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# 166
#166 ano XIII • out/14 • R$ 11,00
CONTINENTE OUT 14
E MAIS JIM JARMUSCH • VIRGINIA DE MEDEIROS • LÍRIO FERREIRA • CHAPADA DO ARARIPE • JARDINS DE SUZHOU • VICENTE MASIP • REGGAE CAPA_OUT_PALHAÇO_FINAL.indd 1
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ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO/KARINA FREITAS
OUTUBRO 2014
aos leitores Quando estávamos na reunião de pauta discutindo sobre que assunto levaríamos à capa da Continente em outubro, buscamos associações com o Dia das Crianças. “O palhaço” – assim, como uma chave geral – foi o tema escolhido, porque achávamos que essa figura ambígua estava presente no imaginário infantil, um personagem que transcende territórios, classes, épocas. Qualificamos de “ambíguo” o palhaço porque observamos que ele pode ser tão divertido quanto assustador, tão engraçado quanto trágico, tão ingênuo quanto astuto. Então fomos atrás de subsídios que estruturassem a nossa matéria. O jornalista Fernando Athayde apresenta a sucessão histórica de personagens que se fizeram presentes em civilizações ocidentais e orientais sob a persona do cômico que expõe o ridículo de todos nós e de si mesmo, e aqui podemos nos referir ao bufão e ao bobo da corte. Também pontua quando surge a figura desengonçada, que usa roupas e sapatos que não se ajustam à sua silhueta e que estampa a máscara (do riso, do choro, do escárnio) e o emblemático nariz vermelho. A dicotomia a que nos referimos há pouco está evidenciada em dois textos que abordam o lado maléfico do palhaço, em obras sobretudo relacionadas à cultura pop, e o seu lado mais terno e inocente, como ficou eternizada a figura de Carlitos, criada por Charles Chaplin. Certamente uma abordagem que supera as interpretações cênicas mais recorrentes – sejam as de picadeiro, palco ou asfalto – é a que associa o palhaço ao xamã, desenvolvida pela canadense Sue Morrison, e aqui apresentada em artigo escrito pela pesquisadora Marianne Consentino. Por essa leitura do personagem, ele passa a operar dentro de uma comunidade como o sábio das tribos indígenas, que é responsável por fazer ver aquilo que nem sempre se mostra. Essa função iguala os polos “engraçado”/ “triste” do palhaço e revela todo o seu potencial de sabedoria.
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sumário Portfólio
Virginia de Medeiros 4
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Jim Jarmusch Diretor de Amantes eternos fala sobre vampiros, a ligação com o rock e as dificuldades para filmar
Donos da mídia Portal divulga informações revelantes, como nomes de políticos que detêm concessão de veículos de comunicação
Balaio
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Perfil
Kanye West Premiado rapper americano acrescenta mais um vexame à sua lista de gafes
Vicente Masip A dedicação espartana do linguista e professor ao estudo e ensino das línguas clássicas
Caetano Calomino A pintura artesanal de letreiros resiste e o sign painter é um dos especialistas na técnica
Matéria Corrida
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Cardápio
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Leitura
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Entremez
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Claquete
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Criaturas
História
Acervo Em novo site, a Cepe Editora oferece digitalização de publicações antigas e documentos históricos do estado
Visuais
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Conexão
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Fotografia, videoinstalação, performance: em qualquer suporte, a obra da artista Virginia de Medeiros parte da perspectiva de um intenso encontro com o outro
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José Cláudio Amigo Arthur Carvalho
Sanduíche Fast food ganha novo status, a partir da combinação com ingredientes sofisticados, explorando preparos, formatos e sabores
Infantojuvenil Variedade de narrativas lúdicas nos livros vencedores de concurso nacional
Ronaldo Correia de Brito Pra não dizer que não falei dos vaqueiros
Sangue azul Previsto para estrear em 2015, novo filme de Lírio Ferreira enfoca o drama de um amor controverso
Antonio Maria Por Aroeira
Tradição Suzhou
Cidade chinesa vizinha de Xangai mantém, desde o século 13, jardins cujo paisagismo cria cenários ideais à contemplação e ao deleite
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Especial
Viagem
Presente em vários momentos da história, personagem tem ocupado lugares simbólicos na sociedade, como observador e crítico da comicidade cotidiana
A primeira Floresta Nacional do país reúne, no semiárido, centenas de sítios arqueológicos com pinturas rupestres e jazidas de fósseis
Palco
Sonoras
Coletivo Cartográfico apresenta, dentro do festival Cena Cumplicidades, espetáculo Instruções para o colapso, que promove interação com transeuntes
Quarenta e cinco anos após a vinda do cantor Jimmy Cliff ao Recife, a cidade apresenta, em seu rico cenário musical, em torno de 50 bandas de estilo
Palhaço
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Reggae
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cartas FLORA PIMENTEL
Maria Rita Freire Fiquei muito feliz e comovido com a matéria sobre Maria Rita Freire Costa, que representa o Teatro de Resistência (seção Palco, edição nº 165). Ela vivenciou a história do Teatro Brasileiro, começando na TUP (Teatro Universitário de Pernambuco), e depois saltou para os palcos do Rio de Janeiro e São Paulo. Participando de clássicos do Teatro Universal, como A mãe, do polonês Stanislaw Witkiewicz, com direção do francês Claude Régy; Gracias, senõr!, com o grupo Oficina e direção de Zé Celso, e Torre de Babel, de Fernando Arrabal e direção de Luiz Carlos Ripper. Numa época difícil no país, com a ditadura militar e seus atos institucionais, ela insistiu, perseverou fazendo um teatro de repetência, épico, voltado para o humano, para a transformação e para o social, sem perder o lirismo. Lila, como era chamada por alguns, hoje é uma linda senhora de sorriso aberto, sincero, que vibra e se empolga quando fala de teatro, sua grande paixão. Essa matéria escrita dignamente por
Laís Araújo veio como presente pelos 50 anos, dedicados à arte, dessa grande mulher e artista chamada Maria Rita Freire Costa, que eu admiro e respeito. WILLIAM DI CASTILHO ARCOVERDE – PE
Maravilha, maravilha! Olá a todos que fazem a Continente! Eu sou assinante da revista há uns dois anos e vou logo confessando: a cada edição, mais envolvida e encantada com o nível de produção. Fotos, ilustrações, diagramação, temáticas abordadas, tudo me surpreende, me fascina enquanto leitora, e me contempla. Acaba que
a revista é um prazer mensal que envolve todos os meus sentidos e vontades literárias. Em agosto, destaco Silviano Santiago, João Donato e Octavio Paz! Ah, e o Portfólio, belíssimos trabalhos da Malika Favre. Maravilha, maravilha, maravilha! Parabéns a toda a equipe! E, para encerrar, vou aproveitar e sugerir que façam uma visita a Mossoró. Há um recanto de cidade que é ótimo poço cultural e de histórias (voto feminino, liberdade de escravos, bando de Lampião...). E tem o cordelista Antônio Francisco, o poeta que ocupa a cadeira de Patativa do Assaré, na Academia Brasileira de Cordel, e tem embelezado a vida de muita gente com poesia e a simplicidade do bem viver. BETHÂNIA LIMA E SILVA NATAL – RN
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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RESPOSTA DA REDAÇÃO Bethânia, agradecemos a sua atenção com a revista, ao escrever comentários e elogios; quanto à sugestão de Mossoró, vamos ver como realizar sua proposta!
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colaboradores
Aroeira
Marcelo Abreu
Marianne Consentino
Rodrigo Salem
Ilustrador e chargista, trabalha para os jornais O Dia e Brasil Econômico
Jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder – um repórter brasileiro na Coreia do Norte
Professora do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, mestre em Artes e doutora em Artes Cênicas
Jornalista, trabalha em Los Angeles como freelancer da Folha de S.Paulo, blogueiro do Yahoo Brasil e colaborador da Rolling Stone, Monet e Vogue
E MAIS André Nery, fotógrafo. Augusto Pessoa, fotógrafo. Eduardo Sena, jornalista. Guilherme Novelli, jornalista. Marina Suassuna, jornalista. Patrícia Amorim, jornalista, professora de História do Design na graduação em Design Visual da ESPM São Paulo e doutoranda em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design da UFPE.
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JIM JARMUSCH
“Você não quer acordar e aprender algo novo?”
Ao discorrer sobre seu mais recente filme, Amantes eternos, que trata de vampiros contemporâneos, cineasta norte-americano discute a decadência e mesmo o belo que pode haver nos estados de vulnerabilidade TEXTO Rodrigo Salem, de Cannes
CON TI NEN TE
Entrevista
Jim Jarmusch, um dos autores mais importantes do cinema alternativo norte-americano, está chateado. “O mundo mudou muito rápido no cinema. Conseguir financiamento é difícil e não sou um diretor comercial”, conta o diretor de obras como Uma noite sobre a Terra (1991), Homem morto (1995) e Flores partidas (2005). Jarmusch passou quase quatro anos tentando financiar Amantes eternos (Only lovers left alive), lançado recentemente no Brasil. No Festival de Cannes de 2013, pouco depois de finalizar o longa, que fez parte da competição oficial, o americano confessou ter investido do próprio bolso para financiar seu primeiro filme sobre vampiros, tema novamente em moda após Crepúsculo. Tilda Swinton e Tom Hiddleston fazem dois imortais que tentam entender a falta de interesse dos humanos, chamados de “zumbis”, pelo mundo ao redor e pela cultura. Repleto de comentários ácidos e rock’n’roll, Amantes eternos foi filmado em Detroit e Tânger, no Marrocos, e mostra um diretor afiado e sem concessões. “Fazer esse filme foi tão difícil e tivemos tantos problemas”, revelou Jarmusch, em entrevista.
CONTINENTE Você trabalhou em Amantes eternos por muitos anos. Por que a demora? JIM JARMUSCH Ninguém queria nos apoiar. Eu achava que era uma boa ideia, mas só me falavam: “Não, é muito caro”. O mundo mudou muito rápido no cinema. Conseguir financiamento é difícil e não sou um diretor comercial, então acho que era arriscado para eles colocarem dinheiro em algo comercialmente questionável.
morcego, de 1957. É interessante entender de onde os estereótipos que conhecemos vieram, porque mudaram muito ao longo dos anos. Você acha que eles tinham presas, mas não tinham. Ou alho, cruzes, estacas de madeira, luz do sol... É uma mitologia que foi mudando com o tempo. Na história da literatura inglesa, a trama dos vampiros começou com os poetas românticos. Eles também eram outsiders, pessoas desajustadas.
CONTINENTE Você começou esse projeto antes da moda de vampiros explodir. JIM JARMUSCH Adoro filmes de vampiros e de gênero. Há vários filmes lindos e estranhos sobre eles. Vampiros são outsiders, são deslocados. Ninguém sabe se são monstros ou vilões. Eu não li os livros de Anne Rice, mas sei que ela começou essa complexidade na história dos vampiros. A história deles no cinema é longa e interessante. O mais bonito, apesar de já um pouco batido, é Nosferatu (1922, de F.W. Murnau). Então, em 1931, tivemos Drácula, que é universal. Depois tivemos O vampiro (1932), de Carl Dreyer, que é muito incomum. O primeiro filme de vampiros com presas é o mexicano O
CONTINENTE Seus vampiros usam luvas o tempo todo no filme. Por quê? JIM JARMUSCH As luvas são a nossa adição ao mito. Eu queria criar os meus próprios estereótipos. Achei que ficariam legais com as luvas, e que seria sexy quando eles as tirassem; quando acontece isso, é como se fosse nossa cena de sexo. Meio deprimente, não é? CONTINENTE Você tem um vampiro favorito na literatura ou no cinema? JIM JARMUSCH É uma coisa mais cumulativa. Recentemente, houve vários interessantes, como Fome de viver (1983), de Tony Scott, com Catherine Deneuve, e que faz uma leitura interessante do
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algum político disse, uma interpretação filosófica de algo, ele sempre tem que pensar sozinho. É muito aberto. Ele não era um antistratfordiano (pessoas que duvidam da autoria de Shakespeare), como eu, mas dei vários livros pra ele, que devorou, e agora diz que tenho razão. Fica tentando convencer os outros. CONTINENTE Você mencionou que o mundo do cinema mudou muito nos últimos anos e esse filme levou sete anos para ser feito. Pensa em se aposentar ou sente que tem energia para continuar por mais alguns anos? JIM JARMUSCH Eu não sei. Fazer esse filme foi tão difícil e tivemos tantos problemas. Eu tinha tantos projetos, mas queria fazer esse. Pensei
CONTINENTE Você vê esse filme como uma história de amor? JIM JARMUSCH Sim, definitivamente. E acho que a moral desse filme é que amor é aceitar o outro pelo que ele é, seja seu filho seja seu amante. Histórias de amor não funcionam quando um quer que o outro seja algo diferente. Essa é a coisa mais importante que aprendi na minha vida, por esse motivo queria ter isso no filme. CONTINENTE O que há de especial em Detroit? Por que tantos gêneros, como o soul da Motown e a house music, começaram lá? JIM JARMUSCH Não sei. Acho que é como um cogumelo, que tem uma rede de inteligência que vive embaixo da terra, e daí as coisas que vemos em
Michel Gondry remixarmos uma música do White Stripes, Blue orchid. Ele disse: “Vocês dois são diretores de que eu gosto e os dois têm um background musical”. Não consegui fazer sozinho, sem equipamento, então tinha um cara que eu conhecia que era brilhante (Shane) e ele começou a me ajudar. Eu, ele e Carter começamos a gravar algumas coisas para o meu último filme (Os limites do controle, de 2009), músicas de rock psicodélico que eu não conseguia encontrar, então criei as minhas próprias. Nessa época, lançamos um EP com o nome Bad rabbit, mas há muitas bandas com o nome Rabbit, então pensamos, por que não Squirrel? Eles são mencionados em Sobre café e cigarros. Então, agora somos o SQÜRL. Trabalhamos com (o compositor
“Talvez seja uma falha minha, ver beleza em coisas destruídas. Mas acho que isso vem do fato de eu ter crescido em uma área pós-industrial. Em Detroit, eles chamam isso de ruin porn” comigo mesmo: “Se eu soubesse que não vou viver muitos anos mais – o que não é o caso –, o que gostaria de fazer?” e era esse filme. Tilda me apoiou ao longo dos anos. Toda vez que dava errado, ela falava: “Tem uma razão por trás disso, não era a hora certa”. Mas ela não abandonou o projeto. Eu decidi fazê-lo de qualquer maneira, e esse não é um bom jeito de fazer um filme. Sei que não vou parar de me expressar, porque esse é meu trabalho, mas talvez faça coisas menores em cinema, música, literatura. Não sei. Amo cinema e quero continuar fazendo filmes, mas o mundo não quer mais que eu os faça, ao menos, não nesse nível. Ninguém está feliz em me ajudar.
cima da terra são apenas os receptores e os órgãos sexuais da coisa toda. Metaforicamente, tem algo embaixo da terra, em Detroit, que nunca vai morrer. Mesmo nos anos 1960, você tinha MC5, Stooges, e um rock’n’roll revolucionário sendo produzido lá. E ainda há muita coisa interessante acontecendo. CONTINENTE Você tem uma banda, mas, quando mencionou esse grupo em Sobre café e cigarros (2003), ele ainda era imaginário. Pode falar um pouco sobre isso? JIM JARMUSCH Bem, no momento, somos três caras, mas está mudando. Eu, Carter Logan, que foi um dos produtores desse filme, e Shane Stoneback, um produtor musical de Nova York. Anos atrás, Jack White pediu pra mim e para
holandês) Jozef van Wissem, com quem gravei no ano passado como guitarrista, e ele também toca com a gente. CONTINENTE Você pode falar um pouco sobre filmar em Tânger? JIM JARMUSCH Adorei filmar lá, foi muito interessante. Me sinto muito atraído por aquele lugar. A nossa equipe marroquina também nos ajudou muito, não podíamos passar com carros ou caminhões pelas ruas menores, então tínhamos que levar tudo de moto, tivemos que usar pouquíssimas luzes à noite. Foi uma experiência muito positiva. Não quero analisar o meu lado emocional, porque fiz isso ou aquilo. Ok, vou te falar o que é legal sobre Tânger. Ela foi estuprada por todas as
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num momento de mudança global em todos os sentidos. O planeta não vai mais se sustentar da maneira que vivemos, mas os humanos ainda estão alheios a isso, apesar de já estarmos vendo mudanças climáticas desde os anos 1970. Ninguém está fazendo nada a respeito. Ao mesmo tempo, esse mundo corporativo é muito triste, porque fica nos empurrando coisas goela abaixo. Não há mais uma cultura realmente underground. Mas talvez haja, porque conheço direto gente que não quer essa vida corporativa pra eles. No festival que toquei, em Barcelona, o Primavera Sound, havia tantas ideias musicais incríveis. Te faz sentir que nem tudo está perdido. Ainda há muita energia boa por aí nos jovens que rejeitam essas bobagens.
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culturas possíveis, e ainda é ela mesma até hoje. É como uma prostituta de quem todo mundo tirou vantagem, e ela ainda é mais forte do que eles. As ruas de Tânger já viram pessoas de todos os lugares rolarem por elas como água. Você vê pessoas nas ruas vendendo e que não sabem nem escrever, mas falam várias línguas. Há a liberdade de tudo ser aceitável, ninguém te julga. E também há o fato de as pessoas não poderem beber álcool, algo que eu apoio, pois estou entediado pela cultura do álcool. Já morei em Nova York e na Europa, onde tudo o que as pessoas fazem é sair à noite e beber. Em Tânger, o álcool não é muito interessante. Eles preferem haxixe, você sente o cheiro em todos os lugares. E é diferente ter
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CONTINENTE Você falou sobre o fato de o cinema ter mudado, e o seu filme também fala sobre mudanças. Acha que estamos no meio de uma reviravolta cultural, de certa forma? JIM JARMUSCH Sim, porque estamos
CONTINENTE E por que você não tenta crowdfunding? JIM JARMUSCH Estou pensando nisso. No momento, esse projeto está na gaveta, ainda tenho gente filmando algumas coisas. Talvez coloque o projeto no Kickstarter e façamos algo. Mas quero que seja meu filme. Porque Iggy Pop me pediu para fazer esse filme antes que eu e ele morrêssemos. E Iggy é uma pessoa incrível, toda vez que o encontro ele quer conversar sobre algo novo que descobriu, alguma gravação obscura
“As ruas de Tânger já viram pessoas de todos os lugares rolarem por elas como água. Há a liberdade de tudo ser aceitável, ninguém te julga”
Entrevista pessoas ao seu redor que estão altas por causa da cannabis. É diferente de pessoas bêbadas. Faz parte da aceitação que eles têm pelas coisas. E é engraçado que, em pleno 2013, as pessoas ainda vivam em uma área urbana com galos te acordando de manhã. Aliás, era um saco pra filmar de madrugada, porque os galos ficavam cantando. Mas eu os adorava, ao mesmo tempo. E você consegue ver a Espanha de lá, e a Espanha é tão distante deles culturalmente. Eu adoro Tânger, poderia morar lá.
é como se eu nunca tivesse feito um filme na vida, conheço os Stooges, tenho coisas lindas já filmadas, não vou aceitar essa merreca para que eles possam editar meu filme. O que é isso?
Mas tudo isso custa dinheiro para fazer, e você não pode usar o seu próprio, a menos que você seja rico. Por exemplo, estou tentando fazer um filme sobre The Stooges, a banda de rock. Eles foram muito importantes para a cultura do rock’n’roll, são muito primais, uma entidade musical, praticamente. Quero fazer do meu jeito, meio poético, já fiz uma parte e gastei 35 mil dólares do meu próprio bolso. Não tenho mais dinheiro para gastar nele agora, então fui procurar investidores na Inglaterra, e eles queriam ser os responsáveis pela edição. E eu fiquei tipo: “Sério? Estou trazendo meu trabalho pra cá e vocês fazem isso?”O fato me chocou um pouco, porque eu nem estava pedindo tanto dinheiro assim. E não
de jazz, um livro sobre os egípcios. Provavelmente, quando ele morrer, vai falar: “Oh, cara, eu estava lendo esse livro, preciso terminar...” Iggy é velho, mas é como uma criança, ao mesmo tempo, sempre aprendendo sobre a vida. E há pessoas que são jovens, mas são velhas mentalmente, não querem tentar mais nada e podem bem se aposentar. CONTINENTE Os seus filmes são construídos quase como música, quase como uma jam session de jazz. Você concorda com isso? JIM JARMUSCH Sim, muito. Cinema e música são as duas formas de arte mais próximas, porque te afetam de maneiras parecidas. Minha maneira de fazer os dois é muito parecida, nos meus filmes eu não crio um storyboard por exemplo.
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Trabalhar com o diretor de fotografia Yorick Le Saux nesse filme foi legal por isso. A gente ficava só pensando em ideias legais, luzes, coisas abstratas. E no dia é que decidíamos como a cena seria filmada, ali na hora. Acho que nossos instintos devem prevalecer sobre nossa racionalidade. Quando você vê uma banda como o U2 tocando ao vivo, com um metrônomo, você vê que algo se perdeu no processo de criar arte. O show deles têm mais a ver com as luzes, não é tão interessante para mim. É a mesma coisa com cinema. Se você tem um storyboard e o segue à risca, é muito entediante. E é ruim até mesmo para quem produz o filme, porque eles chegam no dia e perguntam: quantas cenas vocês vão fazer hoje? E eu
etc. Não é nada tradicional, nada narrativo, é quase como um ensaio. E ele usou equipamentos superprimitivos, filmou em super-8, câmeras antigas de vídeo, essas coisas. Esse filme teve umas críticas péssimas. Mas ele me faz sentir como um vendido, um cara comercial, porque o trabalho dele é tão puro, instintivo e lindo. E as pessoas que assistem, que têm alguma humanidade nelas, não esses críticos, são tocadas por isso, algumas delas até choram. Mas até mesmo o festival de cinema de Cleveland rejeitou o seu filme. Mas eu entendo, o filme não é nada “polido”, foi feito no porão dele, não é para as massas. CONTINENTE Qual a lista de livros que você levaria para qualquer lugar?
pensar: “Por que você não tem e-mail, seu idiota? Ei, o e-mail já foi inventado, você é um idiota”. CONTINENTE Então, o que você faz? Manda faxes? JIM JARMUSCH Não, eu tenho um celular, então mando mensagens de texto ou falo pessoalmente. Mas tenho uma conta de e-mail no escritório, que só recebo lá. Vejo gente que conheço que passa cinco horas do dia lendo e-mails, eu não tenho tempo pra isso. E-mail é como uma coleira, e não quero isso pra mim. O celular já é uma coleira. CONTINENTE Você disse que não leu os livros da Anne Rice, mas provavelmente sabe que um dos vampiros dela, Lestat, é um rockstar, certo?
“No festival que toquei, em Barcelona, o Primavera Sound, havia tantas ideias musicais incríveis. Te faz sentir que nem tudo está perdido”
sempre falo que não sei, porque não sei mesmo, vou pensando à medida que vou fazendo. E, sem querer me gabar, acho que esse filme tem uma elegância sensual, porque era isso o que estávamos sentindo, enquanto o fazíamos. CONTINENTE Quão importante é a narrativa para você? JIM JARMUSCH Eu adoro histórias. Acho que meus filmes são narrativos, mas alguns críticos teimam em discordar. Eu não sou um cineasta experimental. Ontem, fiz uma entrevista e alguém mencionou o filme Sometimes city, feito pelo meu irmão Tom, nove anos mais novo que eu, que é sobre a cena underground de Cleveland, Ohio, com seus artistas, suas fábricas, gangues
JIM JARMUSCH Essa é difícil. É como perguntar meus cinco filmes favoritos, não consigo. Eu sempre tenho livros comigo, mas não consigo escolher alguns. Leio de tudo, ficção, não ficção, poesia, livros sobre cinema, sobre livros, devoro coisas diferentes, quando posso.
JIM JARMUSCH Não sabia, mas, sim, faz sentido. Algumas pessoas me falam que David Bowie poderia ser um vampiro, e quero mostrar meu filme a ele de alguma maneira, porque também acho que faz sentido, porque ele é uma inspiração para mim e um grande amigo de Tilda.
CONTINENTE Você gosta da experiência física ou você os lê no seu tablet? JIM JARMUSCH Eu gosto do físico. Eu tenho um tablet, mas não leio livros nele. Eu só o uso para acessar a internet, essas coisas. Mas eu continuo sem um endereço de e-mail. Meu iPad sempre me pergunta se eu não quero criar uma conta de e-mail, e sempre tenho que falar que não. Eu já o tenho há dois anos, ele deve
CONTINENTE Você sabia que uma produtora brasileira está produzindo o novo filme do James Gray? Você deveria conhecê-los. JIM JARMUSCH Uau, isso seria ótimo, porque pelo menos James Gray sairia das garras de Harvey Weinstein. Não estou falando mal dele, mas deixem James Gray fazer seus próprios filmes. Não lhe digam como editar. Façam suas coisas de marketing e deixem o cara fazer o filme dele.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
PALHAÇOS
INFANTIS
Neste mês, o site da Continente também veste o nariz vermelho do palhaço. Para complementar o conteúdo da matéria de capa desta edição, a página preparou uma lista com as cinco mais emblemáticas aparições dos palhaços na cultura pop, passeando por gêneros e linguagens. Também está disponível um capítulo da série televisiva Crime stories, que busca compreender a vida, a psiquê e os crimes do palhaço assassino John Wayne Gacy, símbolo da faceta maléfica do clown. Por fim, há a performance da música Palhaço, do multi-instrumentista, compositor e estudioso do som Egberto Gismonti.
Veja uma galeria montada com ilustrações que integram o acervo de nove livros infantis e juvenis lançados pela Cepe Editora, desenhadas por profissionais de todo o país.
Conexão
REGGAE Assista ao mais recente documentário sobre Bob Marley. O filme, de 2012, narra a trajetória do artista, desde a infância pobre até o sucesso mundial do ritmo jamaicano.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
ASSOMBRAÇÕES
VARIEDADES
CRÍTICA
QUADRINHOS
O cotidiano da capital pernambucana em narrativas de horror
Blog de variedades traz vídeos, notícias e seções utilitárias
Site reúne críticos certificados e dá nota a filmes e séries
Arquivo mostra como as mulheres são representadas em HQs
orecifeassombrado.com
ovelhaeletrica.com
rottentomatoes.com
eschergirls.tumblr.com
Em maio deste ano, a editora Bagaço lançou a coleção de histórias em quadrinhos Recife Assombrado. O gibi deriva do site homônimo, idealizado por André Balaio e Roberto Beltrão, criado em julho de 2000. O espaço recebe colaborações de escritores e ilustradores que inventam contos e quadrinhos com narrativas do gênero de horror. Ambientadas na capital pernambucana, as histórias apresentam personagens conhecidos da cidade, como a Perna Cabeluda e a Comadre Fulozinha.
O Ovelha Elétrica organiza seu conteúdo em formato de blog e passa pelos assuntos mais variados. Apesar disso, ele tem seções especiais com linha editorial definida. Um exemplo é a Fictorama, que reúne contos de ficção científica. Todas as quintas-feiras, o site apresenta um jogo novo e, geralmente, pouco conhecido. A aba Mestres da Gambiarra agrega tutoriais e ideias de reutilização e improvisação com materiais velhos.
Em português, Rotten Tomatoes seria algo como “Tomates Estragados”, referindo-se à prática de jogar tomates nos atores de espetáculos considerados ruins. O site estadunidense tem um sistema sofisticado de classificação por notas para filmes e séries. Os críticos são certificados e classificados pelo local em que trabalham ou pelo número de curtidas que recebem dentro do próprio portal. A média de todas as avaliações gera a nota da obra. No fim do ano, o filme mais bem-classificado ganha o título de Golden Tomato, ou Tomate de Ouro.
A exacerbação da sexualidade feminina em ambientes e produtos tradicionalmente destinados aos homens não é novidade. Dentro das histórias em quadrinhos, essas imagens são recorrentes e há muito tempo são denunciadas. O tumblr Escher Girls arquiva essas ilustrações, deixando claro como essas representações são inconvenientes, quando comparadas aos estereótipos de força e virilidade que predominam nos personagens masculinos.
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REPRODUÇÃO
blogs JORNALISMO E ARTE notaderodape.com.br
Sob a proposta de “escreva sobre o que te irrita ou agrada muito”, o blog Nota de Rodapé é um espaço colaborativo que aborda jornalismo e arte. A página foi criada em 2005 pelo jornalista Thiago Acioli. Segundo ele, o site congregou colaboradores para compensar o pouco espaço para novos autores no jornalismo tradicional. Atualmente, conta com quase 20 colunistas.
