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# 167
O DESIGN E A CIDADE #167
AS INFORMAÇÕES VISUAIS QUE ORIENTAM NOSSO DIA A DIA
ano XIV • nov/14 • R$ 11,00
CONTINENTE NOV 14
NELSON MOTTA | DÍA DE LOS MUERTOS | HARUKI MURAKAMI | BELLE ÉPOQUE GASTRÔ | IBERÊ CAMARGO | CAROLINA JABOR | TINA TURNER CAPA_design_cidade_NOV.indd 1
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WALKER EVANS/REPRODUÇÃO
aos leitores Como visualizar as cidades norte-americanas e seus lugares de fluxo (rodovias, postos de gasolina, motéis) e não lembrar as fotografias de Walker Evans (acima) ou as pinturas de Edward Hopper, e suas precisas composições de urbanismo, arquitetura e design? Como pensar luminosos e não “ver” Tóquio e Las Vegas? Ainda, como trazer à tela mental lugares degradados e não associá-los à imagem atual de Detroit ou dos cumes pichados de edifícios do centro de São Paulo? Sinais de trânsito, letreiros, fachadas, neons, placas de orientação, cartazes, marcas de produtos expostas pela urbe e o que mais a gente puder imaginar está impregnado de design. Sendo assim, que relação ele e seus agentes mantêm com o espaço urbano? Nesta edição da Continente, instigados pela realização da mostra Cidade gráfica, na capital paulista, fomos em busca de respostas às questões acima colocadas. Entre outros resultados trazidos pela reportagem de Luciana Veras, percebemos que “não existe design desvinculado do contexto, do local em que se forja ou da presunção do usuário a que se destina”, como ela mesma escreve. Um dos nossos entrevistados, Gentil Porto Filho, arquiteto e pesquisador, afirma
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que a tendência do setor é a universalização, decorrente dos processos de industrialização. “A tendência da indústria”, diz ele, “é achatar as particularidades, porque ser uniforme é mais barato, mais simples, tem praticidade, velocidade e produtividade. Como planejar a partir de forças econômicas que tendem a padronizar, como produzir diferenças? Hoje, o Recife sofre pressões do mercado imobiliário, por exemplo, e da própria natureza da produção industrial. Essas forças tendem a apagar o que há de específico, mas encontram resistência nos hábitos de cada lugar, o que naturalmente gera uma disputa. O design deve proceder pelo não apagamento da diferença”. A essa visão política, acrescenta-se a crítica feita por Celso Longo, um dos curadores de Cidade gráfica, que destaca o embate entre mercado x conscientização pública. “A despolitização é uma crítica recorrente que faço à prática do design”, aponta Longo, na reportagem. “É preciso parar de pensar só no objeto enquanto construção de lógica interna e introduzir a consciência crítica, segundo a qual as decisões do designer afetam a vida coletiva, de pessoas que ele não conhece e de uma variedade de indivíduos e de grupos”, defende, como você lerá a seguir.
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sumário Portfólio Olaf Rajek 4
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Nelson Motta Aos 70 anos, compositor e jornalista comenta a produção musical brasileira e afirma não ter saudades da juventude
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Matéria Corrida
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Leitura
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Entremez
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Palco
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Criaturas
Balaio
A hora do pesadelo Há 30 anos, nascia nos EUA uma das figuras mais horripilantes do cinema: Freddy Krueger
História
Sequestro do navio Em Último porto de Henrique Galvão, Ana Maria César remonta o caso que mobilizou Brasil e Portugal, nos anos 1960
Boa sorte Longa de Carolina Jabor, baseado em conto de Jorge Furtado, traz história de amor entre dois desajustados
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Conexão
Caliban Produtora fundada por Sílvio Tendler disponibiliza filmes sobre personagens e momentos históricos brasileiros
Claquete
Artista alemão desenvolve trabalho que poderia ser classificado como “realismo mágico”, tratando o irreal e o maravilhoso como algo ordinário e corriqueiro
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José Cláudio Sem Bébé
Haruki Murakami Chega este mês às livrarias O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, do cultuado escritor japonês
Ronaldo Correia de Brito Esperei duas horas pelo jantar
Inclusão Grupos formados por cadeirantes mostram que para ser bailarino não é preciso ter corpo perfeito
Tina Turner Por David Duke
Cardápio
Comportamento Pesquisador Frederico Toscano analisa, na obra À francesa – a belle époque do comer e beber no Recife, as trocas gastronômicas entre o Brasil e a França
46 CAPA ILUSTRAÇÃO Indio San
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Capa
Tradição
Presente em tudo que nos cerca, o design é elemento importante na urbe, o que nos leva a perguntar: como pensam e atuam os designers no espaço público?
México mantém vivaz a tradição de mais de três mil anos, homenageando os mortos com festa que dura três dias e inclui criação de altares, fantasias e comida
Visuais
Sonoras
Com uma trajetória artística marcada pela autenticidade, gaúcho, considerado o maior pintor expressionista brasileiro, completaria 100 anos este mês
Festival de música de concerto que acontece no interior de São Paulo reúne nomes importantes de todo mundo e investe na formação de jovens alunos
Cidades gráficas
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Iberê Camargo
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Día de los Muertos
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Nov’ 14
Campos do Jordão
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cartas ROBERTA GUIMARÃES
Personalidade
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE
Acabei de ler o Perfil da revista Continente (edição 166). Quero dar os parabéns ao jornalista Marcelo Abreu. Além de bem-escrita, a entrevista reflete exatamente a minha personalidade, modo de ser e de viver, meus hábitos e preferências. Quem ler a matéria ficará com uma imagem bem aproximada do que sou, penso e faço.
O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140).
VICENTE MASIP RECIFE–PE
Masip Gostaria de dizer que gostei muito da maneira como Marcelo Abreu escreveu a matéria sobre Vicente Masip (na foto acima). Achei bonito. Ele passou um dia inteirinho com Vicente, que conheço há 40 anos, assistiu à aula com ele e conseguiu “dobrá-lo” na entrevista. Isso é jornalismo de verdade. Hoje, não posso mais andar, então Vicente trouxe a revista para eu ler. Gostei do conteúdo
gráfico e das matérias – leio cinco jornais por dia, mas não conhecia a Continente. Depois dessa edição, resolvi assinar. Sempre fui uma leitora assídua, que frequentava bibliotecas e ficava até tão tarde por lá, que o pessoal vinha me dizer para “deixar as letrinhas para amanhã”. Vivia na Livraria Livro 7 e, quando não havia mais nada para ler, papai me dizia para ler catálogos. Fiquei
contente em conhecer a revista e vou continuar lendo. Este trabalho é muito importante! VERA MAIA RECIFE–PE
As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
Frescor
(81) 3183 2780
Li a Continente de julho (n° 163). Quanto frescor e conteúdo em uma revista só! A diagramação também é ótima. Parabéns! TIAGO DIAS
Fax
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SÃO PAULO–SP
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colaboradores
Carlos Fernando Eckhardt
Carolina Albuquerque
Eduardo Sena
Josias Teófilo
Designer gráfico, consultor estratégico em Design e Comunicação
Jornalista, repórter de política do Jornal do Commercio
Jornalista, atua como assessor de imprensa na Dupla Comunicação
Mestre em Filosofia pela UnB e autor do livro O cinema sonhado
E MAIS André Araújo, jornalista e mestrando em Comunicação e Literatura na UFRGS. David Duke, ilustrador e caricaturista. Gianni de Melo, jornalista. Indio San, ilustrador e designer gráfico. Marcelo Abreu, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder – um repórter brasileiro na Coreia do Norte. Sílvio Barreto, fotógrafo. Weydson Barros Leal, poeta, escritor e crítico de arte.
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NELSON MOTTA
“A música pop não é mais trilha sonora de nada” Jornalista, compositor e produtor musical chega aos 70 anos e faz um balanço da produção artística das últimas décadas, opina sobre a música e fala da sua rotina de eterno bon vivant TEXTO Marcelo Abreu
CON TI NEN TE
Entrevista
Mister Pop chegou aos 70 anos.
Nelson Motta poderia ser descrito como o homem que mais se divertiu no Brasil no último meio século. Ele é um camaleão que sintetiza, numa só pessoa, os papéis de jornalista, compositor, homem de televisão, produtor musical, empresário da noite e romancista. Várias atividades embaladas num estilo jovial, que mistura a malemolência carioca, o jeito moleque de menino da praia, que viveu intensamente a contracultura, e o refinamento de alguém que tem passado a vida entre o que há de melhor no meio artístico. Pois é esse eterno jovem que completa sete décadas dizendo que não tem “saudades da juventude”. Nelson nasceu em São Paulo, em 1944, mas mudou-se com a família para o Rio de Janeiro quando tinha seis anos. Ainda na adolescência, conviveu de perto com a turma da bossa nova, no final dos anos 1950, período sobre o qual escreveu no livro de memórias Noites tropicais: “Estudava um pouco de filosofia e história, lia Hemingway e Camus, via filme franceses e italianos, ouvia cool jazz
e bossa nova maciçamente e pensava em música e mulheres o dia inteiro”. Nos anos 1960, participou como compositor dos festivais de música. Na década de 1970, foi produtor de discos, e entrou na onda da discoteca, abrindo casas noturnas lendárias como a Dancing Days e a Noites Cariocas. Depois, foi executivo de gravadoras e descobridor de talentos como Marisa Monte. Nas últimas três décadas, intensificou sua atuação na televisão, no jornalismo e enveredou pela literatura. Motta é autor de sucessos populares em parceria com Lulu Santos (Como uma onda), Rita Lee (Perigosa) e Guilherme Arantes (Coisas do Brasil), entre muitos outros nomes. Tem escrito livros como Vale tudo, o som e a fúria de Tim Maia e A primavera do dragão, sobre os anos de juventude de Glauber Rocha. Para comemorar o aniversário, o Canal Brasil leva ao ar a série Nelson 70, oito programas que mostram as parcerias musicais de Motta. E a gravadora Som Livre lança um CD com regravações recentes de seus grandes sucessos. Nesta entrevista à Continente, ele faz um balanço da produção artística das
últimas décadas, opina sobre a música atual e fala da sua rotina de eterno bon vivant tropical. CONTINENTE É possível chegar aos 70 anos de idade ainda aberto e curioso em relação às manifestações da cultura pop, muitas delas produzidas por garotos com pouco mais de 20 anos? Ou a idade deixa a gente blasé? NELSON MOTTA Considero chegar aos 70, inteiro, com boa saúde, um grande privilégio. Depois, eu não me sinto velho. Só de vez em quando (risos). Não tenho saudades da minha juventude, que vivi intensamente, nem inveja dos jovens de hoje, porque são jovens. Tenho filhas, netos de 18 e de 13 anos, gosto de conviver com a juventude, me diverti muito na adolescência de minhas três filhas, aprendi bastante, quero viver a maturidade com qualidade de vida e atividade permanente. Em minha vida, já ouvi o crème de la crème da música popular do século 20, pop, rock, MPB, ópera, bossa nova, soul, gospel. E também vi muita coisa boa ao vivo, bem de perto, João Gilberto, Rolling Stones, Elis Regina, Chet Baker, Miles Davis. Você não fica blasé, é o seu
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DANIELA DACORSO/DIVULGAÇÃO
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CONTINENTE Você acha que a ditadura militar brasileira serviu, paradoxalmente, de estímulo para a criatividade musical da geração de Chico, Caetano e Milton ou você acredita na tese que afirma que, na música, a idade mais produtiva vai até os 30 anos e por isso eles produziram mais e melhor no período? NELSON MOTTA Concordo, em geral, porque há muitas exceções, que a grande fase produtiva de compositores é dos 20 aos 40. Mas outros ficam ainda melhores na maturidade, quando produzem menos, mas melhor. Agora, acho que creditar aos horrores
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padrão de exigência e de excelência que aumenta. Não tenho mais tempo de ficar horas ouvindo um monte de porcaria em busca de uma pérola, como fiz muitas vezes. Mas continuo gostando de novidades, quando alguém que respeito me dá uma sugestão interessante, não tenho medo de ouvir. Por exemplo, agora estou encantado com o fado que está rolando em Portugal, intérpretes maravilhosas como Cuca Roseta, Ana Moura, Carminho, Cristina Branco. Mas continuo com horror a barulheiras experimentais, noise, vanguardas atonais
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Entrevista e também à “música de músico”, geralmente chata, longa e complicada. CONTINENTE Como foi a experiência de fazer o programa Sábado Som nos anos 1970? Por que o programa, que marcou a juventude de tanta gente, não durou mais tempo? NELSON MOTTA Foi uma aventura maravilhosa. Foi o primeiro programa de clips de rock no Brasil, a primeira vez que viram The Who, Pink Floyd, Black Sabbath, no país. A geração de Lulu Santos, Cazuza e Renato Russo sempre me falou que não perdia o programa. Nem me lembro, porque só durou uns dois anos, acho que fui fazer outra coisa, pela minha carreira se vê que não gosto de fazer a mesma coisa muito tempo (risos).
da ditadura a inspiração para essa geração extraordinária é chamá-la de masoquista. Precisava sofrer para produzir tão bem? É melhor perguntar o que teria feito se tivesse liberdade e tecnologia como os seus colegas americanos da época. CONTINENTE Há vários autores que consideram os anos 1960 e 1970, em várias partes do mundo, como a era de ouro da música pop e do rock. Você concorda com a opinião de que, a partir dos anos 1980, nada de muito substancial ocorreu? NELSON MOTTA Nos anos 1960 e 1970, a música pop foi a trilha sonora das transformações da sociedade. Depois, foi perdendo importância cultural, tornando-se uma commodity como soja
ou feijão, está em toda parte, de todas as formas, não é mais trilha sonora de nada – porque faz parte de tudo. Além disso, a produção musical dos últimos 50 anos agora foi digitalizada e está à disposição de todos – mostrando como é difícil produzir novidades depois de tanta qualidade que já foi criada. CONTINENTE Certa vez, você mencionou a expectativa de um “futuro radiante” que havia nos anos 1970 entre os opositores do regime militar no Brasil. Atualmente, ainda é possível ter esperanças
“Continuo gostando de novidades. Estou encantado com o fado que está rolando em Portugal, intérpretes maravilhosas como Cuca Roseta (ao lado), Ana Moura, Carminho, Cristina Branco”
de melhorias em um cenário cultural onde tudo parece já ter sido feito? NELSON MOTTA A gente achava que, acabando a ditadura, tudo se resolveria. Minha geração teve, durante muito tempo, a crença de que o Brasil, por ser um país novo, sem o peso da história, poderia criar uma nova civilização, diferente da europeia, estagnada pela história, e dos Estados Unidos, dominados pelo mercantilismo. Seríamos uma “civilização atlântica”, generosa, tolerante, como uma terceira via, o melhor de dois mundos (risos). Só rindo mesmo. O Brasil é um dos países mais violentos e conservadores do mundo e mistura algumas das piores coisas do socialismo e do capitalismo.
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Qualquer plebiscito vai dar maioria esmagadora a favor da pena de morte, contra o aborto, a liberação da maconha e qualquer forma de avanço de comportamento. Mas a cultura brasileira se mostra muito vigorosa, ocupando espaços no mundo. A cultura, em liberdade, melhorou, tanto em quantidade como em qualidade. CONTINENTE Com o avanço da internet, acha que o papel exercido pelo crítico/colunista no jornalismo impresso, que você personifica tão bem, tende a diminuir de importância?
jornalista e escritor, não para ficar de papos e chats e postando fotos de meu cotidiano. O que chamo de “esgotosfera” são os blogs políticos, geralmente patrocinados com dinheiro público, que fazem política partidária e estimulam a intolerância, o ódio e a estupidez. Às vezes, faço uma expedição “antropológica” a esses ambientes insalubres, fico com vergonha do que escrevem ali. Agora, claro que as redes vão se transformar, acredito que se tornarão ainda mais específicas. Mas a selva digital será cada
com o som comprimido do MP3, me ligo mais nas ideias musicais. CONTINENTE Acostumado a atingir milhões de pessoas com suas letras de música em todo o país, como tem sido a experiência de ver seus livros publicados atingirem um público – apesar de muito grande para a literatura – bem mais restrito? NELSON MOTTA Ah, eu não ligo, são linguagens diferentes, com respostas diferentes. Quando a biografia do Tim Maia vende 200 mil cópias, depois é lida de mão em mão por milhares de
“O Brasil é um dos países mais violentos e conservadores do mundo e mistura algumas das piores coisas do socialismo e do capitalismo. Qualquer plebiscito vai dar maioria a favor da pena de morte”
NELSON MOTTA Acho que o que interessa é o conteúdo, o que você diz, como você diz – sempre haverá um bom veículo para ele. O que sai no jornal ou na televisão é ampliado e multiplicado pela internet, mas também é copiado, roubado, deturpado. Mas, paciência, é o preço desse avanço. CONTINENTE Você disse que não usa Facebook e chamou as redes sociais de “esgotosfera”. Acha que elas podem ser uma moda passageira ou caminhamos mesmo em direção à cultura da chamada “turba eletrônica”, em que tudo é discutido de forma instantânea com argumentos destemperados? NELSON MOTTA Bem, agora até eu tenho Facebook (risos). Para oferecer ao público meu trabalho de compositor,
vez mais perigosa, com novos bichos e armadilhas, onde o ser humano pode expressar o seu melhor e seu pior. CONTINENTE O que acha da volta dos discos de vinil, redescobertos até por alguns jovens? Você curte as capas e defende a superioridade sonora dos LPs? NELSON MOTTA Tenho uns cinco mil discos de vinil, mas ouço pouco. Aliás, tenho ouvido pouca música em geral, mas principalmente ouço no laptop ou no iPod, quando caminho de manhã pelo calçadão de Ipanema. Até concordo que o som de um vinil novo, num bom equipamento, é insuperável, e, claro, as capas são maravilhosas. Mas não me ligo muito nessas coisas. Ouço mais música online, não me incomodo
caronas, eu fico feliz com isso, sempre peço para lerem e passarem adiante. Para mim, o mais importante não é vender mais livros, é ser mais lido. Acho que o livro permanece mais dentro das pessoas, porque cada pessoa é parceira dele, não há duas leituras iguais, então é muito pessoal, é o “seu” livro. As músicas são mais fugazes. CONTINENTE Como é seu processo de composição? Funciona também sob encomenda? NELSON MOTTA Cada música é uma história e um momento diferente. Algumas foram feitas em uma hora, outras em vários meses, umas, sóbrio, outras, doidão, umas deram mais trabalho, outras menos. Mas a inspiração inicial é sempre a
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mesma: na sonoridade que o músico cantarola, quando me mostra a melodia, começo a procurar palavras que se encaixem naqueles sons e ritmos, e depois desenvolvo. Quanto às encomendas, sem problemas, serão entregues: umas melhores, outras piores, sou profissa.
NELSON MOTTA Ah, é muito complexo e chato de discutir. Mas necessário. É claro que não é bom transferir para o marketing de empresas a decisão de viabilizar, ou não, um projeto, pela subjetividade, falta de critérios culturais, ambiente favorável a lobbies e negociatas. É quase tão ruim como deixar nas mãos do Estado, pelas mesmas razões. A maior produtora do cinema brasileiro é a Petrobras, que, como se sabe, teve várias diretorias aparelhadas politicamente que atuavam como uma quadrilha. Além dos eleitos
FOTO: REPRODUÇÃO
CONTINENTE Qual a figura mais marcante que você teve a oportunidade de conviver no meio musical nesses últimos 50 anos? NELSON MOTTA João Gilberto. Pelo privilégio de desfrutar não só de sua
CONTINENTE Tendo vivenciado os tempos do Cine Paissandu, no Rio, e convivido de perto com a turma do Cinema Novo, você ainda acompanha o cinema brasileiro? O que acha da produção atual? NELSON MOTTA Foi um privilégio morar nessa época exatamente na Rua Paissandu, a poucos passos do cinema, aonde ia todas as semanas, em que cada novo filme de Buñuel, Visconti, Fellini, Bergman, Antonioni, Pasolini, Godard era um acontecimento cultural, que provocava discussões que começavam nos bares próximos ao
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Entrevista música genial, mas de sua inteligência, seu humor e sua visão crítica. Um mestre de vida e arte. CONTINENTE E no meio jornalístico? NELSON MOTTA São três: Samuel Wainer, que me levou para escrever uma coluna diária sobre juventude no Última Hora, quando eu tinha 22 anos. Depois, Evandro Carlos de Andrade, que me levou para ser colunista de O Globo, em 1973, e foi um grande mestre, um exemplo de inteligência e integridade. E Paulo Francis, querido amigo, com quem fiz um divertido mestrado em comentarista internacional em Nova York, nos anos 1990, ao seu lado, na bancada do Manhattan Connection.
cinema e duravam a semana inteira – até uma nova estreia de um filme do cinema novo ou da nouvelle vague. Não acompanho tudo do cinema brasileiro, mas há filmes que refletem crescimento de quantidade, qualidade e diversidade como Tropa de elite, Central do Brasil, Cidade baixa, Meu nome não é Johnny, e muitos outros, inclusive comédias divertidas como O casamento de Romeu e Julieta, Cilada, e De pernas pro ar. CONTINENTE Qual sua opinião sobre o atual modelo de produção cultural apoiado nos editais de incentivo com verbas públicas, que muitas vezes destina dinheiro a obras de pouquíssimo interesse para o conjunto da população ou, por outro lado, financia produtos culturais que já seriam, por si só, viáveis comercialmente?
“Quando a biografia do Tim Maia vende 200 mil cópias, depois é lida de mão em mão por milhares de caronas, eu fico feliz com isso. Para mim, o mais importante não é vender mais livros, é ser mais lido”
pelo marketing das empresas, por critérios comerciais, projetos artísticos que, às vezes, atingem poucas centenas de espectadores nos cinemas, ou nem isso; nos teatros ou shows, conseguem financiamentos públicos através de editais e patrocínios. A maioria é de porcarias irrelevantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre o estímulo à indústria cultural e a produção artística individual, sem paternalismo e sem partidarismo. Mas dinheiro de impostos do cidadão não é para patrocinar aventuras individuais e projetos egocêntricos que se dizem artísticos. CONTINENTE A velha pergunta: quais os cinco discos, cinco livros e cinco filmes de todos os tempos que levaria para uma ilha deserta?
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NELSON MOTTA Os discos seriam: Amoroso, de João Gilberto, Kind of blues, de Miles Davis, Chet Baker sings, de Chet Baker, The best of Maria Callas, de Maria Callas, Tim Maia Disco Club, de Tim Maia. Os livros: Tia Julia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa, Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marquez, O sol também se levanta, de Ernest Hemingway, Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado e Os Maias, de Eça de Queiroz. Os filmes seriam Amarcord, de Fellini, Terra em transe, de Glauber Rocha, Pulp fiction, de Quentin Tarantino, Jules e Jim, de François Truffaut, e O grande Lebowsky, de Joel e Ethan Coen. CONTINENTE Depois do programa Nelson 70 no Canal Brasil e do CD celebrando as parcerias, tem algum novo projeto em vista? NELSON MOTTA Estou trabalhando em novas músicas com a Marisa Monte e escrevendo o musical de teatro Aquela noite em 67 (título provisório) com a Patricia Andrade. São várias histórias que se cruzam e se resolvem na noite da final do Festival de 1967, que vai ser reproduzida igualzinho como foi, com seu cenário, suas 12 finalistas e seus intérpretes, Chico, Gil, Caetano, Edu Lobo, Elis Regina. A diferença é que a vencedora de cada noite será escolhida pelo público que vai votar pelos seus celulares. Vai ser a primeira vez que os teatros vão pedir para ligar os celulares (risos). CONTINENTE Como criador de discotecas que marcaram época, você acredita que a vida noturna entrou mesmo em decadência no Brasil ou é a idade que faz a pessoa ficar mais seletiva e achar que não vale a pena sair de casa com frequência? NELSON MOTTA Durmo por volta das 23 horas e acordo às 7. Não sou a pessoa mais indicada para falar de vida noturna, talvez porque, até os meus 40, quando fui dono de cinco casas noturnas, ia dormir às 7 da manhã (risos). Hoje, seleciono bastante minhas saídas noturnas. Claro, quando vou sair, tenho que, antes, dar uma dormida de umas duas horas e tomar um banho antes de partir para a náite. Mas isso é raro. Gosto, cada vez mais, das manhãs e menos da noite, que é boa para namorar ou dormir.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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O DESIGN NA CIDADE
CARDÁPIO
Quem fizer uma visita ao nosso site em novembro vai conferir o texto curatorial da exposição Cidade gráfica, com inauguração neste mês, no Itaú Cultural, em São Paulo. Disponibilizamos também outra entrevista do historiador Rafael Cardoso, autor de Uma introdução à História do Design, para a revista Continuum, publicada pela mesma instituição – inclusive com um trecho em vídeo. Está disponível, ainda, para a leitura do internauta, um trecho do livro Design total, publicado pela Cosac Naify, este ano, cujo foco perpassa essa relação entre o design e o espaço urbano.
Leia o 1º capítulo do livro À francesa – a belle époque do comer e beber no Recife (Cepe Editora), que se detém nas trocas gastronômicas entre Brasil e França.
Conexão
VISUAIS Confira os textos dos curadores da exposição Iberê Camargo: século XXI e assista ao vídeo que ilustra o processo de trabalho do artista gaúcho.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
XENOFOBIA
INFORMÁTICA
GÊNERO
URBANISMO
Tumblr compila declarações xenófobas em redes sociais
Small PDF ajuda a manipular arquivos salvos nesse formato
Site traz estudos da arquitetura a partir da discussão de gênero
Direito à cidade e política urbana é tópico dessa página
essesnordestinos.tumblr.com
smallpdf.com
facebook.com/arquitetasinvisiveis
erminiamaricato.net
Em ano de eleição, em que as disputas ideológicas se acirram entre políticos e população, entram em pauta temas como criminalização da homofobia, autonomia da mulher e programas assistencialistas. Na contramão disso, discursos de ódio são proferidos e ganham força nas redes sociais. O tumblr Esses nordestinos… é uma compilação de declarações xenófobas, feitas no Facebook ou no Twitter, direcionadas a nordestinos. A maioria dos discursos relaciona o benefício do Bolsa Família com uma suposta incapacidade cognitiva de votar.
Quem manipula arquivos no formato Portable Document Format, mais conhecido pela sigla PDF, normalmente encontra dificuldades em manipulálo. O site Small PDF oferece um jeito fácil de executar algumas funções básicas e essenciais, como transformar aquivos em Word e Excel ou em formatos PPT e JPG para o PDF. O site orienta ainda a comprimir vários arquivos em um só ou separar um único documento em várias partes.
A página no Facebook Arquitetas Invisíveis é um projeto de estudantes do Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. O espaço é um manifesto contra a invisibilidade das mulheres dentro dos estudos arquitetônicos. A partir do debate surgido no ambiente virtual, as organizadoras criaram uma semana de atividades com palestras, debates, sessões de cinema e oficinas que tinham como tema a questão de gênero dentro da profissão.
A urbanista Ermínia Maricato é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/ USP) e é um nome importante quando se fala de direito à cidade e política urbana. O seu site cataloga suas produções literárias e disponibiliza alguns livros, artigos, textos para jornais e revistas e participações em publicações coletivas para leitura online. Entre elas, Metrópole na periferia do capitalismo e Política habitacional no regime militar.
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blogs PRODUÇÃO ALTERNATIVA recifelofi.blogspot.com.br O termo lo fi vem do inglês low fidelity (baixa fidelidade), referindo-se, na música, às produções feitas com equipamentos que diminuem o nível de fidelidade das gravações. O termo se expandiu e hoje abrange artistas que pensam em soluções alternativas de produção musical. O blog Recife Lo-fi é parte de um projeto que reúne e divulga aqueles que fazem parte deste grupo, em Pernambuco. Em outro momento, o criador Zeca Viana convida os artistas para se apresentarem em festas anuais na capital do estado.
BIOGRAFIAS E SÉRIES
RUIVA NO RIO
Produtora criada pelo documentarista Silvio Tendler reúne mais de 40 filmes que retratam momentos históricos e contam histórias de personagens nacionais caliban.com.br
A Caliban Produções Cinematográficas foi criada em 1981 e, desde então, realiza uma série de biografias de cunho social. Já produziu cerca de 40 curtas, médias e longas-metragens, estando Jango e Os anos JK entre os mais conhecidos. O seu criador, Silvio Tendler, um dos mais reconhecidos documentaristas do país, registra em sua filmografia mais de 30 títulos. Historiador, Tendler é cineasta premiado por títulos como O mundo mágico dos Trapalhões – longa que comemorou os 15 do grupo humorístico, mostrando vida e carreira dos quatro integrantes – e O veneno está na mesa, que trata da produção e consumo de agrotóxicos no Brasil. A produtora possui um site específico para catalogar o seu acervo, que abarca mais de 10 mil títulos, em 16 e 35 milímetros, de filmes históricos. O canal da produtora no Youtube disponibiliza boa parte dessa rica produção para visualização gratuita, entre eles Privatizações: a distopia do capital e a série Os militares da democracia. Há ainda uma seção dedicada às trilhas sonoras e outra a fotos. No primeiro semestre deste ano, Tendler lançou a continuação de O veneno está na mesa, já disponível na internet. PETHRUS TIBÚRCIO
ruivanorio.wordpress.com Flora Thomson-Deveaux tem sotaque carioca e torce pelo Botafogo, mas nasceu numa cidade pequena da Virginia, nos Estados Unidos. De relatos sobre o primeiro jogo do futebol num estádio a aventuras em feiras de rua e em cemitérios, o blog Ruiva no Rio agrega ótimos textos escritos em inglês, desde maio de 2011. A autora nunca trata com exotismo ou condescendência a cultura a ela estrangeira e tem observações pertinentes sobre comportamento e cotidiano brasileiro.
