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# 165
ARTE E
natureza #165
ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS TRAZEM NOVAS ABORDAGENS À RELAÇÃO COM O MEIO AMBIENTE
ano XIII • set/14 • R$ 11,00
CONTINENTE SET14
E MAIS JORDI SAVALL | ALCEU VALENÇA | CAMILO CAVALCANTE | JOCY DE OLIVEIRA Capa_SET_FINAL.indd 1
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FRANS KRAJCBERG/DIVULGAÇÃO
SETEMBRO 2014
aos leitores Em vários momentos da história da arte, observamos a “presença da natureza”. Até o século 19, predominou um olhar contemplativo, platônico, idealista sobre ela, em obras que a representavam como expressão de beleza, refúgio, idílio, mas também drama e horror. Mesmo com essas variações de pontos de vista, havia como elemento em comum a noção de cisão entre o homem e a natureza, com a prevalência do primeiro. Em certo sentido, mesmo com os movimentos de vanguarda, a arte do século 20 não se contrapôs diretamente a essa ideia de cisão entre o homem e a natureza. A visão que tínhamos dessa relação só foi contestada nos anos 1960, a partir de movimentos artísticos que adotaram um olhar crítico e francamente político sobre o assunto. Subjazia a esse fenômeno um cenário planetário de crescente escassez de alimentos e bens naturais, consumo excessivo, desastres ambientais. Palavras como meio ambiente e ecologia entraram na agenda internacional.
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Ao mesmo tempo, os artistas questionavam aspectos como a institucionalização da arte, a restrição da fruição das obras a espaços expositivos, o formalismo de movimentos consagrados pelo establishment. Motivados por discussões distintas, surgiram o minimalismo, o novo realismo, a land art (ou earth-art), a arte povera (do italiano “pobre”), que colocaram em xeque os variados graus de distanciamento e alienação a que a sociedade estava submetida naquele momento. Dessa forma, muitos artistas – sobretudo europeus e norte-americanos – realizaram trabalhos não sobre, mas na natureza. Desde então, com maior ou menor ênfase, o protagonismo do ambiente natural e a relação dos artistas com ele têm marcado presença na arte. Nesta edição da Continente, tomamos como ponto de partida o fato de a recente Bienal da Bahia ter usado como base reflexiva o Manifesto do naturalismo integral, de Pierre Restany, para trazer à discussão procedimentos que artistas contemporâneos estão usando para trabalhar o binômio arte-natureza.
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sumário Portfólio
Casa Caiada 4
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Jordi Savall Compositor, instrumentista e regente catalão fala sobre pesquisas e experiências na música antiga
Conexão
Filmow Rede social reúne usuários que desejam trocar ideias e experiências em torno de audiovisuais
18
Balaio
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Perfil
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60
Palco
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Matéria Corrida
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Leitura
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Entremez
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Claquete
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Criaturas
Cardápio
Lançamento Livro sobre a crítica gastronômica encorpa a escassa bibliografia sobre o gênero jornalístico
Jocy de Oliveira Coletânea reúne troca de cartas entre a pianista brasileira e renomados compositores internacionais
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Post sem noção Homenagem da Academia ao ator Robin Williams desperta discussão sobre como abordar o suicídio
Jarbas Maciel Trajetória do professor e instrumentista é marcada por momentos determinantes da música brasileira
Sonoras
Tapeçaria chega a meio século de atividades com catálogo de peças que incluem padrões do clássico floral ao geometrismo e qualidade de manufatura
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Maria Rita Freire da Costa Atriz pernambucana é uma das personagens e testemunhas do teatro de resistência do Brasil
José Cláudio Telles Júnior
Caleidoscópio A breve história de uma editora que se aventura ao estímulo à leitura no pequeno município de Lagoa dos Gatos Ronaldo Correia de Brito Visões fragmentárias de um Recife úmido
Camilo Cavalcante Primeiro longa do curtametragista, A história da eternidade, recebe quatro estatuetas no Festival de Paulínia
Marcello Mastroianni Por Miguel Falcão
História Higiene
Fundamentais para a saúde, cuidados com o corpo já foram alvo de preconceito e ganharam conteúdos ideológicos, que levaram a genocídios
38 CAPA FOTO Christo and Jeanne-Claude/The Umbrellas, Japan-USA, 1984-91/Foto: Wolfgang Volz
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Capa
Viagem
Marcante em vários momentos da história da arte, a relação de artistas com o ambiente em que vivem ganha contornos conceituais entre os contemporâneos
Capital do maior estado brasileiro se mostra uma cidade dinâmica e nostálgica, sendo um retrato da colonização europeia na porção mais selvagem do país
Especial
Visuais
Com A luneta do tempo, compositor faz bem-sucedido début como diretor de cinema, em longa construído por memórias e em versos decassílabos
Publicação reúne parte desconhecida da produção gráfica pernambucana, a partir de estudo de obras raras e periódicos do acervo da Biblioteca Pública do Estado
Arte e natureza
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Alceu Valença
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Manaus
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Impressos
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cartas NELSON PROVAZI
Edição de agosto
Marco César
A Continente de agosto está muito interessante. Comecei a ler o exemplar tão logo chegou à minha residência e só parei no fim. Gostei bastante da reportagem sobre o mel, da jornalista Clarissa Macau, e da matéria de capa sobre opinião. Quero congratular também o colunista Ronaldo Correia de Brito por seu texto em Entremez, e elogiar toda a equipe que faz a revista. Parabéns pelo trabalho!
A entrevista com o grande professor Marco César, publicada na edição 163 (jul/14) da revista, foi simplesmente brilhante. Já participei do conjunto do Bloco em Poesia e de outras inúmeras oportunidades, com ex-alunos seus, Beto do Bandolim, João Paulo Albertim e outros, todos excepcionais. Eles demonstram, sem sombra de dúvidas, o ótimo ensinamento recebido desse mestre. A convite do seu tio Tonhé, meu saudoso amigo,
ROMUALDO VERAS NATAL – RN
participei – juntamente com outros ex-alunos de Marco César – das gravações dele com a cantora Luba. Quanto ao falado “dom”, Rossini Ferreira ganhou um concurso nacional de choro e não lia nenhuma pauta, só vindo a estudar teoria musical com bastante idade... Consta também que o grande violonista Ernani Reis era às vezes procurado por maestros, para socorrê-los nas dificuldades harmônicas, auxiliando-os e fazendo brincadeiras com palavras alemãs para denominar os acordes “estranhos”. Em todas as artes, é indispensável o dom, o talento, sem os quais não se tornam expressivas, sendo imprescindível, a partir daí, o aprimoramento propiciado pelos mais experientes nos respectivos campos. Parabéns, Continente. Sugiro que vocês sempre realizem entrevistas com pessoas do quilate desse ilustre professor. WALTER MARQUES FERREIRA
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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PAULISTA – PE
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colaboradores
Carlos Eduardo Amaral
Marcelo Miranda
Paulo Carvalho
Renata do Amaral
Crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE
Jornalista, professor e crítico de cinema em Belo Horizonte
Jornalista, doutorando em Comunicação pela UFPE
Jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFPE
E MAIS Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Flávio Lamenha, fotógrafo. Flora Pimentel, fotógrafa. Gilson Oliveira, jornalista e revisor do suplemento Pernambuco. João Cezar de Castro Rocha, ensaísta, crítico e professor de literatura comparada da UERJ. Miguel Falcão, ilustrador e caricaturista, atua no Jornal do Commercio. Priscila Muniz de Medeiros, jornalista, doutoranda em Comunicação pela UFPE. Otavio de Souza, fotógrafo.
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO
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JORDI SAVALL
“O caminho é tocar as músicas com virtuosismo” Especialista em música antiga, catalão é responsável por ter devolvido relevância ao repertório renascentista espanhol e por despertar o interesse de jovens alunos pelas composições do período. Ele fará uma apresentação em Olinda, durante o Mimo TEXTO Carlos Eduardo Amaral
CON TI NEN TE
Entrevista
Para muitos fãs, a fama de Jordi Savall – professor da mais renomada instituição de ensino de música antiga da Europa há 40 anos, a Schola Cantorum Basiliensis, da Basileia (Suíça) – veio com a seleção e interpretação da trilha sonora do filme Todas as manhãs do mundo (1991), de Alain Corneau, baseada especificamente em compositores do barroco seiscentista francês (Lully, Marin Marais, Sainte Colombe e Couperin). No entanto, Savall acumula em seu currículo ao menos três distinções de primeira grandeza, que dão ideia de sua magnitude profissional: um Grammy de melhor performance de grupo de câmara, em 2011, a Legião de Honra do governo francês e, sobretudo, o prêmio Léonie Sonning, considerado o Nobel da Música, que confere ao agraciado um cheque de 125 mil dólares e só contempla gênios do quilate de Igor Stravinsky, Leonard Bernstein, Miles Davis e Keith Jarrett. O músico catalão se apresenta no dia 5 de setembro na Igreja da Sé, em Olinda, dentro da programação
do Mimo 2015, e traz consigo dois integrantes com os quais trabalhou em um dos grupos que dirige, o Hespèrion XXI: o britânico Andrew Lawrence-King, que toca harpa e saltério, e o espanhol Enrike Solinís, na tiorba. Graças às pesquisas de Savall, a música renascentista espanhola voltou a ter relevância em meio às tradições musicais da Europa Ocidental, e a viola da gamba, instrumento típico dos seculos 16 e 17, passou a despertar mais interesse de jovens alunos de música antiga. Mais do que isso, a importância que ele deu à prática da improvisação, quando a interpretação da música antiga no século 20 ainda estava viciada pela execução rigorosa e quadrática dominante do Classicismo para frente, teve impacto amplo nas novas gerações de musicólogos. Não bastasse ser um músico dito “completo”, que toca, rege e compõe, Savall ainda é dono do próprio selo musical, a Alia Vox, coordena outros dois conjuntos que fundou com sua esposa (a falecida soprano Montserrat Figueiras), La Capella Reial de
Catalunya e Le Concert des Nations, e continua a se dedicar – quando a rotina de concertos permite – ao ensino e à pesquisa. Com mais de 200 CDs lançados, incluindo álbuns autorais, compilações e participações, Savall reservou um dia em agosto para atender a imprensa pernambucana via Skype e respondeu, com exclusividade, à Continente, a perguntas elaboradas por estudantes e fãs de música antiga acerca de temas como: fontes de pesquisa, o lugar da improvisação e os respectivos limites nesse gênero de interpretação, as competências de um diretor orquestral, a conquista do público jovem e o download gratuito de músicas. CONTINENTE Qual o atrativo principal do programa que será apresentado no Mimo? JORDI SAVALL É um programa que traça uma linha de diálogo entre músicas antigas do Oriente e do Ocidente. Haverá canções sefarditas, otomanas, turcas e, especialmente na parte mais antiga, haverá canções de Diego Ortíz, Antonio de Cabezón,
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TONI PEÑARROYA/DIVULGAÇÃO
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Santiago de Murcia, músicas da tradição dos ostinati e das variações sobre a folia. CONTINENTE E quais serão os instrumentos utilizados no concerto? JORDI SAVALL Enrike tocará uma cópia de guitarra barroca (não sei a data de construção dela) e Andrew tocará uma harpa cruzada e um saltério – este, feito de uma cópia de um instrumento do século 13 ou 14. Eu tocarei uma viola da gamba soprano de 1500, do Renascimento italiano, e uma viola da gamba baixo de 1697, construída por Barak Norman.
CONTINENTE Em seu CD Lachrimae Caravaggio, temas de compositores como Gesualdo e Monteverdi são tratados sob livres
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
CONTINENTE A descoberta da música antiga parece nunca ter fim, e seus trabalhos
CONTINENTE E onde você procura as partituras, os registros, as melodias...? JORDI SAVALL Há muitas formas de se procurar os registros. Há os repertórios de compositores que conhecemos pouco, como Diego Ortiz, Antonio de Cabezón, Marin Marais, e de compositores que conhecemos bem, como Bach e outros – e há muitas músicas nesses repertórios que não estão conhecidas. Tenho muitos microfilmes e manuscritos de várias coleções, a partir dos quais faço minhas investigações.
CON TI NEN TE
CONTINENTE Ainda levando em conta Lachrimae Caravaggio, sabemos que a música antiga permite essa série de adaptações, arranjos e formações instrumentais diversas. Até onde pode ir essa criatividade sem que haja abusos? JORDI SAVALL Essas questões são muito relativas. Um abuso seria deformar tanto uma música, que já não se reconhecesse como ela seria originalmente. Uma deformação seria, pois, uma transformação na música sem se ter conhecimento do tempo, do pulso... se a
“Creio que essa é a graça da música antiga: podemos descobrir coisas admiráveis de outras épocas, das quais não tínhamos nem ideia que podiam existir. Sons de instrumentos que foram esquecidos, músicas primorosas”
Entrevista como músico são a prova de que há muitos tesouros a serem descobertos. Como se dá a sua pesquisa de repertório? JORDI SAVALL Meu trabalho, como você disse, nunca tem fim porque há sempre alguma maravilha escondida, por descobrir. Creio que essa é a graça da música antiga: podemos descobrir coisas admiráveis de outras épocas, das quais não tínhamos nem ideia que podiam existir. Sons de instrumentos que foram esquecidos, músicas primorosas, a nobreza da arte da improvisação... Isso é muito importante. E creio que necessitamos disso hoje, porque não existe em nossa época esse tipo de música, é importante conhecer toda a vitalidade das músicas antigas.
intérprete que improvise em um concerto. Na tradição oral do mundo oriental, dos Bálcãs, do Marrocos, a improvisação é fundamental.
improvisações, algo que hoje é associado comumente ao jazz. Em que grau a improvisação tem espaço na música antiga? JORDI SAVALL Creio que hoje em dia essa parte da música – no universo do jazz e em outros tipos de música no Ocidente, como o folk, as músicas celtas, essas coisas – é como na música antiga. Improvisaremos sobre várias coisas nesse programa que vamos fazer em Olinda: sobre as folias, a guaracha... e também sobre canções sefarditas, andaluzas... Penso que é uma das riquezas que estamos incorporando de novo no mundo da música clássica através da música antiga, porque isso não existe na música clássica. No seu universo, praticamente não há nenhum
tocassem excessivamente lenta ou excessivamente rápida e, assim, transformando-a de forma arbitrária. CONTINENTE Em sua opinião, os melhores maestros são (ou foram) grandes instrumentistas ou só lhes basta a liderança e o senso de estilo? JORDI SAVALL Nas épocas antigas, o diretor de orquestra era sempre um músico que tocava órgão, clavicêmbalo ou violino. Para se chegar à figura do diretor que é somente diretor, foi preciso esperar até o século 19, com o Romantismo. Antes, um Félix MendelssohnBartholdy era compositor, era um músico excelente e também dirigia. Então, sempre foi assim e,
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atualmente, se alguém pode fazer a carreira somente de maestro é porque também há muito mais orquestras e os maestros têm sido muito demandados. Penso que o músico completo é capaz de ser um bom instrumentista, de dirigir um conjunto, de criar, de compor, de investigar, de todas essas possibilidades. E de ensinar também...
chegar-se a aprofundar e a estar atento à música, para que ela possa falar por si mesma. Quando você conhece a fundo a música, ela lhe diz o que você tem de ser. Tocando-a, a música se expressa. Quando você inventa que interpretar é fazer mais coisas (“aqui mais lento, aqui mais rápido”), então você se arrisca a deformar a música.
CONTINENTE As interpretações com instrumentos originais ainda são tratadas com reservas, mas elas influenciaram inclusive quem hoje as rejeita – é só ver como Bach era tocado há 50 anos e como é agora pelas orquestras modernas. Em sua opinião, quais os rumos da interpretação de música antiga?
CONTINENTE Como a música antiga poderia ser melhor difundida entre os jovens? JORDI SAVALL Bem, eu creio que é como todos os tipos de música. O principal problema é que na escola não se faz música o suficiente, e fazer música é uma coisa muito
custam muito dinheiro, tinham majoritariamente gente mais velha. CONTINENTE Como você encara o fenômeno dos blogs de música antiga que permitem download gratuito, incluindo suas peças e discos? JORDI SAVALL É algo lastimável porque penso que um artista que investe sua vida nesse processo criativo tem direito a recuperar um pouco do tempo investido. Creio que esses blogs que difundem gratuitamente as coisas são algo muito grave, porque se não se pode recuperar um pouco do que é investido, chega-se a um ponto em que não se pode fazer mais projetos. Isso é a morte da criação. Isso é como se eu pudesse comprar um carro sem
“Improvisaremos sobre várias coisas nesse programa que vamos fazer em Olinda: sobre as folias, a guaracha... e também sobre canções sefarditas, andaluzas... Penso que é uma das riquezas que estamos incorporando de novo no mundo da música clássica” JORDI SAVALL Creio que a música antiga chegou a um nível igual ao da música clássica. O caminho é tocar as músicas mais velhas com o máximo de virtuosismo, de emoção, de fidelidade... Esse é o caminho, tocar o melhor possível a música, conhecendo bem a época, as técnicas... E a partir daqui eu quero que chegue o momento em que não haja diferença entre um instrumento antigo e um instrumento moderno. Imagine agora que tivéssemos Pablo Casals e Jordi Savall. Seria o mesmo. Casals passou 10 anos estudando as suítes de Bach, antes de tocá-las, e Jordi Savall passou 10 anos estudando as suítes de Marin Marais, antes de tocá-las. É o mesmo processo:
divertida: onde há música, há dança e participação. Acho que se fôssemos capazes de dar aos jovens a experiência de fazer música desde pequenos, de cantar, a música seria algo fundamental. Se os concertos fossem mais baratos ou gratuitos, haveria muito mais gente jovem. Quem pode pagar hoje em dia 60 dólares para assistir a um concerto? Não sei quanto é no Brasil, mas passei uns dias em Salzburgo e uma entrada de concerto valia 100 euros. Que jovem pode pagar essa quantia por um concerto? Esses dias estive em Edimburgo e os concertos, que eram no meio da rua, estavam cheios de jovens, enquanto os que eram em salas de concerto, cujos ingressos
pagar nada, as fábricas de carro não poderiam existir. CONTINENTE Uma dúvida de muitos estudantes de música antiga: como realizar o baixo contínuo? Há algum livro que você tenha usado como referência? JORDI SAVALL Há muitos livros importantes de baixo contínuo. Creio que o melhor para se estudar o baixo contínuo é buscar as fontes da época. Há um livro que talvez seja o de melhor acesso a qualquer estudante, que é o de Manfred Bukofzer, Música na era barroca, esse livro traz muita informação. Aqui mesmo (folheando), traz muita informação sobre os tratados da época e muitos compositores que deram regras de como fazer o contínuo.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
ARTE E NATUREZA
JORDI SAVALL
Uma das principais referências da matéria de capa desta edição é o Manifesto do naturalismo integral, do crítico Pierre Restany. Quem visitar o site vai encontrar o texto na íntegra, uma oportunidade de se aprofundar na temática. Também disponibilizaremos um trailler do vídeo apresentado pelo pernambucano Carlos Mélo (na foto à esquerda), na Bienal da Bahia. Na obra, a atriz Renata Sorrah lê trechos do manifesto, enquanto a imagem traz o artista fazendo sua interpretação. Vídeos de outros artistas relacionados ao tema completam a lista de extras.
Assista à gravação da íntegra da apresentação do concerto Lachrimae Caravaggio, em edição do Festival de Musique a Manguelone.
Conexão
CLAQUETE Antes do premiado A história da eternidade, Camilo Cavalcante rodou diversos curtas-metragens. Veja dois deles, escolhidos especialmente pelo cineasta.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
ARQUITETURA
INSTITUTO
LIVRARIA
MARACATU
Programador disponibiliza mais de 200 arquivos em .DXF para projetos
Organização de mulheres negras discute questões de raça, gênero e preconceito
Site oferece livros com 30% de desconto no catálogo inteiro
Nação Porto Rico disponibiliza informações e músicas do grupo
bdon.org/cad
geledes.org.br
30porcento.com.br
nacaoportorico.maracatu.org.br
Duzentos e quarenta e um arquivos em formato .DXF (usado para desenvolver projetos arquitetônicos) das maiores cidades do mundo estão disponíveis, sob licença aberta, para que arquitetos e urbanistas possam projetar a distância com mais facilidade. Brandon Liu, programador de São Francisco, foi o responsável pela publicação gratuita do produto. Os arquivos são preparados para aplicação em programas como o AutoCAD e o Rhinoceros. Do Brasil, estão na lista capitais como Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
O Geledés Instituto da Mulher Negra existe desde abril de 1988. É uma organização política que luta contra o racismo e o sexismo com foco nas mulheres negras. O portal é uma importante fonte de conteúdo teórico e de denúncias contra a ausência de políticas públicas e de iniciativas racistas do campo privado, a exemplo da publicidade. As principais áreas de atuação do Geledés são direitos humanos, educação, comunicação, saúde, mercado de trabalho e pesquisa.
A Livraria 30PorCento raramente varia no desconto: todos os livros são cerca de 30% mais baratos do que nas grandes livrarias, sempre. Ela funciona somente com compras virtuais, sem loja física. A postagem por correio é através de Registro Módico (que oferece reduções tarifárias em alguns casos, incluindo o envio de livros), o que deixa o preço do frete fixo para todo o Brasil condicionado apenas pelo peso. A livraria oferece um bom catálogo de editoras como Cosac Naify e Companhia das Letras.
A Nação Maracatu Porto Rico tem aproximadamente um século de existência, sendo considerada um dos mais antigos maracatus ainda existentes. Fundada em Palmares, hoje funciona no Pina, sob a condução do Mestre Shacon Viana. Seu site disponibiliza novidades sobre o funcionamento do grupo e suas apresentações, informações sobre sua fundação, manifestações e símbolos, além de catalogar as letras de suas loas e apresentar parte de sua produção musical.
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blogs CULTURA POP dangerousminds.net
O Dangerous Minds é uma coleção do novo e do estranho: novas ideias, formas de arte, abordagens de problemas sociais e achados nas fronteiras da cultura pop. O blog divulga informações pouco conhecidas sobre nomes bastante comuns. Recentemente, levou a público alguns dos quadros do jazzista Miles Davis, que, em tempos de inatividade musical, pintava.
CINEFILIA EM REDE
ARTE CONTEMPORÂNEA
Com apenas cinco anos, site reúne milhares de usuários que gostam de trocar ideias e experiências sobre produções audiovisuais
O Instituto Inhotim (MG) é um dos acervos de arte contemporânea mais relevantes do Brasil. Em amplo espaço verde, possui uma coleção botânica de espécies raras. O seu blog, que conta com grande número de autores, é atualizado com entrevistas, artigos e notícias relacionadas ao Inhotim: arte, turismo, meio ambiente, paisagismo, desenvolvimento urbano.
inhotim.org.br/blog
www.filmow.com.br
O Filmow é uma rede social de filmes e séries que existe desde abril de 2009, criada e gerida por Alisson Patrício, Thaís de Lima e Rogério Bonfim. O site monta um grande catálogo de longas e curta-metragens, seriados e novelas, com a intenção de permitir que os usuários classifiquem e organizem os filmes a partir de critérios como: os já assistidos, os desejos e as repulsas. Começando da nota dada aos títulos disponíveis, a rede identifica o “grau de compatibilidade” de cada um em relação a amigos e desconhecidos. Além disso, novidades sobre o mundo do cinema nacional e internacional são lançadas diariamente, funcionando também como um bom portal de notícias sobre a sétima arte. Além dos filmes, perfis individuais para atores, diretores e produtores permitem que os frequentadores chequem suas filmografias e leiam sobre suas carreiras. Nessas páginas dos profissionais de cinema, bem como as dos filmes, os usuários podem publicar suas críticas e trocar dicas de conteúdos adicionais relacionados às obras. É possível, também, criar listas que organizem os filmes por gêneros, temáticas e tendências. Alguns exemplos dessas temáticas são Vazio existencial, Maiores vilões de todos os tempos e Filmes de terror que provavelmente você não viu. PETHRUS TIBÚRCIO
RIOT GRRRL kathleenhanna.com/category/blog
Kathleen Hanna é o nome de maior destaque do Riot Grrrl. O movimento foi uma junção de festivais, fanzines e, principalmente, bandas punks com letras feministas e performances que evocavam o empoderamento feminino. Em seu blog, Hanna fala sobre seu novo projeto na banda The Julie Ruin e seu passado nas extintas Bikini Kill e Le Tigre.
sites sobre
agroecologia CENTRO SABIÁ
ASPTA
ABA
centrosabia.org.br
aspta.org.br
aba-agroecologia.org.br
O Centro é uma organização nãogovernamental que existe há mais de 20 anos, promovendo a agricultura familiar dentro dos princípios da agroecologia.
A AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia é uma entidade que promove o desenvolvimento rural sustentável com foco na agroecologia e agricultura familiar.
Além de divulgar notícias vinculadas ao tema, a Associação Brasileira de Agroecologia tem uma sucinta, mas eficiente, biblioteca sobre o assunto.