DONOS DA MÍDIA
SÁTIRA AO LUXO
Site traça panorama sobre grupos do setor no Brasil, com informações sobre emissoras de rádio e TVs abertas, por assinatura e a cabo, revistas e jornais
Um porta-maçãs que custa mais de R$ 300, uma marmita personalizada (duas gavetas, talheres acoplados e potinhos de tempero) e cápsulas de vitamina sabor brigadeiro: é a gourmetização da vida. O blog é uma sátira ao poder que os rótulos e pequenos ingredientes classificados como elementos de luxo são usados para criar, ou forçar, um sentimento de exclusividade e distinção de classes.
gourmetizacaodavida.tumblr.com
donosdamidia.com.br
Algumas preocupações básicas levaram os pesquisadores do site Donos da
Mídia a fazerem esse mapeamento do sistema de comunicação no Brasil. Uma delas é o uso das licenças para os veículos eletrônicos de comunicação (TV e rádio) como moeda de troca dentro do Congresso Nacional. O projeto é mantido voluntariamente por profissionais, professores e estudantes universitários, que acompanham os dados relativos aos grupos e redes de comunicação dos quais o site trata. O projeto nasceu, como aponta sua apresentação, na década de 1980, “a partir de um trabalho pioneiro, elaborado pelo jornalista Daniel Herz”. Na década seguinte, a estudante de Jornalismo Célia Stadnik aprofundou as pesquisas no seu trabalho de conclusão de curso, pegando os dados anteriores e organizando-os em redes. Assim, foi definindo o real alcance dos grupos de comunicação, considerando suas filiais e regionais e o total de veículos que um único conglomerado possui. Hoje, o portal divulga informações importantes, como nomes de figuras políticas que concentram outorgas, divulgando seu partido e o número de veículos que controla. É possível, ainda, checar informações a partir dos estados onde os canais operam. PETHRUS TIBÚRCIO
MODELO ATIVISTA pavel-petel.tumblr.com
Nos últimos anos, a Rússia ganhou atenção da mídia internacional pelas políticas homofóbicas que tem aprovado, inclusive com leis defendidas pelo presidente Vladimir Putin. Nesse ambiente hostil, surge o modelo ucraniano Pavel Petel que, musculoso e barbado, desfila de rosa e salto alto. Ele usa sua profissão para questionar estereótipos.
sites sobre
sebos virtuais ESTANTE VIRTUAL
SEBOS ONLINE
LIVROS DIFÍCEIS
estantevirtual.com.br
sebosonline.com
livrosdificeis.com.br
O Estante Virtual é hoje um site de referência para a compra e venda de livros usados, no Brasil. São 12 milhões de livros pertencentes a cerca de 1.300 sebos e livreiros.
O Sebos Online reúne proprietários de todo o país e divide seus produtos em livros, revistas, gibis, DVDs, CDs, vinis e VHS.
O Livros Difíceis disponibiliza um sistema em que o leitor indica o livro desejado e o site procurará em livrarias, bibliotecas pessoais e editoras.
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PEDRO IVO TRASFERETTI/DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Virginia de Medeiros
A VERDADE ESTÁ NO SENTIMENTO TEXTO Luciana Veras
Se fosse instada a completar a frase que serve de tema à 31ª Bienal de São Paulo – Como (…) coisas que não existem –, talvez a artista visual baiana Virginia de Medeiros optasse por um verbo de que lança mão com frequência: sentir. Porque a percepção é parte essencial em suas obras. Nelas, o público reconhece a travessia empreendida até a obtenção do resultado; em troca, recebe a partilha de algo vivenciado por Virginia e traduzido – com subtrações e adições inevitáveis – em uma fotografia, uma performance, um livro ou uma videoinstalação, a exemplo de Sérgio e Simone (2009-2014), registro audiovisual mostrado numa das salas do pavilhão desta edição da exposição no Parque do Ibirapuera. Curioso é que sua trajetória de tecer narrativas em múltiplas linguagens começou num sítio na zona rural de Feira de Santana, a 117km de Salvador, onde ela morou até os 18 anos com os pais e dois dos sete irmãos. “Criava bicho, plantava, prestava atenção ao ciclo da semente”, relembra, “mas não pensava muito, apenas vivia intensamente”. No momento de escolher o que estudar, seu pai, um comerciante, sugeriu-lhe Arquitetura. “No período da inscrição para o vestibular, teve uma excursão para a Bienal do Recôncavo, em São Félix. Foi a primeira vez que vi uma mostra artística. Essa experiência definiu um caminho. Decidi: 'quero ser artista’”, conta. Houve o prenúncio das constantes reinvenções às quais ela e seus personagens se submetem: em vez de Arquitetura, Virginia optou por Artes Plásticas e foi aprovada na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Confidenciou à mãe que não tinha coragem de contar ao pai. “Ela me respondeu: ‘minha filha, mentir para conquistar a liberdade não faz mal’. Ganhei a possibilidade de trabalhar num plano imaginário”, recorda a artista, radicada há seis anos em São Paulo, mas essencialmente uma andarilha em CO N T I N E N T E O U T U B R O 2 0 1 4 | 1 6
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CONTINENTE Você filmou em uma Detroit decadente. Vê beleza em desolação, lugares e pessoas em que faltam pedaços? JIM JARMUSCH Sim. Talvez essa seja uma falha minha, ver beleza em coisas destruídas. Mas acho que vem do fato de ter crescido em uma área pós-industrial (Cuyahoga Falls, Ohio), isso está no meu sangue, na minha noção de estética. Os cenários em que vivi também sempre passaram essa ideia. Mudei-me para Nova York muito novo e sem dinheiro. Morava no Lower East Side, onde só tinha lixo e viciados. Foi uma parte importante da minha composição visual. Celebro isso, mas não de propósito. Em Detroit, eles chamam isso de ruin porn, porque fotografar as ruínas da cidade é como pornografia para eles.
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
gênero. Eu adoro Deixe ela entrar (2008), que é maravilhoso. Mas a obra-prima pra mim é mesmo Nosferatu. Há os elementos diferentes de vampiros também, como o lance das vampiras lésbicas, quase um gênero à parte, tanto na literatura quanto no cinema, com filmes softcore tipo os do diretor francês Jean Rollin. E há um outro lado completamente diferente, que são os filmes sobre (Elizabeth) Báthory, da vampira que se banha em sangue. Há ainda o subgênero dos matadores de vampiros, como em A dança dos vampiros (1967), de Roman Polanski, ou o personagem Van Helsing, criado pelo Bram Stoker (autor de Drácula). Isso cria diferentes tipos de tensão. É um gênero que tem muitas ramificações.
CON TI NEN TE
“Adoro filmes de vampiros. Há vários filmes lindos e estranhos sobre eles. Vampiros são outsiders, são deslocados. Ninguém sabe se são monstros ou vilões”
Entrevista CONTINENTE Seus vampiros são mais vulneráveis? JIM JARMUSCH Todos os vampiros são vulneráveis. Eles têm de se sustentar com sangue. Imagine as consequências disso, os problemas que você teria com as autoridades, se tivesse que sair por aí mordendo as pessoas para se alimentar, ou se as transformasse em vampiros, elas teriam de lidar com as mesmas coisas, é uma grande responsabilidade. Imagine a dificuldade de evitar a luz do sol. Quando estava escrevendo esse filme, fiquei pensando nas dificuldades que um vampiro teria, agora, em encontrar sangue bom; você não pode morder qualquer um, pode ser um viciado, vai saber.
se estamos falando de vampiros. Por que alguém ia querer viver por tanto tempo e não querer aprender coisas sobre o mundo? Você, como humano, não quer acordar todos os dias e aprender algo novo? Eles seriam pessoas muito entediantes, se vivessem por centenas de anos e não soubessem de nada. Não ver as coisas lindas e estranhas que acontecem no mundo é coisa para zumbis, não vampiros. Eu mesmo me considero um diletante, não de maneira negativa, porque não consigo estudar só uma coisa, mas sou um cineasta obsessivo, leio livros vorazmente, adoro música, já estudei música e na faculdade estudei como identificar cogumelos, pássaros, plantas, tem tantas coisas que me interessam. Acho incrível quem
CONTINENTE Você acompanha o Instagram? Há muitas pessoas postando fotos assim. JIM JARMUSCH Sim, e elas são lindas e, ao mesmo tempo, cortam o coração, porque mostram algo que não está mais ali. Quer dizer, ainda está ali, mas está se destruindo. Isso existe em todo lugar, é igual a quando você dirige para fora de Roma e vê construções de 2 mil anos se desfazendo.
constrói pontes, o telescópio Hubble, o genoma humano, o bóson de Higgs, é tudo impressionante. Tilda [Swinton] é uma grande inspiração para esse filme, porque ela é o tipo de pessoa que é interessada em tudo, de descobertas em neurociência a... sei lá, tudo. Ela é uma deusa boêmia dos nossos tempos. Ser amigo dela e trabalhar com ela, pra mim, não tem preço.
CONTINENTE Um dos aspectos interessantes sobre o filme é que você nos dá uma boa noção de como é ter vivido por centenas de anos. Apesar dos vampiros já terem um acúmulo de conhecimento, eles não se cansam de saber mais sobre o mundo. Isso é algo que faz parte do seu ideal de eternidade? JIM JARMUSCH Bem, isso é meio óbvio,
CONTINENTE E como é trabalhar com John Hurt? JIM JARMUSCH Ele é um homem tão refinado e inteligente, e sua mente funciona de um jeito fascinante. Ele nunca faz as coisas da maneira que você diz, ele sempre quer pensar a respeito. Não importa se é algo que
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IMAGENS: VIRGINIA DE MEDEIROS/DIVULGAÇÃO
3 Página anterior 1 FÁBULA DO OLHAR
Entrevistas com moradores de rua de Fortaleza geraram série de perfis fotográficos
Nestas páginas 2 SÉRGIO E SIMONE
Trabalho está em exposição na 31ª Bienal de São Paulo
3 STUDIO BUTTERFLY Instalação resulta da convivência, durante dois anos, com travestis 4 EM TORNO DOS
MEUS MARÍTIMOS
Intimidade de uma velha prostituta norteia obra exposta no MAR
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JOÃO MILET/DIVULGAÇÃO
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busca de vivências na região fronteiriça entre ficção e documentário. “A rua é meu laboratório”, prossegue. Em Sérgio e Simone, por exemplo, ela passeava por uma área degradada no centro de Salvador, quando conheceu uma travesti que havia se proclamado guardiã de uma fonte. Passou a filmá-la com a mesma confiança e intimidade com que anos depois fotografaria Marinalva, a velha prostituta da série Em torno dos meus marítimos (2014), atualmente exposta no MAR - Museu de Arte do Rio. Quando seu interlocutor sofreu uma overdose e, na colisão com a finitude da vida, resolveu se converter, saiu Simone, ressurgiu Sérgio. Já como pastor evangélico, ele adotou a obra que Virginia realizou como "testemunho de fé" e prova de sua nova orientação sexual. “Nele há uma subjetividade complexa, que atua em um jogo de formação e dissolução de figuras. A montagem em três telas na Bienal é para potencializar o conflito”, explica. Virginia se interessa pelo outro de uma forma que descreve como “quase obsessiva”: “Há uma sensação de incompletude que o outro preenche;
meu trabalho é também um processo de autoconhecimento”. Sua criação é um mergulho, um estado em que ela procura ampliar limites ou anular certezas. Em Studio Butterfly (2004-2006, presente na 27ª Bienal de São Paulo), foram dois anos de convivência com travestis, para dali nascer uma instalação, um livro de contos e um vídeo do qual ela afasta rasas tentativas de deliberação. “A verdade não está no fato, está no sentimento. Trabalho com a fabulação, com a liberdade da distorção. Posso distorcer a partir do que senti ao gravar o relato deles, por exemplo, mas, quando faço isso na edição, é para trazer a complexidade do personagem e não para cair na minha moral”, conceitua. Sua construção como artista se dá no “ao longo” da jornada. E sua inserção varia conforme os suportes a demarcar o escopo de uma determinada obra. Em Fala dos confins (2010), apropriou-se das lembranças do pai como caminhoneiro e projecionista de cinema e transformou uma kombi “no resgate de memória afetiva e da oralidade do sertanejo para escutar literatura na voz”. Para Fábula do olhar (2013), perguntou a moradores de
rua de Fortaleza como se idealizariam, se essa chance lhes fosse dada. Fotografouos em preto e branco e deu os originais a um famoso fotopinturista cearense, mestre Júlio Santos, que retocou as imagens, fundindo realidade e desejo de representação. Jardim das torturas (20122013), uma bolsa concedida pela Funarte, levou-a à Casa do Sol, outrora residência da escritora Hilda Hilst (1930-2004), onde Virginia desenvolveu uma série em que conviveu com uma família adepta dos rituais sadomasoquistas de dominação, dos quais ela participa com uma performance. Suas referências são enumeradas na mesma velocidade com que discorre sobre seus projetos: Genet, Stendhal, Tolstói e Guimarães Rosa são escritores que cultua; Tarkóvski e Pedro Costa simbolizam o cinema que a cativa; e Isaac Julien, Nan Goldin e Cao Guimarães são artistas que admira. Virginia de Medeiros, 41, já foi ao Timor-Leste, ao Canadá, a Angola, a Nova York, e mais além, se contarem todas as suas exposições. “Mas, para falar a verdade, acho que a minha fortaleza está na minha infância, na roça... no sertão que carrego comigo.”
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5 FALA DOS CONFINS Aqui, Virginia remete-se às memórias do pai caminhoneiro e projecionista 6 JARDIM DAS TORTURAS
Performance surgiu a partir de imersão da artista em rituais sadomasoquistas 7 APHASIA Obra foi criada para o projeto Vídeo Guerrilha, exibido na fachada de prédio paulistano
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SMART FAIXA
O rei das gafes Se tem uma pessoa que se supera, essa é Kanye West. A mais recente do rei das gafes aconteceu mês passado, numa apresentação na Austrália. Em determinado momento do show, o rapper americano pediu para o público se levantar. Dois fãs permaneceram sentados. Ele, então, disse que só iria continuar a cantar se todos estivessem de pé. Um dos espectadores mostrou a prótese que usava para andar. Não contente, o artista mandou o segurança checar se o outro seria cadeirante também. Comprovada a impossibilidade, ele, enfim, seguiu com a performance. Há cinco anos, o músico protagonizou um dos maiores constrangimentos da história da música, que ocorreu na entrega do prêmio de Melhor Vídeo Feminino no VMA, da MTV. Ao ver Taylor Swift receber a estatueta (foto acima), ele não teve dúvida: subiu ao palco, pegou o microfone da mão da cantora e mandou ver, ao vivo para todo o mundo, um discurso em que afirmava que o clipe Single ladies, de Beyoncé, era o melhor (“da década”). Fora esses vexames e os 124 prêmios recebidos, incluindo 21 Grammys, o sem-noção também acumula a maior quantidade de frases mais tresloucadas proferidas por um artista. Quase todas ligadas ao fato de ele ser a criatura mais especial da face da Terra. Com uma vaidade tão leve quanto uma bigorna, Kanye não poderia ser casado com ninguém menos que a rainha das periguetes, Kim Kardashian. DÉBORA NASCIMENTO
CON TI NEN TE
A FRASE
“A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo.” Alan Kaye, tecnólogo
Em um trecho de 165 metros bem movimentado, a cidade chinesa de Chongqing pintou duas faixas na calçada: uma para quem está usando smartphones e outra para pessoas sensatas. A ideia, que tem o objetivo evitar as constantes esbarradas dos transeuntes, surgiu após sinalização semelhante ter sido aplicada em Washington DC. De acordo com a universidade da capital dos EUA, um em cada três americanos está distraído com algum desses aparelhos enquanto caminha pela rua. Para completar, o departamento de transportes do país estabeleceu uma ligação entre o aumento de atropelamentos e mortes de pedestres ao uso de celulares. Em vez de mudar o comportamento após a marcação, a maioria dos pedestres chineses passou a tirar fotos das faixas. E muitos nem perceberam as divisórias. Estavam “no” celular, ora essa! (DN)
Balaio BALDE DE ÁGUA FRIA!
A palavra “desafio”, recorrente no meio político, empresarial e esportivo, invadiu a internet nos últimos meses, a partir dos virais mais badalados do ano, o “da cara limpa” e o do “balde de gelo”. O primeiro envolve uma aposta de teor ambíguo: não se sabe se é machista (ver qual mulher se garante sem maquiagem) ou idealista (para o sexo feminino não ficar refém do make up). Apesar de esdrúxulo, o segundo tem um propósito mais nobre, arrecadar fundos para pesquisas sobre a esclerose lateral amiotrófica. A doença degenerativa vitimou um jovem chamado Pete Frates e isso foi o estopim para a criação da campanha. Mas a campanha passou por contratempos. Em Kentucky, quatro bombeiros que ajudavam 100 universitários a tomar o banho gelado ficaram gravemente feridos ao receberem uma descarga elétrica, depois que a escada do caminhão encostou na fiação. Já em Massachussets, Corey Griffin, amigo de Frates e fundador do desafio, morreu afogado. Parece brincadeira, mas foi verdade. Ainda circulou a informação de que o problemático jogador Valdivia participou do desafio, pegou pneumonia e desfalcou o Palmeiras. A notícia era falsa, apenas sobre a pneumonia. (DN)
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ARQUIVO
PLÁGIO E CIA (I) As novas tecnologias têm incrementado plágios e outras violações de direitos autorais, a ponto de a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) registrar em seu site: “Nos últimos anos, essa prática vem se multiplicando, de forma alarmante, no ambiente acadêmico e de pesquisa, por conta do volume e da diversidade de informações, descobertas e conhecimentos disseminados, em especial, pela internet”. Na música popular brasileira, dois dos mais antigos casos têm a ver com pernambucanos: os Irmãos Valença (acima), que tiveram a marchinha A mulata transformada por Lamartine Babo em O teu cabelo não nega, e João Pernambuco, autor de Engenho de Humaitá, música que receberia letra de Catulo da Paixão Cearense e ficaria famosa como Luar do Sertão. Nos dois casos, os autores ganharam na Justiça e tiveram seus nomes incorporados às obras. (Gilson Oliveira)
PLÁGIO E CIA (II)
Uma das mais recentes e curiosas questões autorais é a paródia que o humorista e deputado federal Tiririca (acima) fez da música O portão, de Roberto e Erasmo Carlos. Em sua campanha pela reeleição, o candidato, entre outras coisas, mudou a letra original (“Eu voltei, agora pra ficar,/ porque aqui, aqui é o meu lugar”) para “Eu votei, de novo eu vou votar./ Tiririca, Brasília é o seu lugar” e, vestido num terno branco, ainda usou uma expressão que é uma das marcas de Roberto: “Bicho”. A dupla RC e EC não achou a ideia do humorista nem um pouco engraçada, e, pra lá de tiriricas (palavra que tem como sinônimos “zangado” e “furioso”), acionou a Justiça. O processo tem tudo para ficar na história como um dos mais estrepitosos – devido a seus aspectos inusitados – ou silenciosos – por envolver gente muito popular e poderosa. Quem viver, verá... (GO)
Meio século sem Maria Há 50 anos, o Brasil perdia uma de suas personalidades mais notáveis. Aos 43 anos, Antônio Maria, morria do coração. A frase anterior poderia citar “enfarte”. Mas, apesar dos problemas cardíacos, ele morreu mesmo foi de amor. Sofria, então, uma desilusão amorosa fatal, o fim da relação com Danuza Leão, que o abandonou por conta do ciúme doentio dele. Quatro anos antes, a socialite havia deixado o marido, Samuel Weiner, para viver com Maria, que era empregado do dono do Última Hora. Contase que o charme do jornalista, compositor e cronista era imbatível, tanto para conquistar mulheres quanto amigos. Fora a vida boêmia e o sexo feminino, outra paixão era o trabalho. Vivia escrevendo. Andava, inclusive, com uma máquina de escrever no carro. Porque, apesar de ser casado, nunca sabia onde dormiria. Sobre seu texto, disse Paulo Francis: “Seu estilo consistia em revelar o absurdo, a ironia de situações e pessoas que apanhava, formalmente, ao natural. Um pequeno twist na organização das palavras, aqui e ali, produzia o efeito, sem que a aparência de simplicidade se alterasse. Como qualquer profissional sabe, isso é muito difícil de fazer. No seu gênero de crônica ele me parece inimitável”. (DN)
A MULHER DE FREDDIE MERCURY Sim. Verdade. Na recente biografia escrita por LesleyAnn Jones, ela disseca o roqueiro carismático, talentoso, performático, adepto de ópera e mitologia, e, por outro lado, dono de temperamento infantil, em crise com a aparência (com aquela cara de Bozó, cheia de dentes). Mostra que, antes de escancarar a porta do armário e se esbaldar de vez na vida loca, o vocalista do Queen teve um caso longo com a loira Mary Austin. A canção Love of my life, das mais belas da banda, foi composta em sua homenagem e Freddie, às portas da morte pela Aids, deixou a maior parte da fortuna para ela. Não se sabe ao certo quanto à virada de Freddie, já que ele, talvez por medo de preconceitos familiares, não se declarava. O que todo mundo sabia é que sua vida era centrada em festas homéricas em bares e boates gays de Londres, Berlim e Nova York. Falam até que, na época do Rock in Rio, passou pelo Recife nas boates da Manoel Borba. (Luiz Arrais)
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ANA CAROLINA CORDOVANO
PALHAÇO O riso necessário Figura que remete aos antigos bufões e ao bobo da corte, o clown tem ocupado lugares simbólicos na sociedade, como o de ser aquele a quem não é vetado dizer a verdade e ridicularizar os absurdos do cotidiano, até mesmo os dos poderosos TEXTO Fernando Athayde
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Desde que o mundo é mundo, a imagem de alguém que arranca gargalhadas dos outros é algo presente na vida das pessoas. Tão humano quanto a submissão à moral e a busca pela felicidade, o riso é uma necessidade. É, sobretudo, o agente catalisador do intercâmbio entre a paz de corpo e alma e o cotidiano humano. O responsável por definir essa relação é justamente aquele que faz graça e, com ela, nos tira da realidade mecânica dos dias e nos leva a um estado de descontração. É o palhaço. Pode até parecer estranho, mas definilo não é tão simples quanto parece. Historicamente, o nariz vermelho, a face pintada de branco e os sapatos desproporcionalmente grandes, responsáveis por ilustrar popularmente essa distinta figura, são aspectos muito recentes. Orgânico, ele não apenas teve sua aparência e atitude modificadas pela ação do tempo, como nem sempre se chamou palhaço. Demarcando um possível período para seu surgimento, regressamos à Antiguidade, quando as primeiras civilizações foram forjadas sob o impacto da criação da escrita cuneiforme e o registro inicial de suas culturas. Naquela época, era comum, não só em meio aos povos surgidos entre os rios Tigre e Eufrates, mas também no extremo Oriente e na África, a presença de homens desfigurados, aleijados, corcundas e portadores de todo tipo de deformidade, que saíam pelas ruas entretendo e divertindo o povo. Eram os chamados bufões, os mais distantes ancestrais do palhaço de que se tem notícia. A despeito de sua aparência grotesca e repugnante, o bufão demonstrava conhecimento sobre o mundo e a vida, e inseria seu humor na sociedade, através de ácidos comentários sobre tudo e todos. Por serem feiosos e desfigurados, eles nunca eram levados a sério, sendo tratados como loucos faladores de insanidades. Graças a esse comportamento, uma prática socialmente aceita, os bufões tinham plena liberdade para expor quaisquer verdades a quem quer que fosse, mesmo aos regentes. Embora suas palavras pudessem ser realistas e agressivas, ninguém os levava de fato a sério, pois que os enxergava como fonte de divertimento inconsequente. Ao contrário do palhaço contemporâneo, CONTINENTE OUTUBRO 2014 | 23
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CON ESPECIAL TI NEN TE
IMAGENS: REPRODUÇÃO
1 DUPLO É comum à comédia a presença, às vezes antagônica, de dois palhaços em cena 2 CIRCO O picadeiro entronizou o palhaço como elemento fundamental ao espetáculo de variedades
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que demanda o conhecimento de uma linguagem artística, os bufões interpretavam seu papel a qualquer momento. Não havia o tempo de atuação ou performance, aquilo que lhes vinha à mente era o que a boca falava.
GARGALHADAS NA CORTE
Muitos bufões deixaram sua marca na história. Alguns deles, de tão carismáticos, chegaram a obter prestígio suficiente a ponto de viverem na corte, divertindo e proporcionando gargalhadas aos reis e nobres. Em meio às transformações que levaram o mundo antigo a adentrar na Idade Média, acabaram vertidos na imagem que hoje nós reconhecemos como a do bobo da corte. Suas roupas, muitas vezes sátiras das próprias vestes reais, em que o chapéu pontudo e disforme parodia a
coroa, representam a reconstituição da realidade a partir de um referencial mais cômico, menos refletido na moral e nos bons costumes. Portanto, a essência do que viria a ser o palhaço. Um caso interessante de como os bufões se tornaram personagens históricos é o de Yu Sze, que costumava acompanhar o imperador chinês Shih Huang-Ti, famoso por construir a Muralha da China, no século III a.C. Conta a lenda que, após o término da colossal obra, o monarca decidiu que ela não tinha ficado adequada e ordenou a todos os seus servos que realizassem alguns reparos ao longo dos 21 mil km da edificação. Um trabalho desse porte, ainda por cima há mais de 3 mil anos, levaria inevitavelmente consigo a vida de muitos dos pobres operários chineses.
A ordem aterrorizou a população local, e só não se concretizou por causa da astúcia do bufão Yu Sze, o único a ter coragem de expor a verdade a Shih Huang-Ti, que recuou na ideia megalômana. Não sabemos o que Yu Sze fez para convencer o imperador, mas chega a ser irônico que tenha sido por intermédio de um sujeito, cuja posição na sociedade era caracterizada justamente por despertar o desprezo das pessoas, que muita gente escapou de morrer sob desumanas condições de trabalho. Muito tempo depois, já no século 14, foi a vez do turco Nasreddin Hodja fazer história. Contemporâneo do temido imperador Tamerlão, que muito sangue derramou em meio à conquista de diversos territórios no Oriente Médio, o bufão aparentemente era o único capaz de lhe falar a verdade – e com muito bom humor. Andarilho, passou a vida perambulando pelas ruas de vários distritos do que hoje é o território turco e se tornou uma figura cultuada no país por sua sabedoria e irreverência. São tantos os contos e causos que o envolvem, que todo ano é celebrado o Festival Internacional de Nasreddin Hodja, que acontece entre 5 e 10 de julho, na cidade de Aksehir, na Turquia. O evento mantém vivo, através das mais diversas linguagens artísticas, o espírito do bufão sábio, que tinha o núcleo de seu humor baseado numa abordagem fabulesca da vida, em que toda piada acabava sempre numa lição de moral. No fim das contas, uma das características principais do palhaço acabou se tornando a exposição da verdade através do riso.
O ARLEQUIM
Se, inicialmente, podemos retratar como ancestral do palhaço contemporâneo a satírica e disforme figura do bufão, é preciso compreender que tal herança se transformou com o tempo. Graças aos horizontes desbravados pelo desenvolvimento constante da linguagem e pelas propostas criativas cada vez mais factíveis do
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ponto de vista da técnica, a arte se apropriou daquele que faz rir. Surgida na Itália, entre os séculos 15 e 16, a commedia dell’arte se configura como uma dissidência do teatro popular da Antiguidade, com raízes incrustadas na comédia dórica grega e na fábula atelana. Uma de suas características principais é que quase todos os atores usavam máscaras, que, por sua vez, determinavam sempre os mesmos personagens. O mais icônico deles, o Arlequim, é uma figura seminal para a construção da imagem que nós temos hoje do palhaço. Via de regra, itinerantes, as companhias de teatro da commedia dell’arte se adaptavam por onde passavam, com espetáculos erguidos sob o calor de temas como o sexo, a fome, o adultério, o ciúme e a relação entre o rico e o pobre, retratados de forma satírica e bem-humorada. O Arlequim, empregado miserável e aparentemente tolo, destacava-se por suas habilidades acrobáticas e personalidade astuta, vivaz, responsável por conquistar não só o público, mas também o amor da Colombina. A sua roupa, formada por losangos coloridos, é algo que foi herdado pelo palhaço de circo alguns séculos depois. Bem
Dissidência do teatro popular da Antiguidade, a comedia dell’arte incorporou o cômico no arlequim como a vestimenta, também foi o caso da pele branca, traço característico de outro personagem da commedia dell’arte, o Pierrô, um dos poucos que não usavam máscaras. Finalmente, a busca constante pela realização, tanto das aspirações sociais quanto do desejo, também é um traço que fundamentou os caminhos do palhaço na contemporaneidade. A principal marca deixada na história pelo gênero teatral, porém, não está somente ligada à imagem e às aspirações do palhaço, mas à sua concepção como persona. Anteriormente, os bufões eram uma sátira viva. No íntimo, eram exatamente aquilo que mostravam ao mundo, uma deformação da própria condição humana. Na commedia dell’arte, essa posição passa a ser uma interpretação do ator, em que um homem se envolve inteiramente
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numa aura de despudor para atingir tal representação, ainda que, fora de cena, ele pudesse tocar sua vida como qualquer outra pessoa. Em 1768, o sargento da cavalaria britânica Philip Astley fundou a Astley’s Riding School, uma escola de montaria que, durante a tarde, servia de palco para espetáculos equestres protagonizados pelo próprio Astley e sua trupe, nos quais eles desafiavam a gravidade e demonstravam grande equilíbrio ao andarem a cavalo, em pé. O local era um anfiteatro circular, cujo palco de 13 metros de diâmetro configurava um grande diferencial em relação às demais casas da época. Gradualmente, a empreitada foi se tornando um sucesso de público e Astley, um homem de negócios, passou a incrementar ainda mais o seu show. Além dos números equestres, foram incluídos malabaristas, equilibristas, trapezistas e animais além do cavalo. O teor do evento, porém, era regido pela tradicional disciplina militar e precisava de um mecanismo de descontração. É aí que surge a primeira concepção do circo moderno – através da inserção no espetáculo daquilo que é justamente a versão original do palhaço que nós viemos a conhecer.