CRÔNICAS DOMINICAIS folha.uol.com.br/colunas/antonioprata Filho do escritor Mário Prata, o colunista da Folha de S.Paulo Antonio Prata entra na lista dos bons cronistas brasileiros contemporâneos. Entre suas publicações, ele ficou mais conhecido por Meio intelectual, meio de esquerda e pela coletânea Nu, de botas, lançada em 2013. Todos os domingos lança uma crônica nova na Folha, que é disponibilizada no site do jornal.
sites sobre
maracatus LEÃO COROADO
PORTO RICO
NANÁ VASCONCELOS
leaocoroado.org.br
nacaoportorico.maracatu.org.br
nanavasconcelos.com.br
O Maracatu Nação Leão Coroado já passa dos 150 anos e segue ativo sob a condução do mestre Afonso Aguiar.
De 1916, o Maracatu Nação Porto Rico funciona no Bairro do Pina, no Recife, desde 1980. O mestre Shacon é o responsável por seu funcionamento.
Eleito várias vezes o melhor percussionista do mundo, ele é o responsável pelo cortejo de abertura do Carnaval, que reúne grupos de maracatu há mais de uma década.
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Olaf Hajek
O IRREAL E O MARAVILHOSO NO COTIDIANO TEXTO Petrhus Tibúrcio
Foi na televisão que o trabalho de Olaf Hajek ficou mais conhecido no Brasil. A experiência,
que o artista alemão descreve como “maravilhosa e única”, aconteceu em 2010, quando algumas de suas obras apareceram na série Afinal, o que querem as mulheres?, da Rede Globo. O programa tinha uma vinheta de abertura que dispensava críticas. O convite, Olaf conta, surgiu depois que o diretor Luiz Fernando Carvalho comprou sua primeira publicação, a coleção Flowerhead. Na apresentação ao livro, a editora classifica o trabalho de Hajek como realismo mágico. Se assumirmos o gênero como uma expressão do irreal e do maravilhoso enquanto acontecimento cotidiano e ordinário, podemos dizer que ele é, sim, um padrão na obra do autor. No lugar de cabelos, flores e pássaros. No meio de uma sala, um elefante encoleirado. Estranhamente, nada disso parece muito fora de ordem. Os personagens, de expressões sempre muito tranquilas, simulam uma normalidade que contrasta com as cores explosivas que o ilustrador normalmente usa. Nesse aspecto, Olaf Hajek poderia ser comparado a artistas como a jovem romena Aitch, que envolve suas mulheres rotundas de pétalas e penas, ou o italiano Giuseppe Arcimboldo, pintor do século 16, que montava a fisionomia de seus personagens a partir de composições de frutas, verduras, livros e outros objetos. Nenhum deles, porém, traz em sua obra a preocupação cenográfica do alemão. Enquanto, na maior parte do trabalho dos artistas mencionados a título de comparação, os fundos são compostos de padrões ou escuridões completas, muitos dos personagens de Hajek estão localizados em um mundo, ele mesmo
Página anterior 1 LITTLE GURUS
Livro faz uma introdução ao universo da ioga através das ilustrações
Nestas páginas 2 EDITORIAL
A produção de Olaj Hajek inclui material para diversas publicações
3 ANTONIETA NEGRA Na série, ele brinca com imagens da rainha francesa 4 CENOGRAFIA Em seus trabalhos, há uma preocupação especial com a criação de um ambiente que ocupe todo o quadro 5-6 GÊNERO Trabalho do alemão é classificado como realismo mágico
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inventado e que colabora com o imaginário criado pelo artista. “Quando criança, eu era muito interessado nos pintores impressionistas e suas ideias sobre a luz. Mais tarde, fiquei obcecado com o trabalho de Gustav Klimt e Egon Schiele. Quando estudante, o livro American illustration foi a minha bíblia. A abordagem americana da ilustração, naquela época, era muito mais artística do que eu costumava ver na Alemanha”, conta, sobre as influências que ele mesmo enxerga. Na maioria de seus trabalhos, Olaf usa tinta acrílica, grafite e pastel de óleo e aplica em placas de madeira. Nascido em 1965, ele começou a carreira de ilustrador há mais de duas décadas, e hoje se firma como um dos contemporâneos mais bem-sucedidos
comercialmente, levando o seu trabalho para vários países da Europa e América. Produz com frequência para periódicos, como o jornal The New York Times e a revista The New Yorker, além de já ter feito papéis de parede circenses para hotéis em Viena, capas de livros, embalagens para os perfumes franceses da Cacharel e uma série de mapas pouco detalhados e incríveis. A entrevista de Olaf à Continente foi respondida do deserto, de dentro de um carro que ia de Los Angeles a San Francisco, nas proximidades de um de seus trabalhos mais recentes. É que ele faz parte de uma campanha de conscientização, em Nova York, chamada The Water Tank Project, que associa exibições artísticas a palestras e atividades que discutem problemas relacionados ao uso da água. Segundo ele, seu quadro – que envolve sereias, peixes gigantes e conchas coloridas – pretendia tirar o caráter de banalidade
do mundo aquático, a partir dos elementos fantásticos. Questões de raça aparecem em seu trabalho de forma clara. Sua série Antonieta negra foi inspirada em uma vivência que teve quando trabalhou numa galeria da África do Sul. “A ideia era criar imagens de luxo e opulência, a partir de elementos naturais”. Ele brinca com a imagem de Maria Antonieta para criar personagens negras e causar estranhamento. O que ele chama de “imperfeição da beleza” e “poder da simplicidade”, ao falar sobre suas pinturas, veio dos elementos da pintura folk africana e sul-americana. Das miniaturas indianas, seus personagens por vezes mitológicos e o caótico de suas narrativas. Entre os méritos de seu trabalho, a criação de certa unidade através de uma repetição de cores e elementos que, no lugar de tornar o trabalho cansativo, inventa um universo próprio que dialoga dentro de si.
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7 INSPIRAÇÃO É possível perceber que artistas como Gustav Klimt e Egon Schiele são referências para Olaf Hajeck
8-9 PRODUTOS Artista cria desenhos para diversas marcas 10 IMPRESSO Ilustração feita para a capa do semanário NY Times Book Review
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BIZARRICE
Três décadas de pesadelo Em 9 de novembro de 1984, nascia, nos Estados Unidos, uma das figuras mais emblemáticas e horripilantes da história do cinema. Escrito e dirigido por Wes Craven, o clássico A hora do pesadelo (A nightmare on Elm Street) dava início à saga do assassino de crianças, Freddy Krueger (foto), imortalizado pelo ator Robert Englund. Na história, um grupo de adolescentes da cidade fictícia de Springwood é aterrorizado em seus pesadelos pelo fantasma do psicopata. Para escapar de ser a próxima vítima do assassino, é necessário acordar – ou nunca dormir. E aí está um dos aspectos mais perturbadores do filme: a privação do sono. Que o diga a heroína da história, Nancy Thompson, que, além de ser perseguida obsessivamente pelo monstro, deve lutar contra si mesma para não morrer (literalmente) de cansaço. Pelo pioneirismo em mesclar o mundo real e o imaginário, e pela habilidade de brincar com as percepções do espectador, A hora do pesadelo é considerado um dos filmes de terror mais importantes e populares do gênero, que totalizou uma franquia de oito filmes (alguns de qualidade duvidosa), além de um remake do original. Já a figura horrorosa e debochada de Krueger completou, ao lado dos “colegas” Jason Voorhees (Sexta-feira 13) e Michael Myers (Halloween), a tríade da maldade que até hoje tira o sono de muita gente. OLIVIA DE SOUZA
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A FRASE
“Toda gente vive apressada, e sai no momento em que devia chegar.” Marcel Proust, escritor francês
E o mundo não para de fabricar notícias bizarras. Em outubro, foi revelado que uma enfermeira matou mais de 30 pacientes com injeção letal de potássio. Após um dos crimes, chegou a fazer uma selfie com uma de suas vítimas. Em sua “defesa”, afirmou que matava “apenas” os chatos. Curioso é que essa forma de assassinato, que torna, inclusive, difícil a descoberta da causa mortis, uma vez que a substância desaparece do organismo em pouco tempo, já havia sido utilizada na série de humor negro Desperate housewives. Também no mês passado, repercutiu o caso de uma noiva que usou o Facebook para reclamar do presente dos padrinhos (que questionou “agora me diga, o que eu vou fazer com R$ 500?”) e o da fotógrafa Grace Gelder(foto) que, cansada de esperar pelo homem certo, resolveu casar consigo mesma, com direito à cerimônia e até a lua-de-mel. (Débora Nascimento)
Balaio A CURVATURA DA ARANHA
Dentro do universo dos superheróis norte-americanos, a Mulher-Aranha nunca foi uma personagem de destaque. Jessica Drew, identidade secreta da heroína, teve nas curvas e no sorriso o grande motivo de seu reconhecimento. Recentemente, o quadrinista italiano Milo Manara, consagrado pela representação da pura sensualidade feminina em seus quadrinhos eróticos, concebeu uma capa variante para a edição nº1 da nova série da personagem. O resultado da arte deu o que falar. Houve quem o chamou de machista, quem contestou a perspectiva, a anatomia, as cores e até o collant da bendita figura. O bafafá foi tanto, que o próprio Manara teve de divulgar um esboço explicando que a tal pose da Mulher-Aranha era possível. Não teve jeito, o estrago já estava feito. Agora, a diversão é elegermos o meme mais hilário feito a partir da situação e torcer para que os fãs de quadrinhos se preocupem com coisas um pouco menos, digamos... inúteis. (Fernando Athayde)
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ARQUIVO
OS ENCANTOS DE OSCAR Faleceu, no mês passado, aos 82 anos, Oscar de La Renta. O estilista dominicano, que desistiu das artes plásticas para virar pupilo de Cristóbal Balenciaga, conseguiu projetar sua carreira internacional a partir dos anos 1960, quando criou elegantes vestidos para Jackie Kennedy, que ajudaram a transformar a esposa do presidente John Kennedy em ícone fashion. Desde então, La Renta passou a vestir todas as primeiras-damas norte-americanas e diversas estrelas do cinema. Suas exuberantes criações eram sempre vistas nos tapetes vermelhos e até na série Sex and the city. Um de seus últimos trabalhos foi o vestido da noiva de George Clooney, Amal Alamuddin, que custou 380 mil dólares. Embora a marca continue, resta guardar na memória (e no guarda-roupa das felizardas) os encantos em forma de tecidos, que o próprio gentleman criou. (DN)
BARULHINHO BOM Para quem se acha extremamente nostálgico por amar cheirinho de livro novo, embora possa usar e-books, o Times mostra que a sessão nostalgia parece estar apenas começando no mundo. O jornal inglês passou a usar, desde setembro, em sua redação, a gravação de barulho de máquinas de escrever. O som, que vai aumentando à medida que se aproxima o deadline da edição, tem como objetivo inspirar os repórteres, deixá-los mais focados e fazer com que produzam mais. Não se sabe se a ideia dará certo, porque muitos dos jornalistas dessa nova geração possivelmente nunca viram – ao vivo – uma máquina de escrever. Há quem diga que o aparelho promete voltar à ativa por causa da crescente espionagem no mundo político e empresarial. Assim, profissionais como Woody Allen, que nunca usaram computador, já podem se considerar à frente de seu tempo. (DN)
A face do mal envelhece Neste mês, o famigerado Charles Manson completa 80 primaveras, a maior parte do tempo delas vendo o sol nascer quadrado. O mandante de dois dos crimes mais repugnantes da história – o assassinato de Sharon Tate, grávida de 8 meses e outros quatro amigos e, na noite seguinte, o casal LaBianca – nasceu em 12 de novembro em Cincinatti, Ohio, filho de uma prostituta alcoólatra e pai desconhecido. Logo cedo, enveredou pela gatunagem, passando grande parte do tempo enjaulado. Adulto, fora das grades, conheceu o Verão do Amor com a vida psicodélica, as drogas e o sexo livres. Metido a músico, tentou carreira com os Beach Boys e Neil Young. Ao ter a pretensão rechaçada, envolveu-se com teorias escalafobéticas e juntou um grupo de adeptos chamado A Família, que o obedecia cegamente, perpetrando até os bárbaros crimes. Hoje, é um velho com audição e pulmões ruins e dentadura rachada. Anda com bengala e a levanta saudando visitantes, entre eles uma morena esguia chamada Star, que quer casar com ele. Sua maior vontade era dar uma saída e caminhar pelas ruas no mundo “lá fora”, como gente normal. Pelo menos, esse desejo ele só vai ter lá pras bandas do inferno, onde já devia ter aportado. (LUIZ ARRAIS)
ARROZ DO ROCK O ex-baterista do Nirvana, Dave Grohl, está louco para conquistar o posto de coadjuvante de luxo na história do rock. Depois que abandonou as baquetas, ficou à frente do Foo Fighters, cuja carreira se vale de um par de bons discos lançados na década de 1990, e uma infinidade de outros bem abaixo da média. Esperto, Grohl percebeu que, se dependesse da qualidade das composições, ele nunca atingiria sua meta, e, desde então, desistiu de tocar algo que prestasse para virar publicitário. O último lançamento do FF, por exemplo, foi vendido como um álbum visceral, “gravado na garagem”, e, frustrando todos aqueles que esperavam um gravador de quatro canais, o estúdio construído na casa do músico não custou menos de dois milhões de dólares. Tudo isso para 11 canções descartáveis, agora substituídas pelo anúncio do novo disco, Sonic Highways, que, dessa vez, vem enrustido num documentário road movie ególatra sobre a própria gravação. Música, que é bom, nada. (FA)
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URBANISMOS A relação entre o design e a cidade CON TI NEN TE
CAPA
Para onde olhamos, vemos design, e essa onipresença – verificável nos objetos, na sinalização pública, nos transportes, centros de compras, indumentária – é significativa no traçado paisagístico de cidades como o Recife, Nova York, Londres, Mumbai ou Sidney, embora muitas vezes ela se mantenha imperceptível aos seus habitantes, até por sua eficácia em se manter “invisível” TEXTO Luciana Veras
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CON CAPA TI NEN TE “Design pra mim foi um problema de responsabilidade social. Eu vivia como pintor e a necessidade de um engajamento na forma de utilização desse tipo de linguagem é que me levou a liderar, em certo sentido, um caminho”, disse certa vez Aloisio Magalhães (1927-1982), pintor, artista plástico, cenógrafo, gestor cultural e um dos maiores – se não o maior – designers gráficos do Brasil, autor de célebres marcas até hoje admiradas, como a do IV Centenário do Rio de Janeiro (1963) e da Fundação Bienal de São Paulo (1965). Na mesma ocasião, ao ser entrevistado pelo jornalista Zuenir Ventura para a revista Istoé, seis meses antes de sua morte, ele inventou um conceito para a profissão que abraçara: “O fenômeno do design é aplicar todo um instrumental e uma linguagem vinda das formas da criatividade em um processo de interesse coletivo mais significante”. O pioneiro pernambucano esteve em foco na Ocupação Aloisio Magalhães, organizada pelo Itaú Cultural, entre os meses de julho e agosto deste ano. E o design, área para a qual deixou expressiva cota de contribuição em projetos e reflexões, segue em evidência no instituto sediado em São Paulo: neste mês de novembro, será inaugurada a exposição Cidade gráfica, cujo eixo temático busca problematizar as relações entre a prática do design e a vida em coletivo nas metrópoles de hoje. É de design e cidade, portanto, que se erige a mostra, com projetos amealhados pelos curadores Celso Longo, Daniel Trench e Elaine Ramos em todo o país. Os três designers pertencem à Alliance Graphique Internationale/AGI, cujo congresso internacional se deu em agosto, na capital paulista, pela primeira na América do Sul e com apoio do Itaú Cultural. O ano de 2014 se constituiu no período em que o design gráfico foi enquadrado e debatido na programação de uma relevante instituição difusora da cultura brasileira. “Temos projetos de grande porte em todas as áreas de expressão cultural, mas, de fato, com a Ocupação Aloisio Magalhães, o evento da AGI e a Cidade gráfica, formamos um conjunto de ações que, de modo inédito, expandiu a reflexão sobre o design”, afirma Sofia Fan, gerente do núcleo de artes visuais do Itaú Cultural.
SOFIA LUCCHESI
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Natural que esse tipo de pensar se alargue, quando se constata que, em qualquer contexto de urbanidade, o design é onipresente. Está nos objetos com os quais as pessoas se municiam para atravessar suas jornadas de trabalho ou horas de lazer; na sinalização das ruas; nos carros, nas roupas, nos livros; e também no traçado paisagístico escolhido para o Recife, Nova York, Londres, Santiago, Mumbai ou Sidney. “O que sempre digo nas minhas aulas é que o design é absolutamente banal. O design que interessa é aquele que penetrou na vida individual e coletiva e nem se faz notar. Quem usa óculos, por exemplo, será que sente os óculos? Não, porque aquilo já foi incorporado. A interface é tão bem-resolvida, que a pessoa não sente o artefato”, pontua Ana Claudia Berwanger, professora do curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Espírito Santo/UFES, com formação em Desenho Industrial
(UFPR), mestrado em Comunicação e Semiótica e doutorado em Sociologia (ambos pela PUC-SP). Para ela, há uma tendência desnecessária à “espetacularização”. “Existe, na contemporaneidade, uma compreensão de que o design é algo que precisa ser visto, que só existe ao causar alguma medida de epifania ou espanto. No entanto, pode ser invisível, como uma faixa no chão que sugere às pessoas fazer algo. É quando não é visto, não é percebido, que é mais eficaz. O designer ora faz o papel dele em silêncio, ora de maneira espalhafatosa. Mas o desafio é fazer com que o cotidiano das pessoas no espaço público seja uma vida sem dor, em que o indivíduo, e não só o consumidor, não se sinta desprotegido da face construída da cidade. Quando falo em ‘face construída’, penso na engenharia, na arquitetura, no design… Todos são retalhos da colcha da cidade e, bem ou mal, ficam integrados.
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1 OCUPAÇÃO Curadores da mostra Cidade gráfica viram no movimento o engajamento dos designers participantes da política urbana
Cabe ao designer pensar projetos que promovam as sensações de proteção e orientação, para que o cidadão não se sinta hostilizado na própria cidade”, acredita Berwanger.
OCUPE ESTELITA
Em jogo, por conseguinte, está a conexão entre o profissional e o organismo vivo, no espaço contraditório que é a urbe. Cidade gráfica, antecipa o cocurador Daniel Trench, também trata disso. “Ser designer no Brasil, um país em desenvolvimento, é uma experiência distinta do que deve ser um profissional em um país desenvolvido, com uma cultura de design já estabelecida. Dessa forma, creio que o designer precisa pensar mais e mais propositadamente, e não a partir das demandas do mercado. Na exposição, por exemplo, não teremos projetos acabados, solucionadores de questões, e, sim, ideias que levantam outras questões. A cidade é um terreno
“Cabe ao designer pensar projetos que promovam no cidadão as sensações de orientação e proteção” Ana Claudia Berwanger de conflitos. Cabe ao design agir na mediação disso”, aponta Trench, bacharel em Artes Plásticas pela FAAP, mestre pela ECA-USP e professor do curso de graduação em Design Visual da ESPM, em São Paulo. Ele cita o Ocupe Estelita – movimento da sociedade civil criado em oposição a projetos de urbanização no Cais José Estelita, na zona central do Recife, cujo ápice se deu no primeiro semestre de 2014, com a ocupação de uma das áreas do antigo terreno de 10 hectares, outrora pertencente
à União – como um episódio em que se entrelaçaram design, política e urbanismo. “Há uma responsabilidade embutida no trabalho que você faz. O designer também deve se perguntar ‘para que estou fazendo isso?’. Não vejo problemas em desenhar capas de livro, mas penso que nossa atuação é política, e cresce quando ajudamos a um produzir um discurso do coletivo. O engajamento pode se dar de diversos modos, e o Estelita é um exemplo disso”, argumenta Trench. Para Celso Longo, que, junto a Elaine Ramos, esteve no Recife em julho deste ano, na prospecção de projetos e ideias para integrar Cidade gráfica, o movimento encampado por parte significativa da sociedade recifense comprovou o quão fundamental é o design na vida urbana. “O Ocupe Estelita foi um processo emergente e coletivo. Percebemos que havia a intenção, por parte dos designers envolvidos, de fechar uma família tipográfica, de trabalhar com uma paleta cromática, mas isso não necessariamente reverberou, o que é uma característica de uma construção coletiva e horizontal. Não havia imposição do mercado nem de ninguém. A ideia do que está por trás disso é a forma como as pessoas se articulam para conseguir estabelecer bases de trocas políticas e de reflexão. O design pode ser peça importante e fundamental nessa conexão”, ressalta Longo, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, professor de História do Design e autor de Design total, livro sobre o escritório paulista Cauduro Martino, publicado pela Cosac Naify. Ele continua: “O curioso é que estivemos em Belo Horizonte e São Paulo, antes de chegarmos ao Recife, e vimos vários desses grupos que estão na mesma base do Ocupe Estelita já conectados, em conversas, brigando por direitos. A rede está um pouco implícita, e é legal pensar em transformar isso para o público que não é designer. Para esse cidadão específico, essas coisas estão acontecendo, e têm uma cara, em
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grande parte por causa da comunicação que o design propicia”. Por consequência, é no ato de se comunicar com aquele que anda pelas ruas, recorre às paradas de ônibus (a maior parte delas sem sinalização alguma), passeia a pé, de bicicleta ou de carro pelos bairros e vivencia a metrópole em sua essência cotidiana, que reside a chave para assimilar o quão enraizado é o casamento entre design e a cidade.
SINALIZAÇÃO
Não se trata apenas da comunicação para o cidadão, mas de uma determinada metrópole para o mundo. Um jogo de dentro para fora, e de fora para dentro, em que as forças centrífugas e centrípetas deveriam estar, em tese, em equilíbrio, para garantir a sensação de familiaridade – para quem mora ou para quem apenas visita o lugar. “A cidade deve se vender para os turistas, mas também para sua própria população, que muitas vezes não faz ideia do que nela acontece”, examina o pernambucano Carlos Fernando Eckhardt, designer gráfico com experiência nos mercados dos Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, agora atuando como consultor em estratégias de design e comunicação. “O ônibus vermelho e a caixa de correio de Londres, por exemplo, tornaramse marcas inglesas. O bonequinho do sinal de pedestre de Berlim, elemento icônico importante, foi tombado como patrimônio. Esses símbolos ajudam a compor o vocabulário visual dessas cidades”, complementa. Ele mira a falta de zelo com o patrimônio visual. “É preciso respeitálo da mesma forma que se cuida do patrimônio arquitetônico. Como pode uma faculdade comprar um prédio histórico no centro do Recife como é o Edifício JK e apagar aquela marca do INSS? Por gerações, ela foi referência para os que passavam por ali”, lamenta Eckhardt, que defende a tese de que a gestão da cidade deve abdicar de marcas atreladas a partidos políticos e fabricar uma identidade visual própria, íntima e intransferível. “Imaginemos o que seria de Paris se os prefeitos tivessem decidido destruir aquelas sinalizações antigas de algumas das estações de metrô, com elementos bem art nouveau? Uma cidade menos interessante, decerto”, sugere.
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Ao se referir à “lógica hiperidentitária”, Beatriz Sarlo discorre sobre como a cidade turística precisa ratificar o que é “seu”
A escritora, crítica literária e pensadora argentina Beatriz Sarlo adentra esse raciocínio em um dos capítulo de A cidade vista – mercadorias e cultura urbana, lançado no Brasil este ano pela editora Martins Fontes. Ao falar de uma “lógica hiperidentitária”, noção aguçada pelo embate entre global/local, ela discorre sobre como a cidade, na condição de mercadoria turística, precisa ratificar o que é único e exclusivamente seu. “Na medida do possível, a cidade deve ser resumida a uma marca que remeta só a ela, como um logotipo: a
baía do Rio de Janeiro ou de Nápoles, o Rockefeller Center e o Empire State Building, Notre Dame e a Torre Eiffel, o Coliseu e a Praça de São Pedro, o Guggenheim de Bilbao, a Ópera de Sidney, a Cibeles ou o Obelisco.” Prossegue Sarlo: “O logotipo é a síntese das referências reais e imaginárias que se depositam no nome da cidade como espaço turístico, entre as quais se escolhe uma, não simplesmente por seu significado e beleza, mas por sua celebridade (e, se essa celebridade não existe, é produzida). Semiose pura, o logotipo permite, como o signo, identificar e diferenciar; identificar por qualidades específicas, ou seja, identificar através da diferença. A cidade só chega a ser uma cidade turística se tem algo que se possa transformar em logotipo, de modo que não é tão fácil esse processo de identificação semiótica, porque há cidades que primeiro tiveram de
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construir a base material do seu logotipo (a Ópera de Sidney, o Guggenheim de Bilbao) para depois sintetizá-lo como marca. Antes do Obelisco, Buenos Aires não podia ter logotipo. (…) Quer dizer que o logotipo não se elabora seguindo apenas as leis da produção de mercadorias, mas antes num entrecruzamento simbólico entre real urbano e o imaginário urbano”. Dentro da perspectiva de que diversas linguagens se imbricam para forjar simbolicamente e literalmente a paisagem e o imaginário urbanos, o design surge como crucial. De acordo com Leonardo Castilho, coordenador da pós-graduação em Design no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, o que falta é uma visão sistêmica tal qual o “entrecruzamento” proposto por Sarlo. “Temos hoje trechos de visões sobre a cidade que não necessariamente refletem o coletivo”, situa o professor colombiano, formado em Design de Produto pela Universidade Nacional da Colômbia, com mestrado e doutorado na Universidade de Kyoto, no Japão, há uma década radicado no Brasil. “Os elementos têm que estar articulados numa visão sistêmica dentro de uma noção de cidade contemporânea. O designer, nesse sentido, está preparado para propor e levantar questões, para fazer uma articulação. Creio no design como ferramenta de estratégia”, assevera. Recentemente, Castilho foi chamado para participar do Parque Capibaribe – Caminho das Capivaras, grupo interdisciplinar formado a partir de um convênio de cooperação técnica entre a Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife, e a UFPE. “É um projeto para recuperação das margens do Rio Capibaribe. Nessa primeira fase, a proposta é reabilitar as bordas que vão do Parque de Santana até a ponte da Rua Amélia, e nela estou colaborando com o olhar do design”, diz. O Parque Capibaribe pretende atingir 35 bairros ao todo, abarcando “500 metros ao redor de cada margem, o que delimita 7.250 hectares de área de influência”, bordejando “35 bairros, que vão gradualmente se transformar em bairros-parque, atingindo 400 mil habitantes do Recife”, segundo o texto
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de apresentação em seu sítio na internet (http://www.parquecapibaribe.org). Ao designer é conferida a oportunidade de influenciar a concepção de cidade em que ele, na maioria das vezes, mora e trabalha. “Como posso fazer algo funcionar melhor? Essa é a pergunta que o designer deve se repetir todo dia. Não se trata apenas de garantir uma faixa exclusiva para bicicletas aos finais de semana e pensar uma sinalização para ela, mas lembrar que têm pessoas que por ela circulam às seis da manhã em dias de semana para ir ao trabalho. Como a cidade pode se aperfeiçoar e que tipos de serviços podem ser disponibilizados? Outras questões que o designer deve buscar, sempre atentando para o fato de que visões de curto prazo têm data de validade”, destaca Leonardo Castilho.
