# 164
Da sua estante para o toque na sua tela
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#164 ano XIII • ago/14 • R$ 11,00
CONTINENTE AGO14
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E MAIS SILVIANO SANTIAGO MALIKA FAVRE JOÃO DONATO DEREK JARMAN OCTAVIO PAZ
OPI NI
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A DISPUTA PELA AUDIÊNCIA ENTRE AS MÍDIAS TRADICIONAIS E AS REDES SOCIAIS 31/07/2014 15:05:56
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NELSON PROVAZI
A G OS TO 2 0 1 4
aos leitores O leitor pode até não ter a percepção clara de que os veículos de comunicação criam espaços para abrigar as mais variadas tipologias jornalísticas, que são divididas em dois grandes gêneros: o informativo e o opinativo. Isso porque quando lemos um jornal, uma revista, ouvimos um programa de rádio, assisitimos a um telejornal ou acessamos um site de notícias atendemos aos nossos interesses imediatos, sem prestar atenção nesse trabalho de bastidor. Ainda assim, apegamo-nos a títulos, espaços e autores: preferimos o jornal A ao B, acompanhamos a publicação da coluna tal, gostamos do texto daquele jornalista, e por aí vai. Durante décadas, os veículos de comunicação hoje classificados como “tradicionais” foram hegemônicos na formação da “opinião pública”, em que todos se informavam e formavam conceitos a partir desses veículos. Nos últimos anos, esse poder foi se diluindo e cedendo lugar aos ambientes criados na internet. Foram blogs, sites, portais e, mais recente e avassaladoramente, as redes sociais que questionaram esse lugar de fala da mídia tradicional. E isso não apenas no que diz respeito aos atores (por exemplo, jornalistas x cidadãos comuns), mas também à formatação do conteúdo e à linguagem.
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É sobre essa mudança em curso, fascinante e temerária para muitos, à qual nos atemos na reportagem especial deste mês, sob uma angulação específica: a emissão de opinião. Nossa suposição é a de que o campo opinativo tem sido bastante questionado e transformado neste momento. Enquanto a maioria dos veículos tradicionais se mantém retraída em relação à opinião (as TVs) ou aferrada aos profissionais que há anos são os “donos” da opinião (a maioria dos jornais e revistas), a internet apresenta-se mais volátil e dinâmica, em que todos, a princípio, são convidados a manifestar seu ponto de vista sobre qualquer assunto que lhes aprazer. O problema parece residir – ainda – na credibilidade desse conteúdo. A opinião que se propaga nas redes sociais é ética, ponderada, respeita os direitos humanos, tem qualidade conceitual? Como a migração de leitores de um campo ao outro incomoda aqueles que costumavam ser voz de autoridade, são eles que têm manifestado com mais veemência a desconfiança. De qualquer modo, e ponderando que a mídia tradicional está sob teto de vidro, esta é uma situação sobre a qual vale a pena a gente pensar, sem os partidarismos e autoritarismos a que tanto temos nos submetido, muitas vezes sem nos darmos conta. A hora é de crítica, e isso é muito bom.
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sumário Portfólio
Malika Favre 4
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Silviano Santiago Escritor fala sobre o livro Mil rosas roubadas, em que lembra amizade com Ezequiel Neves
Coletivo além Grupo realiza série de vivências-ensaios nas quais busca romper preconceitos
Balaio
32
Perfil
Cardápio
Rozenbac Com participações especiais, disco revela o lado compositor do jornalista André Rosemberg
Claquete
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Matéria Corrida
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Palco
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Entremez
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Criaturas
Headbanging Estudo aponta que “batecabeça”, típico do heavy metal, faz mal à saúde
João Donato Oitenta anos do compositor são comemorados com lançamento de material inédito
Sonoras
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Conexão
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50
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Ilustradora aposta em desenhos de poucas cores e linhas que, mesmo mínimos nessas escolhas, não se tornam sóbrios, mas eloquentes narrativas
12
Derek Jarman Diretor britânico, precursor da estética queer, é lembrado em mostra no Recife
José Cláudio Maria Carmen
Dança Décima primeira edição de encontro nacional aposta em programação com vários estilos da arte Ronaldo Correia de Brito Conversa com o artista que vai morrer
Julio Cortázar Por Andrés Casciani
Mel Antes lembrado apenas como adoçante e medicamento, ingrediente também pode ser usado em pratos sofisticados
Tradição Ervas
O uso de plantas para cura física e metafísica é prática transmitida em todo o Brasil, com adeptos entre leigos, fitoterapeutas e religiosos
42 CAPA ILUSTRAÇÃO Nelson Provazi
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Capa
Viagem
Os avanços tecnológicos criaram ambientes nos quais todos são instigados a oferecer pontos de vista, desbancando a hegemonia opinativa da grande mídia
Mesmo 25 anos depois da Queda do Muro, a capital da Eslováquia começa a ser descoberta pelos turistas, atraídos pela presença de resquícios do socialismo
Visuais
Leitura
Artista ítalo-brasileiro, apontado como aquele que trouxe o Impressionismo para o Brasil, terá mostra de pinturas e objetos no Instituto Ricardo Brennand, no Recife
A propósito do ano de seu centenário, poeta e ensaísta mexicano tem parte importante de sua obra relançada no Brasil, a exemplo de O arco e a lira
Opinião
20
Eliseu Visconti
68
Bratislava
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Ago’ 14
Octavio Paz
80
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cartas MAURÍCIO PLANEL
áreas do cérebro são acionadas quando criamos, os artistas mostram como é único e diverso o ato de criar, assim como são os seres humanos. Parabéns, Luciana Veras! LEILA LIMA RECIFE–PE
Processos criativos II A Continente de julho estava deslumbrante, linda demais. Parabéns! O trabalho gráfico nos apresentou o conteúdo de forma primorosa – o inconsciente, o surreal e todas essas articulações da nossa misteriosa mente. O ilustrador Maurício Planel arrasou! VIRGÍNIA DE MEDEIROS SALVADOR–BA
Processos criativos I A vontade que dá, ao terminar o mergulho na reportagem O ato de criar, é de sentar com a repórter que a produziu e ouvir o próprio depoimento dela sobre como construiu tão brilhante conteúdo. Parabéns pela estrutura da matéria, que contempla variados
enfoques (ciência, cérebro, genialidade), pela seleção dos entrevistados, pelas inúmeras dicas de obras para expandir o conhecimento dos interessados, e, principalmente, pelo rico painel de processos criativos extraídos dessas pessoas. Enquanto as pesquisas científicas comprovam que
Processos criativos III O exemplar da revista Continente de julho é excelente: texto, imagens, design, editoria. Parabéns a todos, pois esta é uma das melhores publicações que eu vi nos últimos tempos. HUSSEIN RIMI
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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SÃO PAULO–SP
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colaboradores
Eduardo Jardim
Jarmeson de Lima
Renato Athias
Roberta Guimarães
Escritor, doutor em Filosofia e autor do livro A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz
Jornalista especializado em Jornalismo Cultural, integrante do Coquetel Molotov
Doutor em Antropologia, coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade
Fotógrafa, autora, entre outros, do livro O sagrado, a pessoa e o orixá
E MAIS Andrés Casciani, caricaturista e ilustrador argentino, atua como professor na Universidad Nacional de Cuyo. Christianne Galdino, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural. Clarissa Macau, jornalista. Eduardo Cesar Maia, jornalista, mestre e doutor em Teoria da Literatura. Fábio Andrade, professor de Estudos Literários da UFPE e escritor. Fábio Lucas, jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio. Marcelo Robalinho, jornalista e doutorando em Comunicação em Saúde. Márcio Bastos, jornalista. Marina Suassuna, jornalista. Nelson Provazi, ilustrador, colaborador de periódicos nacionais e internacionais. Schneider Carpeggiani, jornalista, doutor em Teoria da Literatura e editor do jornal Pernambuco. Wander Emediato de Souza, doutor em Ciências da Linguagem, pós-doutor pela Universidade de Lyon II e professor da UFMG. Pablo Bernasconi, ilustrador argentino, mantém uma coluna no jornal La Nación.
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SILVIANO SANTIAGO
“Literatura, para mim, é ruptura” Escritor mineiro fala sobre seu mais novo romance, Mil rosas roubadas, no qual rememora uma amizade marcante, além de comentar sua produção ficcional TEXTO Schneider Carpeggiani
CON TI NEN TE
Entrevista
O que fazer quando se perde o
biógrafo, a única pessoa capaz de registrar suas perdas e ganhos, sucessos e arrependimentos, enfim, sua trajetória? O que se perde quando se perde o biógrafo? São perguntas que o crítico literário e escritor mineiro Silviano Santiago se faz (e nos faz) ao longo de Mil rosas roubadas, biografia travestida de romance narrando a vida do jornalista, letrista e produtor do Barão Vermelho Ezequiel Neves (1935 - 2010), o Zeca. Amigos desde a adolescência, Silviano acreditava que Ezequiel seria a única pessoa capaz de escrever sua biografia, a ponto de tê-lo “preparado” para o projeto ao longo das décadas. Com a sua morte, o autor lançou mão da escrita para lidar com o luto e acabou realizando uma das narrativas mais impactantes e originais da recente produção literária brasileira. O título Mil rosas roubadas faz referência ao sucesso Exagerado, parceria de Zeca com Cazuza. Nesta entrevista para a Continente, Silviano problematiza sobre o luto, sobre a escrita de ficção como teoria literária e faz um balanço da sua premiada obra ficcional.
CONTINENTE Mil rosas roubadas é memória, ficção, romance à clef e também um ensaio sobre a perda, como fez, por exemplo, Roland Barthes em Diário de luto. Quando você decidiu colocar na capa a classificação “romance”, a palavra, no lugar de aprisionar a obra num gênero, me pareceu abrir ainda mais os significados do livro, se pensarmos que um leitor nunca deve acreditar no que diz um escritor; afinal, escrever é, a princípio, ficcionalizar. Para começar, defina a necessidade de colocar a palavra “romance” na capa? SILVIANO SANTIAGO Biografia é em si um gênero literário. Ganhou direito de cidadania no século 20, haja vista o belo ensaio de Virginia Woolf, A arte da biografia. Também a autobiografia é um gênero em si, descendente do diário íntimo. Ambas ganham mais sentido pela importância da pessoa real do que pela densidade atingida pela escrita. Já o romance é gênero tradicional e matreiro. Papa tudo. Gênero fora da lei, como dizem os teóricos anglo-saxões. Como o conhecemos, existe pelo menos desde Daniel Defoe. Passa por Gustave Flaubert, Machado de Assis e James Joyce e nos autoriza a dizer que ele usa os gêneros biografia e autobiografia
como “suporte”. No romance, suporte é como a moldura que envolve uma tela. Repare: a tela/romance não se confunde com o suporte biografia/autobiografia. O estilo, os recursos retóricos, os efeitos estéticos buscados pelo romance etc., são outros e diferentes. O romance – ou a obra de arte − ludibria as categorias opostas e excludentes de realidade e de representação, de verdade e de mentira, para retirar o leitor atento de uma visão precária de estética e de ética. O real e a verdade “estão” na obra de arte enquanto tal. O romance é descendente da técnica da meia-tinta na pintura. Leonardo da Vinci lembra que, para desenhar em relevo, os pintores devem aplicar uma meia-tinta sobre a superfície de um papel de modo a localizar as sombras mais escuras e depois o lugar das luzes principais. O romance tem a ver com a tela renascentista. O romancista aplica a meia-tinta na folha em branco. Localiza melhor as sombras mais densas do tema e acentua o lugar inquietante em que pode jogar a luz reveladora. Compete ao leitor − e só a ele − afiançar, abonar, ou não, a verdade naquela ficção e a vida naquela mentira.
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FELIPE VARANDA/FOLHAPRESS
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em A genealogia da moral. O ressentimento (ou a mágoa) leva ao desprezo da vida pela constante negação. Está sempre a dizer não à vida que, no entanto, se lhe oferece sob a forma de alegria ou de dor. Sou mais Mário de Andrade. Meus personagens dizem um duplo sim à vida. A própria dor é uma felicidade – não se lembra do verso? Se há sentimento forte em Mil rosas roubadas, é o medo. Tomo-o no sentido de Clarice Lispector. Eis algumas frases dela que faço minhas pelas aspas: “Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo.
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CONTINENTE A epígrafe do livro, retirada do romance As brasas, de Sándor Márai, fala justamente de uma espécie de “culpa do sobrevivente”, trata a superação da perda da pessoa amada como uma espécie de crime não prescrito na lei. Essa culpa do sobrevivente, se pensarmos em termos psicanalíticos, é também a melancolia que se reveste de culpa na hora de seguir adiante. Em que medida Mil rosas roubadas foi uma tentativa de compreender a melancolia e de prosseguir, de racionalizar a perda da pessoa amada? SILVIANO SANTIAGO Não sei se o sobrevivente sente culpa. Para mim,
CON TI NEN TE
“O narrador não é objetivo no desenho do perfil do protagonista (Zeca, à esq), como não será objetivo no próprio autorretrato (Silviano, à dir). Trata-se de uma autobiografia”
Entrevista melancolia não se confunde necessária e obrigatoriamente com culpa ou mágoa. O sobrevivente sente amor e melancolia, não há dúvida. Pense mais no par amor/ melancolia que no par culpa/melancolia. A assassina é a Vida, não ele. O romance tem qualquer coisa do tom do Hino ao amor, cantado por Edith Piaf. Cito: “O céu azul sobre nós pode desabar,/ E a terra pode bem desmoronar,/ Pouco me importa./ Se você me ama”. Não consigo trabalhar o sentimento de culpa na ficção e até na vida. No meu caso, ele não é visceral, embora exista, é claro, e seja insidioso. Aliás, não me lembro de ter trabalhado o sentimento de culpa ou de mágoa, nem mesmo no romance Em liberdade. Mágoa, para mim, tem a ver com o ressentimento, de que fala Nietzsche
pela admiração – o narrador e o personagem. O narrador não é objetivo no desenho do perfil do protagonista (Zeca), como não será objetivo no próprio autorretrato (professor). Trata-se de uma autobiografia. Elevei a contradição entre a terceira e a primeira pessoa ao extremo. Como parceiros de vida, narrador (biógrafo) e personagem (biografado) se significam simultaneamente. Vali-me do romance A náusea, de Sartre, para chegar ao equilíbrio proposto pelo romance. Aproveitei o conflito interno do narrador
O medo sempre me guiou para o que eu quero. E, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo que me tomou pelas mãos e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado”. CONTINENTE Como sou um leitor dos seus ensaios sobre ficção, li o livro em vários momentos também como uma reflexão sobre a própria teoria literária. Fiquei pensando no que implica a palavra “biógrafo”. Seu livro deixa claro, em vários momentos, que, quando estamos biografando o outro, estamos também nos autobiografando. Você poderia falar um pouco sobre como enxerga a palavra “biógrafo”? SILVIANO SANTIAGO O que distancia Mil rosas roubadas do gênero biografia/autobiografia é o fato de querer entrelaçar – pelo afeto e
sartriano, dividido entre relatar a biografia medíocre do Marquês de Rollebon ou sua própria vida, em diário íntimo. Comportando a biografia de Rollebon e o diário íntimo, A náusea nos ensina que um personagem de biografia pode não a merecer (e quantos no Brasil de hoje não a merecem), mas um personagem de romance, se não for rico, sedutor e complexo, morre na praia. CONTINENTE Em determinado momento, você fala que o Ezequiel Neves dos anos 1980, aquele do Rock Brasil, não foi um homem que você conheceu/conviveu tanto, ainda que ele tenha convivido com você (você ressalta que nunca deixou de se mostrar a Ezequiel, sempre favorecendo o trabalho do futuro biógrafo). Fale um pouco dessa década, você “estranha” o Zeca
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do rock Brasil de alguma forma? Ou a época era mesmo para estranhamentos? SILVIANO SANTIAGO Mesmo vidas gêmeas se desenrolam diferentemente. Graças a Deus. Há que ceder lugar ao outro, para que ele possa organizar a vida segundo seu desejo. Eis o conflito dramático do romance: o professor, racional, o artista, enlouquecido. Nada odeio mais que a ideia de cárcere privado, presente em novelas de Aguinaldo Silva. O Zeca do rock – associado em geral ao Barão Vermelho e a Cazuza − se tornou uma figura menor na tela midiática
(veja filmes e peças já feitas), uma espécie de porra-louca a dizer – por interposto sorriso zombeteiro – que tudo aquilo era perfeitamente descartável. Mas não é disso que o pessoal do rock gosta? Não é desse Zeca que eu gosto. Um direito, como qualquer outro. CONTINENTE Seus livros de ficção parecem quebrar as expectativas e romper com os títulos anteriores. Uma obra como o seu romance Stella Manhattan ainda hoje causa estranhamento. Por sinal, você pensa em reeditar esse livro, já que ele toca em
Uma história de família fala da chegada da maldita doença. Keith Jarrett tenta apreender, pelo jazz, o mood fúnebre que cerca a perda das vidas amigas. E Mil rosas roubadas acaba por soar como hino ao amor. Meus romances, ainda que muito trabalhados, são ancorados no tempo que tentam apreender e apresentam ao leitor painéis da história. É a história do gay que vive de rupturas, fragmentada sua personalidade. CONTINENTE Você comentou que estava trabalhando num projeto para a Cosac Naify,
“O Zeca do rock – associado em geral ao Barão Vermelho e a Cazuza − se tornou uma figura menor na tela midiática porque não tinha o corpo exposto no palco, exigência maior da sociedade do espetáculo. Ele era figura de bastidor. Não era celebridade” porque não tinha o corpo exposto no palco, exigência maior da sociedade do espetáculo, associada à sociedade de consumo. Ele era figura de bastidor. Não era celebridade. Tentei mostrá-lo como figura inteligente, puro corpo de ator que se pensa a si e à arte para enfrentar a vida. Fracassa no projeto solitário, apesar de ser um jovem e audacioso intelectual, responsável por mudanças extraordinárias no comportamento provinciano. Vira “garimpeiro” (esta é a metáfora privilegiada em todo o romance). Ele garimpa e faz florescer no palco do rock Brasil o corpo do outro, corpo este que ainda vivia atravancado pela família pequeno-burguesa e pela sociedade repressiva. Nos bastidores, Zeca se exercitava como mero fantoche
questões ainda tão fortes, como a radiografia de personagens à deriva em cidades “doentes”? SILVIANO SANTIAGO Literatura para mim é ruptura. Vida, fragmentos. Isso, por um lado; pelo outro, assinei contrato com uma agente literária (primeira vez na vida). Vamos ver se consigo tocar o barco da vida & obra de maneira mais ordeira. O Stella Manhattan, que retrata os anos 1960, casa com o romance Uma história de família, que retrata os anos 1980, que se casa com o Keith Jarrett, que retrata os anos 1990. Os três livros guerreiros encontram finalmente repouso em Mil rosas roubadas. As rupturas formais e sentimentais não são gratuitas. Elas intensificam as emoções prevalentes em cada década na comunidade gay. Stella é o prazer pelo prazer, sem camisinha.
que você mesmo considera insólito – Ismael Nery e Murilo Mendes na década de 1920. Em que consiste esse projeto? SILVIANO SANTIAGO Trata-se do posfácio para o primeiro livro de Murilo Mendes, Poemas (1930). Tentei surpreender Murilo e seu amigo, o pintor Ismael Nery, às voltas com a arte e a conversão. E também com a Itália – não a de Marinetti e do Futurismo – mas a Itália franciscana. Encontrei na biblioteca de Murilo um livro de um convertido dinamarquês, publicado em 1922 e lido por Ismael e Murilo nos anos 1920. Está todo sublinhado por um e pelo outro. Li as páginas, os parágrafos e as frases sublinhadas, tentando extrair deles o ideário religioso/político/estético dos dois.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
LUGAR DA OPINIÃO
JOÃO DONATO
Como complemento à matéria de capa desta edição, que aborda os discursos opinativos e o lugar que ocupam hoje nas mídias tradicionais e nas redes sociais, oferecemos dois artigos que tocam o assunto. Um deles aborda a “desqualificação” da opinião no pensamento platônico, que veio a ser reconfigurada pela filosofia hegeliana. O outro, histórico, observa como se conforma o que chamamos de “opinião pública”, desde o século 18, na Europa; quem tinha o direito de expressá-la até hoje, com o advento da opinião “social”.
Assista a uma série de documentários televisivos sobre o músico e também a um vídeo da sua apresentação este ano no Rec-Beat, no carnaval do Recife.
Conexão
OCTAVIO PAZ Escute o programa especial do Café Colombo sobre o centenário do mexicano, com a participação de Eduardo Jardim, autor de um dos textos que publicamos nesta edição.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
LITERATURA
ARQUITETURA
CINEMA
ACERVO
J.K. Rowling publica online conto em que Harry Potter aparece com 34 anos
Acervo de três décadas da revista Acrópole disponível em versão digital
Um minuto para contar uma história sob várias temáticas
Projetos, fotos, publicações e memória gráfica da arquiteta Janete Costa
pottermore.com
acropole.fau.usp.br
festivaldominuto.com.br
janetecosta.arq.br
Em 1997, 17 anos atrás, J.K. Rowling publicou o primeiro livro da série Harry Potter. Com o lançamento do último dos filmes, em 2011, a autora apresentou um projeto chamado Pottermore. Trata-se de um fórum que reúne informações adicionais ao conteúdo dos sete livros da coletânea. Em julho deste ano, Rowling disponibilizou no site um conto em que revisita o famoso personagem. Nele, Potter está com 34 anos, casado e com filhos, como já sugeria o epílogo do último romance. Fora esse “surto”, Rowling declarou não ter intenção de continuar a escrever sobre a fase adulta do bruxo.
A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) disponibiliza online todo o conteúdo da extinta revista Acrópole. O periódico foi publicado entre 1938 e 1971, tendo acompanhado parte significativa da história do crescimento urbano da cidade de São Paulo. O acervo disponibilizado reúne todos os exemplares da revista, com pequenos lapsos de páginas. O Clube Regatas do Tietê, o Hospital das Clínicas e a canalização do Rio Tietê são algumas das obras importantes que ganharam destaque na publicação.
Festival do Minuto Universitário, do Minuto Chato, de Animação, da Água. O site do Festival do Minuto reúne uma variada coleção de pequenos filmes. Com um total de 10 categorias, o espaço abre regularmente inscrições para os vídeos de curta duração, que não devem ter mais do que 60 segundos. As premiações variam, mas chegam a R$ 3 mil, depois de passarem por curadoria e por júri popular, tudo via internet. Encerrados os concursos, os vídeos ficam disponíveis para visualização virtual, com a possibilidade de serem selecionados para exposições presenciais.
Na semana de nascimento da arquiteta Janete Costa, falecida em 2008, foi lançada uma página na internet que comemora e relembra o seu trabalho. O projeto passa pela vida e obra de Janete – mais conhecida por seus ousados projetos de interior e pela promoção que fazia da arte popular e do artesanato brasileiro – reunindo projetos, fotografias, DVDs, publicações em revistas especializadas e notícias em jornais. O site traz ainda uma linha do tempo detalhada, marcando os pontos mais importantes dos 82 anos de vida da arquiteta.
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blogs COMUNICAÇÃO badernamidiatica.milharal.org
O Baderna midiática fala de tudo que vai de encontro ao sistema capitalista. Criminalização dos movimentos sociais, elogio à preguiça e o sumiço do pedreiro Amarildo – que desapareceu depois de ser levado por policiais militares, no Rio de Janeiro – são alguns dos temas que merecem a atenção do blog. Ele também critica o tratamento dado pela mídia corporativa aos assuntos de seu interesse e enfoque.
A DESSEXUALIZAÇÃO DO CORPO Coletivo faz série de vivências-ensaios em que busca a naturalização, a autoestima e o desbloqueio de preconceitos criados em torno de si mesmo alem.art.br
A discussão sobre como nos relacionamos com o nosso corpo não é nova, nem é de hoje que a fotografia aborda o assunto. Mas um trabalho recente sobre o tema vem sendo desenvolvido pelo Coletivo Além. Com recente passagem pelo Recife, o grupo desenvolve ações dentro do contexto “de arte político-poética”, como ele próprio descreve. Seus trabalhos consistem em ensaios fotográficos, vivências-ensaio em grupo, oficinas, workshops, projeções, muitos dos quais com referência à nudez e suas implicações psicossociais. O ensaio fotográfico Pelos pelos, por exemplo, enfoca as penugens que revestem nossos corpos — rostos, pernas, axilas e genitálias de homens e mulheres —, colocando-se contrária à prática social de “higienização”, que faz com que muitas pessoas, sobretudo as mulheres, se obriguem à retirada dos pelos. “É necessário pensar por que são geradores de tanto asco e por que nos mutilamos frequentemente para nos livrarmos deles”, instiga o coletivo. Outros ensaios discutem questões como a identidade de gênero, tratada como uma questão social e não biológica, e as diferentes formas de viver o afeto, não necessariamente monogâmicas. Vários trabalhos do Além estão disponíveis para visualização no seu site. PETHRUS TIBÚRCIO
ILUSTRAÇÃO simonemendesilustra.blogspot.com.br
Desde 2007, quando começou a encarar a ilustração profissionalmente, Simone Mendes apresenta desenhos inconfundíveis. As cores vivas e os traços espontâneos dão um ar infantil às suas obras, finalizadas com a densidade que torna seu trabalho atraente para qualquer idade. Algumas de suas ilustrações tem caráter autobiográfico.
365 ZINES 365fanzines.blogspot.com.br
O blog Um zine por dia constitui-se excelente acervo digital de revistas independentes. O projeto foi abandonado depois de publicar 148 zines, que circulam entre temas variados. A última postagem divulgava Artemis, um fanzine produzido por mulheres. Antes disso, pichações, cultura do skate e Chico Science foram temas de outras publicações.
sites de
editoras independentes LOTE 42
EDIÇÕES BARATAS
CESÁREA
lote42.com.br
edicoesbaratas.wordpress.com
cesarea.com.br
Seis exemplares fazem parte do catálogo da Lote 42, sendo o mais conhecido O pintinho, de Alexandra Moraes
Com publicações de teor anarquista, a Edições Baratas disponibiliza dois livros de baixo custo em seu site
Lançada neste ano, a Cesárea editou três livros – todos oferecidos em formato e-book
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Portfólio
Malika Favre
EM BUSCA DO ESSENCIAL TEXTO Laís Araújo
Aos 18 anos, um desenho rasgado por um professor fez a francesa Malika Favre
mudar drasticamente sua visão sobre a própria arte: após partir ao meio o rascunho da aluna, ele falou que a culpa do trabalho ter se estragado era exclusivamente dela, por adicionar detalhes demais. Treze anos depois, as ilustrações de Malika são reconhecidas pelo enfoque minimalista, utilizando poucas cores e linhas, substituindo a quantidade pela força. “Ele me disse que há beleza em espaços vazios, que adicionar linhas demais acaba sufocando o desenho. Foi algo que teve grande influência no meu trabalho.” Dentro de casa, houve a influência materna, que apontava erros recorrentes de balanço e proporção (e que plantou nela o amor por cores e padrões). Buscando o espaço criativo necessário para se construir como artista, migrou de Paris para Londres, onde, apesar de manter uma estética que define como “bastante francesa”, sentiu a energia que precisava para produzir. Descascar os desenhos, tirar camadas das ilustrações até que o que esteja ali seja essencial: esse é o conceito-chave de Malika, que explica ter um ritual de criação antropofágico (antes de começar a desenhar, alimenta-se de milhares de imagens – menos as de páginas de design, para não criar interferências perigosas – e espera uns dias para o cérebro computar todas elas). O processo segue ao adicionar cores e formas mais grosseiras e ir controlando e limpando o material até que nada pareça sobrar, que todas as linhas estejam no lugar correto, sem excessos.