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CON ESPECIAL TI NEN TE ARLEQUIM. DE CEZANNE (DETALHE)/REPRODUÇÃO
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A princípio, Astley o idealizou como a representação de um camponês que tentava subir no cavalo pela primeira vez, sem obter sucesso, sempre caindo e levantando. Imagina-se que o termo clown tenha aí a sua gênese, sendo uma apropriação da palavra clod, que, em inglês, remete ao homem do campo, o camponês simplório que leva a vida sem excessos. Apesar disso, mesmo a figura do palhaço de circo, como em toda a história que o antecedeu, ramificou-se, expandindo suas possibilidades e significados. O espetáculo circense de Astley saiu da Inglaterra e ganhou o mundo. Assim, foi só uma questão de tempo para que surgissem novas companhias de circo, responsáveis por popularizá-lo no
velho e no novo continente. A própria etimologia da palavra palhaço, derivada do italiano pagliacco – que, por sua vez, vem de paglia, ou, em português, palha – aponta para as peripécias desajeitadas desse personagem. O fato é que os palhaços, por realizarem tantas quedas e tropeços em seus números, tinham de usar uma roupa inteira forrada de palha, a fim de evitar contusões, daí o nome dado a eles. Durante os séculos seguintes, a função do clown dentro do picadeiro foi desenvolvida ao máximo, garantindo a simpatia e as gargalhadas do público. Chegou a um ponto em que havia um palhaço específico para entreter a audiência, havia números com animais e muitos outros. É claro que esses tipos
emergentes tinham características e personalidades próprias, o que viria a gerar uma grande confusão em relação à nomenclatura dada a eles anos depois. Dentre todos, dois nomes se destacaram e até hoje são reverenciados: palhaço branco e palhaço augusto. O branco, inicialmente chamado por Astley de Mr. Merryman, possuía o rosto branco e a roupa de losangos coloridos inspirados no Pierrô e no Arlequim, respectivamente. Dotado de grande arrogância, ainda que não passasse credibilidade intelectual alguma, ele era responsável por discutir com o apresentador do circo sobre toda e qualquer coisa que lhe viesse à mente. Provavelmente, se fecharmos os olhos e imaginarmos um palhaço, a primeira
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VIVIAN MAIER/REPRODUÇÃO
3 ARLEQUIM Personagem da commedia dell’ arte, ele tinha a função de divertir a plateia com vivacidade e astúcia 4 BRANCO A arrogância caracteriza esse tipo de palhaço, que nessa foto de Bruce Davidson ganha ares de horror 5 AUGUSTO Conhecido como o clown triste, que costuma seguir o Branco
imagem que surgirá é a do palhaço branco. Já o augusto é o clown triste. Normalmente, ele reverencia e segue o branco, que o despreza. No século 19, a imagem do palhaço constituiu-se naquela que conhecemos hoje: um homem trajado num macacão colorido, de nariz vermelho e que faz todo mundo rir. Além das explicações sociais e comportamentais, vale também compreender os porquês tanto daquele que dedica a vida a proporcionar o riso quanto dos que riem dele.
ALÉM DO PERSONAGEM
“Ouvi uma piada uma vez: um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador, onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: ‘O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animálo’.O homem se desfaz em lágrimas e diz: ‘Mas, doutor… Eu sou o Pagliacci.’ Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.” Essa história foi publicada na obraprima Watchmen, de Alan Moore, de 1986. Contemporâneo de Philip Astley e da criação do circo moderno, o ator britânico Joseph Grimaldi é considerado uma lenda entre os palhaços, até hoje. Mesmo sem nunca ter entrado no picadeiro, é lembrado como o principal comediante inglês do século 19. Ironicamente, sofria de uma profunda depressão e chegou, inclusive, a entregar-se ao alcoolismo. Semelhante a ele, o protagonista da ópera Pagliacci, do italiano Ruggero Leoncavallo, é o palhaço Canio, que descobre que é traído por sua esposa em pleno espetáculo e, tomado pela loucura, assassina tanto a mulher quanto o amante. Ambas as situações relatadas, a real e a ficcional, remetem à reflexão sobre o que de fato impulsiona o riso. A relação que existe entre aquilo que o palhaço
No circo, a atuação de um camponês desengonçado que tenta, sem sucesso, subir no cavalo origina o termo clown oferece ao mundo e o que está por trás de sua máscara é uma complexa rede de conexões entre a individualidade do artista e a vida em sociedade. No teatro grego, a representação da tragédia e da comédia em máscaras serve de prenúncio para tal relação. Em seu belo Livro do palhaço, Cláudio Thebas, que atua como o palhaço Olímpio, criou uma seção chamada “Ser palhaço é…”, que intercala alguns capítulos da publicação. Nela, diversos artistas dão suas interpretações do que representa para eles essa figura. As declarações, bastante divergentes entre si, comprovam quão íntima é a relação de cada um com o nariz vermelho. Uma fala que se repete é a de que um ator, quando interpreta um palhaço, não está vertido num personagem, mas numa interpretação de si próprio. Ainda assim, o âmago do humor que caracteriza o palhaço não é completamente pessoal. O filósofo
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francês Henri Bergson, dentro de sua coletânea de textos sobre a comicidade intitulada O riso, define este como uma ação coletiva. Ou seja, para que haja a graça, deve haver, sempre, mais de uma pessoa envolvida. Na prática, a afirmação dele não se refere à quantidade de indivíduos reunidos, mas ao que tange à percepção da vida através do ponto de vista coletivo. Há graça em determinada situação, quando ela nos leva à ruptura do que Bergson chama de “mecanização da vida”, que nada mais é que uma consequência do comportamento adotado pelo homem enquanto parte de uma sociedade. “Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades, mantém constantemente vigilantes e em contato recíproco certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e adormecer”, escreve o autor. No circo, enquanto os trapezistas e malabaristas desafiam a lei natural da gravidade ao conceberem suas proezas, o palhaço simboliza justamente o oposto. Ele não consegue realizar as tarefas mais simplórias. Está sempre sendo exposto, massacrado pelos próprios corpo e desejo. O palhaço é, dessa forma, não um personagem ou um gênero, mas uma relação entre a intimidade de um indivíduo e o mundo em que vive o homem racional.
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SOMBRA O lado perverso da figura cômica
Violência, sadismo, perversão, terror. A cultura pop tem se apropriado da imagem do palhaço para espalhar entre o público reações de medo e pavor
Hoje, ainda que habite o
imaginário popular através daquela imagem forjada pela ingenuidade e pela ternura que conquistou o mundo através dos séculos com o circo e o teatro, a figura do palhaço está tomando um caminho ambíguo. É temerário estabelecer em que momento esse fenômeno foi desencadeado, mas é certo que a bondade que se colava tão bem ao clown foi convertida em sadismo, perversão e dor em muitos gêneros artísticos, sobretudo dentro da cultura pop. Obras como o telefilme It – uma obra-prima do medo (1990), baseado no homônimo romance de Stephen King, as produções cinematográficas Rejeitados pelo Diabo (2005) e Casa dos 1000 corpos (2003), dirigidas pelo músico Rob Zombie, além de aparições em outras mídias, tal qual a própria figura do Coringa nas
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6 MALVADO Baseado em obra de Stephen King, telefilme It traz à cena a maldade sob a máscara do riso 7 SERIAL KILLER Especula-se que o assassino John Wayne Gacy se vestia de palhaço ao matar suas vítimas
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histórias em quadrinhos do Batman, ajudam a visualizar a dimensão sombria que tomou o palhaço a partir, especialmente, da segunda metade do século 20. Na prática, ele deixa de ser a ponte que liga o público ao riso por meio de sua percepção humana da realidade, para se tornar um agente do caos, voltado para a destruição de todos os símbolos e para a instauração da mais profunda agonia. Admitindo tal percepção, a primeira questão que logo vem à mente é sobre a relação do homem com a coulrofobia, ou seja, o medo patológico de palhaços. Mesmo irracional, tal fobia teria sido o agente causador da sublimação que levou à criação dessa nova imagem do palhaço ou seria ela fruto de uma criação fundamentada puramente na fértil imaginação de alguém? Ambas são prerrogativas plausíveis, e é possível apresentar uma breve análise sobre elas.
Em 1978, o norte-americano John Wayne Gacy foi preso, após confessar o assassinato de 33 jovens com idade entre nove e 27 anos. Condenado a várias prisões perpétuas em 1988, ele pagou por seus crimes com a vida em 1994, morto pela injeção letal. Gacy, que vivia num subúrbio de Chicago, nos EUA, e era querido pela vizinhança, ficou mundialmente conhecido pela alcunha de “Killer Clown”, ou em português “Palhaço Assassino”. Isso porque ele costumava se apresentar informalmente como o palhaço Pogo para as crianças da região em que vivia e pela especulação de que, durante a execução de suas vítimas, que sofriam abusos sexuais e torturas, Gacy também encarnava sua obscura e perversa persona de clown. A despeito desse caso, vale a pena considerar que boa parte das obras de arte que trabalham a essência maligna do palhaço são oriundas da
década de 1980. O Coringa, inimigo mortal do Batman, ainda que criado em 1940, quando as histórias em quadrinhos de super-heróis eram exclusivamente dedicadas ao público infantil, só atingiu sua condição de psicopata sádico e cruel em célebres histórias como O Cavaleiro das Trevas, de 1986, assinada por Frank Miller, e Asilo Arkham, de 1990, escrita por Grant Morrison e ilustrada por Dave McKean.
TORMENTO
Em meados de 2002, um grupo de três palhaços fortemente armados invadiu um bar na região central de Manchester, na Inglaterra, e esvaziou o caixa do local. Não contente, a gangue ainda amarrou o gerente do estabelecimento numa cadeira e o pôs sob a mira de uma espingarda calibre 12, enquanto os integrantes discutiam entre eles a fuga. Na saída, a trupe de clowns foi surpreendida
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8 ASILO ARKHAM Interpretação de Dave Mckean para o Coringa
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por várias viaturas da polícia, mas, mesmo assim, conseguiu fugir após uma longa perseguição, que resultou em diversos acidentes. Para Henri Bergson, a compaixão é a maior inimiga do riso. Quando vemos alguém levar um tombo e ir ao chão, o autor afirma que nós rimos apenas porque, por alguns instantes, tornamo-nos insensíveis à dor daquele que caiu. De fato, se analisarmos o próprio espetáculo circense, em que vários palhaços tropeçam gratuitamente, brigam entre si por qualquer coisa, vivem à sombra de uma vontade que nunca se realiza facilmente etc., o raciocínio do filósofo francês parece evidente. Porém, enquanto tradicionalmente o clown se
expõe e sofre, nas suas representações malignas, ele atinge exatamente o lado oposto e se transforma naquele que ri de um público que é atormentado. O filme espanhol Balada do amor e do ódio, de Álex de la Iglesia, traz claramente essa metamorfose. O personagem principal é o fracassado palhaço augusto Javier (vivido por Carlos Aceres), que não só é desprovido de toda e qualquer graça, mas sempre acaba humilhado dentro e fora do picadeiro. Ao confrontar o amor impossível da trapezista Natália (Carolina Bang), que por sua vez é noiva do violento e dominador palhaço branco Sergio (Augusto de La Torre), ele entra num processo de desumanização intenso e doloroso.
No filme, Javier acaba nu, vivendo por semanas na floresta, onde não mais se comunica com ninguém e passa a se alimentar de bichos mortos e dormir sob a sombra das árvores. Ele, nesse momento, deixa de ser humano para se tornar apenas um animal, desprovido de moral, de roupas e de discernimento. A partir daí, quando retorna à cidade, a primeira coisa que faz é se desfigurar com um ferro de passar roupa e admitir seu único eu verdadeiro como sendo o do palhaço, que agora deixa o picadeiro e passa a andar pela cidade armado até os dentes e atirando em qualquer um que atravesse o seu caminho. Tal qual um bufão, ele concentra todo o seu deboche nos outros e não nele mesmo. A insensibilidade, que para Bergson dá origem ao riso, aqui se transforma em sadismo, em puro prazer. Transforma-se, definitivamente, na válvula de escape que impulsiona a transformação do palhaço bom em mau. Outra situação que ilustra bem essa mudança de aspecto pode ser representada no mediano arco de histórias em quadrinhos Coringa, lançado em 2009 pelo roteirista Brian Azzarello e pelo ilustrador Lee Bermejo. Adotando a face do personagem-título que foi concebida por Heath Ledger no filme Batman – O Cavaleiro das Trevas, de 2008, a obra é uma tentativa malconcebida de se aprofundar na psiquê do Palhaço do Crime. A despeito disso, em determinado momento, o vilão faz entrar no palco de uma casa de shows um homem esfolado vivo, com um dólar colado na nádega. A cena resume a troca de lados ocorrida entre espetáculo e espectador que caracteriza bem o âmago da maldade do clown. Afinal, é o palhaço rindo e expondo ao ridículo o homem comum, que normalmente riria dele. FERNANDO ATHAYDE
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ESPETÁCULO “OLGA, A PULGA”/GIULIANA CERCHIARI/DIVULGAÇÃO
COMÉDIA Inocentes palhaçadas
Possivelmente a mais conhecida de suas versões, a figura cômica que enternece e toca as emoções profundas está no imaginário da cultura ocidental
As luzes que ficam sobre o palco do Teatro Hermilo, no Bairro do Recife, são acesas gradualmente e vão, aos poucos, revelando uma grande lata de lixo cenográfica com duas pernas e dois braços para fora. Com uma dificuldade descomunal, os membros se retorcem e gesticulam freneticamente, para remover a tampa da lata e revelar mais uma porção de sucata. Depois de muito esforço, finalmente, dá as caras uma simpática palhaça que, coberta até o pescoço por sacos de lixo e embalagens vazias, apresenta-se ao público e luta contra o próprio corpo para fazer suas pernas tocarem o chão. É o início do hilário espetáculo Olga, a pulga, de Tereza Gontijo, a palhaça Guadalupe, apresentado na segunda
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9 CHAVES Mesmo sem máscara, o personagem representa a clássica situação do clown 10 WOOD ALLEN Como não ver na atuação dele os elementos do palhaço atrapalhado e algo melancólico? 11 DÉBI & LOIDE Os tipos de palhaços branco e augusto estão claros nessa comédia 12 LUZES DA CIDADE Possivelmente o maior palhaço do século 20, Charles Chaplin elevou ao mais alto nível a bondade e inocência do clown
edição do Festival Palhaçaria, que ocorre bienalmente na capital pernambucana. O número, executado com maestria e carisma pela palhaça, transformou as trêmulas arquibancadas de metal do teatro numa máquina do tempo, que viajou pelo íntimo de cada um dos presentes, liberando suas emoções mais singelas. Algo como uma criança tecendo os primeiros contatos com as coisas do mundo. Ainda que o número de Tereza Gontijo tivesse sua primeira metade concentrada na brutal busca da palhaça por satisfazer a necessidade natural de se alimentar, impedida pela pobreza de alguém que vive numa lata de lixo, é certo que o desenrolar do espetáculo também instigou nos presentes uma discussão interessante sobre até onde vai a máscara do palhaço. Ao ver a palhaça Guadalupe fixando de novo e de novo sua perna esquerda num lugar, sem perceber que enquanto ela o fazia, a perna direita, por sua vez, saía da posição adequada, como não lembrar daquele que é, possivelmente, o maior equalizador sociocultural da América Latina, o seriado El Chavo Del Ocho, ou, em português, Chaves? Ainda que, nos episódios da série, o diretor e protagonista Roberto Gómez Bolaños não estivesse mascarado, ou seja, sob o marco simbólico de um nariz vermelho, é impossível não o classificar como um palhaço. Presente na memória das mais distintas gerações de brasileiros, Chaves atingiu uma insuspeita popularidade no país. No pátio da vila onde morava, o garoto Chaves sucumbia à fome, à solidão e aos mais diversos tipos de situações em que o seu próprio corpo aparentava ser um inimigo – uma representação clássica do clown.
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Assim como Chaves, há outros palhaços contemporâneos que não envergam, necessariamente, o acessório clássico. A figura do clown, definida na relação que ele tem com o mundo que o cerca, está presente simbolicamente em mais obras do que aquelas tradicionalmente classificadas como “de palhaço”. Mais que isso, as dinâmicas e os tipos, como o branco e o augusto, aparecem em mesma proporção. É o caso de uma das maiores obras da comédia cinematográfica Débi & Lóide, de 1994, dirigida pelos irmãos Farrelly. Um clássico perdido em meio ao preconceito iminente que o título do filme traz, Dumb & Dumber (no original) é não somente um road movie hilário da primeira à última cena, mas também uma sátira à sociedade americana tradicional. Protagonizado por Jim Carrey e Jeff Daniels, o longa conta a história de dois sujeitos sem família, lisos e frustrados que, simplesmente, não conseguem se adaptar à sociedade em que vivem. Como é característico dos palhaços, a dupla é impulsionada pelo motor do desejo e viaja o país inteiro para disputar o amor de uma mulher que mal sabe da existência deles. Loyd, interpretado por Carrey, é o clown branco, que debocha, sacaneia e faz pouco do Harry vivido por Daniels, o augusto que nunca deixa o amigo na mão, não importa o que aconteça. E se Débi & Lóide nunca teve a atenção merecida, há outros palhaços que atingiram a simpatia mundial, mesmo distantes do estereótipo. É o caso de Woody Allen, que, no início de carreira, dirigiu e estrelou obras como Bananas, de 1971, e O dorminhoco, de 1973, quando era frequente usar o corpo como uma de suas principais ferramentas para arrancar os sorrisos do público, algo que foi gradualmente vertido nos roteiros perspicazes e psicanalíticos que o consagraram. Outro caso curioso está associado à quarta temporada da série de TV norte-americana Seinfeld, no capítulo intitulado The opera, que gira em torno da exibição da ópera Pagliacci, em Nova York. Nele, a astúcia do texto se complementa com a destreza física do ator Michael Richards, intérprete do coulrofóbico personagem Kramer, amedrontado com a imagem do
A sensação de despirse das obrigações da vida adulta é evocada pela aura cômica, astuta e ingênua do clown palhaço Canio, protagonista do espetáculo. A grande sacada está no fato de que Kramer é, como fica bem evidente ao longo das nove temporadas do seriado, um clown sem máscara. Ou seja, um palhaço tão inocente… que tem medo de palhaços. Surgida da ingênua e astuta aura cômica que envolve o clown, a sensação
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de despir-se das obrigações da vida adulta, para reconhecer que o que resta é apenas o desejo, alivia o peso da passagem dos anos. A ingenuidade transmitida pelos gestos do palhaço, ainda que inicialmente remeta a uma volta no tempo, não nos reduz à infantilidade, mas à essência do bem-estar. Ao final de Luzes da cidade, de 1931, estrelado por Charles Chaplin, possivelmente o maior palhaço do século 20, quando a florista, antes cega, reconhece o seu grande amor pelo toque da palma da mão, o que está sendo demonstrado ali é algo distante das piruetas, pantomimas, sátiras e críticas sociais. É uma pequena amostra do que é, de fato, dar um sentido à vida. (F.A.)
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ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO/KARINA FREITAS
Artigo
MARIANNE CONSENTINO UM PALHAÇO NÃO É UMA CRIANÇA O palhaço está na moda no teatro.
Basta acessar as bibliotecas virtuais das principais universidades de arte do país e digitar a palavra palhaço, ou clown, para pulularem as mais variadas dissertações e teses sobre essa técnica teatral. Sim, pode-se dizer que se trata de uma técnica de atuação, ancorada, como ocorre nas mais variadas manifestações artísticas, em bases filosóficas e conceituais. Algumas dessas pesquisas privilegiam o olhar sobre os princípios técnicos que o atorpalhaço, ou a atriz-palhaça (a questão de gênero também está em alta), deve dominar para desempenhar seu ofício; há aquelas que se debruçam sobre a dramaturgia de um espetáculo clownesco, outras enfocam os benefícios terapêuticos oriundos dessa prática, como o trabalho de palhaços em hospitais, e assim por diante. Tomando as pesquisas universitárias como um reflexo do que ocorre na prática cênica no país, pode-se deduzir que a arte da palhaçaria vem ocupando um lugar de destaque. Apesar da popularização dos estudos acadêmicos sobre o palhaço nas universidades brasileiras ser um fenômeno relativamente recente, ocorrido mais fortemente a partir dos anos 2000, essa figura está presente desde os primórdios da arte teatral ocidental. De Aristófanes a Beckett, passando por Shakespeare, os indivíduos deformados, deslocados e desbocados povoam as mais diversas obras da dramaturgia, geralmente com o intuito de despertar no público uma reflexão sobre nossa frágil condição humana e sobre o disparate de encarar este mundo como algo racional. Por outro lado, nas tribos nativas norteamericanas, o palhaço está associado à figura do xamã que, igualmente
aos bufões e bobos existentes na dramaturgia erudita ocidental, tem como propósito a “busca de visão”, isto é, a compreensão de algo sob outros pontos de vista que não os ordinariamente utilizados pelas pessoas da comunidade, e que, quando revelada, pode desencadear um processo de transformação coletiva. Tomando como premissa que a arte do palhaço consiste em despertar no outro um novo ponto de vista sobre algo, pode-se depreender que os cursos de formação de palhaços, no âmbito teatral, estimulam a “busca de visão” dos iniciantes. Para tanto, muitos mestres na arte da palhaçaria lançam seus aprendizes em um processo de autoinvestigação, visando uma transformação pessoal, ou seja, um novo olhar sobre si mesmo, para que o palhaço seja
capaz de despertar nas pessoas da plateia outros modos de olhar para si e para as relações sociais. Nessa linha, encontram-se nas pesquisas do francês Jacques Lecoq (19211999) e do brasileiro, idealizador do grupo Lume, Luís Otávio Burnier (1956-1995), algumas referências fundamentais, quando se pensa em formação de palhaço no teatro. Por habitar o universo da comédia, é comum, nas oficinas de formação, que o aspirante a palhaço seja estimulado a entrar em cena com o objetivo de causar riso na plateia, e muitas vezes é o fracasso no desempenho dessa função que dá as diretrizes para a construção do palhaço pessoal. Quando o aprendiz “fracassa”, e percebe que não é tão imbatível e autoconfiante como gostaria, sua vulnerabilidade vem à tona; nesse
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estado, ele tem a possibilidade de ver o ridículo de si mesmo, e o riso se torna decorrência da consciência da loucura que é querer se levar a sério. A dessacralização da suposta majestade humana é obra do palhaço. Todavia pode ocorrer o fato de o aprendiz se fixar em truques com o único propósito de fazer o público rir, independentemente da função de despertar outra consciência sobre si e sobre as relações e padrões sociais. Há também os que traduzem o “fracasso” humano como uma maneira desastrada de ser, levando o palhaço a tropeçar, cair ou derrubar coisas pelo caminho, forma comumente adotada nas tradições circenses. Também pode acontecer a associação do estado de vulnerabilidade com a ingenuidade infantil, e alguns palhaços moldam sua voz e gestos na tentativa de
A função do palhaço, assim como a dos xamãs, é comunicar aquilo que a comunidade precisa saber representar uma criança. Como é impossível determinar o que é certo ou errado na forma de atuação do palhaço, pois isso seria ir de encontro à anarquia intrínseca a esse ser que relativiza toda e qualquer norma de conduta, cabe ao aprendiz fazer a escolha de sua linha de trabalho. Como pesquisadora que endossou alguns trabalhos acadêmicos sobre a arte da bobagem, embrenhando-se nessa prática como atriz, diretora e pedagoga, entendo que um palhaço
não é necessariamente um indivíduo com uma patológica falta de coordenação motora, tampouco uma criança, trata-se de um artista que, por mais inexperiente que seja em seu ofício, possui alguma experiência de vida. Penso que, ao reverenciar o palhaço como um idiota, deixa-se de lado seu potencial de sabedoria, comparável ao de um xamã. Esse é o ponto de vista defendido pela canadense Sue Morrison, que desde os anos 1980 forma palhaços em diversas partes do mundo com o método Clown through mask (Palhaço através da máscara), criado por seu mestre Richard Pochinko (1946-1989). Pochinko desenvolveu um sistema de exercícios que une princípios do palhaço europeu, sob o viés de Lecoq, e dos xamãs das tribos indígenas norte-americanas. Apesar da diversidade de sistemas de crenças dos nativos, há um conceito fundamental que as une, o Princípio de Totalidade, que aceita todos os aspectos do ser. Nessa postura inclusiva, não há como o palhaço ser engraçado ou triste, pois ambos os estados compõem a natureza humana. A função do palhaço, assim como a dos xamãs, é comunicar aquilo que a comunidade precisa saber e isso pode nem sempre ser engraçado, o que não significa, porém, que seja errado associar o palhaço ao riso, quer dizer apenas que a risada pode nem sempre ser aquilo que é solicitado. Se aceitarmos que o palhaço é alguém com uma consciência expandida de si e da comunidade em que vive, obtida pela sua experiência de vida, temos que ele não só não é uma criança, como não é para crianças. O estado de vulnerabilidade pode ser aqui relacionado com a honestidade, abertura e entrega com que o palhaço entra em contato com aquilo que sabe e com a forma com que compartilha essa experiência. Sendo assim, minha escolha foi entender o palhaço como um ser humano que pertence a este mundo, que possui vivência e que tem o propósito de comunicar algo que promova a transformação de si e do público.
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VICENTE MASIP O pensador que não protela a ação A rotina estoica do linguista e professor espanhol apaixonado pela sistematização das línguas clássicas, pela filosofia, pelo piano e por... motocicletas TEXTO Marcelo Abreu
CON TI NEN TE
Perfil
“Quando acordo, eu normalmente
não tenho nada para fazer, porque tudo o que tinha a fazer, fiz na véspera. Não deixo nunca nada para depois”, diz o professor Vicente Masip. Ao ouvir do repórter a observação de que no seu vocabulário, então, não existe o verbo “procrastinar”, ele rebate: “Sabe de onde vem ‘procrastinar’? Cras, em latim, quer dizer amanhã, então significa deixar para amanhã”. Como não deixa nada para o dia seguinte e vive o presente trabalhando e cultivando hábitos monásticos, Masip, esse acadêmico espanhol de 67 anos, radicado no Brasil desde 1969, tornou-se um dos intelectuais mais produtivos do país, sobretudo na área da Linguística. Somente nos últimos 16 anos, escreveu e publicou 32 livros. Atuando no curso de Letras da Universidade Federal de Pernambuco desde 1994, Vicente Masip iniciou, em 2002, a preparação de uma série de livros que tem o objetivo de explicar os fundamentos de quatro línguas clássicas que considera fundamentais para o conhecimento aprofundado do idioma português. Os quatro livros já publicados – sobre latim, grego, hebraico
e árabe – são o resultado de um dedicado estudo da linguagem e sistematização de conhecimentos dispersos. Partindo da experiência com o ensino do espanhol para brasileiros, Masip investiu em trabalhos que tentavam dirimir – através do estudo da fonética e da fonologia – as dificuldades enfrentadas pelos estudantes na pronúncia da língua estrangeira. Constatou que o estudante brasileiro tem problemas na ortografia, por vir de um ambiente de ensino que prioriza a escrita, mas não leva em conta a fonética – área da Linguística que se dedica ao estudo da articulação dos sons. Percebendo que outra grande lacuna era o desconhecimento total do latim pelas novas gerações, surgiu o interesse em transmitir noções básicas dessa língua. Em 2002, Masip lançou o livro Latim instrumental – curso sistemático e progressivo de tradução, no qual procurava dar aos estudantes de Letras uma base para conhecer melhor a própria língua. A experiência com o latim despertou nele o interesse por outro idioma da Antiguidade, que havia estudado nos tempos de colégio, na Espanha. “Chegou
um momento em que passamos a sentir verdadeira fome e sede de grego, do grego clássico, da variante ática na qual se expressaram Platão e Aristóteles”, afirma na introdução do seu Manual introdutório ao grego clássico para falantes do português, lançado em 2008. Depois, ele passou a estudar o hebraico bíblico, importante na Península Ibérica durante séculos. Masip conta que o seu interesse pelo hebraico foi motivado pela importância que a língua teve, junto com o árabe, em dar continuidade ao alfabeto fenício, formado só por consoantes. “O hebraico foi o ponto de referência para os gregos, que tiveram como grande mérito a inclusão das vogais no sistema.” Alfabeto este que evoluiu ao usado pelo latim, idioma do qual português e espanhol são variantes. Em 2009, surgiu, então, o seu Manual introdutório ao hebraico bíblico. Concluindo o ciclo, foi lançado em 2013 o Manual introdutório ao árabe clássico para falantes de português, que sistematiza a língua do Corão e mostra suas grandes influências no vocabulário das línguas ibéricas.“Na Europa, é inconcebível um curso de Letras sem conhecimento de
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ROBERTA GUIMARÃES
No aprendizado, ajudaram as gravações do Antigo Testamento em hebraico, disponíveis na internet. Quanto ao árabe, Masip estudou o Corão, base do árabe clássico falado hoje em muitos países da África e Oriente Médio. Decorou partes do texto sagrado, na forma tradicional usada pelos recitadores árabes. Durante a entrevista, cantarola trechos ao explicar as regras da recitação religiosa dos muçulmanos. “O árabe foi o ponto de chegada na pirâmide”, resume o professor.