TOMADA POLÍTICA
Logo, a práxis não tem como se distanciar da política em sua acepção original – a palavra derivada do grego pólis, tradução para as “cidadesestado” ou para tudo aquilo que é público. Sem demagogia alguma. “O que vimos durante o Ocupe Estelita foi um trabalho colaborativo em que os designers contribuíram para uma situação específica, mas que reverberava na cidade como um todo. É importante
2-3 PATRIMÔNIO VISUAL A sinalização pública torna-se marca registrada de um lugar, como as placas do metrô de Paris e o boneco dos sinais de Berlim
para o profissional que vive de design também exercer a política no seu dia a dia, indo além das eleições, dos trabalhos que ele precisa tocar para se manter. Seja quem for o presidente, o governador ou o prefeito, o design deve estar inserido nas discussões sobre os modelos de cidade que queremos. Como profissional da área, como poderei me posicionar diante de um Congresso Nacional de maioria retrógrada, eleito em outubro? Não sei ainda, mas é algo que me disponho a fazer. É preciso mais designers ajudando a pensar o Recife e Olinda, por exemplo”, observa Luciana Calheiros, formada pelo curso de Programação Visual da UFPE e sócia de escritório de design no Recife. Sua opinião quanto à inserção dos designers na formulação das políticas públicas é partilhada por Renata Gamelo, que, por cinco anos, coordenou as equipes do Centro de Design do Recife (CDR) e Centro de Formação em Artes Visuais (CFAV), ligados à Secretaria de Cultura da Prefeitura do
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Recife, e atualmente é pesquisadora para a Região Nordeste da Bienal Brasileira de Design Floripa 2015. “Design é sistema, é processo, e deve ser cada vez mais preocupado com os seres humanos envolvidos nos mais diversos contextos. Em algumas cidades, inclusive, a escala de intervenção do design no pensamento da cidade já chega às instâncias de gestão. Em Buenos Aires, na Argentina, há uma subsecretaria de Desenvolvimento Criativo, que tem interfaces e programas bem-desenhados com o Centro de Design e com os setores de Desenvolvimento Econômico e Urbano, Inovação, Turismo, Cultura e Comércio Exterior”, comenta Renata, que fez residência no Centro de Diseño de Buenos Aires entre 2011 e 2012. A experiência na capital portenha validou as crenças que ela já nutria. “Falta maior interação de designers com engenheiros, arquitetos e urbanistas, que pensem melhor na escala das pessoas na cidade. Países com qualidade de vida urbana têm, há anos, setores de design que interagem com equipes de urbanismo, que pensem essa ferramenta e sua aplicação na cidade a partir da escala humana. Em Buenos Aires, o design está no centro das discussões da economia criativa. Isso estabelece uma convergência de ações públicas e privadas para o desenvolvimento de todos os potenciais de contribuição dessa linguagem no desenvolvimento da cidade no longo prazo, independentemente de mudanças de governo”, observa.
MONSTRO OPACO
Assim como a exposição Cidade gráfica opta por transcender os ditames do mercado, “indo além das corporações, da indústria, para falar de um design para o coletivo”, nas palavras do cocurador Celso Longo, o embate entre mercado x conscientização pública é retomado em outras esferas. “A despolitização é uma crítica recorrente que faço à prática do design. Claro que os profissionais politizados estão aumentando em número, mas a formação ainda é ‘objeto centrado’. É preciso parar de pensar só no objeto enquanto construção de lógica interna e introduzir a consciência crítica, segundo a qual as decisões do designer afetam a vida coletiva – de pessoas que ele
Artigo
CARLOS FERNANDO ECKHARDT UMA MARCA PARA A CIDADE, E NÃO PARA A GESTÃO Repetindo o que fez o governo do estado de Pernambuco, a atual gestão municipal acertou em ressuscitar em sua comunicação institucional os símbolos oficiais da cidade do Recife – o brasão e as cores da bandeira – em geral preteridos pelas chamadas marcas de gestão que se sucedem a cada nova administração. As ações de comunicação da administração pública são baseadas no princípio constitucional da Publicidade (artigo 37), que garante que o exercício do poder
A utilização dos símbolos oficiais da cidade é um grande passo para a comunicação mais transparente será acessível ao conhecimento de toda a comunidade. Mas a utilização de marcas de gestão acaba por distorcer as intenções desse princípio. Pois, na função de identificarem os responsáveis pelas ações do executivo, depositam a ênfase da comunicação na promoção de grupos e partidos políticos – com suas cores e símbolos próprios –, em vez de enaltecerem a instituição pública que efetivamente realizou a obra, com recursos próprios e através do esforço conjunto de inúmeros servidores, algumas vezes, ao longo de gestões sucessivas. Como consequência, no caso da instância municipal, além
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do compromisso financeiro de identificar, a cada nova gestão, todas os materiais de comunicação e equipamentos públicos – da papelaria às lixeiras de rua –, o pior dos prejuízos: um processo perverso e contínuo de alienação do cidadão sobre o papel da prefeitura como um agente que representa a cidade, e não o grupo político que aconteceu de eleger o prefeito para um mandato de quatro anos. Nesse sentido, a utilização dos símbolos oficiais da cidade é um grande passo para uma comunicação mais transparente e responsável. E deveria servir como inspiração para avançarmos mais nessa relação. Pois, infelizmente, mesmo na configuração utilizada por esta gestão, o brasão e as cores da cidade do Recife constituem apenas elementos, ainda que proeminentes, de uma marca transitória, e podem eventualmente ser devolvidos à obscuridade sem a menor cerimônia por futuras administrações. A maneira de garantir que a cidade seja representada definitivamente
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4-5 MELBOURNE
Cidade australiana investiu no planejamento e gestão da imagem da cidade, em processo conhecido como city branding
pelos símbolos legítimos da municipalidade exige duas medidas por parte da prefeitura e da câmara de vereadores. A primeira, seria proibir por lei a utilização de marcas de gestão nas comunicações e equipamentos do município. A segunda, não menos importante, seria empreender um processo de sistematização da identidade visual do município que regulamentasse, através de manual explicativo, a utilização dos símbolos da cidade de forma perene, independentemente do grupo político circunstancialmente no poder. Essas sugestões tratam especificamente da assinatura do município para efeitos de transparência, que é essencial – segundo a Constituição brasileira – ao relacionamento entre ele e o cidadão. No entanto, a prefeitura poderia ser ainda mais ambiciosa. Poderia encarar sua comunicação institucional a partir de uma visão mais ampla e estratégica, e considerar o investimento em um programa de city branding para
a construção e implementação efetiva de uma Marca Recife.
GESTÃO DA IMAGEM
Seguindo um processo análogo ao que empresas da iniciativa privada utilizam em suas marcas, o city branding consiste no planejamento e gestão da imagem da cidade, e da experiência de seus habitantes, visitantes e interlocutores, internos e externos, com ela, potencializando seus desejos de lá viverem, investirem e visitarem. Projetos de city branding vêm se multiplicando no mundo desde o início da globalização, quando se acirrou entre os centros urbanos a competição por investimentos, talentos e visitantes. Hoje, já existem bem-documentados casos de sucesso como Amsterdam, Hong Kong e Melbourne. É verdade que o Recife, como destino turístico e de negócios, tem sido objeto de campanhas regulares por parte de órgãos estatais e dos trades corporativos. Porém, além de focalizarem o público externo
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e interno, o que caracteriza o city branding – e potencializa seus resultados – é o planejamento estratégico centralizado, que garante que ações relacionadas à imagem do município sejam coordenadas a partir de um discurso e uma identidade em comum. Programas se distinguem pela gestão permanente e pelo amplo espectro de ações multidisciplinares: identidade visual, arquitetura, urbanismo, design de mobiliário urbano, publicidade, coordenação de eventos etc. Ao contrário das marcas de gestão, que reforçam na população o sentimento de antagonismo entre os vencedores e os derrotados de uma eleição, a proposta de uma Marca Recife deve ser a de unir, a partir do afeto pela cidade e de uma identidade em comum, os habitantes em torno de uma visão de futuro compartilhado, em que a cidade é um patrimônio de todos, e cuja saúde e bem-estar dependem de cada um de nós. Os resultados para o município, em termos de negócios e turismo, são consequências naturais do aumento da autoestima e do compromisso cívico de seus cidadãos. Que prefeito não gostaria de ter essa conquista como marca de sua gestão?
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6 INTERVENÇÕES A população também interfere na paisagem da cidade, como o grupo Piseagrama, com a ação Campanha não eleitoral
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não conhece e de uma variedade de indivíduos e de grupos. A noção central da prática deve ser o usuário, mas sem que o designer acabe reificando esse usuário. Não se pode apenas idealizar um usuário porque, na prática, qualquer projeto vai atingir pessoas muito diferentes de um suposto público-alvo. E a cidade é um monstro opaco, em que a escala do indivíduo já é muito pequena. Não existe uma mediação de diversas maneiras. Até por isso é preciso projetar para o mais frágil, para os mais desprotegidos”, ressalta a professora da UFES, Ana Claudia Berwanger. Uma volta a Aloisio Magalhães e à sua biografia atesta que ele enveredou pela política com os mesmos talentos e sapiência com que se graduou em Direito, foi artista plástico e ajudou a fundar a oficina de impressão literária O Gráfico Amador e a Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a primeira do país. Eram outros tempos. Quando morreu, aos 55 anos, era secretário de cultura do Ministério da Educação do governo João Figueiredo, o último do regime militar. Três anos antes, em 1979, havia sido designado para diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. “Ele é o maior designer do Brasil. Se tivesse que eleger uma pessoa,
“Está no centro da questão o relacionamento entre tecnologia e comunidade” Aloisio Magalhães seria o Aloisio. Ele tinha tanto o design corporativo como a experimentação, desde os tempos d’O Gráfico Amador, e ainda o lado político. O fato de ele ter trabalhado na ditadura tem um pouco de peso para alguns, mas em nada diminui sua relevância. Ele é o mais importante, sem dúvida”, expõe Elaine Ramos, também cocuradora da Cidade gráfica. Lá atrás, muito antes do advento de tecnologias que alterariam por completo o âmago do design, ele já vislumbrava questões que, quatro décadas depois, desembocam nestas páginas da Continente. “Está no centro da questão o relacionamento entre tecnologia e comunidade, desenvolvimento e comunidade. Nesse processo de luta enfática, de posicionamento do desenho industrial, me chamou a atenção detectar a perda de valores culturais pela rapidez com que o processo de desenvolvimento é imposto, sem a necessária reflexão
entre o que nós importamos como forma de fazer tecnológico necessário ao desenvolvimento”, afirmou em entrevista a revista Istoé, em 1979, cujo trecho está disponível no site Espaço Aloisio Magalhães, mantido em http:// aloisiomagalhaesbr.wordpress.com/. Em maio de 1982, um mês antes de morrer, ao discursar em Goiânia na abertura do I Encontro dos Conselhos Estaduais de Cultura das Regiões Centro-Oeste e Norte (texto que fez parte da fortuna crítica da Ocupação Aloisio Magalhães), ele insistia em ampliar os horizontes de análise, em tom que hoje poderia ser entendido como profético, até, e certamente passível de leitura à luz atual: “Quais são os valores permanentes de uma nação? Quais são verdadeiramente esses pontos de referência nos quais podemos nos apoiar, podemos nos sustentar, porque não há dúvida de sua validade, porque não podem ser questionados, não podem ser postos em dúvida? Só os bens culturais. Só o acervo do nosso processo criativo, que deve tomar aí o seu sentido mais amplo – costumes, hábitos, maneiras de ser. Tudo aquilo que foi sendo cristalizado nesse processo, que ao longo desse processo histórico se pode identificar como valor permanente da nação brasileira. Estes são os nossos bens, e é sobre eles que temos que construir um processo projetivo.”
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ANDRE SEITI/DIVULGAÇÃO
Entrevista
ELAINE RAMOS “ESSA É A GRANDE QUESTÃO ATUAL: COMO INTERAGIR COM O LUGAR ONDE SE VIVE?” Um dos três curadores da exposição
Cidade gráfica, a paulistana Elaine Ramos, 40, é designer formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, diretora de arte da editora Cosac Naify e membro da Alliance Graphique Internationale – AGI desde 2013 (ela está entre os oito profissionais brasileiros a integrar tal instituição, fundada em 1951 e voltada para designers e ilustradores sob o signo da partilha de interesses comuns). Antes de participar do AGI Congress, em agosto, ela esteve no Recife a fim de conhecer e analisar projetos para a mostra que o Itaú Cultural inaugura neste mês de novembro. Sobre seu percurso profissional, as pesquisas desenvolvidas na área e a correlação entre design e a vida urbana, Elaine falou à Continente.
CONTINENTE Como descreveria sua trajetória profissional no âmbito do design? ELAINE RAMOS Minha trajetória é bem linear. Cursei a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo/FAU-USP. Dentro da FAU, interessei-me mais por design. Saí da FAU e seis meses depois entrei na Cosac, onde fiquei até hoje. Estou lá há 14 anos; a editora tem 18 anos da abertura do CNPJ. O primeiro livro, o do artista plástico Tunga, foi de 1996. Entre 1996 e 2000, a editora lançou, aproximadamente, 50 livros. Hoje, tem quase mil títulos no catálogo. Vi toda a trajetória da editora e participei da sua transição de um trabalho totalmente pessoal do Charles (Cosac, proprietário), mais um projeto dele de lançar os livros de arte, uma extensão da sua casa, para uma empresa que hoje tem uma equipe de comercial e de marketing. Vivi esse processo inteiro.
CONTINENTE E hoje você é diretora de arte em uma editora reconhecida por apostar na sofisticação no texto e na arte. Como se dá isso na Cosac Naify? ELAINE RAMOS A editora tem uma equipe interna de design, o que é um modelo bem raro no mercado editorial. Somos eu e mais cinco designers. Dividimos e discutimos os projetos entre nós e com os editores. Cada editor dentro da Cosac é responsável por alguns livros, normalmente por uma área, e aí há uma interação entre designers e editores. Há também a
parte da produção gráfica, que é a equipe encarregada das pesquisas. Tudo é discutido em um processo coletivo e bem rico. Agora, como também faço parte da diretoria, tenho muita autonomia. Posso dizer que não nos pautamos pelo que é vendável. Há sempre a preocupação em comunicar, em atingir um público leitor daquele livro, mas nunca fazemos projetos pautados pelo que achamos que vende mais. Até porque achar o que vende mais é uma ciência da adivinhação. Nós arriscamos, eu acho.
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CONTINENTE Fale um pouco sobre Linha do tempo do design gráfico no Brasil, um livro seu que se relaciona com a temática da exposição Cidade gráfica. ELAINE RAMOS Fazer esse livro foi um processo muito prazeroso, ao lado de Chico Homem de Melo, que foi meu professor na FAU e é um supercolecionador e pesquisador. Foi muito interessante para mim, que me alimento de informação e referências, poder fazer uma organização da perspectiva de quem faz design. O legal é que Chico é designer, eu sou designer, e nenhum dos dois é historiador. Não havia a pretensão de ser uma versão historiográfica do design, e, sim, um panorama o mais generoso possível. O fato de não sermos historiadores fez com que, por exemplo, não tivéssemos uma ideia preconcebida de como organizar o livro. Nossa base foi a linha do tempo, um conceito totalmente neutro. Mas não tínhamos o objetivo de determinar que os anos 1920 eram art nouveau. A verdade é que a produção é e sempre foi superplural. Você encontra linhas de força que estão ali representadas dentro da multiplicidade de cada época. E assim fomos discutindo, achando recorrências, tentando incluir as exceções, os pontos fora da curva, que são muito interessantes. Foram três anos de trabalho na militância, sem patrocínio algum. A Cosac Naify pagou os custos do livro, mas fizemos o nosso trabalho porque era prazeroso. O grande objetivo da Linha do tempo é que seja o ponto de partida para outras pesquisas. CONTINENTE Com a imersão nessa pesquisa, foi possível rastrear identidades claras no design brasileiro ou correntes que até hoje perduram? ELAINE RAMOS O design no Brasil tem identidades, com certeza. Mas é difícil falar da identidade de um design brasileiro, de uma brasilidade no design. Houve momentos muito antenados, outros menos, mas, certamente, existe uma particularidade, inclusive dada pelos meios de produção, pelo contexto local de gráfica e de mercado. Porém, acho complicado dizer que exista um estilo brasileiro de design. Na
verdade, o design canônico no Brasil tem origem na escola de Ulm, na Alemanha. O design que é mais sério, que passou a ser identificado e chamado de design, é totalmente construtivo e suíço. Mas sempre existiram os artistas que eram vetores. Por exemplo, Di Cavalcanti fez design. Há muitas peças dele na Linha do tempo. Ele é um artista que tem uma temática brasileira, mas também considero que suas obras poderiam ter sido feitas na França, por um artista francês. O curioso é que houve muitos estrangeiros: no comecinho, o português Rafael Bordalo Pinheiro, depois Eugênio Hirsch, que era de origem austríaca e morou na Argentina antes de
“O Brasil vive uma era de se conscientizar acerca das questões urbanas, e o design gráfico fica distante dessas questões” chegar ao Brasil, e outros. Vários dos vetores da Linha do tempo sequer são brasileiros; estavam convivendo e produzindo aqui, submetidos à equação produtiva do Brasil. CONTINENTE O design contemporâneo do Brasil entra como pano de fundo dessa exposição, que busca analisar a relação com a cidade. Como nasceu essa mostra? Qual foi o maior desafio, a grande expectativa de pensá-la? ELAINE RAMOS A Cidade gráfica começou assim: o congresso da AGI acontece uma vez por ano em algum lugar do planeta. Em 2014, foi em São Paulo. Quem abrigou o congresso foi o Itaú Cultural. No começo das conversas, a ideia era fazer uma exposição de design em simultaneidade com o congresso. Por uma questão de agenda, a exposição se desvinculou do evento e ficou para novembro, mas, durante o congresso, o Itaú Cultural sediou a Ocupação Aloísio Magalhães. A partir do pedido do Itaú de radiografar o design brasileiro contemporâneo, dentro do grupo brasileiro da AGI, eu, Celso
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Longo e Daniel Trench assumimos o desafio e pensamos no recorte da cidade. Por quê? Porque está claro que o Brasil vive uma era de se cobrar e se conscientizar acerca das questões urbanas, e o design gráfico fica distante dessas questões. É uma profissão que, no país, é muito gerida pelo job, pelo cliente. CONTINENTE Sob essa perspectiva, como se equilibra a relação entre design e sociedade? ELAINE RAMOS A exposição é um pouco para refletir sobre isso. Penso que toda profissão tem um papel social, ou pelo menos deveria ter. E acho que o design atua pouco nessa vertente atualmente. Podia atuar mais. Quisemos fazer uma
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provocação disso e propor que o design recuasse em relação ao cotidiano do trabalho. Queremos pensar como é possível atuar como designer na cidade, pois essa é a grande questão atual: como interagir com o lugar onde se vive? CONTINENTE Então, qual seria o papel social do designer na vida de hoje? ELAINE RAMOS A chave é exatamente a comunicação. Qualquer tipo de movimento, seja ele político, cultural ou artístico, traz em si uma necessidade de comunicação que é primordial. E é o design que faz essa interface. Na vida cotidiana das grandes cidades, temos uma necessidade de
comunicação básica que nem sempre é atendida. Por exemplo, seria lindo incluir na Cidade gráfica um projeto de sinalização urbana de sistema de ônibus de alguma cidade do Brasil, qualquer iniciativa criada para transmitir as simples informações dos horários de chegadas e partidas dos ônibus. Só que isso não existe. Como estamos em 2014 e chegamos a um ponto de ônibus sem saber que linhas passam ali? É inacreditável ter essa situação em cidades como São Paulo ou o Recife. CONTINENTE O design então se torna, no cotidiano urbano contemporâneo, uma ferramenta essencial para fazer com que a cidade se comunique com os que nela vivem?
AVENIDA PAULISTA
Nos anos 1970, o escritório de design Cauduro Martino criou, ao longo do passeio, abrigos para pedestres na cor ocre-alaranjado
ELAINE RAMOS A eficiência da comunicação é a chave. Se, por lado, ela faz uma marca reverberar mais ou uma empresa ser notada por um produto que está construindo, aí tem um valor material; por outro, no caso desse tipo de articulação ligada à cidade, a que chega às pessoas, ela pode ser, inclusive, um desenho invisível, mínimo. E, mesmo assim, atingir não só a elite da cidade, mas toda a população. Por isso que se entende que o design é fundamental em toda a comunicação e em questões que não necessariamente têm a ver com a reivindicação de direitos ou com política, mas que são questões básicas, de funcionamento daquela determinada cidade. KARINA FREITAS E LUCIANA VERAS
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CON CAPA TI NEN TE
INDIO SAN
SIGNOS Como nasce a identidade de uma cidade?
Há o momento em que um lugar deixa de ser um conglomerado anônimo e passa à perífrase de si, como “a cidade-luz” ou “a cidade que nunca dorme”
É possível aferir o determinado momento em que uma metrópole como San Francisco, Barcelona, Marrakesh ou o Recife deixa de ser um conglomerado urbano anônimo para se legitimar como “a cidade da Golden Gate”, “a capital da Catalunha”, “a medina da praça Jemaa El-Fna” ou “a Veneza brasileira”? O curso da história ensina que a cidade é o que dela também transparece e o que dela é disseminado com um viés publicitário e turístico. E para esse notável fluxo, que pode transcorrer por anos ou décadas até ser capturado em um epíteto ou logotipo, é imprescindível a parcela criativa do design. No capítulo intitulado A cidade imaginada, do livro A cidade vista – mercadorias e cultura urbana, publicado em 2014 no Brasil, a escritora e pensadora portenha Beatriz Sarlo convenciona a paridade entre as marcas e seus correspondentes textuais: “Sobre o logotipo, em alguns casos, acumula-se um signo verbal: a cidade que nunca dorme, a meca do cinema, a cidade-luz, a cidade do tango, a cidade santa etc. A lógica desses clichês é semelhante à do logotipo, porque resume qualidades
diferentes em um só traço, embora este não seja uma descrição do ‘real’ mas uma metáfora. A imagem verbal funciona como os apelidos dos famosos: só os têm quem os ganhou. Algumas cidades têm logotipos reconhecidos; outras, em número menor, têm também imagens verbais sintéticas. Numa época em que a identidade é tudo (direito e dever de ter uma identidade ou várias, antes várias no mundo globalizado), a cidade multiplica o ícone identitário, comunicando-o com as técnicas do design”. Pesquisador do Laboratório de Inteligência Artística do Departamento de Design da UFPE, arquiteto formado, professor adjunto do mesmo departamento e agora pesquisador em pós-doutorado no Royal College of Arts, em Londres, o pernambucano Gentil Porto Filho atenta para o que seria bem-descrito como desafio ontológico do design: o cabo de guerra entre a universalização, advinda com a Revolução Industrial dos séculos 18 e 19, e a particularização, que seria o esforço de amparar o local, tanto para propagá-lo como para
dele fazer brotar uma identidade. “Submetido a processos industriais, o design tende a ser universalista. É resultado de uma civilização industrial e uma atividade que fortalece uma espécie de internacionalização do ambiente humano em que se vive. A indústria obedece a parâmetros tecnicistas que tendem a desconsiderar especificidades locais. Uma fábrica de automóvel funciona de um modo parecido em São José dos Campos ou nos Estados Unidos, na China ou no Japão. Esse é o paradigma do desenho industrial. O principal conflito é quando a tendência ao universal se vê em embate com especificidades culturais e geográficas”, sustenta. Se, por um lado, afirma o professor, “é ingenuidade achar que o design sozinho é forte o suficiente para produzir uma identidade”, por outro, a atividade deve “afirmar a complexidade da realidade e não apagar vozes”. “A tendência da indústria é achatar as particularidades, porque ser uniforme é mais barato, mais simples, tem praticidade, velocidade e produtividade. Como planejar a partir de forças
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econômicas que tendem a padronizar, como produzir diferenças? Hoje, o Recife sofre pressões do mercado imobiliário, por exemplo, e da própria natureza da produção industrial. Essas forças tendem a apagar o que há de específico, mas encontram resistência nos hábitos de cada lugar, o que naturalmente gera uma disputa. O design deve proceder pelo não apagamento da diferença”, prossegue Gentil Porto Filho. Conduzindo-se a discussão por esse caminho, ao designer não seria permitido se escusar de processos que podem moldar uma nova face do espaço urbano. “Ele deve ter no horizonte a consciência de que pode fazer projetos gentrificadores ou não. Há uma ideologia vigente que prega o design como uma maneira de pensar para deixar o mundo bonito, exterminando o feio. Estive recentemente em uma palestra em que foi citado o caso de um bairro decadente europeu, revitalizado a partir da instalação de um centro de design. O bairro foi transformado em polo cultural, a cidade toda festejou a recuperação, mas o palestrante, dentro de sua narrativa, exultava o fato de
A prática do design se manteria entre as forças opostas da universalização e da particularização dos valores e objetos que todos os drogados e prostitutas haviam ido embora. Ou seja, não se deu conta do quanto isso era ruim para a cidade. O design, quando pensado dessa maneira estetizadora, tende a uma perigosa gentrificação”, vaticina a professora de Desenho Industrial da UFES Ana Claudia Berwanger. No artigo O design e a cidade: considerações e perspectivas de análise (2010), ela reflete sobre o programa City of design, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/ Unesco, do qual já fazem parte localidades tão díspares e distantes quanto Pequim, Santa Fé, Buenos Aires, Nagoya, Montreal e Seul, a partir de uma possível adesão de São Paulo. “Os resultados previstos não se referem
a qualquer benefício efetivo para a cidade de São Paulo e sua população em termos culturais públicos”, conclui. À Continente, reforça sua ponderação: “É uma iniciativa fetichista, sem preocupação alguma com a cidade, e, sim, com as unidades produtivas que vão gerar lucro por meio do design que é estetizado. Programas assim são facas de dois gumes: podem levar a uma dinamização econômica da cidade, mas, para mim, são uma etiqueta voltada a privilegiar alguns grupos e alguns setores, num esquema que não vai dar lucro para a cidade ou que preveja qualquer melhoria dos equipamentos urbanos”.
EFEITO DE SUPERFÍCIE
City of design seria apenas uma etiqueta. Há importância? Talvez, ainda mais quando Beatriz Sarlo recorda, em A cidade imaginada, que “a verdade não está em jogo na identidade, que é, por definição, a máscara daquilo que não se pode definir. A verdade não é um substrato, mas um efeito de superfície”. Mas é justamente na superfície, no que é percebido por
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qualquer transeunte, que se veem as intervenções de maior relevo, as que são apropriadas pela população como suas e superam, em importância, qualquer rótulo estrangeiro. Embutidos no corre-corre do cotidiano, estão lá “anúncios e letreiros, cartazes e outras peças gráficas, que, pelo tempo de permanência, já deveriam ser considerados parte da paisagem urbana e do processo de construção e mutação permanente da identidade da cidade”, como lembra a designer pernambucana Renata Gamelo, que tem trabalhando na pesquisa para a Bienal Brasileira de Design Floripa 2015, cujo tema é “Design para todos”. Ela evidencia que a cidade, viva, transcende o previsto pelas instituições públicas e pelo setor privado. Todos auxiliam a sua metamorfose nesse labirinto, que ora parece gigantesco e incompreensível como o Aleph – no mais famoso conto do argentino Jorge Luis Borges, ora pequeno e familiar, como a aldeia de Liévin, em Anna Kariênina, de Liev Tolstói. “É no amálgama de contribuições que vamos fortalecendo a identidade da cidade.
Não apenas seus equipamentos, edifícios e vias, mas também os anúncios em neon, outdoors, cartazes, lambe-lambes e nas expressões gráficas da arte mural, do grafite e do picho. No Recife, exemplos vivos são os letreiros em neon do Leite Floral e da Minhoto, próximos da Casa da Cultura, que podem ser vistos num passeio de barco ou numa caminhada pela Ponte da Boa Vista; a arte mural da Brigada Portinari, num prédio defronte à Basílica do Carmo; ou, ainda, os murais decorativos de edifícios comerciais, como os de Abelardo da Hora e Francisco Brennand, próximos à praça Joaquim Nabuco”, enumera Gamelo, referindo-se a marcos históricos que fazem tanto sentido para os recifenses quanto o Capibaribe e suas pontes. Nada disso foi imposto ao Recife por governos ou consórcios empresariais. Uma vez instaurados em sua paisagem urbana, a partir da dinâmica própria da cidade, tais elementos foram a ela indexados como parte indissociável. Porque, como ferramenta de construção identitária, o design se alia a outras
8 MONUMENTO Mesmo desativada, a Battersea Power Station afirma-se na paisagem real e imaginária de Londres
variáveis. Para criar a exuberância de Las Vegas, há algo além da estridência do neon. “O artefato neon é evidentemente algo universalizado. Mas, se Las Vegas é vista quase como uma ‘cidade neon’, não é porque a tecnologia e o objeto neon são mais próprios de Las Vegas que de outros lugares. É porque lá se associa a cassinos, hotéis e outras forças econômicas e sociais que podem gerar especificidade e dar um caráter identitário ao artefato que o design produziu”, afirma o professor Gentil Porto Filho.