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FLÁVIO LAMENHA
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CON TI NEN TE
Portfólio
Tapetes Casa Caiada
PERFEIÇÃO ENTRE UM PONTO E OUTRO TEXTO Mariana Oliveira FOTOS Flávio Lamenha
Era 1966, quando Maria Digna Pessoa de Queiroz e sua tia Edith Pessoa de Queiroz deram
início à empresa de Tapetes Casa Caiada, agora prestes a completar 50 anos.Tudo começou informalmente, com o objetivo de encontrar uma atividade que desse prazer, pudesse ocupar o tempo livre e, ao mesmo tempo, ajudasse donas de casa ociosas do município de Camaragibe – artesãs nas quais tia e sobrinha viam um grande potencial. No início, a produção era pequena e as peças eram comercializadas entre amigos e conhecidos. O sucesso logo veio, junto com a fama local e nacional de tapetes feitos com maestria e acabamento exemplar. No auge, elas chegaram a produzir cerca de mil metros de tapete num mês. Tonaram-se a primeira empresa de tapeçaria profissional do país, e uma das mais tradicionais, tendo sido chamada de “persa brasileiro”. Um dos primeiros, vendido ao empresário Ricardo Brennand, foi exibido em exposição realizada no Museu do Estado de Pernambuco, em 2012, em comemoração aos 47 anos da tapeçaria. Até hoje, os Tapetes Casa Caiada são associados à perfeição e durabilidade. Todos são bordados à mão, em pura lã, utilizando um ponto especial – intitulado casa caiada, uma variação do ponto de cruz, criado e patenteado por suas fundadoras. Em cada metro quadrado produzido, são bordados cerca de 5.000 pontos sobre tela de linho e algodão. Os desenhos são planejados e pensados para os variados formatos e tamanhos, com uma especial atenção para as combinações de cores. “Não vejo o nosso trabalho como arte. Na verdade, o que fazemos é um trabalho meticuloso, com alto grau de perícia, perfeição e alto controle de qualidade”, pontua Maria Digna Pessoa de
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3 Página anterior 1 CASA CAIADA
O acabamento cuidadoso e a uniformidade dos pontos são características marcantes
Nestas páginas 2 MERCADO
As linhas mais vendidas no exterior são as que trazem elementos da fauna e flora brasileiras
3 CORES A combinação harmônica entre elas é algo fundamental na peça 4 AZULEJARIA Os primeiros tapetes do grupo foram inspirados nos desenhos dos azulejos portugueses
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que precisava diversificar as temáticas. Foi aí que a produção, antes voltada para imagens clássicas e sóbrias, incluiu desenhos geométricos e óticos. Queiroz, que assumiu, junto com as Hoje, as linhas se diversificaram e as filhas, o comando do grupo após a saída artesãs e artesãos não têm problemas de Edith. Em peças grandes, trabalham em bordar tapetes modernos ou mesmo até seis artesãs e é difícil manter a aqueles desenhados e idealizados uniformidade dos pontos de todas. por arquitetos e clientes. “Quando “Damos uma grande atenção a esses alguém traz a ideia de um desenho detalhes”, diz Patrícia Pessoa de Queiroz, específico, nós avaliamos e damos filha da fundadora. sugestões. Já temos conhecimento As primeiras peças produzidas pelo daquilo que combina ou não, quais as grupo eram inspiradas na azulejaria cores que casam bem. Existem coisas portuguesa dos séculos 17 e 18. A partir de que imaginamos no papel, mas que, uma matriz, as empresárias adaptavam quando executadas, não ficam legais”, as imagens à tapeçaria. “Quando era conta Patrícia, destacando que, para ela, criança, meu pai me levava para passear a definição das combinações de cores é pelas igrejas do centro do Recife e por o mais importante. A empresa mantém alguns prédios históricos. Em muitos catálogo em que se registra a cartela de deles, nós observávamos a azulejaria cores, com lãs tingidas sob encomenda. completamente dilapidada, destruída. Entre as principais linhas Anos depois, quando inciamos a Casa desenvolvidas pelo grupo estão: Caiada, vi a oportunidade de resgatar Azulejaria Portuguesa, Tropical, esses traçados tão belos, clássicos e Moderna, Geométrica, Safári, Marajoara sofisticados”, explica Maria Digna. e Infantil. “Precisamos acompanhar as Com o passar dos anos e as mudanças tendências da decoração, caso contrário, no ramo da decoração, o grupo viu perderíamos muito”, afirma Maria
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Digna, lembrando que, nesses quase 50 anos, passaram por diversas crises. A abertura para os produtos importados, nos anos 1990, por exemplo, impactou negativamente os seus negócios. Hoje, o grupo produz entre 100 e 150 metros de tapetes por mês, sendo grande fração para o exterior. A maior parte da produção segue para os EUA, onde elas mantêm uma representante. Lá, fazem sucesso as linhas com características bem brasileiras, que exploram a fauna e a flora locais. Segundo Maria Digna, desde 2000, os Tapetes Casa Caiada passaram a funcionar como uma instituição sem fins lucrativos para seus administradores. Apenas as artesãs e artesãos (cerca de 80 pessoas, espalhadas por diversos municípios) seguem ganhando a vida através dos tapetes que produzem – formaram a Associação das Artesãs em Tapeçaria Casa Caiada. Maria Digna e sua família fazem a ponte entre os artesãos e o mercado da decoração, atualizando-os com as tendências e facilitando o processo de exportação. O que certamente não mudou foi a qualidade do produto.
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5-6 GEOMETRIA Os desenhos dos tapetes se modernizaram para acompanhar as tendências da decoração 7 PROCESSO Em cada metro quadrado produzido são bordados cerca de 5.000 pontos
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AS CORES E OS GÊNEROS Basta abrir o guarda-roupa, a bolsa da escola ou o baú de brinquedos de um menino, para encontrar certa unidade na coloração dos objetos, todos numa cartela de variados tons de azul. Se for uma menina, será a cor rosa, e seus tons afins que vão predominar. Mas quem foi que determinou que uma cor é de meninos e outra, de meninas? Numa crítica a essa construção, a fotógrafa sul-coreana JeongMee Yoon produziu a série The pink and blue project. Ela fotografou crianças americanas e sulcoreanas em seus quartos, cada uma com seus pertences. O efeito é impressionante. Um mar de azul e um mar de rosa, sem muitas variações. (Mariana Oliveira)
Belo post sem noção De Fiona Apple a Kim Kardashian, mais de 300 mil pessoas compartilharam o tweet “Genie, you’re free”, postado pelo perfil da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas no Twitter. A frase, originalmente dita ao Gênio da Lâmpada no final de Aladdin, foi usada para homenagear o ator Robin Williams, que se suicidou no dia 11 de agosto e que, em 1992, havia emprestado sua voz ao personagem da animação da Disney. A beleza instantânea da mensagem esconde um problema: viola as normas de saúde pública sobre a forma como se deve falar a respeito do suicídio. O tema é um velho tabu na imprensa mundial, que costuma não publicar notícias sobre esse tipo de morte. No entanto, a exceção se dá quando a cobertura desses episódios envolve famosos e, principalmente agora, em época de internet e redes sociais. “O suicídio não deve ser apresentado como uma opção. Essa é uma fórmula para o potencial ‘contágio’”, criticou Christine Moutier, médica da Fundação Americana de Prevenção ao Suicídio, em entrevista ao Washington Post. Para ela, os adolescentes são os que mais correm o risco de sofrer essa influência. E o caso se torna ainda mais sério diante do fato de que um quarto da população mundial possui algum tipo de problema relativo à saúde mental, que pode levar a pensamentos suicidas. DÉBORA NASCIMENTO
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Balaio FANTASMA DE MUSEU
A FRASE
Os passeios virtuais promovidos pelo Google Art Project (projeto de digitalização de museus e instituições culturais) em espaços como a National Gallery, a Tate Britain e a Free Gallery of Art adquirem uma atmosfera de ficção científica. Ao flagrarmos as máquinas que capturam essas imagens utilizando panos que parecem vestidos, uma nova sensação fantasmagórica de realidade nos atinge. Durante os três anos do projeto, alguns artistas já tentaram organizar coletâneas com essas imagens. Entre eles, o espanhol Mario Santamaria, com uma seleção de selfies robóticas chamada The camera in the mirror. Fica difícil não associar essa situação a episódios de Doctor Who ou às clássicas páginas de Isaac Asimov. (Priscilla Campos)
“A moral é a debilidade do cérebro.”
Arthur Rimbaud, poeta francês
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ARQUIVO
QUEEN PARA ARRASAR Em algumas modalidades das Olimpíadas de Inverno, ocorridas em fevereiro, na Rússia, era possível ver atletas usando fones de ouvidos não somente para se proteger do frio, mas para ouvir música. Se uma canção pode instigar atletas numa competição esportiva, por que não teria efeito também nas pessoas na hora de realizar uma outra tarefa desafiadora, como uma entrevista de emprego? Foi o que descobriram os cientistas da Society for Personality and Social Psychology. Para eles, algumas canções têm o poder de influir na confiança do ouvinte. O estudo apontou que a mais indicada é We will rock you, do Queen. Não por acaso, é a canção que mais se ouve nas arenas em eventos esportivos. Essa descoberta pode ser, além de uma boa dica para as academias de ginástica, que vêm promovendo sessões de tortura com os clientes, uma forma de divulgar a superbanda inglesa, que comemora 40 anos. (DN)
A SAÚDE DE FRANK Depois de consagrado como um dos grandes gênios da era moderna dos quadrinhos nas décadas de 1980 e 1990, em que escreveu e desenhou obras de arte como Ronin, Sin city e 300, Frank Miller deu uma despirocada. Até aí, tudo bem. Todo mundo já está cansado de saber que o mestre não é mais o mesmo desde 2001, quando publicou a anêmica continuação de sua obra-prima Batman – o Cavaleiro das Trevas. Agora, o que ninguém estava esperando era o recente visual do quadrinista, que se apresentou na última San Diego Comic Con ao lado do cineasta Robert Rodriguez, para promover o filme Sin city – a dama fatal (foto acima). Esguio, sem pêlos, róseo e doentio, o semblante de Miller partiu o coração dos amantes da nona arte no mundo todo. E mesmo sem uma declaração oficial confirmando um frágil estado de saúde, o que fica é a boa-fé e a esperança de que ele se recupere o mais rápido possível e volte à ativa como nos velhos e gloriosos tempos. (Fernando Athayde)
O exemplo daquela Senhor Cinco anos de existência. Primeiro número, março de 1959. Exatas 59 edições. Isso foi suficiente para torná-la um mito editorial, uma referência para quem queria fazer (e ler) jornalismo chic. Assim foi com a revista Senhor. Curioso é que muita gente que a cultua nem leu a revista, sobretudo porque nem tinha idade para isso, afinal, essa história aconteceu há 55 anos... A fama da Senhor se fez como se faz o mito: com o tempo que sedimenta. Ali, houve uma confluência de qualidade gráfica e editorial, criatividade e propriedade. Mas, sem dúvida, um fator essencial à sua excelência foi um time heterodoxo de colaboradores, que incluiu artistas gráficos e plásticos, jornalistas, críticos, poetas, escritores, cenógrafos, dramaturgos, atores, arquitetos, cientistas sociais, fotógrafos e cineastas. Ou seja, aquilo não era uma redação corporativa como as que temos hoje, cheia de operários da notícia e escravos das pesquisas de opinião, mas um grupo de gente ligada ao campo da cultura, da arte e do pensamento, trazendo para a mesa suas experiências e compartilhando-as com um leitor igualmente disposto ao “risco” da aventura. Hoje, quem se arrisca? ADRIANA DÓRIA MATOS
ONDE ESTÁ A MAMÃE? Hoje, as inúmeras fotos de bebês que vemos nas redes sociais devem sua existência ao avanço da tecnologia, que possibilita o registro dos pequenos num instante. Se a fotografia tivesse sido criada agora, igualzinha à de como surgiu no século 19, essas imagens seriam raras. Isso porque era preciso que os fotografados ficassem imóveis durante alguns minutos, para que a máquina as registrasse. Mas como conseguir tal proeza de um bebê? O livro The hidden mother, de Linda Fregni Nagler, mostra os artifícios criados pelas mães à época. A publicação reúne mil fotos de bebês com suas mães escondidas atrás de tecidos, “disfarçadas” de cadeiras e sofás. O recurso era eficaz, mas o resultado, um tanto quanto medonho. (DN)
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WOLFGANG VOLZ/LAIF
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Arte contemporânea introduz novas problematizações sobre a relação do universo artístico com o meio ambiente TEXTO Paulo Carvalho
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A Bienal da Bahia, que retornou em 2014 após 46 anos sem edições, trouxe como um dos seus pilares as reflexões do crítico de arte francês Pierre Restany (1930-2003). Autor do Manifesto do naturalismo integral, escrito durante viagem ao Alto Rio Negro, em 1978, Restany andava esquecido no circuito da arte, no qual sempre manteve uma postura marginal às instituições e ao academicismo. Dizia Restany que sua concepção de naturalismo não era metafórica ou realista: não traduzia nenhuma vontade do poder, mas operava uma “transformação da sensibilidade”. Como para o biólogo e antropólogo Gregory Bateson, valia para Restany uma concepção profunda de ecologia, capaz de transpassar “as balbuciantes perspectivas ecológicas atuais”. Se, como afirma Bateson, “existe uma ecologia das ideias danosas, assim como existe uma ecologia das ervas daninhas”, era preciso entender seu naturalismo como um fio condutor possível para o “caos da arte atual”. Naturalismo como “disciplina do pensamento e da consciência perceptiva”, donde valeria
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Durante boa parte do século 20, definiu-se cultura como espaço externo à natureza – o que foi tensionado no final dos anos 1960 muito mais a luta contra a “poluição subjetiva” do que contra a “poluição objetiva”. Restany é uma chave possível para se chegar a um limiar presente na história da arte, retomada em novos termos e problematizações pela arte contemporânea: a relação desta com o que entendemos como natureza. “Sei que o senso comum pensa a natureza como uma espécie de conjunto de eventos externos ao homem e a todas as suas edificações. Aliás, em boa medida, as edificações humanas possuem como baliza identitária e meritória o grau de exterioridade que estabelecem com essa assustadora teratologia produzida pela natureza. Toda edificação humana é uma estratégia de livrar-se e proteger-se,
mesmo que ilusoriamente, dessa profícua teratologia. Talvez por ser uma estratégia de sobrevivência, a cultura e seus produtos (como, por exemplo, a linguagem) tenham sido pensados como algo externo à natureza. Natureza, esse espaço do intempestivo, esse tempo do eterno inaugural”, afirma Marcelo Coutinho, artista e professor do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco. Segundo Coutinho, durante boa parte do século 20, definiu-se cultura como um tipo de espaço de clausura, externo e avesso à natureza. Postura que seria tensionada a partir do final dos anos 1960, por mobilizações como a land art e a arte povera (do italiano “pobre”) que, além de colocarem obras para fora dos ateliês e galerias, realizariam as mesmas em seus ambientes naturais, fossem campos, desertos, mares ou montanhas. A arte da natureza, a partir da virada da land art, ainda que a escala grandiosa pudesse fazer crer o contrário, revelaria a influência do minimalismo e sua busca por obras (em particular esculturas) que pressionassem o
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mínimo sensorialmente o lugar onde estivessem, opondo-se aos valores estabelecidos pelo expressionismo abstrato. Nesse contexto, despontaram artistas hoje consagrados, como Christo & Jeanne-Claude, Richard Long, Robert Smithson, Michael Heizer, Sol LeWitt e Walter de Maria. “Este foi, por exemplo”, acrescenta Coutinho sobre a separação entre cultura e natureza, “o corte epistemológico estabelecido, num primeiro momento, pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, de certa forma, extensão do projeto civilizatório humanista do Ocidente. Mas há como assentarmos nosso pensamento sobre outra topologia e, quem sabe, nos vejamos e nos definamos não como fenômenos externos à natureza. Porém, como mais uma de suas expressões. Mais uma de suas monstruosidades. O intempestivo e o eterno inaugural, esse parto que nunca cessa, seriam elementos que nos constituem”. Não haveria, portanto, para este artista, nada externo à natureza. Esta seria um processo incessante, intangível, incomunicável, indizível,
agramatical pelo fato de nos conter e, ao mesmo tempo, nos ultrapassar. “Não somos nós homens que transcendemos a natureza. Tratase do oposto: a natureza é que nos transcende. Ela nos ultrapassa em todos os sentidos, e largamente. Por isso a natureza e a ideia de sagrado ou divino sempre andaram juntas durante toda a história do homo sapiens.” Marcelo Coutinho escreveu o texto Hermenêutica do mato, composto por 30 conclusões a que chegou, após três anos morando na Mata de Tabatinga, na Paraíba. Nele, há ideias como: “Há luzes juvenis e luzes velhas”, “O ôntico é uma ilusão de ótica”, “Os gregos estavam certos: a marca estrutural do homem é o esquecimento” ou “Wittgenstein não resiste a um dia de sol”. E, de acordo com o artista, o texto poderia chamar-se também Fenomenologia matuta. “O matuto estaria mais capacitado de fazer aquilo que Husserl indicava como base do método fenomenológico: a ‘redução eidética’. O matuto observa. Sua natureza é observar. Suas bases metafóricas de ordenamento e descrição do mundo
Página anterior 1 CHRISTO & JEANNE-CLAUDE
Running fence levou quatro anos para ser erguida, em uma extensão de 39,4 km
Nestas páginas 2 RICHARD LONG
Escultura de 1971, Connemara foi realizada na Irlanda
3 ROBERT SMITHSON Exemplar de earthwork, Spiral Jetty foi construída em Utah
mantêm-se sobre o solo da vida natural. Assim, ereções e amores entre bois e entre cães não são incompatíveis com ereções e amores entre humanos. Entre matutos há, certamente, todo um gosto pelo abismo. Estar abismado é o objetivo de toda prosa matuta. A natureza é esse abismo.” E por que é tão difícil falar sobre natureza sem falar de política? “Porque política, por essência”, responde Coutinho, “é uma estratégia de livrarse das teratologias próprias à natureza. Não foi da pólis que se expulsou o poeta? A pólis é espaço da assepsia dialética, da razão, do exercício da politiké (negócios) entre os politikós (cidadãos civilizados). O espaço de construção de consensos. Será dentro do ‘mercado persa’ das
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trocas simbólicas que deambularão indivíduos e se constituirão os códigos de convívio social. A pólis procura afastar de si a produção de desvios, monstruosidades, quebras, proliferações de novas séries, sempre vistas como anômalas, por serem expressões do desvio”.
ROMANTISMO
Hugo Fortes, artista e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, organizou, no primeiro semestre de 2014, a segunda edição do seminário Arte e natureza. De acordo com ele, alguns dos trabalhos contemporâneos que se colocam nesta fronteira fazem referência ao Romantismo, movimento
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Alguns trabalhos contemporâneos que se colocam nessa fronteira fazem referência ao Romantismo que, em linhas gerais, se opôs ao olhar dissecador cientificista, privilegiando a observação analítica do orgânico, e não a visão de conjunto. O Romantismo não se opunha às ciências da natureza e à emancipação por elas propiciadas, mas criticava a presunção de transformá-las em únicas chaves de compreensão
dos fenômenos. Assim, a física mecânica, por exemplo, seria capaz de observar, segundo os românticos, apenas fenômenos de superfície, restando à nova sensibilidade voltarse para a autoatividade produtiva da natureza, vista como um espaço múltiplo, pleno, em ajustamento contínuo de forças em constantes e complexas relações. A natureza, para os românticos, formaria junto com os homens uma unidade produtiva. “A natureza que revela uma espiritualidade ligada à ideia do sublime aparece hoje como uma referência saudosista, mas não como um sublime possível. Não há mais a contemplação da natureza como espera de algo, como uma revelação
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4 MICHAEL HEIZER Artista realizou esculturas “negativas”, direto no chão do deserto de Nevada 5 SOL LEWITT Montada em 1999, na Lituânia, escultura Double Negative Pyramid indica o minimalismo na sua obra 6 MIKHAIL KARIKIS Vídeo Sounds from Beneath foi realizado em mina de carvão desativada
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divina. Hoje, ela surge atravessada pela tecnologia e questões do mercado. Não há mais a ideia de uma paisagem original. A gente tem um ambiente natural já completamente construído, com uma série de modificações e, nesse contexto, temos que destacar o papel da tecnologia na produção de imagens que são apropriadas por alguns artistas”, explica Fortes. “No meu trabalho como artista, venho discutindo questões relacionadas aos rios urbanos. Rios com os quais quase não temos contato, tomados pela arquitetura. Rios marcados por certa sensação de perda que temos em relação à natureza no espaço urbano. Alguns artistas também vêm lidando com a construção de imagens naturais,
Hoje, não há mais a contemplação da natureza como revelação do divino, mas discute-se tecnologia e mercado ressaltando a questão da artificialidade da paisagem como uma maneira que temos de nos relacionar com o mundo natural”, acrescenta. Fortes também organizou uma exposição paralela ao seminário e trouxe artistas de vários países, como Olafur Eliasson, de origem dinamarquesa, que constrói cachoeiras
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7 WALMOR CORREA Brasileiro trabalha com seres fantásticos e estudos da natureza
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e outras espécies de paisagens naturais, usando andaimes e tubos de plástico. Como o brasileiro Walmor Correa, com seres fantásticos e estudos de anatomia; o grego radicado na Inglaterra, Mikhail Karikis, que apresentou um ensaio com minas de ferro abandonadas; ou o colombiano Oscar Leone, que se volta para comunidades de trabalhadores no Caribe colombiano. Na obra Children of unquiet, de Karikis, por exemplo, temos uma espécie de “ocupe” realizado por crianças em uma aldeia de trabalhadores abandonada na região geotérmica do Vale do Diabo, na Toscana, Itália. As crianças transformam a vila, deixada para trás por falta de oportunidades, em um grande parque. As cores opacas
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da região abandonada contrastam com as roupas coloridas das crianças, confeccionadas por Karikis, assim como o som dos gêiseres se misturam aos barulhos dos novos ocupantes. O trabalho de Karikis é emblemático, se pensarmos como a apropriação da natureza em trabalhos de arte, hoje, se dá no cruzamento de diferentes problemáticas sociais, políticas, imagéticas e sonoras, apontando para uma complexidade ainda maior que o conceitualismo da land art e a ideia de uma “natureza primeira” do Romantismo. O mesmo cruzamento pode ser observado na vídeo-performance Un Jesus, de Leone, na qual o artista corre frente ao oceano, amarrado por uma corda que o segura e o faz cair repetidas vezes. Na performance, como explica o artista, subsiste a ideia que “toda ação humana, desde uma pisada até a localização de um templo ou uma
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A apropriação do ambiente pela arte se dá pelo cruzamento de diferentes problemáticas sociais, políticas e estéticas estrada, provocará sempre, em maior ou menos grau, uma afetação sobre a paisagem”. Para Leone, a fragilidade do corpo frente à paisagem denunciaria igualmente a fragilidade e a sacralidade de todos os elementos da natureza.
DESEQUILÍBRIOS
Pensar a natureza como catalisadora das nossas faculdades de sentir, de pensar e agir diante de fenômenos de desequilíbrios ecológicos e de uma progressiva deterioração dos modos de vida humanos parece ser
um dos principais desafios da arte contemporânea. O artista francês Serge Huot, autor da mais recente tradução do Manifesto do naturalismo integral, ressalta o poder preditivo do texto de Pierre Restany. “Esse texto é profético. Está falando da arte hoje. Lembra-nos que é muito mais necessário lutar contra a poluição da mente do que do próprio verde. Primeiro, temos que mudar de atitude. Restany era um homem universal. Um cidadão do mundo, uma pessoa independente, que fazia amizades com pessoas que não tinham interesse de refletir sobre a arte. Ele não estava obedecendo aos segmentos institucionais e isso incomodou um pouco. Ele tinha uma leitura junguiana, e isso não fazia parte das linhas dos críticos de arte. Mas não acho que seja por acaso que Restany
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WALTER DE MARIA
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OLAFUR ELIASSON
Instalação com postes de aço, The Lightning Field (1977) reage aos efeitos climáticos Em The weather project (2003), artista simula ambiente natural dentro de museu
esteja sendo recuperado aqui”, supõe Huot. O artista francês conheceu o crítico nos anos 1990 e acaba de participar da Bienal da Bahia com trabalhos relacionados a Restany, dentre os quais uma entrevista que realizou com ele num programa de rádio na França. Huot mora há sete anos na praia de Arapuca, no município de Conde, na Paraíba, onde procura “viver de arte em um ambiente totalmente fora do circuito”. Seu trabalho parte principalmente de objetos coletados na praia, onde também são expostos, como aconteceu em 2012 com a mostra Cidades emersas, realizada na Torre Mirante da Estação Cabo Branco. Restany morreu aos 72 anos, em 2003, como um dos mais famosos críticos de arte do país e o principal representante do Novo Realismo. Foi responsável pela apresentação de artistas como Yves Klein, Daniel Spoerri, Arman, Jean Tinguely, Niki de Saint Phalle e Christo para o público francês. O Novo Realismo foi defendido pela primeira vez em um manifesto escrito por Restany em 1960 e buscava estabelecer “novas aproximações na percepção do real”, numa procura de identidade para uma França pós-colonial.