MEIO CATALÃO
Masip, porém, é muito mais do que um linguista apaixonado pelo Classicismo. Nasceu na cidade de Carcaixent, perto de Valência, na Espanha, em 1947. Na região, a língua majoritária é o valenciano, uma variedade do catalão. O pai falava valenciano, mas Vicente Masip teve o castelhano como sua primeira língua por influência da mãe. Foi alfabetizado na língua de Cervantes. Na época da ditadura de Franco, o catalão era proibido de ser ensinado nas escolas. Aos 18 anos, entrou para o seminário. Estudou Letras e Teologia. Veio para o Brasil em dezembro de 1969, numa missão jesuítica. Passou um ano na cidade de Ribeirão, na mata sul de Pernambuco, para adaptar-se ao país. Ensinava Moral e Cívica e era conhecido
Masip publicou livros que têm como objetivo explicar os fundamentos das quatro línguas clássicas latim, grego, árabe e hebraico. Gostaria que tivéssemos aqui algumas noções dessas línguas e estamos dando pelo menos alguns cursos de extensão.” Masip aprendeu latim a partir do Ensino Fundamental, na Espanha, e foi aperfeiçoando o conhecimento nos anos em que estudou em um seminário para se ordenar padre. Com o grego, foi o mesmo processo. Quanto ao hebraico e ao árabe, estudou sozinho, com a ajuda de uma grande biblioteca, em parte adquirida em sebos, e com a ajuda de gravações sonoras obtidas na internet.
Mas fundamental mesmo foi sua rigorosa rotina de estudos em casa. “Foi um desafio tão grande, que não sei como cheguei tão longe”, diz agora, aliviado. Cada uma das línguas foi uma aventura especial. “O grego, então, é uma ‘maravilha’”, diz, referindo-se à inacreditável riqueza da língua clássica, repleta de declinações e contendo um sistema sofisticado de vozes, aspectos, modos e tempos verbais. “Mas eu queria terminar o percurso linguístico para que tivéssemos pontos de referência, para não ficar somente no latim.”
na comunidade como Vicente Maxixe. Ao chegar, o que mais lhe chamou a atenção foi a variedade das frutas tropicais, o calor e a cortesia das pessoas. “Na Espanha, todos estavam discutindo o tempo todo, aqui havia mais afabilidade”, relembra o professor. Terminou o curso de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira, ligada à USP, e estudou Teologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Ordenou-se padre em 1974. Fundou o movimento conhecido como Fraternidade Cristã
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CON TI NEN TE
Perfil de Doentes e Deficientes, baseado na escola francesa de psicologia patológica, que ajuda as pessoas a superarem o sofrimento causado por doenças. Chegou a escrever quatro livros sobre o assunto, nos anos 1970. Deixou o celibato em 1981 e passou a dar aulas na rede estadual de ensino, em Pernambuco. Casou, ficou viúvo, e casou de novo, dessa vez com a antropóloga pernambucana Fátima Quintas, com quem tem um filho. Nos anos 1980, decidiu fazer mestrado em História. Entrou no campo da Linguística no começo dos anos 1990, concluindo seu doutorado em 1995. No mesmo ano, fundou no Recife, com apoio do governo espanhol, o Centro Cultural BrasilEspanha (hoje substituído pelo Instituto Cervantes), para ensino do castelhano. Mas qual o motivo da passagem por tantas áreas das ciências humanas? Masip conta ter estudado Filosofia e Teologia por vocação. Iniciou o mestrado em História influenciado por seu sogro, o historiador Amaro Quintas. “Fui seu aluno e ele me animou a aprofundar um episódio praticamente ignorado até hoje: o levante de outubro de 1931 em Pernambuco, tema da minha monografia”. Por fim, fez doutorado em Linguística porque lhe pareceu o caminho para aprofundar estudos de fonética contrastiva entre o português e o espanhol. Ao ser perguntado sobre como gostaria de ser definido, Masip responde sem titubear: “Eu me definiria como um professor compilador, porque nenhum desses conhecimentos é meu. Mas procurei reuni-los, dar uma certa coesão. Tudo foi escrito a partir de necessidades e premências que eu percebia”. Diz que herdou do pai a curiosidade pelas palavras e a necessidade de definir tudo o que vê pela frente.
LÓGICA FORMAL
“Estamos rigorosamente no cronograma. Temos 15 encontros e hoje é o quarto. Antes de entrar em campos semânticos, vamos revisar o que vimos nas aulas passadas.”
MARCELO ABREU
Assim começa uma aula de Lógica Formal, dada por Masip no mestrado de Linguística na UFPE. Ele aciona o data show para uma breve revisão do conteúdo dado na disciplina. Camisa quadriculada ensacada, calça baggy, sapatilha, passos apressados e decididos, maneiras polidas. Demonstra certo jeito de sacerdote. Um leve sotaque estrangeiro acompanha seu português perfeito. Confere com os alunos o significado de certas palavras e não hesita em dar gargalhadas, quando se surpreende com as curiosidades que a língua apresenta. Uma de suas tiradas típicas: “Tenho a sensação de que neste curso vamos descobrir alguma coisa nova. Inovar na matemática ou mesmo na fonética é muito difícil, mas nesse campo da semântica, onde há ainda muita confusão, pode ser mais fácil”. A Filosofia e a Lógica são dois campos de interesses do professor espanhol, autor de quatro livros dedicados ao
assunto. “O problema no Brasil é que não se tem noções básicas de Lógica e Filosofia. A Lógica é um esqueleto sem o qual é impossível fazer outras coisas.” Segundo ele, isso se reflete na qualidade da produção acadêmica no país. As ciências humanas ficam dando voltas ao redor, criando modas, mas não avançam, porque se esqueceram da origem da linguagem e não conhecem a Lógica”, critica Masip. Para ele, os problemas de alfabetização no Brasil são derivados do desconhecimento, por parte dos professores, da fonologia e da fonética do português. “Querem ensinar o povo a ler e escrever, mas não fazem a ponte com a língua oral, não conhecem os sons da língua, a dimensão sonora.” Daí, deriva parte dos problemas de ortografia, as famosas confusões entre o uso do “s”, “z”, “ss”, “ç” etc. Sua atuação na área de fonologia e fonética tem tido o objetivo de dar uma base que facilite o
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ACADEMIA
O linguista é professor da UFPE desde 1994 e atualmente coordena o curso de Letras
Mas ele se defende. “Eu resolvo as coisas logo. Não tem aquela coisa de ‘deixa aí, que depois eu olho’. Agora, isso é um pouco neurótico, mas também sou tolerante.” Em geral, a coisa funciona: “Às vezes, me arrependo de fazer uma coisa de forma um pouco apressada, mas para cada uma que eu erro, acerto 99”.
ROTINA PERIPATÉTICA
Quando não está estudando ou dando aulas, Masip é um homem adepto de uma rotina que varia entre hábitos monásticos e lúdicos. Acorda às 4h30 da manhã e vai para o computador resolver assuntos práticos e ler os jornais. Toma café às seis. Uma hora depois, já está a caminho da universidade, montado em uma moto do tipo Honda Bros de 150 cilindradas, protegido por joelheiras, cotoveleiras e capacete. Passa as manhãs no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde
Para ele, a falta de conhecimento sobre a fonologia e a fonética é um dos principais problemas da alfabetização no Brasil trabalho de professores. A terminologia complicada usada no ensino é outro de seus alvos. “As gramáticas no Brasil são verdadeiros manuais de ocultismo”. São problemas que ajudam também a fortalecer a linguagem baseada na onda do politicamente correto. Ele critica o uso de eufemismos (“deficiente auditivo” no lugar de “surdo”, por exemplo), e a mania recente de usar masculino e feminino, separadamente, para descrever as pessoas, como no caso de “bom-dia a todos e a todas”. “A morfologia conquistou, ao longo dos séculos, uma simplificação da língua: ‘criança’ sempre significou ‘menino’ e ‘menina’, ‘homem’ vale para ‘homem’ e para ‘mulher’, muitas vezes. Agora, querem regredir na morfologia. Vamos respeitar as pessoas, mas não precisamos empobrecer a língua”. Masip é conhecido por sua organização e objetividade. Alguns poderiam pensar que ele é apressado.
coordena o curso de Letras. Em uma das manhãs, dá aulas na pósgraduação em Linguística. À tarde, recolhe-se ao apartamento em Casa Forte para estudar. Caminha cerca de oito quilômetros por dia. Resolve tudo a pé, no próprio bairro. Tem grandes ideias caminhando. Lembra com gosto o hábito do filósofo Aristóteles e de seus discípulos que, na Grécia Antiga, desenvolveram o chamado método de estudo peripatético – baseado na caminhada. “Nietsche dizia: desconfie das ideias que você teve sentado.” Quando não tem para onde ir caminhando, complementa o roteiro diário numa esteira rolante, na varanda. Divide o tempo no final da tarde entre caminhadas e o piano. Masip toca “bastante mal”, segundo diz, mas sabe de cor 42 peças curtas adaptadas ao piano, em geral canções de trilhas sonoras de filmes de sucesso como Doutor Zhivago, Titanic e Adivinha quem
vem para o jantar. Ele costuma tocar as 21 primeiras peças sempre na mesma ordem, durante meia hora, em dias alternados: segundas, quartas e sextas. As outras 21 peças são executadas nas terças, quintas e sábados. Isso ocorre há 20 anos. Tempos atrás, chegou a ter o hábito de tocar às cinco da manhã, usando um sistema de abafar o som do piano. Mas teve pena dos vizinhos e voltou a tocar às 17h30. Nos últimos três meses, a prática do piano está suspensa porque se choca com a necessidade de caminhar no mesmo horário. Exausto, vai dormir às oito e meia da noite. Dorme no chão, porque se sente melhor. Aos sábados, vai à missa e ajuda na distribuição da comunhão a pessoas que não podem sair de casa e ir à igreja. Aos domingos, pratica mais uma de suas paixões: o motociclismo. A bordo de uma Harley-Davidson de 1.600 cilindradas, percorre estradas próximas à cidade, todo protegido com jaqueta, calça de couro e capacete. Gosta de moto desde os 14 anos. No Recife, tentou se entrosar com outros motoqueiros para passeios em turma, mas achou o grupo muito desorganizado, pouco afeito à pontualidade que lhe é tão cara. Masip é um defensor da organização e do método como fundamentais para o estudo. “Fiquei marcado pela necessidade de definir termos e ser o mais preciso possível. Quantos professores tivemos que realmente foram bons, que tenham nos marcado?”, pergunta. “Pouquíssimos. Então, vamos ver se meus alunos pelo menos conseguem entender o que eu digo.” Ele lembra que o filósofo francês René Descartes dizia que todos têm uma inteligência parecida, assim como os órgãos do corpo. “A diferença é que uns têm método e outros não têm.” O espanhol Vicente Masip não faz a sesta. Sentado na varanda de seu apartamento, em um começo de tarde abafado, aponta para a mesa onde está uma pilha de livros escritos por ele ao longo dos anos. “Se ficasse sentado com tudo isso aí, ficaria doido.” Prefere, então, caminhar e se cansar ao máximo durante o dia, para dormir bem à noite. “Aqui seria a região por excelência da sesta. Mas o Brasil é um país tropical de ritmo frenético.”
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ARARIPE Na chapada, a primeira floresta nacional
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Quase 40 mil hectares de mata verde abrigam espécies da fauna e flora típicas dessa região, além de importantes sítios arqueológicos e paleontológicos TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
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a região era um imenso lago onde animais viviam em plena liberdade. O lugar tornou-se um importante refúgio para as espécies que buscavam comida em suas margens. “Quando houve a separação dos continentes, as águas do oceano, que depois virou o Atlântico, invadiram a área, aumentando a salinidade do lago e dizimando toda a vida aquática”, conta o professor Álamo Saraiva, paleontólogo que há vários anos estuda as jazidas do Araripe. Calcula-se que milhões de espécies animais e vegetais tenham desaparecido. Seus fósseis, no entanto, foram preservados pelos milênios. No Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, cidadezinha incrustada no alto da Chapada, uma libélula de milhões de anos conserva detalhes de suas delicadas asas.
ÚLTIMAS ÁGUAS
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MISSÃO VELHA
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MATA ATLÂNTICA
Cachoeira pontua a riqueza aquática local Biodiversidade está preservada na Chapada do Araripe
Localizada entre os estados do
Ceará, Pernambuco e Piauí, a Chapada do Araripe é um santuário natural que resguarda, em seus mais de 10 mil quilômetros quadrados, parte importante da biodiversidade do nordeste brasileiro. Considerada um oásis no coração geográfico do Nordeste, a primeira floresta nacional, criada em 1946, reúne, em pleno semiárido, centenas de sítios arqueológicos com pinturas rupestres, jazidas de fósseis únicas do mundo e um rico repertório de lendas e mitos que se materializam em monumentos naturais. Todo esse ambiente propicia o surgimento de um patrimônio imaterial formado por bandas cabaçais, vaqueiros, repentistas, penitentes, reisados,
cordelistas, xilogravuristas, poetas populares e outras manifestações da cultura popular que transformaram a região numa espécie de relicário da tradição nordestina. Com quase 40 mil hectares de mata verde, a Floresta Nacional do Araripe abriga espécies da fauna e da flora típicas dessa região do Nordeste, além de importantes sítios arqueológicos e paleontológicos. Cortada por trilhas bem-sinalizadas e repleta de fontes de água cristalina, a floresta é hoje o cartão-postal do ecoturismo local, guardando em seu ecossistema os biomas mata atlântica, cerrado e caatinga. Ali encontramos a maior bacia fossilífica do Brasil, território dos dinossauros e das plantas préhistóricas que o tempo conseguiu conservar no arenoso solo da região, que hoje faz a festa dos pesquisadores e, infelizmente, também dos traficantes internacionais de fósseis. Dezenas de coleções particulares espalhadas pelo mundo exibem peças extraídas das encostas cearenses. Do alto dos imponentes paredões, é possível visualizar o tempo em que
Em termos geográficos, a chapada permite a observação de todas as fases da evolução do continente sul-americano, sendo por isso utilizada como laboratório por diferentes universidades nacionais e internacionais. Na Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Araripe, a natureza sedimentar de seu solo deu origem a centenas de fontes, formando um dos mais importantes aquíferos do país. Entre 50 e 13 mil anos atrás, ocorreram flutuações que resultaram em uma mudança climática, obrigando o homem pré-histórico, caçador e coletor, a migrar. Esse período, que culminou em uma fase seca e fria, fez desaparecer toda a fauna e obrigou os homens a se movimentarem em busca de novas áreas. A Chapada do Araripe é das poucas porções verdes preservadas pela natureza e se tornou de vital importância para o homem préhistórico, sendo batizada pelos índios cariris como “O lugar das últimas águas”. Foi trilhando o caminho das águas, perseguindo o leito dos rios secos, nos brejos úmidos habitados pela “mãe d’água”, que o retirante préhistórico alcançou a região do Cariri em períodos ainda não definidos, deixando sobre rochas documentos em forma de gravuras e pinturas rupestres. Esses registros, através de seus signos e códigos de comunicação
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A chapada é das poucas porções verdes preservadas naturalmente, fundamental ao homem pré-histórico
visual, se em boa parte são indecifráveis – como na distante pedra do convento –, em outros casos são facilmente reconhecíveis, como as figuras humanas e as mãos em carimbo impressas nas rochas dos leitos dos rios. No Sítio Santa Fé, raras gravuras de grandes pássaros, pintadas em perspectiva, embevecem os pesquisadores e desafiam a imaginação. “Em toda a área da Chapada do Araripe, esse é um dos raros exemplos em que temos uma gravura que posteriormente foi pintada, unindo num só painel duas técnicas distintas”, diz a arqueóloga Rosiane Lima Verde, que há quase duas décadas estuda os sítios do Araripe.
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MULTICOLORIDO
Além da natureza e da riqueza arqueológica e paleontológica, a Chapada do Araripe é profusa em cultura popular. Fruto das mais diversas influências, a região é uma vasta combinação de cores e ritmos. Tudo por ali sugere a conexão entre o passado e o presente. Se os antigos
habitantes eram exímios artistas – o que pode ser comprovado nos belos painéis com pinturas rupestres –, o mesmo se pode dizer dos atuais moradores, muitos dos quais possuidores de dons artísticos. Um desses é Espedito Veloso, mais conhecido como “Espedito Seleiro, o homem das sandálias de couro”.
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BOQUEIRÃO DOS VIANA
Antigas formações rochosas integram repertório mitológico dos índios cariris SANTANARAPTOR
Ossada de dinossauro raro encontrada na bacia de fósseis da Chapada do Araripe
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CICLO DO COURO
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KARETAS DE POTENGI
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ESPEDITO SELEIRO
Nas árvores, as marcas dos comboios no caminho das boiadas Um dos últimos reisados a manter tradição das máscaras de madeira Artesão agora tem sua história contada em memorial
Herdeiro de uma tradição centenária, o artista expressa a qualidade do trabalho artesanal do Araripe. “Meu avô fazia sandálias para Lampião. O próprio Virgulino era quem desenhava as peças e mandava ele fazer”, diz Seleiro, enquanto confecciona o calçado que já virou marca registrada. A partir de novembro de 2014, o mestre terá a trajetória contada num museu em sua homenagem, na pequena Nova Olinda. Bem perto dali, na cidade de Potengi, um grupo de reisado resiste e, segundo quem estuda o assunto, é hoje o único representante da tradição de confeccionar máscaras em madeira, outra herança dos índios cariris. O grupo é mantido pelo Mestre Antônio Luiz, um agricultor apaixonado pela arte e que hoje ensina ao seu neto a brincadeira que aprendeu com os mais velhos. Conhecido como reisado de caretas, essa manifestação é um dos símbolos culturais da Chapada do Araripe. Com tanta riqueza concentrada num só lugar, a Chapada do Araripe revela surpresas. Fotografando para compor o acervo do Museu Mestre Espedito Seleiro, fui conduzido até o alto da Floresta Nacional, onde centenas de árvores conservam, tal qual um estranho museu natural, as marcas gravadas a ferro e fogo pelos comboios que desciam a região em busca de água para o gado, durante o que ficou conhecido como o Ciclo do Couro. Lembrando as gravuras encontradas nas encostas e compondo um quadro quase surrealista, as marcas constituem mais um capítulo desse surpreendente oásis natural e cultural.
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SUZHOU Para contemplar a passagem do tempo Na cidade vizinha de Xangai, na China, são mantidos desde 514 a.C. jardins cujo paisagismo recria a beleza assimétrica e harmônica da natureza em suas variadas expressões TEXTO Marcelo Abreu
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Tradição
“No céu há o paraíso, na terra há Hangzhou e Suzhou.” O velho provérbio chinês, lembrado hoje nos folhetos turísticos, tem uma origem nobre e antiga, bem anterior ao fenômeno do turismo de massa. No século 13, o aventureiro veneziano Marco Polo passou pelo estuário do Rio Yangtze, no centro-leste da China. Ficou mais tempo em Hangzhou, na época a capital da corte dominada pela dinastia Song. Mas, em 1276, passou também pela cidade de Suzhou e não deixou de observar e apreciar as sedas finas, as mulheres graciosas e a já então centenária arte dos jardins ornamentados. Desde então, os jardins da cidade têm servido de ambiente de reflexão e deleite a nobres, artistas, intelectuais e altos funcionários da corte chinesa. Hoje, são relíquias do passado clássico e preservados como patrimônio da humanidade pela Unesco, desde 1997. A arte da jardinagem é uma das
preciosidades da cultura do Extremo Oriente. Está presente em torno de palácios e templos antigos na China, na Coreia e no Japão. E também em espaços originalmente privados, como as casas da antiga aristocracia, onde a fortuna e o poder político conviviam com o bom gosto estético e o refinamento artístico. Ao contrário da tradição ocidental, nos jardins da Ásia não era costumeiro o cultivo de flores, nem se dava importância aos canteiros organizados. A arte do jardim oriental se baseia numa recriação estilizada e assimétrica da natureza, feita a partir de pedras, seixos, vegetação nativa e plantas. O cenário, que reproduz a natureza em miniatura, situa-se em torno de pequenos lagos. Às vezes, pontes curvas e charmosas, feitas de madeira ou de pedra, cruzam os lagos em cujas margens há salões com tetos de beirais empinados, como nas imagens típicas
do Oriente. Há pavilhões que fazem referência, em seus nomes, a obras literárias e poéticas. Em seu interior, abrigam exemplos de artes decorativas e peças de caligrafia. Existem também aposentos residenciais onde viviam, no passado, famílias da antiga aristocracia. O efeito paisagístico retrata com fidelidade uma sociedade que valorizava muito o diletantismo de homens de letras, pessoas que não precisavam se preocupar com a sobrevivência material. Apesar do aparente hedonismo, os jardins são encarados como uma forma de arte séria, que exige do observador curiosidade, tempo e lastro cultural para apreciá-la em sua riqueza de detalhes. Acredita-se que os jardins favorecem a conexão do homem com a natureza,
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ajudam a meditação e estabelecem relações com várias vertentes da filosofia chinesa, como é o caso do confucionismo, do taoísmo e do budismo. Ao longo da história da China, os nobres, intelectuais e artistas se deleitavam nos quintais privados, sobretudo à beira dos lagos onde liam, compunham poemas, praticavam caligrafia, ouviam música suave vinda das cordas de pequenas orquestras, observavam a mudança das estações, meditavam, tomavam vinho e recebiam amigos. A base de tudo era a contemplação da natureza e da passagem do tempo. Em poucos lugares eles foram tão bem-preservados como na cidade de Suzhou, próxima a Xangai, no leste da China. Lá existem cerca
de 70 conjuntos de jardins muito interessantes, todos construídos entre os séculos 11 e 19. O mais famoso é chamado de Jardim do Mestre das Redes (Wangshi Yuan). É um dos menores (apenas meio hectare de área) e dos mais peculiares. O nome deriva do fato de que, quando um vice-ministro chamado Shi Zhengzhi morou em Suzhou no ano de 1140, costumava chamar sua casa de “O retiro do pescador”. A ideia foi aproveitada por volta de 1785 por um burocrata aposentado chamado Song Zongyuan, quando decidiu reformar a área. No centro, há um lago com muitos peixes, carpas vermelhas que docilmente se aproximam para comer o alimento jogado pelos visitantes.
Ao redor, a natureza trabalhada através da vegetação planejada e da colocação de pedras ressalta valores como proporção, equilíbrio, variedade e harmonia. A disposição dos elementos faz com que o espaço pareça muito maior do que é, na verdade. Dependendo da época do ano, são feitas apresentações de ópera chinesa em torno do lago, à noite. O Mestre das Redes é considerado tão importante, que parte dele foi recriada numa exposição no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, em 1981.
PAVILHÃO DA ONDA AZUL
Um dos jardins que mais evocam o comportamento da elite culta e diletante do passado é o chamado Pavilhão da Onda Azul (Cang Làng
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1 ZHUOZHÈNG YUÁN Criado em 1509, é o maior e o mais imponente dos jardins de Suzhou 2-3 JARDIM ORIENTAL Usualmente, buscam recriar a natureza de maneira estilizada, com o uso de pedras, plantas, seixos e vegetação nativa
Ting), localizado no sul da cidade, à beira de um riacho. É o mais antigo dos ainda existentes, datando do ano de 1044, quando foi criado pelo poeta Su Sunqin, no lugar de um horto ainda mais antigo. Ao longo dos séculos, foi destruído e reconstruído várias vezes. O destaque do conjunto são os aposentos de uma grande residência de madeira escura, aconchegante. Como é um dos que atraem menos visitantes, pode-se passear com tranquilidade entre os cômodos vazios, parando aqui e ali para observar
pequenos detalhes. Ao redor da casa, ouve-se o barulho dos grilos, as folhas de bambu farfalhando ao vento, o canto de um passarinho e pode-se acompanhar a passagem de uma eventual borboleta. Aqui se percebe claramente a atmosfera que envolvia a elite ociosa, que consumia seu tempo com atividades artísticas. No Pavilhão da Onda Azul, tudo remete à imagem que se tem da China clássica, com suas casas de chá adornadas por lanternas de papel vermelho, utensílios feitos de jade, objetos de madeira laqueada e passarinhos retratados em rolos de seda. É um milagre que um local tão sugestivo dos hábitos distantes do ideal marxista do século 20 tenha sobrevivido à destruição dos guardas vermelhos durante a chamada Revolução Cultural (1966-1976), no curso dos últimos anos do governo de Mao Tsé-tung. E que também tenha
sobrevivido – até aqui, pelo menos – à sociedade de consumo atual e à expansão imobiliária galopante do capitalismo chinês. O horto exemplifica bem como os intelectuais chineses “harmonizavam seus conceitos estéticos num ambiente de reclusão no meio de uma aglomeração urbana”, como afirma um documento da Unesco, que recomendou a escolha do jardim como patrimônio da humanidade.
EVOCAÇÕES SENSORIAIS
O Jardim do Administrador Humilde (Zhuozhèng Yuán) é o maior e mais imponente de todos. O lugar já era usado como residência de nobres desde o século 2 d.C. Mas foi o inspetor imperial Wang Xiancheng que criou o parque, ao se aposentar e voltar para a cidade em 1509. O nome veio de um texto escrito na dinastia Jin (1115-1234), intitulado Sobre a vida
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idílica, no qual se afirma: “Construir casas e plantar árvores, aguar o jardim e cultivar verduras são tarefas do homem humilde”. Na sua área de quatro hectares, há vários lagos, interligados por pontes em ziguezague, com passarelas cobertas. É dividido em seções com nomes pitorescos que dizem muito sobre a paisagem, como o Salão das Fragrâncias Distantes, o Pavilhão da Brisa de Lótus, a Casa do Arroz de Cheiro Doce, o Salão das Camélias, o Portão da Lua e o Salão dos Trinta e Seis Pares de Patos Mandarins. Neste mundo de simbolismos, os patos mandarins representam a fidelidade conjugal. O lótus simboliza a pureza. E o bambu, a força e a resistência. No chamado Pavilhão para Observação da Lua, se for noite de lua cheia, podese ver o satélite refletido, ao mesmo tempo, em um espelho na parede, nas águas do lago e também no céu.
Os nobres, intelectuais e artistas se deleitavam nos quintais privados, sobretudo à beira dos lagos onde liam e compunham poemas A evolução dos jardins de Suzhou está documentada em antigos poemas, pinturas e mapas de variados períodos históricos. Através dos registros, chegou-se à conclusão de que eles existem desde a fundação da cidade, no ano 514 a.C., embora tenha sido durante a dinastia Song (960-1279) que mais floresceram. Estima-se que chegaram a existir, simultaneamente, cerca de 200 hortos privados, no século 18. Hoje, nove deles são reconhecidos pela Unesco como patrimônio da humanidade.
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Além dos três citados, estão oficialmente protegidas áreas como o Bosque do Leão (de 1342, na dinastia Yuan); o Jardim do Descanso, o Jardim do Cultivo e a Chácara da Montanha com Beleza Abrangente (os três do século 16, na dinastia Ming); o Retiro do Casal (do começo do século 18); e o Jardim do Retiro e da Reflexão (de 1885, na dinastia Qing, a última antes da república). Afora essas, cerca de 60 outras áreas de menor importância são protegidas pelo Conselho de Estado chinês como sítios de preservação prioritária. Durante a dinastia Song, foi desenvolvido também o estilo poético conhecido como ci. Dividido em duas vertentes – a haofang (espontaneidade heróica) e a wanyue (sujeição e sutileza) –, certamente foi muito praticado na beira dos lagos, à sombra dos pavilhões. O poeta Yan Shu, por exemplo, no poema intitulado
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Tradição Córrego para lavar seda, menciona um dos jardins: “Profundamente, suspiro pelas flores caídas em vão/ Vagamente, pareço saber que as andorinhas virão de novo/ No caminho do jardim perfumado, sozinho ainda permaneço”.