1-3 FEMININO O belo e o sensual marcam suas ilustrações 4-7 SIMETRIAS Característica do seu trabalho também é o equilíbrio na composição e no uso de cores e padrões gráficos 8 IMPRESSOS Ilustradora comenta que gosta de trabalhar sob encomenda
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“Eu diria que meu trabalho é ousado e minimalista, sensual e atrevido, e que sempre carrega uma narrativa, por menor que ela seja. Amo sugerir linhas que não estão lá, para que quem veja possa interpretar e imaginar uma história em torno disso. Meus assuntos são, em geral, simples, partem de um pensamento coletivo – acho clichês muito interessantes e penso que eles transmitem alguma verdade, falam para a consciência coletiva. Clichês são muitas vezes negligenciados e eu prefiro reinterpretá-los, fazê-los atuais e visualmente interessantes do que abordar assuntos mais complexos.” O Alfabeto kama sutra, feito para a editora Penguin Books, sua obra de maior repercussão, reflete seus métodos e teorias. Ao entregar os primeiros moldes, feitos com um erotismo mais tímido e domado,
recebeu “não” como resposta; depois, com o design aprovado, foi tão longe, que precisou substituir a letra “M” por uma opção considerada publicável. O processo foi “longo, doloroso, mas valeu muito a pena”, de acordo com ela. Lidar com o ambiente comercial não é um problema – ela diz que adora trabalhar com briefings e achar soluções para clientes, além de ter certa dificuldade em se enxergar como artista e ser chamada como tal. “A primeira vez em que fui exposta a um público foi com o projeto Hide and seek e foi uma sensação muito boa. Eu nunca me senti de fato como uma artista e demorou um tempo para perceber que tinha coisas para dividir, para dizer. Criar para si mesmo é um processo muito prazeroso e que adiciona pressão extra. Senti que estava dividindo minha visão de mundo, que as pessoas iriam me julgar por ela, e não ia ter em quem pôr a culpa, se tudo desse errado. Hoje, penso que tanto o trabalho comercial como o
pessoal podem coexistir, sem um ser mais valioso que o outro.” O projeto Hide and Seek, que expõe uma típica mulher de Favre viajando e se escondendo entre um padrão gráfico e outro, foi exposto na Kemistry Gallery, uma das poucas galerias londrinas que juntam o design com outras artes visuais. Entre outras obras de destaque de Malika - que conta ser influenciada por artistas como a ilustradora Aurore de la Morinerie, os escritores surrealistas Boris Vian e Alessandro Baricco, e as bandas The Black Keys e Herman Dune - está a belíssima Zodiac, com representações dos signos; as séries tipográficas Wallpaper pin-ups e The mind business; além de peças únicas como Esquisses e SHOP, realizadas sob encomenda de empresas e publicações. “Sempre tento não comprometer meu trabalho comercial, mesmo que o cliente tenha, ali, um dedo nele. Quando crio obras comerciais com o mesmo padrão que o trabalho pessoal, a sensação é maravilhosa.” O resultado também.
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9-10 ESCONDE-ESCONDE Ótima animação foi feita da série Hide and seek como chamada para exposição de Malika em Londres 11-13 KAMA SUTRA As clássicas posturas sexuais ganharam uma roupagem contemporânea - e não menos erótica - com seu traço
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FUTEBOL E ROCK
Heavy metal faz mal à cabeça Em torno dos apreciadores de heavy metal, já surgiram vários estudos: que são os mais inteligentes, sofrem de baixa autoestima, são vítimas de depressão e ansiedade e até que são os mais atraentes. Agora, a mais nova pesquisa a respeito do fã do gênero musical defende que sua “dança” característica, o headbanging, mais conhecido como “bate-cabeça”, faz mal à saúde. Os movimentos dessa coreografia, propagada nos anos 1970, consistem em balançar freneticamente a cabeça pra frente e pra trás, acompanhando o ritmo da música, principalmente com o intuito de sacudir as longas madeixas dos rapazes que formam a maioria dos headbangers. A suposição do risco ao cérebro surgiu após um homem de 50 anos parar no hospital depois de assistir a um show do Motörhead, revelando que praticou o sacudimento. O paciente teve sangramento cerebral. O “bate-cabeça” já havia sido associado a lesões no pescoço e na coluna. O Brasil tem motivo para ficar atento a esses dados, pois um levantamento recente apontou o aumento de shows do gênero por aqui, que o faz ser considerado o “país do metal”. Se citarmos apenas as bandas mais famosas, o número de apresentações realizadas impressiona: Deep Purple (59), Iron Maiden (32), Motörhead (27), Megadeth (25) e Metallica (14). Agora, estamos à espera da pesquisa sobre o volume de condicionador de cabelo usado pelos headbangers. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“Eu não mereço a menor confiança em citações. Quando a frase não me serve, eu modifico.” Ariano Suassuna, escritor
Buenos Aires tem um alto percentual de ouvintes de rock. Prova disso foram as nove apresentações que Roger Waters fez por lá com a turnê The Wall, em 2012, enquanto no território brasileiro foram apenas três. Recentemente, a ligação dos argentinos com o gênero despontou na cantiga Decime qué se siente, que os torcedores entoaram na Copa do Mundo, cuja tradução mostra o tom provocativo: “Brasil, me diga como se sente, tendo em casa o seu papai/ Eu juro que, enquanto os anos passam, nós nunca vamos esquecer/ Que Diego driblou você, que Canni lhe vacinou/ Você está chorando da Itália até hoje/ Messi, verá, a Copa vai trazer/ Maradona é maior do que Pelé”. A música, na realidade, é uma paródia de Bad moon rising, do Creedence Clearwater Revival. Ao que parece, a “vibe” da canção original, escrita por John Fogerty e que fala de má sorte, não ajudou muito os hermanos na final do campeonato. (DN)
Balaio A VERDADE SOBRE NEMO
Procurando Nemo é um dos maiores clássicos da animação, que agrada a crianças e adultos. Os elogios à aventura do pai que tenta encontrar seu filho em meio ao Oceano Pacífico não param apenas no roteiro e na beleza das imagens, mas referem-se ao fiel retrato do ambiente marinho. No entanto, se o roteiro seguisse à risca o que acontece na biologia dos seus protagonistas, os peixespalhaços, a história sairia dos moldes Pixar-Disney e desembocaria num enredo digno de Nelson Rodrigues. Isso porque (tirem as crianças da sala), com a morte da mãe de Nemo, o destino de Marlin, o pai, seria se transformar em fêmea e, na nova condição, acasalar-se com o filho, porque o peixe listrado é hermafrodita sequencial. Ou seja, tem a capacidade de mudar de sexo, uma manobra da natureza para manter o equilíbrio entre a quantidade de machos e fêmeas, garantindo a perpetuação da espécie. O filme, que é uma das maiores bilheterias do gênero, completou uma década no ano passado. Está prevista para o próximo ano a sequência Procurando Dory, que deverá encantar novamente o público, independentemente da fidelidade à realidade. Afinal de contas, pra começo de conversa, peixe não fala. Até onde sabemos. (DN)
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ARQUIVO
JÚLIO COVELLO/REPRODUÇÃO
PAPO DE COMUNAS Em setembro de 1959, Gabriel García Marquez (foto), ferrenho simpatizante do comunismo, viajou à antiga URSS como jornalista para uma reportagem na qual, entre matérias políticas e sobre o modo de vida dos soviéticos, deparouse com fatos curiosos. Em um deles, passeando pelo centro de Moscou, bateu “aquela” vontade urgente. Sem opções, teve de ir a um banheiro público. Era uma grande plataforma de madeira, com meia dúzia de buracos sobre os quais meia dúzia de respeitáveis cidadãos fazia o que devia fazer, acocorada, conversando animadamente, numa coletivização da fisiologia não prevista na doutrina marxista. (Luiz Arrais)
Paulo, Alice e o AM/OR Pouco antes de morrer, Paulo Leminski enviou à poeta, ex-mulher e para sempre companheira Alice Ruiz S, um envelope contendo seus últimos poemas inéditos. Tinha um envelope à parte. Assim surgiram seus dois livros póstumos: La vie em close (1991) e O ex-estranho (1996). Na seleção deste último, Alice incluiu oito poemas de uma pasta que eles mantinham juntos intitulada AM/OR, que abrigava escritos feitos um para o outro. Ela conta que alguns já tinham sido publicados e que outros jamais serão, pela extrema pessoalidade. Gostoso pensar no quanto casais podem nutrir essas criações íntimas, expressões da dádiva e da dor que é viver junto. Nem todos os amantes têm tal privilégio de expressão. Num desses poemas de amor, de 1988, Paulo escreve: “a uma carta pluma/ só se responde/ com alguma resposta nenhuma/ algo assim como se a onda/ não acabasse em espuma/ assim algo como se amar/ fosse mais do que bruma// uma coisa assim complexa/ como se um dia de chuva/ fosse uma sombrinha aberta/ como se, ai, como se/ de quantos como se/ se faz essa história/ que se chama eu e você”. ADRIANA DÓRIA MATOS
MEDO DE VOAR
O TRIUNFO DO WEEZER
Em sua autobiografia, Pete Townshend (na foto, à esq.), entre delírios de grandeza e catilinária arrogante, uma ou outra vez descreve algo engraçado. Certa vez, em voo para os EUA, despertou de um cochilo devido a um forte estampido que chacoalhou a aeronave. Pânico geral a bordo, menos para Pete, que continuou calmo até o piloto conseguir pousar no aeroporto. Entre os companheiros de agonia, ele encontrou Elton John (na foto, à dir.). Este comentava aliviado que, apesar de um rabino falar de apocalipse em meio à confusão, enfim estava tudo bem. Pete retrucou que, em meio ao “buruçu”, tinha ficado com pena de uma velhinha que corria de um lado a outro do avião, gritando sem parar, histérica... – Essa era eu, querido, disse Elton. (LA)
Que o Weezer deveria ter acabado há 18 anos, quando lançou o segundo e último disco decente da carreira, Pinkertron (1996), todo mundo está cansado de saber. Ainda assim, depois de um longo período mergulhado na obscuridade, coroado magistralmente com o efêmero surgimento de um abaixo-assinado virtual pedindo o encerramento das atividades da banda feito pelos próprios fãs, o quarteto de Los Angeles voltou a brilhar… E isso não tem nada a ver com a música que eles têm feito. Trata-se de um viral de internet em que Patrick Wilson - não o galã hollywoodiano, mas o gordinho boa-praça que desde o princípio comanda as baquetas da banda - apanha, no meio do show, um frisbee atirado pelo público sem perder o andamento da canção. É rir para não chorar. (Fernando Athayde)
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NELSON PROVAZI
DEBATE Sociedade da opinião total Os avanços na tecnologia da comunicação criaram um ambiente virtual de profusão de pontos de vista em que todos sentem necessidade de se manifestar TEXTO Fábio Lucas
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Você já parou para pensar sobre a volta do regime de califado ao Iraque? E sobre a crise econômica da Argentina? E o direito de presos condenados por corrupção ao trabalho fora da cadeia? Quem sabe, a respeito dos direitos dos animais? Ou da construção de espigões em áreas históricas nas cidades? Mesmo que você não tenha parado para pensar nisso tudo, certamente já ouviu falar – ou até foi indagado sobre essas questões recentemente, e levado a dar apoio à opinião dominante para não parecer fora de órbita na rede social. Na era da opinião total, na qual todos são instados a ter opinião sobre tudo, o que importa é se posicionar, seja qual for o assunto. E se for polêmico, então, aí é que o silêncio condena, como heresia digna de perseguição, até que o herege “desça do muro” e se pronuncie. No âmbito das escolas de comunicação, o jornalismo opinativo é o que concentra a análise da realidade, permitindo uma leitura dos fatos diferente da pura descrição da notícia. Mas “a realidade que conhecemos resulta da edição do mundo”, escreve Clóvis de Barros Filho, no livro Ética na comunicação. A mistura entre o relato descritivo e o juízo de valor seria, em tese, indesejável para a reportagem, que deveria manter distância e buscar a isenção sobre o que transmite. No entanto, a objetividade, para muitos, é pobre e insuficiente para abordar o significado dos acontecimentos. Abre-se então o espaço para a tomada – velada ou explícita – de posição no jornalismo, em qualquer meio e sobre qualquer assunto, muito além dos editoriais e dos textos assinados nos veículos impressos que nortearam, até anos atrás, a formação da opinião pública. A profusão de opiniões toma conta da pauta da mídia. Se já era corriqueira no rádio, a babel opinativa invadiu TVs, sites de notícias e, de maneira específica, o jornalismo impresso. Neste último, a tendência tem sido oferecer visões mais densas, proporcionando material de análise aprofundada em contraponto ao achismo verificado nas demais mídias. Mesmo assim, o espaço para a participação do leitor na formação de opinião é crescente em todos os meios, inclusive no impresso, que não deixa de publicar centenas de opiniões que chegam diariamente às redações.
A valorização da opinião – sobrepondo-a, inclusive, ao conhecimento adquirido e especializado de experts – pode ser creditada, por ironia, a uma conquista do conhecimento: a tecnologia da comunicação. Porque, muito antes de Nietzsche declarar que “não há fatos, só interpretações”, a sabedoria filosófica tradicional desprezava a doxa como conhecimento inferior. A opinião podia estar correta, mas aparecia como uma verdade que não tinha como ser verificada ou justificada. Daí a desconfiança de filósofos, como Platão, à palavra proferida sem embasamento, uma opinião – digamos assim – que perdurou até a modernidade. Hoje, Platão seria ridicularizado. Define o professor de Filosofia e Direito Pablo Capistrano da UFRN: “Vivemos em um tempo hegeliano, em que as opiniões são supremas diante de uma suposta ‘realidade dos fatos’. A questão é que as pessoas não se apercebem da transitoriedade histórica de sua própria verdade e pensam que a opinião que têm reflete um conhecimento seguro acerca do mundo”. No ambiente veloz da informação excessiva, a opinião do momento tende a se cristalizar até que seja confrontada com outra verdade temporária que a supere. “O problema, me parece, não é o crescimento da opinião na imprensa – mas uma certa tendência à uniformidade e à repetição de opiniões”, considera o jornalista e escritor José Castello. “Já na escola de jornalismo, aprendi que jornalistas devem sempre ouvir os dois ou diversos lados de qualquer questão, e até hoje acredito muito nisso. Infelizmente, apesar de haver na mídia muito espaço para a opinião, e afora honrosas exceções, não há tanto espaço para o choque de opiniões, para as diferenças e para as saudáveis divergências. Para a luta franca de argumentos”, lamenta Castello. Na era da opinião total, a objetividade não passa de um ponto de vista. E a internet – por suas características de velocidade, simultaneidade e horizontalidade – propicia o surgimento de ondas de opinião tão profusas e efêmeras quanto as informações que por ali trafegam.
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DILEMAS A objetividade como ponto de vista O ato de informar não escapa à noção de que toda edição é uma escolha, e toda escolha, por sua vez, uma opinião A transmissão dos fatos e a reflexão crítica sobre eles a partir das grandes empresas de comunicação têm sofrido tremendo impacto com o advento da tecnologia da informação, disponível em rede global para qualquer cidadão. Os meios tradicionais – jornais, revistas, rádio, TV – sofrem cada vez mais com a necessidade de se adaptarem à realidade da rede, em que a troca incessante e horizontalizada de mensagens é tão
importante quanto o conteúdo daquilo que é transmitido. É nesse contexto que se retoma o tema da ética jornalística, um dos mais discutidos, quando o foco é a perda de espaço da mídia tradicional na formação da opinião pública. Para o professor de Direito Constitucional e coordenador do Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio, Adriano Pilatti, essa perda de espaço é notória, e não só no Brasil.
“As razões são multifatoriais: por um lado, as novas gerações preferem se informar pelas redes, sites e blogs da internet. Por outro, há crescente e justificável desconfiança das vinculações e subordinações das “opiniões” da imprensa tradicional ao poder econômico, às organizações partidárias, corporativas etc. E uma insatisfação com a costumeira mistura entre informação e opinião”, aponta Pilatti. Para uma parcela dos leitores, a isenção de opinião na reportagem – gênero jornalístico classificado como informativo, embora também se insira entre os interpretativos – seria um mito, assim como se julga que o pendor para um lado do fato sempre existiu, das manchetes às legendas de fotos e chamadas de rádio e TV. Afinal, toda edição traz consigo uma inseparável carga opinativa. Também parece nunca ter sido tão difícil acreditar na suposta distância almejada pela “mera”
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Para o jornalista e publicitário Luís Costa Pinto, a objetividade jornalística é um conceito surgido nos anos 1960, cultivado nas duas décadas seguintes, e que passou a perder força nos anos 1990, quando o mundo polarizado entre EUA e URSS deixou de existir. “Sobretudo no Brasil, mas também na Itália, na Península Ibérica, na Argentina, entre outros países, a imprensa da primeira metade do século 20 notabilizou-se por ser uma imprensa de opinião. Nos países de língua inglesa, notadamente nos EUA e na Inglaterra, e também na Alemanha, sempre houve um distanciamento um pouco maior – só um pouco –, mais característico do formalismo desses povos do que da busca de uma imparcialidade objetiva dentro do jornalismo”, compara. No caso brasileiro, os exemplos vão claramente contra o que se consagrou entre os profissionais de comunicação como o “mito da objetividade”. “O que
Embora a saibam frágil, os jornalistas aferram-se à objetividade do discurso como escudo à parcialidade descrição, que legaria ao público a tarefa de formar a própria opinião sobre os acontecimentos, numa época em que o receptor tem voz ativa sobre a repercussão de quaisquer mensagens. “Fazer jornalismo é, inevitavelmente, fazer escolhas. Há decisões (algumas de natureza técnica) que precisam ser tomadas na hora de levar uma informação ao público”, diz Geneton Moraes Neto, repórter da TV Globo Rio. A primeira delas é considerar o que vem a ser notícia, e, em seguida, o destaque que receberá e o ângulo a ser mostrado. “Quando toma tais decisões, o jornalista – no caso, o editor – exerce um julgamento, queira ou não. Se exerce um julgamento, deixa de ser isento. A isenção absoluta pode não existir, mas, no bom jornalismo, existe algo que deve ser obrigatório: a fidelidade aos fatos. Quando os apresenta com fidelidade, o jornalismo pode, sim, cumprir um papel relevante”, avalia Geneton.
eram as estruturas narrativas dos jornais de Assis Chateubriand, por exemplo, e mesmo de O Globo, até os anos 1960, ou da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, e da Última Hora, de Samuel Wainer, senão libelos acusatórios ou peças de defesa de governos ou de oposições?”, questiona Costa Pinto. A importância da opinião para a atividade jornalística tem sido reforçada no intuito de levar o leitor a discernir atores e pontos de vista. “Hoje, como leitor, prefiro ler veículos de comunicação e textos de jornalistas que se posicionam – mesmo que essas posições sejam contrárias às minhas. Desde que elas se tornem claras desde o início, desde que eu saiba fruir uma informação sabendo divisar o quanto de opinião há nela e qual a proporção de partidarismo há ali”, ressalva Luís Costa Pinto, que também arrisca um palpite sobre o futuro: “Acho que os veículos de comunicação vão entrar
numa era de transparência total de seus posicionamentos – porque isso vai reforçar a credibilidade deles. Ou fazem isso, ou morrem”.
PROJEÇÕES E ISENÇÕES
A editora-chefe do jornal Folha de Pernambuco, Patrícia Raposo, levanta a dificuldade inerente à seleção e exibição da notícia. “Como não projetar alguma carga de indignação no noticiário, quando você vê, por exemplo, uma greve da polícia com viés político sabidamente ilegal, ser decretada à revelia para provocar pânico na população? E, ao mesmo tempo, assistir a uma multidão inescrupulosa aproveitar a oportunidade para invadir e saquear lojas? Se você observar, o noticiário desses fatos trouxe alta carga opinativa. Seja na escolha das fotos/imagens, dos personagens, ou na forma de contar o caso. Por exemplo, na Folha de Pernambuco tínhamos fotos de pais levando os filhos para saquear. Como não analisar isso e não trazer opinião sobre o assunto?”, questiona Patrícia. Para ela, não há veículo que não emita opinião sobre os fatos. Nas principais revistas semanais do país, de acordo com ela, essa tendência é exposta de forma mais clara e aberta. “Cada uma segue uma linha ideológica, seja por convicção, seja por necessidade. E o leitor afinado com uma não tolera ler a outra”, diz. O adensamento das redes sociais trouxe repercussões que ainda estão se consolidando. “A forma de se noticiar vem mudando, porque o leitor está sendo exposto a uma série de novidades, entre as quais a alta dose de opinião trazida pelas informações difundidas nas redes sociais. Por isso, penso que a opinião virou um produto intrínseco ao jornalismo”, afirma Raposo. Essa exposição às novidades da tecnologia da comunicação seria uma das origens da crise enfrentada nas redações tradicionais, de acordo com Fabiola Blah, editora do portal G1: “Acho que a mídia tradicional passa por um momento de grande questionamento, tanto em relação ao espaço que ocupa quanto no aspecto da credibilidade. Isso está diretamente ligado ao crescimento das mídias sociais e à multiplicidade de opiniões e pontos de vista disponíveis na internet”. Se não há mais notícia sem opinião – ou se nunca houve –, os profissionais de redação se deparam com o desafio
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da reflexão que não descambe para um partidarismo panfletário. “É preciso ter um plus, é preciso orientar para uma reflexão sobre alguns fatos. Percebo que o leitor quer ver sua indignação estampada nos jornais, nas revistas. Quer encontrar eco aos seus sentimentos. Mas é preciso ter bom senso, equilíbrio, do contrário, o veículo vira um produto ideológico e, quando isso acontece, pode perder público, pois se ele não estiver afinado com sua mensagem, troca-o por outro”, avalia a editora-chefe da Folha de Pernambuco. O leitor ou espectador, portanto, não despreza a grande imprensa, procurando nela o reforço ao que ele mesmo pensa sobre um determinado assunto. “É um mito dizer que a internet substituiu as mídias tradicionais”, garante o analista de comunicação digital André Raboni. “Muita gente ainda busca informação em um grande veículo para garantir sua veracidade. Mas há quem não cite alguns veículos justamente pela desconfiança que ele gera”, ressalva Raboni, sem deixar de se referir aos efeitos da ampliação do acesso a diversas fontes de notícias. “A credibilidade dos grandes veículos certamente sofreu abalos com a popularização da internet. Os meios digitais ampliaram de tal forma o acesso à informação, que os jornais impressos perderam sua exclusividade.” O bom senso nos traz de volta à isenção, que deve ser o ideal de todo jornal sério, segundo o editor de opinião do Valor Econômico, José Roberto Campos. “É impossível evitar a subjetividade. E
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“É um mito dizer que a internet substituiu as mídias tradicionais. Ainda se busca informação nelas” André Raboni a isenção, entre outras medidas, é uma forma de domá-la”, sugere. O texto isento, segundo Campos, é mais fácil quando mais distante dos interesses próprios, como em reportagens sobre crimes e o cotidiano das cidades. O editor do Valor lembra que foram criados mecanismos que indicam a isenção de um jornal. “Se um texto é claramente opinativo, ele é identificado como tal, por meio de vinhetas, por exemplo. Se é a posição do jornal, confinamos isso no editorial. Nas reportagens, especialmente em temas polêmicos, há obrigatoriedade de se ouvir pessoas que tenham outra visão sobre os mesmos fatos, quando não o próprio interessado atingido, nos casos em que empresas ou pessoas são criticadas”, observa. Para José Roberto Campos, a isenção continua sendo uma meta, colocando elementos para que o leitor seja capaz de formar opinião própria. “Esse é um dos elementos básicos da democracia”, diz. Na composição da babel noticiosa, tampouco se deve desprezar a transição geracional que emerge no modo como as pessoas apreendem a informação.
“O que nós, jornalistas que atuamos nas mídias tradicionais, temos que reconhecer é que as gerações mais novas não leem, ou leem muito pouco, livros, jornais, revistas, qualquer coisa que não venha pelo terminal de computador, smartphones, Iphone, pelo mundo digital”, pondera o editor-geral do Jornal do Commercio, Ivanildo Sampaio. “Portanto, como todos nós envelhecemos, o universo de leitores de jornais tradicionais encolhe a cada ano. O que esses meios tentam é oferecer um tipo de conteúdo que se mostre interessante também para esse universo arredio, mas sem esquecer que seus leitores se colocam noutra faixa etária, com outra visão do mundo. Um artigo publicado na página de Opinião, independente do tema, repercute muito mais nos leitores com mais de 30 anos do que naquela faixa que vai dos 20 aos 30. Abaixo de 20, a repercussão é quase zero. E isso não é um fenômeno localizado – é uma constatação mundial”, assegura. Na TV, opinião combina com formalismo. O posicionamento oficial da emissora só aparece em raros casos, em geral em momentos graves ou em defesa contra alguma denúncia que envolva a empresa. Contudo, isso também está mudando em decorrência da cultura da opinião formada e robustecida em rede. Para Geneton Moraes Neto, a tarefa mais importante do telejornalismo é registrar a realidade da maneira mais fiel possível. “Já é uma tarefa
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1 PATRÍCIA RAPOSO Editora-chefe da Folha de Pernambuco (à dir) em debate em emissora de rádio
trabalhosa e complicada. Pode ser uma idiossincrasia, mas eu diria que aquelas ‘opiniões’ ou comentários feitos pelos apresentadores de telejornais, depois da exibição das matérias, são, em 99% dos casos, perfeitamente dispensáveis porque, em geral, não acrescentam nada. Apenas reforçam o senso comum e sublinham o óbvio. É tempo precioso jogado fora. Todo o espaço deve ser dado à notícia”, postula. A gerente de jornalismo da TV Clube, Roberta Aureliano, atenta para os sinais de mudança no comportamento do público. “Mais do que nunca o cidadão brasileiro se sente ‘jornalista’. Mas acho que a principal mudança, dando mais espaço às formas opinativas, está atrelada ao crescimento da classe C, que passou a consumir informação, mas não queria informação da maneira tradicional, ‘dura’, do jornalismo. Então, as grandes mídias perceberam que precisavam conquistar esses novos atores e por isso estão mudando sua maneira de interagir.” Com a interatividade, a quantidade da presença opinativa disparou, num fenômeno que põe os profissionais do jornalismo às voltas com uma maior responsabilidade. Além disso, vale celebrar a diversidade que a multiplicação de vozes proporciona. “A disseminação da opinião tem seu lado saudável, pois abre espaço para a afirmação de novos pontos de vista e caminho para aqueles que já estavam aí, mas ainda reprimidos”, pontua o jornalista e escritor José Castello. Para Alexander Martins Vianna, professor de História Moderna na UFRRJ, as dissonâncias críticas e a multivocalidade das mídias ditas sociais são mais uma desafio criativo do que propriamente uma ameaça às mídias tradicionais. “A tendência é que os choques e corrosões mútuos redundem num salto qualitativo dialético para ambas as mídias”, aposta ele, lembrando que nos últimos cinco anos houve uma grande incorporação de elementos das mídias “sociais” nas “tradicionais” – e é possível que, no futuro próximo, tal separação não faça mais sentido. FÁBIO LUCAS
Depoimento
GENETON MORAES NETO MENOS PATRULHA, MAIS DIVERSIDADE Tenho um princípio que tento
seguir desde sempre: jornalista não pode ser patrulheiro ideológico. É um pecado capital. Conheço jornalistas que se recusariam a entrevistar George Bush porque ele invadiu o Iraque. Também conheço jornalistas que se recusariam a entrevistar Fidel Castro porque ele é – ou foi – um ditador. Se eu tivesse essa chance, pagaria um milhão de dólares para entrevistar tanto um quanto o outro. Teria uma lista de perguntas a fazer. Patrulhagem ideológica se exerce na cabine de votação – ou na mesa do bar, para os que a preferem. O que deve mover o jornalista é – basicamente – a curiosidade infantil de “querer saber”. É o que me fez procurar, por exemplo, generais da época da ditadura militar para entrevistálos longamente e fazer as perguntas que gostaria de fazer, sem qualquer constrangimento. Também já entrevistei longamente líderes comunistas – como o pernambucano Gregório Bezerra, ou Luís Carlos Prestes. Nesse sentido, o papel do jornalista é ser – sem qualquer pretensão,
mas também sem “complexo de inferioridade” – um intermediário honesto entre personagens e o público. Desprezo a megalomania de jornalistas que se julgam mais importantes que a notícia – ou o personagem. Não são. Nunca foram. Nunca serão. Também não jogo no time dos que selecionam os entrevistados – ou as reportagens – de acordo com suas preferências ideológicas. O Brasil destes tempos democráticos, surpreendentemente, sofre de um problema grave: a falta de diversidade editorial. Quando eu era estudante de jornalismo, no Recife, na segunda metade dos anos 1970, quase não conseguia dar conta de ler tudo de interessante que encontrava nas bancas, além dos jornalões: O Pasquim, Movimento, Opinião, Coojornal, Crítica, Bondinho. Os próprios jornais da “grande imprensa” tinham mais vivacidade do que hoje. O que de errado terá acontecido? Deixo a palavra com os estudiosos da comunicação. O que posso dizer é que, ao olhar a oferta das bancas de revistas hoje, o que a gente vê? Majoritariamente, exemplos do que chamo de “jornalismo endocrinológico”: revistas e revistas e revistas preocupadas em orientar o leitor a fazer dietas. Dá vontade de parafrasear o estudante rebelde e escrever, num muro imaginário: “Acorda, Gutemberg! Eles enlouqueceram!”.
