso, Duchamp, Kafka, Joyce ou o nosso Guimarães Rosa. Eles mudaram seu presente, o futuro e nossa imagem do passado das artes. CONTINENTE No contexto da criação literária atual, incluindo aí a profusão de novos autores e mecanismos de recepção/fruição, como os e-books, há espaço para mentes geniais ou para uma concreta originalidade?
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA No nosso universo da hiperinformação e da hipermnésia, ou seja, de uma memória gigantesca que permite que diferentes gêneros, estilos e modas convivam paralelamente, tornou-se difícil de se estabelecer quem seriam esses “gênios”, ou artistas originais que estariam apontando para novas direções. De certa maneira, podemos pensar que, apesar de ainda tendermos a pensar com uma cabeça romântica e a valorizar o artista “original”, essa categoria já se esgotou ou está se esgotando. Ela foi esmagada pela revolução midiática. Mesmo a noção de autoria entrou em crise: quem é o autor de uma fotografia, por exemplo: quem clica, quem a manipula eletronicamente, o engenheiro que inventou o software ou o que criou o dispositivo captador de imagens? Estamos falando de milhares de técnicos e de técnicas, vinculadas à sintetização dessas imagens. Também textos, ao entrarem na web, são imediatamente engolidos, cortados, reproduzidos e transformados. Temos que desenvolver conceitos para lidar com essa nova produção. Nossa era exige que pensemos a arte na sua profunda relação com a técnica e com a ciência. CONTINENTE Para terminar: na sua opinião, que escritores mereceram/ merecem o epíteto de “gênio”? Por quê? MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Como disse, hoje não podemos ver alguém que consiga elevar-se a tal ponto, no cenário cultural, para ser chamado de “gênio”, de um “original”. A massificação da produção das artes gera uma democratização dessa capacidade de se abrir sendas. Os movimentos são agora mais sutis. Não temos mais lugar para o “artistagênio” que, de uma tacada, muda os rumos da sua arte. Da mesma forma, nas ciências, também o saber se dispersa em uma enorme cadeia de produtores. Estamos em uma era pós-autoral e, portanto, para o bem e para o mal, não temos mais lugar para os gênios. (LV)
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SONHOS Apropriações daquilo que é intangível e tão presente Artistas contam como os estados de inconsciência contribuem à criação, enquanto psicólogo afirma a relevância desses estados para a realização artística
Em A interpretação dos sonhos,
publicado em 1900, Sigmund Freud propunha uma revisão de toda a literatura disponível acerca dos devaneios oníricos que invadem a mente durante o sono e oferecia o inédito enfoque de analisá-los à luz da incipiente ciência que ele havia fundado. “Eu me disponho a
mostrar que os sonhos são capazes de interpretação”, escreveu o neurologista e pai da psicanálise no segundo capítulo da obra, cujas primeiras 600 cópias demoraram oito anos para serem vendidas. Contrapondo-se à quase totalidade de avaliações existentes à época em que compilou os escritos no livro, ele defendia que os sonhos
iam além de aspectos demoníacos ou divinos atribuídos a eles desde a antiguidade, ou de meras profecias de um futuro ainda obnubilado pelo inconsciente, e que neles havia, sim, material para colher significados. “Fui forçado a perceber que aqui, mais uma vez, temos um daqueles não tão incomuns casos em que uma antiga e teimosa crença popular parece estar mais perto da verdade do que a opinião da ciência moderna. Devo insistir que o sonho, de verdade, possui um significado e que é possível um método científico de interpretá-lo”, reforçou Freud, mais interessado nas narrativas que seus pacientes faziam dos sonhos do que em quaisquer resquícios deles. Ainda assim, embora o foco de suas descobertas fossem as neuroses desveladas pelos sonhos e não eles próprios, é certo que seu projeto de investigação os inseriu em um outro patamar. Se não para todos, pelo menos
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para os que deles se apropriam para criar. A artista visual baiana Virgínia de Medeiros define como um “grande work in progress” todas as suas incursões – sejam elas instalações, vídeos ou fotografias de moradores de ruas recriadas a partir de como eles gostariam de se ver retratados, a exemplo de Fábula do olhar, obra de 2013, exposta recentemente no Recife, na mostra Cães sem plumas. “Vou colhendo relatos e catalogando tudo em um diário de bordo que me acompanha. Escrevo, me aproprio de outros textos, objetos, retratos, dos resultados das filmagens. Quando engato num processo criativo, é como se fosse uma espécie de portal”, vislumbra. Para ela, esse caminho incorpora também tudo aquilo que não é tangível, mas que se sente quando o corpo descansa e a mente vagueia. “Estabeleço uma conexão muito sutil quando estou imersa nesse processo. Quando adentro o mundo dos sonhos,
me vejo sempre em situações que o projeto me traz. O que acontece? Decido coisas pelo sonho. Meus sonhos antecipam momentos que vou vivenciar. Como tenho o hábito de anotá-los, comecei a ver que eles passavam a fazer parte da realidade. Tem uma passagem em que Gilberto Gil fala de uma ‘paranormalidade’, que seria algo como o milagre de uma impessoalidade ou transpessoalidade que você atinge quando cria. Acredito mesmo que é quase uma paranormalidade. Entre os sonhos e o processo de vivência que desenvolvo e me toma por completo, sei que existe uma comunicação sutil. E vou seguindo os sinais”, revela Virgínia. Há os que trafegam na via oposta. A compositora carioca Bárbara Eugênia vem metamorfoseando o jeito de incitar a criatividade, mas longe de quaisquer influências das fantasias ora incoerentes, ora utópicas dos profundos estágios do sono. “Estou começando a experimentar novas formas no processo da escrita e na criação das melodias. Meus horizontes criativos estão se ampliando, inclusive no ato de cantar, pois tenho buscado explorar novas nuances da voz, vozes dentro da voz. Acho que é uma segurança que foi sendo adquirida com o trabalho. Mas, para a inspiração em si, não trago nada dos sonhos. Sei que sonho bastante, sim, mas não me lembro de nada.” Independentemente das memórias (ou da ausência delas), os sonhos desempenham função primordial na criação, na opinião do psicólogo e presidente do Conselho Regional de Psicologia/PE Hermes Azevedo. “Muitos autores, pintores, escritores e cientistas afirmam que foi durante seus sonos e sonhos que processos de criação foram desencadeados, ideias inovadoras foram-lhes reveladas e apareceram soluções para grandes problemas. Isso porque, de uma forma geral, sonhos são fragmentos de situações conflituosas e/ ou inacabadas da história e do dia a dia do sonhador. Não raro, ajudam-no a finalizar tais situações que o afligem, pois as preocupações e defesas naturalmente erguidas para o enfrentamento da rotina diária se ‘afrouxam’ e cedem espaço a um pensar mais livre das regras, normas e demandas sociais mais rígidas”, afirma. Tal relaxamento tem lastros fisiológicos. O sonho é o produto da fase REM do sono – REM significa “rapid eye
movement”, ou movimento rápido dos olhos, um dos sintomas físicos desse estágio em que o cérebro corre, enquanto o corpo repousa. Quando ele acontece, a serotonina, substância neuromoduladora responsável pelo controle da memória, se ausenta. Isso justifica, por exemplo, a tendência a recordar apenas os trechos finais das maratonas oníricas, pois é na derradeira fase do REM em que reaparece a serotonina. Entre as áreas do cérebro afetadas por esse mecanismo tão fantástico quanto misterioso, estão o córtex occipital, o pons e o sistema límbico – este último composto pelo tálamo, pelo hipocampo e pelas amígdalas, que, por sua vez, armazenam as sensações de medo, ansiedade e as memórias afetivas e emocionais. Em 2004, em artigo publicado no Annals of neurology da Associação Americana de Neurologia, o neurologista Cláudio Bassetti, da Universidade Hospital de Zurique, na Suíça, descreveu o caso de uma senhora de 73 anos que, após um derrame, perdeu a habilidade de sonhar. Classificado como Síndrome Charcot-Willbrand, que denota a perda de sonhos como consequência de um dano cerebral em uma área específica (e chamada assim por causa de dois proeminentes neurologistas do século 19, cujas pesquisas teóricas foram revisadas por Freud em A interpretação dos sonhos), o episódio trouxe o pioneirismo de associar os sonhos à região do lobo occipital, localizada na parte traseira do cérebro e severamente prejudicada na paciente em questão. O pintor recifense Bruno Vilela tem certeza de que sonhar é elemento indispensável em seu cotidiano criativo. “Acordo e anoto as sensações, as imagens que me vieram, as cores. Tento pintar o que vi e vivenciei, pois o sonho é um mergulho no inconsciente”, resume. Ele compara os insights derivados dos sonhos com os estados alterados de consciência oriundos do consumo de bebidas alcóolicas ou da imersão meditativa provocada pela audição repetida de um álbum – em seu caso, uma caixa de Miles Davis: “Isso me joga, hoje, dentro de mim mesmo, me ajuda a evocar os ancestrais, os espíritos, as entidades da natureza, da umbanda. Quando entro nesse lugar sagrado, me concentro naquilo que estou criando e esqueço as contas a pagar”. (LV)
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ZÉ DE VINA O homem que vira boneco Histórias de viagem do mamulengueiro que aprendeu o brinquedo aos 12 anos e que é o mestre-referência das novas gerações TEXTO Guilherme Novelli
Entre a poesia concreta daquelas esquinas, próximo ao famoso cruzamento imortalizado por Caetano Veloso em Sampa, no calçadão da Avenida São João, numa daquelas semanas do outono frio da cidade cosmopolita, o mestre de cerimônias Valdeck de Garanhuns anunciou: “Só tem um cabra mais boneco do que eu: Mestre Zé de Vina”. Começava, então, o 5o Encontro de Mamulengos em São Paulo, produzido com pouca verba e muito amor pelos artistas Natália Siufi e Danilo Cavalcanti, como uma forma de resistência da cultura popular ao sistema coercivo da selva de pedras. Chegado de avião na noite anterior com filho, neto, barraca e cerca de 40 bonecos na bagagem, Zé de Vina amanheceu com a diabete e a pressão fora da normalidade. “Já estou cansado, enfadado, com vontade de abandonar. A demora é vender os bonecos. Já vendi seis. Eu já estou velho, cansado, não aguento mais estar no mundo atrás do mamulengo.” Enquanto o mestre contava que a vontade de abandonar era maior que a vontade de continuar, Rosinha do Bole-Bole, bochecha dura e perninha mole, procurava o seu Benedito. E Mestre Saúba dançava um forró pra lá de animado com a boneca Lindinalva: “A ema gemeu... No
Assumindo o cansaço de "estar no mundo atrás do mamulengo", Mestre de Vina diz ter 184 peças decoradas "no juízo" tronco do juremá. A ema gemeu... No tronco do juremá”. Tal como Rosinha do Bole-Bole e Benedito, Mestre Saúba e a Boneca Lindinalva, Zé de Vina arranjou todas as suas namoradas nas brincadeiras. Ele se aproximava delas antes de começar a apresentação, sentava do lado e as conquistava. “Nessas noites o mamulengo não prestava, mas eu entrava mesmo assim. Às vezes, elas entravam dentro da torda (casinha do teatro de mamulengo): aí eu esquentava! Quando elas não entravam, o brinquedo era mansinho, devagarinho... O meu tempo era só pra elas, minha vontade era estar do lado de fora com elas.” Quando o dia amanhecia, o pessoal desarmava o mamulengo e ele ia ficar com elas. Seus quatro casamentos, que lhe renderam 17 filhos homens e três filhas mulheres, foram fruto das brincadeiras.
Hoje em dia, o brinquedo não é tão itinerante, mambembe, quanto era antigamente, há 30, 40 anos. Naquele tempo, Zé de Vina botava as malas no jumento, no cavalo, ou ia a pé. No máximo, pegava um pau de arara ou uma marinete, aquela perua antiga de madeira. Como era muito itinerante, os brincantes iam pelas fazendas, sítios, por todo lugar, arranjando uma mulher em cada canto.
INTERVENÇÕES
De volta ao festival paulistano, a Cobra Anaconda acabava de devorar Rosinha do Bole-Bole, quando um transeunte “ébrio” do centro de São Paulo começou a “interagir” com a brincadeira, zombando, tripudiando, curtindo sua viagem. A plateia se manifestou: “Sai, capeta! Fora, assombração”. Capeta, revoltado, ameaçou o senhor pernambucano que o havia expulsado, fingindo tirar uma arma imaginária da cintura: “Vou mandar bala!”. Outro rapaz, sem medo da Assombração do Crack, revidou: “Senta, Mutuca! Mutuca do Cão!”. Capeta, sem saber o que fazer, voltou para a frente da barraca de Mestre Valdeck e começou a dançar forró, quando um tocador de zabumba o abraçou, explicou com carinho e ternura que era inadequado
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o que ele estava fazendo. Então, o Capeta, alucinado, desabou a chorar no colo do músico. Fez as pazes com os integrantes da plateia, brigaram de novo e, finalmente, terminaram sentando juntos, lado a lado. Intervenções de transeuntes e da plateia são muito comuns no teatro popular. Mestre Valdeck, pernambucano radicado em São Paulo há muitos anos, conta que uma vez foi se apresentar num bairro da zona sul da capital paulista e houve um incidente, quando acabavam de armar a barraca. Havia crentes – evangélicos – pregando. O pastor pregava eufórico. Quando o trio de forró começou a tocar, Valdeck pegou o microfone e deu o anúncio: “Daqui a pouco, senhoras e senhores, vamos apresentar o Teatro de Mamulengos diretamente de Garanhuns, Pernambuco, para a Praça Floriano, lugar de nordestino, terra muito boa. Pode se aproximar homem, mulher, menino, velho... Vai aparecer aqui Dolores, Simão, Cabo 70, Satanás, a Besta Fera, a Gota Serena, daqui a pouco, não percam!”.
Foi na década de 1940 que Zé de Vina começou a frequentar as brincadeiras. Um tempo de carroças e de festas nos sítios O crente deu um pulo de um metro de altura com a Bíblia debaixo do braço, irado de raiva, e disse: “Vai botar boneco no inferno, cambada de pederasta”. Ele começou a organizar um movimento para derrubar a barraca: “Vamos acabar com isso, isso é coisa de Satanás, de Belzebu, isso vem do inferno, é coisa de pederasta”. Ele falou, falou, mas, como não conseguiu, parou. Mestre Valdeck deu outro anúncio, do mesmo jeito, e o crente foi pregar do outro lado da praça. Quando começou a brincadeira, eles pararam de pregar e foram assistir ao mamulengo. Enquanto isso, na Avenida São João, a banda tocava: “Disse: levanta povo, cativeiro já acabou”, e Zé de
Vina insistia em que sua vontade de deixar de brincar está guardada há tempos. “A vontade do povo é que eu venha, mas estou aqui em São Paulo de dor de cabeça.”
O COMEÇO
Zé de Vina foi criado por mãe, não por pai. Sebastião Cândido, mestre de mamulengo e seu irmão de criação, passava na frente do sítio onde o então menino morava – no município de Feira Nova – todos os sábados antes de ir brincar. “Eu sempre pedia pra ele me levar. Ele foi, falou com mãe, ela deu consentimento e eu andei atrás dele um bocado de tempo.” Os dois iam de carroça para os sítios da redondeza, Zé de Vina ajudava a carregar os bonecos, pendurá-los, fazer a torda, cortar pau e emendar para montar o mamulengo. Naquele tempo, década de 1940, os mamulengueiros não andavam com o boneco pronto. No dia 10 de outubro de 1952, foram brincar na casa de Casemiro, amigo de Sebastião Cândido. Lá, o dono da casa entregou o apito a Zé de Vina:
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1-2 NA RUA
No 5º Encontro de Mamulengos, em São Paulo, houve todo tipo de reação do público às encenações do brinquedo
novo, tinha prazer de me apresentar no terreiro. Muita gente ia assistir à brincadeira; quanto mais eu brincava, mais eu tinha o que brincar”. Naquela época, não havia entretenimento melhor do que esse. Simão e Marieta faziam as últimas acrobacias antes do fim do espetáculo circense.
GRAN FINALE
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“Agora, você é quem vai brincar”. E o menino de 12 anos, envergonhado, disse que não dava, não levava jeito para aquilo. “Eu tomei conta do apito e entrei na história do mamulengo. Brinquei no sábado, de meia-noite até de manhã, brinquei no domingo em Serra da Passira, e não parei mais.” Outros mestres que lhe ensinaram o ofício e o deixaram pronto foram José Grande, Pedro Rosa, Pai Velho, Severino Massur... uns 15 a 20 mamulengueiros. “Quando eles iam brincar e eu não ia, assistia o mamulengo deles para aprender a fazer as palhaçadas.” Em 1957, ele comprou sua torda, que persiste até hoje. Zé de Vina é o último remanescente dos mestres mamulengueiros de primeira geração, inspiração de todos os mestres atuais.
VIDA DURA
De volta ao presente, o Diabo tentava, em conluio com o Coronel, tomar o circo de Marieta e Simão. Marieta propôs que eles disputassem o circo através de uma competição de dança. Por sorte, Belzebu não sabia dançar...