APARÊNCIA TRANQUILA
Na China, o tumulto histórico dos últimos séculos e a revolução comunista de 1949 fizeram muito para destruir as tradições do passado. Somente nos últimos 30 anos, os chineses começaram a perceber que estavam apagando o próprio patrimônio arquitetônico e começaram a tomar iniciativas para reconstruí-lo, geralmente de uma forma apressada e consumista, compondo uma espécie de Disneylândia oriental fake, de segunda categoria. Mas, em Suzhou, isso até agora não foi necessário. Por não estar no centro de nenhuma das bruscas transformações políticas e econômicas, os jardins tradicionais acabaram sendo melhor preservados. A cidade fica na província de Jiangsu, localizada a 66 quilômetros de Xangai, percorridos em 45 minutos em um trem de alta velocidade. Apesar de ter oficialmente uma população de mais de quatro milhões de habitantes, Suzhou consegue manter uma aparência até tranquila, pouco barulhenta, com jeito de uma cidade “pequena”, pelo menos para os padrões chineses. O velho muro medieval que cercava a área central já desapareceu, mas ainda existem pequenos canais e córregos que dão à paisagem um toque pitoresco, quase de uma Veneza do Oriente, como chegam a afirmar alguns chineses. No passado, a região ganhou importância econômica com a inauguração do Grande Canal – obra que levou mil anos sendo construída e só ficou pronta no século 6 d.C. –, ligando Hangzhou, também na bacia do rio Yangtzé, a Pequim, no norte do país, a 1.700 quilômetros de distância. A produção de seda passou, então,
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a chegar a lugares distantes. Na sua visita, no século 13, Marco Polo dedicou os maiores elogios a Hangzhou, que fica 121 quilômetros ao sul e até hoje se beneficia da propaganda, explorando o turismo nos seus lagos. Mas foi Suzhou que manteve os jardins famosos e firmou-se como centro da produção de seda. O Grande Canal ainda passa no centro. Atualmente, a mistura de vias aquáticas com ruas estreitas, onde artesãos trabalham com madeira e à noite são acesas lanternas vermelhas, além dos jardins, minimizam a real dimensão da cidade. A área conhecida como Pan Men, restaurada recentemente, é o que sobrou de um dos portões do muro antigo que circundava o centro e reforça a paisagem tradicional, combinando elementos como pontes, canais, um pagode (templo religioso com múltiplos tetos) e construções em estilo antigo.
NO JAPÃO E NO OCIDENTE
Já na dinastia Tang (618-907), a arte do paisagismo estava completamente desenvolvida. Durante a que é
4 DU FU A contemplação dos jardins inspirou poetas do oriente 5 ÁGUA No paisagismo desses ambientes, há sempre a presença de pequenos lagos
considerada como a Era de Ouro da China, muitos elementos dessa cultura foram levados para a península coreana e, de lá, pelo mar, chegaram ao Japão. Hoje, algumas tradições das Eras Tang e Song são mantidas de forma mais viva no Japão do que na própria China. O zen, vertente do budismo conhecida entre os chineses como ch’an, que se desenvolveu no Japão, também dá muita importância à meditação em lugares que reproduzem cenários naturais. Os praticantes acreditam que a observação calma da natureza reorganizada pelos humanos, seguindo preceitos do budismo e do taoísmo, ajuda a meditação e propicia paz interior. No Japão, os chamados jardins
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de pedra se desenvolveram em três estilos bem mais austeros e minimalistas do que os chineses: o karesansui (usado para meditação a partir de um ponto de observação fixo), o tsukiyama (que destaca vales e montanhas e permite o deslocamento do visitante) e o chaniwa (usado para a cerimônia do chá). Não por coincidência, a cultura do zen-budismo e dos jardins chegou ao Ocidente através das influências japonesas ao longo do século 20. A partir dos anos 1950, os escritores norte-americanos da geração beat desempenharam um papel importante na divulgação, sobretudo o poeta Gary Snyder, que morou no Japão e depois levou para a Califórnia algumas dessas tradições.
O zen, vertente do budismo, também dá muita importância à meditação em lugares que reproduzem cenários naturais Os jardins de Suzhou nunca foram visitados pelos jovens beats no apogeu do movimento (décadas de 1950 e 1960) porque, na época, a China estava fechada ao mundo. Mas figuras como Gary Snyder e o escritor inglês Alan Watts (grande divulgador do budismo no Ocidente) se encontrariam espiritualmente
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com os grandes nomes da poesia chinesa do passado como Hanshan, Wang Wei e Du Fu, todos do período Tang. As áreas preservadas compõem um cenário adequado aos grandes poetas do verso clássico coreano conhecido como sijô. E, claro, são perfeitos para o universo dos haicais escritos por nomes como Matuo Bashô e Yosa Buson. Brasileiros como os poetas Haroldo de Campos e Paulo Leminski, e também o citarista Alberto Marsicano, foram adeptos da tradição contemplativa, tradutores da poesia clássica e grandes apreciadores da cultura do Oriente. Certamente se sentiriam também em casa nos jardins de Suzhou.
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ACERVO Agora está tudo digitalizado Cepe Editora disponibiliza em site publicações e documentos históricos de Pernambuco, entre eles jornais que circularam no século 19, no Recife TEXTO Laís Araújo FOTOS Otavio de Souza
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PROCESSO
As primeiras reproduções foram de periódicos pertencentes à Hemeroteca do Arquivo Público Estadual
O acesso a publicações e documentos históricos de Pernambuco será amplamente facilitado: a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), que desde 2012 modernizou seu processo de digitalização, disponibiliza, a partir do dia 1º de outubro, arquivos públicos reunidos para pesquisa online. Além de aumentar a disponibilidade do acervo de interesse coletivo a pesquisadores e curiosos, o projeto utiliza a tecnologia de reconhecimento ótico de caracteres, que lê as imagens escaneadas e transforma os arquivos em texto, possibilitando buscas e edições. O material será disponibilizado no novo site da Cepe. O serviço de digitalização de documentos serve tanto para
conservação de patrimônio cultural, geralmente requerida ou feita em parceria com órgãos públicos, como também para serviço comercial da editora, que atende empresas privadas e públicas – de condomínios a órgãos administrativos – que desejam melhorar sua comunicação interna a partir da modernização de seus documentos. “Nós iniciamos esse serviço há dois anos, com equipamento que permite a digitalização de grandes formatos: jornais, mapas, documentos históricos, e todo tipo de publicação que não pode ser exposta a digitalizadores comuns. Nosso equipamento não danifica o papel durante o processo”, explica Igor Burgos, gerente de digitalização da Companhia Editora de Pernambuco. O primeiro projeto nesse sentido foi a conversão digital de documentos da Hemeroteca do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, que preserva e põe à disposição periódicos de Pernambuco. O contrato seguinte foi com a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder
O equipamento utilizado não danifica a matriz e permite a reprodução de grandes formatos, como mapas e jornais Câmara: 273 mil documentos referentes à ditadura militar foram digitalizados. No primeiro dia de outubro, todos esses documentos poderão ser acessados por qualquer interessado na seção Cepe Documento do novo site da editora. Entre os documentos históricos digitalizados do Arquivo Público, estão também disponíveis 14 mil páginas de títulos jornalísticos do século 19, e 114 mil páginas do jornal Diário da Manhã, com conteúdo que vai do seu ano de fundação, em 1927, até 1985. Martiniano Lins Filho, funcionário da Companhia Editora de Pernambuco que atua no processo de transformação digital, explica que mesmo o material antes interditado por causa de sua
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ARQUIVO PÚBLICO
Coordenador da instituição destaca a melhora da guarda e a facilitação do acesso pelo público à digitalização
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deterioração poderá ser acessado agora em sua versão eletrônica. “Muitos documentos estavam num estado de deterioração avançado, com acesso restrito, mesmo a pesquisadores. Nós desencadernamos essas publicações e conseguimos escaneá-las sem danos à sua estrutura.” Com o serviço, a preservação é certificada, e a possibilidade de acesso, multiplicada. “A preservação de documentos já estava prevista como projeto social da empresa, então foi muito natural investirmos mais no processo.” Pedro Moura, coordenador do Arquivo Público Estadual, explica que a consulta ao acervo físico da instituição continua liberada, como ocorria antes da transformação digital, mas acredita que os interessados terão mais comodidade em realizar suas buscas pela internet. “De uma forma geral, esse processo tem sido aplicado em grandes arquivos e centros de documentação. O objetivo é facilitar cada vez mais o acesso e melhorar a guarda, conservação e preservação desses periódicos, muitos dos quais raríssimos”, conta Pedro. Ele fala também sobre as expectativas de benefício para a comunidade acadêmica no nível estadual e nacional. “Com a digitalização desse acervo valioso,
Também estão disponíveis para consulta digital documentos da Comissão Estadual da Memória e da Verdade e tendo seu acesso garantido de forma livre e fácil através de um portal, toda a comunidade acadêmica será favorecida. Muitos já nos procuram em busca desse acervo. Isso irá facilitar, em muito, os trabalhos de dissertações e teses.” A própria instituição também é beneficiada: não apenas por ter parte de seu arquivo entregue a mais pessoas, mas também porque a disponibilidade virtual atua como fator direto na conservação dos exemplares físicos. “Uma vez digitalizado e disponibilizado virtualmente, temos melhores condições para uma guarda mais consistente do suporte papel, ajudando na sua preservação. O público que procura conhecimentos também terá maior comodidade na pesquisa”, avalia Pedro Moura. Ele acrescenta que existem diversos projetos dentro do Arquivo Pùblico, para digitalização e
microfilmagem do acervo documental. “Estamos selecionando títulos de periódicos e organizando o material, para que a Companhia Editora de Pernambuco possa continuar com essa atividade. É uma parceria que não tem prazo para acabar.” O projeto de digitalização continua também com outras instituições. Entre os próximos projetos de interesse público, estão o acervo do Instituto Miguel Arraes (IMA) e do Instituto Dom Helder Camara (IDHeC). Ambos possuem grande quantidade de itens biográficos e históricos, que também serão disponibilizados na seção Cepe Documento. Tombado como patrimônio cultural pelo Governo do Estado de Pernambuco, o acervo do IMA possui cerca de 270 mil itens, coletados desde a década de 1930: fotografias, recortes de jornais, correspondências – inclusive, entre Miguel Arraes e Dom Helder – e boletins informativos. Já o acervo de Dom Helder possui manuscritos, livros, meditações (pequenos textos poéticos e espirituais), imagens e discursos. Com a tecnologia utilizada pela Cepe, todos esses arquivos poderão, em breve, ser acessados livremente. O link para o acervo digital é cepedocumento.com.br.
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CAETANO CALOMINO Letreiros sem computador Sign painter se torna um dos poucos especialistas do país em letreiramento à mão, em meio ao crescente interesse do mercado pelo trabalho artesanal TEXTO Patricia Amorim
A despeito do emprego hoje quase irrestrito das tecnologias digitais na comunicação visual, o ofício da pintura de letreiros resiste. Driblando a hegemonia da impressão em grandes formatos e dos plotters de recorte em vinil, artistas em várias partes do mundo seguem perpetuando o rico legado do letreiramento comercial feito à mão. Dentre eles, o carioca Caetano Calomino, 33 anos, um dos poucos jovens brasileiros especialistas na técnica. Autor de trabalhos para a MTV Brasil e para lojas em Nova York e no bairro chique dos Jardins, em São Paulo, Calomino passou a dedicar-se ao desenho de letras em 2011, quando fez um curso com a calígrafa Andrea
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Branco. “Foi paixão à primeira vista. A letra tomou conta da minha vida”, diz. “Lembro quando a Andrea pegou uma pena de ponta chanfrada e fez os movimentos básicos da letra gótica. Um mistério se resolveu na minha frente: a ferramenta é o DNA da letra. A compreensão básica se fez ali.” A familiaridade com desenhos de caracteres, no entanto, vem desde a infância. Caetano conta que seu pai, o publicitário Batista Antônio Calomino, dominava a construção dos sinais alfabéticos numa época em que o computador ainda não estava presente nas agências e os layouts eram criados manualmente. No início dos anos 2000, já durante a graduação em Desenho Industrial, que não chegou a concluir, Caetano trabalhou como tatuador no lendário estúdio Caio Tatoo, na Galeria River, no Arpoador, e lá percebeu sua inclinação para o trabalho com letras. Após uma temporada como produtor da banda de rock Matanza, Calomino mudou-se para São Paulo.
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Segundo o artista, hoje há um maior interesse pelo orgânico, o regional. As pessoas cansaram do computador Lá foi empregado numa fábrica de camisetas no Bairro do Brás, região com forte concentração de indústria e comércio de confecções, desenhando estampas para marcas como C&A, Pernambucanas e Hot Wheels. “Nessa época, fiquei obcecado pelo computador. Fazia todos os tutoriais possíveis e imagináveis do Photoshop, Illustrator. Então, saí da fábrica e decidi divulgar meu próprio trabalho na internet”, lembra. Incentivado pela esposa, a designer gráfica e diretora de arte carioca Flávia Zimbardi, Calomino aprofundou seus
estudos em caligrafia com renomados artistas brasileiros, como Claudio Gil e Yomar Augusto. Em pouco tempo, acabou se aproximando do sign painting, técnica de pintura de letreiros comerciais desenvolvida em vários países e que enverga inúmeros estilos. Uma diversidade estética tão surpreendente quanto exuberante, que abarca desde o fileteado portenho, típico da cidade de Buenos Aires, na Argentina, aos letreiramentos populares criados por abridores de letras em Pernambuco, tema abordado em livro pela designer e pesquisadora Fátima Finizola.
LETTERINGS
Em busca de fundamento para a produção de letterings (termo em inglês para letreiramentos) para grifes, editoras e até shapes de skate, Calomino pesquisou sobre o tema em livros antigos disponíveis no site da Biblioteca do Congresso Norte-Americano, informando-se
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sobre materiais, tipos de pincéis, detalhamento técnico e repertório de formatos de letras. “Nos Estados Unidos, apesar das dificuldades, a tradição e a cultura do sign painting estão mais preservadas. No Brasil, as pessoas estão mais isoladas e presas às mesmas referências”, considera. No final de 2013, o artista Mike Meyer, um dos principais divulgadores do sign painting no mundo, descobriu a produção de Calomino na internet e o convidou para um treinamento em seu estúdio na cidade de Mazeppa, em Minesotta, nos Estados Unidos. “Só deu tempo de largar a mala no chão e ele já foi logo soltando papel e falando ‘Presta atenção aqui’. E foi assim até eu colocar os pés fora de lá”, comenta. “Eu pintava letras o dia inteiro e, na hora de dormir, Mike me trazia pilhas de livros. Passei madrugadas lendo, fotografando e xerocando”, recorda. “Foi muito pesado. Era janeiro, pleno inverno, e eu dormia ao lado do fogão do estúdio pra me aquecer. Voltei com pereba nas costas,
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MARCELO D2
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SKETCHBOOK
Calomino fez uma edição especial do pôster do show do artista no Rio de Janeiro; sua arte também estampou camisetas Em 2012, o artista lançou projeto em que faria um desenho por dia. Muitos deles são comercializados em cartazes
“Nos EUA, apesar das dificuldades, a tradição e a cultura do sign painting estão mais preservadas” Caetano Calomino todo doído, mas não me arrependo nem um segundo. Faria tudo de novo.” Em março, Calomino já estaria de volta a Mezeppa para participar de um encontro internacional de sign painters organizado por Meyer, com a presença de 125 artistas vindos de países como Alemanha, Inglaterra e Escócia. “A diferença de escolas era nítida. Os Estados Unidos, mais chamativos e pop, tudo com muita cor, sombra e volume. O Reino Unido, mais clássico. Os alemães passavam mais tempo medindo do que pintando. Não podia ter uma coisa fora do lugar”, conta.
3-4 LETTERINGS
Depois de um curso, Calomino se encantou pelo letramento, e passou a se dedicar à área
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NOVA YORK
Hoje, o artista vive e trabalha no Brooklyn, com sua família
Morando com a família no Bairro do Brooklyn, em Nova York, desde o começo do ano, Calomino acredita que a articulação de projetos a partir de uma base nos Estados Unidos seja mais promissora do que no Brasil. Inclusive em função de um interesse crescente do mercado por comunicações gráficas de inspiração artesanal, em resposta à saturação de imagens digitalmente concebidas. “Hoje em dia, o orgânico, o regional, estão sendo valorizados. As pessoas cansaram do computador, da grande indústria, do padronizado, do pasteurizado”, defende. A transferência para outro país, entretanto, tem motivações ainda mais pessoais. “A gente podia ficar muito confortável no Brasil, sendo um dos poucos que sabem fazer aquilo, e ser um peixe grande num lago pequeno. Mas, se não tiver um cara na sua frente correndo mais rápido, você não vai ver por que precisa se esforçar mais. E eu gosto de correr contra gente grande”, afirma, convicto.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
AMIGO ARTHUR CARVALHO De fato não se tratava dos dez livros mais importantes da literatura mundial, como você bem lembrou (não tenho o artigo em mãos; carrego essa bondade comigo, a de só guardar o que não interessa; o que interessa, ou não guardo, ou guardo tão bem guardado que não acho mais nunca, ou acho quando não mais preciso e nem lembro por que guardei; seguindo, de princípio, a ideia de um tio meu, tio Mané, Manoel de Albuquerque Pinto, em homenagem a quem botei o nome de meu filho Manuel, que virou Cláudio Manuel por imposição de minha mulher, que queria porque queria botar o nome de Cláudio, mais conhecido hoje como Mané Tatu, botado por quem, não sei, e por ele adotado, como assina nos quadros, mas dizia Manoel meu tio: “o que não presta guardo um ano”). Como você bem me lembrou, dizia eu, me dando o maior apreço, desperdiçando o espaço de sua crônica semanal às quartas-feiras do Jornal do Commercio com minhas bobagens. Sempre ia lhe escrever mas não encontrava o tom, nem sua crônica. Continuo sem encontrá-los.
Você transcrever meu bilhete, me deu uma alegria ímpar (gostou?), e como disse, guardei tão bem guardado que não sei onde botei, além de no imo do peito (e agora?): deve estar num bauzão de sucupira, feito em Ipojuca por Mestre Ribeiro, que herdei da loja de meu pai, onde se guardava camisafeita, feita de linho-de-camisa, um pano barato de algodão, muitas vezes fui levar na casa da costureira Dna. Marocas na Rua d’Água, os cortes de pano e os carretéis de linha Bispo 60, e calça feita de mescla, azul ou preta, o melhor era o Alvorada, cujo rótulo gostaria de rever, taí uma coisa que queria ter guardado, um belo galo de asas abertas, o sol nascendo por trás de suas asas, muito alaranjado e vermelho, devia haver um museu de rótulos, como aquele da cara de um cara de olhos arregalados engolindo uma cabeça de boi, ou o homem coçando as costas com uma bengala enfiada pelo colarinho na nuca (Mitigal?). Não eram os livros mais importantes do mundo e sim os dez livros que tiveram maior importância na vida de cada um dos amigos consultados, e
lamentei nenhum desses seus amigos tivesse citado o Confissões de Santo Agostinho. Aliás também li A Cidade de Deus, um portento, e aqui para a novela, porque precisa uma explicação para leituras tão pretenciosas. Tenho sempre em mente, além das lições do meu tio Manoel, o verso de Castro Alves (Salve a Bahia, Senhor! como no samba de Geraldo Pereira): “Eu que sou fraco mas só fito os fortes/que sou pequeno mas só fito os Andes”. Eu andava desesperado por não ter um livro em português para ler, isso em Roma, deve ter sido princípios de 1958, meses jejuno de língua portuguesa, mal trocando algumas palavras com Isaac Gondim na hora do almoço na mensa da Via della Scrofa (rua da porca), onde hoje só tem rico, segundo o amigo romano Mario Delli Colli. Bati tudo que foi livraria e não encontrei um livro em português. Qualquer assunto servia. Acho que foi o próprio Isaac quem sugeriu a livraria do Vaticano. Pelo menos a Bíblia devia ter. Acredite se quiser: não tinha. A própria freira que atendia ficou desesperada: “É um absurdo, o maior
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pais católico!” Acho que muita gente na Itália só tomaria conhecimento da existência do Brasil logo alguns meses depois quando ganhamos a Copa do Mundo na Suécia. Aliás na Alemanha também passaria por esse aperto em Munique onde tive de me contentar, na falta de livro em português, com espanhol, El Cristo de Velázquez de Miguel de Unamuno. A freirinha, voltando a Roma, tornou com um livro cuja escrita parecia mais uns garranchos, explicando ter sido aquele alfabeto recém-criado pelo Vaticano para imprimir a Bíblia na língua falada naquele país, não lembro qual, que não tinha escrita. Para ver o cuidado que o Vaticano tinha com essas coisas. Pediu que esperasse. E logo apareceu um padre, ainda jovem mas de cabelo levemente grisalho, óculos, batina preta, boa estatura, português, que me perguntou se eu poderia procurá-lo no dia seguinte na igreja
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Devia haver um museu de rótulos, como aquele da cara de um cara de olhos arregalados engolindo uma cabeça de boi
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onde morava no centro de Roma. Lembro-me de ele ter vindo até fora da igreja me entregando através da grade do adro a brochura Confissões, edição portuguesa que até hoje guardo como relíquia. Foi assim, pois, amigo Arthur, premido pelas circunstâncias, que encarei a leitura desse livro: como gostaria de agradecer a esse padre, cujo nome também não lembro, nem o dele nem o da igreja, e que se tornou um grande acontecimento na minha vida: se eu fosse crente, veria aí o dedo de Deus, como aconteceu com o próprio
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Propaganda que eu via na farmácia de seu Zé Uz, Ipojuca, décadas de 1930 ou 1940
Santo Agostinho no episódio Tolle, lege (toma, lê), ponto decisivo na sua conversão (Livro VIII, cap. 12). Seria muita pretensão citar Confissões como livro predileto, ou As confissões, como traduziu Frederico Ozanam Pessoa de Barros, Editora das Américas, 1961, capa de Fernando Lemos. Foi Fernando Lemos, com quem fora agraciado com um prêmio ex-aequo de desenho anos antes (Prêmio Leirner de Arte Contemporânea, distribuído pela Folha de S. Paulo) quem me presenteou também A Cidade de Deus da mesma editora. A edição mais recente que li agora é da Nova Cultural, 2000. Seria muita pretensão, Arthur, porque exige do leitor alto nível de concentração, alcance, cultura, muito acima das qualidades deste seu amigo zé claudinho da silva, e isso quero agradecer aos tradutores como os desta última leitura, J. Oliveira Santos, S. J. e A. Ambrósio de Pina, S. J., que nos vão amparando, mostrando as belezas que poderiam passar despercebidas, explicando as razões de determinadas maneiras de dizer ou baseadas em que, até reescrevendo trechos, por sintéticos, talvez de difícil apreensão ou nos informando sobre desdobramentos de que dificilmente saberíamos ou não nos ocorreriam. P.S. Agradeço à vereadora Priscila Krause o gesto simpático da transcrição nos Anais da Casa do meu artiguete Fica, Santander publicado em 4 de maio no Jornal do Commercio
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ANDRÉ NERY
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SANDUÍCHE Despojadamento gastronômico Iguaria inventada na Inglaterra, no século 18, ganha novas versões, para além do fast food, ligadas ao universo gourmet TEXTO Eduardo Sena
Não dá para dizer que a ideia
de John Montagu, então conde de Kent, na Inglaterra, em 1762, foi original. Inane, depois de mais de 24 horas jogando bridge (famoso jogo de cartas inglês), ordenou que lhe servissem algo diferente (ao menos para a época): carne fria entre dois pedaços de pão. A intenção era comer sem deixar a mesa de jogo. A solução não foi inédita porque, ainda no Império Romano, alguns escravos eram alimentados por ração de peixe, enrolada em discos
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1 GOURMET Sanduíches ganharam ingredientes requintados no cardápio do Barchef, como salmão e queijo brie
se espalhou pelo mundo e, com o tempo, foi se sofisticando e ganhando identidades de acordo com seu local de execução. Mas há um consenso que rege essas variantes: condição sine qua non para o preparo poder receber o nome de sanduíche é ter recheio entre duas bandas de pão. E só. A partir daí, surgem mil possibilidades. Começando pelas variedades de pão. Branco, preto, de centeio, de forma, integral, sírio, bola, francês... O preenchimento varia mais ainda. Carnes, queijos, geleias, verduras, patês, bifes de carne moída (no caso do hambúrguer), salsichas (cachorro-quente). “Ao Brasil, chegaram no século 19, e já com todas essas variações”, registra a pesquisadora Márcia Algranti, no livro Pequeno dicionário da gula.
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de massa de farinha de trigo com água cozida, e os hebreus se serviam de dois pedaços de pão ázimo com recheio de erva amarga. Mas isso é o que se sabe hoje. “No distrito britânico de Sandwich, ao Sulde Kent, tornou-se a quintessência culinária aquele novo jeito de comer carne, dentro do pão, e não tardou para a nova proposta ser batizada como ‘pão de Sandwich’, mais tarde, apenas sandwich”, conta a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti. Fato é que a moda
A propósito, com selo “brasuca” de procedência, o que teve mais fama foi o bauru. Uma invenção de Casimiro Pinto Neto, mais conhecido como Bauru, por viver proclamando as inúmeras qualidades de sua terra natal, no interior de São Paulo. Frequentador do Bar Ponto Chic, na capital paulista, o estudante de Direito chegou faminto ao estabelecimento, buscando algo “substancioso e nutritivo”, contou ele mesmo ao historiador Luciano Dias Pires. Como havia acabado de ler um livreto de alimentação para crianças, com informações nutritivas de uma refeição ideal, pediu ao cozinheiro que pusesse dentro de um pão francês, sem o miolo, queijo derretido, rosbife e tomate. Uma combinação de carboidrato, proteína e vitaminas. Os amigos foram chegando e pedindo “me dá um desses do Bauru”. Aos poucos, foi ganhando novos insumos, como presunto, orégano, fatias de pepino e mais tipos de queijos – aliás, a receita que foi transformada em lei municipal (nº4.314, de 24 de junho de 1998), de Bauru. O medo, nesse caso, era do sanduba sofrer alterações na fórmula. Prática bastante recorrente no cenário gastronômico brasileiro, feita basilarmente de experimentos e reinvenções. O clássico americano, por exemplo, que conjuga pão
de forma, queijo muçarela, ovo e presunto, no Recife, ganhou uma releitura que abandona o prosaico e ganha códigos de alta gastronomia. Está no menu do Barchef, em Casa Forte. Assinado pela chef Raline Aragão, o sanduíche traz o mesmo tipo de panificação e recheio da fórmula original, mas ingredientes e, sobretudo, métodos de fazer diferentes. Folhas de rúcula e mostarda amarela dão acento grave ao sabor. Já o pão é ensopado com uma mistura de creme de leite fresco condimentado com cardamomo, limão, fava de baunilha e empanado em farinha de rosca japonesa, para depois ganhar fritura em imersão. Quase uma rabanada salgada. Ainda no menu de sanduíches da casa, a técnica de cocção sem fogo do salmão gravlax também pode ser conferida numa versão despojada. Lâminas do peixe são curadas a frio com sal grosso e açúcar mascavo, depois de desidratadas, portanto, com maior resistência aos dentes, recebe a companhia de queijo brie maçaricado em pão de leite. “A ideia é trazer a alta gastronomia para refeições mais rápidas e que estão rotuladas como algo de menor importância. Se os sanduíches sempre foram estigmatizados dentro do conceito de fast food, de procedência desconfiável, é urgente pegar a contramão, explorando novos conceitos e sabores”, sugere a cozinheira.