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CON ESPECIAL TI NEN TE
Artigo
WANDER EMEDIATO DE SOUZA A CONSTRUÇÃO DA OPINIÃO O livro A construção da opinião na mídia, publicado pelo Núcleo de Análise do Discurso da UFMG, trata o problema sob diferentes perspectivas e dimensões. O principal aspecto abordado, comum entre todos os capítulos e autores, é que a opinião é um fato discursivo intrínseco a toda prática discursiva e social e sua organização e estrutura estão diretamente relacionadas ao problema mais amplo da subjetividade e da intersubjetividade. Na mídia, em especial, o gênero é uma dimensão relevante do próprio dispositivo midiático e se inscreve em diversos tipos textuais que participam do tratamento da informação. Como dissemos no livro, a informação midiática é o produto de um sistema fenomenal e global de produção e de consumo de notícias. A informação jornalística se tornou um espetáculo da vida cotidiana. Nessa espetacularização que ampliou
o impacto da mídia na leitura e na interpretação das informações, a opinião surge como um elemento poderoso e multifacetado, ao mesmo tempo, de análise e perspectivação da informação e também de influência. Alguns aspectos de sua construção podem ser considerados centrais no livro: um deles é a gestão das perspectivas e das vozes que são selecionadas para “falar” nos diferentes jornais, sejam eles impressos, televisuais ou radiofônicos. A isso damos o nome de “gestão do dialogismo”. Quem é chamado para falar na mídia e sob quais critérios? Quais pontos de vista são mais ou menos dominantes? Que orientação argumentativa pode haver nessa seleção de “vozes” e “pontos de vista”? A essas questões se vinculam outras, como a dos tratamentos temáticos, como a violência urbana, seus fundamentos discursivos e até mesmo ideológicos, as tendências de tratamento mais superficiais de problemas sociais e políticos complexos, os imaginários construídos pelo tratamento específico das imagens no fotojornalismo, as interações entre os participantes nos programas de entrevistas e talk-shows e o papel do animador, assim como o problema das diferentes formas do discurso relatado e das aforizações.
As formas de enquadramento da informação também são centrais nessa discussão, como os enfoques temáticos, que circunscrevem o que deve ser considerado relevante, os enquadramentos designativos, que identificam as pessoas por categorias sociais e envolvem discussões críticas sobre essas categorias e até mesmo certos preconceitos (nordestinos, policiais, políticos, ciganos, árabes, funkeiros etc.), os enquadramentos de raciocínios, como os laços de causalidade e as analogias nem sempre fundadas, as configurações discursivas dos títulos e manchetes, o que coloca em evidência uma dimensão argumentativa importante na informação jornalística mesmo em tipos textuais não declaradamente argumentativos. A existência da opinião em si não é um fato que descredencia a mídia de seu papel de grande relevância nas sociedades democráticas. Amplia, certamente, seu potencial de influência na formação da opinião pública, mas devemos também considerar esse fator como constitutivo da relação que as mídias mantêm com seus leitorados, que também não são inocentes, possuem opiniões e dialogam até mesmo em um nível de conivência com as mídias. Afinal, todo leitor crítico tem a liberdade de não comprar, assinar ou ver uma mídia que considera tendenciosa ou oposta às suas próprias opiniões. Porém, o fato de termos cada vez mais uma mídia opinativa, que distribui suas estratégias de influência não só nos tipos textuais clássicos e argumentativos, como editoriais e artigos de opinião, mas em qualquer tipo textual, como nas reportagens, nos títulos e nas imagens, assim como na seleção temática e na gestão de falas, exige que formemos cada vez mais leitores críticos capazes de se posicionarem diante dessas ações e intenções de influência e exercerem a contrainfluência necessária a uma cidadania plena. Um leitor crítico não deve temer uma mídia opinativa. Mas um país com graves problemas educacionais como o nosso, que tem tido grande dificuldade de promover uma educação voltada para o desenvolvimento do pensamento crítico, deve avaliar esse problema com uma atenção especial.
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NELSON PROVAZI
INTERNET Opinião acima de tudo
O crescimento da
Polêmicas nas redes sociais ganham a mídia e despontam como conquista que oscila entre o exagero e a emoção
influência das redes sociais sobre a mídia tradicional tem provocado ou facilitado a geração de ondas de opinião, que parecem irresistíveis, a princípio, mas podem logo se desfazer, como no caso da banana atirada em campo ao jogador Daniel Alves, que virou mote instantâneo, porém breve, contra o preconceito racial. Ou,
ainda, angariam a simpatia de uma mobilização virtual que nem sempre se traduz em manifestação concreta de apoio – e, mesmo assim, ganham peso simbólico que se reproduz até interferir nas instituições que decidem. Como esse fenômeno das ondas opinativas deve ser tratado pelo jornalismo? E por um público cada vez menos confiante no
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que estampam as capas de jornais e revistas tradicionais? Segundo o analista de comunicação digital André Raboni, o que a internet traz é um modelo de comunicação direta, que ao mesmo tempo atingiu a credibilidade dos grandes veículos e permitiu que indivíduos se tornassem produtores de conteúdo, seja em um blog, seja num canal de Youtube ou no Facebook. E a credibilidade desse tipo de informação? “A credibilidade é algo que se constrói com o tempo, e vai ser determinada tanto pela capacidade de arregimentação de público quanto pelo impacto social das informações. Independentemente de serem verdadeiras ou não, mas por angariarem simpatia através da opinião livre e exclusiva”, diz o analista, para quem o desejo de expressão visto em tempo real tem resposta certa. “O público na internet é ávido por opinião: se for favorável, o público divulgará como algo que o representa. Se não for, o público divulgará para criticar”. O professor Adriano Pilatti, da PUC-Rio, endossa a multiplicidade de opiniões do meio virtual como algo intrinsecamente positivo. “Nas chamadas mídias sociais, há uma polifonia confusa, mas em princípio saudável. Sua contribuição principal está justamente na diversidade de perspectivas e, quanto maior o rigor dos enunciados que veicular e o compromisso com os fatos, maior será sua contribuição”, acredita Pilatti. Para o professor de Direito Constitucional, uma das novidades desse fenômeno é que todos podem ser produtores e transmissores de informação e opinião. “Isto serve à democracia, às liberdades e à construção das autonomias individuais e coletivas. É um excelente começo de conversa.” A consequência dessa mudança é perceptível entre os profissionais da imprensa. “O chamado ‘jornalismo tradicional’ foi abalado por um tsunami – a internet. E eu diria: ainda bem!”, afirma Geneton Moraes Neto. Para ele, o alargamento das possibilidades de comunicação entre indivíduos, sem a mediação do jornalista, põe em xeque princípios seculares do jornalismo. “Qual será o efeito disso? Não se sabe ainda. O que se sabe é que
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“Na internet, as opiniões se chocam: tornam-se impulsivas, irracionais, agressivas” José Castello já não é possível desconhecer o poder estupendo das mídias sociais. A ‘má notícia’ para o jornalista é que ele já não é o único emissor de informação e opinião. Pelo contrário! A ‘boa notícia’ é que, em meio a essa avalanche de informações, um personagem vai ser sempre necessário: alguém que seja capaz de hierarquizá-las, descrevêlas com clareza, explicar ao público o que elas podem significar. Nesse momento, entra no grande salão de festas, provavelmente com uma bengala na mão e um livro debaixo do braço, aquela figura malvista, tão crucificada e tão questionada, tão bombardeada e tão necessária – ele, o jornalista. Ainda vai durar um bocado”, opina Geneton Moraes.
No fluxo de emissores e receptores que não mais se distinguem, quase não há tempo para a parada necessária à reflexão, e o pensamento pega carona na emoção. “Na internet, as opiniões proliferam e se chocam. Mas aí com uma característica preocupante: tornam-se impulsivas, irracionais, nervosas, agressivas. Basta ver o que acontece com o Facebook, que se transformou em muitos casos em um espaço para xingamentos, ataques enlouquecidos e brigas infantis”, critica o escritor José Castello. Segundo ele, a internet deixou as pessoas com os nervos à flor da pele. “Nela, qualquer um fala qualquer coisa de qualquer um, ela se transformou em uma espécie de lugar do valetudo. Criou o que chamo de opinião impulsiva – que, na verdade, é um boicote disfarçado ao pensamento”, define Castello. Na mesma linha, o editor-geral do Jornal do Commercio, Ivanildo Sampaio, ainda que reconheça a força das redes sociais, e tenha consciência de que elas chegaram para ficar, acredita no superdimensionamento
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Gesto de racismo contra jogador Daniel Alves deu início à campanha que se propagou na internet
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de sua influência junto à opinião pública. “Uma nota produzida por um blog anônimo muitas vezes é tida como uma verdade absoluta que foi compartilhada por milhares de pessoas – e isso quase sempre é invencionice. Pior. Muitas vezes, descobre-se que a informação é inverídica e que circulou apenas entre seguidores de uma mesma tribo”, diz Ivanildo. Sem limites claros, as redes podem ser usadas para desconstruir reputações e biografias através de agressões anônimas, “o que é impossível na mídia impressa”, defende o editor-geral do JC.
BLOGS
Um pouco antes das redes sociais arregimentarem militantes da opinião, fizeram sucesso no Brasil os blogs de jornalistas, que logo se tornaram referência para a grande imprensa. Há quem considere tais precursores com os dias contados. “Para mim, blog de jornalista nunca foi jornalismo – sempre foi egotrip. Só que eles, que praticavam o autoculto dos próprios blogs como espaços ‘democráticos’,
“O mundo hoje é como uma torre de babel, não apenas linguística, mas também discursiva” Wander de Souza
não previram a explosão das redes sociais e a avenida que se abriu, a partir delas, para que os leitores praticassem – eles mesmos – a egotrip de ver suas opiniões, seus raciocínios e suas imprecações não só publicadas, mas também repercutindo e arregimentando seguidores”, observa o jornalista Luís Costa Pinto. De acordo com ele, em lugar de radicalizar as posições pela profissionalização dos métodos de apuração, muitos desses blogueiros passaram a cultuar de forma ainda mais abissal as próprias opiniões, levando mais em conta os adjetivos do que os substantivos na guerra pela adesão de público. O futuro é sinistro na trilha dos blogueiros que criaram fama em
cima de opiniões muitas vezes polêmicas, na visão de Costa Pinto, que atualmente é consultor independente de comunicação e diretor da agência Propeg. “Não vejo saída para esse tipo de jornalismo, muito pelo contrário: está inoculado, a partir desse processo, o vírus que vai aniquilar a credibilidade dos grandes veículos de comunicação que não souberam depurar o joio do trigo em seus quadros e creem que as altas audiências de alguns blogueiros significa poder e influência na forma como se media isso na última fase áurea da imprensa brasileira – os anos 1990.” Aliada à onda tecnológica, cada opinião pode ser um modismo, mas o domínio da opinião será? Com o aumento do volume opinativo nas mídias, na produção e na recepção, a partir dos canais abertos pela tecnologia da comunicação (blogs, redes sociais etc.), podemos dizer que já habitamos uma espécie de babel da opinião. “É uma metáfora interessante, pensar no mundo de hoje como uma torre de babel, não apenas linguística, mas também discursiva, com a precaução apenas de não vermos isso como o fim do mundo ou de entendê-la de modo apocalíptico”, concorda o professor Wander Emediato de Souza, da Faculdade de Letras da UFMG, organizador do livro A construção da opinião na mídia. Na visão dele, com as redes sociais, o cidadão comum passa a assumir diferentes papéis e não precisa ficar passivo diante dos canais institucionais de produção da informação. “As pessoas podem agir fazendo circular opiniões suas e de outras pessoas com as quais compartilha uma ideia, uma ideologia ou um conjunto de intenções, ou seja, pode fazer parte de uma rede de irradiação, pode reagir a notícias e a opiniões de outras pessoas, pode construir movimentos sociais, encontros e agrupamentos por afinidades. O Facebook, por exemplo, antes marcadamente voltado para a exibição de si mesmo e para relações afetivas de grupos de
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amigos, agora se torna também uma arena discursiva importante na qual se debate quase tudo e se faz circular todo tipo de informação e de opinião, das mais sensatas e moderadas às mais insensatas e radicais, das mais autorizadas e credíveis às mais ficcionais e manipuladoras”, diz ele. “O fato é que as redes sociais quebram, de certa forma, o monopólio das grandes corporações de mídia na produção e na circulação de notícias, permitindo que pessoas comuns também assumam o papel de jornalista, de escritor, de polemizador, de humorista. A grande novidade das democracias modernas é o surgimento das redes sociais, por isso elas assustam tanto os governos autoritários, que tentam controlá-la ou até mesmo suspendê-la e censurá-la. Para a democracia participativa, as redes sociais constituem um ganho”, defende Wander Emediato. Porém, é preciso ter cautela com as ondas, afirma a editora-chefe da Folha de Pernambuco, Patrícia Raposo. “Sem dúvida as mídias sociais são um fenômeno que tem impulsionado as pessoas a seguir tendências. Mobilizam grande contingente, muitos deles são jovens, com formação intelectual ainda inconsistente, que são levados na ‘onda’. O problema das mídias
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ADRIANO PILLATI
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JOSÉ CASTELLO
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FILIPE CAMPELLO
Professor acredita que a polifonia nas redes sociais é confusa, mas saudável Para escritor, criouse na internet aquilo que ele denomina opinião impulsiva “Feed de notícias costuma refletir as opiniões parecidas com as nossas”
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A função preponderante das redes parece ser mesmo a de externar o máximo de opinião sobre todo assunto sociais é que seus posts nem sempre são plausíveis de credibilidade e confiança. Nas mídias sociais se posta tudo, de verdades a mentiras. E merecem atenção, na medida em que podem incitar atitudes preconceituosas, racistas e descabidas. Então, precisamos observar o sentimento gerado por elas com frieza e maturidade”, pondera.
CAUTELA
O editor de opinião do jornal Valor, José Roberto Campos, concorda com a postura cautelosa diante das redes. “Noventa por cento do que se escreve no Facebook, por exemplo, são opiniões particulares, de baixa inspiração, quando não abertamente grosseiras e preconceituosas. Fazendo um paralelo, o jornal deve, na reportagem, fazer de tudo para não ser opinativo. Nas redes sociais, vale o contrário: dificilmente há algo além de opiniões”, compara José
Roberto. O editor não menospreza as redes. Para ele, as mídias sociais são cada vez mais relevantes, e podem chamar a atenção da imprensa para muitas coisas que são ignoradas. “Mas deve ser apenas matéria-prima sobre a qual a imprensa séria poderá (ou não) construir uma peça acabada”, sugere Campos. Nesse aspecto, a função preponderante das redes parece ser mesmo a de externar o máximo de opinião sobre todo assunto. “Acho que, na divulgação de opiniões, as mídias sociais são imbatíveis, mas elas ficam nisso, com muita superficialidade e xingamentos. Boa parte das opiniões são dadas e recebidas por pessoas pouco afeitas a leituras de textos longos (o meio preza a rapidez em detrimento da profundidade). O Facebook serve, por exemplo, para conhecermos melhor o cidadão brasileiro. Mas há que navegar no meio de muito lixo para se chegar lá”, diz José Roberto. Como o comportamento da sociedade se reflete nas mídias sociais, os jornais precisam seguir a tendência de perto, com grandes times de colunistas. “Nas colunas, procura-se a opinião pessoal, pelo fato de o colunista ser especialista em determinados assuntos, ou uma pessoa bem-sucedida”, enquadra Campos. Vale lembrar que a diversidade de
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colunas num jornal não chega nem próximo do que se desenha pelos veículos na internet – somente a Folha de S.Paulo, em seu portal, conta com mais de 120 colunistas. A editora do portal G1 Fabiola Blah diz ser fundamental que as pessoas possam se informar com a maior variedade possível de versões, lados e opiniões. Mas, segundo ela, isso leva a outra questão: como os internautas compreendem o que é debatido nos diversos espaços virtuais? “Muitas pessoas assistem a essas discussões sem necessariamente participar delas. Então, não saberia dizer como elas entendem esses questionamentos, não sei se é possível mensurar a ‘qualidade’ desse entendimento. Mas o debate em si já é frutífero.” O leque opinativo disponível também é destacado por Benira Maia, editora do portal NE10. “Quem quiser se aprofundar no assunto vai encontrar um mundo à sua espera.” Benira indica ainda o reforço das convicções de cada um que se mira no espelho das mídias sociais. “Aquele que já tem uma ideia, uma crença, vai também achar os seus ‘iguais’ e se tornar mais ‘crente’ de suas posições.” Trata-se de um comportamento que se observa bastante na evolução recente das ondas de opinião. Segundo
As manifestações virtuais fizeram com que as redações mudassem a forma de pensar e enxergar as notícias Filipe Campello, doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt e, atualmente, pesquisador de pósdoutorado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma eventual mudança de posicionamento é muito circunscrita. “Além disso, outro risco que se corre é do que podemos entender como uma ‘seletividade prévia’, em que o círculo de amigos que aparece no nosso feed de notícias, ou até mesmo blogs e jornais que lemos, já ser o que exprime opiniões parecidas com as nossas. De algum modo, encontramos aquilo que já esperamos”, diz Campello, ratificando a percepção de Benira Maia. De todo modo, para o filósofo, a pulverização de notícias e opinião é benéfica, desde que acompanhada por uma postura de criticismo. “Se, por um lado, a consolidação de novas mídias proporciona uma maior democratização e pluralização
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da informação, ela, por si só, não garante uma maior qualidade dos debates e uma recepção crítica do seu conteúdo”, adverte. Nessa direção, talvez a paralela multiplicação dos debates possa sinalizar, ao menos, para uma ampliação da disposição crítica. Dar a conhecer melhor o cidadão que ganha voz em todos os países é um dos efeitos das ondas de opinião. Nos últimos anos, de posse da nova ferramenta tecnológica, a mobilização popular em torno de reivindicações de grupos tem sido precedida por mobilizações que surgem nas redes. Esse é outro ponto da questão que não pode ser esquecido pelas mídias tradicionais. “O lado bom dessas manifestações virtuais é que fizeram com que as redações mudassem a forma de pensar e enxergar as notícias, deixando de ser uma avaliação fechada. As mobilizações virtuais são um novo termômetro”, ratifica a gerente de jornalismo da TV Clube, Roberta Aureliano. É nesse termômetro virtual que, a partir de agora, a realidade passa a ser descrita. E a opinião, amparada pela liberdade de expressão e potencializada nas redes digitais, precisa ser mais do que febre impulsiva curtida na base da emoção. (FL)
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JOÃO DONATO Um músico atemporal Discos inéditos, relançamentos e documentário marcam os 80 anos de um dos mais refinados compositores do país, precursor da bossa nova TEXTO Marcelo Robalinho
CON TI NEN TE
Perfil
Na sucessão de eventos ou fenômenos que compõem a vida, o tempo construído por João Donato aponta para o meio, nunca o fim. Com vários projetos previstos para ocorrer entre 2014 e 2015, em comemoração aos seus 80 anos de idade, completos agora em agosto, o compositor, pianista e arranjador parece viver o melhor momento da carreira. Reverenciado por colegas de trabalho e pela crítica e admirado pelo público das mais diversas faixas etárias, ele desafia o tempo, mostrando que a maturidade não lhe trouxe acomodação. Ao contrário disso, esbanja produção, vitalidade e jovialidade. Os lançamentos dos CDs O couro tá comendo (vol. 1) e O bicho tá pegando (vol. 2) são os mais recentes. Produções independentes do selo Acre, do próprio Donato, com a gravadora Discobertas, os discos trazem o registro ao vivo da apresentação do artista em dezembro de 2013, no Rio de Janeiro, em homenagem à extinta casa de shows Jazzmania. Com cerca de uma hora de duração cada, os álbuns passeiam pelos sucessos do compositor, além de faixas pouco
executadas e novas parcerias com Nelson Motta, Paulo Moura, Moacyr Luz, Mihay Freire e Gabriel Moura. Embora sejam complementares, os dois serão lançados separadamente. No próximo 27 de setembro, será a vez de o artista desembarcar em Montreux, na Suíça, para comemorar os seus 80 anos numa apresentação na noite Brasil Bossa e Samba, com participação de Gilberto Gil, um dos seus principais parceiros musicais. “Conheci o Donato logo depois da minha volta do exílio em Londres, em 1972. Ele transita muito facilmente entre os círculos prestigiosos e mais desconhecidos da música, o que reflete a natureza dele, de uma pessoa simples. A gente se conheceu através da Miúcha, que é uma amiga em comum. Acabamos nos tornando amigos e parceiros. Tenho muito apreço por ele. Faz uns três anos que não o vejo e estou com saudades dele”, afirma Gil, que abriu uma exceção na sua folga, em Salvador, durante os jogos da Copa do Mundo, para falar sobre Donato por telefone à Continente. Das parcerias com Gil, Lugar comum foi a primeira, seguida de outras, como
Bananeira, Emoriô e A paz (Leila IV), a mais popular de todas. A história envolvendo esta última canção é curiosa. Num final de tarde, lembra Gil, chega Donato à casa dele trazendo consigo uma fita com várias canções, todas chamadas Leila (uma antiga namorada do pianista), cada uma com uma numeração. “Eu disse que não podia ficar porque tinha um compromisso marcado. Mesmo assim, ele me colocou para ouvir a fita. Fui ouvindo até que ele cochilou no sofá. A Leila IV foi a que me chamou mais atenção. Na sequência, peguei papel e caneta e fui escrevendo a partir do sono tranquilo dele, que me remetia à ideia de paz e calmaria. Depois de uns 15 minutos, eu tinha feito a letra toda. Eu o acordei e ele achou
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linda a canção”, diz o baiano, que apelidou Donato de João Donatural em função do jogo de palavras entre o nome dele e a nota musical dó.
MINISSÉRIE
Gil é um dos nomes que participarão da minissérie documental Simplesmente João Donato, em fase de finalização e que será veiculada no início de 2015, pelo Canal Brasil. Dirigida pela diretora e produtora Tetê Moraes e pelo poeta e letrista Lysias Ênio (irmão de Donato), e dividida em quatro episódios de 26 minutos cada, a série apresentará um painel da vida e obra do artista. Nela, serão enfocados os primeiros contatos com a música, ainda em Rio Branco, no Acre, e o início da
sua carreira profissional no Rio de Janeiro, aos 15 anos, no grupo Altamiro Carrilho e Seu Regional, passando pela fase pré-bossa nova, o período em que morou nos Estados Unidos (de 1959 a 1972), onde tocou com grandes nomes da música latina e do jazz, como o trompetista e cantor Chet Baker, até a volta ao Brasil, quando se consolida como um dos principais artistas de sua geração. Além de Gil, o documentário prevê encontros musicais com artistas importantes da música, como Caetano Veloso, João Bosco, Joyce, Leila Pinheiro, Nana Caymmi, Chico Buarque, Emílio Santiago, Gal Costa, Martinho da Vila, Henri Salvador, Lisa Ono, Sérgio Mendes e Bud Shank.
Segundo Tetê Moraes, a ideia de trabalhar com Donato vem de meados dos anos 2000, quando conheceu o compositor pessoalmente. Naquela época, pensou-se em fazer um longa, mas não foi possível levar adiante o projeto por falta de patrocínio. Com a reestruturação do projeto para uma série documental, foram obtidos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e patrocínio do Canal Brasil. Com cerca de 200 horas de gravações coletadas nos últimos anos, a minissérie conta com parceiros e apoiadores, a exemplo da TV Pernambuco, que cedeu imagens da apresentação de Donato ao lado da banda paulista Bixiga 70 no Carnaval deste ano no festival Rec-Beat, em homenagem aos
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GILBERTO GIL
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FAMÍLIA
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CARNAVAL 2014
Artista participará do show de Donato em Montreux, em setembro
Com seu irmão, o letrista Lysias Ênio, e seu filho, o músico Donatinho Apresentação com Tulipa Ruiz, no festival Rec-Beat, no Recife
para aprender um instrumento como o irmão. Das cerca de 150 letras que já escreveu até hoje, 40 aproximadamente foram para melodias de Donato.
BIOGRAFIA
CRISTINA GRANATO/DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Perfil 2
41 anos do lançamento do célebre disco Quem é quem, que marcou a volta de Donato ao Brasil e a estreia das canções com letras em parceria com outros compositores, na época por sugestão do falecido cantor Agostinho dos Santos (1932-1973). “Lembro que ele foi lá à minha casa e nós copiamos uns sete ou oito cassetes para distribuir para diversos letristas. Como eu já tinha feito algumas letras antes, fiquei com um cassete também. Foi daí que saiu, por exemplo, Até quem sabe, gravada primeiro por ele e depois por vários outros artistas. Hoje, conta com mais de 30 gravações. Foi o meu début, sendo talvez uma das mais reproduzidas e melhores composições da dupla”, conta Lysias Ênio.
Sobre o processo de composição, Lysias diz que dificilmente os dois trocam ideias sobre as músicas, em sua grande maioria, por já terem sido gravadas anteriormente como tema instrumental. É o caso de Até quem sabe, intitulada de You can go numa gravação anterior. “Usualmente, ele me dá a melodia pronta para colocar a letra. Depois de pronta, a gente passa a limpo. Aí, sim, trocamos ideias”, afirma o irmão, que mora no Recife e atualmente passa uma temporada no Rio, para a finalização do documentário. Nascido num núcleo familiar em que o pai arranhava o bandolim, a irmã mais velha tocava piano e Donato, acordeão, Lysias diz que decidiu enveredar pelo mundo das palavras por achar que não tinha vocação
Outro projeto em fase de elaboração é a biografia do músico acreano. O responsável pela empreitada é o jornalista Antônio Carlos Miguel. Especializado em cobertura musical desde os anos 1970, ele iniciou o projeto há cerca de 10 anos por iniciativa própria, ainda na época em que trabalhava no jornal O Globo. Com cerca de 20 entrevistas já realizadas, o autor pretende aproveitar a comemoração dos 80 anos para finalizar e lançar a obra. Uma das curiosidades que deverá constar no livro é a participação importante do músico, nos anos 1970, no primeiro grande sucesso de Clara Nunes, Conto de areia, além da elaboração de arranjos para Gal Costa, Luiz Melodia e Alaíde Costa. “A vida pessoal não será a preocupação maior do livro. A ideia é fazer um trajeto musical para entender o encanto que ele mantém entre as pessoas das mais diferentes gerações. Donato é muito identificado com a bossa nova, mas ele aparece antes e ajuda na formação do movimento. João Gilberto dizia que a forma do Donato de tocar acordeão o influenciou na batida do violão. Tom Jobim era louco pelo piano do Donato. Quando a bossa nova acontece de fato, ele vai para os Estados Unidos, achando que iria tocar jazz, mas acaba tocando ritmos afro-cubanos. É um cara à frente ou atrás do seu tempo. Ele caminha numa brecha do tempo interessante”, atesta Antônio Carlos Miguel, que concedeu entrevista via Skipe de Miami, para onde havia ido no início de julho para participar de uma reunião do Grammy Latino, do qual é membro votante. Para a cantora e compositora Tulipa Ruiz, o que João Donato faz é universal e atemporal. “A obra dele é essencial para a compreensão da música da pré-bossa nova até os dias de hoje. Ele foi e é gravado por grandes nomes
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FLORA PIMENTEL/DIVULGAÇÃO
da música, dos mais velhos aos mais novos e é referência não só como compositor, mas como instrumentista e arranjador. Na minha opinião, é o mais elegante. A primeira vez que me liguei no Donato foi com disco Cantar, da Gal, que tem composições e arranjos dele. Foi amor à primeira ouvida”, diz. O primeiro encontro de Tulipa com o compositor ocorreu em uma coletiva do Rock in Rio, quando tocaram a música Efêmera juntos. “Ele trouxe a partitura da minha música escrita à mão e eu guardo isso com muito amor. Participar do show do disco Quem é quem, em fevereiro deste ano em São Paulo, também foi especial. Donato é mais jovem que todo mundo, ou melhor, jovem há mais tempo que a gente”, considera Tulipa, que concedeu entrevista à Continente por e-mail durante sua turnê pela Europa, mês passado.
CASAMENTO
A jovialidade e a simplicidade também são marcas de Ivone Belém, esposa e empresária do pianista. “É um privilégio estar ao lado dele. Mas eu vejo muito o lado do casamento também, porque muitas vezes não é fácil conciliar com o trabalho. Do mundo dele, o que mais me encanta é saber como uma pessoa tão simples pode brotar tudo isso e como ele influencia tanto as pessoas. Para mim,
A esposa do músico pretende disponibilizar o acervo mantido em sua casa. São manuscritos, fitas, LPs, entrevistas música era entretenimento. Hoje, vejo como uma coisa muito mais séria, mais do que uma crença. A forma como o João leva o seu trabalho é admirável. Nada o tira do foco da música. Foi uma grande lição, porque eu passei a entender os grandes compositores”, afirma. O começo da relação amorosa entre os dois foi curioso, diz ela. “A gente se encontrou por acaso em Brasília, em 1999. Eu nem era fã da música do João, mas sabia que ele era legal. Foi uma paixão fulminante. No nosso primeiro encontro afetivo-amoroso, ele teve um infarto e ficou internado em Brasília. Fiquei cuidando dele no hospital. E acho que ali se desenvolveu um relacionamento mais firme entre a gente. Felizmente, ele não ficou com nenhuma sequela e a gente acabou se casando pouco mais de um ano depois”, revela. Inicialmente auxiliando nos conteúdos do site, ela acabou recebendo o convite para trabalhar com ele em
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2005, tendo criado, em 2012, o Instituto João Donato, na intenção de organizar o acervo, pensando no presente e no futuro. Na casa deles existe um armário com 18 gavetas, cada uma com uma média de 100 fitas cassete. “Tem desde músicas inéditas, gravações ao vivo e em estúdio, e músicas compostas com indicação de letristas. Temos também manuscritos, LPs, fitas, toda a história oral dele solta em entrevistas por aí que queremos disponibilizar ao público desde agora, e não só para as futuras gerações”, diz Ivone. Parte desse material sonoro está sendo digitalizado pela Discobertas e deve ser lançado no final deste ano no formato box. Segundo Marcelo Fróes, dono do selo, pelo menos três discos inéditos – sendo dois de estúdio e um ao vivo – estão previstos na caixa, que deverão revelar uma fase até então considerada obscura de Donato, entre 1976 e 1986, em que não lançou trabalhos. “Queremos mostrar que o Donato não ficou parado nesse período. Não havia espaço para a música instrumental. Mesmo assim, ele foi atuando de forma independente e guardando toda a sua produção musical, que conserva uma boa qualidade sonora e um valor histórico fantástico. O armário dele é um tesouro”, constata o produtor e pesquisador musical.