A situação atual de Zé de Vina não é muito boa. Em casa, ele e a esposa são aposentados, mas a pensão dá apenas para comprar remédios, pagar a venda e as outras contas. “Eu recebo o dinheiro, saio pagando tudo e fico no horror de novo. Só quando eu dou uns brinquedos de mamulengo é que arrumo uma coisinha. Eu vou cumprindo com os meus deveres e sigo trabalhando.” Zé de Vina era conhecido também como Zé do Rojão. Um belo dia, soltou um foguete que pegou na mão, queimou e ficou toda atrofiada. Teve de parar de brincar por um tempo, fez fisioterapia, depois voltou. Ele nunca teve uma situação confortável. “Trabalhava bem cedo, comia só de noite. Morava alugado, tirava a conta, trabalhava em roça, mexia farinha, moía mandioca, caçava, pescava. Era pesado e muito. Chegava na casa de farinha às 4 da madrugada e, às vezes, saía meia-noite. No sábado, brincava de mamulengo pra inteirar alguma coisa.” Os seus melhores momentos foram nas brincadeiras: “Eu era moço,
Enquanto isso, o Barbeiro Nozin afiava sua máquina de cortar cabelo para fazer mais uma vítima: o Cabra que queria ser. “Isso é uma agressão, não é um corte de cabelo, não!” O Barbeiro tremelicava todo e dizia ser portador de “Mal de Park”. “É Mal de Parkinson!”, retrucou o Cabra. “Num é não... Quando era criança, caí da roda-gigante.” E a orelha do Cabra voa na plateia. No universo do mamulengo, há uma criatividade que surge do fazer, do acontecer, uma energia que envolve a criação das múltiplas facetas do ser humano, de vários personagens. O espírito vai se construindo na montagem das barracas, nos mínimos detalhes. O lado criança dos artistas e dos espectadores aflora durante as brincadeiras. Finalmente, chega a hora de Zé de Vina entrar na torda, no último número do festival. Ele sabe o seu brinquedo todo decorado. “Tenho 184 peças de mamulengos guardadas no meu juízo. Quando eu entro na barraca, me lembro de tudo: a passagem de Joaquim Bosó, Boi na Queda, Boi na Faca...”. De repente, Prexédio entra em cena com sua mulher, Ritinha, num casamento meio atrapalhado. Prexédio sai para trabalhar e, quando volta, encontra Ritinha com outro, menino novo, bonitão. Zé de Vina pergunta e Amaro, seu filho, seu Mateus, responde. Seu neto, Rogaciano, brinca com o avô dentro da barraca. “É o morto trabalhando para o vivo sobreviver.” E o nosso mamulengueiro segue com sua vida mambembe, dura, sofrida, de homem que vira boneco e de boneco que vira homem, um lutando pelo outro, enfrentando as agruras dos dois mundos, um pelo outro.
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CON TI NEN TE
ESPECIAL
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FENÔMENO A água que cai do céu como metáfora Nessa época em que esperamos que a chuva venha nos dar alento, depois de longas estiagens e verão massacrante, permitimo-nos divagações sobre ela, para além de sua realidade metereológica TEXTO Camilo Soares
Interrogado sobre o sentido da chuva em seus filmes, Andrei Tarkovski refuta qualquer simbologia dos fenômenos naturais. Chuva basta-se a si mesma, como elemento primordial, tal qual terra, vento, fogo. Em seus filmes, ela materizaliza o ritmo e a densidade do tempo, compondo com seus estalos e reluzes um ambiente no qual passado, presente e futuro se unem nos percalços íntimos de seus personagens. Longe de ser um naturalista, o cineasta russo traz em sua chuva a subjetividade e o misticismo de sua relação entre arte e cosmo, embebedando sua lente de úmida e irresolúvel nostalgia. Sem dúvida, a água que do céu nos cai à cabeça não chega sem recordações, que afloram feito cheiro de terra molhada das primeiras estiagens. Não há quem não tenha uma forte lembrança em relação a dias chuvosos, que a guarde como um velho disco que teima em tocar de vez em quando, acompanhando momentos distintos da vida. O olhar pela janela, enquadramento original do mundo antes da primeira
Não há quem não tenha uma forte lembrança em relação a dias chuvosos, acompanhando momentos da vida fotografia, até mesmo do primeiro quadro, é uma pausa do fluxo da vida, momento para divagação. Talvez essa melancolia da chuva seja fruto da contemplação do mundo de fora depois de nos abrigarmos. Humberto Eco diz que os homens vivem em territórios fechados, enquanto os pássaros vivem em territórios abertos. Esse olhar para fora, pensativo, impõe certa distância entre a nuvem (índice de chuva) e a palavra (símbolo ou definição), carregando o conceito com as mais variadas relações afetivas. A chuva de Baudelaire, por exemplo, imita as grades de uma prisão, na vitória da agonia sobre o esperança (Spleen: “Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle”),
mas liberta do poeta seu espírito de pássaro, mesmo que para abrir suas asas de corvo (Brumes et pluies). Também em Fernando Pessoa não serena só lá fora, mas dentro: “Ah, na minha alma sempre chove./ Há sempre escuro dentro de mim./ Se escuro, alguém dentro de mim ouve/ A chuva, como a voz de um fim...”(Chove? Nenhuma chuva cai...). A chuva lava as marcas na calçada e as desenha dentro de casa, dentro de si. Hoje ouvi um pássaro cantar, chovia torrencialmente, e não era canto triste (aonde vão os pássaros quando chove?). Por que a chuva é necessariamente o inverso, como no título célebre de Jacques Prevert, do belo tempo? “Por favor, chuva ruim, não molhe mais o meu amor assim”, já cantamos todos. Que a tristeza e o cinza enalteçam a poesia, mas na chuva também se nasce, se cria, se ama: “Não há guardachuva/ contra o amor/ que mastiga e cospe como qualquer boca,/ que tritura como um desastre”, escreve João Cabral de Melo Neto, em Poema a Carlos Drummond de Andrade.
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CON ESPECIAL TI NEN TE
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A chuva é também refúgio dos amantes, dos loucos e aventureiros, dos que querem se molhar da vida lá fora, dos que querem ser pássaros. Mesmo que esse desejo se esvaneça depois na água da solidão, nos desencontros, na chuva dos filmes de Wong Kar-Wai, no medo e pulsão dos fluxos líquidos de Bill Viola, haverá ainda o vermelho dos guarda-chuvas de Goeldi, ou o antiguarda-chuva cabralino que não segura nem dias nem cabelos.
REFLEXOS
No voo efêmero da vida, a água deixa no chão o brilho dos olhos, luz na matéria (aparentemente) opaca do mundo, voo-momento eterno da vida
Dias chuvosos dilatam o espaço e a alma, mesmo que a falta de luz mingue as cores e esconda o horizonte, e nos levam à reflexão do salto captado por Cartier-Bresson, na foto Atrás da estação de trem de Saint Lazare (Paris, 1932). Por um ínfimo instante o reflexo perfeito da poça de lama não se desfaz. Desfar-se-á? Na impermanência do tudo, tudo parece, como impertinente infração das leis da física, fazer sentido num instante: as barras baudelairianas
rimam com os trilhos de trem (que são na verdade uma mera escada esquecida ao chão), que rimam com as grades no fundo, ou os arcos no chão parecem curvar-se ao salto do homem-vulto sobre a água, que se curva ele próprio diante da imagem de outro salto no sentido contrário, impressa no cartaz colado ao muro. Forma-se um círculo completo, como no relógio da estação, parado pela fotografia, ritmo perfeito que quebrará o espelho do céu em mil fragmentos num momento seguinte. Tudo observado de longe por um olhar misterioso, negativo do fotógrafo e única testemunha de uma verdade não revelada. Reflexo nos leva longe, para além
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PAULO PINTO/AGÊNCIA ESTADO
DIVULGAÇÃO
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1 TEMPORAL Nas cidades, as precipitações são associadas a transtornos 2 STALKER Nos filmes de Andrei Tarkoviski, a chuva materializa o tempo
da coisas. Refletir não significa pensar, ponderar? Dias chuvosos dilatam o espaço e a alma, mesmo que a falta de luz mingue as cores e esconda o horizonte. Nos travellings de Béla Tarr, a lama está sempre lá, conduzindo-nos para além da imagem. Vindo de uma Grécia mais ensolarada do que o país do mestre húngaro, Theo Angelopoulus sempre preferiu esperar o inverno para filmar, pois é na bruma e na chuva onde ele encontra a densidade procurada em seus filmes. A desolação nesse “dia negro mais triste que a noite”, nos versos de Baudelaire, é também poesia em certas lentes inspiradas. Para nós dos trópicos, onde a chuva marca as estações, estradas
e modo de vida, sua força também se mescla às palavras. Nesse poema do poeta recifense Erickson Luna, é clara a simbiose entre momento e história, carne e lama. No livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes – descaminhos de três poetas marginais do Recife (Nektar, 2012), descrevi essa dissolução para introduzir o poema, em texto que seria escolhido pelo Luna como posfácio de seu próprio livro Do moço e do bêbado. Deixo aqui como homenagem ao blues do poeta, morto em 2007: “Os primeiros pingos caídos do céu lhe acertam a testa. Segue a chuva, forte. Dessas comuns em meados do ano no litoral de Pernambuco. E a água lava o cheiro forte de aguardente impregnado ao homem. Limpa também velhas angústias, desprendendo-as do corpo para encontrar o amparo do chão. O odor de terra molhada o leva à infância, quando pulava poças em Santo Amaro, bairro onde morava. Os olhos, agora, desfazem-se na corrente que desce sua estatura; a pele os acompanha, diluída. Rápido, o inteiro ser se tinha dissolvido sob o toró que cai, misturando-se à lama da cidade”.
“Choveu/ e há lama em Santo Amaro/ nas ruas/ nas casas/ vós contornais/ eu não/ a mim a lama não suja/ em mim há lama não suja/ eu sou a lama das chuvas/ que caem em Santo Amaro/ Vosso scotch/ pode me sujar por dentro/ cachaça não/ vosso perfume/ pode me sujar por fora/ suor nunca/ porque sou suor/ a cachaça e a lama/ das chuvas que caem/ em Santo Amaro das Salinas” (Erickson Luna, Do moço e do bêbado). Nesse caráter eminentemente ativo da substância, entre a pureza da água e a impureza da lama, formase uma dialética fundamental, segundo Bachelard, da imaginação material, independentemente de sua relação quantitativa: “Basta uma gota d’água pura para purificar um oceano; uma gota d’água impura é suficiente para sujar um universo” (L’eau et les rêves, 1942). Tudo depende dos sentido moral da ação. A imaginação material vira imaginação dinâmica: a água, pura ou impura, não é apenas pensamentos como substâncias, é pensamentos como força. Nada como a realidade das cidades brasileiras, onde chuva é sinônimo de alagamentos, de caos no trânsito, perigo de morte nas encostas de morros, para designar a força entre a pureza do gostar da chuva e a impureza de sua ação devastadora. No entanto, a moralidade não está na chuva inevitável, mas em como contemplamos e fazemos nossos espaços a cada dia. A violência
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CON ESPECIAL TI NEN TE GILVAN BARRETO/DIVULGAÇÃO
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O LIVRO DO SOL No livro de Gilvan Barreto, há o olhar que encontra outra iconografia para as representações da seca e da ânsia por água
não está na água, mas no mundo como vontade e representação schopenhauerianas: o mundo como minha provocação. A chuva, elemento material, torna-se um tipo de provocação, de cólera a ser derrotada. Barram-se seus caminhos, como a de um inimigo vencido. Mas ela sempre volta, para retomar seu lugar físico e psicológico, roubado por uma humanidade revoltada e conquistadora de um mundo supostamente passivo e plácido. Custe o que custar. Mas, claro, nem sempre a abundância reina. No imaginário da chuva, sobretudo no Sertão, as estiagens prolongadas são mais fortemente representadas. Câmara Cascudo, em seu Dicionário do folclore brasileiro, descreve, em seu longo verbete sobre o tema, versos e
benditos implorando chuvas. No entanto, o recurso mais eficaz consiste, segundo ele, em contrariar os santos. Para tal incumbência, faz-se uma procissão para a igreja do povoado vizinho, levando a estátua de São Sebastião da paróquia local e trazendo em troca a imagem do Senhor do Bonfim. Os santos ficariam reféns de seus milagres e não voltariam aos seus respectivos lugares enquanto não chovesse. Iconografia da seca, tão repetidamente abusada e empoeirada, parece ainda poder encontrar sinais de renovação: são motocicletas cortando o árido do romance Galileia, de Ronaldo Correia de Brito; são piscinas vazias d’O livro do sol, do fotógrafo Gilvan Barreto. Pouca ou muita, a chuva nos acompanha, no corpo e no imaginário. Água, princípio de vida e às vezes da morte, água sem forma, que se corrige diante de novas adversidades, muda de estado em ciclo que representa a sabedoria de adaptação para algumas culturas. Água e suas lendas, como a do carão, aprisionado na gaiola pelo
matuto, para que seu canto traga as preciosas chuvas. Chora, meu carãozinho! E o bicho nem mexia. Canta, meu carãozinho! E nada. Pelo amor de Deus, canta, meu carãozinho! E o pássaro desatou sua melodia. E veio chuva, forte. Logo, a euforia. Todos saíram das casas para confirmar sobre o próprio rosto e nas palmas abertas ao céu a salvação da lavoura, do gado, da vida. Mas a chuva não cessava e, aos poucos, as pessoas foram se recolhendo debaixo de tetos, árvores e outros abrigos improvisados. Tá bom, meu carãozinho! E tome o pássaro cantar e água cair, torrencialmente. Tá bom, meu bichinho! A água ia subindo, carregando já o que estava esquecido em seu caminho. Para, meu carãozinho! Já era um pequeno dilúvio, barreiro transbordando, a lama entrando por debaixo das portas. Cala a boca, carão fi d’uma égua! Talvez o problema foi ter privado o pássaro de seu território externo e ele não poder ir para aonde vão os pássaros quando chove, deixando-nos com nossas memórias.
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CON TI NEN TE
História
EDUCAÇÃO A escola livre do movimento zapatista Em San Cristóbal de Las Casas, no estado de Chiapas, no México, encontra-se a Universidad de la Tierra, cujo princípio educacional baseia-se no livre arbítrio e na capacitação multidisciplinar TEXTO E FOTOS Carolina Albuquerque
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“Agora, me conte, como chegou até
aqui?”, questionou um senhor esguio, de cabelos grisalhos, por trás da fumaça do cachimbo. Já acomodada no sofá da sala, repleta de livros, havia me apresentado alguns minutos antes. Apesar de um pouco inquisidora, a pergunta foi feita de forma polida, após um silêncio que pareceu eterno. Era claramente uma turista, arranhava ao falar o espanhol, num lugar fora do roteiro de visitas de San Cristóbal de Las Casas, no estado de Chiapas, México. “Por acaso. Acabo de voltar de um passeio a cavalo, que fiz por dentro da floresta até San Juan de Chamula. Me chamou a atenção esse lugar, fiquei apenas curiosa por conhecer mais”, apressei-me em dizer. “A cavalo? Hum...”, disse, sem completar a sentença e com um sorriso de canto. Pareceu desdenhar. “É, passei, perguntei o que era esse lugar e me disseram que era uma escola zapatista. Entrei por pura curiosidade, por isso estou chegando sem ter feito nenhum contato antes”, detalhei, para quebrar novamente o silêncio. “Sim, entendo”, resumiu. Mais silêncio. “Bem... se está aqui, já é uma boa coisa. Deves saber que não é só isso, passear a cavalo, esse tipo de turismo”, iniciou. “Claro”, concordei. “Aqui é um local de resistência, como deve ter percebido.” Aquele senhor me deixou um pouco hipnotizada. A atmosfera do lugar contribuiu. Num dia chuvoso, a sala estava levemente iluminada por luzes transversais. Ao fundo, uma música clássica que se espalhava por todo o espaço. A voz era calma. As palavras, espaçadas. Fiquei pouco tempo, era um fim de tarde e já estava anoitecendo. Mesmo sem ter tido a oportunidade de ouvir muito, deixou-me a impressão de que tratava com um senhor de sabedoria. Doutor Raymundo: foi como o chamaram os jovens logo à entrada. Do movimento zapatista, que este ano completa duas décadas desde que veio a público, conhecia apenas o básico. No dia primeiro de janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), fundado 10 anos antes e por esse período escondido na selva do sudeste mexicano, apresentou-se ao mundo. Armados e encapuzados, os “insurgentes” ocuparam o Palácio Municipal de San Cristóbal de las Casas, tomando, ao todo, seis municípios da selva Lacandona, em Chiapas.
ALUNOS
Os jovens que frequentam o espaço têm liberdade para montar seus horários
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O EZLN era formado, na maioria, por indígenas das comunidades tzotzil, tzeltal, tojolabal, chol, zoque e mame. No início de tudo, o que se sabe é que eram apenas três mestiços e três indígenas. Não por acaso, o levante aconteceu no primeiro dia de 1994, data que marcou o ingresso do México no “Primeiro Mundo”, a partir da assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC) da América do Norte. Os rebeldes abandonaram a cidade no dia seguinte que a “tomaram”. No muro, o recado: “Atenção mexicanos: fomos a Rancho Nuevo, depois a Tuxtla, já não terá descanso. Obrigada a todos. Não queremos TLC, queremos liberdade. Viva o EZLN”. O combate durou apenas 12 dias. Dezenas de mortos atraíram a atenção do mundo. Idealizado por marxistas, o zapatismo encontrou espaço num momento de crise de utopias. É o que observa o sociólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, o mexicano Luis de la Mora. “Eles constituíram mais que uma tentativa militar de tomada do poder, uma estratégia de informar, sensibilizar e mobilizar a população, não somente do Estado de Chiapas, da precária situação social e econômica a que milhões de mexicanos estavam reduzidos, e principalmente denunciar a falta de democracia e transparência que
significaram os 50 anos de governo priista (Partido Revolucionário Institucional). O movimento sabe criar situações de utilização dos meios de comunicação. Sua arma mais importante é essa, muito mais que metralhadoras ou obuses”, pontua. Ao contrário dos movimentos comunistas que fracassaram nas décadas de 1970 e 1980, o zapatismo não visava tomada de poder. Em pronunciamento de novembro de 2003, o “sub” Marcos – quase uma “lenda”, posto que uma liderança sem rosto até os dias de hoje – referiu-se à insurreição com as seguintes palavras: “Faz 10 anos, empunhamos armas por democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos”.
AUTONOMIA
Naquele fim de tarde frio, estava diante de Raymundo Sánchez Barraza, coordenador da Centro Indígena de Capacitação Integral (Cideci), ou Universidad de la Tierra-Chiapas: Ivan Ilinch. Ela é construída no meio de uma floresta e, para chegar lá, é preciso seguir até o fim de uma rua de terra, chamada Estrada Real de San Juan de Chamula, no Bairro Nueva Maravilla. Chiapas é o território onde o EZLN nasceu. Escolher este destino entre tantos outros no México é a certeza de encontrar, ainda forte, a cultura
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História
pré-hispânica. Os povos índios do México são percebidos não só nos traços físicos, mas nos vários idiomas falados (naquela região em especial o totzil), nos trajes usados, na cultura gastronômica e no modo de viver. Quem apresentou o centro foi um jovem indígena que frequentava o lugar há cerca de um ano. “Recebem alguma coisa do governo local? Energia, por exemplo?”, provoquei. “Aqui não tem nada a ver com o governo!”, respondeu, de pronto. “Produzimos a nossa própria energia, comida, construímos nós mesmos tudo aqui. Somos uma base de resistência autônoma”, afirmou. Desde a “insurreição” liderada pelos ezetelenes, a luta para garantir os direitos dos povos indígenas ganha o apoio de civis, intelectuais e organismos internacionais. Fracassado todo tipo de negociação e diálogo com o governo e os partidos políticos, inclusive os mais à esquerda, os zapatistas decidem por mudar o rumo estratégico de sua luta. Em agosto de 2003, desistem do enfrentamento direto e armado com o exército federal mexicano e impulsionam a criação das Juntas de Buen Gobierno (JBG) ou caracoles. A batalha passa a ser no campo do conhecimento e da cultura.