INOVAÇÃO
Afinal de contas, a gastronomia, bem como qualquer outra linguagem cultural, está o tempo todo sujeita a tomar rumos diferentes e seguir tendências. Muitos desses caminhos inexplorados acabam ganhando marcas tão próprias como se fossem assim desde sempre. Se não, veja o caso do cachorro-quente pernambucano. Sim, a receita de origem estadunidense tem uma versão local que se diferencia por ser feita com carne moída temperada com alho, cebola, coentro, pimentão, tomate e cominho. “E aí tem uma questão léxica curiosa. Quando se chama de hot dog, é pão com salsicha, molho de tomate
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ANDRÉ NERY
Cardápio DIVULGAÇÃO
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Clássico
ELE, O CACHORRO-QUENTE “Comer cachorro-quente lá no bar/ Por certo a moda vai pegar/ Por não ser vulgar.../ Comer/ Vai toda gente ao ‘quarteirão’/ Pois há linguiça em profusão/ Pra comer com pão.” Os versos da marchinha de Ary Barroso e Lamartine Babo eram cantados à exaustão naquele Carnaval de 1928, no Rio de Janeiro. A composição entra em dissonância com o registro do pesquisador Câmara Cascudo que, no livro História da alimentação do Brasil, registra que o sanduíche só chegou ao Brasil em 1945, após a 2ª Guerra Mundial, por conta da influência norte-americana. Em tempo, os Estados Unidos e a Alemanha brigam pelo título de inventor de um dos sanduíches mais famosos do mundo. A salsicha, do tipo Frankfurt, de fato era alemã. Mas a ideia de servi-la dentro do pão é estadunidense. Conta-se que um vendedor, Anton Feuchtwanger, comerciava o embutido quente e oferecia aos fregueses luvas de algodão, para que não queimassem as mãos. Passou a ter prejuízo, já que se esqueciam de devolver o artefato, e trocou por pão. Tornou-se lanche comum nos estádios de futebol americano e foi lá que recebeu o nome de hot dog. Como a salsicha tinha semelhança com um cachorro da raça dachshund, também conhecida como bassê, o cartunista Tad Dorgan desenhou o cão dentro de um pão, coberto de mostarda, e escreveu na legenda: “Pegue o seu cachorroquente”. Hot dog até hoje. 4
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DIVULGAÇÃO
2 PERNAMBUCANO O Sansa apostou no tradicional cachorro-quente de carne moída, acrescendo o cream cheese 3 RESERVA TT BURGER Hamburgueria carioca aposta em ingredientes brasileiros nas receitas
Pelas mãos dele, os rótulos da moda são compreendidos como o estímulo da cadeia produtora local e da valorização dos insumos típicos. Mesmo quando, em princípio e em determinada culinária (em que se situa o hambúrguer), eles não tenham o status de indispensáveis. Por lá, ele promove essas incursões, trazendo o disco de carne feito à base de cortes bovinos comuns no país (acém, fraldinha e contrafilé). O Brasil ainda aparece no picles de chuchu e no queijo meiacura do interior do estado do Rio. Tudo montado dentro de um pão de batata-doce, produzido na Favela do Vidigal, sublinhando a tendência do contato direto com pequenos produtores.
SUBMARINOS
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e acompanhamentos variados. E, quando se diz cachorro-quente, já se imagina a carne moída. Pernambuco é o único lugar do mundo em que isso é tratado dessa forma”, assegura Maria Lecticia. Especializado em sanduíches e saladas, o Sansa, no Bairro do Recife, é um dos poucos lugares da cidade que fazem questão de acrescentar o sobrenome gentílico ao “sanduba”. Muito embora a fórmula seja diferente daquela que conhecemos por ser acrescida de cream cheese. E, já que tendências contemporâneas de gastronomia também estão caminhando para os sanduíches, vale falar na força que os critérios de “saudabilidade” estão sendo aplicados num prato que sempre carregou o estigma de não ser tão saudável assim. O menu de sandubas do Sansa aponta para essa diretriz, associando-o a pontualidades criativas, assinatura da chef-consultora Taciana Teti. O que traz baguette com tiras de filé, mais cogumelo shitake refogado, muçarela light, molho de duo de mostardas e salada, é a prova desse casamento.
O sanduíche, que sempre foi tido como um alimento pouco saudável, começa a desconstruir este estigma Falando em alianças, a união entre cozinheiros profissionais e esse tipo de lanche parece que nem a morte separará. Os espaços destinados a eles estão entrando em consonância com rumos do universo gastronômico e adotando discursos para além do fast. E, se o mais pulsante deles na cozinha atualmente é o do “caipira”, “rústico”, “tropical” e “da terra”, então, assim seja, nas sanduicherias e afins. No Rio de Janeiro, a hamburgueria Reserva TT Burger, capitaneada por um dos chefs mais promissores da nova geração, Thomas Troisgros (o filho do Claude), traz a brasilidade para o ícone do fast food.
Se o assunto é tendência, há de se esbarrar na personificação do gosto. Imprimir sua personalidade e vontade às refeições fora de casa, associando a isso (quase sempre) hábitos saudáveis é um dos caminhos tomados pela alimentação. Não à toa, o conceito de “fast casual”, importado dos EUA, vem ganhando força em todo o mundo. Na prática, trata-se de uma comida rápida feita à mão sob os olhos do cliente, com a sua participação efetiva no processo de composição do prato e com preços atrativos. É esse cenário que justifica o sucesso dos lanches submarinos no Brasil. O meio de transporte aquático é o nome dado aos sanduíches no pão baguete, naquele formato de 15cm ou 30cm, com várias opções de recheios. No Recife, não é preciso andar mais de 1km para esbarrar em uma famosa rede responsável pela proliferação do formato no mundo. A Subway, além da lógica da personalização, traz entre os diferenciais a confecção própria dos pães. A rede, que mundialmente supera em número de unidades a McDonald’s, possui hoje mais de 1,5 mil unidades no Brasil, pretendendo chegar a 1,8 mil até o final deste ano. Há cinco anos, eram apenas 365 lojas. No Recife, já são 58 unidades. John Montagu não podia prever que o seu lanche iria tão longe.
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INFANTIS Belo encontro entre imagem e mensagem
Nove livros para crianças e adolescentes, lançados pela Cepe Editora, levam os leitores a diferentes imaginários e à reflexão sensível TEXTO Priscilla Campos
Leitura “Como é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo”, escreve a pedagoga e escritora de literatura infantil, Fanny Abramovich. Também sobre a importância da leitura para as crianças, a crítica literária Marisa Lajolo disserta: “É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias”. Esse comprometimento com descobertas e uma compreensão ampla do universo, assim como a ideia de suporte disseminador de “diferentes sensibilidades”, estão presentes no conjunto de livros infantis e infantojuvenis lançados este mês pela Cepe Editora. Em todas as nove publicações, assinadas por autores e ilustradores de vários estados do Brasil, o conceito de “registro das experiências do conhecimento”, defendido pelo pesquisador de literatura infantil uruguaio Jesualdo Sosa, aparece como fio condutor das narrativas.
De acordo com Sosa, o que fica memorizado “na alma da criança” é o acontecimento teatral da fábula, “astúcias embutidas nas ações das personagens”, e não a moral das histórias. Essa constante preocupação com o imaginário é a característica imperativa entre os livros da coleção, tão diferentes em suas temáticas. A lista, composta por A menina da lagoa de cristal, de Claudia Lins; A Vila Formosa, de José Victor; As patuscadas de um livro infantil (…patuscadas?), de Lilian Deise de Andrade Guinski; Plin porompim plof, puft!, de Cecy Fernandes Assis; Alguém viu minha mãe, de André Kondo; Confabulando em cordel, de Lêda Sellaro; A guardiã – a chave do tempo, de I.M. Albuquerque; Dias de tempestade, de Ju Couto; e Era uma vez… Estórias de uma contadora de estórias, de Gabriela Kopinits, reúne ideias que abordam desde reflexões existenciais, sociais e pedagógicas até conexões entre os contos atuais com fábulas já conhecidas pelos pequenos, como Pinóquio e A cigarra e a formiga.
PRINCESAS E SURURUS
Combinação certeira e harmoniosa entre texto e ilustrações (assinadas pela designer pernambucana Hallina Beltrão), A menina da lagoa de cristal, da jornalista e escritora carioca Claudia Lins, alinha o cotidiano difícil da
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ARGUMENTO
Para escrever A menina da lagoa de cristal, Claudia Lins partiu do seu desejo de comentar o cotidiano de crianças carentes
personagem principal, Maria, e sua aguçada capacidade de criar histórias fabulosas. A garota mora numa casa precária, junto com a mãe e cinco irmãos. A família faz parte da vila que se formou ao redor de uma lagoa, área afastada do centro urbano, mas também longe do interior, de que Maria sente falta. Na antiga cidade, ela morava em casa de tijolos e frequentava a escola. Claudia, radicada em Alagoas há cerca de 20 anos, explica como surgiu a ideia da narrativa. “O argumento para o livro vivia dando voltas no meu pensamento há muito tempo. Como jornalista, minha escrita, muitas vezes, tem um olhar atento ao mundo real. A menina da lagoa de cristal vem de uma antiga inquietação que sinto com
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HALLINA BELTRÃO/DIVULGAÇÃO
a realidade que tanta gente parece ignorar. Desejei escrever uma história que emocionasse as pessoas. Pensei nas crianças que, das janelas de seus carros, passam todos os dias pela lagoa ‘cartão-postal’ de Maceió, sem se darem conta de como é difícil o dia a dia das pessoas que vivem ali. Eu queria contar essa história, de quem mergulha em apneia por horas, para catar no fundo da lama as conchinhas cortantes de sururu, mas também falar dessa menina que não perde a esperança de construir um futuro melhor para si e sua família.” A protagonista, então, funciona entre duas composições de personagem: a redonda ou esférica — classificação destinada àquelas que apresentam densidade psicológica e podem evoluir ao longo da história — e a personagem-tipo, aquela que representa um grupo social. A partir desse centro focado em Maria, a jornalista oferece ao leitor uma eficaz
Embora com temáticas distintas, os livros têm em comum a preocupação com relacionados à contemporaneidade fusão: a realidade (coletiva x pessoal) e o imaginário, descrito sempre com paixão pela garota. Assim como muitos autores de literatura infantil e infantojuvenil, Claudia está envolvida em projetos para incentivar e promover a leitura. Sobre a sua trajetória como escritora, ela conta: “Em 2007, publiquei meu primeiro título infantojuvenil (Os Três Porquinhos do Agreste), pelo Selo Passarada (AL). Esse selo não é uma editora comercial, mas uma iniciativa de produção literária independente.
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Foi criado por mim e mais dois amigos autores alagoanos, três apaixonados por literatura infantil, gente que tira grana do próprio bolso para custear o sonho de fazer livros para crianças”. Além do selo, a jornalista coordena um portal chamado Mundo Leitura (www.mundoleitura.com.br) e o projeto Programa Leitura Viva Espaço Educar, realizado em escolas de Maceió. “Acredito que uma boa história não tem idade, por isso escrevo para um leitor com sede de descobrir o mundo na perspectiva de uma criança, que quer olhar tudo com encantamento e curiosidade”, afirma a carioca.
LIVRO, TECNOLOGIA, BRINQUEDO
Em As patuscadas de um livro infantil (… patuscadas?), o leitor é convidado a observar, através da perspectiva dos livros, a rotina do Menino, uma criança que não gostava de ler e, aos poucos, apaixona-se pela leitura. O Livro
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ANA RAQUEL/DIVULGAÇÃO
Leitura
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Infantil, que mora na prateleira de uma livraria e observa, com tristeza, poucas crianças interessadas em suas histórias, chega à casa do garoto tímido. Aos poucos, faz amizade com outros livros coloridos e com os brinquedos, os queridinhos da atenção do Menino naquele ponto da narrativa. Assinada pela escritora paranaense e especialista em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa Lilian Deise de Andrade Guinski, a publicação encontrou uma ótima interpretação visual da ilustradora pernambucana Simone Mendes. “Quando recebi o texto de Lilian, a primeira ideia que tive foi a de fazer os desenhos a partir da ótica do personagem principal, o Livro Infantil. O intuito é que a criança leitora se coloque também nesse ângulo, os desenhos que criei são elementos que estão ao redor do livro”, explica. No texto, aparecem como dois fortes aspectos as referências a
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Entre as questões prementes, abordadas nos livrinhos, está o uso da tecnologia por parte das crianças e a posição dos pais elementos contemporâneos como robôs, Star Wars e Harry Potter, e as constantes interferências narrativas que remetem à palavra, como a presença do Dicionário, um parceiro do Menino na compreensão dos significados. “Seguindo essas correspondências, entendi como era importante também colocar nas imagens uma série de alusões a outros livros, autores, artistas. No universo que criei com uma paleta supercolorida, mas com predominância de cores primárias,
o leitor poderá encontrar obras de artistas como Mondrian e Van Gogh, por exemplo”, observa a ilustradora. O desenvolvimento narrativo de As patuscadas de um livro infantil (...patuscadas?) culmina em um dos principais tópicos de discussão entre pais e filhos: o relacionamento com a tecnologia. Com um clima saudosista entrelaçado à amizade que a criança pode construir com a leitura, Lilian consegue transmitir ao leitor uma sólida ideia da importância dos livros, muito além da formação escolar.
VALOROSAS LEMBRANÇAS
Confabulando em cordel, da pernambucana Lêda Sellaro, e Plin porompim plof, puft!, da mato-grossense Cecy Fernandes Assis, trazem temáticas e modelos narrativos conhecidos tanto por adultos quanto por crianças: fábulas e a rotina (real e fantasiosa) de uma aldeia indígena. Além de divertido e repleto de inteligentes, poéticos insights (como no trecho “Ah, os ventos, fiu vêmm vuuvão. Elemento que nasceu com DNA com preferência por exteriores. Na aldeia o vento não geme. Canta. Ópera. Viajante vaidoso! Viaja sem vacilar, desfiando e desafiando o penteado das claras e aniladas nuvens. Faz ventosos ensaios e nunca esquece
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JARBAS DOMINGOS/DIVULGAÇÃO
que é professor emérito das flautas”), o livro de Cecy atende aos quatro elementos que servem como base de sustentação para a literatura infantil, de acordo com Sosa: o caráter imaginoso, o dramatismo, a linguagem e a técnica de desenvolvimento. Ao trazer Isaac Newton, Darwin, Disney, novas palavras, onomatopeias e espécies de peixes brasileiros para o mesmo texto, Cecy cria um universo dramático, fantástico e linguístico. Já Confabulando em cordel — mais um exemplo da coleção que acertou em cheio nas ilustrações, assinadas por Jarbas Domingos — foca o universo imaginativo, para disseminar reflexões sobre os relacionamentos humanos. Em seu livro, Lêda busca o valor terapêutico e catártico da literatura, defendido pela antropóloga francesa Michèle Petit, atributo também comum às demais publicações.
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TECNOLOGIA
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ONOMATOPAICO
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CONFABULANDO CORDEL
As patuscadas (...) busca discutir a importância dos livros Em Plin porompim plof, pluft!, Cecy Fernandes Assis cria universo fantástico e linguístico Lêda Sellaro reflete sobre relacionamentos humanos
Em suas conferências, em 1980, o escritor argentino Julio Cortázar falava sobre determinadas leituras que continuam “ressonando” na cabeça dos leitores. A musicalidade, para ele, era presença essencial na literatura infantil. Cortázar disserta sobre como a organização das sintaxes, feita pelos escritores, pode acrescentar à narrativa novas atmosferas, “um conteúdo que nada tem a ver com a mensagem em si, mas que enriquece o texto, amplifica e, muitas vezes, aprofunda”. Os livros da nova coleção infantil e infantojuvenil da Cepe Editora estão nessa categoria melódica e ressoam com capricho nos ouvidos de crianças e adultos.
ELEONORA ARROYO/DIVULGAÇÃO
Festival literário
ENCONTRO EM GARANHUNS Com o tema Literatura Infantil – Construindo Cidadãos, a primeira edição do Festival Internacional de Literatura Infantil (Filig) acontece em Garanhuns entre 9 e 12 outubro. De acordo com os organizadores, a cidade foi escolhida para sediar o evento literário por conta de investimentos recentes em ações voltadas para a literatura infantil, como implantação de salas de leitura e a realização da Bienal do Livro. Autores e ilustradores latino-americanos formam a lista de convidados, na qual a presença feminina é predominante. A questão da participação de mulheres em festivais literários brasileiros tem sido discutida com atenção por jornalistas e críticos nos últimos anos. Os destaques do evento são a escritora colombiana Irene Vasco e a ilustradora argentina Eleonora Arroyo (autora da imagem acima). Dedicada à literatura infantil e à formação de leitores, a colombiana escreve há cerca de 30 anos. Fundadora do projeto Espantapájaros, uma iniciação para novos autores de livros infantis, Vasco também promove oficinas de leituras para pais e professores em Bogotá, além de trabalhos voltados para comunidades afastadas dos centros urbanos. “A formação de leitores e escritores está relacionada à formação de cidadãos resistentes e participativos que podem usar a ferramenta da escrita para recuperar as terras perdidas e melhorar condições sociais”, afirma a colombiana. Além das ilustrações, Eleonora Arroyo dedica-se a experiências com teatro de sombras, trabalhos com madeira e em terceira dimensão. Assim como Irene Vasco, ela participa de programas de incentivo à leitura. A simplicidade com que executa suas obras, tanto no traço quanto no material utilizado, é a característica principal do trabalho de Arroyo. Confira a programação no site do festival: www.fligfestival.com.br. (Priscilla Campos)
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TERESA MAIA/DIVULGAÇÃO
Leitura
BREU Um grito de dor e de libertação
Músico Geraldo Maia publica autobiografia em que são eixos a morte e a descoberta do sexo TEXTO Pethrus Tibúrcio
Em uma infância de domingos de igreja, colégio cristão e rezas antecedendo as refeições, conseguimos perceber o cristianismo de duas formas: no anestesiamento de nossos maiores medos e na fabricação de nossos mais íntimos temores. A morte, a descoberta do sexo e a percepção de uma sexualidade dissidente são passagens fortemente tocadas pelas noções de previsibilidade, destino e moral que a religião mantém. Não é possível saber plenamente qual foi a rotina do músico Geraldo Maia na década de 1960, mas, certamente, os sintomas de algumas de suas vivências são comuns a um grande número de pessoas. Ele
acaba de lançar Breu, autobiografia que perpassa essas questões, e fala especialmente da perda: a morte prematura de sua mãe, presenciada aos cinco anos, e a descoberta, violenta e também precoce, do sexo. “A minha maior crítica é ao modo como a religião participou da minha vida e como foi nociva ao meu processo”, conta. Com formação acadêmica em Sociologia, o autor é mais conhecido pelo seu trabalho na música, em que já apresentou nove discos. Na noite de lançamento de Breu, que é a sua primeira experiência literária, ele uniu as duas potências, ao realizar um pocket show para a apresentação do livro. Já sendo compositor,
também aproveitou essa experiência para verbalizar a própria história. Ele insere alguns trechos de suas canções no livro e a narrativa é construída como uma espécie de prosa poética, o que ele também atribui ao universo musical. O próprio Maia é responsável pelo financiamento do livro, uma edição do autor. Na impressão, destaca-se o projeto gráfico, que traz uma capa discreta, e o miolo ilustrado com reproduções de esboços do expressionista norueguês Edvard Munch, que parecem ter sido pensadas para o livro, tal a sintonia entre texto e imagens. Escrita em primeira pessoa, é claro o caráter confessional da história. O período que separa a ocorrência dos
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INDICAÇÕES fatos narrados da escrita do livro, além da linguagem intimista e por vezes crua, sugerem um resgate feito sem muito esforço, como geralmente acontece com nossas tragédias. Para o autor, o livro sempre esteve no gatilho. “Acho que eu sempre soube, de alguma maneira, que ia escrever esse livro um dia. Só não sabia a forma que ele iria tomar”, diz. Ele fez análise e terapia por muitos anos, mas sentia que precisava canalizar sua história em alguma criação. Por essa razão, define Breu como “um grito”, que não é só de dor, mas também de libertação. A defesa da libertação está associada à ideia de culpa cristã, que, diz ele, controla e limita nossos comportamentos através de ideias de moral, que são sustentadas com o suporte da ameaça, ou o que Geraldo chama de “o pecado inventado”. O uso da primeira pessoa foi, por um momento, um conflito para Maia. “Quando você tem uma interlocução, fica mais protegido, menos vulnerável. Esse texto me deixa muito exposto.” Isso porque tudo é relatado como Geraldo lembra, com exceção do nome do personagem Melquíades, que foi alterado. Por isso e pelo conteúdo das confissões que o livro escancara, ele não pode deixar de ser visto como uma obra corajosa. A palavra breu é mais associada à escuridão total, e, metaforicamente, pode ganhar vários significados. Uma impressão é a de que, aqui, Breu funciona como uma multidão presa dentro de um apagão. O estabelecimento de
liberdades momentâneas para fazer o que quer, com a segurança do sigilo. Mas a multidão inteira está ciente de que as coisas estão acontecendo. Funciona, portanto, como a confissão de uma história que não é confortável de ser contada, mas, quando é, pode ser compartilhada pela mesma multidão de luzes acesas. É possível, assim, ver Breu como a iminência de iluminar contos do nosso passado. Como um esperneio contra a aleatoriedade e arbitrariedade da vida (e também da morte), sendo mais um passo no caminho do questionamento às instituições produtoras desse medo e que funcionam como carrascos, forçandonos a colocar nossa humanidade dentro de uma caixa. É como o desconforto de uma lâmpada acesa nas pupilas dilatas de uma madrugada de sono. Sempre dói e existe resistência, mas é sempre necessário.
CULINÁRIA
ADRIANA VAZ E ROBERTO AZOUBEL (ORG.) O Carapuceiro
Numa abordagem de caráter sociológico e antropológico, os sete ensaios reunidos neste livro tratam da formação da culinária no Brasil. O autor tem excelente base bibliográfica, dados atualizados e clara visão de mundo, numa apropriada atualização do tema. Sua linguagem é precisa e direta.
O Carapuceiro foi um blog que circulou pela web entre os anos 1998-2005, tendo à frente o cronista Xico Sá, e apropriandose do nome do jornal criado pelo Padre Lopes Gama no século 19. O blog tinha verve. Nesta coletânea, estão reunidos 100 textos de 26 colaboradores.
BIOGRAFIA
POESIA
Publifolha
Edições Interpoética
Três Estrelas
LEÃO SERVA Um tipógrafo na colônia
Breu GERALDO MAIA Edição do autor Primeiro livro do músico pernambucano é obra que expõe sua história pessoal , escrita em primeira pessoa.
CRÔNICA
CARLOS ALBERTO DÓRIA Formação da culinária brasileira
O jornalista Leão Serva foi atrás da história do tataravô, que foi gráfico pioneiro na Bahia e em São Paulo, para, através dele, contar um pouco da tradição gráfica no país. O livro poderia ser mais saboroso, se o autor fosse menos relatorial e preso aos dados, trazendo para o leitor uma narrativa mais imaginativa sobre a “aventura” de publicar num ambiente de aridez intelectual.
Editora Paés
VÁRIOS AUTORES Sub 21 Eles são 10, todos abaixo de 21 anos. Vêm de várias cidades (Recife, Surubim, Belo Jardim) e estão espalhados por aí, escrevendo poesia. Bárbara Nunes, David Henrique, João Gomes, Penélope Araújo, eis alguns deles. Quem os reuniu neste belo livrinho foi a poeta Cida Pedrosa. Pessoal bom, promissor, com vozes variadas Leitura aponta frescor autoral.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DOS VAQUEIROS O pior na vida do vaqueiro é que as árvores foram plantadas no lugar errado. (Pedro Gonçalves, que sonhava ser vaqueiro)
Teimam e teimam esses homens na
peleja rude, suarentos e terrosos. As camisas pregam nos corpos lanhados pelos espinhos e galhos de árvores – todas plantadas fora do lugar. Teimam em ser como há séculos, mesmo quando parecem visagens de um tempo irreal, esquecido na memória. Parecem marcianos rubros de poeira e sol, o sol quente de um planeta sertanejo que sobrevive aqui e acolá em rasgos de terra e caatinga, o cenário onde os vaqueiros correm atrás dos bois, rindo escancarado da morte, a morte fêmea, de tocaia num galho de árvore. Teimam em ser vaqueiros de gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro, bordados de finos arabescos, a armadura com que se protegem da lança dos paus, nas árvores que os espreitam, as árvores plantadas no lugar errado, a morte certa se a visão e o cavalo acesos não alertam o corpo: mãos, braços, pés, pernas, coxas,
peito e cabeça dormentes de correr e lutar. Pra quê? Pra nada, diria o poeta Ascenso Ferreira. Pra lutar e viver afirmaria outro poeta, pois sem a lida e o perigo, sem os bois correndo à frente deles e os cavalos disparados atrás, o que seriam esses homens? Nada. Teimam em vestir os couros e correr atrás de bois rebeldes, tocar os rebanhos de gado, continuar vaqueiros mesmo quando o mundo à volta se transforma noutro, recusando a função que eles escolheram representar, o ofício que melhor sabem, arcaico como a própria história do homem. *** Não existe mais o sertão que o historiador Capistrano de Abreu desejou fosse estudado para que a história do Brasil não ficasse somente às margens do litoral; nem o sertão mítico das sagas do poeta cearense Gerardo Melo Mourão; nem o sertão que alguns escritores contemporâneos teimam em idealizar, criando uma épica enfeitada por brasões e ferros de
marcar bois. Existem as cidades, novos comércios e indústrias, agricultura irrigada, o turismo, a moda que se exporta para o mundo e uma acelerada mobilidade social. E sobrevivendo à margem do progresso, um velho sertão de estradas poeirentas, casas em ruína, currais vazios, resquícios de bois e vaqueiros, cercas desfeitas, mato comendo os roçados. Um deserto de ausências no lugar do antigo fausto. O ciclo do couro, quando nas fazendas mal cabiam os rebanhos de bois, carneiros e cabras, produziu poetas repentistas, narrativas míticas, heróis vaqueiros, santos penitentes e fanáticos religiosos. O modelo econômico de exploradores e explorados serviu de tema para o romance de Graciliano Ramos, filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e para a gesta dos poetas populares, que cantaram as dores e alegrias da vida sertaneja. O algodão trouxe prosperidade, indústria e promessa de que o Nordeste entraria numa nova era sintonizada com o restante do mundo. A praga do bicudo-do-algodoeiro, um besouro
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KARINA FREITAS
proveniente da América Central, pôs fim ao sonho de riqueza do ouro branco, cantado por Luiz Gonzaga. Sem poder retornar ao modelo pecuário já exaurido – os pastos esgotaram-se com a falta de manejo e as repetidas estiagens –, com a agricultura de subsistência falida por conta das secas, vulneráveis às informações que chegavam via rádio, televisão e meios de transporte, os habitantes das fazendas e pequenos sítios foram embora para o Norte, o Centro Oeste e o Sudeste, morar nos embrenhados de matas e florestas ou nas periferias das cidades. Esse fluxo migratório que se acentuou após a Segunda Guerra, mudando a paisagem humana do planeta – de rural em urbana –, foi sentido no nordeste brasileiro de forma dramática. O lendário homem sertanejo tornou-se um suburbano fragilizado, um personagem a mais nos romances e filmes. O espaço geográfico que remetia à memória da Grécia, dos desertos de árabes e hebreus, da Península Ibérica moura e da Sicília, que possuía uma cultura própria e fechada nela
Percebe-se a construção de um novo imaginário de Brasil, uma estampa nebulosa como as terras avistadas por Cabral mesma, com resquícios de Idade Média, tornou-se permeável e aberto à globalização. Universalizou-se. O passado mítico sobreviveu nas genealogias, em teses universitárias e na criação dos artistas. As cidades interioranas, pobres e feias, foram invadidas pela tecnologia. A nova geração sertaneja prefere jogos em rede a montar cavalos. Habita um sertão complexamente urbano, com excesso de motos, celulares e lixo plástico. Vive os anseios de consumo de qualquer sociedade capitalista – bens materiais, pornografia, drogas – em meio à pobreza crônica e à falta de educação. Sofre da neurose urbana e da necessidade de adequar o mundo arcaico que herdaram, ao
mundo globalizado em que se viram inseridos de forma brutal, num curto intervalo de tempo. Em cinquenta anos, o Brasil deixou de ser um país rural e transformou-se numa nação predominantemente urbana. *** A visão das mais tradicionais casas sertanejas indo a baixo, dando lugar a rodovias asfaltadas, curou-me de toda ilusão de um tempo estagnado. Na noite escura, o barulho forte dos tratores e as luzes dos faróis me deixaram a impressão de estar noutro planeta. Mas não estava. O sertão continuava ali, diante dos meus olhos, a perder de vista, com o asfalto fedendo mais do que carniça. Por muito tempo chorei essa ferida. Depois, me distraí olhando os carros passarem. Lamentar o irremediável? O sertão de hoje é esse mesmo. Mire e veja. Ou como disse o poeta Fabião das Queimadas: Já morreu, já se acabou, Está fechada a questão.