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estudando o instrumento, tornando o ouvido da gente musical de certo modo. Aquilo deve ter me influenciado muito. Depois, ganhei um acordeão de brinquedo no Natal e aí comecei a tirar umas músicas de ouvido. Aí o pessoal lá de casa viu que eu tinha jeito para a música. Contrataram uma professora para me dar aula particular. Isso foi lá pelos cinco, seis anos de idade. Depois, ganhei um acordeão de verdade, aos sete anos. Também aprendi com os músicos da banda militar do quartel, porque o meu pai era comandante. CONTINENTE É verdade que você chegou a ser recusado pelo Ary Barroso para tocar no programa dele? JOÃO DONATO O programa dele era famoso. Fui lá e não me deixaram apresentar porque eu era muito pequeno. O Ary me mandou voltar. Ele disse: “Eu não gosto de meninos-prodígio no meu programa”, como quem diz “Você vai ser aplaudido mesmo que não seja tão bom, só porque é criança”. Não entendi na época. Nunca encontrei o Ary depois disso e não consegui mais falar com ele, de quem sou muito fã.
CON TI NEN TE
Perfil Entrevista
JOÃO DONATO “NÃO ME VEJO COM 80 ANOS” A conversa com João Donato fluiu de forma tão espontânea que se estendeu por mais de duas horas, na noite de 25 de maio deste ano, na véspera de uma de suas turnês fora do Brasil, na sala de música da sua casa, na Urca. O tempo foi o elemento principal do encontro. Tempo de suas recordações musicais e os projetos previstos para este ano, como a realização de uma
suíte sinfônica popular baseada em Debussy e Ravel, até a forma como encara a música e a própria idade. “Não me vejo com 80 anos, talvez uns 60. É como me sinto. Tomara que permaneça assim para que eu faça 100 anos do mesmo jeito, sem sentir o tempo passar”, diz Donato, nascido em Rio Branco, no Acre, no dia 17 de agosto de 1934, e que este ano completa também 65 de carreira. CONTINENTE Sua irmã foi quem lhe despertou o gosto pela música? JOÃO DONATO Todas as manhãs, ela praticava as escalas do piano na casa dos meus pais. Acabou se tornando um hábito diário acordar e escutá-la
CONTINENTE Como se dá o seu processo de composição? Você tem uma rotina ou deixa que a inspiração apareça? JOÃO DONATO Geralmente, vou para o piano e fico tocando aleatoriamente sem muita preocupação. Daí vem a ideia de praticar uma escala, acordes, uma sucessão de harmonias ou de tocar uma melodia que já existe, até que eu me veja envolvido numa música que está querendo aparecer. Mas não tenho um processo específico. Geralmente, você sente um interesse maior e que algo está dando certo. A gente percebe o momento em que a música toma sentido, da mesma forma que o poeta sabe os versos chegando. Você começa a gostar do processo da criação, como se ela fosse sua. Não tenho a intenção de fazer uma música por dia. Se fizer uma ou nenhuma, é natural. CONTINENTE Mesmo assim, você costuma ter muita produção nova. JOÃO DONATO É verdade. Costumo fazer música com bastante frequência. Estive observando alguns colegas. Eles
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não produzem tanta música assim como eu produzo. Alguns ficaram com aquelas músicas que eles costumam ter e não criaram mais nada. Estou sempre com uma ideia nova, um parceiro novo. CONTINENTE Você tem uma abrangência de parceiros grande, que vai desde a MPB até o rock. Como se dão essas parcerias? JOÃO DONATO É tudo natural. A gente vai conhecendo as pessoas no caminho, trocando telefone, trocando ideias e, de repente, encontra-se no estúdio e mostra uma música. Algumas vezes, acontece também de maneiras inesperadas. CONTINENTE Poderia citar um caso? JOÃO DONATO Fiz uma com o Martinho da Vila agora, Suco de maracujá, que eu tinha feito originalmente para a Martnália. Estava numa fita escrito “samba para Martnália”. Aí eu a encontrei e disse: “Tem um samba para você que eu queria que fizesse a letra”. Ela me perguntou: “Como eu vou fazer uma letra de um samba para mim? Melhor pedir ao meu pai”. Então, falei com Martinho. Semanas depois, ele me mandou o CD com a música gravada. CONTINENTE Qual a influência do Acre na sua música? JOÃO DONATO Rio Branco é uma cidadezinha que é rodeada de mato. Natural, né? Um lugar pequeno, no Norte do Brasil. Tem muito essa coisa das águas, que são todas verdes, e os rios, que são todos amarelados, barrentos. Então, isso é o que mais vejo quando fecho os olhos e componho. Vejo chuva, canoas passando, gente se molhando, os guarda-chuvas abertos, aí vejo as comidas todas, o tacacá, o tucupi, as frutas, cupuaçu, açaí... Aí vem a infância. Isso é a essência da minha música. As outras coisas são complemento. A minha terra é muito bonita. O Acre pretende ser diferente do resto do Brasil em termos de modismos, não sendo ditado pelas televisões. O pessoal lá tem outro modelo de vida, que não é esse globalizado. O povo acreano se acha especial. CONTINENTE Você falou certa vez que prefere compor na quietude. Você ainda continua assim? JOÃO DONATO Prefiro compor à noite. O silêncio é maior. Existe menos
trânsito, menos telefone, menos barulho. Gosto de compor ou de ouvir música, tanto faz. No silêncio é que a gente ouve a voz de Deus. Então, pode vir através de uma inspiração musical, literária ou um simples pensamento. No silêncio, você ouve alguma coisa. No barulho não dá para ouvir. CONTINENTE Muitos críticos de música dizem que você é um artista à frente do seu tempo ou um artista certo que está no tempo errado. Você concorda com isso? JOÃO DONATO Não acho nada. Sei que estou vivendo esta época de agora. Tive meus problemas no início, mas quem não os teve também? No começo, todo mundo tem dificuldade para expressar suas opiniões. O próprio João Gilberto teve problemas para começar a carreira. Debussy, meu grande ídolo, foi reprovado três vezes no Conservatório de Paris. Ou seja, não é por causa disso
"Prefiro compor à noite. O silêncio é maior. No silêncio é que a gente ouve a voz de Deus. No barulho não dá pra ouvir” que a gente tem de desanimar. Muito pelo contrário. Quando a gente acredita fortemente no que faz e pensa, tanto faz. Os obstáculos só servem para fortalecer a pessoa a buscar outros caminhos. CONTINENTE Você ainda mantém contato com o João Gilberto? JOÃO DONATO Nós paramos de nos falar. Na verdade, ele parou de atender o telefone. Então, eu parei de ligar. CONTINENTE Como surgiu a ideia de trabalhar a obra de Debussy e Ravel numa suíte sinfônica? JOÃO DONATO Há mais de 20 anos, venho estudando as obras deles, através dos livros editados com suas orquestrações. Comecei a me interessar por isso e tentar traduzir aquelas notas todas criadas para a orquestra e para o piano. Aquilo foi me dando um interesse maior. Comecei a gravar num
piano sampler, em que você grava diversas coisas simultaneamente e ouve tudo ao mesmo tempo depois: flauta, clarinete, oboé, trompas, violinos, harpa. Tive vontade de botar ritmo em certos lugares, porque as músicas deles te oferecem bastante balanço. Coloquei um ritmo para dar um tempero maior. A Ivone, minha esposa, deu a ideia de escrever isso de verdade, para tocar no teatro com orquestra. Aí eu me envolvi com o projeto e resolvi selecionar as partes que admiro mais neles, trazendoas para meu mundo e fazendo uma suíte sinfônica popular. Será uma coisa semi-clássica. São temas deles aos quais acrescentei piano, contrabaixo, bateria e percussão, em determinadas composições. Vai ficar um negócio muito bonito. CONTINENTE O Donatinho também toca piano. Como é ter um filho músico? JOÃO DONATO Acho maravilhoso vê-lo tocando. Ele aprendeu tudo sozinho. Chegou a ir à Escola do Antônio Adolfo quando morava comigo, antes de eu me casar. Ficou um pouco lá e depois saiu. Disse que já estavam ensinando a ele o que sabia. Hoje o observo tocando com todas essas pessoas da MPB: Vanessa da Mata, Djavan, Gilberto Gil, Marcelo D2, Fernanda Abreu, Baby do Brasil. Estamos para fazer, inclusive, um disco juntos, Donatão e Donatinho. Talvez seja gravado este ano. Como tem muita comemoração, não sei se sairá. Vamos criar tudo novo e será um disco de estúdio. Não sabemos como vai ser, apenas que seremos eu e ele juntos. CONTINENTE Você já disse que não se vê com 80 anos. Com quantos anos você se vê? JOÃO DONATO Não sei, mas 80 anos não é. Talvez uns 60. É o que eu sinto, como uma sensação térmica. Quando tinha 25, era 25 anos mesmo. Mas, depois dos 50, começou a mudar um pouco. Dos 60 para os 80, não vi muita diferença. Começou a ficar tudo um pouco igual o tempo todo. Tomara que permaneça assim para que eu faça 100 anos do mesmo jeito, sem sentir o tempo passar. MARCELO ROBALINHO
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BRATISLAVA Uma cidade gentil, em transição 1
Fronteira com países atraentes como República Tcheca e Áustria, a capital da Eslováquia mantém resquícios do socialismo, mas começa a atrair curiosos visitantes TEXTO Jarmeson de Lima
A lembrança da Tchecoeslováquia sempre vem à tona quando lembramos do antigo Leste Europeu. A separação dos países após a queda da cortina de ferro foi bem menos traumática, é verdade, do que a região dos Balcãs da Iugoslávia. Mas nem por isso a Eslováquia mudou radicalmente. Tampouco se mantém aquele local
predominantemente socialista. Em um passeio pela região, é possível constatar que, mesmo após 20 anos do fim da Federação, o país ainda se encontra em estado de transição. Enquanto a República Tcheca se modernizou e aderiu mais rapidamente ao capitalismo turístico, atraindo mais e mais visitantes a
Praga, a cidade de Bratislava, capital da pEslováquia, mantém resquícios da era socialista, mesmo fazendo parte da União Europeia (e distante do fluxo de turistas da “Paris do Leste”, como Praga é chamada). Mas se você prefere apreciar lugares e paisagens sem um fluxo intenso de pessoas ao seu lado e na frente das suas fotos, a Eslováquia merece uma visita. O euro é a moeda corrente no país, que tem um custo de vida bem menor do que o de muitas capitais europeias. Por exemplo, é possível comprar uma das muitas cervejas locais (de boa qualidade e puro malte) por menos de cinquenta centavos de euro, preço equivalente ao de uma de nossas cervejas. Se o símbolo do capitalismo tal qual conhecemos no Brasil é o modelo norte-americano, com a presença massiva de shopping centers e lojas de grandes marcas, na Eslováquia inteira há menos centros de compras do que na capital pernambucana. É claro que não seria apenas pelo preço da cerveja e para fugir de shopping centers que alguém se
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deslocaria até a Eslováquia, ainda mais tendo a República Tcheca ao lado. Como a Eslováquia é o único país da Europa cuja capital faz fronteira com dois outros países, a Áustria e a Hungria, o acesso à Bratislava é facilitado tanto por via terrestre, quanto ferroviária e fluvial. Para chegar lá, nem é preciso ir de avião. Até porque o aeroporto de Bratislava é pequeno e basicamente para rotas curtas e companhias de baixo custo. Basta dizer que o número de passageiros transportados no ano passado foi cinco vezes menor que o do aeroporto do Recife. Uma aventura mais interessante é ir até Viena e de lá seguir à capital eslava. Por sinal, é bem comum ver gente fazendo pequenas escalas em Bratislava para depois seguir caminho para outros países próximos, uma vez que a viagem de trem para cada destino dura uma ou duas horas. Essa ligação ferroviária com trens partindo de hora em hora de Viena a Bratislava também é um motivo pelo qual o país mantém melhores relações com a Áustria do que com
o “ex-irmão” tcheco, distante pelo menos mais umas três ou quatro horas via férrea e por preços que não compensam tanto o roteiro.
PRESTATIVOS
A Bratislava possui tantos castelos, pontes e casarões bonitos quanto os que se pode ver em Praga, com a vantagem de ter bem menos turistas. Pelo fato de a capital tcheca, hoje em dia, ter virado um novo point turístico e estar sendo bem (re)descoberta pelos próprios europeus, os serviços e os valores cobrados na cidade têm aumentado bastante. E isso acaba se refletindo até nos hábitos dos moradores e trabalhadores locais, que estão dando o seu jeitinho de faturar em cima. O modo insistente como cada garçom, vendedor, taxista e até ascensorista tcheco pedem gorgeta pelos seus serviços faz com que você se sinta constrangido em menos de um dia em Praga. Em Bratislava esse (mau) hábito não é recorrente. A simpatia e a vontade da população eslava em ajudar turistas não europeus também é frequente. E, mesmo que
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BRATISLAVA
Panorâmica do bem-preservado centro histórico da cidade
não se entenda o idioma local, ainda é possível se locomover e identificar o funcionamento da cidade. Observei um casal de japoneses carregado de mapas e folhas impressas tentando ir de um ponto a outro travando diálogos incompreensíveis com moradores e aparentemente sendo bem-tratados e satisfeitos com as respostas. Ao conseguir chegar e se deslocar pela cidade, o visitante é facilmente seduzido pelas ruas de seu centro histórico, muito bem preservado e rico em detalhes exóticos aos não iniciados. Bratislava é conhecida também pelas suas estátuas em lugares incomuns. Ou você acharia normal um lugar onde há uma estátua de um paparazzo em uma esquina, ou a estátua de um homem saindo de um bueiro em uma calçada? São monumentos em bronze que representam profissionais de uma categoria ou simplesmente personagens engraçados que já passearam por aquelas ruas, a
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Viagem exemplo do simpático Schoener Naci, um galante senhor do início do século 20 que tirava seu chapéu em homenagem às damas da época. Além da oferta de passeios pelas ruas, Bratislava é uma daquelas cidades que se aproveita bem de seus acidentes geográficos, utilizando sobretudo o rio como fonte de deslocamento, entretenimento e lazer. E não é qualquer rio que corta a cidade e, sim, o romântico Danúbio, que divide a fronteira da Eslováquia e atravessa outros países. Em homenagem à importância que o rio tem na região, foi criado o DonauFest, evento que quer conectar melhor os povos dos países e cidades por onde o Danúbio passa. Por sorte, tive a oportunidade de estar no país justamente durante o período de realização desse festival, em 2013, no final do verão europeu. Pelo fato da Bratislava estar em um ponto estratégico do rio, bem próximo a outras fronteiras, gente da Alemanha, Áustria, Hungria, Croácia, Sérvia, Romênia, Bulgária e até da Moldávia vem celebrar o momento. Como o país concentra um pouco das várias culturas da região e era parte de uma das mais emblemáticas repúblicas socialistas, é natural que outros povos se sintam acolhidos por lá.
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ISOLAMENTO CULTURAL
Pequenos (e, às vezes, incovenientes) hábitos nos levam ao antigo estilo de vida socialista na Bratislava. Um deles diz respeito aos banheiros. Por muito tempo, durante o regime comunista, a distribuição e consumo de água era subsidiada pelo estado. Para evitar desperdícios ou sua concentração durante o inverno gelado, o governo criou banheiros públicos nas ruas e praças que poderiam ser usados por todos gratuitamente, sem precisar gastar a água de sua residência ou do comércio. Os antigos diziam que eram impecáveis e a limpeza, exemplar. O problema é que, com o costume, a falta de infraestrutura e de reformas em prédios antigos,
muitos estabelecimentos deixaram de construir os próprios toaletes. Na passagem para o novo modelo econômico, o uso da água encanada foi liberado e os banheiros públicos da cidade ficaram praticamente iguais aos que a gente bem conhece pelo Brasil. Quem acaba sofrendo também com isso são os turistas, que devem localizar os melhores bares e restaurantes com sanitários disponíveis. Coincidentemente ou não, cobrar pelo uso do banheiro é uma fonte extra de renda para uma famosa rede de lanchonetes estabelecida por lá. Apesar de haver uma aura romantizada sobre o período socialista no país, as opiniões dos
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habitantes se dividem quanto àquele momento. Durante minha passagem por Bratislava, o Slovenské Národné Múzeum abrigou uma exposição sobre a vida no país durante a década de 1960. Em uma reconstituição de época, vários ambientes do local possuíam objetos decorativos, discos, pôsteres de cinema e peças de indumentária. Observando esses itens, era instigante imaginar como viveram os habitantes da Eslováquia em uma época de isolamento cultural do Ocidente, tendo como referência maior a influência soviética, mas com elementos que ocasionalmente furavam este bloqueio. Havia na exposição mais visitantes de fora do que do próprio país. Indagando a uma moradora de Bratislava sobre
a reconstituição de época, ela achou estranho o interesse em visitar algo assim, dizendo que não fazia sentido algum relembrar uma época em que o país viveu “parado no tempo”, numa hibernação de mais de 70 anos. Para ela, aqueles anos 1960 poderiam facilmente ser os anos 1940, 1950... pouca coisa mudara na vida dos habitantes tchecoeslovacos, que se preocupavam muito mais com o trabalho e a alimentação do dia a dia do que com o último lançamento do cinema ou as novas tendências da moda. Mesmo hoje, com empresariais modernos e prédios de arquitetura ousada sendo erguidos junto a casarões históricos, a vida em
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DANÚBIO
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MONUMENTO
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Célebre rio também corta a cidade Estátuas estão distribuídas em lugares incomuns
TURISMO
Bratislava atrai visitantes da Europa HISTÓRIA
Capital possui tantos castelos e casarões quanto Praga
Bratislava parece simples e sem grandes desafios, mediada por atividades culturais e esportivas frequentes. Isso, sem falar dos turistas, que passeiam da manhã até a madrugada pela cidade. O que incinta o viajante é descobrir o que a Eslováquia tem de diferente a oferecer e como mantém em equilíbrio o que de melhor herdou desses dois mundos em oposição.
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ERVAS Para curar males do corpo e da alma Prática tradicional no Brasil, transmitida através de gerações, o uso das plantas medicinais se aplica de problemas comuns de saúde a questões metafísicas TEXTO Luciana Veras FOTOS Roberta Guimarães
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“Minha iniciação como babalaô na cidade de Keto, hoje na República do Benin, África Ocidental, em 1953, facilitou e oficializou minhas pesquisas, mesmo porque tomar conhecimento do uso das plantas para a preparação de receitas, remédios e ‘trabalhos’ tradicionais constituíram, para mim, não somente um direito, mas uma obrigação”, narra Pierre Verger (19021996) em Ewé - o uso das plantas na sociedade iorubá, livro que a Companhia das Letras e a Fundação Pierre Verger lançaram em 1995, hoje esgotado, contudo ainda uma referência no estudo e na constatação da importância das ervas e plantas nas práticas das religiões de matriz africana. “As plantas eram-me entregues por meus confrades babalaôs acompanhadas de seus nomes iorubás e de frases curtas chamadas , as quais enunciam, em termos muitas vezes poéticos, suas qualidades”, complementa o fotógrafo e etnógrafo, que na África se fez Fatumbi (“renascido pelo Ifá”) e feiticeiro, e na Bahia, “o mestre de todos nós”, conforme descrição de Jorge Amado (1912-2001). Em Ewé (pronuncia-se “euê”), Verger discorre, em português e iorubá, sobre 447 “receitas medicinais e mágicas” (para apressar/segurar a gravidez, para atrair amigos, livrar alguém de um processo na justiça ou incitar a ira de determinado orixá, entre outras). Seu relato mantém-se atual, pois a utilização de ervas e plantas medicinais é uma prática tradicional salvaguardada em todo o miscigenado Brasil. Transmitida através das gerações como um hábito ou mesmo uma superstição, traduzse tanto no consumo cotidiano dos adeptos da medicina popular (quem nunca recorreu a um chá de capimsanto ou a um xarope de mastruz?) como nas cerimônias de fé ligadas às religiões de matriz africana ou ainda nos rituais de cura dos povos indígenas. Se, por exemplo, alguém cogita comprar arruda ou espada de São Jorge para espantar os maus agouros de um mês como agosto, está, às vezes sem saber, a repetir um comportamento ancestral. É o que a pesquisadora Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, especialista em etnofarmacobotânica do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro, da USP-PUC/SP, define como “saber C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 4 | 4 3
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acumulado”. “Como é que as pessoas sabem, por exemplo, que alecrim é bom? Porque dentro de suas casas cresceram ouvindo e vendo isso. Elas podem não mais cultivar o alecrim, mas saem de casa para comprar. A história das folhas no Brasil começa antes da chegada do português, com os índios e seus sistemas de crença e rituais de cura, e prossegue com a mescla entre os povos autóctones, os europeus e os negros. É bom lembrar que os portugueses já tinham acesso às especiarias asiáticas via Mediterrâneo, de modo que as trouxeram para cá ao chegar, da mesma forma que levaram plantas nossas para a África, antes mesmo da escravidão por aqui começar”, atesta.
Todas as etnias que conformam a cultura brasileira – índios, negros e europeus – utilizam-se das ervas nos seus cotidianos Tal intercâmbio propiciou a ampliação da oferta de ervas e plantas e, séculos depois, um horizonte plural no contexto contemporâneo. Manjericão, lacre, alfavaca, colônia, hortelã miúda e graúda, artemísia, erva-lanceta e levante, entre outras, são folhas secas ou raízes que qualquer um pode adquirir e misturar ou usar
como bem entender. José Carlos Pereira, o Zé do Mel, administra um box ao lado do Mercado de São José, no centro do Recife, há 37 anos; antes dele, seu pai, Antônio do Mel, vendia ervas e o adocicado néctar das abelhas que lhe deu um apelido transformado em sobrenome. Zé do Mel conta que aprendeu “lendo, ouvindo o pai e com os fregueses também” e hoje, embora a modéstia lhe impeça de se gabar, é apontado como “mestre” pelos vendedores do conjunto de barracas voltado à comercialização de ervas, plantas, essências e garrafadas. “Meu pai tinha contato com um caboclo e com ele aprendeu muito”, revela. Ele acredita que a procura nunca vai acabar. “Quem acha que o povo vai parar de comprar erva e planta não sabe nada. Todo dia chega gente querendo uma planta para fazer remédio”, diz. Suas receitas campeãs de venda são as de limpeza. “Quer um banho para tirar o que não presta? Manjerioba, tipim, carrasco, arruda, pinhão-roxo, lacre e carrapateira. Quer o banho da sorte? Macassar, alecrim, manjericão, levante, malvarosa, patchuli, bem-me-quer e botão-de-ouro. Quer um para chamar o amor? Levante, bem-me-quer e mil-homens”, engata. Josefa Alves, freguesa dele há uma década, sorri e requisita o seu quinhão para o zelo próprio. “Sou comerciante, quero fazer uma limpeza no lugar de trabalho para energizar”, comenta a paraibana, desde 1981 morando em Pernambuco. Uma dezena de metros adiante, no box 470, intitulado Dona Vera Ervas Medicinais, carqueja, espinheira santa, louro e boldo, folhas desidratadas vendidas em sacos, ladeiam jucá, sucupira e pau-ferro, pedaços de cascas de árvores. Quer se livrar de males no fígado, diabetes, gastrite, azia ou acalentar aquela vontade de emagrecer? Eis o lugar. “Há quanto tempo a senhora vende ervas aqui?”, a primeira pergunta. “Há uns 20 anos e tarará”, brinca ela. São 24 temporadas no comércio, o que lhe dá expertise para afirmar: “As mais procuradas são aquelas que servem para curar qualquer tipo inflamação, como aroeira e caju roxo”. Ela não se aventura a calcular a quantidade de produtos que oferece (“minha Nossa Senhora, são
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muitos”), mas enquanto atende uma freguesa interessada em comprar uma muda de arruda e outra de manjericão, uma senhora mais velha pede à filha que vá separando as plantas. “Não demore, que hoje é dia de benzer o pessoal”, adverte. A presença de uma benzedeira emula um corriqueiro procedimento indígena. “O ato de benzer e a própria figura da benzedeira são uma herança dos índios”, explica o antropólogo Renato Athias, professor do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (Nepe). Ele trabalha com populações indígenas desde 1972, com ênfase no sertão pernambucano (os Pankararu, por exemplo) e na região amazônica do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, em que lida com os Hupd’äh e os Tukano. “Para nós, para a botânica e para a fitoterapia, a planta tem seu poder através do princípio ativo. É evidente que grande parte das plantas que os índios descobriram, a exemplo do quinino, comprovam que sua experiência científica, não só nas tribos do Brasil mas nas das Américas, foi vital para o desenvolvimento da fitoterapia. No entanto, para eles, a essência da cura está nas palavras encantadas, que são um conhecimento mítico dentro das práticas xamânicas e mágicas”, acrescenta o professor.
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1 IROCO Existência da árvore sagrada no Terreiro de Mãe Amara é motivo de celebração para a yakekerê Maria Helena Sampaio e para o babalorixá Junior de Ajagunã 2-4 ERVAS Hortelã, babosa e pinhão-roxo estão entre as mais requisitadas do receituário popular
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PALAVRAS ENCANTADAS
É a mesma lógica do , as encantações assimiladas por Pierre Verger. “À primeira vista, é difícil perceber nas receitas qual é a parte mágica (que mais respeitosamente deveremos chamar de axé, poder), e quais as virtudes testáveis experimentalmente dessas plantas”, escreve em Ewé. “Nas religiões de matriz africana, as folhas são sagradas, mas os rituais também têm a cantiga, a louvação, entoadas geralmente em iorubá. Embora a erva seja o princípio de tudo. É como diz aquela frase kosi ewé kosi orisà: sem folhas não tem orixá”, partilha Maria Helena Sampaio, yakekerê do Ilê Obá Aganjú Okoloyá, o Terreiro de Mãe Amara, localizado em Dois Unidos, na zona norte da capital pernambucana.
Yakekerê é “mãe pequena”; sua mãe, Amara, é a ialorixá do terreiro de tradição nagô e doutrina matriarcal. Nele, em qualquer ocasião, as folhas se fazem componentes essenciais. “Elas trazem a essência do seu orixá para perto de você, seja num momento de purificação, como o amassi, que é o banho de limpeza, seja numa cerimônia de iniciação”, complementa Maria Helena. Folhas de algodão, colônia, corama branca, macassar e manjericão são rotina na casa, que assim presta sua reverência a Ossain (ou Ossanhê), o orixá das folhas. “Ele é o grande sacerdote das ervas, é quem, com ajuda dos ventos de Iansã, distribui o axé das plantas”, ensina Junior de Ajagunã, o babalorixá do terreiro e pai de santo da
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Entrevista
MARIA THEREZA LEMOS DE ARRUDA CAMARGO “EM TODOS OS RITUAIS DE CURA, A REVERÊNCIA AO SAGRADO É A BASE” Em julho, uma das principais
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Tradição
Roça Oxaguiã Oxum Ipondá. Em Mãe Amara, ele e Maria Helena celebram a existência de um iroco, árvore sagrada considerada uma “divindade”. Há também um pé de dendê, crucial para os ritos de limpeza e preparação das comidas dos orixás. Disso os dois podem falar; de outros procedimentos, nos quais também se inserem o ímpeto de Ossain e suas folhas, que incluem sacrifício de ervas, eles silenciam. Como a maioria dos povos indígenas, calam-se quando sentem que determinado costume é sagrado demais para ser tornado público. “Para o sacerdote, o silêncio aumenta-lhe o poder de cura. Faz crescer a simbiose entre ele e as folhas. Não falar no segredo potencializa sua magia e na mesma proporção o desejo de obtê-la. As plantas medicinais presentes em um terreiro estão impregnadas de sacralidade”, pontua o antropólogo e babalorixá Júlio Braga, do terreiro Axé
5 MERCADO PÚBLICO Nos logradouros, há “mestres” da medicina popular que comercializam as ervas
Loyá, de Salvador (BA). Ao falar no seminário Folhas sagradas, ocorrido em julho na Fundação Joaquim Nabuco, ele questionou se, fora das cerimônias religiosas e do ambiente sagrado dos terreiros, as plantas permaneciam eficazes. “A medicina popular tradicional e mesmo os remédios de senso comum comprovam a propriedade terapêutica das plantas e minerais”, ele mesmo respondeu.