São 29 municípios e cinco caracoles, que, à revelia do estado mexicano (a quem chamam de “mau governo”), constroem uma estrutura autossuficiente, nos diversos níveis: econômico, de saúde, justiça e, claro, de educação. Com sistemas básico e secundário estruturados pelos zapatistas, as unitierras contribuem para esse projeto educativo autônomo das comunidades indígenas do sul mexicano. Ainda que não seja um organismo zapatista, a Universidad de la Tierra tem tudo a ver com o ideário defendido por eles. A lógica pedagógica que visa o mercado capitalista é subvertida. A escolarização é tratada como algo fluido, apoiada por relações sociais livremente construídas, como defendeu o pensador austríaco Ivan Ilinch, que dá nome ao campus em Chiapas, criado em 2004. Sem títulos, professores ou alunos, são os jovens que acionam a alavanca. Os cursos oferecidos compreendem desde o trabalho manual, como marcenaria ou mecânica, até arquitetura, agroecologia ou filosofia. O sistema entende as necessidades pelas quais passam esses jovens, à margem das políticas públicas. No Centro Indígena, é o “estudante” que faz seu
horário, adequando-o à rotina. Em entrevista a In Motion Magazine, conduzida por Nic Paget-Clarke, em 2005, Raymundo Barraza explica: “O sistema é aberto e flexível. Não está organizado como os sistemas de pouca energia. Está sempre aberto e funciona sempre. Alguém pode vir por 15 dias, por um mês, por três meses, por nove meses, por um ano, depende do interesse e do seu tempo disponível”, frisa. As construções são simples, a manutenção do espaço é coletiva. É possível dizer que a Universidad de la Tierra é consequência do que a luta zapatista foi capaz de abrir: a autonomia, a democracia radical e a política antipartidarista. A simpatia é mútua. “Quem são os que se sentem atraídos por um espaço como este? Os que lutam, os que resistem, os que dizem: reconheçam os direitos e a cultura dos povos”, pondera Barraza, na mesma entrevista. Pelas paredes das “salas de aula”, estampam-se uma imagem do líder indiano Gandhi, que nunca empunhou uma arma, e pinturas com os encapuzados zapatistas. No auditório, um quadro típico em referência ao EZLN exibe os seguintes dizeres: “Outro mundo possível onde
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3 e 5 ESPAÇOS As construções e equipamentos da Universidad de la Tierra são simples e mantidos sem ajuda do governo
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caibam muitos mundos”. O lugar não lembra em nada a imagem de uma universidade tradicional. As casas onde se espalham os vários cursos são construídas à base de madeira e tijolos aparentes. Tudo muito colorido.
PRESSÃO NO PODER
Luis de la Mora, professor da UFPE, coloca que os zapatistas se constituem distintos das guerrilhas e movimentos tradicionais. “Estamos falando de um movimento políticomilitar. Os movimentos sociais são sociopolíticos. Têm um projeto nacional. Os movimentos sociais geralmente empunham bandeiras de luta localizadas em alguns setores e territórios. Os movimentos sociais visam pressionar o poder público, o EZLN quer transformar a base do poder de modo que revolucione o estado mexicano”. Ao citar as manifestações de junho do ano passado no Brasil, de la Mora lembra que o ideário zapatista está em sintonia com esse “momento” político vivido pela sociedade contemporânea, cada vez menos identificadas com lideranças políticas ou instâncias partidárias. “Tem tudo a ver, porque o EZLN não é um partido político,
A instituição está montada no meio da floresta, no território onde o Exército Zapatista surgiu, entre indígenas não pretende alcançar o poder pelas armas, mas mobilizar os excluídos para constituírem uma força de mudança. São contra a liderança política tradicional, que exalta a figura de um líder, tanto é que o seu comando permanece incógnito. O subcomandante Marcos é apenas o porta-voz do comando militar. Eles têm plena consciência da inferioridade militar do EZLN perante o exército mexicano. Sabem que a vitória não poderá ser conquistada com as armas, mas como resultado de uma ampla mobilização popular”, comenta. Em 2013, o EZLN convocou a primeira “escuelita zapatista”, que atraiu milhares de pessoas de todo o mundo para uma proposta de “imersão” no modo de vida e pensar das comunidades autônomas indígenas. A Unitierra-Chiapas foi um
4 FORMAÇÃO As unidades de ensino inspiradas no programa libertário zapatista dispõem de aulas práticas e disciplinas como Arquitetura e Filosofia
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dos espaços a recebê-los. O estudante universitário mexicano Alejandro Parra (que, para evitar dar nome a porta-vozes ou lideranças, preferiu não revelar sua real identidade), aderente da Sexta Declaração, explica que as Juntas de Buen Gobierno não “obedecem” ao “modelo zapatista”. “Os zapatistas não se apresentam como um modelo político, ao qual se devem adequar. Pelo contrário, a Sexta Declaração tratou por esclarecer que o caminho é o respeito às diferenças, a ética e o anticapitalismo”, diz. Sobre a escuelita, ele esteve no Caracole Realidad. “O desafio é gerar isso em nossos espaços de convivência cotidianos, em que podemos deixar de lado a reprodução das dominações, não só políticas, mas também econômicas e, muito importante nesses tempos, culturais”, avalia. Quando me despedia de Raymundo Barraza, ele quis saber se tinha a intenção de fazer alguma reportagem. Disse que, embora jornalista, esse não tinha sido o objetivo da minha visita. “Bem... Mas não tem problema. Só peço que fale sobre o que viu, o que sentiu aqui. Não diga que eu disse isso ou aquilo. Fale sobre suas impressões”, recomendou.
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JALISCO Uma síntese mexicana 1
Menos famoso que cidades como a própria capital do país, Cancún, Acapulco e Oaxaca, o estado se impõe por sua riqueza natural e itens de cultura TEXTO Luciana Veras
O México é um continente. Não tão
vasto em dimensão territorial quanto o Brasil ou os Estados Unidos da América, porém, de tal riqueza e diversidade cultural, que um viajante pode achar que são vários países num só. Um tabuleiro que parte das três cores da bandeira nacional (o verde da esperança, o branco da unidade e o vermelho do sangue dos heróis que fundaram a pátria) e se divide em paisagens tão convidativas quanto estranhas entre si. Cidade do México, Cancún, Cozumel, San Jose del Cabo, Acapulco e Oaxaca são algumas áreas nas quais o fluxo turístico já é intenso. Mas é possível ir além delas e conhecer uma faceta mexicana que simboliza boa parte de suas tradições, e dos seus orgulhos nacionais, no estado de Jalisco.
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1-2 MONUMENTOS
A presença hispânica na arquitetura colonial da Catedral de Guadalajara e no Palácio do Governo
É o sexto maior dos 31 estados que compõem a nação (formada, ainda, pelo Distrito Federal, onde fica a Cidade do México), com 7,3 milhões de habitantes. O que o torna distinto é uma combinação que inclui seu litoral no Oceano Pacífico, a chamada Costa Alegre e a confluência Puerto Vallarta/Riviera Nayarit; a tequila, a bebida que tomou emprestado o nome da cidade natal para se tornar item de consumo universal; Guadalajara, a alegre capital fundada em 1513, e sua gastronomia; os mariachis e os charros, os vaqueiros cujas vestes inspiram as roupas dos tradicionais cantadores; os pueblos mágicos, que são os municípios agraciados com tal classificação concedida pelo governo federal, por
aliar vocação turística à preservação da memória e dos costumes locais. “Jalisco é o estado que tem toda oferta turística que o país exibe, as melhores praias, destinos de natureza, a rota da tequila, atrativos de turismo religioso e viagens a povoados que traduzem a história da nação”, enaltece Enrique Ramos, secretário estadual de Turismo, ex-jornalista e ex-presidente do Atlas, popular time de futebol da região – como os brasileiros, os mexicanos são alucinados por todo e qualquer pormenor futebolístico. O exagero talvez se justifique por outra característica que une mexicanos e brasileiros: são todos expansivos, comunicativos, ansiosos por ajudar. “A maior experiência termina sendo o povo mexicano”, opina Diana Pomar, do Conselho de Promoção Turística do México, órgão encarregado de difundir o país no resto do mundo. A sedução, ao menos no Brasil, tem funcionado: em 2013, cerca de 260 mil brasileiros foram ao México. E Guadalajara, cujo nome significa “rio que corre entre pedras”, possui diversos charmes para cativar ainda mais os brasileños. É nela que estão, por exemplo, os mais impressionantes murais assinados por José Clemente Orozco (1883-1949), “o único muralista que teve a coragem de pintar o que o povo mexicano viveu”, adverte Ernesto Gonzáles, um guia no Instituto Cultural Cabañas, prédio construído no século 18 para sediar um orfanato que hoje é o centro de promoção da capital, com
Duas palavras-chave para “reconhecer” Jalisco: tequila, a bebida oficial da região, e Guadalajara, capital do estado a maior coleção de Orozco. “Coleção” é subtração, pois não se trata de quadros expostos em paredes, e, sim, de pinturas que ocupam lados inteiros do edifício, incluindo as abóbadas. Para quem é de Jalisco, Orozco chega a ser maior do que Diego Rivera (18861957). “Ele é um dos patrimônios da humanidade que Jalisco tem. Os outros são a tequila e os mariachis”, complementa Gonzáles. Quem sabe Orozco não foi a inspiração para o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) idealizar Edwin Johns, personagem de 2666, o mais caudaloso de seus romances? Na narrativa, o autor, que morou na Cidade do México, apaixonou-se pelo país e demonstra isso em seus livros, descreve um pintor que decepou uma das mãos e encontra-se em um hospício. Orozco perdeu a mão direita aos 14 anos, ao soltar fogos de artifício, mas não enlouqueceu como o personagem de Bolaño. Mesmo com menos de 1,60 m, foi engenheiro agrônomo e arquiteto e sacramentou sua entrada no índex histórico, afetivo e cultural dos mexicanos com suas
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Viagem
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RIBEIRA DE CHAPALA Descrita como local de excelente clima, a região por onde se estende o lago tem atraído aposentados dos EUA e Canadá
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PUERTO VALLARTA Resorts ocupam boa parte da orla da cidade onde foi filmado A noite do iguana
vívidas e intensas representações dos 300 anos de dominação espanhola, escravidão, guerras pela independência, alianças entre os militares e a igreja, que chega com máquinas e sangue. O Palácio do Governo de Guadalajara e o Museu Orozco também conservam parte significativa da sua obra. Para os aficionados por futebol, Guadalajara reserva doces recordações. Foi lá que a Seleção Brasileira jogou todas as suas partidas na Copa do Mundo de 1970 – excetuando a final contra a Itália, realizada no Estádio Azteca, na Cidade do México. Também foi lá que a Canarinho atuou no Mundial de 1986. Ou seja, o estádio de Jalisco é obrigatório para quem quer se lembrar dos gols de Jairzinho na estreia contra a Tchecoslováquia, da incrível defesa que o arqueiro inglês Gordon Banks fez ante uma cabeçada de Pelé e de dois momentos sublimes (ou os mais lindos gols nunca feitos): o chute do meio de campo de Pelé contra a seleção tcheca e o drible de corpo que o camisa 10 deu em Mazurkiewicz na semifinal contra o Uruguai, chutando em seguida apenas
para que a bola, caprichosa, passasse raspando na trave direita. De 1986, para não se engasgar com a lembrança da derrota nos pênaltis contra a França, vale rememorar os gols do lateraldireito Josimar, em petardos híbridos, meio chutes, meio cruzamentos, contra a Irlanda do Norte e a Polônia.
TLAQUEPAQUE
A região metropolitana de Guadalajara aguarda o visitante com dois passeios bem diferentes. No município de San Pedro Tlaquepaque, imperam o artesanato e a culinária. Curioso perceber que existem lojas sofisticadas que comercializam roupas, louças e joias por preços exorbitantes (em pesos e mesmo em real), e também quiosques de ambulantes de rua ou mesmo um prédio de estacionamento transformado em mercado informal. Ali, no contato com o vendedor, que tem mais interesse em conhecer o interlocutor do que abordá-lo com alguma oferta superfaturada, estão as melhores possibilidades de aquisições. No El Parian, no centro de Tlaquepaque, 18 restaurantes oferecem os quitutes regionais. Há chilaquiles (tortillas fritas servidas com molhos picantes), enchiladas, sopas, a tradicional torta ahogada, um sanduíche de pão francês com tiras de carne de
porco fritas, cujo nome, o espanhol equivalente a “afogada”, deriva-se do fato de que o pão vem ensopado de chili. Outra preciosidade de Jalisco é a birria, feita com cabrito ou cordeiro e servida cozida e desfiada para ser consumida com tortillas ou afins. Não é de se estranhar que mariachis apareçam entoando canções típicas. A 40 km de distância, a região de Ribeira de Chapala parece outro planeta. O lago homônimo, com 80 km x 20 km de área, é rodeado por pequenos montes. O clima é descrito pelos habitantes como o “segundo melhor do mundo, de acordo com a National Geographic”. Seu diminuto centro histórico é percorrido a pé, sem pressa, indo até o fim do dique que adentra o lago ou percorrendo o que se pode chamar de “orla”. No entanto, o que distingue a localidade é a maciça presença de aposentados canadenses e norte-americanos. O comandante Zane Pumiglia, que lutou na Guerra do Vietnã pela marinha americana, mora lá há nove anos. “Quando cheguei aqui, estava em uma cadeira de rodas. Hoje, gosto de explorar a cultura mexicana. As pessoas vêm para cá porque se trata de um local próximo, como boa infraestrutura e a possibilidade de conhecer todo
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o México”, comenta, na sede da American Legion, fundada em 1962. Todos, sem exceção, atribuem a tranquilidade e o estilo de vida saudável às propriedades medicinais e curativas da água e do clima de Chapala. Dizem os locais que Ernest Hemingway (18991961) e T.S. Elliot (1888-1965) foram os primeiros a saudar tais atributos. Terry Vidal, da The Lake Chapala Foundation, estima que entre 10 e 12 mil canadenses e norte-americanos tenham emigrado para lá, criando uma situação diametralmente oposta ao recorrente panorama de mexicanos tentando invadir os Estados Unidos. “Nossa fundação mantém uma biblioteca pública, tem fortes laços com a comunidade e prega a integração com a cultura local. As pessoas vêm para cá por tudo isso e porque é mais barato envelhecer aqui do que nos Estados Unidos”, afirma Vidal. Não seria um paradoxo, então, existir um lugar que para os vizinhos mais ricos é um Eldorado, enquanto mexicanos continuam sendo presos na fronteira? “Sim, é”, responde o presidente da The Lake Chapala Foundation. “Todos nós que aqui estamos torcemos para uma relação de duas vias entre os Estados Unidos e o México. Uma relação de livres fronteiras para ambos os lados”, emenda.
O desenvolvimento turístico de Jalisco tem-se dado a partir do investimento no patrimônio natural e histórico PUERTO VALLARTA
Os norte-americanos constituem o maior mercado emissor de turistas para o México. O Brasil aparece em quinto lugar, atrás deles, do Canadá, do Reino Unido e da Argentina. Sinais da constante e contínua presença dos EUA se avolumam também em Puerto Vallarta, a 300 km de Guadalajara. Povoado fundado em 1851, tornouse cidade em 1908 e, até 1970, permaneceu sem energia elétrica, ou seja, o balneário ideal para aqueles atrás de natureza e sossego. São 115 km de extensão de uma baía que faz jus à calmaria do Pacífico. Foi em Vallarta que John Huston rodou A noite do iguana (The night of the iguana, 1964). “Huston foi fundamental para o desenvolvimento turístico de Vallarta”, situa Juan Mendez, um senhor que leva grupos de visitantes para um breve, porém interessante, tour a pé. Foi a partir do filme que
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a cidade cresceu, agigantando-se também sob a perspectiva de resorts e cadeias hoteleiras com seus pedaços particulares do Pacífico. Uma das ruas leva à Casa Kimberley, construída por Richard Burton para Elizabeth Taylor, que vinha visitá-lo durante as filmagens e assim ofuscava a protagonista Ava Gardner. Parcialmente em ruínas, a mansão evoca o fervor da história de amor entre Burton e Liz (que se casaram duas vezes), e se tornou um símbolo de Puerto Vallarta. A convivência entre história e contemporaneidade marca o destino turístico que os estados de Jalisco e Nayarit formam e divulgam como Nuevo Vallarta ou Riviera Nayarit. O aconchego de Puerto Vallarta dá lugar a praias mais selvagens, a hospedagens luxuosas e a restaurantes chiques e caros. É um trecho do litoral que suplanta Acapulco em beleza e talvez se equipare ao glamour e à sofisticação hoteleira de Cancún. A diferença é que a exploração turística ainda é em menor escala; contudo, isso também vem mudando. “Nossas praias são as mais hermosas, de longe”, garante o secretário de Turismo Enrique Ramos. Pode ser que sim, pode ser que não: o que importa em Jalisco não é a certeza, mas, sim, o caminho percorrido e tudo aquilo que se experimenta em busca dele.