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CARLOS MÉLO Desejo de trabalhar a natureza original
Em nova performance, artista toma manifesto do crítico Pierre Restany como leitmotiv, citando-o diretamente
Os conceitos do Manifesto do
naturalismo integral, texto de Pierre Restany, são o mote mais recente da nova obra do pernambucano Carlos Mélo, apresentada no retorno da Bienal da Bahia. No vídeo produzido por Mélo, a pergunta inicial de Restany diante da exuberância da Floresta Amazônica – “Que tipo de arte, qual sistema de linguagem pode provocar um ambiente tão excepcional, exorbitante, em relação ao senso comum sob qualquer ponto de vista?” – encontra resposta em narração
ambígua do texto, escrito em 1978. A voz marcante da atriz Renata Sorrah e a imagem do artista lendo o manifesto causam um estranhamento que logo remete à noção do naturalismo não metafórico do crítico francês. A ideia de natureza original de Pierre Restany pode ser percebida na trajetória de Mélo desde a série chamada Emissão, em que o pernambucano faz fotos nu e seminu ao lado de caixas de som. A ideia remete ao contorcionismo imagético em que o fotografado
ora parece um homem, ora uma mulher. Em uma dessas fotos, Carlos segura um cachorro até a cintura, encobrindo o sexo. “Acredito que meu contato com o Manifesto do naturalismo integral tenha se dado por essa via: o desejo de trabalhar a natureza subjetiva. Tratar desse homem antropológico. A partir daí, dessa relação com a natureza original, surgiu a minha relação com o barro”, explica Carlos, em referência à Bienal do Barro, evento idealizado e promovido
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BETO FIGUEIROA/DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
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SOBRE HUMANO
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CARLOS MÉLO
Na obra, que integra uma série feita a partir da imagem do animal, o artista utiliza ossos de boi Nessa busca em torno do natural, ele chegou ao barro como matéria primordial
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pelo artista em Caruaru, entre abril e maio deste ano. “Pensei na bienal através não de um contorcionismo imagético, mas semântico, no qual crio o anagrama Corpo barroco. Fracionando esse anagrama, tenho três momentos: o corpo, o barro e o oco. A princípio, o meu trabalho trata mais diretamente a questão do corpo e do oco, já que, em um momento em minha produção, o devir e a ideia de processo são determinantes. Mas o barro, eu ainda não entendia o que era. Quando
comecei a pensar em minhas referências, de onde vim, esse resgate da natureza original, algo tornou-se mais claro. Eu venho do Agreste, uma região de Pernambuco entre o Sertão e a Zona da Mata. Precisava voltar lá, para rever aquele lugar e entender uma série de questões. Curiosamente, descobri que um anagrama da palavra agreste é resgate. Como já vinha trabalhando essa questão do anagrama, concluí que foi sintomático. Algo apontava para lá. O barro, sabemos, é uma representação simbólica de uma espécie de referência universal do homem. Um ponto de partida”, argumenta Mélo. No primeiro momento do contato com o manifesto de Restany, o artista pensou se tratar de um texto em defesa da ecologia. “Depois, vi que não era, que havia o desejo de ir mais fundo nas questões do homem. Isso me interessa muito. Venho do interior e minha infância foi muito ligada à natureza. Algo que faz parte da minha vida e que continua muito presente na minha produção. Meu trabalho não é representacional, não tenta ilustrar a ideia de uma natureza, mas, sim, mostrar que, através dos pequenos gestos, a natureza acaba se revelando mais integralmente, de dentro para fora mesmo. O encontro com o manifesto foi feliz por isso. A essência da produção artística é a sensibilidade. Para Restany,
o poder só faz sentido se estiver a serviço da sensibilidade.” Outra série de Mélo que remete à Restany são os trabalhos que receberam o nome A experiência sensível. “Ser sensível é caro, a manutenção da sensibilidade não é fácil. Penso que a grande manifestação dessa natureza integral é essa sensibilidade ativa. Quer dizer, também, a preservação da natureza subjetiva.” O artista pernambucano, que vem trabalhando com atores em suas performances, conta que suas grandes referências vêm da dança e do teatro. “Quando chamo um ator para trabalhar comigo, é para que ele também contribua sensivelmente para o trabalho. Claro que traz a sua técnica. Por exemplo, quando chamo Alessandra Negrini para fazer um vídeo em que ela chora, é porque sei que ela vai chorar do jeito que a obra precisa. Restany fala de sua experiência com Frans Krajcberg na Amazônia, em que ele tem uma espécie de surto com a exuberância da floresta. Espécie de voz do outro trazendo questões que são nossas. Então, quando desejei trabalhar com o Manifesto, estava pensando a voz do outro e gostaria de convidar alguém para ler comigo esse texto. A ideia foi chamar uma atriz que trouxesse junto consigo sua imagem. Teria, portanto, que ter uma voz reconhecida. Considero Renata Sorrah uma das melhores atrizes brasileiras e penso que ela tem essa voz que sustenta poeticamente o trabalho, potente e, ao mesmo tempo, doce e sensível”, explica Carlos. “Trata-se da incorporação do outro em mim”, acrescenta. “A ideia do estrangeirismo. Da dublagem como uma extensão sensorial. Eu não tento acompanhá-la. A ideia era começar a ler o texto à minha maneira e depois encontrá-la. Leio a tradução original do Manifesto do naturalismo integral, escrito em 1978. É utópico e é lindo por isso. Com palavras-chaves como percepção, arte contemporânea, experiência sensível, Amazônia. Palavras que acabam ativando questões interessantes agora.” PAULO CARVALHO
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RODRIGO BRAGA Embate entre morte e vida
Nascido em Manaus e filho de biólogos, artista foge do discurso ecologista direto, buscando mesmo invertê-lo
O artista contemporâneo Rodrigo Braga, 38 anos, tem seu trabalho amplamente estabelecido na fronteira arte e natureza. Animais e partes de animais mortos surgem em meio a paisagens rurais, em contato com a água e por vezes com o próprio corpo do artista, como acontece na série Desejo eremita, de 2009. Apesar da formação como artista e do início da carreira ter-se dado no Recife, Braga nasceu em Manaus e atualmente está radicado no Rio de Janeiro. “Minha formação nesse tema vem desde muito
cedo, em casa, com meus pais, que são biólogos. Quando comecei a desenhar – costumava desenhar árvores e animais o tempo todo –, o tema já me chegava através dos livros e reuniões de ecologistas, que aconteciam em minha casa e nas organizações não governamentais que eu frequentava desde criança”, conta, em entrevista à Continente. Os pais de Braga defendem as causas ecologistas desde o final dos anos 1970. Enquanto o pai realizava mestrado em Manaus e a mãe trabalhava
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FOTOS: RODRIGO BRAGA/DIVULGAÇÃO
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como pesquisadora do CNPq, o artista e sua irmã eram criados no alojamento do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa. Essa casaalojamento ficava, à época, na fronteira de Manaus com a Mata Amazônica. “O que conheci em casa, na infância, formou meu gosto por estar nesse universo. E, mesmo já morando no Recife, frequentava os laboratórios da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Federal Rural de Pernambuco, além de acompanhar meus pais em algumas visitas de campo”, explica Braga. Mas no momento em que começou a trabalhar com animais e com a paisagem, agora dentro do campo artístico, o artista conta que, de
certa forma, não apenas agregou o discurso dessa formação, como buscou invertê-lo. O exemplo vem de uma obra também de 2009, Provisão, na qual enterra uma árvore. “A questão é como ir além de um discurso radical em defesa da natureza, como colocar a discussão de maneira mais enviesada e não boba, porque há no cruzamento entre arte e natureza coisas de todos os tipos. Provisão é algo que você guarda para o futuro. A obra era muito contundente, a partir do corte de uma árvore, do ceifar uma vida de um ser que não reage. Uma postura unilateral, hierárquica, do homem sobre aquele ser. Algo que meu pai, que plantou milhares de árvores através de
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CAMPO DE ESPERA
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DESEJO EREMITA
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ILHA LAGO
Na fotografia, realizada num arquipélago do Rio Negro, o artista intervém na paisagem original Para desenvolver a série, Braga fez residência de alguns meses no sertão pernambucano Obra está na mostra Agricultura da imagem, em cartaz no Sesc Belenzinho (SP)
programas ambientais, jamais faria – e eu plantei junto com ele muitas vezes. Isso também jamais teria passado pela minha cabeça, não fosse um trabalho do campo da arte em que essas questões adentram em um universo que permite. Um campo que me possibilita não só refletir, mas agir de outras maneiras”, coloca Braga.
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CON CAPA TI NEN TE
RODRIGO BRAGA/DIVULGAÇÃO
4 BROTO OSSO Embora haja um discurso político latente, a obra se realiza em plasticidade
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“Eu derrubei a árvore porque isso me veio à mente por cerca de dois anos. Em sonho ou acordado, eu não parava de pensar sobre aquilo. Até o ponto em que inscrevi o trabalho no Concurso de Videoarte da Fundação Joaquim Nabuco, em 2009. De alguma maneira, facultei a responsabilidade da decisão de matar a árvore para a comissão julgadora, já que fazer isso contrariava a mim mesmo, minha formação. Mas que bom que o campo artístico permite.”
DISCURSOS
Braga explica que nunca perseguiu o discurso ecológico em seu trabalho. “Não sou ecologista, não sou biólogo. Apenas um ser no mundo, imerso nessas discussões em que tudo o que diz respeito a desmatamentos e poluição me incomoda muito. Lembro que, quando eu era criança, meus colegas adoravam me chatear, tirando folhas das plantas e quebrando
“Não sou ecologista, não sou biólogo. Apenas um ser no mundo, imerso nessas discussões” Rodrigo Braga galhos. Eu ficava irado. Mas matar uma árvore e enterrá-la é um ato que me empodera enquanto artista. Trata-se de um embate do indivíduo com essa natureza, ali, na sua fisicalidade, fazendo a coisa acontecer, sendo também destrutivo.” Rodrigo Braga vê sua produção como um embate entre morte e vida, entendidas numa perspectiva cíclica de renovação de tudo, das matérias, dos seres, das moléculas, das energias, da espiritualidade. “Tanto é que minha exposição no Museu de Arte Moderna
Aloísio Magalhães, em 2011, chamou-se Ciclos alterados. Ciclos naturais alterados pelo homem. O que faço com meu trabalho é contorcer um pouco não só o ciclo natural das coisas, mudando-o de lugar, de sentido, mas também, nesse movimento, trazer a arte como álibi. Não é dizer simplesmente, ‘ah, só porque é artista pode tudo’. Mas o álibi de poder ir mais além. Dizer ‘eu posso, talvez, em nome da arte’. Mesmo que haja um ‘em nome da arte’, mas um ‘eu posso porque sou um ser que quer experiências diferentes e pensar coisas novas’”. No limiar entre arte e natureza, o artista chama a atenção para o trabalho do paraense Armando Queiroz, com exposição programada para o Museu de Arte do Rio, ainda em 2014. “Ele mobiliza o histórico, social e cultural, conseguindo uma complexidade que meu trabalho não alcança, já que me interessa uma discussão sobre a raiz biológica e material, voltada para as transmutações, para um debate, digamos, mais filosófico e espiritual.” Braga também chama a atenção para a reconhecida obra de Nelson Felix, considerando que alguns trabalhos seus citam Felix sutilmente. “Ele joga com forças da natureza, em relação às quais o homem se torna muito pequeno. É um artista que tem o globo como ateliê, deslocando-se mundialmente, colocando peças, tirando fotografias, desenhando. Parte do trabalho dele é um mapa-múndi.” Neste 4 de setembro, Rodrigo Braga abre, em um galpão de 600 m2 no Sesc Belenzinho, em São Paulo, a sua maior individual até hoje, com material inédito. São 30 fotografias, três vídeos e uma instalação. O trabalho foi produzido nos últimos quatro anos, em três regiões. Na Amazônia, que frequenta há quatro anos, com investidas em áreas isoladas no Alto Rio Negro, no litoral sul de Pernambuco e no Rio de Janeiro. Além disso, participa de coletivas no Museu Vale, em Vitória, e de retrospectiva do projeto Rumos, do Itaú Cultural. (P.C.)
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REPRODUÇÃO
Artigo
PRISCILA MUNIZ DE MEDEIROS O DOCUMENTÁRIO COMO ALIADO DO ATIVISMO AMBIENTAL Quando ofereci uma disciplina de
jornalismo ambiental para alunos de graduação, no primeiro semestre deste ano, pensei que seria uma boa ideia trabalhar os diferentes temas – geração de lixo, uso de agrotóxicos, transgênicos, aquecimento global etc. –, através da exibição de documentários. A ideia era que os alunos pudessem debater as questões ambientais, ainda que não tivessem lido um material extenso sobre o assunto. Durante a disciplina, assistimos a filmes como A história das coisas (EUA, 2007), O mundo segundo a Monsanto (França, Canadá e EUA, 2008), Soluções locais para uma desordem global (França, 2010), O veneno está na mesa (Brasil, 2012), A revolução dos cocos (Inglaterra, 2000), Obsolecência programada – comprar, descartar, comprar (Espanha, 2011, na foto acima), Sobrevivendo ao progresso (Canadá, 2011), entre outros. O resultado foi animador. Com uma ou outra exceção, os estudantes não tinham nenhuma familiaridade com temáticas ambientais. Os filmes fizeram com que eles se preocupassem, se indignassem e debatessem saídas para problemas aos quais antes eram alheios. Por se tratar de uma turma de estudantes de jornalismo, é possível que essa preocupação seja espalhada para outras audiências, a partir da atuação profissional dos alunos. O exemplo citado mostra um pouco do potencial político dos documentários, que vêm sendo uma arma cada vez mais usada por grupos de ecologistas no mundo inteiro. Aqui, entendemos como documentário ambiental aquele que aborda aspectos relacionados aos desequilíbrios provocados pela ação do homem sobre o planeta (o que não inclui, por exemplo, os documentários sobre a vida selvagem
exibidos no Discovery Channel ou no Globo Repórter). Tais filmes circulam com diferentes abordagens e alcances. Há desde os mais conhecidos, como o ganhador do Oscar Uma verdade inconveniente (EUA, 2006), até os filmes independentes totalmente financiados através de crowdfunding. Mas o que o documentário ambiental tem que é capaz de despertar o interesse do público nas questões ecológicas? A maior parte dos documentários pretende ter algum tipo de impacto no mundo histórico, e para isso precisa convencer o público de que o ponto de vista adotado por eles é o mais adequado. Trata-se de um trabalho de persuasão, e é por isso que esse tipo de filme normalmente se alinha a uma tradição retórica. A questão do ponto de vista é bem importante, uma vez que não podemos reclamar para o documentário o status de reprodutor da realidade (o que o distanciaria da ficção, que antes de realidade seria imaginação, tornando a equação bastante simples. Mas não é dessa forma que o documentário deve ser entendido). De fato, o documentário aborda o mundo em que vivemos antes daquele imaginado pelo diretor, no entanto, ele não é a réplica de algo que já existe, mas, sim, uma representação que é construída a partir de um ponto de vista entre vários outros possíveis. O grande
trunfo do documentário ambiental é a exposição de pontos de vista que muitas vezes são negligenciados pelos grandes veículos de comunicação. Olhares sobre a forma como a nossa civilização vive, produz e se relaciona com a natureza. O discurso do documentário ambiental dialoga, numa relação de polêmica, com certos discursos que atuam como base de sustentação ideológica da nossa sociedade contemporânea, cujas práticas fizeram emergir a crise ambiental vigente (discursos ligados ao consumismo, à primazia dos critérios econômicos, ao “progresso” desenfreado, ao antropocentrismo, entre outros). Os desafios para um maior desenvolvimento do potencial político dos documentários são grandes, e começam pelo pouco interesse que o gênero documentário desperta no grande público. Isso faz com que, muitas vezes, tais filmes, especialmente os independentes, circulem em redes restritas e atinjam basicamente aquelas pessoas que já possuem preocupações com o meio ambiente. Por isso a importância do uso pedagógico desses filmes em escolas, universidades e outros espaços educacionais. Essas e outras estratégias podem fazer com que o ativismo dentro da tela se materialize em engajamento fora dela.
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MANAUS Belle Époque tropical
A cidade é um símbolo urbano da época de ouro dos seringuais, que legou à região uma importante herança artística e cultural TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
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A dura jornada dos seringueiros floresta adentro rendeu, além das toneladas de borracha que subsidiaram a fabricação de pneus durante o boom automobilístico do início do século 20, um dos mais expressivos patrimônios do Norte do Brasil, uma espécie de belle époque tropical, que legou ao coração da Amazônia uma herança artística e cultural só comparável ao ciclo do café no Sudeste. Manaus, capital do maior estado brasileiro e símbolo urbano desse período, resguarda parte significativa desse patrimônio e revela uma cidade pulsante, ao mesmo tempo nostálgica, um retrato vivo da força da colonização europeia na porção mais selvagem do Brasil. Em lugares como o Teatro Amazonas ou o Mercado Adolpho Lisboa, ambos construídos com dinheiro e materiais vindos da Europa, é possível ter uma ideia da época em que a cidade possuía a então rara luz
elétrica, avenidas construídas sobre pântanos e se dava ao luxo de trazer espetáculos teatrais diretamente de Paris. Quando Euclides da Cunha visitou a cidade, em 1905, afirmou que Manaus havia entrado numa profunda crise de identidade, negando, por um lado, sua origem indígena e, por outro, buscando uma identificação europeia absolutamente inacessível. No Mercado Adolpho Lisboa, erguido à margem do Rio Negro com toneladas de ferro trazidas da Inglaterra, visualizamos o nível de europeização a que Manaus foi submetida no auge da economia oriunda do látex. Inaugurado em 1882 e inspirado no famoso Mercado de Les Halles, de Paris, o Lisboa é o segundo mercado construído no Brasil e é tombado pelo Iphan em função da sua importância histórica. Em estilo art nouveau, o exemplar da arquitetura do ferro é composto por um pavilhão central de alvenaria
e dois pavilhões de ferro fundido e vitrais coloridos com motivos florais. Depois de passar sete anos fechado, foi totalmente restaurado e reinaugurado em 2013, sendo hoje um dos principais pontos turísticos da cidade. Para os seus vendedores de peixe, hoje, no entanto, o Lisboa está longe de ser a porta de entrada dos produtos amazônicos como foi tempos atrás. “Ele é lindo, mas é atração para turista fotografar. Peixe mesmo, para vender em quantidade, só se for no mercado popular”, diz o pescador, enquanto apresenta um fotogênico tambaqui. Muito da cultura tipicamente amazônica, no entanto, ainda pode ser encontrada entre os labirintos de ferro do antigo edifício, a exemplo da imensa variedade de frutas, ervas e extratos medicinais vendidos pela população ribeirinha. Ao seu lado, fica o Porto de Manaus, também projetado e construído por ingleses no início da década de 1900
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e de onde saem diariamente centenas de embarcações para toda a bacia do Rio Amazonas e seus afluentes. Barcos de três andares chegam e partem apinhados de gente, com suas galerias coloridas por redes, e criam quase que um congestionamento fluvial no começo da manhã. Nos arredores do porto, no meio do burburinho urbano da margem do rio, é possível encontrar ainda outros exemplos da arquitetura surgida no auge econômico da cidade, como o antigo Palácio Rio Negro e o prédio da Alfândega, este último erguido todo em tijolo aparente importado da Inglaterra e considerado uma das primeiras obras pré-fabricadas do Brasil. Parte desse centro histórico ainda está em processo de restauração. Um pouco mais acima, imponente e majestoso, está o Teatro Amazonas, que talvez seja o mais importante ícone da riqueza e do refinamento
trazidos pelos barões da borracha. Além da madeira, retirada da floresta ali ao lado, todo o material utilizado na construção do teatro veio da Europa. O teto, pintado em perspectiva pelo italiano Domenico D’Angelis, as 12 mil peças de madeira nobre encaixadas sem cola e as colunas de ferro trazidas da Escócia são apenas alguns exemplos da riqueza da casa. Em estilo eclético, o teatro também é imponente em sua fachada, com destaque para a famosa cúpula composta de 36 mil peças de escamas em cerâmica esmaltada e telhas vitrificadas, vindas da Alsácia e adquiridas na Casa Koch Frères, em Paris. No final do século 19, o Jornal do Amazonas criticou o estilo da cúpula, refletindo a má aceitação popular da proposta. Na época, comparavam a cúpula a uma mesquita mulçumana. As escamas, na verdade, estilizam a bandeira brasileira e dão ao teatro a
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TEATRO AMAZONAS É um dos mais importantes ícones da riqueza e do refinamento trazidos pelos barões da borracha
mesma função da cúpula da Ópera de Paris, assinalando a presença de uma casa de espetáculos em seu interior. Além da excelência arquitetônica, o teatro mantém uma extensa e variada programação, que faz da casa de espetáculos uma referência na cultura manauara. O lugar recebe anualmente o Festival Amazonas de Ópera, que este ano homenageou óperas com mulheres em papéis importantes, a exemplo de Onheama, obra inédita destinada ao público infantojuvenil, encomendada a João Guilherme Ripper, regente e diretor da Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, e que tem como base o poema A infância de um guerreiro, do amazonense Max Carphentier.
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E como quase tudo por ali veio de fora, com a maquete do teatro não poderia ser diferente. Estrategicamente localizada no final do roteiro de visitação pelo prédio, a miniatura é composta por 30 mil peças de Lego e foi produzida pela fábrica da empresa, na Dinamarca. Do lado de fora, na bonita Praça São Sebastião, o piso em mosaico revela mais um item importado. Decorado com pedras vindas de Portugal, pelo menos 10 anos antes de o Rio de Janeiro fazer o mesmo, o desenho escolhido é semelhante ao que se empregaria no calçadão de Copacabana. A justificativa para o desenho é popularmente atribuída ao encontro das águas do Rio Negro com o Solimões.
NAS ÁGUAS
É no encontro desses dois gigantescos rios que Manaus parece guardar aquilo que possui de mais original. Com uma natureza extraordinária, que atrai turistas e pesquisadores, a Floresta Amazônica parece lembrar, insistentemente, a real localização geográfica da capital. Manaós, como era antigamente chamada em homenagem à tribo que os colonizadores portugueses encontraram, é uma metrópole com mais de dois milhões de habitantes, mas que jamais perdeu o seu espírito amazônico. A cidade inteira vive sob a força e o domínio do Rio Negro, um afluente tão grande do Amazonas, que, em alguns pontos, é impossível avistar a outra margem. Diversos parques se espalham
pelos arredores de Manaus e revelam a cobiçada biodiversidade dessa região do Brasil. No exato ponto onde os rios Negro e Solimões se encontram, o espetáculo cromático sempre intrigante. Por possuírem temperatura, densidade e velocidades diferentes, as águas dos dois rios não se misturam e correm lado a lado por vários quilômetros até formarem o Rio Amazonas. No Parque Ecológico do January, um dos mais visitados, samaúmas gigantes, igapós e casas flutuantes fazem a alegria dos turistas, estrangeiros na maioria. Em quase todos os passeios, crianças se aproximam dos barcos com jacarés, preguiças e outros animais silvestres, para serem fotografadas em troca de gorjetas, embora a contribuição
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CENTRO HISTÓRICO Parte dele ainda está em processo de restauração
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PORTO DE MANAUS De lá, partem centenas de embarcações para a bacia do Rio Amazonas e seus afluentes
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ADOLPHO LISBOA Inaugurado em 1882, ele é inspirado no famoso Mercado de Les Halles, de Paris
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SÃO SEBASTIÃO O piso em mosaico da praça foi executado pelo menos 10 anos antes de o Rio de Janeiro imprimir desenho semelhante no calçadão de Copacabana
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com a atividade seja uma forma de incentivar a retirada dos animais de seus ambientes naturais, sem que isso signifique um ganho social efetivo para as populações ribeirinhas. Assim como no passado, quando os senhores da borracha tinham o privilégio de frequentar o Teatro Amazonas, ainda hoje é visível a situação marginal em que foram colocadas as populações locais, verdadeiras donas do patrimônio natural que subsidiou tanta opulência no passado. Consideradas orgulhosas pelos portugueses, por se negarem a servir de mão de obra escrava, as tribos indígenas que sobreviveram ao ainda em curso processo de colonização seguem na luta pela preservação da sua casa verde, a Floresta Amazônica.
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LATINSTOCK/© ROBERT WALLIS/CORBIS/CORBIS (DC)
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História
HIGIENE Um passado que nem sempre cheira bem 1
Fundamentais para a saúde, os cuidados higiênicos passaram por momentos inimagináveis para os atuais padrões de asseio, com impactos sociais que chegaram à dizimação por doença e racismo TEXITO Gilson Oliveira
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Romeu e Julieta nunca juntariam
as escovas. Não apenas porque o ódio entre suas poderosas famílias – Montecchio e Capuleto – impedia qualquer relação amorosa entre seus membros, mas por uma razão muito simples: esse artefato de limpeza bucal ainda não existia na Verona do século 16, época em que, segundo a peça de William Shakespeare, os dois famosos amantes viveram. Não existia, pelo menos, nos moldes hoje conhecidos. Em seu atual modelo, com cerdas de náilon, a escova de dente veio ao mundo em 1938 – invenção do norteamericano Robert Hutson –, mas já devia ser uma espécie de objeto de desejo do homem pré-histórico, que talvez não desse muita importância
Higiene deriva de Hígia – deusa da saúde e da limpeza – e se refere não apenas ao asseio, mas à prevenção de doenças ao mau hálito, mas certamente dava grandes urros devido às dores de dente e gengivites. Uma tentativa de minorar o sofrimento era, de acordo com especulações, limpar a boca com galhos e folhas de árvores. E não faltaram novas “tecnologias” ao longo dos tempos. Os assírios, por exemplo, recorriam aos próprios
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ROMANOS
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BANHO
Suas suntuosas termas se espalharam por todo o império, como na edificação de Bath Na arte, o hábito não raro é representado de forma sensual, como na pintura de Alma-Tadema
dedos. Os egípcios criaram, há cinco mil anos, um objeto visto como a mais antiga das escovas: um ramo de planta cujas extremidades desfiadas pareciam cerdas. Os romanos davam tanta importância à escovação, que alguns aristocratas tinham escravos exclusivos para essa função. O creme dental usado, no entanto, era um pouquinho diferente dos de hoje: uma mistura de ervas, areia e cinzas de ossos e dentes de animais. No século 15, a China fez com que o porco, normalmente associado à sujeira, criasse vínculos com a higiene. Era um dos animais dos quais se tiravam os pelos para as cerdas das escovas, as quais eram feitas de pedaços de ossos ou de bambu. Mas, além da escovação não ser nem um pouquinho suave, os pelos permaneciam úmidos e mofavam. Como se isso não bastasse, as famílias usavam a mesma escova, compartilhando também doenças bucais. Em certo período da Idade Média europeia, uma fórmula usada para eliminar o mau hálito era bochecho com urina. As experiências voltadas para a higiene bucal continuaram, com resultados às vezes estapafúrdios, mas esse processo terminaria com resultados louváveis. Um deles está registrado no site Brasil Escola: “Em 2003, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, publicou uma pesquisa em que questionava sobre o invento mais importante já desenvolvido (...). para surpresa geral, a maioria apontou a escova de dente como o mais importante invento da história”. Derivada do nome Hígia – deusa grega da saúde e da limpeza –, a higiene, no que concerne a banho, é um cuidado que remonta a tempos imemoriais. Registros apontam que o ato de se banhar era comum no Egito,
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História
LAWRENCE ALMA-TADEMA/REPRODUÇÃO
há cinco mil anos. “Mais do que limpar o corpo, eles presumiam que a água purificava a alma”, diz o egiptólogo francês Christian Jacq, acrescentando que os egípcios tomavam pelos menos três banhos diários, que eram verdadeiros rituais. Em termos de banho público, o pioneirismo é dos babilônios, seguidos pelos gregos, cujos balneários atraíam também por razões esportivas. Inspirados nos helenos, os romanos criaram as suntuosas termas, que se espalharam pelo império. Por isso, várias cidades europeias têm no nome a palavra banho, como Baden-Baden, na Alemanha, Aix-le-Bains, França, e Bath, Inglaterra. As mais conhecidas hoje ficam em Roma e foram construídas pelos imperadores Caracala, em 217 d.C., e Diocleciano, em 305. Suas estruturas podiam receber, respectivamente, 1.600 e 3.200 banhistas. Com várias
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BONAVENTURA BERLINGIERI/REPRODUÇÃO
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piscinas, inclusive de água quente, as termas funcionavam como gigantescas praças, por servir de ponto de encontro da população. Nelas se discutia tudo e havia também encontros homoeróticos, como descreve o Satyricon, de Petrônio.