FITOTERAPIA
Daí o nascimento, há mais de três milênios, da fitoterapia (do grego phyton, vegetal, e terapia, tratamento), a ciência de extrair das plantas medicinais as substâncias de onde surgem xaropes, tinturas, pomadas, chás e cápsulas. Foi a forma que o homem encontrou para democratizar o acesso a tais propriedades curativas. “Qualquer pessoa pode plantar capim-santo e dele fazer chá. Mas a fitoterapia
palestrantes do seminário Folhas sagradas, promovido no Recife pela Aurora 21, foi uma senhora de 86 anos. Aplaudida com entusiasmo, a pesquisadora Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro, da USP-PUC/SP, é uma autoridade com quatro décadas de estudos dedicadas à medicina popular. Seu interesse pelo assunto remonta à infância, quando acompanhava o pai, o médico Avelino Lemos Jr., em expedições às periferias de São Paulo. Ainda em 1972, ela venceu o prêmio Mário de Andrade, outorgado pela Prefeitura de São Paulo, por um trabalho realizado nas favelas paulistanas. Seu 14º livro, As plantas medicinais e o sagrado – a etnofarmacobotânica em uma revisão historiográfica da medicina popular do Brasil, foi tema de sua conversa com a Continente.
CONTINENTE De que fala seu novo livro? MARIA THEREZA Todos os meus livros são sobre as folhas, sabe? Sempre quis pesquisar a medicina popular e por isso tenho andado o Brasil inteiro desde os anos 1970. Comecei a escrever este livro no início da década de 1990. Minha ideia era traçar a historiografia do trânsito das plantas no Brasil. Do primeiro contato do colono português com os índios, de quando os jesuítas chegam e já encontram os índios influenciados pelo catolicismo dos colonos, do que os negros trouxeram
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LUIZ SANTOS/DIVULGAÇÃO
e do que já encontraram aqui… Para entender essa tradição bastante mesclada, eu precisava pesquisar o que acontecia no século 16 no mundo inteiro. Então fui estudar o que os portugueses trouxeram da Europa, da África e da Ásia para cá, o que levaram para a África através de suas feitorias. Cheguei aos fenícios, às navegações, à Mesopotâmia e à herança cultural que acompanha as folhas sagradas. CONTINENTE Qual a sua principal conclusão? MARIA THEREZA Não existe nenhuma medicina popular que não esteja vinculada a um sistema de crença. No Brasil, há um sincretismo com as influências indígenas, europeias e negras, mas em todos os rituais de cura a reverência ao sagrado é a base, a chave-mestra. As plantas possuem habitat próprio e as condições climáticas ou do solo influenciam os tipos que crescem ali, então existem plantas típicas do Nordeste e outras características do Sul. E também as condições de hoje são bem diferentes, pois não existe mais lugar para plantar
e os quintais urbanos são escassos. Porém, o valor de uma espécie passa de uma geração para a outra, de modo que o consumo seja sempre mantido, e sempre ligado à religiosidade, especialmente no Nordeste. CONTINENTE Por quê? MARIA THEREZA Porque, no Nordeste, os indivíduos são mais fiéis aos sistemas de crença que adotaram, seja a umbanda ou o xangô, seja ele juremeiro, catimbozeiro ou pai de santo. Aqui há mais reverência do que no Sul. Lá, você até encontra os facultativos, gente que recorre às folhas sem muita convicção, mas no Nordeste é muito forte o vínculo com a religião. O indivíduo ouve, vê, aprende e pertence ao meio religioso dele. Ali deposita sua fé. A religiosidade nordestina é intensa, é declarada com muita sinceridade, e isso é um elemento primordial no consumo das folhas sagradas. LUCIANA VERAS
possibilita que possamos ter o xarope de espinho-de-cigano, broncodilatador que atua contra a asma”, argumenta o farmacêutico Raimundo Fontinele, responsável técnico pelo Laboratório de Fitoterapia do Instituto Agronômico de Pernambuco – IPA, órgão ligado à Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária de Pernambuco. O laboratório produz cerca de 5 mil medicamentos/mês, distribuídos a uma rede de consumidores previamente cadastrados (atualmente, estuda-se uma maneira de ampliar o alcance, e assim possibilitar a comercialização direta). “Temos nove tipos de xaropes, cinco tinturas, três pomadas, três cápsulas e 15 tipos de chá”, enumera Fontinele. Chambá, hortelã graúda, vick/poejo e alho-do-mato são alguns dos xaropes, todos expectorantes; cavalinho, anador, quebra-pedra, transagem, cidreira e endro estão entre os chás, que amainam febres, dores de cabeça, gases, problemas estomacais e outras afecções digestivas; entre as pomadas, o confrei, cicatrizante e anti-inflamatório, é destaque; nas tinturas, rapo-deraposa é indicada para fungos da pele;
Nas religiões, as palavras sagradas acompanham o preparo das ervas, e, nos laboratórios, a manipulação já entre as cápsulas, a hortelã miúda, antiparasitária, estomáquica e digestiva, é a mais cobiçada. Interessante perceber que, embora a tecnologia aja para transformar 1/2kg de mastruz, 1 litro de álcool a 70%, 8kg de açúcar mascavo e 4,3l de água em um medicamento, o processo é artesanal. É preciso alguém para homogeneizar o que se tornará um xarope; para secar e triturar as folhas até que o pó do confrei vire o componente ideal para a pomada; ou mesmo para coletar na horta mantida na sede do laboratório, na qual se esconde, entre plantas mais viçosas, a vedete acanthospermum hispidum, o espinho-de-cigano. Tido como melhor combatente da asma, o espinho-de-cigano pode
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Tradição
CON TI NEN TE
Artigo
RENATO ATHIAS OS POVOS INDÍGENAS E AS PLANTAS MEDICINAIS
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ser facilmente confundido com a acanthospermum australe. “Quando recebemos das unidades do IPA no interior exemplares de acanthospermum, encaminhamos ao herbário para identificação”, situa o farmacêutico. “Nosso trabalho é nos certificar de que sigam para o laboratório apenas os exemplares da hispidum”, aponta a engenheira agrônoma Rita Pereira, curadora do herbário Dárdano de Andrade Lima, do IPA, o mais antigo da região Nordeste, com 90 mil exsicatas (exemplares de vegetais). Um frasco de xarope de espinhode-cigano é a concretude do poder balsâmico das plantas. Sua obtenção não engloba as encantações a que Pierre Verger aludiu em Ewé - o uso das plantas na sociedade iorubá, no entanto, de um certo modo, espelha o reconhecimento do homem ante a força vegetal. “O livro dele é um repositório de saber tradicional inestimável e uma colaboração das mais importantes ao campo da etnobotânica das religiões afrobrasileiras, área que tem recebido certa atenção, mas que continua
6 FITOTERAPIA Xaropes, tinturas, pomadas, cápsulas e chás são produzidos pelo IPA
pouco investigada”, opina Luís Nicolau Parés, professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e especialista na obra de Verger e na história das populações afro-brasileiras. “Os saberes litúrgicos e terapêuticos das folhas, preservados nas práticas religiosas tradicionais africanas e afro-brasileiras, são valorizados pela sua potencial eficácia medicinal e pela contribuição a um discurso ecológico de defesa da natureza, além de uma relação de troca harmoniosa com o meio ambiente”, evidencia Parés, a quem o “devagar na elaboração e a demora na difusão pública” do livro (resultado de 40 anos de pesquisas) demonstra o apreço do autor e seu respeito à ancestralidade. “É uma expressão do valor que Verger conferia a esse tipo de saber e conhecimento, pois, na cultura do candomblé, aquele que é mais velho ou mais importante vem sempre no último lugar”, vaticina.
Não existe um consenso, ou um discurso unificado, entre os povos indígenas com relação às plantas medicinais. Existem diferentes concepções, todas elas resultado de centenas de anos de uso e de observação. No caso dos povos Tukano e Hupd’äh, da Bacia do Rio Uaupés (Amazonas), a terapêutica e a prática da medicina tradicional têm uma ênfase muito grande no uso das palavras encantadas. Se cura muito mais com essas fórmulas, que as pessoas chamam de benzimentos. Além das plantas de domínio comum, existem outras, sobre as quais poucos detém o conhecimento, que geralmente funcionam como antídoto, para curas de processos de envenenamento, por exemplo, picada de cobra, ou para ferimentos. Os projetos de “revitalização de plantas medicinais” são vistos com muita cautela pelos Kumuá, Yaís e Baiaroá, os especialistas de cura entre esses povos. Pois essas plantas estão associadas a um conjunto de saberes e práticas que têm a sua origem nos mitos. Através das palavras encantadas se pode acessar uma fórmula, uma espécie de chave, para o mundo das curas e recuperar o equilíbrio, o bem-estar. Não se pode dissociar o uso das plantas das palavras encantadas, que são de conhecimento mais limitado de especialistas e terapeutas tradicionais, comumente chamados de pajé. As palavras encantadas são um conjunto de práticas rituais que vão desde um simples pedido de proteção até as práticas mais complicadas de feitiçarias
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e malefícios. Todas as práticas de cura são realizadas e mediadas pela palavra. Este termo é traduzido como “sopro”, em alusão à forma como o especialista recita as fórmulas, num sussurrar de palavras. Na linguagem regional, o termo “soprar” está associado à prática xamânica. O pajé geralmente usa uma pequena cuia onde é colocada água ou alguma erva para a pessoa ingerir, ou passar no corpo. O mais importante não está no conteúdo da cuia e, sim, no “sopro” no bi’in, como os Hupda’äh dizem. Em cada aldeia, geralmente existe um Kumu e um Baiá. Eles conhecem a relação de seu clã com os lugares desse mundo. O Yaí não existe em todos os lugares. E nem existem muitos na atualidade, porém todos são poderosos. Eles têm seus corpos preparados para exercer as atividades xamânicas em qualquer lugar, em qualquer clã. Podiam ultrapassar todas as fronteiras, desde que solicitados. Eles têm um aprendizado próprio, que, segundo os sabedores indígenas, poderia durar até nove anos, com o acompanhamento direto de um mestre. A preparação do corpo para o mundo exigia dessas pessoas um profundo conhecimento sobre o uso
das plantas. O kahpi (ayahuasca), o paricá, a coca e o tabaco são plantas que estão profundamente relacionadas aos processos ritualísticos de cura. Esses vegetais são personagens mitológicos e fazem parte das principais fórmulas de encantamento utilizadas por esses especialistas de curas. Essas plantas levam cada especialista em viagens nas diversas camadas do universo cósmico em busca de um conhecimento específico para curar ou para provocar um malefício. De acordo com esses sabedores indígenas, as doenças e mortes entre os índios do Rio Negro têm como causa principal a redução das práticas e da transmissão de saberes tradicionais entres os índios, bem como o desequilíbrio da natureza promovido pelos “agentes da sociedade envolvente”. As doenças poderiam ser classificadas etiologicamente da seguinte maneira: a) as que levam à morte, as mais graves provocadas e enviadas por outros especialistas (pajés), através de encantamentos. Estas são fortes e mortais; b) as provocadas por venenos preparados e misturados nas bebidas e comidas. Estas podem ser curadas, caso
conheça-se a origem e quem as enviou; c) as doenças cujas causas se encontram na floresta/ natureza, no rio e as provocadas por seres do ar. Para esses tipos de doenças podem ser encontradas as curas, que são feitas através de fórmulas apropriadas. Os estudos sobre as medicinas indígenas são apresentados através de uma lógica (racionalidade) do mundo ocidental, tendo como base a medicina oficial. E isso pode ser visto como um obstáculo para a compreensão da prática médica indígena. Os terapeutas indígenas, os detentores de saber, por exemplo, sempre dizem que não conseguem traduzir para o português os sentidos dos termos existentes nas práticas xamânicas. Ou seja, a língua portuguesa não tem palavras que possam traduzir ou indicar certos processos e transformações que a língua indígena possibilita na comunicação. Então, para falar de ideias e de concepções de saúde, doença e cura existentes nas medicinas indígenas, é necessário aproximar-se da língua, da epistemologia e entender a racionalidade indígena.
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Cardápio MEL Ingrediente versátil
Alimento milenar transcende as qualidades medicinais e adoçantes, ao ser utilizado pela alta gastronomia contemporânea nacional TEXTO Clarissa Macau
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No sertão brasileiro, quando
alguém fica doente, a tradição é bater na porta dos donos de abelhas pedindo mel para um remédio caseiro. Do Oiapoque ao Chuí se sabe que esse líquido doce, viscoso e dourado é ótimo para a saúde. “Nossa cultura pensa que mel é medicamento, não lembra a sua propriedade alimentar. O consumo é baixo, europeus comem ao menos 2 kg de mel por pessoa, ao ano; brasileiros, cerca de 200g. O estado do Piauí, por exemplo, grande produtor de mel, esquece-se de usá-lo na culinária”, analisa o especialista em apicultura, o piauiense Pedro Mel. Jerônimo Villas-Bôas, autor do livro Manual tecnológico de abelhas sem ferrão, é criador de colmeias há mais de 10 anos. Ele observa: “Ensina-se que mel é para passar no pão ou adoçar sucos, mas vemos o mercado gastronômico acatando novas maneiras de utilizá-lo para além de um adoçante, papel já substituído pelo açúcar”. Presente desde a pré-história, o mel feito pelas abelhas – a partir da transformação do néctar de flores, sugado por elas, em açúcar simples – foi testemunha da invenção dos primeiros biscoitos: os egípcios misturavam-no com o trigo e ofertavam o produto em rituais aos deuses. O líquido também está em receitas tradicionais, como o pão de mel, sobremesa russa do século 9. Hoje, funciona com ou sem cozimento, como cobertura, adoçante de chás, base principal de bebidas raras, como aguardentes e hidroméis, além de conservar alimentos. Embeleza, compõe e balanceia os sabores em pratos salgados. “Quer dar um brilho na carne ou adocicar a costela assada? Há a opção de finalizar a receita com o mel por cima”, ensina o chef de cozinha pernambucano César Santos. Caco Marinho, comandante de dois bistrôs na cidade de Salvador, é fã: “Boto o mel de abelha Apis numa versão de molho para a salada grega. Com ele, corrijo a acidez do limão colocado no condimento. Também uso num barbecue com costela de porco, para perfumar”. O gosto do mel depende do tipo de néctar coletado pela abelha, ou seja,
se provém de flores específicas, como a da laranjeira, ou de várias, como no mel silvestre. Os méis escuros, repletos de sais minerais, tendem a ser picantes e amargos. Os claros são de utilização mais fácil por serem menos invasivos. O importante é prezar pelo equilíbrio entre eles e outros ingredientes, para evitar que o tom doce não mascare a receita. O sabor e aroma do mel não são influenciados só pelas floradas das quais o pólen é retirado, mas pelo tipo de abelha que o leva. Atualmente, uma das iguarias mais queridas dos chefs são os exóticos méis de abelhas nativas brasileiras.
ABELHAS
A abelha mais conhecida do Brasil não é brasileira. Com seus temidos ferrões, a Apis Mellifera é africanizada (cruzamento de insetos importados da Europa e África), e zune por aqui desde o século 19. A estrangeira é dona dos méis mais famosos do país, em razão da sua eficiência de coleta, rendendo mais de 40 litros ao ano por colmeia. Quando beija as diversas flores, do cajueiro ao eucalipto, compõe líquidos doces, pouco úmidos e espessos. Enquanto isso, as abelhas meliponíneas do Brasil, chamadas “sem ferrão”, fazem pouco mais de um litro do alimento. Produzem um mel fino, que torna os sabores das floradas mais evidentes. Apesar de desconhecidas pela maioria, são cultivadas artesanalmente desde o início da história do país por índios, caboclos ou pesquisadores, hoje chamados meliponicultores – usualmente, de famílias que têm o mel como fonte de renda, em comunidades pelo país, por exemplo, nos estados da Amazônia, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte e Paraná. Um atrativo ao seu cultivo é o baixo custo. Dispensam roupas de proteção, pois não ferroam. “É bom deixar claro que a comparação não é de um mel de abelha com outro, mas o da Apis Mellifera em relação aos méis de mais de 300 espécies brasileiras, como a uruçu e jandaíra, que estão se tornando um atrativo gastronômico pelo teor menos doce e complexo”,
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CLARISSA MACAU
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Cardápio 1
Bebidas
O MEL QUE VAI AO COPO O mel é protagonista da primeira bebida alcoólica da humanidade: o hidromel, líquido dos deuses na história clássica. Sommelier curitibano, Luis Felipe Moraes é produtor artesanal dessa combinação de água e mel fermentada, pouco divulgada na atualidade. “O mel está para o hidromel como a uva para o vinho. As características do mel usado, da Apis ou nativo, serão passadas ao hidromel e é possível personalizar. Há várias categorias, como o capiscumel, que adiciona pimentas na mistura tradicional; metheglyn, com ervas; e bouchet, elaborado com mel caramelizado”, diz. Eles podem ser secos, meio-secos, doces, tendo níveis com gás ou sem, frisante ou espumante. “A tradição faz bem, quando junta cachaça e mel”, diz Jerônimo Villas-Bôas. Tanto o mel de Apis, quanto os méis nativos, como o de jataí e blends compostos de mel de uruçu com jupará, harmonizam com notas de madeiras – nas quais as cachaças puras são envelhecidas –, como a da umburana, do bálsamo e do carvalho. Os méis suavizam a agressividade do álcool. Existem, ainda, bebidas prontas, misturando cachaça, mel e limão. Além das raras e saborosas aguardentes de mel, como a Melissa – relíquia produzida até o início dos anos 2000, pelo meliponicultor pernambucano Carlos Chagas, dono da Granja São Saruê, em Igarassu. Na sua composição, isenta de metanol, o mel de abelha é fermentado no lugar da canade-açúcar. Quando o mel é envelhecido em barril por quatro anos, o sabor parece bastante com um uísque menos forte e seco. Para finalizar essa lista, existem no mercado as cervejas de mel, mais cremosas que as tradicionais, refrescantes e com um aroma elegante e adocicado, um bom exemplo é a britânica Waggle Dancer. (CLARISSA MACAU)
conta Jerônimo VillasBôas. “O mel nativo é suave. Muda de sabor não só a partir de diferentes floradas, mas também de uma colmeia para outra, dentro de uma mesma espécie”, diz o presidente da Associação Pernambucana de Apicultores e Meliponicultores, Alexandre Moura. Porém, em meio a tantas qualidades, há um problema: não é reconhecido como mel pelo Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura, por ter umidade maior que a esperada num exemplar “comum” (a referência é o mel da Apis). Assim, tende à fermentação e é considerado clandestino para comercializar, a não ser que seja pasteurizado. Nomes da gastronomia nacional como Alex Atala, Alberto Landgraf, Manoella Buffara, Caco Marinho e
César Santos usam as suas imagens e seus cardápios para divulgar e defender a legalização do nativo no comércio. Estão dispostos a assumir o mel fermentado: “Isso não quer dizer que é estragado. O ideal é um processo controlado, deixando uma acidez com leves traços alcoólicos. Muitos chefes de cozinha têm vontade de usar, mas temem comprá-lo pela questão da legalidade”, afirma Villas-Bôas que, em anos de pesquisa, viajando por comunidades ao redor do Brasil, nunca viu um caso de prejuízo à saúde causado pelo mel. “Alguns meliponários usam o processo de fermentação para conservar. Como o mel está fermentado e vem com uma rolha na garrafa, quando aberto, solta um som sutil feito espumante. Dura um ano, se colocado na geladeira”, explica Moura. “Costumo comprar garrafas e deixar
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1 APIS MELLIFERA Originária do cruzamento de insetos importados da Europa e África, é a mais conhecida no Brasil 2 GOURMET A chef Manoela Buffara utiliza mel nativo em suas criações
fermentando. Aprecio os tons de acidez que o mel desenvolve com o tempo”, diz o paranaense Alberto Landgraf, considerado o melhor chef da América Latina pela revista Four, e dono do restaurante Epice, em São Paulo. Ele usa os méis nativos para substituir o açúcar e ressaltar sabores básicos. Um de seus pratos é o palmito pupunha com pera fermentada e mel nativo. “Ele fica bem em preparações ácidas, ou com notas tostadas de amargo. É versátil, por não ser tão doce quanto os méis comuns”, observa. Outra combinação do menu de Landgraf é o palmito pupunha cozido a vácuo, grelhado com gelatina de mel de jataí – líquido que lembra o gosto da uva. No ano passado, Manoella Buffara sediou no seu restaurante curitibano o projeto Menu degustação mel da mata, em parceria com 60 famílias moradoras do litoral do estado do Paraná. A proposta do festival foi colocar à disposição dos clientes pratos que dialogassem com os méis de abelhas brasileiras. “Distintos do mel comum, que puxa os pratos para um agridoce, os nativos podem substituir não só o açúcar, mas outros temperos. A uruçu-amarela
Produzido por mais de 300 espécies brasileiras, o mel nativo tem teor menos doce e complexo que o da Apis Mellifera possui amargor doce, indo bem com carnes de caça, como o magret de pato. O mel de tubuna pode ser usado sem problemas em salgados, pois não é doce. Fica ótimo em carnes cruas de peixe, carpaccio e steak tartare, acentuando o sabor”, observa ela. Entre seus ingredientes, ainda guarda o acre mel de abelha mandaçaia, capaz de substituir o sal e limão. Outro mel interessante é o da abelha guaraipo, com tons de mato e frutas secas. “Porém, pela quantidade de produção por colmeia, qualquer nativo custa 10 vezes mais que o mel tradicional. Algo como 180 a 240 reais por litro. Por isso, uso nos festivais e não no dia a dia”, lamenta o chef Caco Marinho. Ele tem predileção pelo mel de uruçu nordestina. Carré de paca
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com manteiga de coentro bravo, banana da terra e mel de uruçu é um de seus pratos. Basta um fio de uruçu para valorizar a comida com agradável sabor avinagrado e licoroso. Combina também com os mais simples assados de frango. Infelizmente, as abelhas, sejam as Apis ou as nativas, estão em perigo de extinção. Uma das razões do “transtorno do colapso de colônias” (fenômeno do desaparecimento de abelhas no planeta) é o uso excessivo de agrotóxicos nas lavouras, visitadas principalmente pelas africanizadas. As abelhas nativas são vítimas dos meleiros mal-intencionados. Pessoas que encontram as colmeias naturais destroem-nas para fugir com a produção e vendê-la, deixando os insetos sem casa. Como são as principais polinizadoras das plantações do mundo, as plantas morrem sem abelhas, escasseando a alimentação dos animais, o que inclui e influencia os seres humanos. A perda do mel será um dos tristes efeitos adversos. Não só a gastronomia, mas a humanidade deve motivar a sobrevivência das abelhas e do seu apetitoso produto.
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ROZENBAC O protagonismo do compositor
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PARCEIROS Depois de ouvir uma música de André Rosemberg (esq.), Bactéria lhe propôs produzir o disco
Autor de canções desde a juventude, André Rosemberg firma parceria com o músico e produtor Bactéria em disco despretensioso e cheio de referências TEXTO Marina Suassuna
Sonoras “O meu trabalho principal não é
de cantora. Eu canto porque são as músicas que eu faço e as letras que eu escrevo. Mas não é uma coisa que está de frente para mim. Acho estranho ser chamada de cantora.” Pensamentos como o de Karina Buhr refletem o caminho da música brasileira já trilhado por artistas de outras gerações, em que a voz nem sempre toma as rédeas de uma canção. Estabelecer uma comunicação por meio de uma letra, intenção melódica ou linguagem própria torna-se, muitas vezes, mais importante do que exibir uma voz pura, afinada e limpa. “Essa coisa de cantora ficou estigmatizada. ‘Vozes brasileiras’, que vozes?! São pessoas, não é apenas uma voz, tem ideias ali”, defendeu, em entrevista a um jornal da Bahia, a percussionista e compositora baiana, que morou boa parte da vida em Pernambuco e hoje está em São Paulo.
Karina se queixa de que o Brasil passou muito tempo com intérpretes que não faziam suas próprias músicas e, enquanto isso, havia muitos compositores que não eram divulgados, salve exceções. “As letras são muito importantes até para definir os ritmos, as quebradas, os tempos. Tudo é em cima das letras”, defende, sem desmerecer os demais processos de composição musical. Para alegria de Karina, não tem sido difícil, nos dias de hoje, encontrar compositores que estão abrindo mão da posição de criadores invisíveis e colocando-se como protagonistas de suas próprias canções. André Rosemberg nos traz um testemunho disso. O jornalista, compositor e proprietário do Bar Central – reduto boêmio da cena cultural recifense, no Bairro de Santo Amaro –, lançou, em 2013, o projeto RozenBac, desenvolvido com o tecladista e produtor musical
Bactéria, o Bac, um dos fundadores da Mundo Livre S/A, com passagem por projetos como Los Sebosos Postizos e Variant, e atualmente membro da banda de Otto. Encartado nesta edição da Continente, o disco homônimo reúne 10 canções, oito delas compostas por Rosemberg, que, apesar de inexperiente como vocalista, sentiu-se à vontade para cantar todo o repertório. “Eu não me sinto um cantor, mas dá pra desenrolar, porque as músicas são minhas. Acredito que não é algo que vá desagradar tanto. Hoje em dia, acabou essa coisa do intérprete. As pessoas estão sendo levadas a cantar por outros motivos.” Compositor desde a juventude, André Rosemberg teve a sua primeira experiência num estúdio em 2008, quando gravou o EP AmaDor - quatro sambas e um reggae à procura de intérpretes, sem tiragem comercial, apenas distribuído entre amigos. A ideia, como
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sugere o título do álbum, era procurar intérpretes que gravassem suas músicas. “O AmaDor cumpriu uma função. Não chegou ninguém para gravar, mas chegou Bactéria, que me procurou no Central, depois de escutar uma das faixas no programa de rádio de Roger de Renor, querendo produzir um trabalho comigo”, conta Rosemberg. “Sempre fiz música quando era jornalista, mas precisava de um parceiro. Bac vestiu a minha música, abraçou o projeto.” A parceria deles resultou num projeto refinado, com letras poéticas e melodias elaboradas, compostas por Rosemberg no violão. Os arranjos “classudos”, segundo ele, contrastam com sua voz não profissional. É essa a ideia que envolve o ouvinte: um misto de informalidade e sofisticação, típico do som produzido em Pernambuco. “Nós abandonamos a formalidade que havia no AmaDor, em que predominavam arranjos mais clássicos. Mas sem
O repertório do disco RozenBac abrange gêneros diversos, como samba, reggae, pop, brega, tango e até poema-canção desmerecer o EP. Afinal, foi ele que nos uniu. Mostrei a Rozen que suas letras poderiam caminhar de maneiras diferentes, sem perder a essência”, comentou o produtor Bactéria. RozenBac foge de uma obra conceitual. Seu repertório abrange samba, reggae, pop, brega, tango, poema-canção. Parte desse sincretismo sonoro tem a mão de BiD, Buguinha Dub e Yuri Kalil que, a convite de Bactéria, participaram do processo de mixagem – tratamento estético pelo qual a música passa após a
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gravação. “Geralmente se coloca um mixador para dar uma unidade ao trabalho, mas neste disco foi o contrário, há uma falta de unidade consciente”, deixa claro o compositor. Os três convidados acrescentaram bastante ao álbum em termos de linguagem, cada um com suas respectivas bagagens. Quem acompanha os trabalhos de Chico Science & Nação Zumbi, Seu Jorge e Arnaldo Antunes, certamente conhece BiD e faz ideia da contribuição que é a sua assinatura enquanto produtor. Não à toa, ele é considerado um dos “cavaleiros das sombras” da música brasileira. Segundo Rosemberg, ele proporcionou ao disco um som mais aberto, pop, para tocar no rádio, explícito em faixas como Teu nome, Você e Esse samba. Já Yuri Kalil trouxe timbres menos convencionais para as faixas A solidão e sua porta e Adam, fruto de sua experiência com nomes como Cidadão Instigado,
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Sonoras
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Thiago Pethit e a própria Karina Buhr. Enquanto Buguinha carimbou sua marca com dubs e efeitos em músicas como Keep fighting e Musa. “Cada uma tem uma sonoridade. Deu para sentir a mão da galera, isso é mágico. Um mixador não é só um mixador, é mais um para somar”, comenta Bactéria que, ao lado dos técnicos de som Djalma Rodrigues e Bruno Freire, do estúdio Casona, também assinou parte da mixagem sob o codinome de Dom Casebre. Quem também contribuiu com o disco foi a atriz Hermila Guedes, revelando-se uma intérprete e tanto. A voz envolvente da atriz pega o ouvinte de surpresa, logo na primeira faixa, Esse samba, em que ela faz duo com Rozen. O convite partiu do compositor que, ao saber da vocação da amiga, enviou-lhe algumas músicas para que escolhesse. “Eu gosto de cantar, mas só uso essa pequena aptidão no teatro junto com meu grupo do Recife, o Coletivo Angu de Teatro. Foi uma surpresa muito boa, principalmente porque não sabia que André compunha, muito menos que cantava. Adorei a experiência e principalmente o resultado”, diz a atriz.