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HALLINA BELTRÃO
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GEOFAGIA O estranho hábito de comer terra
Ato comum entre crianças e grávidas, ele pode ter explicações extranutricionais, ligadas à cultura e a contextos históricos TEXTO Laís Araújo
Em Cem anos de solidão, Rebeca chega à casa da família Buendía com uma carta de explicação pouco plausível e um hábito considerado estranho: gosta de comer terra e arrancar fatias finas da cal das paredes para ingerir como bolachas. A forma como enterra as mãos na areia, a cada vez que não consegue ignorar suas vontades, apesar dos esforços e punições da matriarca da família, não é tão esquisita assim fora do universo fantástico de Gabriel García Marquez. Comer o que não é considerado alimento, por longos períodos, ato chamado de pica ou alotriofagia, pode ser mais que uma característica patológica. Na cultura ocidental, o desejo é majoritariamente retratado pela geofagia, ato de comer terra e solos semelhantes à argila, geralmente lembrado como um capricho pontual de crianças e mulheres grávidas. Mas há registros milenares do hábito também em países como China e Egito. E explicações também.
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Segundo Sera Young, especialista em alotriofagia da Universidade Cornell de Nova York, os primeiros registros são creditados ao grego Hipócrates, “o Pai da Medicina”, em 460 a.C, e seguem se manifestando em escritos médicos da Antiguidade, Idade Média e Renascimento até os dias de hoje. O foco da análise tem sido o viés patológico, mas outras linhas de estudo já deram resultados: existem razões adaptativas, culturais e nutricionais para esse consumo. “Ao redor do mundo, mulheres e crianças são os consumidores mais comuns. A explicação mais contraintuitiva da geofagia é que o hábito serve para desintoxicar agentes patogênicos, já que ele absorve moléculas perigosas antes de elas entrarem na nossa corrente sanguínea. Ou seja: em essência, a terra serve para limpar.” O ato é comparável aos banhos e máscaras de argila que são feitos com fins terapêuticos, já
que o material tem grande capacidade de absorção e é considerado capaz de tratamento reequilibrante. Há registros de povos indígenas que preparam batatas e nozes de carvalho com argila. Já que crianças em crescimento e mulheres grávidas são mais vulneráveis a esses agentes biológicos, Sera, que também escreveu o livro ainda não traduzido Craving earth, explica que faz sentido que eles se esforcem para conseguir tal proteção. O hábito é verificado não apenas em humanos, mas também em mais de 200 espécies animais. Professora da Universidade do Texas, especialista em Antropologia e Primatologia, a pesquisadora Paula Pebsworth comenta a relação de estigma com o tema – há escasso material de pesquisa acadêmica –, apesar de suas características evolutivas. “Uma coisa que acho intrigante é que a maioria das pessoas concorda que a geofagia nos animais é adaptativa, mas considera que quando acontece com humanos é uma aberração ou uma doença.” Sera Young complementa que o comportamento se manifesta em diferentes classes sociais e regiões. “Mas, quando eu tento perguntar sobre o hábito, as pessoas geralmente passam a falar na terceira pessoa, já que o tema ainda é muito estigmatizado em diversos lugares. Depois que passam a se sentir confortáveis, dão dicas sobre quais terras são as melhores para comer.”
VALOR SIMBÓLICO
Outro ponto comum nas explicações é o fator nutricional, que vai além da limpeza interna: pesquisas apontam que o solo contém sais minerais como cálcio, sódio e ferro – o que explica, por exemplo, a maior incidência da geofagia em mulher grávidas, ou em animais que vivem em altitudes maiores. Para as pesquisadoras Sera e Paula, a motivação, apesar de amplamente aceita, não se sustenta tanto assim. Há mais minerais em plantas do que no solo, e muito desses nutrientes disponíveis não são absorvidos pelo corpo (além, claro, dos riscos advindos da possibilidade de contaminação ao comer terra de ambientes contaminados ou sujos). “A motivação fundamental não precisa ser totalmente nutricional ou totalmente desintoxicante: o hábito
poderia servir para diferentes razões em diferentes momentos da vida”, explica Paula. Dietas pobres em minerais e estilo de vida exigentes de grande quantidade de energia podem gerar e intensificar a geofagia. Há, ainda, o valor simbólico do ato: comer terra é diretamente comer um pouco do mundo. O antropólogo e etnólogo Raul Lody afirma, em seu livro Brasil bom de boca: temas da antropologia da alimentação, que a geofagia implica um sentimento de comer tudo que a terra pode produzir, de desejo de morte e de pertencimento com o mundo (ao morrer, o homem é enterrado e comido por essa mesma terra). “É um hábito que nasce da busca por complementação nutricional, pela sobrevivência”, reitera Lody. “Mas há ainda a relação que existe no desejo de comer para morrer. Existem relatos do século 19 de máscaras de metal feitas para evitar que escravos comessem terra. O que acontecia muito é que comer, entre os aprisionados, era o desejo de se alimentar daquilo para morrer e se libertar. A máscara de metal impossibilitava que eles escolhessem o que comer ou beber, fazia com que se comportassem seguindo o que os seus donos determinassem. São os dois pilares principais. Desejo de comer terra e morrer, durante a escravidão. E a necessidade nutricional, pela sobrevivência.” Com mesma intensidade, há também o desejo de retorno. Como a Rebeca de Cem anos de solidão, comendo compulsivamente o barro e a cal das paredes na cidade de Macondo, há o simbolismo de retorno à terra entre seus exilados, seja pela escravidão, distância ou vazio. Ao comer o mundo comendo o solo, procura-se “terra da costa ou qualquer outra terra para viver uma outra vida”, como afirma Raul Lody, ao final do capítulo Comedores de terra, do livro citado.
ANTROPOMORFOS
A afirmação do antropólogo Roberto DaMatta sintetiza a dinâmica cultural da alimentação: “Toda substância nutritiva é alimento, mas nem todo alimento é comida”. Além da identificação do que deve (e quando deve) ser comido, alimentos podem simbolizar poder e ascensão, ponto
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
1-2 ANTROPOMORFOS
Doces como o pé de moleque e o olho de sogra aludem ao corpo humano e à sua representação em contexto cultural
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de miscigenação entre povos, limites dentro de religiões. Expressamos também o desejo do corpo, nosso e de outrem, através da comida. “É muito antiga entre os povos a busca de representação iconográfica de pessoas, animais, de mitos. Buscamos uma representação do nosso entorno e de nossas experiências cotidianas, geralmente definidas por nossa área geográfica. A comida é feita, claro, para alimentar, mas também para simbolizar a nossa cultura”, afirma o antropólogo Raul Lody. “Os símbolos são diferentes, dependendo de seus contextos, suas épocas. A representação é uma forma de trazer o imaginário através da comida: nós modelamos a massa e damos a ela a forma que desejamos.” A representação que temos na comida – que pode se manifestar através do formato e dos nomes que damos a ela – garante o caráter antropofágico ao ato: ali, com as mãos, garfo e faca ou com
os olhos comemos um pouco do ser humano e da sua cultura. Se o desejo pelo alimento é traduzido durante a espera manifestada pelos olhos, o desejo por pessoas também costuma ser. Comer o outro ao comer um alimento antropomorfo é incorporar suas atribuições, vontades e papéis sociais. “Podemos ter a representação humana em pães, biscoitos, doces. Também não importa o procedimento: a comida pode ser frita, cozida. Esse tipo de realização sempre houve, e o homem sempre dominou essa técnica. Você encontra essa busca por prazer e representação, por comunicação com outras pessoas dentro da alimentação desde um período pré-cristão”, pontua o antropólogo. O doce nego-bom, por exemplo, feito com banana, limão e açúcar, era produzido por escravos nos engenhos de açúcar de Pernambuco. Há lendas orais sobre a origem do nome, como a queda dos que produziam o melado de
açúcar nos caldeirões ferventes durante a produção do doce; há ainda a hipótese da hipersexualização do corpo negro, da mulher escrava, que ficava responsável pela produção para as famílias de engenho. Ainda hoje é uma lembrança viva do período escravista no país. “Cada comida tem uma intenção, uma relação de imaginários. A barriga de freira parte do imaginário de que freiras não tomam sol, então o doce é branquinho, o que é uma referência factível, apesar de sabermos que não existem apenas freiras brancas. Temos também a bebida típica do carnaval de Olinda, a cachaça pau do índio. O corpo é muito ligado à fertilidade, à sexualidade, e assim gostamos de atribuir sentido ao que estamos fazendo”, afirma Lody. É contado que não foi Seu Cardoso, criador da cachaça, quem atribuiu a ela seu nome, mas, sim, os clientes, que assistiram à produção e viram no ato e nos ingredientes um motivo para o duplo sentido. O corpo comestível e suas significações estão presentes na culinária popular brasileira, especialmente a doçaria, como o olho de sogra (essencialmente ameixas e açúcar, supostamente originário de uma mulher que ensinava a nora a cozinhar e errou a receita do beijinho propositalmente), ou o pé de moleque (amendoim torrado e açúcar, com histórias de origem que variam desde a semelhança com a cor e calos das crianças que corriam em terra batida, até a das cozinheiras que deixavam o doce na janela para esfriar e reagiam aos roubos da vizinhança com gritos de “Pede, moleque!”). As representações e simbolismos culturais, além de importantes e inevitáveis, fazem parte de um processo retroalimentar, no qual nos reafirmamos e lembramos de nós mesmos, ao qual Lody denomina de endogastronomia: pois, como explica no seu livro aqui mencionado, “na mímese do outro comemos a nós mesmos”
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LEOPOLD, WOLFGANG E NANNERL, AQUARELA DE CARMONTELLE/REPRODUÇÃO
Sonoras OUVIDO ABSOLUTO Quando qualquer som é uma nota musical
A superaudição, que permite ao portador discernir os exatos componentes sonoros em qualquer ruído, ainda é um atributo indecifrável para a ciência TEXTO Fernando Athayde
Primeira das sete artes, a música surgiu na pré-história, há cerca de 50 mil anos, e veio a ser um símbolo tão humano quanto a infinita busca pela felicidade. Profundamente transformada ao longo do tempo, ela só atingiu seu nível máximo de complexidade com a chegada do século 20. Bombardeada pela expansão tecnológica e pelas profundas transformações socioculturais que se alastraram pelo mundo a partir daí, acabou se tornando um legítimo e fascinante objeto de estudo da ciência. Entre comunicação, física e neurologia, podemos citar diversas questões responsáveis por elevar a música a um eixo fundamental da cultura. Ainda assim, é possível que nada seja mais intrigante que a percepção musical isolada de cada indivíduo. A figura do próprio músico, que, a bem da
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MENINO MOZART Aquarela representa uma aula do compositor alemão, do qual se afirma ter tido a capacidade de reconhecer tons nos barulhos desde os sete anos
os intervalos melódicos entre duas ou mais notas musicais. Por exemplo, se alguém senta ao piano e toca um fá natural seguido de um sol natural, o portador do “ouvido relativo” vai identificar que houve ali um intervalo de um tom entre os sons, mas não vai saber identificar quais notas foram tocadas. Essa condição é comum à grande maioria dos músicos, sendo adquirida através do estudo constante e da prática da música. Já aquele que detém o “ouvido absoluto” consegue perceber isoladamente qualquer nota musical. Algo como identificar que a sirene do carro da polícia é um dó, o latido de determinado cão é um fá ou até a própria respiração é uma variação entre sol e sol sustenido. Essa condição, porém, não tem uma explicação científica definitiva, sendo até hoje discutida se sua origem é natural ou induzida.
SUPERPODER
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verdade, submete seu corpo a uma transformação fisiológica a fim de compreender o que são, de fato, os sons, é um exemplo do poder que tem a música sobre o ser humano. Para o músico, antes mesmo do instrumento, a ferramenta máxima de trabalho é o ouvido. É preciso aprender a ouvir. É preciso desenvolver a capacidade de escutar o som e conseguir destrinchá-lo em ritmo, harmonia e melodia. Alguém que nunca se submeteu à educação musical, por exemplo, pode não perceber a desafinação de uma guitarra, algo improvável para um músico. Nesse ponto, estão inseridos os conceitos de “ouvido absoluto” e “ouvido relativo”, formas distintas de perceber o som e cujas origens até hoje permanecem ocultas. De forma simples, considerase portador do “ouvido relativo” aquele que consegue identificar
Comprovadamente, o “ouvido absoluto” se manifesta na primeira década de vida. Atuando quase que como um “superpoder”, porém, essa condição não tem uma origem esclarecida. Pesquisadores como a psicóloga britânica Diana Deutsch e o geneticista americano Peter Gregersen, por exemplo, realizaram diversos estudos sobre o aparecimento da condição e encontraram resultados quase diametralmente opostos. Em seu artigo mais recente Absolute pitch exhibits phenotypic and genetic overlap with synesthesia, de 2013, Gregersen aponta uma relação genética entre o aparecimento do “ouvido absoluto” e a sinestesia, que é a capacidade de relacionar determinado som a uma cor, situação, cheiro ou objeto. Para o pesquisador, essas são características hereditárias, que não podem ser modificadas ou adquiridas, amalgamadas numa forma bastante particular de perceber os sons que se relacionam intimamente com a história de vida do portador. Dessa forma, segundo o geneticista, essa característica, ainda que conhecida por intermédio da música, não
tem nenhuma relação direta com a educação musical. Já Diana Deutsch encontrou nas línguas tonais uma explicação para o surgimento do “ouvido absoluto”. Vertendo a condição numa característica totalmente humana, ela crê que todo indivíduo pode desenvolver essa habilidade, desde que seja influenciado de forma correta. Dita tonal é aquela língua em que a altura com que se pronuncia as sílabas interfere no significado delas. Ou seja, o que legitima o valor de cada fragmento silábico é o quão grave ou o quão agudo ele é. Um bom exemplo disso é o mandarim, língua mais falada no mundo e que tem o sentido das palavras ditado pelas notas musicais com que se pronuncia cada verbete. Esse tipo de idioma é frequentemente confundido com outro, o sensível ao peso silábico,
O ouvido absoluto percebe isoladamente qualquer nota musical, como no latido de um cão ou na sirene da polícia onde o tempo rege a interpretação. No japonês, por exemplo, o que define cada palavra é a duração de cada sílaba pronunciada. No artigo Absolute pitch among American and Chinese conservatory students: prevalence differences, and evidence for a speech-related critical period, de 2005, Deutsch comparou o aparecimento da característica em dois grupos de estudantes de música, um em Nova York, e o outro em Pequim. Os resultados mostraram uma predominância de casos nos asiáticos, em que 60% das crianças chinesas conseguiram desenvolver a habilidade contra 14% das americanas. Ainda assim, para a realização do estudo, nenhuma característica genética foi levada em consideração.
TENDÊNCIA ERUDITA
A partir do século 20, com a dinamização dos processos criativos
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FOTOS: REPRODUÇÃO
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BRIAN WILSON
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PARCEIROS
Dono de ouvido absoluto, o músico não dava sossego aos Beach Boys, até que a execução de uma música estivesse perfeita Em Beat it, é possível observar a preocupação de Michael Jackson e Quincy Jones com a afinação precisa dos instrumentos
em virtude do avanço tecnológico, a desafinação dos instrumentos, tanto quanto a própria afinação, foi elevada a um novo patamar e se tornou recurso de linguagem. O próprio grupo de heavy metal Black Sabbath, em seu disco de estreia homônimo, de 1970, gravou todos os instrumentos afinados a partir de uma frequência referencial diferente do padrão mundial, que é o lá 3 obtido em 440hz. Dessa forma, chega a ser compreensível que a maioria dos músicos portadores do “ouvido absoluto” tende a seguir o caminho da música erudita. Para eles, que percebem toda e qualquer nuance tonal dos sons, a desafinação pode vir a ser algo incômodo, a quebra do equilíbrio harmônico. Uma história curiosa é a que se conta sobre Wolfgang Amadeus Mozart, que aos sete anos de idade já saía pela rua identificando o tom de todo tipo de barulho que encontrava. Do som dos passos dos pedestres ao sino da igreja. Justamente por perceber as frequências isoladas, um indivíduo cujo ouvido é absoluto não ouve a
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música como um fluxo homogêneo, mas, sim, como uma série de instrumentos soando isoladamente, ao mesmo tempo. Apesar disso, a música popular tem seus expoentes dotados dessa condição, o que geralmente vem atrelado a algum caso curioso. Um deles é o do disco Pet sounds (1966), do Beach Boys. Encabeçada pelo genioso e genial Brian Wilson, a banda era posta à exaustão durante os ensaios, quando tudo era feito e refeito até atingir a perfeição. Wilson, que não admitia erros de execução, é um caso notório de como um detentor do ouvido absoluto conseguiu se inserir na música popular de forma singular. Logo na canção Wouldn’t it be nice, que belissimamente abre o álbum, é possível perceber a combinação de inúmeras faixas de voz, todas extremamente afinadas. Um feito de altíssimo nível de dificuldade. Assim como Wilson, Michael Jackson foi um artista que atingiu um nível técnico único. É quase imperceptível, mas a própria respiração do cantor, traço característico de sua empostação vocal, sempre aparece no mesmo tom da canção. Em Beat it, terceiro single do álbum Thriller, de 1982, é possível notar a preocupação que o artista e seu produtor Quincy Jones tinham em manter a afinação precisa dos instrumentos. No momento do solo de guitarra, tocado pelo guitarrista Eddie Van Halen, há uma série de sons sintetizados inseridos
pontualmente na harmonia da música que, ainda que extremamente processados, permanecem dentro do mesmo padrão tonal. Nessa mesma época, porém, em Nova York, o Sonic Youth lançava o disco Confusion is sex, uma perfeita antítese dessa forma de enxergar a música. O álbum legitimou a união entre a literatura pulp da primeira metade do século 20 e a experimentação tonal máxima, quando a desafinação passou a ser um elemento importante para o desenvolvimento da canção. Na prática, uma forma de pensar extremamente difundida a partir de então. Assim, é possível sobrepor a ideia de que a música, com o passar do tempo, esgotou as possibilidades de criação exclusivamente musicais, transformando-se numa única dentre tantas linguagens possíveis. A música concreta de John Cage, por exemplo, é algo que trabalha questões musicais que vão muito além do próprio áudio. A mensagem está no contexto que envolve a composição, e não nos intervalos harmônicos, melódicos e rítmicos. O próprio trabalho de sound design, que faz o som interagir diretamente com a imagem, é um conceito cada vez mais notável. O trabalho realizado no filme Gravidade (2013), de Alfonso Cuáron, é um exemplo que materializa a ideia de que a própria música pode interagir com o ambiente, definindo uma nova forma de criar.