PINTOU SUJEIRA
Na Idade Média, período em que a Igreja Católica influenciou profundamente a vida das pessoas, as termas, por serem locais onde predominava o nu coletivo, foram mandadas para o quinto dos infernos. O corpo passou a ser visto como um “lugar de tentações” e a nudez tornou-se questão política e administrativa, tendo o imperador romano Teodósio proibido os jogos olímpicos em 393, porque era pecado a exibição dos corpos dos atletas. Gregório I, papa entre 590 e 604, chegou a chamar o corpo de “abominável vestimenta da alma”.
Na Idade Média, o banho passou a ser visto como um ato de luxúria e muitos só se banhavam duas ou três vezes ao ano Dois livros há pouco lançados convergem num ponto potencialmente polêmico: a ascensão política e social da Igreja colocou a falta de higiene também no poder. São eles: O lado sujo da limpeza, de Katherine Ashenburg, e Limpo – uma história da higiene pessoal, de Virginia Smith. “Místicos mais extremados como São Francisco de Assis consideravam a sujeira um modo de penalizar o próprio corpo, aproximando o espírito de Deus”, explica Ashenburg.
O TRIUNFO DA MORTE
Obra de Pieter Brueghel mostra a epidemia de peste negra na Europa PRAÇAS
Os banhos funcionavam como ponto de encontro dos romanos SÃO FRANCISCO
Para o frade, a sujeira era um modo de penalizar o próprio corpo
Nesse contexto, o banho passou a ser visto como um ato de luxúria e, em quase todos os conventos e monastérios, as pessoas banhavamse apenas duas ou três vezes ao ano. O povo também seguia a regra, preferindo enfrentar a água nos meses de maio e junho, quando começa a primavera na Europa e o clima aquece um pouco. Seria essa a origem de maio ser conhecido como o “mês das noivas”. Era nele que as donzelas “encaravam o chuveiro”. O uso do buquê de flores pelas nubentes, ainda segundo Ashenburg, seria um recurso adicional para afastar o mau cheiro. Não sem razão, fez muito sucesso o livro sobre higiene (!) Romance da rosa, de Guilherme de Lorris e Jean de Meun, que, no capítulo sobre o asseio feminino, dizia, entre outras coisas, que as mulheres deveriam zelar pela “câmara de Vênus”. A situação começou a ficar literalmente irrespirável a partir do século 16, quando, segundo o livro O limpo e o sujo, de Georges Vigarello, os médicos espalharam aos quatro ventos que “depois do banho, a carne e o hábito do corpo amolecem e os poros abrem-se e, assim, o vapor pode entrar prontamente no corpo e provocar a morte súbita”. E não apenas isso: “A água prejudica a vista, provoca dores de dentes e catarro”. Por ironia, essas e outras teses haviam construído, durante séculos, um ambiente propício à propagação de terríveis doenças, como a peste negra, que, no século 14, dizimou cerca de um terço da população europeia. Não sem motivos, quando os portugueses aportaram no Brasil, em 1500, espantaram-se com a limpeza dos índios, que mergulhavam nos rios várias vezes ao dia. O escrivão Pero
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6 ERASMO DE ROTTERDAN Em 1530, teólogo lançou obra que indicava atenção às boas maneiras e à higiene 7 O BANHO Com os avanços científicos do século 19, o homem fez as pazes com a limpeza
Vaz de Caminha não poupou a tinta de sua pena para elogiá-los: “São tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais”. Os lusos acabaram assimilando o costume dos nativos brasileiros, menos os membros da corte, que estavam acostumados a passar meses até sem mudar de camisa. Como se a sujeira fosse um dos símbolos da realeza, o rei francês Luís 14 só tomava banho por ordem médica e o palácio onde vivia, Versalhes, dos mais belos do mundo, era cheio de fezes nos corredores. Já Napoleão Bonaparte tem entre suas mais famosas frases a que escreveu para a mulher, Josefina, no fim de uma campanha militar: “Retorno amanhã a Paris. Não se lave”.
ELOGIO DA LIMPEZA
Mais conhecido pelo livro Elogio da loucura, Erasmo de Rotterdan também marcou sua época com Da civilidade em crianças, de 1530, obra que se preocupava com as boas maneiras sociais e a higiene. Lançada numa fase de transição da Idade Média para a Moderna, ensinava comportamentos coletivos civilizados, o que, na visão erasmiana, significava ter domínio sobre os instintos e as pulsões e desenvolver sentimentos como vergonha, pudor, repugnância, embaraço e delicadeza. Referindo-se a Erasmo, diz Norbert Elias, no livro O processo civilizador, que ele “expressa uma nova exigência histórica, a de que os homens tinham que aprender a se comportar dentro de novas condições sociais. Com efeito, o mundo feudal findara-se e com ele a forma social de comportamento que o expressava”. Embora seja um clássico, Da civilidade... é repleto de conselhos que hoje parecem absurdos. Sobre o comportamento à mesa, numa época em que até reis e rainhas comiam com as mãos e os animais
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serviam de guardanapo – pois era em seus pelos que muitos limpavam as mãos gordurosas –, Erasmo recomenda, entre outras coisas: “Se você quiser oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo, evite isso. Não é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa mastigada”. Em seu livro, Nobert Elias também reproduz trechos de muitos outros tratados que circulavam pela Europa, inclusive entre a aristocracia, como Disciplina na corte, de Tannhäuser, no qual consta que “Se um homem bufa como uma foca quando come, como acontece com algumas pessoas (...) ele renunciou a toda boa educação”; “Não limpe os dentes com a faca. Não cuspa em cima ou por cima da mesa”; e “falar com alguém que está defecando é sinal de falta de educação”.
LAVOU, TÁ NOVO!
Sensação de rejuvenescimento, renovação da energia, ausência de cansaço e estresse, que parecem ter escorrido pelo ralo... Essas são algumas das experiências que o homem moderno costuma viver em banheiros cada vez maiores e bonitos, que guardam cosméticos, produtos dos quais o Brasil é o terceiro consumidor mundial. Foi a partir do século 19, época de grande desenvolvimento da ciência e da conscientização sobre a importância da higiene, que o ser humano fez as pazes com o banho e começou a se preocupar com outros cuidados íntimos. No que foi ajudado pela propagação da água encanada e do esgoto, além das invenções criadas sob a inspiração da Revolução Industrial. Caso da privada moderna,
com descarga, que foi apresentada ao distinto público por George Jennings em 1884. O desenvolvimento da indústria da higiene, principalmente nos Estados Unidos, foi pródigo em novidades. É nessa época que ocorre a popularização do sabão/sabonete, que, embora conhecido desde o antigo Egito, sempre foi um “objeto de luxo”, pelos custos de produção. Outro fator de sucesso do produto foi a evolução dos recursos promocionais. “O sabonete e a publicidade cresceram juntos”, diz Katherine Ashenburg, em O lado sujo da limpeza. A relação da indústria com a publicidade cresceu tanto, que fez surgir a expressão inglesa que designa a telenovela: soap opera, ou seja, “ópera de sabonete”, em referência aos patrocinadores desses programas. Considerado o primeiro absorvente íntimo, o Kotex, de 1917, chegou a ganhar um filme dos estúdios Disney durante campanha publicitária em 1946. Desodorantes, pastas alcalinas, xampus sofisticados, perfumes estonteantes... É quilométrica a lista de produtos higiênicos hoje ao alcance das mãos (que agora podem estar sempre limpas e cheirosas). Quilométrica e desnecessária de ser elencada, pois quase todo mundo a conhece. Parece que, pelo menos em termos higiênicos, o processo civilizador continua em marcha no mundo atual (apesar de mercados, bares e restaurantes viverem sendo fechados por falta de higiene). Talvez a ponto de alguém, ao olhar para algum produto ou artefato higiênico moderno, perguntar: “Como conseguimos viver sem isso?!”
IMUNIDADE
MUITO ASSEIO PODE SE TORNAR DOENÇA Técnica de laboratório, função em que manipulava urina e fezes, Julia Abdullah, da Malásia, depois de certo tempo na atividade, começou a lavar as mãos mais de 300 vezes por dia. Atendida em um hospital de doenças mentais, o diagnóstico foi claro: ela era portadora de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), distúrbio psiquiátrico que gera profunda ansiedade, fazendo as pessoas repetirem compulsivamente certos atos. Mas o cuidado excessivo com a higiene não expressa apenas comportamentos patológicos, ele faz parte das regras cotidianas do mundo moderno, no qual o avanço da assepsia pode ter chegado a extremos, como têm aventado médicos de todo o mundo. Para demonstrar essa preocupação, pesquisadores do Brigham and Hospital, de Boston, EUA, chegaram a divulgar um estudo intitulado Hipótese de higiene. Publicado em 2012 pela revista Science, o documento diz que a superproteção com que as crianças hoje são educadas estaria debilitando as resistências imunológicas e aumentando a incidência de doenças alérgicas. “Se você tiver um gato em casa, antes do nascimento do seu filho, a criança nasce mais protegida da alergia que possa ser provocada pelo felino”, ilustra o diretor da Sociedade Brasileira de Alergia e Imunopatologia, Evandro Alves do Prado. Como se, ao contrário de Erasmo de Rotterdan, também fizessem um “elogio da sujeira”, investigadores alemães compartilham da opinião de Evandro Prado, afirmando que as pessoas que moram em áreas rurais, e vivem em contato com esterco, desenvolvem mais resistências a certos micro-organismos do que as do mundo urbano. A preocupação com o excesso profilático volta-se até contra o parto cesariano. Segundo alguns cientistas, os bebês nascidos por tal método estão mais expostos às alergias, porque, ao não passar pela vagina da mãe, onde vive uma infinidade de bactérias, fica com o sistema imunológico enfraquecido. (G.O.)
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História
EUGENIA Ambição nazifascista, pesadelo da humanidade
Definida pelos dicionários como
um conjunto de conhecimentos e técnicas para evitar doenças e fortalecer a saúde, a higiene, com o tempo, ampliou muito o seu campo de atuação – hoje existem a pessoal, pública, mental, alimentar e ambiental – e incorporou vários significados e finalidades. Um dos mais ideologizados conceitos surgiu em 1869, quando o antropólogo inglês Francis Galton publicou o livro O gênio hereditário, no qual sustentava a tese de que
um “homem notável teria filhos notáveis” e defendia que a raça humana melhoraria, se não existisse o que chamou de “cruzamentos indesejáveis”, ou seja, o casamento de pessoas que não possuíssem “boas qualidades físicas e mentais”. Batizada de eugenia, cujo significado é “bem-nascido”, a proposta de Galton não era nova – na Grécia antiga, Esparta chegava a assassinar as crianças doentes, e Platão, em A república, defende o aperfeiçoamento da sociedade a partir de processos
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seletivos –, mas foi influenciada por uma obra moderna e revolucionária, A origem das espécies, escrita pelo primo de Galton, Charles Darwin, na qual pontificava o conceito de “seleção natural”, segundo o qual só os seres capazes de se adaptar aos ambientes possuíam chance de sobreviver e se desenvolver. Adaptando essa concepção à realidade social, Galton propôs a “seleção artificial”, por meio da qual se poderia promover melhorias hereditárias. Para isso, criou o conceito de “reprodução seletiva”, que, segundo ele, poderia ser corporificada com, por exemplo, a adoção de “testes de inteligência”, um dos instrumentos que permitiriam selecionar homens e mulheres superiores.
CIENTIFICISMO
Dotado de uma mente prolífera e vasta erudição, Galton se inseria perfeitamente no espírito de sua época, desfrutando de grande e imediata receptividade na Inglaterra. Um dos fatores foi o cientificismo que imperava naquele período histórico. “A novidade
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do século 19 foi a incorporação da história à natureza, principalmente através da noção de evolução e da ideia de que o determinismo presente no mundo natural seria o mesmo que rege o desenvolvimento da humanidade. Dessa forma, os valores morais, políticos e filosóficos passaram a ser vistos como manifestações do estágio em que se encontrava a humanidade”, diz Celso Castro, no livro Os militares e a república – um estudo sobre cultura e ação política. E Galton não se limitava a ser um formulador de teorias, transformando muitas de suas ideias em tecnologias, o que o tornou inventor de equipamentos inusitados e pioneiros, como um dispositivo para abrir cadeados, um protótipo de impressora de teletipo e um tipo de periscópio apropriado a suas pesquisas de campo. Visando pôr em prática as teses sobre eugenia, mais especificamente, sobre a reprodução seletiva, ele foi o primeiro a usar métodos estatísticos para estudar as diferenças e heranças de inteligência e a utilizar questionários e pesquisas para coletar dados sobre as comunidades humanas. Como estudioso da mente, fundou a psicometria (ciência de medição da força e dos fenômenos mentais) e a psicologia diferencial (que estuda as diferenças individuais no processo de aprendizagem).
DARWINISMO
Outro fator que concorreu para aceitação das teses eugenistas foi o “darwinismo social”, que, como os princípios defendidos pelo próprio Galton, consistia numa tentativa de aplicar os fundamentos do livro A origem das espécies às sociedades humanas, enfatizando que, na luta pela existência, apenas os mais aptos poderiam sobreviver, o que procurava dissimular as grandes injustiças sociais decorrentes do processo de industrialização, que explorava e marginalizava as camadas mais pobres da população. Segundo essa visão, as pessoas viviam na miséria exclusivamente por serem inferiores e lhes faltar capacidade de adaptação. Apesar disso, o contingente de pobres crescia expressivamente, enquanto havia uma diminuição
O eugenismo se espalhou a ponto de incitar ideias como a de Marinetti de que “a guerra era a única higiene do mundo” populacional entre as camadas mais ricas e cultas da sociedade. Essa situação levou alguns pensadores a afirmarem que a Inglaterra estava sofrendo um grande risco de “degeneração biológica” e a ressaltarem a importância de um controle demográfico, instituindo leis de esterilização compulsória. Em pouco tempo, as ideias eugenistas conquistariam adeptos em várias partes do mundo, como Filippo Marinetti, poeta futurista italiano e um dos precursores do fascismo, autor da frase “Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo”. Outro que logo aderiu às teses foi o médico alemão Alfred Ploetz, autor de Noções básicas de higiene
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HOLOCAUSTO
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FRANCIS GALTON
A crença de que era possível a “melhoria da raça humana” fomentou a eugenia, que gerou aberrações como o extermínio étnico Primo de Darwin, o antropólogo trouxe às ciências humanas o conceito darwinista da “seleção natural das espécies”
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racial, livro usado pelos nazistas para elaborar a teoria da superioridade rácica. Uma das bases do nazismo, o conceito de raça e higiene assumiu caráter político com a edição das Leis de Nuremberg, em 1935, proibindo o casamento entre judeus e não judeus. Para atribuir consistência científica às suas teses, Hitler e sua equipe mobilizaram os médicos alemães, que, atuando como higienistas raciais, muito colaboraram com o Holocausto, o projeto nazista de “limpar a Europa”, eliminando judeus, ciganos, sérvios, negros, homossexuais, comunistas, doentes mentais e adversários políticos. A tragédia humana que isso representou fez com que, finda a Segunda Guerra Mundial, na qual o nazifascismo foi derrotado, o mundo rechaçasse veementemente as teses da higiene racial. Apesar disso, em 1977, ciganos ainda estavam sendo esterilizados na Noruega, o que deixou a comunidade internacional de cabelo em pé, por ver que, 32 anos após o fim da guerra, a eugenia continuava viva – e combatendo. GILSON OLIVEIRA
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ESTREIA Filme rodado em versos
Com A luneta do tempo, o compositor Alceu Valença regressa às origens culturais que propulsionaram sua carreira – agora, como diretor, premiado no Festival de Gramado TEXTO Marcelo Miranda
Duas perdas conectam a gênese de A
luneta do tempo à sua primeira exibição pública. Em 1999, Alceu Valença perdeu o pai, acontecimento que o levou de volta à cidade natal, São Bento do Una, distante 215 quilômetros do Recife, para acertar questões familiares. Foi nessa viagem de regresso que o cantor teve as ideias embrionárias do que iria se tornar sua estreia como diretor de cinema, justamente no dia 13 de agosto de 2014, data marcada pela trágica morte do ex-governador pernambucano Eduardo Campos num acidente de avião, junto a seis pessoas de sua equipe de campanha à presidência da república. Alceu era amigo de Eduardo e foi com nota de lamento que ele apresentou A luneta do tempo na competição do 42º Festival de Cinema de Gramado. A fala do músico no palco do Palácio dos Festivais, na cidade gaúcha, em meio à noite mais fria do evento, este ano, equilibrou-se entre as duas pontas. “Temos aqui, hoje, duas notícias. A primeira é trágica, pois perdemos o Eduardo, um político de verdade. A outra, a boa notícia, é que...”, disse, fazendo suspense: “... A luneta do tempo ficou pronto!”.
O clima de perplexidade pela morte de Campos que tomava os presentes na sessão teve um momento de trégua diante das imagens delirantes e libertárias proporcionadas pelo filme de Alceu Valença. Protagonizado por dois nomes já icônicos da produção contemporânea no estado – Irandhir Santos e Hermila Guedes –, o longametragem remete à tradição do cangaço para apresentar, entre sonho, realidade e devaneios, na fotografia deslumbrante de Luís Abramo e em ecos de Ariano Suassuna, Glauber Rocha e Luiz Gonzaga, o embate entre dois meioirmãos, cujas histórias são unidas pelas lutas no Agreste. Ambos são filhos de um circense de origem argelina que “repovoa” as comunidades por onde passa. Um dos garotos nasce da viúva de Severo Brilhante, ex-homem de confiança do bando de Lampião; o outro é da mulher de Antero Tenente, militar ansioso por capturar o bando de cangaceiros. Crescidos, os dois mantêm a rivalidade intrínseca às suas origens, reproduzindo através do circo alguns dos acontecimentos marcantes do passado.
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O roteiro, assinado pelo próprio Alceu Valença, tem como principal característica a narração em versos de cordel, a maior parte deles em decassílabos. O compositor não apenas permite aos personagens falarem em rimas das mais variadas e ricas, como parece transfigurar em imagens todo o imaginário de mais de 40 anos de carreira e de 68 anos de vida. “O filme tem esse ritmo todo porque eu gravei a trilha sonora muito antes de filmar, como se fosse um esboço sonoro”, conta Alceu. “Fui pro estúdio com tudo que tinha anotado durante anos e fazia a voz de homem, de mulher, imitava pássaro, cavalo, boi, cachorro... Fazia todos os sons e ia botando dentro da trilha sonora.”
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O filme saiu do Festival de Gramado com dois Kikitos: melhor trilha musical, para o próprio Alceu, e melhor direção de arte, para Moacyr Gramacho. Numa competição de melhor filme, vencida pelo drama de guerra A estrada 47, de Vicente Ferraz – com vários prêmios distribuídos a outros dois títulos, A despedida, de Marcelo Galvão (direção,
ator – Nelson Xavier, atriz – Juliana Paes, e fotografia – Eduardo Makino), e Infância, de Domingos de Oliveira (roteiro, ator coadjuvante – Paulo Betti, e especial do júri – Fernanda Montenegro), ficou a impressão de que o longa de Alceu perturbou os jurados a ponto de eles não lhe terem concedido nenhum outro reconhecimento que merecia.
MUSICAL
Tendo essa espécie de “storyboard sonoro”, Alceu foi para o set já bastante decidido sobre como conduzir o caldo a lhe ferver os miolos e que desembocaria no filme que enfim se vê na tela. Além de todos os diálogos em cordel, ouvemse aproximadamente 60 músicas, entre cantadas na voz de Alceu e
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Página anterior 1 PROTAGONISTAS
Hermila Guedes e Irandhir Santos vivem os dois meio-irmãos cujas histórias se unem pelas lutas no Agreste
Nestas páginas 2-3 CANGAÇO
Esse universo tradicional está muito presente no longa-metragem
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LOCAÇÃO
As filmagens foram feitas, entre 2009 e 2011, em cidades do interior de Pernambuco
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outras, apenas incidentais. “Eu fiz um musical, mas não queria um musical italiano, nem ópera, nem Broadway. Fiz o meu próprio porque, quando faço o meu, ele é original. Claro que tem influências, mas elas não podem ser muito visíveis, senão vira cópia, e eu não gosto de cópia”, diz, peremptório. A maneira nada ortodoxa da faceta de cineasta de Alceu Valença não teve adesão facilitada em todas as frentes. Apesar de Irandhir Santos ter compreendido de imediato as intenções e a maneira alucinada do pensamento e da postura do músico, Hermila Guedes foi resistente num primeiro momento. “Meu método era fazer todo o elenco ouvir o filme – primeiro, através das minhas gravações. Inicialmente, Hermila ficou reticente, queria seguir um jeito mais tradicional, mas todos acabaram passando pelo meu estúdio!”, revela o diretor, que contou com o auxílio do preparador de elenco Bruno Costa. As filmagens aconteceram entre 2009 e 2011, em locações no interior de Pernambuco. A demora entre os registros no set e o lançamento público se deveu aos velhos dilemas do cinema
Alceu Valença conta que gravou a trilha sonora muito antes das filmagens, como se realizasse um storyboard sonoro brasileiro independente: dificuldades de orçamento e finalização, maiores ainda em se tratando de uma produção autoral de R$ 4 milhões. Mesmo sendo um nome reconhecido, Alceu Valença encontrou resistências na tentativa de levar seu projeto adiante. “Eu tenho o que todo artista precisa ter: um pouco de loucura”, disse ele, na apresentação do filme, em Gramado. Foi essa loucura e a persistência que fizeram o compositor e músico se tornar um autodidata na realização cinematográfica. Percebendo que precisaria contar apenas consigo mesmo, se quisesse levar adiante o sonho que se tornou A luneta do tempo, Alceu comprou um livro de roteiro de Doc Comparato (autor de telenovelas e séries) e tomou
aulas de linguagem com a namorada de seu filho, que estudara cinema fora do Brasil. “Depois de 10 aulas, decidi que não ia mais ser um aluno bemcomportado! Quando aprendi aquele negócio de plongée, de panorâmica, fui fazer do meu jeito.” Ele ainda foi ajudado por constantes sessões de filmes no Canal Brasil, que posteriormente o apoiaria na realização do próprio longa. No debate realizado no dia seguinte à exibição de A luneta do tempo em Gramado, Alceu Valença divertiu o público, ao dizer ter inventado o termo “plano zenital” para convencer os técnicos do filme a confiarem nele como diretor. “Ouvi um conselho de que, se os técnicos não acreditarem no cara, eles o destroem no set. Um dia, antes de filmar, vi o pessoal da técnica e falei bem alto, com um amigo, uns termos difíceis para todos ouvirem. Num momento, acabei gritando: ‘Vou pôr a câmera em zenital!’. No dia seguinte, os técnicos já estavam tecendo loas a mim de todos os jeitos.” E o que seria, afinal, esse tal “plano zenital”? “É o plano de cima para baixo, que aqui chamam de plano picado” (ou plano plongée, em que a câmera se posiciona acima do objeto que filma).
ESPANTALHO
Ainda que tenha se dedicado – bem ou malcomportado – aos estudos sobre como fazer filmes, Alceu Valença não é um neófito na área. Na verdade, ele deve ao cinema a parte mais significativa de sua carreira musical. Logo depois de ter estreado em discos numa parceria com Geraldo Azevedo, em 1972, o jovem de 26 anos foi convidado pelo músico e diretor Sérgio Ricardo para fazer o personagemtítulo e a trilha sonora do filme A noite do espantalho, rodado em Nova Jerusalém (interior de Pernambuco) e lançado nos cinemas em 1973. Fazendo shows no Recife, para apresentar as músicas que compusera para a trilha, Alceu foi visto por um produtor da TV Globo Nordeste e indicado à Som Livre. Estava garantido o caminho para ele gravar o primeiro trabalho solo numa grande empresa, Molhado de suor (1974). Uma curiosidade: Sérgio Ricardo tinha composto, em 1964, as músicas de Deus e o diabo na terra do sol, filme-emblema do baiano Gláuber Rocha, que reverbera em A luneta do tempo exatas cinco décadas depois. A música e o
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CON ESPECIAL TI NEN TE cinema, de alguma forma, já estavam em diálogo no início de trajetória de Alceu, sem ele mesmo ter clareza disso. A experiência em A noite do espantalho serviu-lhe para plantar a semente do diretor em que ele se tornaria décadas depois. “O fotógrafo do filme era Dib Lutfi e, enquanto os atores saíam depois de fazer suas cenas, eu ficava ali perguntando a ele sobre movimentos de câmera”, relembra o cantor. As ocupações musicais lhe tomaram todo o tempo que poderia ter dedicado ao ofício de cineasta nos anos seguintes, ainda que ele tenha voltado às telas brevemente em Patriamada (1984), de Tizuka Yamasaki, e até numa inserção televisiva na extinta TV Manchete, durante a novela Mandacaru (1997) – na qual, quem diria, interpretou justamente Lampião. Na infância, numa fazenda em São Bento do Una, então com apenas cinco mil habitantes (hoje, são mais de 50 mil), o pequeno Alceu via cinema de duas formas: através do lençol branco no qual a mãe fazia sombras para chamar atenção dos filhos ou numa das duas salas de projeção da cidade, que exibiam comédias de Charles Chaplin e superproduções da Hollywood clássica. Quando foi morar no Recife, aos 10 anos de idade, potencializou a relação com os filmes. Na juventude, durante os anos 1960, era fã da nouvelle vague e do neorrealismo italiano. Alceu gosta de contar que se parecia fisicamente com o ator francês Jean-Paul Belmondo. Ao assistir a Acossado (1960), de Jean-Luc Godard e com Belmondo no elenco, imitava o trejeito do protagonista de passar o dedo nos lábios. Da produção brasileira atual, fora das agendas de shows e outros trabalhos, Alceu acompanha os filmes de seu querido Pernambuco. Exalta nomes como Marcelo Gomes, Lírio Ferreira, Kleber Mendonça Filho, Paulo Caldas e Cláudio Assis e cita os títulos O som ao redor (2012), Cinemas, aspirinas e urubus (2005) e Amarelo manga (2003) como alguns de seus favoritos dos últimos anos. De novo, ironicamente, o vigor cinematográfico de seu estado foi retomado em 1997 no filme Baile perfumado, no qual o cangaceiro Lampião, encarnado por Luiz Carlos Vasconcelos, também era personagemchave. A luneta do tempo, portanto, liga-se a uma tradição recente, defendida pelo próprio Alceu Valença.