Com 10 faixas, o disco contou com BiD, Buguinha Dub e Yuri Kalil, na mixagem, e com a atriz Hermila Guedes, no vocal POETAS
Além de Hermila, outras vozes femininas entraram no disco, entre elas a de Joana Pena, neta de Carlos Pena Filho, de quem Rosemberg musicou o poema A solidão e sua porta. A escolha por musicar o poeta pernambucano se deu durante a montagem do repertório. “O poema de Carlos Pena já estava perto de mim há muito tempo, entre meus escritos, papéis e rascunhos”, explica. Como se não bastasse, outro poeta pernambucano lhe serviu de estímulo. Manuel Bandeira, cujas obras completas acompanharam Rosemberg em vários mochilões pelo mundo, foi a fonte de inspiração da música Éter, composta em parceria com Bactéria.
COLABORADORES
Bactéria e Rosemberg somente convidaram os músicos para tocar durante o processo de gravação
“Minhas músicas são todas cheias de referências”, diz o compositor. Quem escutar a faixa Teu nome, facilmente lembrará de Gal Costa recitando “E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar, não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem”, em Meu nome é Gal, escrita por Roberto e Erasmo Carlos. Assim como Esse samba faz alusão direta a Canto de Ossanha, de Vinícius de Moraes e Baden Powell. “Apesar de terem sido feitas em épocas diferentes, inconscientemente, minhas músicas estão sempre falando das mesmas coisas: tempo, poesia, amor e desamor. Mesmo estando em primeira pessoa, eu ficcionalizo as letras, procuro falar de sentimentos mais amplos, não foco só o meu ego”, explica o compositor. A despretensão com que André Rosemberg e Bactéria conceberam o projeto, sem convocar uma banda e ensaiar antes das gravações, somandose à ausência de um conceito préestabelecido para o trabalho, torna o trabalho singular, fiel ao fluxo natural dos acontecimentos. O que arriscaram deu certo. A começar pelos músicos, que foram sendo chamados no decorrer das gravações. Sem falar dos integrantes do estúdio Casona – Cristiano Bivar (bateria), Djalma Rodrigues (violão e guitarras) e Bruno Freire (técnico de som) – que se dispuseram a executar algumas canções. Beto do Bandolim (bandolim), Marcos Axé e Malê (percussões), Hugo Carranca (bateria), Jô do Vale (piano rhodes), Parrô Melo (clarinete), Alberto Guimarães (violão de sete cordas) e Artur Dosa (guitarra) foram alguns dos convidados. “Foi um trabalho colaborativo, graças à abertura que dávamos a todos que chamamos para gravar”, contou Rosemberg. Se considerarmos que os verdadeiros criadores são os compositores, RozenBac faz jus a tal princípio, uma vez que nos permite ter acesso direto à voz do compositor e, de quebra, aos que o ajudaram a se expressar. A influência de Bactéria como produtor também é notável: “Minha preocupação foi fazer um disco sem apelação musical. Tem que ter algo de orgânico, senão fica pasteurizado, artificial”, resume.
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MARK SANDMAN Evocação do bardo
Há 15 anos, morria o compositor e músico, membro-fundador de uma banda de rock bastante peculiar, a Morphine TEXTO Fernando Athayde
Nos 10 anos de existência, terminados com a morte do líder e vocalista Mark Sandman, em 1999, a Morphine gravou cinco discos e foi lembrada como um trio de rock sem guitarra, formada por um baixo de duas cordas, bateria e sax barítono. Na verdade, a banda, muito além dessa configuração pouco usual, foi o epicentro de uma ruptura da forma de produzir, tocar e, sobretudo, escrever canções. Sandman, detentor de uma grande sensibilidade poética e de uma percepção encantadora da natureza, relacionava-se com a arte simbioticamente. Ele necessitava dela da mesma forma que ela o possuía
a todo instante. Como mostrado no documentário Cure for pain: the Mark Sandman story (2011), de Rob Gordon Bravler, o músico era uma pessoa fechada, cujas grandes dores nunca foram confidenciadas a um ombro amigo – algo constatado com o melancólico depoimento do saxofonista Dana Colley, que, mesmo sendo uma das pessoas mais próximas a Mark, levou décadas para descobrir que o companheiro havia perdido um irmão mais novo também saxofonista quando jovem. Assim, ao nos depararmos com versos como “All around the world/ No one understands me/ No one knows what I’m
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trying to say/ Even in my home town/ My friends make me write it down”, de You speak my language, a relação de mutualismo que impulsionava a forma de trabalhar do compositor fica clara. A canção era o mecanismo que cadenciava suas emoções mais intensas e o mantinha em paz. Morphine, por assim dizer, é exatamente o resultado da união fundamentada na troca entre o extravasamento psíquico do artista e a própria vida atribuída ao organismo instável que é a arte. A formação da banda, na verdade, é o reflexo disso. Em algum ponto de sua carreira, Sandman, indagado sobre o porquê de tocar um baixo com apenas duas cordas, responde: “Eu comecei com apenas uma. Numa corda só já é possível encontrar todas as notas
musicais”. É óbvio. É tão óbvio que ninguém nunca havia percebido. Platônica, a música da Morphine representa, antes de qualquer aparência, uma visão essencial daquilo que é necessário à sobrevivência da própria música: o som. Quase caminhando em paralelo aos 40 anos do rock’n’roll que o precederam, o trio era visual e sonoramente tudo aquilo que ninguém jamais imaginou, mas cujo espectro sonoro ainda hoje nos transporta para um estado de admiração instantânea. Um pulso que nos leva ao inconsciente auditivo. E se o grupo era completado pela alternância entre Billy Conway e Jerome Deupree, na bateria, e pelo virtuosismo de Dana Colley, que por vezes tocava dois saxes ao mesmo tempo, é digno situar que a
MORPHINE
Banda norte-americana era formada por Mark Sandman (voz e baixo), Billy Conway (bateria) e Dana Colley (sax)
importância de Sandman na banda transcendia a densa e psicanalítica verdade que o fazia viver. Como instrumentista, ele era genial. Ao longo dos cinco discos que a banda gravou, o baixista e vocalista incorporou ao gênero, denominado por ele mesmo de “low rock”, elementos e sonoridades da música oriental, equipamentos customizados à mão e dissonâncias calcadas em uma infinidade de técnicas e ruídos produzidos sob a total entrega à música e aos processos criativos de composição e gravação. Mark, que costumava utilizar um slide para tocar alguns arranjos de contrabaixo e frequentemente processava sua voz através de um microfone específico para a captação de gaita, chegou a gravar, produzir e mixar o último álbum da Morphine, intitulado The night e lançado postumamente em 2000. O disco legitima o legado deixado à eternidade na noite do dia 03 de julho de 1999, quando Sandman caiu morto em pleno palco da primeira edição do festival Nel Nome del Rock, em Palestrina, nos arredores de Roma. A morte dele, intensa como foi a própria vida de alguém que decidiu sair de casa ainda muito cedo por não aceitar a visão de mundo dos pais, e viveu sete anos migrando de um país para outro, é um marco na história da música. Talvez não soe tão apoteótica e catártica quanto o suicídio de Kurt Cobain, ou o misterioso óbito de Jim Morrison, mas é o desfecho que condiz com a aura que permeia a obra. Terceiro filho morto dos quatro de Guitelle Sandman, que viria a contar sua história através do excruciante livro Four minus three: a mother’s story (Quatro menos três: a história de uma mãe), em 2007, Mark Sandman viveu quase 20 anos a mais que os cabalísticos 27 dos rockstars e nunca atingiu o sucesso absoluto no mundo inteiro. Como ele mesmo escreveu na letra de Super sex, última canção que começou a tocar antes de morrer,“Yes, hello, my name is Mark/ I’m not rich/ I’m not super star”.
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INDICAÇÕES ALTERNATIVO
BUZZ OSBORN This machine kills artists Ipecac Records
Novo álbum solo do vocalista e guitarrista Buzz Osborn, que há três décadas participa de uma infinidade de projetos estranhos e inovadores, como o Melvins e o Fantomas. No disco, ele aposta numa série de composições de voz e violão, embora o conjunto da obra não tenha nenhuma característica folk. Com sua voz grave e agressiva, ele canta 17 canções criadas a partir de muita dissonância e de sonoridades sombrias.
INDIE ROCK
FOLK
EMI Japan
Rover Records
JAMES IHA Look to the sky Guitarrista original do Smashing Pumpkins, James Iha nunca retornou fortemente ao mainstream, depois que a banda liderada pelo despirocado Billy Corgan acabou em 2000. Ainda assim, ele provou seu valor ao conceber este segundo disco solo, que desbanca qualquer um feito pelo seu ex-companheiro dos anos 1990. O disco encontra um ponto de convergência entre o romantismo e a experimentação, sendo tão bem gravado tecnicamente quanto belo em sua proposta.
NICK DRAKE A day gone by Compilação de gravações caseiras e outras raridades de uma das figuras mais inquietantes e obscuras da música do século 20. Nick Drake, que lançou três belos discos entre o final da década de 1960 e a metade da década de 1970, cometeu suicídio aos 26 anos atormentado pela depressão. Esta coletânea não visa fazer um resgate da obra do artista, mas é uma porta de entrada para conhecer um dos mais talentosos e trágicos músicos que já passou pela Terra.
SHOEGAZE
MY BLOODY VALENTINE mbv Independente
Quando lançou o Loveless em 1991, o My Bloody Valentine concebeu uma obra de arte singular, dando origem ao gênero shoegaze. A banda, que entrou num hiato após o tal lançamento, passou a figurar no universo da música alternativa como uma lenda. Em 2013, Kevin Shields, mentor do grupo, apareceu com o anúncio do novo disco e um retorno aos palcos. m b v não possui a força que seu predecessor tinha, mas marca o retorno de um artista que todos pensavam estar enterrado.
Na eira
A MÚSICA COMO MANIFESTAÇÃO DE FÉ É notável quando música e espiritualidade se confundem. Isso acontece porque a música expressa estados e sentimentos que podem ser considerados um modo de vida, assim como aquilo que está relacionado à ordem do sagrado. Segundo a musicista e pesquisadora Renata do Amaral, em entrevista ao jornalista maranhense Zema Ribeiro, “o sagrado brasileiro, tão diverso, é o que invariavelmente fundamenta nossas tradições populares”. Ela se vale desse argumento para explicar a essência de Na eira, como foi batizado o disco gravado pelo coletivo do qual faz parte, Ponto BR. Ainda de acordo com Renata, a “eira” aparece em muitas cantigas de terreiro como “um lugar ao mesmo tempo real e metafísico”, cujos “limites podem ser diluídos”. Além de coordenar o projeto, a pesquisadora integra o grupo, que reúne grandes mestres da cultura popular tradicional em diálogo com músicos que, além de
atuantes na cena contemporânea através de trabalhos solos e com diversos grupos e artistas, são pesquisadores da cultura popular. São eles, além da própria Renata, o pernambucano Éder “o” Rocha (exMestre Ambrósio), o suíço Thomas Rohrer e o maranhense Henrique Menezes, radicados em São Paulo. Humberto de Maracanã, cantador de bumba meu boi, do Maranhão, Walter França, do
Maracatu Estrela Brilhante, do Recife, e Zezé Menezes, caixeira do Divino, da Casa Fanti-Ashanti, também do Maranhão, são os mestres que se propuseram a expandir suas possibilidades artísticas, harmonizando as manifestações populares de suas comunidades com as experiências e estéticas trazidas pelos músicos da nova geração. Um verdadeiro salto temporal e social difere os mestres dos músicos
que, no disco, rompem tais fronteiras e transformam-se numa única voz, a fim de comunicar um sentimento em comum: a música como uma manifestação de fé, em especial a música de raiz brasileira, que está no inconsciente coletivo e vem influenciando toda uma produção contemporânea Brasil afora. As toadas de maracatu, bumba meu boi, cocos, cirandas, carimbó, e outros ritmos presentes nas manifestações populares, explorados sobre bases pré-gravadas, dão corpo ao repertório que, no palco, ainda dialoga com a dança. Em 2013, o Ponto BR esteve em turnê por nove capitais brasileiras, entre elas o Recife, apresentando o show Na eira. O desejo de que os ritmos tradicionais não circulem apenas em pequenos nichos e ecoem cada vez mais nos centros urbanos é o que impulsiona o grupo, sempre disposto a desfazer limites, como se, de fato, estivesse na eira. MARINA SUASSUNA
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Derek Jarman: cinema é liberdade 5-24 Ago Caixa Cultural Recife Gratuito
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DEREK JARMAN Cinema de resistência
Mostra traz o espírito iconoclasta do diretor britânico, a partir da exibição de seus longas e curta-metragens e de debates sobre legado, 20 anos após sua morte TEXTO Márcio Bastos
Assumidamente homossexual, Derek
Jarman foi um intenso ativista da causa LGBTT em uma época na qual o assunto ainda era tabu. Seu engajamento se intensificou com a descoberta de que era portador do vírus HIV, em 1986, fato que influenciaria sua obra dali por diante. Ao tornar pública sua condição, ele lutou para chamar a atenção para a epidemia, à época ignorada pelos governos. Atuante durante a Era Thatcher, com o estado assumindo a política
neoliberalista e o consequente corte dos incentivos à cultura, ele se tornou uma referência em tempos sombrios. Mesmo debilitado pela doença, Jarman continuou trabalhando intensamente. Segundo o biógrafo Roger Wollen, autor de Derek Jarman: a portrait, a temática queer sempre esteve presente em seus trabalhos, mas, com a descoberta do vírus, ela passou a ser um assunto central, “determinante”, da obra do britânico. “Eu tenho aids e
fiz quatro longas desde que eu descobri que tinha a doença – e vou fazer mais dois em seguida. E escrevi três livros. Eu queria mostrar às pessoas que esse problema em particular pode, na verdade, ser superado. É preciso ser otimista”, afirmou o artista em uma entrevista ao Channel 4, em 1991, três anos antes de sua morte. Seu último filme, Blue (1993), lançado nos seus últimos meses de vida, representa um marco no cinema, ao abrir mão completamente de imagens. Ao longo de seus 79 minutos, a película reflete o próprio estado de seu criador, que passou um período cego por conta de complicações provocadas pela síndrome. A tela azul se torna uma alegoria para as reflexões de Jarman sobre a vida e sua finalidade. Em Blue, Jarman fez uma espécie de testamento fílmico. Nos instantes finais da obra, ele sentencia poeticamente: “Com o tempo, nossos nomes serão
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1 JUBILEE Filme é considerado o primeiro do punk britânico 2 CARAVAGGIO Obra revisita personagem sob ótica homoerótica 3 DEREK JARMAN Cineasta também incursionou pela literatura, pintura e cenografia
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esquecidos. Ninguém se lembrará do nosso trabalho. Nossa vida passará como traços em uma nuvem e se dissipará nos raios do sol lutando com o nevoeiro. Porque nosso tempo é a passagem de uma sombra...” O quão surpreso não estaria Jarman em saber que, 20 anos após sua morte, sua obra continua com a pungência que impressionou crítica e público desde sua estreia com o filme Sebastiane (1976). Multiartista, com incursões prolíficas na literatura, pintura e cenografia, ele é considerado um dos fundadores do cinema independente britânico, além de ser um dos primeiros cineastas a abraçar abertamente a temática queer. O britânico é tema da mostra Derek Jarman – cinema é liberdade, que acontece entre os dias 5 e 24 de agosto, na Caixa Cultural do Recife, com exibição de seus longas e curta-metragens, além de promover e discutir o seu legado.
RESISTÊNCIA
Considerado por alguns críticos como um “tradicionalista radical”, ele incorporava em seus trabalhos uma simbiose entre o universo clássico, da “alta cultura”, e os pensamentos e estéticas marginais da sociedade da época, a exemplo dos movimentos punk e queer. Jarman era um defensor da ideia de um cinema de resistência, resultado da persistência (ou insistência) de seus criadores. Para ele, bastava cercar-se de amigos e colaboradores comprometidos com a arte para tirar uma ideia do papel, mesmo sem a base financeira para tanto (juntos, os seis primeiros filmes de Jarman custaram menos de 1 milhão de libras). Nascido em Northwood, na Inglaterra, Jarman passou sua infância em bases militares da Força Aérea Real, da qual seu pai era membro, morando em diferentes países, como Itália e Paquistão. Quando voltou à Grã-
Bretanha, foi matriculado em um colégio interno, experiência traumatizante que, segundo sua irmã, Gaye Temple, só evidenciou o caráter dissonante de Derek em relação aos meninos de sua idade. De acordo com Temple, ainda na infância, as duas grandes fascinações do irmão eram as flores e a arquitetura. Os castelos de areia cuidadosamente elaborados, com atenção aos pequenos detalhes, serviriam como protótipo do que, no futuro, viria a ser a porta de entrada de Jarman no cinema: a cenografia. Com formação em artes plásticas, Jarman foi responsável pelos cenários do filme Os demônios, de Ken Russell, em 1971. Essa experiência seria fundamental para a carreira do artista, que posteriormente afirmou que seu trabalho como cineasta foi inspirado na maneira destemida como Russell experimentava as possibilidades fílmicas, ainda que isso prejudicasse a coerência narrativa da obra.
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SEBASTIANE
O mártir cristão São Sebastião foi interpretado sob angulação queer
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Com seus trabalhos, Jarman ingressou na contracorrente da tradição do cinema britânico. “O cinema britânico sempre foi muito marcado por uma predominância do cinema realista, com uma inclinação natural para o realismo social, do homem ordinário, comum. Jarman e alguns outros cineastas da sua geração, como Peter Greenaway, vinham se contrapondo um pouco a essa tradição”, explica Angela Prysthon, professora de Cinema na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Suas experimentações com o super-8, segundo Prysthon, e a mescla de referências clássicas com a cultura popular, colocam Jarman em uma posição singular no cinema britânico. “Ele tinha uma ligação muito forte com a cultura popular, mas não no sentido de se conformar com o mainstream. Ele se interessava pelo que acontecia no seu tempo, como a efervescência do movimento punk. Em filmes como Caravaggio (1986) e Eduardo II (1991), ele usa elementos da cultura contemporânea dentro de filmes de época. É como se ele fosse ao passado não para lamentar o presente, mas para encontrar figuras de resistência dentro do próprio passado. É uma mistura do clássico e do atual em uma perspectiva radical”, pontua. A conexão de Jarman com o espírito do seu tempo, aproximando-se da
cultura pop, também ficou impressa em suas incursões no mundo da música. Ele dirigiu videoclipes para artistas como Pet Shop Boys, The Smiths, Sex Pistols, Suede e Patti Smith, que, em diversas frentes, aproximam-se de suas propostas estéticas e ideológicas. Essa tendência de refletir o zeitgeist pode ser encontrada na maioria de suas obras e talvez mais evidentemente em Jubilee (1978), considerado o primeiro filme punk britânico. Na película, a rainha Elizabeth I é transportada para a Inglaterra dos anos 1970, uma nação marcada pela decadência numa espécie de futuro pós-apocalíptico. O universo temático de Jarman ficou explícito desde Sebastiane, quando chamou a atenção pela ousadia do projeto. Baseada na biografia de São Sebastião, mártir cristão, cuja história é revista sob o prisma queer. Comumente representado em pinturas e esculturas com o corpo musculoso desnudo e a expressão de dor e prazer provocados pelas flechas atravessadas no seu corpo, o santo se tornou uma espécie de ícone gay, sendo referenciado por vários autores, a exemplo de Tennessee Williams e Oscar Wilde, quando se trata de personagens homossexuais. No trabalho, inteiramente falado em latim, o imagético homoerótico é amplamente explorado, com filmagens
de nu masculino e cenas de carinho entre homens. O artista revisita também um personagem histórico sob a ótica homoerótica em uma de suas obras mais famosas, Caravaggio, sobre a vida do pintor italiano. A vida e obra de Derek Jarman carregam simbologias recorrentes, que remontam aos tempos de sua infância, a exemplo da jardinagem. Uma das atividades preferidas do artista, ela tornou-se também uma espécie de metáfora, um aparente contraponto (ainda que só aparente) à verve iconoclasta do diretor. Seu mais famoso jardim, hoje uma atração turística, encontra-se em Dungeness, na costa de Kent, onde conseguiu desenvolver uma obra-prima da jardinagem, a despeito da maresia e do terreno pedregoso. “O jardim sempre foi um lugar muito importante para Derek. Ele vinha para cá mesmo quando estava muito doente no hospital, ele dizia: eu preciso ir ao jardim. E, no último ano de sua vida, quanto mais próximo ele chegava da morte, mais importante o jardim se tornava para ele”, afirmou seu companheiro Keith Collins. O jardim de Dungeness, portanto, pode ser visto como uma alegoria da própria arte de Jarman: um flanco de resistência, de beleza e ataque em meio a uma natureza inóspita, corrosiva.
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MUMBLEGORE Renovação no cenário do horror
Como um grupo de diretores independentes vem revolucionando o modus operandi desse gênero de cinema em Hollywood TEXTO Olivia de Souza
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Não é fácil definir a fascinação por tudo que envolve o sangue na tela. E também os membros separados do corpo, as torturas e perseguições, os pesadelos, as psicopatias. Numa sociedade que categoriza (e reduz) o indivíduo por gênero, classe social e preferências, pessoas que se encantam por esse universo tão encoberto são comumente consideradas desajustadas. O medo, o encantamento e a curiosidade andam juntos, e quando você cresce aprendendo a gostar de filmes de terror, sobretudo quando este é o responsável por lhe fazer gostar de cinema, a relação que se cria a partir daí é mais do que simples gosto e apreciação. É de adoração, e com certeza haverá outros compartilhando dessa paixão. Os que se arriscam em seguir carreira descobrem mais cedo ou mais tarde que, ao contrário de outros gêneros do cinema (ação, comédia,
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Página anterior 1 YOU’RE NEXT
Retrata a chacina de uma família por um grupo de assassinos
Nestas páginas 2 BAD TASTE
A primeira incursão de Peter Jackson em longas-metragens
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THE SIGNAL
Longa que estreou no Festival de Sundance deu início ao movimento
Claquete romance etc.), o horror é um dos mais fáceis de se produzir, dispensando os altos orçamentos que seriam gastos em cenários megalomaníacos, explosões, CGI e rostos famosos. Basta um grupo de malucos disposto a encarar a empreitada, maquiagem criativa e litros de sangue falso. Evidência disso é o fato de dois dos nomes mais conhecidos do cinema de alto orçamento, Sam Raimi (Homem aranha 1, 2 e 3) e Peter Jackson (Senhor dos anéis; O Hobbit; King Kong) terem iniciado suas carreiras produzindo filmes de baixo orçamento, hoje verdadeiros clássicos. Estrelada pelo gênio canastrão Bruce Campbell, parceiro de longa data de Raimi, a trilogia The evil dead, clássico maior das prateleiras dos aficionados por terror, foi lançada a partir de 1981, influenciando toda uma geração posterior de diretores, roteiristas, atores e produtores que viram bons filmes sendo produzidos com poucos recursos e muita piração (The evil dead foi orçado inicialmente em 85 mil dólares). Já em Bad taste (1987), primeira incursão de Peter Jackson nos longas-metragens, o diretor se valeu do orçamento ínfimo de 30 mil dólares para rodar a história da população de uma cidade dizimada por extraterrestres que utilizam carne humana para abastecer sua rede de fastfood intergaláctica. A indústria de cinema de terror hollywoodiana é movida por tendências. No final da década de 1970, o filme Halloween - a noite do terror, de John Carpenter, foi o precursor dos slashers, categoria do horror que envolve um assassino psicopata que mata aleatoriamente. A bruxa de Blair (1999) e Atividade paranormal (2007) marcaram a ascensão do found footage (ou
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“filmagens encontradas”, comumente apresentadas em filmes de terror, mistura de ficção e documentário), e a versão norte-americana de O chamado (2002) fez o mundo se voltar para o cinema de horror oriental. Esses são alguns (poucos) exemplos de um mercado que aposta cada vez mais em retorno financeiro, e pouco em novos nomes e ideias. Há quase uma década, no entanto, um grupo de cineastas independentes estabelecidos em Los Angeles vem, aos poucos, revolucionando o modo de produção dos filmes de terror em Hollywood. Todos eles amigos e participando ativamente das produções de cada um, seja dirigindo, coroteirizando e atuando no que tem sido chamado pela imprensa especializada de “mumblegore”. Esse tipo de filme - um trocadilho com a palavra mumblecore (leia no box) e com o termo gore, utilizado para indicar filmes que carregam em representações gráficas de sangue e violência - caracteriza-se por produções de baixo orçamento, com elencos amadores, roteiros improvisados. Isso, mesclado ao
O mumblegore caracteriza-se por produções de baixo orçamento, com elencos amadores, roteiros improvisados acervo de referências dos realizadores – zumbis, assombrações, satanismo, magia negra, criaturas fantásticas, serial killers, found footages, antologias de filmagens em VHS, entre outras –, vem rompendo as barreiras do horror e ganhando visibilidade cada vez maior. Mas, para esses cineastas, mais aterrorizante que uma horda de zumbis sedentos por carne humana ou malucos mascarados assombrando grupos de adolescentes são as perversidades que podem despertar do ser humano, quando colocados em situações-limite. Esse tipo de horror psicológico já era marca do cinema de George Romero desde a estreia de A noite dos mortos vivos, em 1968, em que zumbis serviam como elemento aterrador para revelar as
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THE SACRAMENT
Exemplos da produção constante desses cineastas são as coletâneas de curtas-metragens Baseado no massacre real de Jonestown
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mais terríveis facetas do bom cidadão comum. Dessa forma, situações não naturais como seres humanos transformados em assassinos através de uma transmissão misteriosa emitida por meios eletrônicos (The signal, 2007), ou a chacina familiar promovida por um grupo de assassinos mascarados numa casa de campo (You’re next, 2011), são pano de fundo para o que realmente importa: quando nós nos tornamos os verdadeiros monstros da história.
CONEXÕES E FESTIVAIS
Dirigido pelos “garotos-prodígio” Jacob Gentry, David Bruckner e Dan Bush, a estreia do horror sci-fi The signal no Festival de Sundance pode ser considerada um marco inicial do mumblegore e sua inserção nos festivais. Filmado em 10 dias com o orçamento de 50 mil dólares, o filme é composto por três segmentos da mesma história e foi a primeira atuação de AJ Bowen no “ainda não nomeado” mumblegore. Ex-colega de Gentry e Bruckner na Universidade de Geórgia – onde haviam filmado uma série de curtas e longas experimentais –, Bowen já
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REPRODUÇÃO
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é nome conhecido do gênero. Entre curtas e longas-metragens, o ator participou posteriormente de outros títulos como A casa do diabo (2009), A horrible way to die (2010), You’re next e, mais recente, The sacrament (2013). Festivais de cinema são porta de entrada para que os realizadores possam vender e promover seus filmes, e fazer conexões para os próximos. Isso se torna ainda mais essencial no caso das produções independentes. Sundance possibilitou o encontro de Gentry e Bowen com Ti West e Joe Swanberg (o nome por trás do mumblecore). Entre diversos títulos, West dirigiu A casa do diabo e The sacrement, ambos com participação de AJ Bowen. Nesse último, um found footage baseado no Massacre de Jonestown (um suicídio em massa promovido em 1978 pelo líder e fanático religioso Jim Jones), uma equipe da famosa rede de jornalismo investigativo Vice Media viaja até a comunidade fictícia Eden Parish para descobrir algo muito errado sob o lema paz e amor promovido por seu líder e ocupantes. Além de Bowen, também atuam Swanberg, e outro nome proveniente do mumblecore, a atriz Amy Seimetz, que já havia participado de A horrible way to die e You’re next, dirigidos por Adam Wingard.
Realizadores devem sucesso do gênero aos festivais de cinema, advento do streaming e serviços das TVs por assinatura O baixo custo de produção dos filmes possibilita que os realizadores do mumblegore sigam um lema muito importante do universo independente: continuar fazendo filmes, até chamarem a atenção das grandes produtoras, que vão aumentar ainda mais seu raio de distribuição. You’re next, por exemplo, foi produzido ao custo de 1 milhão de dólares pela produtora Snoot Entertainment, e comprado pela Lionsgate pelo dobro. A produção ininterrupta inclui dezenas de curtasmetragens, que volta e meia são lançados pelos diretores em antologias de terror. VHS 1 e 2, de 2012 e 2013, respectivamente, e a compilação de curtas de um minuto The ABC’s of Death (2012) são alguns exemplos. O mais interessante ao se tratar de mumblegore é a consciência de que as conexões firmadas que possibilitaram todo esse intercâmbio criativo entre diretores seria impossível há pelo
CHEAP THRILLS
Um dos recentes lançamentos do gênero foi bem-recebido no SXSW Film Festival de 2013
menos uma década. Todos firmados hoje em Los Angeles, berço de Hollywood, esses produtores/realizadores devem o sucesso de seus filmes ao aumento dos pequenos festivais de cinema (que, eventualmente, chamam atenção dos “grandes”), ao advento das exibições em streaming como Netflix (e similares), e aos serviços on demand das TVs por assinatura. O que acontece é que os produtores não dependem mais do arriscadíssimo esquema que era gastar rios de dinheiro em DVDs e esperar por um retorno financeiro. Hoje, filmes estão sendo distribuídos para a audiência online, a um baixo custo e sua recepção é o termômetro que definirá seu lançamento em formato físico. Alguns realizadores, inclusive, estão debutando na direção. É o caso de E.L. Katz, parceiro antigo de Adam Wingard, que recentemente abriu mão de escrever roteiros em Hollywood para lançar seu longa de estreia, Cheap thrills, sensação da edição 2013 do SXSW Film Festival, de Austin, Texas. Não há limites para o terror. Mesclando os diversos subgêneros clássicos, com filmes instigantes, que dialogam com a atualidade e nos expõem aos maiores horrores contemporâneos, a geração mumblegore têm se firmado e caracterizado pela fuga de clichês. E com liberdade criativa, lembram seus precursores dos anos 1970 e 1980. “É a nova era drive-in”, apontou o editor-chefe do portal Badass Digest em matéria no site LA Weekly. “Eles estão rompendo as barreiras de gênero. Ao invés de se perguntarem ‘eu estou colocando monstros suficientes aqui?’, eles estão mais preocupados com questões como ‘eu estou fazendo o filme que eu quero fazer?’”.