ARTEFATOS PADRONIZADOS
Tome-se como exemplo o monumento londrino Battersea Power Station. Construído nos anos 1930 na margem sul do Tâmisa, era uma usina elétrica movida a carvão. Suas quatro torres altas, brancas, em contraste com os tijolos vermelhos
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da construção, até hoje dominam a paisagem nas cercania da Ponte Chelsea. Por que persiste? Do outro lado do Atlântico, por exemplo, pereceram os letreiros publicitários e outras fachadas simbólicas, de edifícios comerciais e residências já degradadas na década de 1940, imortalizados nas fotografias do norte-americano Walker Evans (1903-1975), em diversas metrópoles do seu país. Seria a resiliência da Battersea causada pelo protagonismo na capa de Animals, álbum gravado pelo Pink Floyd em 1977? Ou por reter a aura do industrialismo britânico? “Certos artefatos e arquiteturas padronizadas ganham peculiaridade a partir do modo como se inserem no contexto. O que pode ter tornado o prédio uma marca de Londres é sua associação com outros signos, como a capa do Pink Floyd e história da indústria inglesa. O objeto não fabrica isso sozinho, e, sim, ao estabelecer o diálogo em rede com outros aspectos. Nem o artefato nem a atividade do design podem ser avaliados isoladamente”, coloca Porto Filho. Nada é por acaso. Não existe design desvinculado de contexto, do local em que se forja ou da presunção do usuário a que se destina. “A construção do design passa por um elemento de identidade, porém a cidade é um coletivo que, como um todo, vai se expressar da sua maneira. Um designer não tem que propor uma identidade aos mercados da Encruzilhada ou de Casa Amarela, por exemplo, porque neles já existem uma dinâmica, uma lógica que rege o trânsito, a disposição das barracas que vendem flores, dos quiosques da carne. Elementos identitários definem o que as pessoas vão adotar como referência na cidade, com parques, praças, o tipo de calçada. E essa é uma decisão para a qual o design contribui, mas que é do coletivo”, esmiúça o coordenador da pós-graduação em Design pela UFPE Leonardo Castilho. Ou seja, na contínua aproximação entre design e a cidade, existe uma carência mútua e decisiva para que se atinja o progresso harmônico de ambos. LUCIANA VERAS
CIA DE FOTO/DIVULGAÇÃO
Entrevista
RAFAEL CARDOSO “A ERA DO URBANISMO AUTORITÁRIO ACABOU” PhD em História da Arte pelo
Courtauld Institute of Art, da Universidade de Londres, Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte. Sua atuação no campo do design rendeu os livros O design brasileiro antes do design (Cosac Naify, 2005), Uma introdução à história do design (Blucher, 2008) e Design para um mundo complexo (Cosac Naify, 2012). Hoje radicado em Berlim, capital da Alemanha, e atuando como curador, ele falou por e-mail à Continente.
CONTINENTE De que forma o design interfere no cotidiano das grandes metrópoles? RAFAEL CARDOSO O design opera em todas as brechas e junções, entre objetos e informação — ou seja, naquilo que chamamos de interfaces. Sendo assim, o design está necessariamente presente (para o bem ou para o mal) em sinalizações de todos os tipos: desde placas de rua até letreiros de comércio.
CONTINENTE Como o design atua na formação da identidade de uma urbe? RAFAEL CARDOSO Se pensarmos o design no seu sentido mais amplo, como projeto, ele está presente em outras coisas também: nas plantas de redes, nos traçados de sistemas, na relação entre imóveis, ruas, veículos e mobiliário urbano. Num ambiente artificial, como uma cidade, nada acontece sozinho. Tudo precisa ser projetado. CONTINENTE De que maneira as intervenções — grafite, pichações, letreiros em neon— demarcam um novo contexto nas cidades? RAFAEL CARDOSO Essas intervenções constituem um sistema informal de sinalização que opera em diálogo com a sinalização formal. Elas denotam o que os próprios usuários e habitantes têm a dizer sobre a cidade, em contraposição aos discursos oficiais. São “hieróglifos sociais”, parafraseando Marx. Baudelaire e João do Rio já reconheciam isso, 100, 150 anos atrás. As prefeituras insistem em contrariar essa posição por pura disputa de poder. CONTINENTE Qual seria o papel do designer ante as novas configurações urbanas e a vida no coletivo de uma cidade? RAFAEL CARDOSO Dialogar. Ajudar a encontrar soluções coletivas, em vez de tentar impor fórmulas prontas. A era do urbanismo autoritário acabou. (L.V.)
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Tradição
DÍA DE LOS MUERTOS Para festejar os que já se foram Com música, comida e flores, Cidade do México homenageia seus falecidos, costume que remonta a vários povos indígenas mesoamericanos, de pelo menos três mil anos TEXTO Carolina Albuquerque
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vibrantes: laranja, amarelo, rosa, fúcsia. Mulheres, crianças e homens saem com verdadeiros carregamentos dessas flores que, segundo a crença, guiam a alma dos mortos. Nesses mercados regionais, espalhados por todo o país, encontram-se todos os artigos tradicionais da data. As calaveritas de açúcar e também de chocolate. Coloridos picados de papéis com as imagens das catrinas. A maquiagem para a pintura do rosto. Pão dos mortos, de vários tamanhos, os doces tradicionais à base de frutas. A crença popular diz que, na noite do dia 31, chegam as almas das crianças. Na manhã do dia seguinte, o 1º de novembro, a oferenda se presta a
Festividade, considerada pela Unesco Patrimônio da Humandidade, vai de 31 de outubro a 2 de novembro
Ao chegar ao Mercado de Jamaica, ou das Flores, na Cidade do México, deparamo-nos com o caos encontrado nos muitos mercados públicos Brasil adentro. Lixo empilhado, tendas ocupando a calçada, o fluxo intenso de pessoas em todas as direções. Mas estamos às vésperas do Dia dos Mortos, tempo de preparar o altar para lembrar e homenagear um falecido querido. Nessa época, visitar o mercado se torna uma experiência única. Os caminhões descarregam montanhas de cempasúchil, nome dado à flor onipresente em qualquer ornamento durante essa festividade, vivida da noite do dia 31 de outubro ao 2 de novembro. A homenagem aos que partiram tem perfume e cores
agradar os chiquitos. Com flores brancas e delicadas, o altar se põe com doces, calaveritas de chocolate, frutas em miniatura, um punhado de açúcar, o tradicional pão dos mortos, polvilhado com açúcar e canela, a escultura do cachorro da mitologia mexicana (el izcuintle). Tudo no esforço de alegrar o café da manhã deles. Mesmo com muita interferência da cultura norte-americana do Halloween, ainda se sente o “espírito” da tradição pré-hispânica no Día de los Muertos nas ruas da capital. Alguns já começam a abrir a caixinha do seu altar particular e se preparar. As bandeiras recortadas em papel colorido em vários formatos e tamanhos começam a ser vistas nas janelas, portas, vitrines de lojas, em restaurantes, museus, cafés. Ouve-se: “Vai pôr o altar este ano? Para quem?”. Uns, os mais jovens, principalmente, fazem o altar para cantores e artistas famosos já falecidos, como Jonh Lennon, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin e outros. Os mais velhos ou mais dados à tradição, costumam colocar
para seus entes queridos ou amigos falecidos. Os canteiros da cidade também mudam a jardinagem, dando lugar às flores típicas da data. O Zócalo, praça central da capital, ganha esculturas de caveiras mexicanas. As iguarias gastronômicas, como a galinha ao molho de cacau (imperdível) e os tamales (espécie de pamonha, embrulhada em folhas de bananeira) são pratos que não podem faltar às refeições.
PUEBLA
A duas horas de ônibus da Cidade do México, Puebla, com 1,5 milhão de habitantes, ainda mantém um ar de cidade pequena. O poder municipal tem um calendário especial para o Día de los Muertos, que inclui teatro popular (inclusive no cemitério), desfile de calaveras, concurso de fantasia e altar, apresentações de dança e música tradicional, exposições de arte que fazem referência à festividade e releituras do simbolismo presente à comemoração. É para a praça central – encontrada em várias cidades México adentro – que todos convergem. Principalmente nos três principais dias da festividade, o fluxo de pessoas aumenta enormemente. A data guarda o sincretismo religioso, tão integrado também à construção da sociedade brasileira. O ato de cultuar os mortos remonta a vários povos indígenas mesoamericanos de três mil anos, pelo menos. No contato com missionários, as populações locais passaram a agregar elementos da religião católica, criando cerimônias sincréticas. Por isso, nessa data, não causa espanto encontrar uma mesa de oferenda (que carrega na aura mística profana) ao visitar igrejas e catedrais católicas. Imagens de santos e do purgatório são colocadas em muitos altares. A cidade também faz uma mostra de altares, aberta à visitação, que tem lugar no Instituto Municipal de Arte y Cultura de Puebla (IMACP). As oferendas são uma aula sobre a tradição dos pueblos mágicos, aqueles que ainda guardam a tradição indígena, no estado de Puebla. Os ornamentos vão dos mais simples, compostos da simbologia básica, aos de grandes dimensões. Na exposição, são lembrados defuntos anônimos e também cantores, artistas,
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1 e 3 EL PANTEÓN ZÓCALO Atividades culturais do Dia dos Mortos concentramse nas praças e incluem desfiles de fantasias 2 ADORNO As bandeiras coloridas e recortadas enfeitam fachadas, ruas e altares 4 NECRÓPOLE Tumbas recebem ornamentos coloridos, que contrastam com o ambiente acinzentado
escritores e personagens que fazem parte da cultura e história poblana e mexicana. Na noite do dia 2, dedicada aos finados adultos, o Zócalo fica repleto de pessoas devidamente fantasiadas e maquiadas. Crianças, jovens, famílias inteiras entram no espírito do festejo. Muitas atividades culturais acontecem ao mesmo tempo, seja em ambientes fechados ou na rua. Na nossa visita, chamou a atenção um grupo de artistas que se intitula Coletivo Los Tamalistas, com oito anos de estrada. O nome é uma alusão à iguaria chamada tamales, um prato mesoamericano. Os membros do coletivo passam o ano construindo as caveiras gigantes e saem em desfile pela cidade. Por princípio, não recebem nada por isso. A intervenção artística é um alerta, como explica um dos integrantes, José Isaías Bréton, para a necessidade de se abrir espaços democráticos dedicados à arte popular.
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O desfile passa pelo centro histórico e vai até a sede do coletivo, localizada em um bairro pobre. Lá, o palco fica aberto a bandas locais e, ao final, os tamales são distribuídos gratuitamente entre o público presente. O coletivo também tem um viés social, pois agrega crianças e jovens ao esforço de repassar o saber fazer das calaveritas gigantes.
EL PANTEÓN
O cemitério, ou el panteón, em nada carrega o espírito mórbido e de lamentação comum a outras culturas nessa data. É o destino de muitas famílias, que fazem vigília e prestam as homenagens aos seus mortos. Para se ter uma ideia, em alguns dias, durante a festividade, o horário é alargado, ficando o cemitério aberto até a madrugada. Muitos chegam ainda bem cedo e começam o cuidadoso manejo de limpar e adornar. Todos os dias, existe uma programação cultural para animar os
Na data, famílias inteiras reúnem-se em torno de seus antepassados, rezando ou lembrando causos dos falecidos que passam por ali. Logo à entrada, são montadas várias barracas onde se vendem flores e comidas aos visitantes. O fluxo é incessante. As tumbas recebem um ornamento especial durante esse tempo de festa, que foi considerada em 2003, pela Unesco, Patrimônio da Humanidade. Flores, papéis picados, comidas, frutas e todo tipo de adorno são depositados nas tumbas. O colorido se impõe sobre o cinzento comum a qualquer cemitério. São girassóis, crisântemos, margaridas e, principalmente, as flores de cempasúchil.
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Percebem-se, a todo momento, famílias inteiras, da criança ao mais idoso, reunidas em volta dos seus antepassados. Fazem suas rezas com resignação, mas não raro se ouvem gargalhadas. Diz a tradição que esse momento também é dedicado a lembrar os causos e cenas engraçadas do defunto. Não há espaço para lamentação. Um grupo de jovens munidos de uma viola também circula pelo local, disposto a ganhar um trocado para tocar a música preferida do ente querido que se foi. Outros trabalham com a tarefa de colocar a mão na massa. Homens ficam estrategicamente situados a cada esquina do cemitério, com pás e baldes. No ritual do Dia dos Mortos, a terra que encobre o caixão é renovada, trocada por uma fértil, adubada e molhada. Nesse caso, as tumbas com a terra revirada não são violação, mas uma homenagem. Assim, as plantas que são trazidas não morrem, florescem.
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JORNALISMO Resgate de um evento quixotesco
Último porto de Henrique Galvão, da autora pernambucana Ana Maria César, reúne história, literatura e documentação, para remontar o caso do sequestro do navio português Santa Maria TEXTO Priscilla Campos
CON TI NEN TE
História
“A História sempre me fascinou.
Em 1961, acompanhei pelos jornais a saga de rebeldes antissalazaristas e antifranquistas em um navio sequestrado com 600 passageiros a bordo, que mudou seus rumos e veio parar no Nordeste brasileiro. Não fui recebê-los no porto – como muitos o fizeram – porque no dia do desembarque não me encontrava no Recife. O assunto foi constante por algum tempo, mas logo voltamos às nossas atividades e, de certa forma, o esquecemos. Mas o interesse em resgatar o contemporâneo me veio com a maturidade”, reflete a escritora pernambucana Ana Maria César sobre o seu novo livro, Último porto de Henrique Galvão. A publicação, a ser lançada pela Cepe Editora, traça um panorama histórico e, principalmente, jornalístico do sequestro do navio português Santa Maria, comandado pelo poeta
revolucionário Henrique Galvão. Dois aspectos, um relacionado à escolha de fontes documentais e outro à construção narrativa, destacam-se na escrita de Ana Maria: sua base de dados, focada na reconstituição factual provinda de uma pesquisa profunda nos arquivos de imprensa da época, e o fio condutor como elemento surpresa de um evento que já foi contado e documentado antes. O texto da pernambucana não parece repetir relatos de um passado recente, Ana Maria consegue extrair certo suspense de antigas situações e esse é o maior triunfo almejado por quem deseja agregar história, literatura e documentação em uma só obra. Cercado de diferentes depoimentos, boatos, acordos políticos, conspirações e declarações polêmicas, o sequestro da embarcação portuguesa foi um importante ponto de intersecção na convivência histórica moderna entre Brasil e Portugal. Imersos em uma longa
ditadura, que tinha como centro opressor o campesino da região de Vimieiro, Antônio de Oliveira Salazar, Henrique Galvão e Souto Mayor (assistidos em longa distância por Humberto Delgado) iniciariam uma operação quixotesca em seus mínimos detalhes. A ela, os revoltosos chamaram de Dulcineia. Ao tomar o navio, os oposicionistas criavam uma terra portuguesa liberta de todos os males salazaristas que assombraram a população ibérica durante tantos anos. De acordo com Ana Maria, a ideia de sua pesquisa é abordar o acontecimento na ótica das aventuras vividas pela população, pelos políticos locais, diplomatas e, sobretudo, pela cobertura da mídia nacional e internacional que esteve na capital pernambucana. “Eu inverti o ângulo de visão e escrevi a história a partir do Recife, de sua gente, suas autoridades, sua imprensa. Hoje, tenho firme a certeza da importância de nos apropriarmos da
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contemporaneidade, pois os fatos de hoje serão história amanhã. Mas, para que no amanhã exista uma história, o hoje precisa ser registrado, estudado, analisado, se possível, pelos que vivenciaram os fatos, porque é neles que reside o sentimento mais puro e a visão mais arguta”, explica.
FAÇANHAS
Em um dos capítulos de Pensando contra os fatos – jornalismo cotidiano: do senso comum ao senso crítico, a professora de Jornalismo e doutora em Serviço Social, Sylvia Moretzsohn, traz para sua análise o pensamento do pesquisador, e também professor, Antonio A. Serra para discutir jornalismo, verdade e política. Para Moretzosohn, o trabalho jornalístico é uma “profissão de fronteira”, definição que ela defende citando Serra: “Pois o jornalismo se propõe a dizer o que é o político. Propõe-se, assim, a ser, por um lado, uma ‘voz’ a serviço da
O trabalho de reconstituição do episódio do sequestro do navio foi realizado nos arquivos da imprensa do período Verdade, e, por outro, um narrador de nível da realidade que é ambíguo e mutável – sobretudo que envolve as ações, com sua rebeldia à evidência lógica ou factual”. Esse narrador que pode não apresentar atitudes coerentes com o fato apurado e a possibilidade de mutações, característica intrínseca a todo ser humano, é bem-exemplificado na figura do então jornalista do Diario de Pernambuco, Eunício Campelo. No tópico dedicado a Campelo, a escritora disserta sobre a paixão do repórter pelo mar e seus mistérios. Responsável pelo
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setor de noticiário de navegação, o pernambucano decidiu juntar-se aos rebeldes após alguns dias de cobertura. Ana Maria escreve: “Dias depois, o navio fundeado ao largo, conseguiu, num rebocador, chegar a bordo do paquete rebelde para entrevistar o capitão Galvão. Findo o trabalho jornalístico, enquanto os demais repórteres desembarcavam, decidiu permanecer. Trocou a roupa de tropical inglês pelo uniforme revolucionário. Contou sua longa militância democrática e pediu a Galvão para se incorporar ao grupo”. Ali, Campelo deixava para trás a sua posição de “voz” em busca da verdade e entregava-se aos deliciosos impulsos da rebeldia. Sobre o embasamento de pesquisa focado em uma investigação comunicacional, a pernambucana relembra a frase de Michael Dobbins: “O jornalismo é o rascunho da História” e a relaciona com sua trajetória.
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História
“Desde meu primeiro trabalho, descobri que os jornais representavam uma fonte das mais importantes para a pesquisa, haja vista que, neles, os acontecimentos são apanhados com a visão do momento. Por trás dos fatos assim registrados, percebe-se o entorno, sente-se o meio no qual sobrevieram, chega-se à análise de uma época. Sobretudo se dela fizemos parte. Registrar histórias passadas nos anos 1950/1960 me traz a percepção das mudanças que o tempo operou na sociedade e em nós. Quando decido escrever, primeiro leio a literatura existente, caso haja, busco documentos, entrevisto pessoas e complemento com a leitura de jornais. Imprescindível, também, conhecer os lugares onde se desenrolaram os fatos. Então, com as imagens gravadas na memória, mergulho no tempo pretérito e refaço as ações. A forma de abordagem, a divisão dos capítulos, tudo vai surgindo lentamente”, descreve. De fato, a autora parece pensar em todos os detalhes que compõem o seu objeto final. A organização do projeto gráfico de Último porto de Henrique Galvão está alinhada com o aspecto do mecanismo narrativo. Ana Maria conta que, durante o processo de criação, deparou-se com a
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necessidade de desenvolver assuntos que, de certa forma, não se ajustavam ao modelo de texto corrido. Diante disso, optou pelo uso de duas fontes e diagramações textuais diferentes. “Nesses casos, escritores utilizam rodapé ou referências no fim do trabalho. Desgosto de ambos, principalmente, porque minhas informações eram longas. Com esse contraste entre as fontes, de um lado, os fatos seguem cronologicamente; de outro, viajo ao mundo dos personagens, justifico decisões,
complemento informações, para que o leitor vivencie a narrativa com mais cumplicidade. Essa estrutura veio ao encontro do estilo que pretendia imprimir ao relato”, observa.
FONTE ARCAICA
Ainda refletindo sobre o caráter fronteiriço do jornalismo, Sylvia Moretzsohn segue as ideias de Antonio A. Serra a esse respeito: “Para compreender melhor essa tensão, Serra propõe um recuo ao que considera a fonte mais arcaica
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Página anterior 1 CHEGADA
Navio sequestrado atraca no Porto do Recife
Nestas páginas 2 REVOLUCIONÁRIOS
Em primeiro plano, o poeta Henrique Galvão, ladeado à direita pelo companheiro de revolta Souto Maior. No fundo, à dir., o capitão do Santa Maria, comandante Maia
3 CLOSE Em foto publicada pela revista Life, detalhe da proa do navio, com a faixa “Santa Liberdade” 4 MOBILIZAÇÃO A presença do Santa Maria atraiu a população recifense, a imprensa local e intenacional
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do jornalismo: a História, palavra que, na Antiguidade, significava (…) ‘expor as informações’, e que se ligava a outras, como histôr (‘juiz de uma contenda’, ‘testemunha’) ou oída (‘eu sei porque eu vi’), implicando, ao mesmo tempo, a ideia de que o relato dos fatos era indissociável da ação subjetiva (do julgamento) de quem os testemunha (…)”. Serra sublinha esses aspectos ao recordar que as motivações dos historiadores clássicos eram “justamente enfrentar esta teia complexa e ambígua das ações humanas, mas enfrentá-la em nome da Verdade. Daí o equilíbrio que tanto o historiador quanto o jornalista devem perseguir, simbolizado no exemplo de Heródoto, empenhado em escrever sobre a guerra entre gregos e persas, para que não chegue a desvanecer-se com o tempo a memória dos fatos públicos dos homens, menos ainda a obscurecer as grandes e maravilhosas façanhas, tanto dos gregos quanto dos bárbaros”. A ideia de capturar o instante, relacionada por Serra à experiência
do filósofo grego, permeia toda a saga dos jornalistas e profissionais envolvidos na cobertura da chegada do Santa Maria ao Porto do Recife. Em paralelo à conturbada viagem pelos mares e às dúvidas dos rebelados – iriam mesmo sair de águas internacionais e desembarcar alguns passageiros no Brasil? –, profissionais
“Registrar histórias passadas me traz a percepção das mudanças que o tempo operou” Ana Maria César europeus, norte-americanos, latinoamericanos, brasileiros, tentavam, em tempo real, produzir um material que contemplasse tanto o território livre de Portugal (o navio) quanto as decisões diplomáticas, e ainda as opiniões a favor do governo de Salazar. Esse interessante malabarismo noticioso com ares de filosofia
grega permeia toda a publicação assinada pela pernambucana. Questionada sobre o interesse que ainda cerca a travessia do Santa Maria e seus desdobramentos, Ana Maria afirma que o motivo principal está na ausência de livros sobre assunto e espera que o Último porto de Henrique Galvão faça com que esse episódio seja conhecido, sobretudo, pelos que fizeram parte dele. “Direcionar o tema para o Recife transformado, por alguns dias, no ‘centro do mundo’ certamente fará com que os pernambucanos se sintam protagonistas dessa história que também foi nossa. Muitos foram ao porto assistir ao desembarque dos passageiros, ou ao Clube Português para servir-lhes lanche, ou os acolheram em suas casas, ou visitaram os rebeldes no quartel da Polícia Militar, ou participaram da homenagem a eles prestada pelos professores e estudantes da Faculdade de Direito do Recife. Penso que muitos pernambucanos se reconhecerão na multidão que acompanhou a saga do navio Santa Maria.”
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PARIS PATISSERIE, 1889, DE JEAN BÉRAUD/ REPRODUÇÃO
À FRANCESA Um olhar sobre a nossa belle époque gastronômica
Escritor e gastrônomo Frederico Toscano analisa, em pesquisa histórica, as relações de troca entre o Brasil e a França, no período de 1900 e 1930, com ênfase no Recife TEXTO Eduardo Sena
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Quando o assunto é a influência
da gastronomia francesa no Brasil, o enredo é quase um mantra: no comecinho dos anos 1980, os chefs franceses Claude Troisgros e Laurent Suaudeu desembarcaram no Rio de Janeiro para trabalhar em restaurantes luxuosos da cidade. Na impossibilidade de encontrar os insumos típicos da alta gastronomia do seu país, foram às feiras. Nelas, encantaram-se com os ingredientes tupiniquins e, mesmo sob olhares preconceituosos, passaram a incorporá-los à dita haute cuisine. Assim, de forma não deliberada, alavancaram a gastronomia brasileira, cuja influência foi aos poucos pulverizada pelos restaurantes e chefs das principais capitais do país, entre as quais, o Recife. Para o gastrônomo e escritor Frederico Toscano, afiançar essa trajetória seria resumir grosseiramente a questão. E é a essa desconstrução, em meio a bases bem sólidas (é bom sublinhar), que ele se dedica no livro À francesa – a belle époque do comer e beber no Recife (Cepe Editora, 2014). Resultado de copiosa pesquisa de dois anos para a dissertação do mestrado em História, o calhamaço de 338 páginas investiga as trocas culturais entre o Brasil e a França, com foco na sociabilidade em torno da alimentação. O recorte histórico dado pelo autor, dono de uma escrita perscrutante, porém livre do fetiche acadêmico, percorre do começo do ano de 1900 até o final de 1930, época na qual o processo de afrancesamento se intensificou nos hábitos do recifense. O livro de Frederico Toscano utiliza o rito alimentar como fio condutor para traçar paralelos culturais e sociológicos, baseados, inclusive, em fatos históricos locais. Mas, segundo ele, para encarar a obra é preciso primeiramente afastar a ideia de influência e focar nas trocas entre culturas estrangeiras. “É impossível, mesmo nos processos de colonização, que uma cultura não seja influenciada por outra”, adverte Frederico. Essas três décadas (19001930) foram escolhidas porque, nesse período, cidades brasileiras como São Paulo, Belém do Pará e o Recife começavam a se inquietar com a necessidade de parecerem modernas, adotando intervenções urbanas com sotaque europeu.
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
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E, ao contrário de outros grupos imigrantes no país, a discreta presença física de franceses no Brasil não impediu que sua influência fosse sentida nos mais diversos aspectos da sociedade brasileira. “Como a França sempre foi considerada uma hegemonia cultural, inclusive servindo como modelo de ‘belo’ para a corte portuguesa – nossos colonizadores –, esse francesismo foi absorvido com bastante naturalidade. Mais do que cidadãos, a França exportava principalmente cultura, arte, literatura, costumes, línguas e moda, bem como a sua alimentação”, lembra o gastrônomo.
FORA DE CASA
Em torno da comida, propriamente, essas mudanças foram acontecendo ao longo de décadas, mas tendo por trás um suporte conjuntural parisiense. “Para se ter uma ideia, o francês já era, no Recife, nos meados do século 19, a segunda língua mais falada. Dizer que algo era da França ou era francês sugeria uma superioridade”, pontua. Dividido em quatro capítulos, o livro
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1 NA ESQUINA Os cafés eram ponto de encontro dos recifenses, na metade do séc. 20 2 BAIRRO DO RECIFE Frederico Toscano escreve que foi no Cais da Lingueta, em 1858, que se inaugurou o Restaurant Français 3 MINGUS Restaurante do chef Nicola Sultanum é ancorado na haute cuisine francesa
indica essa influência, a partir do momento em que o próprio hábito de sair para comer fora de casa é posto como uma praxe francesa. “Se, hoje, estamos em qualquer lugar do mundo dentro de um restaurante, servidos por garçons, comendo e conversando, devemos isso à França. Sair para comer é um hábito alimentar legitimado pelos franceses como uma atividade de lazer”, afirma Toscano, evidenciando a perspectiva do sociólogo italiano da alimentação Mássimo Montanari, quando diz que “nossa raiz está no outro”. Aliás, é por essa máxima que o mestre em História navega firmemente. Segundo pesquisa de Toscano, essa invenção parisiense podia ser encontrada no Recife em meados do século 19, mais precisamente em 1858, trazida por um cozinheiro francês conhecido como Auguste, que abriu na capital pernambucana o seu Restaurant Français, no Cais da Lingueta (onde hoje está o Bairro do Recife), área da cidade que concentrava hotéis e casas de pasto francesas e inglesas. Mas foi com um
Mesmo sendo um dos países com discreta presença entre migrantes no Brasil, a França exerceu forte influência cultural ritmo mais intenso da europeização, leia-se afrancesamento da cidade, no início do século 20, que essa prática se tornou mais comum. Um momento etnográfico, urbano e curioso registrado no livro é aquele no qual o Recife cresce e passa a criar periferias. A partir de então, as distâncias crescem, obrigando a população que fazia suas refeições em casa a buscar a alimentação fora do ambiente doméstico. “Surgiu a necessidade de apresentar o restaurante como um ambiente lícito, apropriado, não só para a circulação de amabilidade entre políticos e militares, mas também como um local que podia ser frequentado livremente por mulheres e famílias inteiras”, destaca.
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Outra herança luso-francesa foi a culinária de vísceras, que, como o próprio nome faz supor, está baseada no aproveitamento quase total do animal escolhido para o abate, incluindo-se aí os seus órgãos internos. “Sarapatel, dobradinha, galinha à cabidela, pratos defendidos como típicos, são derivações de receitas francesas”, diagnostica. Mas por que o recifense defende o provincianismo dos seus temperos, enquanto se curva aos gritos culinários do mundo? “Ele tende a gostar do que é de fora. Como é um povo que teve várias semicolonizações – holandesa, judaica, francesa e portuguesa –, sua formação tende a estar atenta ao mundo, mas sempre conjugando com sua identidade”, sugere o autor.
CAFÉ
O fato de Pernambuco nunca ter sido uma referência no agronegócio cafeeiro, mas ter suas ruas tomadas por cafeterias, é uma dessas derivações. No livro A história do mundo em seis copos, o escritor estadunidense Tom Standage analisa os avanços da
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humanidade a partir de meia dúzia de bebidas que encheram muitos copos, de forma a definir o fluxo da história mundial. Entre elas, o café. Nem tanto como bebida de herança árabe. Mas como ele conseguiu construir metonimicamente, em Paris, um ambiente democrático para as discussões de filósofos, cientistas e homens de negócios. No Recife do começo do século 20, era assim. Frederico Toscano registra que “o café recifense, o estabelecimento, não se limitaria a comercializar apenas a bebida que lhe emprestava o nome. O Café Chile, inaugurado em agosto de 1915, garantia, em anúncio publicado em jornal, a qualidade
do seu estabelecimento, que contaria com um ‘serviço de copa, bebidas, bolinhos e comidas frias irrepreensíveis’”. Os cafés, afinal de contas, passariam a competir, cada vez mais, com espaços de sociabilidade diversos, como o próprio restaurante. Outro espaço de sociabilidade de DNA francês foram as sorveterias, isso porque, ainda naquele começo de século, o gelo atuaria como uma espécie de índice do grau de civilização.