Depoimento
ALCEU VALENÇA “ESSA HISTÓRIA FICOU NA MINHA CABEÇA” Alceu Valença é um tufão de ideias,
performance e carisma. Desde a apresentação de A luneta do tempo no palco do Palácio dos Festivais em Gramado, na noite de 13 de agosto, até o debate com jornalistas e público no dia seguinte, o músico pareceu o tempo inteiro se entregar a um show particular com objetivo de conquistar quem o via. De personalidade forte e dono de uma retórica sedutora, Alceu se deixou tomar pela empolgação com o filme e especialmente com a ótima receptividade que obteve no festival. Abaixo, o leitor confere alguns dos melhores momentos das falas de Alceu Valença, entre palco, debate e diálogos informais nos corredores do evento. Tenta-se aqui uma ordem que seja minimamente fiel aos relatos deste pernambucano de grande imaginação.
LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA
Meu pai se chamava Décio de Souza Valença e estudava Direito, como eu também estudei, na Universidade Federal de Pernambuco. Na época em que ele era estudante, existia a teoria de um criminalista italiano chamado Cesare Lombroso, que dizia que um assassino já nasce assassino e dá para identificá-lo só de olhar o físico dele. Meu pai não concordava com essa teoria. Nesse período, em 1938, Lampião estava no auge no cangaço. Um dia, papai foi assistir a uma aula e começou-se a discutir a teoria do Lombroso. No meio, surgiu um cara correndo com um telegrama que dizia que Lampião tinha morrido em Sergipe. As pessoas se entusiasmaram. Alugaram uma “sopa” (pequeno ônibus), saíram de Pernambuco, passaram por Alagoas e chegaram à Fazenda Angicos. Lá viram que todos os corpos dos cangaceiros estavam sem pescoço, então não podiam saber a cara
deles para ver se a teoria do Lombroso fazia sentido. No local da batalha, existiam vários objetos perdidos, entre eles um chapéu. Papai pegou o chapéu, um amigo dele pegou um brochinho com uma galinha e um galo de ouro, que devia ser de uma cangaceira, e assim foi. Eu me acostumei, na infância, a ouvir essa história. Pois bem, um dia, no carnaval em São Bento do Una, invadiram minha casa. Não eram cangaceiros, mas um bando de bêbados que queriam levar meu pai a um bloco. Rasgaram a roupa dele, e ele saiu fantasiado de camisa cortada. Fiquei com medo de ser um sequestro, era pequeno. Então, saí pra rua e vi meu pai passar no bloco, também bêbado! A farra se estendeu, foram bater lá em casa e viram aquele chapéu de cangaceiro. E começou a discussão: se Lampião era herói ou bandido. Um dos caras do bloco pegou o chapéu, cortou as abas e pendurou no dedo. Chegou na sala e disse que era para ninguém mais discutir aquilo.
IMAGINÁRIO
Eu morava numa cidade de 5 mil habitantes, com salas de cinema e grupos de teatro que hoje não existem mais. Tinha uma feira, com sanfoneiros, tocadores de viola, rabeca... No alto-falante do Cinema Rex, tocava o Luiz Gonzaga. Tinha os loucos de feira, um tipo de figura que eu coloquei no filme, encarnado pelo Helder Vasconcelos. E tinha um soldado bravo que fazia medo nos meninos, a gente fugia dele. Uma vez, ele deu uma carreira na gente e acabei me escondendo no cemitério! Todo esse imaginário da minha infância eu introjetei. Depois me mudei para o Recife. Quando meu pai morreu, em 1999, voltei a São Bento do Una e ficava pensando em todos esses acontecimentos. Fui para a fazenda dele e me deparei com uma roupa de Lampião. Eu tinha feito uma participação especial na TV Manchete fazendo o Lampião e peguei a roupa de pagamento, já que não tinha cachê! Foi ali que comecei a escrever e fiz um livro chamado Inacreditáveis histórias verdadeiras, que está perdido em algum HD. No meio das escritas, comecei a
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e fui vitimado pela peste, quando o outro foi pra Budapeste. E decidi: vou aprender essa porra sozinho!
O ROTEIRO
Depois de estudar muito, com conhecimento rudimentar sobre a linguagem do cinema, comecei a escrever um roteiro, do jeitinho que tinha de ser. Voltei à fazenda do meu pai, vesti a roupa de Lampião que tinha guardado lá, fui para um lajeado e entrei em delírios totais, declamando tudo aquilo que depois ia entrar no filme. Fiquei num delírio tão grande, que, daquele dia em diante, passei a contar o roteiro para milhares de pessoas! Enchi o saco de muita gente.
ESTILO
Os cortes nas cenas, do jeito que aparecem no filme, eram uma questão de estilo. Faço cinema de autor, do jeito que eu quero. Na minha música, tem uma parte minha que vem do Nordeste profundo, está tudo na minha cabeça, bem próximo de Luiz Gonzaga. Já ouvi falar que, na produção de algumas novelas, os caras mandam o elenco assistir a tal série antes, para depois fazer parecido. Isso é entretenimento! Na minha cabeça, eu sou mais pela cultura.
INFLUÊNCIAS
fazer alguma coisa parecida com um cordel, mas não sabia o que era.
EM BUSCA DO CINEMA
Um dia, fui ao teatro e encontrei o Walter Carvalho (diretor de fotografia). Ele perguntou se eu estava escrevendo muita música, então mostrei a ele algumas coisas que eu tinha escrito e que pareciam cordel. Ele olhou e disse: “Isso aqui é cinema. Vamos fazer um filme”. Propôs que eu dirigisse com ele. Comecei a ir atrás de editais, junto
com o Tuinho Schwartz (produtor de A luneta do tempo), e pedi a alguns conhecidos meus, que participavam das seleções, que nenhum deles interferisse no projeto só por me conhecer. E aí eu me lasquei! Não fui aprovado em nada. Então, o Walter foi fazer Budapeste (2009) e deixou o projeto. Também conheci o Andrucha Waddington, me aproximei dele, ele se entusiasmou, mas, de repente, e com toda razão, ele foi fazer Casa de areia (2005). Aí eu me enterrei na casa de areia do Andrucha
A obra de Ariano Suassuna deve estar presente em A luneta do tempo, na mesma proporção que Luiz Gonzaga está presente na minha música. Ariano veio de uma região similar à minha, li muito da obra dele, mas nunca conversamos. As histórias que Ariano conta tinham muitas coisas em comum com a minha cidade, a minha infância. Quando o filme chega nos anos 1950, tem a influência do meu hábito de ouvir rádio. E aí estão lá o Cauby Peixoto e o Nelson Gonçalves, que eu mesmo canto com a voz deles e dá para ouvir no radinho dos personagens. No filme, existe o mito de Lampião e tudo que gira em torno dele. Segundo Manoel Messias, economista e sociólogo, Lampião era um pré-revolucionário, como o Che Guevara, apesar de ter sido mais bruto. MARCELO MIRANDA
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ROBERTA GUIMARテウS
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JARBAS MACIEL O recolhimento de um discreto polímata Em fase metafísica e de revisão de conceitos, o professor cujas competências vão da matemática e da física à música e a filosofia, mantém crítica ao Modernismo e faz mea culpa a Chico Science TEXTO Carlos Eduardo Amaral
Foram cerca de duas horas e meia
de conversa. Ao final, já era uma da tarde e sua esposa estava impaciente, querendo que eu liberasse o marido para o almoço. Propus a Jarbas, então, que marcasse outra data para continuarmos (ele próprio gostaria que o encontro se estendesse), porém respondeu que não seria mais possível. No meio da entrevista, já me havia dito que pensara bastante em concedê-la devido a duas coisas: a memória falha e a loquacidade – “eu falo bastante” –, afora a debilidade causada pelos medicamentos que toma para tratar do câncer que o acomete há sete anos. Constantemente, chateava-se com os lapsos de memória e os malestares derivados da medicação. Da loquacidade, a prova foi a resposta à pergunta inicial: “Sua formação foi em quê?” Para contar que se tornou bacharel em Matemática, nos Estados Unidos, demorou mais de meia hora. Mas Jarbas Maciel raciocina exatamente assim, com organicidade, apontando causa e consequência. Essa meia hora de fala primeiro revelou o desejo de ser violinista, depois o vazio intelectual após a saída de seu mentor, Guerra-Peixe (1914-1993), do comando da orquestra da Rádio Jornal do Commercio. O maestro fluminense, que veio para o Recife em 1949, havia sido uma das aquisições para se atingir a meta que a emissora
se impôs: “Ser melhor do que a Rádio Nacional. Ela nunca foi, mas o objetivo era esse”, diz Jarbas, cujo professor de violino, o italiano Rino Visani, também viera do estrangeiro para reforçar os quadros da orquestra. Sempre reiterando sua antipatia ao comunismo e ao socialismo, o exaluno de Guerra-Peixe não deixou de apontar o golpe baixo que o mestre sofrera em 1952: “Pediram a cabeça dele. Entregaram-no, acusando-o de comunista”. E declara que ficou órfão musicalmente do maestro (e seu primeiro professor de composição), da mesma forma que a mãe, Maria Augusta Ribeiro Maciel, antiga estudante de piano, ficara de Ernani Braga, após este deixar Pernambuco por falta de apoio para continuar os projetos musicais que tinha em mente. Quanto ao nome dos bois, ou seja, de quem fechou as portas para Braga e Guerra-Peixe, Jarbas ressalva: “Eu posso ser seu maior inimigo. A gente briga feito gato e cachorro, mas, se você morrer, eu não vou dizer nada que manche sua memória”. O então estudante de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, que havia passado em primeiro lugar no vestibular, só se concentrava nas cadeiras de cálculo e geometria, e decidiu deixar o curso após um ano, para matricular-se em
Física na Universidade da Pensilvânia, cidade onde já moravam irmãos seus. Conseguiu um emprego nos laboratórios de física do estado sólido da Philco, através de um programa de estudantes cooperadores, que lhe custeava os estudos, desde que tirasse notas boas, e passou a lidar com purificação de elementos para transistores, assistindo dois cientistas ingleses: Charles Woods e John Ritchens. Faltando um ano para a formatura, mudou de curso, de Física para Matemática, e finalmente graduou-se. Na primeira mudança de carreira, havia surpreendido a mãe; na segunda, os chefes fizeram de tudo para demovê-lo, sem sucesso também.
MIGRAÇÕES
Uma greve de sopradores de vidros da empresa levou Jarbas Maciel a experimentar e a praticar por algum tempo o glass blowing, com resultados posteriores nefastos. “Eu me envenenei com silício, arsênico, bismuto, telúrio, índio, gálio... Vomitava sangue como um tuberculoso e fui para o hospital amarrado na cama”, detalha. Só veio a descobrir que tinha silicose após a volta ao Brasil, o mesmo problema que acomete os trabalhadores de gesso na Chapada do Araripe: “Até hoje, tenho vapor de silício nos pulmões”.
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REPRODUÇÃO
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CON TI NEN TE
GUERRA-PEIXE
Violinista foi o primeiro professor de composição de Jarbas Maciel
Perfil
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De novo no Recife, Jarbas trabalhou no Departamento de Medicina Tropical da UFPE, como secretário e intérprete, e depois reencontrou a professora Bernardete Pedrosa, que o estimulou a fazer mais um vestibular, agora para Filosofia. Passou novamente em primeiro lugar e, anos mais tarde, veio a ser professor do curso. Na nova graduação, aproximou-se de Ariano Suassuna e participou da gênese do Movimento Armorial, em 1970. Sobre o amigo e escritor, enfatiza o tom profético: “Daqui a 100 anos, Ariano vai ser o cara mais pesquisado, mais lido, mais ‘tesado’ (transformado em tese) do Brasil. Ele conseguiu meter uma broca e furar o subsolo cultural, étnico e etnográfico do país. Foi ao petróleo da cultura brasileira”. A adesão às concepções artísticas de Ariano e Guerra-Peixe implicam uma discordância de Jarbas Maciel com experiências estéticas mais racionalistas. Ele define o serialismo de Schönberg como “uma matemática de muito mau gosto”; diz que Camargo Guarnieri, com quem tentara estudar no final dos anos 1940, “corrompeu-se também” ao passar do nacionalismo ao serialismo nos anos 1960; e admira Marlos Nobre até Rhythmetron, escrita em 1968 para conjunto de percussão. Já o Stravinski dos balés russos não entra nas ressalvas do professor. Conta que
Guerra-Peixe mandava que ele e Clóvis Pereira ouvissem A sagração da primavera, para tentar decorar e reproduzir as complicadas figurações rítmicas da peça, calcada no folclore russo. De modo geral, Jarbas Maciel rechaça as correntes filosóficas e estéticas que não dialoguem com a tradição desde a Grécia Antiga. “O Modernismo e o PósModernismo, eu deletei da minha vida. Esses filósofos são todos uma fraude, uma porcaria. Eles abandonaram o grande tronco da Filosofia.” Franceses do século 20, como Foucault e Derrida, também não recebem palavras amenas.
KARDECISMO
Filho do falecido escritor, professor, advogado e bancário Aurino Vieira de Araújo Maciel, membro das academias alagoana e pernambucana de Letras, Jarbas possui um timbre de voz semelhante ao de Ariano Suassuna, porém difere na fala mais pausada, pensada. Essa inclinação introspectiva faz com que o docente aposentado veja a unidade do conhecimento sob as diferentes manifestações do pensamento, daí seu interesse polimático por música, filosofia, estética, física, matemática e arquitetura. As aulas que ministrou na UFPE, por outro lado, nunca se transformarão em apontamentos ou livros: “Eu não
preparava aulas, eu lia os livros e me conectava com os filósofos”. Ano passado, antes de completar os atuais 81 anos de idade, sentiuse pronto para abraçar a doutrina kardecista. “Se a pessoa não está preparada, aí vai ser assaltada por tudo quanto é de ‘mundiça’ do outro mundo, porque há. Isso aqui é um mundo de expiação”, acredita. Nos últimos tempos, além das leituras kardecistas, Jarbas Maciel empreendeu o que chama de “um mergulho no inferno” contra o ateísmo militante contemporâneo: “Eu vou ler todos os materialistas, racionalistas... tudo isso é muito pobre, é de uma pobreza extrema”. O cerne da questão, segundo o professor, encontra-se no próprio conceito de matéria: “Se eles são honestos, são competentes, então a ciência lhes mostra que nós não sabemos ainda o que é a matéria”. Nos 15 minutos finais de conversa, voltamos a tratar de música, pois Jarbas haveria de almoçar e ainda não tínhamos falado sobre música armorial. Novamente lhe perguntei se nos encontraríamos depois, mas ele disse polidamente que se recolheria e não daria mais entrevistas, apenas receberia a fotógrafa enviada pela Continente. Antes da despedida, uma mera palavra desencadeou uma confissão emblemática: “Koellreutter (introdutor do serialismo no Brasil) vem pra cá jogar essa... eu não digo lama porque Chico Science fez essa coisa genial que é Da lama ao caos. Lama agora é um negócio sério...”. Intervim logo e lembrei-lhe que, em nossa primeira entrevista (em 2002), ele havia chamado a música de Chico Science de “uma mixórdia para despistar a incrível pobreza do produto final”. Então veio o inesperado mea culpa: “Eu estava totalmente errado... Totalmente errado...”. Após as duas frases pausadas, refletiu: “Aquilo foi muito mal. Praticamente o desmoralizamos (ele e Ariano Suassuna)... Fui muito superficial... Não examinei direito...”. Relembrou a origem do equívoco: “Eu tinha ouvido uma música dele e falei ‘não é por aí’, mas era”. E, antes de me conduzir ao elevador, humildemente admitiu: “Ariano, ao falar com ele, estava totalmente por fora; eu também”.
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HALLINA BELTRÃO
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CRÍTICA Uma relação de amor e ódio
Jornalista Gilles Pudlowski relata sua experiência enquanto aponta a profissionalização de chefs e comensais TEXTO Renata do Amaral
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Para que serve um crítico gastronômico?
A pergunta que compõe o título do livro de Gilles Pudlowski é uma provocação, ainda mais quando sabemos que se trata de uma obra escrita por um... crítico gastronômico. Com a escassez de bibliografia sobre o tema (não apenas no Brasil, digase de passagem), o livro do jornalista francês, lançado pela recém-criada editora Tapioca, vem a calhar tanto para quem pensa em ingressar na profissão quanto para quem costuma ler esse gênero jornalístico, que ocupa cada vez mais espaço nos cadernos de cultura e suplementos de gastronomia. Ao relembrar sua carreira, Pudlowski desfaz alguns mitos e conta anedotas curiosas sobre os bastidores do ofício. “Quando eu era jovem, em início de carreira, ser crítico de gastronomia não era um motivo de orgulho. Christian Millau e Henri Gault, meus gloriosos antecessores, levantaram o nível, sem dúvida. Sob o comando deles, não se tratava mais de louvar o ‘delicioso Fernand e sua amável Germaine’, mas de criticar cruamente um molho ou um prato, denunciar as flambagens abusivas, os molhos miseráveis, os cozimentos insistentes e os produtos de baixa qualidade. Em suma, não era apenas fazer elogios do gênero, mas atuar como os Zorros da profissão. E foi com eles que fiz minha estreia”, lembra. Hoje, Pudlowski tem seu próprio guia, o Pudlo, e colabora com revistas e jornais franceses. Foi justamente Christian Millau quem lhe contou o segredo de ser crítico gastronômico: “Nessa profissão, as pessoas sabem comer ou escrever, raramente as duas, às vezes nenhuma delas. Se você souber fazer as duas, certamente terá sucesso”. O ofício estava longe de ser incensado por seu pretenso glamour, como atualmente. “Essa profissão de louco é muito mais fácil de ser praticada hoje do que na década de 1980, quando a qualidade era ainda uma promessa, a nova cozinha (nouvelle cuisine) estava em seus primórdios, de cozimentos rápidos, caldos reduzidos, molhos leves, legumes e peixes frescos, aves rotuladas e cozinha de mercado”, afirma Pudlowski. Adorado (e às vezes invejado) pelos leitores e odiado pelos chefs e
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1 GILLES PUDLOWSKI Crítico colabora com revistas e jornais franceses, além de ter o próprio guia 2-3 MILLAU E GAULT Os dois foram responsáveis por elevar o nível da crítica na área 4 GUIAS Há os que classificam os restaurantes com notas e estrelas e os que trazem textos mais aprofundados
restaurateurs, cabe ao crítico situar as pessoas sobre o cenário gastronômico. Nesse contexto, sempre haverá os melhores e os piores. “Ser crítico e estabelecer hierarquias é uma concomitância. E isso, evidentemente, não agrada a todo mundo. Mas serve principalmente ao leitor, para esclarecer suas escolhas”, avisa. Responsável pelo prefácio do livro, o editor de gastronomia da Veja São Paulo, Arnaldo Lourençato, completa: “Há algo insubstituível no trabalho do crítico profissional: a intimidade proporcionada com a rotina do trabalho. Essa repetição sistemática de visitas permite observar a evolução de um restaurante, sua ascensão ou queda”. Um dos temas mais polêmicos, quando se fala de crítica gastronômica, é o anonimato. Ao contrário de outros produtos culturais, como um livro ou show, a refeição pode ser alterada (leia-se melhorada) pela presença de um avaliador no local. É o que defende, por exemplo, o Manual da Redação da Folha de S.Paulo, que recomenda que o profissional não se identifique. Pudlowski discorda: “O incógnito, falemos disso! Naturalmente, se ele existe, julgará o restaurante com uma discrição exemplar. Se ninguém o reconhece, ele será servido ‘como todo mundo’, sem privilégios e talvez numa mesa ruim. (...) Mas a cozinha será a mesma, e o chef não se revestirá de um talento súbito, caso o crítico seja reconhecido”.
Diferentemente de hoje, nos anos 1980, a crítica gastronômica estava longe desse pretenso universo de glamour De todo modo, os veículos para os quais trabalha pagam sua conta. Para ele, até mesmo o contrário às vezes acontece: em vez de melhorar o prato, o chef entra em pânico e não consegue cozinhar a contento. “Aliás, a visita de um crítico gastronômico a um restaurante poderia ser comparada à de um diretor escolar a uma classe com seu professor e alunos”, diz. O que importa é que o crítico nunca esqueça sua missão: “Encontrar a fórmula ou as fórmulas que duram, que desaparecem, permanecem ou voltam, mas sobretudo que permitem identificar as vontades de uma época – esse é o papel de pedagogo que desapareceu no crítico gastronômico. Ele deve permitir ao cliente identificar seu desejo”. Se a crítica atual vem cumprindo seu papel, são outros quinhentos.
TIPOS
Além das críticas textuais, há as críticas numéricas, baseadas em notas ou estrelas, acompanhadas ou não de informações por escrito. O sociólogo americano Grant Blank, no livro Critics,
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ratings and society: the sociology of reviews, distingue dois tipos de resenhas: de procedimento (procedural review) e de conhecimento (connoisseurial review). A primeira é uma avaliação institucional que se caracteriza pela aplicação mecânica de um procedimento, cujos métodos devem ser transparentes para os leitores. Já a segunda é baseada nas escolhas pessoais do autor da crítica, que deve ser um especialista no assunto. Além de analisar o produto em si, busca contextualizá-lo. Lançado em 1972, na França, o guia Gault&Millau é uma mistura dos dois tipos. Enquanto o guia Michelin concede de uma a três estrelas, o Gault&Millau dá notas até 20 para a comida. Mas a grande diferença é que a dupla sempre caprichou nas críticas, enquanto o “guia vermelho” até pouco tempo não trazia comentário algum (e ainda hoje se destaca pela síntese). A influência deles tem sido tão grande, que inventaram a expressão nouvelle cuisine. Isso por meio de um artigo de 1973 que definia seus 10 mandamentos, tais como não cozinhar demais os alimentos, usar produtos frescos e de qualidade, evitar molhos gordurosos, cuidar da apresentação dos pratos e ser inventivos. O guia Michelin, porém, foi o primeiro a avaliar sistematicamente os restaurantes, em vez de apenas mencioná-los ou descrevê-los como seus antecessores. Criado em 1900, é considerado até hoje o mais influente guia gastronômico europeu.
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Cardápio De acordo com a empresa, a rotina de avaliação se baseia em quatro princípios desde seu lançamento: as visitas aos estabelecimentos são anônimas, a seleção de casas atende a todas as categorias de preço e conforto, o pagamento das contas garante a independência dos inspetores e existe atualização anual para assegurar a exatidão das informações. O destaque, porém, vai para os restaurantes que recebem de uma a três estrelas por sua excelência. Uma lista bem mais recente, criada em 2002, vem ganhando relevância nos últimos anos: os 50 melhores do mundo, divulgados pela revista britânica Restaurant. Os números da votação impressionam: eles dividiram o mundo em 26 regiões, cada uma com um júri de 36 membros, entre críticos, chefs, restaurateurs e foodies. No total, são 936 votantes com direito a sete votos cada um – ou seja, nada menos que 6.552 votos. Não há critérios predefinidos: os jurados podem escolher qual quiserem, desde que tenham visitado o local nos 18 meses anteriores. Três dos sete votos devem ser de fora da região do jurado. A lista é divulgada na edição de abril da revista e também em um guia anual. Em breve, os foodies brasileiros vão poder ir a um três estrelas sem sair do país: o Michelin começa a circular no Brasil em 2015, incluindo as capitais Rio de Janeiro e São Paulo. Os restaurantes DOM e Maní, respectivamente 7º e 36º na lista dos 50 melhores do mundo, devem receber estrelas. Mas, para quê, mesmo, serve tudo isso? Deixemos a palavra final aos veteranos Gault e Millau, em seu livro Gault et Millau se mettent à table: “Restaurateurs e hoteleiros, por razões que ainda nos escapam, julgam-se imunes à crítica, à exceção da complacência; eles se apoiam na lei divina e acreditam não ter defeitos ou fraquezas”, diz a dupla. Para se contrapor a isso, serve a crítica gastronômica.