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INDICAÇÕES DIVULGAÇÃO
ALTERNATIVO
SHOEGAZE/ NEW AGE
Rough Trade Records
Prophecy Productions
WARPAINT Warpaint
ALCEST Shelter
Segundo disco do grupo californiano que tem como integrantes quatro belas e exímias musicistas. O lançamento é um tiro certeiro no coração da geração que ama o indie rock dos anos 1990. Atual, porém, o álbum homônimo do Warpaint não soa demasiadamente referencialista, conseguindo dosar elementos. O trabalho de voz realizado nele é espetacular, assim como boa parte dos arranjos de baixo e bateria. Recentemente, a banda também veiculou um videoclipe para as canções Disco//Very e Keep it healthly, um show à parte.
Em 2007, quando o duo francês Alcest estreou com o melancólico disco Souvenirs d’un autre monde, ele conseguiu extinguir a linha que separava gêneros como o black e o doom metal da sonoridade subjetiva e etérea do shoegaze e do dream pop. Agora, o grupo imerge num universo no qual a música se projeta em tons claros e suaves. Shelter, ainda que não seja inovador, é uma obra que legitima uma transformação sofrida pela banda nos últimos anos. O videoclipe da canção Opale é a experiência perfeita para entender essa fase.
ROCK
EXPERIMENTAL
Matador Records
Record collection
Mepe
TENDÊNCIAS FONOGRÁFICAS No início do mês de maio, o Centro Santander Cultural, que funcionava no Bairro do Recife, fechou as portas. Felizmente, porém, o projeto encontrou, através da parceria acertada com o Mepe (Museu do Estado de Pernambuco), uma forma de sobreviver e reforçar sua relevância dentro do espectro artístico no Recife. Assim, canalizando seus investimentos para o desenvolvimento, não só de práticas culturais, mas também do próprio museu, a iniciativa apresenta, durante os próximos meses de julho e agosto, sempre aos sábados, às 17h, o festival Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. É a primeira de uma série de realizações que o Santander Cultural espera consolidar junto à instituição . O evento, que conta com atrações nacionais e internacionais, destaca-se por ser um artifício capaz de traçar um verdadeiro panorama das tendências e novas formas de conceber música na contemporaneidade. Valendo-se de não possuir barreiras, a programação destrincha a experiência do festival em shows e workshops, ministrados por alguns dos artistas convidados. Além disso, oferece a oportunidade do espectador presenciar encontros entre músicos eruditos e populares, reforçando a ideia de que a música é única, uma patente sob a qual coexistem diversas linguagens. Um dos destaques da programação é o cavaquinista pernambucano João Paulo Albertim, que toca no dia 12 de julho um repertório bastante singular. “Vou alternar composições do meu disco Toca Pernambuco (2012) e releituras da obra de grandes mestres do cavaquinho em Pernambuco, como Cláudio de Souza e Jacaré”, diz o músico. Ele também aponta que “o festival é uma iniciativa muito importante para artistas da música instrumental”, algo que pode ser comprovado ao lançar um rápido olhar sobre a programação (veja a íntegra do programa no site da Continente), que ainda conta com nomes como o trompetista paulistano Guilherme Guizado e o violinista americano Giora Schmidt.
SAVAGES Silence yourself O Savages é como uma facada no estômago. Rápida, agressiva e raivosa, a banda, formada somente por mulheres, é uma das melhores coisas que apareceu desde a virada da década. O disco de estreia do grupo é uma reorganização contemporânea daquela estética post-punk urbana que há 30 anos aparecia em bandas como o The Cure e nos primeiros passos do My Bloody Valentine. O primeiro single de Silence yourself, Husbands, é quase um mantra do caos, uma canção que consegue fazer gritar a mais meiga das senhoras de idade.
JOHN FRUSCIANTE Enclosure Famoso por ser a mente por trás de sucessos da banda californiana Red Hot Chili Peppers, John Frusciante vem construindo uma carreira solo de experimentações sonoras e bizarrices anos-luz distante do grupo que o consagrou há 20 anos. Neste disco, ele aporta sua criatividade na fusão entre música eletrônica e canção, concebendo texturas e melodias encantadoras. Assinando a composição e execução de todos os instrumentos, além da produção do álbum, Frusciante dá um largo passo em sua caminhada para desobstruir horizontes e possibilidades sonoras.
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TRAILER Parece até que é o mesmo filme
1 ATIVIDADE
PARANORMAL
Trailer inovou ao mostrar reação da plateia ao filme
Categoria audiovisual híbrida de cinema e marketing recebe críticas por equívocos, como revelar demais o enredo e se mostrar excessivamente clichê
2 HITCHCOCK Divulgação de Psicose durava mais de seis minutos e trazia diretor apresentando o enredo
TEXTO Rodrigo Carreiro
Claquete Alfred Hitchcock caminha cuidadosamente pelo quarto do Bates Motel. Voltado para a câmera, falando devagar, ele explica que ali, bem naquele lugar, um crime horrível aconteceu, um crime terrivelmente sangrento. Ao entrar no banheiro, sem economizar na ironia graciosa que se tornou uma marca registrada de sua personalidade, o grande diretor inglês puxa a cortina do chuveiro para trás. Num susto muito bemencenado (lembremos que Hitchcock costumava, em entrevistas, explicar a diferença entre o susto e o suspense, enfatizando as vantagens do segundo, o que levou o público a se acostumar com a relativa ausência de sustos gratuitos nos seus trabalhos), uma
mulher loira solta um grito horripilante, o título do filme cobrindo seu rosto um fragmento de segundo depois. O trailer de Psicose, que hoje pode ser visto no YouTube e em DVDs e blu-rays do longa, tornou-se um dos exemplos mais celebrados dessa categoria audiovisual híbrida de cinema e marketing, criada para promover futuros lançamentos cinematográficos. Costuma ser lembrado, também, como símbolo de uma pergunta que atormenta cinéfilos de todos os cantos do mundo: o que diabos tem acontecido com os trailers, tão decepcionantes ultimamente? As reclamações são variadas. A pesquisadora norte-americana Lisa Kernan, que escreveu uma tese de
doutorado sobre o tema, fez um inventário dessas diatribes. Os trailers contam demais o enredo do filme. Fazem com que ele pareça melhor do que realmente é. Só mostram as partes bacanas. Contam todas as piadas engraçadas. Mentem descaradamente. E soam excessivamente altos. Kernan só esquece de mencionar uma característica – talvez a mais fundamental, aquela que engloba todos os comentários em uma única frase: atualmente, todos eles se parecem muito. Nessa constatação reside o maior problema, pois uma peça de merchandising audiovisual deveria constituir um importante fator a ser levado em conta pelo espectador no ato de escolha daquilo que deseja
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ver. Essa é a razão da existência desse produto. Mas, se a estética deles é tão similar, afinal, como separar os filmes promissores dos desinteressantes? Uma olhada atenta à história desse tipo de anúncio de cinema mostra que o problema não é tão novo assim. O seu conceito surgiu na década de 1910, nos Estados Unidos. As primeiras experiências ocasionais registradas por historiadores cinematográficos ocorreram no começo da década, em Nova York, e normalmente envolviam narrativas seriadas. A primeira exibição registrada de um trailer, de fato, teria ocorrido em 1912, num cinema de Hye Beach, ao final de uma apresentação do seriado semanal The adventures of Kathlyn. O filme terminaria com a protagonista atirada em uma jaula. Na ocasião, o exibidor simplesmente incluiu uma cartela com uma frase: “O que será que aconteceu? Não perca na próxima semana!”. Ao longo da década, esse tipo de estratégia passou a ser repetido com alguma frequência, mas só em 1919 as chamadas para próximas atrações ganhariam um nome e uma produção constante. Isso ocorreu depois que uma pequena produtora, a National Screen Service, começou a reunir fotografias de produção de filmes, e às vezes pequenos trechos deles (quando os estúdios concordavam em cedê-los), e produzir anúncios com narração e música. Estes eram destinados à exibição no final da sessão (isso explica o título original da atração, pois o verbo trail significa “a seguir”). Aos poucos, esse material promocional começou a ser requisitado por mais salas de cinema. Em 1922, diante do crescimento do empreendimento,
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a produtora assinou contratos com todos os estúdios importantes de Hollywood e tornou o serviço regular, ampliando a sua distribuição. Somente em 1928, os grandes estúdios (a Warner foi o primeiro) decidiram também realizar tais chamadas.
ESTRUTURA
Já naquela época, como nota Lisa Kernan, a estética da maioria dos trailers era bastante similar. De fato, por terem sido desenvolvidos pela mesma empresa durante alguns anos, eles seguiam estrutura semelhante: trechos das principais cenas do filme, efeitos gráficos (legendas, intertítulos, texto impresso sobre as imagens) e uma frase de efeito no
final, sempre procurando capturar o interesse do espectador. A chegada do som inscrito nas películas de 35 mm, ocorrida em 1927, completou a receita básica da fabricação de um trailer com narração em off (quase sempre feita por um narrador onisciente que não é personagem do filme) e música oriunda de bibliotecas de áudio dos estúdios (em geral, canções de produções antigas). Ao longo dos anos 1930, período no qual a tecnologia de edição de imagem e som deu um grande salto de qualidade, os produtores desenvolveram características de estilo que continuam acompanhando essa modalidade audiovisual até hoje: montagem rápida e descontínua, uso
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QUASE FAMOSOS Plateia soube das melhores piadas bem antes de assistir ao longa
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BRANCA DE NEVE Apresentação do clássico da animação contou com a presença de Walt Disney
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LOLITA Na divulgação de sua versão para o romance de Nabokov, Kubrick adota ironia, questionando a ausência de censura ao filme pelo estúdio
Claquete abundante de efeitos de edição (muitos planos terminam com o deslocamento lateral da imagem, que some pelos lados, para dar lugar a outro plano, em um fragmento de segundo), efeitos sonoros curtos e com grande crescendo no volume. Os letreiros no final, com informações sobre datas de locais de exibição, frequentemente vêm acompanhados por textos hiperbólicos, recheados de adjetivos (“Maravilhoso! Fantástico!”), verbos no imperativo (“Vá! Veja! Sinta!”) e frases de efeito, tais como “Apertem os cintos” (Homens de preto, 1997) e “Aqui vamos nós de novo” (O retorno de Jedi, 1983). Esses padrões de estilo não nasceram sem uma razão. Como trailers são muito curtos (a Associação dos Exibidores de Filmes dos Estados Unidos estabelece como regra que cada estúdio só pode lançar uma única peça anual que tenha mais de dois minutos e 30 segundos de duração), os produtores sabiam que tinham pouco tempo para capturar e manter a atenção dos espectadores, a fim de despertar neles a curiosidade. Todas essas características contêm mudanças abruptas no conteúdo visual e sonoro, de forma a estimular o público a dirigir a atenção para a tela. Essa explicação levou Lisa Kernan a estabelecer uma curiosa analogia entre os trailers e os filmes realizados na primeira década de existência do cinema (1985-1905), período no qual os cineastas não estavam preocupados com a narrativa das obras, mas, sim, em proporcionar choques de percepção no público. Esse tipo de produção, mais parecida com números de circo do que com peças de teatro, foi denominada pelo
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pesquisador Tom Gunning de “cinema de atrações”, e foi deixando lentamente de existir após 1906 – mas teria, de certo modo, revivido com os trailers.
EXPERIMENTALISMO
De um modo ou de outro, essa estética foi seguida fielmente até o final da década de 1950. A partir daí, a história
dos trailers teria entrado em uma fase criativamente mais interessante. Graças à ascensão de uma nova geração de cineastas e cinéfilos afeitos à experimentação livre – a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e François Truffaut, na França, a New Hollywood de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, nos Estados Unidos –, a
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estética desse material de divulgação passou a ser continuamente desafiada. A experiência de Hitchcock com Psicose, mesmo não sendo totalmente inédita (Walt Disney produziu um promocional em que aparecia, ao lado de um conjunto de bonecos, para divulgar Branca de neve e os Sete anões, em 1937), faz parte dessa onda de experimentalismo – e convém não esquecer que o trailer de Psicose dura enormes seis minutos e meio, quase o triplo do normal. Stanley Kubrick, cineasta controlador e que era especialmente amante dessa tipologia, foi outro nome que cometeu ousadias: na chamada para Lolita (1962), diante dos acontecimentos picantes da trama, até mesmo o narrador se pergunta como o estúdio permitiu que o filme fosse feito. A partir do aparecimento dos primeiros blockbusters, como Tubarão (1975) e Guerra nas estrelas (1977), as produções norte-americanas passaram a visar um público mais jovem, o que acabou com o desejo dos estúdios e cineastas de experimentar ousadias estéticas. O mesmo aconteceu com os trailers: quase sempre tentando levar o máximo de pessoas ao cinema, as chamadas para futuros filmes começaram lentamente
Os clichês dos trailers vêm dificultando a escolha do espectador por obras que teriam potencial para atraí-lo às sessões a repetir a mesma estrutura, os mesmos efeitos sonoros (é difícil encontrar hoje um deles que não tenha o tradicionalíssimo toque de címbalo – um prato de bateria – como ruído que interliga duas cenas diferentes), as mesmas músicas, já que as trilhas sonoras de Coração valente (1995), Stargate (1994) e Réquiem para um sonho (2000) fornecem acompanhamento dramático constante para, respectivamente, aventuras históricas, ficções científicas e dramas melancólicos. Ocasionalmente, um lampejo pode ocorrer, como o criativo e barato filme de divulgação de Atividade paranormal (2007), que não mostrava nenhuma cena do longa em si, mas tomadas das reações (em geral, genuinamente apavoradas) de membros da plateia que assistiam ao filme em festivais e exibições-teste – essa ideia foi repetida no trailer do quarto exemplar
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da franquia, em 2012. Mas essas são exceções. A regra continua a ser a divulgação que conta muito, que desperdiça as melhores piadas (isso aconteceu em Quase famosos, de 2000, quando a brilhante sequência da turbulência no avião, que provoca uma confissão hilariante do baterista da banda protagonista, foi usada à exaustão, o que deixou bastante sem graça a mesma cena na sessão), que repete cacoetes de outros trailers e que, no limite, impede que o espectador consiga selecionar as obras que realmente têm potencial para agradá-lo. Lisa Kernan admite que essa tipologia se repete muito, mas advoga que essa semelhança estética é muito mais fruto das condições de produção do que do estabelecimento de uma estrutura rígida de organização das informações visuais e sonoras. Acontece que a produção desses anúncios cinematográficos, no mundo inteiro, tem sido terceirizada pelos estúdios e assumida por um número relativamente pequeno de produtoras que, por sua vez, graças ao tempo curto de trabalho e a orçamentos nem sempre generosos (nos EUA, um trailer é atualmente produzido por valores que variam entre 40 e 100 mil dólares), tende a repetir a receita, com medo de arriscar.
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BÁRBARA CUNHA/DIVULGAÇÃO
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MITOLOGIAS História de sertão e mar Em seu novo longa-metragem, em fase de produção, Paulo Caldas explora esses dois “lugares” caros à cinematografia nacional TEXTO André Dib
Alemanha. Um pouco antes, o governo brasileiro anunciara vitória sobre outro oponente: o cangaço. De um lado, navios mercantes afundados por submarinos nazistas. Do outro, a sanha exibicionista de cabeças cortadas. Tentando escapar da morte, o último casal de cangaceiros e os últimos sobreviventes de um submarino se encontram, à beira-mar. Esse é o argumento de O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, de Paulo Caldas. Em fase de desenvolvimento, o longa é uma coprodução internacional com custo estimado de R$ 4 milhões. No papel do oficial alemão está Peter Ketnath, que trabalhou com Caldas em Deserto feliz e se tornou conhecido do público brasileiro como o caixeiro-viajante de Cinema, aspirinas e urubus. O roteiro é de
Ator Peter Ketnath e o diretor Paulo Caldas no interior do submarino que servirá de locação
nazismo e os rumos da Alemanha. “O enclausuramento e a falta de espaço serão determinantes, em contraste com a condição de liberdade no exterior.” O retorno de Caldas à época e ao universo abordados há 20 anos em Baile perfumado (codirigido por Lírio Ferreira) desperta curiosidade sobre como a nova incursão se desenvolverá. “Sempre tive vontade de voltar ao tema, mas não forcei nada, esperei acontecer”, diz o diretor. “O filme não tem nenhuma relação estética ou narrativa com Baile perfumado. Existem muitos filmes sobre os dois temas e nosso interesse é ter uma visão própria, atualizada. Interessamme a psicologia e a dramaturgia geradas pelo encontro dos personagens.”