CENÁRIO ATUAL
O Recife adotou o restaurante que, no princípio, era associado a uma incipiente definição de comida francesa. Algo que os comensais
conseguiam identificar, mas nunca definir. Talvez por esse motivo, até o começo dos anos 2000, esse fazer gastronômico sempre foi executado como um arremedo da verdadeira cozinha bleu. “Até 2002, a culinária francesa era executada majoritariamente nos hotéis, mas sem uma preocupação técnica, 95% dos cozinheiros a executavam de forma malfeita. O que se entendia por molho branco, por exemplo, era uma tragédia”, diagnostica o chef Claudemir Barros, um dos primeiros nomes a movimentar a gastronomia que a capital pernambucana passou a vivenciar a partir do começo deste século – ainda com fôlego nos dias de hoje.
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4-5 CLÁSSICOS O francesismo incorporado aos hábitos culinários do brasileiro incluem o cassoulet e a degustação de queijos e vinhos
com moldes franceses legítimos. “Aqui, ela não se estabelece, se não for boa. Não é como naquele tempo. Os clientes já são melhor informados, conhecem os sabores verdadeiros. Se o molho estiver pesado, ele vai reclamar”, afiança Claudemir Barros, do restaurante Wiella Bistrô. “Aqui, a França sempre foi sinônimo da parte mais educada da gastronomia. A própria ordem de servir: entrada, prato principal e sobremesa. No entanto, o Recife tem sede de mudança, dialoga com o mercado global. E aí a cozinha, mesmo sendo adepta de bases francesas, vai conversar com a de outros lugares do mundo. A estética espanhola foi uma dessas assimilações”, observa Prouvot.
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Foi em 2002, aliás, com a chegada do Restaurante Mingus (no princípio, em Piedade), pelas mãos do restaurateur Nicola Sultanum, o momento em que a cozinha de Carême foi eleita para ancorar o modelo perfeito de comida de restaurante. “Grande parte dos cozinheiros daqui conhecia a estética dessa gastronomia, mas não dominava as técnicas. Se, no Rio de Janeiro e em São Paulo, essa conjuntura já estava consolidada, pelas mãos e Claude Troisgros e Laurent Suaudeau, no Recife, só a partir dessa data começamos a evoluir nesse sentido”, destaca Nicola. Ou seja: se temos todo um cenário conjuntural que favoreceu o Recife a se abrir, gastronomicamente, para
outras culturas, não se pode desprezar a importância que os profissionais de cozinha que lideraram esse boom gastronômico dessa geração tiveram na propagação dela. Afinal, é também nessas circunstâncias que uma tradição é construída. “Se, nesse momento de explosão gastronômica na cidade, os chefs-líderes fossem japoneses, a estética nipônica poderia se sobrepor à mesa dos restaurantes nos dias de hoje”, pondera Hugo Prouvot, chef paulista, discípulo de Laurent Suaudeu que, naquele início dos 2000, veio ao Recife comandar a cozinha do Mingus. De lá para cá, essa cozinha de acento francês mudou. Não se encontra na cidade um restaurante
A França sempre foi sinônimo da parte mais educada da gastronomia, começando pela ordem de servir Os restaurantes Mingus, Prouvot cozinha.bar, Maison do Bonfim, Wiella Bistrô e Chez Brigitte são, atualmente, os endereços em que esse tipo de gastronomia se sobressai de forma mais acentuada na capital pernambucana. “É importante registrar que a herança está, sobretudo, na técnica-base e nos insumos. Eles podem até estar em outro contexto, mas sempre que você vir, e não é raro, aspargos, mexilhões, molho madeira, reduções, carré de cordeiro, purê de batatas, steak tartare, cassoulet, magret, queijos, crostas e cogumelos, é um pouco do que a cozinha francesa nos deixou de herança de forma tão natural, que é como se fosse nosso”, enumera Claudemir.
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BOA SORTE Um conto do primeiro amor
1 ENCONTRO João Pedro Zappa e Deborah Secco interpretam pessoas que se conhecem numa clínica de reabilitação
Melhor filme de júri popular no Festival de Paulínia, longa de Carolina Jabor, baseado em história de Jorge Furtado, narra a inevitabilidade do encontro e do acaso TEXTO Luciana Veras
Claquete Ritos de passagem costumam ser motivos oportunos para obras de arte. Boa sorte, filme que estreia neste mês no Brasil inteiro, com distribuição da Imagem Filmes, traz consigo três jornadas de autodescoberta: é o primeiro longa-metragem ficcional da diretora Carolina Jabor, é uma história de amor que demarca uma travessia para os dois protagonistas, constituindo-se em mais uma investida da atriz Deborah Secco em projetos menos comerciais. Não que Boa sorte seja puro arrojo estético, longe disso; contudo, está um patamar acima da maioria das produções nacionais que investem em roteiros de fórmulas rasas ou repetem, na narrativa, a surrada linguagem televisiva. E tem empatia com o público jovem, a julgar pelo prêmio de melhor filme segundo o júri popular no 6th Paulinia Film Festival, em julho deste ano. Baseado no conto Frontal com Fanta, publicado em 2005 dentro da coletânea Tarja preta, do cineasta, roteirista e escritor gaúcho Jorge Furtado, Boa sorte narra o encontro de João (João Pedro Zappa), que, de
tanto se achar invisível na rotina familiar, começa a tomar ansiolíticos com refrigerantes (daí o título do conto), e Judite (Deborah Secco). Eles se conhecem numa clínica de reabilitação para viciados. Ele, um introspectivo adolescente de 17 anos, internado pelos pais ao descobrirem seu hábito de surrupiar os remédios da mãe e misturar com laranjada; ela, já na casa dos 30, com histórico de dependência de drogas e o vírus HIV como testemunho de seus excessos. Carolina Jabor, codiretora do documentário O mistério do samba (2008), ao lado de Lula Buarque de Hollanda, e uma das sócias da produtora carioca Conspiração Filmes, teve o próprio Jorge e seu filho Pedro Furtado como roteiristas. “Os dois fizeram a adaptação do conto e os diálogos, que são bem pop. Até tive que cortar bastante coisa, pois tanto o Jorge como o Pedro escrevem muito”, diz. Com o script em mãos, e parceiros habituais já engajados, a exemplo do diretor de arte Cláudio do Amaral Peixoto, ela partiu para escolher o elenco, sem imaginar que se depararia com um “vulcão”,
como descreve sua atriz principal, entusiasmada pelo projeto. “Assim que eu li o conto do Jorge, disse que queria comprar os direitos para transformar num filme. Mas ele me respondeu que pensava em filmar”, conta Deborah Secco, que despontou na TV no seriado Confissões de adolescente (1994), exibido pela Rede Cultura, e depois foi alçada ao posto de estrela em novelas da Globo, como Darlene, de Celebridade (2003), e Sol, de América (2005). “Três ou quatro anos depois, estou eu jantando com uma amiga que me diz que a Carol ia filmar o Frontal com Fanta. Como ela é amiga da Carol também, eu fui bem direta: ‘Me dá agora o e-mail dela, porque eu vou escrever dizendo que quero fazer o filme’. Mandei um e-mail pedindo que ela me deixasse participar.” “Força”, “paixão”, “obstinação” são outras palavras utilizadas pela diretora para aludir à entrega de Deborah. “Eu tinha pensado em outras atrizes, claro, e havia gente interessada, mas quando ela veio fazer a leitura, quando fez o teste, não tive dúvidas: ela era a Judite”, recorda Carolina Jabor. A coragem com
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que a atriz lutou para obter o papel foi reconhecida pelos companheiros de elenco. João Pedro Zappa, escolhido após diversos testes, assume que a primeira etapa foi “tranquila”. “Tive o primeiro impulso de fazer por ter achado o papel bem interessante. Mas aí, quando soube que a segunda parte do teste era já com a Deborah, fiquei nervoso. Perdi algumas noites de sono. Quando cheguei lá, ela parecia dona do personagem”, pontua. Antes das filmagens, transcorridas em janeiro e fevereiro de 2013, os dois passaram cinco semanas de imersão com a diretora e com o preparador de elenco, o pernambucano Chico Accioly. A estratégia deu certo: em cena, por causa dos seus intérpretes e de um roteiro de bons diálogos, João e Judite convencem e cativam o espectador. Para isso contribuem, também, os coadjuvantes. Fernanda Montenegro vive a avô de Judite, única ponte entre ela e a
“Queria que o filme não tivesse a pulsão da morte, mas a pulsão de vida que um amor traz” Carolina Jabor vida fora da clínica. Gisele Froes e Felipe Camargo encarnam os pais de João, um tanto relapsos, um tanto alienados, mas, ainda assim, peremptórios na ideia de internar o filho. E Cássia Kis Magro empresta credibilidade ao papel da psiquiatra da clínica.
PRIMEIRO AMOR
Não há, em Boa sorte, o clima soturno ou mesmo melodramático que poderia ser associado a um conto de primeiro amor que, de antemão, não prenuncia um final feliz. “A preocupação da
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Deborah e do João em não reduzir a complexidade dos personagens à tristeza era um pouco a minha também. Queria que o filme não tivesse a pulsão da morte, mas a pulsão de vida que um amor traz”, expõe Carolina Jabor. Boa sorte evita lições de moral ou apologias de qualquer ordem, investindo nos laços afetivos estabelecidos entre seus protagonistas. “Estar junto e amar alguém portador do HIV não é o problema. Até porque o amor não tem hora nem lugar para acontecer. O risco é que tem gente que ainda não sabe como pode ser contaminado. No Brasil, é muito alta a taxa de contaminação de jovens entre 15 e 25 anos, por exemplo. Acho que o filme pode levar o público a refletir sobre como aproveitar a vida com integridade e responsabilidade”, comenta Deborah Secco. A atriz nem tentava camuflar sua empolgação. Judite, por tudo que ela
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PEDRO SOTERO/DIVULGAÇÃO
Entrevista
CAROLINA JABOR “DESDE O PRINCÍPIO, TRATAVA-SE DE UMA HISTÓRIA DE AMOR QUE SE PASSAVA NA ADVERSIDADE”
Claquete 2
revelou à imprensa durante o festival em Paulínia, é o novo “divisor de águas” de sua carreira. “Quero ser desafiada como atriz. Não me lembro da minha vida sem atuar. Atuo profissionalmente desde os oito anos de idade e consegui conduzir minha carreira de forma autoral. Tenho sorte de ser bem-sucedida e poder garantir o futuro da minha família, mas cheguei num momento em que preciso de desafios, preciso ousar. Para mergulhar em personagens densos como a Judite, se tiver que ir atrás de diretores, como fui atrás da Carol, eu vou. Já posso me dar o luxo de tomar decisões mais arriscadas”, situa a atriz, que aparece nos créditos como coprodutora. É bom ressaltar que sua bagagem no cinema conta com o sucesso de Bruna Surfistinha, de Marcus Baldini, uma das 20 maiores bilheterias no Brasil em 2011, com cerca de 2,1 milhões de espectadores. Sua experiência nesse filme, aliás, foi aproveitada no set de Boa sorte. Conta Carolina Jabor que, na hora de rodar as cenas de sexo entre João e Judite, prevaleceu a expertise da atriz. “O filme traz a educação sentimental de um garoto que tem a primeira noite de sexo numa lavanderia, ou seja, nada de glamour. Deborah tinha vindo de Bruna Surfistinha e fomos todos seguindo as orientações dela. É tudo uma questão
2 COADJUVANTES Diretora destaca a excelência do elenco de apoio, que conta com Fernanda Montenegro
de técnica mesmo. A experiência dela foi valiosa”, comenta a cineasta. Outro intercâmbio saudado por ela como essencial para o que se vê na tela se deu com a presença da fotógrafa uruguaia Barbara Alvarez, que já havia rodado, no Brasil, O gorila, de José Eduardo Belmonte, e Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. “Seria outro filme sem ela”, diz Jabor. Boa sorte pode ser encarado, também, como um ritual de transposição de uma matriz literária para o cinema. Há diferenças entre ele e Frontal com Fanta, mas nada que anule o ponto de partida do conto de Jorge Furtado ou que diminua o filme alinhavado por Carolina Jabor. “Até porque o filme não é apenas o roteiro. É o tom do elenco, da luz, a movimentação da câmera, a ambientação… É uma construção que passa por várias camadas estéticas”, destaca a diretora. Ao se concretizar o desejo dela e da equipe, o de atrair às salas de exibição a juventude do país, quem sabe surjam na plateia não apenas novos espectadores, mas também leitores.
Em Paulínia (SP), onde Boa sorte foi exibido pela primeira vez, Carolina Jabor contou à imprensa que as filmagens do seu primeiro longa ficcional ocorreram no estágio final de sua segunda gravidez. “Ou fazia naquele momento ou não fazia mais. Não quis adiar nada e fui em frente”, disse a filha do cineasta Arnaldo Jabor e mulher do diretor pernambucano Guel Arraes. Eis outras informações que ela partilhou com a Continente. CONTINENTE Como se deu a adaptação do conto de Jorge Furtado ao filme? CAROLINA JABOR Tive a sorte de ter o próprio Jorge na adaptação do conto. Quando li pela primeira vez, fiquei encantada pela história. Aí liguei para ele e disse: “Vou querer filmar o Frontal com Fanta”. Passou-se o tempo e então Jorge chega para mim e diz: “Andei pensando em filmar o Frontal”. Resolvi que quem iria filmar era eu! Foi um prazer trabalhar com um dos maiores roteiristas do Brasil. Aliás, eram ele e Pedro, seu filho, que trouxe muita coisa da juventude. Trabalhávamos juntos via Skype, eles iam me mandando, eu ia lendo. Tudo funcionou para que o resultado fosse um drama do qual surge, com força, uma história de amor. CONTINENTE É uma história de amor com sexo, drogas, HIV e rock’n’roll. Qual o maior desafio ao equacionar isso? CAROLINA JABOR O assunto do HIV foi algo que eu sempre conversei com Jorge, com o Guel, com muitos amigos. Estávamos tratando de um tema contemporâneo, e era preciso contextualizá-lo. Mas não me interessava que ele se sobrepusesse à história. Desde o princípio, tratava-se
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INDICAÇÕES MARIO MIRANDA FILHO/ DIVULGAÇÃO
FICÇÃO CIENTÍFICA
SOB A PELE
Dirigido por Jonathan Glazer Com Scarlett Johansson, Krystof Hadek, Paul Brannigan Paris Filmes
de uma história de amor que se passava na adversidade dos personagens. De um lado, temos a personagem com HIV, também usuária de drogas, do outro, um jovem que usa remédios, que são drogas lícitas, de uma forma descabida, em grandes quantidades. No filme, aquela corajosa história de amor – um encontro improvável em um ambiente inóspito – se sobrepôs a isso. CONTINENTE Como chegou ao tom da fotografia do filme? CAROLINA JABOR Havia uma oportunidade de trabalhar com uma fotógrafa que eu admirava muito, Barbara Alvarez, que havia feito dois filmes que eu também admirava, A mulher sem cabeça, da Lucrecia Martel, e Whisky, de Pablo Stoll e Juan Pablo Rebella. Essas obras traziam uma fotografia ousada, diferente. Vendo essa possibilidade, conversamos muito sobre o roteiro. Teria feito outro filme, se não tivesse a Bárbara comigo. Com ela, o roteiro ganhou cenas, perdeu outras. Ela trouxe seu conceito de contar uma história, da forma como se conta essa história,
DRAMA
O LOBO ATRÁS DA PORTA
Dirigido por Fernando Coimbra Com Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabíula Nascimento Imagem Filmes
Adaptação livre de romance homônimo, o longa narra a chegada de um alien à terra, que, com a forma adequada, tenta mimetizar o comportamento humano e busca presas por estradas e locais da Escócia. Um toque documental na narrativa acaba tornando o ar de ficção científica bastante terreno. O ritmo lento e a fotografia sombria moldam Sob a pele, cheio de insights sobre solidão e a condição humana, firmado com a boa atuação de Scarlett Johansson.
Num Rio de Janeiro suburbano, Rosa (Leandra Leal) e Bernardo (Milhem Cortaz) se conhecem numa plataforma de metrô. O encontro dos dois aos poucos se constrói de forma mais complexa. Em ambientes cotidianos, com enquadramentos que preferem rostos a detalhes dos locais, uma relação de posse e vingança se desenrola, remetendo à história real da Fera da Penha, crime lendário que marcou a década de 1960.
DOCUMENTÁRIO
DRAMA
Dirigido por Sini Anderson Com Kathleen Hanna, Carrie Brownstein, Kim Gordon Independente
Dirigido por Michael Wahrmann Com André Gatti, Carlos Reichenbach, Eduardo Valente Vitrine Filmes
além de um outro tipo de iluminação, de fotografia. Também tivemos uma locação especial, que foi o hospital da Beneficência Portuguesa, no Rio de Janeiro, que tinha aquele ambiente meio sujo, em decadência. CONTINENTE O elenco de coadjuvantes se destaca também. Como foi o processo de casting? CAROLINA JABOR Tive muita sorte. Imagina, poder contar com a Fernandona no seu primeiro longa? Fiz o convite e ela veio. Com a Cássia Kis Magro, foi um tiro no escuro. Pensei: “Vou chamar, vai que acontece”. E ela topou. Trouxe uma seriedade e uma dedicação de principiante, mesmo com um papel pequeno. O mesmo com Gisele Fróes e Felipe Camargo, que fazem os pais do João. Mariana Lima e Enrique Diaz são muito amigos meus, de casa, e dois atores fantásticos. Não dava para não tê-los no filme. Juro que tinha horas no set em que eu olhava ao redor e não acreditava que tinha aquele elenco maravilhoso comigo. LUCIANA VERAS
THE PUNK SINGER
Kathleen Hanna, protagonista deste documentário, é mais conhecida pela voz que acompanha as bandas Bikini Kill e Le Tigre. Foi no início dos anos 1990, nos Estados Unidos, que várias bandas feministas começaram a contestar quem dizia que mulheres não tocavam instrumentos tão bem quanto os homens. O filme coleta depoimentos das meninas que participaram do movimento, produzindo, na época, festivais e fanzines que pretendiam provocar o empoderamento feminino.
AVANTI POPOLO
Películas de super-8 com imagens feitas durante a ditadura militar são encontradas por André. Elas foram filmadas por seu irmão desaparecido, e ele decide levá-las a seu pai. O longa mostra a espera de um homem que vive num tempo pessoal desde que a história lhe trouxe uma tragédia familiar. Com planos organizados em uma montagem precisa, o filme tem humor e tom peculiares – podendo ser até hermético, valendo pela experimentação e pela trama.
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PEDRO OSWALDO CRUZ/DIVULGAÇÃO
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IBERÊ CAMARGO Um gigante e sua solidão
Pintor gaúcho, que completaria 100 anos este mês, não aderiu aos pós-modernos e conseguiu estabelecer, em sua figuração expressionista, um idioma da autenticidade TEXTO Weydson Barros Leal
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Neste mês de novembro,
comemora-se o centenário de nascimento de Iberê Camargo, um dos mais importantes artistas brasileiros do século 20. O pintor, desenhista e gravador gaúcho nasceu em 18 de novembro de 1914, em Restiga Seca, interior do Rio Grande do Sul. Entre os modernos e pós-modernos nascidos ou radicados no Brasil, Iberê ocupa a mesma altura de um Portinari, de um Goeldi, de um Pancetti, de um Guignard, nomes que, como ele, demarcam as elevações de nosso universo pictórico. Sob a luz de uma análise que transcenda a mera classificação de maior pintor expressionista brasileiro, a marca da quase totalidade da produção pictórica de Iberê Camargo será a de uma obra em que elementos da memória autobiográfica e afetiva estão quase invariavelmente presentes. Desde as paisagens impressionistas e/ou expressionistas dos anos 1940, no interior do Rio Grande do Sul, passando pelas Séries dos carretéis (1950-1970) – que se dissolvem numa abstração ainda expressionista –, alcançando, a partir de 1980, a grande fase das figuras solitárias com ou sem suas bicicletas, todos os símbolos e cenas iberianas traduzem uma realidade que será a ação do pintor sob a ação da memória e de suas inquietações. Por isso, seus objetos e personagens serão sempre a procura de uma linguagem própria, do reencontro com elementos da infância, dos reflexos de seus aprendizados, das influências dos seus mestres, dos retratos de sua angústia e, finalmente, de sua solidão. Pode-se dividir a obra de Iberê em três fases pontuais, ainda que de forma muito ampla: as paisagens e retratos do começo; os carretéis e seus desdobramentos abstracionistas; e, finalmente, os ciclistas e as figuras solitárias (séries Ciclista e Tudo te é falso e inútil (1992-1994), além de pinturas como As idiotas (1991) e Crepúsculo na boca do monte (1991). No duplo enfoque da memória afetiva (símbolos da infância) e de uma significação que encontre similitudes com outros grandes mestres modernos brasileiros, poderíamos dizer que, em determinado momento, os carretéis
de Iberê e sua simbologia tocam um mesmo passado afetivo – mesma abstração – das bandeirinhas de Volpi, que também são memória, construção pictórica e “abstração”. Por outro lado, dentro de uma análise dos meios técnicos que marcam sua trajetória – para não usar o termo evolução –, podemos observar que a fatura adensada de sua paleta inicial, com quantidades de tinta que também são expressão e forma de suas paisagens, carretéis e abstrações, remetendo-nos à riqueza de luzes e cores dos nenúfares e catedrais de Monet, vai aos poucos se diluindo, refinando-se, quase se aquarelando, para alcançar a expressão mais pura de personagens dramaticamente solitários em ambientes misteriosamente vazios, onde a linha do horizonte ou a delimitação do espaço sucumbem sob a força absoluta daquelas figuras.
EXPRESSIONISMO
Um dos grandes méritos de Iberê no contexto da arte brasileira é a sua não adesão, ao longo de sua formação, aos movimentos pós-modernos e seus desdobramentos concretos, neoconcretos, construtivistas e suas filiações. Isso lhe permitiu, já na maturidade (década de 1980), estar em sintonia não apenas com a pintura das novas gerações, mas ser uma referência para jovens artistas que buscavam, em meio às ondas de cada momento, reconhecer em sua figuração expressionista um idioma da autenticidade. Desde o seu começo como pintor, independentemente de uma defasagem temporal com os movimentos expressionistas europeus e americano, sua pincelada e seu olhar já eram assimétricos, estando à frente, se comparados à pintura realizada no Brasil. Mesmo assim, entre os mestres com quem aprendeu e de quem recebeu alguma influência, talvez Oswaldo Goeldi, Guignard e De Chirico – de quem foi aluno em Roma – tenham formado a tríade de seu arcabouço crítico e estético. Influências indiretas podem ser anotadas, principalmente de suas observações em museus europeus e nas aulas com André Lhote, em sua
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OLIVIER ZIMMERMANN/DIVULGAÇÃO
Visuais
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estada em Paris, ou ainda de pintores do pós-guerra, como Jean Dubuffet e Jean Fautrier. Embora o brasileiro Iberê não tivesse vivenciado a guerra, viveu a sua angústia, a distância. Da pintura americana, principalmente do que começava a ser exposto em grandes centros como Nova York, relações pontuais podem ser observadas entre Iberê, Pollock e De Kooning. Iberê sempre foi um bom leitor – chegou a escrever contos e memórias –, e entre seus autores preferidos figuravam nomes como Dostoiévski, Camus, e clássicos da filosofia como Platão, Nietzsche, Heidegger e, principalmente, Kierkegaard, por quem tinha especial admiração. Gostava de Kafka.
Seus ciclistas e carretéis procuram sempre uma linguagem própria, do reencontro com elementos da infância Quem sabe esse elenco de grandes criadores de universos incomuns tenham alimentado e encontrado em sua pintura o campo ideal para suas reverberações. Ou, talvez, o sentimento trágico de suas figuras, quase sempre num extremo de abandono e depressão, mesmo quando num banco de praça ou num passeio
de bicicleta reflita, em muito, suas leituras filosóficas, cuja investigação do sentido trágico da existência incidia diretamente em seu gesto pictórico. Mesmo tendo estudado formalmente com alguns dos melhores artistasprofessores do seu tempo, e frequentado, mesmo por um breve tempo, as melhores escolas de arte, sua transgressão era manter-se longe de modismos e tendências, o que o deixava livre para a busca da própria linguagem, pensamento e filosofia. Um exemplo de sua afinidade com a literatura e com grandes escritores pode ser observado em 1971: homenageado com sala especial na XI Bienal de São Paulo, seu catálogo foi escrito pelo poeta Joaquim Cardozo.
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FABIO DEL RE/DIVULGAÇÃO
Página anterior 1 CARRETÉIS
A série é característica de uma das fases da obra do artista, de 1950 a 1970
Nestas páginas 2 PAINEL
Obra de 49 metros quadrados foi oferecida pelo Brasil à Organização Mundial da Saúde, em Genebra, em 1966
3 CICLISTAS Figuras recorrentes em seus trabalhos, esses personagens fantasmagóricos trazem consigo um tom melancólico e angustiante
Dos artistas brasileiros que conheceu ou com quem conviveu, como Portinari, Lasar Segall, Lívio Abramo, Guignard e Oswaldo Goeldi, desses dois últimos Iberê recebeu as principais influências em seu período de formação. Ambos, aliás, foram seus professores. Talvez por isso, vejo na ambiência escura dos carretéis dos anos 1960 relações com a gravura noturna de Goeldi: o próprio Iberê via nos escuros goeldianos “uma visão trágica e silenciosa dos homens e das coisas” – visão que, nas décadas seguintes, passaria a ser traduzida em suas pinturas. Não obstante, a figura humana será, a despeito de suas poucas e belas paisagens e de suas séries de carretéis e pinturas abstratas, o centro de sua obra pictórica – e aqui não relaciono a grande obra em gravura de Iberê, para a qual outros elementos também se prestavam como tema.
MOVIMENTO
Em sua pintura, desde os primeiros quadros (onde a paisagem é o tema), a solidão (ou o peso de uma ausência) é sempre o leitmotiv por trás das naturezasmortas, nas ruas vazias de Santa Teresa
Desde o início, sua pincelada e seu olhar já eram assimétricos, estando à frente, se comparados à pintura realizada no Brasil – bairro do Rio onde morou –, como imagem de um silêncio sempre em tensão, primeiro e último registro de uma angústia latente – pintura como catarse, como revelação do que não se quer ou não se pode sentir. Em contraponto, a ideia ou sensação de movimento está presente em quase toda pintura de Iberê. Desde suas primeiras paisagens, mesmo diante do vazio das ruas, será o movimento da luz, a impressão do que fica ou passa sob esse ritmo, que predominará. Seus carretéis e bicicletas, signos e símbolos do movimento e das brincadeiras da infância, assumem esse duplo valor: conduzir o homem até o menino, religar a angústia do adulto à angústia da infância ou de sua
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perda. Este será o seu principal item de investigação – principalmente em seus ciclistas fantasmáticos, que parecem buscar ou ultrapassar a atáxica demência dos idiotas sentados num banco de parque, onde a luz outra vez é o que faz desses quadros retratos de uma tensão na iminência do acontecimento. Tudo, na mais imóvel das figuras, será consequência da explosão dos núcleos de seus carretéis, do instante primordial do reconhecimento da dolorosa condição humana, de um big bang em direção ao fim. Diante de uma pintura de Iberê, o sentido latente do silêncio, do isolamento e, finalmente, da solidão, é permanente. Mas, ali, o que há é o silêncio materializado em figuras e espaços, construção plástica de uma solitude que, por fim, ao ser também pensamento e reflexão sobre o mundo ao redor, nos faz companhia e nos convoca a decifrar o seu ascetismo como espelho ou janela de uma filosofia humanística. Em sua pintura da matéria, ou notadamente em suas pinturas de abstração expressionista, essa janela se abre
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LUIZ EDUARDO ROBINSON ACHUTTI/DIVULGAÇÃO
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sobre inquietações decorrentes também de sua busca por companhia, por figuras e espaços que são descobertos ora pela supressão do objeto, ora pela adição da matéria, desvelados pela ausência de qualquer formulação lírica, em que a dramaticidade do gesto e dos vazios, preenchidos amplamente pelo movimento expressivo da luz também é a passagem e o envelhecimento do tempo. No campo de sua pintura dita abstrata – que em Iberê é consequência e desenvolvimento da dissolução dos seus carretéis – um paralelo, mesmo distante, poderia ser encontrado na pintura de Jorge Guinle, ainda que nos quadros de Guinle a angústia ou a alegria fossem traduzidas em explosões de cores, enquanto Iberê aprofunda a sua antítese numa fatura tão densa de camadas de tinta, que as cores parecem imersas ou em processo de submersão na escuridão de um espaço cósmico. Mesmo assim, habitando aquele outro polo da luz em sua abstração expressionista, Jorge Guinle ainda seria o único pintor brasileiro a trabalhar a superfície da pintura com a mesma violência, mesma
Diante de uma pintura de Iberê, o sentido latente do silêncio, do isolamento e, finalmente, da solidão, é permanente carga emocional traduzida pelas massas espessas que Iberê Camargo usava naquela fase. Ainda: a partir da década de 1970, com seus carretéis (evolução de naturezas-mortas dos carretéis com laranjas), Iberê inicia o caminho para uma pintura abstrata muito particular – com filiações em Pollock, principalmente nas pinturas da série Núcleo em expansão – mesmo que sua abstração, como a de Pollock, fosse uma figuração da matéria, uma abstração como retratos da luz e dos contornos da forma em movimento, como nas fotografias em que mal percebemos imagens dissolvidas de carros em velocidade. Por isso também Iberê foi um mestre de um expressionismo abstrato que se esgotou em si mesmo –
uma vez que ele voltou à figuração – e de um expressionismo figurativo no qual foi o mais puro Iberê: a sua assinatura plástica, reconhecível e inconfundível.