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CATALÃO Experiência sensorial Restaurante El Celler de can Roca frequenta listas de melhores do mundo e surpreende o público a cada garfada
Cozinha espanhola moderna,
para a revista britânica Restaurant. Cozinha criativa, para o guia Michelin. Cozinha de estilo livre, para os três irmãos que comandam El Celler de can Roca. Não é mesmo nada fácil definir qualidades que o levaram ao título de melhor restaurante do mundo em 2013 e segundo melhor em 2014 pela Restaurant, além de ter sido contemplado com três estrelas pelo Michelin desde 2009. Joan, Josep e Jordi Roca afirmam fazer parte da vanguarda criativa, sem renunciar à memória
nem ao diálogo com produtores e cientistas. Ainda assim, tantas palavras não chegam nem perto do que acontece naquela casa de Girona, na região da Catalunha, na Espanha. São necessários 11 meses de antecedência para reservar uma mesa entre aquelas paredes de vidro, cercadas por um extenso jardim. Mantendo sua tradição monossilábica, o Michelin diz apenas que “Esta casa familiar valoriza uma sala triangular, de estética moderna, envidraçada, em torno de um jardim interior e
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FAMILIAR
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VANGUARDA CRIATIVA
Os irmãos Joan, Josep e Jordi comandam o restaurante que já foi eleito o melhor do mundo Os pratos da casa, como esse cordeiro na brasa, utilizam as novas técnicas espanholas na cozinha
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uma adega singular, equipada com diferentes espaços sensoriais. Cozinha criativa de excelente nível, interessante e sugestiva” (sim, dedicam mais linhas para o ambiente do que para a comida). Por mais bonito que seja o espaço para a qual o restaurante se mudou em 2007, não é ele, definitivamente, a atração principal. El Celler de can Roca foi fundado em 1986 pelos irmãos Joan, 50 anos, e Josep Roca, 48 anos – um, cuidando da cozinha, outro, tomando conta dos vinhos e do salão. O temporão Jordi, 36 anos, veio se juntar a eles em 1998, passando a ser responsável pelas sobremesas. Não era a primeira experiência da família com restaurantes: a casa foi fundada bem ao lado do bar e restaurante Can Roca, dos pais do trio, criado em 1967 e ainda hoje de pé. A hospitalidade familiar se revela também no Celler, em que os estrelados irmãos passam de mesa em mesa para saber se está tudo bem. É surpreendente como os comensais se sentem em casa tão logo cruzam a porta. Na chegada, é oferecido um espumante da casa – que aqui
significa feito especialmente para ela pela vinícola. A mesa precisa concordar na escolha dos menus: há o Clássicos (155 euros) e o Festival (190 euros). A escolha comum se deve à duração do jantar, pois enquanto o primeiro termina em uma hora e meia, o segundo demora cerca de três horas. Optamos pelo segundo e fomos atendidas em bom português por uma garçonete simpática, mas nunca invasiva, que explicava os pratos um a um. Muitos eram pensados para ser comidos com a mão, ao contrário do que o senso comum espera de um local tão requintado. Foram 14 etapas, sem contar as várias entradas, seguidas por um café no jardim. O menu é uma amostragem de tudo que você já ouviu falar sobre as técnicas culinárias da nova cozinha espanhola, porém, o sabor dos ingredientes se sobrepõe a qualquer malabarismo. As surpresas se multiplicam. Um delicado consomê primaveril (consomê vegetal à baixa temperatura com brotos, flores, folhas e frutas). Uma inesperada salada de anêmona, concha navalha, pepino do
mar e algas escabechadas. Sabores do mar e da montanha na sardinha com papada de porco, caldo das espinhas na brasa, molho de leitão e azeite de cerefólio. Quase etéreo, mas de gosto pungente, é o sorbet de aspargos brancos e trufa. O lagostim vem ao vapor do vinho Palo Cortado com caramelo de xerez. As sobremesas são uma atração à parte. Mais surpresas na salada verde (e doce) de ervilhas, alcaçuz e funcho. A brincadeira fica por conta do sorvete de massa-mãe com polpa de cacau, lichias salteadas e macaron de vinagre de xerez. “Vocês vão provar uma sobremesa viva”, diz a garçonete. Por causa da fermentação, a massa sobe e desce. A Anarkia de Chocolate traz o doce em mais de 10 versões, intensidades e texturas. O carrinho de petit-fours que acompanha o café ou o chá (a carta de chás é quase tão extensa quanto a de vinhos) traz mais chocolates, macarons e até jujubas artesanais, mas tudo elevado a outro patamar, desconstruindo tudo que já se viu. Uma experiência que vale cada centavo. RENATA DO AMARAL
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JAMES RACKWITTZ/REPRODUÇÃO
Sonoras
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JOCY DE OLIVEIRA Intimidade com os gênios Em Diálogo com cartas, compositora e pianista expõe correspondência com alguns dos principais gurus da música de concerto do século 20
1 EM 1966 Jocy com Stravinsky, durante ensaio nos EUA 2 DE STRAVINSKY ”Meus melhores agradecimentos pela execução do Capriccio”
TEXTO Carlos Eduardo Amaral
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Outros dois capítulos são centrados nas óperas de Jocy e na música contemporânea. Um recapitula o processo de criação dos dramas musicais que ela compôs, os quais sempre têm uma mulher como protagonista, e o outro comenta os principais marcos e movimentos da música de concerto ao longo do século passado, para tentar responder a questão “a música experimental ainda existe?” e indicar caminhos (a compositora argumenta, certa hora: “Vivemos numa época visual. Entretanto, nossos concertos não mostram preocupação alguma com o ato teatral de uma performance”). 2
O hipocondríaco Igor Stravinsky, o mulherengo contumaz Luciano Berio, o versátil Lukas Foss, o errante Claudio Santoro, o místico Olivier Messiaen, o irreverente John Cage, o megalomaníaco Karlheinz Stockhausen e o meticuloso Iannis Xenakis. Costumamos ver o nome desses compositores apenas nos livros de história da música (mesmo assim, nunca o de todos os oito juntos, pois Foss só alcança alguma repercussão nos Estados Unidos, e Santoro, aqui no Brasil) e sem adjetivos que se refiram às suas personalidades (os quais realmente não interessam, quando se fala da obra deles). Apenas agora, com as memórias de Jocy de Oliveira no recém-lançado Diálogo com cartas, uma nova linha narrativa passa a ser costurada entre eles, enriquecida – ao menos para o público brasileiro – por uma privilegiada perspectiva pessoal, que começou a ser construída em 1956. Claro que não ficaria faltando, seja em meio às histórias de Jocy com cada um, seja em um capítulo à parte, o sisudo e sarcástico maestro Eleazar de Carvalho, primeiro marido da pianista que, a partir do final dos anos 1960, foi abraçando aos poucos a opção pela criação musical em detrimento de uma carreira de intérprete consolidada e elogiada por todos os compositores citados. Enquanto Jocy encarava
partituras ultra-arrojadas, algumas a ela dedicadas, Eleazar ia preparando uma nova geração de regentes, que ocuparia os principais estrados de orquestra do Brasil e do mundo, e deixando “causos” impagáveis para a posteridade, como o do encontro com a rainha Elizabeth da Bélgica e o da falsa morte de Camargo Guarnieri, após o rompimento com o compositor paulista. O primeiro capítulo do livro – e o mais longo – contemplou , respectivamente, Igor Stravinsky
Publicação reúne cartas – que vão das mais triviais às mais extensas –, criando narrativa a partir de perspectiva pessoal e Luciano Berio (há um capítulo ainda maior, intitulado Histórias de bastidores, mas que foi subdividido em quatro, abarcando Santoro, Foss, Stockhausen e Xenakis). Ambos foram os personagens principais de dois espetáculos multimídia que Jocy escreveu, à medida que ia organizando Diálogos com cartas: revisitando Stravinsky (2011) e Berio sem censura (2012), em que o público pôde conhecer uma parcela das correspondências e fotos agora publicadas.
EPISTOLAR
A estratégia textual do livro (à exceção do capítulo sobre as óperas da autora) é simples: ir expondo cronologicamente as cartas recebidas de cada músico e intercalando comentários e contextualizações a elas. Felizmente, os testemunhos de Jocy não dão vez para pudores desnecessários, que poderiam jogar para debaixo do tapete episódios embaraçosos e polêmicos, e assim fazer média com os herdeiros e admiradores dos compositores. Ao mesmo tempo, ela evitou fofocas e intrigas labirínticas, oferecendo, em vez disso, análises interpretativas e composicionais valiosíssimas, em especial as que fez sobre as fases estéticas de Claudio Santoro, as fontes musicais de Messiaen e o papel crucial de Cathy Berberian para a descoberta de sonoridades vocais na obra do então marido Luciano Berio. As cartas vão das mais triviais comunicações, como um pedido de notícias de vida ou uma justificativa pela demora na resposta, até relatos mais extensos, feitos durante alguma folga, que falam de planos de viagem, propostas para concertos e gravações de discos, impressões sobre cidades distantes, angústias e tudo o mais, até os galanteios descarados e recorrentes de Berio e as detalhadas exigências de Stockhausen para vir se apresentar no Rio de Janeiro em 1988. Além da transcrição no idioma original e da tradução na íntegra, os escritos estão todos reproduzidos fotograficamente, alguns servindo de base para o projeto gráfico do livro, o que permite uma análise extra aos mais curiosos, pela
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caligrafia ou pela estruturação do discurso à mão. Essa análise não tem como ser aplicada a Stravinsky, pois todo o diálogo que o envolve se dá entre Jocy de Oliveira e Robert Craft, pupilo e fiel escudeiro do gênio russo e de sua esposa Vera. Robert, Vera e Igor, como aponta a compositora, mais formaram uma entidade tríplice, cujo porta-voz foi (ou melhor, continua sendo) Robert, que abriu mão da própria vida profissional e pessoal para assumir essa missão. Dois encontros de Jocy com Stravinsky – em 1963, na segunda vez em que o músico esteve no Rio de Janeiro, e três anos depois, em Saint Louis, quando Eleazar de Carvallho regia a sinfônica daquela cidade norte-americana – também a guiaram na reconstrução das memórias do capítulo inicial; o primeiro deles, registrado em um diário pessoal que ficou guardado até 2007, quando Diálogo começou a ser gestado após receber bolsa da Rockfeller Foundation.
PASSAGENS HILARIANTES
Um dos diálogos mais interessantes das mais de 400 páginas de memórias é o do impasse entre Jocy e Xenakis para a execução de Synaphai, peça para piano e orquestra que o romeno-francês escreveu para ser interpretada por ela. Estudando a fundo a complexa partitura que lhe foi entregue, na qual a parte para piano trazia um pentagrama para cada dedo (algo que só um ciborgue conseguiria ler e tocar comodamente), Jocy chegou a reduzi-la para os convencionais dois pentagramas, porém esbarrou na exigência de Xenakis de que tivesse consigo a parte com 10 pentagramas durante a execução. Quem cedeu? Só indo à página 357 para tentar saber. Pitoresca é a passagem de John Cage pelo Brasil em 1985, junto com seu companheiro Merce Cunningham, marcada pelo aperreio com a falta de comida macrobiótica, pelas partidas de xadrez nas horas livres e pela estranheza da culinária nacional. Sua mais inusitada reação, contudo, se deu ao ouvir uma apresentação de um dos maiores mitos da música brasileira: “Ao chegar a São Paulo,
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levaram-me a um concerto sem pé nem cabeça de um homem barbudo, com longos cabelos brancos, tocando uma música que doía nos ouvidos de tão forte, e, após este desastre, ainda me arrastaram para comer uma comida preta chamada feijoada!” – palavras que poderiam se esperar de qualquer compositor, menos daquele que foi o mais incompreendido da história, graças aos quatro minutos e tantos segundos de silêncio que transformou em música. Talvez esse “causo” de Cage só perca em bom humor para o dos biscoitos “premiados” que Lukas Foss comeu antes de um concerto. Das contribuições brasileiras mais notáveis aos episódios do livro, estão a “peixada” e a macumba. Um passeio que Jocy sempre programou como anfitriã no Rio de Janeiro foi para terreiros em favelas e subúrbios, tendo levado até mesmo o polido Stravinsky para conhecer os rituais sincréticos afro-brasileiros, mas não fora ele o mais bem-impressionado com as religiões de matriz africana. Já o apadrinhamento ficou por
3 REGENTE Eleazar de Carvalho foi o primeiro marido da pianista
conta de Eleazar de Carvalho, que primeiro concedeu um prêmio a Claudio Abbado como melhor aluno da temporada no famoso curso que o cearense dirigia em Tanglewood, e, tempos depois, direcionou uma banca julgadora de um concurso de regência para dar a vitória ao italiano. Jocy de Oliveira, que teve o privilégio de conviver profissionalmente com compositores de ponta da vanguarda europeia e norte-americana, e de estrear e gravar obras deles, queixa-se de que ainda está por se escrever uma história da música sob a perspectiva feminina (que inclusive a reconheça como pioneira da música eletroacústica no Brasil). É verdade, mas Diálogo com cartas, mesmo descontadas as predominantes conversas mais pessoais, toma a dianteira nessa direção – senão como estudo acadêmico, ao menos como indispensável subsídio para tal.
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REPRODUÇÃO
AVE SANGRIA O desbunde, 40 anos depois
Depois de décadas, a banda
Show marca o relançamento de álbum icônico do rock pernambucano, reunindo os remanescentes do mítico grupo dos anos 1970 TEXTO Fernando Athayde
pernambucana Ave Sangria retorna às origens, com apresentação no Teatro Santa Isabel, no centro do Recife, no dia 2 de setembro. Tal “ressurreição” não somente marca uma cativante e íntima visita à música de outra época, mas pontua um acontecimento histórico: o relançamento do homônimo, primeiro e único disco de estúdio do grupo, de 1974, em vinil e CD, além do áudio do show Perfumes y baratchos – famoso por ser a última performance da banda, acontecida há exatos 40 anos, no mesmo Santa Isabel. A produção do projeto é do selo musical Ripohlandya, formado em 2011 pelos membros da conterrânea banda Anjo Gabriel. Surgida e finada na década de 1970, a Ave Sangria existiu numa época tão fértil quanto sinuosa para a produção artística no Brasil. Contemporânea de grupos geniais como Clube da Esquina e Novos Baianos, tornou-
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
Sonoras
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1 MARCO POLO Compositor e cantor do grupo 2 AVE SANGRIA Disco foi recolhido pela censura em 1974
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se um marco na história da música brasileira, sobretudo em Pernambuco. Um tempo em que arte e política se relacionavam de forma delicada. Irreverente e performática, a banda se manteve na memória de admiradores, pela postura corajosa de cantar ideias à frente do próprio tempo. Canções como Seu Waldir – que, à época, foi responsável pelo recolhimento de todos os discos do conjunto que estavam à venda, pelo Departamento de Censura da Polícia Federal – demonstram bem a relação que os membros tinham com a arte: “Eu trago dentro do peito/ Um coração apaixonado/ Batendo pelo senhor/ O senhor tem que dar um jeito/ Senão eu vou cometer um suicídio/ Nos dentes de um ofídio vou morrer”. Curioso fenômeno, o da permanência da Ave Sangria – da mesma geração de Alceu Valença e Lula Côrtes – no apreço dos fãs dos anos 1970, sobretudo pela circunstância de ter tido apenas um disco lançado (tornado “mito”, pela sua supressão). Mais curioso, talvez, o fato de a banda não ter ficado no “passado”, mas de ter sido “redescoberta” pelas pelas novas gerações.
“O povo redescobriu o disco por causa da internet. Inclusive, aqui no Recife, está havendo uma espécie de movimento neopsicodélico, com grupos e artistas como Anjo Gabriel, Dunas do Barato, Semente de Vulcão e Tagore, que citam o Ave Sangria como uma de suas principais referências”, explica o vocalista, jornalista e poeta Marco Polo Guimarães. Ele ainda conta que boa parte dessa popularidade advém de um show em 2008, no Sábado mangue, projeto da prefeitura do Recife, que reuniu, pela primeira vez em anos, o repertório do LP de 1974. Em 2011, foi a vez da apresentação Pirata solitário, que homenageou o intérprete e reuniu, no mesmo palco, diversos artistas da cena pernambucana de gerações distintas, como o cantor e compositor Tagore. “Participar desse show foi um marco para mim, enquanto artista e fã”, afirma o músico, que regravou Dois navegantes, faixa de abertura do LP Ave sangria. Após essa retomada da Ave Sangria, não demorou para que propostas de uma possível volta do grupo surgissem. Ainda em 2011, a banda se apresentou ao lado da Anjo Gabriel no festival
Psicodália, em Santa Catarina, mesmo que somente com o cantor Marco Polo, da formação original. Agora, sob a criação do selo Ripohlandya, a própria Anjo Gabriel deu um importante passo para trazer ao presente a icônica banda pernambucana. Por meio de um projeto que conta com o incentivo do Governo do Estado de Pernambuco, através do Fundo Pernambuco de Incentivo à Cultura, o grupo preparou o relançamento, não só do único e homônimo disco da Ave Sangria, mas também do registro do último show da banda, Perfumes y baratchos, cujo áudio original permaneceu intacto por 40 anos e configura, hoje, aquilo que se tornou uma lendária apresentação. O show deste setembro reúne dois terços da formação original da banda, composta pelo cantor Marco Polo, pelos guitarristas Paulo Rafael (que, desde a dissolução do grupo, acompanha Alceu Valença) e Ivson Wanderley, e o baixista Almir de Oliveira. Além deles, foram recrutados da Orquestra Contemporânea de Olinda os músicos Juliano Holanda e Gilú Amaral, além do baterista Do Jarro, a fim substituir Israel Semente, falecido em 1995, e Agrício Noya, incapacitado de participar por motivos de saúde. Os álbuns, lançados em CD e LP, contam com as artes originais da época e traduzem o espírito da banda. Mais que uma reconstituição histórica, a iniciativa se destaca por conceber a realização de um projeto há tempos desejado, que só agora pôde ser realizado.
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INDICAÇÕES IMAGENS: DIVULGAÇÃO
EXPERIMENTAL
ÉTNICA
AYRAN NICODEMO Pedra Cigana Independente
Inspirado pela riqueza melódica da música cigana, Ayran Nicodemo lança o primeiro CD como intérprete e compositor. À exceção do arranjo livre de Hora de la munte, do folclore romeno, as demais faixas são de autoria do violinista mineiro radicado no Rio e perpassam a variedade de expressões festivas que as escalas modais ciganas transmitem.
Quarteto
A VOLTA DO SLINT
FEITICEIRO JULIÃO Mácula Independente
Feiticeiro Julião, o alter ego do compositor e multiinstrumentista Júlio Castilho, ataca novamente. Empossado de mil e uma sonoridades, instrumentos e ideias, o músico transforma Mácula, seu segundo trabalho, num espaço de ritmos e experimentações. Além disso, o artista atesta sua relação com a criação visual, ao lançar o videoclipe da música Tênue, uma colagem de gameplays de jogos da geração 16 bit.
Ninguém quer ficar de bolsos vazios. Essa enxurrada de continuações, refilmagens e ressurreições dos símbolos da cultura pop, porém, aloca-se num caminho paralelo ao que tomou a recém-anunciada volta da banda norte-americana Slint. O grupo, aclamado como um dos precursores do gênero post rock, nunca ficou rico. Quando lançou o segundo disco de carreira, Spiderland (1993), o quarteto havia entrado em estúdio sem músicas prontas, por pura necessidade. O resultado foi uma das obras de arte mais desconcertantes da indústria fonográfica. O legado veio com o tempo e não atrelado a um hit mundial. A volta da banda é para dar vazão àquele mesmo sentimento que os tomava nos anos de ouro, de precisar tocar para dar sentido à própria vida. Ganhar uma grana em cima disso é mais que justo. FERNANDO ATHAYDE
INIDE
ICEAGE You are nothing
Há 10 anos dando sinais de que ia voltar a lançar um álbum de inéditas, o Pixies finalmente saiu de cima do muro com este aclamado disco. Mais que um lançamento convencional, Indie City é a prova de que, mesmo sem a carismática e temperamental baixista Kim Deal e quase três décadas após a veiculação de seus singles mais genias, a banda ainda funciona. Frank Black, líder nato, cantor e compositor do grupo, parece incapaz de escrever uma música ruim.
Música para sofrer. Agoniante como o instante que precede a pior das notícias, o segundo disco desta banda dinamarquesa é uma ponte para revisitar a sonoridade e a atmosfera depressiva das bandas de post punk da década de 1980. Ainda assim, consegue soar atual ao não se render a timbragens enclausuradas pelo tempo. A empostação vocal do cantor Elias Bender Rønnenfelt representa bem o que é o grupo.
PIAS Recordings
Aegea
BILLY CORGAN ENLOUQUECIDO Gênio na década de 1990, Billy Corgan conseguiu, à frente do Smashing Pumpkins, escrever letras, cantar e tocar guitarra de um jeito tão pessoal quanto tecnicamente único. Nos seus anos de glória, viu multidões entoarem em coro versos como “Emptiness is loneliness/ and loneliness is cleanliness/ and cleanliness is godliness/and god is empty just like me”, da canção Zero. Depois que o Pumpkins acabou, em 2000, veio a público quem inspirava as estrofes de Corgan: ele mesmo. Revelado um narcisista, o músico se meteu em enrascada após enrascada, chegando a reviver sua banda sem nenhum integrante da formação original e gravar músicas ruins com ela. Entre outras façanhas, a sua última bola fora foi o lançamento de segundo disco solo Aegea, um apanhado de bizarrices eletrônicas tão ruins, que é capaz de traumatizar os fãs da música experimental. (F.A.)
ALTERNATIVO
PIXIES Indie City
Matador Records
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FLORA PIMENTEL
Palco MEMÓRIA O teatro como resistência Atuando hoje como arte-educadora, atriz Maria Rita Freire da Costa remete-se à atualidade da ação combativa da cena nos anos 1970 TEXTO Laís Araújo
Aos que intencionavam montar
uma peça teatral durante o regime militar brasileiro, existia um caminho oficial: enviar o roteiro para a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), que eliminava os trechos considerados subversivos e contrários à moral ou proibia o espetáculo por inteiro. Por vezes, a Divisão enviava censores para assistir à peça previamente,
conferindo possíveis “problemas” na montagem, além de também fazer visitas durante a montagem oficial, verificando que nada saíra do combinado. Numa dessas apresentações prévias, a atriz pernambucana Maria Rita Freire da Costa acabara de encenar a tragédia grega Antígona, quando presenciou um dos momentos mais memoráveis do órgão repressor:
precisou segurar o riso, quando um militar questionou o diretor João das Neves sobre onde estava Sófocles, pois iria prendê-lo naquele momento. “Estávamos acostumados com a censura. A gente já sabia que sempre tinha algo que ia ser retirado, mas aprendemos a utilizar as entrelinhas para entregar ao público o mesmo sentido”, conta Maria Rita, que começou no teatro como adolescente, em Camaragibe, e estreou no antigo Teatro Universitário de Pernambuco (TUP) com a montagem de Morte e vida severina, texto de João Cabral de Melo Neto e direção de Milton Bacarelli, em 1965. Participou depois de Viva o cordão encarnado e Prometeu acorrentado. Ela explica que existiam duas correntes principais e opostas no Recife: o teatro protagonizado por Valdemar de Oliveira, tido como conservador, mas causador de rupturas no cenário teatral da região; e a corrente de Hermilo Borba Filho,
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ACERVO MARIA RITA FREIRE DA COSTA/REPRODUÇÃO
A MÃE REPUGNANTE
Por conta da censura, o diretor Claude Régy teve que suprimir o adjetivo do título da peça de Istanislaw Ignacy Witkiewicz
avant-garde, revolucionária. “O Recife era muito rico artisticamente e as apresentações atraíam muita gente, mas eu já pensava em parar com o teatro. Com o apoio de colegas, decidi ir ao Rio de Janeiro, entrando no Conservatório Nacional de Teatro. A cidade fervia do ponto de vista político, artistas não podiam falar nada e a censura era rígida. Mas também existia uma troca muito grande, um entrosamento entre as pessoas. Era o auge de Chico Buarque e Milton Nascimento, por exemplo, e tudo dialogava.” Em seu primeiro papel no Rio – onde ela conta nunca ter presenciado indicações para a composição de elenco, mas, sim, enormes audições que lotavam calçadas e escadarias –, já presenciou o episódio tragicômico da censura. Entre as técnicas utilizadas para driblar esse tipo de repressão, estava a expressão corporal, proposta inicialmente por Klauss e Angel Vianna, bailarinos com quem manteve uma relação de amizade e aprendizado. “Eles foram pioneiros nessa proposta de conhecer seu próprio corpo, deixálo falar e expressar suas ideias. A gente conseguia dizer muito através dos gestos, aprendemos a transparecer significados com a imagem, a luz, a trilha. Foi muito inovador e importante.” Em consonância com os ensinamentos dos bailarinos, no início da década de 1970, Maria atuou em Os construtores de império, de Boris Vian, dirigida por Jacques Thiériot (que, em 1975, a levaria para a França, para encenar Índia song, de Marguarite Duras); A mãe, de Stanisław Ignacy Witkiewicz, sob a direção de Claude Régy (que precisou suprimir o adjetivo “repugnante” do título), que causou comoção com sua leitura expressionista do esfacelamento familiar e rendeu a Maria Rita prêmio de atriz revelação; além de Casa-grande & Senzala, dirigido por Luiz Mendonça, e O bordel da salvação, por João das Neves.
TEATRO OFICINA
Em 1972, Maria Rita participou pela primeira – e última – vez de um espetáculo do Teatro Oficina montado
A carreira da atriz pernambucana teve seu ápice no auge da vigência da repressão à produção artística, com a censura prévia no Rio, Gracias, señor!, com oito horas de duração e dividido em dois dias de apresentação. Hildegard Angel, irmã de Stuart Angel, assassinado pela ditadura, estava no elenco, o que levou alguns ensaios a serem realizados na casa de Zuzu, sua mãe. “Eu separo a importância extrema de Zé Celso e do Teatro Oficina para o contexto político e artístico do que lembro dele como diretor. Apesar de ter me tornado uma atriz mais criativa, ele era muito tirano, trabalhávamos extenuantes 12 horas por dia, e boa parte do elenco ia desistindo durante os ensaios. Começávamos com muita gente e era assim que a seleção do elenco era feita: desistência dos próprios atores.” Maria Rita conta que Stuart Angel estava desaparecido há poucos meses e que isso era tema recorrente na criação do espetáculo. Um dia, durante um ensaio, ela caiu do palco e quebrou a perna, num momento que a atriz
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considerou um “limite”. “A cena consistia basicamente em nós, cerca de 30 pessoas do elenco, sendo os algozes militares, e a Hilde no papel do preso, do militante, como seu próprio irmão. Dezenas de atores avançavam em cima dela, gritavam, era muito forte. Após essa cena, ela saiu da peça.” Maria Rita Freire prosseguiu no espetáculo, apesar da relação estremecida com o diretor. Explica que, antes de todas as apresentações, o elenco seguia a pé, em silêncio e em fila indiana, para o teatro, onde o espetáculo era organizado com marcações, mas sempre baseado no improviso. “Havia ideias inovadoras e interessantes. Rapidamente, o mesmo ator que era a vítima virava o algoz. Uma analogia clara de como a ditadura funcionava também aparecia no palco: tentavam seduzir os personagens pela propaganda, jogando roupas, produtos, nos melando com ketchup, e sempre havia reação. Em seguida, vinha uma camisa de força segurar todo mundo que lutava contra. Ainda assim, alguns fugiam e, para esses, vinha um algoz com uma bola de basquete, batendo com muita violência, e a dor era de verdade. Era a tentativa de vitória pela força bruta.” Numa dessas cenas, a atriz, que conta sempre ter sentido pânico na
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FOTOS: ACERVO MARIA RITA FREIRE DA COSTA/REPRODUÇÃO
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hora do espancamento com a bola, correu e se contorceu embaixo de uma cadeira da plateia, para se esconder. O homem que estava sentado nela se levantou e ameaçou esmurrar o ator que representava a ditadura, para que a agressão parasse. Contestadora e forte, a peça foi proibida pelo regime militar no mesmo ano, quando chegou em sua temporada em São Paulo – da qual Maria não fez parte. Já o diretor foi detido por um mês em 1974, torturado, e depois partiu para exílio em Portugal. Hoje é anistiado político. “Não posso dizer que todo mundo dos bastidores era ativo politicamente, mas muitos eram e se arriscavam. O Conservatório era extremamente envolvido, havia muita gente ‘de esquerda’, como falávamos, e pessoas notórias por serem declaradamente contra o regime, como João das Neves e Fernando Peixoto, do Partido Comunista.”