Claquete
Em 1942, o Brasil declara guerra à
EQUIPE
Caldas e Hilton Lacerda. As filmagens devem começar no fim deste ano. Sertão e mar são elementos caros à cinematografia nacional. Um de seus pilares, Limite (1931), de Mário Peixoto, é uma das influências assumidas por Paulo Caldas. Outra é o filme alemão Das boot (1981), de Wolfgang Petersen, cujo submarino, uma réplica de modelo utilizado na Segunda Guerra, será utilizado como cenário da nova produção. A embarcação está instalada nos estúdios da Bavaria Films, em Munique. “É difícil fugir da ideia de que esse filme (Das boot) não influencie o nosso. O submarino é um dos piores lugares para estar numa guerra, pois o perigo da morte é muito presente”, diz Caldas. Dentro dele, um núcleo dramático representa diferentes visões sobre o
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ENCONTROS
Em conversa durante o mais recente Festival de Berlim, Caldas lembrou que todos os seus filmes começam a partir de encontros improváveis e transformadores. Benjamin Abrahão e Lampião, em Baile perfumado; Helinho e Garnizé, em O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas; uma adolescente do interior e um turista alemão em Deserto feliz; e uma pianista e um padre, em País do desejo. No entanto, apesar de não haver registro de envolvimento entre cangaceiros e nazistas, eles podem ter acontecido. “Onze submarinos foram afundados nessa época, sete deles na costa do Nordeste, três ou quatro entre Pernambuco e Alagoas. Então, meu pai morava em Ipojuca e soube pelo meu avô, que era prefeito, de quatro náufragos alemães que foram presos no Quartel do Derby.” Caldas conta que a história começou a se desenhar quando imaginou o último casal de cangaceiros fugindo da última volante. “Eles iriam para o Mato Grosso, como alguns fizeram, mas, no caminho, Guiomar resolve que queria ver o mar e, ao lado de Mormaço (nomes de cangaceiros reais), mudam de rota. Na volante, está um ex-cangaceiro, o que o torna mais perigoso. Esse trio tem um componente de humor. A narrativa fica mais no ponto de vista da mulher. Gosto dos personagens femininos, e dentro da guerra é um
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INDICAÇÕES aspecto importante ser uma mulher quem determina os destinos de forma intensa.” Dentro do submarino, diz o diretor, a violência se expressará não pelo combate, mas pela angústia. “O principal elemento de guerra é psicológico, o medo do combate, o estresse. Ullman (Ketnath) é mais velho, um oficial experiente. A contragosto, seu irmão mais novo está no submarino. Ele se sente responsável e trata as crises de pânico com hipnose.” Apesar de lidar com o contexto bélico, a ideia não é fazer um filme de guerra. “Não pretendo me colocar em amarras, mas, nos termos de gêneros cinematográficos, este seria um filme de aventura. Assim como Baile perfumado, que é filme de cangaço, o único gênero genuinamente brasileiro, é também de aventura.” Diferentemente de outros filmes que abordam a relação entre Brasil e Alemanha, Sertão mar (como é chamado no exterior) remete a algo mais do que um encontro entre culturas distintas. Ele trata de uma questão pouco explorada, talvez inédita no cinema contemporâneo local: o da presença nazista em Pernambuco. Eles estiveram aqui, não apenas em submarinos. Ciente da complexidade do assunto, Paulo Caldas cogita convidar um dramaturgo alemão para colaborar no roteiro. “Quase 70 anos depois, o nazismo ainda é tema delicado. Queremos que o filme represente de forma respeitosa e digna as duas culturas.” O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão será uma coprodução entre a 99 Produções Artísticas (de Caldas e Bárbara Cunha), a República Pureza (produtora
carioca responsável por, entre outros, Febre do rato e Faroeste caboclo), a alemã CineZebra (com quem Caldas rodou Deserto feliz) e a portuguesa Fado Filmes (coprodutora de País do desejo). Além do Festival de Berlim, novas parcerias se esboçaram no último Festival de Cannes. “Tivemos uma boa conversa com produtores franceses e vamos a Paris desenvolver essa relação. Também tivemos uma excelente reunião com uma TV alemã, que está interessada no projeto”, diz Bárbara. Experiente no assunto, Caldas diz que a “cidadania” europeia facilita não só a produção de um filme, como a sua distribuição. “Ele pode ser exibido e comercializado nos dois países sem pagar taxas de filmes estrangeiros.” Sertão mar também evoca outro filme basilar, Deus e o diabo na terra do sol. No filme de Glauber Rocha, situações do passado são revisitadas (ou reinventadas), para que se construa uma visão do tempo presente, no caso, o de 1964. Nele, o Sertão denota carência, estagnação e falta de perspectiva; e o mar, vida, renascimento, revolução. Como fez em Baile perfumado, Caldas pretende com o novo filme tratar do agora. “Naquele tempo, o mundo viveu a Grande Guerra. Hoje, temos o terrorismo, questões de imigração, conflitos econômicos e territoriais. No Brasil, havia uma tempestade política. Por um lado, o Estado Novo de Vargas, por outro, o desequilíbrio social e ausência do governo – o que levou ao cangaço, uma das consequências do coronelismo.” Setenta anos depois, os personagens podem ser outros, mas não os sistemas de poder.
ROMANCE
JUVENIL
AZUL É A COR MAIS QUENTE
AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL
Baseado na história em quadrinhos da francesa Julie Maroh, o filme La vie d’Adèle, de Abdellatif Kechiche, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2013. Azul é a cor mais quente narra as descobertas afetivosexuais de Adèle, que se apaixona por Emma. O filme acompanha o amadurecimento de Adèle ao descobrir seu corpo e o amor lésbico.
O diretor e roteirista de As vantagens de ser invisível, lançado em 2012, foi também autor do livro homônimo que o inspirou. O formato epistolar do romance é transposto para a linguagem fílmica, que usa a narração para estabelecer conversa com destinatário desconhecido. O recurso é utilizado na voz de Charlie, o protagonista, que conta os melhores – mas não fáceis – anos de sua adolescência. A narrativa é marcada pela melancolia.
DRAMA/ROMANCE
BIOGRAFIA
Dirigido por Ritesh Batra Com Irrfan Khan e Nimrat Kaur Imovision
Dirigido por Jalil Lespert Com Pierre Niney, Guillaume Gallienne e Charlotte Le Bon Paris Filmes
Dirigido por Abdellatif Kechiche Com Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, Imovision
LUNCHBOX
Lunchbox discute o acaso, ao colocar em contato uma dona de casa negligenciada e um homem solitário perto da aposentadoria, por causa de um erro de entrega de refeição. Locado em Mumbai, na Índia, o filme acompanha as mensagens trocadas por esses estranhos nas embalagens de marmita. Ele aborda situações que buscamos para continuarmos nos sentindo felizes. As relações retratadas exemplificam a estratificação de classes no país.
Dirigido por Stephen Chbosky Com Logan Lerman, Ezra Miller e Emma Watson Paris Filmes
YVES SAINT-LAURENT
Jalil Lespert realizou a cinebiografia do seu conterrâneo Yves Saint Laurent. O filme passa pela vida do estilista desde o início de sua carreira, em 1957, quando conheceu seu parceiro e amante Pierre Bergé. O ano também marca o funeral de seu mentor Christian Dior. Esta é a primeira de duas cinebiografias lançadas em 2014 sobre um dos mais importantes estilistas do século 20. A segunda, Saint Laurent, lançada recentemente, é assinada por Bertrand Bonello.
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No poema Autotomia, a polonesa
Leitura
HILDA HILST Enfim, o aporte de leitores
Nos 10 anos da morte da escritora, serão lançados livro de cartas e uma biografia, além de estarem em produção dois filmes sobre a autora que queria ser lida em profundidade TEXTO Priscilla Campos
Wislawa Szymborska utiliza o pepinodo-mar (de nome científico Holothuria) como metáfora para dissertar sobre a sobrevivência. O caminho proposto pelos versos de Szymborska é austero e belo: “Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:/ deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,/ salvando-se com a outra metade.// Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,/ em resgate e promessa, no que foi e no que será (...)”. Remanescer, para a polonesa, é então um ato que demanda certa coragem. É preciso entregar-se às tormentas; nos versos de Szymborska, a fuga não aparece como uma solução. Durante todo o poema, ela afirma: o indivíduo, assim como o pepino-do-mar, tem a capacidade de desatar-se em si mesmo. Esse exaustivo ritual parece ter sido executado com frequência por Hilda Hilst, falecida há 10 anos (1930–2004). Detentora de uma “literatura de raça”, como definiu o professor de Teoria Literária da Unicamp, Alcir Pécora, a escritora, dramaturga e poeta paulista deixou um legado imenso, ainda em processo de descoberta por leitores e críticos. No decorrer de sua trajetória literária, e mesmo após a sua morte, entrevistas e resenhas debateram com fervor a suposta incomunicabilidade presente na escrita de Hilda. Em uma delas, concedida ao jornalista Delmiro Gonçalves e veiculada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 1975, a escritora é taxativa ao ser questionada sobre “certas críticas que são feitas a seus últimos trabalhos, achando-os incomunicáveis”: “(...) Não compreendo isso; muita gente fala da dificuldade de entendimento do meu trabalho em prosa. Mas tudo é difícil, não é? Há uma personagem minha que diz: ‘Olha, tudo é difícil. Arrota agora, vê, você não conseguiu. Coça o meio das costas, vê, você não conseguiu; é difícil, não? Andar de lado e sentado é dificílimo, não?’. Portanto, se você escreve tentando de certa forma ‘rebatizar’ a palavra, pensar tua própria carne longe das referências é também muito difícil, não acha? Quero ser lida em profundidade e não como distração (…).” Até hoje, a obra hilstiana é tida como difícil e com alto potencial de
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1-2 CASA DO SOL Local onde a escritora viveu em Campinas (SP) é sede do Instituto Hilda Hilst, no qual ocorrem encontros e residências artísticas
afastar os leitores “menos dedicados”. É curioso observar como essa ideia parece ter ultrapassado qualquer âmbito jornalístico e acadêmico. Na página dedicada à escritora no site Wikipedia, tem-se acesso a vários detalhes de sua vida, prêmios, obras divididas por gêneros e datas... Porém a curiosidade de quem estiver procurando por uma definição, conceito, ou até mesmo adjetivos para essa literatura com ares de indecifrável, não será saciada, pois o tópico Estilo literário está, segundo o site, em construção. Mesmo com essa deliberada falta de clareza na esfera escritor-leitor, Hilda está sendo cada vez mais disseminada e lida, principalmente pelos mais jovens. A estatística foi observada pelo presidente do Instituto Hilda Hilst (IHH) e também herdeiro dos direitos autorais da escritora, Daniel Fuentes, que teve como base a fanpage da fundação no Facebook, hoje com mais de 21 mil curtidas. “Quase 50% do pessoal que curte nossa página tem menos de 30 anos. Hilda tornou-se mais popular até entre adolescentes. Adaptações para o teatro vêm ajudando no processo de divulgação de sua obra também. Na minha opinião, tudo isso, somado à ampla distribuição que os livros têm, fazem de Hilda hoje uma autora em franca popularização. Que outro autor brasileiro teve, no último ano, mais presença na mídia?” Após a publicação de 20 títulos pela editora Globo, processo iniciado em 2001, o Instituto é responsável por manter essa germinação popular tardia da escritora. Fuentes conta como foi a transformação da Casa do Sol, local onde a paulista viveu por quase 40 anos e recebeu diversos amigos, em centro cultural. “Hilda faleceu em fevereiro de 2004 e legou, além da obra genial, a Casa do Sol em uma situação muito complicada, no que diz respeito a dívidas. Dos sete herdeiros, apenas eu, meu pai (José Luís Mora Fuentes, grande amigo da escritora, falecido em 2009) e
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minha mãe (a artista plástica Olga Bilenky) queríamos a preservação do espaço. Meu pai encabeçou essa luta, mas, por um longo período, apenas utilizamos o local como um tipo de escritório administrativo. Produzíamos cultura, mas em projetos muitos pontuais. Isso mudou com o tombamento da casa, em 2011.”
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A partir daí, Daniel afirma que o Instituto alcançou grandes conquistas. Entre elas, a construção do Teatro
do IHH, a visibilidade que a obra de Hilda obteve no mercado brasileiro e estrangeiro (em especial nos Estados Unidos), e também o programa de residências criativas oferecido pelo centro. “Em termos de vendas, Hilda cresce de forma clara e sustentável. De acordo com os dados baseados nos direitos autorais, de abril do ano passado para este agora, ela cresceu 100% em participação no mercado”, conclui. O IHH ainda comporta o acervo da escritora com cerca de três mil exemplares, duas
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mil fotos, 150 minutos em filmes super-8 e quase 200 horas em áudio. A mais recente novidade organizada pela fundação é o site no modelo e-commerce chamado Obscena Lucidez (www.obscenalucidez.com.br). Na plataforma, são vendidos diversos produtos temáticos em torno da vida e obra hilstiana: livros, camisetas, agendas, cadernos tipo moleskine, pôsteres e até capas para celulares. De acordo com Fuentes, um dos pontos mais interessantes do site são os pacotes promocionais que envolvem a venda dos livros. “O espírito é democratizar de forma radical o acesso à obra dela”, afirma. Hilda, de fato, nunca foi tão pop. Dois novos livros devem ser lançados até 2015 pela editora Globo: uma compilação de cartas da escritora e, o mais aguardado, a biografia de Hilda, ainda sem nenhum detalhe divulgado. Entre as novidades, o cinema também receberá o universo da escritora. Na lista, uma ficção produzida e protagonizada por Tainá Müller e dirigida por Walter Carvalho; e um “docudrama” intitulado Contato, Hilda pede contato, com direção da cineasta Gabriela Greeb. “Eu fui convidada por Mora Fuentes para pensar em um filme ‘poético’ sobre Hilda e aceitei. Fiz algumas visitas à Casa do Sol e, numa delas, me deparei com uma caixa de
Embora seja ainda considerada “difícil”, a obra de Hilda Hilst tem conquistado leitores, sobretudo entre os jovens fitas cassetes, as experiências de Hilda em comunicação com o além. Daí surgiu a ideia de uma narrativa em primeira pessoa, invertendo a situação original da gravação”, conta. O filme, realizado pela produtora de Gabriela, homemadefilms, e que tem como diretor de fotografia o português Rui Poças (Tabu), ainda está em busca de patrocínio para ser finalizado. “Os patrocinadores preferem filmes que deem retorno imediato, que não sejam muito profundos, e, bem, Hilda é para poucos”, avalia a cineasta.
CORPO E POESIA
Aura mística, personalidade despudorada e libertária, Hilda nasceu em Jaú, município localizado na região central de São Paulo. Ainda na infância, seu pai foi diagnosticado como esquizofrênico. Em entrevista publicada na França, no ano de 1977, a escritora fala da importância da figura paterna para o seu início literário:
“Quanto a meu pai, eu criei essa aura mágica em torno dele. E acho que isso se devia principalmente à sua beleza, que era o que mais me intrigava quando falavam sobre ele. Uma beleza como aquela em um homem me deixava desconcertada. (...) Acho que o que aconteceu com ele, quero dizer, o fato de ele ter enlouquecido, foi para mim o tiro de largada. Foi a partir de então que comecei a escrever”. Aos 20 anos, Hilda lança seu primeiro livro de poesias, Presságio. Um ano depois, Balada de Alzira, um de seus futuros clássicos, chega às livrarias. Nele, a escritora começa a delinear duas temáticas que se farão presentes em sua obra: a busca de Deus e a morte. Em Da morte. Odes mínimas, de 1980, Hilda escreve, destemida: “Não me procure ali/ Onde os vivos visitam/ Os chamados mortos./ Procura-me/ Dentro das grandes águas/ Nas praças/ Num fogo coração/ Entre cavalos, cães/ Nos arrozais, no arroio/ Ou junto aos pássaros/ Ou espelhada/ Num ouro alguém,/ Subindo de um duro caminho// Pedra, semente, sal/ Passos da vida. Procura-me ali./ Viva”. A estreia na prosa acontece com Fluxo-floema, um dos livros motivadores de discussões acerca do estilo literário adotado por Hilda. Parece que ela pressentia essa recepção desconfiada
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INDICAÇÕES FICÇÃO
ROMANCE
Carpe Diem
Editora Universitária – UFPE
ANDRÉA NUNES A corte infiltrada
RICARDO JAPIASSU Dias secretos
Verossimilhança, uso de de fatos da atualidade, estrutura narrativa comum ao gênero no qual se insere são atributos do romance policial A corte infiltrada. Promotora de justiça, a autora toma partido de elementos comuns à sua área de atuação para contar uma história de crime e corrupção, protagonizada por uma monja novata e um jornalista investigativo.
Reconstrução e descrição de um mundo hoje em ruínas – a cultura tradicional do sertão nordestino –, esta narrativa se vale do cenário e de hábitos do entorno da Pedro do Puxinanã. O autor afirma que escrever este livro foi como “remexer na velha mala de couro da minha bisavó”. Além dos costumes sertanejos, há aqui também o protagonismo do catolicismo.
ENSAIO
ENSAIO
Editora Universitária – UFPE
Editora FAP/UNIFESP
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e distante dos leitores: “(...) eu preciso escrever, eu só sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentro são complicadíssimas, mas são... as coisas de dentro. E aí vem o cornudo e diz: como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada (...) capitão, por favor me deixa usar a murça de arminho com a capa carmesim, me deixa usar a manteleta roxa com alamares, me deixa, me deixa, me deixa escrever com dignidade”, escreve no primeiro capítulo. Na prosa, Fluxo-floema é seguido por Kadosh, Tu não te moves de ti e A obscena Senhora D, esse último trazendo outra temática forte na literatura hisltiana: a sexualidade. Os personagens desse conjunto são todos tragados pelo fluxo de consciência de sua escrita, e participam de um ciclo que envolve maldição e salvação; elementos do sagrado e do profano em constante simetria de
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IMPRESSOS Além de ações como manutenção de acervo e construção de teatro, o Instituto Hilda Hilst desenvolveu uma linha de produtos com referência à autora
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DOCUDRAMA Atriz Luciana Domschke interpreta a escritora, sob direção de Gabriela Greeb, em Contato, Hilda pede contato
linguagem, como Hilda sabia tão bem construir. De volta ao poema de Szymborska, é possível traçar uma afirmativa sem reservas: Hilda Hilst e a poeta polonesa estão ligadas por certo tipo de bruxaria que só a literatura pode proporcionar. “Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida./ Aqui, o desespero, ali a coragem.// (...) Nós também sabemos nos dividir, é verdade./ Mas apenas em corpo e sussurros partidos./ Em corpo e poesia.” Diante de tais versos, não há discussão: Hilda é também habitante das profundezas do oceano; nunca ninguém praticou a autotomia com tanta beleza quanto ela.
MARCO MONDAINI (ORG) Mídia, movimentos sociais e direitos humanos Os artigos reunidos na publicação giram em torno da democratização dos meios de comunicação, da concepção da comunicação como um direito humano e do combate às formas de criminalização e silenciamento dos movimentos sociais pela mídia.