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INDICAÇÕES DIVULGAÇÃO
DRAMA
TWIN PEAKS
Dirigido por David Lynch Com Kyle MacLachlan, Michael Ontkean Paramount
Criada por Mark Frost e David Lynch, Twin Peaks é uma série de televisão norte-americana que foi ao ar pela ABC entre 1990 e 1991. “Quem matou Laura Palmer?” O drama persegue o detetive David Cooper, do FBI, que vai até uma pequena cidade para descobrir o responsável pelo assassinato. Em 1992, foi lançado o filme Twin Peaks: fire walk with me. Agora relançada em bluray, a série consiste em 30 episódios, que serão somados a quase duas horas de conteúdo adicional.
COMÉDIA/DRAMA
O EXÓTICO HOTEL MARIGOLD Dirigido por John Madden Com Judie Dench, Bill Nighy, Tom Wilkinson, Maggie Smith Fox Filmes
Um filme que reúne Maggie Smith e Judie Dench no elenco merece atenção. Este conta a história de um grupo de aposentados que deixa a Inglaterra rumo à Índia. Conquistados pela promessa de um palácio de luxo, os sete personagens são recepcionados por Sonny (Dev Patel) em um local bem diferente do que imaginavam. As experiências individuais e coletivas do grupo serão conduzidas por choques culturais e interferências do passado.
Mumblecore
ANTES DO HORROR Movimento não oficial do cinema independente norte-americano, e que precede o mumblegore, o mumblecore (“geração do resmungo”, em tradução livre) nasceu com as facilidades promovidas pela ascensão da tecnologia digital no cinema. Tecnicamente, os filmes são caracterizados por: menor orçamento, locações caseiras, iluminação ambiente e elenco não profissional. De acordo com o consenso, o primeiro filme do gênero é Funny ha ha (2002), de Andrew Bujalski. Em 2007, o mumblecore ganhou destaque com Hannah takes the stairs, de Joe Swanberg, que encadeou novos autores como os irmãos Mark e Jay Duplass, Lynn Shelton, Ry-Russo Young, Lena Dunham. Um dos sucessos mais recentes do gênero, o filme Frances Ha (2012, na foto acima), de Noah Baumbach, é estrelado e roteirizado por Greta Gerwig, que em 2008 já havia dividido a direção com Joe Swanberg em Nights and weekends. É uma das principais marcas do gênero essa colaboração entre realizadores multitarefa, presente em filmes como Slacker (1991), primeiro longa-metragem de Richard Linklater; do cinema independente de John Cassavetes; de Ingmar Bergman e da Nouvelle Vague, em geral. São filmes sobre pessoas, crise de identidade da juventude, prezam pelo naturalismo performático e predominância de diálogos – a maioria, improvisados. Antes restrito às universidades e festivais menos badalados, o mumblecore destacou-se na TV em 2012, com o seriado Girls, da HBO, produzido por Judd Apatow e criado, escrito e estrelado por Lena Dunham (que em 2010 havia dirigido o longa Tiny furniture). Hoje já se pode falar de um “post-mumblecore”, com realizadores – outrora independentes – invadindo Hollywood com produções de maior orçamento, elenco profissional e personagens não convencionais, resultando em bons filmes como Cyrus (2010) e Jeff who lives at home (2011), ambos de Mark e Jay Duplass; Drinking buddies (2013), de Joe Swanberg, e 50/50 (2011), de Jonathan Levine, este último estrelado por Seth Rogen e Joseph Gordon-Levitt (a já mencionada série Girls é a representante desta categoria no âmbito televisivo). (O.S.)
BIOGRAFIA
DRAMA
Dirigido por John Lee Hancock Com Emma Thompson, Tom Hanks Disney
Dirigido por Denis Côté Com Pierrette Robitaille, Romane Bohringer Zeta Filmes
WALT NOS BASTIDORES DE MARY POPPINS
O longa busca relembrar a relação turbulenta entre a escritora Pamela Travers e o criador dos estúdios Disney, por causa da adaptação de seu livro mais famoso para o cinema. A biografia audiovisual acompanha as tentativas de convencimento de Walt Disney para que a autora cedesse os direitos autorais, o que ela faz, mas cheia de condições. Mantendo o tradicional final feliz, o filme foi acusado de fantasiar um relacionamento muito mais complicado.
VIC+FLO VIRAM UM URSO
Aos 61 anos, Victoria acaba de sair da cadeia e quer recomeçar a vida nas florestas do Quebec, no Canadá. Ela vai para a casa de um tio doente para viver com Florence, amante e ex-companheira de cela. A história das duas, porém, tem uma série de interferências de personagens excêntricos, como Guillaume, o oficial da condicional, e memórias que voltam do passado de Flo. Em 2013, o filme ganhou o Urso de Prata do Festival Internacional de Berlim.
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Eliseu Visconti – a modernidade antecipada Instituto Ricardo Brennand 28 Ago-2 Nov R$ 10 e R$ 20
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ELISEU VISCONTI Moderno e versátil
Mostra, que terá longa temporada no IRB, reúne 70 obras do artista ítalo-brasileiro e expressa sua habilidade em vários suportes e linguagens
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MEDITANDO
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O ARTISTA
Uma das obras que apontam o interesse do pintor pelo retrato Quando estava trabalhando nos afrescos do Theatro Municipal do Rio, Visconti precisou de um espaço superdimensionado
TEXTO Priscilla Campos
Realizada em 20 de novembro de
1800, a Aula Pública de Desenho e Figura foi o primeiro episódio oficial direcionado para o ensino da arte no Brasil. Em meio a um Rio de Janeiro imperial, caracterizado por construções neoclássicas, arquitetura urbana simples e imensos espaços verdes, tinha início a Academia Imperial de Belas Artes, hoje nomeada Escola de Belas Artes. A instituição seria, ao longo dos séculos, um órgão vital para a história da arte brasileira. Em 1885, o pintor, desenhista e designer ítalobrasileiro Eliseu Visconti (Província de Salerno, Itália 1866 – Rio de Janeiro, Brasil 1944) começou a causar burburinho nos almejados corredores do edifício construído pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny. Com uma ideia afiada de experimentação para época, Visconti incorporava às suas pinturas diversas tendências: pontilhismo, simbolismo, linearismo art nouveau e o pré-rafaelismo. Após temporadas na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, a exposição Eliseu Visconti – a modernidade antecipada chega ao Nordeste. A mostra será acolhida pelo Instituto Ricardo Brennand (IRB), a partir de 28 de agosto, para uma longa estada. Até novembro, a produção do artista será apresenta em toda sua extensão, desde o início da sua carreira até o seu falecimento. Entre os cerca de 70 trabalhos apresentados estão retratos, nus,
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temas históricos, paisagens, cenas de família e painéis decorativos. Para a historiadora da arte e coordenadora do Projeto Eliseu Visconti, Christina Gabaglia Penna, ele possui uma obra muito voltada ao registro do cotidiano nacional, apesar de nunca ter sido naturalizado brasileiro. “Na sua obra encontramos muitas paisagens do Rio de Janeiro, do dia a dia carioca: lavadeiras, crianças brincando, ruas de bairros mais simples. Visconti foi muito moderno diante daquela sociedade cultural pré-republicana”, afirma. Toda essa contemporaneidade atribuída ao pintor converge para uma discordância, quando se trata de classificações e definições objetivas.
A diversificação de linhas artísticas escolhidas para os seus trabalhos ainda permanece como vívido tópico de discussões acadêmicas. “É verdade que sua adesão a diversos estilos por vezes foi criticada, pelo fato de impossibilitar uma unidade à sua obra, mas a maioria dos críticos soube reconhecer uma homogeneidade em sua diversidade técnica de representação e de formas utilizadas. Visconti não aderia inteiramente ao estilo dessas ‘escolas’ artísticas, mas somente aos aspectos que condiziam com seu caráter e conceitos estéticos” afirma o historiador gaúcho Cyd Losekkan. O artista ficou conhecido, sobretudo pela crítica de meados
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do século 20, como introdutor do impressionismo no Brasil. De acordo com Losekkan, essa relação tem mais a ver com a questão técnica do que com uma adesão ampla ao movimento. “O pintor recebeu um prêmio em um concurso lançado pela Academia Imperial de Belas Artes (Escola Nacional de Belas Artes, após a proclamação da República) para estudar em Paris, onde permaneceu por sete anos. Esse tipo de prática não se restringia ao Brasil. Paris era o centro mundial das artes e diversos países ofereciam oportunidades a seus artistas para realizarem sua formação por lá. Seu contato com o impressionismo nessa época, assim como com outros artistas, caracterizava-se por uma transformação da técnica a partir de traços e estilos pessoais”, explica. Durante seu intercâmbio parisiense, Eliseu Visconti produziu obras como No verão (1894), A leitura (1894) e Sonho místico (1987). Além disso, o artista participou seguidamente das famosas exposições nos Salões de Paris (Salon de Champs Elysées e Salon de Champ de Mars). Ainda em Paris, surgiram suas primeiras obras com os reflexos do Impressionismo, entre elas, Primavera (1895).
A crítica de arte do século 20 atribui a Eliseu Visconti a introdução da técnica impressionista no Brasil Inquieto e empolgado pelas infinitas possibilidades do Velho Mundo, o pintor também se inscreveu na Escola Guérin na qual participou de cursos de desenho e arte decorativa com Eugène Grasset, importante nome da art nouveau. Mesmo com tantas novas experiências e buscando um estilo próprio e original, o artista não realizou uma ruptura radical com os ensinamentos adquiridos no Brasil, de acordo com a tese Os artistas brasileiros e prêmios de viagem à Europa no final do século XIX: visão de conjunto e um estudo aprofundado sobre o pintor Eliseu D’Angelo Visconti (1866 – 1944), da historiadora da arte Ana Maria Tavares Cavalcanti.
ARTE DECORATIVA
Em sua exposição de apresentação na então Escola Nacional de Belas Artes, em 1901, além das pinturas e desenhos produzidos na França,
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surgiram também 28 trabalhos de arte decorativa e de arte aplicada às indústrias. As peças, que revelavam o Visconti designer e decorador, foram resultado de seus aprendizados na Escola de Guérin. Segundo o historiador Lucas Molina, a influência da art nouveau na produção de Eliseu não se resume aos projetos de cerâmica. “Ela também pode ser identificada nos desenhos e na pesquisa das linhas – sobretudo a partir dos arabescos produzidos por Eugène Grasset. Foi a influência dele que levou Visconti a adotar elementos da natureza, voltados para um mundo fantástico e distante, como temática de muitas de suas decorações”, afirma. Sobre essa primeira mostra após sua chegada ao Rio de Janeiro, Visconti escreveu ao conselheiro Angione Costa: “Quando regressei da Europa como pensionista dos cofres públicos fiz esta exposição na intenção de que a arte decorativa era o elemento maior para caracterizar a indústria artística do País. Olharam-me como novidade e nada mais. Cheguei a fazer cerâmica a mão, para ver se atraía a atenção das escolas e oficinas do Governo. Ninguém notou o esforço”, lamentou. Para Molina, o artista foi um dos responsáveis pela introdução do debate sobre o ornamento
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em território brasileiro. “Vale lembrar que, na Europa do século 19, muitos artistas e teóricos se opunham ao uso indiscriminado de ornamentos. Foi graças a Visconti que se deu uma nacionalização da arte decorativa, mais do que uma simples incorporação de temáticas locais a partir de um modelo importado”, conclui. Em 1903, o ítalo-brasileiro participa de três concursos de selos postais e cartas-bilhete, organizado pela Casa da Moeda. Nos selos, Visconti tinha as mulheres como principais protagonistas. Nas estampas também estiveram presentes fatos significativos da história do Brasil, homenagens às artes, ao comércio, à indústria e referências à aeronáutica e à energia elétrica. Em 1926, aconteceria sua última exposição de arte decorativa, na Galeria Jorge. Nela, a população pôde apreciar os selos comemorativos do Centenário da Independência, o ex-líbris e o emblema da Biblioteca Nacional. Essa produção (cartazes, estudo para tecidos, selos e cerâmica), que consolidou Visconti como pioneiro do design brasileiro, também estará presente no IRB. A mostra conta ainda com memorabilia variada (cadernos de apontamentos, documentos,
fotografias e estudos), objetos do ateliê do artista e cronologia ilustrada.
THEATRO MUNICIPAL
Um dos pontos de evidência na trajetória de Eliseu Visconti foi seu trabalho para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Uma gigantografia do pano de boca feito para o espaço, maior tela pintada no Brasil, faz parte do acervo da exposição que aporta no Recife. O artista foi responsável por grande parte da decoração do teto do teatro carioca. Em um documento encaminhado ao então diretor do Museu Nacional de Belas Artes, Oswaldo Teixeira, Eliseu afirma que foi sua obra mais importante. Segundo o escritor e pesquisador Nagib Francisco, foi uma obra não só importante, como majestosa, pois o total da intervenção artística de Visconti no Theatro Municipal soma 640 m², aérea somente 10% inferior, em comparação, com toda a obra de Michelangelo na Capela Sistina. Para a noite de inauguração, ele projetou uma série de moringas em art nouveau que foram dispostas nos camarotes. Finda a noite de gala, diversas peças desapareceram. O boato era que os ocupantes dos camarotes levaram para casa como brinde. Nove dessas antigas e raras moringas foram
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VISTA DO MAR
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MORINGA TOBIAS
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A ARTE LÍRICA
Pintura denota influência orientalista na composição Da produção de Visconti constam objetos de estética art nouveau O afresco foi feito para a lateral do foyer do Theatro Municipal do Rio
localizadas pelo Projeto Eliseu Visconti. Para Christina Gabaglia, este tem uma importância que se divide em catalogar bem o patrimônio do artista e salvaguardar seu acervo. O escritor Gonzaga Duque, contemporâneo crítico da obra do pintor, conseguiu elucidar de forma convincente, em um artigo publicado na revista Kosmos (1901), a postura artística e a pintura desenvolvida por Eliseu Visconti: “Ele não está nesta numerosa classe de copistas mais ou menos hábeis. A sua composição, em que há clarões de originalidade, fosforescências de inspiração, obedece a um sábio conjuntamento de qualidades desenvolvidas a poder de perseverança e à força de um talento que nunca se deslumbrou com os fáceis louvores da multidão. (…) A sua pintura é nítida sem pedantismo e é forte sem violências”.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
MARIA CARMEN (RECIFE, 18/3/30-20/6/14) No Dicionário das Artes Plásticas no
Brasil de Roberto Pontual, Civilização Brasileira, 1969, tem “Maria Carmem” com m no fim mas seu filho Jorginho escreve com n; e data de nascimento “1935” mas ela era de 1930: “Ela gostava de negar a idade” (Jorginho). Pontual começa seu verbete dizendo: “Desenhista e escultora. De 1959 a 1961 estudou escultura com Humberto Cozzo, no Rio de Janeiro, voltando em seguida a fixar-se no Recife, onde, em 1962, fez curso de desenho com Abelardo da Hora, José Cláudio da Silva e Wellington Virgulino”. Fazia pouco tempo, voltara da minha “viagem de Ali Babá”, a dos indivíduos naquela época que pobre não viajava a não ser de pau-dearara, para aventurar a vida no sul-maravilha: por “viagem de Ali Babá” entenda-se a do pé-rapado que por alguma circunstância tinha ido à Europa e ficava falando nisso para o resto da vida, como vivo fazendo. Miguel Arraes, prefeito do Recife, fizera, por inspiração de Abelardo da Hora, a galeriazinha da beira do
rio, projeto de Marcos Domingues. Ficava a meia altura entre o nível da água do Capibaribe e o da rua, ali onde tem hoje, se já não quebraram, a estátua de Capiba. Entrada pela Rua do Sol. Uma gracinha de galeria, aconchegante, sempre movimentada tanto pela afluência do público como pela sequência de boas exposições. No coração do Recife. Mas durou pouco, destruída por uma cheia que a deixou submersa. Eu ia muito lá, até fiz uma ou duas exposições e um dia apareceu Maria Carmen insistindo para eu ir a seu apartamento do outro lado do rio, em cima do Cinema São Luiz. Foi assim que a conheci. Fui. Começo de noite. O marido chegou para jantar, para minha surpresa Toinho, ex-colega do Colégio Marista: muito vermelho e agitado, apesar de moreno mas de raça branca, cabelo bom, meio baixotinho, não tanto quanto Maria Carmen. Agora depois do enterro de Maria Carmen perguntei se era vivo e Jorginho disse que morrera. Do coração. Engraçado, eu sempre previra que ele ia morrer do
coração, apesar de não tê-lo visto nunca mais depois de menino. Tinham dois filhos: Vera (1952-92), muito lindinha, que morreu de um aneurisma, deixando um filho, Teo; e Jorge (1953), com duas filhas nascidas nos Estados Unidos e lá vivendo até hoje como o pai, Larissa e Juliana. Lembro que Toinho chegou, pediu o jantar, e reclamou que o arroz estava molhado. Maria era de família abastada, dona da TSAP, Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco, e da Usina N. S. do Carmo. Quando se divorciaram ele ficou com o posto de gasolina da frente do aeroporto. “A maior besteira que o meu pai fez na vida foi vender aquele posto de gasolina, com um terreno enorme.” “Jorginho foi bem sucedido nos Estados Unidos”, me disse Maria Digna, da mesma família, Pessoa de Queiroz. Ela me ligou depois do enterro, dizendo que eu fosse lá no Museu do Estado, de que é diretora, falar com ela, mas desmarcou. Eu ia sugerir-lhe que fizesse no Museu uma exposição de Maria Carmen enquanto as obras ainda estão aqui:
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BICO DE PENA
De um caderno de Maria Carmen, 28 x 34 cm, 2010
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eu me senti muito honrado quando, levado a sua casinha em Olinda por Jorginho, subindo ao mezanino onde ficava o pequeno quarto de dormir, vi na parede da cabeceira da cama quatro retratos dela pintados por mim, os únicos naquela parede. A casa estava toda forrada dos seus quadros, alguns até grandes, um com uma braça de largura. Pelo que vi quando ela me levou a seu apartamento (1962), era ainda uma artista nos começos, sem muita coisa para mostrar. Tanto que dessa visita só lembro de duas coisas: de Toinho e de uma coleção absolutamente original de esculturas feitas de chicletes, de um chiclete, daqueles miudinhos, que vinham dois numa caixinha amarela, figuras de corpo inteiro, cada uma feita de um chiclete, com menos de um centímetro e, acredite se quiser, cabeça, tronco e membros, tendo-se ainda ideia, na cabeça menor que uma cabeça de fósforo, de nariz, boca e até os olhos, furados com uma agulha, suponho. O que se poderia chamar, no caso de Maria Carmen, e com alguma
propriedade, de “loucura”, porque, “já era dada pela família como louca”, diz Jorginho. Mas de fato esse foi o caminho da cura, pois ao ver tais figurinhas, seu médico, Dr. Aloísio Marques, encaminhou-a ao escultor Humberto Cozzo, levada por “Tia Mocinha” (Jorginho) irmã da mãe de Maria Carmen, Dna. Carmita. Maria Carmen me disse que o mundo real não existia para ela, o inconsciente prevalecendo de forma absoluta. Ela via monstros saírem de debaixo de mesas e de portas, o que a deixava apavorada, e não via mais nada nem ninguém. A primeira vez que se deu conta da existência do mundo real foi quando sentiu a picada de uma injeção, ficando ansiosa por tomar mais injeções. Então começou a botar pedrinhas dentro do sapato para sentir alguma dor física. Foi aí que começou a fazer essas figurinhas de chiclete. Essas figurinhas, quando eu as vi, estavam guardadas numa caixa de fósforos das pequenas, 5x3,5cm, com talco, para não colarem umas nas outras, umas quinze ou mais.
Maria morreu sem saber o fim dessas suas primeiras esculturas, que tiveram um fim também original. Da caixinha de fósforos, passaram para uma cantoneira, um armariozinho de canto de parede com a porta de vidro, onde Jorginho encontrou-as e, chicletes, foram devidamente mascados. “A princípio eram duros mas logo amoleciam” (Jorginho). Ela foi minha aluna de desenho no MCP, Movimento de Cultura Popular, ela e Delano, outro grande artista. Fui botado lá por Abelardo da Hora. Nessa época eu era muito influenciado pelo desenhista paulista Arnaldo Pedroso d’Horta que, passando uns dias em minha casa, conheceu Maria Carmen, e foi o grande abridor de caminhos para ela no mundo das artes em São Paulo, no auge das Bienais, Maria Carmen nunca abandonou esse seu mundo interior, inferno (o escritor Gastão de Holanda chamou de “sua civitas diaboli”) ou paraíso. Nas suas pinturas e desenhos, o real continuou devorado pela sua imaginação.
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JU BRAINER/DIVULGAÇÃO
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Mostra Brasileira de Dança 1º-10 Ago mostrabrasileira dedanca.com.br
MOSTRA Dança, seja qual for
Décima-primeira edição de encontro nacional aposta em programação que inclui as categorias clássica, popular, de salão, étnica e contemporânea TEXTO Christianne Galdino
Os livros de história e de ficção
nos mostram que dançar sempre foi uma das formas mais usadas para extravasar sentimentos. E, mesmo quando falamos da dança como uma linguagem artística, uma prática profissional, apesar de outros atributos estéticos e técnicos entrarem em cena, a essência “sensível” desse verbo continua dando o tom. Seja no palco, no salão, na rua, nas festas ou nas plateias, a maioria da população se relaciona com essa modalidade de arte. E, nesse contato, o movimento tenta traduzir ou expor os mais diversos sentimentos. Não importa o estilo ou o ritmo, as trilhas da dança nos levam às emoções, e estão sempre presentes no cotidiano das mais variadas sociedades. Apostando nessa multiplicidade, a Mostra Brasileira de Dança chega à sua 11ª edição com uma extensa programação, que inclui a clássica, popular, contemporânea, de rua, afro, árabe, de salão; além de suas intersecções, misturas e fusões. No vocabulário de gestos e movimentos dessa linguagem artística, os objetos são bons aliados da dramaturgia. É o que acontece no solo O vestido, de Rosa Antuña (MG), no qual a roupa é o fio condutor da discussão levantada pela artista sobre as inquietações da sociedade contemporânea. “Um vestido que, literal ou metafórico, externa ou internamente, possa nos fazer
voar!”, propõe. O espetáculo teve processo de criação inspirado nos livros de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho; além de Ecce Homo, de Nietzsche, em estudos sobre Freud, e nos filmes A jovem rainha Vitória e Elizabeth. O diálogo com a literatura também foi o ponto de partida do solo Sobre mosaicos azuis, da pernambucana Januária Finizola, livremente inspirado nos livros do carioca Rodrigo de Souza Leão, falecido em 2009, que sofria de esquizofrenia. Januária lança reflexões sobre a linha tênue que separa a insanidade patológica e as loucuras “normais” do dia a dia, trazendo uma abordagem densa e leve ao mesmo tempo, “como é próprio do universo da loucura”. No caso de Anticorpo, as memórias pessoais do processo de tratamento e cura de um câncer do próprio intérprete criador, Saulo Uchôa, serviram de roteiro para o espetáculo, no qual “veias, sangue e dor” são pretexto para a dança.
ABRE-ALAS
A variedade de assuntos e de estilos foi pensada pelos organizadores da Mostra Brasileira de Dança, Paulo de Castro e Íris Macedo, para “atender a quem gosta de dança, seja qual for a dança”. Uma iniciativa que deixa ver uma preocupação maior da produção: a formação e ampliação do público.
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RENATO MANGOLIN/DIVULGAÇÃO
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“O que a gente tem visto nas apresentações de dança é uma grande segmentação. Na atualidade, os que fazem parte de um determinado estilo, como a de salão, por exemplo, alimentam-se dos seus próprios eventos, congressos e festivais específicos, ficando distantes dos demais gêneros e perdendo, com isso, as ricas possibilidades de troca e intercâmbio de experiências”, analisa Rogério Alves, artista formado nas danças de salão, que coordena a produção do evento. Para aproximar as tribos e o público leigo, que também anda sumido, “escolhemos uma obra reconhecida internacionalmente, que tem uma grande aceitação, para
Como em edições anteriores, os espetáculos ocorrerão em vários teatros. Haverá seminários e exposições atrair todos os públicos e, assim, ajudar a divulgar os demais trabalhos da programação”, explicou Iris Macedo. Ela se refere ao espetáculo de abertura da mostra, Aquarelas, da Cia. de Dança Carlinhos de Jesus, do Rio de Janeiro. A ideia é que a companhia possa funcionar como um chamariz para
os demais espetáculos, coreografias, seminários, exposições e exibições de vídeos da programação, que este ano conta com patrocínio dos Correios (Governo Federal), Funcultura (Governo do Estado de Pernambuco), programa O Boticário na Dança e Prefeitura do Recife. Tendo o samba como abre-alas, com direito à presença de mestresala e porta-bandeira, as coreografias de Aquarelas passeiam pelas danças de salão brasileiras. No palco, o midiático Carlinhos de Jesus e mais 12 bailarinos apresentam chorinho, samba de roda e de gafieira, e tantas outras manifestações populares do dançar no Brasil, como a lambada, o forró e o frevo.
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WAGNER CARVALHO/DIVULGAÇÃO
MARCO AURELIO PRATES/DIVULGAÇÃO
Página 74 1 FREVO DE CASA
Apresentação, com bailarinas e músicos no palco, é marcada pela interação
Nestas páginas 2 NA PISTA
Companhia Urbana de Dança se apropria dos movimentos de rua
3 AQUARELAS Curadoria da mostra traz Cia. de Dança Carlinhos de Jesus como elemento de atração de público 4 O VESTIDO Rosa Antuña realiza solo em que discute questões da sociedade a partir da indumentária
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As tradições culturais brasileiras também guiam outros trabalhos da programação, só que com um viés mais conceitual. Elégùn – um corpo em trânsito, de Giorrdani de Souza (Kiran) e Jorge Kildery, que também é intérprete do solo, traz elementos do candomblé para suscitar questões sobre os conceitos de corporeidade e performatividade, e como é estar em cena em um estado alterado de consciência. No projeto Frevo de casa, as bailarinas Flaira Ferro e Valéria Vicente, e os músicos Spok e Lucas dos Prazeres, propõem “um exercício de liberdade compartilhada, cujo percurso é guiado pela escuta, a vibração, o contágio e o desejo”. A participação do público é incorporada à performance do quarteto, diluindo as fronteiras entre artistas e plateia. Na pista, da Companhia de Dança Urbana (RJ), também é uma aposta
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dos organizadores da Mostra em “atrair e contagiar” o público com o clima festivo e as coreografias que misturam técnicas do hip-hop a referências culturais do subúrbio carioca, de onde vêm os nove integrantes do elenco. Na trilha sonora, Michael Jackson, Jamiroquai, Tim Maia, David Bowie, Chaka Khan, Erik Satie e De La Soul.
CADEIRANTES
Se, para a arte contemporânea, a liberdade é ingrediente imprescindível, na dança, isso se aplica também aos corpos, pois há muito tempo a ideia de um padrão corporal único caiu por terra. Ampliando o sentido dessa liberdade, a Mostra Brasileira de Dança, incluiu nas suas ações formativas a Oficina de Iniciação à Dança em Cadeiras de Rodas, voltada não só para cadeirantes como também para pessoas
sem deficiência. A professora Liliana Martins, diretora da Cia. Cadências (PE), diz que a ideia é “possibilitar que se conheça a dança em cadeira de rodas, incluindo teoria e prática básica da dança direcionada para um contexto social, cultural, artístico e esportivo”. Nos palcos, a diversidade de corpos também está representada pela Companhia Gira Dança (RN), que dessa vez traz ao Recife o espetáculo Proibido elefantes, fazendo uma análise crítica sobre o olhar que ressalta os impedimentos, que duvida da capacidade do sujeito frente à adversidade. Composta por pessoas com corpos diferenciados (com e sem deficiência), a Gira Dança tem como proposta artística ampliar o universo da dança com uma linguagem própria, trabalhando as diferenças como potencial e não como limitação.