CATARSE
Um dos episódios mais marcantes da repressão artística durante a ditadura se deu na apresentação da peça Roda viva, também dirigida por Zé Celso, quando os atores foram agredidos por cerca de 100 membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e todo o cenário destruído. Maria Rita participou de outros espetáculos transgressores, como Torre de babel (escrita e dirigida por Fernando Arrabal), Arena conta Zumbi (de Augusto Boal, dirigida por Fernando Peixoto) e Autos sacramentais (de Calderón de La Barca, dirigida por Victor García), que saiu em turnê pela Ásia e Europa, mas foi proibida no Brasil, devido às cenas de nudez. A atriz diz que “olhos da ditadura” eram presença constante – apesar de nem sempre discreta – em qualquer ambiente potencialmente subversivo (ela, inclusive, foi detida em um bar no Rio de Janeiro, enquanto escrevia
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ARENA CONTA ZUMBI
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GRACIAS, SEÑOR
Maria Rita ao centro, sob direção de Fernando Peixoto, em peça de Boal Sob direção de José Celso Martinez, elenco ficava oito horas em cena
bilhetes com os amigos numa mesa de bar, ato considerado pelo militar à paisana como “códigos contra a ditadura”). Apesar desses riscos, existiam apresentações não oficiais com forte conteúdo político que atraíam pessoas de dentro e de fora do circuito teatral. “Era tudo feito discretamente. Peças que não podiam ser montadas por conta da censura eram apresentadas escondidas, com o teatro fechado. Numa dessas apresentações, lembro perfeitamente o sentimento de catarse ao final, aquela realização com toda a tensão que existia fora, com os riscos. Foi muito bonito.” Hoje, a atriz Maria Rita, que nos anos 1970 também atuou no cinema e na TV nacional, mantém-se distanciada dos palcos: prefere trabalhar com arte-educação, escrever os próprios roteiros. Nesse sentido, desenvolveu no Recife projeto de inserção do teatro em penitenciárias, que já havia realizado em regiões distintas (resultando em espetáculos lotados, abertos ao público, que ficavam em cartaz por mais tempo que o previsto), conta. Ouviu de uma detenta que as pessoas dali “eram a terceira pessoa depois de ninguém”, frase que nunca esqueceu e guardou para si. Atualmente morando no Recife, ela mantém a expressividade das mãos e do olhar, assim como a vemos nos recortes de jornal e nas fotografias em preto e branco que guarda daquela época. Maria Rita diz que é dever do teatro a subversão e a vontade de mudança, e não acredita que o Teatro de Resistência um dia tenha razões para não existir. “É preciso estar sempre resistindo, não é? Ainda há muito motivo para haver o teatro contestador, para o teatro de resistência. Temos problemas das origens mais distintas: políticas, sociais. É importante ver um espetáculo que se preocupe com isso, mais do que com o virtuosismo por si só. Poucas atividades artísticas têm o poder e a liberdade do teatro. É preciso tomar partido disso.”
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
1-2 REVISTAS Na primeira metade do século 20, já se observa a contratação de artistas para a criação de ilustrações 3 MANOEL BANDEIRA Homônimo do poeta foi colaborador frequente dos periódicos com caricaturas e cartuns 4 TIPOGRAFIA Tipos gráficos encontrados pela pesquisa serviram de referência à criação da fonte mauriceia, usada no livro
Foi ao lado do Parque 13
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GRÁFICOS Primórdios do design no acervo da biblioteca
A partir de pesquisa em acervo público, designer Sebastião Cavalcante registra em livro parte (quase) desconhecida da produção pernambucana do período entre 1875 e 1939 TEXTO Laís Araújo
de Maio, numa edificaçãosímbolo da arquitetura moderna local, que um importante resgate da memória gráfica pernambucana começou a ganhar corpo. Durante sua pesquisa de mestrado, o designer Sebastião Cavalcante teve a atenção tomada pelas obras raras e os periódicos pernambucanos presentes no acervo da Biblioteca Pública do Estado (BPE). O conteúdo gráfico ali era extenso, valioso e – talvez o adjetivo mais importante neste caso – praticamente desconhecido. Observar a relevância do material encontrado para a história da arte e do design brasileiros foi a motivação para a construção do livro Ilustrações e artes gráficas – periódicos da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco (18751939), pesquisa incentivada pelo Funcultura, com selo da Editora Blucher. A redescoberta do acervo explicita certa cegueira anterior, ao mesmo tempo em que abre caminhos e possibilidades quanto ao legado visual do estado. O recorte temporal feito revela o medo que a Coroa
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Portuguesa tinha das consequências da palavra escrita e da informação, atrasando em séculos o início da produção gráfica brasileira (oficial, ao menos), que somente em 1808 recebeu seus dois rudimentares primeiros prelos e suas 28 caixas de tipos. Demorou mais sete anos para estrutura semelhante ser montada em Pernambuco. Portanto, a produção do primeiro impresso no estado ocorreu apenas em 1817, com a publicação de O Preciso, feito pelos entusiastas da revolução emancipacionista daquele ano. O início foi tardio (em outros países da América colonizada, como México e Peru, existem indícios de sedes de tipografia já no século 17), mas a produção, intensa e progressiva, com o número de publicações multiplicado com os anos. A Biblioteca Pública de Pernambuco, peça-chave na reunião dos periódicos, surge em 1852, sendo instalada em diferentes sedes antes de fixar-se em Santo Amaro. “O protagonismo é, definitivamente, do acervo”, pontua Sebastião Cavalcante, o Sebba, explicando que a quantidade de material disponível a ser estudado renderia diversas pesquisas. “Ainda não conhecemos aquele acervo de periódicos como memória gráfica, e fazer isso é essencial para criar uma linha do tempo, preencher lacunas na história do design. É uma memória afetiva
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e coletiva que é recuperada através dessa pesquisa, principalmente com a parte das propagandas, muito fortes visualmente.” A coleção é dividida em seis temas: inicia com Rumo ao século 20, mostrando a riqueza de detalhes e das cores durante a utilização do processo litográfico, técnica
Autor acredita que esse livro pode desencadear pesquisas que preencham lacunas na história do design de impressão à pedra, que seria substituída por outras, nos anos posteriores; Caricaturas e charges, com destaque especial para as interpretações dos diferentes typos de gente encontrados no cotidiano do período; Capas; Composições com imagem fotográfica; Composições com tipos móveis e letreiramento, e, por último, Propagandas. Segundo Sebba, as capas buscavam impactar, capturar um momento perfeito, sintetizar ideias. “Nelas, a gente encontra designs muito bem-resolvidos, com o uso de ilustrações de artistas da época e também com fotografias. As composições com imagens fotográficas apresentam
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o artista gráfico no início do uso da foto, onde ela era revelada e a complementação, feita à mão.”
CLICHÊ
Foi somente com o início do uso do clichê como matriz que fotografia e texto puderam ser impressos juntos, otimizando o tempo e proporcionando o início do fotojornalismo. “Essa mudança foi muito importante para a imprensa. Já na propaganda, a gente percebe que, desde aquela época, havia uma valorização do que é de fora. Isso, assim como pontos como a diagramação e as composições de páginas, dialoga com o que ainda vemos hoje em dia: a estética estrangeira sempre foi desejada no setor de publicidade.” Na redescoberta dos tipos e letras antigas que resulta da pesquisa, vemos um trabalho minucioso, com construções trabalhadíssimas de página, apesar das dificuldades da técnica. Há publicações diagramadas de forma semelhante a poesias concretas, décadas antes dos anos 1960, quando a corrente vanguardista foi popularizada. Os títulos também recebiam atenção especial, com fontes criadas para propósitos exclusivos, como a do texto Malassombrado, de Joaquim Cardozo, publicado em 1930 na Revista de Garanhuns, e criada a partir de tipos móveis, num trabalho minucioso e bem-realizado.
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HUMOR
Graças ao clichê, as publicações jornalísticas – fartas em sátira – puderam ser impressas com mais rapidez
Sebba detalha o processo, explicando que o texto era montado letra a letra sobre o prelo, dentro do sistema de impressão tipográfica, enquanto a página era composta pelos elementos de suporte: linhas, traços, pequenos adornos. “O processo de composição nessa técnica é totalmente manual. Os resultados gráficos encontrados demonstram um alto grau de domínio sobre o processo técnico, associado a doses de criatividade e experimentalismo, já que, em vez de compor com letras, estas páginas foram compostas com estes elementos.” Após o término da montagem de cada peça, a matriz era
entintada e rebatida sobre as folhas de papel com o sistema de prensa. O trabalho era árduo, o que torna os resultados mais impressionantes. Com o mesmo cuidado, mas sem tantas dificuldades técnicas, Ilustrações e artes gráficas – periódicos da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco (1875-1939) também possui fonte própria: mauriceia, projetada pelo designer gráfico Matheus Barbosa, e inspirada nas letras encontradas nos periódicos pesquisados. O nome de batismo é oriundo das publicações da época, que costumavam usar o termo herdado de Maurício de Nassau para se referir à cidade.
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ARTISTAS GRÁFICOS
Apesar das evidências de que o design gráfico tem uma história longa na capital pernambucana (e nos outros polos gráficos do Brasil), ainda é comum a ideia de que a atividade surgiu no país como “profissão” apenas na década de 1960. Chamados antes de artistas gráficos, esses profissionais são pouco lembrados. Falta, por exemplo, conhecimento sobre a obra de Manoel Bandeira (homônimo e conterrâneo do poeta, mas voltado para as artes visuais), cujo trabalho se estendia muito bem entre o sintético e o detalhado. “O conjunto de sua obra, em colaboração para a indústria gráfica, representa um elo importante para a memória do design em Pernambuco. Técnica apurada, versatilidade de estilos, capacidade de estabelecer diálogo entre diversas linguagens e habilidade de solucionar
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limitações técnicas com maestria são algumas das características de seu trabalho”, conta Sebba. Outros nomes importantes da memória gráfica no estado são Vicente do Rego Monteiro e Lula Cardoso Ayres, que, famosos por suas produções artísticas, foram também designers. “Parece normal que pessoas sejam conhecidas e reconhecidas por outros tipos de arte, mas não pelas artes gráficas”, observa o autor. Um passo para o reconhecimento dessa vertente artística, porém, é a reunião de sua história, que parece agora pronta para se desenvolver: a intenção do livro é tornar-se um catálogo ampliado e esmiuçado por entusiastas e acadêmicos do campo das artes gráficas. A organização do acervo de Ilustrações e artes gráficas insere Pernambuco na (ainda em construção) linha do tempo brasileira do design, tímida, mas
ANÚNCIOS
Pesquisador observa que, na publicidade, ontem como hoje, predomina o gosto pela estética estrangeira
já suficiente para a desconstrução de mitos que privilegiavam a produção e a herança estrangeiras. “Apenas com o surgimento da primeira escola de desenho industrial do Brasil, nos anos 1960, basicamente inspirada na Bauhaus e no funcionalismo, idealiza-se a conformação do campo no Brasil. Mas temos uma história própria e antiga do design gráfico, que estava sendo deixada de lado, pouco observada e fadada ao esquecimento. Nunca olhávamos para as artes gráficas nacionais com o conceito de integração. Não víamos o passado e, por isso, não se construía junto nem se criava nada sólido”, situa o pesquisador. Considerada a atenção cada vez maior dada à reconstrução da memória e a proliferação de pesquisas como esta, há cada vez menos chance de que esse comportamento se repita.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
TELLES JÚNIOR
Para falar de Telles Júnior é
preciso saber alguma coisa sobre Telles Júnior. E, para saber alguma coisa sobre Telles Júnior, alguma coisa sobre o lugar onde nasceu, o Recife; como era o Recife naquela época, o meio em que viveu, a vida de seus pais, sua própria vida quando criança, passada até os oito anos dentro de um navio. Seu pai era “um nauta”, como diz em suas memórias, carregava a família nas viagens. Será, preciso saber o que se sabia aqui sobre pintura na época: ele nasceu em 1851 e faleceu em 1914. Saber o que ele sabia, não o que nós sabemos hoje. Se a exposição de Cícero Dias em 1948 na Faculdade de Direito do Recife causou um escândalo sem igual, como, de 1914 para trás, medir obra de um pintor daqui com o que se fazia em Paris? Não se pode falar de avanço ou atraso mas de duas realidades. Aliás, em sinal de respeito para com a pintura local e total ausência de intenções iconoclásticas, Cícero, num gesto bonito, reverenciou
Telles Júnior expondo-lhe um quadro ao lado dos seus, mas não adiantou nada, antes acirrou o ânimo reacionário de Mário Melo e companhia, considerando isso, pelo contrário, um acinte, um caso de polícia, de anarquia, de insanidade mental, uma profanação acontecer logo onde, no templo, no espaço sagrado, na Casa de Tobias Barreto. Além de se procurar saber o que se sabia aqui naquela época, é preciso ver o que se sabia lá. Não o que se sabe, hoje, da Paris daquela época; mas, naquela época, o que se sabia de Paris lá mesmo em Paris. Quando Telles Júnior morreu, 1914, o Cubismo, o Fauvismo, já tinham se alastrado em Paris. Isso nós sabemos hoje. Só que, na própria Paris de então, não se sabia nada do que sabemos hoje aqui. Imagine na época de Telles Júnior. Se você verificar o que se escrevia em Paris naquela época vai constatar que ninguém tomava conhecimento da existência de Cézanne, nem de Gauguin ou Van Gogh, nem de Toulouse-Lautrec,
quanto mais de Picasso, Braque, Modigliani ou Matisse. Esses são os sobreviventes. Naquela época, lá, os mais avançados tinham ouvido falar de Delacroix e Millet, alguns de Courbet e Corot. Conhecidos mesmo eram Bouguereau e Cabanel, praticante este de uma pintura batizada de pompier (bombeiro, em francês) com tanta bugiganga, tantos objetos brilhantes espalhados pelos quadros, que pareciam bronzes de carros de bombeiros: daí provindo os tachos de cobre das naturezas-mortas do mundo inteiro (bom exemplo é o quadro Descanso do modelo, 1882, Museu Nacional de Belas Artes, do paulista Almeida Júnior, que estudou com o mesmo Cabanel). Isso, quanto ao que se sabia lá. Para saber o que se sabia aqui no Brasil, talvez seja instrutivo dar uma olhada nos catálogos do Museu Nacional de Belas Artes e da Pinacoteca do Estado (São Paulo), para constatar que nem do Impressionismo se tinha ouvido falar. E me pergunto,
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REPRODUÇÃO
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como Siqueiros a Rivera em 1920, que importância teria ser mais um cubista, e em prejuízo da obra magnífica que nos legaram Rivera, voltando para o México, e Telles Júnior sem sair daqui? A história tem demonstrado a dificuldade de reconhecer uma obra, próximo que se esteja, mesmo cabeças pensantes. Emile Zola, no romance justamente intitulado A obra, toma o seu amigo Cézanne como exemplo de pintor medíocre, sem desconfiar nem um minuto se tratar de um dos maiores gênios da pintura de todos os tempos; ou o marchand, quer dizer, um cara que era do ramo, entrava com o bolso que é a parte mais sensível do corpo humano, que disse até gostar de Picasso como pessoa “mas alguém precisa dizer a esse rapaz que deve deixar de pintar”; ou o pintor El Greco, tão genial quanto seu colega Miguel Ângelo, que propôs ao papa derrubar-lhe os afrescos da Capela Sistina porque Miguel Ângelo, coitado, boa pessoa, infelizmente nada entendia de pintura.
Além de se procurar saber o que se sabia aqui naquela época, é preciso ver o que se sabia lá. Não o que se sabe, hoje, da Paris daquela época Há ainda a possibilidade de se procurar saber o que, na época de Telles Júnior, se sabia a respeito do Recife e do Brasil em Paris, se é que alguém se lembraria da nossa existência, porque isso pode ter importância: pintores franceses andaram por aqui na época, e até um deles se indispôs com Telles Júnior, Ducasble, enquanto outro sofreu influência da pintura de Telles Júnior, surpreendido pela paisagem daqui, um tanto sem saber como apanhá-la, o que por um momento me passou em relação a Frans Post. “Aliás parece é que Lassailly aos poucos foi aprendendo com Telles Júnior: as suas primeiras paisagens ainda são escuras, o mato é europeu, conforme
MARINHEIRO
O Araguaia no Lameirão. Criado até os oito anos de idade dentro de um navio, o mar, para Telles Júnior era lugar de trabalho
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me foi mostrando o Dr. Cid Sampaio; e quem sabe não será Lassailly um dos pintores incluídos na parte final do capítulo ‘Meus Estudos’ das Memórias, em que Telles Júnior fala dos discípulos mal-agradecidos?” (Artistas de Pernambuco). A crítica colonizada, desrespeitosa não somente ao pintor mas ao Brasil, como se a realidade que conte seja a da matriz, ontem Paris, hoje Nova York, amanhã Pequim, não nos fará sentir a importância nem do pintor, a excelência de sua pintura, nem mil outros aspectos relevantes sob os quais a obra do artista possa ser estudada, sendo um desses o de nos ter botado como protagonistas das suas telas, ter implantado destemidamente nas suas pinturas o nosso chão geográfico. Se for para falar de atualização, de modernização, a feita por Telles Júnior foi muito mais profunda, porque não se limitou a anos ou décadas mas a séculos, agora digo como Montez Magno, “pondo um ponto final na nossa Idade Média” (Artistas de Pernambuco).
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CALEIDOSCÓPIO Um abraço na literatura
Situada em Lagoa dos Gatos, editora-biblioteca vem realizando, desde o início do ano passado, projetos para incentivar a leitura no agreste pernambucano TEXTO Priscilla Campos FOTOS Otavio de Souza
“O grande patrimônio que temos
é a memória. A memória guarda o que vivemos e o que sonhamos. E a literatura é esse espaço onde o que sonhamos encontra o diálogo. Com a literatura, esse mundo sonhado consegue falar.” A afirmativa do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós foi feita durante uma conferência do projeto paranaense Paiol Literário, promovido pelo jornal Rascunho, em 2011. Nome importante para a literatura infantojuvenil brasileira, Campos de Queirós dedicou muito de si em prol da leitura. Na lista de suas idealizações para o aumento de leitores no Brasil está o Movimento por um Brasil Literário, que tem como base um manifesto em defesa do direito de acesso à leitura, valorizando, assim, a cultura escrita e a educação literária. O movimento ainda é pouco articulado no Nordeste e esbarra em rachaduras pedagógicas. Em janeiro deste ano, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) divulgou um relatório no qual o Brasil aparece em oitavo lugar entre os países com maior número de analfabetos adultos. Ante um
abrangente conjunto de dificuldades, as ideias do escritor mineiro encontram força no seu entendimento da memória como catalisador literário dos mais importantes. Tal potência, aliada à vontade de consolidar uma presença permanente da leitura, reverbera desde o início de 2013 no agreste pernambucano. Um ano após o falecimento de Bartolomeu, nascia no município de Lagoa dos Gatos a Caleidoscópio Editora, projeto realizado pela escritora, psicóloga e especialista em informática Patrícia Vasconcellos. Apesar de não existir um vínculo direto entre o movimento e a editora, Campos de Queirós e Patrícia compartilham o mesmo propósito: todos os esforços devem ser direcionados para que a literatura ocupe espaços remotos. “Ainda criança, disse: ‘Aqui, quando eu crescer, vou construir uma escola.’ Acabou sendo uma editora/biblioteca”, conta Patrícia, assentada no terreno onde as primeiras raízes de sua árvore genealógica nasceram. “Meu avó materno teve 15 filhos em Lagoa dos Gatos. Ele era semianalfabeto e agricultor. Com o dinheiro do plantio,
educou os filhos e foi morar no Recife.” O município tem ares de invenção geográfica, perdida em um tempo indefinido. Localizada a 171 km da capital pernambucana, Lagoa dos Gatos possui 15.645 habitantes, 26 escolas nas áreas urbana e rural e um desanimador índice de analfabetismo adulto de 49,4%. “Antes de sentar com minha família para desenharmos a casa que se tornaria a Caleidoscópio, estive em Lagoa dos Gatos algumas vezes, após anos sem vir aqui. No meio da feira livre, aos sábados, nós começamos a colocar uma mesa plástica branca com os livros em cima. Organizamos empréstimos, anotando, para saber em que localidade estava o livro. Muitas vezes o pessoal não devolvia, mas eu achava isso bom, porque significava que as publicações estavam circulando. Muitos idosos levavam os livros e pediam para que seus netos lessem em voz alta para eles.” A escritora afirma que 700 livros foram emprestados durante um dia de biblioteca ao ar livre. “Em um município pequeno, com alto índice de analfabetismo,
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Página anterior 1 EDITORA
Patrícia Vasconcellos decidiu com a família o local onde levantaria a Caleidoscópio
Leitura
Nestas páginas 2-3 ATRATIVOS
Livros produzidos pelos moradores em ambiente bem- cuidado têm atraído frequentadores
4 ÍNDICE Lagoa dos Gatos enfrenta a triste estatística de 49,4% de analfabetismo adulto
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papelarias. Vieram os filhos, as ‘histórias de boca’, aquelas que inventava para eles – Trocando de lugar, meu primeiro livro infantil, é uma delas –, os contos de fadas, as músicas, poesias. Quando leio um livro e sou tomada por ele, não consigo parar de ler”, conta.
ESPAÇO DE TROCA
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esse número tinha um significado importante, não podia ignorá-lo.” De acordo com Patrícia, a Caleidoscópio foi construída com tijolos ecológicos, preservando as árvores e a mata ao redor do terreno. Parte da casa antiga foi mantida: uma janela em ruínas agora é um detalhe entre a sala principal, na qual se encontram as principais prateleiras de livros infantis (Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Machado de Assis são presenças constantes) e o pequeno cômodo ocupado por uma rede, estantes, fotografias de
família, objetos ligados à astrologia e ao xamanismo. É nesse espaço também que literatura e memória se confundem: entre a coleção, um livro do poeta cearense Patativa do Assaré com dedicatória de sua mãe, presente oferecido quando Patrícia tinha ainda oito anos. A iniciação literária de Patrícia tem várias referências domésticas. Da mãe e da babá, ela ouvia histórias, a tia foi responsável por colocá-la no mundo dos livros, o pai era um contador de causos. “Lembro-me de visitas a livrarias, bancas de revistas,
A sede da Caleidoscópio fica na zona rural de Lagoa dos Gatos e, aos poucos, um novo povoado arquiteta-se no entorno. “No começo, eu distribuía água para o pessoal, mas agora teremos uma cisterna. Próximo passo é a horta comunitária. A noção de compartilhar é muito presente aqui.” Eventos de música e cinema também já foram organizados por lá. “Tento trazer coisas de fora e locais. A ideia é expandir e, ao mesmo tempo, valorizar artistas daqui”, explica Patrícia. Para divulgar os eventos: cartazes, carros de som e o famoso boca a boca. Enquanto nós conversávamos, duas crianças entraram na sala principal para escolher um livro. Antes de irmos embora, a dupla estava dividindo a leitura, sentada na porta de casa, de frente para um pequeno jardim. “É por cenas como essa que eu faço tudo isso”, disse a escritora, sorrindo. Além de simbolizar a resistência da leitura e agregar responsabilidades de núcleo disseminador cultural, a
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Caleidoscópio tem compromisso com a acessibilidade. Os dois primeiros livros publicados, O rei poderoso e Mergulho, possuem recurso de audiodescrição. O projeto é resultado de uma parceria entre Patrícia e a professora de psicologia Liliana Tavares, e conta com ilustrações dos designers Gabriela Araújo e Eduardo Souza. Ambos são vendidos tanto na Livraria Cultura quanto na papelaria de Lagoa dos Gatos. De acordo com a escritora, esse trabalho coletivo, no qual estão inseridos familiares, amigos e moradores, é de importância capital para que a Caleidoscópio continue produzindo. “Ao longo de um ano e meio, percebi a possibilidade de publicar autores daqui e comecei a incentivar o pessoal a escrever. Produzimos de forma autônoma, imprimimos em casa, cortamos, grampeamos e montamos o livro. É um trabalho em parceria mesmo, por amor à literatura.” O artesão Manoel Severiano da Silva faz parte do grupo que encontrou nas palavras também uma forma de libertação. Algumas capas desenhadas
A Caleidoscópio mantém dois pontos de encontro na cidade: a sede, no “sítio”, e uma lojacafé, no centro com caneta Bic e pintadas com lápis de cor dão o tom informal de seus poemas e pequenas histórias encontrados em O quadro e o pintor e Lágrimas do amor, entre outras compilações. Meses após a abertura da editora, Patrícia percebeu que seria importante organizar um ponto cultural na área urbana de Lagoa dos Gatos. “Daria mais força para os meus projetos e seria um lugar conectado com o fluxo da população.” Ao lado da igreja, na praça principal, fica o Pó de Estrelas, um café que também possui serviços de copiadora e de fotos 3 x 4 (essa última atividade até então inédita no município). A casa azul destoa da paisagem interiorana ao seu redor: dispõe de wi-fi, cadeiras coloridas,
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vitrola tocando música popular brasileira, cheesecake de morango e água com gás. Nos finais de semana, já foram realizados saraus, apresentações e maratonas de poesia. A próxima ideia de Patrícia é transformar uma das salas da casa em sebo/livraria, para comercializar vários gêneros literários. “Outro instrumento muito forte para mim tem sido o programa que possuo na rádio comunitária, chamado Lagoa Cultural. Toda sextafeira, leio histórias, debato sobre assuntos como sexualidade e meio ambiente. Dessa forma, tento colocar os moradores em contato com tópicos pouco discutidos por aqui”, aponta. Em sua fala no Paiol Literário, Bartolomeu Campos de Queirós define a relação entre a palavra e o leitor com a proposição: “Literatura é também acreditar que o cidadão possui a palavra. O texto literário convida o leitor a se dizer diante dele”. O mineiro parece resumir esse convite de empoderamento feito constantemente pela escritora pernambucana aos moradores de Lagoa dos Gatos: a literatura é tão sua quanto minha, faça com ela o que você quiser.