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LUCIANA ARCURI/ DIVULGAÇÃO
Cena Cumplicidades
RECIFE – OLINDA
30 Out – 9 Nov
GRATUIDO E PAGO
R$ 20,00 e R$ 10,00
Palco
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DANÇA NA RUA O público colocado entre o confronto e a proteção
Coletivo Cartográfico apresenta o espetáculo Instruções para o colapso entre traseuntes que, aos poucos, passam a interagir com a performance TEXTO Guilherme Novelli
Em nenhum momento, como em muitos trabalhos de rua, elas definem um território, uma arena em que anunciam o início do espetáculo. O trabalho vai se infiltrando no cotidiano da própria rua. Uma parte dos espectadores fica sem saber o que está acontecendo. “Existem reações, por parte do público, de incômodo com o nosso trabalho, como também de proteção, por sentirem que a gente faz coisas que envolvem estar no chão e são arriscadas, implicam um impacto com o asfalto. Há sempre esses dois extremos: confronto e proteção”, explica Mônica Lopes, que, juntamente com Fabiane Carneiro e Carolina Nóbrega, fundou o Coletivo Cartográfico de dança contemporânea. Elas apresentam o espetáculo Instruções para o colapso, dia 1º de novembro no Recife, na Praça do Diário, às 11h, compondo a programação do Festival Cena Cumplicidades 2014. O trabalho foi ensaiado e estruturado para a rua, nas fronteiras entre dança contemporânea e performance. Elas não interpretam que estão caindo, colidindo com o asfalto: estão, de fato, caindo. O tempo todo dispõem o corpo a uma experiência real, permitindo
Para a encenação, não há delimitação de tablado. As bailarinas vão se infiltrando no espaço público, provocando reações que esse corpo chegue ao cansaço, à exaustão, ao colapso ao longo da atuação. Vão aos extremos da experiência física, num limite muito tênue entre vida e arte. Nesse ambiente de risco e simultaneidade, que é a rua, a busca é um diálogo com a realidade cotidiana, interferindo e se deixando afetar pela atmosfera do espaço público. A pesquisa compreende a relação do corpo com a cidade: uma cidade que se transforma o tempo todo e que exige de seus habitantes estratégias diárias para a sobrevivência. “Dependendo da cidade a que você vai, existe um sentido de vigilância muito distinto, mas todo espaço público passa por isso: por algum tipo de controle. O fato de fazermos uma coisa que é fora do cotidiano, o fato de uma mulher limpa se jogar no chão (e não um morador
de rua) gera um deslocamento que quebra os padrões de limites estabelecidos, independentemente de serem policiais ou não. Na rua, há uma vigilância que os próprios membros da comunidade exercem em torno das normas que criam para a utilização dos espaços deles mesmos”, conta Carolina Nobre. Na visão do Coletivo Cartográfico, as pessoas têm de experimentar, apropriarse da cidade, pois a constroem o tempo inteiro, seja realizando algo ou simplesmente circulando. Os primeiros ensaios foram no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, passando depois para a Praça da Sé, centro geográfico da capital paulista. “Quando mudamos do Anhangabaú para a Sé, fizemos um reconhecimento do local e propusemos algumas ações para aprofundarmos a pesquisa. De imediato, quem se sentia o dono do território chegou até nós, querendo saber o que estávamos fazendo lá. Nesse momento, começamos a lidar com essa relação de poder, mas, quando nos desarmamos, e nós estamos completamente desarmadas – porque estamos numa situação de risco, frágil –, ganhamos a confiança dessa pessoa
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RENATA PIRES/ DIVULGAÇÃO
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e recebemos as boas-vindas para estar naquele território”, conta Fabiane Carneiro, defendendo que a vigilância é uma questão territorial.
TERRITÓRIO E SEGURANÇA
A pesquisa do coletivo passa também pela observação de como as pessoas permanecem no espaço público, já que todos precisam do apoio físico e psicológico das estruturas urbanas. “Recentemente, fizemos um exercício de observação de como aqueles que o ocupam se apoiam no espaço construído. Vimos que existem algumas tendências: eles não costumam se posicionar no centro; ficam mais nas periferias das praças, porque mantêm o controle do ambiente, conseguem observar tudo o que está acontecendo. Não ficam sem costas resguardadas, por uma questão de segurança”, argumenta Fabiane. Da Sé paulistana, caótica, disputada por diversos atores sociais, o espetáculo migrou para o Alto da Sé olindense, relacionado a um imaginário turístico. As apresentações do coletivo em Olinda aconteceram no ano passado, no mesmo Cena Cumplicidades. Do Alto da Sé, avista-se a cidade em constante uso, apropriação e
A pesquisa do coletivo também se detém sobre como as pessoas permanecem na rua, como se relacionam com as edificações transformação, a sua parte nova, usualmente não visitada pelos turistas. “A maioria das pessoas que circulam pelo Alto da Sé estabelecem com o local um vínculo instantâneo, de passagem. Não buscam modos de se apropriar de suas edificações. Para os turistas, são como fachadas ocas, sem interior”, defende Carolina Nóbrega, afirmando que a própria história do Alto da Sé, salvaguardada pela conservação desse espaço, desaparece, para dar lugar ao comércio de alimentos e artesanato. Essa atmosfera turística se sobrepõe à memória do local.
PONTOS ATRATORES
Parte do processo de criação consistiu numa abertura para a sensibilização da cidade. “Nosso primeiro momento foi de escuta, estar na rua com outro olhar, diferente daquele cotidiano,
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utilitarista, de trânsito, de trabalho. Estar lá e ficar lá, sem a preocupação de criar, levantar o espetáculo”, explica Carolina Nóbrega. Pontos atratores no espaço público eram aqueles para onde convergia o olhar delas, durante o trabalho de sensibilização. Coisas que chamavam a atenção por alguma razão poética, política, estética, ou sem nenhum critério aparente. “O exercício foi criar um roteiro de deslocamento, um mapa acompanhado por um áudio com instruções a serem seguidas durante o percurso. Todas se submeteram aos roteiros umas das outras”, continua. Elas não combinaram nem discutiram nada antes. Nas trocas, depararam-se com pontos de vista em comum e, às vezes, com o olhar específico de cada uma. Outro exercício foi construir ações performáticas a partir de programas. “Cada uma de nós criou pequenas ações para as outras realizarem. Como é alguém vivenciar um roteiro, um mapa de ações criado por outra pessoa? Existe a proposta de uma atravessar a outra com uma percepção específica”, define Mônica. Escuro contrastando com o claro. Cinza ou preto, contrastando com bege ou branco. O escuro tem mais a ver com a concretude do espaço, a
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VAL LIMA/ DIVULGAÇÃO
dureza do cimento urbano. O claro tem relação com a pele e, principalmente, foi escolhido para deixar visível para quem fosse assistir o quanto essa roupa iria se transformar, colapsar junto com o corpo, durante o espetáculo (elas começam limpas e terminam imundas). Há um desejo de não querer um corpo bonitinho, impecável. “O objetivo é que o público veja que esse corpo passou por uma experiência, uma transformação. Ele se funde com a cidade de alguma forma. Além disso, o figurino tem uns cortes em vermelho, representando essa ideia de uma matéria que permite ser atravessada por múltiplas questões, a qualquer momento: a presença visível de uma instabilidade”, comenta Carolina. O figurino não é novo. Foi todo escolhido em brechós: também tem camadas de história. Uma
1-2 EMBATE
O corpo a corpo empreendido pelas três performers as leva ao chão e à transformação gerada por essa exposição física
das prerrogativas é que a roupa teria de vir com transformações já efetuadas pelos antigos donos: manchas, rasgos etc. Isso tem relação com a própria Praça da Sé paulistana, que também abriga várias camadas de história, de reformas e novos traçados, além de muitas e diferentes pessoas ocupando-a. Toda a simultaneidade e sincronicidade de vários tempos. “A gente pesquisa a relação de impacto do corpo com a cidade. Deixar visível esse impacto com alguma materialidade, que é perecível, vai desaparecer com o vento, com a chuva. Ela não está sendo impressa como uma tatuagem; ela é frágil, vai desaparecer, assim como a nossa presença”, conclui Mônica Lopes.
BRUNO PANTEL/ DIVULGAÇÃO
Cena Cumplicidades
SÍTIO HISTÓRICO COMO PALCO O Cena Cumplicidades é uma mostra internacional com programação artística variada, realizada no Sítio Histórico de Olinda, irradiando ações também para teatros do Recife. Criado em 2008 pelo Sesc, o evento traz, este ano, 22 companhias/artistas, sendo sete internacionais, nove locais e seis de outros estados brasileiros. Temáticas como a pornografia na dança, o ritmo afro e a cultura francesa (atrações internacionais) vão marcar esta edição, já que o festival foi contemplado pelo edital do Institut Français, além de contar com o apoio do Consulado Geral da França no Recife. Entre os destaques, está My pogo, com concepção de Fabrice Ramalingom, que faz referência à forma como os punks dançavam diante nos shows, no final dos anos 1970 e início dos 80. O espetáculo traz o choque brutal e desordenado de corpos que se jogam uns contra os outros. Good boy foi criado e concebido pelo premiado coreógrafo e bailarino francês Alain Buffard, que faleceu em 2013. Para dar continuidade ao processo, o assistente Mathieu Doze revive as ideias do mestre, discutindo o corpo como um reservatório de mundos: espaços, modos de existência, fluxos, mutações, transformações. Já Singspiele – feito a partir de um fragmento de texto de Robert Antelme – tem concepção de Maguy Marin e performance de David Mambouch, seu filho, nomes respeitados no mundo da dança. O público infantil poderá conferir o espetáculo Ce n’est pas commode, da Companhia À Tiroirs. Trata-se de um solo burlesco, criado por Olivier Bovet, com orientação artística de Michel Dallaire, que conta a história de Béron, um clown que traz uma cômoda cheia de sonhos (foto acima). Do Ceará, vem o espetáculo Corpornô, da Companhia Dita, que se pergunta “pornografia é o erotismo do outro?”. A performance risca uma linha tênue entre o erotismo e a pornografia, lidando com o que existe de animal, social, humano e obscuro em cada um de nós. O grupo pernambucano Pé no Chão, que tem mais de 20 anos de estrada, apresenta diversos espetáculos, inclusive o inédito Fraternitê. (G.N.)
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ANTÔNIO MELCOP/ DIVULGAÇÃO
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SANGUE AZUL Quando o circo aporta na ilha
1 PROTAGONISTA Daniel de Oliveira interpreta o homem-bala que volta a seu lugar de origem para enfrentar “fantasmas” do passado
Quinto longa-metragem de Lírio Ferreira toca questões familiares com diversidade de personagens TEXTO Luciana Veras
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(2007) e O homem que engarrafava nuvens (2010), trata-se do retorno à ficção do diretor que, ao lado de Paulo Caldas, redesenhou a cartografia do audiovisual pernambucano – e brasileiro – com Baile perfumado, de 1996. Na trama, Daniel de Oliveira é Zolah, um homem-bala que é chamariz e maior estrela do circo Netuno. Quando a trupe comandada por Kaleb (Paulo Cesar Pereio) volta ao arquipélago de Fernando de Noronha e lá se instala para uma temporada, o espectador descobre que Zolah, na verdade, chamava-se Pedro e, ainda criança, fora banido da ilha pela própria mãe, Rosa (Sandra Corveloni), que temia uma relação intensa e carnal entre o filho mais velho e a caçula. Naquele momento, o astro circense reencontra a irmã Raquel (Caroline Abras), um novo estado de coisas e o mar, que o seduz e amedronta. Sangue azul traz diversos elementos presentes na obra de Lírio: o
Assim como em outros de seus filmes, como em Árido movie, diretor utiliza os deslocamentos para estruturar narrativa
“A primeira imagem do filme é
o personagem de Daniel vomitando no barco com a ilha ao fundo”, narra Lírio Ferreira, “e aquela era justamente a minha necessidade: voltar a dizer algo, ter gente se bulindo na minha frente depois de tanto tempo”, completa o cineasta pernambucano. Ele fala de Sangue azul, seu quinto longa-metragem, cujo périplo pelas mostras cinematográficas teve início em julho, no 6th Paulínia Film Festival, e segue em outubro pelo Festival do Rio. Depois de Cartola – música para ouvir
deslocamento, tema e forma de Árido movie (2005), o apreço pela imagem – ao contrário da maioria dos filmes nacionais recentes, esta é uma obra rodada em 35mm – e o olhar livre, como se o cinema fosse uma arquitetura que ele aprendesse a dominar pelo instinto. Em Paulínia, de onde saiu com os prêmios de figurino e fotografia (respectivamente, para os pernambucanos Juliana Prysthon e Mauro Pinheiro Jr.), o cineasta brincava com a necessidade de rótulos, evidenciada por jornalistas e críticos, em entrevistas e debates. “Acho que nesse filme o meu cinema está mais solto, talvez até mesmo mais arriscado. Mas, sobre o que é o filme, de onde ele vem? Pode vir da minha impossibilidade de amar, mas não quero deixar essa costura muito fechada, não…”, respondeu à Continente. A liberdade com que o cineasta manipula certezas a respeito do filme
transparece no modo como as filmagens transcorreram. Foram dois meses em que equipe e elenco moraram em Fernando de Noronha. “A ilha é nosso personagem. A temperatura dela está no nosso filme, era essencial para tudo. Para nós, fazer cinema é ser cinema”, resume o produtor Renato Ciasca, sócio do cineasta paulistano Beto Brant na Drama Filmes, empresa que abre os créditos do longa. O roteiro, escrito por Lírio, pelo parceiro habitual Sérgio Barbosa e pelo diretor carioca Fellipe Barbosa, era um guia, mas não uma amarra. “Quando chegamos à ilha, percebemos a força da natureza e fomos seguindo o fluxo. Foi tudo muito intuitivo. Lírio nos deixava à vontade para irmos em busca dos personagens”, recorda Caroline Abras, cuja incursão cinematográfica mais conhecida é seu papel como um transexual em Se nada mais der certo (2008), de José Eduardo Belmonte. “À vontade” parece ser a locução mais adequada no que se refere ao comportamento do elenco, tanto durante a produção – a julgar pelos relatos – como em cena. Matheus Nachtergaele, Milhem Cortaz, Brenda Lígia Miguel, Armando Babaioff, Laura Ramos, Ruy Guerra e o veterano Pereio passeiam com leveza na pele de seus personagens, ora estrelas distantes orbitando ao redor de Zolah, ora ilhéus inebriados pela presença do novo. Contudo, mesmo com a naturalidade das atuações, o subtexto dramático não está ausente de Sangue azul. “Chorei muito com aquelas galinhas lá, para descobrir quem era Rosa”, comenta a atriz Sandra Corveloni, melhor atriz no Festival de Cannes de 2008, por Linha de passe, de Walter Salles. “Que vida ela levava? Por que ela mandou o filho embora? Estar lá, plantando, dando comida às galinhas, da mesma forma que aparece no filme, dançando maracatu: tudo isso foi fundamental para que eu pusesse os pés no chão e fosse descobrir aquela mulher”, acrescenta. Em Sangue azul, como nos filmes anteriores de Lírio, os personagens tendem a obedecer a uma lógica determinista: estão prisioneiros dos impulsos, são reféns do ambiente que os cerca e vagam “à margem de tudo”, nas palavras de Caroline Abras. Porém,
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FOTOS: MARIO MIRANDA FILHO/DIVULGAÇÃO
Depoimento
LÍRIO FERREIRA
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diante “daquela paisagem vulcânica e insular”, como adiciona Daniel de Oliveira, vão se metamorfoseando aos poucos; logo, assumem as rédeas de si. “O interessante de Zolah é que ele é um pop star, o cara que chega com o circo, que quer pegar todas as mulheres. As pessoas na ilha vão se fascinando por ele, mas ele é que está ali se redescobrindo, naquele lugar mágico”, filosofa o ator de notória versatilidade – foi Cazuza na cinebiografia de Sandra Werneck e Walter Carvalho (2004), foi Stuart em Zuzu Angel, de Sérgio Resende (2005) e foi Santinho em A festa da menina morta, dirigido em 2008 pelo seu companheiro de elenco Matheus Nachtergaele. Aliás, essa obra em particular, que versa sobre os poderes espirituais de um jovem em uma longínqua comunidade ribeirinha do Amazonas, é tomada como parâmetro pelo intérprete. “Os dois filmes têm um tema pesado, que é o incesto, e trabalham o sexo de maneira natural, como tem que ser. Para o ator, isso é fundamental”, argumenta Daniel de Oliveira, que chegou a considerar a possibilidade de ir do Recife até Fernando de Noronha de barco – “seria incrível chegar lá da mesma maneira que o Zolah”, vislumbra. Ele e Caroline Abras intensificaram a cumplicidade com cursos de
1 SANDRA CORVELONI Atriz interpreta a mãe do protagonista, que o havia expulso da ilha
mergulho e tardes contemplativas. “A gente conversou muito sobre essa coisa do incesto, sobre como passar isso sem distanciar os personagens do público e sem cair naquele tabu, naquele peso todo. Foi o tempo de ir maturando a relação entre os irmãos e entre nós mesmos”, reforça Caroline Abras. Distanciamento, de fato, não é a proposta de Lírio Ferreira. Do momento em que o enjôo de Zolah é enquadrado, ainda em preto e branco, à sequência em que o cântico a Iemanjá é retratado com o fervor da fé e a força das ondas, o filme convida o espectador a se permitir o embarque numa jornada de mitologia própria: circo, oceano, irmãos, amor, ilusão, vida, morte. A estreia comercial de Sangue azul está prevista apenas para fevereiro de 2015. Até lá, os festivais funcionam como a janela para investigar os mistérios do filme. “Sem pressa, porque, para mim, cinema, se for como um road movie, não é simplesmente pegar a BR e ir direto: é ir parando nos caminhozinhos de barro, em cada estrada pequena, para curtir”, arremata Lírio Ferreira.
“Meu cinema tem uma fixação com a geografia. Em Baile perfumado, a natureza era luxuriante, tinha a força da caatinga. Em Árido movie, a vegetação era seca; já Sangue azul traz a beleza vulcânica de Fernando de Noronha. O roteiro surge como um guia. Quando eu chego à locação, me organizo para fazer essa troca com a natureza, organizo o set de filmagem para estar preenchido desse sentimento. No caso específico de Sangue azul, a ideia de filmar dentro de uma ilha veio como uma aventura. Nasceu independente de gênero, porque o barato da aventura é ter uma certa surpresa. Eu queria uma ilha, que podia ser a de Marajó, a do Mel ou de Itamaracá, queria o circo, que, por si só, é uma ilha, e queria falar do cinema também. Quando visitamos Noronha, e eu comecei a escrever o roteiro já com aquela paisagem na cabeça, veio um certo receio de estar filmando um paraíso. Não queria um cartão-postal. Daí, veio a ideia de fazer o trecho inicial em preto e branco, como se fosse uma brincadeira com o que é documentário e o que é ficção, que traduzia o momento que eu estava vivendo: voltar a dirigir uma ficção depois de dois documentários musicais em que trabalhei basicamente com imagens de arquivo de mestres já falecidos. Na montagem, comecei o processo de descontrução, o jogo em que buscava o sentido de tudo que estava no roteiro. O primeiro corte de Sangue azul tinha 3h45. Tive a felicidade e o desapego de ir tirando as barrigas do filme, ir lembrando Sganzerla, Bressane, Welles, Eisenstein... Foi na montagem, por exemplo, que aconteceu a divisão do filme em capítulos, com títulos que remetem aos livros de Graciliano Ramos. Prefiro não explicar isso: acho que a montagem é uma sala de recepção dos espíritos, dos caboclos que, não sei como nem de onde, mas que baixam, baixam. Isso é cinema para mim. ”
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PEDRO SOTERO/ DIVULGAÇÃO
CASA-GRANDE Sobre como sair da bolha social no Brasil
Longa do carioca Fellipe Barbosa aborda os conflitos sociais e pessoais que uma pessoa de classe alta vive, ao se dar conta das desigualdades em que está imersa TEXTO Luciana Veras
Há uma cena no meio de Casa-
grande, destaque da programação da Première Brasil (uma das principais mostras do Festival do Rio), que é uma súmula do que a trama dirigida por Fellipe Barbosa se propõe a discutir: num churrasco na mansão da família de Jean (Thales Cavalcanti), há o antagonismo entre sua namorada, a jovem negra Luiza (Bruna Amaya), e seus pais (interpretados por Marcello Novaes e Suzana Pires), quando irrompe um acirrado debate sobre cotas raciais nas universidades públicas. A tensão entre classes, o desconforto do racismo velado e o choque entre duas das muitas realidades de um país essencialmente
contraditório convergem naquele momento, um dos ápices dramáticos do longa-metragem. E não somente nele. Todo o enredo de Casa-grande se lastreia na assimetria entre o modo como o adolescente Jean vê seu mundo – que inclui uma gigantesca residência na Barra da Tijuca, na Zona Sul carioca, com quatro carros na garagem, duas empregadas e um motorista – e o mundo como ele é: seu pai está prestes a falir, embora não queira admitir; ele se interessa pela fogosa doméstica Rita (a pernambucana Clarissa Pinheiro), mesmo sem compreender direito a oposição de forças entre ela, a governanta e sua
mãe; e logo vai descobrir uma nova cidade, quando for obrigado a andar de ônibus e a “sair da bolha”, como pontua Fellipe Barbosa. A jornada de autodescoberta de Jean traz ecos da própria vida de Fellipe. Suas memórias foram o combustível para a confecção do roteiro, coassinado por Karen Sztajnberg. No trajeto de sete anos entre a ideia e as filmagens (ocorridas em 2013 e possibilitadas com R$ 900 mil, via Fundo Setorial de Cinema, e R$ 400 mil, via RioFilme), o diretor foi atrás do elenco no lugar de onde saiu: o secular Colégio de São Bento, voltado exclusivamente para meninos. “Durante quatro anos, frequentei aulas do 3º ano. Passava dias filmando turmas de até 60 alunos, para pegar o cotidiano do colégio. Até que comecei a filmar a turma do Thales. Eles eram músicos, havia um carisma natural, uma conexão com a ideia de performance. Todos já eram amigos, estudavam juntos há 11 anos. Essa intimidade foi ideal para o filme”, pontua Fellipe Barbosa. Em julho, no 6th Paulínia Film Festival, dois dos quatro prêmios que Casa-grande levou foram para o elenco: Marcello Novaes e Clarissa Pinheiro saíram de lá como os melhores coadjuvantes, enquanto
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PEDRO SOTERO/DIVULGAÇÃO
Entrevista
FELLIPE BARBOSA “O DRAMA É O LUGAR DA EXCEÇÃO, DO EXAGERO” Ele despontou no cenário audiovisual com Beijo de sal (2006), curtametragem que já evidenciava seu talento em forjar diálogos e dirigir atores. Oito anos depois, e com o documentário Laura (2011) no meio do caminho, Fellipe Barbosa circula por festivais nacionais e estrangeiros com Casa-grande. Eis algumas de suas reflexões sobre essa ficção com vários aspectos autobiográficos, cuja estreia deve ocorrer no início de 2015, com distribuição pela Imovision.
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o filme recebeu ainda os troféus de melhor roteiro e o prêmio especial do júri. A surpresa do público ao ver Novaes, ator recorrente em folhetins televisivos, esbanjar segurança no papel do pai falido e orgulhoso (Fellipe compara sua performance à de Burt Reynolds em Boogie nights, de Paul Thomas Anderson), só não foi maior do que o agradável espanto com a aparição de Clarissa, descoberta pelo diretor na Escola Darcy Ribeiro. Detalhe crucial: formada em Jornalismo pela Unicap, ela havia atuado apenas “de brincadeira” em projetos de amigos. Cursava Cinema e seu professor de direção cinematográfica era justamente aquele que viria a ser seu condutor no primeiro longa-metragem. “Durante cinco anos, a personagem da Rita nem existia”, confessa Fellipe, que enxergou potencial em Clarissa e convidou-a para um teste. A personagem, defendida com frescor, naturalidade e bom humor pela pernambucana, é um dos propulsores da saída de Jean da redoma de sua casa-grande. “Resgatei muito as empregadas que passaram pela minha casa”, recorda Clarissa, “e de quem eu terminava ficando amiga. Juntei com um lado fogoso meu e o resto foi
1 CLARISSA PINHEIRO Pernambucana destaca-se como atriz coadjuvante
construção mesmo. Acho interessante que Fellipe quis brincar com estereótipos: a empregada é branca, a namorada de Jean é negra, numa inversão que remete à escravidão”, acrescenta a atriz. Outros profissionais pernambucanos na equipe foram o diretor de fotografia Pedro Sotero e a preparadora de elenco Amanda Gabriel. E o filme, apesar de ambientado no Rio de Janeiro, poderia ser sobre Pernambuco, São Paulo, Bahia ou Paraná, pois reflete o Brasil de hoje, de ascensão das classes C e D e do jogo de aparências de uma elite disposta a manter a disparidade preconizada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, no clássico livro Casa-grande e senzala. Mesmo tão brasileiro, há nele uma universalidade que justifica a carreira internacional iniciada em janeiro, no Festival de Rotterdam. De lá para cá, passou pela França, Argentina, Dinamarca, Coreia de Sul, Polônia, Austrália, Taiwan, Canadá e Espanha, entre outros. Até dezembro, festivais na Inglaterra, Egito, Eslovênia, Portugal, Estados Unidos e República da Geórgia receberão Casa-grande.
CONTINENTE De que maneira sua vida se desvela em Casa-grande? FELLIPE BARBOSA Eu estudei no São Bento a minha vida inteira. Minha mãe era professora de francês de lá. Em 2003, quando estava começando meu mestrado em Nova York, descobri que meu pai tinha escondido de mim e da minha família essa situação de falência. Na época, foi muito duro, mas de uma forma também positiva, pois nos tornou mais próximos. O roteiro, então, foi justamente essa terapia, essa tentativa de corrigir a minha ausência: uma construção fabular, uma fantasia de como teria sido, se eu tivesse vivido isso tudo. CONTINENTE Há muito de você no protagonista Jean? FELLIPE BARBOSA Sim, mas o drama é o lugar da exceção, do exagero. Eu, por exemplo, peguei ônibus para ir e vir da escola muito antes do Jean. Há nele características minhas, do meu irmão, mas eu sei muito do que sou e do que não sou e do que, principalmente, não caberia no personagem. Mesmo assim, foi difícil decidir o que seria somente dele. Também não me sentia confortável em ser um dos dois mais ricos da minha turma do São Bento. O grande desafio de criá-lo era transformá-lo
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INDICAÇÕES MARIO MIRANDA FILHO/ DIVULGAÇÃO
FICÇÃO
O CONGRESSO FUTURISTA
Dirigido por Ari Folman Com Robin Wright e Paul Giamatti Imovision
O cineasta isralense Ari Folman funde animação e live action e embaralha conceitos de realidade e ficção nesta preciosidade que merece ser descoberta em DVD. Na trama, a atriz Robin Wright (interpretada por ela mesma!), enfrentando o ocaso da idade e o ostracismo em Hollywood, recebe a proposta de se deixar escanear e assim perpetuar sua imagem. Depois do impactante Valsa com Bashir (2008), Folman brilha mais uma vez.
CONTINENTE E como você analisa seu filme? FELLIPE BARBOSA Em Casa-grande, falo da minha casa, que é um lugar íntimo e pessoal, e, a partir daí, da cidade e do Brasil. Uma dúvida que sempre me acompanhou, e que eu compartilhava com cineastas amigos meus, CONTINENTE Como se deu o era a seguinte: por que processo de concepção do roteiro? não nos incluímos nos FELLIPE BARBOSA Comecei nossos filmes? No meu a escrever em 2006. Estava caso, quis falar de uma sempre reescrevendo o classe alta e, ao mesmo roteiro. Foram cinco, seis tempo, mostrar a jornada anos para conseguir o do Jean, sua tomada de dinheiro. Antes, o projeto consciência, sua percepção se chamava Cotas, que era das contradições internas um título horrível, admito, de casa e externas da cidade e também pretensioso. e do país. Nesse sentido, Mudei para Casa-grande, e grandes mestres franceses depois comecei a pensar em como Louis Malle, François um plano de abertura que Truffaut e Maurice Pialat e legitimasse o título. Veio num o cinema latino-americano sonho. Como lidei com a de Lucrecia Martel, Alfonso rejeição em diversos editais, Cuáron, Jorge Gaggero e participei com liberdade Sebástian Silva, em especial do laboratório do Festival de os filmes A menina santa, Sundance. Lá, recebi muitas E sua mãe também, Cama críticas, inclusive do próprio adentro e A criada, me deram Robert Redford, que foi meu força, principalmente, mentor. Penso que toda crítica por tratarem de guarda uma preocupação histórias pequenas, legítima. Assim, assimilei de amadurecimento algumas delas e reescrevi pessoal, e também de seus várias vezes o roteiro. respectivos países.
CURTA
VAZIO
Dirigido por Luciano Coelho Com Mazé Portugal e Marat Descartes Linha Fria Filmes
Um homem, uma mulher, um bar e uma noite qualquer: o cenário, que poderia ser reproduzido em qualquer metrópole do planeta, é ponto de partida para que o roteirista e diretor Luciano Coelho desenvolva Vazio, curta-metragem lançado em junho e atualmente circulando por festivais. O questionamento existencial é aprofundado pela entrega dos dois protagonistas, Mazé Portugal e Marat Descartes (de Quando eu era vivo e Trabalhar cansa).
numa tela que seria colorida por quem quer que viesse a interpretá-lo. Como roteirista, quis partir das minhas memórias para transformar um momento de crise em oportunidade para contar essa história, e também falar dessa casa-grande que, de uma certa forma, ainda existe.
AVENTURA
X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO Dirigido por Bryan Singer Com Hugh Jackman, Ian McKellen e Michael Fassbender Fox Home Entertainment
Onze anos após X-Men 2, Bryan Singer volta a dirigir um filme da franquia. Dessa vez, a trama sai do futuro: com os mutantes à beira da aniquilação, os poucos que restam - professor Xavier (Patrick Stewart) à frente - mandam a consciência de Wolverine (Hugh Jackman) para uma odisséia no tempo. Nos anos 1970, ele, no corpo do Logan da época, precisa rastrear os jovens Xavier e Magneto (Michael Fassbender) para que imaginem alguma solução.