MELANCOLIA
A solidão, tema do último quadro, está presente em praticamente todas as pinturas dos anos 1990 – talvez, até, já nas primeiras paisagens e ruas vazias dos anos 1940 e 1950 – assim como em todos os estudos e desenhos dos últimos anos de vida. Em pinturas como A idiota, assim como nos cinco quadros da série Tudo te é falso e inútil, é clara a amplidão da melancolia, a espacialidade do pessimismo que induz à solidão, a mesma solidão profunda e definitiva de No vento e na terra I e II (1991), em que o abandono e a tristeza atravessam o dia e a noite, imóveis. Aprofundando uma investigação mais psicológica do que propriamente pictórica, mesmo nos quadros nos quais há mais de uma figura – como no último Solidão, de 1994 – é o vazio que está presente entre elas, o que justifica imaginarmos que, até por se perceberem existir, essas figuras estão ainda mais sós.
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MATHIAS CRAMER/DIVULGAÇÃO
4 SOLIDÃO Neste que é seu último quadro, apesar de haver mais de uma figura, há um grande vazio entre elas, deixando-as ainda mais sós 5 IBERÊ CAMARGO O artista deixou um espólio de 7.500 obras
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Biografia
A TRAJETÓRIA DE UM GRANDE PINTOR
Não se pode explicar totalmente o conjunto de uma obra ou alcançar um sistema absoluto para decifração de fontes e justificações racionais de uma estética, uma vez que sua construção, de ordem muitas vezes subjetiva, é formada também – além de escolas e influências – pelas experiências pessoais, emocionais, intuitivas, elementos formadores de algo ainda mais subjetivo: o gênio íntimo, individual e imperscrutável de cada artista. Em nosso tempo, nesta segunda década do século 21, em que as cidades são a angústia paralisada das multidões e dos engarrafamentos, os ciclistas de Iberê, expostos e abertos ao mundo, nus como figuras plasmáticas ou fantasmagóricas, são o testamento deixado e prenunciado por uma angústia antiga que, de alguma forma, prediz o que sentimos. Os ciclistas de Iberê, desde então, são a nostalgia de um passado que reencontra o nosso presente – este futuro de hoje – e suas bicicletas são símbolos de uma harmonia ainda por vir.
Iberê Camargo (Restinga Seca, 1914 – Porto Alegre, 1994) iniciou seus primeiros estudos de pintura na primeira adolescência, antes de se tornar desenhista técnico, atividade que lhe rendeu alguns empregos. Em 1936, já morando em Porto Alegre, estudou no Instituto de Belas Artes e teve seu primeiro ateliê profissional. Logo receberia do governo do estado uma bolsa que lhe permitiu dedicar-se à pintura em tempo integral. Em 1942, recebeu uma nova bolsa, dessa vez para estudos no Rio de Janeiro, onde passou a conviver com os melhores nomes da arte nacional. No Rio, ainda trabalhou como desenhista de arquitetura e teve uma breve passagem pela Escola Nacional de Belas Artes, que abandonou depois de um professor “corrigir” um quadro seu. Em 1947, recebeu no Salão Nacional de Belas Artes o Prêmio de Viagem à Europa, o que iria mudar sua pintura definitivamente. No ano seguinte, Iberê e sua mulher, Maria Coussirat, mudamse para Roma, onde ele estudou pintura com Giorgio de Chirico e gravura. Durante os dois anos e meio em que viveu entre Roma e Paris, Iberê visitou Portugal, Inglaterra, Holanda e Espanha. Em 1949, durante sua estada parisiense, frequentou a escola de André Lhote, e tornou-se visitante do Louvre, onde fazia cópias de Tiziano, Vermeer, Tintoretto e El Greco. De volta ao Brasil, em 1950, ainda pintou algumas paisagens, montou um novo ateliê no Rio, e deu aulas de pintura e desenho. Nos anos seguintes, deu aulas de gravura, tornando-se um professor atuante em defesa da arte, principalmente nas demandas de artistas nacionais sobre os problemas de importação de tintas de qualidade. Nas décadas de 1950 e 60, já é um pintor respeitado dentro e fora do Brasil. Participa de exposições e bienais internacionais, júris de grandes Salões, e, em 1970, tem obras adquiridas pelo Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA. No fim da década de 1950, devido a uma hérnia de disco, foi impedido de pintar ao ar livre, e o que seria um problema transformou a sua pintura. Começou a compor cenários com objetos e a pintar exclusivamente no ateliê, onde desenvolve as primeiras naturezas-mortas e as séries dos carretéis. Em 1981, sua pintura retoma a figuração. No ano seguinte, Iberê e Maria voltam a morar em Porto Alegre. Nesse período, realizará grandes telas que marcarão sua obra, com exposições no Brasil e no exterior. Em 1986, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de Santa Maria/RS. Em 1988, lança o livro de contos No andar do tempo, com textos recentes e traduções de seus escritos em italiano. Nesse mesmo ano, trabalha na série Ciclistas, também marcante em sua obra. Conclui a tela Solidão em 31 de julho de 1994. Nesse mesmo ano, após longo período de tratamento contra um câncer de pulmão, morre em Porto Alegre no dia 8 de agosto. No leito de morte, havia realizado os últimos trabalhos e convocado jornalistas para uma última entrevista. Seu espólio conta com 7.500 obras. Em 1995 é criada a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, projeto do arquiteto português Álvaro Siza, para a preservação e divulgação de seu acervo, contando com 4 mil obras. O prédio da Fundação Iberê Camargo é um dos espaços mais bem-desenhados para exposição artística no Brasil. Com suas linhas curvas e transições de seus pisos em rampas o projeto da fundação, como espaço museológico de grandes exposições, é superior a espaços mais famosos de Oscar Niemayer, como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, no Rio de Janeiro. (W.B.L.)
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6 FUNDAÇÃO Edifício foi projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza
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EXPOSIÇÃO O “efeito” Iberê Camargo
Para marcar o centenário do pintor, Fundação em Porto Alegre, realiza mostra que propõe a relação de suas obras com trabalhos de artistas contemporâneos TEXTO Mariana Oliveira
As principais problemáticas da obra
do pintor gaúcho e suas repercussões sobre os artistas contemporâneos são o vetor da mostra Iberê Camargo: século 21, que, a partir do dia 18 de novembro, ocupa a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, marcando as comemorações do seu centenário. Ao deixar de lado o modelo tradicional de comemoração de efemérides – quando são montadas grandes mostras cronológicas –, os curadores Agnaldo Farias, Jacques Leenhardt e Icleia Borsa Cattani pretendem apresentar a potência poética do artista, estabelecendo diálogos, relações e tensões entre sua produção e a de nomes da cena atual, que apostam numa gama de linguagens e suportes. A mostra conta com cerca de 70 obras de Iberê Camargo e de 19 artistas contemporâneos, entre eles Angelo
Venosa, Arthur Lecher, Carmela Gross, Cia. de Foto, Eduardo Frota, Fabio Miguez, Jarbas Lopes, José Rufino, Regina Silveira, Rodrigo Andrade. A seleção traz nomes de gerações diferentes, alguns conhecedores da obra de Iberê, outros sem muita aproximação. Segundo Agnaldo Farias, houve a concordância entre toda a equipe de que era importante sublinhar a efeméride apontando as ressonâncias diretas e indiretas da obra de Iberê, passando por contemporâneos do artista, seus discípulos, gente que o assistiu em sua produção cotidiana, sem esquecer de destacar produções mais recentes que carregam, de algum modo, poéticas afinadas com as suas. O pernambucano Gil Vicente, por exemplo, tem sua obra Homenagem a Osman Lins (um desenho em nanquim, quase todo recoberto de preto, no qual se
estende uma pessoa de quem só vemos os pés e a cabeça) posta em diálogo com retratos enlutados de Iberê Camargo, incluindo um autorretrato. Para os curadores, ambos vêm “numa conversa a distância, mergulhando fundo na construção de retratos psicológicos”. “Não conheci Iberê pessoalmente, mas acompanhei como ele se tornou referência para os novos artistas da geração de 1980, no Brasil. A pintura mais madura dele tem um incômodo visceral no tema e uma desesperada fatura, mesmo nos trabalhos onde a figura está ausente”, destaca Gil. Para compor a narrativa, os curadores buscaram pontos em comum, como a visão sombria do mundo e o drama persistente da solidão do indivíduo. “O objetivo central da mostra foi estabelecer um coro, colocar lado a lado um grupo consistente de vozes até então distantes umas das outras, sem se importar muito se as relações se dão ou não sob o modo de convergência. A tensão e a surpresa provenientes da proximidade e do cruzamento puro e simples interessam por si só, já que podem desencadear uma pletora de sentidos”, pontua o curador Agnaldo Farias. Todos os espaços do edifício, projetado por Álvaro Siza para abrigar a Fundação, foram tratados como coprotagonistas da mostra – o prédio, em si, segundo os curadores, foi a primeira obra selecionada. A fachada, as rampas, o átrio e os quatro pisos serão completamente tomados pela mostra, que traz, além das obras, documentários sobre o artista, projeção de imagens, a produção literária de Iberê e trechos de alguns clássicos da filmografia expressionista que faziam parte do seu acervo. Ainda durante as comemorações, será lançado o livro 100 anos de Iberê Camargo, pela Cosac Naify, contendo todos os textos curatoriais das exposições realizadas pela Fundação Iberê Camargo desde sua abertura, em 2008. A instituição também está promovendo a catalogação completa das obras do artista, coordenada pela professora Mônica Zielinsky.
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Fotografia: Light Painting, Tiago Lubambo.
Em novembro novo Atelier de Impress達o
www.atelierdeimpressao.com.br Recife Rua da Moeda, 140, Bairro do Recife 81 3424.1310
S達o Paulo Al. Lorena, 1257, Casa 05, Jd Paulista 11 4432.1253 C O N T I N E N T E N OV E M B R O 2 0 1 4 | 6 3
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
SEM BÉBÉ
Abelardo Germano da Hora, Usina Tiúma, São Lourenço da Mata, 31/jul. / 1924–Recife, 23/set./2014. “Porque sem Bébé”, la-ra-lara-ra-ra, “ninguém pode brincar”, dizia a música do clube carnavalesco Bébé Chorão: vou perguntar a Hugo Martins se não existe gravação. O “lara-la-ra” era a música que entrava, ouço na memória o som do violão, o que indica instrumentos de pau e corda, logo bloco, frevo-de-bloco. A gente cantava nas noites tranquilas da Praça Maciel Pinheiro. Quem puxava a cantiga era Ionaldo: “Vamos cair na folia/divertir no carnaval”. Em tempo: você, Bébé, se foi ontem; Ionaldo, Wellington, Ivan já tinham ido; Samico se foi há pouco; Marius não sei por onde anda, espero que esteja vivo no Rio de Janeiro: me deem notícias de Marius, gente! a gente está tão sozinho! parece que daquela primeira turma mesmo do implante, do primeiro aluguel na Rua da Soledade, só tem eu e tu, Wilton. E Antônio Heráclito? Tem Reynaldo Fonseca mas era mais um apoio moral, já pintor consumado
naquela época, não ficava bestando feito nós na Praça Maciel Pinheiro, no bilhar de Seu Arnaldo, nem sentado, a bunda no meio-fio no Pátio da Santa Cruz. Na Maciel Pinheiro inda tinha banco, como tem, mas quem se arriscaria hoje de passar a noite sentado ali? Mozart Siqueira recitava Annabel Lee em inglês e ia traduzindo em português para a gente entender, usando uma tradução de Machado de Assis. Eu tinha arranjado um livrão de Diego Rivera em casa da mãe de Marinho, Rua Marquês do Herval, transversal à Concórdia, senhora que costurava para esposas de pilotos americanos, e deixaram esse livro lá. O Recife era cheio de americanos, acho que base naval americana desde a Segunda Guerra. O livro, grosso, quase três dedos de grossura, capa dura e grossa revestida de tecido azul claro, escrito em inglês, tinha um buraco no meio da capa que o próprio Marinho me confessou ter feito para servir de castiçal, onde enfiava a vela, nas frequentes faltas de luz. Era um pessoal do Rio Grande do Norte. Gosto de dar esses detalhes
não sei bem pra que, talvez identificar as pessoas. Marinho era parente de um meu colega de internato do Colégio Marista, João Batista, que ainda se escrevia “Baptista”, ótima pessoa, também do Rio Grande do Norte. Aliás, muitos anos depois, nosso amigo comum ex-colega do Marista João Olympio da Porciúncula, que seguiu carreira militar, servindo em Natal, foi visitado por João Batista, me contou, cego, vendendo enciclopédia, a última notícia que tive dessas pessoas. João Olympio faleceu no Rio de Janeiro há alguns anos. O leitor se perguntará com razão se era hora de se gastar espaço com tantas minudências quando o foco deveria ser Abelardo da Hora mas é que não me preocupo pois sempre falei e continuarei falando de Abelardo da Hora pelo resto da vida até daqui para frente com menos pudor de elogiá-lo. Levei o livro para o Atelier Coletivo, Abelardo aprovou, único dentre nós que tinha ouvido falar de Diego Rivera, e ficou sendo nossa bíblia, principalmente minha e de
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Wellington, Wellington Virgulino ou Virgolino, Letinho para os mais íntimos. Jamais perdi essa admiração por Diego Rivera, meu primeiro Miguel Ângelo. Conheci Abelardo da Hora. Eu sempre gosto de botar Abelardo “da Hora” para não confundirem com outro grande Abelardo, Abelardo Rodrigues, mais conhecido quando saí daqui, início dos anos cinquenta, na Bahia e no Rio de Janeiro e São Paulo, do que Abelardo da Hora. Toda vez que eu dizia somente “Abelardo” achavam que era Rodrigues, também por influência do irmão, o desenhista, caricaturista, pintor Augusto Rodrigues. Conheci Abelardo da Hora, dizia, em sua exposição na Rua da Imperatriz, 1948, ano da minha descoberta do Recife, pois até então estivera interno no Colégio Marista. Mesmo ano da exposição de Cícero Dias na Faculdade de Direito.
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Entrei no salão dos Comerciários e descobri que existia uma coisa que julgara extinta havia milênios: escultura Engraçado que não junto uma com outra, não sei qual a primeira nem a segunda, duas cacetadas diferentes, não sabia que decidiriam minha vida. Flanando pela Rua da Imperatriz, entrei no salão dos Comerciários e simplesmente descobri que existia uma coisa que julgara extinta havia milênios: escultura. Escultura arte viva, falando, ou melhor, gritando, pois a primeira peça com que me deparei foi A Fome e o Brado. Hoje tenho certeza que tudo o mais que aconteceu na minha vida
A FOME E O BRADO
Abelardo da Hora na sua primeira exposição em que me deparei com a arte da escultura
começou ali, indiscutivelmente, e se tivesse morrido por alguma causa, ai de mim que nunca tive fôlego para grandes alturas, teria sido por causa de A Fome e o Brado. Mas ai de mim, ai da minha vida se não tivesse sido Abelardo da Hora. Não posso imaginá-la. Tenho até medo de imaginá-la. Acho que o que Abelardo me incutiu ali foi o sentimento de grandeza, essa coisa que só quem contagia é um santo, só quem contagia é um gênio, não sei, aconteceu comigo, deve ter sido isso, alguma coisa que chegou no momento oportuno, doença que passou ainda alguns anos incubada para depois explodir irreversivelmente, uma loucura mansa que me levou a atitudes ousadas, como abandonar tudo e sair de casa, mas quem sabe isso aconteça com todo mundo só que eu não julgava tal força existente em mim. Depois que acontece, esse tipo de especulação perde o interesse, são especulações de outra pessoa que não sou mais e não consigo saber como era, assim como não poderia imaginar, como disse, qual teria sido minha vida se não tivesse me topado com Ivan Carneiro por acaso, um ex-colega do Marista, e ele não tivesse perguntado: “Ainda gosta de desenhar?” Foi o meu tolle, lege (toma, lê), que precipitou a conversão de Santo Agostinho. O que disse à repórter do Diario de Pernambuco resume bem: “Abelardo da Hora foi o meu pai artístico. Eu tenho um pai biológico que me trouxe ao mundo e Abelardo que me trouxe ao mundo artístico. Até hoje, a minha obra é influenciada pelos ensinamentos dele: uma arte para o povo, que possa ser compreendida por todos, que não dialogue apenas com a elite. Embora tenha passado por várias fases, o meu trabalho é sempre guiado pelo que aprendi com ele”.
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MURAKAMI O escritor que seduz pelo enigma da vertigem
O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, novo romance do autor japonês após o best-seller 1Q84, traz olhar do personagem para o seu passado TEXTO Luciana Veras
Leitura Haruki Murakami é avesso a entrevistas. “Não temos autorização sequer para encaminhar pedidos”, responde a gerência de comunicação da Objetiva, que publica o autor japonês no Brasil pelo selo de ficção literária Alfaguara. Ante a perspectiva da chegada de O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação às livrarias, neste novembro, a Continente havia encaminhado uma solicitação – afinal, quem não gostaria de entrevistar o samurai nipônico? Ele, porém, aparenta ser sucinto, econômico nas palavras como seu novo protagonista, e “rigorosamente” contrário à ideia de partilhar um pouco do seu tempo com jornalistas, como enfatiza a porta-voz da editora. Em agosto, o jornal britânico The Guardian vaticinou: “Haruki Murakami é um homem difícil de rastrear. Mal aparece publicamente ou concede entrevistas”.
Eis que, nesse mesmo mês, o escritor foi ao Festival Internacional do Livro de Edinburgh, na Escócia, onde também participou de um evento patrocinado pelo periódico inglês e assinou cópias do seu mais recente livro. Descrito pelo The Guardian como o “mais popular escritor cult do mundo”, foi saudado por fãs que haviam passado 18 horas na fila, somente para vê-lo. No seu país natal, onde O incolor Tsukuru Tazaki… foi lançado em abril de 2013, as vendas superaram a marca de um milhão de exemplares, em menos de um mês. Lá, ele é estrela desde 1987, quando Norwegian wood, com seu título beatle e sua pungente narrativa de amor e perda adolescente, foi comercializado aos milhares. Em 2009, com o primeiro volume da trilogia 1Q84 nas livrarias japonesas, a epidemia Murakami, não mais uma condição insignificante, alastrou-se com força do Oriente ao Ocidente. Três anos depois, em Paris, quem estivesse no metrô só
enxergava passageiros com diferentes versões dos três tomos no colo. Mas, que há nesse autor de 13 romances – Caçando carneiros (1982), Minha querida Sputnik (1999), Kafka à beiramar (2002) e Após o anoitecer (2004) são alguns deles, disponíveis no Brasil via Alfaguara – e outros tantos volumes de contos ou relatos autobiográficos, que cativa leitores ao redor do globo? O que leva Patti Smith, poeta, cantora, escritora e entidade pop, a produzir uma delicada e profunda resenha de O incolor Tsukuru Tazaki…, publicada no The New York Times? O que incita constantes rumores sobre o prêmio Nobel de Literatura – quem sabe agora em 2015? “Não sou misterioso”, soltou o próprio, em recente conversa com um felizardo repórter do The Guardian. Contudo, seus livros são. Constituem narrativas em que à realidade são adicionados enigmas além da esfera do cotidiano, ora levando os protagonistas
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a jornadas nas quais o sobrenatural se entrelaça com todo e qualquer tipo de banalidade, ora fazendo-os mergulhar em situações distópicas que os confrontam com fantasmas e/ou duplas versões de si mesmos. “Assim como ele tem uma ampla gama de leitores, o seu estilo é muito diverso. Por exemplo, 1Q84 é de uma dicção mais comercial, com duas histórias fantásticas correndo em paralelo. Ao mesmo tempo que tem qualidade literária, tem um senso de humor peculiar, muito curioso. Em outros livros, ele cita os clássicos, mas também passeia por várias camadas em que o pop ocidental e a cultura japonesa se fazem presentes. É uma literatura de qualidade alta, com apelo comercial, humor sutil e uma construção narrativa quase hipnótica, que vai levando o leitor, com habilidade, a um caminho em que se cruzam a ironia, o fantástico e várias referências literárias”, pontua Marcelo Ferroni, escritor e o editor responsável na Alfaguara pelas versões brasileiras de Murakami.
PENTAGRAMA EM COR
Em O incolor Tsukuru Tazaki…, outra obsessão do samurai, a música, tornase um dos fios condutores da trama. A suíte para piano Os anos de peregrinação, considerada uma das obras-primas do compositor húngaro Franz Liszt (18111886), é ouvida por Tsukuru enquanto tenta compreender os acontecimentos que, 16 anos atrás, alteraram por completo sua vida. Quando era adolescente, em Nagoya, ele era a quinta ponta de um pentagrama composto por outros dois rapazes e duas garotas. “Em se tratando de condições de vida, os cinco tinham muito mais pontos em comum do que diferenças”, escreve Murakami, logo no início. Porém, o sobrenome dos outros quatro continham o nome de uma cor: Akamatsu e Ômi, os jovens, eram “pinheiro vermelho” e “mar azul”. As meninas Shirane e Kurono eram, respectivamente, “raiz branca” e “campo preto”. Logo se tornaram Vermelho, Azul, Branca e Preta. Só ele não tinha sua alcunha cromática. “Como seria legal, se eu também tivesse um sobrenome colorido, várias vezes Tsukuru pensou, sério. Assim, tudo seria perfeito”, escreve Murakami. Entretanto, tudo
era perfeito: entre os cinco amigos, havia “liga”, afeto e intimidade. E, mesmo sem um apelido, o protagonista seguia orgulhoso até do seu nome, que em japonês significa “construir” ou “fabricar” – não por acaso, ele é construtor de estações ferroviárias: “Tsukuru viu em alguma revista ou algum jornal a estatística de que cerca da metade das pessoas do mundo não está satisfeita com o próprio nome. Mas ele próprio pertencia à metade que tinha sorte. Pelo menos, não se lembrava de ter sentido insatisfação com o nome que recebera. Melhor dizendo, ele tinha dificuldades em se imaginar com outro nome, ou imaginar a vida que levaria com outro nome”, lê-se à página 12. Nada é o que aparenta ser nas construções literárias de Haruki Murakami. Assim, um dia, sem explicação alguma, Tsukuru é excluído do círculo colorido. Apartado daqueles que mais conferiam sentido à sua
O “mais popular escritor cult do mundo” tem fãs que já passaram até 18 horas numa fila apenas para poder vê-lo existência, pensa em se esvair. Anseia pela morte. Mas ela não vem e ele se reergue, não sem mágoa, que tranca em seu cofre emotivo. Anos depois, ao conhecer uma mulher com quem passa a se relacionar, é instigado por ela a investigar o que causou tal ruptura. Em O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, há sonhos sexuais, trens, sensações inexplicáveis e longos solilóquios, em que a voz do narrador em terceira pessoa adentra a fragmentada mente do protagonista.
APOSTA EDITORIAL
O romance é a aposta da editora para o fim do ano. “É o livro comercialmente mais importante, que vem com uma campanha forte de divulgação. Murakami é um dos autores da Alfaguara que mais vendem, junto com Mario Vargas Llosa e Elizabeth Gilbert”, situa o editor Marcelo Ferroni. A tiragem do título será de 15 a 20 mil exemplares.
Para se ter uma ideia do crescente status mercadológico do escritor, quando Kafka à beira-mar saiu no Brasil, em 2008, 3 mil cópias foram colocadas no mercado. “Ele vendia pouco, como normalmente vende um autor estrangeiro, e a gente não reimprimia. Quando foi lançado o primeiro volume de 1Q84, ele deu um salto. Foi o livro que mudou Murakami de patamar e marcou uma nova fase de publicação na editora. Agora, queremos publicar muitos títulos dele”, explica Ferroni. A trilogia 1Q84 vendeu cerca de 70 mil exemplares. Foi traduzida direto do japonês, assim como os outros, com exceção de Minha querida Sputnik e da autobiografia Do que falo quando falo de corrida (2007), vertidos do inglês. Entre os leitores que se encantaram pelo samurai nipônico a partir da explosão de 1Q84, aventura em dois tempos, ambientada no mesmo ano do clássico de George Orwell, estão o designer Ceó Pontual e a servidora pública federal Janaína Góes. Membros de uma confraria literária criada por amigos no Recife, são fãs e difusores. “O primeiro que li foi 1Q84, que estava saindo em todas as listas dos mais vendidos. Comprei o primeiro achando que o terceiro já tinha saído, li o primeiro e o segundo e tive que esperar seis meses pelo último volume. Adorei a escrita dele e os personagens, sempre solitários e interessantes. Gostei tanto, que, depois, li Caçando carneiros. Quero ler outros”, diz Pontual. Janaína se “iniciou” com South of the border, west of the sun (1992), ainda inédito no Brasil. “Foi indicação de uma amiga. Depois, no nosso grupo literário, ganhei de presente o primeiro volume de 1Q84”, conta. Ao irmão, que gosta de correr, deu Do que falo quando falo de corrida, no qual Murakami discorre sobre seus hábitos de maratonista com a mesma capacidade de sedução com que conta a bizarra história do Hotel Dolphin, em Dance dance dance (1994) – publicado no Brasil pela Estação Liberdade e já na lista dos futuros lançamentos da Alfaguara. Para o bancário Bruno Garret, Murakami enfeitiça por não pensar no leitor como criança. “A literatura dele nos obriga a ir fundo e abrir mão do celular, das redes sociais, do Netflix, para sentir e absorver o universo que ele cria. Seus mundos distópicos e paralelos, cheios de vontades
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Leitura
não resolvidas, são povoados por personagens que se movem na solidão. O melhor é que nada ganha explicação fácil”, argumenta Garret, que já leu cinco livros do autor e mantém a própria produção literária no blog O melhor nada do mundo. “Seus livros possuem leveza e graça mesmo nas cenas mais duras, e ele é um dos escritores que melhor falam sobre solidão. Os personagens, mesmo cercados por uma multidão, não têm ninguém por perto”, acrescenta. É o que pode ser dito, por exemplo, a respeito de Toru Okada, o protagonista de The wind-up bird chronicle (1994-1995, publicado nos Estados Unidos em 1997), tido por muitos críticos como a quintessência da obra de Murakami. Com o sumiço do gato de estimação, Okada parte em uma peregrinação que inclui descidas a um poço seco numa casa abandonada na vizinhança, encontros estranhos com videntes com nomes de ilhas ou com militares veteranos que reavaliam o papel do Japão na Segunda Guerra Mundial, visitas a quartos de hotel em uma dimensão paralela e o desaparecimento da esposa. Tudo isso enquanto ele passa
Trecho
O INCOLOR TSUKURU TAZAKI E SEUS ANOS DE PEREGRINAÇÃO
roupas (uma obsessão do escritor), cozinha espaguete, bebe cervejas, observa o jardim à luz do entardecer e ao som do pássaro do título. The wind-up bird chronicle e as duas primeiras novelas Hear the wind sing (1979) e Pinball, 1973 (1980) vão ser traduzidos pela Alfaguara. Antes, porém, vêm as versões nacionais das compilações de contos The elephant vanishes (publicada em inglês, em 1993, e em japonês, em 2005) e Men without women (lançada neste ano e disponível apenas no mercado nipônico, ainda sem tradução para o inglês). O editor Marcelo Ferroni revela que inúmeros convites já foram feitos para que Haruki Murakami venha ao Brasil. Nenhum foi aceito. Talvez ele prefira se deslocar pouco de sua casa, nos arredores de Tóquio. Que venha sua obra, então. Costurada por fios detetivescos e contos de fadas às avessas, alinhavada com ficção científica, o trinômio amor/sexo/paixões intensas e situações kafkanianas, ela se constitui uma literatura tão surreal e indecifrável quanto trivial e corriqueira. Como a vida.
“Sentiu uma dor lancinante no lado esquerdo do peito, como se tivesse sido apunhalado com uma faca afiada. Sentiu o calor desagradável do sangue escorrer. Provavelmente era sangue. Fazia tempo que não sentia esse tipo de dor. Talvez não sentisse aquilo desde o verão do segundo ano da faculdade, quando fora rejeitado pelos quatro grandes amigos. Ele fechou os olhos e vagueou por um tempo nesse mundo da dor, como se deixasse flutuar o corpo na água. Ainda é melhor sentir dor, ele procurou pensar. O pior é não sentir nem ao menos dor. Vários barulhos se misturaram e se tornaram um só, resultando em um ruído agudo no fundo do ouvido. Era um ruído especial, que ele só conseguia escutar no silêncio infinitamente profundo. Não vinha de fora. Era um barulho produzido por ele mesmo no interior dos seus órgãos. Todas as pessoas vivem com esse barulho peculiar, mas quase nunca têm a oportunidade de ouvi-lo. Quando abriu os olhos, sentiu que a configuração do mundo havia mudado. Mesa de plástico, xícara de café branca e simples, sanduíche pela metade, um velho Tag Heuer de corda automática no seu pulso esquerdo (lembrança do falecido pai), jornal da tarde que estava lendo, árvores que ladeiam a avenida, vitrine da loja da frente cuja luminosidade aumenta cada vez mais. Tudo pareceu deformado. O contorno das coisas ficou vago e nada estava correto. A escala também estava errada. Ele respirou fundo algumas vezes e acalmou aos poucos seus sentimentos. A dor que sentia no coração não era provocada pelo ciúme. Tsukuru sabia como era o ciúme. Ele experimentara aquela sensação só uma vez, em sonho, de forma vívida. A sensação daquele momento ainda permanecia no seu corpo. Sabia quanto ela era asfixiante, quanto era desesperadora. Mas não era esse tipo de sofrimento que sentia agora. Ele sentia apenas tristeza.”