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
Leitura CAROLA SAAVEDRA Investigação do fazer literário
No romance O inventário das coisas ausentes, autora divide a narrativa em dois blocos, Cadernos de anotações e Ficção, para remontar a história TEXTO João Cezar de Castro Rocha
Uma forma de apresentar o novo
romance de Carola Saavedra consiste em associar duas passagens do texto. Reunidas, por efeito de uma leituracolagem, elas esclarecem o verso e o reverso do projeto literário da autora. No início do romance, na voz de um “escritor iniciante”, o leitor intui o que não deve esperar: “Eu traçava
planos irresistíveis para um romance de oitocentas páginas, no qual, num trabalho de inovação de linguagem, recontaria toda a história do Brasil”. O hábil emprego do adjetivo, irresistíveis, confirma a dicção irônica, iluminando o ponto de vista adversário. Por isso, nas últimas páginas de O inventário das coisas ausentes, o pacto
ficcional se faz presente: “A história acaba quando somos obrigados a nos livrar dela, para que outro a compreenda e coloque em seu texto uma vírgula ou um ponto final” (120). Cabe ao leitor escolher a pontuação, claro está. Tudo se passa “como se todas as histórias precisassem de uma só história para existir” (121). No final do livro, a autora literalmente suspende a narrativa no momento de máxima tensão, obrigando o leitor a concluir a trama por si só. Ora, se o efeito é recorrente na obra de Carola Saavedra, constituindo mesmo o norte de sua literatura, em O inventário das coisas ausentes, a autora surpreende, em lugar de contentarse com a repetição do procedimento bem-sucedido. Além de radicalizar seu projeto, ela atinge um domínio novo das estruturas textuais e da depuração da linguagem. Vejamos: aquelas duas opções não se apresentam como oposições binárias, como acredita certa crítica, ainda hoje encerrada no período heroico do Modernismo. O projeto
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INDICAÇÕES que “recontaria toda a história do Brasil” não exclui o “trabalho de inovação de linguagem”. Contudo, e como se fosse um inesperado parangolé de palavras, o texto de Carola Saavedra exige, cada vez mais, que o leitor se transforme em coautor da trama. Ou: como se fosse um dos bichos de Lygia Clark, a exigir o toque desestabilizador do “espectador”, que deve aprender a olhar na ponta dos dedos. O inventário das coisas ausentes compõe-se de duas partes e a força de sua escrita depende do elaborado jogo de espelhos entre elas. A primeira, Caderno de anotações corresponde fielmente ao título. O leitor tem acesso ao laboratório de temas e formas de linguagem experimentados pela autora, como o atleta que aquece os músculos antes do exercício; aliás, imagem que alinhava as duas partes. Daí, a segunda, Ficção, apesar de constituir uma unidade própria, potencializa diversos elementos previamente esboçados. Isto é, a história traumática entre pai e filho que sustenta a segunda parte se apropria dos diversos estudos de relações amorosas e familiares esboçados na primeira parte. Essa breve descrição pode dar uma ideia limitada do texto. Parece que o Caderno de anotações reduz-se ao papel de um andaime que permanecesse de pé, mesmo depois do término da construção. A imagem que me ocorre é antes a arquitetura instigante do Centre Georges Pompidou. A fachada do edifício
incorpora as estruturas metálicas, como se fossem andaimes teimosamente integrados ao prédio. Porém, tais estruturas possuem funcionalidade, já que a exposição das vísceras do museu amplia o espaço disponível no seu interior, além de permitir a circulação dos visitantes. Assim, a parte “externa” é elemento formal indissociável da concepção arquitetônica. Exatamente como as duas partes do romance. Tal disposição é tornada forma literária através da elaboração de uma frase peculiar, cujo ritmo ata com êxito as pontas do texto. Transcrevo um exemplo: “Vinte e três anos, por que agora, depois de vinte e três anos?, a pergunta ressoando em minha mente, ele como se me ouvisse, te chamei porque ao contrário das previsões de Luiza, eu estou morrendo, ele anunciou”. O deslizamento de pontos de vista diversos – descrição, fluxo de consciência, diálogo – é notável e já constitui uma dicção característica da autora. Peço que o leitor verifique por si só: busque, na página 91, o emprego mais radical desse procedimento na frase que principia “Mas quem falou em casamento?,” e continua por 15 linhas, recorrendo a uma pontuação própria, mas não idiossincrática, pois corresponde perfeitamente ao movimento da cena. De igual modo, a primeira parte se transforma imperceptivelmente na segunda, pois sua última palavra, “ficção”, desdobrase na história que segue. Mas não conclui: o desfecho dependerá sempre de um gesto do leitor.
FICÇÃO CIENTÍFICA
RAY BRADBURY A cidade inteira dorme e outros contos Biblioteca Azul
ALIMENTAÇÃO
MICHAEL POLLANO Cozinhar – uma história natural da transformação
Ironia e melancolia persistem sob o absurdo das tramas imaginadas por Bradbury. Conhecido pelo distópico romance Fahrenheit 451, neste conjunto de 13 contos ele explora situações em que aquilo que chamamos de “ficção científica” acoberta uma observação aguda do comportamento humano, como em Uma pequena viagem.
Intrínseca
HISTÓRIA
CRÔNICA
FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO A guerra total de Canudos Escrituras
Neste estudo, em sua terceira edição, o historiador busca ampliar suas fontes e detalhar elementos que são de seu interesse, como os militares em combate e as armas usadas na guerra, tanto pelo exército quanto pelos insurgentes.
O livro do norte-americano Pollano traz uma soma generosa das várias abordagens do tema “culinária” a que temos nos submetido. Ele une história pessoal, história da alimentação e conhecimentos técnicos sobre os processos de cocção num texto empático e inteligente.
XICO SÁ O livro das mulheres extraordinárias Três Estrelas
Tem gente que desconfia da crônica, esse gênero tão libertário e inclusivo que tem sido exercido pelos mais variados matizes de escritores. Essa desconfiança advém da facilidade muitas vezes expressa por esse tipo de texto, em que graça resulta em banalidade. Vários dos “perfis” de mulheres reunidos aqui por Xico Sá sofrem desse mal.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
VISÕES FRAGMENTÁRIAS DE UM RECIFE ÚMIDO Cheguei ao Recife tímido e
assombrado. Sonhava com os nomes dos bairros que o rio deixa para trás no seu percurso tortuoso, repartindo a cidade em ilhas, antes de se perder no Atlântico. As águas doces viram salobras, depois salgadas, até serem águas do mar. O Capibaribe não é igual aos outros rios que eu me acostumara a ver nos livros e no cinema, um fluxo bem comportado entre margens. Ele forma por onde corre – quando corre, pois também é preguiçoso e se espalha sem vontade de ir em frente – panoramas fluviais, paisagens que os flamengos pintaram a óleo durante a ocupação da Mauristad, com a mesma volúpia de cores verdes, luz filtrada entre árvores grandiosas e neblina suspensa. Nada se presta melhor à representação da umidade do que a tinta a óleo, o brilho de aparência molhada nas telas, escorrendo, pingando como chuva. Bairro de Areias por causa dos sedimentos no leito e nas margens, a areia que os caminhões e as carroças puxadas a burro levam para a argamassa de rejuntamentos e
contrapisos. Salina, ela tinge o reboco das paredes com faixas úmidas, do chão ao teto, prenunciando desleixo e ruína. A cal da pintura também larga camadas, mesmo nas igrejas barrocas, onde anjinhos morenos e robustos parecem com os homens deitados nas carrocerias. Quanta sensualidade nos corpos masculinos entregues ao sono, cansados pelo esforço com enxadas e pás. O suor que escorre das axilas peludas tempera o salitre dos muros caiados de branco, refletindo uma luz intestina, que bem pode cegar. Eu contemplava os homens parecendo mortos de passagem, despidos nos trapos vergonhosos, e sonhava com eles encaixotados no cemitério da Várzea, descansando em tumbas vulgares, ao som de uma litania feminina. – Repouso eterno lhes dê senhor, a luz perpétua e o resplendor. Onde a terra vira argilosa se prestando à confecção de tijolos e telhas, o lugar ganha o nome de Barro, não o primeiro barro que um Deus moldou ao criar o homem, deixando que se revoltasse e enfraquecesse
a vontade, se inclinasse ao mal, segundo escreveram no livro Gênesis, na Bíblia que líamos em nossa casa sertaneja. Condenou-o a ser criatura de alma corrupta, nem divina em si mesma nem capaz de alcançar por si mesma qualquer relação com Deus, a menos que aceitasse o duro caminho da cruz, essa árvore que ilumina, mas é estéril de frutos saborosos, sem nenhuma manga para chupar e brear-se, nenhum caju rançoso. Vale a pena condenar-se ao inferno por seus frutos insípidos? Melhor fartar-se com jaca e jenipapo, fruta-pão e banana, que crescem nos quintais do Barro, onde prolifera a argila usada para o fabrico de utensílios domésticos há pelo menos 10 mil anos, desde que os humanos se espalharam pelo Capibaribe e seus arredores, o paraíso tropical. Na Várzea, o outro bairro sonhado, os terrenos planos e regulares se inundavam durante as cheias, as águas invadiam as casas das famílias humildes e elas perdiam seus pertences. Desciam mortos nas enxurradas e eu
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CHICO LUDERMIR
acendia velas para Nossa Senhora dos Afogados, compadecido, mas prometendo nunca chorar. São diferentes os homens dormindo vivos sobre a areia dos caminhões, dos homens dormindo mortos nas águas barrentas do rio. Somente a pressa em levá-los para longe se assemelha, a do carro e a do rio. Tremem as carnes dos meninos, à simples lembrança da correnteza. Quando as águas ficarem claras irão se banhar, longe dos olhos das mães. Saltam das pontes, mergulham, dão cambalhotas. Seguram um cachorro e o atiram nas águas. O bicho nada e escapa. Cachorros nascem sabendo nadar. Os homens também deviam nascer com todas as habilidades do mundo, resposta para as perguntas da vida, bem decoradas, na ponta da língua. Um moleque machuca a boca num salto, sangra, não liga para o ferimento, pula novamente na correnteza, a mãe ignora seu paradeiro. Jogam outro cachorro no rio, maior, mais pesado, ele afunda e parece que não virá à tona. Os meninos riem nervosos. O cão finalmente alcança
“O Capibaribe não é igual aos outros rios que eu me acostumara a ver nos livros e no cinema, um fluxo bem comportado” as margens, foge dos moleques, que correm para pegá-lo outra vez. Os bairros de Santo Antonio e São José ficam mais distantes. No começo eram apenas bancos de areia, ilhas de rio e oceano, doces e salobras, aterradas pelos homens em barcaças frágeis, criando territórios novos que o rio tomava de volta nas cheias sazonais, numa eterna peleja. A Boa Vista possui a mesma história das outras ilhas do Recife, a rapinagem ao mar e ao rio, o trabalho insano dos homens mestiços e suarentos, transformando alagados em terra firme. Ruas de armazéns e carregadores no cais José Mariano, serrarias, toras de madeira e trabalhadores rudes.
Olho para trás, não receio transformar-me em estátua de sal, como na história bíblica. O Recife é quente – mesmo com a brisa que sopra –, a maresia cheira forte e recobre nossa pele de água e sal. Há som ao redor, barulho de vozes, motores e buzinas, orquestras e tambores. Caminho. Recife é vário, criou-se na mistura de povos, de índios, negros e brancos. Nos arredores, encontramos sua mais forte expressão. Propalam a raça morena, porém a harmonia racial é relativa. Depois de revoluções libertárias, o Recife continua desigual. Mas os poetas nunca deixam de amá-lo. Andam de madrugada para escutar os próprios passos e sentir a brisa marinha, que varria fortalezas e canhões, acariciando os cabelos. Escutam os sinos, que batem no alto das torres, testemunharem as horas, marcando esperanças e temores. E quando a noite desce sobre as pontes e os rios, sobre ruas e edifícios em ruínas, descobrem um Recife habitado por fantasmas de heróis anônimos, dormindo e sonhando ao som de triste melodia.
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NICOLAS HALLET/DIVULGAÇÃO
Claquete
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PAISAGEM Um sertão intocado
A história da eternidade, primeiro longa do diretor Camilo Cavancante, foi o grande premiado este ano no Festival de Paulínia TEXTO Luciana Veras
Na noite de 27 de julho passado, na
van que o transportava do Theatro Municipal Paulo Gracindo, sede do 6th Paulínia Film Festival, para Campinas, o cineasta pernambucano Camilo Cavalcante conversava com jornalistas e com parte do seu elenco e equipe enquanto fazia malabarismos para segurar um punhado de troféus. Um pouco antes de se despedir de todos, o veículo brecou e rolou pelo chão uma das estatuetas douradas (se alguém for se dedicar a um estudo, talvez a constatação seja a dificuldade em escapar à influência do Oscar). “Eita, segura”, disse Camilo, enquanto se esticava para resgatar o prêmio. Seu primeiro longa-metragem, A história da eternidade, havia acabado
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1 CENÁRIO O chão rachado, as árvores secas e o horizonte têm papel central na trama
primeiros longas – Casa-grande, de Fellipe Barbosa, Boa sorte, de Carolina Jabor, e Castanha, de Davi Pretto. Dias depois, membros do júri relatariam na imprensa que os laureados já haviam sido discutidos e decididos até a derradeira noite de exibições no festival, que, neste ano, tinha retomado o formato de mostras competitivas de curtas e longasmetragens, ao contrário da apagada edição ocorrida em dezembro de 2013. Quando passou o filme de Camilo, 39 anos e uma prolífica carreira de realizador iniciada em 1995 com o curta Cálice, reconfigurou-se o mapa da distribuição de “meninas douradas” (o nome do troféu em Paulínia). Assim, lá estava o recifense com uma “menina dourada” na mão, tentando recuperar a outra que caíra com a freada. Ao reaver seu segundo troféu, a van parou e chegou a hora de Camilo descer. Seguiu-se uma outra rodada de congratulações e requisições de uma farra (só o prêmio de melhor filme lhe rendeu R$ 300 mil; o de melhor diretor, R$ 100 mil), e ele, que ainda encararia outros 100 km
O longa foi filmado em Santa Fé, uma comunidade isolada a 60 km de Petrolina, com refência própria de tempo e espaço de vencer quatro categorias na competição do festival cinematográfico realizado na cidade localizada a 120 km de São Paulo: melhor filme, diretor, ator – para o pernambucano Irandhir Santos, e atriz para as três mulheres que dão vida às sertanejas arquetípicas de Camilo: a cearense Débora Ingrid e as paraibanas Zezita Matos e Marcélia Cartaxo. O filme também ganhara o prêmio da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Ou seja, saíra como o grande campeão do encerramento do evento, cuja seleção incluía, entre outros, Sangue azul, do também pernambucano Lírio Ferreira, as novas produções de veteranos como Domingos de Oliveira e Murilo Salles e outros três
até o aeroporto de Guarulhos, para embarcar num voo da madrugada, despediu-se de todos confessando: “Só depois é que eu vou entender o que danado acabou de acontecer hoje”. Em reportagem publicada na Continente de fevereiro de 2013, Camilo descrevia A história da eternidade, filmado entre outubro e dezembro de 2012, em Santa Fé, uma comunidade isolada a cerca de 60km de Petrolina, no sertão pernambucano. “São três improváveis histórias de amor que se cruzam no mesmo espaço, à beira do desespero”, disse o diretor, acrescentando que, para fazer um “cinema artesanal”, a equipe havia mergulhado junto “no tempo do local”. “Nada pode ser maior do que a
emoção, que é o essencial”, resumiu à época. A julgar pelo ocorrido durante a sessão em Paulínia, pode-se afirmar que ele atingiu o objetivo de transmitir ao público essa emoção que tratou de incutir no elenco na temporada de imersão e filmagens. Em pelo menos dois momentos cruciais, palmas e lágrimas irromperam na plateia. E se o cineasta repetia que “a ficha não tinha caído” depois da premiação, ao menos sabia que ninguém ficara imune ao que se mostrava na tela.
NORDESTE INTOCADO
Sua trama reúne, num povoado com meia dúzia de casebres, dois irmãos (Cláudio Jaborandy e Irandhir Santos) que mimetizam Caim e Abel, com a filha de um deles (Débora Ingrid) como foco de tensão e disputa de afeto; uma mulher (Marcélia Cartaxo) abandonada pelo marido e cortejada por um sanfoneiro cego e insistente (Leo França); e uma religiosa e solitária avó (Zezita Matos), que experimenta o frescor de sensações há muito esquecidas quando o neto (Maxwell Nascimento) retorna de São Paulo. A paisagem – chão rachado, árvores secas, vastidão de horizonte sem qualquer resquício de contemporaneidade – é personagem também. “A pequena comunidade onde filmamos tem referências próprias de tempo e espaço. Lá, não pega celular e a única comunicação é através do orelhão que aparece no filme. É um Nordeste intocado, sem internet. É um sertão sem o desenvolvimento todo da Transnordestina, da transposição do São Francisco.” O sertão intacto, prossegue o diretor, foi “essencial para o processo da história que estávamos contando”. “Aquele sertão é uma perfeita metáfora da alma humana. Lá, as relações interpessoais acontecem de maneira mais honesta, mais direta, mais franca, ao contrário dos entornos urbanos, onde tudo fica escamoteado”, diz à Continente. Camilo não trabalhou com preparador de elenco, como revelou em Paulínia, e submeteu seus atores a ensaios e leituras nas mesmas casas em que seus personagens viviam. “Eu escrevi o roteiro, mas não tinha nada fechado ou amarrado definitivamente.
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DIVULGAÇÃO
Entrevista
Claquete
CAMILO CAVALCANTE “VOU FAZER UMA ANÁLISE DA OBRA DE SIMIÃO MARTINIANO”
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Juntos, fomos descobrindo aqueles personagens, estabelecendo um elo entre os atores e aquele lugar, uma relação de confiança mesmo. Foi um processo delicado, com muito respeito e cumplicidade, sempre na horizontal, nunca de cima para baixo. Era como se todos nós estivéssemos possuídos por uma energia maior, superior”, acrescenta o diretor. Para Zezita Matos, a criação foi enriquecida com essa vivência: “Fui criando a Das Dores durante esse tempo, convivendo com ela, conhecendo aquela mulher e tentando descobrir sua verdade”. No caso de Débora Ingrid, por exemplo, Camilo a colocou para cozinhar e arrumar a casa tal qual Alfonsina faz. “Me senti à vontade para dar um mergulho na vida dela. Quando estávamos ali, era como se tivesse uma suspensão do tempo e da vida, como se fosse um lugar abstrato”, conta a atriz. À perspectiva de “abstração” do sertão, vinculamse uma representação imagética com tons ocres – excelente trabalho de fotografia de Beto Martins, também estreando no formato do longametragem – e uma decupagem que maximiza a sensação do tempo que não se passa. O primeiro movimento de câmera se dá aos 50 minutos, quando Joãozinho, o personagem de Irandhir Santos, veste-se num manto que ele mesmo coseu para dublar Fala, dos Secos & Molhados, ante uma plateia atônita. Na cena, a câmera o circula
2 ZEZITA MATOS Atriz interpreta uma avó religiosa que vive novas experiências após a volta do neto para o Sertão
de modo ininterrupto. “A ideia era de que o espectador voasse junto, numa sensação libertária da criação artística, da vertigem da arte. Poesia, sonho, arte, rebeldia: a cena sai do plano material e entra um pouco no metafísico”, filosofa Camilo. A história da eternidade tem trilha sonora original de Zbigniew Preisner, compositor de alguns filmes de Krzysztof Kieslowski (19411996), e arranjos para acordeon de Dominguinhos (1941-2013). São nomes de impacto na órbita do filme, que agora se prepara para percorrer outros festivais. De certo modo, Camilo Cavalcante entende o que aconteceu naquela noite de julho. “Chegar ao Sudeste com o filme embaixo do braço, fazer essa primeira exibição pública, ter a possibilidade de dialogar com a imprensa e ainda ser premiado... Tudo isso foi bom demais. O resultado foi muito melhor do que eu poderia ter imaginado”, reconhece. Com suas “meninas douradas”, agora guardadas em casa, ele se prepara para viajar o Brasil, apresentando e discutindo o filme. De avião, de van, de carro, não importa como, mas sempre com seu sertão – bíblico, imutável, rígido como a pedra do poema de João Cabral de Melo Neto que ele declamou em Paulínia – dentro de si.
Ele começou a escrever e dirigir quando ainda estudava Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco. Leviatã, de 1999, foi seu projeto de conclusão de curso, mas Camilo Cavalcante já havia feito Os dois velhinhos, Hambre hombre, Alma cega, Amorte e Matarás – começando em 1996 e usando Betacam ou S-VHS, os formatos mais acessíveis na época. Antes de A história da eternidade, vieram o curta homônimo, de 2003 (melhor direção no Festival de Brasília e melhor ficção no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2005), e outros filmes laureados, a exemplo de O velho, o mar e o lago (2000) e O presidente dos Estados Unidos (2007). Sobre os rumos que seu longa tomará a partir de agora, o cineasta pernambucano falou à Continente. CONTINENTE Depois de Paulínia, qual a previsão de lançamento para A história da eternidade? CAMILO CAVALCANTE Devemos lançar em fevereiro de 2015. Quem vai distribuir é a Ludwig Maia Arthouse, empresa de Marcello Ludwig Maia, que foi um dos produtores de A história da eternidade. Vai ser um lançamento pequeno, mas o bom é que, até lá, o filme vai girar pelos festivais. Agora em setembro, por exemplo, estaremos no Festival de Vitória – 21º Vitória Cine Vídeo, e depois no Curta-SE – Festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe. Em outubro, vamos à 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e estaremos na 7ª Janela Internacional de Cinema
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INDICAÇÕES MARIO MIRANDA FILHO/ DIVULGAÇÃO
AVENTURA
SERIADO
Dirigido por Ron Howard Com Cris Hemsworth, Daniel Brühl California Filmes
Dirigido por Michael Apted, John Madden, Lesli Linka Glatter Com Michael Sheen, Lizzy Caplan Fox/Sony
As corridas de Fórmula 1 na década de 1970 tinham charme, velocidade, muitas mulheres nos alambrados e algumas rivalidades explosivas. Uma das principais antagonizava o inglês James Hunt e o austríaco Nikki Lauda, vividos respectivamente por Cris Hemsworth (Thor) e Daniel Brühl (Educators) . O diretor Ron Howard acerta ao conduzir o filme em um ritmo frenético que emula a vertigem das pistas, mas sem esquecer os dramas ou mesmo as contradições existenciais dos pilotos.
Exibida no Brasil pelo canal pago HBO, esta série televisiva foi saudada como uma das mais originais em 2013. O enredo mostra a gênese das pesquisas do ginecologista e obstetra William Masters (Michael Sheen) no campo da sexualidade, com a valiosa ajuda da secretária-que-se-torna ajudante Virginia Johnson (Lizzy Caplan). Inspirada na vida dos pioneiros até hoje considerados os responsáveis pela verdadeira revolução sexual norte-americana.
DRAMA
BÍBLICO
Dirigido por Michael Powell Com Karlheinz Böhm, Moira Shearer Versátil Home Video
Dirigido por Darren Aronofsky Com Russell Crowe, Jennifer Connelly Paramount
RUSH – NO LIMITE DA EMOÇÃO
do Recife. Nesse semestre, ainda, vamos exibir no Pachamama – Cinema de Fronteira, no Acre. CONTINENTE O circuito de festivais lhe agrada como estratégia de divulgação? CAMILO CAVALCANTE Sim. Fiquei surpreso com o resultado em Paulínia, toda equipe ficou, e acredito que vai ser bom para favorecer a circulação do filme. Como realizador, gosto de participar dos festivais porque vejo neles uma chance do meu filme chegar a lugares aonde talvez não chegasse, com a distribuição comercial. Por exemplo, talvez A história da eternidade não chegasse a Vitória, caso não houvesse o festival. CONTINENTE Como analisa A história da eternidade no contexto de sua carreira, em especial em relação ao curta homônimo? CAMILO CAVALCANTE Se formos comparar o longa e o curta, perceberemos que há o contexto da paisagem e da alma sertanejas, mas a única coisa que se repete é a Oração de São
MASTERS OF SEX
Francisco, que aparece nos dois filmes. O curta tem uma linguagem mais experimental, já o longa conta uma história. Acho que nos dois há a sinestesia e a minha necessidade de falar da vida e da morte, que de um jeito ou de outro está presente em todos os meus filmes. Algumas pessoas falam da violência, mas ela existe desde que o mundo é mundo. Caim e Abel, inspiração para os irmãos em A história da eternidade, são a violência escrita na Bíblia. CONTINENTE Algum plano para o momento pós-A história da eternidade? CAMILO CAVALCANTE Quero voltar a estudar, fazer um mestrado, mergulhar nessa “teoria dos infernos”. Penso em fazer na UFPB, para ser algo diferente, já que minha graduação foi na UFPE. E até já escolhi meu objeto de estudo: vou fazer uma análise da obra de Simião Martiniano. Porque ele merece.
A TORTURA DO MEDO
Michael Powelll ficou famoso por melodramas como Narciso negro, mas há uma pérola em sua filmografia, que hoje se revela assustadoramente atual. O protagonista é um fotógrafo que sublima a carga violenta e emocional oriunda de acontecimentos bizarros em sua infância nas vítimas que mata, apenas para lhes capturar a expressão do medo. A edição em DVD traz uma introdução de Martin Scorsese, fã de Powell.
NOÉ
Ator com propensão a personagens míticos, Russell Crowe encarna o patriarca que, segundo a história do Cristianismo, recebe de Matusalém a missão de construir uma arca para assegurar a vida de todas as espécies animais, quando o dilúvio chegar. O diretor Darren Aronofsky imprime um tom soturno à narrativa, porém não economiza maneirismos para transformar seu Noé em um homem com poderes e certezas de super-herói.
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CON TI NEN TE
Criaturas
Marcello Mastroianni por Miguel Falcão
A beleza, a elegância e o charme de Marcello Mastroianni (1924-1996) eram tantos, que quase conseguiam
encobrir o talento do mais famoso ator italiano. A simplicidade somada à facilidade com a qual transitava entre papéis cômicos e dramáticos o impediram de ficar refém do rótulo de galã. Até Hollywood tentou fisgar para si esse homem extremamente carismático. Mas, para que deixar a Itália? Lá estava cercado por Visconti, Antonioni, Fellini...
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