DRAMA
PLANETA SOLITÁRIO Dirigido por Julia Loktev Com Gael García Bernal e Hani Furstenberg Lume Filmes
Da série “filmes que mal entram em circuito no Brasil”: jovem casal resolve sair de férias pela Geórgia, no extremo oriente da Europa, encarando a aridez da Cordilheira do Cáucaso como uma espécie de prova para estreitar (ou apartar) os elos entre si. Se, por um lado, os diálogos e mesmo o desenvolvimento dos personagens deixam um pouco a desejar, por outro, a diretora Julia Loktev extrai poesia da paisagem, ao atribuir à imagem o maior peso de sua construção narrativa.
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REPRODUÇÃO
Sonoras
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REGGAE Herdeiros de Marley no nordeste do Brasil
Na terra do frevo, do forró, do maracatu e do manguebeat, resiste cena musical que reúne cerca de 50 bandas e artistas em torno do ritmo jamaicano TEXTO Marina Suassuna
“Mas isso é um xotezinho muito do
safado.” Foi assim que Dominguinhos apelidou o reggae, quando ouviu o ritmo pela primeira vez, apresentado por Gilberto Gil, nos anos 1970. “Perguntei a ele por que não acrescentava um triângulo”, comentou, anos mais tarde, ao relembrar o episódio. A aproximação rítmica do gênero jamaicano com o brasileiro teria levado o forrozeiro a fazer a comparação. Afinal, “qualquer xote pode ser transformado em reggae e vice-versa”, diz o radialista e jornalista pernambucano José Mário Austregésilo. O reggae, segundo ele, também pode ser caracterizado como um rock’n’roll tropical, cuja batida deriva da burra, uma das mais antigas formas musicais jamaicanas, que predomina nos rituais rastafári – tradição religiosa e esotérica que fundamenta o ritmo. “A repetição cadenciada estabelece o ritmo do reggae, conferindo-lhe um efeito hipnótico, de transe e transiluminação pessoal”, afirmou o radialista, no artigo Reggae: canto de uma raça, diáspora de um povo. No Brasil, antes de Gil apresentar o ritmo jamaicano a Dominguinhos, um dos primeiros contatos estabelecidos com o gênero foi a vinda de Jimmy Cliff, em 1969, para defender a canção Waterfall, no Festival Internacional da Canção. Além de ter ido ao programa do Chacrinha, o jamaicano gravou
um disco por aqui, Jimmy Cliff in Brazil, cantando até em português. Mas foi na música Nine out of ten, gravada por Caetano Veloso em 1972 para o disco Transa, consolidado pelo tempo como uma obra-prima, que o ritmo jamaicano foi mencionado pela primeira vez na música brasileira. Cantando em inglês, Caetano diz que desceu até Portobello Road, em Londres, em busca daquele som. “Eu me apaixonei pelo ritmo junto com Péricles Cavalcanti, que gostava de passear comigo por Portobello. Nem sabíamos ainda o nome do novo ritmo. Quando aprendemos, passamos a repeti-lo em conversas, com muita excitação. Quando compus a música (a que, para mim, tem a melhor das letras em inglês que escrevi), pedi a Moacyr Albuquerque, o baixista, que tentasse reproduzir a linha de baixo dos reggaes que ouvíamos. E ele foi perfeito nessa pioneira entrada na música brasileira. Ouvir a música dos jamaicanos naquela rua me fazia gostar de viver, ajudava a superar a saudade do Brasil”, disse Caetano ao jornal Zero Hora. Assim como Moacyr Albuquerque, cada músico contribuiu com solos e texturas rítmicas e melódicas para a música. Jards Macalé foi peça-chave, uma vez que ficou responsável pelos arranjos e por dirigir a banda. “Para
fazer referência ao novo ritmo que se anunciava, nós realmente nos inspiramos em Portobello Road, onde nos deparamos com uma feira livre e muitas lojas de jamaicanos e africanos. Ali, foi onde conhecemos a batida do reggae e, a partir disso, resolvi usá-la na introdução e no final da música’’, disse Macalé, que concedeu entrevista à Continente por e-mail. Ao retornar ao Brasil com o novo ritmo na bagagem, ele iniciou a gravação do disco Contrastes (1977), que trazia a música Negra melodia, conhecida como o primeiro reggae brasileiro de grande alcance. Há quem diga que a primeira gravação em português a incorporar a pegada desse ritmo foi Bahia comigo, composta pelo pernambucano Paulo Diniz e lançado em seu LP homônimo de 1970. No entanto, a primeira música brasileira a se configurar como um hit e incorporar os valores essenciais do gênero foi Negra melodia. Na época do lançamento, ela foi considerada pelo jornal O Globo como a “mais importante do disco, justamente a que vale um disco inteiro”, além de “utilizar imagens de Bob Marley, EstácioItapoan-África, com células rítmicas do reggae, completas de swing brasileiro.” Segundo Macalé, a repercussão e o impacto positivo da canção se deram em função da novidade, do comportamento e da ideologia libertária que a letra continha. “Forget your weakness and dance, reggae is another bag” (Esqueça sua fraqueza e dance, o reggae é outra bagagem), dizia a composição assinada por Waly Salomão, que mesclava trechos em português e inglês. “Waly fez essa letra em homenagem a Luiz Melodia. Como Gil e eu estávamos atentos ao ritmo e às suas letras libertárias, convidei-o a participar da gravação. A letra de Waly já trazia o ritmo interno. O que eu fiz foi incorporar Bob Marley, sobretudo a sua música No woman no cry”, revela Macalé. Os anos 1980 marcariam a primeira e única vinda de Bob Marley ao Brasil. Apesar de não ter se apresentado em nenhum lugar, encheu a cara de suco de frutas em lanchonetes cariocas e bateu uma pelada com Chico Buarque, que ficaria marcada na história. Pouco depois, Peter Tosh fez um show histórico no Palácio das Convenções, em São Paulo, durante o 2º Festival Internacional de Jazz, contribuindo ainda mais para a popularização do
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REPRODUÇÃO
Sonoras 1
ritmo junto ao grande público. Um ano antes de Marley aterrissar em solo brasileiro, Gilberto Gil e Jimmy Cliff excursionaram juntos pelo Brasil, arrastando milhares de pessoas em todas as cidades por onde passaram. O Recife estava na rota, e o Estádio do Geraldão foi o lugar escolhido para o show, que se tornou memorável, abrindo, definitivamente, as portas para o ritmo jamaicano na capital pernambucana.
RECIFE
“Pra mim, a base do reggae no Recife foi a vinda de Gil e Jimmy Cliff. Eu tinha 17 anos na época e foi muito marcante. Os jamaicanos vieram todos fardados, um era do exército, o outro, da aeronáutica. Isso gerou um impacto no palco. Depois fui entender que eles estavam em guerra, aquele visual era uma questão política. O show começou com Cliff só tocando tambor, que eles chamam de nyabinghi. Quando vi aquilo, pirei. Não tive dúvidas de que a minha onda era aquela”, recorda o músico Ívano, um dos pioneiros do ritmo no Recife, hoje com 52 anos e ainda na ativa. Ele e o músico Valdi Afonjah formavam, na época, a banda Raízes, que mais tarde viria a se chamar Flor da Terra. O seu repertório era uma mescla de ritmos populares, que passou a ser influenciado pelo reggae após a vinda de Gil e Cliff. “Na época, não tínhamos muita informação sobre a
música jamaicana e, depois que vimos o show, começamos a buscar mais coisa sobre aquilo. Naquela época, os discos do Bob Marley só entravam no Brasil se alguém trouxesse de fora. Uma dessas pessoas era o produtor Fernando Oliveira, neto de Valdemar de Oliveira. Foi com ele que tivemos acesso aos primeiros discos do Bob com The Wailers, como o Live!, Babylon by bus e Kaya”, conta Afonjah. Outra referência que viria a determinar a identidade visual dos jovens músicos foi o programa Rock in Concert, da TV Globo, apresentado por Nelson Motta, que exibia festivais e vídeos de bandas e artistas consagrados. “Foi quando vimos pela primeira vez a figura do Bob Marley cantando ao vivo, e resolvemos usar o cabelo igual ao dele.” Assim como na Jamaica, o reggae no Recife surgiu nos bairros periféricos, caracterizando-se como uma música do povo, do gueto. Trouxe em seu conteúdo mensagens de cunho social, político e espiritual, além de demonstrações de inconformismo, sendo utilizado como instrumento de contestação, principalmente pela população negra, estigmatizada como marginal. A primeira tentativa de incorporar o reggae no Recife foi como sinônimo de guerrilha. Ívano usou o estilo musical primeiramente contra a repressão, a falta de liberdade de expressão e a discriminação racial, fazendo uso não
só da música, mas da dança, do grito e do gestual. Seu primeiro registro, o LP Rebeldia e dança, que só foi lançado nos anos 1990, quando se tornou mais viável a realização de um disco, foi definido pelo músico como um documento musical de combate. Mas a primeira banda recifense a incorporar o ritmo em seu repertório foi Os Karetas, formada no final dos anos 1970, no Bairro de Casa Amarela. O grupo surgiu num contexto em que inexistiam artistas que se dedicassem exclusivamente ao reggae no país, sendo considerada a pioneira não só no Recife, mas no Brasil. Segundo o escritor e pesquisador Marco Antonio Medeiros, autor do livro A magia do reggae, tido como uma enciclopédia do gênero, as bandas que surgiram naquele contexto foram “até certo ponto corajosas para a época, pois o ritmo, até então, era quase um ilustre desconhecido para a maioria das pessoas.” Quando os Paralamas do Sucesso apresentaram o ska aos brasileiros no disco Cinema mudo (1983), Os Karetas já haviam lançado o primeiro registro fonográfico inteiramente dedicado ao reggae, um compacto gravado e distribuído pelo selo Memória, em 1981, que trazia a música Vento norte, no lado A, e O relatório, no lado B. O simples compacto foi suficiente para que os pernambucanos estourassem com Vento norte, composta por Saulo Douglas, vocalista e principal compositor da
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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JIMMY CLIFF
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JARDS MACALÉ
Cantor jamaicano (com Gilberto Gil na foto), veio ao Brasil em 1969, para o Festival Internacional da Canção
Compositor lançou Contrastes (1977) e produziu Transa (1972), de Caetano Veloso
3-4 PRIMÓRDIOS
Os Karetas fizeram, em 1981, o primeiro registro fonográfico inteiramente dedicado ao ritmo, e Nine out of ten, deTransa, faz primeira referência direta ao ritmo
banda. Após uma viagem de navio que fez à Europa, Douglas, também marinheiro, havia apresentado o reggae aos demais integrantes. Assim, Vento norte, inicialmente tocada pelos músicos em ritmo de baião, logo foi mudada para o reggae, abrindo as portas para a banda que, com um único hit, alcançou uma vendagem de mais de 500 mil cópias. “Quando o compacto saiu, foram prensadas tantas cópias, que não houve capas suficientes. Muitos discos foram vendidos nas lojas numa capa de papelão”, diz o baixista, e um dos vocalistas da banda, Daniel Barbosa. “Até hoje, tenho uma carta de uma fã de Argentina pedindo pra gente mandar fotos autografadas pra ela. Isso significa que a música chegou lá.” Os Karetas colheram o que plantaram. O lançamento do compacto rendeu turnês por diversos países da América e da Europa, além de várias cidades do Brasil. Foi dessa turnê que resultou o primeiro LP do grupo, intitulado Fogo na Terra, de 1983. Com 10 faixas, o disco, que trazia em suas composições mensagens divinas, se tornaria um dos marcos da discografia do reggae pernambucano e brasileiro. “Durante uma entrevista para uma rádio do Maranhão, um cara nos chamou na saída e disse: ‘Pra mim, vocês são a primeira banda de reggae do Brasil e também a primeira banda gospel do Brasil’”, conta Daniel. A força de Os Karetas, segundo Ívano, foi o pioneirismo na gravação. “Isso foi um diferencial na época, quando era muito difícil gravar. Hoje, a realidade das bandas é outra. Todo mundo pode gravar em casa, disponibilizar na internet e mandar a gravadora para aquele lugar”, aponta. Também de Casa Amarela, veio o músico Marcelo Santana, que lançou seu primeiro disco independente, Sensibilize, em 1994, com a turma do Bando do
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A primeira banda recifense a incorporar o ritmo jamaicano em seu repertório foi Os Karetas, formada no final dos anos 1970 Reggae. Embora venha de uma geração posterior àquela que introduziu o ritmo jamaicano no Recife, Marcelo também é considerado um dos primeiros regueiros da cidade, ao lado de Ívano, Valdi Afonjah e Saulo Douglas, dOs Karetas. Seu terceiro disco, Reggae na alma, foi o que teve maior repercussão, ganhando espaço até no rádio. “Descobri o reggae no quintal de casa. Como sou filho de Casa Amarela, assistia aos ensaios dOs Karetas, quando era menino”, conta. Há dois anos morando no Rio de Janeiro, Santana atualmente trabalha em parceria com o selo Sound System Brazil. “Acredito que o Rio me
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proporciona oportunidades novas, o que no Recife já não rola mais por conta do meu tempo de carreira, que já me permitiu ter caminhado por todos os lugares. Sem falar que vez ou outra estou indo a São Paulo. Com isso, venho conquistando um público que não conhecia meu trabalho”, compara. Com quatro discos na bagagem, ele acredita que a força do reggae é atemporal. “Pra mim, ele é a essência fundamental da vida, por isso não consigo ver um lado ruim nesse tipo de música. Acredito que todos que fazem reggae sabem do que estou falando e vivem esse sentimento. Além disso, é um ritmo dançante e envolvente. Foi também uma porta para os pretos, brancos e marrons que se identificavam com aquela forma de pensar”. Para Ívano, a base do reggae continua a mesma. “Ele está atualíssimo em relação à truculência da polícia, à discriminação social, à favelização. Ainda tem muita gente sendo vítima dessas coisas.”
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RANNA SANTIAGO/DIVULGAÇÃO
Sonoras
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CENA RECIFENSE Da banda mais root à pegada pop Dos anos 1990 para cá, o
reggae proliferou feito pólvora em Pernambuco, com diversas bandas do gênero surgindo, da mais root à mais pop. Até pouco tempo, podiam ser contabilizadas cerca de 50 bandas regueiras na capital pernambucana. Atualmente, nem todas se mantêm ativas, mas o número ainda é significativo, se comparado ao de duas décadas atrás. Nomes como Bantus Reggae, Brasáfrica, Favela Reggae, N’Zambi, Jerivá, Homem do Mato, Jahstafari, são responsáveis por movimentar o circuito local, apresentando-se tanto em eventos públicos como privados. Uma das mais atuantes é a N’Zambi, que há 11 anos se mantém no Bairro
da Várzea, propagando mensagem política e social com um sotaque pernambucano. “Tivemos a sorte de, logo no início, encontrar lugares fixos pra tocar, tanto na zonal sul como nos bairros da periferia. Isso fez com que conseguíssemos firmar nosso nome”, diz George, vocalista da banda, que tem dois CDs gravados, e já levou o reggae pernambucano para estados do Sul e Centro-Oeste do Brasil. Com 10 anos de estrada, a Jerivá, formada no Bairro da Boa Vista pelos músicos Marcus Antonio e Eric Gabinio, também conquistou visibilidade, tocando nos principais festivais do gênero e defendendo, por onde passavam, o lado mais romântico e espiritual do ritmo jamaicano. “Era
a nossa maior preocupação no início: transmitir mensagens relacionadas a Deus. Por isso batizamos a banda de Jerivá, que é o nome de uma palmeira e se assemelha a Jeová, que remete à Igreja”, explica Marcus, vocalista e guitarrista do grupo. A banda, que tem um disco autoral lançado em 2012, chamou a atenção do público logo no primeiro show, realizado em 2004, no Armazém 12, no Bairro do Recife. Outra, ainda mais antiga, é a Bantus Reggae, que está há 20 anos em atividade, sendo, por isso, sinônimo de resistência. Independentemente dos shows, a banda, fundada pelo saxofonista Hildelarques, ou simplesmente Will, mantém uma rotina frequente de ensaios, tendo o reggae como um ritual. A temática religiosa é a principal assinatura do grupo. “Busquei conhecimento na Bíblia antiga. É muito importante enxergarmos esse gênero como um instrumento para fortalecer nossa fé. Não se trata apenas de um ritmo, mas de uma cultura, uma mensagem que toca em valores fundamentais”, define Will.
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DIVULGAÇÃO
Embora muitos desses grupos estejam na estrada há muito tempo e com um trabalho autoral de qualidade, não contam com apoio necessário do poder público, da mídia e da sociedade em geral. São poucas as iniciativas que dão conta da dimensão que o reggae tomou na cidade. Idealizada pela Gerência de Música da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, em 2008, a coletânea do festival Conexão Reggae é citada por vários artistas como um dos principais incentivos. Com tiragem de mil cópias, o álbum duplo é um mapeamento da prolífica cena da Região Metropolitana, reunindo músicas autorais de 24 das 36 atrações que passaram pelo projeto, realizado na Rua Vigário Tenório, no Recife Antigo. A realização do Tributo a Bob Marley, no Pátio de São Pedro, em 2009, também foi vista como uma importante iniciativa de afirmação do gênero. No entanto, as dificuldades para a viabilização do evento, organizado pelos próprios artistas e bancado com dinheiro público, não deixaram de existir. Na época, Ívano declarou ao Diario de Pernambuco que precisou reunir uma verdadeira “tropa de choque” para obter a verba junto à Prefeitura. No mesmo ano, o Festival de Inverno de Garanhuns abriu espaço, pela primeira vez, para o reggae do estado, dedicando uma noite inteira aos artistas do gênero no Parque Euclides Dourado.
PRECONCEITO
Mesmo com todo o sucesso do gênero em Pernambuco, o preconceito com o estereótipo regueiro é citado pelos músicos como uma marca de sua história. “Sou de uma geração em que o fato de usar dread locks já era um problema. Nos anos 1980, por volta dos meus 16 anos, estava passando pelo Mercado de São José e, de repente, uma mulher começou a jogar tomate em mim só por causa do meu cabelo”, conta Valdi Afonjah. Para Ívano, que era abordado constantemente na rua pela polícia, as redes sociais e, de certa forma, a mídia televisiva vêm contribuindo para desestigmatizar o visual. “Agora você já vê um menino de dread em Malhação. Com o tempo, não vai ter mais como segurar. É como a tatuagem, que antes
ANA ARAÚJO/DIVULGAÇÃO
“No Brasil, há uma visão muito estreita que reduz o estilo à ‘ música de maconheiro’” José Mário Austregésilo era vista como coisa de marginal e hoje em dia todo mundo usa.” Um dos principais motivos de resistência ao reggae ainda é a associação ao uso da maconha, que está na raiz do estilo musical. Segundo José Mário Austregésilo, mais de 60% da população jamaicana consome a erva, que, para eles, é símbolo religioso, transformando-se em ritual. “No Brasil, de um modo geral, o reggae ainda não é visto em sua amplitude. Há uma visão muito estreita, que reduz o estilo à ‘música de maconheiro’. E, pelo contrário, trata-se de uma música de altíssima qualidade. Parece repetitiva, mas não é. Existem vários estilos. Os estúdios da Jamaica são frequentados e cortejados
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N’ZAMBI
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ÍVANO
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MARCELO SANTANA
Grupo, formado há 11 anos no bairro da Várzea, é um dos mais atuantes Interesse pelo reggae despertou após o show de Jimmy Cliff e Gil, no Recife, em 1979 Artista é considerado um dos expoentes do ritmo em Pernambuco, ao lado de Valdi Afonjá, Saulo Douglas e Ívano
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por grandes nomes. O problema é que as pessoas têm dificuldade de enxergar a maconha como um elemento cultural desse gênero musical. Na Jamaica, a erva faz parte da vida da população de uma maneira muito ampla e natural. Pra fumar, pra comer, botar no leite das crianças, curar feridas”, explica o jornalista. Para George N’Zambi, um dos maiores desafios a ser alcançado pelos músicos de reggae é serem vistos como bandas de respeito dentro do universo da música brasileira.“Quem despreza o gênero é quem não tem propriedade e conhecimento sobre ele. Falo isso em relação às produtoras também. Há tempos que tentávamos tocar num festival local, mandamos material várias vezes e sempre tínhamos resposta negativa. O argumento era que, se entrássemos na grade, o público presente iria fumar maconha. Depois, alegaram que iria haver confusões. Imagina, um show de reggae ter briga!”, relata. A falta de conhecimento também é apontada por Afonjah como um dos fatores segregadores. “A Jamaica
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IGGOR GOMES/REGGAE PELO REGGAE/DIVULGAÇÃO
8-9 CENÁRIO MUSICAL
Bantus Reggae e Jerivá são duas das bandas responsáveis por movimentar o circuito regueiro local
Sonoras é muito mais próxima do Brasil, mas temos mais informações dos Estados Unidos e da Europa. Se o reggae fosse uma música americana ou inglesa, ele seria mais respeitado. Bob Marley tem a mesma importância de Elvis Presley e dos Beatles. Mas ainda existe uma resistência. E eu não entendo o porquê. O hip hop, por exemplo, apesar de ser uma música jamaicana, teve uma penetração maior, porque chegou ao mundo como música americana. Os americanos se apropriaram desse estilo”, compara o músico, que, após passar cinco meses na Jamaica, onde visitou vários estúdios e ensaiou com The Wailers, voltou ao Brasil incorporando a filosofia rastafári, em 1996. Apesar do reggae recifense ter seu público fiel, Marcus Jerivá acredita que o respeito vai aumentar no dia em que alguma banda local se projetar nacionalmente. “Quando algum músico local conseguir gravar um disco fora, isso pode mudar. Não adianta ter tanta história no gênero e não ultrapassar os limites regionais, não ter contribuído para sua difusão no Brasil”. O autor de A magia do reggae acredita que o ritmo sempre sofreu uma certa indiferença do poder e da mídia, “que o encaravam como mais uma música de favelados, sendo insignificante, portanto, a ponto de lhe darem as costas”. São raras as iniciativas como a de José Mário Austregésilo, que, há quase 15 anos, mantém, na Rádio Universitária, o programa Hoje é dia de reggae, aos sábados.
PRODUTORES
Para Austregésilo, o problema também está na carência de produtores. Atualmente, no Recife, o circuito de shows pagos reveza-se apenas entre dois produtores, Dirceu Melo, à frente da Groovin Produções, e os sócios Rafael Infa e Pedro Ivo Rodrigues, da produtora Zero Neutro. Ambos passaram a investir na cena reggae dos
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anos 2000 para cá, realizando festivais e grandes eventos que contemplam não só as bandas locais, mas também nacionais e internacionais. Para Dirceu, o cenário hoje é bem mais animador do que nos anos 1990.“Houve uma evolução em todos os sentidos. Antes, tínhamos uma cena deficitária em termos de estrutura de
“A Jamaica é muito mais próxima do Brasil, mas temos mais informações dos EUA e da Europa” Valdi Afonjah bandas, organização, divulgação, valor de ingresso, patrocinador. Hoje, não está tudo às mil maravilhas, mas as coisas já melhoraram.” Assim como Dirceu, Rafael Infa acredita que o mercado, o público e os eventos de reggae estão maiores, atingindo diferentes grupos e classes sociais. No entanto, não deixam de haver obstáculos. “Ainda temos uma grande dificuldade para
fechar patrocínios e aprovar leis de incentivo”, avalia o produtor. Uma iniciativa mais recente é o Reggae pelo Reggae, coletivo formado, em 2012, por cinco jovens apaixonados pelo ritmo. Além de promoverem pequenos eventos, muitos deles gratuitos, realizados no formato sound system em praça pública, o grupo também vem apoiando eventos maiores. A quantidade e a frequência de shows na cidade, somadas a uma plateia mais expressiva, indicam, segundo Dirceu, a existência de uma demanda que esteve, por vários anos, reprimida. Não à toa, quase todos os grandes nomes do reggae nacional e internacional já passaram pelo Recife e costumam retornar. Um dos recordes de público foi a banda norteamericana SOJA, que ultrapassou mais de 10 mil ingressos vendidos na última apresentação em 2012, no Chevrollet Hall. Há cincos anos, a mesma casa de shows chegou a receber 12 mil pessoas para ver Alpha Blondy e The Wailers. Também vale destacar o Pré no reggae, único grande festival gratuito do gênero, que acontece há seis anos na Rua da Moeda, na semana que antecede o Carnaval. O evento,
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FRAN SILVA/DIVULGAÇÃO
INDICAÇÕES GARAGE ROCK
INDIE ROCK
Drag City
Virgin/EMI
TY SEGALL Manipulator
BECK Morning phase
Desde 2008, Ty Segall vem lançando discos. O detalhe: incessantemente. Geralmente, são dois por ano. Seu mais novo, Manipulator, mostra o quanto essa prolificidade vem fazendo bem ao amadurecimento do músico americano, que acerta a mão na maior parte das 17 faixas do robusto álbum, coproduzido por ele, cujo título faz jus ao efeito que provoca no ouvinte. Agrada imediatamente. Já se fala em “disco do ano”. É um forte candidato, mas o Radiohead está em estúdio.
Há 20 anos, despontava no mercado fonográfico um dos artistas mais importantes da atualidade. Naquele 1994, ele, surpreendentemente, lançou três discos, sendo um deles um dos top ten da década, Mellow gold, lista na qual também está seu sucessor, o acachapante Odelay (2006). De lá para cá, Beck realizou a façanha de nunca ter lançado um trabalho abaixo da média, mesmo os álbuns de outros músicos que produziu. Com um apanhado de belas canções de amor, Morning phase discretamente vem coroar essa data.
POP/ ROCK
ROCK
Island
Island
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produzido por Dirceu, em parceria com a Prefeitura do Recife, reuniu nas últimas edições cerca de 10 mil pessoas em dois dias de festival. A ideia surgiu diante do grande número de bandas locais que se inscreviam na grade oficial do Carnaval e não conseguiam retorno. Embora reconheça a importância dessa iniciativa, Marcus Jerivá acredita que esses eventos também podem segregar o reggae em relação ao que é feito na música popular pernambucana. “Nenhuma banda de reggae local entra na programação dos principais festivais do estado”, observa. Segundo Dirceu, isso não deveria acontecer, já que a mensagem por trás dele é de união. “Trata-se de um tipo de música muito gostoso, de valores de energia positiva. É um ritmo simpático a vários outros nichos. Muita gente
que gosta de rock, rap ou pop, gosta de reggae.” Com a exceção dos festivais regueiros, que hoje totalizam uma média de 15 por ano, o dia a dia das bandas ainda carece de investimento. Normalmente, apresentam-se em locais pequenos, com ingressos baratos. Um dos pontos de resistência, responsável por consolidar o trabalho de várias bandas locais, é o Jardim do Reggae, em Olinda, que desde 2003 realiza show todos os domingos. Atualmente, está localizado na Cachaçaria Virgulino. Se, de um lado, o Recife vem se firmando como uma das principais cidades na rota de todo artista do gênero, sobretudo internacional, de outro, os músicos locais lutam por reconhecimento. Segundo Valdi Afonjah, não existe um interesse por parte das produtoras em difundir essa cultura.
U2 Songs of innocence Após cinco anos sem lançar discos e há, pelo menos, 10 sem causar comoção com um álbum, a banda irlandesa volta a conseguir uma boa repercussão com um novo trabalho. A propósito, uma senhora repercussão. Afinal, o lançamento foi feito numa parceria com a Apple, comemorando a chegada do iPhone 6. Por conta disso, todos os usuários do iTunes receberam as faixas de graça em seus aparelhos, o que já pode ser considerado o primeiro spam musical da história. A estratégia reverberou mais que a própria obra. Com razão.
KAREN O Crush songs Karen O, o furacão sul-coreano à frente do Yeah Yeah Yeahs, lança o primeiro disco solo. Tecnicamente seria o segundo, pois assinou, em 2009, a trilha sonora de Onde vivem os monstros, de Spike Jonze (neste ano, ela foi indicada ao Oscar por The moon song, tema de outro filme do diretor, Her). Em Crush songs, a cantora interpreta suas composições, que tratam de paixões e desilusões, com sua voz marcante. A produção tem sonoridade extremamente lo-fi e a duração das faixas é tão curta que as canções parecem versões demo.
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Criaturas
CON TI NEN TE
Antônio Maria por Aroeira
Em sua terra, Antônio Maria (1921-1964) costuma ser lembrado no Carnaval, quando são entoados seus belos frevos-canção, que falam da saudade de seu lugar, o qual deixou – mas nunca esqueceu – para ganhar a vida afora. No Rio, além de compositor, trabalhou como jornalista, radialista, apresentador de TV e, sobretudo, cronista. Aliás, um dos melhores. Seu texto trafegava fluidamente entre o humor e o lirismo, assim como sua inesquecível figura. CO N T I N E N T E O U T U B R O 2 0 1 4 | 8 8
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