SAMIRA LIMA DA COSTA E ROSILDA MENDES (ORG) Redes sociais territoriais A coletânea lança olhar sobre as relações sociais, organizacionais ou territoriais que hoje passaram a ser pensadas a partir das suas conexões em rede. A abordagem do tema se dá de forma multidisciplinar, trabalhando conceitos que lhe dão sentido, tais como solidariedade, diversidade, participação e justiça.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
A COPA DO MUNDO NA ERA DO RÁDIO Meu pai foi o dono do primeiro rádio em Saboeiro, o sertão onde eu nasci. Um acontecimento histórico, merecia registro na câmara municipal da cidade. Para quê? Mesmo sendo um dos primeiros povoamentos do Ceará, território dos Inhamuns e passagem do Rio Jaguaribe – o maior rio seco do mundo, isso mesmo, um rio que só corre no período das chuvas –, Saboeiro significa bem pouco. Ostenta sem orgulho um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano, e até inventaram um blog para amenizar o esquecimento em que vive: Saboeiro existe. Há dois anos, eu visitei a cidade e posso jurar que existe mesmo. Alguns casarões centenários continuam de pé, mas tive notícia de que nada sobrou de uma casa do Visconde de Icó, no Monte do Carmo, com mais de 100 portas e janelas, e de que também ruiu a Casa do Monte Alverne, com pedestais de mármore e estátuas representando as quatro estações do ano. Os mármores foram trazidos de Carrara, na Itália, ao porto do Recife. A lenda dessa carga preciosa,
atravessando léguas de terra em carros de bois, até chegar ao sertão dos Inhamuns, não sobreviveu. Creio que o rádio do meu pai é um dos responsáveis por esse esquecimento. Tratava-se de um rádio Philips alimentado por bateria de carro, desses que hoje enfeitam bares e apartamentos. Meu pai comprou-o em 1950, cinco anos após o término da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo estabelecia novas fronteiras e as populações abandonavam o campo em busca das cidades. Não foi diferente no Brasil, nem no sertão dos Inhamuns. Na época, nossa geografia ainda era rural, com 80% das pessoas vivendo em sítios e fazendas. Hoje, as mais novas pesquisas apontam para um êxodo alarmante: apenas 15% continuam no campo. Em estados como o Rio de Janeiro, a zona rural nem existe mais. Ninguém se escandalize quando afirmo que o sertão virou periferia de cidade. As vozes do mundo chegavam até nós, ao silêncio habitado pelo canto das juritis, seriemas e patativas. Desde a boca da noite se ligava o rádio
para ouvir cantorias de violeiros, noticiários e novelas. As pessoas sentavam nas mesmas cadeiras de couro e em círculo, não para contar histórias ou relatar acontecimentos, como faziam antes. Caladas, sem compreender direito de onde vinham aquelas vozes estranhas, sem atinar com a mágica que as comprimia, humilhadas pela técnica, elas baixavam a cabeça e escutavam. Em todos os povos, há marcos de ruptura entre o tempo mítico e o tempo da ciência. Meu pai deu um tiro de misericórdia na sociedade arcaica de Saboeiro, com seu rádio histérico e falante, incompreensível para os que ainda usavam a prosódia seiscentista portuguesa. Foi um ingresso a fórceps na pós-modernidade. Homens e mulheres que sempre imaginaram os trovões serem produzidos por São Pedro, percutindo latas no céu, se deparavam com o progresso. Escutamos a transmissão dos jogos da Copa de 1958 no rádio. Nesse tempo, morávamos no Crato. Lembro bem pouco da festa. Com certeza soltaram fogos, devo ter corrido
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JANIO SANTOS
para a rua, os raros proprietários de carros desfilaram pela cidade, o padre agradeceu a Deus a conquista do título, os homens repetiram os lances emocionantes das partidas, durante as conversas noturnas na Praça Siqueira Campos. Mamãe, que jamais assistira a uma partida de futebol, acendia velas para Nossa Senhora Aparecida e rezava, sem ouvir um lance da transmissão. Quando desenvolvi humor e capacidade de pensar, imaginava as brigas dos santos no céu católico, indecisos a que rogos atender. Os italianos levavam vantagem, a Itália era o país com mais santos canonizados e, de quebra, tinha um papa. E os brasileiros, que nem beatos possuíam? A não ser que se valessem do Beato Zé Lourenço ou do Padrinho Cícero de Juazeiro, mesmo excomungado. Em 1962, eu ganhara a Aparecida de louça, presente de uma prima devota, na minha primeira comunhão. Antes de qualquer jogo, mamãe apanhava o terço para rezar e punha a santa a cavalo no rádio, entronizada, esmagando com os pés negros os
Desde a boca da noite se ligava o rádio. As pessoas sentavam em círculos, sem compreender de onde vinham aquelas vozes rivais de campo. Vez por outra a padroeira escapava de cair no chão, quando o pai exaltado dava murros na mesinha do aparelho, por qualquer gol perdido. Heroica, com o currículo de quem foi pescada numa rede e sobreviveu a adversidades bem piores, a padroeira parecia cimentada na madeira do rádio, resistindo ao delírio da torcida. Lamentavelmente, a companheira mais fiel durante as partidas, que nós agarrávamos na vibração dos gols, pulando dentro de casa e saindo para o meio da rua com ela nas mãos, foi removida da tribuna de honra, o cocuruto do rádio Philips. A prima santarrona que me dera o presente, queixou-se à mamãe de que aquilo era um sacrilégio, uma
profanação. Sempre amedrontada com o inferno, a partir desse dia mamãe só permitiu que a Aparecida assistisse aos jogos de longe, silenciosa e indiferente ao clamor fanático. 1970. Já existia televisão no Crato, algumas coloridas. Mesmo assim, ligavam o rádio, exilado num quartinho sem importância. Instalaram a máquina poderosa na sala de visitas, ocupando o lugar que pertencera ao rádio e ao Coração de Jesus. Os dois haviam se tornado decrépitos, frente ao invento miraculoso. Meu pai insistia em ouvir a transmissão do rádio, acostumarase à velocidade das vozes, ao tom vibrante, só acreditava nelas. Corria do quarto para a sala, da sala para o quarto, via e ouvia, ouvia e via. O irmão mais velho não atendeu o desejo do pai: tirar o som da TV, deixar apenas as imagens e escutar o som do rádio. Voto vencido. O pai, nessa época, também perdera o seu poder. E Nossa Senhora Aparecida? Trancada num guarda-roupa de mamãe, em meio aos santos menores, cochilava indiferente ao jogo.
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A formação do artista
Palco
CIRCENSE Uma família que cresce
Em duas décadas de atividade, a Escola Pernambucana de Circo vem contribuindo para a formação de novos profissionais, mas ainda carece de recursos efetivos TEXTO Williams Sant’Anna
circense, historicamente, ocorria sob o colorido das lonas, no cotidiano do armar/ desarmar estruturas e pisar no picadeiro. O destino do artista estava traçado a partir do nascimento – nascia-se no circo para ser artista de circo. “Nascer numa família circense e não conseguir ser artista é, de certa forma, um estigma”, alerta a antropóloga portuguesa Joana Afonso. Quem não tinha habilidade para os números era incorporado em outras atividades. A responsabilidade com o processo formativo não era exclusividade dos pais, dentro do que a doutora em História Social da Cultura pela UNICAMP Ermínia Silva conceituou de circo-família, mas de todos. “Mesmo que perdesse seus pais, (a criança) não era abandonada; ela seria absorvida pela ‘família circense’, pois fazer parte daquele modo de organização pressupunha que crianças, jovens e adultos sempre teriam algo a aprender e a apresentar no espetáculo.” A partir da década de 1960, no Brasil, se passou a observar a presença crescente de artistas contratados, ou seja, que não pertenciam ao circo-família. Era um reflexo de um movimento que já ocorria desde o início do século 20, em várias partes do mundo, e que mudava a estrutura gerencial do circo. Fora da lona, em 1978, a Academia Piolin de Artes Circenses forjou uma pioneira experiência brasileira que propunha o ensino das artes circenses, em São Paulo, funcionando até 1983. Em 1982, através do Instituto Nacional de Artes Cênicas – INACEN, o MEC inaugurou no Rio de Janeiro a Escola Nacional de Circo. E em 1984 surge, no Brasil, a primeira
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instituição oriunda da iniciativa privada, a Picadeiro Circo-escola (1984), seguida da Escola Picolino de Artes do Circo (1985), em Salvador, a primeira no Nordeste. Em 1995, com o Arricirco – Arraial Intercultural de Circo do Recife, fecundado a partir das ações do Centro Educativo de Comunicação Social do Nordeste – Cecosne, foi inaugurada uma nova e intensa fase de relação entre a arte circense e a educação popular no estado, ampliada com o surgimento da Escola Pernambucana de Circo – EPC, no ano seguinte. Quando os artistas e educadores José Clementino (Zezo Oliveira) e Bóris Trindade Júnior (Borica) fundaram o Grande Circo Arraial (razão social da EPC), objetivavam interferir na conquista de direitos e qualidade de vida dos moradores da Comunidade do Brum, no Recife Antigo, a partir da relação entre a educação popular e a arte circense. Mas, segundo Zezo, eles não conseguiam compreender “a totalidade dos problemas e a capacidade de transformação que essa ação poderia propiciar”, não podiam supor que estavam ajudando a forjar o conceito de um processo educativo que utiliza o circo como caminho: o Circo Social. Inicialmente, as atividades foram realizadas na Torre Malakoff, atendendo crianças e adolescentes da comunidade vizinha e da Fundac, a partir de parceria estabelecida com a Fundarpe. Em 1998, a união foi desfeita e as ações passaram a acontecer de forma itinerante durante dois anos. Se a EPC perdeu em estrutura e quantidade de crianças e adolescentes beneficiadas, conseguiu ampliar sua fundamentação pautada nas contribuições dos estudos e experiências sobre a educação popular de Paulo Freire, a expressão da subjetividade e o universo do simbólico de Vygotsky, os processos de aprendizagem de Piaget, a importância da brincadeira na infância de Winicot, o papel da arte e do lúdico na formação humana de Ana Mae Barbosa e Rubem Alves, entre outros. A EPC encontrou a parceria de outros atores sociais e artísticos que trilhavam caminhos semelhantes: o Se Essa Rua Fosse Minha e AfroReggae (do Rio de Janeiro), Acende (de Belo Horizonte) e o Arricirco. Juntos, construíram uma rede de colaboração mútua. Sob a orientação da FASE – Federação de Órgãos para
a Assistência Social e Educacional, através do seu Serviço de Análise e Assessoria a Projetos (SAAP), e com o suporte iniciais para projetos do Cirque du Soleil, com recursos da Jeunesse du Monde, Oxfam Quebec e Pueblito, estava estruturada a Rede Circo do Mundo – Brasil, e consolidada a matriz pedagógica, social e cultural do Circo Social, que pode ser compreendida sob a definição construída de forma coletiva por seus integrantes “como a construção por meio da arte circense de um diálogo pedagógico no contexto da educação popular e uma perspectiva de promoção da cidadania e de transformação social”. O conceito de Circo Social é processual e não pode ser visto como um método, “mas como uma proposta políticopedagógica aberta, baseada numa perspectiva dialógica da educação no entendimento da complexidade social”, acrescenta Borica. A Rede Circo do Mundo – Brasil se constitui em uma das
O Circo Social é uma proposta político-pedagógica aberta, que não pode ser entendida como um método maiores referências de coletivo da arte circense no país, composta por mais de 20 instituições que atuam em quatro regiões brasileiras. Após funcionar durante quatro anos na sede da União dos Moradores da Vila do Buriti (zona Norte do Recife), a EPC inaugura sua sede própria em 2008, no Bairro da Macaxeira. Na sua casa, pode ampliar suas atividades atendendo, prioritariamente, a comunidade do seu entorno. As ações da EPC envolvem atividades de formação, pesquisa, difusão e promoção, pautadas em quatro projetos basilares: inclusão artístico-pedagógica de crianças e adolescentes; formação artístico-pedagógica de adolescentes e jovens; fortalecimento organizacional/ institucional; e o núcleo de pesquisas, estudos e registros sobre a Pedagogia do Circo Social. A EPC tem contribuído para discutir e forjar processos formativos para o segmento, bem como participado
intensamente da elaboração de políticas públicas para o circo no Brasil. Segundo a mestra em educação, Fátima Pontes, atual coordenadora executiva da EPC, seu objetivo principal “não é inserir no mercado de trabalho, a ideia é que os valores trabalhados no processo de ensino-aprendizagem construam maiores possibilidades de conhecimento, e isso consequentemente colabora na inserção no meio consumidor, seja no mercado artístico ou não”. Constituída por alunos e educadores da EPC, a Trupe Circus – hoje com 25 integrantes – desenvolve uma experiência concreta de experimentos cênicos com a arte circense, sem perder o conceito da pedagogia do Circo Social, obtendo excelentes resultados artísticos e técnicos, difundindo e contribuindo para a manutenção das demais ações da Escola. Através dela, a EPC tem participado de diversos festivais locais, nacionais e internacionais, contribuindo com ações de outras entidades sociais, tornando-se uma referência no mercado de trabalho artístico e educacional circense. Neste mês, a Trupe Circus estreia seu mais novo trabalho, em comemoração aos 18 anos da EPC: Esse Circo da praia – uma aventura inusitada. Como centro de formação em artes circenses, a EPC se prepara para iniciar a sétima turma, além de promover um curso de formação de educadores dentro da pedagogia do Circo Social. Mas nem tudo é colorido e brilha no picadeiro da Escola Pernambucana de Circo. A instituição não recebe nenhum recurso sistemático – seja público ou privado. Ela conseguiu mover-se com êxito da forma inicial de parceria entre os educadores à participação em editais locais e nacionais, mas busca um formato de financiamento de suas ações e manutenção estrutural que tenha nos mecanismos de fomentos públicos apenas uma das possibilidades de suporte financeiro. Essa autonomia parece estar cada vez mais perto da EPC, haja vista que correr riscos, equilibrarse no improvável, superar limites, agir em círculo e, ao final, obter aplausos são ações inerentes à função do artista circense, porque, como disse Cláudio Barría, representante do Circo Social: o “CS ainda sonha com um mundo diferente, integrado e solidário, que se aceite como o que é: um lugar de todos, redondo, itinerante e a céu aberto”.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
ALFARRÁBIOS
Muito boa a revista do Ministério
da Educação Cultura. Nesse número dedicado ao Nordeste (Ano 8, N. 30, Jul./Dez. 1978) que peguei ao acaso só tinha gente muito boa, como Gilberto Freyre, Leonardo Dantas Silva, Rachel de Queiroz, Mauro Mota, o padre Jaime Diniz, e eu lá metido no meio: que tal? O artigo não é grande coisa, me perco, e já faço a ressalva na primeira linha: “Do que me lembro, do que ouvi dizer”. Tem da mulher que virou cobra, o corno ganancioso, o cego namorador, a eminentes escritores e artistas. Na primeira página do artigo, As artes no Nordeste, escrevi a mão: “Atenção: as ilustrações foram botadas arbitrariamente pela revista”. Botaram: Genaro, Chico da Silva, Reynaldo Fonseca, Wellington Virgolino, gravura de Samico, João Câmara, mural de Brennand, duas pinturas de Aldemir Martins, uma de Jenner Augusto e detalhe de escultura de Mário Cravo. Está certo mas eu queria mostrar artistas menos conhecidos. No artigo cito, me detendo em alguns, Armando Lacerda, Raul Córdula, Antônio Dias, Antônio Alves Dias, Gina, Mestre Noza,
Aldemir Martins, Antônio Bandeira, Chico da Silva, Carmélio Cruz (que conheci em São Paulo, casado com Rosa, que foi do Atelier Coletivo), Lívio Xavier e seu design popular, pedindo não confundir com o grande jornalista Lívio Xavier, que escrevia n’O Estado de S. Paulo, Ana das Carrancas que conheci em Petrolina, cujo marido cego Zé Vicente, José Vicente de Barros, faleceu hoje enquanto escrevo estas linhas (30/maio/14), em homenagem a quem sua mulher furava os olhos de suas figuras de barro, Irani, Iaperi e Iaponi Araújo, Gilvan Samico, Flávio Tavares, José Altino, Guita Charifker, Luciano Pinheiro, Raimundo Oliveira, que teve um papel importantíssimo na minha vida, para casa de quem fugi, para Feira de Santana, ao deixar de estudar, anos 50, tem no meu primeiro livrinho Viagem de um jovem pintor à Bahia de 1965, Frans Post, Nhô Caboclo, ressaltando: “Também não me dedico, prioritariamente, em ser um informado sobre o que acontece nas artes no Nordeste. A revista Cultura, através do meu depoimento — assim penso eu —, quis aquilatar como
anda a informação sobre o assunto na região: o que um artista ativo no Recife sabe do que se passa em sua volta”. Continuemos: Carybé, Hansen, Rubem Valentim, Agnaldo, Mirabeau Sampaio, Lênio Braga, Brennand, Lula, Dorian Grey Caldas, Newton Navarro. Lamento a perda da coleção de santos de Abelardo Rodrigues para a Bahia, cito “o entalhador Pacheco, entalhando portas nas fazendas do Rio Grande do Sul” e “o entalhador Romildo Ferreira de Albuquerque, natural de Olinda, cujo breve currículo encontro em São Paulo: ‘Escultor, autodidata, participou do clube de Adão Pinheiro’ ”. Ainda Humberto Magno, Wilton Souza que cita Sante Scaldaferri, Roberto Franco, Calazans Neto, Emanuel Araújo, José Maria, Juarez Paraíso, Fernando Coelho, Tati Moreno, Liêdo Maranhão, Sônia Rangel, “Luiz Jasmin, que a princípio confundia com o pernambucano Luiz Jardim, Antoneto, Vanda do Nada” e perguntava: “Será que existem?” Um dia fui pintar com Sandro Maciel, a essa altura meu ajudante, e Álvaro Caldas que nos levou em seu carro. Meio-dia, o sol tinindo; um calor
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danado, nada ao alcance da vista que nos pudesse acudir, todo mundo de garganta seca, não havíamos trazido nada, nem uma garrafa de aguardente como sempre fazia quando saía com Guita Charifker e Eduardo Araújo. Estávamos do lado da igreja de Vila Velha, Itamaracá: vejo e não acredito, acho que Sandro e Alvinho também não, um afro-brasileiro (é a única palavra que me ocorre que não seja preconceituosa, por enquanto, acho) jovem, alto, esguio, elegantíssimo, vestido de branco e com luvas brancas, desceu do céu e pousou ao meu lado que não o vi nem ouvi chegar, só podia ter descido das nuvens, sorriso de belos dentes branquíssimos, me estendia uma bandeja com copos com gelo e uma garrafa de ótimo escocês. Nos entreolhamos sem saber que tipo de brincadeira era aquela. “Seu Luiz mandou”, disse o rapaz. Que Luiz, que não conhecíamos nenhum Luiz em Itamaracá? E antes que a visão esvanecesse, não quis saber de mais nada, nem quanto custava, batemos mão à garrafa enquanto Luiz Jasmin surgia aproximando-se de entre as sombras da casa dele ali perto, a poucos
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Eu só não acredito em Deus porque não presto, mas na minha vida muitas vezes aconteceram coisas assim metro da gente. Eu só não acredito em Deus porque não presto, mas na minha vida muitas vezes aconteceram coisas assim. Depois nos encontramos no Shopping Tacaruna, voltei em casa dele, mas ele ficou sempre para mim como um sonho bom como quando o conheci. No artigo da Cultura vejo que inda cito Ramiro Bernabó, filho de Carybé, Guel Silveira, filho de Jenner Augusto, José de Dome, João Alves e Rafael, o pessoal do Atelier Coletivo: Ionaldo de Andrade Cavalcanti, Ivan Carneiro, Marius Lauritzen Bern, Corbiniano, Celina Lima Verde, Bernardo Dimenstein, Adão Pinheiro, Anchises Azevedo, Nelbe Rios, Abelardo da Hora e Maria de Jesus, Helio Feijó, e mais Aloísio Magalhães,
DANUZA
Retrato de Danuza Leão, bico de pena de Luiz Jasmin, 1969
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Ladjane Bandeira, Tilde Canti, outros mais antigos, Augusto Rodrigues, Lauria, Luiz Soares, Carlos Hollanda, Percy Lau, Elezier Xavier, Nestor Silva, Álvaro Amorim, filho de Carlos Amorim, aí vem Darel, o caricaturista Péricles, Vicente do Rego Monteiro, Mirella Andreotti, Silvia Pontual, Miguel dos Santos, Delano, Maria Carmen, Fernando Guerra, Tiago Amorim, Emanuel Bernardes, José Tavares, Xixtiano, Roberto Amorim, Montez, Jorge Tavares, José Tavares, Ismael Caldas, Roberto Lúcio, Helenos, Sérgio Lemos, Marcos Cordeiro, Jairo Arcoverde, Conceição Cahu, Fernando Lopes, Plínio Palhano. Terminava dizendo: “Os outros que me perdoem. Ou façam como eu: escrevam”. Faz 36 anos. Hoje o espaço não caberia os nomes dos artistas ativos, no Recife, embora se fale do fim da arte, das dificuldades de vender quadro. Uma ou outra exceção, pintor que dizem que ganha muito dinheiro com sua pintura, como Romero Britto: eu bato palmas, avante companheiro, está ganhando com o que é seu, chega de pintor choramingas.