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Palco CORPO O espaço da expressão íntima
Em Darkroom, a Cia. Etc. explora ambientes privados para compor narrativas dos encontros corporais TEXTO Pethrus Tibúrcio
O encontro com o outro e consigo acontece, geralmente, dentro de quatro paredes. A expressão da nossa sexualidade é mais comum e mais intensa na privacidade de uma porta trancada. A exploração desses ambientes físicos e das narrativas que neles se dão são temas do espetáculo Darkroom, em temporada no Recife, aos sábados e
domingos, no Espaço Vila, sempre às 19h, sob direção de Marcelo Sena. Assinado pela Cia Etc., o espetáculo tem mais de três anos de palco. O grupo trabalha com questões relacionadas ao corpo desde 2000, somando mais de 20 criações que envolvem dança e videodança. Segundo Marcelo Sena, a companhia surgiu justamente da ausência de
espaços para o tipo de trabalho por ela desenvolvido, isso, ainda em Aracaju. Preparados por um intenso processo de pesquisa, os integrantes assinam a concepção colaborativamente. Para este texto, eles passaram pela teoria queer, de Judith Butler, que discute identidade de gênero, e pelos estudos culturais. “Esta necessidade apareceu quando começamos a pensar como trabalharíamos o corpo do bailarino dentro de cena. Nas coreografias, por exemplo”, diz Sena. Ele conta que, depois da preparação a partir de textos, eles partem para estudos práticos nos laboratórios de criação. De 2011 para cá, desde que a apresentação começou a rodar, Darkroom passou por diferentes montagens e plateias. Hoje, em uma segunda formação, o elenco é composto por Elis Costa, José W Júnior, Marcelo Sena e Renata Vieira. Quanto ao público, o trabalho já passou por cidades como João Pessoa, Petrolina e Manaus. Depois desse percurso, os integrantes afirmam perceber interferências desses espectadores na nova montagem. Os quatro artistas participam de quase todos os elementos que compõem o espetáculo. Dois itens da sonorização, por exemplo, foram construídos coletivamente. Recentemente, a companhia começou a explorar o conceito de “audiodança”. Durante a pesquisa, uma das definições – que são mutáveis e estão em construção – que o grupo apresentou foi: “produto do encontro entre a dança e a música, quando o som assume a representatividade da corporeidade fundamental à dança”. A trilha sonora é construída por Marcelo Sena junto à banda Rua, com as vozes dos intérpretes e sons produzidos por seus corpos. “O princípio era não usar a música apenas como um elemento de suporte da coreografia, mas como uma extensão dela”, conta Sena. Além das 10 apresentações que acontecerão neste primeiro momento, o grupo segue com o projeto depois de agosto, com pelo menos mais seis apresentações. Uma série de outros desdobramentos estão previstos, como uma mesa-redonda com os artistas pesquisadores e uma demonstração da pesquisa prática através de experimentos corporais realizados com outras pessoas.
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“Eu realmente sustento a coerência e, portanto, tenho esse meu ponto de loucura. Mas eu tenho, pelo menos, a convicção e a paixão daquilo em que eu acredito.” ARIANO SUASSUNA 1927 - 2014
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COLETTE URBAJTEL/ARQUIVO MANUEL ÁLVAREZ BRAVO/DIVULGAÇÃO
Leitura OCTAVIO PAZ A dialética de comunhão e solidão
Este é o ano do centenário do escritor, poeta e ensaísta mexicano cujo cerne da obra se confunde com a história do México TEXTO Eduardo Jardim
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Quando Octavio Paz nasceu, em
1914, o México atravessava um período revolucionário que se estenderia até o final da década. Seu pai foi partidário de Emiliano Zapata. A história da revolução, com suas promessas e frustrações, marcou a obra do poeta e ensaísta. Para ele, a revolução foi o encontro do país consigo mesmo, mas ela se desvirtuou com a tomada do poder, como acontece sempre nesses casos. Seu primeiro grande ensaio, O labirinto da solidão, de 1950, que acaba de ser relançado no Brasil pela Cosac Naify, pretendeu ser um retrato do mexicano e constituiu uma tentativa de dar conta do que tinha se passado no país, ao longo do século 20. A formação intelectual de Paz se deu na década de 1930, atravessada pelo antagonismo ideológico, que logo se manifestaria na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Grande Guerra. Paz esteve na Espanha em 1937, para apoiar a causa republicana. Pouco depois, conheceu Pablo Neruda. Sua relação com o poeta chileno de orientação comunista foi tumultuada e terminou em rompimento. Anos mais tarde, uma situação semelhante iria acontecer com García Márquez, que apoiou o regime cubano, enquanto Paz foi sempre um crítico de qualquer forma de totalitarismo. Também foram decisivos os encontros do jovem escritor com os intelectuais espanhóis que se mudaram para o México, depois da vitória de Franco, e com os surrealistas, especialmente com o francês André Breton. Com os espanhóis, o jovem escritor conheceu o pensamento existencialista de Ortega e Heidegger, a reflexão sobre a finitude e o valor da poesia; com Breton, viu que a poesia e a vida estavam ligadas intimamente.
ENSAIO E POESIA
Assim como articulou a poesia com a vida, Paz acreditou na associação entre poesia e crítica. A elaboração de sua obra poética teve por contraponto seu trabalho como ensaísta. À publicação da reunião de seus poemas, Libertad bajo palavra, em 1949, seguiu-se um período de amadurecimento de seus estudos, que resultou em O arco e a lira, de 1956. A reflexão sobre a poesia, sobretudo do período moderno, desdobrou-se, em seguida, em Os filhos do barro e A outra voz. Os versos de Paz formulam perguntas de grande relevância filosófica e seus
escritos teóricos são muito poéticos. Em poemas como Pedra do sol e Blanco, traduzidos por Horácio Costa e Haroldo de Campos, respectivamente, nota-se intenso trabalho de reflexão. A obra de Paz é extensíssima, vai de 1933 até sua morte, em 1998. Além da produção poética, seus ensaios cobrem uma quantidade impressionante de assuntos: política, estética, filosofia, história do México, biografia, viagens, artes plásticas, cinema, antropologia. Será possível reconhecer um traço comum nessa pluralidade de assuntos e nessas múltiplas abordagens? Muitos acreditam, com razão, que um escritor ou um pensador persegue, ao longo de sua obra, a resposta a uma única pergunta. Isso aconteceu com Octavio Paz. Em 1943, ele fez uma palestra sobre São João da Cruz e Quevedo, dois dos maiores poetas do século 17, na Espanha, intitulada Poesia de solidão e poesia de comunhão. São João
A formação intelectual de Paz se deu na década de 1930 e sua extensa obra vai de 1933 até sua morte, em 1998 expressa a experiência da comunhão com Deus, da completa consonância com a transcendência. O voo místico descrito nos seus versos foi possível porque ele ainda pertencia a um mundo em que imperava a harmonia de todas as esferas da experiência. Muito diferente foi o caminho de Quevedo. Ele é o poeta consciente de estar apartado da totalidade. E consciência significa cisão entre o eu e o mundo. Os textos teóricos de Paz e sua poesia foram uma exploração sempre renovada do significado dessa oposição entre solidão e comunhão. O labirinto da solidão considera a história do México por esse viés. Ela começa com um período em que predominava um sentido unitário do mundo, na colônia, caminha para uma época de estranhamento do país relativamente a seu próprio modo de ser, no século 19, e alcança a Revolução, que constituiu a tentativa de resgate da unidade perdida.
A dialética de comunhão e solidão adquire na obra de Paz uma dimensão filosófica, histórica e existencial. Entretanto, ela nunca alcança um termo final, é incompleta. A lição que o escritor extraiu do exame da revolução mexicana é de que o resgate da identidade pretendido por ela é impossível. Do mesmo modo sob todos os outros aspectos: filosófico, pois nunca captamos a realidade como plenitude; histórico, pois a história nunca termina, como pretenderam filósofos como Marx; existencial, uma vez que nossa busca do absoluto é sempre insatisfatória. Isso acarreta uma desistência ou significa um malogro? Não para Paz. As mais relevantes realizações da humanidade e as experiências mais preciosas de cada homem se explicam por estarem envolvidas na dialética da solidão. A vida de cada um progride na infância, a seu modo feliz, passa pelas obrigações do homem adulto, e caminha para o fim. Em certos momentos, temos a expectativa de recuperar alguma forma de completude. Essas são experiências que derivam do reconhecimento da nossa precariedade e também de nosso inconformismo diante delas. São como pontes que lançamos, mas que nunca atingem o outro lado. Também do ponto de vista da história, a humanidade passou das comunidades primitivas até a modernidade, que é o momento em que se sofre da maior solidão. Octavio Paz considerou alguns enfrentamentos da dramática situação moderna. A política revolucionária foi um deles. Os grandes líderes dos séculos 19 e 20 prometeram a realização do reino da liberdade e a superação da solidão. Entretanto, o que se viu, e que Paz denunciou, foi que a síntese alcançada nessa dialética levou ao congelamento de todas as possibilidades criativas e à prisão a um novo absoluto. Outro foi o caminho apontado pelos poetas, a contrapelo do mundo moderno. Novalis, Nerval, Baudelaire, Lautréamont, Poe, Rimbaud e Breton são os verdadeiros heróis míticos do nosso tempo. O intento deles foi unir o céu e o inferno, mesmo sabendo que nunca atingiriam isso.
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PABLO BERNASCONI
Leitura
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POESIA Uma mistura de contrários TEXTO Fábio Andrade
“Déjame que me pierda entre palabras,/ déjame ser el aire en unos labios,/ un soplo vagabundo sin contornos,/ breve aroma que el aire desvanece.” Eis o destino do poeta, segundo Octavio Paz. E talvez tenha sido ele um dos mais capazes tradutores, tanto em seus escritos ensaísticos como em seus poemas, da condição e importância da poesia em nosso tempo. Sem dúvida, um dos que mais encarnaram esse destino – o de perder-se no fluxo vulcânico da criação poética, a ponto de mesclar a reflexão crítica e teórica com sua própria poesia, resultando daí um idioma lúcido, belo e contundente. Como ensaísta, talvez tenha sido um dos mais importantes no século 20. Seus livros O arco e a lira (1956), Os filhos do barro (1974) e A outra voz (1990) são referências obrigatórias para se pensar a modernidade literária que se inicia no Romantismo, como ele mesmo nos propõe, e continua desde então como um processo dialético em que as noções de modernidade e tradição têm que ser repensadas constantemente, para se entender o fenômeno a que ele mesmo chamou de tradição moderna. Como poeta, Octavio Paz foi dono de uma vigorosa linguagem, cosmopolita e, ao mesmo tempo, conectada em suas raízes ameríndias. Um rápido olhar sobre sua obra poética, desde seus primeiros livros – reunidos em Libertad bajo palabra (1949) – até as últimas publicações, apresenta-nos uma voz que tenta sintetizar tradição e renovação. Uma voz múltipla que se constituiu através de formas profundamente tradicionais como o haiku (ou haicai) japonês, mas também da poesia visual, como acontece em seu poema Blanco, traduzido para o Brasil por Haroldo de Campos. Para o tradutor, na edição crítica que oferece aos leitores brasileiros, Octavio Paz “representa, no âmbito de uma literatura poética em que vinha, aos poucos, prevalecendo a superfetação retórica e a indulgência sentimental tardonerudianas, a tentativa quase isolada de delineamento de uma
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HAROLDO DE CAMPOS
Poeta traduziu obras de Paz e também as analisou criticamente
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TÍTULOS
No ano do seu centenário, algumas de suas principais obras foram relançadas
zona de rigor, de constante questionamento criativo da medula da linguagem”. A multiplicidade da poesia de Paz reflete essa constante pesquisa de linguagem, e a também frequente reavaliação da visão de mundo que sua rica poesia oferece. A trajetória literária de Octavio Paz começou muito cedo. Aos 19 anos, ele lança seu primeiro livro de poemas: Luna silvestre (1933). Radicalmente aberta para a experimentação e para a capacidade de recriação, sua poesia dialogou com várias correntes estéticas ao longo do século 20. Seu interesse pela tradição poética zen do haicai (foi tradutor de Bashô), assim como pela poesia clássica indiana anda de mãos dadas com seu interesse pela política e pelo erotismo tântrico. Tudo isso vai deixando marcas profundas em sua dicção poética.
OCULTO NO SONHO
Uma das marcas mais fortes, entretanto, foi o Surrealismo, que explica a abertura do seu pensamento a formas tradicionais e mágicas de pensar a poesia e o mundo. O Surrealismo e seu programa de resgatar o homem profundo, aquele que se oculta no sonho, no pensamento
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mágico ou numa forma de olhar que revelam as imagens mais inusitadas, como nos versos de seu pequeno poema Relieves: “La lluvia, pie danzante y largo pelo,/ el tobillo mordido por el rayo,/ desciende acompañada de tambores:/ abre los ojos el maíz, y crece” (A chuva, pé dançante e cabelo solto,/ o tornozelo mordido pelo raio,/ desce acompanhada de tambores:/ a espiga abre os olhos, e cresce” – tradução de Haroldo de Campos). O gosto pela imagem surpreendente, mas também pela musicalidade densa de um verso livre educado na contenção oriental é um dos traços mais comuns em sua trajetória poética. O Surrealismo lhe ensinou a ânsia mágica pela imagem onírica; o haicai
disciplinou a revelação dessas imagens. A poesia clássica indiana conferiu ao lirismo amoroso próprio do Ocidente, também presente em sua poesia, um caráter transcendental; a mitologia olmeca conectou-o espiritualmente com suas raízes ameríndias. A poesia de vanguarda e visual instilou no poeta o experimentalismo; a exuberância barroca aguçou a sua sedutora discursividade. A poesia de Octavio Paz se ergue de uma curiosa mistura de contrários – o barroquismo latinoamericano e o minimalismo da poesia clássica japonesa. Mais do que isso, em sua voz as dicotomias se resolvem, os contrários se fundem numa poética da convergência, termo crítico cunhado por ele e, mais do que isso, materializado
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pela sua poesia. Uma poesia transcultural, um verdadeiro concerto de imagens e vozes que insistem em sobreviver ao tempo. Uma constelação histórica que a poesia atesta ser cada indivíduo, cada ser. Como diz a própria voz convergente de Octavio Paz: “Fala escuta responde-me/ o que o trovão diz/ o bosque o compreende” (tradução de Luís Pignatelli).
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Leitura ENSAIO Força da tradição humanista TEXTO Eduardo Cesar Maia
No ano de 1990, por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz foi mundialmente celebrado e reconhecido pelo “labor como insígne crítico, poeta e voz da consciência não somente do México, mas de toda humanidade latino-americana”. Não sei ao certo o que a academia sueca pretendeu dizer com “humanidade latino-americana”, nem acredito nessa setorização ou loteamento do humano, a não ser quando se trata de geografia ou política: o testemunho vital e intelectual de Octavio Paz é, a meu ver, um legado humanista universal. O amplo reconhecimento internacional – incluindo aí os Estados Unidos e a Europa –, além da fortuna crítica
e das traduções de suas obras, tanto poéticas quanto ensaísticas, para mais de 30 idiomas, são a prova material disso. No entanto, apenas a leitura daquilo que escreveu – principalmente em seus ensaios – é que pode atestar a filiação intelectual do mexicano a certa tradição humanística de pensamento, por certo muito bemrepresentada em língua castelhana por pensadores como Baltasar Gracián, Luis Vives, Miguel de Unamuno, José Ortega y Gasset e María Zambrano. Uma das figuras mais representativas e relevantes dessa tradição humanista, Francesco Petrarca, defendia a postura intelectual de aceitar humildemente a ignorância humana em relação
às coisas divinas e duvidar das pretensões de que o homem pudesse atingir um tipo de conhecimento completamente objetivo da natureza, totalmente independente de sua perspectiva subjetiva. Michel de Montaigne, cerca de 200 anos depois, reviveu essa ideia e legitimou filosoficamente um tipo de conhecimento que se origina a partir de uma exploração interior, e que tem como fulcro a riqueza da experiência humana. Essa valorização da perspectiva individual e da vivência concreta, fundamental no humanismo, explica por que a filosofia escolástica foi tão duramente combatida pelos humanistas do Renascimento: justamente por se centrar numa preocupação exclusivista com questões metafísicas, com a perfeição do encadeamento lógico dos argumentos e com uma estrutura sistemática e abstrata de todo pensamento filosófico, mas que deixava de lado os problemas ordinários da existência humana temporal, e desprezava a experiência individual como forma de conhecimento válido. A produção ensaística de Octavio Paz pertence a essa linhagem, e as evidências em apoio a essa afirmação são várias. Para Paz, a linguagem é um organismo vivo e as palavras “são rebeldes à definição”; sua concepção de conhecimento resiste, pois, aos limites de uma visão exclusivamente racionalista e logicista, e tampouco se dobrou, em nenhum momento, frente às pretensões cientificistas de diversas correntes teóricas hegemônicas em sua época. Não seria correto, contudo, classificá-lo como “irracionalista”: a crítica do ensaísta se dirige não à razão e à lógica, mas à mistificação delas, a partir da criação de uma ordem abstrata, fechada, sistemática e imutável como base essencial do universo. Distanciandose de qualquer versão idealista de pensamento, Paz aceita que mesmo a nossa lógica mais “pura” é algo totalmente contingente, pois nasce, assim como a própria linguagem, de nossa interação cotidiana com o mundo. Entretanto, ainda que contingente e orgânica, a linguagem possui necessariamente uma estrutura
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INDICAÇÕES lógica, sem a qual – reconhece o ensaísta – não poderia funcionar. Em uma parte fundamental de O arco e a lira, escreve Paz: “As palavras se conduzem como seres caprichosos e autônomos. Sempre dizem ‘isto e o outro’ e, ao mesmo tempo, ‘aquilo e o de mais além’. O pensamento não se resigna; forçado a usá-las, uma e outra vez pretende reduzi-las às suas próprias leis; e uma e outra vez a linguagem se rebela e rompe os diques da sintaxe e do dicionário. Léxicos e gramáticas são obras condenadas a não serem terminadas nunca. O idioma está sempre em movimento, ainda que o homem, por ocupar o centro do redemoinho, poucas vezes se dê conta dessa incessante mudança”. É justamente a liberdade garantida pela retórica do ensaio que permite, àqueles que o cultivam, o uso de ferramentas poéticas como a metáfora e as analogias, além do discurso indireto, digressivo, subjetivo, circular... O grande valor dos ensaios do autor de O labirinto da solidão reside justamente em seu poder criativo, metafórico, na beleza sensual de suas imagens, em um tipo de rigor ao mesmo tempo intelectual e estético, que impressiona a inteligência e a sensibilidade do leitor. É tarefa estéril querer localizar o pensamento de Octavio Paz – principalmente aquele revelado em sua ensaística – dentro de uma teoria exclusiva ou de um único sistema filosófico, ainda que ele tenha sido influenciado por várias correntes teóricas e literárias de seu tempo. Sua obra reflete uma
negação peremptória de esquemas, teorias e sistemas fechados de pensamento. E essa é outra evidência de sua filiação humanista: não encontramos nele o trabalho de um especialista, de alguém versado em uma determinada área do conhecimento. Em um mesmo texto seu, é comum a presença de vários temas entrelaçados, perspectivas diferentes em diálogo franco e mesmo contradições lógicas impensáveis dentro dos limites de um pensamento analítico. Em seus ensaios, não há a pretensão de se esgotar um tema ou de serem estabelecidas definições últimas: o importante é buscar – ensaiar – novos caminhos, novas formas de ver. Dizia Ortega y Gasset que o ensaio é “a ciência sem a prova explícita”; nesse gênero, não é necessário provar nenhum argumento de maneira definitiva, pois não se busca a certeza, nem a objetividade. A ânsia moderna, racionalista e cartesiana por um saber apodítico (universal e necessário) é deixada de lado. O ensaísta se alimenta da constatação do caráter contingencial e provisório de nossa existência e de tudo aquilo que presumimos saber. Num elogio a um de seus maiores mestres intelectuais, escreveu Octavio Paz: “Diz-se que Alfonso Reyes é um dos maiores prosadores da língua; é preciso acrescentar que essa prosa não seria a que é se não fosse a prosa de um poeta”. Tais palavras caberiam perfeitamente numa caracterização do próprio Paz, porque seus ensaios são também peças de um criador da linguagem, de um poeta.
AUTOBIOGRAFIA
FICÇÃO
SEBASTIÃO SALGADO Da minha terra à Terra
RODRIGO FRESÁN O fundo do céu
O fotógrafo mineiro refaz sua trajetória neste livro simples. O elemento desencadeador da narrativa é a viagem que ele empreendeu a Galápagos, dentro do projeto Gênesis, em que conta que “aprendeu” – no contato com uma tartaruga gigante – a fotografar os animais assim como fazia com os homens. A leitura é marcada pelo respeito à natureza.
Alienígenas, Guerra do Iraque, terrorismo, um triângulo amoroso. O escritor argentino apropria-se da ficção científica em seu oitavo livro. Em meio a divagações e histórias, é fácil encontrar, disfarçados, nomes clássicos da literatura interplanetária: Philip K. Dick, Arthur C. Clarke e Isaac Asimov. Entre referências diversas, a costura literária hipnotizante de Fresán propulsiona este livro.
REPORTAGEM
COLETÂNEA
Paralela
JEREMY SCAHILL Gerras sujas Companhia das Letras
O livro mostra como a atitude do Nobel da Paz Barack Obama, ao continuar a política nefasta de George W. Bush, radicalizou o modo como os EUA administram suas estratégias de guerra, cada vez mais aviltantes, incluindo o uso de drones para assassinar adversários e até cidadãos americanos longe das fronteiras “democráticas” da maior máquina bélica do planeta.
Cosac Naify
ZUZA HOMEM DE MELLO Música com Z Editora 34
A obra reúne 140 textos, entre os mais de mil que compõem o acervo do crítico musical. Há artigos, reportagens e entrevistas realizadas por ele ao longo de quase seis décadas, tratando de uma grande diversidade de gêneros musicais. Dividido em sete partes, o livro analisa canções e fala de figuraças do mundo da música.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
CONVERSA COM O ARTISTA QUE VAI MORRER – Posso confessar uma coisa? O
que me mantém vivo é a gravura que produzo todo ano. Calou porque se sentia cansado. Ficava exausto ao menor esforço, até mesmo o da fala. Nunca fora homem de muita conversa sobre a técnica de gravar e imprimir, nem explicava os resultados surpreendentes que alcançava. Sempre se recusou a ser um teórico da arte, os ensinamentos que arranquei dele me custaram esforço e paciência, como se garimpasse em mina de veio profundo. A doença deixou-o loquaz, os amigos ficavam surpresos com sua vontade repentina de falar. Conversamos num espaço entre a sala de visitas – que nunca é usada, parecendo uma ágora muda com filas de cadeiras e uma marquesa de palhinha – e a sala de jantar, as duas separadas por um biombo de treliças. A primeira sala não convida ao descanso. Na saleta, também não ficamos mais confortáveis, embora os donos da casa nos acolham muito bem. Arrumado numa poltrona, por conta de dores nas costas, uma sonda renal, um saco
coletor de urina e um cateter liofilizado em um dos braços, ele vez por outra se queixa. Eu velo meu olhar clínico e finjo não perceber o quanto está anêmico, as escleróticas ictéricas, a barriga volumosa pela ascite. Com tudo isso, a cada visita eu percebo uma nuança de beleza que ele nunca revelara e só agora deixa escapar. – Tanto trabalho, tanta coisa por fazer e não tenho coragem para nada. Mal consigo assinar as gravuras. – É assim mesmo, paciência. Não costumo mentir com acenos de cura, respeito o homem à minha frente. Nas paredes da imensa sala onde conversamos, a façanha de sua vida: dezenas de gravuras e pinturas a óleo. – Gosto da cor na última gravura, um pouco mais acrescentada. É como se você fosse generoso com as pessoas. Também aprecio o número de figuras acima do habitual. Será que você ficou barroco? Rio. Ele disfarça a dor e também ri. Passo a mão na cabeça dele, assanho os cabelos, aproximo meu rosto. Nunca nos permitimos tamanho afeto.
– É, percebi isso. Foi espontâneo, nada pensado. Sempre tive medo de usar cor na gravura. Ela é apenas um sinal. – Mas nessa economia se revela grandeza. – Você está dizendo. Não vejo isso tudo. Rimos novamente. Levanto e me aproximo de uma gravura, tiro os óculos para ver melhor de perto. Há quantos anos eu procuro desvendar os traços nascidos dos cortes na madeira, investigando os conceitos de exatidão e economia? Certa vez, estive em uma sala na Pinacoteca do Estado de São Paulo – a última de cinco salas com exposição do artista –, mostrando apenas duas gravuras que se olhavam em espelho, e dois altares com as respectivas matrizes. O muito revelado no mínimo. – Minha pintura é toda em primeiro plano, como a gravura. Nunca soube criar planos de profundidade. Não cheguei nesse ponto da conversa, já escutei essa queixa uma centena de vezes. Ainda me detenho no silêncio criado pelos brancos, os espaços sem gravar. Nosso diálogo foi sempre pautado por esse mesmo
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REPRODUÇÃO/GRAVURA SUZANA NO BANHO, GILVAN SAMICO
Suzana no banho. Um dia ele me telefona e fala para eu ir buscar as gravuras. Elas ficaram prontas e eu as recebo como presente. Na hora de sair, ele diz: – Se quer mais alguma, fale agora. Não sei se resta muito tempo. Avelina lembra nosso presente de casamento, Mãe e filhos, uma gravura de 1958, e pede desculpa porque passamos da hora. Célida sugere a Samico que nos acompanhe até a porta. Com grande esforço, ele se levanta da poltrona e caminha ao nosso lado. Lá fora, anoitece em Olinda. O sino do Mosteiro de São Bento toca as vésperas. Sopra uma brisa do mar e me desloca no espaço. Dizem que a casa restaurada por Célida e Samico pertenceu a João Fernandes Vieira e data do século 17. Os dois sobrados em torno, vendidos para a construção de uma pousada, sofrem com o abandono. O projeto gorou e as casas ameaçam ruir. Desço um batente e piso a calçada. Um pouco mais acima, na Rua de São Bento, funcionava o Ateliê Coletivo. Às quintas-feiras, eu vinha comer macarrão na casa de Giuseppe Baccaro. Com sorte, encontrava Guita Charifker, Luciano Pinheiro, José Cláudio, José de Barros, Gil Vicente, Zé Barbosa, Eduardo Araújo e Samico, o mais arredio. Era o tempo dos ateliês
Nosso diálogo foi sempre pautado pelo silêncio, pausas em que as palavras se plantam como os riscos na madeira silêncio, pausas em que as palavras se plantam como os riscos na madeira. – Se pelo menos eu tivesse força. Esbocei a gravura desse ano, mas não passei do primeiro estudo. As pessoas até gostaram. Como eu vou gravar, se falta coragem para o desenho? Estou perdido. O lamento soa como acusação. A quem? Lembro um verso terrível de Jorge Luis Borges: “Não esperes que o rigor de teu caminho tenha fim”. Estremeço. Venho morrendo com amigos que partem e me deixam sem roteiro, porque eles representavam um
hábito de minha vida, um lugar que eu aprendera a visitar sem medo. Dizem que a amizade se consolida depois que dormimos debaixo do mesmo teto e comemos um quilo de sal juntos. Um quilo de sal possui infinitas moléculas, demanda um tempo enorme para ser consumido. Será que terei vida bastante para outros quilos de sal? Perguntome e olho o homem à minha frente. Passaram-se 40 anos, calendário vagaroso, sujeito a sol e chuva. Meses antes, quando ele ainda tinha prumo e pulso, falei do meu desejo de possuir duas gravuras especiais: Dama com luvas e
ao ar livre, quando pintores de Olinda e Recife saíam em grupos para pintar paisagens de Itamaracá, Itapissuma, Igarassu e imediações. Tudo isso agora me parece bem longe. Samico abraça e beija Avelina. Beijo Célida e falo até mais. Sinto um profundo desgosto, uma tristeza que não combina com a brandura do vento. Abraço Samico. O máximo que consigo dizer é que tenha coragem. Coragem! Entro no carro e me pergunto: – Quantas vezes ainda nos despediremos, em frente à mesma porta?
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CON TI NEN TE
Criaturas
Julio Cortázar por Andrés Casciani
Foi em Paris, onde viveu dos anos 1950 até sua morte, que o escritor argentino Júlio Cortázar (26/8/1914 – 12/2/1984) escreveu boa parte de sua obra, sendo o romance O jogo da amarelinha, cuja arquitetura complexa ocupou-lhe cerca de sete anos, seu título mais reverenciado. O livro, lançado em 1963, propõe ao leitor duas formas de leitura: uma linear, seguindo a ordem dos capítulos, e outra, sob as indicações do autor. Mas não é somente em Rayuela que ele quebra estruturas narrativas. Final de jogo, Último round e 62/ modelo para armar são algumas de suas geniais artimanhas. C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 4 | 8 8
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E MAIS SILVIANO SANTIAGO MALIKA FAVRE JOÃO DONATO DEREK JARMAN OCTAVIO PAZ
OPI NI
ÃO
A DISPUTA PELA AUDIÊNCIA ENTRE AS MÍDIAS TRADICIONAIS E AS REDES SOCIAIS 31/07/2014 15:05:56