O incolor Tsukuru Tazaki MURAKAMI Editora Alfaguara Novo romance do escritor japonês, que é fenômeno de vendas.
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REPRODUÇÃO
GRAÇA INFINITA Romance de narrativa fractal
Lançado há 18 anos, livro de David Foster Wallace reflete ambição do autor em realizar uma “arte séria”, mas capaz de alcançar uma comunicação efetiva TEXTO André Araújo
“Eu estou sentado num escritório, cercado de cabeças e corpos…” Assim se inicia um dos mais prestigiados romances da ficção contemporânea, que, passados 18 anos de seu lançamento, é publicado no Brasil. Traduzido pelo habilidoso Caetano Galindo (leia entrevista com ele a seguir), a obra máxima do escritor
norte-americano David Foster Wallace (1962-2008), Graça infinita, chega num momento oportuno. Antes de entrar em seus meandros, cabe tentar responder à pergunta proposta pelo crítico espanhol Juan Ferré: o que é a “graça infinita”? Em ordem ascendente, aos poucos: uma citação de Hamlet, referindo-se a
Yorick como “um rapaz de infinita graça, espantosa fantasia”, na tradução de Millôr; uma série de filmes inacabados realizados pelo falecido James Orin Incandenza, sendo um deles uma fita, conhecida como Entretenimento, diante da qual o espectador fica tão absorto por seu conteúdo, que não consegue parar de assisti-lo até morrer de inanição. E Graça infinita é um romance de 1.080 páginas, sendo 130 delas apenas de notas de rodapé, que faz todas essas linhas convergirem. Seria um esforço infrutífero – e um tanto absurdo – tentar resumir um romance como este, especialmente por sua característica de fractal, em que diferentes narrativas convergem, formando uma espécie de padrão matemático estrutural no qual o todo está contido nas partes e viceversa. Entretanto, é possível marcar um ponto de partida na narrativa: justamente o uso de Entretenimento, filme de Incandenza, como arma terrorista por extremistas do Quebec, engajados numa causa separatista que delineia o pano de fundo político do mundo futuro de Graça infinita. À parte a questão política, existem duas outras linhas narrativas que insinuam uma confluência: a história de Hal, filho de Incandenza, na academia de tênis juvenil fundada por seu pai, e o périplo de Don Gately numa casa de recuperação para viciados, vizinha da academia. Foster Wallace situa a questão do entretenimento numa relação complexa entre diferentes esferas da cultura contemporânea. Ele identifica que as tecnologias de comunicação contribuem para uma lógica narrativa em que a busca pelo prazer estético imediato é a dominância. Estaríamos viciados, dispostos a dar nossa própria vida por algumas horas de sublimação através da diversão? Se havia como dominância na cultura essas formas de entretenimento, na literatura, Wallace via justamente o contrário: a metaficção pós-moderna, escola da qual DFW é herdeiro e com a qual tenta romper a todo custo, compreendia a ficção como um mecanismo autorreferencial, encerrando suas discussões apenas no âmbito da linguagem. Foi na intersecção desses dois
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Leitura polos da cultura – uma foma de entretenimento altamente identificável e uma forma literária altamente alienante – que Wallace resolveu posicionar seu romance, a partir do seguinte questionamento: seria possível realizar uma espécie de arte séria, que não abdicasse de sua autorreferencialidade e princípios estéticos, mas que mesmo assim alcançasse uma comunicação efetiva, sem se entregar às formas simples e codificadas do entretenimento? A solução de DFW, um tanto contraintuitiva, foi criar um romance gigantesco, intricado e formalmente complexo, com uma profusão de vozes e personagens, desconcertante por sua exuberância. A forma de adentrar essa simetria caótica é lançar mão de um engajamento total por parte do leitor. Entretanto, tal engajamento não tem por função descobrir a forma estrutural do romance ou as arbitrariedades da linguagem e sua inevitável desconstrução. No horizonte de Graça infinita estão seus personagens, Hal e Gately. DFW afirmava que, se a ficção tinha um papel, este seria o de tentar mostrar o que significa estar vivo hoje em dia. A odisseia formal que Wallace nos propõe a enfrentar mimetiza o processo de autoconstituição dolorosa de Hal e Gately para fora de sua dimensão alienada, em comunicação com o outro. Ou seja, é apenas através do esforço de tentar formalizar as múltiplas vias que constituem o romance que podemos alcançar a alteridade fundamental do “estar vivo”. O livro, apesar de seu tom muitas vezes leve e engraçado, expressa uma visão de mundo altamente trágica. Estamos, afinal, sempre às margens de uma solidão paralisante e alienante. Ao mesmo tempo, essa visão é também muito altruísta, pois a única saída é o esforço contínuo de engajar-se com o outro – seja esse “outro” autor, leitor ou personagem. O suicídio de David Foster Wallace em 2008 deu contornos ainda mais trágicos à Graça infinita. Resta-nos seguir seus passos e tentar compreendê-los.
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Entrevista
CAETANO GALINDO “O LIVRO SÓ CRESCE COM A ANÁLISE PROFUNDA” Tradutor de Graça infinita, Caetano Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de Tom Stoppard, James Joyce e Thomas Pynchon. Ele manteve um blog sobre a tradução do romance de David Foster Wallace no site da editora Companhia das Letras e, nesta entrevista, expõe algumas questões sobre o livro e a tradução.
CONTINENTE Qual é a sua relação com a obra de David Foster Wallace e quais foram as motivações para se engajar na tradução de Graça infinita? CAETANO GALINDO A minha relação com a sua obra é diferente. Até porque ela existe, existia e era forte antes de eu começar a traduzir. Fui atrás de Graça infinita logo depois de ter terminado a tradução do Ulysses, basicamente para tentar um “banho de descarrego”, e ver o que de mais interessante as pessoas andavam fazendo por aí, no mundo pós-Joyce. Viciei. Dali em diante, li tudo que ele publicou, e boa parte do que ele não publicou. E, nesse tempo todo, como uma espécie de vício profissional, que só se via intensificado pela singularidade da prosa do Wallace, eu ia pensando como seria bom traduzir aquilo, como eu gostaria de tentar... E ia, claro, ensaiando soluções. Ele tem um estilo tremendamente contagiante, e me vi durante vários
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de oralidade em geral, são um campo com que gosto de trabalhar. Eu me realizo mesmo é traduzindo diálogo, e boa parte da prosa narrativa do Wallace tem um inequívoco tom de oralidade como base. Então, é festa. É a possibilidade de incluir tudo em que você presta atenção, tudo que lhe chama a atenção no português de hoje, e que nem sempre dá para encaixar nas traduções. No Wallace, cabe tudo. Ele pede tudo. Você mencionou, por exemplo, estrangeirismos. E tem uma coisa muito esquisita no Graça infinita, que é o fato de Quebec ter um papel importante no livro (como sede de um movimento terrorista), e a francofonia acaba aparecendo em diversas falas, nomes de organizações etc., mas, quase invariavelmente, o francês que aparece, aparece errado... Às vezes, bem errado. Wallace era, em diversos sentidos, um americano “caipira”, que praticamente não saiu
“Ele tem um estilo tremendamente contagiante, e me vi durante vários anos escrevendo ‘à la Wallace’ ” anos escrevendo “à la Wallace”, para ver como era. Ou seja, quando veio o convite da Companhia das Letras para traduzir o Graça infinita, eu já estava “aquecido”, por assim dizer. CONTINENTE A ambientação dos espaços em Graça infinita é construída com um uso cuidadoso de léxicos específicos, com utilização de gírias, maneirismos, estrangeirismos, além de um processo de invenção de um vocabulário específico para o mundo político no qual a história se passa. De que forma ocorreu a reconstrução desse “mundo” a partir de sua tradução? CAETANO GALINDO Bom, por partes. Nos campos do tênis e das drogas, teve alguma pesquisa (santo Google, santa Wikipédia... não dá mais para imaginar como era traduzir offline), alguma colaboração de gente que entende das respectivas áreas, especialmente o Paulo Henriques Britto e o Reinaldo Moraes. As gírias, bem como as marcas
dos EUA. Posso achar que ele estava simplesmente errado, e corrigir. Mas num livro que, no fundo, é tão absolutamente estruturado, apesar de uma aparência de caos, não seria isso também motivado? Depois de uma longa conversa com o tradutor alemão e de alguma troca de ideias com os tradutores portugueses, optei por deixar como estava. Na impossibilidade, ainda mais triste, de consultar o autor... CONTINENTE Que cara tem o Graça infinita de Caetano Galindo em relação ao Infinite jest de David Foster Wallace, e quais as mudanças de contexto que você vê entre o momento do lançamento e hoje em dia? CAETANO GALINDO O livro, como todo livro bom (excelente, na verdade), só cresce com a análise profunda. Quando mais você fuça, mais você entende, mais você vê, mais você admira e mais você se encanta. O livro,
para mim, saiu ainda mais forte, ainda mais impressionante. A tradução foi a minha terceira (e quarta, e quinta...) leitura. E hoje eu vejo ainda mais qualidades no livro. Fiz o que pude, claro, para que essas possibilidades e esses encantos todos não morressem na tradução. Insisto sempre com os alunos que o papel do tradutor não é o de estabelecer uma leitura, mas o de diagnosticar possibilidades de leitura e manter essas portas abertas para quem for ler a versão traduzida. Assim, posso ter gastado muito tempo com detalhes que ninguém vai perceber (especialmente pequenas correspondências internas), mas que, se alguém um dia vir, vai justificar esse “exagero”. Eu não tenho (ninguém tem... mesmo) a exuberância verbal do Wallace. Mas o próprio fato de que eu vinha lendo a obra dele há muitos anos me acostumou a tentar, a não ter preguiça nem vergonha de tentar, de ir mais fundo e mais alto. Claro que tenho um certo receio... Só de pensar que muita gente vai conhecer apenas o “meu” Graça infinita, e de pensar o quanto eu respeito, amo mesmo esse livro... é uma responsabilidade enorme. Mas até por isso é um privilégio, também. Falar pelo Wallace. Agora, o que eventualmente mudou (apesar de não “datar” ou “superar” as discussões no livro) foi a questão do discurso irônico. Aquele diagnóstico que ele faz, magistralmente, no ensaio sobre televisão, e que tem um papel bem central no livro, eu penso que continua muito certeiro e poderoso: a ideia de que toda uma geração, especialmente a partir dos anos 1980, transformou todo tipo de ironia em um credo e uma muleta que impediam que coisas realmente importantes fossem ditas e, eventualmente, fossem até sentidas. Mas o que o Wallace não poderia ter imaginado era a reviravolta dos anos 2010. O fato de que agora é justamente a “sinceridade”, a “candura”, as “boas intenções” que aparecem instrumentalizadas como ferramenta publicitária, retórica, política... a ideia de que o cinismo não foi vencido pela linguagem reta, mas encampou essa mesma linguagem. Ele teria ficado chocadíssimo.
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REEDIÇÃO Encontro com Murilo Mendes
Tem início, este ano, o relançamento da obra do poeta mineiro. Entre os quatro tomos já publicados, encontra-se uma inédita Antologia poética TEXTO Gianni de Melo
No texto escrito por Murilo Mendes
para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 25 de julho de 1959, existe um fragmento que parece traçar uma ponte entre dois momentos importantes de resgate deste autor. No pequeno ensaio, ele desabafava: “Penso mormente na atual geração brasileira que conhece pouco meus livros, esgotados há vários anos; geração a que me sinto ligado por tantos motivos. Penso em certos críticos que às vezes apressadamente me rotulam de surrealista e hermético
sem ter em conta que a minha obra mergulha as raízes da tradição, e que toda poesia válida é num certo sentido hermética”. Naquele ano, era a editora José Olympio que relançava a sua produção poética e, por esse motivo, ele foi convidado para escrever sobre o cenário literário do país e o seu lugar à mesa do modernismo brasileiro. Em 2014, é a Cosac Naify que se empenha em dar visibilidade à obra de um escritor que, em vida, teve prestígio e relevância similar
a Carlos Drummond ou Manuel Bandeira, mas muito menos lido nos dias de hoje. Antes disso, datava de 1994 a compilação mais recente dos trabalhos de Murilo Mendes, editada pela Nova Aguilar com o título Poesia completa e prosa. Iniciando a reedição do seu legado, a Cosac preparou para este ano as publicações Poemas (1930), primeiro livro do autor; A idade do serrote (1968), que rememora sua infância e adolescência em Juiz de Fora, cidade em que nasceu; e Convergência (1970), seu último livro publicado em vida, repleto de elementos concretistas. Completando os primeiros exemplares dessa coleção, os especialistas Júlio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura também organizaram, sob a coordenação editorial de Milton Ohata, uma nova Antologia poética. Com esses relançamentos, a crítica tem a chance de rever aquilo que o poeta considerou rótulos apressados “de surrealista e hermético”, uma vez que sua produção, tal qual a dos seus contemporâneos, abraçou o coloquialismo e o cotidiano, mas de forma singular e com uma profusão de imagens que ainda hoje gera estranhamento. Intelectual de amplo conhecimento da música e das artes plásticas, Murilo Mendes trazia esses elementos para sua criação não só como temas, mas também como norteadores da organização formal do poema, ora tão imagético quanto uma pintura, ora musicalmente potentes. Nesse último caso, o próprio escritor reconhecia a influência mencionada: “Certos versos meus são de alguém que ouviu muito Schönberg, Stravinski, Alban Berg e o jazz”. Apesar de muito se falar no aspecto da diversidade e experimentação na obra do mineiro, é possível observar alguns eixos temáticos que se fazem presentes em quase todas as suas fases, como o já citado diálogo com outras expressões artísticas. Os deslocamentos geográficos e imaginários, por exemplo, são outra constante na sua escrita, que se tornam ainda mais frequentes quando o poeta, já com mais de 50 anos, passa a morar na Itália. Siciliana, Tempo espanhol e Contemplação de Ouro Preto não negam a experiência das
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INDICAÇÕES viagens, que também se metamorfoseiam em versos como “Quando criança pretendia ir de Juiz de Fora à China a cavalo./ A viagem se completou./ Ninguém se deu conta./ Nem mesmo eu”. Mas, sem dúvida, o tema que impregna sua obra de forma enfática, a partir do momento em que o poeta retorna à vida católica, é a religiosidade. Tal qual Adélia Prado, Murilo Mendes joga com a dualidade do sagrado e do profano, porém em forma muito diversa da proposta pela conterrânea. O que o torna uma figura peculiar na literatura brasileira é ser ele, justamente, esse lugar de religião e tradição, combinado com preocupações sociais e históricas sob o estigma de rebelde, insubmisso e iconoclasta. Em termos de forma literária, muitos dos seus poemas considerados “surrealistas” ou, outras vezes, criticados pela necessidade de melhor aparo de arestas, carregavam intencionalmente essa proposta ruidosa. O especialista na obra do escritor e colaborador dos relançamentos Murilo Marcondes de Moura considera absurda a sugestão de uma negligência artesanal por parte de Murilo Mendes: “O que talvez devesse ser colocado é a forte vizinhança ou a quase fatalidade do inacabado, como se o impulso totalizante dessa lírica colocasse em crise a própria ideia de arredondamento harmônico”, defende o pesquisador, no posfácio da Antologia poética.
ESPECIAIS
Os relançamentos de nomes consagrados são sempre excelentes oportunidades de trazer um autor para o centro das discussões e apresentá-lo às gerações de leitores mais jovens. Já para aqueles que são familiarizados com os livros de Murilo Mendes, os textos complementares podem ser a principal novidade dessa coleção. A Antologia poética contém posfácios dos organizadores, fotografias em preto e branco do escritor e o texto A poesia e nosso tempo, assinado pelo próprio poeta. No entanto, essa mesma publicação foi lançada em versão especial, com capa dura e acrescida de um caderno de imagens pessoais e de sua coleção de arte particular, além de um CD em que o escritor lê oito textos. O livro Poemas traz um posfácio de Silviano Santiago intitulado Poesia fusão: catolicismo primitivo/ mentalidade moderna e duas cartas inéditas enviadas a Mario de Andrade, datadas de 1930 e 1931. Em A idade do serrote, consta uma crônica sobre o livro assinada por Carlos Drummond de Andrade, que foi publicada em 1968, no Correio da Manhã, seguida pela carta de resposta à apreciação. Ainda nessa edição, é possível conferir o posfácio O universo cortado em fatias, da professora de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, Cleusa Rios Passos. Encerrando os materiais complementares, temos, em Convergência, um texto inédito em português, escrito pelo crítico italiano Ruggero Jaccobbi, que foi o responsável pelas traduções de Murilo Mendes na Itália.
BIOGRAFIA
AMILTON LOVATO Adhemar – fé em Deus e pé na tábua Geração
A biografia tem-se constituído um gênero atraente porque une as qualidades da literatura e da história, que documenta personagens e suas épocas. Ler sobre o polêmico Adhemar de Barros – que celebrizou a ideia “rouba, mas faz” – pode ser útil ao entendimento das complexidades e contradições do cenário que precedeu o golpe militar.
POESIA
DANIEL MAZZA A sinfonia do tempo – primeiro livro de filosofia Escrituras
O morto, O coveiro e A morte, seguidos do monólogo Silêncio, compõem este bem-urdido livro, em que o autor reflete sobre a morte. Muito bom que ele venha antecedido por prefácio em que o poeta Alexei Bueno situa a obra de Mazza como “poesia de pensamento”, que se coloca diante dos mistérios do Ser.
COLETÂNEA
LÉA MASINA (ORG.) Por que ler os contemporâneos – autores que escrevem o século 21 Dublinense
Proposta generosa esta de servir de guia de leitura. O livro reúne breves resenhas sobre 101 autores que seriam representativos das principais tendências literárias deste século. A organizadora assume o caráter subjetivo e impressionista das escolhas, que são eficazes.
JORNALISMO
ALEXANDRE FIGUEIRÔA (ORG.) Processos de convergência midiática: um estudo do Sistema JC Associação de Imprensa de Pernambuco
A publicação reúne cinco artigos de professores da Unicap que se detiveram na análise de diferentes mídias de um mesmo sistema (impresso, web e TV), com o objetivo de observar como a convergência midiática tem influenciado suas dinâmicas produtivas.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
ESPEREI DUAS HORAS PELO JANTAR Esperei duas horas pelo jantar, mas quando acenderam os maçaricos para flambarem os peixes não suportei o cheiro de gás, senti náusea e me retirei ao jardim. Lá fora, o enjôo persistiu. Aprecio a culinária japonesa, o banquete era preparado por um mestre, mesmo assim decidi ir embora. Passo um ano lapidando um conto, porém minha relação com os alimentos é menos paciente. Entre sufocar num restaurante pelo prazer de degustar um sushi raro, ou comer arroz e ovo frito na cozinha de casa, escolho a segunda opção. Comunico à família que irei caminhando. Protestos. Todos querem me levar, o filho mais velho oferece o carro. Do Poço até o apartamento em Casa Amarela é um pulo. Escapo à francesa. Respiro o ar cheirando a umidade e a jasmim laranja, do lado de fora. Um vigilante me cumprimenta no seu posto. Dobro a esquina e pego a 17 de agosto, escura àquela hora. O Recife é sempre escuro à noite. Caminho ligeiro. Ainda não alcancei a santidade de afirmar como o escritor grego Nikos Kakantzakis: nada espero e nada temo. Mesmo assim, sou um homem
desassombrado. O rapaz vindo na minha direção e olhando fixamente para mim parece estranho. Seu aspecto não é o de um assaltante. Qual é o aspecto de um assaltante? Ele se veste igualzinho ao meu filho mais jovem e aos amigos dele. E daí, se o rapaz põe a mão no bolso da bermuda e segura algo sugestivo de uma arma? Pode ser apenas um canudo de papel. Agora estamos bem próximos, ele continua me olhando com insistência e sorri. Posso mudar de calçada, nunca fiz isso, não temo encarar ninguém. De repente ele avança em minha direção, toca meu ombro. – Você é o escritor? – Sou Ronaldo. – Tenho uma pergunta a lhe fazer. Caminho ligeiro; ele não larga os meus calcanhares. – Faça. – Quando um cara descobre que é escritor? Falo tolices prontas, coisas decoradas para responder aos jornalistas. Quero livrar-me do rapazinho, algo familiar nele me incomoda e dá pena. – Pra onde vai? – pergunto a queima roupa.
– Vou pra onde você for. Preciso que responda a pergunta. Avisto a sorveteria Empório do Gelato, aberta. Entro nela. – Toma sorvete de quê? – O que você tomar. Peço dois cremes com calda de frutas vermelhas, sentamos, rimos da situação. Digo mil besteiras enquanto engulo colheradas de sorvete. Ele retorna de um filme, viu “Deserto feliz”, de Paulo Caldas. Tem 18 anos, frequenta um colégio que prepara para o vestibular, pensa em fazer psicologia, lê bastante, assiste teatro e cinema. Presenteia os amigos recomendando filmes. Recebo a indicação de “Exuberante deserto”, a história de um garoto de 13 anos, que mora num Kibutz em Israel com a mãe mentalmente frágil. O diretor se chama Dror Shaul, ele esquece o nome, mas lembra o título original: “Adama Meshuga’at”. Escreve num pedaço de papel e me entrega. Deseja saber por que decidi ser médico e revela que o pai também é médico. Respondo que não tinha pais ricos e precisava escolher uma profissão que garantisse a sobrevivência.
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HALLINA BELTRÃO
– Passei dias escrevendo na companhia de um colega e depois tocamos fogo nos papeis – me conta. Gogol fez o mesmo com o primeiro original de “Almas mortas” e com parte da segunda versão do romance. Lembro o pedido de Kafka ao amigo Max Brod: destruir seus escritos. Acho esses gestos narcísicos. Menciono e ele me revela detalhes do seu projeto “escrito para ser apagado”. Não vejo razão nesse niilismo, trata-se de uma experiência bem diferente dos monges tibetanos. Os budistas criam mandalas de areia colorida e depois as destroem para simbolizar a inconstância da vida. Olho firme o meu interlocutor e me assusto. Fomos abduzidos para uma narrativa de Jorge Luis Borges, tudo isso já aconteceu em algum conto do argentino. Eu também acabo de escrever uma novela sobre um jovem de 18 anos com aspirações à literatura. Toda noite ele encontra um velho professor a quem faz perguntas, sem o menor interesse nas respostas. Começo a rir. – Você é José, meu personagem, e eu sou o professor Antonio Garcilaso. Vocês dois sofrem da mesma arrogância.
O rapaz vindo na minha direção e olhando fixamente para mim parece estranho. Seu aspecto não é o de um assaltante Minhas respostas não o interessam de verdade. Olho pra você e é como se me reencontrasse aos 18 anos. Nessa idade, acreditamos saber tudo. Ele se assusta como se tivesse sido descoberto roubando. – Tenho pena de quem você é, e de quem eu era na sua idade. Conheço a solidão, trata-se de um aprendizado custoso. Faltam interlocutores ao jovem inquieto. Minha geração reconhecia valor nas pessoas mais velhas e não se envergonhava em procurá-las. Encontrei vários mestres durante minha formação e aprendi com eles. Há um culto exagerado ao poder e ao conhecimento dos jovens, uma idolatria à juventude. Não é comum
um rapaz perguntar a um homem mais velho como ele se descobriu escritor. O mais comum é que ele se considere pronto e seja celebrado como tal. *** Li os poemas e a prosa do jovem artista, publicados no seu blog. Descobri os apontamentos de uma boa escrita, necessitando muito trabalho. Falei sobre isso num e-mail e dei conselhos. Ele me respondeu: “É sempre verdade, muito trabalho. Mas que trabalho eu quero de fato? Falo das palavras, mas principalmente falo do trabalho, da humanidade criada nesse processo. Antes de proferir a primeira palavra, o ser humano usou a primeira ferramenta e trabalhou. Hoje, nesse ano, nessa vida, eu vou ter de descobrir com o que trabalhar; ou o que trabalhar. Estava ouvindo música quando de repente me toca: “Você é a resposta exata àquilo que perguntou.” Então, paradoxalmente, a pergunta é: O que foi que eu perguntei? Ou quem sou eu? Não tenho muitos conselhos a dar a você, eu só queria responder alguma coisa para poder continuar conversando.”
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CIA. CADÊNCIAS Porque a dança pode ser inclusiva
Grupos formados por cadeirantes têm buscado desconstruir a ideia de que todo bailarino precisa de um corpo perfeito TEXTO Christianne Galdino FOTOS Sílvio Barreto
Palco
Dançar, seja nos palcos, nos bailes ou
nas pistas, sempre foi uma atividade vinculada a vigor e disposição física, principalmente nas sociedades guiadas por um tecnicismo exacerbado que, entre outras consequências, dissemina o individualismo e incentiva a competitividade. E mesmo que haja tantas variáveis dessa linguagem artística, e tantas formas de vivenciar a dança, como profissão, terapia ou no viés educacional, todos os caminhos levam ao mesmo estereótipo de bailarino ou dançarino de formas irretocáveis. “O acesso à dança ainda é associado ao ideário de corpo perfeito, um corpo eficiente e virtuoso que, para o senso comum, não é sinônimo de corpo com deficiência”, aponta a pernambucana Ana Cecília Soares, mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia, que, desde 2002, pesquisa sobre o tema Dança e pessoas com deficiência e, desde 2004,
atua como professora em associações e projetos desse segmento específico. Talvez esse entendimento de dança seja uma das principais barreiras para o desenvolvimento do que se convencionou chamar de dança inclusiva, um movimento que aumentou significativamente nas últimas três décadas, no país e no mundo. “Apesar de comumente utilizado, não há um consenso em relação ao termo. Muitos pesquisadores e artistas não acreditam na forma como a inclusão vem sendo feita e defendem que a utilização do termo é pejorativa e, em vez de ajudar, reforça ainda mais a ideia de exclusão. Assim como o professor Henrique Amoedo – que foi o primeiro a utilizar essa nomenclatura no Brasil –, eu uso, mas ressalvo que é uma dança temporariamente inclusiva, e que só existe quando atuam na mesma cena bailarinos/dançarinos com e sem deficiência”, explica Ana Cecília.
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Em Pernambuco, os trabalhos e pesquisas de dança inclusiva são incipientes, a exceção fica por conta da Cia. Cadências, coordenada pela professora Liliana Martins, fundada em 2011, que trabalha com bailarinos cadeirantes e andantes, e está em processo de profissionalização. “Trabalhamos com danças de salão e esportiva (de salão internacional), mas também estamos investindo numa formação em danças populares do Nordeste e nos ritmos afrobrasileiros”, conta Liliana, que já
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atuava no circuito de salão há mais de 10 anos, quando resolveu iniciar um trabalho com cadeirantes. Sobre a motivação para enveredar nesse campo, ela diz que “o desejo surgiu depois que conheci o casal baiano Anete e Cabral. Ela andante, ele cadeirante, campeões de dança esportiva sobre cadeira de rodas que vieram fazer uma espécie de intercâmbio na companhia em que eu atuava como bailarina-atleta e professora”. O elenco da Cia. Cadências foi se formando aos poucos e, talvez
por se tratar de dança de salão, acabou atraindo casais (ainda que o fato de ter parceiro não seja pré-requisito para o ingresso no grupo) ou até servindo de estímulo para que novos pares surgissem no decorrer das aulas e ensaios, que costumam acontecer nas tardes de sábado, na quadra de uma escola pública no Bairro de Jardim São Paulo, zona sul do Recife. Elaine Paz e Bruno Costa já eram casados, quando decidiram entrar na companhia. “A única experiência anterior dele foi quando fez parte de
um grupo de hip hop ainda na sua cidade natal, Campina Grande. Eu adoro dança e já praticava também dança cigana, mesmo depois de ter me tornado tetraplégica, quando os sintomas da distrofia muscular degenerativa começaram a aparecer”, comenta Elaine, 33, funcionária da Prefeitura do Recife, que cursa graduação em Serviço Social, e encontra tempo para trabalhar como voluntária na Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência – CD, além de “dançar muito”.