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ACERVO Coleção que remonta às brincadeiras de infância
Arquiteto Carlos Augusto Lira apresenta parte do seu acervo de arte popular em exposição composta de objetos religiosos, utilitários e eróticos TEXTO Mariana Oliveira
Visuais Numa tarde de sexta-feira, no início de junho, o arquiteto Carlos Augusto Lira abriu seu galpão, no Bairro do Cordeiro, para apresentar à Continente parte de sua coleção, garimpada há mais de 40 anos, que está sendo apresentada ao público, desde o último dia 18, na exposição A lírica de Carlos Augusto Lira, em cartaz até 27 de julho, no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe). Ao entrarmos, ele adiantou-se: “Achei que o espaço comportaria mais peças, mas me enganei. Ainda tenho muita coisa na minha casa e no meu escritório”. Sua satisfação em exibir parte de sua coleção se anuncia no primeiro passo dentro do galpão: “Está vendo essas sereias aqui? Vão ser levadas lá para o Museu do Estado de Pernambuco”. Logo, iniciamos um espécie de tour pelos corredores, num momento de apresentação da coleção. Há de tudo um pouco: uma área dedicada a peças utilitárias, outra, a brinquedos populares, artigos indígenas. Há ainda objetos reunidos em função de sua origem: Alagoas, Maranhão, Minas Gerais,
África. A cada peça, uma história para contar, uma lembrança do momento da aquisição, das características e da vida do artista em questão. Ele não esconde a paixão e a ligação sentimental que tem com esse universo. O espaço ainda está em fase de estruturação, pois só começou a receber o acervo em novembro do ano passado. Antes disso, as peças estavam armazenadas em contêiners. “Como não tinha mais espaço físico para guardá-las, tive que fazer uso deles. Mas essa nunca foi uma solução ideal. Eu mesmo me esquecia daquilo que estava guardado há tanto tempo, sem falar que algumas obras terminaram sendo danificadas. Tive que restaurá-las”, explica o colecionador, justificando a necessidade de encontrar um lugar para sua coleção. Durante nossa conversa, seu telefone tocou várias vezes. Algumas ligações eram de “olheiros” conhecidos, entrando em contato para lhe oferecer uma peça. “Muita gente já me conhece e sabe daquilo
que posso gostar. No universo da arte popular, já se tornou recorrente afirmar ‘Só quem vai gostar disso é Carlos Augusto Lira’”, explica o arquiteto, cuja última peça adquirida foi uma escultura do pernambucano João do Gado, em abril, através da ligação de um desses conhecidos. A obra está na mostra. Sua vasta coleção só passou a ser catalogada em 2011 e segue em processo, agora, com boa parte alocada no galpão. Essa organização é fundamental para dar segmento aos projetos do arquiteto, que, além da exposição e do catálogo bilíngue (português e inglês), concebido pela designer Gisela Abad, com textos curatoriais da museóloga e
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EMILIANO DANTAS
antropóloga Ciema Melo –, já tem um livro aprovado pela Lei Rouanet (em fase de capitação) sobre o seu acervo de arte popular brasileira. Carlos Augusto também pretende viabilizar a criação de um instituto que possa expor permanentemente a coleção.
REFERÊNCIAS
Sua aproximação com a arte popular se deu ainda cedo. Na infância, não havia os brinquedos tecnológicos de hoje, e ele, que era um temporão, terminava entrando nas brincadeiras de suas irmãs mais velhas, com os utensílios de barro. Anos depois, já arquiteto, um de seus clientes lhe presenteou com um jogo de feijoada utilitário, produzido por artesãos de
Das cerca de cinco mil obras que ainda estão sendo catalogadas, pouco mais de duas mil seguiram para mostra no Mepe Tracunhaém. Encantado, decidiu rumar para o município a fim de comprar mais artigos. Começava, assim, seu interesse pela área, ampliado com a leitura do clássico Reinado da Lua – escultores populares do Nordeste, de Sílvia Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte; e com o início do trabalho junto a Janete
Costa, em 1966, arquiteta que se diferenciou ao valorizar a arte popular nas ambientações que produzia. Nesse período, envolveu-se num projeto em Teresina (PI) e passou um tempo por lá, tendo contato direto com artistas populares piauienses – a exemplo de Desinho e Expedito – e iniciando sua coleção de exvotos, no Cruzeiro da Avenida Frei Serafim. Carlos Augusto conta que o local é um importante ponto de pagamento de promessas da cidade e que lá eram deixados diversos ex-votos: “Os primeiros de minha coleção, eu peguei ali”, confessa. Depois, rumou para Minas Gerais, onde também encontrou exemplares ímpares para sua coleção. Nessas
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IMAGENS: PAULA VILLOCQ /DIVULGAÇÃO
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andanças, fez amizades e, com elas, surgiram os “garimpeiros” que hoje lhe telefonam a qualquer hora para apresentar e indicar aquisições. O arquiteto tem um olhar apurado e criterioso para diferenciar o artesanato da mera produção serial, padronizada, escolhendo peças que possuem cunho artístico. Essa paixão ele leva para os seus projetos arquitetônicos – assim como já fez Janete Costa –, inserindo elementos da arte popular em harmonia com peças modernas e contemporâneas. “Sei que muitos colegas de profissão não gostam e não utilizam elementos da cultura popular em seus trabalhos. Acho que uma peça de arte popular pode ser muito mais sofisticada e elegante que uma de arte contemporânea”, compara. Porém, ele não nega que o preconceito com a área vem diminuindo. Quando iniciou a formação do seu acervo, a situação desses artistas era bem mais difícil, a maioria vivia precariamente. Com o passar dos anos, mais pessoas começaram a valorizar essa produção, fazendo com que os artistas
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lograssem melhor qualidade de vida. “Alguns deles são considerados mestres, patrimônios vivos, e recebem uma ajuda do governo. Isso é importante”, destaca. O sucesso de eventos como a Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte) – que este ano acontece entre 2 e 12 de julho, e tem como tema o mamulengo – também ajuda a destacar e valorizar os trabalhos de artistas populares. Há oito anos, Carlos Augusto Lira é curador do Salão da Arte Popular que ocorre dentro da Feira, além de cuidar do projeto cenográfico e do leiaute do evento, junto com a equipe de profissionais de seu escritório. Segundo ele, apesar de todos esses avanços, muitos mestres precisam dedicar-se a
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um produção mais comercial que lhes garanta o sustento, pois a venda das peças artísticas nem sempre é fácil.
A MOSTRA
A exposição A lírica de Carlos Augusto Lira é uma oportunidade de conhecer uma substancial coleção de arte popular do Brasil. “Usualmente, empresto peças minhas para exposições, mas essa é a primeira vez que mostro parte do conjunto de minhas obras”, diz o colecionador, que foi o próprio curador da mostra, composta por pouco mais de duas mil obras de arte popular e objetos utilitários. O foco são peças feitas por artistas de todos os estados do Nordeste, com ênfase na produção cultural pernambucana.
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1 CAVALO-MARINHO Peça de João de Alagoas, cuja marca são esculturas em cerâmica 2-3-6 VERTICAIS Zé do Chalé, de Sergipe, Manoel da Marinheira, de Juazeiro do Norte, e Zé Pituca, da Paraíba, são famosos pelos totens
4 CARUARU O colecionador tem peças de Zé Caboclo (A morte), Zé Rodrigues (A noiva) e Manoel Eudócio (Diabo e o bêbado) 5 JABOATÃO Carlos Augusto está atento à produção urbana, como a de Mestre Cunha
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Os jardins do Mepe estão tomados por esculturas de grandes proporções, representando bichos e figuras antropomorfas, e bancos talhados em madeira com iluminação especial. A área aberta abriga também as ações de reciclagem e grafitagem. No andar térreo do anexo do museu foi montado um cruzeiro (do século 19), ladeado por 1.500 ex-votos, uma coleção de imagens de São Sebastião e outra de oratórios. Há ainda um espaço dedicado à arte sacra popular do Piauí e de Pernambuco. Num contraponto a esse espaço mais religioso, o arquiteto ambientou peças de arte popular erótica. “Fiquei na dúvida, se deveria expor aquelas mais pesadas. Mas todo mundo me disse que eu expusesse”, afirma.
“Uma peça de arte popular pode ser muito mais sofisticada e elegante que uma de arte contemporânea” Calos Augusto Lira No andar de cima, o trajeto é dividido por estados, do Maranhão à Bahia. Há peças de Véio (Sergipe), Antônio de Dedé e Fernando da Ilha do Ferro (Alagoas), Cornélio (Piauí), Tota (Paraíba), Manoel Graciano (Ceará), Aurelino e Louco (Bahia). A área dedicada a Pernambuco reúne nomes clássicos, como os
de Vitalino, Nhô Cabloco, Galdino, Antônia Leão, Severina Batista, Benedito, Bajado, Nuca, Família Vieira, Ana das Carrancas, Manuel Eudócio, além dos mestres atuais, como Cunha, José Abias, Roberto Vital, José Bezerra e Luis Benício. Nas paredes do Mepe, foram dispostas frases do arquiteto comentando sua coleção. Numa delas, ele se pergunta sobre seu maior prazer. E responde: “Mostrar. Dividir com os outros essa beleza que eu acumulei e constatar que outras pessoas também admiram os homens e mulheres que estão por detrás de cada uma dessas peças. Esses objetos não são coisas: são prolongamentos dos artífices, pelo menos eu penso assim”.
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ACERVO JOSÉ PAULO/REPRODUÇÃO
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PESQUISA A geração 1980 esquadrinhada
Livro Cartografia das artes plásticas no Recife dos anos 1980 traça panorama do cenário do período, usando como ferramenta o depoimento dos próprios agentes TEXTO Pethrus Tibúrcio
Em uma mesma cidade, cabem
inúmeros mapas. Mais do que pelos bairros e ruas institucionalizados, é através de nossas relações afetivas com os lugares que desenhamos nossa visão zenital da cidade na qual vivemos. É isso que a historiadora Joana D’Arc de Sousa Lima faz em Cartografia das artes plásticas no Recife dos anos 1980: deslocamentos póeticos e experimentais (Editora Universitária – da Universidade Federal de Pernambuco). “É uma cartografia de memória para nós que somos estrangeiros na
nossa própria cidade”, diz a autora. Trabalhar com a ideia de cartografia foi uma decisão metodológica que desenvolveu, principalmente a partir das 44 entrevistas (todo o acervo de foto, vídeo e áudio que recolheu será doado à UFPE) que fez com artistas representativos do período. No livro, Joana descobre os lugares de sociabilidade, os bares, os espaços de formação, exibição e produção artística. Vinda de São Paulo, ela começa o trabalho como pesquisadora no início dos anos 1990, sob a influência
do crítico de arte Frederico Fonseca Morais, quando começa a estudar Artes Plásticas. Sua inquietação com o objeto tratado se dá na chegada ao Recife, no início dos anos 2000, ao ser apresentada aos artistas contemporâneos da cidade, a exemplo de Rinaldo Silva e Cavani Rosas. Em conversas informais, eles rememoravam a juventude sem esconder a nostalgia. As críticas ao cenário atual – que, para alguns, cria uma camisa de força chamada “arte contemporânea” – apareciam constantemente em comparações a outros momentos, quando a arte era menos institucionalizada e os salões eram referência de legitimação. Para Joana, “o livro é uma forma de pensar os anos 2000 a partir do passado”. Há, ainda, uma clara tentativa de negar uma historiografia anterior sobre a época, ou, pelo menos, de romper com um rótulo que afirma a década de 1980 como os anos do “retorno à pintura”, sem dar conta de toda a produção que era feita. Como conta um relato da doutora em História da Arte Glória Ferreira,
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FOTO JOMARD M. DE BRITTO, ACERVO DANIEL SANTIAGO/REPRODUÇÃO
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ARTISTAS
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PERFORMANCE
Integrantes dos coletivos Quarta Zona de Arte, Carasparanambuco e Carga e Descarga, no Bairro do Recife O Brasil é meu abismo, de Daniel Santiago, 1982
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que integra o livro, essa “nova pintura” esteve relacionada a uma das principais características da época, que é justamente o seu caráter experimental. A tradição pictórica incorporava elementos conceituais, usando recorrentemente a linguagem dos quadrinhos e do cinema, citando a História da Arte, a História e acontecimentos políticos. Além disso, artistas como o hoje reverenciado Paulo Bruscky chamaram a atenção do público e da crítica com intervenções em espaços abertos. Na época, as mostras deixaram de ser apenas um mecanismo de exibição, estritamente, para servir de espaço de apresentação, trazendo ao público ações como performances e happenings.
PROTAGONISMOS
Percebendo a ligação entre arte e política como uma tradição em Pernambuco e reconhecendo o contexto histórico de redemocratização do recorte da pesquisa, esses temas são recorrentes nas entrevistas e nas fotografias reunidas no livro. Uma das
O trabalho da pesquisadora Joana D’Arc destaca a criação de grupos, ateliês coletivos e ações públicas obras de destaque nesse contexto é agora tema do pós-doutorado de Joana D’arc, a série de arte-postal de Raúl Córdula intitulada O país da saudade, na qual ele enviava folhas de papel ofício pelo correio e esperava intervenções, dentro do tema que o título sugere, a serem devolvidas. Com o sentimento de urgência diminuído em relação às décadas passadas, a política começa a se apresentar mais como uma incorporação das obras e se afastar de estratégias mais panfletárias. Três grupos são protagonizados e ganham destaque no livro: Carasparanambuco, Formiga Sabe que Roça Come e Quarta Zona de Arte. Eles são exemplos da criação de uma autonomia e independência
profissional que possibilitavam a inserção no campo, e permitiam o caráter inovador e experimental que marcava os grupos. O primeiro foi fundado em 1986, por oito jovens artistas em início de carreira, a fim de se inserir no cenário das artes plásticas e fundar eventos relacionados ao assunto na cidade. O livro traz entrevistas com alguns dos integrantes, como Rinaldo Silva, Marcelo Silveira e Maurício Silva, este último fundador e apontado como líder do grupo. O Formiga Sabe que Roça Come nega a categoria de “grupo”, uma vez que os integrantes se reuniram para a elaboração de um evento itinerante (em locais não convencionais, com a proposta de difundir a arte) e que previa várias exposições. Diferentemente do Carasparanambuco – que buscava um reconhecimento em lugares consolidados que garantissem o profissionalismo –, o Formiga buscava locais não institucionalizados. O Quarta Zona, ateliê coletivo e espaço cultural que ficava situado na Avenida Marquês de Olinda, tinha uma forte atitude política, fundando brigadas e discutindo Teoria da Arte. Quando perguntada sobre as possíveis similitudes entre os coletivos da época, Joana D’Arc afirma: “O ponto em comum é que eram todos jovens, no Nordeste do Brasil – o que é importante –, que desejavam ser artistas legitimados e legitimadores. Eles produziram sua própria identidade e a levaram diretamente para a imprensa. Não havia essa mediação de hoje, de produção, assessoria de imprensa etc.”. Embora esses agrupamentos ganhem destaque, o panorama é maior, desvendando a repercussão dos artistas locais nesse cenário, a relação com a imprensa e com a crítica, as influências de grandes nomes na produção recifense, e também o contrário. O olhar crítico, mais do que um simples relato, torna Cartografia das artes plásticas no Recife dos anos 1980: deslocamentos póeticos e experimentais um livro importante, não só como um resgate histórico, mas como fundamental aparato teórico para uma análise da produção, e seus lugares de inserção, realizada hoje.
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CON TI NEN TE
Criaturas Frida Kahlo
por Cibele Santos
Nem parece que foi há 60 anos que morreu a pintora mexicana, tal a sua presença no imaginário mundial, sobretudo como ícone pop. Parte da fama de Frida se deve ao caráter combativo de sua obra autobiográfica e de lances sensacionais de sua vida, como o casamento com Rivera e o affair com Trotsky. Ela queria tanto ser associada aos insurgentes, que mudou a data do seu nascimento de 1907 para 1910, ano da Revolução Mexicana. CONTINENTE JULHO 2014 | 88
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Da sua estante para o toque na sua tela
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