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BENEFÍCIOS
A prática da dança trouxe para Elaine, além de outros ganhos significativos na qualidade de vida, a recuperação de alguns movimentos de pescoço e tronco, que ela já havia perdido por causa do avanço da doença. “Os médicos diziam que era impossível qualquer tipo de recuperação, ficaram muito admirados.” Protagonista de uma história de amor incrível – que teve que vencer, entre outras dificuldades, a distância geográfica e as restrições religiosas da igreja evangélica Avivamento Bíblico, que Bruno frequentava e que não considerava uma mulher com deficiência digna de cumprir o papel de esposa –, o casal agora vive a expectativa de participar pela primeira vez de um evento de dança esportiva em cadeira de rodas, que vai acontecer em São Paulo, em dezembro. Bruno e Elaine vão apresentar uma coreografia na Mostra Livre.
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Quem vai competir na Categoria Estreante pela Cia. Cadências é outro casal: Nina Souza e Rogério Silva. Ele, bailarino do grupo de dança afro Zambo Clã, do Ibura, foi convidado por Liliana Martins para dar aulas na Cia. Cadências. Lá chegando, rendeuse completamente ao novo trabalho, e aos encantos da bailarina Nina. Quem a vê dançando, e fazendo evoluções sobre apenas uma das rodas da sua cadeira adaptada, não imagina que ela, que se diz muito tímida, nunca tinha andado de cadeira de rodas (usa um triciclo personalizado, construído pelo seu pai, para se locomover) até entrar na companhia. “Isso porque, como tenho a doença conhecida como ossos de vidro, morria de medo de cair.” As quedas e os temores ficaram para trás, quando a dança se tornou também uma possibilidade profissional para Nina, que já trabalha como intérprete de libras e
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A Cia. Cadências prepara-se para encontro nacional
Nestas páginas 2 a 4 DUPLA
RogérioSilva e Nina Souza vão competir na Categoria Estreante, na 13ª Mostra de Dança em Cadeiras de Rodas
colabora como voluntária da FCD. A competição na 13ª Mostra de Dança em Cadeiras de Rodas está exigindo treinamento extra, três vezes por semana, para “melhorarmos o nível técnico e aprendermos as regras do campeonato”, dizem os participantes. O professor Júlio Pascoal, Rilmar Barbosa, o pequeno José Cauã e sua mãe Márcia Cristina completam o elenco da Cia. Cadências, todos com histórias tocantes para contar e construir por meio da dança. “Eu achava que nunca mais iria dançar, depois que sofri o acidente de carro e fiquei paraplégica. Agora
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sei que estamos só no começo e que a dança, além de nos dar força e alegria, pode ser também uma profissão para nós cadeirantes. Ela é a vida da alma”, afirma Rilmar Barbosa, uma das fundadoras da Cia. Cadências, que agora se apresenta em eventos como o Dançando na rua, e desenvolve atividades para arrecadar dinheiro que possa garantir a ida de toda a companhia para o campeonato nacional. “Mesmo os que não forem se apresentar vão para participar das oficinas, palestras e assistir à Mostra”, esclarece Rilmar.
AVALIAÇÃO
Seja em competições, festivais ou curadorias, quando pessoas com deficiência decidem dançar, surgem logo dúvidas acerca do processo de avaliação, até mesmo porque é comum que esse tipo de episódio provoque uma comoção
Para a coordenadora do grupo, a análise estética deve ser feita sob os mesmos parâmetros de qualquer dança generalizada, que pode interferir no resultado do processo. Sobre isso, Ana Cecília opina: “A análise estética deve ser feita com os mesmos parâmetros de qualquer outra obra artística de dança. Porém, o trabalho deve ser considerado dentro da perspectiva em que foi desenvolvido, se na arte-educação, na arte-terapia ou como expressão artística de dança. A grande questão é não negar a deficiência, mas também não fazer dela a razão de ser do trabalho artístico”. Antes disso, é
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importante que público, críticos e até os próprios artistas com deficiência entendam que “o oposto de eficiência não é deficiência, isso é ineficiência”. Fazendo um resgate da história da arte, a pesquisadora explica que “a presença de corpos com deficiência em cena esteve sempre ligada ao exótico, e a permissão para que esse corpo atuasse estava ligada a esse exotismo”. Para reverter esse quadro, os militantes do Movimento Inclusivista têm discutido e proposto, em encontros e congressos, atividades e elaboração de documentos oficiais que possam, num breve futuro, garantir que os artistas profissionais sejam vistos e analisados pela sua arte e não pela sua deficiência, alcançando autonomia e independência. “Muito já foi conquistado, mas ainda há muito o que pesquisar, conversar, vivenciar”, pontua Ana Cecília.
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CAMPOS DO JORDÃO Música clássica sob os pinheiros Pelo 45º ano consecutivo, cidade da Serra da Mantiqueira abriga festival que a coloca no mapa internacional dos eventos de concerto TEXTO Josias Teófilo
Sonoras Era o mês de julho e Campos do Jordão, na época mais fria do ano, recebia pelo 45o ano consecutivo (quase um terço do tempo de existência da cidade, que tem 140 anos) o Festival de Inverno que coloca a cidade da Serra da Mantiqueira no mapa internacional da música de concerto. Pelas ruas da cidade de quase 50 mil habitantes, circulam músicos de diversas nacionalidades portando seus instrumentos, falando diferentes línguas – predominantemente o inglês – e frequentando as master classes, recitais e concertos. Estes se dividem entre o Espaço Cultural Dr. Além, a Igreja Matriz de Santa Teresinha e a Praça de Capivari – no centro da cidade –, mas também a Capela do Palácio do Governador, o Castelo de Campos e o Auditório Cláudio Santoro, principal palco do evento, com lotação de mais de mil lugares. Os números do festival impressionam: por seus palcos passaram mais de três mil artistas em cerca de 68 concertos, incluindo obras para coral, orquestras, bandas, grupos de câmara e recitais solo. O
público que chega à cidade repleta de pinheiros, vindo predominantemente da capital paulista, torna o trânsito caótico em alguns horários e lota os hotéis e pousadas. Esse aspecto turístico do festival, entretanto, tornase menos relevante, se comparado ao caráter educativo, de altíssimo nível, que coloca jovens instrumentistas e compositores em contato com músicos profissionais do primeiro escalão mundial, promovendo uma atmosfera de excelência que transcende barreiras nacionais.
HISTÓRIA
Para entender o festival em seu tamanho e importância atual, é preciso tratar de uma personalidade-chave da vida musical brasileira da segunda metade do século 20: o maestro Eleazar de Carvalho, que concebeu o evento anual nos seus moldes gerais. Cearense de Iguatu, estudou música na Marinha, onde tocou tuba em bandas militares. “Observei que a comida servida às crianças que tocavam na banda era melhor. Apresentei-me, embora não tocasse qualquer instrumento. Sou
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músico por gulodice”, assim explicava sua motivação inicial pela música. Estudou regência com o importante compositor brasileiro Francisco Mignone, na Escola de Música do Rio de Janeiro. Inspirados pela passagem do maestro italiano Arturo Toscanini com a Orquestra da NBC, Eleazar e um grupo de músicos criaram a Orquestra Sinfônica Brasileira, que veio a ser regida pelo maestro húngaro Eugen Szenkar, tendo Eleazar como assistente. Foi aos Estados Unidos com o objetivo de reger algumas das três principais orquestras do país (Boston, Filadélfia e Nova York) e, apesar do fracasso inicial na Orquestra da Filadélfia, dirigiu as principais orquestras americanas e europeias da
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época, entre elas as filarmônicas de Berlim, Viena e Nova York, as sinfônicas de Boston, Londres e Paris. Começou como assistente do maestro russo Serge Koussevitzky, que tinha ninguém menos que Leonard Bernstein como assistente na Sinfônica de Boston. Mas a carreira de Eleazar não se resumiu à atuação frente às orquestras, foi também importantíssimo professor de regência. Entre os seus alunos, estão alguns dos principais nomes da regência mundial do final do século 20: Seiji Ozawa, Zubin Mehta, Charles Dutoit, Claudio Abbado (lendário maestro da Filarmônica de Berlim, falecido em janeiro deste ano). Da sua experiência dirigindo o Festival de Tanglewood, evento de verão da
Por seus palcos, passaram mais de três mil músicos em 68 concertos, entre corais, orquestras e recitais Sinfônica de Boston, ele tirou o molde para o Festival de Inverno de Campos do Jordão, já existente, mas com ele tomou o aspecto que tem hoje, voltado para o ensino e a prática orquestral. Num depoimento à TV Cultura, à época, ele disse: “(A ideia é) fazer 250 jovens conviverem ali durante um mês, ouvindo os profissionais da música,
vivendo naquele ambiente. Me parece que, após esse festival, depois de se assistir às grandes obras interpretadas pelos grandes músicos, de um curso intensivo com os grandes nomes que fizeram história, os nossos jovens guardarão um pouco daquilo que eles levaram anos para aprender”. Seu lema era: “Mais escolas para mais orquestras”. Como efeito, por Campos do Jordão passariam várias gerações de músicos de orquestra, muitos deles hoje destacados internacionalmente e/ou integrantes dos vários grupos profissionais que o estado de São Paulo possui. A mais importante delas é a Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, recriada por Eleazar de
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Página anterior 1 MASTER CLASSES Festival coloca alunos em contato com músicos experientes Nestas páginas 2 LIZ MALÉN CARDOSO Neste ano, harpista argentina veio pela segunda vez ao festival
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BOLSISTAS Foram realizadas aulas voltadas para composição, regência e instrumentos
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CASTELO DE CAMPOS No lugar se concentram as atividades pedagógicas do evento
Carvalho com a pretensão de criar uma grande orquestra internacional no Brasil. Seu objetivo, porém, nunca foi verdadeiramente realizado durante a sua vida, nem mesmo o de conseguir uma casa para a Osesp, que ensaiava e se apresentava em diversos espaços distintos. O que se diz é que, no velório de Eleazar de Carvalho, realizado no Theatro Municipal de São Paulo, foi grande a comoção por ter o maestro morrido sem realizar o sonho de uma casa para a sua orquestra. Foi nesse contexto que o então governador Mário Covas investiu na construção da Sala São Paulo, casa da Osesp, e na reformulação da orquestra realizada pelo maestro John Neschling – hoje à frente do Theatro Municipal de São Paulo. Atualmente, a Fundação Osesp administra também o Festival de Inverno de Campos do Jordão.
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Sonoras
ORQUESTRA DOS BOLSISTAS
A abertura da 45a edição do festival teve a Nona Sinfonia de Beethoven tocada pela Osesp com os seus coros, o barítono Paulo Szot e solistas convidados. A regência ficou a cargo da maestrina americana Marin Alsop, que se divide entre os cargos de regente titular da Osesp e diretora musical da Orquestra Sinfônica de Baltimore, e que fez a consultoria artística do festival. Apesar dos vários grupos importantes que passaram pelo festival (como a Orquestra Sinfônica Brasileira e a Filarmônica de Minas Gerais), que tem aplicado com êxito o modelo de gestão da Osesp e vem num crescendo de qualidade musical, e dos grandes solistas e grupos de câmara que se apresentaram, as atenções estavam voltadas para a Orquestra do Festival, formada por bolsistas. É nela que tocam os músicos selecionados a partir
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de um edital divulgado no final do ano anterior e no qual consta o repertório da seleção para o evento. Segundo o coordenador artísticopedagógico do festival, Fábio Zanon, este ano, foram mais de mil inscrições de músicos de orquestra. “A parte educativa do festival está fortemente associada à ideia de prática orquestral. É um encontro que foi modelado para criar uma nova geração de músicos orquestrais do país. Fico muito contente em ver que, de um ano para o outro, existe uma evolução da própria atitude dos bolsistas”, disse ele. É no Castelo de Campos que se concentram as atividades pedagógicas. Nesta última edição, lá foram feitas as aulas dos 145 bolsistas distribuídos em classes de 16 instrumentos, composição e regência. Na classe de regência, os professores foram Marin Alsop, que regeu o primeiro concerto da Orquestra do Festival, e Giancarlo
“É um festival que foi modelado para criar uma nova geração de músicos orquestrais do país” Fábio Zanon Guerrero, regente da Sinfônica de Nashville. “Ao mesmo tempo em que Marin Alsop é mais técnica, Guerrero é um cara enérgico, divertido, sabe despertar a imaginação das pessoas”, observa Fábio Zanon. Os bolsistas de regência subiram ao pódio para reger a Orquestra Sinfônica de São José dos Campos. Já os de composição tiveram aula com a compositora convidada do festival, a inglesa Anna Clyne. Obras dela e dos alunos foram apresentadas ao longo do festival.
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Já no primeiro concerto da Orquestra do Festival foi apresentada Masquerade, obra composta em 2013 por Anna Clyne. O repertório do concerto de fato impressiona pela dificuldade para uma orquestra jovem: além da peça de Clyne, foi apresentada a Rapsódia para um tema de Paganini, de Sergei Rachmaninoff, tendo Boris Giltburg ao piano solista, e, principalmente, a Sinfonia no 5 de Dmitri Shostakovich, obra de peso que ficou conhecida sobretudo pela interpretação de Leonard Bernstein, antigo professor de Marin Alsop, que regeu o concerto. “Tocar a Quinta Sinfonia de Shostakovich foi um grande desafio, pois não é uma obra normalmente tocada por uma orquestra de jovens”, afirma ainda Fábio Zanon. Mas são realmente os desafios que tornam o festival interessante. Thierry de Lucas Neves, 18 anos, natural
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Entrevista
RONALDO MIRANDA “O COMPOSITOR ESTÁ NAS MÃOS DOS INTÉRPRETES” No dia 17 de julho deste ano,
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de Goiânia, é spalla da Orquestra do Festival e veio pela terceira vez a Campos do Jordão como bolsista. Ele conta como o festival mudou a sua vida: “Tive aulas com o violinista Pinchas Zukerman, um grande gênio do instrumento, e ele me mandou estudar com Daniel Guedes, no Rio de Janeiro. Hoje, eu moro no Rio. Este ano, ganhei bolsa para participar de uma semana de música de câmara da Julliard School em Nova York”. Foi indicado ao posto de spalla pelos professores, que observaram os alunos que se destacaram durante as aulas. A argentina Liz Malén Cardoso, 28 anos, toca harpa há 17 anos e veio pela segunda vez ao festival. “Os professores são muito bons, e ter a possibilidade de tocar em uma orquestra em que todos os músicos toquem bem é realmente incrível”, disse ela. Relato semelhante fez a clarinetista irlandesa Leonie Bluett, 24 anos: “É a minha primeira vez no Brasil e eu não sabia o que esperar. É lindo tocar com uma regente famosa como Marin Alsop. Fiz muitos contatos importantes no festival”. Todos eles tocavam no concerto de encerramento da parte pedagógica do festival, realizado no Auditório Claudio Santoro. O repertório: Sinfonia no 1 de Beethoven, Sinfonia tropical,
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PÚBLICO Programação acontece em vários espaços, como a Praça de Capivari
de Mignone, e Os pinheiros de Roma, de Ottorino Respighi. No ensaio geral, o enérgico Giancarlo Guerrero alternava gestos entusiasmados e reprimendas aos músicos, cobrava atenção e compromisso. No concerto do dia 26 de julho deste ano, a orquestra mostrou uma bela sonoridade, mesmo nos momentos mais difíceis. Poucas orquestras no Brasil têm desempenho desse nível, mesmo as profissionais. A apoteose veio com Os pinheiros de Roma, poema sinfônico que descreve as árvores características da região romana. No último movimento da peça, os metais da orquestra, espalhados pelo auditório, provocaram uma funda impressão na plateia, que ovacionou a apresentação por longos minutos. Nos bastidores, falava-se que essa foi a melhor orquestra de bolsistas da história do festival. O lema do mestre Eleazar de Carvalho, “mais escolas para mais orquestras”, continua dando frutos exatamente nos moldes que ele concebeu.
estreava na Sala São Paulo, regida pelo aclamado maestro brasileiro Marcelo Lehninger, a obra sinfônica do compositor carioca Ronaldo Miranda, as Variações temporais, uma encomenda que lhe foi feita pela Osesp, com o objetivo de servir de preâmbulo à Sinfonia pastoral de Beethoven, tocada na segunda parte do programa. A peça de Lehninger dialoga com a música de câmara do compositor alemão, especialmente as sonatas Aurora, Primavera e Tempestade. Tocada pela Osesp na Sala São Paulo e no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão, Variações temporais é a culminância da obra do compositor de 66 anos, que neste ano teve sua terceira ópera encenada, o Menino e a liberdade, no Theatro São Pedro, na capital paulista. É antiga a relação de Ronaldo Miranda com a Osesp e remonta à época do lendário maestro Eleazar de Carvalho. Na 45o edição do Festival de Campos do Jordão, foi tocada pela Orquestra Sinfônica de Santo André outra relevante composição de Ronaldo Miranda, a Sinfonia 2000, realizada por encomenda do Ministério da Cultura em comemoração aos 500 anos do Brasil.
CONTINENTE Como você, que já teve peças tocadas e encomendadas pelas Osesp em diversas fases de sua existência, vê a atual fase da orquestra? RONALDO MIRANDA Minha primeira obra encomendada pela Osesp estreou em 1982, no Teatro Cultura Artística. Por coincidência, a peça foi feita para abrir um programa em forma de variações, tal como a obra que estreei este ano com a nova Osesp. Chamavase Variações sinfônicas, título que
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tomei emprestado a César Franck: foi a primeira peça que escrevi para grande orquestra. Eleazar de Carvalho programou-a ao lado da Rapsódia sobre um tema de Paganini, de Rachmaninoff (obra que também usa a forma “tema com variações”), e a Sagração da primavera, de Stravinsky, pois se comemorava o centenário de nascimento do autor. Com essa performance, ganhei meu primeiro Prêmio APCA: Melhor obra orquestral de 1982. Eu tinha 32 anos e era um carioca praticamente desconhecido, como compositor, em São Paulo. Só identificavam em mim o crítico de música do Jornal do Brasil. Depois disso, veio o Concerto para piano e orquestra (1983), Eleazar regendo e eu atuando como solista. A obra logo voltou às estantes da Osesp, no Festival Música Nova, com John Bowdler na regência e Gilberto Tinetti no piano solista. Na nova Osesp, estreei com Horizontes (peça programática que ganhou, em 1992, um concurso de composição da UFRJ, celebrando o bicentenário do Descobrimento da América). Ela foi tocada pela Osesp em 1999, ano de inauguração da Sala São Paulo, com Roberto Minczuk na regência. Ao final de 2006, John Neschling regeu, com Eduardo Monteiro solando, meu Concertino para piano e orquestra de cordas, na série oficial da orquestra: foi um grande sucesso. Na ocasião, ele prometeu me encomendar um Concerto para violino, cujo solista seria Claudio Cruz. Com o afastamento de Neschling, esse projeto foi retomado em 2009, por Marcelo Lopes, diretor executivo da orquestra, que formalizou o pedido para abril de 2010. E, assim, estreei a nova encomenda nessa data: Claudio Cruz foi o solista e Minczuk, mais uma vez, foi o regente. Em 2013, recebi de Arthur Nestrovski, atual diretor artístico da Osesp, o convite para compor uma obra para a orquestra, a ser estreada em julho deste ano, sob a regência de Marcelo Lehninger. Assim nasceram as Variações temporais – Beethoven revisitado. Em sua primeira fase, no Teatro Cultura Artística, a Osesp produziu belos momentos de música, sob o comando do maestro Eleazar. Mas foi decaindo, à medida que mudava de sede. Passou para o Cine Copan e acabou no Memorial da América Latina, cujo teatro tem péssima acústica para a música não amplificada.
“Eleazar morreu lutando para manter sua orquestra, sem força política. No governo de Covas, a Osesp ressurgiu” Eleazar morreu lutando para manter sua orquestra, sem força política para mudar. Com Neschling e Marcos Mendonça, no governo Covas, a Osesp ressurgiu com força total, primeiro no Theatro São Pedro e, logo em seguida, na Sala São Paulo, onde se estabeleceu em 1999. Hoje é a melhor orquestra do país e da América Latina, com um nível de qualidade que a coloca ao lado das grandes orquestras internacionais. Criou um público entusiasta e fiel, e vem mantendo, na nova gestão, um nível de qualidade altíssimo.
CONTINENTE Foi difícil a tarefa de dialogar com Beethoven nas Variações temporais? RONALDO MIRANDA Sim, foi muito difícil. A proposta partiu de Arthur Nestrovski: ao realizar a encomenda, um ano antes da estreia, ele estipulou as características da obra comissionada, que deveria ser escrita para abrir o programa, com cerca de 10 minutos de duração e funcionando como uma espécie de prólogo para a Sinfonia pastoral, de Beethoven, que seria ouvida na segunda parte da apresentação. Primeiramente, a ideia era tecer as variações sobre temas da própria Pastoral, mas ampliamos o conceito para obras de Beethoven ligadas à natureza. CONTINENTE Como foi realizada a obra sinfônica? RONALDO MIRANDA Utilizei pequenos fragmentos de três motivos beethovenianos: o Tema B do primeiro movimento da Sonata aurora; o Tema
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A do terceiro movimento da Sonata tempestade (ambos para piano solo); e o tema principal do primeiro movimento da Sonata primavera (para violino e piano). Nas minhas Variações temporais, esses motivos já aparecem bem modificados no tema inicial da obra, em que componho à maneira de Beethoven. A partir da primeira variação, contudo, é a minha linguagem que entra em cena. Os três temas beethovenianos só voltam a aparecer – com espaços bem longos entre cada um – no decorrer da peça. São citações que funcionam como links ou repousos entre as variações. Conseguir coerência, equilíbrio e unidade nessa mistura de linguagens foi algo árduo de obter, tomando-me cerca de seis meses de trabalho contínuo. CONTINENTE Como é a experiência de ver a sua obra materializada, digamos, pela execução de uma orquestra como a Osesp? RONALDO MIRANDA É uma experiência muito gratificante. O compositor está nas mãos dos intérpretes e do público. Eu diria que o intérprete é o principal
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“A vida cultural de São Paulo, especificamente falando de música, cresceu muito nos últimos 20 anos” elemento para que a obra composta se materialize e ganhe vida própria. E quando esse intérprete é uma orquestra da qualidade da Osesp, então a experiência se torna altamente estimulante. Em relação à Osesp, tenho tido sorte também com os regentes, do velho Eleazar ao jovem Marcelo Lehninger, passando por Roberto Tibiriçá, sempre competentíssimo, na antiga fase da orquestra. CONTINENTE A existência, numa mesmo estado, de instituições musicais do porte da Osesp e do Theatro Municipal, assim como o Festival de Inverno de Campos do Jordão, indica a maturidade da vida cultural de São Paulo?
RONALDO MIRANDA A Sinfonia 2000, do compositor, foi interpretada pela Orquestra Sinfônica de Santo André
RONALDO MIRANDA Sim. A vida cultural de São Paulo, especificamente falando da atividade musical, que é o meu campo de atuação, cresceu muito nos últimos 20 anos. O Rio de Janeiro tinha a primazia da atividade musical no Brasil, pois – até 1960 – foi a capital da República. Até a década de 1980, o Rio ainda se beneficiou das consequências naturais desse “status”. Mas, paulatinamente, a partir da década de 1990, São Paulo foi tomando a dianteira. Fui crítico de música do Jornal do Brasil, no Rio, em dois períodos: de 1974 a 1982, e de 1993 a 1994. A diferença em relação aos concertos, entre os dois períodos, foi considerável, com os níveis de quantidade e qualidade decaindo vertiginosamente. Fui também diretor da Sala Cecília Meireles, no Rio, durante nove anos. Entre 1995 e 1998, consegui fazer um bom trabalho. Entre 1998 e 2000, fui tentando manter a duras penas a qualidade da programação, mas, a partir da década de 2000, não tinha mais como estabelecer uma temporada de qualidade. Pedi exoneração do cargo em março de 2004 e, em setembro
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INDICAÇÕES do mesmo ano, transferime para São Paulo, onde vivo há 10 anos e sou professor de Composição no Departamento de Música da ECA-USP. Em São Paulo, estreei minhas três óperas: Dom Casmurro (1992), A tempestade (2006) e O menino e a liberdade (2013), e tenho obtido, ao longo da minha carreira, muitas outras encomendas. É verdade que o Rio também me prestigia muito, em relação às encomendas sinfônicas, à Bienal da Funarte (em que começou minha carreira de compositor, em 1977) e à execução e gravação de minhas obras. Mas jamais consegui levar uma ópera de minha autoria à minha cidade natal. Comparando as duas cidades, no momento atual, São Paulo consegue, com ampla vantagem, a primazia da atividade musical. CONTINENTE Como você vê a importância da figura de Eleazar de Carvalho para a existência da Osesp e do Festival de Inverno de Campos do Jordão? RONALDO MIRANDA Eleazar de Carvalho foi um pioneiro em relação a muitas realizações musicais no Brasil. Enquanto diretor da Orquestra Sinfônica Brasileira, seus Concertos para a juventude marcaram época no Rio de Janeiro. Enquanto regente brasileiro, foi o primeiro a ter projeção internacional, dirigindo a Orquestra de Saint-Louis, regendo nas principais capitais europeias, ensinando regência em Yale e, antes, no Festival de Tanglewood, em que se orgulhava de ter tido como alunos Zubin Mehta e Seiji Ozawa. Ao ser afastado da OSB, Eleazar veio para São Paulo e fundou a Osesp, fazendo história
novamente. O Festival de Inverno de Campos do Jordão – inspirado em Tanglewood – foi outra realização sua, maravilhosa, pois nunca outro curso de férias brasileiro, no âmbito da música, atingiu tal magnitude. Infelizmente, Eleazar morreu com total desprestígio político, reunindo todas as suas forças para manter viva a Osesp, que se apresentava toscamente no Memorial da América Latina, e chegava a ensaiar muitas vezes no auditório do colégio Caetano de Campos, na Aclimação, sem qualquer condição acústica para uma orquestra do seu porte. Para a música brasileira, Eleazar não mediu esforços e foi um grande incentivador. Posso me considerar um privilegiado, por ter recebido dele um impulso decisivo: acreditou em mim, como jovem compositor, dando-me raras oportunidades e colocando nas minhas mãos meu primeiro Prêmio APCA, em 1982. Muitos outros compositores foram prestigiados por Eleazar, de Claudio Santoro a Edino Krieger, passando por Almeida Prado, de quem ele gostava especialmente e de quem estreou sua inesquecível Aurora. Frequentemente, lembrome de Eleazar regendo Santos football music, de Gilberto Mendes, com a bola na mão, fazendo com total circunspecção (e um surpreendente talento de ator) o papel de maestro-juiz de futebol. Aos poucos, o Brasil vai retomando a consciência da sua real importância. JT
EXPERIMENTAL
MATHEUS MOTA Almejão Independente
Segundo disco do compositor pernambucano, que consegue a proeza de unir as experimentações rítmicas e melódicas ao peso sedutor da canção. Em Desenho, de 2012, Mota fazia isso através de pontuais recortes do cotidiano. Em Almejão, o que ocorre é um desdobramento desse processo. O disco foi gravado em casa, o que não só contribui para a estética do projeto, como também traduz para o áudio uma série de possibilidades sonoras e timbres característicos.
POST ROCK
INDIE
THE VASELINES V for Vaselines Rosary Music
The Vaselines é uma banda tão boa quanto desconhecida do grande público. Nos anos 1990, obteve alguma popularidade, graças ao finado Kurt Cobain, que não só era um fã declarado, como chegou a gravar algumas de suas composições com o Nirvana. Em 2009, para deleite do público indie, o grupo voltou à ativa, com o disco de inéditas Sex with a X. Agora, o novo trabalho conta com participações de ex-membros de várias bandas icônicas, tais quais Belle and Sebastian e Teenage Fanclub.
POP PUNK/SKA
RUÍDO/MM Rasura
RANCID ...Honor is all we know
Sensacional do início ao fim, Rasura é uma progressão natural do trabalho que a banda curitibana de post rock vem realizando. Sem jamais cair na fórmula responsável por assassinar a obra de muitos artistas do gênero, a de se render à intensa utilização de dinâmicas harmônicas e rítmicas do tipo caótico/sereno, o ruído/ mm tem, sem dúvida, uma grande importância. Composições como Réquiem for a western manga demonstram a perícia, o cuidado e o domínio com que são concebidos os timbres dos instrumentos e as progressões harmônicas.
Ao longo da década de 1990, o glamouroso mercado da música pop foi palco da ascensão do pop punk. De todas as inúmeras bandas que apareceram nesse período, a Rancid foi uma das únicas a resistir à passagem do tempo, mantendose íntegra por mais de 20 anos. No novo disco, o grupo continua com aquilo que sabe fazer de melhor: a mistura entre harmonias frenéticas, distorção e ska. Além disso, a voz do vocalista Tim Armstrong e o baixo de Matt Freeman são elementos que, no mínimo, fazem valer a audição.
Sinewave
Hellcat Recordso
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CON TI NEN TE
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Tina Turner por David Duque
Há dois anos, Oprah Winfrey fez uma rara entrevista com Tina Turner e questionou a cantora sobre sua
aposentadoria, após sua turnê de 2009. Ela não sentiria mesmo falta de cantar, da interação com o público? “Não, Oprah, passei a vida inteira fazendo isso. Quando fiz meu último show, senti que estava, enfim, voltando para casa.” Longe do showbizz, mas não do imaginário do pop, Anna Mae Bullock completa este mês 75 anos. Deus salve a rainha!
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